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Verso e Reverso, XXIX(70):35-43, janeiro-abril 2015

© 2015 by Unisinos – doi: 10.4013/ver.2015.29.70.02


ISSN 1806-6925

Narrativa em histórias em quadrinhos:


o uso do timing para conquistar os leitores

Comics story telling: The use of timing to win the readers

Alexandra Presser
Universidade Federal de Santa Catarina
Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima, 88040-900, Florianópolis, SC, Brasil.
alepresser@gmail.com

Larissa Schlögl
Universidade Regional de Blumenau
Rua Antônio da Veiga, 140, 89012-500, Blumenau, SC, Brasil.
larissa.schlogl@gmail.com

Resumo. Histórias em quadrinhos ainda são pouco Abstract. Comic books are still poorly academically
exploradas academicamente no Brasil. Por este mo- explored in Brazil. For this reason, this article aims
tivo, o presente artigo tem como objetivo entender o at understanding what generates the involvement
que gera o envolvimento do leitor com as narrativas of the reader with graphic novels (comics). We as-
gráficas. Parte-se do pressuposto que o sucesso da sume that the narrative success lies on the proper
narrativa está no apropriado uso do timing, carac- use of timing, crucial comic’s feature, based on the
terística determinante das histórias em quadrinhos, complicity between what the author tells and what
baseada na cumplicidade entre o que o autor conta the readers interpret. An analysis of different tech-
e o que o leitor interpreta. Uma análise de diferentes niques for using timing, the use of gap, and the
técnicas de utilização do timing, do uso da sarjeta e different forms of frame transitions will be made,
das diferentes formas de transições de quadros será looking for a more comprehensive understanding
feita, em busca de uma compreensão mais abran- of the topic. Through a case study of an explorato-
gente do tema. Por meio de um estudo de caso com ry nature, and to accomplish the proposed objec-
caráter exploratório, e para cumprir com o objetivo tive, a theoretical argument will be built primarily
proposto, uma argumentação teórica será buscada, in the authors Will Eisner (2010, 2013), Scott Mc-
principalmente nos autores Will Eisner (2010, 2013), Cloud (2005, 2006, 2008) and Paulo Ramos (2012),
Scott McCloud (2005, 2006, 2008) e Paulo Ramos renowned authors in the field, among others.
(2012), renomados autores estudiosos do assunto,
entre outros.

Palavras-chave: histórias em quadrinhos, timing,


narrativa, fechamento. Keywords: comics, timing, story telling, closure.

Introdução construir uma obra da arte sequencial. Diante


desta proposta, tona-se importante destacar
O presente estudo tem como cerne princi- que as histórias em quadrinhos são conhecidas
pal a compreensão da narrativa dos quadri- como uma forma narrativa que, ao explorar
nhos por meio dos elementos utilizados para figuras, imagens e palavras, tem o intuito de
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contar uma história ou dramatizar um aconte- este artigo se propõe a estudar os elemen-
cimento (Eisner, 2010). tos da linguagem utilizados nas histórias em
É notável que o mercado nacional de pro- quadrinhos no que diz respeito ao timing das
dução de quadrinhos vem passando por uma narrativas. A fim de cumprir com os objetivos
nova fase: nunca tantas produções autorais propostos, uma análise dos estudos existen-
foram publicadas, ao explorar narrativas mais tes será baseada em autores como Will Eisner
criativas e adultas como na atualidade. Com (2010, 2013), que, além de quadrinista, foi um
números crescentes, as editoras perceberam dos primeiros estudiosos do assunto, Scott
que existe um público leitor de histórias em McCloud (2005, 2006, 2008), reconhecido in-
quadrinhos que foge do estereótipo jovem es- ternacionalmente pelos estudos sobre os qua-
tigmatizado por tantos anos. Esta realidade drinhos, e também Paulo Ramos (2012), autor
fica evidente, por exemplo, no prêmio HQMix nacional responsável por uma apreciação críti-
de 2014, onde novos artistas nacionais foram ca da construção da arte sequencial.
premiados com publicações de grandes tira- Por meio de um estudo de caso de tipo
gens de Graphic Novels (“Novelas gráficas”, exploratório, que tem como caráter principal
nome atribuído a revistas de quadrinhos com investigar um ou mais objetos de estudo aqui
um acabamento diferenciado, focado em um explorados por meio de algumas sequências
público mais maduro e exigente) (Soto, 2014). de histórias em quadrinhos, o timing das histó-
E esta realidade está apenas começando a ser rias em quadrinhos será abordado como técni-
vislumbrada pelo mundo acadêmico. ca baseada em uma linguagem única presente
Como complemento a este argumento, nesta mídia, que visa envolver o leitor em uma
ao explanar sobre a Nova HQ Independente, experiência diferenciada de leitura.
evento que o ocorre em São Paulo com o intui- Serão apresentados como universo da
to de discutir sobre o crescimento de produção análise exemplos de histórias em quadrinhos
e qualidade das HQs, Naranjo (2014) afirma retiradas de uma obra nacional (“Bando de
que “nunca o mercado de quadrinhos do Bra- Dois”, de Danilo Beyruth, 2011), exemplos di-
sil teve uma cena independente como a que dáticos retirados dos livros de Scott McCloud
vem experimentando nos últimos cinco anos. (2005, 2006, 2008) e exemplos produzidos
Nesse período, não foi apenas a produção que por esta pesquisa. A amostra fica restrita a
cresceu de forma espantosa, mas também a estes recortes específicos, que apresentam o
qualidade dos trabalhos.” uso do timing, ao explicar o conceito com a
Em contraponto, apesar de notarmos a as- construção de sequências de quadrinhos. A
censão deste público leitor dos quadrinhos e, escolha justifica-se pelo reconhecimento dos
também, o favorável crescimento de vendas quadrinistas em questão da arte sequencial,
destas obras em bancas de revistas, livrarias juntamente com a facilidade de compreensão
e convenções temáticas, as histórias em qua- perante a teoria.
drinhos ainda apresentam uma literatura aca-
dêmica escassa a respeito de suas técnicas de Quadrinhos e narrativa
desenvolvimento e criação, se comparada com
os outros meios de comunicação. Para contextualizar a produção de histórias
Desde o seu surgimento, os quadrinhos em quadrinhos de uma forma coerente, deve-
desenvolveram e aprimoraram sua estrutura -se considerar os diferentes cenários em que
narrativa ao explorar novos formatos, ele- ela se apresenta. Por um lado, existem as histó-
mentos e histórias. Ao apontar os elementos rias em quadrinhos criadas por quadrinistas, a
dos quadrinhos, uma especificidade relevan- partir de uma concepção original sua, ao visar
te da arte sequencial que pode ser destacada uma criação única e uma experiência marcante
é o timing. ao leitor. Nesta situação, a obra é criada por
Com a intenção de verificar a eficácia da uma pequena quantidade de pessoas (um ar-
construção narrativa das histórias em quadri- gumentista, um desenhista, um arte-finalista e
nhos, considera-se que o timing se caracteriza um letrista, por exemplo), ou até mesmo por
pelo uso da sequência de imagens com a fina- um único profissional, que engloba todas estas
lidade de apresentar o desenvolvimento do funções. Mesmo que sejam consideradas aqui
tempo na construção da história, além de deter- interferências externas, tais como editores, li-
minar o período decorrido em cada sequência. mitações gráficas, distribuição, entre outros,
Ao observar o envolvimento dos leitores este tipo de cenário favorece uma comunica-
diante das tramas apresentadas neste meio, ção muito direta entre o autor e o leitor.

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Em contrapartida, existem também os ca- quadrinhos é ler sua linguagem, tanto em seu as-
sos de produção essencialmente comerciais, pecto verbal quanto visual (ou não verbal)” (Ra-
nas quais algumas histórias em quadrinhos mos, 2012, p. 14). Desta forma, pode-se enfatizar
abrangem vários autores, desenhistas, arte- que a dinâmica da sequência de imagens justa-
-finalistas, coloristas, etc., para o desenvol- postas aliadas aos textos nas histórias em qua-
vimento de meras dúzias de páginas. Neste drinhos tem um design diferenciado, que conduz
caso, a grande quantidade de interferências na o leitor em diferentes direções na página, ao
criação da narrativa acaba, em geral, tornando criar uma experiência singular de leitura. “Nas
a experiência de leitura superficial e até desa- histórias em quadrinhos, o texto é lido como
gradável. Infelizmente, é exatamente este tipo imagem, e as imagens são comunicadores que,
de contexto que rotula toda uma forma de ex- em situações, falam mais que os próprios textos”
pressão cultural (McCloud, 2006). (Eisner, 2010, p. 10).
Alguns autores analisam os quadrinhos de Contudo, a narrativa das histórias em qua-
forma amplamente artística, tal como Moacy drinhos acontece em um ritmo único. O qua-
Cirne (2001), ao enfatizar que os quadrinhos, drinista se vale da confiança na interpretação
com sua narrativa, vão muito além do dese- do seu leitor, o que lhe permite escolher o que
nho e da pintura. “Se acolhem e/ou refletem esconder e o que contar do mistério. Confor-
os nossos sonhos, o fazem de modo original: me Eisner (2013), existe um contrato feito entre
a originalidade que implica experiência oníri- quem conta a história (o quadrinista) e quem
ca e, muitas vezes, um certo grafismo marca- recebe a história (nesse caso, o leitor). “O nar-
do pela sensualidade” (Cirne, 2001, p. 20). O rador espera que o público vá compreender,
autor enfatiza que a linguagem utilizada por enquanto o público espera que o narrador
esta expressão artística não se limita a regras vá transmitir algo que seja compreensível”
formais, e conquista o leitor justamente por (Eisner, 2013, p. 11).
instigar a imaginação e seduzi-lo ao texto.
Segundo Eisner, “a história em quadrinhos Timing
pode ser chamada de ‘leitura’ num sentido mui-
to mais amplo do que comumente aplicado ao Para ilustrar este contrato nas HQs, pode-
termo” (Eisner, 2010, p. 7). A leitura ao qual o au- -se tomar como exemplo uma sequência apre-
tor se refere abrange todo um novo aprendizado sentada na Graphic Novel Bando de Dois (2011),
que não se limita ao alfabeto e à gramática. “Ler conforme a Figura 1.

Figura 1. Narrativa da Graphic Novel Bando de Dois.


Figure 1. Storytelling from the Graphic Novel Bando de Dois.
Fonte: Beyruth (2011, p. 6-7).

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Cabe esclarecer que, nesta sequência, a es- como pelo tamanho dos quadrinhos em rela-
colha do autor da obra, ao apontar o que deve ção à página, por exemplo.
ser contado explicitamente na narrativa e o Como já citado, o exercício do timing em
que deve ser oculto, teve como objetivo insti- uma narrativa não envolve apenas a definição
gar a imaginação do leitor. de quanto tempo cada acontecimento demora
Neste exemplo, o personagem Tinhoso, ao para começar e terminar. Conforme já perce-
caminhar por um ambiente árido de seca nor- bido na Figura 1, o timing define, em algumas
destina, percebe ter sido atingido – talvez por situações, a importância de um acontecimen-
um tiro, talvez por uma faca – na cintura. O ca- to, o humor, a surpresa, o terror, enfim, toda
lor e a perda de sangue o fazem perder os sen- a parte emocional de uma história (Eisner,
tidos, e a sua queda é acompanhada quadro a 2010). Ramos comenta a respeito do prolonga-
quadro pela câmera imaginária da narrativa. mento de sequências de quadrinhos para gerar
Quase sem apresentar o uso de balões, apoian- tensão da seguinte forma:
do-se primordialmente na expressão facial e
corporal do protagonista, a justaposição das Reduzir o corte de tempo de uma ação para outra
cenas e ângulos levam o leitor a acompanhar a tende a criar baixo grau de inferências e aumenta
vertigem que o personagem sente em sua difí- o aspecto descritivo entre as vinhetas. [...] Um
outro efeito possível do prolongamento de tempo
cil caminhada e queda. Aqui, percebe-se o uso
é o aumento da tensão de determinada cena. O
do timing, não associado necessariamente ao leitor acompanha, num exemplo hipotético, um
tempo que passa entre um quadrinho e outro, tiroteio. Até a arma ser sacada e o disparo ser
mas no esforço de Tinhoso para se manter lúci- feito, há uma sequência de dez vinhetas. O tempo
do, onde cada quadro é mais doloroso e difícil representado não é maior do que segundos. A
que o anterior. estratégia permite criar um ar de expectativa no
O termo timing (que pode ser traduzido leitor (Ramos, 2012, p. 130).
do inglês por “tempo”, “cronometragem” ou
“afinação”) é utilizado para explorar os ele- Nas Figuras 2 e 3, uma mesma sequência de
mentos de estrutura que definem o tempo, o fatos é contada com uma aplicação diferencia-
ritmo e as emoções de uma narrativa (Eisner, da de timing. Ao utilizar os mesmos persona-
2010). No caso dos quadrinhos, pode ser ex- gens e as mesmas falas, a sensação da emoção
presso tanto pela quantidade de quadrinhos é completamente diferente entre uma cena e
empregados para se descrever uma ação outra. Na Figura 2, assim que o rapaz pergunta

Figura 2. Exemplo de timing 1.


Figure 2. Timing example 1.

Figura 3. Exemplo de timing 2.


Figure 3. Timing example 2.

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para a moça se ela aceita sua companhia, uma ta sequência de quatro quadrinhos implica
resposta afirmativa é apresentada. A sensação em uma mudança substancial de narrativa.
exposta em tal cena demonstra que a moça Na primeira sequência (Figura 4), temos um
realmente gostaria desta companhia até sua personagem caminhando. Ele se depara com
casa. Já na Figura 3, existe uma breve pausa, um objeto desconhecido no chão e o recolhe,
representada por um quadro silencioso, que identificando ser uma chave. Já na segunda
denota uma reflexão antes da resposta. Aqui, o sequência (Figura 5), o personagem apenas
leitor faz uso de sua bagagem cultural própria, recolhe a chave do chão. Conforme McCloud,
ao reconhecer que uma resposta dada após um “cada quadrinho leva o enredo adiante. [...]
instante de reflexão pode significar um debate Remova um deles e o sentido será alterado.
interno de quem a dá, e, muito provavelmente, Uma chave encontrada se torna uma chave
uma mentira. Neste caso, a aplicação diferen- recuperada” (2008, p. 13).
ciada de timing nessas duas situações está dire- Desta forma, percebe-se que cabe sempre
tamente relacionada à sinceridade da resposta. ao quadrinista ter a sensibilidade de explorar
McCloud (2008) afirma que um quadrinis- o timing de uma sequência de quadrinhos com
ta, ao desenvolver sua narrativa, confronta-se o intuito de imediatizar um acontecimento,
com cinco tipos básicos de escolhas: a escolha ou de prolongá-lo ao propor mais emoção, ou
do momento, do enquadramento, das imagens, de narrar os momentos que julga necessários
das palavras e do fluxo. Ele afirma que estas para contar a história. Este domínio do tem-
escolhas são as responsáveis por “determinar po que cada sequência exige para valorizar ou
a diferença entre uma narrativa clara e convin- acelerar uma narrativa é um refinamento que
cente e uma bagunça” (McCloud, 2008, p. 10). o quadrinista aprende com a experiência, e
Neste caso, a escolha do momento é a que dificilmente pode ser quantificado. “Cada
que mais se refere ao timing da narrativa e ação registrada no papel pelo desenhista é au-
ao objetivo de estudo deste trabalho. Como xiliada e apoiada por um cúmplice silencioso.
podemos perceber nas Figuras 4 e 5, a sim- Um cúmplice imparcial do crime conhecido
ples ausência de um dos quadros desta cur- como leitor” (McCloud, 2005, p. 68).

Figura 4. Exemplo de momento 1.


Figure 4. Moment example 1.
Fonte: McCloud (2008, p. 12).

Figura 5. Exemplo de momento 2.


Figure 5. Moment example 2.
Fonte: McCloud (2008, p. 13).

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Sarjeta No exemplo da Figura 6, a narrativa come-


ça com uma cena em que o personagem em
Um dos grandes motivos do não amadureci- primeiro plano claramente está sendo atacado
mento do público de quadrinhos no Brasil – e tal- pelo personagem em segundo plano. Após o
vez em todo o ocidente – é a imprecisa rotulação intervalo da sequência fornecido pela sarjeta,
de quadrinhos como uma leitura que impede o vemos uma cena externa na qual se ouve um
leitor de pensar. Segundo Rama e Vergueiro: grito a distância. Com aporte em carga cultural,
imagina-se aqui que, naquele breve espaço entre
Pais e mestres desconfiavam das aventuras fan- os quadros, o personagem foi, de fato, atacado,
tasiosas das páginas multicoloridas das HQs1, resultando em seu grito no quadro seguinte. No
supondo que elas poderiam afastar crianças e entanto, a maneira como ele foi atacado fica total-
jovens de leituras ‘mais profundas’, desviando-
mente a cargo da imaginação e criatividade do
se assim de um amadurecimento ‘sadio e respon-
sável’ (2009, p. 8). leitor. “Matar um homem entre os quadrinhos é
condená-lo a mil mortes” (McCloud, 2006, p. 69).
No entanto, McCloud apresenta uma nova Da mesma forma que o autor de um livro de
percepção sobre o envolvimento do leitor com suspense precisa dosar qual é o momento corre-
as histórias em quadrinhos. Conforme o autor, to de descrever os detalhes de uma cena e qual o
esta aproximação do quadrinista com o leitor de narrar uma sequência de ação para prender a
está no “fechamento” (closure) feito na leitura atenção e tensão do leitor, o quadrinista escolhe
entre dois quadrinhos, que despertam a criati- quanta informação deve constar em cada quadri-
vidade e tornam o relacionamento autor/leitor nho e quanta informação deve constar na sarjeta,
tão estreito. Após mostrar uma sequência de que fica à mercê da criatividade e cumplicidade
dois quadrinhos (Figura 6), afirma: do leitor. Eisner complementa:

Está vendo o espaço entre os quadros? É o que os Conhecida a sequência, o leitor pode fornecer os
aficionados das histórias em quadrinhos chamam eventos intermediários, a partir de sua vivência.
de sarjeta. Apesar da denominação grosseira, a O sucesso brota aqui da habilidade do artista
sarjeta é a responsável por grande parte da magia (geralmente mais visceral que intelectual) para
e mistério que existem na essência dos quadrin- aferir o que é comum à experiência do leitor
hos (McCloud, 2006, p. 66). (2010, p. 38).

Figura 6. Exemplo de McCloud sobre a sarjeta entre os quadrinhos.


Figure 6. McCloud’s Gap between panels example.
Fonte: McCloud (2006).

1
Sigla utilizada para representar Histórias em Quadrinhos.

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Narrativa em histórias em quadrinhos: o uso do timing para conquistar os leitores

Ainda segundo Eisner: o envolvimento emocional do leitor em suas


narrativas. Um exemplo claro deste tipo de
A habilidade de expressar tempo é decisiva para o transição está presente na Figura 1 deste arti-
sucesso de uma narrativa visual. É essa dimensão go, com a sequência da queda do personagem
da compreensão humana que nos torna capazes Tinhoso, produção nacional.
de reconhecer e de compartilhar emocionalmente
Já as transições ação-pra-ação são as mais
a surpresa, o humor, o terror e todo o âmbito da
experiência humana (Eisner, 2010, p. 26).
utilizadas em todos os tipos de quadrinhos. Ao
narrar os principais passos de uma sequência
Essa capacidade de expressar o tempo cita- de acontecimentos, são “transições que apre-
da pelo autor engloba uma grande quantidade sentam um único tema em progressão distinta
de sutilezas de que um quadrinista se dispõe a de ação-para-ação” (McCloud, 2005, p. 70). Para
usar para definir tempo e, com isso, envolver seu se ter um exemplo, toma-se um quadro no qual
leitor. Dentre elas, podemos destacar o tamanho uma bola vem em direção ao personagem, e, no
dos quadrinhos em relação à página, a quantida- próximo quadro, vemos ele chutando-a. Neste
de de texto, o movimento implícito na imagem, caso, o grau de envolvimento com o leitor ainda
ou a ausência de qualquer um desses elementos. é considerado sutil, tendo pouco espaço para o
fechamento entre o que acontece entre uma cena
Como leitores, nós presumimos saber que ordem e outra. As Figuras 4 e 5 deste estudo podem ser
seguir na leitura dos quadros, mas o trabalho de tomadas com exemplo deste tipo de transição.
dispor esses quadros é bastante complexo. Tan- As transições tema-pra-tema, por sua vez,
to que, até os profissionais mais experientes, às também bastante populares nos quadrinhos,
vezes, se atrapalham. Quando a conclusão entre são as comparadas com cortes de cena do ci-
os quadros fica mais intensa, a interpretação do nema. Por exemplo, uma sequência na qual o
leitor se torna muito mais flexível. E fica mais tema da narrativa mantém-se a mesma, mas a
complicado pro autor controlar isso. É óbvio que
cena de um quadro é dentro de um quarto, se-
alguns artistas podem ser ambíguos de propósito,
não oferecendo uma interpretação exata para ser guida por uma do lado de fora da casa, e então
seguida. Quando o artista decide mostrar só uma para a rua. Nesta transição, já se percebe um
pequena parte da cena, a conclusão se torna uma envolvimento maior do leitor quanto ao fecha-
força poderosa tanto dentro dos quadros quanto mento da narrativa (McCloud, 2006).
entre eles (McCloud, 2005, p. 86). Conforme McCloud (2006), as transições
denominadas cena-pra-cena são as que con-
Esta afirmação de McCloud vem ao encon- tam com distâncias significativas de tempo
tro de Eisner, já citado neste artigo, quando ou espaço. Se fazem presentes, por exemplo,
afirma sobre o contrato entre o autor e o leitor em narrativas que pulam do tempo presente
a respeito do que é dito e do que é entendido. para o futuro (“dez anos depois...”) ou de um
local para outro (“enquanto isso, na cidade vi-
Transições zinha...”).
Transições aspecto-pra-aspecto são os qua-
McCloud (2006) define o fechamento das dros que exploram o ambiente. Ao mostrar
sequências presentes nas transições de um qua- uma sala em um quadro e um detalhe desta
drinho para outro em seis tipos: Momento-pra- mesma em outro, a mudança presente é de
-momento, ação-pra-ação, tema-pra-tema, ce- aspecto, não dando também muito espaço de
na-pra-cena, aspecto-pra-aspecto e non-sequitur. fechamento ao leitor (McCloud, 2006).
As transições momento-pra-momento se Para finalizar, a última transição definida
caracterizam pelo pouco espaço para fecha- por McCloud (2006), a non-sequitur (não sequen-
mento do leitor. Em um quadro, o persona- cial), raramente é encontrada em narrativas co-
gem tem os olhos abertos, no próximo, estão merciais, nas quais um quadro aparentemente
fechados, deixando uma lacuna muito breve não faz ligação nenhuma com o seu próximo.
de movimentação acontecendo na sarjeta dos Segundo McCloud (2005, p. 74), “este
quadrinhos para a criatividade do leitor. Con- tipo de categorização é uma ciência inexata,
forme pesquisa realizada por McCloud (2006), mas, usando nossa escala de transição, nós
é um tipo pouco utilizado de transição nos começamos a desvendar alguns mistérios que
quadrinhos ocidentais, mais voltados para cercam a arte invisível da narrativa dos qua-
ação e aventura. Esta transição, no entanto, drinhos”. Em suas pesquisas, o autor percebe
se faz mais presente nos quadrinhos orientais que, de uma forma bem abrangente, as limita-
(mangás), com sua preocupação maior com ções de publicação e produção dos quadrinhos

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podem ser os maiores influenciadores do re- que define o sucesso do entendimento entre
sultado de uma narrativa com um timing mais artista e leitor.
apurado do que outras.
Tomando-se como exemplo as revistas Considerações finais
em quadrinhos norte-americanas (comics),
estas são publicações mensais com um nú- As histórias em quadrinhos são um assunto
mero limitado de páginas que precisam con- complexo, com níveis profundos de conheci-
tar uma história bastante complexa, normal- mento e ainda pouco compreendido e estudado
mente com início, meio e fim, ou capítulos academicamente no Brasil. A habilidade neces-
de uma minissérie. Com pouco espaço para sária para contar uma história de forma a envol-
muita história, aumentar o ritmo da narra- ver um leitor utilizando-se dos quadrinhos como
tiva acaba sendo a única saída. O resultado meio é muito ampla e muito difícil de ser mensu-
é uma cultura de pouco investimento no ti- rada, conforme aponta Eisner (2010, 2013).
ming e mais preocupação com o impacto vi- Como estudado com McCloud (2005, 2006,
sual de cada página. 2008), uma história em quadrinhos pode gerar
Em contrapartida, temos as publicações um grande envolvimento com um leitor, des-
japonesas (mangás). Estas são semanais e, de que seja bem resolvida – e isso não significa
apesar de também contarem com um número uma arte surpreendente ou um roteiro dramá-
limitado – e até menor – de páginas, contam tico. A sutil noção do que deve ser dito e o que
com uma frequência maior e a liberdade de deve ser deixado à criatividade do leitor como
narrar os fatos de maneira mais cuidadosa. “fechamento” é crucial para o sucesso de uma
Neste caso, percebe-se uma presença mui- narrativa.
to maior de transições aspecto-pra-aspecto e Compreendemos que a riqueza desta for-
momento-pra-momento, que atribuem uma ma de narrativa necessita de mais estudos,
característica cinematográfica aos mangás, em busca de uma melhor compreensão de seu
pouco presente nos comics. funcionamento. Ao mesmo tempo, acredita-
Cagnin (1975) faz uma análise bem espe- mos que, com um crescimento acadêmico, as
cífica da aplicação de tempo nas histórias em histórias em quadrinhos podem vencer sua
quadrinhos. Segundo ele, podem-se definir rotulação infantilizada, muito forte ainda no
seis tipos: ocidente, em busca do seu devido espaço en-
quanto expressão cultural, tal como a literatu-
(i) O tempo enquanto sequência de um antes e ra, o teatro e a música.
um depois: Quando se omitem eventos de uma Conforme verificamos na análise, o tempo
sequência, dando liberdade de fechamento ao nos quadrinhos é construído na narrativa de
leitor; acordo com a história que é retratada. Não
(ii) O tempo enquanto época histórica: represen-
existe um padrão ou fórmula específica, mas
tado pelo período histórico vivido pelos per-
sonagens; elementos que compõem a sua construção,
(iii) O tempo astronômico: recurso utilizado para tais como o uso dos quadros e seus recortes, a
indicar os períodos do dia, como o sol ou a sarjeta e as transições utilizadas que definem o
lua; que ocorre entre um quadro e outro.
(iv) O tempo meteorológico: trata-se do clima, Torna-se importante destacar que a narra-
como, por exemplo, o calor, o frio ou a chuva; tiva toma sua forma a partir das escolhas do
(v) O tempo da narração: é o momento da nar- autor a respeito dos momentos que ele esco-
ração em si, que se torna presente enquanto lhe explicitar ou omitir. Neste caso, detalhes
é lido;
da narrativa abrem espaço para interpretações
(vi) O tempo da leitura: Embora o leitor tenha
diferenciadas de cada leitor, tornando as histó-
contato com todos os quadrinhos da página,
há uma certa linearidade na leitura. Consid- rias em quadrinhos uma comunicação sujeita
eramos aqui o futuro (parte ainda não lida), a interpretação, e não uma leitura completa-
o presente (momento da leitura) e o passado mente literal.
(após a leitura). Verifica-se, então, que a imaginação do
leitor torna-se o limite para a construção do
Seja qual for a escolha do artista para de- tempo narrativo. Se o autor das histórias em
senvolver o tempo (timing) de sua narrativa ou quadrinhos quer restringir a narrativa ao que
qual teoria de qual autor for aplicada, todos os ele próprio construiu, o mesmo define os
autores estudados concordam que é o domínio quadros sem brechas para dúvidas. Por outro
desta característica marcante dos quadrinhos lado, pode deixar lacunas para que o leitor

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Narrativa em histórias em quadrinhos: o uso do timing para conquistar os leitores

faça o fechamento em seu pensamento. Para CIRNE, M. 2001. Quadrinhos, sedução e paixão. Rio de
complementar, McCloud (2005, p. 63) enfati- Janeiro, Vozes, 220 p.
za que “os quadrinhos que eu ‘vejo’ na minha EISNER, W. 2010. Quadrinhos e arte sequencial: Prin-
cípios e Práticas do Lendário Cartonista. 4ª ed., São
mente nunca vão ser vistos de forma idêntica
Paulo, Martins Fontes, 154 p.
por outra pessoa”. EISNER, W. 2013. Narrativas gráficas: Princípios e
Conforme apontamento de McCloud (2005, práticas da lenda dos quadrinhos. 3ª ed., São Paulo,
p. 63), o leitor conclui fatos frequentemente, Devir Livraria, 176 p.
“[...] completando mentalmente o que está in- MCCLOUD, S. 2005. Desvendando os quadrinhos: his-
completo, baseados em experiência anterior. tória, criação, desenho, animação, roteiro. São Paulo,
Algumas formas de conclusão são invenções M. Books, 217 p.
criadas deliberadamente para produzir sus- MCCLOUD, S. 2006. Reinventando os quadrinhos:
Como a imaginação e a tecnologia vêm revolucionan-
pense ou provocar o espectador” (McCloud, do essa forma de arte. São Paulo, M. Books, 241 p.
2005, p. 63). MCCLOUD, S. 2008. Desenhando Quadrinhos: Os se-
O timing nos quadrinhos tem uma constru- gredos das narrativas de quadrinhos, mangás e gra-
ção específica em cada sequência, ao depender phic novels. São Paulo, M. Books, 264 p.
do que está retratado na história. A temporali- NARANJO, M. 2014. A Nova HQ Independente em
dade é criada com a intenção de retratar cada exposição no Senac e na Galeria Ornitorrinco.
cena específica, acelerando o tempo para retra- Disponível em: http://www.universohq.com/
noticias/nova-hq-independente-em-exposicao-
tar algo banal, ou explorando com afinco algo
-no-senac-e-galeria-ornitorrinco/. Acesso em:
que, em tempo real, não passaria de segundos. 06/01/2015.
Cabe enfatizar que os estudos das histórias RAMOS, P. 2012. A Leitura dos Quadrinhos. São Pau-
em quadrinhos devem ser aprofundados no lo, Contexto, 157 p.
âmbito acadêmico, ao avaliar também o uso de RAMA, A; VERGUEIRO, W. 2009. Como usar as his-
balões, cores, requadros e formatos em publi- tórias em quadrinhos na sala de aula: da rejeição à
cações diferenciadas, além do ritmo de leitura Prática. São Paulo, Contexto, 155 p.
SOTO, C. 2014. Turma da Mônica é grande ven-
desprendido por cada leitor.
cedora do maior prêmio das HQs nacionais.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/
Referências ilustrada/2014/09/1514418-turma-da-monica-
-e-maior-vencedora-do-premio-hqmix.shtml.
BEYRUTH, D. 2011. Bando de Dois. Campinas, Zara- Acesso em: 15/09/2014.
batana Books, 94 p.
CAGNIN, A.L. 1975. Os Quadrinhos. São Paulo, Áti- Submetido: 23/10/2014
ca, 234 p. Aceito: 11/01/2015

Verso e Reverso, vol. XXIX, n. 70, janeiro-abril 2015 43

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