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Historiografia, discurso e contra-discurso na Colônia: Gregório de

Matos e Juan del Valle y Caviedes

Lúcia Helena Costigan

Ohio State University

Entre os poetas coloniais do Brasil e do Peru, Gregório de Matos (1636?-1696) e


Juan del Valle y Caviedes (1652?-1698?), existem vários pontos em comum que ainda
não foram devidamente explorados pelos estudiosos da literatura latino-americana. 57
Ambos exibiram um talento multifacetado, produzindo poesias religiosas, líricas e
satíricas, por volta do final do século XVII. Ambos passaram pela experiência de
intelectuais mazombo e criollo,58 marginalizados dentro do sistema colonial, registrando
em suas composições satíricas as contradições sociais da época.

Outro importante aspecto que nos chama a atenção sobre esses dois poetas da
colônia tem a ver com o resgate e a avaliação de suas obras pela crítica literária.
Caviedes e Matos permaneceram praticamente ignorados por aproximadamente dois
séculos e a recuperação de suas obras apógrafas coincide, tanto no Brasil quanto no
Peru, com a crise desencadeada pela emergência do capitalismo e pelo surgimento de
uma camada pré-burguesa, observados a partir de meados do século XVII -eventos que
afetaram o setor oligárquico rural de tendências conservadoras. Num gesto nostálgico,
de pretenso liberalismo e de busca de solução de compromisso, alguns intelectuais, que
quase nunca se haviam identificado com o povo, empenharam-se em conferir um caráter
nacional à estética romântica, lançando-se ao passado colonial e valorizando as
particularidades regionais, a cor local, as tradições populares e folclóricas. 59 A partir de
tal momento, Caviedes e Matos, poetas que até então só haviam existido na tradição oral
do Peru e do Brasil, passaram a chamar a atenção dos críticos literários.

Caviedes, por exemplo, só passou a ser efetivamente resgatado pela historiografia


literária, a partir da segunda metade do século XIX, por membros da segunda geração
romântica hispano-americana. Os primeiros ensaios sobre o poeta satírico do Peru
colonial foram publicados pelo crítico romântico argentino, Juan María Gutiérrez, em
1852,60 e, posteriormente, em 1873, por Ricardo Palma através de seu «Prólogo muy
preciso» à edição do manuscrito Diente del Parnaso, incluído nos Documentos
literarios del Perú, organizado por Manuel de Odriozola.61

Matos também só foi integrado à crítica historiográfica brasileira por volta de finais
do século XIX, quando Francisco Adolfo de Varnhagen, representante oficial do
historicismo romântico do Brasil, incorporou em sua antologia Florilégio da poesia
brasileira algums poemas do poeta baiano. A redescoberta de Matos por Varnhagen
serviu de marco para a reavaliação da obra do satírico colonial da Bahia, que só foi
parcialmente editada pela primeira vez, em 1882, através da edição de Valle Cabral.

É relevante observar que outra coincidência com relação à obra de Caviedes e de


Matos consiste no fato de que, com o clima de agitação social observado nas primeiros
décadas do século XX, em toda a América Latina, e que se refletiu nitidamente na
literatura,62 tanto o poeta colonial do Peru quanto o do Brasil passaram, de novo, a ser
foco de atenção da crítica literária. A partir do segundo decênio deste século, Ventura
García Calderón, através do artigo «La literatura peruana (1535-1914)», inaugurou uma
interpretação de Caviedes sob um ponto de vista criollista. Por sua vez, Luis Alberto
Sánchez reforçou a idéia de criollismo na obra caviediana, chegando ao exagero de
apresentá-lo como «el primer revolucionario, y el más ilustre poeta colonial» (192).

No caso de Gregório de Matos, foi também por volta de mil novecentos e trinta,
época que coincide com a segunda fase do Modernismo

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brasileiro, conhecida também por fase de «redescobrimento do Brasil» 63 que suas


obras passaram, novamente, a ser de interesse literário. Buscou-se, a partir dessa época,
editar pela primeira vez a obra completa do poeta satírico do Brasil colonial64

É, pois, bastante óbvio que o resgate, a avaliação e a reavaliação da obra de


Caviedes e de Matos coincidem com momentos de crise, em que determinados grupos
sociais, tanto do Brasil quanto do Peru, buscaram consolidar a tradição nacional. Assim,
no anseio de justificar a existência entre os intelectuais americanos do espírito de
nacionalidade, desde os primeiros séculos da colônia, poetas como Caviedes e Matos,
cujas composições satíricas incorporaram o libertino, o folclórico e o popular, foram os
que melhor serviram como representantes típicos do proto-nacionalismo.

Em sua obra A sátira e o engenho (1989), João Adolfo Hansen invalida as exegeses
críticas que, por analisarem a sátira de Gregório de Matos fora do contexto histórico em
que foi produzida, interpretam-na como vanguarda do nacional-popular. Hansen analisa
a sátira gregoriana a partir da tradição retórica do século XVII, concluindo,
acertadamente, que «a sátira na Colónia postula as virtudes da fidalguia» (61) e que,
portanto, «a interpretação que faz da persona satírica um avatar da emancipação
nacionalista» (75) falhou em reconhecer que em Gregório de Matos «a crítica às
instituições está prevista como aprimoramento da ordem» (75).

Conclusão semelhante à de Hansen foi apresentada por Luiz Koshiba, na tese de


mestrado intitulada A divina Colônia (Contribuição à história social da literatura)
(1981), que nega a consciência nativista e revolucionária da poesia satírica gregoriana,
ao destacar-lhe o caráter ideológico conservador. Através de uma análise textual que
leva em conta os aspectos sócio-históricos da época e do contexto em que foram
produzidos, Koshiba admite que os versos apógrafos de Matos estão vazios de sentido
nacionalista, por não revelarem nenhum programa de ação política. Porém, de maneira
diferente da exegese de Hansen, Koshiba leva em conta aspectos biográficos do poeta
baiano, concluindo que «a natureza das relações sociais da colônia, o bifrontismo jânico
da camada senhorial [a que pertencia Matos], enfim, as condições históricas» (68),
impediram-no de ser um nacionalista. Também, distintamente da interpretação de
Hansen, Koshiba vê na linguagem da sátira gregoriana uma abertura para o código
popular, capaz de «transformar... os dados de uma consciência conservadora em
instrumentos severamente críticos do Sistema Colonial» (33).
João Carlos Teixeira Gomes também chegou a conclusão semelhante à de Koshiba
ao reconhecer que, apesar de ser «fantasioso ver por detrás... [dos versos satíricos de
Matos] um patriota convicto» (347), no plano da linguagem o poeta criollo da Bahia foi
um modelo de «deliberada transgressão retórica e lingüística, com fins de confrontação»
(362).

As teses defendidas por Hansen, Koshiba e Teixeira Gomes a respeito da sátira do


período seiscentista nos permite argumentar que, se analisados por um ângulo
exclusivamente estilístico, podemos aceitar o ponto de vista dos críticos literários e
historiógrafos brasileiros e hispanoamericanos que vêem Gregório de Matos e Juan del
Valle y Caviedes como singulares representantes da poesia do século XVII. No entanto,
discordamos da crítica que interpreta o conteúdo temático da obra gregoriana e
caviediana como pré-nacionalista ou revolucionário.

A nosso ver, a poesia de Caviedes e de Matos, em consonância com a da classe


senhorial dominante da sociedade portuguesa e espanhola, tem um fundo ideológico
conservador. E para melhor fundamentar o nosso argumento abrimos um parágrafo para
delinear a complexa relação social que vigorava no ambiente colonial peruano e
brasileiro durante o século XVII.

Apesar da colonização do Novo Mundo haver se processado a partir da época


moderna e de ter tido um caráter mercantilista, a mentalidade que vigorava nas colônias
tinha suas raízes na sociedade do antigo regime europeu. Dessa forma -como explica
Roland Mousnier- se apresentava como uma «hierarquia de graus ('estamentos' ou
'condições')... distintos... e ordenados... de acordo com a consideração, a honra e a
dignidade atribuídas pela sociedade a funções sociais que podiam não ter relação
alguma com a produção de bens materiais» (23).65

Durante o período colonial esta visão permaneceu hegemônica, tanto na Europa


quanto nas colônias espanholas e portuguesa da América, pois a escravidão indígena e
negra favorecia a formação de camadas senhoriais que, embora em condições históricas
totalmente distintas, assumiriam os valores da elite metropolitana. Assim, apesar de
orientados pelos interesses do capitalismo mercantil, de maneira geral, os europeus que
povoaram as colônias aspiravam ao status aristocrático.66

Como representantes desse grupo senhorial,

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que desfrutava de prestígio na sociedade colonial, tanto Caviedes (que, segundo os


seus biógrafos Guillermo Lohmann Villena e Daniel Reedy, parecia descender de ilustre
família espanhola chegada ao Peru por volta de meados do século XVII), quanto
Gregório de Matos (que, além de filho de senhores-de-engenho, também descendia de
fidalgos, conforme documenta Manuel Pereira Rabelo), compartiam um ponto de vista
aristocrático-feudal. Dessa maneira, a visão-de-mundo esposada pelos poetas do Peru e
do Brasil se opunha à da emergente burguesia.

Ao se verem ameaçados em seu status senhorial, Caviedes e Matos se voltaram


contra a burguesia em ascensão, formada pelos brancos plebeus imigrados da Europa e
pelos mestiços e mulatos. Isto pode ser muito bem comprovado através de suas poesias.
Vejamos, por exemplo, os versos de um dos «romances» que descrevem a fidúcia dos
imigrantes portuguêses chegados à Bahia por volta das últimas décadas do século XVII,
atribuídos a Gregório de Matos:

Sai um pobrete de Cristo

De Portugal, ou do Algarve
cheio de drogas alheias
para daí tirar gages:
Vendendo gato por lebre,
antes que quatro anos passem,
já tem tantos mil cruzados,
segundo afirmam Pasguates.
Já temos o Canastreiro
que inda fede a seus beirames,
metamorfosis da terra
transformado em homem grande:
e eis aqui a personagem

(2: 430-31)67                

Nesses versos, o poeta assume a ideologia dominante da sociedade portuguêsa,


condenando a inautenticidade da condição senhorial dos indivíduos comuns ou
«pobretes de Cristo», que no Brasil seiscentista se aventuravam no comércio e subiam
na escala social, por meio de ganhos rapidamente acumulados. O arrivismo dos
emigrantes portugueses transparece principalmente através da seguinte estrofe:

Já temos o canastreiro
que inda fede a seus beirames,
metamorfosis da terra
transformado em homem grande:
e eis aqui a personagem.

(2: 432)                

Os comerciantes são descritos através de expressões pejorativas e irônicas como


«canastreiro», «homem grande» e «personagem». No contexto colonial seiscentista,
canastreiro era sinômino de comerciante de categoria inferior, que acomodava suas
mercadorias em uma canastra. A expressão «homem grande», usada para qualificar o
comerciante português, atinge os limites do inferior e do grotesco. A posposição do
adjetivo «grande» atribui ao substantivo «homem» uma carga semântica
acentuadamente negativa. No poema, a expressão «homem grande» parece se relacionar
diretamente com o rude, com o mal-educado, com o pseudo-fidalgo, contrapondo-se,
dessa maneira, às características elevadas e nobres do «grande homem» ou fidalgo
autêntico.

O aspecto grotesco e sórdido, atribuído ao comerciante, alcança o clímax como


verbo «fede», que denuncia o estrato inferior e bestial da personagem. Ao longo do
poema, Matos trata de destacar o fato de que, apesar das condições na sociedade
colonial possibilitarem a ascenção social ou «metamorfose» de comerciantes, tais
arrivistas não passavam de caricaturas e arremedos baratos dos verdadeiros grandes
homens ou nobres.

A aversão do poeta baiano pelos trabalhos manuais e pelos valores pecuniários


relacionados ao mundo burguês transparece claramente em uma de suas «décimas»
dedicada a Pedro Alvares da Neiva, um mercador afidalgado:

Que se despache um caixeiro


criado na mercancia
com faro de fidalguia
ser nobreza de Escudeiro!
e que a poder de dinheiro
e papéis falsificados
se vejam entronizados
tanto mecânico vil
que na ordem mercantil
são criados dos criados!

(4: 907)                

O uso do vocábulo «faro» para delinear a busca de ascenção social do «caixeiro


criado na mercancia» confere aspectos grosseiros e aviltantes àqueles que exerciam
ofícios diretamente relacionados como sistema mercantil-capitalista. Os mecânicos são
vistos como «criados dos criados», a posição mais degradante da ordem hierárquica
vigente na colônia.

Caviedes, por sua vez, também mostrou repulsa por certas funções desprovidas de
status nobiliárquicos -como as de boticários, médicos, curandeiros e barbeiros- que
naquela época facilitavam a ascensão social dos elementos da plebe e davam origem à
burguesia no ambiente colonial peruano:

a Vuecelencia que embarque


a todos los boticarios,
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médicos y curanderos,
barberos y cirujanos,
sin reservar a ninguno
por ser caso averiguado

(48)68                

Além de se voltarem contra determinados tipos de profissionais, como muito


claramente documentam os exemplos citados, as poesias atribuídas a Caviedes e Matos
também deixam transparecer uma severa crítica a certos grupos raciais. Um dos grupos
mais criticados por Caviades e Matos foi os dos africanos e seus descendentes,
particularmente os mulatos. Vejamos a respeito desses indivíduos o que dizia o poeta do
Brasil seiscentista:

Muitos mulatos desavergonhados,


Trazidos pelos pés os homens nobres
Posta nas palmas toda a picardia .

(1: 3)                

Imaginais, que o insensato

Do canzarrão fala tanto,


porque sabe tanto, ou quanto,
não, senão porque é mulato:
ter sangue de carrapato
ter estoraque de congo
cheirar-lhe a roupa a mondongo
é cifra de perfeição:
milagres do Brasil são

(4: 791-93)                


Percebe-se através desses versos a degradação humana da pessoa de cor. Os
descendentes de negros são descritos em termos animalescos, como «canzarrão» e
portadores de «sangue de carrapato». A africanidade dos mulatos é vista como inferior e
negativa.

Caviedes não ficou atrás em seus ataques aos afro-peruanos, comparando-os com
animais e condenando-os severamente por aspirarem aos valores nobiliárquicos, que,
segundo o ponto de vista do poeta, deveriam caber somente à elite branca:

Un mulato por hijo es el más bravo

blasón, que a la nobleza da fomento,


porque éste guarda el cuarto mandamiento,
quebrantando por el todo el octavo.
Con honrar a su padre, encubre el rabo,
aplaudiéndole de alto nacimiento,
primos, duque, le aplica, que es contento,
y un rey que, por contera, pone al cabo.
Si tras de esto añadiere a su decoro,
criado y quitasol el caballero,
es para la nobleza otro tanto oro;
y si miente, porfía y es parlero,
hallo de ejecutorias un tesoro,
porque es gran calidad ser embustero

(314)                

A crítica ao atrevimento dos mulatos aparece nesse soneto através da delação dos
símbolos de status, tais como brasão de armas, chapéu e criados, que alguns mulatos
pareciam haver ostentado publicamente.69 Também como se pode observar através do
exemplo que segue, outro símbolo de prestígio social utilizado por Caviedes para
delatar o arrivismo dos mulatos é o anel, que aparece em muitos de suas poesias
satíricas contra os médicos limenhos:

Herrera, la enhorabuena

en esto os doy del oficio


que estáis ejerciendo de
protoverdugo de Quito
Agravio a él de la ciudad
el Presidente le hizo,
pues siendo vos el primero,
queda verdugo de anillo

(75)                

A animosidade de Caviedes contra os médicos mulatos pode ser explicada com


fatos históricos. Segundo Mac Lean y Estenos,70 durante o século XVII, na cidade de
Lima, muitos mulatos «possuíram qualidades eminentes, chegando a monopolizar o
exercício da cirurgia...» (12). John Tate Lanning, por sua vez, sugere que nas colônias
espanholas a maioria das pessoas que praticavam a medicina, o faziam «como resultado
de fraude» (55). Uma das explicações dadas por Lanning consiste no fato de que no
Peru, durante os séculos XVII e XVIII, o número de mulatos que praticavam a medicina
suplantava o de brancos, devido principalmente ao fato de que, a fim de conseguir
fundos para pagar os professores, a Universidade de San Marcos vendia diplomas às
pessoas de cor que, por lei, não podiam freqüentar universidades.

Os mestiços tampouco ficaram isentos da crítica dos poetas do Peru e do Brasil. Os


ataques de Matos aos falsos nobres da Bahia foram tão severos a ponto de torná-lo
conhecido pela alcunha «Boca do Inferno». Num gesto perversamente irônico, o poeta
chamava «caramurus» os descendentes de indígenas que pretendiam passar por figuras
importantes. O vocábulo «caramuru», que no contexto baiano do século XVII era
sinônimo de europeu, funciona nas poesias satíricas de Matos com o uma metáfora
invertida cujo propósito é destacar a inferioridade dos descendentes de índios em face
ao verdadeiro europeu. Isto pode ser comprovado através do soneto titulado «Aos
principais da Bahia chamados os caramurus», onde Matos zomba da ascendência, da
língua e dos costumes dos descendentes de nativos, cobrindo-os, assim, de

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ridículo:

Há cousa como ver un Paiaiá

Muy prezado de ser Caramuru,


Descendente de sangue de Tatu,
Cujo torpe idioma é cobé pá.
A linha feminina é carimá,
Moqueca, pititinga caruru
Mingau de puba, e vinho de caju
Pisado num pilão de Piraguá.
A masculina é um Aricobé
Cuja filha Cobé um branco Paí
Dormiu no promontório de Passé.
O Branco era um marau, que veio aqui,
Ela era uma índia de Maré
Cobé pá, Aricobé, Cobé Paí

(4: 840)                

Os produtos típicos do Brasil -como o «vinho de caju», o «mingau de puba», o


nativo e o seu idioma- são pintados nesse soneto como inferiores e torpes.

Em Caviedes a crítica aos mestiços e ao fenômeno da mestiçagem ocorre muitas


vezes por meio do ataque às mulheres limenhas:

Una mestiza consejos


estaba dando a sus hijas,
que hay de mestizas consejos
como hay el Consejo de Indias.
Al diablo se estaban dando
todas en cosas distintas:
la vieja se da por tercios,
por cuartos se dan las niñas

(252)                

Além de condenar as mulheres de origem nativa por permitirem que a pureza de


sangue se borrasse através da prostituição, Caviedes também ataca a quebra dos valores
nobiliárquicos como a honra e a virgindade. A aversão do poeta pelo fenômeno da
miscigenação se manifesta claramente em seu «Memorial de los mulatos para
representar una comedia al Conde de la Monclova en ocasión de haber quitado a uno de
la horca», onde os nascidos da união interracial são chamados «revoltosos conceptos de
amores blancos y tintos»:

Excelentísimo Señor:

Los pardos de esta ciudad,


que por guineo Cupido,
Son revoltosos conceptos
de amores blancos y tintos.
el árbol del Paraíso,
pues todos los padres de estos
prueban que Adán pecó en higos

(242)                

Os exemplos textuais revelam que Caviedes e

Matos condenaram ao abastardamento os povos nascidos do melting pot barroco


-que mais tarde viriam a ser definidos pelo ensaísta mexicano, José Vasconcelos, como
a «raça cósmica» e latino-americana por excelência71- e abominaram a falsa nobreza dos
mulatos, dos mestiços, dos comerciantes e de outros grupos que, apesar de
desprestigiados aos olhos daqueles que se consideravam fidalgos «autênticos»,
formavam a emergente burguesia social que mais tarde defenderia a independência das
colônias.

Portanto, como se pode concluir a partir de seus versos, nem Caviedes nem Matos
pode ser considerado nacionalista ou revolucionário. A própria condição histórico-social
daquela época, marcada pela profunda desorganização ideológica das massas e pelo
bifrontismo jânico da camada senhorial, impediu que no século XVII os intelectuais do
Brasil e do Peru defendessem ideais nacionalistas. No que sim concordamos com
críticos como Mariano Picón Sallas e Silvio Romero é com o fato de que a linguagem
utilizada nas composições satíricas desses dois poetas, por sua abertura ao popular, deu
lugar a um código barroco dialógico, distinto do metropolitano.

Provavelmente, influenciados por macrotextos contra-hegemônicos como Quevedo,


e também pela própria reversão da ordem que imperava na colônia, tanto Caviedes
quanto Matos romperam com a normatividade estética da «boa» poesia, ao incorporar
em seus versos satíricos toda uma gama de elementos carnavalescos que, segundo
Bahktin,72 funcionam como desestabilizadores do dogmatismo monológico do discurso
dominante por rejeitarem «a unidade estilística... da épica, da tragédia, da retórica
elevada, da lírica» (108). Nada desmereceu a atenção dos poetas naquele contexto tão
revertido: dor de dente, dor de garganta, diarréia, menstruação e outros temas
escatológicos e grotescos.

Em Caviedes o escatológico e o grotesco aparecem não só nas poesias satíricas que


descrevem mulatos, mestiços e outros arrivistas, como também nas composições sobre
os padres e os maus poetas da cidade de Lima, conforme documentam os exemplos que
seguem:

Unas misas cobró en huevos

el canónigo castrado,
Ni aun el huevo de Juanelo
tiene de hacer entre tantos,
porque no empina los huevos
quien ni puede dar un porrazo

(229-30)                

––––––––   513   ––––––––

Serás un poeta perdido

si ahora los desperdicias,


pues pueden aprovecharte
si es que con ellos te limpias.
Tus obras y lo que obras
todo es una cosa misma,
pues son tus letras tan sucias
que me parecen letrinas

(200-01)                

Em Gregório a linguagem desbragada de origem escatológica e grotesca aparece


nas poesias sobre frades, mulheres e toda a sociedade baiana:

Largai a mulata, e seja


logo logo o bom partido,
que como tem delinqüido
se quer acolher à igreja:
porque todo o mundo veja,
que quando a carne inimiga
tenta a uma rapariga,
que no cabo, quer no rabo
a igreja vence ao diabo
como outra qualquer cantiga.
Briga, briga.
(2: 270)                

Se de dois ff composta
Está a nossa Bahia,
errada a ortografia
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta,
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
Esta cidade a meu ver.

(1: 9)                

No entanto, é na abertura para a linguagem oral e para a dicção popular, corrente


nos vice-reinados do Peru e do Brasil durante o século XVII, que Caviedes e Matos
romperam coro as convenções formais do discurso metropolitano, outorgando às suas
poesias um sabor americanista.

Em Caviedes isto se dá através da incorporação de vocábulos quechuas e da fala


dos índios, dos mulatos e das pessoas incultas que viviam na cidade de Lima:

Por razón de que tenéis

la muerte ocupada en Quito


y hasta que el chasque de esa
ciudad llegue en parasismos,
agonizam los enfermos
que aquí matan los amigos.

(68-71)                

Y siéndole preguntado
si conocía a los dichos
contrayentes, dijo que
(mas diré como lo dijo):
qui conoce a otro y uno,
que son moy siñores míos,
il toirto y il siñor Vásquez,
hijo de la doña Elvira.
Y qui sabe qui el dotor
porqui el toirto traiba on nicro
in so mola, con pirdón
di osti, assi com digo.

(68)                

Em Matos a ruptura com o código lingüístico canonizado pela norma oficial


aparece de forma mais evidente através da explosão de sons musicais que os vocábulos
da fala tupi e africana dão à sua poesia. As décimas «Disparates na língua brasílica...» e
«celebra a carreira que deu um caboclo a um sujeito que achou com uma negrinha
angola, coro quem ele falava» constituem exemplos sui generis da oralidade da época:

Indo à caça de tatus


encontrei quatimondé
na cova de um jacaré
tragando treze teiús:
eis que dois surucucus
como dois jaratacacas
vi vir atrás de umas pacas
e a não ser oro preá
creio que tamanduá
não escapa às gebiracas.

(5: 1147)                

Paí na matá, a lá, la,


aqui sá tu mangalá,
saiba Deus e todo o mundo
que me inguizolo mavundo
mazanha, mavunga, e má.

(5: 1192)                

Como se pode perceber, a incorporação de elementos de origem tupi («tatus»,


«quatimondé», «jacaré», «teiús», etc.), quechua («chasque») e africana («mangalá»,
«mavundo») como também as gírias e os neologismos, próprios da fala dos habitantes
do Peru e do Brasil seiscentista rompem com o código lingüístico dominante. A ruptura
com o discurso ibérico hegemônico se dá, portanto, nesses dois poetas barrocos do
Novo Mundo, a nível textual e não ideológico. Ao descreverem as incongruências do
sistema colonial e ao trazerem para o plano da escrita a fala dos desclassificados da
colônia, Gregório de Matos e Juan del Valle y Caviedes se opuseram ao amaneirado e
culto, criando uma forma discursiva heterogênea e dialógica que superou o discurso
ufanista e elitista, comum à maioria dos poetas daquela época. É, pois, pela natureza
crítica de suas poesias satíricas e pela abertura para a linguagem oral popular que se
pode conferir um caráter radical e contra-discursivo a esses dois intelectuais
seiscentistas do Peru e do Brasil.

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