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Outro importante aspecto que nos chama a atenção sobre esses dois poetas da
colônia tem a ver com o resgate e a avaliação de suas obras pela crítica literária.
Caviedes e Matos permaneceram praticamente ignorados por aproximadamente dois
séculos e a recuperação de suas obras apógrafas coincide, tanto no Brasil quanto no
Peru, com a crise desencadeada pela emergência do capitalismo e pelo surgimento de
uma camada pré-burguesa, observados a partir de meados do século XVII -eventos que
afetaram o setor oligárquico rural de tendências conservadoras. Num gesto nostálgico,
de pretenso liberalismo e de busca de solução de compromisso, alguns intelectuais, que
quase nunca se haviam identificado com o povo, empenharam-se em conferir um caráter
nacional à estética romântica, lançando-se ao passado colonial e valorizando as
particularidades regionais, a cor local, as tradições populares e folclóricas. 59 A partir de
tal momento, Caviedes e Matos, poetas que até então só haviam existido na tradição oral
do Peru e do Brasil, passaram a chamar a atenção dos críticos literários.
Matos também só foi integrado à crítica historiográfica brasileira por volta de finais
do século XIX, quando Francisco Adolfo de Varnhagen, representante oficial do
historicismo romântico do Brasil, incorporou em sua antologia Florilégio da poesia
brasileira algums poemas do poeta baiano. A redescoberta de Matos por Varnhagen
serviu de marco para a reavaliação da obra do satírico colonial da Bahia, que só foi
parcialmente editada pela primeira vez, em 1882, através da edição de Valle Cabral.
No caso de Gregório de Matos, foi também por volta de mil novecentos e trinta,
época que coincide com a segunda fase do Modernismo
Em sua obra A sátira e o engenho (1989), João Adolfo Hansen invalida as exegeses
críticas que, por analisarem a sátira de Gregório de Matos fora do contexto histórico em
que foi produzida, interpretam-na como vanguarda do nacional-popular. Hansen analisa
a sátira gregoriana a partir da tradição retórica do século XVII, concluindo,
acertadamente, que «a sátira na Colónia postula as virtudes da fidalguia» (61) e que,
portanto, «a interpretação que faz da persona satírica um avatar da emancipação
nacionalista» (75) falhou em reconhecer que em Gregório de Matos «a crítica às
instituições está prevista como aprimoramento da ordem» (75).
De Portugal, ou do Algarve
cheio de drogas alheias
para daí tirar gages:
Vendendo gato por lebre,
antes que quatro anos passem,
já tem tantos mil cruzados,
segundo afirmam Pasguates.
Já temos o Canastreiro
que inda fede a seus beirames,
metamorfosis da terra
transformado em homem grande:
e eis aqui a personagem
Já temos o canastreiro
que inda fede a seus beirames,
metamorfosis da terra
transformado em homem grande:
e eis aqui a personagem.
Caviedes, por sua vez, também mostrou repulsa por certas funções desprovidas de
status nobiliárquicos -como as de boticários, médicos, curandeiros e barbeiros- que
naquela época facilitavam a ascensão social dos elementos da plebe e davam origem à
burguesia no ambiente colonial peruano:
médicos y curanderos,
barberos y cirujanos,
sin reservar a ninguno
por ser caso averiguado
Caviedes não ficou atrás em seus ataques aos afro-peruanos, comparando-os com
animais e condenando-os severamente por aspirarem aos valores nobiliárquicos, que,
segundo o ponto de vista do poeta, deveriam caber somente à elite branca:
A crítica ao atrevimento dos mulatos aparece nesse soneto através da delação dos
símbolos de status, tais como brasão de armas, chapéu e criados, que alguns mulatos
pareciam haver ostentado publicamente.69 Também como se pode observar através do
exemplo que segue, outro símbolo de prestígio social utilizado por Caviedes para
delatar o arrivismo dos mulatos é o anel, que aparece em muitos de suas poesias
satíricas contra os médicos limenhos:
Herrera, la enhorabuena
ridículo:
Excelentísimo Señor:
Portanto, como se pode concluir a partir de seus versos, nem Caviedes nem Matos
pode ser considerado nacionalista ou revolucionário. A própria condição histórico-social
daquela época, marcada pela profunda desorganização ideológica das massas e pelo
bifrontismo jânico da camada senhorial, impediu que no século XVII os intelectuais do
Brasil e do Peru defendessem ideais nacionalistas. No que sim concordamos com
críticos como Mariano Picón Sallas e Silvio Romero é com o fato de que a linguagem
utilizada nas composições satíricas desses dois poetas, por sua abertura ao popular, deu
lugar a um código barroco dialógico, distinto do metropolitano.
el canónigo castrado,
Ni aun el huevo de Juanelo
tiene de hacer entre tantos,
porque no empina los huevos
quien ni puede dar un porrazo
Se de dois ff composta
Está a nossa Bahia,
errada a ortografia
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta,
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
Esta cidade a meu ver.
Y siéndole preguntado
si conocía a los dichos
contrayentes, dijo que
(mas diré como lo dijo):
qui conoce a otro y uno,
que son moy siñores míos,
il toirto y il siñor Vásquez,
hijo de la doña Elvira.
Y qui sabe qui el dotor
porqui el toirto traiba on nicro
in so mola, con pirdón
di osti, assi com digo.
OBRAS CITADAS
Arrom, José Juan. Certidumbre de América: Estudios de letras, folklore y cultura. 2nd.
ed. (Madrid: Gredos, 1971), pp. 11-26.
Caviedes, Juan del Valle y. Obra completa. Edición, prólogo, notas y cronología de
Daniel Reedy. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1984.
e colonialismo». In Dependência, cultura e literatura. São Paulo: Atica, 1978. pp. 50-
54.
Fitz, Earl E. «Gregório de Matos and Juan del Valle y Caviedes: Two Baroque Poets in
Colonial Portuguese and Spanish América». Inti: Revista de Literatura Hispánica
5-6 (1977): 134-50.
Gomes, João Carlos Teixeira. Gregório de Matos, O Boca de Brasa (Um estudo de
plágio e criação intertextual). Petrópolis: Vozes, 1985.
Hansen, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século
XVII. São Paulo: Companhia das Letras: S. E. C., 1989.
Lanning, John Tate. «Legitimacy and limpieza de sangre in the Practice of Medicine in
the Spanish Empire». Jahrbuch für Gesellschaf, von Staat, Wirtschaft und
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Mugaburu, Josephe e Francisco de. Diario de Lima: 1640-1694. Lima, 1917 y 1918.
Odriozola, Manuel de, ed. Volume 5 dos Documentos literarios del Perú. Lima:
Imprenta del Estado, 1973. pp. 5-8.