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O PROCESSO DE POLÍTICAS PÚBLICAS:
UMA ABORDAGEM EXPLORATÓRIA
Introdução
Com a redemocratização do Brasil em 1985 e com a promulgação da Constituição brasileira
de 1988, tendo sido delegado ao Estado um papel mais relevante na sociedade e em especial no
âmbito social, a área de políticas públicas vem se consolidando como processo empírico da
atividade política e como campo teórico próprio e autônomo – sendo um campo multidisciplinar - e
como instrumento analítico importante para compreender as relações da sociedade para com o
Estado e deste para com aquela.
Com a chamada Constituição Cidadã, maiores demandas são imputadas aos diversos entes
públicos e espera-se destes - ou seja, do Estado - ações concretas para atender estas demandas e
agendas que são apresentadas e discutidas na arena pública. Assim, pelo incremento das demandas
da sociedade ao Estado, da produção analítico-teórico e por ser um campo de estudo em
consolidação, justifica-se debruçar-se sobre o tema e sintetizar o arcabouço epistemológico e
hermenêutico de políticas públicas.
A área de conhecimento de Políticas Públicas desenvolveu-se na Europa com a tradição
analítica do papel do Estado. Já nos Estados Unidos, seu desenvolvimento se deu na análise das
ações do Estado em vista da otimização dos recursos aplicados no contexto do New Deal, tendo um
caráter tecnicista (CAPELLA, 2015). Com relação ao Brasil, Arretche define o contexto da
importância e do interesse crescente do estudo em políticas públicas no país:
O crescente interesse por essa temática está diretamente relacionado às mudanças recentes
da sociedade brasileira. O intenso processo de inovação e experimentação em programas
governamentais – resultado em grande parte da competição eleitoral, da autonomia dos governos
locais, bem como dos programas de reforma do Estado -, assim como as oportunidades abertas à
participação nas mais diversas políticas setoriais – seja pelo acesso de segmentos tradicionalmente
excluídos a cargos eletivos, seja por inúmeras novas modalidades de representação de interesses –
despertaram não apenas uma enorme curiosidade sobre os “micros” mecanismos de funcionamento
do Estado brasileiro, como também revelaram o grande desconhecimento sobre sua operação e
impacto efetivo (ARRETCHE, 2003, p.7-8).
Estuda-se políticas públicas por razões científicas que visam entender e explicar fenômenos
sociais, por razões profissionais que trata da utilização dos conhecimentos adquiridos pelos gestores
públicos e empresários e por razões políticas que procura apreender um ferramental necessário para
ser mais eficaz na aplicação das políticas públicas (SECCHI, 2014).
Segundo Deubel, importante pesquisador colombiano de políticas públicas na América
Latina, a originalidade do conceito de políticas públicas está no fato que permite conjugar sob o
mesmo termo tanto a produção normativa das instituições públicas (planos, leis, decretos,
resoluções, ordenanças, acordos jurídicos, entre outros), como as atividades políticas e
administrativas realizadas tanto por atores políticos e sociais, como por autoridades públicas para a
elaboração, decisão, implementação e avaliação dessa produção, ou seja, o processo de política,
assim como seus efeitos na sociedade e a atividade política mesma (DEUBEL, 2010, p. 21).
Este capítulo preocupa-se em fornecer uma abordagem geral em torno do tema das políticas
públicas, dando ênfase ao seu processo, a partir de um enfoque eminentemente teórico. A
compreensão heurística do processo das políticas públicas é representada por etapas que formam
um ciclo. Na verdade, não há apenas um único modelo de ciclo de políticas públicas, mas vários
que serão apresentados neste capítulo.
O objetivo do capítulo é, portanto, o de apresentar ao leitor não iniciado no assunto uma
visão panorâmica a respeito de políticas públicas e analisar a complexidade do processo e as
diferentes etapas do ciclo de políticas. Para atingir este objetivo, o capítulo está dividido em mais
duas seções, além desta introdução: a primeira apresenta as diferentes definições de políticas
públicas, caracterização da transdisciplinaridade deste campo de estudo e apresentação dos vários
tipos de política pública. A segunda seção discute os diversos modelos de ciclos de políticas
públicas, análise da complexidade do processo de políticas públicas e a caracterização e discussão
de cada uma das etapas. No mais, este capítulo guia-se pela pergunta sobre a relevância do ciclo de
políticas públicas para a teoria e a prática. A metodologia de pesquisa é a qualitativa e o
procedimento usado é a pesquisa bibliográfica. Para cumprir os objetivos propostos, foram
consultados autores como Arretche, Capella, Celina Souza, Faria, Secchi, Procopiuk, além de
Easton, Kingdom, Birkland, Cobb, Elder, Subirats, entre outros.
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Faz-se necessário fazer uma diferenciação destes vários conceitos similares e conexos, mas com significados
diferentes. Segundo os parâmetros curriculares nacionais (PCN), multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e
transdiciplinaridade são formas possíveis de articulação das diversas disciplinas. Multidisciplinaridade envolve mais de
uma disciplina, sendo que cada disciplina envolvida mantém sua metodologia e teoria, sem modificações e não havendo
integração dos resultados obtidos e não se explora a articulação. Interdisciplinaridade envolve mais de uma disciplina.
Aqui adota-se uma perspectiva teórico-metodológica comum para as disciplinas envolvidas, promove a integração dos
resultados obtidos e busca-se a solução dos problemas através da articulação de disciplinas. Contudo, os interesses
próprios de cada disciplina são preservados. A transdisciplinaridade representa um nível de integração disciplinar além
da interdisciplinaridade, sendo uma etapa superior de integração onde não existe fronteira entre as disciplinas. Busca-se
ciência autônoma. Nos Estados Unidos, as políticas públicas se desenvolveram com fortes vínculos
à Administração Pública e à Ciência Política. No Brasil (ARRETCHE, 2003; CAPELLA, 2015;
HOCHMAN, ARRETCHE; MARQUES, 2012; SOUZA, 2012; MARCHETTI, 2013), a Sociologia,
a partir da análise das políticas sociais, tem se colocado como disciplina central no estudo e análise
de políticas públicas. É justamente a partir dessa multidisciplinaridade que se compreende o
conceito de políticas públicas.
Mas, afinal, o que são as políticas públicas? Apresentam-se, a seguir, algumas definições de
políticas públicas para que se possa compreender a extensão e a diversidade teórico-conceitual a
respeito desse objeto de estudo.
relações entre os diversos saberes (ciências exatas, humanas e artes) numa democracia cognitiva, onde nenhum saber é
mais importante que outro (BRASIL – MEC, 1998).
originadas do interior do próprio sistema político). Procopiuck (2013, p.139) alerta ainda que
políticas públicas se configuram também como conteúdo. Este “é a manifestação do governo sobre
o que pretende realizar com base em leis, regulação, decisões, comandos executivos e judiciais.”
Apresenta-se, a seguir, algumas definições de políticas públicas elaboradas pelos fundadores
e autores clássicos da disciplina. Estas definições foram reunidas por Souza (2012, p. 68) em seu
estudo Estado da arte da pesquisa em políticas públicas:
▪ L. M. Mead (1995): campo de estudo da política que analisa o governo à luz de grandes
questões públicas.
▪ L. E. Lynn (1980): conjunto de ações do governo que irão produzir efeitos específicos.
▪ B. G. Peters (1986): é a soma das atividades dos governos, que agem diretamente ou por
delegação, e que influenciam a vida dos cidadãos.
▪ Thomas Dye (1984): “o que o governo escolhe fazer ou não fazer”.
▪ Harold Lasswell (1936): decisões e análises sobre política pública implicam em responder as
seguintes questões: quem ganha o quê, por que e que diferença faz.
▪ Theodor Lowi (1964; 1972): “uma regra formulada por alguma autoridade governamental
que expressa uma intenção de influenciar, alterar, regular, o comportamento individual ou
coletivo através do uso de sanções positivas ou negativas”.
Definir políticas públicas como “o Estado em ação” certamente era o suficiente nos tempos
de Easton em 1953. Contudo, hoje tal definição é excessivamente genérica, pois “Estado em ação”
pode significar qualquer coisa que o Estado realiza, deixa de realizar ou quando entra em ação de
forma reativa. Por outro lado, entende-se políticas públicas como planejamento e ação deliberada do
Estado. Este, deixado às leis do mercado, apenas apresentando as condições de negócios, é um
Estado sem políticas públicas e não atende as demandas e não incorpora as contradições da
sociedade.
Como é importante ter uma definição clara do que são as políticas públicas, da mesma forma
é importante distinguir a gramática de alguns termos conceituais, amplamente empregados em
políticas públicas. Os conceitos da língua inglesa politics, policy e polity apresentam certa
dificuldade de compreensão em português por não apresentar seu correspondente imediato, mas faz-
se necessário uma explicação de cada conceito, como apresentado no quadro abaixo.
Dentre os conceitos básicos de políticas públicas, a tipologia proposta por Lowi (1972)
ocupa um lugar de destaque. Apresenta-se esta tipologia a seguir.
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“Jogo de soma zero” descreve situações socais nas quais para que algum ator ganhe algo, outro deve perder. Em jogo
de soma positiva, o ganho de um não implica na perda do outro; todos podem ganhar ao mesmo tempo .
Esses foram alguns conceitos fundamentais que se julga necessário que todo iniciante no
estudo de políticas públicas deva conhecer. Contudo, a área que tem gerado maior número de
estudo é o processo ou ciclo de políticas públicas que é apresentado a seguir.
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Os quadros conceituais ou teorias das políticas públicas não serão discutidos neste capítulo.
o pressuposto de que existe um único ciclo de política pública focado numa grande peça de
legislação, simplifica o processo usual de ciclos múltiplos e que interagem, envolvendo
inúmeras propostas de políticas públicas e estatutos nos vários níveis de governo. [O autor
exemplifica com o caso dos] ativistas do aborto que estão atualmente envolvidos em litígios
nos tribunais federais e na maioria dos tribunais estaduais, em novas propostas de políticas
públicas (em Washington e nos estados), na implementação de outras propostas nos níveis
federal e estadual, bem como na avaliação de todos os tipos de programas e propostas de
programas. Eles também estão continuamente tentando afetar a conceituação do problema.
Em tal situação, o que é comum, concentrar-se no ´ciclo de políticas públicas´ faz muito
pouco sentido (SABATIER, 2007, p. 7, tradução nossa).
Em vista disso, Sabatier ressalta que é necessário substituir o ciclo e buscar melhores e mais
promissores quadros teóricos que contemplem, sobretudo, os critérios de uma teoria científica, com
conceitos, proposições e com elos causais consistentes, hipóteses falsificáveis e amplas em escopo
para poder serem aplicadas na maioria dos processos de políticas públicas em uma variedade de
sistemas políticos. Enfim, que possam ser testadas empiricamente, sendo cada quadro conceitual
uma teoria positiva que explique o processo de política e mesmo que contenha alguns elementos
normativos. Esses quadros conceituais, segundo Sabatier, devem abordar os grandes grupos de
fatores que os cientistas políticos consideram importantes ao analisar diferentes aspectos da
formulação de políticas públicas: valores e interesses conflitantes, os fluxos de informação, os
arranjos institucionais e variação no ambiente socioeconômico (ibid., p. 8).
Apesar de suas ressalvas, Sabatier afirma que o modelo de estágios ou ciclos de políticas
públicas tem sua validade, mas adverte que é preciso ir além e buscar novos modelos explicativos-
causais que contemplem a complexidade, a dinamicidade e o caráter multinível da política pública.
A seguir, apresenta-se alguns modelos de ciclos de políticas públicas.
Identificação do problema
O problema é definido como “a diferença entre a situação atual e uma situação ideal
possível” (SECCHI, 2014, p. 44). Um problema existe quando o status quo é considerado
inadequado e quando existe a expectativa do alcance de uma situação melhor: status quo é o
problema a ser resolvido em vista de uma situação ideal possível (id.). O problema é identificado (i)
por deterioração do status quo (ex. catástrofe climática) ou (ii) por visualização de uma situação
ideal antes impossível (ex. nova tecnologia de cirurgia a laser) ou (iii) por mudança na percepção
das pessoas: antes acostumadas com a situação e agora incomodadas (ex. bullying nas escolas).
Segundo Birkland (2007), o processo de definição de um problema é a ‘venda’ deste para
uma sociedade – chamado de construção social. A construção social de um problema está ligada às
estruturas sociais, políticas e ideológicas existentes no momento. Nesse contexto, a ideia de ação
comunicativa de Habermas é importante. O autor descreve a esfera pública como uma rede de
comunicação de informações e de pontos de vista e afirma que a esfera pública é reproduzida por
meio da ação comunicativa, enfatizando o papel dos meios de comunicação (HABERMAS, 1996).
Secchi (id.) ainda observa que o problema pode surgir subitamente (ex. epidemia, onda de
criminalidade), lentamente (ex. congestionamento do trânsito, burocratização) ou ciclicamente (ex.
secas, doenças pulmonares relacionadas ao frio). É importante ainda ressaltar que o problema está
“na cabeça das pessoas” (neste caso ele é tido como “intersubjetivo”), ou seja, é compartilhado por
muitas pessoas. O que é um problema em uma comunidade política pode ser “normal” em outra. E
pode adquirir o status de “problema público” quando o problema se torna objeto de controvérsias
políticas na mídia e quando é “incluso na agenda”. O autor ressalta que o problema é o combustível
para a ação política (politics), constituindo-se numa oportunidade para o político “mostrar serviço”.
O problema “público” é intersubjetivo: ele existe quando incomoda uma quantidade ou
qualidade notável de pessoas. Mas quem define se uma situação é um problema ou não? Quem tem
poder para isso ou quem tem argumentos mais convincentes, define Secchi (id.). E quem define se o
problema é público ou privado? Não há uma linha clara e exata para marcar esta separação.
Novamente, quem tem poder para isso e quem tem argumentos convincentes. Por exemplo: uma
empresa demitiu 400 trabalhadores. Isto constitui um problema público ou seria um problema
privado de cada um dos 400 trabalhadores? A demissão de um trabalhador certamente é um
problema privado, contudo, pelo impacto que a demissão de 400 trabalhadores causa em uma
cidade, especialmente se for de pequeno ou médio porte, constitui um problema público. Pode-se
ainda citar exemplos de problemas públicos que são transformados em políticas públicas para
melhor exemplificar esta questão, conforme mostra o quadro 2 a seguir.
Formação da agenda
Em qualquer comunidade local ou nação, as potenciais demandas e questões públicas
excedem as capacidades das instituições de processar tais demandas e questões. Estas ou seus
proponentes devem competir por um lugar na agenda de tomada de decisões. Cobb, Ross e Ross
(1976, p. 126) definem como formação da agenda o processo pelo qual as demandas de vários
grupos da população disputam a atenção dos funcionários públicos e tomadores de decisão. Por sua
vez, Kingdon (1984), afirma que a agenda pública é definida como a lista de assuntos sobre os quais
o governo e pessoas ligadas a ele, concentram sua atenção num determinado momento. E dada a
complexidade e o volume de questões que se apresentam, apenas algumas questões podem receber
atenção, dentro da agenda governamental, num determinado momento. E a mudança da agenda é o
resultado da convergência entre três fluxos: os fluxos de problemas (problems), soluções ou
alternativas (policies) e políticas (politics), de acordo com o modelo de múltiplos fluxos criado por
Kingdon (id.).
Nessa mesma direção, Secchi (ibid., p. 46) define a agenda como “um conjunto de
problemas ou temas entendidos como relevantes”. Também pode ser entendido como a inclusão de
determinado pleito ou necessidade social na lista de prioridades do poder público, ou ainda quando
um problema adquiriu o status de “problema público”. Exemplos de problemas que possuem
relevância e prioridade na sociedade são: saúde, educação, segurança, desemprego, miséria,
desigualdade social, corrupção, mobilidade urbana, meio ambiente, inflação, salário, etc.
Na sua tipologia, as agendas são classificadas da seguinte forma: (i) agenda da mídia:
conjunto de problemas ou temas que recebem especial atenção dos diversos meios de comunicação;
(ii) agenda política: conjunto de problemas que a comunidade política percebe como merecedor de
intervenção pública; e (iii) agenda formal: problemas que o poder público já decidiu enfrentar.
Trabalha-se igualmente com a noção de múltiplas agendas, na qual cada ator político tem a sua
agenda, seus problemas “prediletos” (SECCHI, 2014, p. 46). A figura 2 exemplifica a agenda da
mídia, em 1962, a respeito do 13º. salário que fora implantado na época.
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No original: “the politics of selecting issues for active considerations”.
Tais teorias fundacionais do processo de políticas públicas permanecem válidas, mas
ganharam novos insights com relação aos participantes e os papeis que eles desempenham nesse
processo (EISSLER; RUSSELL; JONES, 2014, p.71). Dentre esses insights na teoria destaca-se o
fato do processo alternado, quer dizer, se a formação da agenda está no nível local (municipal ou
estadual) ou nacional, a participação da elite política nesse processo se dá de forma diferente. A
formação da agenda nos níveis local e estadual diverge do nacional; não têm o mesmo processo de
formação de agenda, pois os níveis e o modo de percepção do problema é diverso pelas elites
políticas.
Nem tudo o que ingressa na agenda irá entrar na formulação de políticas, pois nesse
processo há de se considerar que interferem fatores como a pressão da oposição, falta de janela
política, espaço de poder ou conflito de interesses e, ainda, também considera-se, como
interveniente, o fator ideológico. Por fim, outro aspecto que está recebendo atenção nos estudos de
formação da agenda, e no processo de políticas públicas como um todo, diz respeito ao papel da
mídia, que ainda não está totalmente compreendido, especialmente no que se refere a mídia e sua
relação com as elites, especialmente políticas e econômicas.
Tomada de decisão
Existe tomada de decisão em vários momentos ou em todas as fases do ciclo. Todavia, há
um momento de escolha da alternativa de política pública na qual a decisão de política pública é
formalizada. Isso acontece, por exemplo, na sanção presidencial, decisão do STF, definição do
orçamento da Prefeitura.
Há diversos modelos heurísticos de tomada de decisão. Estes são: (i) modelo de
racionalidade absoluta: a decisão é uma atividade puramente racional e, independente de contexto
ou pressões, escolhe-se a alternativa de melhor custo-benefício; (ii) modelo de racionalidade
limitada: os tomadores de decisão sofrem limitações quanto às informações e os atores envolvidos
possuem limitações cognitivas têm dificuldades de entender e lidar com toda a complexidade
envolvida; (iii) modelo incremental: os tomadores de decisão vão ajustando os problemas às
soluções, e as soluções aos problemas; (iv) modelo da lata do lixo (garbage can): os tomadores de
decisão têm soluções em mãos e correm atrás de problemas; e (v) modelo dos fluxos múltiplos: há
um fluxo contínuo de problemas e soluções e quando abre-se uma janela de oportunidade, uma
condição política favorável, deve-se aproveitar essa conjuntura (solução – problema – tempo -
condições políticas favoráveis). O quadro abaixo sintetiza os modelos de tomada de decisão.
Considerações finais
Com a Constituição de 1988, os deveres e responsabilidades do Estado brasileiro para com
os cidadãos foram aumentados sobremaneira. Na verdade, foi implementado um novo contrato
social ou, tardiamente, um Estado do bem-estar social. O Estado tomou para si a responsabilidade
de remediar ou sanar as falhas do mercado, o que inclui desde programa de renda mínima e o fim da
fome até a regulação de setores da economia por meio de agências reguladoras. Por isso, são
inúmeros os tipos e as políticas públicas praticadas atualmente no Brasil. E o alcance das áreas e
políticas é gigantesco, fazendo o Estado parecer o grande Leviatã hobbesiano, colocando suas
garras por toda parte. Contudo, numa sociedade desigual e de mecanismos de exclusão e segregação
social profundamente enraizados nas relações econômicas e sociais, que perduraram por centenas
de anos, faz-se necessário tal investida por parte do Estado para remediar e sanar tais desigualdades
e mecanismos de perpetuação da exclusão social e da reprodução da subcidadania. Exemplificando,
um desses mecanismos de exclusão e de reprodução da desigualdade diz respeito ao acesso às
universidades públicas (gratuita e de qualidade) que era preenchido por mais de 90% aos alunos
provenientes das classes média e alta. Medidas corretivas, através de políticas de cotas (raciais e de
escola pública), vêm sendo implementadas pelo Estado em todo o país para permitir a inclusão de
alunos das classes C, D e E. Observa-se que essas políticas de cotas foram efetivas, pois, na
atualidade, 52% dos alunos das universidades públicas provêm dessas classes menos afortunadas.
Todavia, o corolário de sucesso dessa política de inclusão foi a pressão pelo fim da gratuidade das
universidades públicas federais.
Este capítulo procurou lançar luzes sobre o modelo do processo ou ciclo de políticas
públicas e verificou-se que elas são dinâmicas e contingentes ao humor político, clima e condições
financeiras e mesmo ao “humor” nacional. Assim, não há um processo ou ciclo perfeito de
elaboração, implementação e monitoramento de políticas públicas. Tal “imperfeição” inicia-se pela
dificuldade em definir o que é um problema público (por exemplo, as dívidas da Rede Globo são
um problema público?), o timing da intervenção pública nem sempre atende as necessidades dos
beneficiários das políticas, a avaliação nem sempre é realizada com o devido rigor, entre outras
dificuldades. Além disso, usa-se os conceitos de eficácia, eficiência e efetividade sem muita
transparência: apresenta-se números sem precisar o real impacto que a política de fato causou nos
beneficiários.
Por isso, pontua-se aqui a necessidade de avançar nas pesquisas sobre o real impacto da
mídia na formação da agenda, por exemplo, ou mesmo o impacto dos valores pessoais e morais
(incluindo ideologias) sobre a adoção e implementação de políticas públicas, tais como o trabalho
de profissionais da saúde com convicções religiosas fundamentalistas, ou ainda, a educação LGBT
nas escolas que encontra mais dificuldade em ser adotada do que a educação para o trânsito, por
exemplo.
Políticas públicas é certamente uma área de conflitos e barganhas, na qual os vários atores
interessados (stakeholders) competem entre si por vantagens no exercício do poder e na alocação de
recursos. O processo de políticas públicas, representado pelo ciclo ou estágios, é um modelo teórico
que procura simplificar uma realidade altamente complexa que é a interação do Estado com a
sociedade e esta, incluindo seus grupos de interesse e lobbies, para com o Estado. Este modelo tem
sua utilidade para operacionalizar a análise dessa relação confusa e dinâmica, mas não possui
função dogmática. O dinamismo, a simultaneidade e a complexidade das demandas da sociedade,
por meio dos diversos atores, exercem pressão para que novas concepções teóricas e novas agendas
de pesquisa sejam investigadas.
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