Você está na página 1de 4

Sérgio Magalhães: “Precisamos de

cidades compactas”
O arquiteto diz que o projeto olímpico do Rio
de Janeiro tem uma concepção errada de
crescimento urbano
MAURÍCIO MEIRELES

inShare

QUESTÃO DE URBANIDADE
O arquiteto Sérgio Magalhães, no Rio de Janeiro. De acordo com ele, a falta
de uma política de desenvolvimento com foco nas cidades gerou o caos
urbano existente no Brasil
(Foto: Pedro Farina/ÉPOCA)
Como secretário de Habitação do Rio de Janeiro, entre 1993 e 2000, o
arquiteto sérgio Magalhães concebeu o projeto Favela-Bairro, que previa a
urbanização das favelas. Recém-empossado como presidente do Instituto de
Arquitetos do Brasil (IAB), Magalhães continua preocupado com a relação
entre o uso dos espaços nas cidades brasileiras e a qualidade dos serviços
públicos. Para ele, as cidades brasileiras sofrem com a baixa densidade:
quanto mais espalhados os habitantes pelo espaço urbano, mais caro e difícil
é levar os serviços públicos a eles. Magalhães é um crítico do projeto
olímpico do Rio, que, segundo ele, reincide nesse problema. Professor da
Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
ele recebeu ÉPOCA para esta entrevista numa antiga casa de bondes da
Zona Sul da cidade, sede do IAB e resquício de uma era em que o país ainda
não abandonara o transporte sobre trilhos em benefício dos automóveis.
ÉPOCA – O senhor faz críticas às intervenções urbanísticas feitas no
Rio de Janeiro para preparar a cidade para a Olimpíada de 2016. Quais
são os problemas do projeto olímpico?
Sérgio Magalhães – O projeto estimula a baixa densidade urbana. O que
aconteceu no Rio? Depois de deixar de ser capital federal, a cidade cresceu
três vezes em área ocupada, enquanto a população nem chegou a dobrar.
Isso aconteceu em todas as cidades brasileiras, em benefício do automóvel e
do ônibus. Com o fim do sistema de transporte coletivo urbano por trilhos, por
trens e bondes, as cidades se expandiram porque deixaram de se organizar
ao redor das linhas. Os pneus entram em qualquer lugar. Com trens e
bondes, isso é mais difícil. Agora a população das cidades brasileiras tende a
estabilizar. Quanto mais nos expandirmos, mais difícil será manter a
qualidade de vida. As pessoas, porém, ainda estão no oba-oba do
crescimento infinito. As cidades não podem se esticar infinitamente. Não
temos recursos infinitos.
ÉPOCA – O que poderia ter sido planejado de forma diferente?
Magalhães – Defendi a concentração da maior parte possível dos
equipamentos olímpicos no Porto do Rio. Lá, caberia tudo. Quando a
candidatura do Rio foi apresentada, não havia um entendimento entre as
esferas municipal, estadual e federal que possibilitaria usar aquele espaço.
Nas circunstâncias, não havia essa opção. Depois que virou uma
possibilidade, o certo seria levar as coisas para lá. (A maior parte das
instalações olímpicas no Rio ficará longe do centro da cidade – na Zona
Norte ou na Barra da Tijuca.) Para a
Olimpíada, uma grande intervenção necessária é despoluir a Baía de
Guanabara. Essa medida pode mudar um destino que parece inexorável para
o Rio: a expansão em direção ao subúrbio e à Zona Oeste. A baía articula a
região metropolitana.
ÉPOCA – A alta densidade costuma ser associada à má qualidade de
vida, poluição, engarrafamentos e outros problemas urbanos. Por que o
senhor a defende como algo bom para a cidade?
Magalhães – Densidade não quer dizer edifício alto, espigão. Quer dizer
mais gente num território onde os serviços públicos são viáveis. Paris é uma
cidade muito densa, mas não tem prédios altos. No Rio, os quarteirões entre
Ipanema e Lagoa, com prédios de cinco andares, têm alta densidade, mas
alta qualidade de vida. Precisamos de cidades compactas. Assim, você cria
espaços de convívio, com serviços de mais qualidade. Serviço público custa
muito. Com as pessoas espalhadas, é mais difícil atendê-las. Na prática, só
se atende quem tem mais poder, as áreas mais ricas. Tome o exemplo da
Barra da Tijuca, no Rio, que tem baixíssima densidade.
ÉPOCA – Para a Olimpíada, o Rio está construindo os Bus Rapid
Tranportation (BRTs), corredores de ônibus, com estações, apelidados
de “metrô sobre rodas”. O que o senhor acha desse projeto?
Magalhães – Os BRTs são um dos modos possíveis de transporte coletivo. A
Colômbia tem usado. Em Curitiba, caso mais notório no Brasil, é uma
experiência bem-sucedida. Lá, os trechos mais importantes agora virarão
metrô. O importante para os BRTs, como transporte de massa, é passar
onde as pessoas estão – por mais óbvio que isso pareça. A Transcarioca
(que ligará a Barra da Tijuca ao Aeroporto do Galeão, na Ilha do Governador)
é boa. A Transoeste (que ligará os bairros de Campo Grande e Santa Cruz,
na Zona Oeste, à Barra da Tijuca) nem tanto, porque passa por áreas vazias
e desertas e pode estimular a ocupação de baixa densidade.
ÉPOCA – A zona portuária do Rio é uma região vazia e deteriorada no
centro da cidade, um problema que ocorre em outras grandes cidades
brasileiras. Como enfrentá-lo?
Magalhães – Na zona portuária há inúmeros prédios gigantescos
desocupados. São áreas públicas ou de irmandades religiosas, de quando o
Rio era capital federal. Há também uma infinidade de pequenos imóveis
abandonados. Um imóvel abandonado deteriora a vizinhança. É uma
contaminação, uma doença. Ele acaba com seu entorno. Se forem vários,
pior ainda. É preciso reocupar os centros das cidades. Para que um lugar
tenha vida, é preciso que algo funcione quando o comércio e os serviços são
interrompidos. É a habitação que faz isso.
"O Minha Casa Minha Vida é arcaico. Em vez das famílias, o governo e as
empreiteiras decidem o que fazer, onde e em que condições"
ÉPOCA – Qual o maior desafio para o urbanismo hoje no Brasil?
Magalhães – É a necessidade de tornar a cidade disponível para toda a
população. O Brasil cresceu nas últimas décadas fazendo a cidade subsidiar
seu desenvolvimento, mas nunca a tratou de forma central. Os capitais
investidos em moradia foram canalizados para a indústria. Houve
crescimento demográfico sem políticas de habitação. Em nome da indústria
automobilística, o sistema de transporte sobre trilhos, com bondes e trens
urbanos, foi desconstruído. Também veio o estímulo, nos anos 1960, ao
agronegócio – mas com uma legislação trabalhista que acabou expulsando
as pessoas do campo. Elas foram recebidas na cidade sem políticas de
habitação, transporte e saneamento. Essas pessoas tiveram de ocupar a
cidade da forma mais predatória, a ocupação de baixa densidade, em locais
sem infraestrutura, criando enormes periferias. Mesmo assim, a cidade é
vista como o lugar do futuro pelas pessoas. No século XXI, o
desenvolvimento é pautado pelo conhecimento, pela educação, pelas
invenções e pela criatividade. Tudo isso pressupõe uma vida urbana. É a
cidade que dá condições para o conhecimento florescer. Para isso,
precisamos democratizar nossas cidades, conquistando transporte
adequado, superando nosso enorme passivo ambiental.
ÉPOCA – Que intervenção o senhor faria nas cidades brasileiras?
Magalhães – Como medida urgente, melhoraria o transporte, claro. É
desumano o que as pessoas passam. Aqui no Rio, os trens poderiam ser
transformados em metrô sem que seja necessário criar novas linhas. Por um
preço mais barato, sem novos corredores. Os trens atendem 70% da zona
metropolitana. Outro ponto seria conter a expansão da cidade. A cidade sem
densidade é inviável.

ÉPOCA – Como o senhor avalia o programa do governo federal Minha


Casa Minha Vida?
Magalhães – É arcaico. Em vez das famílias, o governo e as empreiteiras
decidem o que fazer, onde e em que condições. As famílias deveriam ter
autonomia para escolher onde e como morar – contando com financiamento.
Hoje, o morador tem de aceitar o que é oferecido. Do ponto de vista
urbanístico, o que é oferecido é muito antigo. São grandes conjuntos
residenciais em lugares muito distantes, sem infraestrutura, o que faz a
cidade perder qualidade. É importante existir financiamento e participação do
governo. Mas hoje é considerado que os recursos são um favor do governo
para a família. Está errado. As pessoas vivem e vendem sua força de
trabalho na cidade, gastando muito dinheiro com moradia. No mundo
desenvolvido, o cidadão não precisa de um novo programa de financiamento
para comprar uma casa. Quando quiser, sabe que o dinheiro estará
disponível: para comprar, construir, fazer o que quiser.
ÉPOCA – Como o senhor vê os novos edifícios construídos no Brasil?
Magalhães – Não gosto quando a construção tem muita autonomia. Ela só
faz sentido se você olhar sua relação com o espaço público, como cada
edifício se encadeia na proposta de melhorar a cidade. Essa onda de
condomínios fechados é um atraso de vida. Admito que haja formas de
ocupação diferentes – mas acho ruim. Eles degradam o espaço público,
diminuem as áreas de encontro entre as pessoas. Muitos edifícios não estão
atentos para isso. A legislação impõe parâmetros ruins, em desacordo com a
qualidade de vida. Quando um prédio é obrigado a colocar nos primeiros
andares a garagem, a moradia é afastada da rua. E isso cria uma vizinhança
ruim. O olhar das pessoas sobre a rua – e da rua sobre elas – desaparece. O
papel do edifício é ajudar o coletivo. 

Você também pode gostar