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Dulce Marta Cardoso

o retorno

RIO DE JANEIRO:
TI N1'A-DA-C H l NA
MMXIII
E<li�áo apoiada pela Dire�áo Geral do Livro e das Bibliocecas /
Sccrc{aria de Estado da Cultura - Porrugal.

SECRETÁRIO DE ESTADO
DA CULTURA

Aos desterrados
Ao Luís, o meu cháo

© Dulce J\laria Cardoso, 2012

2.• cdi',áo: maio de 2or3

Edi(,áo: Tima-da-china Brasil


Capa e projero gráfico: Tinca-da-duna Brasil

Cardoso, Dulce Maria


C268 O retomo/ Dulce Maria Cardoso.
- 2.cd. -Rio dcjanciro: Tima-da-china Brasil, 2013.
272 pp.; 21 cm

ISBN 978-85-65500 01·2

1. Literarura porruguesa - l. Tirulo. II. Série

CDD P869 (22.cd)


CDU869

Todos os dircitos
clcsra edi ,;áo reservados a
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M as na metrópole há cerejas. Cerejas grandes
e luzidias que as raparigas póem nas orelhas
a fazer de brincos. Raparigas bonitas como só as da
metrópole podem ser. As raparigas daqui náo sabem
como sao as cerejas, dizem que sao como as pitangas.
Ainda que sejam, nunca as vi com brincos de pitangas
a rirem-se u.mas com as outras como as raparigas da
metrópole fazem nas fotografias.
A máe insiste para que o pai se sirva da carne
assada. A comida vai estragar-se, diz, este calor dá
cabo de tudo, urnas horas e a carne come<;a a es­
verdear, se a ponho na geleira fica seca como urna
sola. A máe fala como se hoje a noite nao fóssemos
apanhar o aviáo para a metrópole, como se amanhá
pudéssemos comer as sobras da carne assada den­
tro do páo, no intervalo grande do liceu. Deixa-me,
mulher. Ao afastar a travessa o pai derruba a cesta
do páo. A máe endireita-a e ajeita as codeas com o
mesmo cuidado com que todas as manhás ordena os
comprimidos antes de os tomar. O pai náo era assim
antes de isto ter come<;ado. Isto sáo os tiros que se
ouvem no bairro acima do nosso. E as nossas quatro
malas por fechar na sala.
8 DULCE MARIA CARDOSO O Rt:'rORNO 9

Picamos num silencio táo ccrimonioso que o ba­ Apesar de ser o último día que passamos aqui,
rulho da ventoinha surge anormalmente aleo. A máe nada parece assim tao diferente. Alm0<;:amos senta­
pega na cravessa da carne e serve-se com os gestos dos a mesa da cozinha, a comida da máe continua a
concidos que costumava usar com as visitas. Quando náo ser saborosa, ternos calor e a humidade do ca­
pausa a travessa na mesa demora a máo sobre a toalha cimba faz-nos transpirar. A única diferenc;:a é que es­
das dálias. Agora já náo há ninguém para visitar-nos tamos mais calados. Dantes falávamos do trabalho do
mas mesmo antes de isto ter comec;:ado era raro ter­ pai, da escola, dos vizinhos, do aspirador que a máe
mos visitas. A minha irmá cliz, ainda me lembro do día cobic;:.ava nas revistas, do ar condicionado que o pai
cm que aquele galo, o galo de louc;:a que está na banca­ tinha prometido, do Babyliss que havia de alisar os
da de pedra mármore, caiu ao chao e lascou a crista. caracóis da minha irmá, de urna bicicleta nova para
Insistimos em pormenores insignificantes porque já mim. O pai prometia rudo para o ano que vem e qua­
comec;:ámos a esquecer-nos. E ainda nem saímos de se nunca cumpria. Sabíamos disso mas ficávamos fe­
casa. O aviáo é um bocadinho antes da meia-noitc Jizes com as promessas do pai, acho que nos basca­
mas ternos de ir mais cedo. O tio Zé vai levar-nos ao va a ideia de que o futuro seria melhor. Antes de os
aeroporto. O pai vai lá ter depois. Depois de matar a tiros rerem comec;:.ado o futuro seria sempre melhor.
Pi rata e de deitar fogo a casa e aos camióes. Nao acre­ Agora já náo é assim e por isso já náo cernos assuntos
dito que o pai mate a Pirata. Também nao acredito para falar. em planos. O pai já nao vai trabalhar, já
que o pai deite fogo a casa e aos camióes. Acho que nao há escota e os vizinhos já se foram todos embo­
diz isso para nao pensarmos que eles se ficam a rir. ra. Náo haverá ar condicionado, nem aspirador, nem
Eles sáo os pre tos. No encanto, o pai comprou bidóes Babyliss, nem bicicleta nova. Ncm casa sequer. Esta­
de gasolina que estáo guardados no anexo. Talvez seja mos calados a maior parte do tempo. A nossa ida para
mesmo vcrdade, calvez o pai consiga matar a Pirata a metrópolc é um assunco ainda mais dificil do que a
e queirnar tudo. A Pirata podia ficar com o tio Zé doenc;:a da máe. Também nunca falamos da doenc;:a da
que náo se vai embora porque quer ajudar os pretos máe. Quando muito referimos o saco de medicamen­
a formar urna nac;:áo. O pai ri-se sempre que o tio Zé tos que está cm cima da bancada da cozinha. Se um
fala na grandiosa nac;:áo que se crguerá pela vontade ele nós está a preparar qualquer coisa perto, dizemos,
de um povo oprimido durante cinco séculas. Mesmo cuidado com os medicamentos. Como acontece com
que o tio Zé promecesse que tomava coma da Pirata os tiros. Se um de nós vai a janela, cuidado coro os
nao servia de nada, o pai acha que a única coisa que tiros. Mas calamo-nos de seguida. A doen�a da máe e
o tío Zé sabe fazer é desonrar a familia. E é capaz de esta guerra que nos faz ir para a metrópole sao assun­
ter razáo. cos parecidos pelo silencio que causam.
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IO DULCE MA!UA CARDOSO O RETORNO II

O pai tosse ao acender mais um cigarro. Tem os náo há neste inferno nada que lhes fac;:a mal, ternos de
dentes amarelos e a casa cheira a tabaco mesmo quan­ ter cuidado com os nossos, avisavam as vizinhas.
do o pai náo está. Sempre o vi a fumar AC. O Gegé, A culpada de a máe ser assim é esta terra. Sempre
quando chegou das férias da metrópole, disse que lá houve duas terras para a máe, esta que a adoeceu e a
náo havia AC. Se for verdade, náo sei como o pai vai metrópole, onde tudo é diferente e onde a máe também
fazer. Tenho a certeza que é a última das preocupac;:óes era diferente. O pai nunca fala da metrópole, a máe tem
que o pai tem agora e nem sei para que me ponho a duas terras mas o pai náo. Um homem pertence ao sítio
pensar nisso, por que perca tempo com coisas que náo que lhe dá de comer a náo ser que tenha um corac;:áo
tem interesse algum quando tenho tantas coisas im­ ingrato, era assim que o pai respondía quando lhe per­
portantes em que devia pensar. Mas náo consigo man­ guntavam se rinha saudades da metrópole. Um homem
dar naquilo em que penso. Talvez a minha cabec;:a náo tem de seguir o trabalho como o carro segue os bois.
seja muito diferente da cabec;:a fraca da máe que está E ter um corac;:áo agradecido. O pai só estudou até a
sempre a perder-se nas conversas. D e vez em quando a segunda classe mas náo há nada que náo saiba sobre o
máe pede ao pai para fumar menos mas o pai náo a leva livro da vida que, segundo o pai, é o que mais ensina.
a sério, sabe que passado um tempo a máe esquece-se O Lee e o Gegé gozavam quando o pai se punha a falar
do pedido como se esquece de quase tudo. As vizi­ do livro da vida e eu tinha de fazer um esforc;:o para náo
nhas zangavam -se com os esquecimentos da máe, se a ter vergonha. Deve estar no sangue dos pais fazerem e
D. Glória náo fosse como é tínhamos de levar-lhe a dizerem coisas que envergonh am os .filhos. Ou no san­
mal certas coisas. Mas a máe é como é e as vizinhas gue dos .filhos sentirem vergonha dos pais.
náo podiam levar-lhe a mal tuda o que queriam, ainda Já se foram todos embora. Os meus amigos, os
que náo lhes faltasse vontade. Mas náo eram só os es­ vizinhos, os professores, os donos das lajas, o meca­
quecimentos. As vizinhas também achavam que a máe nico, o barbeiro, o padre, todos. Nós também já náo
náo sabia tomar canta de mim e da minha irmá ' se nos devíamos cá estar. A minha irmá acusa o pai de náo se
viam a brincar nos charcos da chuva ou a correr atrás importar com o que nos possa acontecer e por von­
do carro da TIFA, coitadas daquelas crianc;:as que cres­ tade da máe teríamos ido embora há muito tempo,
cem sem eira nem beira. Os pretos corriam atrás do ainda antes do Sr. Manuel. Náo acredito que o pai náo
carro, abriam a boca para engolir a névoa que matava se importe connosco apesar de náo perceber por que
o paludismo, mas os brancos náo, as vizinhas sabi am ainda nao nos fomos embora quando pode acontecer­
que aquele fumo fazia mal e proibiam os filhos como -nos urna coisa má a qualquer momento. Os soldados
os proibiam de chapinhar na água da chuva por causa portugueses já quase náo passam por aquí e os pou­
da filária. D. Glória, os pretos tem outra constituic;:áo e cos que vemos rem os cabelos compridos e as fardas
12 DULCE MARTA CARDOSO O RETORNO 13

desleixadas, os botóes das camisas desapertados e os A rnáe verteu o arroz-doce para as tar;:as de vidro
atacadores das botas por atar. Derrapam os jipes nas cor-de-rosa e quis escrever as iniciais dos nossos no­
curvas e bebem Cucas como se estivessem de férias. mes a canela mas a máo tremia-lhe. Culpou os compri­
Para o pai os soldados portugueses sáo uns traido­ midos e tentou outra vez, a canela entre o polegar e o
res reles mas para o tio Zé sáo heróis antifascistas e indicador as voltas com as nossas iniciais mal feítas e
anticolonialistas. Se a máe e a minha irmá náo esta.o nem nisso houve diferenr;:a, as nossas iniciais tarnbém
presentes o pa.i diz ao tío Zé, em vez de antifascis­ nunca ficavam bem desenhadas nas manhás de domin­
tas e ancicolonialistas era bom que os soldados por­ gos em que vínhamos da pra.ia e tomávamos banho de
tugueses fossem antiputas, anticerveja e antiliamba, mangueira ao pé do tanque. A Pirata a patinhar na águ a
e comer;:a mais urna discussáo entre os dois. que ia escmTendo para os canteiros, as toalhas da praia
Depois do que 1he aconteceu náo sei como o tío penduradas no sape-sape, a máe a gritar da cozinha,
Zé continua a defender os soldados portugu eses. Se ca­ cuidado coro os meus canteiros, olhem que o sal mata
lhar na caber;:a do tio Zé as coisas passaram-se de outra as rosas. A ma.e nao gosta de sol nem de sal. Gasta de
maneira, as caber;:as mudam facilmente o que acontece rosas. Os canteiros da máe tem rosas de todas as cores
mesmo quando nao sáo fracas como a da máe. Ainda que a máe nunca corta, conseguía lá cortar urna rosa,
esta manhá, na minha cabei;:a, este día deixou de ser as vizinhas nao ligavam ao que a máe dízia mas abana­
este día. A máe estava a fazer o arroz-doce e, por ins­ vam a caber;:a, a D. Glória tem cada mania, que mal há
tantes, este día transformou-se nurn dos domingos de em cortar flores, ficam tao bonitas numa jarra. Que o
antes, num dos domingos de quando ainda nao havia sal nao mate as rosas, pedía a máe, mas por mais que
tiros. O cheiro do arroz a cozer, a persiana da cozi.nha lavássemos rudo o melhor que podíamos havia sempre
entreaberta, as bolinhas de sol nos azulejos verdes, pontinhos pequeninos a brilhar nos canteiros. O sal
o zunido das moscas contra a rede fina da janela, a Pi­ acabava sempre por matar algumas rosas.
rata a abanar a cauda a espera de lamber a tampa da pa­ A máe lambeu a canela dos dedos como se fosse
nela, tudo tal e qua! como numa das manhás de domin­ urna coisa boa e foi a mala do enxoval, que está na sa­
go. A minha irmá acha urna porcaria a Pirata lamber as linha da costura, buscar urna toalha para pór na mesa.
tampas das panelas, ai que nojo. Faz as mesmas caretas A manhá continuava igual as manhás de domingo.
quando tenho as máos sujas com o óleo da bicicleta Tao igual que me deu vontade de ir para o quintal fu­
mas náo se incomoda com a papa de abacate e azeite mar um cigarro as escondidas. De certeza que estava
que póe no cabelo para alisar os caracóis, urna papa tudo como dantes e nos outros quintais os vizinhos
verde nojenta que a faz parecer urna marciana. Náo sei faziam churrascos pincelando a carne com urna folha
se algum dia serei capaz de compreender as raparigas. de couve molhada em azeite e os filhos dos vizinhos
14 DULCE MARIA CARDOSO O Ri::TORNO 15

balouyavam-se nos pneus pendurados por cordas ve como urna mota me deixou esta canela. A cicatriz
as árvores a comer os baleizóes de gelo que tinham é feia de se ver, a pele toda arrepanhada em volea do
feito. Mas a máe regressou com a toalha das dálias e osso, mas náo me faz mudar de ideia, a primeira coi­
comeyou a chorar outra vez, nunca mais verei o meu sa que vou comprar quando ganhar dinheiro é urna
enxoval, nunca mais verei esta toalha. E a manhá mota. As raparigas da metrópole também devern gas­
voltou a ser a nossa última manhá aquí, os quintais tar mais de rapazes com mota, as raparigas sáo pare­
ficaram vazios, os fogareiros cheios de chuva antiga, cidas em todo o lado, pelo menos nestas coisas.
os pneus quietos nas árvores como se fossem olhos Vou dar o resto da carne a Pirata, diz a máe, como
parados no ar a fazerem-nos perguntas. A nossa últi­ se a Pirata náo comesse os nossos restos todos os días.
ma manhá. Tao silenciosa apesar dos tiros. Nem os A minha irmá tira o elástico que prende o cabelo num
tiros conseguem desfazer o silencio da nossa partida, rabo-de-cavalo e enfia-o no pulso, pelo menos a Pira­
amanhá já nao estamos aqui. A.inda que gastemos de ta náo se pode queixar de a carne estar insossa, diz a
nos enganar dizendo que voltamos em breve, sabe­ minha irmá a apanhar o cabelo, os gestos treinados,
mos que nunca mais estaremos aquí. Angola acabou. o elástico a sair do pulso para urna mao aberta no ar,
A nossa Angola acabou. duas voltas no cabelo, a minha irmá nunca consegue
A Pirata levanta a cabeya e torna a deitá-la sobre apanhar os caracóis mais pequeninos, a fiada de cara­
o meu pé. A mancha preta no olho direito é a úni­ cóis rente a pele morena do pescoyo, caracóis lauros,
ca mancha no pelo branca, curto e eriyado. A Pira­ até sao bonitos mas a minha irmá detesta-os, cabelo de
ta recebe-nos sempre aos pulos, como fazem todos preta, os miúdos do bairro diziam-lhe isso para a irrita­
os caes, e tem as orelhas <labradas, como se aJguém rem, as pretas náo tem o cabelo louro, as raparigas le­
as tivesse vincado com for�a. O pai pausa o isquei­ vam tudo a sério, até parece que gostam de se ofender.
ro sobre as dálias da toalha, é um Ronson Varaflame, Maria de Lurdes pede desculpa a tua máe, or­
comprámo-lo na ourivesaria do Sr. Maia para lho dar dena o pai. O motor da ventoinha prende-se numa
quando fez quarenta e nove anos. O Sr. Maia também chiadeira, o pai dá-lhe um abanáo e as pás verde­
<leve estar na metrópole. O pai sabe que fumo mas -esmeralda retomam o barulho habitual. Maria de
nunca fumei a frente dele, tem de se manter o res­ Lurdes pede desculpa a tua máe, quando o pai se
peito, quando fueres dezoito anos logo se ve. Nao zanga a minha irmá é Maria de Lurdes mas no resto
gosto assim tanto de fumar mas as raparigas gostam do tempo é Milucha. Pelo menos a miúda comeu um
mais dos rapazes que fumam. As raparigas ainda gos­ bocadinho, a máe defende-nos quase sempre. O pai
tarn mais de rapazes com mota mas o pai nunca me zanga-se, como é que posso educá-los se ficas sempre
dará urna mota, tenho que te pór juízo nessa cabeya, do lado deles, bate com o punho fechado na mesa,
16 DULCE: MARIA CARDOSO O RETORNO 17

os talheres tilintam nos pratos, tlim tlim, a máe pis­ brica de cerveja e recebia cinzeiros de brinde apesar
ca os olhos, podía ser um barulho alegre, como o de de nunca ter fumado um cigarro, a casa da D. Alzira já
um brinde, tlim tlim, as festas na metrópole devem tinha cinzeiros para as visitas em todas as divisóes, se
ter os mesmos barulhos, tlim tlim, as festas sao pa­ calhar a D. Alzira e o marido levaram urna mala cheia
recidas em qualquer lado, a máe levanta-se da mesa, de cinzeiros para a metrópole. Maria de Lurdes, repete
tlim tlim, tropec;a nos saltos altos, as pernas magras, o pai zangado, a minha irmá sabe que tem de pedir des­
os comprimidos tiram-Jhe o apetite, as vizinhas já culpa a máe, aposto que lhe passam planos vingativos
nao estáo cá para se rirem das roupas da máe, tlim pela cabec;a. As raparigas da metrópole também devem
tlim, as vizinhas dentro dos vestidos justos que a ser vingativas. Nem seriam raparigas se nao o fossem.
modista copiava das Burdas e que lhes deixavam a Gostava de ir para o Brasil ou para a África
mostra as coxas e os joelhos gordos, vamos comer o do Sul. Entáo se fóssemos para a América como o
arroz-doce, diz a máe pondo as tac;as a nossa frente, Sr. Luís é que era urna maravilha. Deve ser bom viver
tlim tlim, senta-se novamente, os lábios desapare­ na América. O aviáo para a América ainda demoraría
cidos no cor-de-rosa do batom, os olhos mais som­ mais horas, tenho medo de enjoar no aviáo como o
bríos debaixo do pó azul que póe nas pálpebras, as Gegé quando foi de férias a metrópole. Quando éra­
vizinhas comentavam, a maneira como a D. Glória mos pequenos, o pai levava-nos a ver os avióes, ficá­
se pinta, as vizinhas com as caras lavadas de tanta vamos na varanda do aeroporto a beber gasosas, foi
honradez e as mises de laca que faziam no sala.o da o mais perto que estivemos de ter andado de aviáo.
D. Mercedes e que lhes punham as testas táo altas Até do barulho dos avióes gostávamos. No carro,
que pareciam extraterrestres, as vizinhas com as lín­ a carninho de casa, a minha irmá pedía-me para fazer­
guas venenosas, a D. Glória já nao tem idade para mos de conta que íamos de aviáo, é só imaginar que
usar o cabelo comprido, ainda pensam mal de si, o carro vai pelo ar, nao há como as raparigas para se
decerto que a D. Glória nao quer ser falada por táo lembrarem de brincadeiras parvas. O Gegé vomitou
pouco, tlim tlim. A minha frente, a tac;a de arroz­ no aviáo, é táo normal que até há uns sacos próprios,
-doce com um R a canela mal desenhado, R de Rui, o Gegé é mentiroso mas acho que estava a dizer a ver­
L de Lurdes, M de l\1ário e G de Glória. Tlim tlim. dade, se enjoar nem quero olhar para o pai, seria urna
O pai acende. mais um cigarro mas esborracha-o vergonha, um homem só vomita quando fica bebedo
de segu ida no cinzeiro que tem o emblema da Cuca no ou se come alguma coisa estragada.
fundo, lamenca-se, já nem os cigarros sabem ao mesmo. O sol aparece entre os ramos mais baixos da man­
Foi a D. Alzira que ofereceu o cinzeiro, o marido da gueira e apaga as sombras que cobriam as espregu i­
D. Alzira era distribuidor há mais de vinte anos na fá- c;adeiras no pátio. Nunca mais vamos dormir a sesta
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nas espreguic;:adeiras, o pai nunca mais se vai sentar cer as raparigas da metrópole, raparigas lindas com
no banco de madeira para que o barbeiro lhe apare o brincos de cereja e sapatos de bailarina.
cabelo e lhe fac;:a a barba, um barbeiro branca, que só A máe náo come o arroz-doce, falta-lhe Ümáo,
um doido deixava que um preto lhe pusesse urna na­ d.iz, enquanto afaga as dálias bordadas da toalha, se
valha no pescoc;:o. A m.inha barba ainda náo justifica algum dia pensei náo ter a guem pedir um lirnáo nes­
um barbeiro, o pai na minha idade já tinh.a a barba que te bairro. Parece-me que o arroz-doce cozeu de mais
tem hoje, éramos homens mais cedo, dizia o barbeiro, mas náo digo nada e engulo como se fosse um remé­
até parece que os estudos os atrasam, havia um certo dio. Amáe comec;:a a fazer a conversa que tinha com
desdém na voz do barbeiro, os estudos sao a melhor as visitas, esta é urna das toalhas do meu enxoval. Tal­
enxada que lhes podemos dar, zangava-se o pai rema­ vez seja a conversa mais adequada já que parecemos
tando a conversa. O barbeiro já se foi embora, <leve visitas. Mas estamos sentados a mesa da cozinha e as
estar na metrópole a contar a anedota dos anóes, um visitas nunca entravam na cozinha. Quando vin1 ter
bebedo ve um grupo de anóes a sair de um bar, olhe, com o vosso pai trouxe a mala amarela cheia de en­
olhe que os matraquilhos estáo a ir-se embora, o pai xoval todo feito por m.im, a pressa que tinha em vir
ter-se-á rido da primeira vez que o barbeiro contou a para cá, trabalhava no campo durante o dia e bordava
anedota e o barbeiro contava-a cada vez que cá vinha, aos seróes, a pressa que tinha em vir para cá nem me
o barbeiro conseguía rir-se sempre da mesma anedo­ deixava ter sono, náo quería acreditar que ia ter urna
ta, veja lá se ainda lhe foge a máo e me corta as goelas, casa com torneiras, parecía irnpossível, por causa das
repreendia o pai. O barbeiro <leve estar na metrópole pressas tive de desfazer esta dália tres vezes, ainda se
a contar a anedota dos anóes matraquilhos, talvez o nota aqui o tecido maltratado, urna casa com tornei­
encontremos por lá, o pai diz que a metrópole náo é ras quería dizer que nunca mais teria de acartar água
grande, talvez seja fácil encontrarmo-nos todos, tal­ da fonte, a raiva que tinha aos jarros azuis, um a cabe­
vez encontre a Paula. Pensando bem, náo a quero en­ c;:a e um em cada máo, de casa para a fonte e da fonte
contrar, a Paula náo é assim táo bonita e nem sequer para casa, o cam.inho nunca mais acabava com tanto
é divertida, a única coisa que gesta de fazer na vida é peso, na aldeia nao havia urna casa que tivesse torne.i­
ver montras, as horas que passei com ela a frente da ras, urna casa com torneiras de onde saísse água sem­
montra da casa Sarita a ver vestidos, sáo lindos nao pre que se quería só era possível muito longe daguela
sáo, gostas mais do azul ou do verde. Náo sabia mas miséria, num sítio táo longe que nem o frío lá chega­
a Paula, diz lá, diz lá. O verde. E a Paula, mas o azul é va, náo acreditei que aquí náo houvesse frio, pus dois
muito mais bonito, os rapazes sáo todos a mesma coi­ cobertores de papa na mala do enxoval, nesta parte a
sa, náo tem gasto nenhum. O que tenho é de conhe- máe ria-se sempre mas hoje náo se ri. A mala de folha

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20 DULCE MAR LA CARDOSO O RETORNO 21

amarela com losangos pretos que trouxe o enxoval trarem as mamas, se náo estivessem náo usavam ca­
está ao lado da máquina de costura e vai ficar cá. Hoje misolas táo justas e náo se empinavam tanto. Tenho
a máe náo se consegue rir de ter trazido cobertores de saudades de dan<;ar o La décadanse com a Paula, de ir
papa para um calor <lestes. Do enxoval, a máe só vai de bicicleta com o Lee e o Gegé ver as raparigas dos
levar a toalha de linho. Náo é a que gosta mais mas é a outros bairros, de vermos os filmes do Miramar da
que melhor se vende em caso de precisáo. varanda do Ganas com os binóculos. O Gegé diz que
Também náo posso levar a cole<;áo das Grandes na metrópole náo há cinemas ao ar livre, náo consigo
Aventuras de Kit Carson nem do Capitáo América perceber como é que a metrópole tem tudo melhor
mas levo o poster da Brigitte Bardot e o da Riqui­ do que aqui e náo tem cinemas ao ar livre.
ta com o autógrafo. Enrolei-os com muito cuidado O pai pega na faca de cortar a carne e com a pon­
para chegarem lá direitinhos. Quando era candengue ta afiada come<;a a rasgar urna das dálias que a máe
<lava beijos no poster da Brigitte Bardot, procurava­ bordou. Devagarinho, como se houvesse urna manei­
-lhe a boca e fechava os olhos, beijos enormes, nunca ra certa de rasgar as dálias e o pai a tivesse aprendi­
contei isso a ninguém, há coisas que nem os amigos do táo bem como a máe aprendeu a bordá-las. A máe
podem saber. O Gegé disse que na metrópole todas ainda estica a máo para o impedir mas desiste. Náo
as raparigas usam cali; óes e botas até ao joelho como fica cá nada, diz o pai empurrando a ponta da faca
a Riquita, Riquita tu és bonita, Riquita já és rainha e em dire<;áo ao centro da dália que a máe bordou a
Angola te acredita. Pedi o autógrafo a Riquita depois castanho-escuro, nem o pó dos sapatos cá deixo, eles
do desfile da Marginal, foi diñcil, estava tanta gente náo merecem nada. Eles sáo os pretos. Todos. Os que
que quase náo conseguía chegar ao pé dela. A Riquita náo conhecemos e náo tem nome e os que conhece­
também já se foi embora de certeza. mos e tem nomes da metrópole que náo sabem pro­
Aminha irmá náo consegue decidir se leva as duas nunciar, Málátia, Ádárbeto, é preciso ser-se bem ma­
fotonovelas da edi<;áo de luxo, a Dama das Camélias tumbo para nem o próprio nome se saber dizer.
e o Romeu e Julieta, ou os discos do Percy Sledge e da O pai chamava-lhes matumbos por tudo e por nada
Sylvie Vartan. Eu devia levar o La décadanse, náo há mas era na brincadeira. O pai tem os bidóes de gasolina
melhor música para dan<;ar do que o La décadanse, no anexo e jurou que a última coisa que faz nesta terra
é como se fosse um feiti<;o, quando o La décadanse é queirnar tudo o que tem mas náo acredito que o fai;a.
toca podemos apertar as raparigas e mexer-lhes no Devíamos ir todos juntos para o aeroporto. Devíamos
fecho do sutiá. O Lee diz que as raparigas sáo fáceis ir já, sem esperar sequer pelo tio Zé. O pai náo pode fi­
de convencer desde que se ponha o disco certo e que car a queimar rudo, é muito perigoso, os bens dos colo­
estáo ainda mais mortinhas do que nós para nos mos- nos que partero pertencem automaticamente a futura
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22 OUT.CE i\lARIA CARDOSO l O RETORNO 23

na<;áo angolana, nenhum colono pode destruir os bens a ventoinha pare de chiar, a ventoinha também fica cá,
que a sua ganancia amealhou, se o pai for apanhado a náo precisamos da ventoinha na metrópole. Lá agora
deitar fogo a casa e aos camióes matam-no, matam­ é veráo mas a máe diz que o calor dura pouco e que o
-nos, esquartejam-nos a catanada e enfiam os bocados outono já é frío.
numa fossa, ou espetam-nos em pausa beira da estrada, A máe <leve saber. Era outono quando veio para
ainda a semana passada apareceu na estrada de Catete cá no Vera Cruz com lac;:os nas pontas das trarn;:as
a cabe<;a de um branca espetada num pau. Náo fica cá como no retrato que está pendurado na parede da
nada, diz o pai come<;ando a rasgar a dália seguinte. sala. A máe nunca mais poderá olhar para o retrato
A máe olha lá para fora, os olhos inquietos debai­ e contar como rudo foi, chovia no día em que saí da
xo do pó azul, náo se deve importar que o pai rasgue a minha terra, os meus país levaram-me até a estac;:áo
toalha, náo a vai levar de qualquer maneira, deve estar de comboio num carro de aluguer. Aquí náo se anda
preocupada coro o atraso do tio Zé, sempre foi difícil de comboio, quer dizer os pretos váo a boleia pen­
adivinhar o que vai na cabe<;a da máe. Desde que isto durados nas portas dos vagóes mas isso náo é andar
come<;ou também é difícil adivinhar o que vai na cabe­ de comboio. Vi os meus país pela última vez no dia
c;:a do pai, da núnha irmá, na minha, é como se todos 30 de novembro de 1958, o relógio da estac;:áo mar­
tivéssemos ficado parecidos com a máe. O pai rasga as cava sete e dez, os meus país despediram-se de mim,
dálias e a Pirata vira-se de barriga para cima, deve estar nem um abrac;:o, náo havia o hábito, deram-me um
a sonhar porque agita as patas muito depressa como saco com queijo terrincho, páo e castanhas piladas
se estivesse num mundo virado ao contrário e corresse para comer na viagem, que deus os tenha. Se o pai
atrás dos miúdos nos carros de rolamentos. Já náo há náo queimar tudo o que será do retrato sem a máe
miúdos para andarem nos carros de rolamentos. Con­ para contar as histórias do dia em que se veio embo­
tinuamos calados mas nao nos levantamos da mesa. ra da metrópole, dos nove días da viagem de barco,
A faca que é grande e afiada avanc;:a pequena e romba da chegada, estava tanto vento que o pó se levantava
na máo grande e enfurecida do pai. O pai mede quase como se o diabo o soprasse, pó encarnado, nunca ti­
dois metros e pesa mais de cem quilos, onde o pai está nha visto nada parecido.
tudo parece mais pequeno, a cadeira do pai tem o tam­ Devíamos ter ido de barco, o Sr. Manuel é que foi
po abalado, quem se irá sentar na cadeira do pai, quem esperto, se fóssemos de barco o enxoval da máe podía
tomará os nossos Jugares, quanto tempo demoraráo a voltar para a metrópole.Já náo há lugares nos barcos,
ocupar a casa, de que lado da rua viráo, entraráo pela já náo há nada. A.inda faltavam duas horas para o Vera
porta da frente ou pela da garagem, quanto tempo le­ Cruz atracar e já o pai estava no cais, a máe desembar­
varáo a descobrir o truque de dar um abanáo para que cou coro urna saia cinzenta e urna blusa branca a fazer

l.
24 DULCE MARfA CARDOSO O RETORNO 25'

as vezes do vestido de noiva. Havia outras duas noivas para cá, nunca pensei que escrevessc a pedir-me em
no paquete, noivas como deve ser, de véu na cabec;:a. casa.mento. A máe ele costas para o mar, sem reconhe­
Estava tanto vento que as noivas seguravam os véus cer o pai, sem conhecer a terra que tinha em frente,
com as máos, tal era o medo de que os véus ca.íssem a os guindastes pa.receram-me ma.is altos do que as nu­
água. Quando desceu do paquete a máe procurava no vens, o porto táo grande, cabiam ali cem cabec;:os de
ca.is o rapaz que tinha fugido muitos anos antes a misé­ macieiras. A máe teve medo dos pássaros que grita­
ria da aldeia, o rapaz do retrato que trazia ao peito no vam como os de Lisboa, o vosso pai disse-me que se
cordáo de ouro. Em vez dele, um homem acenava-lhe chamavam ga.ivocas. Dos pretos náo tive medo, náo
discreto do sítio mais escondido do ca.is. Os sapatos tinha.m nada de especial, eram só pretos. O porto ti­
novas aleijavam-me tanto os pés, a máe nunca se es­ nha um cheira ácido, como se o mar tivesse azedado'
quecia de contar as visitas a parce dos sapatos novas o porto em Lisboa náo cheirava mal.
e das feridas nos pés que a fizerarn descalc;:ar-se a.inda O pa.i levou a máe para a casa antiga na Dodge
antes de ter chegado ao pé do pa.i. Talvez a máe já fosse verde, a.inda aprendí a conduzir na Dodge antes de
como é, talvez náo tenha sido culpa desta terra, <leste o pa.i a ter dado ao Malaquias, estava a cair de podre,
calor, desta hurrúdade, a máe chegou ao pé do pa.i com o Malaquias nunca conseguiu arranjar a Dodge, mui­
os sapatos na máo e em vez de o cumprimentar disse­ to me admiro se tiver conserto, disse o pai quando o
-lhe, náo pareces tu. O pa.i a.inda deve ter ciúmes do Malaquias a levou, de qualquer ni.aneira o Malaquias
rapaz do retrato que a máe continua a trazer no cordáo estava contente, era dono de qualquer coisa, o pro­
ao peito. As noivas dos véus abrac;:ava.m os noivos com blema é que eles náo tem cabec;:a, eles sáo os pre­
tanta forc;:a que quase os asfixiavam, o pa.i também náo tos, os que conhecemos e os que náo conhecemos.
era como os outros noivos que se tinharn empoleirado Os pretos. A náo ser que se queira explicar o que sáo,
em caixotes no meio do ca.is para acenar as noivas e aí é o preto, o preto é preguic;:oso, gosta.m de estar
que traziam fatos escuras ele terilene e cabelo luzidio ao sol como os lagartos, o preto é arrogante, se ca­
pu.,xado para trás, o vosso pa.i tinha urna camisa bran­ minham de cabec;:a ba.ixa é só para náo olharcm para
ca acabada de estrea.r, o pó encarnado agarrava-se-lhe nós, o preto é burro, náo entendem o que se lhes diz,
como ao pelo de um cáo. o preto é abusador, se lhes damos a máo querem logo
Talvez o pai tenha ficado triste por a máe náo ter o brac;:o, o preto é ingrato, por muito que lhes fac;: a­
urna tiara com brilhantes falsos como as outras noi­ mos nunca estáo contentes, podia-se estar horas a fa­
vas, um raminho de flor de la.ranjeira, a máe cumpri­ lar do preto mas os brancas náo gostavam de perder
mentou o pa.i sem o abrac;:ar, nem da voz do vosso pai tempo com isso, bastava dizer, é preto e já se sabe do
me lembrava, era urna miúda quando o vosso pai veio que a casa gasta. Uns meses depois do golpe de estado
26 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 27

na metrópole os irmáos do Malaquias mandaram o


pai a rugí, os irmáos do Malaquias cambém trabalha­ 1 agora já náo, confia em nós, confia que náo deixa­
mos acontecer-lhe nada de mal. O pai já se fartou de
vam para o pai e naquele dia no armazém só por o pai rasgar dálias, por onde andará o teu irmáo, já devia
lhes ter <lito que náo podjam beber cerveja nas horas cá estar há horas, a mae levanta-se sem responder.
de trabalho, vai a tugi branca da tugi. O Malaquias O tío Zé está atrasado e os atrasos agora podem sig­
ceria pedido desculpa ao pai mas nunca mais veio tra­ nificar o nome completo na lista dos desaparecidos
balhar, os irmáos eram uns bandidos e náo o devem que passa na rádio antes e depois da Simplesmente
ter deixado. Vai a tugi branca de tugi, nem insultar

1
Maria . A minha irma gosta tanto da rádio-novela que
sabem, se vos torno a ver aquí levam coro um balázio há urnas noites sonhou que o Alberto da Simples­
que vos arrebento os cornos, escarumbas, cabróes de mente Maria a esperava na metrópole a saída do aviáo.
merda, o pai sabe como insultar.Vai a tugi branca da Náo sei como nao teve vergonha de nos vir contar
tugi, até dá vontade de rir. urna coisa tao infantil, a minha irma toda contente,
O pai deu a máo a máe eoquanto carninhavam sonhei que o Alberto da Simplesmente Maria escava
para a Dodge que estava estacionada a entrada do a minha espera no aeroporto. Eu nunca sonhei com
porto, o sol a encandeá-los, a máe ficou espantada as raparigas dos brincos de cereja. Guardo as fotogra­
por o pai ser dono de um carniáo, tudo me espanta­ fias entre o colcháo e o estrado mas nunca ninguém
va, as gaivotas, o camiao, as palmeiras, nunca tinha descobriu, nem mesmo a mac que todas as semanas
visto árvores assim, os montes encarnados, aqui sao arrecia as camas para pór o pó das baratas.
morros, corrigiu o pai, os morros náo sáo os montes O pai sabe, quer dizer, náo sabe que guardo as
da metrópole, nao se diz um morro de feno, nem um fotografias das raparigas da metrópole mas sabe que
morro de roupa para passar a ferro, sao coisas dife­ fai;o aquilo. Nunca me falou disso mas sei que sabe
rentes. O calor inchou mais os pés descal<_;: os da máe, porque aos domingos a tarde, se a máe refilava por
as vizinhas ainda náo conheciam a máe senáo tinham eu ficar no quarto depois da sesta atrasando-os para
dito, só a D. Glória para ser urna noiva descal<_;: a, as o passeio a ponta da Ilha, o pai piscava-me o olho e
vizinhas da casa antiga lembravam-se de o pai ter defendía-me, o rapaz precisa de descansar o cérebro
chegado com a máe e de a ter levado ao colo pela rua, dos escudos. Eu e o pai pertencemos ao mesmo clube,
lembravam-se da mae com os sapatos na máo, a rua se me demorava no banho e a mae queria usar a casa
�áo era asfaltada, era um carreiro de cerra encarnado, de banho para ri<_;:ar o cabelo e pintar os olhos com
como se tivesse calhado ser ali o chao do inferno. o pó azul, o pai dizia, a lavagem demora o seu tem­
A Pirata vai deitar-se junto a parede da sala. po, ou se a meio da noite esvaziava a gcleira por cau­
No início, cinha medo do barulho dos tiros mas sa da fome que fazer aquilo dá o pai desculpava-me
28 n u LC E M A R I A e A R Dos o O RETORNO 29

na manhá seguinte, o corpo cresce roais c.leitado e um diga disparates, hornero, isto vai ficar melhor, vamos
corpo a crescer precisa de alimento . Devia ficar coro dcixar de ser portugueses de segunda, os vízinhos sor­
o paí e ajudá-lo a deitar fogo a tudo mas a máe e a riam com o pai mas mantinham os brac;os cruzados
minha irmá nao podem ficar sozinhas com o tío Zé, de quem tinha problemas sérios, as tescas enrugadas,
o tio Zé náo é como nós, náo pertence ao clube a que beba urna cerveja, hornero, que ve as coisas de outra
eu e o pai pertenceroos, deve haver um clube para os maneira, o Sr. !v1anuel ·recusava, voce ri-se mas os co­
que sáo como o tío Zé. munistas da metrópole querem-nos fara daqui e váo
Mas na metrópole há raparigas lindas. Rapari­ conseguir, já desarmaram os nossos soldados, uro bran­
gas com brincos de cerejas, lac;os de cetím no cabelo ca náo pode ter arma e um preto tem direíto a duas,
e saias rodadas pelo joelho como nas fotografias das corja de tr aidores e vendidos, e náo sáo só os comunis­
revistas que comprava na tabacaria do Sr. Manuel. tas, sao todos, nem queiram saber o que dizem de nós
O Sr. Manuel foi o mais esperto, embarcou coro a fa­ na metrópole, o que nos chaman1, lembrem-se do que
mília no Príncipe Perfeito no día 31 de dezembro do hoje vos digo, vai haver aquí um mar de sangue, 6r náo
ano passado, ainda quase náo se ouviam tiros nem o foí nada comparado com o que aquí se vai dar, vai ser
marcelar dos contentares, nao vos dou um ano para um salve-se quem puder, queira deus queira que quan­
estarem todos a fazer o mesmo, queira deus queira do me derem razáo náo seja já tarde demais.
que nessa alru ra ainda haja navíos e madeíra bastante Foi.
para encaixotarem o que tem, queira deus queira. Na mesma noite em que o Sr. Manuel partiu
Agora já sabemos que deus náo quis. Ñlas no fi.m com a farru1ia no Príncipe Perfeito, fomos a farra da
de tarde em que estivemos sentados no muro da taba­ passagem de ano, a minha irmá vestiu urna maxi-saia
caria deus ainda ía a tempo de mudar de ideias, o pai e pintou-se a sério pela primeira vez, estava bonita
ría-se do Sr. lVIanuel, nós é que náo )he damos um como nunca a tinha visto, o pai olhava para a multi­
ano para estar de volta, menos de uro ano e carrega as dáo que danc;ava na festa, o copo cheio de Ye Monks,
bícuatas para cá outra vez, o Sr. Manuel insistía, olbe o pai perguntava, como é que esta gente toda pode
que os revolucionários ven<leram-nos a esta pretalha­ lá ir embora, a máe bebía gasosa por um copo de pé
da, o Sr.1V1anuel dizia sempre pretalhada e mulatagem, alto, parecía urna acríz de cinema só que menos bo­
olhe que esta pretalhada nao descansa enquanto náo nita. Aquela gente nao póde ter ido toda embora.
nos limpar o sebo, o Sr. Manuel odiava a revoluc;áo e O conjunto desafinava mas ninguém deixava de dan­
os revolucionários, quería clizer mal da revoluc;áo tao c;:ar por causa disso, estava d toa na vida, o meu amor
alto e táo depressa que se engasgava, a cabec;a em pera me chamou, pra ver a banda passar cantando coisas de
do Sr. Manuel roxa de tanto tossir, o pai sorria, náo amor, a minhagente os frida, despedía-se dador, pra ver a
JO DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 31

banda passar cantando coisas de amor, as pessoas atreladas junto, mas para meu desencanto, o que era doce acabou, tudo
urnas nas outras, as filas cada vez maiores e as voltas tomou o seu lugar; depois que a banda passou, e cada qua/ no
na sala do clube cada vez mais pequenas, nada tinha seu canto, em cada canto uma dor, depois de a banda passar;
mudado, a banda passava cantando coisas de amor e a cantando coisa de amor, é danc;ar minha gente como se
gente sofrida despedia-se da dor, o pai comec;ou a be­ nao houvesse amanl1á, as serpentinas agarravam-se
ber Ye Monks da garrafa, a máe nunca bebe por causa as costas nuas das raparigas suadas, os confeitos náo
dos comprimidos mas naquela noite bebeu e danc;ou paravam de cair em todo o lado, as lentes dos óculos
para o pai, estava tanta gente a roda a bater palmas en­ da D. Magui cheias de confeitos colados, náo aprovei­
quanto a máe danc;ava para o pai, náo se podem ter ido tes para olhar para as brasas de minissaia, o marido da
codos embora, ainda náo tinham dado as badaladas da D. Magui riu-se mostrando o canino de ouro e fez a
meia-noite e as rabanadas já tinham azedado em cima D. Magui rodopiar-lhe nos brac;os como se fossem um
das mesas, as broas secas como palha, toda a gente se casal novo, o que é boro é para se ver, dizia enquanto a
queixava do maldito calor que dá cabo de tudo. Quan­ D. Magui entontecía com os confeitos nas lentes dos
do comepram os slows convidei a Paula para danc;ar, óculos, naquela noite iam todos ficar aqui. A banda
as minhas máos no pescoc;o da Paula, a pele da Paula nunca ia deixar de passar cantando coisas de amor,
tao macia, 1975 ia ser um ano bom, se calhar o melhor o futuro ia acontecer sem grandes sobressaltos como
ano das nossas vidas, íamos deixar de ser portugueses os futuros devem acontecer, a Paula ia aceitar o meu
de segunda, o futuro era aquí, o pai estava certo apesar pedido de namoro e ia deixar-me desapertar-lhe o su­
dos chaimites nas mas e dos tiros que tinham come­ tiá, eu ia tirar a carta de conduc;áo e levá-la ao cinema
c;ado, apesar dos pretos que náo paravam de chegar a Miramar, o pai ia tirar letras no banco para comprar
Luanda vindos de todo o lado, há muitos pretos numa a Scania que estava em exposic;ao no stand da Baixa,
terra catorze vezes e meia maior do que a metrópole, a cabec;a da máe ia melhorar e a mác nunca mais teria
até parece que nascem debaixo das pedras, sao piares crises, a minha irmá ia terminar o sétimo ano e arran­
do que uma praga, do que capim, quando estava mais jar um namorado melhor que o Roberto que estava
bebido o pai as vezes dizia estas coisas, mas também apaixonado pela Lena indiana que gostava do Carlos,
dizia que nao havia mais nada na metrópole do que a Pirata ia morrer de velha como o Bardino morreu e
fome e piolhos, ou que as vizinhas eram todas mal ca­ anos antes do Bardino a Jane, as vizinhas iarn conti­
sadas, náo é que o pai pensasse assim, a culpa era do nuar a levar a mal a máe o que náo podiam mesmo dei­
Ye .Monks, a cidade estava em festa, podia ser a última xar de levar a mal, só ia mudar o que fosse necessário
vez que a cidade estava em festa mas nao interessava, para a nossa vida ficar ainda mais igual a vida que o pai
a máe cantava acompanl1ando a desafinac;ao do con- tinha pensado quando embarcou no Pátria.
32 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 33

Durante as primeiras horas de 1975 todos tinham mas construir a nai;:ao mais rica do mW1do, melhor até
de concordar que o Sr. Manuel tinha sido um profeta do que a América, isto é uma terra abeni;:oada onde
agoirento, nao ia haver um mar de sangu e, 6r estava tudo o que se semeia nasce, nao há no mundo outra
enterrado como os martas que tinha feíto. A minha terra assim . O pai nao conhece nada do mundo e nao
irma fugiu para dar urna volta de mota com o Roberto, pode saber se há ou nao outra terra como esta, como
o pai nao deu conta, já tinha bebido muito Ye .Monks também nao podia saber o que se ia passar. Durante
e a máe dan<;:ava descal<;:a sem parar. Levei a Paula para algum tempo garantiu a quem o quisesse ouvir que ia
trás das folhas de palmeira que enfeitavam os muros, correr tuda bem, aposcava tudo o que tinha. Nfas os
demos cinco beijos de l.íngu a dos grandes, dar¡ueles em tiros e os moneiros nao pararam, os pretos continua­
que se fi.ca sem ar e com dores no queixo, tinha jurado ram a vir de todo o lado e os brancas a irem-se embo­
que nunca mais lhe pedia namoro mas os beijos fazem­ ra, os tropas portugu eses já nem da bandeira queriam
-me sempre esquecer a jura, a Paula disse oucra vez que saber e os comunistas da metrópole vieram para cá.
nao, fiquci-lhe com tanta raiva mas beijei-a outra vez, Por muito que quisesse dizer que ia correr rudo bem o
a boca da Paula sabia a .Mission de ma<;:a e a fruta rosa. pai teve de se calar, teve de deixar de fazer apostas, até
Nos intervalos dos beijos a Paula falou-me do Nan­ porque já nem havia com qucm apostar. O pai calou-se
do, o aotigo namorado que estudava na Rodésia, um sobre o futuro e podía ver-se na cara dele a vergonha
choninhas que tinha a manía dos barcos e dos avióes e que sentía por se ter enganado tanto e a preocupa�áo
isso ainda me fez detcstá-la mais, nao sei por que nao por ser tarde demais para remediar o mal. Os pretos
conseguía parar de beijá-la. Quando voltámos para ao náo comei;:aram lago logo a matar brancos a eito mas
pé dos outros a festa estava a acabar. Famas para casa quando lhe tomaram o gasto nao quiseran1 outra coi­
e o pai abriu mais urna garrafa de Ye Monks, quis que sa e os brancas ainda foram embora mais depressa.
brindássemos outra vez a 1975, a minha irmá brindou A cidade foi ficando mais vazia de día para dia, se o
com água, a máe afüta a dizer que <lava azar, crendices, pai pudesse amarrar os brancas para nao se irem em­
deixa-te de crendices, mulher, brindámos a 1975 que ia bora tinha-o feíto, as vezes o pai exaltava-se, nao se
ser o melhor ano das nossas vidas. podem ir embora assim, ao menos deem luta, mas os
Só que a banda nw1ca mais passou. Foi cudo to­ brancas só queriam correr para o aeroporto e ir pa.ra
mando o seu lugar, cada um de nós no seu canto e a metrópole, tao cobardes, o pai nao sabia quem des­
em cada canto uma dor. Durante algum tempo o pai prezar mais, se os pretos, uns assassinos ingratos, se os
continuou a acreditar que 1975 ia ser o melhor ano das brancas, uns cobardes traidores.
nossas vidas, vai correr tudo bem, vamos construir As palavras do Sr. Manuel nunca mais foram repe­
urna na<;:ao, preros, mulatos, brancas, codos juntos va- tidas, nao valia a pena, 1961 tinha sido uma brincadeira
34 J)ULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 35

de criarn;as, o pai calado sem vontade sequer de acusar da metrópole em papel muito fino preenchido com
o Sr. Manuel pelo que se veio a saber que ele tinha feí­ letras mal desenhadas que comiam linhas a mais,
ta, despachou para a metrópole um Audi rooS Cou­ demos urna candeia de azeite ao Santo Esteváo para
pé novinho em folha de que só ti.nha pago a primeira trocar o sono do Manelinho, a prima Zulmira ficou
prestac;áo, o cio Zé passou a referir-se ao Sr. Manuel noiva do Aruoal dos Goivos, os recos apanharam a
como o ladráo imperialista. Mais tarde soube-se que maleita dos ciganos, o Zé Mateus vai ser crismado
o ladráo imperialista tinha sido ainda mais esperto, ti­ pelas festas da senhora da Grac;a, o tio Zeferino mor­
nha roubado diamantes que a mulher levou cosidos na reu do caroc;o que tinha na cabec;a, a geada deu-nos
bainha da sa:ia. O desprezo pelo Sr. Manuel devia ser cabo do trigo, cartas com muitos erras que levavam a
a única coisa que o pai e o tío Zé tinham em comum, pensar que na metrópole náo havia a régua nem o ca­
ainda que o tio Zé tivesse mais razóes para odiar o nic;o da professora Maria José, as primeiras linh.as das
Sr. Manuel, náo dou confianc;a a um desses, cüzia o canas eram sempre igu ais e quase sem erras, espero
Sr. Manuel sentado no muro da tabacaria, era o que que esta vos vá encontrar bem de saúde que nós por
me faltava dar confianc;a a um desses. O tio Zé era um aquí bem, grac;as a deus.
desses para toda a gente mas ao princípio era só o ir­ Os familiares da metrópole eram-nos ensinados
máozinho da máe que apareceu aquí em casa vestido pela máe como urna matéria da escala ou da cateque­
j de tropa, com urna tatuagemAngola r97r e tudo. se, o lado materno, o lado paterno, os tios e primos em
A máe náo conseguía acreditar que o irmáozi.nho primeiro grau e os de segundo grau, os de sangue e os
estava a sua frente vestido de tropa, a máe táo feliz de a.finidade, os mortos e os vivos. De vez em quan­
que náo dei.xava o tio Zé passar do portáo, deixei-te do as carcas traziam retratos, bebés vestidos com lá
um bebé e apareces-me aquí um soldado, entra, en­ grossa, sentados numa mesa redonda coberta por urna
tra, e mais um abrac;o que o tio Zé aceitava sem pau­ toalha de croché, noivos surpreendidos pelo flash ao
sar a encomenda que tinha trazido da metrópole, eu lado da mesma mesa e na mesa a mesma toalha, rapa­
e a minha irmá espreitávamos do cirno das escadas rigas na comunháo solene com o terc;o e o catecismo
indecisos se havíamos de descer, nunca tínhamos em poses de santas, a mesma mesa e a mesma toalha,
imaginado que um dos familiares da mecrópole nos náo havia outra mesa nem outra toalha na metrópole.
pudesse aparecer a porta. Os familiares da metrópo­ A fotografia que mais fez chorar a máe foi a dos avós,
le eram as cartas que vinham e iam com nomes mais dais velhos vestidos de preto, a avó com barba e bigo­
esquisitos do que os dos pretos, Ezequiel, Deolinda, de, o que eu e a minha irmá nos ríamos da barba e do
Apolinário, só que na metrópole sabem pronunciar bigode da avó, o avó alto e direito como um príncipe,
os nornes, náo sáo macumbos, as cartas dos familiares sem o polegar na máo que segurava a bengala, perdeu o
36 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 37

dedo a rachar lenha, a lenha entra muitas vezes nas re­ nunca deí,,xava morrer as rosas, se os dias vinham mais
corda<;óes da máe, eu e a minha irmá inventámos que quentes as rosas das vizinhas ficavam ráo rnurchas que
o avó tinha sido ferido na guerra e a máe nunca nos aré davam pena, nunca as da máe, de nada a máe se or­
desmentía a frente dos outros miúdos, o nosso avó ti­ gulha tanta como do jardim. O tio Zé estendcu-nos a
nha sido ferido na segunda guerra mundial e por causa máo, o brai;o muito esticado como se nos quisesse a
disso era mais importante do que qualquer outro avó. distancia, cheirava a suor, cheirava pior do que a ca­
A máe comprou uma moldma para a fotografia dos tinga da pretalhada que tanto enojava o Sr. Manuel,
avós e pó-la no cima da cristaleira, a primeira e última as nossas máos estendidas e a máe, deem um abra<;o
fotografia que [ive dos meus pais, deus os tenha. A máe ao vosso tío, que engonhas me saírarn, abra<;ámo-lo,
náo consegue deixar cá a fotografia dos avós mas cem o cheira a suor da farda ficou colado a nós. O tio Zé
de deixar o álbum onde guardou os bebés batizados, disse que a sala era grande e bonita, atirou-se para o
os noivos casados, as comungantes santas. Se o pai náo maple de napa verde das visitas, as visitas náo se sen­
deitar fago a tudo os familiares da metrópole váo pa­ tavam assim, tinham cuidado para náo derrubar os
rar as máos dos preros, o álbum das chinesinhas com cinzeiros que a máe punha nos brai;os do maple por
sombrinhas na capa em relevo e urna corda nas costas cima de um naperon, as mullieres sencavam-se de lado
para tocar música, o ma<;o de cartas que está no fundo como nas revistas e os maridos ficavam muito direitos
da gaveta do guarda-fatos atado com a fita de cetim mesmo se tra<;avam a perna e aceitavam um copo de
que a máe comprou na retrosaria da D. Guilhermina, Ye Monks coro gelo que a máe trazia no balde de plás­
urna mulher com as mamas táo grandes, táo grandes tico cor de vinho, as máos da máe sem conseguirem
que devem ser as mamas maiores do mundo, é impos­ agarrar o gclo com as pini;as, os comprimidos atrapa­
sível que haja mamas maiores do que aquelas, mesmo lhavarn sempre o que a máe fazia.
na América onde há tudo mais e melhor náo deve ha­ Ter visitas era um trabalháo mas ser visita ainda era
ver uma muJher coro as mamas maiores do que as da pior, senrávamo-nos com cuidado e ficáva.mos pareci­
D. Guilhermina. dos com os manequins das montras, comíamos com
O tio Zé conseguiu finalmente passar o porcáo gestos demorados, náo fossem pensar que estávamos
com a encomenda da metrópole na máo, ainda a máe com fome, nwKa repetíamos a sobremesa, náo fosse
apontava para as rosas do jardim e já o cio Zé subia a parecer que era a primeira vez que comíamos urna gu­
escada, a mác a gritar-lhe do jardim, cuidado, cuidado loseima. Apesar do nosso esfor<;o éramos más visitas,
com os vasos, as escadas sempre cheias de vasos que o o pai deixava cair a cinza em todo o lado e queixava-se
pai derrubava amiúdc, que má ideia a de encher os de­ se o whisky nao era Ye .Monks, a máe fazia perguntas
graus com vasos, quem vai regar as rosas da máe, a máe que nao devia fazer e interrompia as conversas quando
38 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 39

lhe apetecia como uma criarn;:a impaciente, isto para da humidade que lhe pesava os pulmóes e lhe apodre­
nao falar das gargalhadas, a mae acha gra�a a coisas que cia a pele, do calor que náo lhe deixava ter certeza no
ningu ém acha, as vizinhas tinham razáo, havia tantas olhar, os outros tropas nao falavam assim, para mais o
coisas para levar a mal amae. A minha irma náo abria a tia Zé tinha os lábios em forma de cora�áo como os
boca a náo ser que lhe perguntassem alguma coisa, e a di máe, que belo homem te tornaste, dizia-lhe a máe,
escola Milucha, a minha irmá náo gosta de estudar, eu o pai nunca deixa que á máe diga que sou bonito, os
também náo gasto, o pai diz que somos mangonheiros homens nao se querem bonitos mas o tio Zé sarria
como os pretos e já jurou urnas quantas vezes que nos agradecido e até corava como as raparigas, os homens
arranca a mangonha do carpo nem que seja acinturada náo devem corar.
porque os estudos sao a melhor enxada para lavrar a Quando abriram a encomenda da metrópole a
vida. As vezes o pai zangava-se, ai de voces se nao trou­ minha irmá e eu vimos cerejas pela prim�ira vez, ti­
xerem boas notas, nunca trouxemos, estudávamos o nham chegado velhas e mirradas dentro de urna caixa
suficiente para passar e era tuda, nunca estivemos no com fundo de palhinha.A máe comeu as cerejas com
quadro de honra nem nunca recebemos um prérnio. tanto prazer que a minha irma e eu :ficámos conven­
A Editinha estava sempre no quadro de honra e a Milu cidos que as cerejas eram a fruta mais deliciosa do
recebeu tres prémios. Mas a Editinha era feia como mundo, nao há nada táo bom como as cerejas, repetia
tudo e tinha urnas pernas que pareciam uns canivetes. a máe, mas nao tinha razáo, náo ·deve haver nada táo
A Milu náo, a Milu era um borracho e o Gcgé andava deliciosamente mal saboroso como cerejas. As botas
sempre atrás dela. de tropa do tio Zé faziam riscos na napa do maple
O tia Zé, sentado no maple com o mesmo a von­ que no día segtúnte a máe tirou com parafina líquida.
tade com que nos sentamos nas espregui�adeiras, urna Quando o pai chegou do trabalho fornas ao Baleizáo
visita que náo se porta va como as visitas. As navidades comemorar a vinda do tio Zé, o pai ligou o rádio do
da metrópole ainda eram mais estranhas na maneira carro, as janelas abertas, que os pretos ainda nao se
de falar do tia Zé, um silvar mais forte do que o do pai atreviam a chegar-se aos carros para nos roubar, o céu
e da máe.As botas de tropa do tío Zé batiam na mesi­ escava táo laranja que o tio Zé disse nunca ter visto
nha envernizada e abanavam a ta�a de águ a onde um braseiro tao grande, Oh-la-di, oh-la-da, a máe com urn
pau da felicidade crescia vi�oso, a máe tornava a ra­ turbante branca na cabe�a e o tío Zé a dizer-lhe que
lhar ao tio Zé, se tivesses avisado tínhamos ido buscar­ ela estava fina como as mullieres de Lisboa, Oh-la-di,
-te ao navío. Podíamos ter percebido lago que o tío oh-la-da, só podía ser mentira, como é que a máe po­
Zé náo era como os outros tropas, fechava os olhos día parecer uma mulher de Lisboa se até as vizinhas
ao beber gasosa, punha-se a pestanejar, queixava-se gozavam com a maneira como a máe se arranjava.

1,
' r:I'
40 DULCE MARIA CARDOSO O RRTORNO 4\

Quando anoiteceu o tio Zé disse que a noice que apregoavam a fruta mais alto, qualquer coisa ser­
aquí chegava táo de repente que parecía que alguém via para fazer as tardes das vizinhas passar mais de­
apagava a luz no céu. Ficámos sentados numa mesa a pressa mas nada se comparava a ouvirem as aventuras
conversar, o tio Zé pedía cervejas, como é que se aca­ do Tarzan do Quitexe, desde que nao metessem tur­
ba com este calor, náo tocou no páo queme com pre­ ras nem brancos retalhados.
sunto nem nas cassatas que o pai mandou vir para to­ Até que um dia chegou urna carta e a máe dei cou­
dos. Fez-se tarde, os miúdos amanhá tem escola, o tío -sc na cama, sem sequer ter dobrado a colcha bran­
Zé recusou a boleia que o pai lhe ofereceu, fez aleo ca de renda, e pós-se a chorar, com a ventoinha de
a urn táxi, tinha sido um dia bom apesar do cheiro teto ligada no máximo. Depois desse dia nunca mais
da farda do tío Zé e da maneira esquisita dele. O tia houve aventuras do Tarzan <lo Quitexe. De qualquer
Zé já escava a entrar no tá.xi quando voltou atrás e se maneira, por essa altura, o Tarzan já tinha passado de
abrac;:ou novameme a máe, saudades, muítos anos, moda' mesmo no cinema. A min11a irmá estava apai-
era compreensível. Só que o tia Zé comec;:ou a chorar, xonada pelo Trinitá e as outras raparigas também.
um homem nao chora, ainda por cima um tropa, ain­ Eu e os mcus amigos queríamos todos ser como o Tri­
da por cima aos solU<;:os como se fosse urna crianc;:a, nitá mas era difícil imitar o estilo de um cowboy em
o pai centava separá-los mas o tio Zé nao se deixava Luanda. Foi o tempo cm que mais gostei de ter olhos
apartar, chorava com a cara enfiada no ombro da mae azuis. Náo que fossem parecidos com os do Trinitá
e a tatuagem Angola 197 r virada para nós até que o mas eram pelo menos da mesma cor. Até as mullie­
taxista, farto de esperar, carregou no cláxon. res casadas suspiravam quando falavam nos olhos do
Comec;:aram entáo as carras do Quitexe. As car­ Trin.itá que eram mais azuis do que a lagoa de S. Joáo
tas chegavam e a máe contava-as as vizinhas enguan­ do Sul de que a máe tinha urna fotografia com nenú­
to faziarn jogos de naperons e entremeios de lern;:óis. fares e flarningos.
Náo tardou que as aventuras do mato do tío Zé o tor­ Depois da tarde em que a mae se fechou no quarto
nassem numa espécie de Tarzan do Quítexe. As tar­ a chorar náo havia carta que chegasse do Quitexe que
des do bairro eram mais monótonas do que as tardes náo a .fizesse volcar ao mesmo, a máe deitada sobre a
noutro sítio qualquer, mesmo contando com as dos cama com a ventoinha do teto ligada a secar-lhe as lá­
hospitais, as das prisóes e até as dos mortos nos ce­ grimas. Urna vez o pai foi buscar-me ao liceu e parou
mitérios. As vízinhas tínham os olhos minguados de o carro debaixo da mulcmbeira antes de chegarmos
quem tcm um bairro por horizonte e procuravam a casa' deu-me uma carta do tio Zé, nem urna palavra
distrac;:6es em tudo, nos conducores aselhas que nao sobre isto a rua irmá, que as raparigas compreendem
conseguiam estacionar a primcira, nas quitandeiras as coisas de maneira diferente. Estava a anoicecer e
42 DULCE MARIA CAIUJOSO O RETORNO 43

havia muitos mosquitos, já <leves ter percebido o que tantas pretas o teu tia ainda podía ter alguma serven­
se passa, náo há farda que encubra aquilo que o des­ tia, sim, porque náo há homem que náo tenha as suas
grac;:ado do teu tío é. A carta escava cheia de meias pa­ necessidades.
lavras mas <lava para perceber que o tío Zé era como Náo sáo conversas que eu saiba ter com o pai e
os rapazes que eram aparihados a fazer parearías uns envergonho-me sempre que o pai fala nesses assun­
com os outros na casa de bariho do liceu. Só que o tío tos. Com o Gegé e com o Lee é diferente, passávamos
Zé já náo era um rapaz e era o irmáozinho soldado da horas a falar de como seria fazer ginga ginga com ra­
máe. Os mosquitos picavam-me e eu queria que o pai parigas brancas, sabíamos que náo era a mesma coisa
parasse de falar para irmos para casa mas o pai esta­ do que fazer com as pretas que nem cuecas usam e
va nervoso e quería dizer muitas coisas, quera que me fazem aquilo com qualquer um e se quisermos até fa­
avises se o teu tío se puser com conversas esquisitas zem com dais ou tres de seguida, a Fortunata urna vez
ou se se chegar muito a ti. O sol deve ter enrijado tan­ fez com sete, uns a seguir aos outros, até fizemos fila
to a pele do pai que os mosquitos já náo conseguem como na cantina do liceu. O Gegé é o único que já
morde-lo, o pai acendeu mais um cigarro, tinha tanta fez ginga ginga com urna branca, aAnita. Náo é urna
vontade de coc;:ar-me mas coc;ar é coisa de raparigas, branca como as outras porque gasta de se mostrar nua
os homens tem de estar preparados para tudo e náo é e tem tanta vontade de fazer aquilo como nós. Acho
um mosquito que vai fazer um homem portar-se como que a máe da Anita, a D. Natália que trabalhava no
urna menina e por isso aguentei-me sem me mexer. talho do Sr. Cristóváo, náo sabia o que aAnita andava
O pai olhava para as folhas da mulembeira como a fazer. O Lee diz que sabia mas que náo se importava
se procurasse nelas urna maneira de corrigir o que o porque a D. Natália era a única separada que havia
tío Zé era, se eu fosse o teu avó tinha endireitado o no bairro e as vizinhas diziam que a D. Natália e o
teu tío nem que tivesse tido de lhe dar porrada todos Sr. Cristóváo eram amantes. Talvez fossem. AD. Na­
os días, náo há barro que náo se consiga moldar quan­ tália desmanchava urna pec;:a de carne mais depressa
do está fresco, o miserável náo para de fazer queixi­ do que o Sr. Cristóváo e as vizinhas admiravam-se,
nhas a rua máe, abusa da bondade dela, traz a coitada como é que urna mulher táo pequenina tem tanta for­
num choro, logo a tua máe que, o pai calou-se, nun­ c;:a para desmanchar um parco, a náo ser que quando
ca houve palavras para a doenc;:a da máe, o miserável tero o cucelo na máo pense que está a cortar o marido
queixa-se que os outros soldados lhe arrearam, claro as postas. O marido tinha-a trocado por outra e nun­
que tiveram de lhe arrear, o pai atirou o cigarro para ca mais tinha sido visto no bairro, o Lee dizia que a
o outro lado da estrada e a fúria do pai notou-se na D. Natália o tinha matado com o cutelo e enterrado
rapidez com que a beata voou, se aqui náo houvesse no quintal.
44 DULCE MARTA CARDOSO O RETORNO 45

Por causa daAnita, o Gegé podía comparar bran­ vez vimos. Da varanda do Ganas, cada um com os
cas e pretas e garantía que eram diferentes lá em bai­ seus binóculos, víamos o filme quase táo bem corno
xo, até fez um desenho para nos explicar mas o Gegé se estivéssemos no cinema e quando as atrizes esta­
nunca foi bom a desenho. O Gegé já deve ter chega­ vam nuas podíamos escolher as partes que devíamos
do a África do Sul, saiu com a familia numa coluna há ampliar para perceber as diferenc;:as entre as brancas
mais de um mes. Nunca recebi carta dele mas tenho e as pretas de que o Gegé falava.
a certeza que o Gegé me escreveu, a carta perdeu-se Nesse último dia estávamos táo tristes que de­
porque os carteiros brancos já se foram quase todos pois de o filme acabar nem falámos da diferenc;:a de
embora e os pretos nem sequer sabem ler as mora­ fazer ginga ginga com brancas e com pretas. Também
das, é preciso ser-se matumbo para nem urna mora­ náo nos pusemos a discutir se as raparigas que conhe­
da saber lcr. Também nunca recebi carta do Lee do cíamos andavaro a fazer aquilo umas com as outras
Brasil, perdemo-nos uns dos oucros e se calhar só nos como no filme. Mas mesmo assim o Gegé e o Lee ain­
voltarnos a encontrar na Sears Tower. Foi o Lee que da discutiram porque o Lee dissc que nem que fosse
sugeriu a Sears Tower, o Lee sabia sempre os recordes só para ver a Emmanuelle nua já tinha valido a pena
codos, o prédio mais alto do mundo, o carro mais ve­ o golpe de estado. O pai do Lee era um apoiante da
loz, o Lee levou o poster do Concorde que tinha na revoluc;:áo e ensinava o Lee a ver beneficios da revo­
cabeceira da cama, parece que foi há tanto tempo que luc;:áo em tudo, para o pai do Lee os trabalhadores
fornas ver o Concorde e só passaram dois anos, o Lee iam ser finalmente livres e caminhar em direc;:áo ao
quis ser piloto do Concorde durante uns meses mas socialismo como os cowboys carninham em direc;:áo
depois mudou de ideia, era melhor ser comandante ao pór-do-sol no fim dos filmes. O pai do Lee tinha
de um navio para descobrir o mistério do triangulo urna bandeira na va.randa, uma bandeira do Galo Ne­
das Bermudas, o Gegé queria ser espiáo, um espiáo gro, Savimbi sempre, Angola sempre, kwacha Ango­
podia descobrir quem matou o presidente Kennedy e la, kwacha UNITA. O pai do Gegé garantía que se ia
a fórmula da Coca-Cola, eu nunca sabia o que quería amargar e bem a revo!U(;áo, confundiram liberdade
ser, ainda náo sei, acho que náo quero ser nada apesar com libercinagem, o pai do Gegé náo sabia explicar
de a máe dizer que tenho de ser engenheiro das bar­ os perigos da perigosa confusáo entre urna coisa e
ragens e de o pai dizer que cenho de ser médico ou outra mas mesmo assirn o Gegé tinha dificuldade em
advogado. Tenho saudades do Lee e do Gegé. A últi­ aceitar um ún.ico benefício do golpe de estado da me­
ma vez que estivemos os tres juntos foi na casa do Ga­ trópole, isto apesar de gastar tanto ou mais do que
nas, fornas ver pela vigésima vez o filme Emmanuelle nós de ver a Emmanuelle, especialmente a parte em
que passava no lvliramar, o melhor filme que alguma que a Emmanuelle fazia aqui[o com a Marie-.Ange.
46 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 47

O pai nunca fala da revoluc;:áo, é natural que o li­ nunca se mostravam, se um branca é urna provocac;:áo
vro da vida náo tenha nada sobre revoluc;:óes porque un1a rapariga branca é uma provocac;:áo ainda maior.
sao raras as vidas que assistem a urna revoluc;:áo. O pro­ Até o preto que durante cinco anos nos engraxava os
fessor de portugues dizia que tínhamos muita sorce, sapatos ao domingo de manhá avisou a minha irmá
estávamos a fazer a revoluc;:áo, a gloriosa manha de numa das últimas vezes que o vimos, cuidado menina
abril tinha sido só o princípio, os quarenta e oito anos que ainda te fazem o mesmo que os brancas fizeram as
da noite mais infame tinham chegado ao fim e agora nossas mullieres. Os ocupantes da casa do Lee rasga­
faltava cumprir abril e cumprir abril era descolonizar, ram e queimaran1 a bandeira do Galo Negro enguanto
democratizar e desenvolver. O professor de portugues gritavam, a vitória é cerca, e, marte aos colonialistas,
era novo, usava o cabelo comprido e cheirava a liam­ o Galo Negro é amigo dos brancas colonizadores escla­
ba, levava a viola para as aulas e punha-se a cantar o vagistas e apoiado pelas forc;:as imperialistas, um lacaio
Monangambé de forma tao sentida como se fosse um do grande capital. As vezes o Gegé e o Lee gozavam
pre to, naque/a rora grande, náo tem chuva, é o suor do meu com o tío Zé. O Lee considerava urn azar muito gran­
rosto que rega asplantaróes, naque/a rora grande tem caféma­ de ter um tio assim porque quem nao me conhecesse
duro, e aquele venne!ho-cere_ja sáo gotas do meu sanguefeitas podia pensar que era urna coisa de familia. Pedí muitas
seiva, nao cantava bem mas era melhor ouvi-lo desafi­ vezes a deus que o tio Zé fosse ferido para regressar a
nar o Monangambé ou o Mon'etu ua Kassule akutu­ metrópole mas tirando a sova que os outros soldados
missa ku San Tomé do que estudar os cantos dos Lusía­ lhe deram nunca lhe aconteceu nada de mal. Quando
das. O professor de portugues da turma B queimou os acabou a tropa o tia Zé fez urna tatuagem de Amor de
Lusíadas, o império nao devia ter existido e os Lusía­ lrmá por baixo de Angola 1971 e a máe ainda gostou
das que o aclamam tambéni náo. mais dele. Em vez de regressar a metrópole o tio Zé
Ainda vi o Lee duas ou tres vezes depois de o Gegé arranjou emprego num bar da Ilha e foi aí que conhe­
se ter ido embora mas já nao era a mesma coisa, até ceu o Nhé Nhé, o amigo preco que quando fuma faz
das mentiras do Gegé tínhamos saudades, dos jogos bolinhas com fumo como as raparigas, urna boquinha
de matraquilhos no clube, dos días grandes no liceu, delicada e urn risinho, consegui, consegui. Depois do
das vizinhas bisbilhoteiras nas varandas, das lajas onde golpe de estado na metrópole, o tío Zé passou a ajudar
costumávamos ir, escava tuda acabado e o Lee também o pavo oprimido a libertar-se do jugo dos colonialistas,
náo tardava a partir. Ainda fornas os dois dar urna vol­ tem cartáo e rudo. Sabe as cantigas revolucionárias de
ta de bicicleta apesar do perigo que era dais brancas cor e aprende quimbundo com o Nhé Nhé enquanto o
a andarem por aí de bicicleta. As raparigas já náo se passeia no Chevrolet Camaro que foi confiscado a um
atreviam a sair de casa, as poucas que ainda cá estavam dos exploradores colonialistas que se foram embora.
48 DULCE MARlA CARDOSO O RETORNO 49

Tocam a campainha. Picamos a espera de ouvir espingardas parecem de brincar mas nao se pode ter
o código, um toque rápido duas vezes e um terceiro a certeza.
espai;ado e maís demorado. Náo tocam mais. A máe Antes que o soldado diga aoque veio, o pai vira­
dizque o tío Zé pode ter-se esquecido do código mas -se para mirn, vai buscar urnas cervejas, rapaz, que
a Pirata ladra, foi um desconhecido que tocou a cam­ estes homens estáo cheios de sede, traz também ci­
paínha. A máe e a minha irmá fecham-se no quarto garros. Obede�o prontamente mas o pai brinca, dá
dando duas voltas a chave e arrastam a cadeira contra corda aos sapacos, rapaz, que estes homens nao tem
a porta. O paí tira a arma da gaveta mais pequena da o dia todo. A cara de um dos soldados, o que está sen­
cristaleira e esconde-a no cós das cal�as. Os brancas tado na ponta do jipe, urna cara quadrada e uns olhos
nao podem andar armados mas a balalaica é suficien­ semicerrados, náo me é estranha, já o vi mas náo me
temente larga para que ninguém se aperceba que o consigo lembrar onde, talvez tenha sido há dias a fa­
paí esconde urna arma. Quando o pai abre a porta, zer urna ronda, há sempre jipes de soldados pre tos de
a Pirata corre para o portáo. Do outro lado está um uro lado para o outro. Volto com a grade de cerveja
soldado preto e a Pirata nao para de ladrar. Atrás e com um volume de cigarros que o soldado rapida­

1.
do soldado está um jipe com mais soldados precos. mente distribuí pelos outros. Nem sequer olham para
O soldado que está de pé junto ao portáo aponta a nós. O da cara quadrada, sem dar mostras de me co­
arma a Pirata. O pai cumprimenta-os e grita para a nhecer, abre a garrafa com a poni:a do canivete e bebe
Pirata, calou, a Pirata senta-se obediente, a abanar a cerveja de um trago, arrota, acende um cigarro e
a cauda. Ternos de cumprimentar os soldados com a abre outra garrafa. Os soldados tem os olhos barren­
sauda�áo do movimento a que pertencem, os pretos tos como os morros e as fardas tingidas de suor.
de um movimento ainda odeiam mais os pretos dos Na rua só nós, os soldados e o sol do princípio
outros movimentos do que odeiam os brancas, náo da tarde. Vem-me a cabec;:a um jogo de fucebol no
podemos confundir as sauda�óes, perde-se a vida por campo de terra batida ao lado do liceu, o jogo de fu­
menos do que isso. O soldado náo baixa a arma, um tebol em que o Lee chamou preto de merda a um
branco é um esclavagista, um colonialista, um impe­ dos colegas por causa de urna finta malaica. O meu
rialista, um explorador, um violador, um carrasco, um corac;:áo bate mais depressa. O preto de merda pode
gatuno, qualquer branco é isso tudo ao mesmo tempo ser o soldado da cara quadrada e dos olhos semicer­
e náo pode deixar de ser odiado. No jipe também es­ rados que veio vingar-se. Foi um desentendimento
1

- 1, tao crian�as, algumas fardadas e armadas, tem ranho como muitos outros, preto de merda, nao era urna
seco do nariz aos lábios e aJguns nas bochechas, uro ofensa, o Lee era o caixa de óculos e quando nos zan­
1
,1
dos mais pequenos tem bolhas com pus na cabe<;:a, as gávamos era o cai.-xa de óculos de merda, o Gegé era
jO DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 5r

o lingrinhas mas também era o lingrinhas de merda rece divertir-se a olhar para mim. Se calhar é mesmo
se havia estrilho, preto de merda náo era ofensa e só o preco do jogo de futebol. Se calhar já se lembrou do
mesmo um preto se podia ofender com isso a ponto jogo. Ou nunca se esqueceu e é por isso que aquí está.
de ter querido bater no Lee. Eu e o Gegé segurámos Veio ajustar contas.
no preto e o Lee deu-lhe um murro bem assente Os soldados falam mas náo os compreendemos.
no estómago. O preto saiu do campo a cambalear, Nunca aprendemos a língua dos pretos, as línguas
espero que tenha aprendido a lic;áo, disse o Lee, aliás, que os pretos também tem várias línguas e se
e chamou o Garrincha para jogar no lugar dele. calhar é por isso que náo se entendem, nao se conse­
O preto nunca mais jogou connosco e nem me lem­ guem compreender uns aos outros. Neste caso nao
bro se passou de ano. Náo, náo é este. Há muitos precisamos de compreender o que os pretos dizem,
pretos com a cara quadrada e olhos semicerrados sabemos o que querem dizer as armas que nos apon­
como se custassem a abrir. Náo é este, náo pode ser. tam mesmo que tentemos náo prestar-lhes muita
O suor vai colando o pano fino da balalaica do pai atenc;áo. As lajas do largo para onde estamos virados
as costas. Tenho medo que se note a arma, um branca estáo todas fechadas e até as casas que já foram ocu­
armado está a pedir maca da grossa. Endireito as cos­ padas tem as persianas corridas. Algumas lojas ainda
tas e engulo em seco, um branca com urna arma é um mantero os tapumes com que os donas as deixaram
racista que náo abdica dos seus direitos, um elemento mas a maioria já foi assaltada, as montras partidas e
menos evoluído que tem medo de perder as suas rega­ as portas arrancadas. O medo faz-nos transpirar mais
lías, um imperialista ressentido por já náo viver num do que a humidade do cacimba.
mundo que nunca devia ter existido. O soldado que Dais tiros, uro dos soldados do jipe dá dais tiros
está de pé a nossa frente atira a garrafa partindo-a de para o ar. A Pirata ladra outra vez e o pai dá-lhe um
encontro ao muro da casa e a Pirata comec;a a ladrar pontapé que a faz ganir e depois calar-se e sentar-se ao
outra vez. Nao queremos olhar para os estilhac;os da lado dele. Mesmo que lhe batamos a Pirata nunca se
garrafa para náo parecer urna crítica mas os vidros fi­ vai embora, gasta de nós, tanto faz que lhe batamos ou
cam a brilhar ao sol e é difícil desviar os olhos. O sol­ náo. Mandó-a para casa mas a Pirata continua a nos­
dado pergu nta, há algum problema, eu e o pai respon­ sa frente, protege-nos dos desconhecidos como sem­
demos ao mesmo tempo que náo, de certeza que eles pre fez. Alertados pelos tiros, os ocupantes da casa da
perceberam que estamos amedrantados. O medo do D. Gilda vém as janelas e as varandas e acenam ao jipe
pai também se nota nos lábios contraídos e retesa­ dos soldados. Os ocupantes das casas mais afastadas
dos, mesmo quando sorri, mas calvez os soldados nao também vem as janelas. Um grupo de miúdos pretos
se apercebam disso. O soldado da cara quadrada pa- pendura-se no baloic;o de ferro forjado da D. Gilda.

I•
52 DULCE MARlA CARDOSO O RETORNO 53

Um dos maples de veludo castaJllO da sala da D. Gilda tido escolha, se pudesse ter escolhido rir-se era dife­
foi arrastado para o quintal e está todo desconjuntado. rente, o pai tem de se rir. Dantes era o pai que decidía
Se a D. Gilda visse o que lhc fizeram a casa, se visse o quando se ria, como te chamas, Málátia, patráo, que
maple de veludo cascanho assim, era capaz de ter um matumbo, nem o nome sabes dizer, o Malaquias tam­
ataque de corac;:ao. Talvez a D. Gilda esteja sentada bém tinha de se rir quai:ido o pai se ria, agora é a vez de
num maple melhor na metrópolc. Nos muros das casas o pai ser o último a rir, e náo é verdade que quem ri por
escreveram, Kwacha UNlTA, por cima a tinca preta, últin10 ri melhor, quase nada do que se dizia é verdade,
A Luta Continua, por cima, Oyé Oyé Angola Liberté, Angola já nao é nossa,foi na manhá de qu.atro defevereiro
Angola Populé. Também escreveram a letras maiores que os heróis cortaram as algemaspara vencer o colonialismo
e mais carregadas, Brancas rua, Brancos fora daqui, e cnar umaAngola renovada.
Brancas para a ten-a deles e Marte aos brancas. Trago mais cerveja e cigarros. Quis beber água
O soldado cospc para o cháo, o jacto de saliva cai mas náo conseguí engolir nem uma gota. Tento náo
no asfalto quente deixando urna mancha que me enoja correr para náo mostrar que tenho medo mas sei que
mas que me distrai do medo. Tento evitar os olhos do estou a andar depressa e desengonc;:ado e que o pai
soldado da cara quadrada, deve estar aqui para vingar­ deve ter vergonha de mim. As cervejas e os cigarros
-se e ninguém o pode impedir, nem mesmo o pai, nem sáo novamente distribuídos pelos soldados. É entáo
mesmo a arma do pai. Tenho tanco medo que quera de­ que o pai diz, meus senhores, despedindo-se com um
saparecer, se desatasse a correr, se atravessasse o largo, aceno de cabe<;a e virando as costas aos soldados. Póe­
se me escondesse atrás dos taipais da drogaría, passam­ -me a máo por cima do ombro para que o imite, tenho
-me mil ideias pela cabec;:a mas continuo parado, até medo de ficarmos ambos de costas volcadas para as
respirar me custa. Nunca cinha tido a boca táo seca, armas dos soldados, as pernas náo me acompanham.
a língua cola-se ao céu da boca, um amargor que vai até A máe e a minha irmá devern estar a espreitar-nos
a garganta, nunca a boca me soube táo mal. O pai diz­ através da persiana da janela do quarto, sci que te­
-me, estes homcns precisam de mais bebida, vai bus­ nho de me virar e comec;:ar a caminhar, náo posso ter
car outra grade, o soldado que está de pé esborracha a medo de ficar de costas para as armas dos soldados,
beata com a bota, e mais cigarros, grita o pai, os sol­ o soldado da cara quadrada veio vingar-se, a Pirata já
,,
r.i' dados do jipe parecem desinteressados, o soldado que está na entrada da casa a abanar a cauda, náo posso
está de pé diz, dá corda aos sapatos, rap'lz, imitando o ser cobarde, só tenho de ir ter com a Pirata, se tuda
que o pai disse há pouco, os outros soldados riem-se e na vida menos cobarde, rapaz, um cobarde atraic;:oa
o pai também, pode parecer que está tudo bem, que pai e máe, dececiona os amigos, é pau mandado dos
sáo homcns que se divcrtem, mas náo, se o pai tivesse inimigos, um cobarde é pior do que um assassino, do
54 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 55

que urn ladráo, um cobarde nao cem outra sujei<;áo perguntas, os olhos do soldado fi.cam mais barrentos.
senáo a do medo, ouve-me com acen<;áo, rapaz, um O pai náo se mexe, o corpo grande do pai endireita­
cobarde vale menos que urn morto, há histórias de do, as máos fechadas, tenho medo do que o pai possa
mortos que ressuscitaram mas urn cobarde até disso fazer, o pai nao tem andado bom da cabe<;a, ainda há
teria medo, toda a vida ouvi o nojo que o pai tem aos pouco rasgou as dálias da toalha, póe-me o bra<;o es­
cobardes, náo posso ser um cobarde. querdo sobre o ombro, diz-me baixinho, vai para casa
Ei tu que fumas, a voz náo percence ao soldado e fecha-te a chave.
que está de pé, ei tu que fumas, foi outro soldado, tal­ Náo posso abandonar o pai, pertencemos ao
vez o da cara quadrada. Anees de isto ter come<;ado mesmo clube, nao sou cobarde ainda que náo consiga
um preto podía levar urna sova por tratar um branca fazer com que as pernas náo tremam, vai para dentro,
por tu e nem pensar que, ei tu que fumas. Os soldados insiste o pai entre dentes, a Pirata ladra, vai para den­
riem-se e o pai ri-se outra vez. De cima do jipe o sol­ tro. O soldado diz, fomos informados de que o carni­
dado da cara quadrada está cada vez mais divertido, ceiro do Grafanil esteve aqui. O pai franze o sobrolho
chegou a altura de vingar-se do murro que o Lee lhe e atira o carpo para trás, aqui, pergunta surpreendi­
deu, já náo tem os olhos semicerrados, pe<;o a deus do. O preto da cara quadrada aporrea o indicador que
que os soldados se váo embora, prometo rezar urna faz de arma ao pai, dá outro estalido com a língua, já
ladainha inteira, das da emissora católica, pe<;o a deus nos matou aos dois com o seu dedo-arma, queremos
que o cio Zé chegue, o tio Zé anda a ajudar o povo fazer-te urnas perguntas, o pai comes;a a rir-se, baixi­
oprimido, tem um cartáo e tudo, talvez eles o ou­ nho, depois mais alto, ri-se, o carniceiro do Grafanil,
<;am e nos dei.xem em paz, pe<;o que o soldado nao se aquí, e ri-se cada vez mais alto. O pai náo pode ser o
lembre do jogo de futebol nem de mim, pe<;o tantas carniceiro do Grafanil nem sabe nada do carniceiro
coisas a deus mas deus, como sempre, mais surdo do do Grafanil, o pai nao andou a matar pretos nem a fa­
que urna porta, os soldados continuam a nossa frente zer emboscadas. Nunca tinha visto o pai rir-se assim,
satisfeitos pelo medo que nos provocam. O soldado as gargalhadas sao tao fortes que o dobram, devem
da cara quadrada faz de conta que a máo é urna arma estar a brincar corrugo, o soldado náo sabe como rea­
e aponta-me o indicador. Dispara imitando o estalido gir as gargalhadas, o pai náo devia ter come<;ado a rir­
do tiro com a boca e ri-se. Dei.xa o indicador espeta­ -se, os outros pretos esperam ordens, o pai e eu, lado
do como se fosse atirar outra vez. Odeio o Lee e o a lado, a Pirata a nossa frente a proteger-nos, olho em
Gegé, estejam eles onde estiverem, odeio os vizinhos redor, já quase todos os ocupantes das casas se desin­
que se foram embora e nos dei.xaram aquí. O soldado teressaram e foram para dentro, os poucos que fi.ca­
que está de pé dirige-se ao pai, ternos de te fazer urnas ram olham-nos desatentos, o pai avan<;a, aproxima-
56 DULCE MARIA CARDOSO O RETORKO 57

-se do jipe, olhem bem para mim, fala alto como para nos ver morrer, o pai levanta mais a voz, sempre vos
urna multidáo, digam-me o que veem, eu digo-vos o paguei a tempo e horas, bebi cacha<;:a e comi funge
que escáo a ver, esta.o a ver um homem que se ma­ convosco, nunca abusei das vossas mulheres nern das
cou a crabalhar nesta terra, descarreguei sacas de café vossas filhas, dei-vos dinhei.ro para os medicamentos
contigo, contigo, aponca para cada um dos soldados, dos vossos filhos, fa¡;:am o que quiserem.
com o teu pai, com o teu tio, com o teu irmáo, com O pai póe novamente o bra<;:o sobre os meus
o ceu filho, nao há homem que tenha descarregado ombros, vainas, rapaz, nao tero medo de lhes virar as
mais sacas de café nesta terra do que eu, trabalhei dia costas mas eu tenho, náo consigo virar as costas as
e noite e agora, o pai para de falar e quando recome­ armas dos soldados, a Pirata salta satisfeita a nossa
<;:a fá-lo com a voz mais baixa, como se lhe cuscasse volta, nao consigo andar, o pai empurra-me, os solda­
falar, tuda o que tenho vai ficar aqui, olhem para as dos va.o disparar, as paredes brancas da casa póem-rne
minhas máos, náo cabem mais calas nas minhas máos ainda mais tonto, agora percebo por que se matam
e mesmo assim a pele ainda sangra contra a juta das os pássaros contra as paredes da casa nas manhás de
sacas, o pai estende as máos enormes para os solda­ cacimba, o pai empurra-me outra vez, nao consigo
dos, tanto trabalho para agora ficar tuda aqui, o pai andar, náo sou cobarde, nao consigo andar mas náo
aponta para a casa, para um dos camióes que está sou cobarde, eles váo disparar se come¡;:armos a an­
mais a frente, os soldados continuam calados, o pai dar, náo quera que o pai passe pela vergonha de ter
parece estar a ganhar, lembrem-se da minha cara de um filho cobarde, estou tonto, vou desmaiar como
cada vez que se sentarem a min.ha mesa, de cada vez quando tive paludismo, tenho de andar, vamos rapaz,
que passarem o portáo da minha casa, o pai levanta náo consigo olllar para o pai, as roseiras da máe, as
mais a voz, a cara do hornero a quem tudo foi rouba­ armas dos soldados apontadas as nossas costas, te­
do náo <leve ser esquecida, lembrem-se bem, se náo nho de me portar como um homem, a Pirata a nossa
fosse táo velho podía ter sido o carniceiro do Grafa­ espera nas escadas, desculpe pai, as paredes da casa
nil, se nao tivesse mulhcr e filhos, se nao estivesse tao a andar a roda, a casa, o largo, se dermos uro passo
cansado, o pai leva a máo a arma, a única arma que eles matam-nos, vamos rapaz, o pai puxa-me, vamos
tenho está aquí e nunca a usei, os soldados agitam-se, para casa, náo consigo andar, pai, as paredes da casa
é agora que vamos morrer, os soldados apontam-nos apagam-se, anda rapaz, de repente tudo escuro, as
as armas, é agora, tcnho esta arma para proteger a mi­ pernas dobram-se sern que eu possa evitar, eles de­
nha familia, náo sou o carniceiro do Grafanil, o pai vern ter disparado, se calhar nao se dá conta quando
quase sussurra, os ocupantes que estavain nas varan­ nos acingern, se calhar marremos e náo damos canta,
das chamaram oucros, agora esta.o todos a espera de vamos para casa, rapaz, vamos para casa.
O aeroporto tao diferente do aeroporto das tar­
des de domingo em que o pai nos trazia para
vermos os avióes, há centenas de pessoas a nossa
volta, centenas ou milhares, nao sei, nunca vi tan­
ta gente junta, nunca vi urna confusa.o tao grande,
tantas malas e tantos caixotes, tanto lixo, lixo, lixo
e mais lixo, nesses domingos, o aeroporto era silen­
1 ! cioso, o chao táo limpo que até clava pena pisar, era
bom vir ao aeroporto, até era bom ouvir o barulho
dos avióes, nao havia esta gente toda, este barulho
que nao para, parece que a minha cabe<;a vai explo­
dir. O jipe desaparece depois da casa da Editinha.
Estou cansado, nunca estive tao cansado, nao me
quero sentar, nao me posso sentar, quer dizer, se qui­
sesse podía, posso sentar-me no chao, a máe nao se ia
importar, desta vez nao, desta vez a mae nao ia dizer,
_isso nao sao maneiras, já nao és nenhum garoto, nao ia
dizer, estás a sujar as cal i;as, nao penses que consigo ti­
rar essas nódoas, a máe nao se ia importar, tantas pes­
soas sentadas no chao a nossa volta, náo estao preo­
cupadas com nódoas nas cals:as, nao se importam
de chegar a metrópole com nódoas. As máos do pai
amarradas atrás das costas.
60 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 6r

A máe nern sequer dá coma que a min.ha irmá O tío Zé tenca sossegar-nos, renta sossegar a
com o vestido azul clarinho que trouxe, que má ideia máe, diz que o Nhé Nhé foi tratar de tudo, os pretos
trazer um vestido azul clarinho, a máe nem sequer dá váo percebcr que escavam enganados e váo libertar o
conta que a minha irmá está sentada no chao, encos­ pai, os pretos sao justos, as vezes enganam-sc mas os
tada a parede, os caracóis louros desmanchados con­ enganos podem ser corrigidos, o tio Zé diz que po­
tra a parede, uma rapariga tem de ter ainda mais cui­ demos ficar descansados. A m.áe de bras:os caídos no
dado do que um rapaz, tem. de se comportar de outra fimda rua.
maneira, se urna rapariga fica falada ninguém a quer. 1ambém há pretos aqui, pretos vindos de tocio o
Vámo matáti cum tuá arma e tuá bala. lacio, descals:os e sujos, pretos fugidos dos quirnbos com
Estamos aquí há quase um día, a mae está sem­ medo da guerra, até os pretos querem ir para a mctró­
pre a olhar para a porta do aeroporto mas o pai nao pole, um tropa chama os passagei.ros que váo embar­
chega, náo há mais nada a fazer senao esperar, esperar car no aviáo que acabou de aterrar, ainda náo é o nosso
o pai e esperar a nossa vez no aviáo para a metrópole. aviáo mas o tio Zé avisa, quando chcgar a vossa vez tem
A poeira demora a assentar. de ir, o meu coras:áo bate mais dcpressa e mais force
Prefería que o tio Zé se fosse embora mas o tio como se o tío Zé me tivesse ameac;:ado, quando chegar
Zé nao sai daqui, quer ter a certeza que embarcamos, a vossa vez tem de ir. O sangue do pai no asfaJco.
<leve ter medo que voleemos para casa, <leve ter medo Ternos de esperar pelo Mátio, a máe para o tio
que os vizinhos pretos queiram vingar-se de nós por Zé, nao posso deixar cá ficar o Mário, e para nós,
pcnsarern que sabemos do carniceiro do Grafanil, ou náo podemos dei..xar cá ficar o pai, a mác scm tirar os
que o jipe com os soldados volee para buscar-nos, que olhos da porta do aeroporto, assim que o pai entrar
voltem por nós, o tio Zé tem razáo, quera voltar para a máe dá canta, mesmo com esta bara.funda toda dá
casa e esperar lá pelo pai. A balalaica branca do pai conta, a máe também viu logo o pai quando chegou
ensopada de sangue. no Vera Cruz apesar de tanta gence no cais, apesar de,
A máe agarra-se outra vez ao tio Zé, leva-nos nao pareces tu. Os vasos da escada combados.
para casa, e o tio Zé, nao pode ser, mana, tens de Só se pode levar urna mala por pessoa, quem
apanhar o aviáo e ir embora com os teus filhos, trouxe bagagem a mais tem de a deixar aqui, as coi­
a máe nao quer compreender o que o tio Zé diz, vai sas ficam espalha<las pelo aeroporto, coisas por todo
repetindo, leva-nos para casa, ou entáo, vai buscar o o lado, náo trouxemos nada a mais, saímos a pressa,
l\fario, és amigo daquela gente, faJa com eles e traz­ as malas ficaram por encher, tanto para levar e afina[
-me o Mário. O isqueiro Ronson Varaflame caído ao tivemos de fechar as malas a pressa e dei.x.ámos quase
pé do canteiro. rudo. O pai metido a fors:a no jipe.
62 DUl,CE MARIA CARDOSO O RETORNO 63

A mala do pai ficou na sala, devíamos ter trazido É a nossa vez, o tio Zé acabou de dizer, é a vossa
a mala do pai, já entregámos as nossas, só ternos con­ vez, olhamos uns para os outros assustados, o tío Zé
nosco os sacos da TAP que o pai trouxe, o pai trouxe sem responder quando a minha irmá pergunta, e o
um saco de viagem para cada um, chegou ontem a pai. Os pretos a rirem quando o jipe arranca.
casa orgulhoso com os sacos, foi difícil arranjar mas Venham, o tio Zé abre os brai;os para tentar levar­
consegui. As maos do preto no brar;:o do pai. -nos, a máe finca os pés no cháo abrac;:ada a si mes­
Nunca pensei que fosse assim, imaginava-nos a ma, o Mário ainda nao chegou, tenho de esperar pelo
apanharmos o aviao como víamos as outras familias Mário. A arma do pai nas máos do preto.
fazer nos domingos em que o pai nos trazía ao aero­ O tío Zé empurra-nos, o Mário vai depois, mana,
porto, nao estaríamos tao sorridentcs como as pes­ se perdem a vossa vez nunca mais saem daqui, nao ves
soas que avanc;:avam a pé pela pista a acenar mas nao esta gente toda a espera de lugar, nao podem perder a
havia esta gente assustada a nossa volta e o pai esta­ vossa vez, o tío Zé sem ligar ao que lhe digo, náo po­
va connosco. A minha irma sem conseguir descer as demos deixar o pai sozinho. A arma do pai apontada
escadas. a cabec;:a.
O pai já devia ter chegado, nao percebo, se o tio O tropa manda-nos avarn;:ar para a pista, o aviáo
Zé tero a certeza que o Nhé Nhé convence os pretos está a nossa frente, enorme e brilhante, gente e mais
a libenarem o pai porque é que tivemos de sair de gente até ao aviao que vai levar-nos, as escadas do
casa tao a pressa, porque é que o tio Zé teve de con­ aviao estao descidas. A máe a correr por dentro da
duzir aquela velocidade, porque é que estamos aqui poeira que nao assenta.
em vez de estarmos ao pé do pai. A Pirata a ganir com
o pontapé do preto.
Urna crianc;:a comec;:a a gritar, o barulho das pes­
soas, o barulho dos motores dos avióes lá fora, os gri­
tos da crianc;:a, a minha irma nem sequer desencosta
a cabec;:a da parede mas a máe fecha os olhos e faz um
esgar esquisito, nao é como quando vamos aos ajunta­
mentos, é como se os gritos da crianc;:a a magoassem,
aqui ainda há mais gente do que nos ajuntamentos
mas nem o Sr. José nem o pai estao cá, tenho medo
: ,¡ 1
mas é um medo diferente do que tenho nos ajunta­
1
mentos, é a nossa vez. Os olhos aflitos do pai.

' '•
E ntáo a merrópolc afina! é isto.
ejam muito bem-vindos a este hotel. Fa<;:am o fa­
S vor, entrem, podem sentar-se nessas poltronas.
É o meu escritório, estejam a vontade, aquí no hotel
todos querem ajudar, chegaram a boro porto. Sei
pelo que estáo a passar mas infelizmente náo sáo os
únicos. Náo se preocupe com as malas, minha se­
nhora, o rececionista toma conta delas. Será urna
conversa breve, sei que estáo cansados e nao quero
demorar-vos. Foi urna viagem longa, longa e difícil,
imagino. Sao circunstancias terríveis mas náo está ao
alcance da nossa vontade mudá-las. Sao tempos con­
turbados. Estamos todos a tentar fazer o nosso me­
lhor e estou a vossa disposi<;:áo para ajudar no que
puder. Mas antes de mais quera dar-vos as boas­
-vindas enquanto diretora <leste hotel. Teráo repara­
do que é um hotel de cinco estrelas e garanto-vos que
merece cada urna delas. Nao sei se já tinham vindo
ao Es toril, tenho a certeza de que váo gastar. Muitos
dos que tem chegado dizem que lhes faz lembrar
Luanda, náo sei, nunca lá estive, quem sabe um día.
Esta zona é muito procurada pelos turistas e estamos
na época alta. Mas náo podía deixar-vos sem teto,
tem de se ajudar quando é preciso. Foi por isso que
68 UUI,CE J\IARJ.-\ C.�RDOSO O RETORNO 69

disponibilizei o hotel, a excer;:áo do último piso, esse nasce ensinado e o que náo se sabe tem de ser apren­
continua reservado aos hóspedes. Náo que náo vos dido e há hábitos que mudam de sítio para sítio.
considere hóspedes mas como compreenderáo Agrader;:o-lhe que nao me fale assim, a senhora está
enconrram-se numa sicuac;:áo diferente. Por muico nervosa, é compreensível, mas per;:o-lhe que se acal­
gosto que renha em ajudar-vos náo poderia fechar o me. Sei pcrfeitamente que náo viviam na selva, longe
hotel aos clientes habituais. Minha sen.hora, dou-lhe de mim chamar selvagem a quem quer que seja, o que
a minha palavra de que o rececionisra toma canta se está a passar neste país também nao é cxemplo
das malas. Pode estar tranquila. Compreendo o seu para ninguém. Aquí no hotel há regras que tem de ser
ncrvosismo, náo <leve ter sido fácil tcr vindo sozinha cumpridas, sem rcgras náo nos entendemos, é só isso
com dois frlhos. Tanto melhor, um pai faz muita falta que que ro dizer, seja num hotel seja num país. Sim, já
e ncstas alturas enráo nem se fala, ainda bem que virá me disse que tudo o que tem está naquelas malas mas
em breve. Sei que nao serve de conforto mas há muí­ náo se preocupe, ninguém lhe mexe em nada, as ma­
tas famflias separadas como a vossa, infelizmente las estáo a cargo do rececionista e estáo cm seguran­
náo sáo os únicos. Ternos de ter fé em deus, só a fé c;:a. Escáo num bom hotel, muito born aliás, diría
pode salvar-nos nestes tempos conturbados, as pro­ mesmo no melhor hotel, se me for permitida a vaida­
vac;:óes de deus tornam-nos mais fortes. E tem sorte, dc. No meio do azar ainda tiveram. sorte, há familias
já tcm os seus filhos quase criados, uma mu.lher e um instaladas em parques de campismo ou ero pensóes
homem prontos para a ajudar. Tenho a certeza de que miseráveis, ao menos calhou-vos um hotel de luxo.
tem aqui uns jovens educados e respeitadores, basta Nem todos podem agradecer a deus pelo mesmo, de­
olhar para eles. Mas expücava-vos que náo posso fe­ vcm ter visto aquele mar de gente no aeroporto, eu
char o hotel aos hóspedes normais, renho hóspedes nem quería acreditar quando escive lá, uns familiares
que vem cá passar urna temporada todos os anos e do meu marido vieram de Moc;:ambique e fornas
claro que nao poderia recusar-me a recebe-los, há re­ buscá-los. Infelizmente nao acontece o mesmo a
servas do estrangeiro que já foram feítas no princí­ toda a gente, há pessoas a qucm a familia vira as cos­
pio do ano. Como compreenderáo, esscs hóspedes tas, é bem verdade que quando se precisa é que se ve
nao podem ser incomodados, é um hotel de cinco es­ com quem se pode contar, tero havido tanta desilu­
trelas e os hóspedes tem de ser tratados de acordo sáo. E, claro, há os que nao tem cá ninguém, já os pais
como que pagam, náo pode haver barulho, nao pode ou avós tinham nascido em África, náo sei se é o vos­
haver qualquer espécie de confusáo. Nao, minha se­ so caso. Isto para nao falar nos de cor, esses coitados
n hora, náo percebeu bem. 1 ao é que ache que nao se é que náo tem a quem recorrer, tem sido urna desgra­
sabem portar, náo esrou a dizer nada disso. Ninguém r;:a. Ainda nao pararam de chegar pessoas e ainda há
70 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 71

tantas para vir, avióes para cá e para lá, dia e noite. de mim, o pessoal do hotel é o mesmo e o trabalho
Se os estrangeiros nao tivessem emprestado os quadruplicou. Náo tenho condic;:óes para contratar
avióes nem quero imaginar a mortandade que tinha mais trabalhadores. Por isso pec;:o também a vossa
havido. Náo tem importancia, pode interromper-me colaborac;:ao, quanto mais nos ajudarem mais vos po­
quando quiser. Sim, minha senhora, as guias que vos demos ajudar, sáo tempos conturbados. Tenho entáo
passaram ficam comigo, deixe ver. Parece estar tudo para oferecer-vos um quarto com duas boas camas e
em ordem, aquí para o hotel nao precisam de mais um diva extra, tem direico a pequeno-almoc;:o, almo­
nada mas devem ir ao IARN tratar do resto, agora c;:o e jantar sempre servidos no restaurante. É expres­
está calor mas o inverno é frío e vao precisar de rou­ samente proibido levar comida para os quartos e co­
pas bem mais quentes do que as que lá usavam, zinhar nos quartos é motivo de expulsáo. Os quartos
e muitas outras coisas. Há bastante gente a ajudar, as náo estáo preparados para que se cozinhe neles. Cla­
igrejas, os servic;:os de beneficencia. Desculpe, minha ro que náo, minha senhora, sei que nao se vai pór a
senhora, sei que nao está a pedir nada, nao chamei cozinhar no quarto. Quero tao-somente avisar que,
pedinte a ninguém, náo ponha na minha boca pala­ para o bem de todos, náo permitirei nenhum dano
vras que nao disse. Sao gente trabalhadora, nao duvi­ grave ao hotel. O vosso quarto é o 315- As emprega­
do, mas acontecem coisas más a toda a gente, nao é das limpam os quartos urna vez por semana e nesse
vergonha precisar. Os que precisam também tem de dia trocam os lenc;:óis e as toalhas. No princípio,
saber receber, sao tempos conturbados. Volcando ao quando só vos tinha sido destinado um piso, as em­
que interessa, já perceberam que com tantas pessoas pregadas limpavam os quartos diariamente mas nin­
necessitadas ternos de acorrer ao maior número que guém estava satisfeito, as pessoas náo gostavam de
pudermos, por isso nao tenho outra alternativa se­ ser incomodadas todos os días, queriarn estar a sua
nao aceitar mais pessoas por quarto do que seria ex­ vontade nos quartos, e também era complicado para
pectável, escou certa de que compreendem, tedio de as empregadas, os quartos estáo mais cheios e as po­

1
ficar os tres no mesmo quarto. Resolvemos isso de­ bres coitadas quase náo se podiam mexer lá dentro.
pois, minha senhora, quando o seu marido chegar Houve urna reuniáo geral e decidiu-se que as empre­
podemos considerar dais quartos mas até lá tem de gadas só limpam os quartos urna vez por semana mas
ficar os tres no mesmo quarto. Tenho a certeza de que nesse día os quartos tem de estar livres. Portanto
que prefere ficar mais apertada e saber que náo há no día da limpeza teráo de vir cá para baixo ou dar

\
ninguém ao relento, ternos de ser uns para os outros, urna volta para que as empregadas possam !impar os
estou a fazer o melhor que posso e sei. Repare que há quartos como deve ser. Claro que seráo informados
um grande esforc;:o nesta ajuda, náo estou a falar só previamente. Numa emergencia podem usar o
72 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 73

aspirador, é só pedirem na rece<;áo, quanto ao resto importante. Vai correr rudo bem. Tudo parecerá me­
da roupa, as pec;:as pequenas podem ser lavadas na lhor depois de urna boa noite de sano, quando o can­
casa de banho mas as maiores tem de ser na lavanda­ sac;:o fala por nós diz sempre asneiras. Tive muito
ria, já foi pedido outro tanque, as máquinas de lavar gaseo cm conhece-los, desejo-vos mais urna vez urna
sao do uso exclusivo do hotel. O mais importante é muito boa estada.
reterem que as regras sáo para vos procegerem,
o desrespeico das regras complica acima de rudo a
vossa vida. Por favor nao esque<;am que é proibido
levar comida para os quartos e nem pensar cozinhar
nos quartos nem em qualquer sítio do hotel. Corn
certeza que náo, minha scnhora, náo se aborre<;a. In­
sisto nisto porque já aconteceu e náo pode tornar a
acontecer, num hotel de cinco estrelas náo se pode
permitir isso. Nao vos tomo mais tempo, nao sei se
tcm alguma pergunta a fazer. Quanto ao que me per­
gunta náo há previsáo, ficam instalados o tempo que
for preciso, tenho a certeza de que em breve todos
arranjaráo urna solu<;áo. Nao lhe sei dizer, minha se­
nhora, isso depende mais de voces ou de outras pes­
soas do que de mim, mas urna coisa posso garantir­
-vos, ninguém vos póe na rua sem mais nem menos.
Aqui tcm a cha ve do vosso quano, há urna cópia mas
é preferível que fique na rece<;áo, tem-se perdido
muitas chaves. Vou pedir ao Sr. Tci:xeira que vos leve
ao elevador e que o porteiro vos ajude com as malas,
qualquer informa<;áo de que precisem é só ligar para
a rece<;áo, estamos ao vosso dispar. O telefone para a
rece<;áo é gratuito, podem ligar as vezes que quise­
rem e esclarecer rodas as dúvidas que tiverem, só pa­
gam as chamadas para fara. iVfais urna vez sejam
bcm-vindos, chegaram saos e salvos e isso é o mais

"'.
E
/
a primeira vez que estamos num hotel, é a pri-
meira vez que estamos a dormir num quarto de
hotel e também é a primeira vez que estamos a dormir
os tres no mesmo quarto. Na casa antiga eu e a minha
irma partilhávamos o quarto mas éramos pequenos,
éramos tao pequenos que ainda tínhamos medo do
escuro, das lesmas e das osgas. A mae sempre dormiu
noutro quarto com o pai. A nao ser quando um de
nós estava doente. Ai mudava-se para a nossa cama
e deixava as almofadas a cheirar a laca que punha no
cabelo. Mas tirando os casos de doern;:a a mae sem­
pre dormiu com o pai noutro quarto. Só que o pai
nao está cá. Quarto 3r5- O porteiro que nos ajudou a
trazer as malas disse que tivemos sorte, é um quarto
com varanda virada para o mar. Também nunca dor­
mimos tao perto do mar.
Os tres deitados, de luz apagada, ouvindo a res­
pirac;ao uns dos outros. A mae e a minha irmá nas
camas boas de que a diretora faJou e eu no diva que
encostámos a parede. A luz do néon da loja de foto­
grafia que fica em frente ao hotel passa as cortinas
corridas e ilumina o quarto. Acende e apaga, acen­
de e apaga. O mar está tao perto que se ouvem as
76 DULCE MARIA CAR.OOSO O RETORNO 77

ondas contra a noite da metrópole. Nao quera fechar o mapa estava rasgado e vía-se um tccido escuro ou
os olhos. Se fecho os olhos o pai é outra vez levado sujo por trás, um tecido rijo que mantinha o mapa in­
pelos pretos, as máos amarradas atrás das costas, se teiro e teso. Náo sabíamos o que havíamos de fazer e
fecho os olhos esrou outra vez a desmaiar, náo, náo era como se estivéssemos a entrar no mapa rasgado,
cheguei a desmaiar, aconteceu qualquer coisa que ou entáo nas fotografias das revistas, nas hisrórias
náo me lcmbro mas náo foi um desmaio, o pai pos­ que a máe estava semp�e a contar, nos hinos que can­
-me a máo no ombro, vamos para casa, rapaz, corne­ távamos aos sábados de manha no pátio do colégio.
cei a ver tuda branca, ceguei como os pássaros devem Parecía impossível termos chegado a metrópole. Ain­
cegar quando se atiram contra as paredes e morrem. da mais depois do que se passou, ainda mais sem o
Eu náo morri mas quando voltei a mim o pai estava a pai. Nunca pcnsei estar na metrópole sern o pai. Sern
ser metido no jipe com a sua própria arma apontada o pai nao sabíamos o que fazer mas as outras famí­
a cabep, um dos soldados, vamos matar-te com a tua lias também nao sabiam, e agora, e agora, pergunca­
arma e com a tua bala nem precisamos de gastar nada. vam. Em quase codas as respostas urna palavra que
Nao, os cabróes de merda náo falararn assim que os nunca tínhamos ouvido, o IARN, o IARN, o IARN.
cabróes de merda nem falar sabem, vámo matáti cum O IARN paga as viagens para aterra, o IARl� póe-nos
tuá arma e tuá bála nei precisámo di gastá nada. O tia em hocéis, o IARN paga o transporte para os hocéis,
Zé e o Nhé Nhé váo falar com os amigos deles e os o IARN dá-nos comida, o IARN dá-nos dinheiro,
cabróes de merda váo ter de soltar o pai, até lhe váo o IARN ajuda-nos, o IARN aconselha-nos, o IARN
pedir clesculpa por cerem dito que ele era o carniceiro pode informar-nos. Nunca tinha ouvido tantas vezes
do Grafanil ou amigo dele. Se calhar até já o soltaram urna palavra, o IARN parecía mais importante e mais
e o pai está a arranjar bilhete de aviáo para vir ter con­ generoso do que deus. Explicaram-nos, IARN quer
nosco. É isso, a esta hora o pai já está dentro de um dizer Instituto de Apoio ao Retorno dos Nacionais.
aviáo para vir ter connosco. Agora somos retornados. Náo sabemos bem o que é
Náo precisámos de combinar que faríamos sc­ ser retornado mas nós somos isso. Nós e todos os que
gredo sobre o que aconceceu ao pai. Foi a máe, apesar estáo a chcgar de lá.
da cabec;a fraca, que comec;ou a mentir quando saí­ ¡\jnda bem que o pai tinha ido trocar o dinheiro
mos do aviáo. Deseemos as escadas do aviáo e a mi­ para trazcrmos, o dinhciro de lá náo dá para comprar
nlia irmá disse, estamos na metrópole. Náo sabíamos nada aqui. Quando cstávamos no aeroporto a máe
o que havíamos de fazer. Foi esquisito pisar na metró­ quis comprar urna gasosa com o dinheiro de lá mas
poie, era como se escivéssemos a entrar no mapa que a vendedora dissc-Jhe, nao aceitamos essc dinheiro.
escava pendurado na sala de aula. Havia sírios onde Náo percebo. Sao escudos na mesma, Angola ainda é

.,.
78 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 79

Portugal, a independencia só é em novembro. A ven­ era um choro como tantos outros. Fomos para urna
dedora disse que o dinheiro de lá nunca serviu cá. das bichas, todas as bichas iam dar a qualquer coisa
O pai devia saber disso mas nós náo sabíamos. Talvez relacionada com o IARN. As guias de alojamento
para os que náo tem para onde ir também sáo trata­
das pelo IARN, mas o IARN nao era ali. Foi a senhora
a máe já tivesse sabido e se tivesse esquecido. Tudo
o que ternos sáo as malas que trouxemos e os vinte
comos que o pai tinha trocado na Baixa. Só podíamos que nos atendeu no aeroporto que a máe mentiu pela
trazer cinco cantos por pessoa, o tio Zé aconselhou primeira vez, o meu marido teve de ficar lá a tratar
de uns assuntos. A partir daí nunca mais deixou de
mentir, mentiu ao taxista que nos levou ao IARN, as
a máe a trazer os cinco cantos do pai escondidos na

funcionárias do IARN, a diretora do hotel, a familia


roupa, foi até o tio Zé que lhos escondeu, que a máe
náo conseguía fazer nada. Tres malas e vinte cantos
é tudo o que ternos até resolvermos a vida. Resol­ que jantou na mesa ao lado da nossa, o meu marido
ver a vida é o que mais se ouve entre os retornados tcve de ficar a tratar de uns assuntos e virá o mais de­
mas sem o pai náo ternos ideia de como isso se faz. pressa que puder, diz com tanta verdade que nem os
O pai sabe ganhar dinheiro, quando tinha sete anos olhos hesitam.
comes:ou a ajudar nas estradas e nunca mais parou, A máe faz bem em mentir, levaram o pai como
estradas que ligavam os montes no norte da metrópo­ podiam ter levado outro qualquer mas ninguém ia
le, estradas mais difíceis de fazer do que a estrada da acreditar nisso. Quando se fala· de um branco pre­
Serra de Leba. A diretora do hotel náo disse resolver so ou assassinado, há logo quem diga, algu ma coisa
a vida, disse arranjar uma solU<;áo, como se fosse um <leve ter feito, eles só se vingam de quem os mal­
problema das aulas de matemática. As pessoas ricas tratou, nunca se meteram comigo nem com a mi­
dizem as coisas de maneira diferente e cheiram a per­ nha familia, eles sabem quem os tratava bem. O pai
fumes que se colam a quem náo cheira a nada como nao sabe nada do carniceiro do Grafanil e sempre
nós. O escritório da diretora é grande e bonito como tratou bem os pretos. O pai nao é capaz de matar
<leve ser tudo na metrópole. mulheres e crianc;as mesmo que sejam pretas, náo
Quando nos recusaram o dinheiro de lá tive é capaz de deitar fogo a cubatas nem fazer explodir
medo que a máe comec;asse com as suas fitas, nunca um carniáo carregado de contratados. O pai quería
se sabe o que a máe pode fazer, as máos tremian1-il1 e e deitar fogo a nossa casa e aos carnióes mas isso era
os olhos piscavam como se estivessem avariados mas diferente, era só para eles náo se ficarem a rir. Até o
a única coisa que a máe fez foi chorar baixinho. Nin­ tio Zé, que nunca se deu bem com o pai, achou que
guém estranhou, havia muitas mullieres a chorar e a a acusac;áo náo podia ser verdadeira, o pai fica sem
gritar agarradas as malas e aos filhos, o choro da máe fólego se tem de dar urna corrida para se abrigar

.1
So DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 81

da chuva, o carniceiro do Grafanil náo pode ser um certeza que a Pirata pensava CJUe estávarnos a brincar
homem táo velho e táo pesado. Ainda gue rivesse com ela porque nao parava de correr. Correu o mais
vontade e coragem para ser o carniceiro do Gra­ que póde mas o tio Zé conduzia táo depressa. A Pi­
fanil, o pai nao rem idade nem saúde, se o tio Zé rata foi ficando para trás, cada vez mais para trás, até
conseguiu ver isso todos conseguem. Por isso náo é ser um ponto branca na avenida, um ponto branca,
mentira nenhuma dizer que o pai ficou a tratar de pequenino, pequenino, pequenino. No aviáo a minha
uns assuntos. E já o devem ter libertado, de certeza irmá disse, acabárnos por trazer menos coisas do gue
que já o libertaram. podíamos, tanta coisa para trazer e nem as malas en­
Mas nem guando estarnos sozinhos falamos so­ chemos. Virou a cara para a janelinha do aviáo e ficou
bre o que aconteceu ao pai. A mác e a minha irmá nao a ver um céu azul sempre igual.
viram o pai a ser levado, náo viran1 as minhas pernas A minha irmá e a máe também náo devem con­
a dobrarem-se, julguei que estavam a espreitar atra­ seguir adormecer, estáo sempre a mexer-se, o néon a
vés da persiana mas tinham-se escondido debaixo da acender e a apagar também nao as <leve dci,'Car ador­
cama com medo e só saíram de lá quando ouviram os mecer. Nao consigo parar de pensar que se náo tives­
meus gritos. O tío Zé e o Nhé Nhé chegaram pouco se come�ado a ver rudo branco eles nao tinharn leva­
depois de terem levado o pai, fechem as malas, de­ do o pai, vamos para casa, rapaz, se cu tivessc andado,
pressa, ternos de ir para o aeroporto, náo podcm ficar mas náo andei e os pretos levaram o pai. O jipe desa­
aqui nem mais um minuto. O tio Zé tinha razao, os pareceu depois da casa da Editinha, a pocira demo­
soldados podiam volcar para nos levarem. E os pretos rou a assen car, a poeira depois de tudo, a máe tornbou
que tinharn ocupado as casas dos vizinhos podiam os vasos das escadas tal a pressa com que as desceu,
querer vingar-se se se convencessem de que estavam a m.áe a correr por dentro da poeira que náo assenta,
ali familiares do ca.miceiro do Grafanil. Fechárnos as a minha irmá sem conseguir descer as esca.das, sem
malas a pressa sem saber 6cm o que fazíamos, nao consegu ir acreditar, 1evaram o pai, a máe de bra�os
conseguíamos pensar e obedecíamos ao cío Zé que caídos no fim da rua, os precos que ocuparam a casa
nao se calava, depressa, despachem-se, náo há tempo da D. Gilda na varanda a falarern uns com os outros,
a perder. A.Pirata ladrava como nunca a tinha ouvido, as folhas da bananeira da D. Alda a abanarem ligeira­
uns latidos táo a.flitivos. mentc, calvez ainda por causa do vento que o jipe fez
.Me temo-nos no carro e o tio Zé arrancou. A Pi­ ao passar, a máe parada no fim da rua, sem gritar, sem
rara correu, correu, correu atrás do carro como se dizer nada. Corno é que se faz para volt:u- para casa.
fosscmos parar um pouco mais a frente para a dei­ Nunca hci de contar a máe nem a minha irmá
xarmos entrar. As vezes fa7.Íamos essa brincadeira, de das máos atadas do pai atrás das costas, ncm do
82 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 83

olhar afüto ao entrar para o jipe. Também náo lhes em nossa casa, o telefone sobre a mesinha da entrada
digo que tenho o isqueiro do pai comigo, encontrei­ a que a máe Jimpava o pó todos os dias, a mesinha com
-o caído ao pé do canteiro, o isqueiro Ron.son Vara­ os pés em ferro dourado por baixo do espelho com a
Rame que lhe oferecemos quando fez quarenta e nove moldura de madeira branca, um espelho bonito mas
anos. O pai deve te-lo deixado cair quando o levaram, náo como os que há neste hotel. A metrópole tem de
ou entáo deitou-o fora de propósito para náo lho rou­ ser toda como este hotel, o que hoje vimos antes de
barem e para que cu o guardasse. Vou guardá-lo, náo aqui chegar só pode ser um engano.
vou usar o isqueiro nem urna única vez, quero ver a A metrópole tem de ser como este hotel que até
cara do pai quando chegar e eu lho der, vai ficar orgu­ no elevador tem urna banqueta forrada a veludo. Por­
lhoso de mim. O pai vai gastar de fumar um cigarro tugal náo é um país pequen.o, era o que escava escrito
na varanda do quarto, de ver o mar, como eu ainda há no mapa da escala, Portugal náo é um país pequen.o,
pouco, depois de a mae ter feíto o telefonema. é um império do Minho a Timor. A metrópo]e náo
Náo devia ter deixado a mae telefonar, quem será pode ser como hoje a vimos no caminho que o táxi
o preto que atendeu o telefone lá de casa, náo devia ter fez, ninguém nos ia abrigar a cantar hinos aos sábados
deixado mas o telefone está na mesinha de cabeceira, de manhá se a metrópole fosse táo acanhada e suja,
que raiva o tio Zé nao ter telefone em casa, se tivesse com ruas táo estreitas onde parece que nem cabemos.
podíamos saber do pai. Também já náo podemos tele­ As nossas malas e os sacos também náo couberam no
fonar para os vizinhos, sei os números de cor, quanto porta-bagagens e o taxista teve de prende-los no teja­
tempo vou demorar a esquecer-me desees números dilho. Para o ta..xista os tempos náo sáo conturbados
que já nao servem para nada. A máe quis telefonar como para a diretora, sáo tempos bons, nem mais
para casa mas nao a devia ter deixado, o telefone :ficou um soldado para as colónias, nem mais um caixáo das
a tocar durante muito tempo, ninguém atendía mas a colónias, camaradas. O taxista tratava-nos por ca­
máe tornou a ligar, insistiu, insistiu até que um pre­ maradas e a máe meteu na cabec;:a que ele nos escava
to respondeu. A máe desligou assustada mas voltou a a enganar e que nos levava pelo caminho mais longo.
ligar lago de seguida, o preto disse que náo sabia de A máe náo pode saber, náo conhece nada de Lisboa,
Mário nenhum e perguntou quem falava. A máe pou­ só cá tinha estado um dia para embarcar no Vera Cruz.
sou o auscultador com fon;:a e ficámos calados sem As estradas tinham tantos buracos e táo grandes que
saber o que dizer. Pensámos mal, o pai nunca escaria as malas abanavam nas barras do carro, foi aí que a
em casa, se já o soltaram o pai está a tentar arranjar máe comec;:ou com a cisma de perde-las. O taxista cen­
bilhetes para vir ter connosco, ia estar em casa a fazer tava sossegá-la, explicava que as tinha atado bem mas
o que. E quem seria o preco que atendeu o telefone náo servia de nada, outro buraco e a máe recomec;:ava,
84 DULCE MAR[A CARDOSO O RETORKO 85

ai que as malas se váo perder. Se caírem há quem as fazer um piquenique na barragem. Um dia veríamos
apanhe que náo tem pernas, brincava o taxista, mas com os nossos próprios olhos aqueta obra grandiosa,
náo há nada que distraía a máe de uma cisma. desceríamos a sala das turbinas que fica cento e se­
Náo, a metrópolc náo pode ser como hoje a tenta e tres metros abaixo do solo. Ccnro e setenta
vimos. A prova de que Portugal náo é um país pe­ e tres metros, metade da Sears Tower mas dcbaixo
queno está no mapa que mostrava quanto o império da terra, por isso a barragem de Cambambe é urna
apanhava da Europa, um império táo grande como obra táo grande como o prédio mais alto do mundo.
daqui até a Rússia náo pode ter urna metrópole com Nunca fomos visitar a barragem de Cambambe,
ruas onde mal cabe um carro, náo pode ter pessoas o pai nunca teve um dia de férias e esta é a primeira
tristes e feias, ncm velhos desdentados nas janelas noite que dormimos num hotel. Náo é urn hotel qual­
táo sem serventia que nem para a morte tem inte­ quer, é um hotel de cinco estrelas com dois elevado­
rcsse. Lá os velhos tinham dentes posti1yos muito res e outros dois de servi1yo, porteiros fardados com
brancas e andavam de um lado para o outro com galóes dourados e corredores mais compridos do que
chapéu na cabe1ya e os fatos dos trópicos engoma­ os do liceu de lá. Corredores alcatifados onde parece
dos. Quando o pai via os velhos a comer marisco no que náo se anda no cháo e paredes forradas a papel,
Restinga dizia, aqui até os velhos fi.ntam a marte. embrulhadas como prendas, um sítio onde nunca se­
O pai sabia o que dizia, tinha ido para África para quer sonhámos estar. Deve ser por isso que náo gosto
fintar a pobreza, em África fintava-se tudo, a mar­ de estar aqui. Mesmo que o pai chegasse e pudésse­
te, a pobreza, o fria e até a maldade, dizia-nos o pai, mos ficar aqui para sempre ten.ha a certeza que con­
aqui há que sobre para tada a gente, nao precisamos tinuava a náo gastar de estar aqui. Se calhar tem de
de arrancar os olhos uns aos outros por causa de se sonhar com os lugares como a máe sonhava corn a
urna sardinha. A máe gosta de ouvir o pai, o vosso barragem de Cambambe para se poder gostar deles.
pai fala corno um doutor e faz contas de cabc1ya me­ Náo gasto de estar neste hotel. Odeio o prcto que
lhor do que um engenheiro, mesmo os das barra­ atendeu o telefone, o preto que está em nossa casa,
gens. Os cngenheiros que a máe mais admira sáo os odeio-o tanto que se o visse era capaz de o matar.
das barragL:ns, por causa da barragem de Cambam­ O taxista pediu a máe para se acalmar, a funcio­
be. IIavia sempre urna fotografia da barragem de n:íria do IARN também, ninguém tem culpa do que
Cambambe no calendáíio que a máe pendurava na se passou, estamos aquí para prestar ajuda mas se se
parede da cozin.ha e quando o pai prometía que um póe a gritar nao vamos a lado nenhum. Alguém tem
dia haveríamos de visitar a barragem a mae olhava de ter culpa, continuou a máe, alguém tem de ter. Por
para o calendário sonhadora, um dia haveríarnos de favor acalrne-se, náo adianta gritar, náo é aos gritos

'
86 DULCF, MARlA CARDOSO

que se resolvem as coisas, já viu a quantidade de gente


que há aquí, a senhora náo é a única com problemas.
A funcionária do IARN náo sabia pedir a máe para
se acalmar, a diretora do hotel sim, nunca cinha ou­
vido ninguém a falar como a diretora nem visto um
assim, com tantas voltas nos móveis e cantos candeei­
ros com vieira rendado. No IARN as secretárias eram
velhas e sujas e as cadeiras onde os retornados se
sentavam quando chegava a sua vez estavam descon­ A máe ainda tem a comida toda no prato. Quase
juntadas, tenho a certeza que nem aguentariam um .rl.. náo come desde que chegámos cá. É verdade
carpo pesado como o do pai. Estavam lá retornados que a comida do hotel é outra vez má, as batatas en­
de todos os cantos do império, o império estava ali, cruadas e a carne cheia de nervos, mas a máe podía
naquela sala, um império cansado, a precisar de casa fazer um esfor<;:o. Quando a minha irmá náo quería
e de comida, um império derrocado e humilhado, um comer o pai obrigava-a, náo ternos raízes no chao. Re­
império de que ninguém quería saber. pito as palavras que o pai costuma dizer e pe<;:o a máe
De repente a minha irmá diz, imitando a voz da que coma, náo ternos raízes no cháo, os comprimidos
diretora, tempos conturbados, sáo tempos conturba­ no estómago sem comida sáo piar do que ácido, as
dos. E ri-se como se tivesse contado urna boa anedo­ palavras do pai sem o pai no restaurante do hotel.
ta. Náo há nada por que nos rirmos mas se nos rirmos Falo baixo porque as mesas estáo quase coladas
náo estamos táo sozinhos. A maneira de a diretora urnas as outras. T iveram de acrescentar mesas por
falar náo dá vontade de rir, se náo estivésscmos nes­ causa das bichas que se fazem em todas as refei<;:óes,
ta situa<;:áo náo nos teríamos come<;:ado a rir. Tempos come¡;am logo de man.há para o macabicho e todos
conturbados. Náo conseguimos parar de nos rir, as reclamam do tempo que se tem de esperar em pé.
gargalhadas pegan1-se urnas as outras, rimo-nos, alto, O almo<;:o come<;:a a ser servido ao meio-dia e meia
mais alto, náo me lembro de nos termos rido tanto e e as onze já há gente a guardar vez, gente encostada
táo alto. Sáo tempos conturbados, se nos rirmos náo a parede a falar das coisas de lá, a minha casa isto a
estamos táo sozinhos e talvez consigamos adormecer. minha casa aquilo, deixei lá isto e aquilo, os tiros isto
os morteiros aquilo. Com a televisáo é a mesma coisa,
horas antes do início a sala enche-se de gente e mais
urna vez, a minha casa isto a minha casa aquilo, dei­
xei lá isto e aquilo, os tiros isto os morteiros aquilo.
83 OuLCE MARIA CARDOSO O RETORNO 89

Afinal a televisáo, o cinema em casa da metrópole de ausencia do pai em qualquer sítio mas a mesa é piar
que todos lá falavam é a preto e branco e pequenino, porque sabemos que estamos a pensar no pai e a sua
um reta.r.gulo que mal se ve e que se ouve mal, um ausencia ainda dói mais. Mas daqui a uns dias o tio Zé
som roufenho como o do rádio do pai quando as pi­ já <leve ter recebido a carta da máe e diz ao pai onde
lhas comec;:avam a ficar fracas. E náo dá nada de jeito, estamos, daqui a uns dias o pai chega. Posso mandar
só revolucionários sempre a dizer a mesma coisa da nos meus pensamentos porque náo tenho a cabec;:a
revoluc;:áo. fraca da máe nem os demónios a rondar-me. Posso
Há muita gente de Moc;:ambique aqui no hotel entreter a minha cabec;:a com o que quiser, quantas
mas os de Angola quase náo se dáo com os de Mo­ pessoas estáo neste hotel, um problema bem me­
c;:ambique. Os de .Mo<;:ambique tem a manía que lhor do que os da professora .Nlaria José nas cardes
viviam na Pérola do Índico e usam palavras em in­ de aritmética, tanques que se enchiam por um lado e
gles, chamarn boys aos miúdos pretos e dizem que se csvaziavam por outro, urna dor de cabec;:a que nao
moravam em flats, falam de monhés e de chinas. servia para nada quando há problemas que podem re­
A D. Suzete do 310 é moc;:ambicana e está sempre solver alguma coisa. Quancas pessoas esta.o nesre ho­
a fritar chamuc;:as no quarto, o corredor fica todo tel, a resposta certa é 336 pessoas, o hotel rem 6 pisos,
a cheirar a focos, a diretora qualquer dia expulsa­ cada piso 28 quartos, cada quarto _é ocupado por dua5
-a. .As vezes os de Angola e os de Mo<;:ambique pessoas. Um problema mais útil do que os problemas
desentendem-se acerca de qua! era a melhor colónia, dos tanques ou das laranjeiras que em cada ano dupli­
as ourras colónias quase náo contam. Quando o pai cavam a produc;:áo, um día enganei-me e as laranjeiras
chegar vai defender Angola táo bem que os de Mo­ passaram a dar metacles de laranjas em vez de laran­
c;:ambique nunca mais abrem a boca. Gosto de ouvir jas inteiras e a professora .Maria José, o menino já viu
os de Moc;:ambique falarem dos Dragóes da Morte, uma laranjeira dar meia laranja, e eu esforc;:ado sem
das machambas, do ataque ao pasto administrativo saber como me livrar da laranjeira que no meu ca­
de Chai, do hotel Palana. Nao consigo pcrceber por­ derno náo <lava laranjas inteiras. Mas este problema
que é que discutcm tanto qua! era a melhor colónia se sien, vale a pena. 336 pcssoas. Se conseguisse encender
já perdemos as duas. Quer dizcr, Angola ainda é nossa 5empre o que os problemas pedem e se me fosse dado
mas só até ao día n de novembro. canto tempo para os resolver quanco o que passamos
A máe brinca com o garfo, tem o olhar posto na na bicha a espera de mesa fazia sempre rudo certo,
cadcira vazia em frente dela. As mesas do restauran­ nem prccisava de lápis e papel. 1enho a certeza que
te tcm quatro lugares e a cada refeic;:ao o lugar vazio a resposta é 336 pessoas mas no hotel estáo 336 pcs­
lcmbra-nos que o pai ainda nao chegou. Sentimo5 a soas mais ou menos porque o piso dos hóspedes está

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90 DULCE MARIA CARüOSO O RETORNO 91

quase vazio mas nos outros pisos há mais do que duas ros que o pai náo comprava, para o ano que vem, dizia.
pessoas em muitos quartos. Pode nao parecer que 336 O Quintas & Irmáo náo tinha armários como os que
pessoas sáo muicas pessoas mas sáo, especialmente estáo encostados a parede, nem pratos como os que os
quando estao táo perta e todas a quererem almo�ar. enfeitam, só tinha visto pratos como estes nos livros
É fácil mandar nos nossos pensamentos mas náo de história, pratos com caravelas desenhadas em ma­
podemos mandar nos pensamentos dos outros e tenho res tumultuosos. Mas o mais bonito do restaurante é a
a certeza que a máe está a pensar, há pretos capazes de tape�aria que está na parede do fundo, uma tape�aria
tuda, eles nao sáo como nós, há histórias de brancas com índios e marinheiros a assistirem a primeira missa
que foram apanhados pelos pretos e, os olhos da máe do Brasil, é o que está escrito na parte de baixo com le­
muito abertos, quase podemos ver o carpo grande do tra do tempo dos reís, a pri.rneira missa do Brasil, urna
pai a sobrar na cadeira, o carpo grande do pai sempre tape\'.aria como nem as igrejas lá tinham.
sobrou em todo o lado. As vezes é piar quando náo Náo há comida como a minha, diz a máe. A máe
os matam. O pai está sentado mas náo nesta cadeira. nunca gostou de comida que náo tivesse sido feita
As vezes é pior quando náo os matam. Deve ser por por ela. Mesmo quando aos domingos íamos almo­
isso que a máe náo come, deve ser por isso que olha \'.ar ao Vtlela a máe, náo há comida como a minha,
para mim e para a minha irmá como se náo compreen­ os olhos debaixo do pó azul e os lábios cor-de-rosa,
desse a nossa fome ou o que é que o pai pode estar a náo há comida como a minha. Nao era verdade mas o
fazer muna cadeira que náo é a cadei.ra em frente dela. pai náo deixava que disséssemos a máe que a comida
Estou a inventar, tenho de estar a inventar, ultimamen­ dela era má, por isso nem eu nem a minha irmá a des­
te náo fa�o outra coisa. Deve ser por estar neste hotel mentíamos. O pai náo está cá mas continuarnos sem
que tem tantos quartos e corredores, que tem este res­ desmentí-la, o lugar vazio faz as vezes do pai. O lugar
taurante com janelas enormes viradas para o mar onde está vazio mas o pai vaí chegar, se o pai nao estivesse
já se fez o copo d'água do casamento de uma princesa, para chegar náo estavam ali os talheres, o prato e o
urna princesa a sério. Um hotel táo bonito como só a copo. O paí vai chegar a qualquer momento, vai dí­
metrópole podía ter, o candeeiro do restaurante é ain­ zer que está calor, que o veráo da metrópole é qua­
- 1
da mais bonito do que o do escritório da diretora, um se táo quente como o de lá, vai sentar-se e pedir um
candeeiro no centro do teto com centenas de pingos canhangulo. Os empregados náo nos querem cá e
de viclro, quando viemos ao restaurante pela primeira náo gostam de nos servir. Acreditam que os pretos
vez a minha irmá disse, brilha tanto que parece um sol. nos puseram de lá para fora porque os explorámos,
A máe que ria tanto um candeeiro de teto para a sala, perdemos tuda mas a culpa foí nossa e náo merece­
passava tardes no Quintas & lrmáo a escolher candeei- mos estar aquí num hotel de cinco estrelas a sermos
92 DULCF. M,\RIA CARDOSO O RETORNO 93

servidos como éramos lá. Os empregados preferem Hoje há um hóspede, deve ser um estrangeiro
servir os pretos que nem nos calheres sabem pegar a que veio ver a revolui;:áo. Um estrangeiro como os
servir-nos a nós, acham que os pretos sao vícimas que que trabalhavam nos navíos que atracavam no por­
ao fi.rn de cinco séculas de opressáo ainda tiveram de to, os navíos de onde o pai nos trazia as surpresas, te­
fugir da guerra. Deem-lhes de comer como nús de­ nho urna surpresa, o pa.i com as máos atrás das costas
mos, sirvam-nos e um día váo ver, guando eles se re­ mas sem estarem amarradas como quando os pretos
voltarem e quando lhes fizerem o que nos fizeram a o levaram. Tenho urna surpresa, era táo bom correr
nós, batem-lhes a porta e levam-nos de maos aradas, para o pai nessas alturas, o pa.i trazia bonecas de Las
váo levá-los e eu vou rir-me. Os de cá podem dizer o Palmas para a minha irrná, bonecas que tinham urn
que quiserem que náo vao mudar a minha opiniao, disco na barriga, mamá, papá, yo soy una chica muy
os pretos nao prestam. Também se riam para nós guapa, e para mim trazia-me carros a pilhas. Duran­
até terem urna catana na máo, os de cá ainda váo te uns días, no bairro, de.ixávamos de ser os filhos da
arrepender-se mas já vai ser tarde demais. E eu nao D. Glória que tinha aqueles problemas e passáva.mos a
vou ter pena nenhuma. ser os que tinham bri.nqucdos do escrangeiro, durante
l\tfas quem os empregados gostam mesmo de uns días éramos os miúdos ma.is importantes do ba.ir­
servir sao os hóspedes, os hóspedes normais, quando ro, pelo menos eu era. Acho que a m.inha irmá nunca
os há. Hóspedes que nao se misruram connosco, hós­ soubc tirar partido das bonecas que falavam mas eu
pedes sentados nas mesas que lhes estáo reservadas sabia tirar partido de tuda o que o pai me trazia, os
e onde náo nos podemos sentar, ordens da direto­ ourros miúdos, deixa-mc brincar, só urn bocadinho,
ra, mesas ao pé da janela, postas com vários copos e náo podía deixar que se fartassem, era esse o segredo,
um sem-fim <le talhercs. Os cmpregados parece que só um bocadinho, os miúdos as vezes chateavam-sc,
voam quando os hóspedes os chamam, acé rnetem vou pedir ao mcu pai que me compre um igual, mas
nojo com as suas bandejas e os seus fatos de pinguins, havia scmpre a resposta mágica, veio do estrangeiro,
um sorriso exagerado como os dos bonecos anima­ n5o está a venda em lado nen hum.
dos. Nao há muitos hóspedes normais, devcm ter O pai. tarn.bém rrazia a máe perfumes franceses e
medo de vir para hocéis ocupados com retornados, caixas de pessegos da África do Sul, pessegos rosados
para um país cheio de revolucionários. Quase todos dcitados em palhinhas com que a rninha irmá fazia as
os dias há maca mas os hóspedes estáo protegidos, camas das bonecas, can1as a cheirar a pessegos. Nao
a cliretora diz, é proibido o acesso ao piso reservado havia vizinha que nao invcjasse a máe quando recebia
aos hóspedes, é proibida a ocupai;:áo das mesas dos os perfumes franceses e os pesscgos da África de Su!.
hóspedes, é proibido incomodar os hóspcdes. Os outros maridos do bairro nao traziam coisas do
94 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 95

trabalho ou traziam porcarias como o da D. Alzira, dia o pai aparece no hotel e vai tomar coma de nós
que interesse pode ter tantos cinzeiros com o emble­ outra vez, o pai nao vai deixar que me aconte<;a o que
ma da Cuca ou os restos de fazendas que o marido aconteceu ao Hilário, que a mae fique como a D. Eu­
da D. Gilda que trabalhava na Gajajeira trazia, nem génia, o pai sabe que a máe já tem a cabe<;a fraca e
para panos de cozinha davam, era o mesmo que nao que nao se deixa tratar, nada nem ninguém consegue
trazerem nada. O pai trazia coisas boas dos navíos tratar a cabec;a da mae e muico menos tratar as outras
estra.ngeiros, levava os camióes carregados de café e coisas. Caixas de comprimidos deitadas para o lixo,
trazia-nos coisas táo boas que a mae deixava de ser tiram-me o sano, enjoarn-me, dáo-me tonturas, até
a D. Glória que tinha problemas e passava a ser a o senhor Antunes da farmácia tinha pena, custa-me
D. Glória que tinha os seus problemas, o que era ver tanto dinheiro deitado a rua, o senhor Antunes
completamente diferente de ter problemas, toda da farmácia cambém <leve ter vindo para a metrópo­
a gente tem os seus problemas, mesmo as vizinhas. le, uro dia <lestes entramos numa farmácia e damos
A m.ae mostrava os perfumes franceses e as vizinhas, de caras com o Sr. Antunes com a bata branca e os
tem de pór só urnas gotinhas de cada vez, a mae náo óculos pendurados na corrente de prata a dizer como
as ouvia e encharca.va-se com o perfume frances, lá, isso é tudo nervos, as doenc;as dos nervos sao as
um cheira táo force que nos <lava tosse e nos punha mais ruins de curar.
tontos, ainda bem que os perfumes franceses eram A máe pausa o garfa dando a refeic;áo por termi­
pequeninos e se gastavam depressa. O pior era que nada. Dantes o saco dos comprimidos estava sempre
quando a mae voltava a cheirar a água-de-colónia na bancada da cozinha e antes de cada refeic;áo a máe
Si Fraiche como codas as vizinhas passava a ser ou­ tinha o hábito de ordenar cuidadosamente aqueles
tra vez a D. Glória que tinha problemas ou mesmo a que ia tomar. Agora já náo há nada, nem saco, nem
D. Glória que tinha aqueles problemas. bancada, nem cozinha e a máe faz o que lhe apetece.
Quando os tiros comec;aram o pai já quase náo Como as mesas estáo muito juntas urnas as outras,
trazia surpresas dos navíos mas quando o pai che­ baixo a voz e pergunto a máe pelos comprimidos,
ga.r vai voltar tudo ao que era dantes, um dia <lestes aquí náo preciso de comprimidos, diz a máe sem
o pai aparece aqui no hotel cheio de prendas como bai.,xar a voz, aquela era urna cerra abeni;:oada mas
no día em que trouxe o Rato Mickey que danc;ava e náo para mim que fiz o meu carpo aquí. A máe con­
os walkie talkies americanos. O Gegé e o Lee tam­ tinua a ter duas terras, a metrópole onde nasceu e
bém tinham walkie talkies mas os meus eram para onde está protegida de tudo, até das crises, e a terra
profissionais, os espiócs usavam walkie talkies como abenc;oada a qual o co.rpo nunca se habituou, um cli­
os meus. O pai sempre tomou conta de nós, qualquer ma muico forte para os carpos que náo se criaram lá.
96 01.i LCI-: MARIA CAR 00S0

A mác fala com o tom que usava com as ,·isitas, urna


terra abcnr;:oada, a mulher da mesa a nossa esquerda
aba.na a caber;:a concordante, dcixava-se cair um ca­

º
ror;:o de manga na terra e no dia segui.nte crescia urna
rnangueira, e logo o marido, urna terra rica, café, al­
godáo, diamantes, petróleo. Os filhos deles calados
como cu e a minha irmá. Urna tcrra táo fana onde
nunca poderá haver fome, o homem da mesa que
fica a nossa direita, aquilo é gente que nao se sabe Mourita quer recuperar o que já lhc ganh ei
govcrnar, Yai haver fume e da que mata mais do que e propóe que subamos a aposta para dais e
os tiros, sem os brancos lá aqucles dcsgrar;:ados váo quinhcntos. Já cernos a pele das máos cngclhada
matar-se uns aos outros, o homcm da mesa da dircira, por termos passado a tarde dcnrro de água. Aceito.
qucm náo qucr urna boa máe dá-se-lhc urna ruim ma­ Colocamo-nos cm posir;:ao, as máos presas na borda
drasta. A máe sorri, só falta o pai a beber Ye: .i\ronks e da piscina, o Paulo, o irmáo do .ivlourica, conra, um,
podíamos estar a receber visitas, ainda que esca náo <lois, tres, dou balanc.:o, o peiro chcio de ar, nado para
seja a nossa casa, ainda que o cmpregado se aproxime baixo, cada vez mais para baixo, a água azul, qua­
de nós com má cara e diga, tem de vagar a mesa que a se qucnte, cenho de aguenrar mais tempo do que o
bicha chcga aos elevadores. E a máe sern perder a voz .Mourita, toco no fundo da piscina, o carpo do .Mou­
que tinha para as visitas, com certeza o meu marido rita ao meu lado, toco no fundo da piscina como a
náo demora. máe tocava no manco da nossa senhora na procissáo
do 13 de maio e per;:o que o pai volte dcpressa, que
responda as nossas carcas. Dcixo-me escar debai.xo de
água, se far preciso deixo-me sufocar para que pcrcc­
bas que nao estou a brincar. Scjas tu quem fores tens
de me ouvir, náo csrou a brincar, ccns de me ouvir e
fazer o que te pei;o, se o pai nao voltar ckpressa ou
se nao responder as cartas tcns de ce haver comigo.
O Mourita ainda está au meu lado, náo quer perder
mais dinheiro, náo pode saber que lhe ganho sccnprc
porque escou a apostar muiro mais do que: ele. O car­
po do Ñ1ourica eleva-se, já esr:í acima do meu, eswu
98 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 99

quase sem ar, a cabec;a quase a explodir, o Mourica vai ncm do tio Zé, tenho-lhe cl.ico que já nao <leve havcr lá
perder outra vez, sejas tu quem forcs rens de crazer o urn carreiro branca e que os precos náo sabem ler bem
pai de volta, o corac;áo parece que salta do pcito, se e dcvem estar sempre a enganar-se. Além disso há a
for preciso morro só para te provar que náo estou a guerra, o pai e o tío Zé só náo respondem as carcas que
brincar. lhes escrevemos porque náo as receberam, náo acon­
O Rui ganhou outra vez, diz o Paulo, desiluclido, teceu nada. A máe também escreveu aos familiares da
quase se zanga comigo, o meu irmáo costuma gaohar mctrópole que também a.inda náo responderam mas
sempre. Cosrumava, corrijo eu, acabou, agora sou eu para isso já náo tenho explicac;áo, aqui os carteiros náo
o rei da piscina. Guardo os dais e quinhentos, a tarde sao preros nem há guerra, pelo menos por enguanto.
já deu para uns mac;os de cigarros sem filtro. Náo há O Pacac;a diz que náo faltamuiro para uma guerra civil,
nenhuma cadeira vazia, deicamo-nos no chao ao sol, houve urna manifestac;áo enorme contra os comunas
trouxemos as coalhas do hocel, é proibido mas que se mas os comunas estáo a ganhar, fizeram barricadas a
lixe, a diretora que venha reclamar, sáo tempos contur­ entrada da cidade e tuda. A sala da televisáo está sem­
bados. A piscina está sempre cheia, ninguém no hotel pre cheia nas notícias, todos querem criticar o que os
rem nada para fazer e os clias de veráo da metrópole comunas andam a fazer, a reforma agrária, as naciona­
também sáo quentes. Só que é um calor diferente, náo lizac;óes, os comunas váo dar cabo de tudo, já deram
nos deixa o corpo em águ a, o tio Zé tinha razáo em cabo das colónias e agora váo dar cabo da metrópole,
queixar-se que lá a pele podia apodrecer com tanta hu­ diz o Pacac;a, mas que se lixe que o que cinha valor já se
midade, o calor da metrópole em vez de moll1ar-nos o perdeu. O Pacac;a é o porta-voz dos retornados e é o
carpo ananha-nos a garganta e os pulmóes. recornado mais retornado do hotel, nasceu em Angola
Veem-se as palmeiras do jardim do hotel e o ar mas vivia em Moc;ambique e por isso odeia em igual
sabe ao sal do mar que está do oucro lado da estrada. medida o Rosa Coutinho que deu Angola aos pretos e
Se em vez do Mourita e do Paulo fossem o Gegé e o o Almeida Sancos que fez o mesmo em Moc;ambique.
Lee que estivessem comigo, era urna tarde quasc como O Pacac;a nunca diz esces dais nomes sem acrescentar,
as tardes em que íamos a piscina de Alvalade. Também vis traidores ou coisa piar, e se está na rua cospe para o
fazíamos apostas, quem demorar menos tempo a ir chao em sinal de desprezo.
buscar a argola do cacifo ao fundo da piscina paga os Mas a cabec;a fraca da máe é cl.iñcil de convencer e
pregos no Pólo orte. A piscina deAJvalade já deve ter quis enviar outra carta ao pai. A minha irmá armou-se
fechado. A Nun'Álvares também. Já deve estar rudo em boazinha, vou coro a máe ao correio para füe fazer
fechado, o cinema Avis, o Restinga, rudo. A máe náo companhia, como se eu náo soubesse a verdadeira ra­
devia estar táo preocupada por náo ter nocícias do pai záo, como se náo soubesse que foi mandar urna carta
LOO UULCE MARIA CARDOSO O RETORNO IOI

ao Roberto.Tem a manía que é esperta e pensa que náo do hotel ta..'llbém se fartam de olha.r, enráo quando a
sci que o Roberto lhe deu a morada dos avós, pensa que minha irmá está na piscina náo tiram os olhos dela,
acredito que está a escrever ao pai, horas e horas a es­ <leve ser do biquíni vermelho e do cabelo louro. Há
crever cartas ao pai, ninguém tem tanto que dizer a um quem náo acredite que o cabelo da minha irmá náo é
pai, e logo a minha irmá que tinha tantas queixas, náo pintado, ainda bcm que o meu cabelo é bem mais es­
me deixa sair com os meus amigos, náo me dá dinhei­ curo, ainda bem que o sangue dos celtas sabe que só as
ro para o vestido que vi na boutique dos Combatentes, raparigas é que podem ter o cabelo táo louro. Náo sei
náo me compra um gira-discos melhor. Aminha irmá se a máe ai nda se lembra da história dos celtas, quando
envergon.hava-se do nosso gira-discos que veio com o as pessoas se espantavam por sermos táo lauros a máe
curso de ingles dentro de urna malinha. O preto que dizia logo, é por causa dos celtas. Os celtas tinham an­
atendeu o telefonc de casa já deve Ler perccbido que a dado na aldeia da máe e do pai aqui na metrópole antes
malinha é um gira-discos, já deve ter ouvido os nossos dos romanos e se alguém se punha a desconfiar, isso já
discos codos, até os do Roberto Carlos que eram da foi há tantos séculas, já nem uma gota de sangue devc
máe e em que ninguém podía me:x:er, já deve ter des­ restar deles, a máe zangava-se, o nosso cabelo lauro e
coberto que o La décadanse está riscado mas nao <leve os nossos olhos azuis vinham dos celtas e ninguém po­
saber que tcm de levantar a agulha, os pretos só sabem día duvidar disso. Amáe náo fala dos celtas há muito
acusar inocentes como o pai. A máe já telefonou outra tempo mas náo se deve ter esquecido. As vezes a mi­
vez para casa mas o telefone já nem tocou, devem te-lo nha irmá fecha-se na casa de banho e ow;o-a sól0<;:ar
partido, ou náo pagaram a conta, ou os telefones já náo dtu-ante horas, sai com os olhos vermelhos e. o nariz
funcionam lá. Os telefoncs do Gegé e do Lee também numa bola, dizque tem saudades do pai, que quer vol­
nao dáo sinal, nem o da D. Gilda, os números já náo ser­ tar para a nossa vida lá, para a nossa vida de antes de os
vem para nada, as vezes dá-me vontade de parcir o tele­ ti.ros terem come<;ado. Aminha irmá pensa que náo sei
fone que está na mesinha de cabeceira ou pelo menos que também chora por causa do Roberto.
arrancar-fue o disco redondo com os números. Vamos bazar, vamos ver os comboios, diz o Paulo,
A minJ1a irmá deve estar a pensar que quanclo o que nunca consegue ficar muito tempo no mesmo
Roberto receber a carta vem a correr visitá-la, as ra­ sítio. A metrópole tcm comboios diferentes dos de
parigas sáo táo parvas. O Roberto gostava da Lena In­ lá, comboios onde as pcssoas váo todos os días para
diana mas a minha irmá andava sempre atrás dele, até os cmpregos. Lá náo havia destes comboios, só os de
mctia r::úva, a minha irmá podía ter os namorados que carga onde os pretos iarn pendurados nas portas dos
guisesse mas deve ter metido na cabe(,'.a que só quería vagóes. Gastamos de ir ver os comboios e de armar
o Roberto. Os rapazes de lá goscavam dela, os rapazes estrilho. Os de cá ficam furiosos connosco mas náo
T02 DULCE MAR[A CARDOSO o RETORNO ro3

queremos saber, de qualquer maneira os de cá náo quando está a enrolar cigarros e demora a üngua pas­
gostam de nós. Também é bom sair do hotel. Um ho­ tosa na mortalha, o cachucho de ouro com o brasáo
tel táo gr an de torna-se pequeno com tanta gente sem do Brasil apertado no dedo mindinho, nessa figura o
nada para fazer a náo ser andar de um lado para o ou­ Sr. Acácio fica mesmo nojento. A máe do Mourita e
tro. Já conhec;o o hotel de trás para a frente e já co­ do Paulo, a D. Ester, costurna estar na sala de conví­
nhec;o toda a gente. vio a fazer croché com as pernas inchadas em cima de
O Mourita e o Paulo estáo no 437 com a máe, urna b anqueta, estas pernas apanharam lá tanto calor
o pai e a avó que se chama D. Cremilde, a avó tem que ficaram assim, nunca mais váo ao lugar, é como se
uns olhos táo fundos que parece que já nos veem do tivessem perdido a forma, quei.."Xa-se a D. Ester, como
outro mundo. Os quartos do quarto piso sáo maio­ se as pernas inchadas fossem o seu único problema,
res do que o nosso mas náo deixa de ser muita gen­ como se náo tivesse perdido tuda lá, como se o mari­
te para um quarto, o Mourita conta que a avó passa do náo estivesse sempre a olhar para as mulheres.
as noites a rezar para que a guerra lá acabe, o pai do O Mourita convidou o Ngola e a Rute para irem
Mourita, o Sr. Acácio, ameac;a que a póe na rna mas a connosco ver os comboios, é mais giro quando o gru­
avó continua a bichanar ave-marias pela noite fora e po é maior, podemos gozar mais com os de cá. Guardo
nao os deixa dormir. O Sr. Acácio pertence ao grupo o dinheiro que ganhei ao lado do isqueiro do pai, um
da sueca do Pacac;a e ao piquete dos contentares, está bolso secreto que a máe mandou a modista de lá fazer
sempre a organizar manifestac;óes, plenários e protes­ nas La Finesse, assim nunca perdes nada. A Rute pede
tos contra os revolucionários e contra os comunas ' a máe que a deixe vir connosco, a D. Rosa diz, só vais se
sem esquecer o Bochechas que nos vendeu, o nosso fer outra rapariga, parece mal urna menina ir sozinha
maior inimigo. Mas do que o Sr. Acácio gasta mais é com tantos rapazes. Invento urna mentira, a minha
de olhar para as mullieres, nao há um rabo nem um irmá está a nossa espera, a D. Rosa satisfeita, o pescoc;o
decote que lhe escapem, aposto que já andou a olhar de peru para cima e para baixo, assim está bem, e vira­
para a minha irmá e para a máe, prefuo nao saber, que -se para o Pacac;a para continuar a conversa, a nossa
se o apaoho há maca feia. O Mourita e o Paulo riem-se desgrac;a foi a sorce dé muitos, veja o caso da diretora
de o Sr. Acácio olhar assim para as mullieres, tem or­ que bem enche a mula a nossa cusca. Náo gasto muico
gulho, o nosso velho náo pode ver urna vassoura com da Rute mas já a apanhei várias vezes a olhar para m.im,
saias sem a galar, ainda náo se esqueceu do que é bom, acho que a Rute me grama, deve ser por isso que se es­
está velho mas náo está morto, no encanto devem ter forc;a tanto para ser amiga da minha irmá, está sempre,
um bocado de vergooha quando o Sr. Acácio para os ó Milucha isto ó Milucha aquilo, mas a minha irmá
olhos de réptil no rabo das mullieres, especialmente náo lhe liga, também a deve achar urna chata com o
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sonho que tinha de ser Miss Angola ..Mesmo que tivés­ liccu, só nao nos conhecemos por acaso. O Mourita e
semos ficado lá, nao acredito que a Rute conseguisse o Paulo também viram a Emmanuelle com bi.nóculos
ser Miss Angola, a Rute está bonita na fotografia que de casa de um amigo, a Emmanuelle e oucros filmes
lhe tiraram quando ganhou o concurso de Miss Sam­ que eram proibidos a menores, até viram aquele filme
ba mas nao é bonita que chcgue para ser Miss a sério Helga qualquer coisa, eu e o Gegé nao conseguimos
como a R iquita. Dcixei lá o meu poster da Riquita, ver esse mas o Lec viu e disse que era urna gaja a ter um
tanto cuidado a dobrá-lo e nao o trouxe, se o cio Zé fi.lho, nada de especial. O Mourita e o Paulo tinham
nao se tivesse poseo aos gritos nunca me teria esque­ urna mini Honda, o Sr. Acácio nao aprenden o livro
cido do poster da R..iquita. Tinha uro autógrafo e tuda. da vida do pai, se há de um pai chorar mais tarde que
A Rute nao se importava de ser NGss Portugal mas chore agora o filho. Se o pai náo tivesse essas manias
também náo pode, os revolucionários acabaram com eu também tinha tido urna mota, por isso nao tem mal
os concursos das Misses e as mulheres tém de queimar dizer que tinha. Só tenho medo que a minha irmá me
os sucias e de ir deitar panelas fora nas manifesta<;óes desm.i.nta, mas a minha irma nunca fala com os meus
para nao serem acusadas de reacionárias. A Rute gos­ amigos, sao uns estúpidos, sejam quais forem os meus
tava de viver na América, naAmérica as mulheres tam­ amigos a opiniao da minha irmá é sempre a mesma,
bém queimam sutiás mas continua a haver concursos uns estúpidos e uns besugos.
de Misses, ninguérn manda em ninguém. Se a metró­ Náo sabia que os días podiám ser tao compridos
pole seguisse a América em vez da Uniáo Soviética a como os días de aqui sao, o sol fica tempos e tempos a
Rute podia ser Miss Portugal. ameac;ar que se vai embora e náo vai. Se lá os dias fos­
Tcnho andado com o Mourita, o Paulo e o Ngola sem assim teria dado jeito, eu, o Gegé e o Lec podía­
mas nenhum deles é como o Gegé e o Lee, enráo o mos ter ido nas bicicletas ver as raparigas ao bairro
Ngola nem pensar, o Ngola é mulaco e está scmpre a novo mesmo quando saía.rnos das aulas as seis e meia.
armar-se, os mistos tém o melhor das duas ra<;as, basta E a Paula tinha tido menos dcsculpas, os meus pais só
compararum rafeiro e um cáo puro.A Pirata era rafei­ me deixam ficar na rua enqu;-i.nto for día, tinha sem­
ra mas nao pcrcebcu que nao era para correr atrás do pre de anoitecer quando a Paula esrava quase quase a
carro quando nos viemos embora, nao percebcu que deixar-mc desapertar-lhe o sutiá, horas a dar-lhe bei­
náo estávamos a brincar. Se calhar eles solcaram logo jos de língua para a Paula deixar-me abrir-lhe o sucia e
o pai e o pai enconrrou a Pirata na Avenida e tem-na nada. A Paula tinha a mesma vozinha sonsa da minha
com ele. O 1fourita e o Paulo podiam ter sido meus irmá, já é de naire, renho de ir para casa para nao ficar
amigos lá, chegá.mos a conclusáo que fazíamos as mes­ de castigo, devia ter a mania que era a Cinderela ou
mas coisas e até andámos durante uns anos no mesmo lá quem é que morre quando fica noite, a minha irma
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gostava dessas hiscórias mas eu náo. O preto que aten­ cereja. Ainda náo vi nenhuma que fosse linda como as
deu o telefone já deve ter visco os nossos livros rodos, das focografias mas tem de haver, nao as inventaram só
até as fotonovelas de luxo da minha irmá. A Paula tam­ para a focografia. Podia ir a praia, há raparigas bonitas
bém goscava de fotonovelas, as vezcs pedía-me para eu na praia, mas a água da metrópole é táo fria que nem
ir a papelaria do Sr. Manuel buscar as que tinham saí­ consigo mergulhar, parece que os ossos estaJam. Nem
do, eu nunca qucria ir, já sabia que o Sr. Manuel, emao os que escavam habituados a este mar anees de terem
agora andas a ler fotonovelas. Nao podia explicar ao ido para lá conseguem tomar banho, o ladráo do carpo
Sr. Manuel os beijos de líogua que a Paula me dava para habitua-se ao que é bom e agora só quer é água queme,
pagar os favores que me pedia, as vezes aré penso que a disse o Faria no único dia que fomos a praia, os lábios
Paula pedia esses favores só para ter pretexro para dar e as pontas dos dedos arroxeados, o ladráo do corpo já
aqueles beijos, a Paula com a Lfogu a as voleas na minha se esqueceu desee gelo.
boca, quase ficava tonto, ou encáo a puxar-me a língua Quando come<;arem as aulas deve ser fácil co­
como se ma quisesse arrancar, a Paula náo tinha jeito nhecer as raparigas bonitas da mecrópole, no liceu
para dar chochos, foi o que o Gegé e o Lee disseram <leve haver muitas. Lá, nunca quería que as aulas co­
quando lhes expliquei os beijos da Paula, urna rapari­ me<;assem mas aqui conto os días para ir para o liceu.
ga que desse voltas com a língu a ou que nos plucasse Se houver urna guerra civil espero que seja só depois
a língua nao sabia dar chochos. AFortunata náo dava de as aulas terem come<;ado. Também espero que as
beijos. Nem sequer o cigarro apagava. Se calhar a Paula greves e as manifesta<;óes que rodos os dias os de cá
está num desees hocéis e qualquer dia vejo-a no jardim fazem náo impe<;am as aulas de come<;ar. Sáo tempos
do Casino, se caJhar aqui na metrópole a Paula já náo conturbados. A diretora anda sempre acarefada de
tem a vozinha sonsa e já aprendeu a dar beijos como um lado para o outro no hotel, o Paca<;a diz que a di­
a Anita. O Gegé dizia, pode ser uma galdéria mas dá rerora anda com cara de traseiras de tribunal mas que
beijos que nos levam ao céu, das coisas de que me ar­ faz bom dinheiro a nossa custa e que ainda vai fazer
rependo mais é de náo ter dado um beijo a Anita, náo mais agora que deu o andar dos hóspedcs as famílias
sei o que andei a fazer atrás da Paula se agora nem sau­ que se amontoam no aeroporto, a diretora chegou
dades dela tenho. Tenho mais saudades da Fortunaca a conclusáo de que náo há hóspedes e de que o an­
do que da Paula. Nunca pensei que ia ter saudades da dar vazio está a dar-lhe prejuízo, a diretora diz que
Fortunata que goscava canco de fazer porcarias com náo é por causa do prejuízo, que é para ajudar-nos,
os rapazes brancos, era a Fortunata sempre a aviar, deve ser por isso que nos póe aos quatro e cinco num
como o Lee dizia. Mas o que quero agora é conhecer mesmo quarto e nos dá fruta podre de sobremesa.
as raparigas da metrópole, as raparigas dos brincos de Quando come<;arem as aulas vou conhecer raparigas
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da metrópole. Espero que o sexto ano de ciencias dos os hotéis aquí a volta tem retomados e o jardim do
náo seja difícil, a minha irmá náo sabe se é, no ano Casi.no é um bom sítio para passa.r o tempo. A maior
passado quase náo tivemos aulas e para além disso es­ parte das vezes náo se consegue encontrar um banco
colhcu letras, como quase todas as raparigas fazem. livre e é proibido scntarrno-nos na relva, na metrópole
A minha irmá vai acabar o liceu este ano e quer ser tuda o que é bom é proibido, até a Coca-Cola, os de cá
secretária. Pelo menos era o que dizia lá. até tern razao para serern tao embirrentos.
Tentamos atravessar o maior número de carrua­ Se o Tozé Cenoura nao tivesse vindo ter connosco,
gens antes de o comboio arrancar, tem de ser car­ os cabróes de merda da metrópole náo tinham apalpa­
ruagens de segunda porque as de primeira váo quase do a Rute. O Tozé Cenoura anda sempre pela esta<;áo
vazias e náo tem piada, mas ao fi.m da tarde as carrua­ a apanhar os bilhetes que náo fora.m picados, traz miú­
gcns de segunda estáo cheias como um ovo e para pas­ dos do hotel com ele e dá-lhes ordens em quimbundo
sannos de urna carruagcm para a outra cernos de dar para os de cá saberem que é retornado. Nao é preciso
cada grito e empurráo que os de cá até salta.m, ternos nada disso porque basta olhar para as roupas que tem,
de sair, ternos de sa.ir. O que é bom é sair quando o os de cá nao mandam ba.nga como nós e tem a pele
comboio comec;:a a andar. Fizemos mal em ter trazido branca como o leite ou ci.nzenta-esverdeada, urna pele
a Rute, as raparigas náo conseguem correr nem dar co­ de cor estragada. Os de cá sao gente esquisita que nos
toveladas para afastar as pessoas, nem saltar quando o topa a légua. Acho que o Tozé Cenoura fala qui.mbun­
comboio já está a andar. Ainda por cima a Rute está do só para se armar, dcve pensar que falar quimbun­
sempre com aqueles risinhos e a falar comigo, se náo do é como falar ingles. Além do negócio dos bilhetes,
me ponho a pau gasta-me o nomc, ó Rui, olha como o o Tozé Cenoura rambém vende enciclopédias porta a
mar está bonito, ó Rui, náo queres i.r até ao Casi.no, até porta com um fato que foi buscar a arca dos pobres da
enjoa. Gasto de ficar a olhar para o mar enguanto es­ igreja, fica parecido com o Charlot mas nao se impor­
peramos pelos comboios mas gasto de estar em silen­ ta. O Tozé Cenoura mostrou-nos os bilhetes que ti.nha
cio. O mar da metrópole é rao azul como o mar era lá, apanhado, é fácil falsificar a data e depois é só vende­
um mar quase igual, talvez um bocado mais pequeno. -los por metade do prec;:o, no dia-a-dia náo dá muito
Com o mar a frente o resto <lo mundo fica mais peno, dinheiro porque ternos de contar com a boa vontade
parece que o Brasil ou a América estao lago ali, com o dos rugas e náo há muitos dispostos a comprar, mas
mar a frente o futuro pode ser como o do pai no Pátria quando há manifestac;:óes dos retornados ou distri­
há vinte e qua ero anos, pode ser o que se quiser. Quan­ bui<;áo da roupa isso sim já rende algu ma coisa, toda
do já nao consigo olhar mais para o mar viro as costas e a gente precisa de ir de comboio. Enquanto fa.lava,
fico a ver o jardim do Ca.sino cheio de retornados, co- o Tozé Cenoura náo tirava os olhos da Rute, parecía
110 OULCE MARIA CARDOSO O RETORKO Il!

um paváo com a cauda aberta. O Ngola fez algumas Quando o comboio entrou na esta<_;áo despe­
perguntas acerca do negócio dos bilhetes e depois dis­ dimo-nos a pressa do Tozé Cenoura, vamos fazer qua­
se, é urna ideia fixe, fazer dinheiro nao é rufícil desde ero carruagens, gritou o Ngola, este vem bué cheio,
que se tenha urna boa ideia, com urna boa ideia até se o Tozé Cenoura chamou a Rute, ei garina, a Rute pa­
pode ficar milionário, que sim, dizia o Tozé Cenoura rou, a cabe<;a de lado como os retratos que estavam
como se já a tivesse tido, urna tarde andava por aqui e nas montras das fotografias, o Tozé Cenoura per­
vi tantos bilhetes no chao por picar que pensei, as da­ guntou, qual é o partido do Adáo e da Eva. Ternos de
tas falsificam-se facilmeme, é só preciso um canivete, correr bué, tornou a gritar o Ngola, mas a Rute ficou
as vezes até aproveito números, o dia 3 pode facilmen­ parada, se calhar a pensar na anedota parva do Tozé
te passar a ser o dia 8, quando cheguei ao hotel con­ Cenoura, o cais encheu-se com os passageiros que
tei a ideia ao meu pai e come<_;ámos nesse mesmo día, saíram do comboio, gente vestida de preto e cinzen­
agora já ternos estes ajudantes todos, disse apontando to, de bege e castanho, vamos, disse o Ngola já cha­
para os miúdos. O Tozé Cenoura falava do negócio teado, mas a Rute nao se mexeu, a parvinha a espera
dos bilhetes com mais entusiasmo do que o pai faJava sei lá do que em vez de vir connosco. Se tivesse vin­
dos carnióes, enchia tanto o peito que parecía que ia do os cabróes da metrópole náo a tinham apalpado.
sair dali a voar, a Rute estava agradada, que giro Tozé, Eu passei por dentro de tres carruagens e o picas es­

1
disse naquela vozinha melada que só as raparigas sa­ tava numa delas, o picas tornava· tuda mais perigoso
bem fazer, tiveste mesmo urna boa ideia. De certeza porque podia puxar o alarme e mandar chamar a po­
que a Rute mordisca os lábios para ficarem mais ver­ lícia, mas correu bem, saí já com o comboio em anda­
melhos, foi a Paula que me contou este truque, a Paula mento e os bra<_;os levantados em V de vitória.

!
f: contou-me alguns segredos sobre as raparigas e este A Rute já esta va a chorar e os cabrócs da metró­
truque foi um deles, só nao me disse que as raparigas pole tinham bazado, ainda corremos atrás deles mas
gostam mais de rapazes que sabem ganhar dinheiro. os cabróes levavam-nos avan<_;o e entraram no ma­
.! O Tozé Cenoura sentia-se importante como o Paca<_;a chimbombo. Ficaram da janela a fazer-nos manguitos
'¡ quando fala nas reunióes gerais, vendemos os bilhetes
todos que fazemos e mais tivéssemos mais vendíamos,
e gestos como se apalpassem a Rute outra vez, gas­
taste náo gastaste, o machimbombo já estava a andar
até os dos outros hotéis nos encomendam bilhetes, e os cobardes de merda na janela aberta, as retorna­
1 a Rute enrolou urna madeixa ele cabelo com o dedo das vieram codas furadas pelos pretos. A Rute chorou
¡
indicador e o Tozé Cenoura, se quiseres um rua destes ainda mais, nem sequer parou de chorar quando lhe
podemos ir passear até a cidade pago-te o bilhete, e a perguntei, afinal de que partido sáo o Adáo e a Eva.
Rute toda dengosa, e vamos fazer o .que a cidade.
A sociedadc burguesa ainda nao foi clestruída nas
suas raízes mais fundas, a besta fascista ainda é
urna amea\a e a luta por urna sociedade sern classes
a.inda está longe do seu fim, abai.xo os salários de fome,
abaixo a explorar;áo capitalista, viva a revolrn;áo. O re­
presentante do comité dos trabalhadores do hotel já
está a falar há mais de meia hora. Quando se cala é urn
alivio táo grande que toda a gente bate palmas.
Gosto dos plcnários. Muitas vezes dáo discussao,
demoram até as tantas, algu ns duram a noite coda,
coda a gente fica alvoror;ada, nas votar;óes nem se fala,
chegam a amear;ar andar a tareia, parece que estamos
a ver um filme. Com os maplcs arreciados a sala de
convívio ncm parece a mesma, as cadeiras que se vao
buscar a relevisáo dispostas cm filas, as mesas de jogo
jumas a fazerem a mesa grande retangular onde se
semam os representantes do comité dos trabalhado­
res, a diretora, um representante do sindicaco e mais
tres homens que nao sei quem sáo e que nao sao do
hotel, esses cada ,·ez que falam dos fascistas juntam
scrnpre palavras engrar;adas como corcionários e se­
quazcs, do nosso lado estáo na mesa o Pacar;a, o Joáo
Comunista e o Juiz.
ll4 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO Il5

O representante do comité dos trabalhadores tivas, a meta era chegar as mil mas o lá de cima quis
do hotel é um dos que trabalham no economato e outra coisa. Quando diz isto o Pacac;:a aponta para o
dá a ideia de que toda a vida foi náufrago numa ilha céu, o lá de cima quis outra coisa, e dito assim pare­
deserta, é um magricelas com a barba até a barriga e ce que o lá de cima teve de escolher entre um golpe
cabelo comprido mas só atrás porque em cima é ca­ de estado com descolonizac;:ao _e as 274 pacac;:as que o
reca. Dizem que é maoísta. O Sr. Acácio diz que os Pacac;:a ainda quería abater. Nao sei como o Pacac;:a
maoístas sao piares do que os comunistas, ouviu nao se cansa de contar a mesma história, especial­
dizer que estao treinados para tuda, até para dar um mente a parte em que fala dos que tem a mesma al­
tiro na nuca de um velho sem mostrar qualquer pie­ cunha mas sao fraudes, borravam-se todos quando o
dade. A diretora parece que nao sabe o que é um ple­ bicho corría na sua direc;:ao, setecentos quilos é mui­
nário e está fina como se fosse para um casamento, to animal a correr, um comprimento de tres metros
o cabelo todo armado, nao como as mises das vizi­ e meio por urna altura de um metro e sessenta, um
nhas que estavam sempre acachapadas, mas como as portento de forc;:a com cornos em gancho, uns cor­
dos posters da montra do saláo da D. Mercedes onde nos capazes de trespassar um hornero como urna faca
a máe ia. A diretora tem um colar de pérolas de tres quente corta um pedac;:o de manteiga. Chegado aqui,
voltas, um relógio de ouro e anéis com pedras, mes­ o Pacac;:a descreve os pormenores de cada paca<;a que
mo a pedir que lhe chamem burguesa reacionária e abateu. Também matou javalis, bambis, ·leopardos e
inimiga do pavo. É a única que nao fica mal na sala de leóes, matou de tudo menos elefantes, nao se pode
convívio que tem reposteiros damasco, a única que matar um animal que sabe quando chega a sua hora
está no lugar certo. Os trabalhadores do hotel e os e se encaminha para um cemitério, um animal que é
retornados nao ficam bem numa sala que tem urna la­ mais esperto do que nós. Matei de tudo mas nada se
reira de pedra com o guarda-fagos dourado e pinturas compara as pacac;:as que embalsamadas fazem cabe­
nas paredes como os museus. c;:as muito lindas, tinha uma parede cheia delas, que
O Paca<;a tem um fato de caqui e os sapatos bran­ pena, ficou tudo em Angola que em Moc;:ambique nao
cos picotados que quase todos os velhos usam. Quan­ as havia, eram próprias de Angola, em Moc;:ambique
do for velho nunca hei de usar daqueles sapatos. Sem pacac;:a é urna árvore, querem ver, e mostra as fotogra­
o len<;o e o chapéu de ca<;ador é como se o Paca<;a fias que traz na carteira, urna carteira feita com a pele
estivesse a paisana, parece outra pessoa, mas aposto de um crocodilo também morto pelo próprio Pacac;:a.
o meu poseer da Brigitte Bardot que o plenário nao Tem fotografias de pacac;:as-árvore de Moc;:ambique
acaba sem que o Paca<;a conte como ganhou a alcu­ e de pacac;:as-anirnal de Angola e nunca se esquece
nha, 469 paca<;as mortas a primeira e 257 com tenta- de dizer que tanto é retornado de Angola como de
flÓ DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 117

.Mos-ambique, ou melhor, náo sou retornado de coisa de féíias a mecrópole nem acautelávarnos a vida cá,
nenhuma, que a bem dizer nunca aqui tinha pasto os náo fornas espertos como eles, ou melhor, eles náo
pés e já o meu avo tinha saído daqui com a jura de foram parvos como nós, náo enterraram naquela ter­
nunca mais cá voltar. ra cada tostáo que ganharam. De certeza que lá o Juiz
O Joáo Comunista tem urna camisa as flores e era outra coisa qualquer mas ninguém o desmente
o c;i.belo pelas costas que atira para trás com gestos como também ninguém desmente os que se gabam
bruscos para nao parecer urna mulher a ajeitar-se. das casas com piscina ou das fazendas com campos
Acho que um comunista a sério náo usa urna cami­ de algodáo a perder de vista. Ninguém desmente por­
sa as flores mas o Joáo Comunista nao é comunista, que nao intercssa, perdeu-se tudo, o muito e o pouco
chamam-lhe assim por estar sempre a dizer que o que se cinha. Até já ouvi a mac dizer que cinha um
império era urna vergonha, que devíamos ter vergo­ aspirador, o jeito que aquela máquina me fazia.
nha por termos subjugado inocentes durante tantos O aspirador era um dos sonhos de que a máe
séculas. J á houve macas enormes a conta disso, uma nunca se csquecia, nenhuma vizin11a tinha nem que­
vez o Sr. Serpa esteve para dar uns murros valentes ao ria ter um aspirador, vassoura e pá chegam bem para
Joáo Comunista, que fugiu da sala de convívio como se limpar urna casa, vassoura, pá e urna preta, claro.
urna menina assusta<la, se náo tivesse fugido náo sei o Só que a máe nao quería ser urna dona de casa como
que teria acontecido, o Sr. Serpa só gritava, que os de as vizinhas, quería ser urna dona de casa como as do
cá digam isso é urna coisa mas voce devia ter juízo e cinema, como as que tinham aspirador e aventa.is sem
vergon.ha nessa cara. nódoas, que bebiam café sentadas em baJcócs altos
O Juiz tem sempre a cabec;:a bai..xa como se no de cozinhas imaculadas. A máe tarnbém queria uma

l
tampo da mesa se passassem ca.isas mais importantes dessas cozinhas, cozinhas com ja.nelas por cima dos

1
do que as que se passam na sala. Toda a gente no hotel lava-lorn;:as donde se viam relvados que os maridos
sabe que o Juiz nunca foi juiz, nem sequer emprega­ aparavan1 aos domingos de manhá, queria matabi­
do do tribunal, os que lá trabalhavam para o estado chos com ovos e chouric,: o as tiras e aquclas rodelas
nio escáo nos hocéis, tcm a vida arranjada, foram co­ de massa que pareciam deliciosas e de que a mác nao
locados nalgum sítio ou reformaram-se, alguns até sabia a receita. Neste sonho táo complcco o aspira­
cem trabalho e reforma. Sáo recompensados como se dor era a pe�a fundamental. O pai prometia-lhe a
tivessem estado no inferno enquamo nós somos tra­ cada ano que o seguinte seria o ano do aspirador mas
tados como se tivéssemos de ser castigados. Os retor­ nunca era. Se a rnác o lembrava das promessas o pai
nados que nao estáo nos hotéis evitam os retornados centava das letras de mais um camiáo que acabara de
dos hotéis, acham que somos besugos, nao vínhamos comprar, do telhado de um armazém que tinha de ser

.. .
n8 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 119

reparado, fazia concas a renda da casa, a água e a luz, o Sr. Acácio a gritar de pé, apoiado, apoiado e já o ma­
a comida, aos meus estudos e aos da m.inha irmá, ex­ oísta protesta porque a competencia e o zelo profis­
plicava o dinheiro que náo chegava para tudo e a rnáe sional dos camaradas cozinheiros e das camaradas da
adiava por mais um ano o sonho de ser urna dona de limpeza ti.nham sido injuriados. A propósito disso o
casa como as do cinema. Aceitava ser urna dona de maoísca fala uns dez minutos sobre a resistencia que a
casa como as vizinhas e era por isso que a nossa sala forc;:a do trabalho dos camponeses, operários e assala­
nao cinha papel de parede aos losangos e que a rnobí­ riados <leve exercer contra os agrários exploradores,
lia de quarto da máe e do pai nao tinha urna cama de o patronato chupisca e os capitalistas cegos pela ga­
fórmica com as mesinhas de cabeceira pegadas, urna nancia. Acrescenta que a existencia de elevadores de
mobília de nave espacial como as americanas cem. servic;:o é urn atentado a revoluc;:áo que foi feita para
O Pacac;:a coma a recordar que se convocou o acabar com essas diferenc;:as e lembra que noutras re­
plenário para resolver problemas concretos, algu ns voluc;:óes rolaram cabec;:as por semelhantes afrontas
deles já amigos, e passa a ler, quartos sobrelocados a igualdade. Sobre o esvaziamento da piscina apoia a
que náo oferecern condic;:óes mínimas aos que neles decisáo da camarada diretora, a piscina é urn símbolo
tem de habitar, esperas para todas as refeic;:óes que dos hábitos da burguesía reaccionária e mesmo vazia
chegam as duas horas e que além de agastarem quem atenta contra os interesscs legít�os dos trabalhado­
nelas tem de permanecer de pé ocasionam distúrbios res, dos camponeses e da classe operária.
que pócm em causa o clima pacífico que codos preza­ A diretora pede a palavra. Diga o que disser
mos, a comida de péssima qualidade, prova da falta será vaiada porque é sempre vaiada por nós e pelos
de considerac;:áo com que somos tratados. Le agora os trabalhadores. Sáo tempos conturbados, a direto­
problemas mais recentes, um dos elevadores de ser­ ra já náo demora as palavras na boca, já oáo se sen­
vic;: o há mais de tres días avariado fazendo com que o te o perfume caro que no primeiro dia me ficou na
pessoal tenha de usar os nossos elevadores tornando­ máo. Repete o que diz em todos os plenáríos. Deve
-os ainda mais insuficientes, a tendencia crescence ter aprendido com o Álvaro Cunhal que quando apa­
para o desleixo higiénico dos espac;:os comuns como a rece na televisa.o póe todos a reclamar, lá está o Ca­
própria sala ondé estamos pode comprovar, e por úl­ valo Branco do disco riscado, riem-se mas náo tem
timo a razáo principal para a convocac;:áo do plenário, mal que se riam sempre do mesmo porque o Cavalo
o esvaziamento da piscina sem ter havido sequer um Branco também diz sempre a mesma coisa, engoliu
aviso prévio, urna atitudc abusiva que merece a nos­ urna cassete. A sala de televisáo fi.ca cheia porque
sa veemente condenac;:áo. Batemos palmas mais urna codos querem insultar o Rosa Coitadi.nho, o Cute­
vez, o lado dos crabalhadores náo se mexe. Está ainda lo, o Bochechas e os restantes traidores e ladróes.
JZO DULCE MARIA CARDO.SO O RETOltNO 121

Adirerora lamenta-se, quer ajudar mas náo pode dar estivéssemos bem em lado nenhum. Náo sei como o
o que náo tern, nao tenho mais quartos disponíveis, .Mourita faz mas tcm sempre dinheiro para as cervc­
nao cenho mais cozinheiros, náo tenho mais empre­ jas e náo é o Sr. Acácio que lho dá. Acho que o Mouri­
gadas de limpeza, náo tenho mais elevadores, ajudo­ ta anda a vender liamba, o Mourita e o Paulo que cem
-vos em tudo o que posso e nao me podem pedir muitas vezes os olhos brilhantes, o Sr. Acácio já deve
mais. Sobre a piscina, a diretora suspira sem disfan;:ar ter dado canta.
a mar;:ada que os plenários sao, ajeita o colar de péro­ Náo gosto de fumar liamba. Lá ainda fumei urna
las de tres voltas, mandei esvaziá-la e encerrá-Ja por vez, tinha ido com o Lee e o Gegé a casa do Helder e
razóes de seguranr;:a, havia sempre mais pessoas do ele ofereceu-nos, tem de experimentar, nao há nada
que o aconsefüável, crianr;:as scm vigilancia, tinha re­ mais fixe do que fumar isto. Tínhamos medo de fi­
ccio de que acontecesse urna desgrar;:a. A diretora náo car uns drogados se tocássemos naquilo mas o Hel­
convence ninguém porque náo disse a verclade, náo der garantiu que o irmáo mais velho, o Vadinho, fu­
falou das toalhas do hotel que todos levávamos inde­ mava todos os dias. O Vadinho nao parecía nada um
vidamente para a piscina, nem do grande churrasco drogado e namorava com a Carla, era táo linda, se a
na relva, o Sr. Norberto foi buscar o fogareiro e foi Carla náo tivesse vinte anos tinha-me apaixonado
urna festa, fomos ao talho comprar uns frangos, era a sério, acho que ainda estive apa.ixonado. As vczes
como se estivéssemos lá, só faltava o jindungo, urnas sonhava que estava no Mussulo com a Carla, que
Cucas e uns merengues, tínhamos um rádio mas só nadávamos os dois nus, na manhá seguinte tinha
dava ca.nr;:óes revolucionirias, os de cá estáo semprc de tirar os lenr;:óis da cama, transpirei muito, a máe
a ouvir canr;:ócs revolucionárias, sao canr;:ócs táo más aceitava os lern;óis, náo dizia nada ou concordava, as
que nem servem para danr;:ar. noices tem estado quentes. Acho que a mae percebia
É sempre a mesma coisa, mete nojo ouvir esta mas prefería fazer de canta que náo, o pai pelo con­
cabra que está a enriquecer a nossa custa, vamos mas trário piscava-me o olho porque somos do mesmo
é para o bar e volcamos para as vocar;:óes, propóe o clube. Aquí é rudo diferente. Com a minha irmá e
Mourita dando urna passa tao grande que o faz tossir. a mae tao perca nem me dá para sonhar, mas fico o
Nós nem votamos, meu, van1os mas é ver as garinas tempo que quiser a tomar banho sem que a máe ou
dos outros hotéis, cliz o Ngola. 'lenho os pés reben­ a minha irmá refi.lem, devem saber que os rapazes
tados de andar nas rochas, quei.xa-se o .Níourita, va­ c€:m de fazcr porcarias como eu sei do que se p:issa
mos ao bar beber urna ccrveja. Nunca sabemos o que com as mulheres. A minha irmá pensa que eu nao
fazer, mas isso cambém acontecia lá com o Lee e o perccbia quando ela falava da chica com as amigas
Gegé, nLmca sabíamos aonde ir, era como se nunca e a máe pcnsa que náo sei para que servcm aquelas

. .,.
122 DULCE MARIA CARDOSO O RETOR1'0 l2J

roalhas pequeninas que estáo sempre a esconder nas res connosco e nunca rnais insistiram para que fumas­
gavetas mas estáo enganadas. Nunca falo disso mas se com eles.
sei, a Fortunata as vezes dizia, esrou com a pingadei­ A televisáo dá notícias sobre tres bombas que os
ra, mas nem assim nos mandava embora, era mesmo comunas fizeram explodir em Lisboa. O Sr. Alcino diz,
a Fortunata sempre a aviar. Depois de o Helder nos vai haver urna gu erra civil, táo certo como cham ar-me
ter convencido que náo ficávamos uns drogados só Alcino. Olharnos uns para os outros e comec;:amos a rir
por experimentar, fumámos liamba, o Gegé e o Lee sem motivo algu m, o Sr. Alcino enxota-nos com a máo,
comec;:aram a rir-se que nem uns doidos e náo para­ cresc;:arn e aparec;:am, seus ganduJos, na vossa idade já
ram mais. Comigo deu para o torto, comecei numa tinha comido o páo que o diabo amassou, e persegue­
afüc;:áo inex-plicável, vou morrer, vou morrer, o corpo -nos pelo corredor até a entrada. As pernas arqueadas
dormente aos bocados, náo sinto a perna, sinto a per­ e o nariz adunco do Sr. Alcino ainda nos fazem rir mais )

na, já náo sinto outra vez, queria gritar mas náo con­ se os vossos país nao vos educam eu educo-vos a minha
seguía, acho que até as paredes da casa se comec;:aram maneira. O porteiro Queine que faz sempre os turnos
a mexer. O Gegé e o Lee continuavam a rir-se, quería da noite sorri, o Sr. Alcino cansa-se e vira as costas a
avisá-los que ia morrer mas náo conseguía falar nem praguejar, gandulas que náo merecem o que comem,
mexer-me. Quando aquilo passou o Helder, tiveste quase se cruza com a máe e com a minha irmá que
azar, deu-te para flipares, as vezes acontece, tens de saem da sala de convívio. Vem com a D. Suzete e com a
experimentar outra vez. Nunca mais. Era o que fal­ cunhada dela, a Gigi, que apesar de ser muda diz urnas
tava. A partir daí sempre que numa festa ou no liceu palavras que ninguém percebe, a náo ser a D. Suzete,
alguém me oferecia liamba, a mim dá-me para flipar, e que comec;:am sempre por rrrrrrr vindo da garganta
como se já tivesse tentado muitas vezes e o resultado como se fosse escarrar.
fosse sernpre o mesmo. O lvlourica, o Paulo e o Ngola A máe está a torcer as máos nos bolsos do casaca
já me convidaram para fumar, estávamos no paredáo, que lá usava no cacimba. Conhec;:o aquele torcer de
a mim dá-me para flipar, o Ngola ainda disse, nunca máos, a máe está a ficar pior, os demónios andam a
experimentaste, estás a bater cauros, mariquinhas. rondá-la. Afinal a culpa náo era daquela terra, a máe
Expliquei a dormencia do corpo e as vozes que ou­ aquí também nao está a salvo das crises. O pai e o
via na cabec;:a, vozes que me mandavam fazer coisas, tio Zé ainda nao escreveram e já nao sei o que hei de
mas o Ngola náo desis tia, que coisas, coisas horríveis, pensar, mesmo coro a guerra, mesmo com os cartei­
que coisas horríveis, atirar-me a linha do comboio ros pretos. Continuo a dizer a máe que náo aconte­
ou matar quem está mais próximo de mim, o Ngola ceu nada mas já passou tanto tempo que até a mim
arrepiou-se todo, se flipas assim é melhor náo fuma- me custa acreditar. Quem nos escreveu foram os
I:?.4 D U l.C E MARI A CA RDOSO () RETORNO 125

famililres da metrópoie, a minha irmá .ficou tao con­ cunhada. A máe já náo usa o pó azul nos olhos nem
tente quando o Sr. Teixeira clisse que havia correio o batom cor-de-rosa nos lábios, já nao cheira a Si
para nós, até dcu um pulo na rece<;:áo, as máos na ca­ Fraichc. A D. Suzete e a muda esta.o no quarto qua­
be<;:a como fazem �!S raparigas sempre que se alegram, se ao lado do nosso, no 3ro, como é que podia nao
ai meu deus ternos carra. Ficou táo desiludida quando conhece-las se estamos há mais de um mes neste
viu que a carta era dos familiares da metrópole, ainda hotel sempre a ver as mesmas pessoas. A máe está a
tentou convencer-se de que podiam ser boas notícias, ficar pior. Nao ajuda nada o Sr. Martins passar vindo
se calhar escreveram a convidar-nos para irmos viver da televisáo a dizer, o Bochechas está a fazer frente
com des. A minha inná queria que nos acomecesse aos comunas mas vai perder, náo nos livramos de urna
o mesmo que ao Sr. Flávio do 211, que se foi embora guerra civil. A máe torce ainda mais as abas do casa­
coma mulher e a lilha para viver com uns familiares ca, se aqui também houver guerra vamos para onde.
que lhes ofereceram casa e comida. O Sr. flávio esta­ Náo vai haver guerra nenhuma, falo tao alto que a
va táo emocionado quando se despe<liu, as imbambas D. Suzete até se assusta. A mác sorri e con corda,
na entrada do hotel e o Sr. Flávio, quem ccm urna boa nao vai haver guerra ncnhuma. A minha irmá boce­
famiJia náo cem nada a temer no mundo. Ser retor­ ja, o elevador está aqui. Tenho tanto medo que a mile
nado de hotel também é mau porque quer dizer que fique pior que estou sempre a ver amea<;:as nos gestos
náo há sequer um familiar que gaste de nós o sufi­ e nas expressóes dela. A máe náo está pior e os demó­

1
ciente para nos querer em casa. Os nossos familiares nios nao andam a rondá-la. E também náo vai haver
da mctrópole cscn:viam sempre aquelas mentiras das guerra nenhuma, se houvesse os de cá fugiam para
saudades, se vos pudesse dar um abra<;:o, as saudades onde, náo podcm ir todos cmbora para out ros países,
que vos tenho, mas agora que nos podiam dar todos mesmo que para sair daqui nao sejam precisos avióes
os abra<;:os que quisessem, remos muita pena do que nao podem i.r todos a pé para Espanha. Nós é que nfo
vos aconteccu. Esta va capaz de rasgar a carta, aqueles podíamos chegar aqui a pé, ainda bem que a América
fuinhas de merda, ternos a certeza de que rndo se vai emprcstou avióes, a América e os outros países, nos
compor, deus é grande, fuinhas de merda, espero que jornais clizem que é a maior ponte aérea qur já se fez.
os pretos tenham apanhado o álbum das chinesinhas O Lee sempre gostou de recordcs e deve estar con­
e o tcrJ1:11n rasgado de alto a baixo. tente, a maior ponte aérea do mundo é uma coisa un.­
A núnha irmá chama o elevador, a máe cum­ portante. Se houvesse guerra aquí sempre quería ver
primenta-mc como se náo tivéssemos estado juntos se os de cá se iam todos embora, se cleixavam tudo
no plenário, faz as apresenta<;:ócs, o meu fifüo, o meu a.o deus-clará como nos obrigaram a fazcr. O pai tinha
filho Rui, e pergunca-me, conheces a D. Suzete e a razao, aquí.lo era a nossa r<:rra, devíamos ter ficado
126 DULCE MARIA CAROOSO O RETORNO 127

lá, só um cobarde abandona a sua terra sem dar !uta. das horas extraordinárias, as palmas sáo tantas que
O pai pode náo ter sido esperto como o Sr. Manuel parece que o hotel vem abaixo, o Sr. Acácio póe-se
mas o pai é que tinha razáo, foram todos cobardes, de pé e o resto da sala imita-o, as províncias ultrama­
e cu também, eu mais que todos. rinas eram Portugal, continua o Pacac;a, há discurso
O Pacac;:a discursa outra vez, o Juiz e o do sindi­ para mais urna hora. O Pacac;:a nunca se cala, como
cato já abandonaram a mesa e no resto da sala há mui­ ele próprio diz, bem basta quando tiver a boca cheia
tas cadeiras vazias, a maior parte das pessoas está na de terra, aí ncm um pio.
varanda, as noites da metrópole também podem ser Voltamos a sair do plenário e pomo-nos a chutar
bonitas e cheias de escrelas. A voz do Pacac;:a na lenga­ de uns para os outros urna garrafa de plástico vazia
lenga do cosrume, estamos aqui por direito próprio, que estava no cháo, olha-me este toque a Cubillas,
o IARN paga a diária como se fóssemos hóspedes, o Mourita exibe-se para duas empregadas da limpcza
hóspedes normais, náo se atulham quartos de hóspe­ que passam vindas do plenário, fza urna finta e assobia­
dcs normais, náo lhes é servida comida que nem para -lhes, que belo mataco, era capaz de morrer por aquele
um cao é boa, alguém está a fazer dinhciro a nossa mataco, tem ali um macaco que faz urn homem sonhar
cusca, diz o Pacac;:a com o punho erguido, já fomos acordado. Quando vamos para o paredao ou para o
roubados urna vez mas náo nos dci.xamos roubar urna · jardim do Casino dizemos estas coisas as raparigas da
segunda, é vcrgonhoso que o hotel se estcja a apro­ metrópole, que nao percebem o que estarnos a dizer
veitar da nossa desgrac;:a, a senhora direcora diz que mas sabem que sáo coisas porcas e alegram-se todas, ai
prescindiu de mantcr o último piso reservado aos que parvos, os retornados sáo tao parvos. A emprega­
turistas para ajudar mais famílias mas todos sabemos da vira-se para trás, vai dar maca, nao sei porque é que
que náo há turistas suficientes, só vinha cá um maluco o .Niourita se meceu com ela, nunca nos metemos com
ou cuero, daqueles que náo quercm perder a oportu­ mullieres mais velhas, o Mourita nao aguenca a bebida,
nidade de ver urna revoluc;:áo, desgrac;:ados, bom pro­ se bebe comec;:a a estri.lhar e náo há quem o pare. O pai
veito lhes fac;:a esta revoluc;:ao de pacotilha, a senhora nao havia de gostar de ver-me com o Mourica, acom­
diretora quer convencer-nos que estao todos a fazer o panha com bom e serás melhor, como no livro da vida.
melhor que podem para ajudar-nos mas a única coisa Afina! a empregada da limpeza nao cüz nada, o Mouri­
que ternos a certeza é que nos escao a roubar o me­ ta suspira ao ve-las desaparecer, ando de olho naquela
lhor que podem, queremos a piscina cheia porque os empregada há bué, que mataco táo redondinho aque­
hóspedes tem direito a piscina cheia e nós náo mere­ lc, nestas coisas é que se ve a máo de deus.
cemos menos. O Pacac;:a dá um murro na mesa como O bar ainda está mais cheio do que a sala de
há pouco o maoísta cinha dado a propósito do pedido convivio. Além dos que já se fartaram de assistir ao
128 DULCE MARIA CAROOSO O KETORNO r29

plenário e que esperam pelas vota<;:óes há os que tornados por causa do irmáo que foi fazer a guerra na
vem dos ouuos hotéis. Há sempre gente dos outros Guiné e veio de lá maluco. Náo sei como podemos
hocéis quando há urn plenário, estamos codos meti­ ter culpa do que aconteceu lá. aos soldados que iam
dos no mesmo barco, o que é mau para uns é mau para daqui. Para mais o Vítor acusa-nos de termos andado
todos. Deviam ter pensado assim quando os tiros co­ a explorar os pretos mas defende o irmáo e os outros
me<;:aran1. mas em vez disso puseram-se a encaixotar soldados que andararn a matá-lós. É mesmo esperto,
as bicuatas, días inteiros a martclar ripas de madeira a explorar é mau mas matar já é bom. Claro que o Ví­
volta das tralhas, náo descansaram enguanto os con­ tor comec;:a com a cantilena, os soldados foram abri­
tentares náo ficaram prontos e náo os despacharam gados, nao havia nenhum que quisesse ir para lá, blá,
para a metrópole, pareciam meninas do liceu femini­ blá, blá. Se o Víror tivesse ouvido as histórias da máe,
no cm vésperas de passeio de finalistas, todos excita­ quando o vosso pai acabou a segunda classe já tinha
dos com a mudan<;:a, vamos para a metrópole, vamos as estradas a espera, o vosso pai dizia-mc, se se sou­
para a metrópolc. Até eu apesar dos avisos do pai, na besse o suor com que as estradas sáo feiras ninguém
rnetrópole há cerejas, cerejas grandes e luzidias que as pisava sern antes se benzer, a máe do vosso pai teve
as raparigas póem nas orelhas a fazer de brincos, nove filhos, nove bocas para comer e dezoico bra<;:os
raparigas lindas. Até eu. Os de cá deviam tratar-nos para trabalhar, só se deicava a conta aos bra<;:os, que
a.inda piar, quem nao luta pela sua cerra náo merece as bocas podia roubar-se quase tudo, uli1as rodelas
respeito algum. E agora nao adianca dizer, a uniáo faz de cebola numa códea de páo calavam os roncos das
a for<;:a, se fi.carmos todos juntos náo nos acontece barrigas. Se o Vítor tivcsse ouvido a mác saberia que
nada de mal, é tarde <lemais, se nos tivéssemos unido nada nern ni..nguém obriga mais do que a fome e que
antes nunca ceríamos sido retornados, agora já nao há o pai em.barcou no Pátria mais abrigado do que qual­
nada a fazer. Os de cá charnam-nos entornados para quer soldado.
gozar connosco, foram encornados cá, devem pensar No balcáo do bar há bancJeirinhas de quase todo
que tem gra<;:a. Os retornados bern podem andar com o mundo, urna fila de bandeirinhas espetadas. Fecho
cartazcs nas manifesta<;:óes que náo vai adiantar nada. os olhos e escolho urna as cegas, aquela em que tocaré
E os plcnários tarnbém nao. a bandeira do país para onde vamos quando o pai che­
O Sr. António está de folga e é só o Vítor a servir gar. J á fiz este jogo várias vezes e já me calharam qua­
no bar. O Vítor tem sempre urnas trombas que até se todos os países, até a China. O nosso destino ainda
assustam e em dias mais movimentados como hoje náo deve estar decidido, é por isso que náo dá sempre
náo me adn1.irava nada que pegassc numa arma e nos o mesmo resultado. Quando o pai chegar logo deci­
macasse a todos. Dizem que o Vítor náo gosta de re- dimos mas tenho a certeza que o pai nao vai querer
130 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 131

ficar nesta miséria, se antes de ter saído daqui o pai hóspedes. O porteiro Queine fica ao meu lado como
já nao quería, muito menos agora. Fecho os olhos e dantes o pai. Pergunto-lhe, porque é que voces náo
vou tocar na bandeira da América. Errei, a Venezuela gostam de nós, nao porque queira saber a resposta,
também náo é má. Quando o pai chegar vai levar-nos pergunto por perguntar, quero lá saber se gostam de
para a Venezuela, e repito ero voz alta, quando o meu nós ou náo. O porteiro Queine encolhe os ombros,
pai chegar vai levar-nos para a Venezuela. O Mourita tem sido difícil para todos, também tem sido difícil
pede urna cerveja, o que é que o teu velho ainda está para nós, nunca se viveu bem cá e agora estáo todos
lá a fazer, aquilo agora é só pretos, se o teu velho náo com medo que se viva pior, eu e a minha mulher che­
vem até a independencia nunca mais de lá sai, eles váo gámos a ter carta de chamada para Angola, se tivés­
fechar as fronteiras e os brancos que lá -ficarem váo semos ido naquela altura agora tan1bém estávamos
ser todos mortos, o teu velho só náo baza se for mui­ de volta, náo calhou. Se pudesse contar a algu ém que
co estúpido ou se quiser esticar o pernil. O Mourita eles levaram o pai talvez conseguisse acalmar-me.
faz urna daquelas caras como se estivesse a morrer, O destino é urna carta fechada, diz o porteiro Quei­
costumo rir-me das caras que o Mourita faz, o Mouri­ ne, se tivéssemos ido naquela altura talvez nos ti­
ta todo desengorn;:ado a fingü que cai, mas desta vez véssemos conhecido lá, o porteiro Queine sorri e eu
náo me río, agarro-o pelos colarinhos, se tornas a fa­ também mas, em vez de contar-lhe que eles levaran1
lar assim do meu pai dou-te urna sova que nunca mais o pai ou que tenho medo que as crises da máe voltem,
te endireitas. Toda a gente olha mas nao me importo, minto, se nos tivéssemos conhecido lá tinha-o levado
o Vítor póe o copo de cerveja do Mourita no balcáo, a dar urnas voltas na minha mini Honda, é do que te­
por pouco náo varro os copos e as garrafas do baldío, nho mais saudades. O porteiro Queine nunca esteve
o meu pai teve de ficar lá a tratar de assuntos e se tor­ em África, safou-se da guerra por ser amparo de máe,
nas a dizer isso rebento-te as trombas. nao tem como saber que invento voltas impossíveis,
O porteiro Queine nao pode saber que vim falo-lhe do Morro dos Veados, do Miradouro da Lua,
sentar-me cá fora por me ter zangado com o Mourita. e enredamo-nos em lembranc;:as de vidas que nos
Aproxima-se, o que foi rapaz. O pai costumava dizer­ escaparam.
-me, entáo rapaz. O porteiro Queine náo é como o
Vítor nem como os outros empregados. Estou farto
de plenários, digo, nao servem para nada. O porcei­
ro Queine senta-se ao meu lado, a farda com os ga­
lóes domados de porteiro de hotel de cinco estrelas
sem um único hóspede para receber. Nós náo somos
Q
uerido tio Zé, espero que esta carra o vá encon­
trar bem de saúde. Ternos ido todos os dias a
recec;áo na esperanc;a de ter urna carta sua ou do pai
mas nunca chega carta nenhuma. Já passou muito
tempo e náo sei o que pensar. É por isso que escou a
escrever-lhe. Sei que o tia e o pai nunca se deram bem
mas pec;o-lhe que nos escreva e que nos de notícias.
Eu náo tenho boas notícias para ]he dar, a máe está a
piorar de día para dia, se o pai náo vier ter connosco
ou náo escrever náo sei o que vai ser da máe, náo sei o
que vai ser de nós. Aqui na metrópolc náo tenho só
medo dos dcmónios que rondam a rnáe, tenho medo
de tudo. O dinheiro que crouxemos vai acabar em
breve, por muito que o poupemos. Náo sei até quan­
do nos dei.xam ficar no hotel e se nos puserem na rua
náo sei para onde levar a máe e a Mi.lucha. Náo sei
como tomar conta da máe e da Mi.lucha, a sério que
.náo sci. Quero convencer-me que sei mas náo é ver­
dade. Estou sempre a pedir a deus para que náo nos
ponham fora do hotel, apesar de ser horrivel vivcr
aquí. O tio pode nao acreditar que é horrível viver
num hotel de cinco esrrclas masé. Náo é só estarmos
todos no mesmo quarto, o hotel escar a abarrotar,
134 DULCE MARIA CAROOSO
O RETORNO 135

a comida náo prestar, náo ter um sítio onde possa que o pai é ou sabe quem é o carniceiro do Grafanil.
pensar nas minhas coisas, onde possa náo ver nin­ O pai sabia outras coisas, conhecia a cidade como a
guém. Náo sei explicar-lhe. Ponho-me a andar de um palma das máos, tinha orgulho de ter andado a tirar
lado para o oucro, as vezes fico táo cansado que quase lama das lojas quando as calemas levaram tudo a fren­
nao consigo andar mas nao paro. Por muito mal que te, de ter visto as fundac;óes dos prédios e a dificulda­
estejamos aqui espero que nos deixem ficar até o pai de que o asfalto ceve em avanc;ar, o tio com certeza
chegar. A máe está pior por náo ter notícias do pai e que se lembra de ouvir o pai contar como a cidade
por estarmos a viver assim. O tio sabe que as crises da crescia, parecía que a víamos crescer, o pai sabia estas
máe comec;am a notar-se muito tempo antes, como se coisas codas mas náo sabia nada do carniceiro do
lhe fossem tomando o carpo devagarinho. É por isso Grafanil. Eu sei que o tio nunca se deu bem com o pai
que sei que a máe está a piorar. Acho que a máe as mas agora náo é tempo de ajustar cantas. O pai náo
vezes pensa que o pai morreu, porque fica pálida de me clava aqueles conselhos por mal e eu só náo anda­
repente como se tivesse visto urna coisa horrível. E a va consigo porque náo queria. Podia ter desobedeci­
Mi lucha de vez em quando comec;a a tremer sem ne­ do ao pai. Agora com a distancia percebo que o tio
nhuma explicac;áo. Eu também tenho medo que o pai ficava triste por eu náo querer ir consigo ao Baleizáo
tenha marrido. Tento náo pensar nisso mas penso. ·ou a ponta da Ilha mas aí os dias passavan1 táo de­
O tio tem de escrever-nos. Náo conhecemos mais pressa que eu nem me apercebia disso. Aqui tenho
ninguém aí e aqui também ninguém nos pode ajudar, tempo para pensar em rudo, até na sua tristeza cada
nem adianta escrever cartas ao presidente da repú­ vez que eu recusava um convite seu. Zango-me mui-.
blica. AMilucha ainda escreveu urna carta a pedir tas vezes consigo por náo nos dar notícias e quando
ajuda a um general qualquer mas nunca teve resposta. me zanga chamo-lhe nomes, digo aquilo que o tío e o
Ninguém quer saber. Aquí no hotel nunca dissemos a Nhé 'Nhé sáo. Eu acho que o pai tem razáo e que os
ninguém que o pai tinha sido preso. Primeiro pensá­ homens náo devem andar uns com os oucros para fa­
vamos que o pai vinha ter connosco logo a seguir e zerem essas coisas, náo lhe vou mentir acerca disso.
agora já náo sabemos como dizer a verdade. Mas tam­ E nem percebo como é que o tío pode gastar de an­
bém náo adiantava, ninguém daqui nos pode ajudar e dar com outros homens se náo há coisa melhor no
ainda iam ficar a pensar coisas más do pai. Os jornais mundo do que dar um beijo a uma rapariga. Mas náo
e a televisáo dáo notícias sobre o que se passa aí, di­ é por causa disso que lhe escrevo, tenho esta manía
zem que eles estáo a matar os brancas que aí ficaram de me desviar sempre do que penso, escrevo-lhe por­
e eu náo consigo parar de pensar no que pode estar a que preciso de saber notícias do pai e porque tenho
acontecer. De certeza que nem os pretos acreditam medo. AMilucha deve ter ainda mais medo do que eu
136 DULCE MARTA CARDOSO O RETORNO r37

1 porque ainda me parece ma.is sozinha e as pessoas


quanto mais sozinhas mais medo tem. Mas no hotel
que desapareccu quando moravam no Vale de Loje.
O tio eleve lembrar-se quem eram, quando a mae fica­
náo há ninguém que nao terma medo. Todos tentam va pior comíamos muitas vezes de lá, sopa, prato e
disfar<;:ar, disfan;:am tanto que a sala de convfvio ou a sobremesa, o que eu me pelava pelo pudim de manga.
<la televisao chegam a parecer urna festa. 1t1a� é urna Quando o pai me pedia para ir buscar o terno na mi­
fes ca de gente triste. Agora entáo que o veráo acabou nha bicicleta nunca !he disse qúe náo gostava de ir lá
acho que a tristeza da metrópole entra cm nós como por causa do lugar que a D. Eugérua tin.ha sempre
se fosse o ar que respiramos. E o frio. Nunca pensei posta na mesa para o Sr. Paulina. O tio também a
que o frio fosse assim. A noite passada sonhei que es­ deve ter ouvido contar, o meu marido sa.iu para ir bus­
tava no Mussulo e que de repente o céu tinha ficado car farinha de mandioca e ainda náo volcou. Repetía
carregado de pássaros, gaivotas, andorinhas do mar, farinha de mandioca como se a chave do mistério es­
corvos marinhos, o céu estava táo cheio de pássaros tivesse aí, como se se o Sr. Paulina tivesse saído para
que nao havia ar. E no entamo, apesar daqucla afü­ comprar feijao o resultado tivesse sido diferente.
c;:áo, eu cstava contente porque pensava, pelo menos A D. Eugénia tinha de saber o que acon tecia aos bran­
cstou no Nlussulo. Fiquei a repetir, pelo menos estou cas que desapareciam. Mesmo ames de os tiros te­
no .i\1ussulo, os pássaros foram indo embora e eu fi­ rem comec;:ado nunca houve mistério algum acerca
quei a boiar na água quente do mar com os olhos nos disso. Eu também devia saber o que acontece aos
coqueiros. Ainda nao vi coqueiros aqui, nao deve ha­ brancos que desaparecem. E aos que sáo presos. E no
ver, a metrópole náo tcm quase nada mas isso o tio entanco até os fi.lhos da D. Eugénia repetiam, o meu
eleve saber mclhor do que eu. Ninguém aquí cem es­ pai foi comprar farinha de mandioca e nunca mais
peranc;:a de voltar um dia. Todos dizemos que sim, voltou. Eu, o Gegé e o Lee as vezes dizíamos ao Hilá­
que um dia vamos volcar, mas ninguém acredita nisso. rio, que era da nossa turma, os pretos apanha.ram o
É difícil acreditar no que quer que seja. Em coisas ceu pai e mataram-no. Dizíaroos por maldade, para o
boas como na ideia de voltar e em. coisas más como na ver engolir ern seco, o teu pai nunca mais volta. E no
ideia de que eles mataram o pai. Nao se consegue encanto o t-Iilário nunca deixava de andar atrás de
acreditar em nada e também nao se conseguc ficar a nós. Tenho-me lembrado muitas vczes do Hi.lário, do
espera para ver o que acontece. O tío Zé tcm de me que lhe via nos olhos quando lhc dizíamos, o teu pai
escrever e dizer o que aconteceu ao pai. Estou prepa­ nunca mais volea.Acho que só agora perccbi. Como o
rado para tuda menos para náo saber o que acome­ tio ve nao era só da sua tristeza que náo me apercebia.
ccu. Ten.ho medo que a máe fique como a D. Eugén.ia E nem era por o tempo passar depressa aí que cu náo
dos ternos que nunca dcixou de esperar o Sr. Paulino percebia a maior parte das coisas. Náo percebia
138 DULCE MARIA CARDOSO

porque náo quería. Ou talvez náo fosse capaz mesmo


que quisesse. Ria-me do Hilário e achava-o tolo por­
que ele andava sempre atrás de nós. Quando a D. Eu­
génia nos ouvia dizer ao Hilário que o Sr. Paulino
nunca mais voltava, ameas;ava-nos, se torno a saber
que se metem com o meu Hilário dou-vos urna cos;a.
Era o Hilário que nos procurava, dava-nos cromos do
Capitáo América, fazia tudo o que quiséssemos. Ago­
ra percebo. A nossa maldade náo era nada comparada
undu ia maié, sundu ia maié, puta que a pariu.
com a espera a que a D. Eugénia o obrigava, o vosso
pai saiu para ir buscar farinha de mandioca e ainda
S Vou dar pontapés em todas as portas até chegar
ao pátio do recreio, a puta da professora mandou-me
náo voltou. Náo sei para que me ponho a pensar nes­
para a rua com urna falta a vermelho mas eu vingo­
tas coisas se náo vou escrever nada disto.
-me, quero lá saber que as contínuas refilem, ó meni­
Querido tio Zé, espero que esta carta o encontre
no isto aqui náo é a selva, náo é como lá de onde vens,
bem de saúde.
aqui há regras, sundu ia maié, estamos a avisar-te me­
nino, abro o peito e dou urn pontapé noutra porta,
conhecem-me de algum lado, olho as velhas bem de
frente para lhes mostrar que náo tenho medo, abro
as narinas como o Paca<;:a diz que todos os animais
fazem antes de atacar, as velhas recuam com as batas
cinzentas e as varizes enfiadas nas meias elásticas, lá
podías andar montado nos leóes mas aquí tens de ter
modos, as velhas refilam mas nem tentam impedir­
-me, tem medo de mirn, passo pela cantina e dou um
murro no carro dos tabuleiros, só me falta bater com
· a máo no peito para verem que acompanhava mais
com os macacos do que com leóes, as velhas até sal­
tam com o estrondo que o carro dos tabuleiros fez, se
querem dizer mal dos retornados vou dar-lhes razóes.
A puta da professora, um dos retornados que
responda, como se náo tivéssemos nome, como se já
r I4O DULCE MARIA CARUOSO

náo bastassc ter-nos arrumado numa fila só para re­


o RETORNO

l
Ester também pediu a preta Zuzu um rrabaho para
r4r

tornados. A puta a justificar-se, os retornados estáo o Mourita ter cabec;:a para ser engenheiro e oucro
rnais atrasados, siro, sim, <levemos estar, devemos ter para o Paulo cer cabec;:a para doutor, é o que dizem.
ficado estúpidos como os pretos, e os de cá devem ter Se é verdade, a preta Zuzu nao é grande feiticeira,
aprendido muito depois da merda da revoluc;:áo, se o Sr. Acácio continua a andar atrás das mullieres e o
far como em tudo o resto devem ter tido umas lin­ Mourita e o Paulo estáo sempre a fugar as aulas, isso
das aulas. Ainda agora náo há um día em que náo haja até se compreende porque também tem professoras
ma.nifestac;:óes, bombas, ameac;:as, expropriac;:óes, más como a puta de matemática que acabou de me
ocupac;:óes, grcves, há sempre comunicados na televi­ marcar urna falta a vermelho. As professoras fixes
sa.o, já náo é só do MFA, do Conselho da Revoluc;:áo, nao podem nada contra as que nos tratam mal.
do Copean, agora é das comissóes, dos comités, das A puta de matemática pós os retornados na fila
cooperativas, sáo cada vez mais, nao sei onde váo bus­ mais afascada das janelas, nos lugares com menos
car tantos revolucionários. Esta manhá na.o havia páo luz, <leve pensar que somos como as rosas da máe
no hotel e a diretora justificou-se, os padeiros estáo que murchavam se náo !hes dava o sol, devc ser isso.
em greve por náo quererem trabalhar a noite. Que Um dos retornados que responda, a puta nunca diz
se fodam os padeiros e a diretora, pontapé em cheio os nossos nomes, um dos retornados que responda,
na porta para o pátio, as dobraclic;:as chiam mais que era o que falcava, nunca abro a boca, Ó retornado da
as comínuas, um frio do caralho cá fora, fecho o blu­ carteira do fundo que responda, insistiu a gaja, escava
sáo, acendo um cigarro, meto-me no meu canto, se as mesmo a querer fatTa. Cusca assim tanto decorar o
continuas náo querem maca nem se atrevam a passar meu nome, se me chamasse Kijibanganga ainda tinha
por aquí. desculpa mas Rui, porra, é um nome fácil e mesmo
Se nao há páo deem-nos brioches, o Sr. Acácio que me chamasse Kijibanganga a puta cinha obri­
maldoso com os olhos nas mamas da D. Juv:ita. Di­ gac;:áo de decorar. Mas náo, o retornado aí do fundo
zem que o Sr. Acácio e a D. Juvita tcm um caso e que que responda, é que nem que me tivesse arrancado as
se encontram na casa das máquinas ao lado da pis­ unhas e os dentes falava, nem que fossem buscar os
cina, o M.ourita ri-se, o meu velho ainda sabe como da PIDE que prenderam o pai do Helder, o Sr. Mo­
mudar o óleo. Também dizem que a D. Ester enco­ reira, que nunca mais foi o mesmo depois da prisao,
mendou um trabal.ha a preta Zuzu para que o Sr. Acá­ coira<lo do Sr. Moreira aue fi.cou codo confundido,
Á

cio deixc de olhar para as muLheres.A pre ta Zuzu tem as vezes nem sabia o que clizia. O Helder dizia que o
fama de fazer uangas e de lanc;:ar xicululos tao forces pai tinha ficado assim por causa da tortura do sano e
que há gente que faz figas qu:rndo passa por cla. A D. por U1e tcrcm batido com cabos de ac;:o que levavam
O RETORNO 143
142 DULCE MARIA CAkDOSO

a pele agarrada, coitado do Sr. Moreira, espero que sempre borbotas. Nao ternos escolha, ou usamos as
esteja melhor. camisolas com borbotas ou andamos com o pijama
A puta pensa que me importo com a falta a ver­ por baixo das roupas antigas, as roupas de lá. Tanto
melho mas estou-me a cagar, prefuo estar cá fara, faz. Ainda esta manha, quando fomos ao matabicho,
estou farro de ouvir aquelas merdas. A única coisa notava-se a camisa de dormir de fl.anela por baixo do
que chateia é o frio, o frio da metrópole consegue vestido da máe. Quando o frio comec;:ou tínharnos
atravessar-nos até aos ossos, entáo quando o ven­ vergonha de andar com o pijama por baixo da roupa
to encana nos corredores que ternos de passar ao ir mas agora já nos habituámos.
de uns pavilhóes para os outros até parece que gela A minha irmá as vezes olha-se ao espelho e fica
o sangue. E nem no inverno estamos. Dizem que com lágrimas nos olhos, lá gozava quando a via cho­
ainda vai ficar pior, náo imagino como seja, já é táo ramingar mas agora é diferente. Estar na metrópole
mau, as máos nunca aquecem, por muito que as es­ ainda é pior para as raparigas, os rapazes de cá náo
fregue, e tenho muitas vezes comicháo nos dedos e querem namorar com as retornadas. Se for para go­
urnas manchas encarnadas horríveis que doem como zar está bem mas para namorar nao, os rapazes de
se fossem queirnaduras. A máe diz que sáo frieiras, cá dizem que as retornadas lá andavam com os pre­
nao conhecia a palavra, também náo conhecia cieiro ' tos. E as raparigas de cá náo querem ser amigas das
que é quando os lábios se cortam e comec;:am a san- retornadas para nao serem faladas, as retornadas tem
grar quando nos rimos. Deve ser por isso que os de má fama, usam saias curtas e fumam nos cafés. A mi­
cá náo se riem, quem é que pode ter vontade de rir nha irmá náo se devia importar que as de cá náo a
quando sabe que vai sangrar dos lábios. E queixavam­ queiram como amiga, náo vamos ficar na metrópole
-se os que iam daqui para Já da matacanha e da filá­ muito tempo, vamos embora logo que o pai chegue.
ria, como se o cieiro e as frieiras da metrópole náo Vamos embora logo que o pai chegue. O pai vai che­
fossem piores. Nas fotografias o inverno era bonito, gar. Náo posso ter medo que o pai nunca chegue.
com neve nas beirais dos telhados, familias a volta das O tio Zé continua sem responder as cartas que lhe
lareiras, gatos a brincarem com novelos de lá e crian­ escrevi, paneleiro de merda, nao me responde e náo
c;:as nos parques com gorros e Juvas coloridas. Afinal responde a máe. O paneleiro náo diz nada mas o pai
o frío náo é nada disso, é gente encolhida a esfregar tem de estar bem, tem de estar bem e quase a vir ter
as máos, gente a bater com os pés no chao para os connosco, a ponte aérea acaba no día da independen­
aquecer, gente triste com camisolas de borboto. Bor­ cia. Falta menos de um mes. O pai tem de voltar antes,
boto é outra palavra nova que dizemos muitas vezes, tem de voltar, tem de voltar, tem de voltar. Sejas tu
as camisolas que nos dao nos sítios da roupa te ro quem fores, sabes o nosso acordo, sejas tu quem fores,
'44 DULCL: MARiA CARDOSO O RETORNO 145

sabes o que combinamos. As vezes, quando estamos mos em rurrnas diferentes, ainda bem, já estou farto
a mesa no restaurante, a máe faJa como se o pai esti­ da conversa do concurso das .Misses do Samba. Raíz
vesse a sua frente, acho que até as pessoas das mesas quadrada de nove, os retorn;:idos da minha turma sao
ao lado dáo conta. Náo podemos continuar a espera, uns chorúnhas, nunca desafiam as professoras, tcm
qualquer dia a máe está como a D. Eugénia, o pai tem medo de que, das faltas a vcrmelho, de screm expul­
de chegar dcpressa, já falta pouco para o dia da inde­ sos da sala. Depois de rudo o que nos aconteceu nao
pendencia. E eu tenho tanto medo. Nao quero ter dcvíamos ter medo de nada, muiro me11os de sermos
medo mas tenho. Se o pai náo chega até ao dia da in­ expulsos de urna sala, cambada de choninhas. A puta
dependencia é porq11c nao chega mais, é porque cscá, com a cara ao pé de mima ver se me assuscava, respon­
porque está morro. Ouviste. Sejas ru quem fores desta de, urna boca pestilcnta a cheirar a café, andam sem­
vez é a sério, nao é como os jogos que fazia antes. Se o pre a comar café, os de cá andam sempre a pedir, um
pai náo chega até ao dia da indc.:pendencia mataste o cafezinho, urna bica, e ficam contentes com as mixór­
pai, se o pai náo chega até ao dia da independencia é clias que !hes servem e que sabem mal como tudo. E as
porque quiseste mandar os cabróes dos pretos mat;ir gasosas, que gasosas tao más as da metrópole, é tuda
o pai. Sejas tu quem fores, rens de me ouvir, nao escou man. Raiz quadrada de nove, e eu, sundu, silencio, ia,
a brincar. Nao me vais dei.xar a espera para sempre. silencio, maié, os ourros retornados desatam-se a rir,
Nao me podes fazer o que fizesce ao Hüário. a puta sem perceber, o que é que isso quer di.zer, é a
Está fria. Muico. Mas o que me faz cremer é o resposta cm quimbundo, faJas em portugucs se fazcs
medo, cerro os dentes com muita for-;:a e tento nao favor, aquí fala-se porrugucs, raiz quadrada de nove,
pensar no pai, tenho de pensar noutras coisas, nem sundu i:1 maié, foi assim que nos ensinaram lá, todos
que seja na puta de matemática que implica comigo se riram, imediatamente para a rua com falca discipli­
desde a primeira aula. logo na primeira aula, wn re­ nar, alright, a 1ercsa Bartolomeu com a cabe-;:a baixa
tornado tao lauro e com os olhos ráo azuis, o que 1; para náo ser apanhada a rir. A Teresa Barcolomeu ado­
que a puta queria dizer com isso, há retornados de ra quando respondo mal as professoras. Daqui a pou­
codas as cores, em meio milhiio de recornados dcve co toca para o intervalo e a Teresa Bartolomeu vem
havcr rerornados de todas as cores, até deve haver ter comigo, ei Didja, gosto ca.neo que aTeresa Bartolo­
retornados verdes com pintas amarelas. Mas hojc a meu me chame Didja, só por isso nao me importo de
puta náo desistía, responde ao que re pergunrei, cs­ andar com este casaca branca roda malaico que me
Lc.m a falar contigo, quanto é a raíz quadrnda de nove. deram no sítio da roupa.
Que pena cu e o ívfourita náo scrmos do mesmo 3.nO, A 1ercsa é a rapariga mais gira do liceu e quan­
a Rute é a única que é do mesmo ano que cu mas ficá- <lo veste o casaca c o r d
- e-rosa clarinho com carapuyo
146 DUl,CE MARTA CARDOSO
O RETORNO 147

que os pais lhe trouxeram de Paris podía ser Miss no urna coisa importante, ninguém ia escrever Didja com
mundo inteiro. O Mourita nao gasta das raparigas da letras pretas e bem gordas nas costas de um casaca
metrópole, as gajas sao urnas sonsas, nao querem ser se nao fosse importante. Daqui a nada toca e vamos
vistas com retornados mas bern gostam de ir connos­ para trás do pavilháo C. O Mourita diz que a Teresa
co para trás da cerca e sao elas que nos póem as máos Bartolomeu é uma drogada interesseira, a gaja só anda
dentro das camisolas e das cuecas, as gajas da metró­ connosco para fumar liamba de gra<;a, tens é inveja,
pole sao umas fingidas, esta.o sernpre a dizer mal de a Teresa é uma garina muito gira, o Mourita náo desis­
nós mas só querem que as apalpemos. O Mourita tem te, nao te fies nisso, já viste a máe dela, tem um rabo
razáo mas a Teresa Bartolomeu é diferente, a Teresa que parece urna prateleira, daqui a uns anos a Teresa
Bartolomeu passa os intervalos connosco e nunca diz está igual, quera lá saber do que o Mourita diz e de
coisas estúpidas. As raparigas da metrópole sao quase como vai estar a Teresa daqui a uns anos. A Teresa
sempre estúpidas, se lhes pedimos um favor, pensas <leve estar a espera que lhe pe<;a namoro, vou convidá­
que sou preta, fazem-se muito esquisiras até irem para -Ja para ir as rochas, se aceitar é certo que quer que lhe
trás da cerca. Atrás da cerca nem parecem as mesmas, de um beijo, qualquer rapariga sabe o que significa o
já nem pretas se importam de ser, vao buscar-nos ci­ convite para ir as rochas. Para se chegar ao mar tem de
garros, lanches, tuda o que lhes pedimos, até nos car­ se descer muitas rochas cheias de verdete, escorrega­
regam os livros, e se lhes damos palmadas no rabo e dias a brava, as raparigas precisam sempre de ajuda, ou
lhes chamamos quitatas sao só risinhos. A Gaby, urna fingem que precisan1, num segundo estamos de mao
a quem dei um beijo de Iíngua lago no início do ano, dada, da máo dada ao beijo é um instante. Isto para nao
disse-me que gostava de estar comigo, que quando falar da gruta do Gigante, que é um buraco nas rochas,
estava comigo era como se estivesse no estrangeiro. nao mete medo nenhum mas as raparigas assustarn-se
E como é estar no estrangeiro, perguntei, a Gaby náo e ternos de as abra<;ar, e quando se está abra<;ado tem
sabia, nunca tinha saído da metrópole mas nao acha­ de se dar um beijo, mesmo que a rapariga seja feia, se
va estranho dizer, é como se estivesse no estrangeiro, nao dermos um beijo podem pensar que somos mari­
é mesmo coisa de rapariga da metrópole. cas. É por isso que eu nunca me aproximo da gruta do
Mas a Teresa é diferente, daqui a pouco toca para Gigante com uma rapariga feia, a Rosarinho está farta
o intervalo e a Teresa vem ter comigo, ei Didja, a Te­ de tentar mas eu fujo sempre, era lá capaz de dar um
resa é a única pessoa que me chama Didja, nao deixo beijo a urna rapariga que tem um nariz de um metro
que mais ninguém me chame. Quando me deram o de comprimento, ainda me vazava um olho.
casaca ainda perguntei o que é que aquilo quería di­ Acho que o Mourita tern inveja da Teresa e até o
zer mas lá no sítio da roupa ninguém sabia. Deve ser percebo, a Teresa vive num apartamento lindo perto
148 DULCE i\lARIA CARDOSO

do üceu, fomos lá durante urna borla, urna sala com de carro e lhe dáo prendas. A minha irmá fica a olhar
maples redondos como os que a máe pedia ao pai e para a roupa bonita da Rute. Um día vou comprar
u111. gira-discos estéreo, o que a minha irmá havia de urna loja inceira de vestidos para a minha irmá e a mi­
adorar aquele gira-discos. A minha irmá nunca está nha irmá vai ser a garina mais gira do liceu.
no grupo dos retornas, anda sempre atrás de um gru­ Ainda bem que o meu casaca é quente, o Mou­
po de besugos que se reúnem ao pé da sala dos profes­ rita teve rnais azar, só conseguiu arranjar urna ga­
sores, uns besugos com a mania que sáo bons, a mi­ bardine fria, cor de caca, quando a usa parece um
nha irmá parece um cáozinho atrás deles, eu náo ando detetive dos filmes antigos, o Ngola cem um casaco
atrás de ninguém, nem da Teresa, que é bonita como cheio de franjinhas a Elvis e o Paulo um que era dos
tudo e tem urna criada fardada que ihe traz o lanche bombeiros, parecemos uns palba1yos. Entáo se usa­
no intervalo grande e país que ihe compram presen­ mos as cal1yas e as camisolas de lá quatro ou cinco
tes no mundo inteiro. i'v1as gasto da Teresa. Gasto números acima nem se fala. Nos sítios da roupa qua­
por ser bonita, quase cáo bonita como as raparigas se só nos dao números grandes, dizem que a roupa
dos brjncos de cerejas. Afina! náo há assim tantas ra­ quente vem da América, do Canadá, da Alemanha
parigas bonitas na metrópole, cm geral até sáo feias, e que lá as pessoas sáo grandes, mas nós sabemos
muito mais feias do que as de lá, tcm o cabelo oleoso que os de cá nos roubam as roupas melhores, no es­
a escorregar-1hes pelas costas que é um desgasto e os trangeiro náo pode haver só gigantes, também tem
dentes encavalitados com sarro de leite, parece que de haver gente do nosso tamanho. Da próxima vez
nem os lavam, cheiram como lá cheiravam os sacos que houver distribuis; áo de roupa vou de véspera e
dos lanches que ficavam ao sol, um cheira avinagrado vao ter de me dar roupa boa, senáo vai haver maca.
que fica no nariz e dá vontade de co1yar. Mas a ]eresa A minha irmá precisa de roupas quentes para que as
é diferente. E também gosto dela por náo se importar professoras parem de escrever recados, a aluna tem
de ter os dedos sempre sujos de tinta da csferográfica, muico fria, a aluna está sempre a tremer nas aulas,
dedos gordinhos comas un.has roídas. E por comer a aluna tem de vir mais agasalhada. Nunca mostra­
bolos sem !impar lago o a1yúcar dos cantos da boca mos a máe os recados que as professoras mandam e
com os dedinhos em pi.n1ya e a boca em ovo, como falsificamos-ihe a assinatura, a máe já anda tao ner­
fazem as oucras raparigas. E por nao dar gricinbos vosa, já quase náo come nem dorme, se algum dia
quando leva com a bola no jogo do mata. O Mourita pensei ter de mandar os meus meninos a escota com
pode achar que sou parvo por gastar da Teresa mas frio e scm livros, se algum dia pcnsei que isro nos
acho-o mais parvo por anda.r atrás da Rute, que fuga podía acontecer, tanto o vosso pai crabalhou, anos
as aulas para ir com tugas mais veihos que a passeiam e anos de crabalho sem um único día de férias para
ljO DULCE Mi\RfA CAROOSO
O RETORNO 151

ago ra nao te rmos um tostao. Era o que faltava mos­ disse coisas esquisitas. Um día fornas passear a barra
trar os recados das professo ras a mae. do Cuanza, a rnáe nao tirava os olhos do mato que fi­
A minha irma tero vergonha de ser retornada, cava para lá das bermas do asfalto e disse, gostava de
finge que é de cá e esconde o cartáo que tem o carim­ ir ao corac;:áo desta terra, ao sítio de onde os pássaros
bo vermelho, aluna retornada, o cartao que dá direito gritam, um mato tao fundo onde nem sequer a luz do
a um lanche na cantina. A minha irma cheia de fome sol consegue entrar, gostava de sentir a sombra escura
mas sem co ragem de ir a cantina para que os de cá desta ter ra. Na.o sei onde é que a máe vai busc ar estas
nao vejam o cartao, aluna retornada. A rrúnha irmá coisas, as vezes tenho medo que sejam os demónios
a achar que pode nao ser retornada apesar das rou­ que a fac;:am dizer essas coisas e o meu corac;:áo bate
pas grandes, da pele ainda queimada pelo sol de lá, mais depressa. Mas nesse dia a máe estava calma e fa­
de se rir sem medo que os lábios sangrem, um sorri­ lava devagar, náo acredito que fossem os demónios
so bonito, a rrúnha irmá a fingir que nao é retornada, a faJar por ela, urna sombra táo escu ra e táo espessa
a dizer pequeno-almoc;:o, frigo rífico, autocarro, furos, que as árvores podem existir com as raízes de fara
em vez de matabicho, geleira, machimbombo, bor­ esta terra na.o nos pertence enquanto na.o lhe conhe-
las, a minha irmá a nao querer ser retornada e quan­ cermos o corac;:áo, enquanto na.o lhe conhece rmos 0
do acorda, hoje sonhei que estava a comer pitangas, corac;:áo esta terra na.o guardará as nossas marcas nem
a minha irmá táo triste que já nem discute comigo reconhecerá os nossos passos.
nem me chama estúpido. Quando nos formos embo­ Daqui a nada toca para o intervalo, a Teresa Bar­
ra daqui a minha irmá vai voltar a ser como era, vai tolomeu vem ter comigo e o pátio enche-se de gente.
zangar-se comigo outra vez por tudo e por nada, seu Dei.,xa de estar tanto frío e o medo também se vai em­
estúpido, aleijaste-me, seu estúpido, estragaste-me o bora. Ou pelo menos nao me faz tremer.
livro. Quando estivermos no Brasil a minha irmá vai
gastar outra vez de esticar os caracóis e de se pór bo­
nita para ir as festas, de ler fotonovelas, no Brasil nao
há fria e há frutas como as de lá, a minha irmá pode
comer as pitangas que quiser. Será que a nossa pitan­
gueira continua a dar pitangas, a máe diz que tem a
certeza que as roseiras morreram de tristeza, que per­
deram as pétalas urna a urna até ficarem com o cora­
c;:áo a mostra. Nunca nos deixava tocar nas rosas, as
coisas que morrem na.o se devem tocar, a máe sempre
O pai morrcu.
A sala <le telcvisáo está cheia, há geme sentada
no chao, nas cadeiras, de pé junto a porta, encostada
a paredc, encavalitada no parapeico da janela, tanta
gence que a sala ainda fica mais pequena e mais es­
cura. O candeeiro dos cristais apagado, só os can­
deciros foscos da paredc e a luz que vcm da televi­
sa.o a aclarar os que escáo mais próximos, o cabelo
da Gorccci azulado, a cara do Francisco desbocada,
o Sr. Campos com claróes nas orclhas. É hoje. Hoje
é o dia da independencia de Angola. Angola acabou,
a nossa Angola acabou. Nao sei para que estou a olhar
para a televisáo, nao sei por que cscou aqui.
Os homens cém os fumos por cima dos casa­
cos, uma ideia do Paca�a que diz, cstou de luto, hoje
morreu-mc a minha cerra, hojc tornei-me um <lescer­
rado, viYemos na certeza de que as terras náo morrem,
vivemos na certeza de que a cerra onde enterramos os
nossos morcos será nossa para sempre e que também
nunca falcará aos nossos filhos a cerra onde os fize­
mos nascer, vivemos nessa certeza porque nunca pen­
samos que a terra pode morrer-nos, mas hoje morreu­
-me a minha cerra, hoje morreram os meus marcos e
154 DULCE MARIA CARDOSO

os meus filhos perderam a terra onde os fi.z nascer, os


meus filhos desterrados como eu. O Pacac;:a cala-se e
comec;:a a falar o Sr. Belchior, estou de luto pela terra
onde fui gente, antes de ir para lá era urna barriga in­
chada de fome e urna cabec;:a cheia de piolhos.
Nem todos os homens tem fumos. O Joáo Co­
munista nao tem, aquelas terras nao nos pertenciam,
é justo que tornem aos que foram roubados, e na te­
levisa.o um dos revolucionários, o império está a che­
gar ao fi.m, a nossa vergonha está a chegar ao fi.m, hoje S ei as palavras, tenho a certeza que sei as palavras,
nunca as digo, tenho medo delas, nem em pensa­
rnentos as digo mas tenho a certeza que as sei.
podemos dizer que ternos orgulho de Portugal, viva
Portugal. Já conhecia aquela picada. Os faróis do carro só
Eu nao tenho fumo, náo sei o que é justo, nao te­ iluminavam o capim que cabria as bermas. Para além
nho orgulho, nao tenho vergonha, e nem sei do que das bermas e do capinzal nao se conseguía distinguir
falam. A única coisa que sei é que mataram o pai. Mais nada. Talvez fosse lá dentro que estivesse guardado o
ninguém sabe, a mae que está sentada na cadeira da corac;:áo da terra de que a máe as vezes falava. Era difícil
terceira fila nao sabe, a minha irma que está sentada passar a picada mas o pai era bom condutor, náo se tem
no chao nao sabe. Nao consigo viver a espera que o onze camióes sem se saber conduzir bem. Se até para o
pai chegue. Ninguém consegue viver sempre a espera céu o pai era capaz de levar o carro, quanto mais para o
_
de urna coisa assim. Sejas tu quem fores, tens de cxis­ inferno. !amos a caminho do inferno. A máe ia ao lado
ti r para que eu nao espere mais. Sejas tu quem fores, do pai, direita, o pescoc;:o duro e o carpo teso, urna ri­
existes e eu nao espero mais. Sejas tu quem fores es­ gidez de boneca de plástico. Nao era a mesma máe dos
colheste matar-me o pai. passeios a ponta da Ilha, a máe que ao domingo usava
O pai morreu. um vestido novo e punha mais pó azul nos olhos, a mae
que nos fazia tossir com os perfumes franceses.
A mae que ia no carro a�-lado do pai era a mes­
ma que está agora encostada a parede do corredor
na bicha para o jantar, eu de um lado, a minha irmá
do outro, e esta gente toda a volea, é a máe que tinha
a doenc;:a que náo era de médicos, a doenc;:a de que
nunca falávamos. A máe podía tomar comprimidos e
Ij6 DULCE MARTA CARDOSO O RETORNO Ij7

mais comprimidos que nao adiantava nada, a <loen­ entravam no carpo dela antes de ter ido para lá, que na
�-ª náo se curava com comprimidos, os médicos náo metrópole tinha o corpo fechado como as outras pes­
podiam curar a doenr;:a, náo era urna doenr;:a normal, soas. Pode ser que seja verdade e que agora os demó­
nem sequer era urna doenr;:a. Eram demónios. Eram nios estejam a rondar a máe mas náo consigarn entrar.
demónios que comavam coma do corpo da máe e A máe nunca queria ir aos ajuntamentos nem a
que tinham de ser expulsos nos ajumamentos. O pai casa do Sr. José mas o pai levava-a, o pai nunca desis­
aprendeu a expulsar os demónios do carpo da máe, tiu de tentar resgatá-la dos demónios que a faziam es­
sabia dizer as palavras que tcm de ser ditas quando pernear e gritar, que a faziam querer pegar em facas e
eles tomam canta da máe. Mas o pai náo está aqui, amcar;:ar que nos matava. Os médicos diziam que eram
ncm o Sr. José, nao há ninguém para ir buscar a máe crises dos nervos e da caber;:a fraca mas a.final, a doenr;:a
as trevas para onde os demónios a estáo agora a levar. da sua mulher náo é coisa de médicos, disse um dia um
A minha irmá também sabe o que vai acontecer dos portciros do hospital quando a máe saía de lá apoia­
e está assustada. Crescermos juntos pode náo nos ter da no pai, conhe<;:o um sítio onde a pode levar. E o pai
<lei.xado muito próximos um do outro mas conher;:o­ passou a 1evá-1a cambém aos curandciros. Primeiro aos
-füe os medos e o que a faz sofrer. Sabemos o que vai curandeiros brancas e depois aos curandciros pretos.
acontecer e ternos medo. Por enquanto a máe está ca­ O corredor está cheio de gente até aos elevado­
Jada mas vemos-lhe o peito debai,xo do vestido, para res, urna bicha enorme para o jantar, náo quero que
cima e para bai.xo, para cima e para ba.ix:o, a respirar;:áo ningu ém veja o que vai acontecer mas náo posso im­
desacertada, os olhos at0rmentados de quem está a pedir. Nos ajuntamcntos também havia muita gente,
ver coisas horríveis. Depois dos ataques a mác nunca só que rnuicos eram como a máe, aquí só há a máe
se lembra do que aconteceu, náo sabemos o que se pas­ para os demónios entrarem e nem o Sr. José nem o
sa com a máe enquanto tem os ataques mas o Sr. José p::ú estáo cá. Tenho a certeza que sei as palavras, mas
dizia que a máe ve os demónios que lhe querem emrar nao sei se sei dize-las, e tenho medo do que acontece
no corpo. O carpo da máe como o das bonecas de Las se náo as disser bem. O Sr .José explicava que alguém
Palmas que o pai trazia dos navíos para a minha irmá, tinha feit0 wn fcitir;:o a máe, ou talvez tivesse sido
só que, em vez de dizer mamá e papá, a máe diz coisas só mal de inveja, que era o piar, ou mau-olhado, há
terríveis com urna voz que náo é a dela, as vezes nem pessoas que deitam mau-olhado sem se aperceberem .
se percebia o que máe dizia e o Sr. José explicava que O pai náo acreditava, náo acreditava nos curandeiros
a máe escava a fal.ar noutra üngu a, que há demónios de nem nos médicos mas levava a máe a todos os médi­
codas as lí.ngu as e feitios. A máe sempre disse que a cul­ cos e curandeiros que podia. Náo sei a quanros sítios
pa dos ataques era daquela tern, que os demónios náo o pai levou a máe e os seus demónios, qua.ntas cai.x:is

-�..--=•-�;™----� �,.......,,...
r58 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO Ij9

de medicamentos e de mezinhas comprou. Os de­ o pai nunca se enganava nas picadas. Náo podíamos
mónios da máe ganhavam sempre, a prova disso sao ir com a luz do dia, nao sei se por causa da polícia ou
os esgares que a máe está a fazer encostada a parede. dos demónios. Tantos carros estacionados no meio de
AD. Rosa já se apercebeu que algu ma coisa nao está nada ao amanhecer, ao pé de um embondeiro.
bem e disse, este hotel enlouquece qualquer pessoa, As vezes também íamos a casa do Sr. José que fi­
o Sr.Daniel concordou, em vez de nos tratarem bem cava depois da Cuca, náo sei se era onde o Sr. José
por termos perdido tudo fazem-nos isto. Por enquan­ morava, um barracáo quase vazio. Cada um levava a
to a mae só está a ter um comportamento estranho, sua cadeira de abrir e mantas como para um piqueni­
as pessoas ainda náo podem saber que os demónios que, as cadeiras tinham de ser dispostas em filas em
vao tomar conta dela e que eu náo sei como e:x.rpulsá­ meia-lua, como nas salas de cinema, o Sr. José a fren­
-los. Era o pai que fazia isso, o pai ou o Sr. José que te a dominar os demónios da máe e das outras pes­
era preto e que sabia falar com os demónios brancas soas. A mae era das que mais gritavam, o corpo aos
e com os demónios precos. Era o melhor curandeiro estremec;óes, a cara irreconhecível, a mae gritava até
mas nem ele conseguiu curar a mae. o Sr. José erguer a máo, expulso-vos em nome de deus
Nunca falávamos na doenc;a da mae mas sabíamos todo-poderoso. Sao estas as palavras, expulso-vos em
que no bairro todos falavam, a mae era a D. Glória que nome de deus todo-poderoso.
tinha problemas ou, quando as vizinhas estavam mais Nao podíamos contar a ninguém dos ajuntamen­
corajosas, aD. Glória que chama os demónios. As vi­ tos. Acho que o Gegé e o Lee desconfiavam mas náo
zinhas benziam-se sempre que falavam nos demónios diziam nada, no bairro era impossível náo saberem,
que atacavam a mae, tinham medo que as palavras os havia sempre vizinhos que viam o pai a levar a máe a
atraíssem, descansem em paz, diziam as vizinhas mas forc;a para o carro ou a levantar a mao e a dizer, e),.,':pul­
o Sr. José mandava os demónios para as profundezas so-te em nome de deus todo-poderoso. Eu e a mi­
do mar do inferno. Sempre nos conheci a irmos aos nha irmá queríamos que fosse tudo culpa dos nervos,
ajuntamencos, chegava a haver mais de cem pessoas eram os nervos que se apoderavam da cabec;a fraca da
debaixo de um embondeiro. Os ajuntamentos eram mae e náo os demónios que lhe entravam no corpo
i proibidos e tinha de se estar sempre a combinar sí­ aberro. Por nossa vonrade nunca íamos aos ajunta­
tíos diferentes para nao sermos apanhados pela polí­ mentos mas o Sr. José dizia ao pai, a familia tem de ser
cia, pensam que sáo reunióes contra o Salazar, dizia o benzida, e o pai tinha medo que os demónios passas­
Sr. José, mas eram só reunióes para expulsar demónios sem da máe para nós. A máe também nunca quería ir,
das pessoas que tinham os corpos abertos como a mae. o Sr. José dizia que eram os demónios que a faziam re­
Por muito que os ajuntamentos mudassem de sítio, cusar. Mesmo nao estando dentro dela os demónios
160 DULCE MAR.lA CARDOSO O RETORNO 16;

comandavam a máe, os demónios sabiam quase tanto cigarro da boca, sao os espíricos que a rnmaram, mas
e eram quase táo poderosos como deus. Deus acaba va náo faz mais nada, fica a ver como os outros.
por ganhar mas era preciso ser-se muico vigilante, que O pa.i sabia dizcr as palavras que arrancarn o
os demónios aproveitavam qualquer fraqueza. A máe corpo da máe aos demónios e sabia nao ter merlo
nunca gritava com o pai a nao ser para recusar-se a das ameac,:as que os demónios lhe faziam através da
ir aos ajuntamentos ou quando os demónios esravam máe, vou matar-te, ou a caminho dos aju.ntamentos,
dentro dela, chcgava a implorar, por favor rneu amor vou fazer com que atires o carro a Baía. O pai enfren­
náo me leves mais, o Sr. José tambérn dizia que eram tava os demónios que queriam levar a máe, levanta­
os dcmónios que a faziam implorar e chamar ao pai va a mao, em nome de deus codo-poderoso, nao se
meu amor, os demónios eram falsos, o Sr. José sabia pode vacilar senao os demónios atacam-nos, náo se
tudo dos demónios e dizia que via o futuro, dizia que pode ter pecados e eu tenho pecados, tenho medo, os
via o futuro como se cstivesse a ver um filme. Devia demónios aproveitam codas as fraquezas. O Sr. José
ter-nos avisado dos tiros e da prisáo do pai. mostrava cicatrizes pelo corpo todo de centenas de
Está a acontecer. A máe náo tcm razáo e a culpa lutas que tinha travado corn os demónios, eu tenho
náo era daquela ten-a. Os demónios tomara...'11 conta da pecados, fa c,:o aquilo quase todos os dias, ando a pan­
máe. A bicha desfaz-se e fi.cam todos a volea do carpo cada quando calha, insulto as professoras e alguns
da máe aos estremec,:óes na alcatifa azul do corredor besugos de cá, sou muitas vezes mau, utilizo o nome
do hotel, os gritos da máe táo altos que até os que es­ de deus em váo. A máe no cháo e tanta gente a volta,
tavam no restaurante vieram ver, ninguém diz nada, o Pacac,:a, o Sr. Acácio, a preta Zuzu, o Joáo Comunis­
ao prindpio fi.caram surpreendidos, depois assusta­ ta, a minha irmá ao meu lado a chorar, encho o peito,
dos, a máe corn as feic,:ócs mudadas, as pernas abertas vou levantar a máo e repetir as palavras, náo posso
sem vergonha de mostrar as cuecas, logo a máe que ter medo, vou levantar a máo, nao vou ter medo, náo
ralha sempre que a minha irmá trac,:a a perna sem ter hi rnais ninguém para salvar a máe, tenho de ser eu,
cuidado, mas a máe no cháo náo é a máe, sao os de­ levanto a máo, e se a voz náo me sai, se tremo, ce­
mónios. As pessoas comec,:arn a falar codas ao mesmo nho o brac,:o esticado em diw;:áo a máe, a máo toda
tempo, o que é que lhe deu, será dos nervos, pode aberra, a máe grita ainda mais aleo, toda a gente deu
ser epilética, nunca vi nada assim, um esgotamento, con ta da minha mao levantada, náo vou ser capaz, sei
a D. Rosa benze-se e reza urna orac,:áo, náo adianta, as palavras, náo vou ser capaz, sei as palavras, tenbo
a máe aos pontapés ao Paria que tenca segurá-la, mais de dizcr as palavras, tcnho de dizer, expulso-te em
pessoas a benzerem-se e a dizerem orac,:óes, alguém nome de deus todo-poderoso, expulso-te em nome
vai chamar a preta Zuzu e a preta Zuzu sem tirar o de deus todo-poderoso. Expulso-te em nome de deus


L
162 DULCE MARIA CARDOSO

todo-poderoso. Tenho a máo levantada e reconhes:o


a minha voz. A máe sossega. Agora é só esperar que a
máe venha a si, que pergunte confundida o que acon­
teceu, que componha o vestido e que aceite a minha
máo para a levar daqui.

U m quarto pode ser urna casa e este quarto


e esta varanda de onde se ve o mar é a nossa
casa. A máe e a minha irmá nao pensam assim e por
isso se estamos na rua nunca dizem, vamos para
casa. Dizem sempre, vamos para o hotel. As ve­
zes, a máe póe os olhos lá longe no mar e suspira,
náo há lugar como a nossa casa. O mesmo que di­
zia quando regressávamos no Kapossoca depois de
termos passado o dia na praia. Só que agora nunca
mais podemos regressar e náo adianta ficar a olhar
para o outro lado do mar. l\fas se contrario a máe
e digo, nunca mais podemos voltar, a nossa casa já
náo existe, a máe fica zangada, estás a arreliar-me,
e eu, a nossa vida lá acabou é melhor esquecer a casa
e as saudades que tem da casa, tem de se esquecer de
tuda, a máe cada vez mais zangada, eu insisto, ternos
de esquecer, a máe manda-me calar, a falta que o teu
pai cá faz, tornaste-te muito desrespeitador, a falta
que um pai faz. Sobre o pai nao digo urna palavra.
O tempo acabará por fazer com que a máe e a minha
irmá saibam o que aconteceu. E por fazer com que
as saudades que tenho do pai nao me fapm chorar
quando estou sozinho.
I64 DULCE MARIA CAROOSO O RETORNO 165

Agora o que preciso de fazer é arranjar urna ma­ hotel, o Mourita até se meteu com ela. Eu nem sabia
neira de irmos para a América. O destino é uma carta que o porteiro Queine era casado.
fechada, como diz o porteiro Queine, mas de certeza Agora com a bicicleta já posso ir para longe. Aquí
que na América é tudo mais fácil. Já pedi um dicioná­ no hotel há sempre gente a volta. É difícil pensar com
rio de ingles na biblioteca e vou decorá-lo inteirinho, tanta gente a volta. lvlesmo estando calado é como se
vou comec;:ar na letra A e sigo por ali adiante até ao estivesse a fa.lar com os outros ou como se os outros
fim, quando tiver as palavras todas decoradas sei falar vigiassem os meus pensamentos. Quando estou sozi­
ingles para trabalhar na América e posso sustentar a nho penso de forma diferente. Isso é bom só que as
máe e a minha irmá. Era este o meu plano de emer­ vezes assusta. lvlas também nao consigo ficar muito
gencia caso o pai morresse. O livro que vinha com os tempo na rua por causa do frio. Náo consigo aguen­
walkie talk.ies profissionais que o pai me trouxe do tar o frio durante muiro tempo. Nem o frio, nem as
navío estrangeiro dizia que qualquer espiáo devia ter coisas em que penso.
pelo menos um plano de emergencia. Eu tenho vá­ Náo gosto do frio da metrópole mas gasto da mu­
rios, se o plano da América náo resultar tenho oucros danc;:a de esta<;ócs, lá só havia o cacimba e as chuvas e
planos. mesmo assim era quase igual. Aqui náo, está sempre
Enguanto náo vamos para a América, ternos de tudo a mudar. O mar do outono é mais assustador do
aceitar este quarto e esta varanda de onde se ve o mar que as calemas, as ondas dobram-se escuras e pesadas
como a nossa casa. É a única maneira de seguir em sobre si mesmas, arrastam limos, conchas partidas,
<liante. O pai dizia, o sol pode cegar-te mas náo te im­ peda<;os de madeira, a espuma suja vai de rojo pela
portes, se lhe voltas as costas a tua sombra esconde areia, galga o paredáo e chega ao asfalto. É assusrndor
o que procuras. Ou entáo fui eu que inventei que o o mar fara do sítio. E o sol de outono é mais dourado.
pai dizia isco numa das tardes do terrac;:o. Gasto de ir Debaixo deste sol ainda gasto mais da bicicleta, só
para o terrac;:o, de passar lá as tardes. Descobri urna me falca arranjar o selim, deu-mc muito trabalho mas
maneira de forc;:ar a porta que está no cima das esca­ está uma bicicleta quase nova.
das de servic;:o e vou para lá muitas vezes mas nunca Um quarto pode ser urna casa e este quarto e esta
contei a ninguém para náo perder o único sítio onde varanda de onde se ve o mar é a nossa casa. A prova
posso ficar sozinho. Agora com a bicicleta que o por­ disso é que a máe está lá dentro a fazer naperons e a
teiro Queine me arranjou vai. ser diferente. Fiquei miriha irma está a escudar para o ponto que vai ter na
tao contente quando ele me falou da bicicleta que o quarta-feira. Pela porta aberra da va.randa chega-nos
vizinho ia deitar fora. É mesmo fixe, o porceiro Quei­ o som do rádio que o Juiz tem ligado no quarto, náo
nc. E a mu!her dele também. Já a tinha visco aqui no dá nada de jeitO mas entretém, nao percebo como é
166 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 167

que os de cá ainda nao estáo farros das cans:óes revo­ s:as das outras pessoas náo sáo como a da máe. Nin­
lucionárias. A mae já devia ter percebido que nao vale guém fala da doens:a da máe e nós também náo, nin­
a pena cansar-se a fazer croché, nunca consegue ven­ guém disse urna palavra sobre o que aconceceu no
der os naperons as familias da metrópole. A mae e a ourro dia a máe quando estávamos na bicha para o
minha irmá a mostrarem jogos de quarto e de cozinha jantar mas tenho a certeza que se fartam de comentar
aos que váo passear ao paredao e nada, tentam vende­ nas nossas costas como as vizinhas faziam lá, olha-se
-los nos domingos de sol quando as pessoas escao para ela e ve-se que tem problemas, só cenho pena dos
mais bem-dispostas mas as familias da metrópole, se miúdos, com uma mae com ataques daqueles muito
tivessem uns dentes de marfim ou urnas estatuetas bons sao eles. A máe nao voltou a ter mais ataques.
ainda podíamos estar interessados, croché ternos cá Parece roa.is calma. Mas náo gasto de pensar no que
muito. A minha irmá conta-me que a mae responde, aconteceu, cenho medo de chamar os demónios.
tínhamos isso e muito mais mas ficou lá tudo. A mae As doens;as da D. Rosário sáo doens:as de que
nao devia dizer estas coisas, nunca tivemos estatue­ todos gostarn de ouvir falar, sáo doen s:as de médico
tas nem dentes de marfim e ainda por cima as fam.Oias que qualquer carpo pode ter, boje és tu amanha sou
da metrópole ficam satisfeitas com o castigo que se eu. É por isso que trazem benefícios a D. Rosário, por
abateu sobre os exploradores dos pretos. Tínhamos causa do caros:o que lhe tiraram do estómago a D. Ro­
naperons de croché que a máe fazia com as vizinhas sário cem direito a comida especial, a espinha torta
nas tardes longas do bairro, como agora faz nas tardes dá-lhe direito a roupa lavada e engomada e também
longas do hotel, nisso náo há muita difercns:a. pode beber café de gras:a no bar para náo desmaiar
A minha irma também me contou que a mae quis das tonturas, caio redonda no chao, queixa-se, nao se
vender a coalha de linho do enxoval aos ricos da casa sabe se as ton turas vem do caros;o que lhe ciraram do
verde que fica ao lado do hotel. A D. Rosário tinha­ estómago ou da espinha torta ou doutro problema.
-lhes vendido um servis; o de porcelana da China, sao A D. Rosário já reve tantos problemas que urna vez
pessoas que compreendem as dificuldades por que os médicos do hospital universitário avisaram-na, va­
estamos a passar, tive pena de desfazer-me do servis:o mos dar-lhe urna injes; áo que vai salvá-la ou matá-la,
mas que se vao os anéis e fiquem os dedos. A mae e a o médico deu-me a injes:áo e eu senti um calor, até pa­
minha irmá bateram a porta dos ricos da casa verde rece que o sangue borbulhava e vi a minha vida acabar
mas nao tiveram a sorce da D. Rosário que se <leve ter ali mesmo, mas nao morri e ainda aquí estou, aben­
poseo a contar as doens;as que tem, só do estómago s:oada injes;áo. A D. Rosário <leve ter contado isto
tiraram-me um caros:o do tamanho de urna noz, isto rudo e muito mais aos ricos da casa verde, se calhar
para nao falar do mal que cenho na espinha. As doen- até lhe compraram o servis:o de porcelana da China
lÓ8 DULCE MARIA CARDOSO 169
O RETORNO

para a calarem. Mas a doen�a da máe náo é doen­ e mais desalentado do que aquele, deve ser aquela a
�a de se falar e a rica da casa verde náo quis saber da metrópole de que a máe e o pai falavam, a metrópo­
toal'1a da máe, dessas ternos mu itas, e fechou a porta, le das estradas por asfaltar. A estrada foi senda cada
a máe e a minha irmá ainda a ouviram dizer, outra vez vez mais estreita e rendo cada vez mais huracos, até
retornadas, estas queriam vender urna roalha das que que o porteiro Queine parou o carro e disse, é aquí.
há cá aos pontapés, ainda por cima mal bordada. U rna casa com o cimento a mostra, porta e janelas
Um quarto pode ser urna casa e este quarco e esta de chapa cinzenta e urn jardim de cerra prcta, nem
varanda de onde se ve o mar é a nossa casa. A casa do urna flor sequer, de um <los lados urna corda cheia de
porteiro Queine também nao é urna casa como as ou­ roupa estendida que se enrodilhava por causa do ven­
tras. O porteiro Queine podia ser um dos nossos, se to. Estava tanto vento que o porteiro Queinc tin.ha
fosse como os de cá nao se tinha lembrado de mim de gritar e mesmo assim era difícil ouvi-lo, guardei
quando soube que o vizinho ia desfazer-se da bicicle­ a bicicleta na arrecadayáo, vou buscá-la. O porteiro
ta, está velha e enferrujada mas talvez te de jeito, náo Queinc afastou-se e desapareceu atrás da casa. Náo
é urna mini Honda mas dá para andares de um lado havia mais casas por perro e as que se avistavam ao
para o outro. Vai ser bom poder dar grandes passeios Ionge pareciam ainda mais pequenas e mais pobres,
e ir para o liceu de bicicleta. A Teresa Bartolomeu ain­ a estrada estreita dividia campos de capim aleo que
da vai gastar m,ús de mim quando me vir fazer um 0 vento deitava ora para um lado ora para ourro, ao
cavalo ou quando lhe der boleia como dava a Paula, fundo duas árvores altas e estreitas que o porteiro
a Paula sentada no guiador e eu a pedalar estrada fara Queine disse serem ciprestes, nem os embondeiros
com os cabelos dela na minha cara. mais secos conseguiam ser tiio solitários como aque­
A casa do porteiro Queine fica muito longe. las duas árvores escuras contra o vento.
O porteiro Queine deu-me boleia no día de folga dele Ouvi o baruJ.ho do carro, disse a Silvana, abrindo
e mesmo de carro parecia que nunca mais chegáva­ a porta e quando deu conta que eu escava ali, entáo
mos, andámos, andámos, andámos, o carro do portei­ és tu o amigo do Queine. Disse mais qualquer co1-
ro Queine subía táo devagar que se f6sse.mos a pé fa­ sa sobre mim e sobre o hotel que náo conseguí ou­
mas mais depressa. O C:HTO é pequeno e velho, até no vir O vento além de enfunar os casacas empurrava as
cablie tem ferrugem. O porteiro Queine dcsculpou­ º.
paÍavras em sentido contrário. Nao sabia que di­
-sc, civemos de comprar um terreno cá para cima, zer mas a Silvana náo parecía atrapalhada, tmha um
quanro mais perto do mar mais a terra vale. O terre­ aventa! as flores e urnas botas Je borracha, as pernas
no do porteiro Queine náo deve ter cuscado um tos­ a sobrarem nas botas apesar das meias de lá grossa e o
tfo porque nao <leve haver sítio mais longe do mar vento sem descanso a mudar-lhe o rabo-de-cavalo de
O RtTORNO 17 1
17 0 DULC f MAR IA CAkl)OSO

l d
u m a o pa r a o o u ror do pe c s o r;:o c o m o e fosse um Só percebi que a Silvana era a mulhcr da noite do
hi íti
c c o t .e o s o d a d
e amr urna s botas p areci ple nário quando me pc rg unco u, exp lica-me Lá entáo
a ro up
­
d a i ch g
a s m n i h
m , a m am - s e al ch s é out
o a , p o que é um bom ma caco. De vo ter corado tanto, que
a r ra
á
ala ­
vr n v a d e t r óp ol e lá n e m a filár ia n fa and ar vergonha. Também tive medo que o porteiro Quei­
a o a rn , os z ia

c r;:a do ,s
aJ h inhá
va o m s de s caJr;:o s s char cos e se ne se zangassc comigo, fiquei furioso como Mourita
c
ap
n o
o ar o c -íri apar e c ,e st á a e a fa z r sol estao as
.
q ue as vezes consegue ser táo estúpido Náo respon­
ia
s c ov e h
r e

b ruxa faz c rp ao m oe l .
dí mas a Si lvana náo desistiu, náo precisas de dizer o
s a
Iáo d
e v ot e r c o n s egu ido dis f arr;:ar a minha desi ­ que é porque eu sei o que é, só náo sei se concordas
lus á q a n o Q u e in ea a ceu das trasei as como tcu amigo. Náo sei como náo morri ali mesmo,
d
porc e ro
i
o u o p r e r
a c o urna bi e en f r ruja da a sorc
da cas e ve acho que se me pícassem náo saía urna gota de san­
icl t
c a lh
a e e
fo q
m ,
i e a Silv an di
a s s ,v a o c
ms p a ra e d s cn áo ainda guc. Quando a Silvana e o porteiro Queine se desata­
u
ntro
l v . P de ro a
e a n t am o s v o o o r nt c a s ac ambém está em ram a rir passou-me pela caber;:a que aquilo rudo era
ú dif c
m e n , a r e nr;:a é qu e o c ime nto n áo está
i
n c a urna cilada, que o porteiro Queine me tinha levado al
to i
c i
man c
had
o com o ver e pegao o da c hu va e do frío para ajustar cantas comigo. Mas o portciro Queine
d j s

c o mo e s t á por fora. Fic ámos na c o zi nha eu e o agarrou - a Silvana e deu- lhe urna palmada no rabo,
por ­
se
,
ce r o Que n cs e a
i i
t
n a o s m se ac oe ra por um olea­
d b t que belo mataco, dcixa láo rapaz . Riram-se outra vez
d
c o frut as de s enha da se a Sil v a no lav -lour;:a a e cu também. O porteiro Que ine e a Silvana sáo táo
o m an a
a s s u n s pr a co s p o r águ a e a pó -lo s o c m cu idado no simpáticos que nem parecem da metrópole. Queres
p ar
rre d de lá t i ul Ac
e sc o
or p s c oaz . a ra da Silv a na nao me tomar a1gu ma coisa, pergu ntou a Silvana. A spessoas
r
e a s e t an
r a c t er a c o nsegu ido le mbr ar- me
a m snu n a oferecem porgentileza, aceita s um co po de ág ua que
h i

qu e e r a a m r eg a da d lim c mq também fica maJ náo cocar cm nada, pode d a


r a im­
e p a pe z a o ue mo Mourita
em do sdi de
s e
t e u n u m a s . A Silva na acab ou pressáo que cernos nojo, ensinou-me a máe.A Silvana
p e n o
l ári

de pass osp a r t os or �ígu a, sa be s porq ue éq ue toda a trouxe-mc um copo cheio de água escura, é água do
ar p
te lh Qu e in e e r
ge n e c ama u-m e, fazen do uns furo aqui ternos de pósito . áo sabia do que é que a
h
, p gun c o ,
ro
ge s s e r a o sc o m o se e s v cs s ea lu t ar chama m ­ Silvana estava a faJar mas náo fiz pergunca s, aágu a sa­
n g a d ti
r;: ,
- lh Q e u n
i
c u da sé i d tcl l mbr as- biaa cerra mas bcbi na mesma. Apesar d e a casa do
o a s r e a e v
, e
e
p r
isá
e o
a
-c e. á m e di l
rq lá havia cele- porteiro Queine e da Silvana ter rorneiras náo deve
o o a e mr ar p o e n
b
p ao

aq u
vs e u í q ase n a ov ejo. O Artur me te u na ca b e r;: sermuico diferenteda casa onde a máe vivia antes de
i á

o u a
u e
di
o r e n o tal Quei irpara lá. Nao, mesmo ass m édiferente, a casaonde
i
e r
d
a lutar s v e
q p a ap por r e
ó n
i á
na t e vs o , e x p lic o u a Silvana ra p a ndo a lou r;: a qu
el
a máe vivía náo tinha fogáo nem g elera nem lava­
i
e
esc av a n oe s c o rr edo r de lástico azul co m m pano -loui;a e esta tem. A máe dizia muitas vezes, a cozinha
p u .
O RETORNO 173
1¡2 DULCE MARIA CARDOSO

era só o escano e um lar, dois armários e urna bacia. atear fogo as nossas coisas lá. Náo me devia pór a ver
Ficámos sentados a mesa, o porteiro Queine a falar as nossas coisas a ardcrem. Tenho saudades do tempo
da casa, talvez para o ano tenhamos dinheiro para a cm que fumar um cigarro era só fumar um cigarro.
pintar, mas sabe-se lá o que vai acontecer, diziam que lv1ais nada. Tenho de ser capaz de tornar a pensar e
ninguérn ia poder ser dono de nada, que a reforma a sentir urna coisa de cada vez. Um quarto pode ser
agrária e as nacionaliza�óes eram só o come�o, que a urna casa e este quarto com esta varan<la de onde se
rcvolu�áo ia avanyar e que nao podía haver proprietá­ ve o mar é a nossa casa enquanto nao vamos para a
rios mas agora parece que já nao é assim, parece que América.
vai voltar tudo para trás, eles lá sabem o que anda.m
a fazer.
Gosto de ver os navios que passam lá longe. Nao
vamos poder ficar para sempre neste quart0 com esta
varanda de onde se ve o mar e por isso a mae e a mi­
nha irma tem razao, este quarto com esta varanda
de onde se ve o mar náo é urna casa. Muito menos a
nossa casa. Se fosse a nossa casa devia ser bom fumar
aqui um cigarro. Seria só fumar o cígarro como quan­
do fumava no muro da cabacaria do Sr. Manuel. Mas
assim é diferente, assim é fumar um cigarro num sítio
a que náo perten�o e a que nunca pertencerei. O por­
tei.ro Queine dissc, quanto mais perto do mar mais a
terra vale, e nós nem sequer ternos o tostáo com que
o porteiro Queinc comprou o terreno deles lá no fim
do mundo. Daqui a na<la tiram-nos daqui e sabe-se
lá para onde vamos. Por isso fumar um cigarro aqui
nao é só fumar um cigarro em frente ao mar. Náo
sei quando é que deixei de sentir urna coisa de cada
vez. Fumar um cigarro devia ser só fumar um cigarro.
Acender um cigarro com o isqueiro Ronson Varafla­
me do pai também devia ser só isso. Náo me devia
pór a pensar que é o isqueiro com que o pai quería
A sala de espera da casa dos penhores é pequena,
tem cadeiras encostadas as paredes, uma mesa
com jornais velhos ao centro, a janela tapada por cor­
tinas de veludo escuras e o cháo de madeira aos qua­
drados como um tabuleiro de damas. Num dos cantos
há urna árvore de natal de plástico com urna estrela
dourada no topo e urna cabana com um meninoJesus
deitado numas palhas de barro, urna nossa senhora e
um S. José. O nosso presépio lá tinha os reís magos
com as oferendas, pastores, ovelhas, burros e vacas e
um rio que a minha irmá estendia, um rio amarrotado
e colorido feíto com as pratas em que os chocolates
vinham embrulhados. Eu fazia as montanhas em car­
tolina verde, uns triangulos recortados com algodáo
no cimo para imitar a neve, e colava areia da praia
num cháo que era de cartolina castanha. Sabíamos
que o menino Jesus náo tinha nascido lá porque lá
náo havia neve, só calor, muito calor. Era como se lá o
natal fosse urna mentira, ninguém acredita num natal
que se pode passar na praia. Aqui o natal é de verdade.
A rapariga que nos mandou esperar pediu desculpa,
o meu avó está um bocadinho demorado, uns dez mi­
nutos, podem aguardar aqui, estejam a vontade, um
176 DULCE J\IARIA C,\RDOSO O RETORNO 177

sorriso tranquilo como se náo tivesse reparado nos sempre fechado fora do período das refei\óes, a ta­
olhos desassossegados da mác, corno se nao soubesse pcs:aria náo fazia mal a ninguém, era táo bonita, mas
o que íarnos ali fazer. a culpa é da diretora, se nos cratasse melhor estas coi­
Já aquí estamos a espera há mais de meia hora sas náo aconreciam, o que eu dava para sair daquclc
e a máe ainda nao se calou, o Zé Viola náo fez bem hotel, se conseguisse arranjar um trabalho, nem que
mas a dirctora e o comité dos trabaJhadores ainda passassc o dia codo a lavar chao, nunca tive medo ao
agiram pior, ninguém gosta de ser acusado injusta­ trabalho e já lavei muito chao, a minha máe ensinou­
mente, a diretora nao podia ter acusado o Zé Viola de -mc logo de pequenina, o crabalho de um menino é
cer destruído a tapes;aria da primeira missa do Bra­ pouco mas quem náo o aproveita é louco, parece que
sil sem ter pravas, é muico grave fazer urna acusas:ao ncsta terra já nem cháo há para lavar, haver há só que
sem provas, o Zé Viola já náo é um garoco, tem mu­ náo no-lo dáo, até parece que ternos lepra, que raio
lher e dais filhos, e nem urn garoto gosta de ser acu­ de gente esta.
sado injustamente, nao sei como é que o do comité A máe dobrou o lens:o encarnado que trotLxe no
dos trabalhadores jurou que tinha visto o Zé Viola de cabclo e pó-lo no colo. Retirou a pulseira de prata da
navalha na máo a cortar a capes:aria de aleo a baoco, malinha de máo, o ceu pai c.lcu-me esca pulseira quan­
se náo civesse conseguido provar que nesse dia esca­ do fiz trinra e dois anos, ainda te lcmbras, foi um dia
va fora do hotel o Zé Viola escava metido num boni­ táo bonico, fornas buscar um bolo a Riviera, cinha
co sariUio, a dirccora podía e},_-pulsá-lo e para onde é dico ao ceu pai que quería uma pulseira com o nome
que o Zé Viola ia com mulher e dois fi.lhos pequenos, gravado, como a que a D. Amália tinha, ainda ce lcm­
o que seria daqucla gente scm um teto e sem comida, bras da D. Amália, era aquela que vivia na casa azul
a diretora cambém tem razáo quando diz que náo é ao pé do calho, a que tin.ha o laguinho com o rcpuxo
a parcir cadeiras e mesas que se rcsolvem as coisas, no jardim, o ceu pai só náo me clava a lua porque náo
nisso a direcora e o comité dos crabalhadores cero ra­ podía, as saudades que ten.ha dele, tenho a certeza
záo, por muito zangado que o Zé Viola tivesse ficado que a primeira coisa que o ceu pai faz quan<..lo chegar
náo devia ter partido a mesa de jogo nem as cadeiras, é tirar-nos daquele hotel, nem bichos conseguiam vi­
aind:1. bem que ninguém se magoou, goscava era de sa­ ver naquelas condis:óes, e ainda se queixa a diretora
ber quem tcrá dado a navalhada na tapes:aria, deve ter que o hotel está codo estragado, náo sei do que es­
sido um homem que urna rnulher nao ce ria fors:a para rnva a espera, accicou eres vezcs mais pessoas do que
canco, urna nav:1Jhada de cima a baixo numa capes:aria o hotel leva, as vezcs até dá a ideia de que o hotel vai
cio grossa, nao se percebe: como é que alguém consc­ rebentar cáo cheio está, mesmo urna crianr;a via que
guiu fazer aquilo, ainda por cima com o restaurante náo podia ser, é vcrdade que as pessoas cambém náo
l]8 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 179

precisavam de ser tao más, aqueles maples da sala de tem o cabelo atado com uma fita lilás, os olhos ainda
convívio todos queimados com as pontas dos cigar­ ensonados e chinelos de andar por casa. O corredor é
ros, maples tao caros, até faz doer o corac;ao, as alcati­ escuro e comprido com portas de um lado e do outro,
fas cheias de chuingas, aquilo nunca mais sai, imagino a rapariga guia-nos sem qualquer hesitac;áo, um gato
o que vai para os quartos, as empregadas recusam-se junta-se a nós, <leve ter saído de urna das portas por
a entrar em certos quartos, nem quero pensar como onde passámos, um gato branca com um pelo com­
está o quarto da D. Suzete todos os dias a fritar cha­ prido a arrastar no chao. Nem os chinelas da rapariga
muc;as, que enjoo aquele cheira a fritos todo o santo nem o gato fazem barulho, só os meus passos e os da
dia, a nossa roupa cheira sempre a fritos, a diretora mae. A rapariga abre uma das tres portas do fundo
deve ter-se arrependido do que fez, foi por isso que do corredor, fac; am favor, e deixa-nos com o avó, um
veio com a conversa da festa da passagem de ano, nao velho que está sentado a urna secretária numa sala
precisamos de festas, precisamos é que nos trate me­ pequena.
lhor e que pare de nos chamar vandalos, coitado do O velho mantém-se sentado e ficamos sem saber
Zé Viola, que nem no hotel escava quando destruíram se havemos de estender-lhe a mao. Com um gesto
a tapec;aria, um desees dias acontece urna desgrac;a, pede que nos sentemos, há duas cadeiras em fren­
um <lestes dias alguém perde a cabec;a e depois quera te da secretária, a mae numa cadeira e eu na outra,
ver, nao sei por que nao nos chamam, já estamos aquí muito direitos, como se a manei�a de nos sentarmos
há tanto tempo. pudesse vir a decidir qualquer coisa. Foi o Sr. Teixeira
Esta casa nao é como a do porteiro Queine. que nos indicou a sua casa, estamos lá no hotel, diz
É urna casa perta do mar com urna porta com qua­ a máe estendendo ao velho um papel. O velho olha
drados de madeira, urna porta chocolate com um para o papel em que o Sr. Teixeira nos recomenda
puxador que é uma cabec;a de leao em ferro. Antes mas náo mostra qualquer interesse. Atrás dele há ar­
de tocarmos a campainha a máe ajeitou o cabelo por mários cheios de tac;as, salvas de prata como as das
baixo do lenc;o encarnado que lá usava nos dias de igrejas, cristos de vários tamanhos mas todos pendu­
. vento, compós as pregas do vestido azul do cacimba, rados na cruz, binóculos, relógios de cuco que fazem
verificou se a pulseirá de prata estava na carteira e en­ tic-tac. Nao dou lago conta do barulho dos relógios.
saiou o sorriso, ternos tudo. Agora que a rapariga nos T ic-tac. A persiana entreaberta faz pequenas ovais de
disse que o avó já nos pode receber, a mae compóe luz como as que pousavam nos azulejos da cozinha a
outra vez as pregas do vestido azul do cacimba, ajeita hora de almoc;o, quem. será que está agora sentado na
o toutic;o que o lenc;o encarnado tapava, só se esquece sombra fresca da nossa cozinha. O pó brilha no ar ao
de ensaiar o sorriso. A rapariga é mais nova que eu, ser apanhado pelas pequenas ovais de luz, lá fora as
r8o DULCE: MARIA CARDOSO O RETORNO 181

nuvens devem estar a tapar e a destapar o sol porque mativo. Amáe torce as máos, perdemos tudo, tenho
as pequenas ovais váo aparecendo e desaparecendo. dois filhos, este e urna rapariga que acaba este ano o
A mae está nervosa, tem gotas de suor na testa liceu, o senhor <leve saber a dor que é nao podermos
apesar de a sala estar fria. Já tirou a pulscira da car­ cuidar dos nossos, só nos deixara.m trazer cinco can­
teira e tem-na na mao que fecha com for<;:a. A máe de tos por pessoa, já estamos cá há muitos meses, o di­
repente táo cansada, com o cabelo preso num touti<;:o nheiro está a acabar, o senJ1or sabe que ninguém pode
como as velhas de cá, a máe sem reparar nas pequcnas viver sem dinheiro e náo consigo a.rranjar trabalho,
ovais de luz que lhe pousam no corpo. Por fon o ve­ ou náo o há ou náo rno dao, o meu marido trabalhou a
lho diz, cm que posso ajudá-los, o velho afundado na vida inteira, náo tivcmos culpa. O velho interrompe a
c:adeira preta de cabedal, urna voz inesperadamente rnáe, cara senhora, sou só um hornero com urna ba.la.n­
segura num corpo tao fraco. Amae estende a máo e <;:a, só sei pesar o que a bala.n<;:a pesa, pe<;:o desculpa.
abre-a, quase o gesto de uma crian<;:a, quera vender Amáe inclina-se para trás, as costas bem encos­
esta pulseira. O velho recebe a pulseira de prata, tadas a cadeira, como se isso pudesse ajudá-la a per­
a ponta da pulseira que cem a chapa com o nome da ceber. Cara scnhora, nao precisa. de decidir agora, há
mae inscrito escapa a máo do velho, Glória, o nome acima de tudo paciencia na voz do vefüo, se quiscr
da mae baloi<;:a, letras pequeninas que só se leem ao pode ir lá fora pensar um pouco, pode voltar noucro
perto mas sei que estáo lá, Glória. O velho atira a pul­ dia, estou sempre aqui. Amáe diz, o meu marido fi­
seira para o prato de urna balan<;:a, a pulseira tilinta ao cou lá e ainda náo tive notícias dele, náo sei quando
cair no prato, urna balanp com pratos de cobre, pe­ poderá vir ter connosco, o gaco mais atento ao que a
quenina, diferente de todas as balarn;:as que já tinha máe diz do que o velho, cara senhora, náo há um dia
visto, o velho ajusta os pesos, para uns instantes mas que nao venha cá alguém vender ouro e prata, cada
os relógios, tic-tac tic-tac, as gotas de suor na testa da um tem a sua história, alguns contam-na outros nao,
máe, duzentos e setenta e cinco escudos, diz o velho nunca me neguei a ouvir uma pessoa e nunca me nego
olhando para a máe e a mae em vez do sorriso ensaia­ a comprar a pre<;:o da lei tudo o que me tra.zem, mais
do um trejeito de <lesespero. O gato branco salta para do que isso náo posso fazer. A máe levanta as máos
cima da secretária, senta-se cerimonioso ao lado da muito devaga.rinho, a caber,:a fraca da mae vai traí­
baJan<;:a e o velho distrai-se. -la a frente do velho, a máe vai come<;:ar a gritar ou a
A máe engoliu em seco mas ncm por isso a voz dizer coisas estranhas. Mas nao. Devagarinho a máe
lhe sa.iu melhor, foi urna prenda do meu marido. Cara leva as máos ao pescoc;:o e o velho nurn entendirnento
senbora, diz o velho pacientemente, cu compro ao qua.lquer com a máe tira a pulseira da ba.la.n<;:a, a mac
peso, náo pago os feitios das pe<;:as ncm o valor esti- desprende o fecho do cordáo de ouro, o mcda.lháo
182 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 183

onde está a fotografia do rapaz coro que a máe casou D. Arminda enfiá-los nos bidóes cheios de água, as ve­
desliza pelo vestido azul do cacimba. O rapaz que zes até era água da chuva. Quando eram acabados de
casou nao, o rapaz que existiu antes do hornero com nascer o bidao nem se mexia mas se eram maiores a
quem a máe casou, o rapaz que nem sequer estava no D. Arminda tinha de chamar um de nós para nos sen­
cais quando a máe desceu do Vera Cruz, os gestos da tarmos em cima da tampa porque os gatos estrebu­
máe táo lentos, podia tentar impedí-la, a mae talvez chavam, um barulho enorme que náo era este tic-tac
pressinta o que penso, olha-me e diz, nao temimpor­ do relógio e a D. Arminda, dizem que tero sete vidas
tincia, e os relógios nao param, tic-tac, tic-tac, o gato mas mais parecem ter vinte. Eram os mesmos bidóes
entretido a lamber urna pata até que o corda.o cai no que o marido, o Sr. Delfim, levava cheios de gasóleo
prato da balans:a. O velho torna a pór os pesos, as nas viagens pelo mato até a fazenda. Eu gostava de
nuvens taparo e destapam o sol, fazem e desfazem as ir ajudar o Sr. Delfim a preparar os bidóes, o Gegé e
ovais de pó brilhante sobre a secretária, escangalham o Lee também, os bidóes tinham de ser esvaziados,
o tempo certinho dos relógios, tic-tac, o gato parado limpos e secos ao sol para que o Sr. Delfim os pudesse
coro a pata no ar, a espera, tres mil e novecentos escu­ encher novarnente de gasóleo. Também gostávamos
dos, a mae muito baixinho, custou mais de vinte con­ de nos meter nos bidóes vazios e pó-los a rolar, náo
tos, e o velho, nao duvido, cara senhora, mas como se podia deixar que apanhassem a descida, apesar da
lhe digo eu sou só um homem coro uma balans:a que falta de ar, do escuro e dos encontróes nas pedras era
compra ouro e prata ao pres:o da lei. giro ir dentro dos bidóes, o Sr. Delfim zangava-se
As lágrimas nao podem estar a correr pela cara da connosco se nos via, ainda se matam contra um carro,
mae porque náo se ouve um único solus:o. As lágrimas nós ríamos, náo tínhamos medo nenhum, antes de os
nao podem estar a correr pela cara da máe coro este tiros terem comes;ado nao tínhamos medo de nada.
velho e este gato a olharem para ela. Era capaz de ma­ O gato <leve ter l.ido os meus pensamentos por­
tar este gato que tem os olhos vidrados na mae, era que dá um pulo para o cháo, a mae tira o cordáo de
capaz de lhe pór as máos a volea do pescos;o e de o ouro da balanp, náo consegu e vende-lo, o corda.o faz
apertar até ouvir os ossos a estalarem como os rapazes parte da mae, quando está mais nervosa agarra o me­
de cá fazem aos pombos a frente do liceu, rodam-lhes dalhao e a fotografia do pai sossega-a, a mae vai tor­
a cabes;a para os verem andar as voleas no passeio, os nar a pór o corda.o ao pesco<;:o e vai dizer-me, vamos
pombos dáo tantas voltas até morrerem que os rapa­ embora. A máe abre o medalháo, retira a fotografia
zes cansam-se de ficar a ve-los e váo-se embora. Náo do rapaz que nunca apareceu no cais, torna a pór o
é assim que se matam os gatos. Eu sei como se matam cordao em cima da secretária, quero vender as duas
os gatos. Nunca matei nenhum mas vi muitas vezes a coisas, diz sem hesitar.
N unca pensei que o Pacat¡:a me convidasse
para fazcr parte do piquete dos contentares.
O Mourita estava farro de dizer ao Sr. Acácio e mes­
mo ao Pacat;:a que gostava de ir fazer as rondas mas
eles nunca o levaram, é trabalho de homem, tem de
se passar a noite ao relente e estar preparado para o
que der e vier, os ladróes que apanharmos tem de ser
castigados. A semana passada assaltaram o contentar
da D. Cclina e do Sr. Marques, náo conseguiram levar
muita coisa mas partiram a geleira, o fogáo, as pernas
aos móveis, nem o sagrado corat;:áo deJesus que já era
da máe da D. Celina escapou, os ladróes deviam ser
comunistas, só os comunistas é que detestam igrc­
jas e imagens de santos, é ver o que fizeram na Rús­
sia, ladróes normais nunca teriam partido urn santo,
disse o Pacat¡:a.
O .Mourita ficou furioso quando o Pacat;:a me
convidou, ainda por cima fez o convite a frente de
todos os que estavam a assistir a partida de sueca.
O Pacai;:a tinha pux:ado a jogada a paus e tinha-se fci­
to silencio porque o Sr. Belchior ia perder mais urna
vez. O Sr. Bclchior é táo careca como o Chris dos Setc
.Magníficos, está semprc a copr a cabct¡:a brilhante
l86 DULCE MARTA CARDOSO O RETORNO 187

e a apostar wlúskies em como vai ganhar ao Paca<;:a conversa. O Faria pousou o baralho em cima da mesa,
mas nunca ganha. O Paca<;:a tinha puxado a jogada a o Sr. Acácio cortou, o Pacai;:a disse, amigo Faria voce
paus para apanhar a manilha de auras do Sr. Belchior, nunca disse uma verdade tao grande, aos anos que a
vira-se para mirn e do nada, pareces-me um rapaz as minha mulher morreu e ainda a ou<;:o a matraquear­
direitas, tenho visto como tomas canta da tua mae -me os ouvidos, deus a tenha em bom descanso mas
e irma, se quiseres podes vir connosco hoje a noite, era mais chata do que as doern;:as que se apanham
ternos muitos quilómetros de contentares para vigiar nas putas. O Paca<;:a deu mais urna passa e esmagou
e precisamos de mais homens para as rondas, se nao o cigarro no cinzeiro cheio de beatas. A sala de con­
defendemos o que é nosso ninguém defende. O Paca­ vívio apesar de ser grande cheira tanto a fumo de ci­
<;:a arrecadou a manilha de ouros do Sr. Belchior que garros que parece que o pai está sempre por perta.
disse zangado, com tanta sorte ao jogo <leve ter sido O Sr. Belchior olhou para as cartas que lhe saíram,
um infeliz no amor. As cartas ainda requerem algum é desta amigo Paca<;:a, é desea, o Paca<;:a nas calmas, se
saber mas o amor é o único jogo em que só é preciso voce quiser apostar mais um whisky vamos a isso, e o
sorte, respondeu o Pacai;:a encolhendo os ombros. Faria, só espero que consigamos apanhar os gatunos
Fiquei tao contente que nao sabia o que dizer, esta noite, corto urna mao ao primeiro que apanhar,
podem contar comigo, a que horas tenho de estar é o que os israelitas fazem aos ladróes. Acho que nao
pronto, é preciso levar alguma coisa. Calma aí, nao sao os israelitas, disse o Sr. Acácio a enrólar um cigar­
estamos a preparar um piquenique de senhoras nem ro e a olhar para a D. Juvita, que tinha acabado de en­
de escuteiros, disse o Sr. Belchior acendendo urn ci­ trar na sala de convívio com um decore que lhe fazia
garro apesar de os pulmóes chiarern como os do pai saltar as mamas. Bons olhos a vejam, D. Juvita, cum­
chiavam, encontramo-nos aqui em bai:x:o por volta primentou o Pacai;:a fazendo de canta que as mamas
das dez, dais avisos, se fores friorento é melhor nao da D. Juvica nao charnavam por todos. Tenho andado
ires, que ao pé do ria o fria até nos faz chorar, e se constipada, disse a D. Juvita, anda tuda doente neste
tiveres estómago de rapariga tarnbém é melhor fica­ hotel, como se já nao bascasse o resto. É este fria, res­
res, pode haver bronca da feia, se apanho algum dos pondeu o Sr. Belchior, a senhora tero de se agasalhar.
ladróes atiro a doer. Nao tenho medo ao fria nem aos Os homens jogam tanto que as cartas já estao <labra­
ladróes, respondí. Fazes bem rapaz, disse o Faria ba­ das e gastas, o Faria pós as cartas em leque, se nao é
ralhando as cartas, nao tens cá o teu pai e um bocado em Israel que cortam urna mao aos ladróes é na Índia,
de conversa de homens só te faz bem, conversar com é num país desses, nao interessa em que país é, o que
mullieres nao é a mesma coisa, conversar com mullie­ interessa é ser urna boa ideia, urna mao a menos já
res é ouvir e calar que elas nao aceitam outro tipo de deve dar que pensar a um ladrao.
188 DULCE MARIA CAROOSO O RETORNO 189

Vamos sempre no carro do Pacac;:a que tem o vo­ cartas, discutir política e olhar para as mamas e rabo
lante a direita por ter sido comprado em Moc;:ambi­ da D. Juvita e das outras mullieres. E para se assusta­
que. Estacionamos no princípio do cais e os conten­ rem com os boatos de cada dia, os estrangeiros já náo
tores perdem-se de vista ao longo da margern do río. mandam mais dinheiro, os comunistas estáo a incitar
O Sr. Belchior diz que os contentores sáo as sobras o comité dos trabalhadores do hotel a comar o hotel
do império, náo deixa de ter piada que estejam a apo­ e a primeira medida vai ser porem-nos na rua, o go­
drecer no mesmo sítio de onde o império comec;:ou, verno já deu ordem de esvaziar os hotéis, que já foi
a.lgurna coisa isto quer dizer, a.lguma coisa <levemos mama suficiente. Mas o que mais fazem é gastarem
aprender com isto, tudo na vida ternos seus porques. horas a lembrar-se do que perderam, se me ponho a
O Sr. Belchior fa.la sempre por enigmas e torna-se pensar no que lá ficou dou um tiro na cabec,:a, acho
cansativo ouvi-lo durante muito tempo. Apesar de o que já ouvi cada um deles nesta conversa pelo menos
carro ser do Pacac;:a, quem con duz sempre é o Sr. Bel­ urna vez.
chior porque o Pacac;:a nao ve bem a noite, a culpa é Os homens também querem arranjar trabalho
das �!erras do Fim do Mundo, nao sei o que me estra­ para mostrar aos mangonheiros da metrópole de que
gou mais os olhos, se foi a luz ou se foi o breu daquele massa os retornados sáo feítos, se conseguimos cons­
sítio. O Pacac;:a diz sempre isto porque náo há coisa truir terras como as que fornas abrigados a deixar
que os velhos gostem mais de fazer do que repetirem­ tarnbém conseguimos mudar o atraso de vida que a
-se. Os velhos do hotel nao conseguem parar de fa.lar metrópole é. Os de cá gostam cada vez menos de nós,
do império pelo qual ainda usarn o fumo na manga do andámos lá a explorar os pretos e agora queremos
casaco em sinal de luto. Os do grupo do Joáo Comu­ roubar-lhes os empregos além de estarmos a destruir­
nista chamam-lhes imperialistas reacionários e mui­ -lhes os hotéis, a destruir a linda metrópolc que nun­
tas vezes há maca. Deixe-se lá de comunismos, amigo ca mais vai ser a mesma. O Pacac,:a diz que a desgrac;:a
Joáo, olhe que até os de cá puseram os comunas no que nos aconteceu náo é nada comparada com a des­
lugar, diz o Pacac;:a e logo o Joáo Comunista, ainda se grac,:a que nunca deixou de acontecer aos de cá e até
váo arrepender, ainda se váo arrepender. oJoáo Comunista que discorda sernpre do Pacac,:a lhe
Os homcns do hotel náo discuciam tanto se ti­ deu razáo, náo há piar desgrac;:a do que nunca ter saí­
vessem trabalho ou se os empréscimos do IARt""J nao do daqui, no meio de tanta miséria a única coisa que
estivessem tao atrasados. Quase todos pensam como medra é a inveja.
o pai pensava, a minha política é o trabaJho, só que Amáe náo gasta que eu fac;:a parte do piquete dos
o único crabalho que tem é procurar crabalho que contentares, era o que faltava passares a noite em cla­
nunca aparece. Tem tempo de sobra para jogar as ro a vigiares as coisas dos outros, ainda por cima corn
190 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 191

este frío. Tenho sempre um trabalháo para convence­ outros retornados, desc;:o as rochas para ir ver o mar
-la, o casaco e as botas que me deram no sítio da rou­ ou entáo ando de bicicleta de um lado para o outro
pa sao quentes, levamos cobertores do hotel para nos e penso nas minhas coisas, na morte do pai e na ida
enrolarmos e acendemos sempre urna fogu eira, mas a para a América. Ainda náo falei com a máe e com a
máe insiste, é perigoso andares a fazer isso, este país minha irmá sobre isso, tenho primeiro de roubar os
está virado ao contrário, se te acontecesse alguma contentares dos martas de Sanza Pombo. É a úni­
coisa nao sei o que seria de mirn, o que diría ao teu ca maneira de arranjar dinheiro para os bilhetes de
pai, náo te deixo ir, náo quero o meu filho sem dor­ aviáo. Quando me canso de pensar em coisas más,
mir e a apanhar frío para vigiar as coisas dos outros. penso em como será dar um beijo a Teresa Bartolo­
Podia virar as costas a máe como o Mourita faz a meu ou no encontro com o Gegé e o Lee no cimo da
D. Ester, a máe ia .ficar fula durante urnas horas e de­ Sears Tower. O Gegé quería marcar o encontro para
pois passava-lhe como acontece com as outras máes. o dia em que ele fazia dezoico anos mas o Lee nao
Mas tenho medo que os de~mónios comecem a rondá­ concordou, porque os teus anos e náo os meus ou os
-la e sossego-a o melhor que sei, náo se preocupe que do Rui, porque sou eu o último a fazer dezoito anos,
náo vai haver problema nenhum, é só urna noire pas­ ainda discutiram por causa disso, desentendiam-se
sada a fogueira. A máe também náo gasta do Pacac;:a, muitas vezes por coisas de nada. Sugerí a passagem
quando fala nele, gabo-lhe a paciencia de ter contado de ano, deve ser bom ver o fogo-de-artifício do cima
quantas pacac;:as matou, cligo-lhe que as histórias do da Sears Tower, jurámos que nos vamos encontrar no
Pacac;:a sao mentira, é só para se gabar, nao tem mal, cimo da Sears Tower no día 31 de dezembro de 1978,
náo há neste hotel quem náo minta. A máe baixa os tenho tantas coisas para lhes contar. O Gegé e o Lee
olhos como se a tivesse repreendido, é fácil urna pes­ ainda devem ter mais, tem de acontecer mais coisas
soa engarrar-se quando recorda coisas que acontece­ na África do Sul e no Brasil do que na metrópole, na
ram táo longe, e acaba sempre a dizer a mesma coisa, metrópole náo acontece nada tirando a revoluc;:áo.
vais na condic;:ao de te agasalhares e náo faltares as au­ Náo sei o que seria de mim sem a bicicleta, as
las amanhá, náo quero saber se tiveres sono, tens de ir vezes fico cansado e com tanto frio mas mesmo assim
a escola para seres algu ém na vida, se eu tivesse estuda­ é melhor do que estar na sala de aulas, tuda é melhor
do náo estávamos neste hotel mas os meus pais preci­ do que as aulas. Nem é por causa da puta de matemá­
saram de rrúm a malhar o centeio e a varejar as oliveiras tica, um dos retornados que responda, a essa já nem
e agora sem estudos nem um cháo me dáo para lavar. ligo, quera que ela e todos os que nao nos querem cá
Nao sei o que a máe faria se descobrisse que falto se fodam, náo gosto de ir as aulas porque náo consi­
as aulas. Vou para trás do pavilhao C fumar com os go prestar atenc;:ao, náo quero saber do que estáo a
192 DULCE MARIA CARDOSO 0 RETORNO t93

ensinar, a única coisa que me interessa saber é como donos náo os podem vir buscar sem terem sítio onde
vou levar a máe e a minha irmá para a América, e para os pór, tem de arranjar a vida primeiro. É escranho
ir para a América tanto faz um ano de escola a mais ver tantos caixotes ao longo do cais, caixotes de todos
ou a menos. Tenho é de continuar a decorar as pala­ os tamanhos e feitios em rnadeiras de todas as cores.
vras do dicionário, decorar palavras é mais difícil do Ainda me lembro das tábuas de madeira no quintal
que pensava, há muitas de que nem conhe<;:o o signi­ do Sr. Nfanuel, no quintal da D. Gilda. Nunca houve
ficado em porrugues, o que é que quer dizer apóstata. tábuas no nosso quintal porque o pai insistía, nao lhes
i.vfas se até agora nunca precisei dessas palavras em dou um ano e estáo a trazer as bicuatas para cá outra
portugues também nao devo precisar delas em ingles. vez, esta terra é nossa. O pai náo teve razáo, os cai.xo­
Aminha irmá sabe que tenho andado a faltar as aulas tes continuam ao pé do rio e nunca mais váo volcar
mas nunca me denunciou a máe. A minha irmá está para lá. O Paria ia parando para investigar barulhos
diferente, aJém de nao fazer quci..xas a máe, quando lá que inventava, nem um rato havia quanto mais um
náo fazia outra coisa, agora quer ser boa aluna e está ladráo, o Faria devia estar ansioso por usar o castigo
sernprc a estudar. Náo sei como a metrópole pode dos israelitas ou dos indianos, corto urna máo ao pri­
mudar tanto as pessoas. Ensinaram-nos tantas coisas meiro que apanhar.
sobre a metrópole, os rios, as linhas de caminho-de­ Já sabes quando o tcu pai vem, perguntou o Fa­
-ferro e só nao nos ensinaram o mais importante, que ria passando a máo por urna das ripas de madeira que
a metrópole muda as pessoas. selava um dos caixotes. Nunca disse a ninguém que o
Calhou-me fazer a primeira ronda aos contento­ pai morreu, nem sequer a máe ou a minha irmá, náo ia
res com o Faria. Já tínhamos acendido a fogu eira e saber como explicar. Ainda náo, respondi. O río táo
o Paca<;:a tinha posto a água ao lume para fazer café. perto, se daqui partiram as caravelas para lá também
As fogueiras lembram-me as ca<;:adas, pensando bem poderei partir daqui para a América. Ch.iu, disse o Fa­
isto também é uma car;ada, se apanhar aJguém com ria como se quisesse que eu parasse de pensar em ir
as patas nos contcntorcs atiro a cloer, já me roubaram para a América, e pós-se em aJcrta outra vez, parece
o que tinham a roubar, paJavra de honra e de Paca<;:a. que vi ali urna coisa a mexer. Náo era nada mas o Paria
O Faria tem urna catana pequcna e eu urna lanterna até se encostou ele lado a um contentar para espreitar
que hoje nao é necessária, está noite de lua cheia e até o corredor que se fazia entre duas filas, como nos fil­
a água do ria está clara. Este rio nao tem crocodilos mes policiais. Rapaz, abre csses olhos e esses ouvidos
nem hipopótamos como o río Cuanza, náo é verdade que esta ladroagem é fina, acenei que sim. As únicas
que os rios sejarn todos iguais, duas margens e água coisas que se mexem somos nós e as nossas som­
no meio. Os contencores estáo aqui há meses mas os bras. Sabes o que eu te digo, o teu pai que se ponha a

• r-
194 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 195

andar, a guerra a sério ainda nem comec;:ou, a FNLA e Cuanza. Aquí nao há um mato táo fundo onde nem
a UNITA tem Luanda sitiada, os americanos e os sul­ sequer o luar consegue entrar. A metrópole é velha e
-africanos vao dar !uta aos comunas russos e cubanos já nao tem um pedac;:o de terra selvagem onde a mae
do MPLA, o teu pai que venha enquanto é tempo. possa inventar urn corac;:ao.
Fingi que investigava um dos caixotes para desviar Mas que frío do catana, esse teu casaca é quen­
a conversa mas o Faria, o que é que o teu pai fazia lá, te, perguntou o Faria. Que sim, respondí. É pena ser
era industrial de camionagem, respondí, isso até pare­ branca, continuou o Faria, pelo menos é o teu núme­
ce urna profissáo mais importante do que a de doutor, ro, a mim nao me deram nada de jeito, deitei tuda
tinha camióes, carregava café, algodao e sisal, expli­ fora quando cheguei ao hotel, urna das camisolas até
quei. O Faria abanou a cabec;:a, café, algodao e sisal, ves comida pela trac;:a estava. A mim deram-me esta ca­
a diferenc;:a, aquí só há batatas e couves, como é que se misola que é bem quente, abri o casaco para mostrar a
consegue fazer dinheiro com batatas e couves, mas se camisola com renas encarnadas. Ah, agora andas com
o teu pai está a espera que a guerra acabe está a perder bichinhos, gozou o Faria. E também me deram estas
tempo, aquilo nunca mais vai ficar bem, Angola aca­ botas, levantei as calc;:as para o Faria ver que tinham
bou, kaputt, o café, o aJgodao, o sisal, o óleo de palma, atacadores e sola de borracha, urnas botas de inverno
os diamantes, o petróleo, kaputt, acabou tudo, restam­ a sério. Tiveste sorte, resmungou o Faria, e o que é
-nos estes caixotes, e a maior parte com tralha velha isso escrito nas costas do casaca, Didja, leu o Faria,
que os que mandaram coisas boas já as levantaram, o que é que isso quer dizer. Também nao sei, e a voz
restam os caixotes de quem nao tem dinheiro para os da Teresa Bartolomeu por entre os contentares, ei
levantar nem casa onde pór a tralha, cada vez que olho Didja, basta a voz da Teresa Bartolomeu para a noite
para isto dá-me urna revolta tao grande, que miséria ficar mais quente, ei Didja. Nao sei o que Didja pos­
de vida, se apanhasse o Rosa Coitadinho punha-lhe as sa ser, tornou o Paria intrigado, sabes o que te digo,
maos no gasganete e só as tirava quando já nao disses­ se falássemos todos a mesma língu a era mais fácil
se ai nem ui, foi o filho da puta que incitou os pretos, entendermo-nos, até os pretos nos teriam entendido.
sabes que foi ele quem os mandou matar as nossas mu­ Estes contentares é que me fodem a cabec;:a, dis­
llieres e os nossos filhos, ai se lhe pusesse a mao, a ele se o Faria parando a frente dos contentares dos mor­
e a todos os que nos traíram, ao Bochechas e compa­ tos de Sanza Pombo, cada vez que vejo estes conten­
nhia, se lhes pusesse a mao nao ficava nenhun1 vivo, tares dá-me um aperto na garganta que nem consigo
nao me importava de apodrecer na prisao. respirar, quando olhamos para isto é que se percebe
Nas margens <leste rio a mae nao ia poder falar a sorte que apesar de tuda tivemos, estes coitados
do corac;:ao da terra como quando famos a barra do nao escaparam, duas fanúlias inteiras, que massacre,
196 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 197

as cabec;:as foram encontradas a entrada de Sanza hornero, é urna ratazana. Para o Pacac;:a há homens de
Pombo e o resto espalhado sabe deus por onde, os fi­ <lois tipos, os homens homens e as ratazanas, e nem
lhos da puta matavam e espalhavam os bocados dos sequer pode haver um homem que seja um bocadi­
corpos para impedir que voltassem a viver, acham nho ratazana. O Pacac;:a dá sempre a mesma explica­
que só se o corpo náo se puder juntar é que a morte c;:áo, a alma apodrece mais depressa do que a carne,
é a sério. ora se um dedo apodrecido que nao é cortado leva o
Os nomes dos morros de Sanza Pombo foram corpo codo, se é assim com a carne que está a vista de
lidos muitas vezes na lista dos desaparecidos gue pas­ toda a gente, imagine-se o que será com a alma que
sava antes e depois da Sirnplesmente Maria. Lembro­ ninguém ve e de que nao se pode cortar a parte ruim.
-me de a minha irmá esperar impaciente que a lista Ao princípio também me fez impressáo a ideia
acabasse de ser lida, quería saber o que ia acontecer a de roubar os contentares, até houve noites em que
Maria e ao Alberto, a minha irmá aborrecida por ter sonhei que os mortos de Sanza Pombo estavam zan­
de esperar, estáo sempre a repetir os mesmos nomes, gados comigo, a perguntarem-me, como é que tens
já toda a gente sabe que desapareceram. Se calhar o coragem de roubar as nossas coisas depois de tuda
tio Zé telefonou para dar o nome do pai, se calhar o o que nos aconteceu, mas depois pensei, os conten­
nome do pai passou na lista de desaparecidos, já náo tares váo acabar por apodrecer, as coisas váo todas
deve haver lista de desaparecidos, já náo há ninguém estragar-se no cais ou entáo váo ser roubadas por ou­
a procura, para além de nós e do tio Zé, ninguérn sabe tros. Se o pai estivesse connosco e roubássemos os
que o pai desapareceu. A minha irmá náo fazia por contentares seria diferente, o pai sabe como ganhar
maJ, quería ouvir a novela e os desaparecidos atrasa­ a vida e só roubaria os concentores por ganancia ou
vam tudo, quando náo se tin ha ninguém desapareci­ por mangonha. Mas o pai náo está connosco nem
do e se gostava da radionovela como a minha irmá nunca mais estará, agora sou eu o chefe de familia e
gostava era fácil desesperar com urna lista que era tenho de levar a máe e a minha irmá para a América.
cada vez maior e demorava cada vez mais tempo a ler. De certeza que náo há ninguém que venha levantar
Náo posso contar a ninguérn o meu plano de os contentares, os morros de Sanza Pombo náo tero
roubar os contentares dos mortos de Sanza Pombo. cá familia, se tivcssem tinham escrito urna morada de
Nem ao Mourita. Invejoso como está de náo fazer cá e náo apenas Portugal em letras grandes e a preto.
parte dos piquetes o Mourita ia lago dizer ao pai dele Náo estou a roubar ninguém já que os mortos náo se
e o Sr. Acácio nao demoraría um día a avisar o Paca<;a. podem roubar, diga o Pacac;:a o que disser sobre os
Até parece que estou a ouvir o Pacac;:a, um homem homens e as ratazanas. E aposto que o Faria, o Paca­
capaz de roubar os monos de Sanza Pombo náo é um c;:a, o Sr. Ad.cio e os outros codos que pertencem aos
198 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 199

piquetes também já pensaram em roubar os monos que nem os sinto, se um homem se póe a pensar a sé­
de Sanza Pombo. Até o Joáo Comunista que tem a rio em tudo o que aconteceu acaba por dar um tiro
mania que nunca fez nada errado na vida já deve ter nos cornos.
pensado nisso pelo menos urna vez. O que é dificil é Gostava que o Faria parasse de falar por uns mi­
manter o pensamento de roubar, mesmo que náo se nutos, náo percebo o que acontece as pessoas quando
queira come\'.a-se a pensar nos carpos aos bocados, envelhecem que nao param de falar. Devem ter medo
no que aquela gente passou e perde-se a vontade de como o Paca\'.a, quando tiver a boca cheia de terra
tocar nas coisas, que .fiquem a apodrecer no cais se nern mais um pio. Quando for velho vou estar sempre
assim tiver de ser. Sei que é assim que se pensa porque calado. O Faria continua, parece um rádio sempre li­
tarnbém já pensei da mesma maneira e teria conti­ gado, a descoloniza\'.áo nao foi má para toda a gen­
nuado se náo tivesse a máe e a minha irmá para levar te, por maior que seja a tragédia há sempre quem se
para a América. Mas tenho e isso é rnais importante aproveite e houve muitos que se aproveitaram e que
do que pór-me a pensar no que está certo ou errado, vivem melhor aquí do que lá, e nao estou a falar dos
no bem e no mal, os vinte cantos que trouxemos já pretos que lá viviam nos musseques e que agora estáo
se gastaram e náo ternos mais cordóes de ouro para nos botéis, estou a falar de brancas que roubaram o
vender. que puderam, ó rapaz nao precisas de te chegar tanto
Estes contentares devem estar cheios de coisas a borda para mijar, se te dá uma t0ntura cais lá em
boas, disse o Faria passando a máo como as vezes se baixo e náo penses que te vou buscar, olha, já agora
passa no capó de um carro que náo se quer riscar, mijo também, é bem verdade que quando mija um
eram fazendeiros ricos, foram os próprios contra­ portugues mijam logo dois ou tres, ai rapaz, que cara
tados que os mataram, sabe-se lá o que se passava mais séria, era capaz de jurar que tens um desgasto de
naquelas fazendas, a coisa para o interior fi.ava mais amor ou coisa que o valha, o ano ainda agora come­
fino, havia brancas que abusavam, nao posso dizer o \'.Ou e andas tu com essa cara, o que é que te apoquen­
contrário, mas mesmo que estes pobres coitados ti­ ta, ano novo vida nova, o que é que se passa. Nada,
vessem abusado já se vinham embora, já tinham man­ respondí, náo se passa nada. Náo vou contar ao Faria
dado os contentares, náo há ser mais rancoroso do que estou a ver se descubro a melhor maneira de rou­
que o preto, esperam o tempo que for preciso para se bar os contentares dos mortos de Sanza Pombo, náo
vingarem e vingam-se mesmo quando a vingan\'.a já lhe vou dizer· que enquanto fala dos oportunistas eu
nao lhes aproveita nada, por muito mal que estes des­ tento perceber como arrombar os contentares para
gra\'.ados tivessem feito já se vinham embora. O Faria levar as coisas mais pequenas e valiosas. Algu ma coisa
bate com os pés no chao, tenho os pés tao gelados se passa, rapaz, nada, torno a responder. Era o que o
200 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 201

Faria quería ouvir para continuar a falar do que tan­ fazes lembrar e só agora descobri, disse o Paca<;a,
to gosta, há sempre quem se aproveite da desgrac;:a, fazes-me lembrar o chulo do Bairro Operário. Virou­
quando o Titanic estava a afondar-se também houve -se para os outros, olhem lá bem e digam se náo pa­
quern roubasse as joias dos cofres, já ouviste falar do rece o Jacques Franciú do Bai_rro Operário. O Sr. Bel­
Titanic, foi um barco que embateu contra um ice­ chior riu-se, deixe lá o rapaz, passou wn dia inteiro
bergue, ó rapaz, dito assim parece que o Titanic era na bicha da roupa para !he darem o casaco, a cavalo
um barco como outro qualquer, o Titanic era o bar­ dado náo se olha o dente. Mas digam lá se nao é pare­
co mais luxuoso e seguro do mundo, e apesar disso cido, o Jacques Franciú tarnbém era louro e de olhos
afundou-se na primeira viagem, se faz medo pensar azuis, só nao era táo alto e táo magro. Todos concor­
que estando aqui na borda do cais podemos cair a dararn que o casaco branco me tornava parecido corn
água imagina-te no meio de um mar cheio de gelo, o chulo do Bairro Operário de quem eu nunca tinha
os sobreviventes disseram que a orquestra nao parou ouvido falar. Náo queria mostrar que era o único que
de cocar até ao fim, quando penso nisso até me dá ar­ náo sabia quem era o Jacques Franciú e náo fiz per­
repios. O Faria puxou o fecho das calc;: as, bem rapaz, guntas. Que saudades tenho do munhungu do Bair­
acho que por aqui está rudo visto, podemos volcar ro Opcrário, disse o Pacac;a atic;ando a fogueira com
para a fogueira, daqui a nada o Pacac;:a e o Belchior um pau, que saudades. Quando estava em Luanda ia
fazem outra ronda. lá todas as semanas, a falta que aquelas quitatas me
Quando chegámos a fogueira o Pacac;:a metía-se fizerarn em Lourenc;o Marques, a falta que me fazem
com o Sr. Acácio, diga lá o que se passa com a D. Juvi­ aqui. O Faria abanou a cabec;a e sorriu saudoso, náo
ta. O Sr. Acácio dá urna passa no cigarro, é rudo má­ havia melhor, garanciu. Até do Jacques Franciú tenho
-língua, muita gente fechada no mesmo sítio, a D. Ju­ saudades, continuou o Pacac;a, sempre com aqueles
vita é urna mulher as direitas, só tem aquele problema casacas esquisitos, náo sei como aguentava aqueles
de gostar de mostrar mais pele. O Faria deu um gole casacas naquele calor, mas se !he dizíamos algu rna
na aguardente, os ladróes devem estar a dormir ou coisa, voces tem é inveja, respondía com aquela voz
entáo tem frío, deem ao rapaz urn gole de café, depois amaricada que tinha, o que a gente se ria dele, urna
tens aqui a aguardente para te aquecer, na tua idadc coisa é cerca, nunca conheci mullieres mais bonitas e
já despachava sozinho urna garrafa. A aguardente dá­ mais cheirosas que as do Jacques Franciú. Todos pa­
-me scmpre vontade de cossu: mas disfarcei para nao receram concordar mais urna vez, o Paria ainda falou
se porem a gozar comigo. do Bairro Prenda mas o Pacac;:a abanou a cabec;a, nem
Desde que há uns meses te vi com esse casaco pensar nisso, as muiheres do Jacques Franciú eram
branco, tenho andado aquí a pensar, quem é que me quatro vezes mais caras do que as do Prenda mas

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202 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 203

valiam cada tostao, algumas eram tao bonitas que velho Jacques que tomava conta daquilo, foi na vés­
p areciam atrizes de cinema, e todas bem-educadas
' pera de fazer doze anos, o meu pai escolheu urna pre­
nao havia ali mulher que ficasse a perder para urna ta e disse-lhe, dou-te o dobro do que vales para que
menina de família que tivesse estudado nas freiras. transformes este rapaz num hornero. Eu já sabia ao
A névoa gelada que vinha do rio fazia-nos tremer que ia e nos últimos días náo tinha pensado noutra
apesar de estarmos enrolados nos cobertores, por coisa mas quando me vi no quarco com a preta fiquei
mais que apertemos os cobertores o frio da metró­ táo assustado que nao sabia onde me meter. Passado
pole arranja sempre maneira de nos entrar no corpo. um quarto de hora o meu pai bateu a porta, isso vai
O Paca�a atirou um pau para o lume e ateou-se urna ou nao vai. Tive medo que a preta contasse ao meu
chama amarela que enfraqueceu logo de seguida sem pai que eu nicles pataticles, mas a preta respondeu
dar tempo de aquecermos as máos. As quitaras do como se estivesse afogueada, é mais homem do que
Jacques Franciú, continuou o Paca�a deitando um muitos de barba feíta, tem a quem sair, disse o meu
bafo branco da boca, p areciam meninas do colégio pai satisfeito do outro lado da porta, hoje a bebida
de freiras mas no quarto era como se nos adivinhas­ é toda por minha conta, já tenho quem me continue
sem o pensamento, e sempre bem-dispostas, brancas 0 nome. A preta aconselhou-me a deixar passar urnas
e pretas, náo havia ali tristeza, as brancas custavam horas para que o meu pai náo desconfiasse que eu
tres vezes mais do que as pretas mas eram mullieres nicles pataticles. Ficámos no quarto, ei..t deitado na
de fazer parar o transito, houve homens casados e cama a olhar para urna gaiola de papagaios que escava
com filhos que estavam dispostos a largar tudo para pendurada no alpendre e a preta a pintar as unhas e
fugir com elas, isto para nao falar dos solteiros que se a contar-me histórias do quimbo onde vivía antes de
tomavam de amores e ficavam para ali a rond ar como o velho Jacques a ter descoberto e trazido para a ci­
cáo sem dono. E os soldados, nao havia soldado que dade. Foi a primeira vez que vi urna mulher de unhas
náo fosse lá. Urna vez houve um sargento que gastou compridas, a minha mae tinha as unhas rentes para
o ordenado de meses a pagar rodadas a toda a gente, nao aleijar os filhos quando tinha de os assoar. Acor­
o pobre homem náo parava de dizer, estou no céu, dei com o meu pai a bater a porta. Nem vendo a mi­
isto só pode ser o céu, náo sabia que o céu era assim, nha cara ensonada desconfiou, um homem também
se soubesse tinha deixado que os pretos me matas­ se cansa, disse. No carninho para casa deu-me os con­
sem mais cedo, deve ter havido um que me matou e selhos que um pai tem de dar a um filho, os mesmos
náo dei conta. conselhos que mais tarde dei ao meu filho, as outras
O Paca�a pós mais café ao lume, a primeira vez pretas nao sao asseadas como as do munhungu, tens
que fui ao munhungu do Bairro Operário ainda era o de ter cuidado com as doen�as, se por acaso alguma
0 RETORNO 205
204 DUl,CE MARIA CAROOSO

preta te vier chatear com a conversa de que a engra­ me atrapalhei. Perguntei ao velho Jacques pela pre­
vidaste manda-a falar comigo, elas raramente nos ta, sabia que se chamava Nívea e que era de perta de
chateiam porque para elas ter filhos é outra coisa' Nova Lisboa. Lago que me viu mostrou-me as unhas,
mas vendo-te tao novo podem querer abusar da tua já as pintei hoje, disse metendo-se comigo. Mostrei­
inocencia, se te apetecer ir com urna preta que tenha -lhe o dinheiro que tinha, fornas para o quarto e só
marido tens de falar com ele primeiro, vais ver que saí de lá na manhá seguinte. Ao tempo que isso já
fica todo inchado, é urna honra para um preto que foi. Nem o Jacques Franciú era nascido. Terá nasci­
um branca queira a mulher dele, podern pedir-te urna do uns cinco anos depois, que ele deve ter agora u.ns
multa, urna garrafa de quimbornbo ou urna lamina de cinquenta e cinco anos. A mae doJacques Franciú era
barbear, pequenas coisas que ajudarn a convivencia, urna das brancas mais bonitas que o velho Jacques lá
se temas de viver uns com os outros mais vale que seja tinha. Quando o velho Jacques soube que a tinha en­
ern paz, se far quilumba é diferente, aí tens de falar gravidado rnontou-lhe casa para os lados da Corim­
com o pai, as multas pelas quilumbas podem ser mais ba e retirou-a do negócio. Também era um homem
altas mas tens a garantía de que está sem doenc;:as, reto. O Jacques Franciú foi criado com tuda do bom
pelo menos das que se apanham com os homens, mas e do melhor, foi tao mimado que deu no que deu, pa­
mesmo aí tens de ter cuidado, há muitas que dizem neleiro mais paneleiro do que aquilo nunca vi, tan­
que sao quilumbas e já estiveram corn mais hornens ta mulher bonita a máo de semear e aquele maricas
que eu sei lá, aquilo está-lhes no sangue. Depois de só pensava em pichotas, é bem verdade que o que é
me ter dado estes conselhos o meu pai nunca mais demais é moléstia. Do que me fui lembrar por causa
tocou no assunto e se se cruzava comigo no munhun­ desse casaca branca. Ó rapaz póe-te de pé e dá urna
gu fingía que nao me via. Era um hornero bom' um voltinha, pediu-me o Pacac;:a, voces digam lá se é ou
homem respeitador, disse o Pacac;:a comovendo-se, nao é parecido com o Jacques Franciú.
um homem que me ensinou a respeitar toda a gen­ Se me recusasse a dar a voltinha ainda era piar,
te, brancas ou pretos tanto fazia. Era um hornero nao quería que percebessern que estava furioso. Fiz­
dos que já nao se fazem. Da segunda vez que fui ao -lhe a vontade e até fingí que me estava a divertir,
munhungu do Bairro Operário já fui por mim e com o mas quando me levantei para dar a voltinha já odiava
dinheiro que tínha poupado. Avisei a minha mae que o Pacac;:a. Passamos a odiar alguém de um momen­
ia dormir a casa de um amigo e apresentei-me lava­ to para o outro, náo é só nos nossos pensamentos
do ao fim da tarde ao velho Jacques. Os tropas que que náo mandan1os, também náo mandamos no que
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1
lá estavam. gozaram-me, olha-me aquele catraio, aquí sentimos. Eu até gostava do Pacac;:a, mas ele, estáo a

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ver, podiarn ser familia, palavra de honra. Se calhar o í
nao se vendem chupa-chupas dos que tu queres. Náo

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206 DULCE MARIA CAROOSO O RETORNO 207

Pacac;:a dcscobriu do tio Zé, só pode ser isso, pós-se a cem terem sido expulsos de lá, merecem tudo o que
dizer que eu e o Jacques Franciú podíamos ser familia Lhes aconteceu, até os tiros merecem, devem pensar
para me dar a entender que sabe do tio Zé. O Gegé que podem gozar comigo como gozavam com os pre­
e o Lee tinham raza.o, toda a gente pensa que é urna cos, ou devem pensar que eu sou preto, dou mais urna
coisa de familia, devia ter arranjado urna nan1orada volta, vou continuar a dar voltas até cair no cháo.
no hotel, é preciso ter namorada para os outros sabe­
rem que nao somos maricas, podía ter urna namorada
no hotel e nao dizer nada a Teresa Bartolomeu.
Dá mais urna voltinha, diz o Pacac;:a e eu dou.
Também me rio, até me rio mais do que todos. E isso
que tens aí escrito quer dizer o que, pergunta o Pa­
cac;:a. Há pouco fiz a mesma pergunta, diz o Faria.
O Pacac;:a levanta-se, póe-me a mao no ombro, devias
ter perguntado a quem te deu o casaco, nao se <leve
andar com coisas escritas que nao se sabe o que sao,
se calhar quer dizer maricas em russo ou numa língua
dessas, ao menos arranca esse pelo da gola, esse pelo
é mesmo coisa de maricas. Nao é só o Pacac;:a que
odeio. Odeio também o Sr. Belchior que náo para de
se rir enquanto diz, ai que porra, do que voce se havia
de lembrar, e o Sr. Acácio e o Faria, odeio-os a todos
e vou dando as voltas que o Pacac;:a me pede, Didja,
dá lá mais urna volta, Didja, táo diferente da Teresa
Bartolomeu, ei Didja.
Dou mais urna volea, náo sou como o Jacques
Franciú nem como o tio Zé, o Pacac;:a e os outros es­
ta.o enganados, quando chegar a casa vou rasgar este
casaco, antes morrer de frio do que andar por aí com
um casaco de paneleiro, eles va.o ver, só espero que os
de cá Lhes roubem os contentores, até vou fazer figas,
eles merecem que lhes roubem os conten cores, mere-
f!
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abes ir ter lá a casa, a pergunta nao me sai da cabe­


S c;a. Sabes ir ter lá a casa, a voz da Silvana dentro
da minha cabec;a. Nunca mais fico bom. Se a Silva­
na nao me tivesse beijado e se náo se tivesse metido
dentro da minha cama, náo me importava de estar
doente urna semana ou duas. É bom náo ter de me
levantar cedo para ir para o liceu e sempre gostei
de ter febre, .fica-se a pensar nas coisas de manei­
ra diferente, gosto dos delírios que a febre dá, até
da dor amolecida em que o corpo fica eu gosto. Mas
ao despedir-se a Silvana pergu ntou-me, sabes ir ter
lá a casa e por isso tenho de ficar bom depressa.
Tenho a certeza que a Silvana me perguntou isso, que
náo foi um delírio da febre. Náo foi. Eu nem nunca
tinha pensado na Silvana assim. Apesar de ser boni­
ta. Tenho a certeza que aconteceu mesmo, a Silvana
ao pé da porta do quarto, a cara ainda afogueada e
o cabelo soleo, fui eu que lhe soltei o cabelo, sabes
ir ter Já a casa. Tenho de ficar bom o mais depressa
possível para ir ter a casa do cimento a mostra e do
jardim de terra preta sem urna única flor. Ainda náo
me esqueci do caminho, vai-se pela avenida grande,
vira-se a esquerda, outra vez a esquerda, depois a
2!0 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 211

direita, mesmo que me tenha esquecido de urna par­ nho da Celeste é que o Tobías case com urna branca,
te, hei de descobrir como chegar a estrada por asfal­ para náo atrasar a raya, como ela diz, e está sempre
tar, a partir daí é sempre em frente, durante muito a meter-se corn a minha irmá, o meu Tobías gas­
tempo, sempre em frente, cada vez mais longe do ta muito de lourinh.as, o meu Tobías um dia <lestes
mar, campos de capim de um lado e do outro, sim, ainda te convida para dar um passeio. Toda a gen­
sei ir ter lá a casa. A casa que nao é só a casa dela, te falou da maneira como a Silvana danyou com o
é a casa dela com o porteiro Queine ..Mas agora nao Tobias. Mesmo que a Silvana náo fosse casada nao
me vou pór a pensar no porteiro Queine, náo posso devia ter deixado que o Tobías a apertasse tanto,
pensar em rudo ao mesmo tempo. que as máos do Tobias descaíssem para onde nao de­
A luz do comeyo do día já ilumina o quarto mas viam, as máos mulatas do Tobias na Silvana que se
na metrópole o céu demora muito a chegar ao azul da ria atirando a cabeya para trás. Se a Silvana tivesse
manhá. Consigo ver os contornos dos corpos da máe deixado fazer o mesmo a um branca já náo estava
e da minha irmá a dormir, consigo até ver a cara da certo mas portar-se daquela maneira com o Tobias
minha irmá e os caracóis lauros espalhados na almo­ ainda foi pior. O que vale é que o marido já está mais
fada. Já lhes conheyo táo bem o sono que basta-me bébedo que um cacho, foi o que o Sr. Acácio disse do
ouvir-lhes a respirayáo para saber se estao a ter so­ porteiro Queine, que assistia a tudo a ri�-se, os olhos
nhos bons ou maus. Se a máe e a minha irmá estives­ de réptil parados no rabo da Silvana e nas máos do
sem acordadas náo conseguía pensar no que aconte­ Tobías, o que aqueta quer sei eu, lambeu mais urna
ceu com a Silvana. Ainda <levo ter muita febre, sinto vez a mortalha do cigarro, a língua branca de cuspo,
o carpo a arder e a cabeya a roda como se estivesse o que aqucla quer sei eu e dava-lho já, se o marido
num carrossel. Sabes ir ter lá a casa. Se calhar as cis­ náo estivesse táo bebedo tenho a certeza que havia
mas da máe também comeyam com um pensamento porrada da grossa.
que toma conta de tudo. Os dois anjos de papel que a máe comprou na
Acho que a Silvana veio cá para me ver e nao tabacaria da esquina e colou na janela do quarto t o r ­
para limpar o quarto, talvez até já tivesse planeado naram ainda mais triste o nosso natal mas na farra
tuda o que aconteceu, se náo consigo compreender da passagem de ano era quase como se estivéssemos
as raparigas ainda compreendo menos a Silvana que lá, as mulheres com os vestidos compridos de costas
é casada e pediu ao To bias para lhe ensinar a danyar destapadas e os homens a beberam cerveja como se
merengue na farra da passagem de ano. O Tobías é fizesse calor. O Sr. Bento emprestou os discos que
filho da Celeste, que é irmá da preta Zuzu, mas é trouxe de lá e até os empregados do hotel que es­
mulato porque o pai era um branca do posto. O so- tavam de folga vieram ver como era urna festa de
212 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 213

retornados. A máe náo pos o pó azul nos olhos, nem assim a Silvana abriu a porta e náo se mostrou sur­
o cor-de-rosa nos lábios mas darn;:ou descals: a como preendida quando me viu deitado no diva. Disse-lhe
dans:ava para o pai. A minha irmá alisou o cabelo que a máe tinha avisado que eu escava doente mas a
como no tempo em que náo gostava dos caracóis e Silvana, eu trato de ti. Lembro-me de ter metido os
dans:ou agarradinha ao Tozé Cenoura, a cara encos­ bras:os debaixo do len s:ol por náo querer que ela visse
tada no peito quase sem se mexerem. Náo consigo as mangas curtas do pijama. Devo ter crescido desde
perceber o que a minha irmá ve no Tozé Cenoura que cheguei a metrópole, que lá o pijama náo me es­
que mesmo para a farra da passagem de ano foi com tava pequeno.
um dos fatos da arca dos pobres da igreja. Também Pos-me a máo na testa, estás a escaldar, disse.
dancei a noite inteira apesar de a Teresa Bartolomeu A máo dela estava fresca e soube-me bem. Vou mo­
náo ter aparecido. O Mourita tinha razáo, a Teresa lhar urna toalha a casa de banl10 para te por na testa,
Bartolomeu nunca viria a urna festa de retornados, a voz da Silvana pareceu-me diferente mas isso <leve
náo sei por que disse que vinha quando a convidei, ter sido da febre porque cambém via a cara dela des­
as raparigas sáo mesmo difíceis de compreender. focada, estava muito próxima da minha mas se náo
Dancei com a Rute e com outras raparigas, imagi­ tivesse febre devia conseguir focá-la. A minha máe
nando que era a Teresa que estava a dans: ar comigo, e a minha irmá foram almos:ar mas já voltam, e ela,
nem foi preciso fechar os olhos. Mas isso foi antes váo demorar que está urna bicha muito grande, e eu,
de a Silvana me ter beijado, quando ainda era dono estou bem, náo preciso de nada. A Silvana pos-me o
dos meus pensamentos e podía escolher pensar na dedo nos lábios, chiu, os doentes náo falam. Trancou
Teresa Bartolomeu ou noutra rapariga qualquer. a porta por dentro e correu as cortinas, os anjos do
Sabes ir ter lá a casa. Sei, mas a casa também é natal que a máe comprou na tabacaria ficaram do ou­
do porteiro Queine que é meu amigo, arranjou-me a tro lado a tocar as trombetas colados a janela, a luz
bicicleta, empresta-me livros aos quadradinhos e as faz-ce mal aos olhos. O quarto ficou na penumbra,
vezes dá-me cigarros, e eu náo devia querer ir lá. Eu sentía o cheira a mas: ás verdes da Silvana, ouvia a água
náo devia querer e a Silvana também náo devia que­ a correr na casa de banho, a Silvana sentou-se na mi­
rer que eu quisesse. .Sabes ir ter lá a casa, um homem nha cama e passou-me urna coalha húmida na testa,
náo pode trair um amigo, mesmo se a mulher dele sabe táo bem, e a Silvana disse, eu sei que sabe bem,
nos faz o que a Silvana me fez. Tenho a certeza que a voz dela estava diferente, como se escivesse rouca,
a Silvana veio cá de propósito, que náo foi um acaso. eu sei que sabe bem.
A máe tinha dito na reces:áo que eu estava de cama e Talvez náo tenha durado mais do que uns minutos
que a limpeza tinha de ser feita noutro dia. Mesmo mas a febre dá outra medida ao tempo, pareceu-me r
j
f

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214 DULCE MARIA CARDOSO O RE1'0Rl'o'O 215

bastante tempo, abri os olhos e senti-me mais des­ estar trancada. Ou foi só depois que me lembrei que
cansado, o corpo e a cabec,:a tao leves. Passou-me isso podía ter acontecido, o sabor das mac,:ás verdes
água fresca nos lábios, esta.o rebentados da febre, na minha boca e as máos frescas da Silvana no meu
disse. Tudo o que a Silvana me fazia era bom, os de­ peito náo me deixavam pensar em nada. A Silvana
dos dela nos meus lábios devagarinho, eu fechava os disse, tem de se transpirar para a febre ir embora,
olhos e pedia que quando os abrisse a Silvana ainda náo sei se foi a Silvana que disse isso, talvez fossc
estivesse ao pé de mim. Acho que cinha os olhos fe­ a D. Gilda quando o marido tinha as crises de pa­
chados quando a Silvana se debruc,:ou sobre mim, só ludismo, tem de se deixar sair a febre pelos poros.
me lembro de sentir a respirac,:áo dela muito perto A Silvana desabotoou a farda e pós as minhas máos
da minha cara, abri os olhos e os lábios dela esta­ no corpo dela, as minhas máos quentes na pele bran­
vam perto dos meus, táo perro dos meus, a boca da ca da Silvana que desapertou o sutiá, a Paula mal me
Silvana também estava fresca e também sabia a ma­ deixava tocar nos colchetes do sutiá e a Silvana de­
c,:ás verdes. Se calhar foi um delírio da febre, sabes sapertou o sutiá, era o que o Gegé dizia que a Anita
ir ter lá a casa. Náo, nao foi um delírio. A Silvana fazia, nem é preciso pedir para a Anita nos mostrar
beijou-me como nunca urna rapariga me tinha bei­ as mamas. Os mamilos cor-de-rosa da Silvana táo
jado, nem sequer a Teresa Bartolomeu quando lhe perto da rninha boca, a barriga lisa da Silvana, a Ani­
pedi namoro e pus o La décadanse a tocar, estou a ta mostra-nos tudo sem termos de lhe pedir, a Sil­
confundir, a canc,:áo preferida da Teresa nao é o La vana <leve ser como a Anita porque tirou as cuecas
décadanse, essa era a da Paula, a canc,:áo preferida sem eu lhe pedir, o tufo de pelos pretos, a máo dela
da Teresa é outra, náo me consigo lembrar qua! é. a levar a minha até lá em baixo, assim, devagarinho,
Sabes ir ter lá a casa, é por causa desta pergunta que num sussurro, a minha máo, e a Silvana num sussur­
náo consigo lembrar-me de mais nada. ro, náo tenhas medo. Náo tive. E agora também náo
Parece urna das mentiras do Gegé mas nao, náo tenho. Sabes ir ter lá a casa, eu sei, só tenho de ficar
foi só um beijo que a Silvana me deu, foram mui­ bom depressa, pego na bicicleta e ninguém me para.
tos. Eu tinha a boca queme da febre e a boca fresca Acho que lhe soltei o cabelo, acho que as mi­
da Silvana sabia-me táo bem, eu sei que sabe bem. nhas máos tremiam mas conseguí soltar-lhe o ca­
A Silvana disse, és táo novo, já náo me lembrava do belo. Se já tivesse estado com outra rapariga tinha
cheiro de urna pele nova, e destapou-me, tive ver­ sido diferente mas a Paula tinha a mania que era
gonha, das mangas curtas ou de qualquer coisa em urna santa e a Forrunata era preta, as pretas nao
mim, náo sei, vergonha ou medo, calvez medo que sáo como as brancas, trazem a boca do corpo ao ar
a máe ou a minha irmá abrissem a porta apesar de e tem os filhos de pé, era o que as vizinhas diziam.
216 DULCE MARIA CARDOSO
O RETORNO 217

Se já tivesse estado com urna rapariga sabia o que ras a apertarem as min.has, o rneu carpo cada vez mais
fazer, náo tinha ficado táo quieto quando a Silva­ dentro do dela e o corpo dela a pedir, cada vez mais
na se deitou sobre mim, a Silvana quase nua sobre sófrego, o meu.
mim, táo bonita, as coxas e as mamas táo bran­
cas e macias, a barriga lisa e aquele tufo de pelos
pretos, já estiveste com urna mulher, perguntou,
podes dizer a verdade, náo precisas de ter vergo­
nha. Com urna branca nao, respondí, mas já estive
com muitas pretas, náo ia dizer que só estive com
a Fortunata que quase náo conta, náo havia rapaz
no bairro que náo tivesse estado com a Fortunata
que tanto fazia aquilo como passava a ferro, nem o
cigarro apagava.
Náo consegui perceber se o Gegé tin.ha razáo
e se há diferern;:as entre as brancas e as pretas, deve
haver. Fazer aquilo com a Fortunata era bom mas
náo como foi com a Silvana. Pode ter sido da febre.
A Silvana ficou num abandono que náo sei explicar,
parecía que estava a ser levada para longe e que ti­
nha de cravar as unhas no meu peito para náo se dei­
xar ir. Quanto mais sentía o corpo dela agarrado ao
meu mais parecía que a Silvana ia para longe, eu ia
partindo também mas noutra dire<;áo, a Silvana sobre
mim e eu sem medo de nada, sem pensar na morte
do pai, na ida para a América, no plano de roubar os
contentares dos mortos de Sanza Pombo, na guerra,
no hotel, no carniceiro do Grafanil, nos demónios da
máe, na tristeza da minha irmá, na metrópole, a Sil­
vana sobre rnim mais bonita do que as raparigas com
os brincos de cereja, a Silvana com os olhos quase fe­
chados, a respira<;áo como num susto, as pernas du-
B ateram a porta do nosso quarto a meio da noite,
com o código que inventámos quando foi de­
cretado o recolher obrigatório lá, um toque rápido
duas vezes e um terceiro espar;:ado e mais demorado.
Levantei-me da cama convencido que o Juiz tinha
voltado a sentir-se mal ou que um dos netos da D. Su­
zete estava outra vez bebedo e andava a bater a todas
as portas. Apesar de haver quase todos os días macas
entre nós também é verdade que nos preocupamos
uns com os outros, ternos de nos manter unidos, os
de cá ainda gostam menos de nós do que os pretos
lá. Também pensei que pudesse ser o Pernalta, o ma­
luco que está sempre a rondar o hotel e que quando
consegu e enganar os porteiros e os empregados da
recer;:ao senta-se num dos maples da sala de convívio
como se fosse um rei ou póe-se a correr pelos corre­
dores. O Pernalta nunca consegue ficar muito tempo
no hotel, há sempre alguém que o expulsa, as vezes
até é o Sr. Teixeira da recer;:áo que lhe pega pelos
ombros e o póe na rua. O Sr. Teixeira nao gosta de
expulsar o Pernalta porque tem receio de sujar o fato
de tres per;:as que usa com o relógio de bolso da cor­
rente dourada. O Pernalta cheira mal, nunca deve ter
1 220 DULCE MARIA CARDOSO

tomado um banho na vida, a D. Juvita diz que já lhe


O RETORNO 221

dormente. J á náo conheces o teu pai, a voz do pai é a


mesma, já te esqueceste do teu pai, rapaz. O pai está
viu pulgas a saltarem no cabelo, ninguém lhe quer to­
car e por isso ainda é mais difícil expulsá-lo. Quando a minha frente e eu náo sei o que fazer.
está a ser levado para fora do hotel o Pernalta as ve­ Chamo a máe e a minha irma, é o pai, o pai che­
zes grita que foi preto na outra vida e que tem direito gou, o pai veio ter connosco, disse a mesma coisa de
a estar no hotel, ou insulta a diretora, puta fascista, muitas maneiras e nem assim me convenc;o de que
puta comunista, é conforme lhe dá. Quase todos se é verdade. Arninha irmá tropec;ou ao sair da cama,
divertem a ver o Pernalta a ser expulso e quando o a máe cambaleou, abrac;a-se ao pai, meu amor es­
veem no jardim incitam-no a entrar, ó homem vá até tás aquí, meu amor náo é possível que estejas aqui,
ao bar e pec;a um whisky, quem foi preto noutra vida o que eu sonhei com este dia, a minha irmá, com os
merece pelo menos urn whisky nesta. E o Pernalta faz caracóis louros desfeitos pelo sono a chorar de feli­
o que lhe mandarn. cidade como só as raparigas conseguem fazer. Ficá­
Ninguém volta da morte mas o pai está a porta mos os quatro abrac;ados no corredor do hotel, a máe
do nosso quarto. Um saco de viagem preto na máo, deu dois passos atrás e disse, és tu, és tu, meu amor.
urna boina cinzenta e um casaca aos quadrados. Náo A máe já náo tero o rapaz da fotografia a sorrir no
consigo acreditar que é o pai, o pai que os pretos leva­ peito como no dia em que chegou no Vera Cruz, és
rarn com as máos amarradas atrás das costas, o pai que tu meu amor, és tu, a máe junta as máos em orac;áo

náo chegou até ao día da independencia, o pai que eu depois de ter inventado um céu no teto do corredor
tive de julgar morto. Ninguém volta da marte e bate do hotel, obrigada, meu deus, e como se nao fosse su­
a porta da família de madrugada, ninguém volta da ficiente, ajoelha-se, quase ao lado do saco preto que
marte com urna boina, urna camisa aos quadrados e o pai tinha pausado no cháo, abrigada meu deus por
um saco preto na máo, o pai está morro e vai desapa­ me teres concedido urna grac;a táo grande. A rninha
recer quando eu acordar. Por mais que abra os olhos e irmá e a máe estáo táo felizes que náo guerem parar
os esfregue o pai continua a minha frente, quase igual de chorar, eu náo choro, os homens náo choram nem
ao pai de lá, está mais magro mas o corpo grande do quando um pai regressa da morte.
pai ainda apequena o corredor como lá apequenava Nos outros quartos as pessoas váo acordando
a cozinha, a cara tem mais rugas mas é a mesma cara com os nossos gritos, até a D. Fernanda e o marido
com os dentes amarelos no mesmo sorriso. O pai que esta.o na outra ponta do corredor abrem a porta
está a fumar, o pai estava sempre a fumar. Tem urna para ver o que se passa. Vai-se ouvindo, foi o pai da
cicatriz na máo. Falta-me a voz como nos sonhos em Milucha que chegou, o marido da D. Glória chegou,
que se quer gritar e náo se consegue, a língua parece váo repetindo uns aos outros e náo há quem nao se
222 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 223

junte a nossa alegria, o pai do Rui chegou. O pai náo náo tenho de roubar os contentares dos mortos de
estranha tantos desconhecidos em pijama no corre­ Sanza Pombo para levar a mae e a rninha irmá para a
dor nem estranha que nos portemos com os desco­ América, atiro o S andro ao ar, póe-me no chao, estou
nhecidos em pijama como se fóssemos urna familia. tao contente que o atiro ao ar outra vez. O pai tem a
Todos curnprimentam o pai que náo tira a boina da pele seca e escura, parece que trouxe a secura dos em­
1 cabec;:a nem despe o casaco aos quadrados. O Juiz bondeiros para o corredor do hotel alcatifado com as
11
vai ao quarto buscar urna garrafa de whisky que já paredes forradas a papel, todos lhe fazem perguntas,
está quase vazia e oferece um gole ao pai, seja bem­ entáo como é que aquilo está, o pai vai respondendo
-vindo, homem. O pai bebe um gole apesar de nao com frases curtas, a mae sempre, meu amor, que feliz
ser Ye Mon.ks, o corredor do hotel em festa, o marido estou, toco no brac;:o do pai como quem náo quer a
da D. Fernanda lamenta que o bar náo esteja aberto, coisa, apesar de ter o pai a minha frente ainda náo
pagava-lhe um copo, homem, bem <leve precisar, va­ acredito que seja verdade. Mas é.
mos para a sala de convívio, propós o Sandro, o neto O pai agradece as boas-vindas mas desculpa-se,
mais novo da D. Suzete, um dos que ajuda o Tozé Ce­ foi um dia muito longo, se me dáo licenc;:a gostaria de
noura na recolha dos bilhetes, vamos fazer urna fes­ tomar um banho. Pego no saco do pai que é leve, o pai
ta, todos se riem porque o Sandro boceja ao mesmo ainda tenta impedir-me mas desiste, é tudo o que tra­
tempo que insiste na ideia da festa. A D. Femanda go, olha para a mae e repete como se estivesse a pedir
disse ao pai, o que estes coitadinhos sofreram com a desculpa, foi tudo o que trouxe. Todos olham para o
sua ausencia, estavam sempre a falar de si. É menti­ saco preto que tenho na máo e todos querem falar
ra, desde o día da independencia que eu náo falava mas náo encontram o que dizer, o Juiz abre e fecha
do pai a ninguém. O Sr. Tadeu, tem aqui urna mulher a boca como o peixe da máe da Editinha, um peixe
de forc;:a, urna leoa, a mae com a camisa de B.anela as encarnado numa bola de vidro em cima da geleira que
florinhas e com o cabelo desgrenhado a sorrir como abria e fechava a boca todo o dia, era a única coisa
uma menina, estamos todos táo felizes, a muda Gigi que o peixe fazia para além de morrer, cada vez que
faz aqueles sons que ninguém percebe rrrrrrrrrrrrr e morria era substicuído por um igu al que vinha numa
a D. Suzete ralha-lhe, assim ninguém consegue faiar. tira de águ a no fundo de um saco de plástico, a bola
Estou tao contente que pego no Sandro ao colo, de vidro nunca estava vazia no cimo da geleira para
o pai está aquí e já náo sou o chefe de familia. O S an­ náo desfear a cozinha da máe da Editinha, uma co­
dro esperneou, póe-me no chao já tenho sete anos, zinha que tinha autocolantes de frutos nos armários,
a D. Suzete ri-se, todos nos rimos, até o pai. Já nao o que a minha irmá pediu a mae para a deixar pór au­
tenho de tomar conta da mae e da rninha irmá, já tocolantes de frutos nos nossos armários da cozinha,
224 DULCE MARIA CARDOSO 0 RETORNO 225

a máe nunca deixou, os pretos ficaram com urna casa Amae fala sem parar, tal vez com medo do que eu
estimada. Talvez o pai tenha conseguido queimar possa perguntar de seguida, explica as regr as do hotel
•1 tudo. Ou talvez eles se tenham ficado a rir. Mas agora como se fosse um assunto importante, o pai acabado
que o pai está cá nada disso interessa. de volcar da marte e a mae a explicar os turnos das
A festa das boas-vindas acaba tao depressa como refeic;óes e o dia da limpeza obrigatória dos quartos,
comec;ou, váo todos para os quartos e fecham as portas. como a diretora no dia em que chegámos, o pai ouve­
Dentro do quarto, a máe diz, é o nosso quarto, e abrac;a­ -a sem a interromper, a máe náo diz tempos contur­
-se ao pai, a cicatriz do pai na máo direita nota-se mais bados. Estou táo feliz por o pai estar connosco que
agora, devem ter sido eles que lha fizeram. É aqui que podía ficar na conversa até de manha mas o pai diz,
tem vivido, pergunta o pai, um quarto pode ser urna tenho de tomar um banho e descansar, amanhá fa­
casa e este quarto e esta varanda de onde se ve o mar Jamos do resto, a minha irma ainda se abrac;a ao pai
é a nossa casa. Amáe diz, a diretora prometeu que nos mais urna vez, os caracóis Jouros contra o corpo gran­
dava outro quarto quando tu chegasses, quando se fe­ de do pai, um corpo mais magro mas ainda o corpo
cha o meu divá o quarto fica maior, acrescento. O que grande do pai. Tiro dois cobertores das camas com
foi isso, pergunta a máe olhando para a máo do pai, um puxáo, fico com um e entrego o outro a minha
o pai desvia a cara, náo é nada, desaparece com o tem­ · irmá, digo-lhe, vamos Já para baixo, o pai precisa de
po. É urna cicatriz diferente da que a mota lhe dei.xou estar a vontade. Aminha irma hesita, olha para a mae
na canela, dessa cicatriz o pai gostava de falar. Amáe e para o pai, penso que a espera de ouvir, que dispa­
passa a máo na cicatriz nova, o que eles te fizeram. rate, fiquem aqui, mas a mae e o pai ficam calados,
Estamos todos no quarto e tao felizes, o pai veio insisto, vamos, e a minha irmá segue-me com o co­
ter connosco, estamos todos juntos outra vez. E a bertor na mao.
Pirata, pergunto, como se tivesse chegado a casa e a Adiretora nao quer que se durma na sala de con­
Pirata náo tivesse vindo cumprimentar-me. Amáe e vívio mas urna vez nao sao vezes, eu e a minha irmá
a minha irmá ficam aflitas e fazem-me sinal para me estamos no sofá grande, no que fica mais perto da la­
calar, o pai náo responde, como se estivesse a confir­ reira de pedra, a minha irmá tem a cabec;a num dos
mar que a Pirata náo está no quintal ou que náo foi brac;os e eu noutro, as pernas juntas a meio, cada um
estragar as roseiras da máe, nunca mais a vi, responde tapado coro o seu cobertor. Os pais precisavam de fi­
por fim. Amáe comec;a a faJar, amanhá ternos de pe­ car sozinhos, digo tentando que a minha irmá deixe
dir a diretora que nos ponha na lista dos quartos que de estar aborrecida comigo, está bem, já percebi, já
vagam, e eu outra vez, e o tio Zé, o pai demora nova­ disseste isso cem vezes, as raparigas como a minha
mente a responder, também nunca mais o vi. irmá nao querem saber das coisas que os pais tem de
226 DULCE MARIA CARDOSO 0 Rf.TO RNO 227

fazer. A sala de convívio náo tem mais ninguém e está te apagues, fica connosco porque gastamos muito de
quase as escuras, só estáo os candeeiros de presern;a ti. Mas o pirilampo apagava-se, o pirilampo morreu,
ligados. Também náo há ninguém na recec;áo e até o dizia a minha irma, era fácil evitar que a minha irmá
porteiro Queine está a dormir numa das cadeiras do chorasse, está a dormir, sossegava-a, a minha irma
hall. Se o porteiro Queine soubesse o que eu e a Sil­ perguntava, como é que dormem os pirilampos, fe­
vana andamos a fazer, o que pensará o porteiro Quei­ cham os olhos como nós, diz ao pirilampo para ficar
ne quando me ve chegar táo tarde. Houve urna vez acordado, eu inventava urna desculpa, o pirilampo
que me disse, nestas noites frias sabe bem pedalar, tem filhos pequeninos e tem de se levantar cedo para
e piscou-me o olho, ofereceu-me um cigarro e ficá­ ir trabalhar, a minha irma, onde é que estáo os filhos,
mos a fumar sentados nos degraus. Quando está­ eu nao sabia o que responder e por isso, és um ano
vamos lado a lado fiquei com medo que o porteiro mais velha do que eu, és tu que deves saber, a minha
Queine percebesse qualquer coisa, que descobrisse irmá calava-se durante um bocado e dizia, o pirilampo
em mim qualquer coisa da Silvana. Nao pareceu des­ morreu e náo tem filhos, as raparigas sao mais dramá­
confiar de nada, quando se despediu até me deu um ticas e nao gostam de brincadeiras que lhes deem tra­
carolo, vai descansar rapaz. balho. A máe mandava-nos calar do quarto onde dor­
Eu e a minha irmá nao queremos adormecer, mía com o pai, tem de dormir, se náo dormem ficam
o pai veio ter connosco, náo vamos desperdic;ar urna pequenos para sempre como o anáo Vicénte. O anáo
noite táo feliz a dormir, já díssemos várias vezes um Vicente ajudava na mercearia do Sr. Santos e náo devia
ao outro, nao podemos adormecer. Parece impossí­ achar piada a anedota dos matraquilhos que o barbei­
vel, pois é, ainda nem acredito, parece que estou a so­ ro contava. Eu e a rninha irma tínhamos medo de ficar
nhar, eu também. A última vez que eu e a minha irmá pequenos como o anáo Vicente e ainda tínhamos mais
dormimos na mesma cama ainda nem andávamos na medo que o Caterpillar nos levasse se náo comesse­
escala e agora estamos no mesmo sofá a lutar com mos a sopa como a máe ameac;ava. Ainda te lembras
os pés, está quieto estúpido, a minha irma até já me do Caterpillar, pergunto a rninha irmá, a minha irma
chama outra vez estúpido. Podíamos ter ficado cada imita a voz da mae, digo ao Caterpillar para vos levar
um no seu maple mas o pai regressou e quisemos ficar no cesto. O Caterpillar abría as fundac;óes do prédio
juntos como na cama grande da casa antiga, há tanto que estavam a construir ao lado do bairro. Tínhamos
tempo, antes da escala e tuda, ficávamos acordados a tanto medo daquele monstro mas náo conseguíamos
espera dos pirilampos, está ali um, está ali outro, bo­ deixar de o ir ver em funcionamento. Daí que as vi­
las de luz verde que se mexiam em silencio, se um dos zinhas, coitadas daquelas crianc;as que crescem sem
pirilampos pousava na parede, fica aí pirilampo, náo rei nem roque, ainda caem nas fundac;óes do prédio
'1 228 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 229


1
novo. Eu e a minha irmá rimo-nos do Caterpillar na
sala de convívio, ao pé da lareira de pedra que nunca
para lhe dar, és táo doce, diz quase com lágrimas nos
olhos. Acho que ser doce náo é coisa de homem mas
vimos acesa. Quando nos calamos a única coisa que se quanto mais doce a Silvana me acha mais longos sao
ouve é o porteiro Queine a ressonar. os beijos que me dá. Neutros dias diz-me, trouxeste
O porteiro Queine faz sempre os turnos da noite outra vez flores, as flores náo sáo coisas de todos os
e a Silvana fi.ca sozinha.em casa, sabes ir ter lá a casa. dias, e náo póe as flores na jarra nem para o que está a
Eu soube. Eu sei. É fácil ir a casa do porteiro Queine, faz er para me beijar, diz, comer, lavar a lou�a, dormir
é fácil deitar-me na cama do porteiro Queine com a sáo coisas de todos os dias, as flores náo. Náo gosto
mulher dele. Devo ser urna das ratazanas de que o Pa­ quando a SiJvana fala comigo como se náo tivesse tido
ca�a fala, um homem náo fazia isto a um amigo e o por­ saudades minhas, como se náo quisesse levar-me para
teiro Queine é meu amigo, deu-me a bicicleta, ofere­ o quarto e deitar-se comigo na cama.
ce-me cigarros de vez em quando, empresta-me livros Quando é que vais dizer ao pai que reprovas­
do Homem-Aranha e tenho a certeza que vai ficar con­ te por faltas, pergunta a minha inná. Era de esperar
tente quando lhe contar que o pai chegou. É pena es­ que a minha irmá já soubesse, o Mourita é urna mu­
tar a dormir, sena.o contava-lhe agora. Mas o porteiro lherzinha de língua comprida, ainda bem que nunca
Queine ser meu amigo náo me impede de ir ter com a lhe contei nada sobre a Silvana nem sobre o plano de
Silvana. Devo ser urna ratazana e das maiores. Se as vi­ roubar os contentores dos monos de Sama Pombo.
zinhas de lá conhecessem a Silvana diziam que era urna O pai vai ficar táo zangado, os estudos sáo a enxada
mulher mal casada como a máe da Anita, as mullieres para a lavoura da vida, quando se zangava o pai cerra­
mal casadas metem-se com os outros homens e tem re­ va as máos e os lábios e qualquer movimento podía ser
pentes. Com a revolu�áo toda a gente pode divorciar­ o princípio de urna tareia, o pai vai ficar zangado por
-se mas a Silvana nunca falou nisso e continua a que­ eu ter chumbado por faltas. Talvez náo tanto como
rer pintar a casa que ela e o porteiro Queine andam a quando lhe roubei o carro para ir passear com o Gegé
construir há mais de cinco anos. Quando a Silvana me e o Lee, dessa vez bateu-me com o cinto até se cansar.
diz isto ou me conta outros planos que tem para o fu­ Mas náo posso estragar a noite a pensar na tareia que
turo, chego ao hotel e fico contente por ver o porteiro o pai me vai dar, a minha irmá fez de propósito para
Queine todo torcido a dormir nurna cadeira. Acho que me chatear, está zangada por te-la trazido para a sala
tenho ciúmes dele, ainda bem que ninguém sabe, de de convívio, a minha irmá ainda náo compreende a ¡
1
qualquer maneira é só um bocadinho. Mas que a Silva­ maior parte das coisas, dizem que as raparigas cres­
na tem repentes tem. Com as flores por exemplo. Há cem mais depressa mas estáo enganados, as raparigas
días em que aceita as flores que apanho pelo caminho crescem táo devagar que até chateia.

'f
11 2JO DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 2Jl

1
O Roberto nunca respondeu as tuas cartas, muitos anos, respondo, torturaram-no durante mui­
1 pergunto-lhe. A minha irmá náo quer responder mas tos anos. A minha irmá diz, náo se notava logo que o
l
i acaba por dizer, acho que arranjou urna namorada de Sr. Moreira estava maluco, era preciso falar um boca­
:1 cá. É parvo, as raparigas de cá náo valem nada, res­ do com ele. Eu sei, mas o pai nao está maluco. ·Ainda
pondo, mas eu vejo-te no liceu sempre agarrado a me lembro quando levaram o Sr. Moreira, foi numa
urna rapariga de cá. Ah, essa, como se a Teresa tivesse procissáo do 13 de maio, éramos táo pequenos, devía­
sido urna entre muitas, chama-se Teresa mas já náo é mos andar no ciclo. O pai estava a fazer seráo no por­
minha namorada, as raparigas tornam-se chatas com to e a máe levou-nos a procissáo. Era raro estarmos na
o tempo, querem fazer sempre as mesmas coisas. rua táo tarde. Gostámos de ver tanta gente e tantas
Aminha irmá diz, acontece o mesmo com os rapazes, velas acesas, era como se fosse día no meio da estrada
mas nem é por isso que sao chatos, é por se estarem e noite para lá das bermas. O Helder contou-me que
sempre a armar, como tu. Parece que estou a sonhar o Sr. Moreira já sabia que o Salazar o quería prender e
que o pai está cá, dá-me um beliscáo para saber que que já tinha tudo preparado para fugir para a Bélgica,
estou acordada, seu estúpido, nao era para dares com que tinha ido a procissáo porque pensava que ali náo
tanta for�a, amanhá tenho urna nódoa negra no bra­ podiam prende-lo. Lembro-me dele duas filas a nossa
�o, és mesmo estúpido. Aminha irma já me chama frente com a familia. Náo estavam todos, só estavam
estúpido outra vez, vai ficar tudo bem. duas irmás e um dos avós e o Helder. O Helder tinha
Estava convencido que o pai tinha morrido, apanhado matacanha e estava de chinelos porque náo
digo, achava que eles o tinham matado. A minha irmá podia cal�ar sapatos. Tu tinhas aqueles sapatos que
ajeita-se no sofá, faz urna dobra no cobertor, eu tam­ a máe te tinha comprado para o batizado do Pauli­
bém tinha medo que o tivessem matado mas a máe nho. As vezes os andores desapareciam no cacimbo,
garantía que o pai estava vivo e eu acreditava na máe, a nossa senhora entrava por aquela névoa fina e dei­
a máe sabe coisas que nós náo sabemos. Eu já tinha xava de se ver, só se viam as velas a arder. O Helder
tudo pensado para vos levar para a América, até já sa­ perdeu um dos chinelas quando tentou impedir que
bia como arranjar dinheiro para os bilhetes de aviáo batessem no pai, depois da confusáo vi o chinelo e
mas agora é o pai que vai levar-nos para a América, apanhei-o para lho entregar mas acabei por deitá-lo
o pai náo pode querer ficar aquí. fora. Porque. Era estúpido ir a casa do Helder para
Quando ficamos em silencio a sala de convívio lhe entregar um chinelo. Estúpido porque. Tu és
parece maior e mais estragada, achas que o pai fi­ rapariga, náo percebes, um rapaz nao vai a casa do
cou como o pai do Helder, pergunta a minha irmá. outro, apanhei o teu chinelo. Os rapazes fazem coi­
O Sr. Moreira ficou meio maluco porque esteve preso sas mais estúpidas do que isso. O Helder tinha urna
232 DULCE MARIA CARDOSO O R.ETORNO 233

familia enorme, a máe, a D. Elsa, as quatro irmás e ces ninguém de cá. Náo é preciso, basta olhar para a
o irmáo mais velho, o Vadinho que namorava com cara deles, tem todos cara de fuinhas invejosos. Tinha
a Carla. E os avós, a madrinha velha e a madrinha tanto medo de tomar banho naquele tanque de água
nova.Já náo me lembro do nome do avó. Sr.Justino. verde, os limos agarravam-se as pernas e aos bras:os e
Era isso, o Sr. Justino. Estava sempre a arrotar. Pois nao nos deixavam nadar, um día mergulhei para ver o
era, que nojo. O Sr. Moreira tinha um Chevy Bel Air. fundo do tanque e náo conseguía voltar a superficie.
Amarelo clarinho. E o terreno enorme que a casa de­ Aquela água era nojenta, náo sei como gostavas de to­
les tínha, a máe que.ria um terreno daquele tamanho mar banho lá. Foi o Gegé que me puxou, se o Gegé
para plantar roseiras. Mas era longe, a máe teria medo náo me tivesse puxado tinha marrido. Estás a inven­
de viver fora do bairro, mesmo no bairro estava sem­ tar isso agora. Náo estou nada. Se o Gegé te tivesse
pre com medo dos assaltos e dos turras. Náo eram salvado a vida já terias dito, estás a inventar, pareces a
os turras que assaltavam casas, os turras estavam no máe.Juro que é verdade, foi nas férias de mar<;:o antes
mato. Para a máe os pretos eram todos turras, mes­ da procissáo. És táo mentiroso. No fun o Helder an­
mo os que trabalhavam para o pai. Lembras-te das dava sempre a fumar liamba, nem sequer ía as aulas.
bananeiras que cercavam o terreno da casa do Hel­ Se iam todos para a Bélgica, o Helder náo precisava
der. Quando anoitecia metiam medo, o Helder dizía de ir a escola. Na Bélgica também sáo precisos estu­
que já tinha visto fantasmas a saí.rem de lá. O Helder dos. Mas sáo estudos diferentes. Talvez estejam todos
estava sempre a armar-se. E o tanque que havia no na Bélgica. Ou num hotel aquí perto. Se estivessem já
quintal do Helder, a água era táo verde que parecía os ceríamos visto. Há tantos hotéis e tanta gente nos
que se podía cortar com urna faca. E os dois mamoei­ hotéis que náo podemos ver toda a gente. O Helder
ros junto a entrada da casa. Eram táo altos que quase ficou táo contente quando soube que tinha havido um
chegavam ao céu. Devem ter sido os mamoeiros mais golpe de estado na metrópole. Quando libertaram o
alros que vi. Tinha de ser o Zezé preto a apanhar os Sr. Moreira o Gegé e eu fomos de bicicleta a casa do
mamóes, nenhum branco conseguía subir táo alto. Helder só para o ver. O tio Zé dizia que o Sr. Moreira
O Zezé preto gostava de nós. A lavadeira Belmira tinha ficado maluco porque a PIDE lhe tinha feito a
também. Os de cá náo tem razáo quando dizem que tortura do sono. O tío Zé dizia sempre os algozes da
os pretos náo gostavam de nós, os pretos gostavam de PIDE. Algozes ou carrascos. Onde é que andará o tío
nós e queriam que ficássemos Já, foram os de cá que Zé. O pai disse que nunca mais o tinha visto. Deve
os mandaram expulsar-nos de lá. Por que haviam de estar com o Nhé Nhé, tu náo sabes o que o tío Zé fa­
fazer urna coisa dessas. Por inveja, os de cá sáo muí­ zia com o Nhé Nhé, era como se fossem namorados.
to invejosos. Como é que sabes se quase náo conhe- Eu sei, é urna porcaria. Paneleiros. Náo te esque<;:as
234 DULC& MARIA CARDOSO

de que náo podes fumar a frente do pai, náo consigo


acreditar que o pai está cá, tinha tanto medo que eles
nunca o libertassem, eles nunca soltam os brancos
que apanham. Mas o pai náo sabia nada do carniceiro
do Grafanil, até o tia Zé foi capaz de ver isso. O Tozé
contou-me que urna vez viu o carniceiro do Grafanil
no Cazenga e que era um homem baiJco mais forte do
que um touro. O Tozé Cenoura está sempre a contar

F
histórias, náo sei como náo te fartas dele, nunca se echo os olhos com mais fori;:a. O vento frío entra­
cala, ainda é piar do que o Pacai;:a e dos que váo falar -me no casaca e levanta-me o cabelo como se mo
a televisao, afina! a teJevisáo náo é nada de especial, fosse arrancar. O Gegé e o Lee estáo a chegar. Abro
tuda o que diziam da metrópole é mentira, mas o pai os brai;:os o mais que posso, estou no cima do mundo,
vai tirar-nos daqui, o pai vai arranjar maneira de nos o vento bate-me na cara. O Lee vai gozar comigo por
tirar daqui, ouviste o que disse, estás a dormir, Milu­ causa da minha barba, já é urna barba a sério, já nao
cha, náo adormei;:as, Milucha, Milucha. sao uns pelos lauros espetados que só se viam ao sol.
Eles chegam e damos uns socas uns aos outros como
acontecía sempre que ficávarnos algurn tempo sem
nos vermos. O Gegé e o Lee nao váo acreditar quan­
do lhes disser como a metrópole é na verdade, sabem
como é a metrópole dos mapas da sala de aulas, e o
Gegé conhece a metrópole das férias mas nenhum
deles sabe como é a metrópole de viver. Quando lhes
contar como é aposto que vao dizer, estás a bater
cauros. Os tres finalmente no cimo da Sears Tower,
a repetir, há quanto tempo, o tempo que esperámos
para estarmos todos aqui. Com os olhos fechados e
o vento frio a bater-me na cara é fácil acreditar que
o Gegé e o Lee estáo a chegar. Mas ainda faltam 784
dias. Daqui a 784 dias estamos os tres no cima da
Sears Tower. Devemos ter de nos beliscar urna série de
vezes para acreditarmos. Eu, o Gegé e o Lee no cimo
236 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 237

do mundo a contarmos as navidades, todos ao mesmo No Brasil e na África do Sul nao há outono.
tempo, orgulhosos de termos cumprido a jura, os tres O Gegé e o Lee nunca devem ter visto este sol dou­
na América no último dia de 1978, eu o Gegé e o Lee a rado nem devem saber que os passeios se enchem de
interrompermo-nos uns aos outros, deixem-me falar, folhas amarelas de árvores que abafam o barulho dos
porra, o Lee era sempre o que tinha mais dificulda­ passos. Também lhes <leve custar imaginar urna pisci­
de em fazer-se ouvir, o Gegé, deixem falar a donzela, na cheia de folhas como está a do hotel, folhas e lixo,
donzela era a tua máe e casou-se, o Lee e o Gegé a dis­ a diretora nunca mais a mandou !impar desde que a
cutirem por tudo e por nada. Nenhum de nós vai ser esvaziou no vera.o do ano passado, já se <leve ter es­
piegas, nem sequer vamos dizer que tivemos saudades quecido de que este é um hotel de cinco estrelas, que
uns dos outros, que isso é coisa de rapariga. o hotel tem regras e que as regras tem de ser cumpri­
O que se ve daqui do terras:o do hotel náo deve das para o nosso bem. E se nos queixamos a diretora
ser assim tao diferente do que se ve do cima da mexe no colar de pérolas de tres voltas sem disfars:ar
Sears Tower. Lá, os carros ainda devem ficar mais pe­ o aborrecimento que as nossas queixas lhe causam e
queninos, os prédios devem ser iguais aos dos livros nem nos responde. Já foi há tanto tempo que o Paca­
do Homem-Aranha, prédios muito altos e lisos, com s:a reclamou contra o encerramento da piscina, ago­
janelas todas iguais, e as pessoas devem quase desapa­ ra já nem há plenários, neste veráo ninguém sequer
recer. Ainda deve ser um bocado diferente daqui por­ falou da piscina vazia. O Sr. Marques ainda reclamou
que tuda na América é diferente. 784 días. 784 días e do ar condicionado deslígado nos quartos mas a dire­
estou no cimo da Sears Tower com o Gegé e o Lee. tora, se tem calor váo para a praia, nao há muitos que
Tenho de decorar tuda o que vejo para lhes contar, já tenham a praia táo perta. A diretora já nem se des­
estou a ouvi-los, quantos metros de altura tinha o ho­ culpa com os tempos conturbados, de resto agora já
tel, a que distancia ficava o mar, de que tamanho era nem diz tempos conturbados, diz, tempos funestos.
o terras:o, e a piscina, o Gegé e o Lee estavam sempre Este veráo fui a praia e já nao achei a água tao gelada,
a fazer perguntas acerca de tuda, as vezes até eram calvez no vera.o que vem ainda a ache menos gelada.
chatos, podíamos passar urna tarde a discutir porque Ao contrário do que o Faria diz, o ladra.o do carpo
é que os mamoeiros sao tao altos, horas e horas a falar habitua-se a tuda.
sem chegarmos a nenhuma conclusa.o. Agora parece Faltam 784 días para estar com o Gegé e o Lee
que as tardes de lá eram tao compridas, entáo as tar­ na Sears Tower. Parecem muitos mas nao sao assim
des de férias nem se fala, as tardes eram compridas tantos, a partir de agora os dias va.o passar mais de­
mesmo quando íamos de bicicleta ver as raparigas do pressa, os dias cust am mais a passar quando se está a
bairro novo. espera e no hotel está-se sempre a espera, nao é só a
I! 238 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 239

espera do lugar no restaurante ou na sala de televisáo, o mesmo cheira que as malas tinham quando o ca­
é a espera do grande día, o dia de nos irmos embora, cimba as apanhava. O pai baixou os olhos, prometo­
e é essa espera que faz com que os dias parec;:am em­ -vos que um dia ainda teremos urna casa como a de
perrados u.ns nos outros, o grande dia é táo esperado lá, o pai com os olhos na alcatifa gasta e a promessa
que os outros días pouco mais sáo ou tem do que essa a ecoar na casa vazia. Náo foi urna promessa como as
espera. Mas para nós a espera acabou. Arnanhá vamo­ que o pai fazia lá, o aspirador que a máe via nas revis­
-nos embora do hotel. Amanhá já dormimos na casa tas, a ida a barragem de Cambambe, o Babyliss para
nova. alisar os caracóis da minha irmá, foi urna promessa
Nunca mais estarei aqui. Hoje é a última vez que feíta com os punhos fechados, urna promessa que
vejo o mundo daqui de cima, os carros pequeninos na obrigou o pai a levantar a cabec;:a para olhar-nos um
Marginal, as casas com os telhados encarnados lado a por um, prometo-vos que ainda vamos ter urna casa
lado como no jogo do Monopólio que a minha irmá como a que tínharnos lá. Havia tanta raiva nos olhos
gostava tanto de jogar com as amigas, fechavam-se do pai que todos tivemos a certeza que desta vez es­
no quarto e compravam o Rossio e a Rua do Ouro, cava a falar a sério, desta vez a promessa náo ia ser
Santa Catarina e os Aliados, náo fazíamos ideia onde esquecida nem trocada por outra obrigac;:áo.
ficavam, eram bairros da metrópole e por isso bairros A máe está táo feliz que o pai nem precisava de
muito finos, a minha irmá também gostava de com­ prometer nada, náo há lugar como a nossa casa, na
prar as estac;:óes de Campanhá e de Sta. Apolónia, nossa casa é que se está bem, repete a máe apesar
no Monopólio náo se podia comprar esta estac;:áo de das paredes frias e da pouca luz. Aposto que a máe
comboio ao pé do mar. Até os comboios ficam peque­ já adormece a pensar numa mesa para a sala e numa
nos vistos daqui, tubinhos prateados a andarem para cama de casal. Por enquanto arranjamo-nos com u.ns
urn lado e para o outro. Nunca mais verei os barcos colchóes de encher e urna mesa de campismo, só falta
desencaminhados Já longe no mar como os vejo da­ mesmo a tenda, disse a minha irmá satisfeita, e rimo­
qui. É o último dia que passamos no hotel. Esperá­ -nos todos. Por enquanto também nos bastamos com
mos mais de um ano mas o dia chegou finalmente. os copos, os pratos e os talheres que roubámos do
A casa nova é um quarto e urna sala sem varanda. hotel. Que pena náo poder roubar mais coisas do
As janelas sáo junto ao teto, urna nesga de luz que náo hotel, roubar a diretora náo é pecado, como náo era
ilumina nada, mas a máe está feliz como se estivésse­ pecado roubar os contentares dos mortos de Sanza
mos a mudar-nos para um palácio. Ontem fornas bus­ Pombo para levar a minha irmá e a máe para a Amé­
car a chave e ficámos lá urnas horas. A casa tinha urna rica. Os contentares dos mortos de Sanza Pombo já
luz bac;:a apesar de haver sol lá fara e cheirava a mofo, náo estáo lá, algu ém os levou inteiros a luz do dia.
240 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 241

O Pacac;:a diz que foram roubados mas o Sr. Acácio garanta a velhice, mesmo que o corpo náo me atrai­
cliscorda, os mortos de Sanza Pombo tinham cá fa­ c;:oe com urna doenc;:a náo tenho mais do que dez anos
mília, náo havia um colono que náo tivesse cá famí­ de trabalho, náo posso aceitar um ordenado que nem
lia, mais próxima, mais distante, mas todos tinham chega para as despesas quanto mais para juntar para a
cá família. O Pacac;:a zanga-se quando o Sr. Acácio diz velhice, o que seria de nós quando náo pudesse traba­
isso, eu sei quem sáo as ratazanas, ratazanas miserá­ lhar, o que seria de nós com urna pensáo de miséria.
veis, por muito que enriquec;:a, quem rouba é sempre Mas náo adianta, a máe fica a cismar, pior do que náo
miserável. O Pacac;:a náo sabe de ladróes nenhuns ter nada é dever milhares de contos. Se a máe ainda
mas nao quer desistir dos piquetes, sem os piquetes usasse o pó azul nos olhos as cismas náo se notavam
e sem os jogos de sueca os dias e as noites náo passam tanto, nos olhos despidos da máe as cismas parecem
mesmo. De qualquer maneira, roubar a diretora náo mais fortes. O pai vai repetindo, a fábrica dos blocos
é bem roubar, só náo levo urn dos maples grandes da de cimento é um bom negócio, vai dar para pagar
sala de convívio e urna mesa de jantar do restaurante o empréstimo e os juros e para termos urna velhice
com as cadeiras e tudo porque náo posso, ladráo que sossegada, nao tem mal pedir clinheiro emprestado
rouba ladráo tem cem anos de perdáo. desde que náo se desperdice e que se trabal.he para
A máe é quem está mais feliz com a casa nova que de certo, os próximos anos váo ser uns anos di­
porque foi a única que nunca acreditou, nem por um fíceis mas depois fica tudo bem, ao tentar convencer
segundo, que um quarto e urna varanda podem ser a máe o pai também se vai convencendo a si mesmo.
urna casa. Como também náo consegue acreclitar na A mae está sempre a avisar-nos, náo podem aborre­
fábrica de blocos de cimento que o pai quer construir. cer o vosso pai que anda muito nervoso, tem muito

t13
De vez em quando diz, e se arranjasses um emprego, trabalho pela frente, mas depois aflige-se e esquece­
era urna vida mais descansada, podías fazer como o -se clisso, nao vamos conseguir pagar um empréstimo
Sr. Orlando que arranjou emprego como condutor de táo grande, todos dizem que ninguém consegue pa­
machimbombos, um ordenado ao fun do mes e náo gar estes juros e que ainda váo subir mais, e o pai tem
há mais chatices. A máe diz estas coisas e o pai tem de lembrar-lhe, o pior de ter perdido tudo náo é estar
de repetir as razóes que o levaram a arranjar os sócios aqui, se náo aproveitamos esta oportunidade o pior
e a pedir um empréstimo ao IARN para construir vai ser a velhice que aí vem, os anos em que já náo
urna fábrica de blocos de cimento, com esta idade haverá IARN e em que todos se esqueceráo de nós.
ninguém me daria emprego e se mo dessem seria um O pai <leve ter razáo, estar no hotel como nós es­
emprego mau, náo posso desperdic;:ar a saúde e a for­ tamos é mau mas a vida lá fora ainda pode ser muito
c;:a que ainda me restam num emprego que náo nos pior. Se calhar foi por isso que o Sr. Flávio fez o que
242 DULCE MARIA CAROOSO O RETORNO 243

fez, ninguém sabia o que pensar quando o Sr. Teixei­ demónios que rondam a máe como os que rondarn o
ra da rece�áo disse que os familiares do Sr. Flávio ti­ passado na nossa cabe�a.
nham escrito a anunciar o funeral. O Sr. Flávio ain­ Quando ou�o o pai falar da fábrica de cimento
da era um homem novo, a última vez que o vi estava confio em tudo o que ele diz mas quando o pai náo
táo feliz por se ir embora do hotel, quem tem urna está ao pé de mirn ponho-me a pensar que devíarnos
boa familia nao tem nada a temer no mundo, disse o ir embora daqui, que o pai devia ter pedido ao IARN
Sr. Flávio para depois dar um pontapé numa cadeira dinheiro para os bilhetes de aviáo como o Sr. Feman­
e deixar que o carpo lhe morresse preso por urna cor­ do e o Joáo Comunista fizerarn, ponho-me a pensar
da. Talvez o pai tenha razáo, talvez o pior possa ainda que o pai nao se devia ter esquecido da parte do livro
estar para vir. Mas nao vou pensar nisso agora, tenho da vida que dizia que um homem pertence aterra que
de ser capaz de pensar numa coisa de cada vez, vamo­ lhe dá de comer, náo se devia ter esquecido que a me­
-nos embora do hotel e eu tenho de estar contente trópole só lhe deu fome, o pai náo devia ter jurado
sem me pór a pensar noutras coisas, aquele quarto e que nunca mais sai da metrópole. Numa manhá, dois
aquela varanda corn vista para o mar nao eram a nossa ou tres dias logo depois de ter chegado, o pai estava
casa, a nossa casa é um quarto e urna sala com janelas sentado na varanda a fumar um cigarro, olhou para o
coladas ao teto, a nossa casa nao tern varanda e é lon­ mar e jurou, nunca mais ningu ém me expulsa de lado
ge do mar mas é a nossa casa. nenhum, esta vai ter de ser a minha terra. Compreen­
Quando ou�o o pai acredito em tudo o que diz, dia que o pai nao quisesse ir para a América, deve ser
acredito que o futuro da metrópole passa pelo cimen­ difícil ganhar a vida na América sem se saber ingles,
to, que o pai e os sócios vao conseguir pagar o em­ mas já náo compreendo que náo queira ir para o Brasil

f
préstimo ao IARN e que ainda vamos ter urna casa que é parecido com Angola, o Sr. Fernando escreveu
grande e bonita como o pai prometeu. Daqui a uns urna carta do Rio de Janeiro e disse que é igualzinho a
anos vamos dizer, lembram-se daquela casa para onde Luanda, com a água do mar quente e a chuva que nos
fornas morar quando saírnos do hotel, vamos falar de dá vontade de dan�ar, urna terra abern;:oada corno An­
agora como agora falamos do tempo em que estive­ gola era, urna terra que dei.xa crescer rudo o que nela
mos a espera do pai, e mentiremos como mentimos se semeia. Mas nem a carta do Sr. Fernando fez com
agora, tive sempre a certeza que vinhas ter connosco, que o pai reconsiderasse a jura que fez na varanda do
nao havia dia que nao dissesse aos miúdos, é hoje que quarto naquela manhá, de cada vez que lhe falava no
o vosso pai chega, e continuaremos a falar a falar até Brasil o pai respondía, nunca mais ningu ém me tira
nos convencerrnos de que aquilo por que passámos da minha terra. O Joáo Comunista também foi para o
náo volta a acontecer, as palavras tanto afastarn os Brasil mas nunca deu notícias, espero que esteja bem
244 DULCE MARIA CAROOSO O RETORNO 245

e que já náo tenha tanta vergonha do império nem rezas da avó para que a guerra em Angola acabe e o
de ser portugués, deve ser chato viver com vergonha Sr. Acácio a gemer em cima da D. Ester venha o cliabo
de urna coisa que náo se pode mudar. Houve outras e escolha. Ao Paulo tanto lhe faz, passa os dias a rir­
familias que saírarn do hotel e que tarnbém nunca -se com os olhos pesados da liamba, ao menos náo
disseram nada, o Sr. Clemente foi para a terra tratar dá conta das rezas nem dos gemidos. Se calhar nunca
de uns terrenos que tinha herdado, clisse que nos es­ mais vejo o Mourita, este ano nem sequer estamos no
crevia e que até nos mandava urnas sacas de batatas mesmo Uceu. T ive de me mudar para um liceu mais
mas já se passararn meses e nem sacas de batatas nem perta da casa nova mas as aulas ainda náo comec;:a­
cartas, e lago o Sr. Clemente que dizia que tínharnos ram, dizem que antes da revoluc;:áo comec;:ava tuda
de manter-nos unidos, ia sempre as manifestac;:óes a tempo e horas, náo sei se acredito, sempre conta­
de retornados com cartazes, Angola era Portugal, os ram tantas mentiras da metrópole que agora já náo
retornados querem justic;:a, os retornados isto, os re­ acredito em nada. D esde que o Mourita disse aquilo
tornados aquilo.Já quase náo se fazem manifestac;:óes da Silvana e eu lhe dei um murro nunca mais fornas
e as que se fazem tém cada vez menos gente, acho amigos como éramos. Náo lhe devia ter dado o mur­
que já todos perceberam que afina! é cada um por si, ro, o Mourita náo sabe o que se passou entre rnim e
já ninguém está enganado acerca da uniao, por mui­ a Silvana e nao clisse aquilo por mal. Mas dei e agora
to que ainda olhem para as matrículas dos carros na está dado. Nao era só o Mourita que falava da Silvana,
estrada e buzinem uns aos outros de cada vez que muita gente falava depois de a ter visto danc;:ar com
se cruzam dais de lá. Quando o Sr. Belchior ao ir-se o Tobias na passagem de ano, o Mourita clisse que a
embora se foi despedir a sala de convívio clisse, cada Silvana ia ter um fiJho preto para ter grac;:a, náo foi por
um tem de seguir com a sua vida, amigo náo empata mal, náo sei porque lhe dei um murro, se calhar de­
amigo, o Sr. Belchior nem sequer disse que escrevia e via pedir-lhe desculpa antes de me ir embora. Se ca­
até duvidou que nos tornássemos a ver, o mundo nao lhar também nunca mais vejo a Teresa Bartolomeu. !
1
i
é grande mas também náo é assim tao pequeno para Também nao vou ter assim tantas saudades, a Teresa
andarmos a esbarrar uns nos outros, seja o que deus ficou chata desde que quer ser cantora, passa os días
quiser. a ensaiar canc;:óes malaicas com a viola que os pais lhe
O hotel já está mais vazio mas ainda existem derarn, o pior nem é nao cantar nada de jeito, o piar
dois turnos para o restaurante e continua a ser pre­ é que agora tem medo de estragar a voz, conclusao,
ciso guerrear com a diretora por cada quarto que dei:xou de ir as rochas porque se pode constipar, se l
fica vago. O Mourita quer ficar com o nosso quarto, tero de chamar algu ém que está mais longe nao grita, �
está farto de viver com a avó e com os país, entre as tuda para nao estragar a voz, nao come baleizóes, nao
246 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 247

fuma, ficou mais chata do que a minha irma, mas está me é que nao se <leve mesmo estar bem em lado ne­
cada vez mais bonita. Era bem meihor que quisesse nhum, agora sin1 deve ter razóes para nao estar bem
ser Miss como a Rute, mas nao, quer ter urna banda em lado nenhum. No día em que ouvi o Pacac;:a dar os
para correr o mundo como cantora, anda sempre com parabéns ao porteiro Queine peguei na bicicleta e fui
revistas de música que os pais ihe trazem da Inglater­ a casa dela, fui ensaiando pelo caminho as perguntas
ra e já nao gasta da América, só gasta da Inglaterra, que ihe queria fazer mas quando lá cheguei a chave es­
os de cá sáo mesmo esquisitos, o que é que há na In­ tava debaixo do tapete da cozinha como sempre, abrí
glaterra que a América náo tenha, só se for a rainha. a porta e a Silvana estava sentada a mesa da cozinha
A Rute contou que quando era miúda achava que a a fazer qualquer coisa, acho que pregava uns botóes
rainha nao cagava nem mijava, por causa do manto e que tinharn caído da farda, cumprin1entou-me com
daquelas cenas todas, só mesmo se a rainha nao cagar um beijo e perguntou-me como tinha sido o meu día
nem mijar é que a Inglaterra pode ter algum interes­ e eu quis convencer-me de que náo tinha acabado de
se. A Rute também já se foi embora. O Ngola diz que ouvir o porteiro Queine dizer, se nao ternos quem nos
urna vez encontrou os pais da Rute no comboio e que continue o sangue náo ternos nada, tive medo de fa­
eles ihe disseram que a Rute fugiu de casa para ir viver lar com a Silvana sobre o que o porteiro Queine tinha
com um veiho de cá. Náo sei se é verdade, o Ngola dito, se nao ternos quem nos continue o sangue nao te­
fuma muita liamba e está sempre a jurar que ve coisas rnos nada, o porteiro Queine feliz como nunca o tinha
que só acontecem na cabec;:a dele. visto. Durante o can1inho pensei em perguntar muitas
Ainda pensei em trazer o pai ao terrac;:o mas nun­ coisas a Silvana mas quando lá cheguei a chave estava
ca o fiz. Se perdesse este esconderijo perdía o único debaixo do tapete e a Silvana deu-me um beijo, esta­
sítio onde podía ficar a pensar no que quisesse durante va tudo igual e eu nao quis que nada mudasse, pensei,
horas sem que ninguém me chateasse. Náo sei como depois pergunto. ASilvana levou-me para o quarto e
mais ninguém descobriu que é fácil forc;:ar a porta. Ou deitámo-nos na cama, beijou-me e eu ia dizendo para
descobriram e nao acharam interesse nenhum em vir mim mesmo, depois pergunto, depois pergunto. Mas
para aquí. ASilvana de vez em quando vinha aqui ter nao perguntei e a Silvana também nunca me falou no
comigo mas nunca se demorava, havia sempre wn assunto. Nem quando se comec;:ou a notar a barriga.
problema qualquer, o fria, o calor, o cimento que era Nem quando o Mourita disse que a Silvana ia ter um
duro, o lixo a voar, o baruiho. ASilvana nW1ca esta va filho preto e eu ihe dei um murro. Nem no últin1o dia
bem aqui, nunca estava bem em lado nenhum, ou nun­ em que fui lá a casa.
ca estava bem em lado nenhum durante muito tempo. O Mourita tarnbém ouviu o porteiro Queine di­
E agora ainda deve ser pior, com aquela barriga enor- zer, se nao ternos quem nos continue o sangue nao
248 DULCE MA RJ A CARDOS O O RETORNO 249

ternos nada, e pós-se a gozar, o porteiro Queine vai se náo houvesse sempre lixo novo no terra<;o podia
descobrir que afinal tem sangue preto como o Tobías, dizer que conhe<;o este terra<;o como a palma da mi­
e ria-se como um perdido. Disse-lhe para estar calado nha máo. Mas há sempre lixo novo, náo sei como vem
mas ele só se calou quando lhe dei o murro, o que é parar aquí tanto lixo, folhas de árvores, sacos plásti­
que te deu, o Mourita lixado comigo, se nao te calas cos, peda<;os de tábuas com pregos enferrujados, fo­
acerto-te outro, o Mourita, mas estás parvo ou que, lhas de jornais, já encontrei urn len<;o como os que a
e eu, é melhor bazares se nao queres apanhar outro. máe usa no cabelo e urna pauta de música. De vez em
Fiz mal. O Mourita só estava a brincar, nao sabe de quando também aparecem pássaros mortos, o resto
nada do que se passou. Mas mesmo que nao se tivesse do lixo acaba por voar mas os pássaros mortos nao.
passado nada entre mim e a Silvana, o porteiro Quei­ A Silvana dizia que os pássaros mortos dao azar, se a
ne também era meu amigo. Só a urn amigo é que se Silvana aqui estivesse nao seria capaz de olhar para a
dá urna bicicleta. Ou talvez nao. Acho que o porteiro gaivota marta que está ali junto ao muro da antena
Queine nao ia gastar de ter um filho preto mas nao de televisao. Quando estou aqui penso muitas vezes
se importa de ter um filho com o sangue dos celtas. em partir a antena para me vingar da diretora, mas
Dei um murro ao Mourita porque precisava de dar desisto sempre, nao é a diretora que fica sem ver te­
um murro. Os amigos as vezes também servem para levisao, estou mesmo a ouvi-la, algué_m estragou a an­
isso. Mas nao está certo e tem de se pedir desculpa. tena, paga o justo pelo pecador. A máe também diz
Nao pedi e agora passou tanto tempo que já nao vale isso do justo que paga pelo pecador quando fala de
a pena. termos perdido tudo o que lá tínhamos, pagou o justo
A Silvana nao gostava de estar aqui no terra­ pelo pecador, há algum alívio no, pelo menos nao ti­
<;o mas eu sempre gostei. Mesmo quando chovia. vemos culpa. Nao percebe porque, se quem nao tem
Abrigava-me debaixo do beiral e ficava a ver a chuva, culpa tem de pagar e se quem tem culpa e é pecador
a que cai a direito, a obliqua tocada a vento, a ema­ nao tem, nao estou a ver a vantagem. Mas a máe já
ranhada em temporais, a molha-tolos como os de cá nao fala tanto em termos perdido rudo, agora está
dizem, tanto me fazia. Mas o que gasto mesmo é de sempre a falar do empréstimo do IARN, como é que
ficar deitado a olhar para o céu, trago urna camisola vamos conseguir pagar tanto dinheiro, a mae conti­
para servir de almofada e nao preciso de mais nada, nua a fazer muitas vezes a mesma pergu nta, parece
estendo as pernas e deixo que o carpo amole<;a. O sol que os demónios deixaram de rondá-la mas as cis­
já é fraco mas ainda é suficiente para me aquecer, nao mas continuam, a culpa das cismas da máe nao é de
há um centím�tro deste terra<;o que nao conhe<;a, nao África nem da metrópole, a culpa das cismas da mae
há um centímetro <leste cháo que nao tenha pisado, nao é de nenhuma terra nem dos demónios nem de

!
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250 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 251

ninguém, custa a acreditar que haja coisas que exis­ aqui um mar de sangue. Talvez o pai tenha feíto bem
tem sem culpados mas é verdade. em jurar que nunca mais ninguém o expulsa de lado
Quando o pai diz que vai conseguir pagar o em­ nenhum. Havia os que diziam, urna fábrica de blocas
préstimo do IARN nao há quem duvide, nem mesmo de cimento náo é assim táo fácil, e o pai sorria, só náo
a máe. Se o pai náo conseguisse falar táo bem nun­ é fácil até alguém a fazer, quando o pai fala da fábrica
ca teria sido capaz de arranjar os cinco sócios na sala dos blocas de cimento é igualzinho ao pai que ia ser
de convívio. Mesmo que a D. Juvita passasse com as o maior industrial de carnionagem, o pai a quem eles
mamas empinadas, que o Pacas:a o interrompesse, ainda nao tinham feito cicatrizes pelo corpo todo.
que o Pernalta estivesse a ser enxotado ou que a pre­ O pai nunca falou da prisáo. Nem uma palavra.
ta Zuzu comes:asse a cantar as oras:óes, o pai nunca Talvez por isso cu náo consiga olhar para as cicatrizes
se distraía, na sala de convívio o pai tinha urna úni­ do pai quando o vejo em tronco nu. O silencio do pai
ca ideia, o futuro da metrópole passa pelo cimento e faz com que as cicatrizes contem coisas mais terríveis
quem quiser fazer parte do futuro tem de se juntar a do que as que o pai poderia algu ma vez contar, as ci­
mim e a minha fábrica de blocas de cimento. Acho catrizes mostram-me as feridas a serem abertas, o pai
que ao princípio pensaram que era uma brincadeira, a gritar, a implorar, o pai deve ter chorado, o Sr. Mo­
ninguém acreditou no pai apesar da voz táo segura reira disse ao Helder que chega um momento em que
e do entusiasmo em cada gesto, nem os revolucio­ até o mais valence dos homens chora. Quando olho
nários falam táo entusiasmados da revolus:áo. O pai para as cicatrizes do pai é como se estivesse a assistir
insistía, nesta terra está quase tudo por construir, há ao que eles lhe fizeram, como se estivesse a assistir
falta de tudo, casas, escalas, hospitais, lajas, restau­ a tudo e continuasse sem conseguir mexer-me como
rantes, cafés, nada se constrói sem cimento, escre­ quando levaram o pai. Náo me mexo, o meu corpo
vam o que vos estou a dizer, o futuro desta terra passa náo se dobra com dores como o do pai mas a raiva
pelo cimento. O pai na sala de convívio com a ideia da e o ódio rebentam-me todo por dentro, nao, náo é
fábrica de blocas de cimento como lá em Luanda no raiva nem ódio, que a raiva e o ódio enfraquecem com
muro da tabacaria do Sr. Manuel com a ideia da nas:áo o tempo, é omra coisa, outra coisa que nem eu sei,
nova, vamos construir uma nas:áo nova, todos juntos, o que me revolta mais é náo conseguir compreender
brancas e pretos, vamos construir urna nas:áo mais por que levaram o pai, é isso que me revolta e magoa
rica do que a América. Mas desta vez era diferente, mais, a dor de náo conseguir compreender continua
mesmo os que discordavam do pai náo conseguiam intacta ou até vai ficando mais force, náo sei como
apresentar razóes, náo havia nenhum Sr. Manuel a di­ é que podem ter prendido o pai, náo consigo perce­
zer, ó homem, eles váo pór-nos fora daqui, vai haver ber porque, pergunto-me cem vezes, porque, porque,
252 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 253

e até parece que cada vez me afasto mais de algum dia Nao falamos do que aconteceu ao pai mas é como se
poder compreender. As vezes penso que náo foram isso sugasse todas as conversas. Todas as conversas e
eles que fizeram as marcas ao pai, as vezes penso que todos os silencios. O Lee andava sempre a ler nas re­
o pai tem o corpo marcado por ter andado a lutar com vistas coisas sobre os huracos negros, buracos que sao
os demónios, como o Sr. José. Penso que os demónios como estrelas ao contrário e que em vez de darem luz
já náo rondam a mae porque o pai ficou lá a lutar com engolem tudo o que está a sua volta, até a própria luz.
eles e venceu-os. A prisao do pai faz a mesma coisa. Nem sequer é um
O pai podia nao falar da prisáo mas pelo me­ assunto como a doenya da máe porque na doenya da
nos contar o dia em que o libertaram. Mas nem isso. mae nao havia culpados. Ou havia, mas quando deus
Quando o tio Zé passou por aquí antes de ir para a ou os demónios nos fazem mal é outra coisa. Na pri­
terra, contou-nos que eles tinham soltado o pai por sáo do pai há culpados iguais a nós ou quase iguais a
terem apanhado o carniceiro do Grafanil. O pai esta­ nós e podemos faze-los sentir o que nós sentimos. Tal­
va presente mas nem assim disse urna palavra. O tio vez o tio Zé tenha razáo e a guerra nao vá acabar nun­
Zé até se demorou em detalhes, o carniceiro do Gra­ ca. Mas de resto nao se pode confiar no tio Zé, nao se
fanil tinha sido apanhado a beber cerveja numa casa pode confiar no que o tio Zé diz sobre a prisao do pai,
na Maianga e quando se viu cercado deu um tiro na nem sobre a morte do carniceiro do Grafanil, nem
cabeya. O tío Zé levou a máo a nuca e fez de conta sobre as cartas que diz que nos escreveu e que nunca
que disparava, pum, acabou-se. O pai queria fumar cá chegaram, nem sobre os esforyOS que diz ter feito
mas tinha as máos táo suadas que nao conseguia acen­ com o Nhé Nhé para que eles libertassem o pai·. Nem
der o isqueiro Ronson Varaflame. A mae desviou o sequer se pode confiar que a mulata Mena é urna noiva
assunto mas mesmo assirn o tio Zé continuou a fal ar a sério, apesar de o tio Zé a ter apresentado, esta é a
de lá, de como tinha sido obrigado a desistir de aju­ Mena, a minha noiva, e de ter passado o tempo todo
dar o pavo oprimido durante cinco séculos, é a guerra de máo dada com ela. Se se pudesse confiar no tio Zé
mais sangrenta que se pode imaginar e náo vai termi­ o pai tinha-o convidado para ser sócio da fábrica de
nar tao cedo. O tio Zé também falou da dificuldade blocos de cimento, mas mesmo com o tio Zé a dizer
de ter arranjado um voo para cá depois de a ponte aé­ que se arranjasse o que fazer por cá prefería ficar na
rea ter acabado, falou disso e da mulata que veio com capital a ir enfiar-se na terra, o pai nao disse nada.
ele. De vez em quando parecia que o pai ia comeyar E nao foi fácil o pai arranjar os sócios que o
a falar mas nunca disse nada. Nao sabemos sequer se IARN exigía para emprestar o dinheiro. O pai ia
o pai veio de aviao. As vezes penso que a rnáe sabe, para a sala de convívio com a conversa do cimento
que o pai náo pode guardar um segredo tao grande. e do futuro da metrópole mas havia sempre quem
254 DULCE MARTA CAROOSO O RETORNO 255

duvidasse, especialmente os mais velhos, os que já nao e acirna de tuda muitos juros para pagar, o Sr. Miguel
podem pedir empréstimos e os que nunca arranjaráo perguntava ao pai, e se voce está errado, hornero, e o
emprego, como o Pacac;:a, se náo se construiu cá nada pai respondía, agora já náo há África, a galinha dos
em tantos anos quem lhe garante que se vai construir ovos de ouro acabou, os de cá náo podem conti­
agora, ainda por cima neste país onde já náo se sabe nuar parados, tem de se fazer algu ma coisa, ou faze­
quem manda e onde todos podem roubara vontade, mos alguma coisa ou deitamo-nos ao mar, que sem­
é só pegar num jornal, o Bochechas como primeiro­ pre se morre mais depressa afogado do que de fome.
-ministro ainda vende o país como nos vendeu a nós, Nisso tem razáo, dizia o Sr. Miguel mas lago voltavaa
se vender tarnbém nao se perde muito, o que havia ideia de conseguir urna licenc;:a para um carro de pra­
de valor já foi e náo volta mais. O Pacac;:a ainda fala c;:a, é um bocado perigoso com os bandidos que para
todos os dias contra o Mário Soares, o Rosa Couti­ aí andam mas tirando isso é urna vida sem chatices,
nho, o Almeida Santos e os outros que nos traíram e náo há cá greves nem sindicatos, até os comunistas
venderam, e ainda usa todos os días o fumo pelo fim chamam um táxi quando precis am, é um negócio que
do império. Também ainda continuaa espera da carta náo ofende ninguém. Mas a licenc;:a nunca mais saía,
que há de chegar da África do Sul, a carta em que o eram papéis atrás de papéis, pedidos atrás de pedi­
filho lhe diz para ir ter com ele. Só que a carta nunca dos, e um dia o Sr. Miguel decidiu-se, que seja como
chega. O Pacac;:a vai todos os dias a recec;áo, já nem voce diz, que o futuro passe pelo cimento. o pai ficou
tem coragem de fazer a pergunta, o Sr. Teixeira lago táo contente que até me disse para ir com eles beber
que o ve, náo chegou nada, o Pacac;a volta ao Má­ urna cerveja ao bar e depois foi cham ar a máe e a mi­
rio Soares, ao Rosa Coutinho e ao ALneida Santos ' nha irmá. Ainda me lembro do pai para o Vítor que
ao Otelo e aos do MFA, a corja de traidores que nos continua a andar sempre de trombas, homem, tema
vendeu. Mas já quase ninguém lhe liga. Toda a gente sua frente os futuros reis dos blocas de cimento, e até
sabe que mais dia menos dia o IARNvai fechar os ho­ o Vítor teve de se rir porque toda a gente que estava
no bar se riu. A D. Maria disse, até parece que alguém

1
téis e quando nao se tem casa nem comida náo há trai­
dor que náo perca importancia, o que lá vai lá vai, até a faz anos e o pai, que é possível tornar a nascer isso
D. Flor do 519, que jurava que náo havia de morrer é, e lago depois, se um dia quiser construir urna casa
sem cuspir na cara do Rosa Coutinho, agora diz, já sabe onde ir busc ar o cimento, para os retornados
o que lá vai lá vai. faz-se prec;o especial para ajudar, leva-se só o dobro
Ao princípio o Sr. Migu el concordava com os que do que se leva aos de cá. Todos se riram mais urna vez,
diziam que urna fábrica de blocas de cimento era urna o Juiz foi ao quarto buscar a g arrafa de whisky e o
boa ideia mas que tinha muito risco, muito trabalho Sr. Acácio fez o mesmo, estivemos no bar até de
256 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 257

madrugada a contar anedotas e a falar da fábrica dos de tanto dinheiro nem ninguém quería ter tanto tra­
blocas de cimento e de outros negócios. Nem todos balho pela frente, que é urna boa ideia é mas náo se
os dias no hotel foram maus, também aconteceram esque�am que esca terra nao é generosa como a de
coisas boas como esse seráo no bar. Depois de ter be­ lá, diziam . Mas a máe tero raza.o, o pai fala melhor do
bido uns whiskies o pai cantou para a máe, voce bem que um doutor, e um a um conseguiu convencer os
sabe que eu náo /he prometi um mar de rosas, nem sempre cinco sócios, eu sei que esta terra náo é aben�oada
o sol brilha, também há dias em que a chuva cai, a máe como as de lá, eu sei que esta cerra pede-nos suor, lá­
chamou-lhe meu amor, nesse seráo o pai levou a máe grimas e sangue e em troca dá-nos um peda�o de páo
ao colo para o elevador como as vizinhas da casa an­ duro, mas também sei que numa coisa esta terra náo
tiga diziam que o pai a tinha levado no dia em que a é diferente de nenhuma outra, nem mesmo das mais
máe foi a noiva que chegou no Vera Cruz. aben�oadas, esta terra náo rejeita o que lhe póem em
Ninguém no hotel sabe da prisa.o do pai, fala-se cima, isso também sei, e é por isso que vos digo que o
de rudo mas na verdade ninguém sabe grande coisa futuro passa pelo que se vai pór em cima desta terra,
acerca de ninguém. Assim como náo sabem que o casas, estradas, hospitais, escalas. É quase impossível
whisky preferido do pai é o Ye Monks também náo náo ficar entusiasmado ao ouvir o pai falar com tanta
sabem que o pai tem o corpo todo marcado. Mesmo certeza. E foi assim que o pai consegu_iu arranjar os
no vera.o o pai andou sempre com camisas de manga cinco sócios para a fábrica de cimento. E foi assim
comprida e por isso ninguém sabe que quando o pai que o pai e os sócios se tornaram devedores de sete
disse aquilo de tornar a nascer estava a falar a sério. mil e novecentos cantos fora os juros que ainda nem
Com aquelas marcas no corpo o pai tero de ter tor­ se sabe quanto será, porque o dinheiro fica mais caro
nado a nascer, caso contrário náo conseguía pensar todos os días.
na fábrica dos blocas de cimento nem na casa grande Devia descer para fazer a mala mas tenho tempo,
que ainda havemos de ter. Mas por enguanto serve esta é a última vez que posso ficar aquí a pensar nas
esta, por enquanto serve um quarto e urna sala com minhas coisas. Desta vez é fácil fazer a mala, náo há
as janelas coladas ao teto. Chateia-me ter de dormir nada para escolher, a roupa que trouxe de lá deixou de
na sala com a minha irmá, ainda por cima agora que a me servir e já foi quase toda para o lixo. De qualquer
minha irmá está sempre a falar do namorado, a escre­ maneira era fria e como os de cá náo usam cores pa­
ver cartas ao namorado, as raparigas conseguem ser recemos uns palha�os. Nao sou como a minha irmá,
mais enjoativas que eu sei lá. náo cenho vergonha de ser retornado mas também
Náo foi fácil ao pai e ao Sr. Miguel encontrarem nao gosto de ser um palha�o. Desta vez é fácil fazer
os sócios que faltavam, ninguém quería ficar devedor a mala, é só guardar as duas ou tres camisolas que me
258 DULCE MARIA CARDOSO O RETORNO 259

deram no sítio da roupa e já está. O vento podía acal­ me dizer, perguntou-me o pai, nao sei se já andava
mar um pouco para me dei.xar acender o cigarro. Es­ desconfiado. Estávamos sozinhos, era urna boa altura
tar aqui também é bom porque posso fumar quando para contar do chumbo, se o pai me batesse ninguém
me apetece. Quando fuer dezoito anos vou pedir ao vería, nao me custa assim tanto apanhar do pai mas
pai que me dei.xe fumar a frente dele, o pai sabe que custa-me que alguém me veja apanhar. Chumbei por
já sou um homem e que um homem nao se esconde faltas, disse, já foi antes do Carnaval, falsifiquei a assi­
para fumar. Se o pai nao me considerasse um homem natura da mae para que ninguém descobrisse e tenho
nao me centava coisas que nao conta a mais ninguém, fingido que vou para o liceu mas fico por aí as voltas
nem aos sócios. Sei que os do IARN vao comer-nos a espera que o tempo passe. Disse tudo de seguida e
os olhos com os juros só que nao tenho escolha, o pai só me calei porque o pai pousou os papéis do emprés­
diz-me estas coisas mas pede-me sempre, nao digas a timo do IARN. Pensei que ia tirar o cinto para me
ninguém o que eu disse, é mais difícil trabalhar para bater mas o pai nem sequer levantou a voz, era a úni­
pagar o que se acha injusto, ninguém precisa de sa­ ca obrigac;:ao que tinhas e nao foste capaz de a cum­
ber que vai ser assim. Nunca disse urna palavra a nin­ prir, disse com um desapontamento tao grande que
guém, pertencemos ao mesmo clube e os membros me doeu mais do que o cinto. Tentei desculpar-me,
do mesmo dube nao se atraic;:oam, nem se zangam. algumas professoras nem os nossos nomes sabiam,
O pai tinha razóes para se zangar comigo e nunca o frío enregelava-me as maos e nao me deixava escre­
mais confiar em mim. Se eu nao tivesse desmaiado ver, as professoras puseram-nos na fila mais afastada
talvez eles nao o tivessem levado. T inha razóes para da janela, a mae estava pior das crises, dei todas as
estar zangado comigo mas nao está, se calhar nem desculpas pensando que o pai compreenderia pelo
preciso de esperar até aos dezoito anos para lhe pedir menos urna. Claro que nao disse que prefería ir para
autorizac;:ao para fumar a frente dele, o Mourita e o as rochas com a Teresa Bartolomeu e que mais tarde
Paulo fumam a frente do Sr. Acácio e nao há problema preferia ir ter coro a Silvana a casa que tem o cimento
nenhum. Acho que posso pedir antes porque há coi­ a mostra. Nem disse que me deitava com a Silvana
sas em que o pai está diferente, e nao é só nas marcas na cama como se isso nao tivesse mal nenhum. O pai
do corpo. Quando lhe contei que chumbei por faltas olhava para mim sem dizer urna palavra e eu, julguei
pensei que o pai ia tirar o cinto e dar-me urna tareia. que eles o tinham matado e que tinha de ir trabalhar
Estávamos sozinhos no quarto, o pai a estudar os pa­ para tomar conta da mae e da Milucha, se fosse assim
péis do empréstimo do IARN e eu deitado na cama a tanto fazia um ano a mais ou a menos. O pai conti­
ler o Homem-Aranha que o porteiro Queine me ti­ nuou sem tirar o cinto e sem levantar a voz e quando
nha emprestado. Entao, rapaz, tens alguma coisa para disse, tens tempo, um chumbo de um ano nao é nada
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que nao possa remediar-se, eu percebi que o pai tinha nao tem pontaria. Mas a minha irma deve gastar mui­
aprendido que o medo náo é o que mais nos abriga a to dele porque conta-lhe tudo o que se passa na nossa
fazer seja o que for. E náo foi preciso mais nada para vida. Até da doen�a da mae lhe contou, e a doen�a
ambos termos a certeza que ia ser como o pai dizia, da mae nao é assunto que se fale, muito menos coro
para o ano fazes como a tua irmá, que tirou boas no­ os de fora. A teoría do sabicháo é que as doen�as dos
tas e vai para a universidade. nervos as vezes melhoram ou até desaparecem quan­
Mas a minha i.rmá ainda nao vai já para a universi­ do há mudan�as grandes nas vidas das pessoas. Nisso
dade, inventaram urna coisa que se chama servi�o cí­ é capaz de ter raza.o, ter passado por aquilo tudo é ca­
vico e é o que a minha irma vai fazer este ano, a minha paz de nos ter mexido nas cabe�as por dentro. Deve
irma e o namorado, o besugo da metrópole que ain­ ter avariado urnas quantas, como a do Sr. Flávio que
da nem está na universidade e já parece um doutor. fez o que fez, mas também deve ter consertado ou­
A minha irma deve pensar que se namorar com um tras, como a da roa.e. Mas eu queria era ver o sabicháo
besugo de cá dei.xa de ser retornada, só mesmo urna quando a mae estivesse a ter um dos ataques, fugia a
rapariga para pensar numa coisa dessas. O Gegé e o sete pés e a minha irma nunca mais o via.
Lee nao váo acreditar como é o namorado da minha O sabicháo é como a diretora, também fala coro
irmá. Entáo quando lhes contar da ida ao cinema vao palavras de sete e quinhentos, de certeza que podiam
achar que estou mesmo a mentir. Eu e a minha irma ser amigos. O choninhas até de Angola fala como se
tínhamos conseguido arranjar dinheiro para ir ao ci­ soubesse mais do que nós. Nunca lá pós um pé mas
nema e o choninhas, náo vamos ao Casino porque como teve um tio ou um primo ou nao sei o que que
passam filmes porcos. Nunca iria com a minha irma fez a tropa lá isso é o suficiente para vir dizer que nem
ver filmes parcos mas o choninhas todo enojado, no sonhamos coro as coisas terríveis que aconteceram.
Casino passam filmes parcos. O Gegé e o Lee tam­ O choninhas devia era estar preocupado com as coi­
bém nao váo acreditar que aqui na metrópole as fa­ sas terríveis que estao a acontecer aqui e que ele nem
milias va.o a matinée ver filmes como a Emmanuelle, sonha. E nao devem ser poucas porque as coisas ter­
aposto que nem no Brasil nem na África do Su! acon­ ríveis esta.o sempre a acontecer cá, Já, em todo o lado.
tece isso, deve ser urna das poucas coisas que a metró­ O que eu gostava era que o choninhas tivesse
pole tem melhor. O que mais me irrita no choninhas urna teoria que explicasse como é que o tio Zé era
é que tem a mania que sabe tudo. Quando quera irri­ paneleiro quando viemos de lá e se apresencou aqui
tar a minha i.rma pergunto-lhe pelo sabicháo, 6.ca tao com a mulata Mena. Por muito que pense ainda nao
furiosa, noutro dia atirou-me com a soca de madeira, consegui arranjar nenhuma. Se calhar nao é a me­
por sorre nao me acertou, ainda bem que as raparigas trópole que muda as pessoas e as pessoas mudarn
262 OULCB MARIA CARDOSO O RBTORNO 263

estejam onde estiverem, se calhar o que parece mu­ tinha respondido as cartas que lhe mandeí. Nern as
dan9a náo é mudan9a e o tio Zé sempre foi o que minhas nern as da rnáe. O tio Zé que apareceu no bar
esteve aqui de máo dada com a mulata Mena assim do hotel nao falou das minhas cartas mas disse que
como ainda é o que passeava com o Nhé Nhé, se ca­ tinha respondido as da mae. Nao é verdade, náo se
lhar o tio Zé sempre foi o que aceita ir para a terra e podem ter perdido tantas cartas. O tio Zé percebeu
casar com a mulata Mena como ainda é o que se en­ que nao acreditámos nele mas jurou e voltou a jurar
tusiasmava em ajudar o povo oprimido durante cinco que tinha feíto rudo o que podia para libertar o pai.
séculos a criar urna na9áo. Se calhar sou eu que vejo Talvez seja verdade, o tío Zé quase chorou de raiva
mudan9a onde na verdade náo há mudan9a nenhu­ quando percebeu que íamos dizendo que sim que sim
ma, se calhar sou eu que invento mistério onde náo só para o calar. Pode acontecer que o tío Zé nao nos
há mistério nenhum, se calhar a mudan9a náo existe tenha escrito porque náo tinha boas notícias para nos
e vamo-nos só mostrando de maneiras diferentes. Eu dar, e ero vez de desamor ou desinteresse pode ter
náo sinto que mudei mas tenho a certeza que se a máe havido um amor maior que náo soube fazer as coisas
que usava o pó azul nos olhos me visse agora aqui ia de outra maneira. Náo interessa. Se gostava de nós
dizer, náo pareces tu. E náo havia de ser só por causa tinha de ter sabido fazer o que nós precisávamos, se
de a barba ter crescido. nao for assim o amor que os outros nos tero só es­
Mas náo deixou de ser estranho ver o tio Zé na torva. Por isso, para miro o tio Zé nunca fez esfor-
rece9áo sem um cinto com urna fivela em forma de 90 nenhum para o pai ser libertado e assim que nos
borboleta ou coisa parecida e ainda por cima de rnáo enfiou no aviao para virmos para cá foi a correr pór­
dada coro a mulata Mena. A primeira coisa que me -se a chupar na pichota do Nhé Nhé e nunca mais
veio a cabe9a foi que o Paca9a náo ia poder dizer, afi­ quis saber de nós. Foí isso que aconteceu e acabou-se.
na! sempre havia razáo para andares com aquele ca­ Que sejam muito felízes, ele e a mulata Mena, bem
saco branco a Jacques Franciú. O tío Zé que estava longe daqui lá no norte junto dos familiares que náo
na rece9áo ainda tinha os lábios em forma de cora9áo nos convidararn sequer para os visitarmos, fuinhas de
mas já nao fazia beicinho como as raparigas, e náo merda, tantas cartas cheías de saudades e agora nem
fazendo o beicinho era só uro homem com os lábios urna palavra, nao se pode mesmo contar coro os da
mais desenhados. Podia ser outra vez o tío Zé que ti­ metrópole. Nern com os que sao simpáticos como a
nha aparecido lá em nossa casa de surpresa, o tio Zé Silvana e o porteiro Queine.
de antes das cartas do Quitexe e do Nhé Nhé, o tío Nao quero saber o que se passou coro o tío Zé
Zé que era só o irmáozinho da máe que tinha vindo mas há mais coísas que gostava de saber e náo tenho
da metrópole. Mas náo era. Havia o tio Zé que náo como. Coisas que náo sáo terríveis como as cicatrizes
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do pai mas que também ficam a moer. Como o que cumprir a promessa de termos urna casa melhor, vai
se passou com a Silvana e o porteiro Queine. Já náo correr tudo bem.
me lembro bem do último dia em que fui ter com O tumo do porteiro Queine acabava as seis da
a Silvana. Sei que a Silvana tinha dei.xado há algum manhá e ainda tíohamos muito tempo para estarmos
tempo de querer andar sentada no guiador como a juntos. Esperava que fóssemos para o quarto, que a
Etta, a namorada do Sundance Kid, na bicicleta do Silvana me tirasse a roupa, que os cabelos dela me
futuro do Butch Cassidy. Eu tinha ouvido o Pacas:a tocassem no peito, ria-me sempre das cócegas que
a dar os parabéns ao porteiro Queine e sabia a razáo os cabelos dela me faziam quaodo ros:avam no meu
mas a Silvana podia ter-me dito, tenho medo de cair peito, era bom estar com a Silvana, gostava de a ver
e de perder o bebé. Acho que tinha preferido. E daí adormecer abras:ada a mim. Mas nesse dia a Silvana
nao sei. É sempre mais fácil dizer estas coisas depois. estava a fazer um bolo e falava de coisas sem impor­
A Silvana estava a fza er um bolo, as vezes a Silvana tancia, do Sr. Maurício que tinha ido embora do hotel
fazia bolos no dia de folga, até lhes punha creme e os e que tinha deixado o quarto a cheirar aos churras­
enfeitava com bolinhas prateadas. O veráo estava a cos que fazia na varanda, por muito que se limpasse
chegar e os campos a volta já náo eram táo feios, tam­ náo havia nada que tirasse aquele cheira. Nao estava
bém náo eram bonitos, eram campos sarapintados de a criticar nem era contra os retornados, contava por
roxo e amarelo. A máe também fazia um bolo para contar. A diretora ainda o amea�ou muitas vezes com
os nossos aniversários. O bolo nunca crescia, abri a a expulsao mas o Sr. Maurício, quera que a diretora se
porta do forno, nao batí bem as claras, esqueci-me foda. O Sr. Mauricio era assim, estava sempre a dizer
de peneirar a farinha. Havia sempre urna razáo que palavróes, náo se importava que estivessem mullieres
nunca era a falta de jeito da máe. A máe desenforma­ ou crians:as por perto. Muita gente náo gostava dele
va o bolo e cabria-o com um creme que também nun­ por isso. Por isso e pelas unhas sempre negras, restos
ca era bem um creme, urna argamassa que custava a da profissáo, dizia a mulher, a D. Isabel, um mecanico
espalhar, polvilhava-o com coco ralado, parece neve. nunca pode negar a sua profissáo. O Sr. Maurício ar­
O coco ralado voava quando apagávamos as velas e a ranjou emprego numa cidade que fica do outro lado
máe prometía, nunca mais ponho coco, mas no ani­ do rio, urna cidade que é um ninho de comunas táo
versário seguinte voltava ao mesmo. Na casa nova a grande que até o Cristo Rei lhe virou as costas, disse
máe vai voltar a fazer-nos bolos nos nossos dias de o Paca�a. Mas já quase ninguém se ri das gras:as do
anos e náo faz mal que náo cres�am ou que a máe Pacas:a.
continue a cobri-los com coco. Vamos soprar as ve­ A Silvana passou o dedo indicador na tas:a que
las e vai correr tudo bem. Mesmo que o pai demore a tinha o resto da massa do bolo e lambeu-o. Deu-me a
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tac;:a e eu fiz o mesmo. Durante algum tempo ficámos corresse nunca mais apanharia o carro do tio Zé e que
de pé um ao lado do outro a lamber o resto da massa está a descansar a sombra de urna árvore.
do bolo com os dedos. Depois sem mais nem menos a Amanha já nao estou aqui. Parece impossível.
Silvana disse, é melhor nao voltares. Nao sabia o que Parece impossível que o dia de deixar o hotel tenha
responder. Devia ter dito qualquer coisa mas nao sa­ chegado e que eu tenha medo de sermos outra vez
bia o que dizer. E em vez de me ir embora sentei-me a urna familia com urna casa. Tenho medo de deixar­
mesa nurn dos bancos da cozinha. A Silvana sentou-se mos de ser urna familia entre familias de retornados
no banco que estava em frente, o prato do bolo ain­ no hotel e passarmos a ser urna familia de retornados
da vazio entre nós. É melhor nao voltares. Da mesma entre as familias de cá. Acho que nunca mais vou ser
maneira que meses antes, sabes ir ter lá a casa. Olhei capaz de pensar e sentir urna coisa de cada vez. Com
em volta, urna cozinha tao feia como a da nossa casa o tempo <levo habituar-me e deixar de me incomodar
nova. Ainda pensei perguntar, quem trata de mim se com isso. Nao posso evitar que urnas coisas tragam
voltar a ter febre. Mas a Silvana sorriu e eu nao per­ outras ou fa c;:am perder outras. Nao deve ter mal.
guntei. Nem pensei, pergunto depois. Sei ir ter lá a E também nao deve fazer mal. Como nao faz mal
casa e tarobém sei nao voltar lá. Desde entao, quando eu nao saber o que aconteceu ao pai na prisao, aos
passamos um pelo outro no hotel dizemos olá e mais demónios da mae, a Silvana ou ao tío Zé. Nada disso
nada. Nao estamos zangados. Eu pelo menos nao es­ tem mal desde que ainda haja coisas de que eu tenha
tou. E tenho a certeza que a Silvana também nao. a certeza.
Continuo deitado no terrac;:o. O calor do chao Um aviao risca o céu a direito. Silencioso. Como
aquece-me o corpo mais do que este sol momo de um giz preguic;:oso nas maos invisíveis de deus. Nou­
outono. Tenho de tirar esta mangonha do corpo, tro tempo ter-lhe-ia respondido daqui de baixo.
levantar-me, olhar pela última vez o mar que se ve da­ Talvez ainda responda. Noutro tempo ter-lhe-ia es­
qui e ir fazer a mala. O mar que apesar da fábrica de crito, talvez ainda escreva, em letras bem grandes a
blocos de cimento do pai continua a dizer-me que o todo o comprimento do terrac;:o para que nao possa
futuro pode ser onde se quiser. Dantes, se o mar esta­ deixar de ver-me, eu estive aqui.
va mais revolto, via em cada pontinho branco a Pirata Eu estive aqui.
a correr para mim. A Pirata com aquele ar atarefado
de quem sabe que se nao parasse de correr acabaría
por alcanc;:ar-me. Já nao consigo ver a Pirata nos pon­
tinhos brancas do mar e já nao me engano a pensar
que a Pirata percebeu finalmente que por muito que
Las cosas que se mueren
no se deben tocar.
DULCE MARÍA LOYNAZ
Dulce Maria Cardoso nasceu em 1964, em Trás-os­
-Montes, interior norte de Portugal. Foi aos seis me­
ses para Luanda, de onde regressou na ponte aérea
de 1975, em virtude da descolonizas:ao e do início da
guerra civil emAngola.
Formou-se em Direito e exerceu advocacia.
Seu primeiro romance, Campo de sangue (2001),
foi escrito na sequencia de urna bolsa de crias:áo lite­
rária do Ministérío da Cultura portugues e recebeu
o Grande Premio Acontece. Desde entáo publicou
os romances Os meus sentimentos (2005), Premio da
Uniáo Europeia para a Literatura, e O cháo dos pardais
(2009), Premio Pen Club, bem como a antología de
cantos Até nós (2008).
A sua obra foi editada em uma dezena de países,
é estudada em diversas universidades e estáo em cur­
so propostas de adaptas:áo cinematográfica de alguns
dos seus cantos e romances.
No Brasil, a Companhia das Letras publicou
Campo de sangue em 2005-

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