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Chiara Gemma Pussetti

Capítulo 3:
Psicologias Indígenas: da antropologia das emoções à etnopsiquiatria

O propósito desta comunicação é propor uma reflexão crítica sobre o domínio que
nós definiríamos habitualmente como sendo “psicológico”, bem como sobre o que nós
chamaríamos de “psicopatológico”, analisando em profundidade o conceito de emoção1.
Este itinerário teórico interdisciplinar levar-nos-á a individualizar os pressupostos de
base da etnopsiquiatria. Como veremos, e como muitos autores pertencentes às
perspectivas teóricas da antropologia médica e da etnopsiquiatria já sublinharam (entre
os outros, Devereux 1973; Kleinman 1980, 1987, Good e Kleinman 1985; Good B1994;
Coppo 1996; Beneduce 1998, 2002; Vacchiano 1999) as pesquisas em psiquiatria
transcultural tenderam a abordar o tema do estudo do homem e das suas manifestações
disfuncionais a partir de uma imagem do homem definida como sujeito, cujas
características teriam sido estabelecidas e fixadas irrevogávelmente nas categorias fortes
da medicina ocidental.
Trata-se de definições que são próprias de um sector profissional com uma
representação precisa do indivíduo, que se considera expressão científica de
demarcações naturais, único conhecedor de uma suposta “verdade biológica”, mas
que na realidade constitui apenas uma forma particular de representação cultural.
Nesta visão, o ser humano é considerado como composto por níveis sobrepostos: na
base encontrar-se-ia um sólido e uniforme substrato fisiológico e psicológico
universal, “núcleo duro” comum a todos os seres humanos; sobre esta base
encontraríamos a mudança, a variabilidade, a multiplicidade dos costumes. Nesta
óptica, biologia e psicologia são assimiladas, e consideradas como subjacentes e
determinantes em relação aos outros aspectos sócio-culturais. Todos os processos
cognitivos, as emoções, es experiências de carácter “psíquico” seriam assim
invariantes cuja “natureza” universal deixa pouco espaço para uma contextualização
socio-cultural (Vacchiano 1999). As emoções, nesta perspectiva, são consideradas
como algo que se situa no íntimo do indivíduo, algo de pre-cultural, ligado mais à
memória filogenética que à aprendizagem individual. Seriam fenómenos naturais e
biológicos de carácter não cognitivo, universais e inatos. Neste sentido, as ciências
da psique ocidentais - por definição construídas ao redor de presumíveis universais -
admitem com dificuldade que haja dinâmicas de mudança, múltiplos significados
potencialmente discordantes, ou outras teorias do indivíduo, das emoções e da cura.

1
Este artigo é inspirado por uma reflexão do amigo e colega Francesco Vacchiano (1999), que permitiu-me por em
relação o meu mais amplo trabalho sobre a antropologia das emoções com as perspectiva teóricas da etnopsiquiatria.
Fonte preciosa de inspiração foram também as contribuições de Good e Kleinman (1985), Despret (2002), Beneduce
(1997, 1998), Beneduce e Collignon (1995).
Propondo-se como científicas, elas relegam os outros saberes e técnicas que tratam
de emoções, desvios, aflição ou loucura para a categoria de “etno-medicinas”,
psicologias folk, psicologias indígenas, etnopsicologias, psicologias culture-bound.
Este paradigma, que considera a emoção como um fenómeno universal, enquanto
pre-cultural e inato, e que vê na doença um evento absoluto, da objectiva naturalidade,
encontra-se subvertido pelos dados e pelas reflexões antropológicas, que o colocam
num âmbito de pertinência mais limitado, confinando-o na esfera de influencia dos
nossos códigos e das nossas categorias (mesmo admitindo que estas também possam ser
pensadas como uniformemente "ocidentais"). Nesta perspectiva, seria preciso
considerarmos a psicologia e a psiquiatria ocidentais, também, como etno-psy ou
psicologias locais, indígenas, na medida em que se organizam e instituem no interior de
um determinado contexto histórico-cultural. Esta observação obriga-nos a efectuar uma
rápida reflexão sobre a utilização não critica das categorias e dos quadros interpretativos
da psiquiatria por quanto com pretensas de trans-culturalidade. Podemos partir por uma
afirmação de Tobie Nathan, que contrapõe a etnopsiquiatria no sentido de George
Devereux à psiquiatria transcultural:

Car si, conformément aux indications de G. Devereux, j’ai conservé le terme


" ethnopsychiatrie " (quoique n’étant pas psychiatre), c’était pour préserver
l’originalité du domaine, notamment par rapport à la psychiatrie transculturelle,
surtout américaine. La psychiatrie transculturelle est, du point de vue
méthodologique, en quelque sorte le symétrique de l’ethnopsychiatrie. Elle se veut
une psychiatrie que l’on pourrait dire " culturellement éclairée " — mais une
psychiatrie avant tout! Elle utilise les apports anthropologiques pour rendre la
psychiatrie possible avec des populations que peu de choses dans leurs traditions
prédisposaient à ce genre de pratiques. En vérité, cette psychiatrie consacre un
lien entre anthropologie et conquête puisqu’elle demande à l’anthropologie de lui
fournir les savoirs qui lui permettront de percer les défenses que ces populations
opposent aux pratiques psychiatriques (Nathan 2000)

De facto, se consideramos melhor esta afirmação muito forte de Nathan, o termo


“etnopsiquiatria” é mais ou menos o contrario de “psiquiatria transcultural”. Por esta
entende-se uma psiquiatria adaptada de forma a “atravessar” as culturas, demonstrando
eficácia também em sociedades diferentes, sem no entanto pôr em causa o conjunto de
saberes e certezas da psiquiatria ocidental – e principalmente a hipótese de um
presumível núcleo biopsíquico universal. Dado este pressuposto, o terapeuta limita-se a
traduzir os comportamentos, as palavras e os sintomas dos pacientes nos seus próprios
códigos nosográficos. Nestes termos a psiquiatria, em quanto disciplina “cientifica”,
baseada no assunto da unidade biopsíquica dos seres humanos, parece exercer a
pretensão de poder impor a sua hegemonia a qualquer latitude, reproduzindo
imperturbavelmente os seus pressupostos, através da autoridade dos seus manuais, das
suas categorias diagnósticas, dos seus modelos terapêuticos (Beneduce 2000). A cultura
nesta visão pode só influenciar, atuir ou regulamentar a expressão destas experiências
emotivas universais através de regras de exibição locais, ou condicionar a interpretação
destas mesmas experiências universais através dos óculos opacos das crenças locais.
No decorrer desta comunicação veremos de facto que em princípio cada sociedade
tem as suas próprias emoções e as suas doenças, que, nesta perspectiva, não podem
mais ser consideradas formas puras, universalmente definidas e imutáveis, objectos
naturais, como pretenderia o paradigma biomédico, hegemónico no Ocidente.
Representações diferentes das emoções, da pessoa, do corpo, estão na base de
horizontes nosológicos diversos, de experiências diferentes da aflição, do mal-estar e
da cura. Torna-se assim necessário abandonar pretensões de universalidade e aceitar a
presença simultânea de outros saberes baseados em diferentes definições do indivíduo,
da normalidade e da anomalia, e em interpretações e representações alternativas da
saúde, do sintoma, da doença e da cura. Como veremos, analisando o discurso
científico ocidental sobre a emoção que se encontra na base da “nossa” etnopsicologia,
os enunciados da cura se baseiam sempre - não apenas para ser eficazes, mas mais
especificamente para poder subsistir - numa prévia concepção específica do homem e
das suas relações com o contexto definição (numa antropologia ou psicologia implícita
ou indígena)2.
Seguindo a pergunta que Kleinman (1980) e Vacchiano (1999) põem a si mesmos:
“como poderia um medico tradicional chinês curar sem ter em conta a teoria dos
desequilíbrios entre elementos yin e yang, da desarmonia das cinco fases evolutivas
(fogo, agua, madeira, metal, terra), do bloqueio da circulação da essência vital ki?”,
podemos nos perguntar também: como conseguiria um djambacusse guineense tratar
dum paciente sem se apoiar numa representação da pessoa como ser aberto totalmente
permeável às influencias e às emoções dos outros ou se não tivesse presente a
complexidade das relações entre os homens e os espíritos e as vias que estes espíritos
percorrem para se introduzirem num corpo e o possuírem? Como poderia a sua cura
surtir efeito se não fosse suportada por uma teoria que junta a psicologia e a fisiologia
humana, incluindo como aspectos do mesmo processo o que nos distinguimos come
pensamentos, sentimentos, desejos, vontade e os seus íntimos efeitos sobre o corpo?
A partir destas premissas conceptuais, o nosso objectivo será o de tentarmos uma
análise do conceito de emoção numa óptica interdisciplinar, para retirarmos alguns
motivos de reflexão sobre a nossa maneira de considerarmos nos quadros interpretativos
da nossa psicologia a depressão, como caso exemplar de “patologia” estreitamente

2
Kleinman pôs o acento, através do conceito de explanatory model, na conexão entre modelos da doença e representações do
homem n
uma certa sociedade, enfatizando assim o papel da cultura ao plasmar, ao mesmo tempo, o indivíduo e as formas do seu mal-estar
(Kleinman, 1980).
correlacionada, no léxico psicológico, com emoções. Entre as assim chamadas
“patologias do humor”, escolhi tratar da depressão como categoria emblemática das
nossas disciplinas da psique: o que comporta aqui, onde a depressão é considerada uma
epidemia e uma das doenças que tem o major custo social; aqui, onde nasceu, com a
cultura giudaico-cristiana, a mais articulada e elaborada conceição da dor moral e onde
os produtores de antidepressivos contribuem à formação dos clínicos, por seriamente o
problema do que é a depressão? Pode ou não ser considerada uma síndrome universal,
bem sabendo que até os anos cinquenta a depressão também em Ocidente não era
considerada uma doença? A antropologia das emoções ofereceu neste sentido um
importante contributo, analisando os discursos sobre emoção, subjectividade, self e
doença através do tempo (entre os outros, Cancian 1987; Gardiner, Metcalf, Beebe-
Center 1970; MacFarlane 1987; Stearns, Stearns 1986). A questão da tristeza e da
depressão foi objecto de diferentes estudos históricos. Jackson (1985), como também
Harré e Finlay-Jones (1986), se concentraram na difícil tarefa de seguir o
desaparecimento duma emoção chamada “acídia” e o significado da obsolescência de
“melancolia”, dois conceitos precursores de “depressão” tão importantes na época
medieval, no período contemporâneo. Sontag (1977) afirmou que o movimento
romântico do século dezanove chegou a celebrar a individualidade também através
duma visão da tristeza como signo de requinte, como uma qualidade que torna a pessoa
que sofre dela “interessante”. O surgir do individualismo levou consigo a celebração da
diferencia; uma das maneiras nas quais os novos indivíduos podiam distinguir si
mesmos dos outros era através da concentração sobre sentimentos definidos como
aspectos de personalidades únicas. Radden (1987) levou esta argumentação a ponto de
afirmar que a melancolia era lamentada principalmente pelos homens, e era um
sentimento bastante valorizado socialmente. A autora afirma que o correspondente
discurso moderno sobre a depressão difere no individuar as mulheres como as que
sofrem e no representar a síndrome como mais inequivocavelmente desviante,
inadequada, e medica na sua natureza3.
Estas reflexões podem nos levar desde a perspectiva histórica sobre as emoções à
perturbadora afirmação de Kleinman: a síndrome depressiva é uma categoria cultural
construída pelos psiquiatras ocidentais para dobrar as suas exigências um grupo
homogéneo de pacientes (Kleinman, 1977:3).
Este percurso tortuoso da antropologia das emoções às premissas teóricas da
etnopsiquiatria indicara-nos-á como cada definição patológica, e por maioria de razão
psico-patológica, tem que ser considerada como culturalmente específica (e portanto
culture-bound). Como iremos ver, o olhar antropológico sobre as emoções e sobre a

3
Esta mudança poderia ter uma ligação com o geral processo de medicalizzação e normalizzação que caracteriza, na
análise de Foucault (1978), a idade moderna.
doença resvela a natureza política e social do nosso saber mais certo, de aspectos que
podem ser considerados íntimos e naturais, como as nossas emoções, a doença, o
sintoma, as sensações corpóreas. No final desta comunicação veremos como por em
pratica estas reflexões na clinica etnopsiquiatrica, resulta epistemologicamente
revolucionário. O estabelecimento de um quadro interpretativo especifico (depressão em
vez que feitiçaria, alucinação em vez que possessão, por exemplo) não tem a ver com o
desvelamento de uma verdade objectiva biológica, mas monstra a intervenção de uma
hegemonia na definição de critérios universais para decidir o que é doença e o que não é
(entre os outros Vacchiano 1999; Kleinman 1980, 1996; collignon 1997, fassin 2000;
Good B. e Kleinman A. (a cura di) 1985 Nathan T., 2000c McCulloch J., 1995)

Começámos a nossa análise com uma questão aparentemente simples: o que é uma
emoção? What is an emotion? A pergunta que William James colocava a si próprio
mais de cem anos atras na revista filosófica Mind (1884), parece não ter ainda
encontrado uma resposta satisfatória. Apesar da grande florescência, em diferentes
campos do saber, de respostas sobre a natureza, os elementos constitutivos, os factores
envolvidos e a classificação das emoções, ainda não foi alcançado um acordo sobre a
sua definição e não é demasiado ousado afirmar que existem tantas definições quantos
são os estudiosos que se ocuparam deste argumento. Parece que todos sabem o que é
uma emoção, até o momento em que é pedida uma definição certa4.
Um dos elementos distintivos das emoções é o facto delas ser um conjunto de
estados psicofísicos com características diferentes, difíceis assim de individuar e definir
ao nível conceptual.
A ideia mesma de emoção poderia revelar-se inútil como categoria cientifica, por
que não constitue o que os filósofos da ciência chamam uma classe natural, “a natural
kind” (Rorty 1980: 104-105; de Sousa 1986: 19, 185), ou seja um conjunto homogéneo
de elementos através do qual se podam avançar generalizações explicativas e
predictivas.
A literatura disponível sobre as emoções monstra como este termo é utilizado para
individuar uma tão ampla constelação de fenómenos que o objectivo de estabelecer uma
definição unívoca resulta difícil de conseguir: ao conceito de classe natural parece assim
preferível o wittgensteiniano de semelhança de família. À falta de um quid substancial
definido, diria Wittgenstein, somos nos que traçamos os limites (Wittgenstein [1953]
1980: 48).
Apesar da maior parte dos psicólogos considerar como segura a existência de um
equivalente de “emoção” em todas as línguas, considerando-a uma experiência

4
As definições que em campo filosófico-psicológico, foram propostas para definir o conceito de “emoção” são
muito numerosas, superiores à centena. A variedade e o numero impressionante das definições é um dado que me
parece reflectir uma incerteza te’orica, que acaba para ter efeitos negativos na pesquisa empirica.
universal, em algumas culturas este conceito não é distinguido como uma categoria
autónoma, mas assimilado a outras formas de experiência e relacionado com outros
aspectos da realidade5. Diferentes definições do conceito de pessoa revelam como
muitas vezes as distinções “ocidentais” entre corpo e mente, pensamento e sentimento,
privado e publico, se revelam pouco apropriadas6. Do mesmo modo outras culturas
podem juntar aquilo que nós consideramos como emoções distintas, criando novas
categorias7, ou podem também identificar emoções particulares e originais que não
encontram uma correspondência fácil na nossa classificação emocional. Este é por
exemplo o caso da palavra japonês amae, que pode ser explicada como uma
dependência agradável, um abandono passivo às atenções de uma outra pessoa, para a
qual se sente ao mesmo tempo uma grande admiração; do termo javanês sungkan, que
se refere a um sentimento de gentileza respeitosa em frente a uma pessoa de classe
superior, uma atitude de controlo, de repressão dos próprios impulsos e desejos, de
modo a que não seja perturbado o equilíbrio emocional da pessoa espiritualmente mais
elevada do que nós. Também a relação entre corpo e emoção, que pode parecer evidente
ao nível da experiência, não é um universal, como se poderia pensar: muitas culturas de
facto colocam o locus das emoções longe da experiência individual, dissociando-o dos
sujeitos humanos e localizando-o em agentes externos8. Os antropólogos contam-nos
que outros povos sentem emoções que nós não experimentamos e que algumas das
emoções que conhecemos, e que tínhamos sempre julgado universais, inatas ou
biológicas, são desconhecidas em outros lugares, por exemplo a cólera entre os
Esquimesi Utku. Parece até que os próprios interrogativos que nós nos pomos para as
definir ou explicar, não têm qualquer sentido para membros de outras culturas. Parece
assim que as nossas emoções, que para nós são tão intimas e evidentes, tão naturais,
biológicas, irreprimíveis, tão autênticas, se constituem para outros de uma forma
absolutamente diferente. À luz deste efeito de contrasto, começamos a perceber que na
realidade estas características constituem a maneira pela qual nós construímos as
emoções: a natureza torna-se o que, para nós, se cultiva; a autenticidade o que se
constrói; a universalidade o que nos distingue. O confronto com diferentes sistemas de
conhecimento e maneiras de conceber a relação entre emoção, pensamento, corpo e
sociedade, sublinha assim em primeiro lugar que cada conceito de emoção é uma

5
A palavra “emoção” não tem equivalente nas linguas dos Papua da Nuova Guinea (Hallpike 1979; Poole 1985), dos
Aborigenos australianos (Hiatt 1978), dos Ifaluk da Micronesia (Lutz 1986), dos Chewong da Malesia (Howell 1981)
e, também, dos Bijagó da Guiné Bissau.
6
É o caso dos Giriama (Parkin 1985: 143-46) e dos Maori (Salomond 1985: 246-47).
7
Muitas linguas africanas assimilam nun unico termo “tristeza” e “raiva” (Leff 1973: 301); em chinês è utilizada a
mesma palavra para indicar “preoccupação”, “tensão” e “ansiedade” (Leff 1977: 322); “raiva”, “cólera” e “fúria do
combate” são asimilados no mesmo termo marah na lingua malese (Boucher 1979: 171); a expressão ilongot liget
significa ao mesmo tempo “raiva” e “inveja” (Rosaldo M. 1980: 44-47).
8
Segundo Hallpike, «os estados mentais e os sentimentos são muitas vezes considerados em outras culturas como
externos à pessoa e como entidades a cuja existencia é indipendente por o seu ser sentidos ou pensados» (1979: 402).
Exemplos desta externalizzação das emoções são reportados nas pesquisas de Simon e Weiner sobre a Grecia
homérica (1966: 307) e de Lienhardt dobre os Dinka (1961:149).
construção fundamentalmente ideológica, específica e não universalizável, ligada a
teorias locais e a uma epistemologia própria dum específico panorama histórico-
cultural.
Tentamos, por conseguinte, reflectir sobre o “nosso” conceito de emoção.
Encontramos as raízes etimológicas do termo “emoção” no latino e-movere, que
originariamente significa fazer sair, deslocar-se, mas também (em sentido figurado)
perturbar, chocar (mens emota, mente perturbada). A utilização desta palavra, com o
significado que nós lhe atribuamos, remonta todavia a pouco mais de trezentos anos
atras: as primeiras referências ao termo “emoção” encontram-se na primeira metade do
século XVI (o francês émotion, de émouvoir, “pôr em movimento, excitar”) e são
utilizadas para indicar turbulências atmosféricas. No século seguinte este vocábulo é,
pelo contrário, utilizado para designar estados de “agitação popular”. É só mais ou
menos na metade do século XIX que, num sentido metafórico, é empregue para
descrever um estado de perturbação psicológica, assumindo então o significado actual.
O termo que antes do século dezoito era utilizado para referir-se aos movimentos do
espírito era o de paixão, do grego πάθος (πάσχω subir, tolerar, sofrer, estar influenciado
por) do qual deriva o latino patior (suportar, penar, ser passivo). À base deste conceito
há, assim, uma ideia das paixões como forças pelas quais os seres humanos são
dominados, de uma maneira relativamente independente da sua vontade: uma coisa, por
outras palavras, que nos acontece, que explode entro de nós, paralisando-nos ou
ameaçando fazer-nos perder o controlo.
Daí a longa tradição de pensamento que coloca as emoções no interior dos corpos,
na esfera privada e incognoscível das pessoas, em contraposição ao reino publico da
razão e do pensamento. Desde os Estóicos até a escolástica e até Descartes muitos
puseram o acento de facto sobre a estreita ligação entre necessidades do corpo, instintos
e emoções, consideradas portanto como uma ameaça à liberdade e à serenidade das
actividades racionais mais propriamente humanas.
Catherine Lutz, figura central da antropologia das emoções, mostrou como as teorias
académicas ocidentais sobre as emoções se baseiam numa série de dicotomias, no
interior de um sistema de valores que vê a razão como superior (em quanto objectiva,
ordenada, mental, cultural) e as emoções como inferiores (porque subjectivas, caóticas,
corpóreas, naturais). A emoção é concebida de facto por contraposição à razão, assim
como o coração à cabeça, o irracional ao racional, o impulso à intenção, a
vulnerabilidade ao controlo, o caos à ordem, o natural ao cultural, o privado ao publico,
o moralmente ambíguo ao eticamente responsável, a criança ao adulto, o feminino ao
masculino e assim de seguida. Estas dicotomias banalizam a natureza complexa das
emoções e, contrapondo conhecimento objectivo e esfera privada subjectiva, deram
origem a uma série de problemas metodológicos que têm exluido as emoções do campo
das problemáticas das ciências sociais. Esta marginalização das emoções pode ser
reconduzida também a uma concepção filosófica que as considera como sobrevivências
do animal no humano, ou de qualquer maneira fenómenos naturais e biológicos de
caracter não cognitivo, universais, inatos e assim não interessantes nem acessíveis aos
métodos da análise cultural.
Somente no curso do século dezanove as emoções parecem deslocar-se desde o âmbito
das especulações filosóficas sobre o espírito humano ao campo da biologia, tornando-se
um argumento digno de ser estudado cientificamente. Estes estudos partilhavam todavia
uma conceição da emoção como fenómeno não cognitivo e involuntário, que apesar de
susceptível à influência da inteligência, do linguagem e da cultura, não era em si mesma
dependente destes factores complexos e historicamente condicionados. Entre os
pensadores que inauguraram a conceição científica das emoções Charles Darwin,
William James, Walter Cannon e Sigmund Freud podem ser considerados pais
fundadores da moderna pesquisa sobre as emoções9. O que em síntese une a posição
destes teóricos é uma visão das emoções como algo de interno aos indivíduos e conexo
a uma base genética hereditária e universal, ligada mais à memória filogenética que não
à aprendizagem individual.
Alguns teóricos contemporâneos, tornando própria esta visão, continuam a defender
a tese da existência de um conjunto de emoções fundamentais, inatas e transmitidas
geneticamente, definidas por expressões faciais universais. Estas emoções, definidas
como básicas ou primarias, seriam o resultado de um processo evolutivo, que
seleccionou sistemas comportamentais aptos a mobilizar de maneira veloz e eficaz os
recursos do organismo face às solicitações do ambiente. Características principais das
emoções primarias seriam a rapidez com que surgem, a duração relativamente breve de
cada episódio, a continuidade - em linha filogenética - entre o comportamento
expressivo humano e o animal, e a associação com expressões faciais inatas e
universais, apesar de serem susceptíveis de serem culturalmente reguladas, amortecidas
ou mascaradas, através de “regras de exibição locais”. Paradoxalmente, os estudiosos
que defendem a existência de emoções primarias imediatamente individuais ao nível
fisiológico não conseguiram pôr-se de acordo nem sobre quantas e quais fossem as
emoções básicas, nem sobre os critérios utilizáveis para as definir10.
Estas teorias, geralmente definidas como universalistas ou inatistas, caracterizadas
por influências de tipo etológico e neurobiológico, dominaram por muitos anos o campo
das pesquisas psicológicas e são representadas de maneira emblemática pelos clássicos
9
Plutchik 1980a, [1994] 1995; Plutchik e Kellerman 1980, 1983, 1986; Ekman e Scherer 1984; Jenkins e Oatley
1996; Strongman 1996; Galati 2002.
10
Tomkins (1962) e Ekman (1992) indicam seis emoções de base (cólera, medo, tristeza, felicidade, desgosto e
surpresa); Plutchik (1980) oito (aceitação, cólera, anticipação, desgusto, felicidade, medo, tristeza, surpresa);
Schaver, Schwarz e altri (1987) cinco (medo, surpresa, felicidade, cólera, tristeza). Kemper (1987) afirma que são
medo, cólera, depressão e satisfação; Izard (1977) onze (felicidade, surpresa, cólera, medo, tristeza, interesse, culpa,
vergogna, amor, solidão, indifferencia) e Frijda (1986) chega a propor dezassete emoções básicas.
estudos neuroculturais de Paul Ekman sobre os movimentos faciais (Ekman 1980a,
1980b, 1984). Nestes trabalhos Ekman tentou identificar a correlação entre um grupo
limitado de expressões faciais universais e um conjunto definido de “emoções básicas”.
Os antropólogos culturais criticaram duramente a metodologia utilizada por Ekman e
pelos pesquisadores que partilharam a sua opinião e a sua orientação teórica,
censurando-os de terem seleccionado artificialmente algumas emoções “purificadas”,
segundo critérios apriorísticos; de terem submetido desenhos estilizados ou fotografias
de caras, abstraídas de qualquer contexto, a um agregado restrito de pessoas, sem terem
em conta as eventuais diferenças de género, idade e posição social; de se terem baseado
numa identificação mecanicista entre movimento muscular e emoção propriamente dita,
descuidando o ponto de vista dos locais, o contexto e as circunstâncias da experiência
emotiva; e no final de terem fornecido uma tradução não critica dos termos emocionais
ingleses em outras línguas.
Embora ainda não sejamos capazes de formular uma teoria exaustiva sobre os
processos fundamentais envolvidos na geração das emoções, nos últimos decénios as
neurociências contribuíram para uma melhor compreensão dos mecanismos de base e
dos circuitos neuronais que controlam as respostas emocionais. Estudos recentes de
neurobiologia confirmam que o cérebro humano não é um órgão definitivamente
formado no momento do nascimento, mas pelo contrario uma entidade dinâmica,
modelada pelo ambiente e pela experiência individual e capaz de criar continuamente
novas conexões entre as suas células. Esta característica é geralmente denominada
“plasticidade”, noção que ocupa hoje um lugar central no âmbito das neurociências11.
Já nos anos Setenta Clifford Geertz apresentava a opinião de antropólogos físicos e
paleo-antropólogos, segundo os quais a cultura não era só um ornamento da existência
humana, mas uma condição essencial, ao ponto de o cérebro e em geral o sistema
nervoso do organismo humano precisarem de um ambiente social e cultural para
poderem funcionar (Geertz 1987: 89, 113). Esta perspectiva é ligada à teoria do homem
como ser “incompleto” 12 que precisa, no decurso da sua vida, aprender capacidades e
conhecimentos que não são fornecidos pelo seu aparelho instintivo. Contrariamente aos
outros animais, que são geneticamente fornecidos com os instintos necessários à sua
sobrevivência e à sua adaptação, o ser humano, nos primeiros meses ou anos de vida, é
um organismo prematuro, aberto, disponível, maleável, incompleto física e
psicologicamente, indefeso. Justamente em virtude desta sua indeterminação, ao
nascimento o horizonte do bebé é imenso, aberto a qualquer solicitação e todas as
condições humanas estão virtualmente à sua frente. Será a educação, suprindo a falta de

11
Gollin 1981; Changeux 1983; Edelman 1987; Mascie-Taylor e Barry 1995; Gazzaniga, Ivry e Mangun 1998;
Olivero 1998; Favole e Allovio 1999: 169-208; Robertson 1999; Perry 2000.
12
A tese do carácter incompleto ontológico do ser humano incontra entre os seus precursores pensadores como
Montaigne, Herder, Nietzsche, Gehlen.
orientações genéticas precisas, a desbastar este imenso campo de possibilidades em
favor de uma relação particular com o mundo que ele tornará própria de uma maneira
completamente pessoal.
De facto o cérebro humano desenvolve-se também depois do nascimento e o
crescimento neuronal irá continuar durante os primeiros dois anos de vida; só depois
começará a apresentar os primeiros signos de decrescimento. O isolamento natural do
córtex cerebral e as conexões de mielina que crescem entre os cilindro-eixos,
permitindo uma condução eficiente de impulsos eléctricos, não se formam totalmente
antes dos seis anos de vida. Somente na altura da puberdade se poderá dizer que a
maturação física do cérebro humano é completa, mesmo se o desenvolvimento neuronal
irá continuar por toda a vida. Esta combinação de nascimento prematuro e
desenvolvimento retardado significa que pelo menos três quartos do cérebro humano se
desenvolvem fora do útero, em relação directa com o ambiente externo. Pode-se falar
assim de um “cérebro ecológico ou cultural”, dependente as longo de toda a vida da
relação com o ambiente (Shore 1996: 3, 5). O nosso cérebro e os nossos sentidos
ressentem-se fortemente da interacção com o ambiente e a sociedade, a cujas
possibilidades e limites têm que se adaptar. Como os músculos das pernas e o sentido
do equilíbrio dum bebé que aprende a dar os primeiros passos têm que aprender a se
equilibrar e a sustentar o corpo da maneira apropriada sobre um terreno complexo e
mutável, assim os sentidos humanos têm que apreender a “ler” o ambiente físico e
cultural no processo de interacção com ele.
Esta interacção opera também no sentido de uma selecção de entre possibilidades
originais e de uma redução da plasticidade, com a aquisição e a estabilização de
determinadas conexões em prejuízo de outras. Neste processo o ambiente, a cultura e as
experiências individuais desempenham um papel determinante. Durante o processo de
crescimento, enquanto o ser humano aprende a gerir o mundo à sua roda e a manter
relações sociais, algumas conexões serão mantidas e outras eliminadas. A inculturação
desempenha um trabalho sistemático de selecção: o bebé adquire linguagem,
gestualidade, sentimentos e percepções sensoriais próprios da cultura corporal e afectiva
específica do seu grupo13.
Um exemplo da acção incisiva e selectiva da cultura na formação das sinapses e das
redes neuronais vem do estádio da aprendizagem da linguagem. Como se sabe, o bebé
produz e reconhece uma superabundância de sons, dos quais só alguns se encontram no
adulto. Patricia Kuhl (1998, 1999), retomando uma teoria avançada por Lévi-Strauss já
a uns anos ([1949] 1967: 109-110), afirma que os recém-nascidos são universalmente
capazes de reconhecer com precisão sons que os adultos já não distinguem, mas

13
Este modelamento se manifesta nas areas do cerebro mais “humanas”, as duas grandes expanções do lobo frontal e
da parte anterior do lobo temporal, que são provavelmente as estruturas neurológicas mais plasticas existentes,
capazes de assumir formas diversas (Damasio 1997: 111).
começam a perder esta capacidade à medida que vão adquirindo uma língua particular.
Quando o bebé supera o momento de porosidade muito especial, muitas vezes definido
“período critico” e que se situa entre mas ou menos os dezoito meses e os três anos de
vida, o cérebro ficará cada vez menos plástico e não lhe será mais possível aprender
uma língua com a mesma facilidade. Os centros cerebrais ligados à linguagem parecem
não poder atingir plena maturidade sem um estímulo adequado durante o período
apropriado. Se um bebé não for inserido neste período num ambiente onde uma dada
língua é utilizada, no futuro não poderá, nem se solicitado por uma educação intensiva,
adquirir e utilizar uma língua com competência.
Pode-se conjecturar um processo de aprendizagem similar também para o
desenvolvimento ontogénico de uma configuração afectiva específica. Muitos trabalhos
demonstraram que, apesar existirem potencialidades emocionais em todos os seres
humanos desde o nascimento, estas permanecem tais enquanto não forem organizadas
pela experiência, tornando-se comportamentos emotivos efectivos. O comportamento
emocional - por outras palavras - parece não ser mais determinado por elementos inatos
que aquele comportamento que nós chamamos linguagem. Já Hildred Geertz,
antecipando de uns decénio estas reflexões, afirmava que na socialização se assiste a um
processo de especialização emocional através o qual o bebé aprende «certos estados
afectivos que constituem uma selecção de entre toda a gama de potenciais experiências
interpessoais e emocionais» (1959: 225). De mesmo modo Clayton Robarchek (1979)
tem afirmado a existência nos seres humanos, ao nascimento, de uma «generalized
arousal reaction», ou seja de um estado genérico e indiferenciado de activação
fisiológica, que constituiria a matéria bruta ou o fundo biológico universal sobre o qual
operam as experiências de socialização emocional. Outros pesquisadores (Fridlund
1994; Fogel 1993, 2001) sublinharam que para as expressões emocionais, também, os
aspectos inatos consistem somente em disposições ou facilidades para aprender sinais
expressivos, cuja verdadeira estruturação ocorre através da aprendizagem. A estrutura
muscular da cara de um neonato oferece-lhe a possibilidade de um numero altíssimo de
combinações motoras, de entre as quais são seleccionadas, com base na aprendizagem,
alguns grupos de combinações que adquirem um significado comunicativo.
Segundo estudos recentes de neurobiólogos e psiquiatras, também as emoções que,
como os sentidos, parecem ser “naturais”, “inatas”, precisam então de um ambiente
humano para se desenvolverem correctamente (Lazarus, Coyne e Folkman 1984: 230).
Ao nível orgânico, como já dissemos, as áreas do cérebro que são importantes para a
experiência e a expressão das emoções são as áreas associadas ao comportamento social
(Emde 1984; Pribram 1984; Jenkins e Oatley 1996: 135). A ligação do córtex prefrontal
com a gestão das relações sociais e com o desenvolvimento dos comportamentos
emocionais resulta também de considerações de tipo filogenético. O crescimento
surpreendente do cérebro humano, em particular do córtex cerebral, nos últimos cinco
milhões de anos, e em particular o aumento dos lobos frontais (que têm conexões
importantes com o comportamento emocional) em proporção ao resto do cérebro,
derivam não tanto do desenvolvimento de habilidades técnicas como a construção de
instrumentos, mas de se ter tecido numerosas e complexas relações sociais, de se ter
criado alianças, sentido simpatias e antipatias. As relações das quais falam os
neurobiólogos são claramente de tipo emocional. Em termos evolutivos a nossa
capacidade de experiência e expressão emocional é de facto associada ao
desenvolvimento de formas sempre mais complexas de relação social: o nosso sistema
afectivo não pode ser considerado assim como um resíduo primitivo do nosso passado
“animal”, suplantado depois pela “razão” no curso da evolução humana. Pelo contrário,
as emoções se desenvolveram e especializaram com o aumentar das redes de relações
sociais e da sua complexidade. De acordo com esta perspectiva, compreendemos por
que a evolução humana não tenha deixado cair em desuso, a favor da razão, a
componente afectiva e emocional. Ou melhor, modalidades afectivas e racional-
cognitivas evoluíram simultaneamente, numa conexão funcional, de tipo não
hierárquico: esta concepção da relação entre razão e emoção, como sendo de integração
mais que de subordinação, é uma das descobertas mais libertadoras da ciência etológica,
uma teoria que se situa em marcada oposição justamente à principal dicotomia do
pensamento ocidental.
Também as pesquisas de R.E. Myers (1976) testemunham a intima relação entre
emoções e vida social. Myers demonstrou de facto que o comportamento social e
emocional é controlado pelas mesmas áreas da parte anterior do cérebro (prefrontal,
anterotemporal e córtex órbitofrontal), que são dotadas de grande plasticidade, ao
ponto que se estas partes serem cirurgicamente asportadas, o comportamento, a
expressão facial e a vocalização utilizadas no comportamento emocional e na
comunicação social seriam impossíveis14. Particularmente interessante resulta ser
neste aspecto o córtex prefrontal, que è envolvido na gestão do comportamento social
e afectivo e das “funções cognitivas elevadas” e preside assim à relação entre
emoções, motivações e comportamento intencional. O desenvolvimento da área
prefrontal do córtex continua para muitos anos depois do nascimento e não para até à
adolescência (Laughlin 1989, 1991).
Nesta teoria, as emoções dos recém- nascidos seriam não controladas e não
definidas em quanto o córtex ainda tem que desenvolver em contacto com o ambiente.
Tucker e Frederick (1989) descobriu que o lado direito do córtex tem conexões estreitas
com a amígdala, definida «o computador emocional central do cérebro», ou «a principal
14
Exemplar o caso de Phineas Gage, o operário ao qual uma barra de ferro entrou entre os lobos frontais a seguir a
uma exploção. Este incidente foi causa duma dramatica diminuição das suas renspostas emocionais, duma grande
dificuldade na gestão dos empegnos e das relações sociais quotidianas (Jenkins e Oatley 1996: 122).
entrada sensorial às emoções» (Jenkins e Oatley 1996: 151; Plutchik [1994] 1995: 265),
que se desenvolve durante a infância, quando a criança já interage com o ambiente
circunstante, e se activa nas situações de relação social. A cultura penetra assim
profundamente também nas respostas e nos comportamentos emocionais, não só
relativamente aos aspectos cognitivo-linguisticos, que pertencem dum conjunto de
conhecimentos culturalmente definido, mas também relativamente aos elementos
fisiológicos e neuroquímicos, que precisam de ser organizados e afinados para alcançar
um bom nível de adaptação ao contexto ambiental e cultural (Kitayama e Markus 1994:
6).
Para funcionar, o cérebro precisa assim da interacção com o ambiente e da
intervenção da cultura. Como afirmava Clifford Geertz trinta anos atrás, poderíamos
dizer que o nosso cérebro seria incapaz de dirigir o comportamento sem a orientação
fornecida pelos sistemas de símbolos significantes (1987: 93). Mas em que medida
podemos dizer que a inculturação pode influir sobre o desenvolvimento de uma plena
maturidade emocional nos seres humanos? A esta pergunta uma das respostas mais
significativas foi fornecida pela psicologia cognitivísta. Segundo esta perspectiva, o
desenvolvimento emotivo resulta da aquisição de “esquemas interpretativos”,
culturalmente específicos, do significado das situações: são estes processos de avaliação
(appraisal) que, atribuindo a um estímulo um valor, o tornam significativo para o
indivíduo, e assim gerador de emoções, e que ao mesmo tempo tornam o indivíduo
“emotivo”. A emoção é assim concebida como uma forma de resposta não inata, mas
dependente de processos de atribuição de significado que são influenciados pela
aprendizagem e pelas experiências individuais.
Se na perspectiva evolutivo-funcionalísta era reconhecida uma maior eficácia causal
aos antecedentes situacionais, entendidos como categorias universais de eventos capazes
de activar o processo emocional, na perspectiva cognitivista o papel causal é atribuído
aos processos cognitivos. O significado e a relevância dos estímulos activadores não são
considerados como dados e assim como características intrínsecas dos estímulos, mas
como atribuídos a esses mesmos estímulos por processos cognitivos de avaliação,
profundamente influenciados pela cultura e mediados pela actividade das estruturas
neocorticais. Apesar de não serem totalmente negados os aspectos biológicos das
emoções, o desenvolvimento emocional é no entanto considerado um efeito da
aprendizagem individual e da assunção de modelos de comportamento socialmente
partilhados. Um dos maiores teóricos do appraisal é o psicólogo Richard Lazarus
(1982; 1984; 1991) que, a partir dos anos Setenta, afirmou que o estudo das emoções
tem que considerar cognição, motivação, adaptação e actividade fisiológica: a sua teoria
foi assim definida «sistema explicativo cognitivo-motivacional-relacional». Este autor
afirma que a emoção depende da avaliação de um estímulo, ou seja de um processo
cognitivo de atribuição de significado que considera os danos e os benefícios pessoais
existentes em cada interacção pessoa-ambiente. As emoções, na perspectiva de Lazarus,
não são simples respostas às solicitações do ambiente programadas geneticamente e
assim inatas, mas implicam uma elaboração complexa, mediada por actividades
cognitivas controladas por os centros corticais superiores.
Nesta teoria, ampliada a partir do final dos anos Oitenta por Ortony, Clore e Collins
(1988), as emoções são portanto explicadas segundo um principio psicobiológico, para
o qual é biológicamente determinada a conexão entre o resultado de uma avaliação e a
sua consequência emocional, mas não o é o tipo de avaliação de uma certa situação, que
depende de facto da personalidade individual, da aprendizagem e da cultura. Cada
emoção deriva da combinação de um grande numero de formas de avaliação. Estas
ultimas são limitadas, mas as combinações possíveis são numerosíssimas, tal como - por
conseguinte - as emoções que podem causar. A universalidade das emoções, nesta
perspectiva, é por conseguinte uma hipótese insustentável: diferentes grupos humanos
de diversas culturas podem de facto reagir às situações e às solicitações do ambiente de
uma maneira diferente, e podem por conseguinte sentir diversas tipologias de emoções.
A recusa de aceitar a noção de emoções primarias ou básicas não comporta também
necessariamente a recusa da ideia que poderiam existir elementos de base que
constituem as diferentes emoções. Não existem todavia motivações boas para
acreditar que estes elementos sejam eles mesmos emoções: mais provavelmente
trata-se de elementos de cognição, sensações e configurações de valutações
emotivamente significantes. Esta perspectiva foi retomada e exposta com nitidez por
Ortony e Turner (1990), com o objectivo de deconstruir a ideia da existência de
emoções primarias. Coma s palavras dos autores: a melhor analogia que podemos
instituir è a entre emoções e línguas. Existem centenas de línguas humanas e muitas
outras seriam possíveis. Todavia, os linguistas não procuram uma explicação,
avançando a hipótese dum pequeno conjunto de línguas de base pelas quais
derivariam todas as outras línguas. Ao mesmo tempo, os linguistas reconhecem que
existem limitações as línguas possíveis e que existem uns elementos de base das
línguas, assim que cada língua compreende específicos subgrupos dum numero
limitado, por quanto grande, de elementos constitutivos de base (para exemplo
propriedades sintácticas e fonológicas). Ainda, uns dos limites tem a sua raiz na
natureza biológica dos indivíduos. Em síntese o que é básico são os elementos
constituintes das línguas, que não são evidentemente línguas eles mesmos. Na
mesma maneira temos que pensar em relação as emoções (Ortony e Turner 1990:
329).
Nas conclusões destes teóricos encontra apoio teórico a perspectiva do
construcionismo social das emoções, que se liga directamente a Berger e Luckman
(1966). As principais teses desta teoria são enunciadas num livro organizado por Rom
Harré, significativamente intitulado The Social Construction of Emotions ([1986] 1992).
Como para os cognitivístas, também para os construcionístas sociais a emoção deriva da
interpretação e da avaliação de um estímulo, ou seja de um processo de atribuição de
sentido e valor. A emoção, contudo, segundo esta tese, é considerada e explicada como
um fenómeno social consistente numa série de respostas aprendidas, que são necessárias
para regular a interacção social entre os indivíduos, mais que para salvaguardar a sua
sobrevivência biológica. As emoções são então consideradas como modelos de
experiência adquiridos, constituídos por prescrições e aprendizagens socioculturais,
historicamente situadas e estruturadas na base do sistema de crenças, da ordem moral,
das normas sociais e da linguagem, próprias de uma comunidade particular. Neste
sentido as emoções são consideradas como construções sociais, variáveis como
qualquer outro fenómeno cultural: por um lado, assim, não faz sentido falar de emoções
inatas e universais, idênticas através das culturas e através do tempo; por outro, não é
possível compreender as emoções dirigindo o olhar exclusivamente ao organismo físico
ou ao indivíduo particular decontextualizado.
Nesta perspectiva, os nossos pensamentos, tal como as nossas emoções, enquanto
resultado de uma avaliação cognitiva de situações vividas, são formados pelas estruturas
interpretativas e directivas de acção (modelos culturais ou guidelines incorporadas)
próprias de cada cultura. Estes modelos ou esquemas culturais, que partilhamos com
«pessoas que tiveram algumas experiências como as nossas, mas não com todos»
(Strauss e Quinn 1997: 49), adquirem-se não através de generalizações explicitas, mas
através de experiências e participações repetidas. Como as experiências de vida podem
ser similares, mas nunca idênticas, e o ambiente ideológico e cultural não é
internamente coerente, mas apresenta mensagens em conflito, ambiguidades e
mudanças, o processo de “interiorização” é muito complicado. A ordem social de facto
não é um master programmer, como a cultura não é “loaded in”, instalada em nós,
como se fosse um computer. A aquisição destes modelos portanto não é nunca uma pura
réplica, que se desenrola como a transmissão de um fax. O conceito de “interiorização”
de Strauss, que evoca noções análogas como “embodiment” ou “incorporação”, pretende
demonstrar, por um lado, a importância do corpo, por outro, a da cultura, fundamental
para construir os esquemas cognitivos, e por sua vez formada por estes esquemas.
Segundo as neurociências, estes modelos ou esquemas seriam compatíveis com a
estrutura neuronal, ou seja com a organização a conexões reticulares das células
nervosas: «a maior parte da estrutura dos nossos sistemas conceptuais depende em igual
medida dos nossos corpos e dos nossos cérebros, como do mundo que se encontra fora
dos nossos corpos» (Lakoff 1998: 118). A teoria das emoções do António Damasio
insere-se neste debate apresentando-se explicitamente como anti-cartesiana, ou seja, não
fundada sobre o dualismo de mente e corpo. O erro de Descartes, titulo do seu livro
mais conhecido (1994), consiste de facto em ter separado o corpo da mente, ou melhor,
em ter “desmaterializado” a mente e “desmentalizado” o corpo. Na opinião de Damasio,
a emoção não pode ser reduzida de facto à actividade mental do cérebro: o autor
apresenta portanto um modelo integrado da actividade sinérgica do corpo e do cérebro,
considerando as emoções como uma combinação de actos de avaliação - baseados sobre
uma competência social, que ele define, com uma terminologia tradicional, “razão
pratica” - e de consequências somáticas. A hipótese de Damasio é a de uma “mente
incorporada” e de uma profunda continuidade entre processos fisiológicos, emocionais e
cognitivos: o objectivo é o de fornecer uma explicação unitária do organismo através
uma “mentalização do corpo” e uma “somatização da mente” (Damasio 1994). A teoria
das emoções de Damasio fornece um suporte neurobiológico ao conceito de mindful
body, proposto pelas antropólogas Lock e Scheper-Hughes (1987). Esta noção,
juntamente com a de embodiment elaborada poucos anos depois por Csordas (1990), foi
introduzida nas ciências sociais para superar a espinhosa questão da relação entre corpo
e mente. O termo embodiment indica de facto o estado ou o processo que resulta da
interacção continua de corpo e mente, ou, ainda melhor, da conceptualização destes
elementos como constituindo uma unidade mais ampla, definida body/mind manifold
(Samuel 1990).
Através deste amplo percurso teórico chegamos assim a uma visão das emoções
como modos de ser no mundo, ou seja, maneiras de fornecer um sentido e agir no
mundo. Michelle Rosaldo ofereceu um contributo importante a esta perspectiva,
sintetizando o sentido da complexidade e da ambivalência constitutivas das emoções,
com a sua definição feliz de “pensamentos incorporados”. Nas suas palavras, que
inauguraram a corrente teórica que Lutz e White (1986) definiram antropologia das
emoções, é necessário considerar este importante âmbito da experiência humana «não
como uma coisa que se contrapõe ao pensamento, mas como conhecimentos que
interessam um Eu corpóreo, como pensamentos incorporados (embodied)» (Rosaldo M.
[1984] 1997: 162), situando-o naquela zona de fronteira onde indivíduo, corpo e
sociedade se encontram e se fundem.
Também a antropologia das emoções propõe portanto uma concepção da emoção
como intimamente ligada à maneira como as pessoas interpretam ou avaliam o que
acontece, segundo códigos morais e referências semânticas locais. As emoções, nesta
visão, são consideradas como constituídas em parte pelos significados locais que lhe são
atribuídos. A cultura influencia a avaliação de um estímulo e a vivência emotiva
correlacionada com esta. O podermos pensar a emoção como um evento contextual e
específico, nos seus significados e nas suas manifestações comportamentais, mais que
como um universal inerente numa espécie de uniformemente dada «natureza humana»,
é nos útil, por exemplo, para enfrentar de uma maneira diferente a análise das
manifestações disfuncionais que a nossa nosologia ocidental define como ‘depressivas’.
A partir destes pressupostos, torna-se de facto muito mais difícil imaginar a existência
de perturbações universais do comportamento emocional, definíveis em termos
objectivos e quantificáveis, ligados a um núcleo bio-psíquico comum a todos os seres
humanos, independentemente da dimensão do significado. Igualmente torna-se muito
mais difícil pensar em formas do humor “doentes” num sentido absoluto, ou de
qualquer maneira cuja a “patologia” esteja escrita em códigos universalmente biológicos
e independentes da dimensão do significado. Se estamos dispostos a admitir que a
cultura influencia a avaliação de um estímulo e a vivência emotiva que lhe é correlata,
também temos que reconhecer que a percepção de um evento como cansativo, por
exemplo, não poderá ser considerada universal.
Muitos estudos transculturais sobre a depressão foram movidos, como afirma
Bibeau, por uma espécie de «realismo ingénuo segundo o qual o amor, a chuva, o
casamento, os cultos, as árvores, a morte, a comida e mil outras formas de realidade têm
o mesmo significado para todos os seres humanos. Os “realistas ingénuos” – continua
Bibeau – admitem que as línguas diferem entre os povos, mas atrás desta diversidade de
palavras todos falariam das mesmas coisas e confeririam a estas um sentido análogo»
(Bibeau, 1995, 41-42). É o pressuposto desde o qual começaram algumas pesquisas
importantes que concluíram que a depressão é um fenómenos universalmente difusos,
subestimando bastante, no entanto, as incongruências metodologias e conceptuais que
emergiam da não sobreposição do léxico psiquiátrico com as línguas e as categorias
indígenas. Às primeiras pesquisas conduzidas exclusivamente nos asilos da psiquiatria
colonial e baseadas sobre diagnósticos de admissão feitos por médicos europeus,
seguiram-se tentativas mais articuladas, mas, em conjunto, todos encontraram as
mesmas dificuldades: a tradução dos termos ocidentais para definir os sintomas, as
experiências da dor e as percepções interpessoais. Uma vez saídos dos manicómios os
estudiosos tiveram que tomar em consideração as etiologias locais, com os seus critérios
de referência significativos, que muitas vezes excluíam as noções típicas da psiquiatria
ocidental: os pesquisadores estavam assim obrigados a utilizar perífrases, que fizeram
diminuir a validade dos testes psicológicos estandardizados, ou a servir-se de estratégias
narrativas, que no entanto tornavam muito problemática uma extrapolação dos conceitos
cardinais.
Muitas pesquisas tiveram que enfrentar estas dificuldades, mas, no entanto, os
resultados foram geralmente considerados satisfatórios e desprovidos de ambiguidade.
Também na análise de Leff, que fez uma resenha destes estudos, prevalece o optimismo,
na medida em que considera evidente que expressões como «tenho a sensação que
formigas fervilham no meu cérebro, as vezes sinto a cabeça que queima, sinto bichos
andar no interior do meu corpo, sinto uma forte sensação de comichão em todo o corpo»
(Leff, 1992, 38) exprimem pontualmente a experiência do sofrimento ou da depressão
em contextos tradicionais, onde esta se manifestaria em prevalência como uma
perturbação somática, dada a presumida incapacidade dos pacientes, fundamentalmente
por causa do seu nível de atraso material e intelectual, para exprimir a sua aflição
segundo um código psicológico. A ideia de base, que eu considero não totalmente
superada, é a de que os pacientes de outras culturas muitas vezes não utilizam, para
exprimir o seu sofrimento, termos “abstractos” comparáveis aos do léxico psicológico-
psiquiátrico ocidental, e não têm uma boa capacidade para distinguir entre os diferentes
estados emocionais, ou seja, não psicologizam, mas pelo contrario somatizam,
exprimindo a sua aflição emocional através do corpo. Nesta perspectiva, isto é
indicativo de uma arcaísmo ao nível de elaboração do próprio mal-estar e de uma
dificuldade de discernimento dos próprios estados interiores. Pelo contrario, a
verbalização seria expressão de uma maior autoconsciência e capacidade introspectiva.
Esta bipartição, como é evidente, reafirma o antigo preconceito do “selvagem” como
estando ligado a um pensamento exclusivamente concreto e incapaz de utilizar os
conceitos abstractos do pensamento racional.
Comentando estas ideias, Bibeau observa que «não é certo que todas as línguas
separem, no conjunto do registo da patologia, um domínio separado que corresponda a o
que no Ocidente chamamos ‘depressão’» (Bibeau, 1995, 43). O tentativo de exportar a
outras realidades categorias não pertinentes tem causado a reiteração daqueles erros de
conceptualização que Kleinman já em 1977 chamava «category fallacies»: o emprego
de esquemas ou classificações típicas de um contexto numa realidade onde estes não são
pertinentes e onde, por conseguinte, não têm validade. Reflectindo sobre o mesmo
conceito na introdução de Writing at the Margins, Kleinman não deixa de sublinhar
como a imposição de categorias impróprias possa criar consequências dramáticas no
plano pragmático e político, que define «falácias experiências», ou seja a imposição de
maneiras de viver e de perceber o mundo a membros de sociedades onde estas mesmas
maneiras não constituem formas de vida aceitáveis. Num contexto diferente - pergunta
Kleinman - qual é o sentido de utilizar um “significado” estrangeiro como o que è
veiculado pela nossa categoria medico-psiquiátrica de depressão, derivado de outros
saberes, de outros modelos psicológicos e de outros conjuntos nosológicos? Porque não
sustentar que o psiquismo em tradições culturais diversas possa ter diferentes
modalidades de funcionamento, de realização, de organização? E que cada definição
patológica é de facto culturalmente específica (e portanto culture-bound)?
Regressando, só por um instante, ao domínio da antropologia das emoções, muitos
estudos monstraram como a depressão não possa ser considerada uma categoria válida
trans-culturalmente (entre os outros, Jadhav e Littlewood 1994; Kleinman e Good
1985). Na sua recensão sobre depressão e cultura, Marsella (1980) conclui que
"depressão não assume uma forma universal " (p. 260), e que "a representação
psicológica da depressão no mundo ocidental é geralmente ausente nas sociedades não
ocidentais” (p. 201). Jadhav (1995) questionou também a legitimidade de utilizar o
termo “depressão” para indicar sintomas que tem uma semelhança mínima com a
depressão ocidental, em quanto ele afirma que não temos suficientes motivações para
considerar a depressão como uma entidade objectiva que possa ser transportada de um
lugar ao outro.
Ainda, comportamentos que podem ser considerados nos quadros diagnósticos da
psiquiatria ocidental indicadores de psicopatologia, neste caso de depressão, em outros
contextos podem tem conotações positivas: ser triste è uma maneira também de
exprimir conhecimento da gravidade da condição humana, da gravidade da perda
histórica, social, familiar e pessoal. A analise de Susan Sontag sobre o utilizo
metafóricos de doenças como a tuberculose e o cancro, desloca ao nível histórico o
significado do que chamamos depressão: já na metade do século dezoito no ocidente,
explica a Sontag, começa a existir uma interessante associação entre o facto de sofrer,
de ser triste, melancólico e descontente, com sintomas como falta de sono e de apetite,
fraqueza, deficiência de vitalidade, de força, de iniciativa, e a imagem de pessoa
romântica, requintada, sensível, interessante. Ter uma excessiva saúde e boa-disposição,
uma atitude positiva cheia de espírito de iniciativa, um bom apetite e um corpo bem
constituído significava ser uma pessoa ordinária e pouco elegante (Sontag 1977).
Do mesmo modo, entre os nativos americanos Hopi (O'Nell, 1993:461), ter uma
existência cheia de lagrimas, ter dificuldades de sono, falta de energia e apetite,
significa ser sábio, maduro e consciente dos segredos profundos da existência humana.
Através de alguns exemplos etnográficos que deslocam culturalmente o significado
dos eventos “depressivos”, evidenciando a sua relatividade e a necessidade da dimensão
do sentido, torna-se-nos possível reduzir às suas justas proporções a visão hipostática da
depressão como “humor doente”, no significado naturalista que o termo doença possui
no léxico das nossas ciências e no do nosso sentido comum. Citamos só uns exemplos,
reenviando quem quisesse aprofundar a questão ao célebre texto de Kleinman e Good
“Culture and Depression” do 1985. Em muitos contextos culturais da Ásia Meridional é
posta uma ênfase particular sobre o valor do esperma na definição do bem-estar e da
força de um indivíduo, quer masculino quer feminino. Na Índia, por exemplo, o
esperma representa a energia vital do sujeito, concebida como potência, energia, beleza
e força de vontade, mas também como profundeza espiritual e capacidade de
concentração. O indivíduo saudável e moralmente digno saberá conservar o suo sémen
sem “desperdícios” em relações ilícitas ou pouco apropriadas, enquanto o
brahmacharya, aquele que quer ‘chegar a Deus’, terá que se conformar a uma conduta
orientada à absoluta abstinência. Deste pressuposto importante, que oferece no mesmo
tempo uma representação do indivíduo e uma série de normas comportamentais, deriva
uma importante categoria da medicina ayurvedica: a ‘perda do sémen’ ou, em Hindi,
dhat. A espermatorréia por polução nocturna ou emissão involuntária na urina é
considerada responsável por numerosas afecções ligadas à perda da energia e da
vitalidade: cansaço, astenia prolongada, fraqueza, apatia, preguiça, falta de entusiasmo e
de iniciativa, até ao desespero sem causas aceitáveis, todas manifestações que poderiam
ser adscritas, como de facto foi feito, ao registo da depressão (Chadda & Ahujan, 1990;
Pfeiffer, 1982). Se quiséssemos aplicar rigorosamente as normas classificadoras
implícitas nos manuais diagnostico-estatísticos, como argumentou o antropólogo
cingalês Gananath Obeyesekere, teríamos que concluir que a perda do sémen de facto é
uma “doença” universal, na medida em que os seus signos distintivos, as suas
manifestações “patológicas” (como poluções nocturnas, emissões involuntárias, etc.), se
podem relevar universalmente. E poderíamos deduzir isto graças ao menosprezo do
significado que estes signos possuem nos lugares onde se manifestam, através de uma
cesura entre sintoma e contexto característica de muitas pesquisas transculturais. Na
opinião de Obeyesekere (1985) é o que acontece onde se queira encontrar indícios da
universalidade da depressão atrás do comportamento aparentemente disfórico do fiel
budista, empenhado por vocação religiosa na procura e na meditação sobre a dor da
existência, sobre o desespero e o desgosto do corpo na sua fisicidade. As suas
expressões comportamentais poderiam portanto testemunhar menos a presencia de um
estado depressivo que o comportamento de um bom budista. Outro exemplo muito
menos célebre, em quanto deriva do meu trabalho de campo sobre as emoções entre os
Bijagó da Guine Bissau, pode ser a ideia de perda do orebok, a sombra ou energia vital,
por causa geralmente do excesso de uma particular emoção, da embriaguez, da
possessão ou do furto do mesmo por um feiticeiro obané. A perda do orebok comporta a
perda da vontade de viver, das forças, da fome, do sono, um grande cansaço e apatia: «é
como perder a si mesmo, ficar sem forças e não encontrar descanso, não poder comer,
mexer os braços sem controlo ao redor da cabeça como para abanar as moscas, o olhar é
sem expressão e os olhos são opacos», afirmam os meus informadores, reconstruindo
um quadro no qual podem ser localizados perturbações parecidas às depressivas. A
única cura possível neste caso é pedir a um odiáki , um pautero, uma pessoa com poder,
que n’ojón ta bú vê com a cabeça, de ir a buscar o orebok perdido na floresta. Um
último caso, sempre retirado da minha pesquisa de campo, é o n’unummi konó,
expressão que engloba muitas tonalidades de significado: apesar de literalmente
podermos traduzir esta frase como “coração queimado”, o seu significado muda em
relação aos contextos: pode indicar quer o desconforto, a pobreza e a desolação
pessoais, quer, mais em geral, a infelicidade, a má sorte e a miséria próprias da condição
humana. Quem sente n’unummi konó não tem vontade de falar, do comer e dormir,
chora por nada, se sente sempre muito cansado por nada, tem imensas pequenas
doenças, é sem esperanças e sem vontade de fazer qualquer coisa para se sentir melhor.
Esta sintomatologia – comum a muitas outras condições reconduzíveis a feitiçaria,
possessão e assim por diante – tem uma semelhança de família com o que nós
colocamos sob a etiqueta de depressão. No entanto neste caso os sintomas que nós
rotularíamos com o termo “depressão” são interpretados localmente como
consequências naturais das vicissitudes da vida. Nada de patológico, portanto, nem que
requeira uma cura.
Alguns investigadores repararam que a maneira de manifestar aflição e sofrimento
mudará radicalmente em contextos onde, por exemplo, estes sentimento são geralmente
vividos como perigosos para a saúde pessoal e para a sociedade inteira, como entre os
Bijagós da Guiné Bissau, ou onde são sinais dum pedido de apoio e de reciprocidade, ou
entre os Kaluli da Nova Guine (Schieffelin 1985), ou ainda onde estes sentimentos são
considerados esteticamente adequados só para um grupo limitado de pessoas, como
entre os Paxtun do Afghanistan e do Pakistan (Grima 1992), ou onde são interpretados
como sinais duma personalidade fraca, infantil e dependente, como entre os Beduínos
Awlad ‘Ali (Abu-Lughod 1985), ou no final onde são interpretados como doenças que
necessitam uma cura (Pandolfi 1991; Desjarlais 1992). A definição do evento e as
modalidades diferentes com as quais este se declina põem seriamente em questão - do
nosso ponto de vista – a possibilidade de definir o mesmo comportamento
uniformemente em cada uma destas situações.
Os exemplos reportados são significativos para situar a experiência da dor, do
sofrimento num plano que leva radicalmente em linha de conta a dimensão do
significado: parece difícil, baseando-nos nas sugestões da pesquisa etnográfica sobre as
emoções, poder afirmar com desenvoltura que aquela dor, aquela tristeza, aquela perda,
aquele sofrimento, sejam exactamente os mesmos em cada lugar, independentemente
das maneiras através das quais os homens os avaliam intelectualmente, os vivem
somaticamente e emotivamente. Embora seja de facto possível, com certeza, encontrar
aqui uma qualquer “semelhança de família”, estes conteúdos emotivos perderiam sem
duvida as suas particularidades, as suas características únicas, se abstraídos dos seus
contextos e situações específicos. Isto é não só porque sintomas, emoções,
comportamentos e cultura andam juntos, mas sobretudo porque seria uma conclusão
arriscada assimilar a um domínio mesmo e universal experiências e perturbações que -
apesar de parcialmente sobreponíveis às que nós identificamos como “típicas” da
depressão - são interpretadas com referência a uma constelação de causas e significados
radicalmente diversos.
E se outros sintomas, outros problemas são referidos em lugar dos que são para nós
mais familiares (perda do sémen, perda do orebok, coração queimado, feitiçaria,
possessão em vez de depressão), será legitimo interpretá-los como a expressão de uma
depressão mascarada? Por fim: é lícito falar da depressão como se fosse uma
substância, ou uma lesão dum órgão, da qual só é preciso demonstrar a existência ou
medir a dimensão em outros corpos? Se as doenças participam da reprodução das
culturas como, especularmente, estas participam da “construção” das primeiras, não
seria mais correcto analisar uma condição como a depressão só em intima relação com
os contextos nos quais é nomeada, experimentada, comunicada, e com as dinâmicas
sociais e as hegemonias culturais que mudam a sua forma e a sua pertinência?
(Beneduce 1999).
Uma etnopsiquiatria da depressão não é possível sem uma reflexão paralela sobre as
emoções, o sentido da vida e da morte, os códigos da comunicação. Apesar disso,
quando as pessoas doentes se viram não para as categorias nosológicas das medicinas
tradicionais, mas para as da biomedicina e da psicologia ocidentais, são muitas vezes
consideradas como deprimidas: a questão não é sobre a existência ou menos de uma
patologia efectiva, “a depressão”, que só a psiquiatria “cientifica” conseguiu individuar
e definir, mas sobre a produção de novas hegemonias discursivas enquanto outras se
modificam ou desaparecem. O estudo antropológico da doença revela uma contradição
cujo alcance é espantoso: não é um dado de facto nem uma hipotética “verdade
biológica”, mas uma teoria hegemónica, e portanto um poder, que define que um
critério de referência mais do que outro (depressão, mais que perda do esperma ou do
orebok) tenha que ser aplicado universalmente para decidir da saúde o da doença dos
outros.
Os modelos dominantes, e não apenas os inspirados pela psiquiatria biológica, parecem
hoje pouco interessados em esclarecer as mudanças na utilização das categorias
psiquiátricas ou na expressão dos sintomas, e parecem interessados ainda menos em
problematizar o papel que a cultura e a sociedade desempenham na definição de todo o
processo da perturbação psíquica: da sua realização em formas que são reconhecidas,
rotuladas e tratadas como doenças, à maneira pela qual estas são vividas, comunicadas e
reproduzidas. Um risco que os investigadores na área da psiquiatria trans-culturais
correm é traduzir, adaptar, e transportar a metodologia de testes psicológicos, com o
objectivo de descobrir verdades universais entre grupos de culturas diferentes
(Moggadam & Studer, 1997). Trata-se duma questão séria e questionável em quanto
subestima o valor do papel de cultura na constituição do comportamento, das emoções,
como na definição de saúde e doença mental. Em lugar de considerar também a cultura
como campo não só de significados, mas também de forças, de poderes e ideologias, a
cultura nesta perspectiva acaba para ser reduzida a uma simples variável independente
que não requer nenhum pensamento sobre o seu significado, perpetuando assim uma
situação de desigualdade e injustiça social (Fox & Prilleltensky, 1997; Sloan, 2000).
Quando nós propomos que o conceito de cultura seja entendido como um componente
fundamental da definição de saúde e doença mental, é importante não só recuperar a
definição antropológica deste conceito avançada por Kleinman e Bem (1985), ou seja
cultura como intersecção de significados e experiência. É igualmente importante
incorporar no conceito os aspectos políticos, os interesses económicos, os factores
históricos e sociais inerentes, que muitas vezes são intencionalmente ignorados,
dissimulados ou ofuscados (Sashidharan, 1986).
O que tem que caracterizar um etnopsiquiatria clinica que se proponha como
“critica” é precisamente a consciência que a atenção ao contexto social e político
constitui um aspecto imprescindível para que a dimensão do “cultural” possa encontrar
o seu sentido no interior do trabalho psiquiátrico. As interpretações da doença implicam
sempre a história do discurso que forma a sua interpretação e o seu contexto é sempre o
das relações de poder locais: o primeiro passo na direcção de uma etnopsiquiatria critica
é portanto, na minha opinião, considerar sempre as práticas e as estratégias terapêuticas
ao interior das relações de força que as geram e sustentam, avaliando a posição dos
interlocutores e a ideologia veiculada pelas categorias diagnosticas. O modelo de
etnopsiquiatria ao qual me refiro propõe a necessidade de repensar as “culturas” como
lugares de conflito e de mudança, de relações de força além que de sentido, espaços
onde lutam actores sociais portadores de significados e valores em conflito (Beneduce
1998: 19). A etnopsiquiatria - e com esta observação concluo - situa-se de facto no
espaço dinâmico de conflito e de transformação gerado pelo encontro entre culturas e
sociedades, especialmente no caso dos processos migratórios, chegando através de
múltiplas estradas (as da clínica como as da pesquisa antropológica) a definir
modalidades mais eficazes para intervir sobre a aflição dos indivíduos come sobre os
problemas dos grupos e das comunidades que tem que enfrentar as dores das próprias
memórias.

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