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TEORIA ~

LITERARIA

ABORDAGENS HISTÓRICAS E TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS

Y Edição (revista e ampliada)

!
I

J
EDITORA DA UNIVElJSlDADE ESTADUAL DE MAruNGÁ
Reitor: Prof. Dr.Júlio Santiago Proles Filho. Vice-Reitora: Frota. Dra Neusa AItoé. Diretor da Eduem: Pro! Dr. Alessandro de Lucca e Braccim. Editora-Chefe da Eduem: PraIa
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CONSELHO EDITORIAL
Presidente: Prol. Dr. Ales.sandro de Lucca e BracCÍnÍ- Editores Científicos: Prol. Dr. Adson Cristiano &zzi Ramatis Lima. Prola. DTa. Ana Lúcia Rodrigues, Prata. DTO. Angelo Mara
de Barros Lara, Prola. Ora. Analete Regina Schelbauer, Pro!. Dr. Antonio Ozai da Silva, Prola. Ora. Ceer1io Edna MarC2e da Costa, Prol. DT. Clóves Cabreira Jobim, Pro/a. DTa. Eliane
Aparecida Sanches Tonolli, Pro!. DT. Eduardo Augusto Tomanik, Pro!. Dr. Eliezer Rodrigues de Souto, Prota. Ora. lsmara Eliane Vidol de Souza Tasso, Prol- Dr. Evaristo Atêncio
Paredes, Prota. DTO. Larissa Michelle Lara, Prol. DT. Luiz Roberto Evangelista, Prola. DTO. Luzia Marta Bdlim. PraIa. Dro. Maria Cristina Gomes Machado, Prol Df. OszL'aldo Curty
da Motta Lima, Prol. Dr. Raymundo de Lima, Prola DTO. Regina Lúcia Mesti, Prol- Df. Reginaldo Benedito Dias. Prola. Dra Rozilda das Neves Alves, Prol. Dr. Sczinando Luis
Menezes, Pro!. DT. Valdeni Soliani Franco. Prola Ora. Valéria Soares de Assis

EQUIPE TÉCNICA
Fluxo Editorial: Edilson Damasio. Edneire Franciscon lacob, Mônica Tanamati Hundzinski, Vania Cristina Scomparin. Projeto Gráfico e Design: Marcos Kazuyoshi Sassak(1. Artes
Gráficas: Luciano Wilian da Silva. Marcos Roberto Andreussi. Marketing: Marcos Cipriano da Silva_ Comercialização: Norberto Pereira da Silva, Paulo Bento da SihIQ. Solange Marl):
Oshima
TI IUMAS BONNICI
LÚCIA OSANA ZOLIN
(Organizadores)

TEORIA ~

LITERARIA

ABORDAGENS HISTÓRICAS E TENDÊNCIAS CONTEM~ORÂNEAS

3" Edição (revista e ampliada)

PREFÁCIO
Marisa Lajello

.'

~!!

Maringá
2009
Copyright © 2003 para os autores
Y Edição 2009

la. reimpressj() da:h Ed ~ 2009, 2a. reImpressão d" 3a. Ed. ~ 2011. 3d. reimpressão da.h Ed. ~ 2012
Todos os direitos reserndo,. Proihida a reprodução, mesmo parcIJI. por qualquer processo
mecânico, eletrôl11co, reprográfico etc, sem a autorização, por escnto. dos autores.
Todos os direitos reservados desta edição 2009 para Eduern

Revisão textual e gramatical: Maria Regina Pante. Antôl110 Augusto de Assis


Nonnalização: Ana Cmtll1a Hintze Jaeger
Projeto gráfico e diagramação: Marcos Cipriano da SIlva, Marctls Kazuyosh! Sassaka
Capa - ilustração: Tânia Machado
Capa - arte final: Luciano Wilian da Silva
Imagens: Fornecidas pelos autores
Ficha catalográfica: Edilson Damasio (CRB 9-1123)
Fonte: A1dine401 BT
Tiragem (versão impressa): 500 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


(Eduem - VEM, Maringá - PR., Brasil)

T314 Tpuria literária: abordagens hi:l lcas e tendências contemporâneas / Thomas


Ronn~ci, Lúcia Osana Zolin. 3. ed. rev. e amplo Maringà : Eduem, 7009.
406 P il.

ISBN 978-85-7628-162-7

1. Terria literária. 2. Poesia - Narrativa. 3. Estudos culturais. 4. POS-M0dcII:


(Literatura). S. Texto literário. 6. Critica literária. 7. Artes. I. Bonnici, Thomas, 11
Zolin, Lúcia Osana, org. 111. Titulo.

CDD 21. ed.

Editora filiada à

Assodaçlo Brastl,""

das Editoras Universitárias

Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá

Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitário - 87020-900 - Maringá-ParalLí

Fone: (Oxx44) 3011-4103 - Fax (Oxx44) 3011-1392

Site: http://wv;weduem.uem.hr ~ E-mail: eduem@uem.br

Aos nossos alunos


"
MARIO

PREFÁCIO ............................................................................................... . 11

INTRODUÇÃO ..... ........ . ............................................. . 15

PARTE I
O TEXTO LITERÁRIO

CAPÍTULO 1
AFINAL, O QUE É LITERATURA? 19
Mirian Hisac Yacgashi Zapponc e Vela Helena Gomes Wlelcv/lcki

PARTE II
OPERADORES DE LEITURA

CAPÍTULO 2
OPERADORES DE LEITURA DA NARRATIVA ........................................................... . 33
An,aldo Franco Junior

CAPÍTULO 3
OPERADORES DE LEITURA DA POESIA ................................................................................................. . 59
Clarice Zamonaro Cortez e Milton Hermes Rodrigues

CAPÍTULO 4
OPERADORES DE LEITURA DO TEXTO DRAMÁTICO ................................................................................ 93
Sonia Aparecida Vido Pascolati
r
PARTE III

CRÍTICA LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA

CAPÍTULOS
FORMALISMO RUSSO E NEW CRITICISM .......................................................................................... . 115

Arnaldo Franco J Ull íor

CAPÍTULO 6

TEORIAS ESTRUTURALISTAS E PÓS-ESTRUTURALISTAS ........................................................................ . 131

Thomas BOI111IC!

CAPÍTULO 7

ABORDAGEM ESTILÍSTICA ............ ......... . 159

Milton HCTmes Rodngues

CAPÍTULO 8

CRÍTICA SOCIOLÓGICA ............ . 177

Marísa Corrêa Silva

CAPÍTULO 9

ESTÉTICA DA RECEPÇÃO .................................................................................... .

Mírian Hisae Yaegashí Zappone

CAPÍTULO 10

A DESCONSTRUÇÃO DE jACQUES DERRIDA ........................................................................................... . 201

Marcos Siscar

CAPÍTULO 11

MATERIALISMO LACANIANO ......................................................................................................... 211

Marisa Corrêa SIlva

CAPÍTULO 12

CRÍTICA FEMINISTA............................................................................................................................... . 217

Lúcia Osana Zolin

CAPÍTULO 13

CRÍTICA PSICANALÍTICA ....................................................................................................................... . 243

Adalberto de Oliveira Souza

CAPíTULO 14

TEORIA E CRÍTICA PÓS-COLONIALISTAS ........................................................................................ 257

Thomas Bonnici

CAPÍTULO 15

CRÍTICA GENÉTICA ............................................................................................................................... . 287

Adalberto de Oliveira Souza

PARTE IV

PÓS-MODERNISMO & LITERATURA

CAPÍTULO 16

O PÓS-MODERNISMO .......... . 301


Giséle MangdIlc-lh Fernandes

PARTE V

LITERATURA & ESTUDOS CULTURAIS

CAPÍTULO 17

LITERATURA E ESTUDOS CULTURAIS ... 31 ()


Mana Elisa Cevas co

CAPÍTULO 18

LITERATURA DE AUTORIA FEMININA ...................... . 327

Lúcia Osana Zolin

CAPÍTULO 19

LITERATURA DE AUTORIA DE MINORIAS ÉTNICAS E SEXUAIS ....... . 337

Célia Regil1:l dos Santos e Vera Helena Gomes WlelewlCb

P ARTE VI

LITERATURA & OUTRAS ARTES

CAPÍTULO 20

LITERATURA E PINTURA ....................... . 355

Clarice Zamonaro Cortes

CAPÍTULO 21

LITERATURA E CINEMA ....................................................... . 369

Andise Reich Corseuil

CAPÍTULO 22

LITERATURA, ILUSTRAÇÁO E O LIVRO ILUSTRADO ............................................................................... . 379

Nilce M. Pereira

ÍND I C E R E M ISS I V O ....••••.•••......•......••.•.••.••..••.•.•••.......•.•......•••.••...•••••••.•.....•.........•.•.•....•••••••...•.•.......... 395

SOB R E O S A U T O R E S ................................................................ ........................................................... 405

T 11 () 'vI A \ R () ~I N 1(' r / T r'{ f ' r A ( ) '- " r--.T A 7 () r IN (() R r. A N r '/ A r) () R f' S) - 9
Teoria Literária é disciplina que faz parte do currículo de Letras, além, é claro, de integrar o
horizonte de especulações de alguns bons leitores. E o que estudar e sobre () que meditar sob esta rubrica
está bem longe de constituir unanimidade nacional.
Muito pelo contrário.
A pluralidade de enfoques que a disciplina Teoria Literária recebe nas centenas de cursos de
Letras (430 cursos inscritos no Enade) que, pelo Brasil afora, formam professores e pesquisadores é,
obviamente, desejável e muito positiva. Afinal, desde o declínio do prestígio da Retórica, em meados
do século XVIII, o estudo da literatura vem se tornando cada vez mais plural, abrindo espaço para
olhares múltiplos e nem sempre convergentes.
Se à Retórica substituiu-se a História Literária, segue-se (ou soma-se?) a esta a Teoria da Literatura.
Alguns dos olhares que olham o literário investigam o estrato linguístico e discursivo do que se
considera literatura, outros focalizam as relações da literatura com a história, outros ainda se debruçam
sobre eventuais relações entre o criador e a obra criada. E ainda há muitos e muitos outros, alguns
inclusive, mais recentes, que privilegiam a figura humilde do leitor.
As diferentes perspectivas assumidas pelos estudos da literatura face a seu objeto muitas vezes
coexistem e hoje em dia quase sempre se sobrepõem.
O resultado é que uma história dos estudos literários não se representa como uma sucessão linear de
pressupostos teóricos, de procedimentos metodológicos ou de posições críticas. As diversas perspectivas
- ainda que conflitantes - interpenetram-se e somam-se: quando não na contemporaneidade do
momento de sua formulação, muitas vezes no percurso de sua circulação e, com certeza, na cabeça e
em trabalhos de professores e pesquisadores que, no braço a braço com o texto, valem-se de qualquer
fragmento de teoria, procedimento metodológico ou perspectiva crítica que os auxilie a dizerem alguma
coisa relativamente ao texto que, por profissão, estudam, analisam, ensinam, criticam. Pois, já se sabe,
criticar, ensinar, analisar ou estudar um texto é, sobretudo, dizer alguma coisa sobre ele. Dizer não qualquer
coisa, mas certas coisas.
Daí a importância e oportunidade deste Teoria literária: abordagens históricas e tendências
contemporâneas, assinado a muitas mãos, todas elas com experiência no ensino superior brasileiro.
Antes de mergulhar nas páginas que aqui se ocupam de diferentes aspectos e questões da teoria literária,
vale a pena lembrar que a própria organização do livro - como, de resto, ocorreria com qualquer livro
que tratasse dos mesmos assuntos - já corresponde a uma determinada perspectiva face à literatura e à
reflexão sobre ela.
9! Composta de vários módulos, esta obra tanto se oferece para uma leitura sequencial, página depois
de página do primeiro ao último capítulo, quanto para leituras salteadas - um capítulo aqui c outro
ali - de acordo com os interesses de momento dos leItores.
Será mesmo possível esta leitura salteada;:> Com certeza sim, embora se reservem algumas
recompensas para leitores que encomendam o cardápio na sequência sugerida pelo maítre.
O liVTo se abre de forma inteligente e instigante. anunciando a reflexão através da qual se formula a
questão primordial: o que é literatura? Longe de qualquer dogmatismo, as páginas iniciais do capítulo I do
liVTo vão simultaneamente oferecendo e desconstruindo hipóteses que cercam definições de literatura.
Trata-se de opção sem dúvida arrojada, e que não tem como evitar polêmicas com quem espera
que estudos de teoria literária se iniciem por uma definição de seu objeto. Se oceanógrafos podem
ter alguma certeza quanto ao objeto de seu estudo, e da mesma forma engenheiros mecânicos ou
neurocirurgiões, esta certeza está proscrita para o profissional da literatura.
No caso dos estudos literários e da definição de seu objeto, o processo é maIs relevante do que o
produto, importando mais os passos pelos quais se constrói uma ou outra definição do que venha a ser
o literário do que a definição propriamente dita. Ou seja, são mais relevantes os procedimentos pelos
qu;tís se circunscreve um ou outro segmento da produção verbal humana como literário ou como
nãó literário, do que o resultado do processo de construção ou de circunscrição do que é e do que não é
literatura. '
Esta primeira parte do livro - "O texto literário" - é, pois, onde mais se abre o leque de perspectivas
oferecidas aos leitores: o granum salis com que a porta de entrada do livro tempera as reflexões que faz
sobre o texto literário pode temperar também o que vem depois do capítulo de abertura, sendo isso
uma das recompensas da leitura linear e sequencial da obra.
Prosseguindo na hipótese da leitura ordenada das duas primeiras partes da obra, registre-se que um
tal processo satisfaz expectativas que parecem muito generalizadas: a de que primeiro se discute o que
é literatura ou, melhor dizendo, o que é que torna literário um texto e só depois se estabelece como trabalhar
com o texto considerado literário. Pois - nunca é demais repetir - para os profissionais de literatura,
o caráter literário de um texto é uma espécie de ponto de partida para o exercício profissional que,
embora possa encerrar-se pelo retorno ao texto, constitui sempre um discurso sobre o texto, por mais
que se creia (ou se anuncie como) colado a ele.
É nesta perspectiva que se pode entender que a segunda parte deste Teoria literária: abordagens
históricas e tendências contemporâneas se detenha sobre o que chama de operadores de leitura, isto
é, discuta os componentes do texto que servem, por exemplo, para estabelecer uma das classificações
básicas com que trabalham os estudos literários ao estabelecerem distinções entre narrativa, poesia e
drama.
Ao percorrer estas três partes iniciais, o leitor estará tendo uma oportunidade muito boa para
meditar sobre a fecunda contradição que aguarda todos os profissionais de literatura que a encaram
como algo mais do que uma disciplina escolar que dura um ou mais semestres da graduação de Letras.
A Teoria Literária explica ou constitui o objeto do qual ela se anuncia uma teoria? Ou o explica e o
constitui?
Por um lado, pode-se pensar - e, efetivamente, muita gente pensa assim - que teoria literária
é a disciplina responsável por familiarizar o estudante com a metodologia necessária para análise
dos textos que ele estuda quando estuda qualquer das literaturas curriculares, da infantil à brasileira,
da comparada à de língua inglesa. Encarada desta perspectiva, a teoria literária transforma-se numa
espécie de tecnologia literária.
Por outro lado, pode-se pensar - e outro tanto de gente esposa esta ideia - que teoria literária é uma
especulação gratuita sobre os objetos que são chamados de literatura. Sem nenhum compromisso com
categorias analíticas ou com procedimentos técnicos, deste ponto de vista, a teoria literária se constitui
um espaço reflexivo que tanto se ocupa das várias concepções de literatura em vigência em diferentes
momentos históricos, como medita sobre a passagem de uma concepção a outra.

" 'T' r i"'\ n I .d 11TFRÁRIA


Os quatro últimos segmentos de Teoria literária: abordagens históricas e tendências
contemporâneas oferecem ao leitor um panorama contemporâneo de diterentes questões e
perspectivas que balizam os estudos literirios. Se nem todas as geografias deste panorama falam com
sotaque brasileiro, em vi rios momentos do livro, o diálogo entahulado entre uma ou outra teoria e
uma ou outra obra do cânone literário brasileiro articula as questões que levanta a um acervo (por
hipótese) mais familiar para os leitores deste livro.
Alguns dos desdobramentos dos estudos literários aqui discutidos e incluídos na parte desta
obra que se ocupa da contemporaneidade (partes lU e IV) já têm sua história: tanto o estruturalismo
quanto a crítica sociológica ou a psicanalítica, por exemplo,ji se desenvolveram a ponto de gestarem e
inspirarem suas próprias reformulações ou contestações. Talvez, por isso, esta terceira e quarta partes
sejam das que mais atenção exigem dos leitores, já que resenhar teorias não é nunca tarefa neutra:
sempre se resenha a partir de um ponto de vista, de 11m repertório e para (ertos interlocutores
O livro se fecha com capítulos que ~ como fica bem em capítulos finais ~ apontam para fina do
campo estrito literário, retomando simultaneamente a questão trabalhada no capítulo de abertura.
Recobertos pelos títulos "Literatura & estudos culturais" e "Literatura & outras artes", seis capítulos
investem - bem mais do que os anteriores ~ em perspectivas interdisciplinares dos estudos literários.
São vários os centros universitários de ponta, hoje, onde o estudo da literatura é partç do que se
chama de estudos culturais. A questão é polêmica e pega fogo: transformar a literatura em uma manifestação
cultural, incluindo nela Cebolinha, Capitu, O Navio Negreiro, telenovelas globais e anúncios de lingerie
desagrada a muita gente. Para estes, esta perspectiva põe em xeque a especificidade estética da literatura
que, assim, se dissolveria no universo semovente de diferentes linguagens e diferentes mídias.
No avesso desta radical abertura do conceito de literatura, os tres capítulos finais do livro resgatam
a identidade do literário, propondo uma contraposição entre literatura e outras artes, recuperando
neste contraponto a especificidade da primeira. Aqui, a identidade da literatura enquanto linguagem
especítlca e altamente valorizada se constrói e se afiança no diálogo que estabelece de igual para igual
com outras linguagens ~ pintura, cinema e ilustrações, no caso - para as quais nossa cultura atribui
valor artístico.
Nesta contraposição que encaminha o livro para seu encerramento nada mais adequado e justo do
que o leitor repetir a pergunta que abre o livro: afinal, o que é literatura?
Que ninguém se engane com a repetição: se a pergunta chave pode repetir-se ao final do lívro,
ela se repete (e se responde) de maneira diferente, porque formulada (e respondida) agora por um
leitor muito mais informado dos caminhos, atalhos e becos que espreitam quem viaja pelas movediças
sendas dos estudos literários.
Viagem para a qual este livro é um bom companheiro.

Marisa Lajolo
UNICAMP
,..,
TRODUÇAO

MAIs UM MANUAL DE TEORIA LITERÁRIA?!

Desde o tempo em que a "oratura" predominava como um veículo de transmissão das histórias
míticas, não apenas nas sociedades indígenas, africanas e americanas, mas também nas comunidades
"mais avançadas" egípcias e gregas, as manifestações de crítica surgiram como que inerentes à mente
irrequieta e investigadora do homem. A materialização da narração dos mythoi antigos, antes cantados
ao redor da fogueira nas noites frias, agora através de letras, ou na "literatura", instigou ainda mais o
intelecto humano a elaborar teorias, críticas e métodos para analisar seu produto estético. O gosto pela
realização do belo, a poiesis dos gregos, em suas várias manifestações, levou-o à formulação de conceitos
básicos para analisar o texto literário, para denunciar exclusões estéticas e recuperar o terreno perdido
de expressões que integram a natureza humana.
É nesse contexto que podem ser vistas as obras de teoria literária de Aristóteles, Horácio e
Longinus, na Antigüidade clássica; de Bellay, Viperanus, Boileau-Despréaux, no Renascimento e no
Neoclassicismo; e de Foster, Frye, Kayser, Aguiar e Silva, Brooke e Eagleton, entre outros, na época
contemporânea. Acrescentam-se também os múltiplos desafios ideológicos, os quais, a partir dos anos
1960 até o presente, deram origem a novas manifestações literárias e modalidades de crítica literária.
Presume-se que já se passou o tempo em que a interpretação de textos literários e a teoria literária
eram vistas como esferas distantes uma da outra. A interpretação de um texto, seja ele lírico, épico ou
dramático, muitas vezes passava ao largo da teoria literária, já que a primeira se referia exclusivamente
a "descobrir" o tema concebido pelo poietes, enquanto a última concentrava-se em generalizações que
jamais se encaixavam nos textos específicos. Nestes últimos quarenta anos, vê-se a aproximação entre
a teoria e a interpretação dos textos. É consenso hoje que qualquer interpretação deve envolver a teoria
e os conceitos a ela inerentes. Ademais, a teoria tornar-se-ia estéril se se furtasse dela a interpretação do
texto. Estamos convencidos de que, em todos os níveis de análise, especialmente nos estudos literários
acadê.micos, a teoria e a interpretação são essencialmente conexos.
Para o professor de Literatura, é um desafio apresentar ao aluno de graduação um grande número
de textos teóricos seminais que alicercem a análise dos textos submetidos a seu apreço. De fato, os
professores de Literatura e Teoria da Literatura encontram-se, quase sempre, em situação pouco
confortável no momento de selecionar textos sobre teoria da literatura para serem trabalhados em
sala de aula, com alunos de graduação. Isso ocorre porque grande parte do material disponível no
mercado não é destinada à graduação, mas ao pesquisador, em geral iniciado. Trata-se de publicações
que contemplam a teoria literária a partir de suas fontes, mas que, efetivamente, não atingem o
aluno; a linguagem é hermética e as discussões são eminentemente teóricas, acarretando, não raro, o
desinteresse do aluno em relação à matéria. Por outro lado, os manuais disponíveis abordam, em sua
r
" u,o,ia,,, tendên"", nit,m ,,,dic,ona,,,sem contempla,,, ahmdagem ma" ,ecente,. E,m, q"""
sempre, estão dIspersas em textos de seus tormuladores, geralmente estrangeIros.
Foi visando colaborar para com o preenchimento dessa lacuna que nasceu o projeto deste manual,
envolvendo diversos professores do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá e
convidados de outras instituições. Em se tratando de um grupo consideravelmente grande, os capítulos
acabaram por assumir configuração bastante diversificada, tanto em relação à extensão quanto à linguagem
e até mesmo à profundidade das discussôes. Apesar dessa peculiaridade imposta pelo próprio caráter de
coletânea que o livro possui, nosso objetivo foi disponibilizar para o professor e para o aluno de graduação
reflexões acerca da literatura e das principais maneiras de ler o texto literário, desde as mais tradicionais até
as mais recentes. Tomamos o cuidado de tecer essas reflexões utilizando uma linguagem, na medida do
possível, acessível ao iniciante; bem como de acompanhá-las de exemplos práticos de leitura, retirados da
literatura em geral, com ênfase em textos de autores brasileiros.
O manual está organizado em seis segmentos: o primeiro, "O texto literário", ahriga um capítulo
que resgata alguns conceitos de literatura disseminados em contextos diversos, visando refletir
sobre as tendências contemporâneas de se conceber as especificidades do texto literário; o segundo,
"Operadores de leitura", contém capítulos que discutem os elementos fundamentais de análise da
narrativa, do texto poético e dramático por meio de exemplos práticos de leitura; no terceiro segmento,
"Crítica literária contemporânea", reunimos capítulos que versam sobre algumas das principais
correntes críticas do século XX e da atualidade, objetivando esclarecer as implicações que envolvem
as leituras realizadas a partir do ponto de vista de cada uma dessas tendências. Nosso objetivo é fazer
com que, por meio da leitura desses ensaios, o acadêmico tenha ideias claras, precisas e suficientes
sobre as críticas Sociológica, Feminista, Pós-colonial e sobre o Formalismo Russo, Estruturalismo,
Pós-estruturalismo, Desconstrução, entre outros. Enquanto dedicamos, no quarto segmento, um
momento de reflexão acerca do Pós-modernismo, no quinto registramos capítulos que refletem acerca
da literatura no âmbito dos Estudos Culturais, com especial foco sobre a literatura de autoria feminina
e de minorias étnicas e sexuais. Por fim, no sexto segmento, reunimos capítulos que buscam discutir
as relações entre a literatura e outras artes, como o cinema, a pintura e a ilustração.
Por motivos óbvios, nesta obra, na qual é predominante a preocupação de unir a teoria e a prática
literária, em nível de graduação, a ênfase gira em torno da teoria literária contemporânea. Sem dúvida, não
se pode prescindir de analisar certos aspectos de crítica literária em voga no início do século xx, como o
Formalismo e o New Critiâsm. Sobre essas abordagens baseiam-se várias outras perspectivas mais recentes,
como o Estruturalismo, o Pós-estruturalismo e o Pós-modernismo, tornando esses últimos menos difíceis
de compreender e de assimilar. De tato, prima esta obra por uma política de coexistência em que se refletem
abordagens antigas e novas, tradicionais e atuais, consensuais e polêmicas.
Precisamente é esse nexo que provoca no professor e no aluno uma atitude de problematização,
não apenas dos aspectos e das perspectivas da teoria literária, mas do próprio texto. Embora se pergunte
ainda "O que significa esse poema?", ou "Qual é o tema dessa narrativa?", mais ainda enfatizam-se
perguntas como "Esse texto significa isso para quem?", ou "Por que esse texto pode ter esse significado?",
ou ainda "Quem quer que esse texto signifique isso?" Nesta terceira edição, com vários capítulos ou
acrescidos' ou atualizados, os organizadores e os autores esperam que este manual ajude o aluno de
graduação a aprofundar a problematização e que enfrente corajosamente as múltiplas "tentativas de
interpretaçã,D". Esperam ainda que se alargue mais o conceito de literatura do nosso aluno, dando-lhe
uma visão mais crítica da ficção e da realidade.

Os organizadores
PARTE I

AFINAL, O QUE É
LITERATURA?

Mirian Hisae Yaegashi Zappone


Vera Helena Gomes Wielewicki

DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO-SEMÂNTICO DO TERMO LITERATURA

Quando pensamos, leitores desse livro e, portanto, leitores já iniciados no caminho das letras, na
pergunta O que é literatura?, imediatamente vêm à nossa mente nomes de obras arroladas há muito tempo
como tal. Quem não pensa n'Os lusíadas, de Camões, no Dom Casmurro, de Machado de Assis, nos versos de
Gonçalves Dias ou de Castro Alves, em Iracema, de José de Alencar, no Grande sertão: l!eredas, de Guimarães
Rosa e em muitos outros, para ficar apenas na tradição literária em língua portuguesa?
Esse processo mental de associação entre a palavra literatura e esse rol específico de textos parece­
nos muito natural e imediato, de forma que o próprio conceito de literatura imiscui-se, mistura-se
com a descrição desse determinado conjunto de textos. E, assim, ficamos com a impressão de falar
de um objeto, a literatura, como um fato concreto, imediato, pronto e acabado, como se sempre
tivesse sido assim. Essa associação é tão ajustada, tão natural, que ninguém questiona a veracidade de
ser o Dom Casmurro uma obra da literatura brasileira: a literatura é tanto Dom Casmurro quanto Dom
Casmurro é literatura.
Como comenta Williams (1979), ao falar desse processo de associação entre conceito e descrição
da literatura, "esse é um sistema de abstração poderoso, e por vezes proibitivo, no qual o conceito de
'literatura' é ativamente ideológico" (WILLIAMS, 1979, p. 51). E o aspecto ideológico dessa associação
reside no fato de ele apagar ou encobrir para todos nós a ideia de que o conceito de literatura construiu­
se e constrói-se através de um processo que é social e histórico ao mesmo tempo. Com isso queremos
estabelecer que aquela relação entre Dom Casmurro e literatura e literatura e Dom Casmurro pode não ser
tão direta ou concreta quanto faz supor a associação que fizemos no primeiro parágrafo ao perguntar
O que é literatura?
Bem, se não se trata de uma relação direta, mas de uma relação que obscurece o próprio modo
de construção desse conceito, parece-nos que uma forma de deslindar os aspectos sociais e históricos,
que influíram e influem sobre sua construção, seria verificar como, afinal, o conceito veio a se
desenvolver.
~iI I' P () N E W I F L [ W I (' h I

! A ideia moderna de literatura, ou seja, como uma arte particular, diferenClada da música, da pintura,
da arquitetura, enfim como uma categoria específica de criação artística que resulta num determinado
conjunto de textos só veio a ser form ulada a partir da segunda metade do século XVIII e desenvolvida,
de forma mais completa, no século XIX.
A palavra literatura, como informa Aguiar e Silva (1988), deriva da palavra latina litteratura, que fora,
por sua vez, imitada do substantivo grego yp a).!).! an Kll (grammatiké). Nas línguas europeias modernas,
termos correlatos de literatura, do latim, aparecem em meados do século XV (aproximadamente 1450).
No intervalo de tempo entre meados desse século c meados do século XVIII, há uma literature na
língua inglesa, uma littérature, em francês, uma letteratura, no italiano, e uma literatura em português. O
uso desse termo nas diversas línguas estava, entretanto, muito longe de abarcar o caráter especializado
com que o vemos hoje.
Nesse intervalo de tempo, não se fazia literatura, mas se tinha literatura, ou seja, ela era mais um
atributo de um indivíduo que era capaz de ler e que havia realizado leituras. Literatura relacionava-se
à capacidade de ler e de, portanto, possuir conhecimento, erudição e ciência. Assim, literatura não
designava uma produção artística. Ela abarcava tanto o conhecimento dos indivíduos sobre vários
ramos do saber, da gramática à filosofia, da histÓrIa à matemática, quanto o amplo conjunto dos textos
que propiciavam esse conhecimento.
Como a partir do final do século XV a reprodução de materiais escritos começou a transferir-se
das mãos dos copistas para a oficina do impressor, o conhecimento ou a literatura passou a ser adquirida
de forma mais específica através de textos impressos e, obviamente, como o número das pessoas
capazes de ler era bastante restrito, a literatura era atributo de poucos. Logo, mesmo no sentido inicial
de seu emprego, a saber, como uma condição cultural (muito próximo ao conceito atual de letramento) ,
a literatura especificava uma distinção social particular, ligando-a, portanto, às classes privilegiadas.
Para designar especificamente os textos de caráter imaginativo, enquanto criação artística, eram
utilizadas normalmente as palavras poesía, eloquê/lcia, uerso ou prosa. A palavra poesia assumiu, com o
tempo e a partir do próprio desenvolvimento do termo literatura, uma especialização: de "composições
de cunho imaginativo", passou a se referir unicamente às composições metrificadas e, posteriormente,
às composições metrificadas, escritas e impressas. Literatura, por sua vez, tornou-se uma categoria mais
ampla e abrangente do que poesia (WILLIAMS, 1979, p. 52).
Retornando, pois, ao processo de especialização do termo literatura, foi no século XVIII que se
registraram as primeiras mudanças do uso de literatura como "conhecimento", "saber", "erudição" para
um uso diferente, agora relacionado à ideia de "gosto" ou "sensibilidade", embora ainda permaneçam
resíduos do significado anterior. Os dicionários e enciclopédias, tão em voga nesse momento do Século
das Luzes, ajudam a ilustrar essa passagem. O Dictionaire philosophique, de Voltaire (1694-1778), registra
as dificuldades que cercavam aqueles que tentavam definir literatura nessa época circunscrita a meados
do século XVIII, até as últimas décadas desse século:

Literatura; essa palavra é um desses termos vagos tão frequentes em todas as línguas [".]
a literatura designa em toda a Europa um conhecimento de obras de gosto, um veniz de
história, de poesia, de eloquência, de crítica [...]. Chama-se bela literatura as obras que se
interessam por objetos que possuem beleza, como a poesia, a eloquência, a história bem
escrita. A simples crítica, a polimatia, as diversas interpretações dos autores, os sentimentos
de alguns antigos filósofos, a cronologia não são bela literatura porque essas pesquisas são sem
beleza (VOLTAIRE, 1764 apud AGUIAR E SILVA, 1988, p. 4-5).

O próprio autor do texto chama atenção para a falta de delineamento mais preciso para o termo,
quando o indica como um "termo vago". Além disso, notamos certa ambiguidade na sua descrição,
pois literatura ainda aparece como conhecimento, embora o autor a associe com o aspecto estético
como se vê em "bela literatura" ou mesmo em "objetos que possuem beleza". Segundo Aguiar e Silva
(1988), a partir das últimas três décadas do século XVIII e de fOffiu crescente, o termo literatura vai
incorporando o sentido de fenômeno estético e de produção artística.
?O _ T lO n Q T A f.TTFHÁRIA
l I I I P :\ 1 t; H :\ F

Nessa mesma época, começam a surgir as pnmciras literaturas IlaCionais, a partir da composÍ<,;ao
das primciras histórias da lilerilll/ril em diferentes países. A gênese dessas histórias da literatura. hCIlJ
anteriores ao século XVIII, pode ser encontrada em textos inicialmente de clLÍter bio-bibliogr:ífico.
mas que já te matizavam a vida de autores em fórma de invenclrios. Escarpit (1938) Cita algumas delas:
Fita di Dante Al(t;;/zieri, tCita por Boccacio, em 1358, ou a IlllIstrilllll lIIajoris Britanniae scriplOrlllll, hoc esl
AlIgliae, CatlllJriae, ar Srotiae, Catah:lZlIs, de John Balc, composta entre 1548 a 1559. Sendo um processo
de condicionamento feito pelo próprio desenvolvimento das línguas nacionaIs, essas biografias passam
a se desenvolver e a adquirir uma consciência muito precisa de seu papel, a saber, a busca das t<.mtes
nacionais da literatura de cada país. Assim, até o tlnal do século XVIII, quase todas as nações Já possuem
uma história literária. Na Inglaterra, encon tramos Tlh' Hislor)' o(Poelry frolll the (Jose l:( lhe Elcl'fIlth (o (I/(
COllllllfllCCmell1 ofthe Eighteellth Cel/tllr)!, de Thomas Warton, entre 1774 e 1781, e 'lhe Lilles ofthe Poets,
de SamuelJohnson, entre 1779 e 1781. Na Itália, começa a ser publicada a Storia del/a lctlerillllra italianll,
de Girolamo Tiraboschi, em 1772; em Portugal, há A1elllórias para a Hislória Literária de Portllc~al e sellS
dOll/ínios, dil'ididas cII/uários ((lUa.l, de 1774. Também no mundo oriental, obserya-se;j Illesma tendêl1l.Ll.
de forma que, em 1777, surge a primeira história da literatura pponesa, KUllitsufilllli-'úmollo-alo, de
Kokei Ban (ESCARPIT, 1958, p. 1758-17(2)
Vale ressaltar que as ideias de gosto, de beleza e de sensibilidade, através das quais se defendeu o
argumento estético da literatura, foram, sem dúvida, o resultado da atividade de setores dominantes
que exerceram a própria atividade do gosto como forma de disseminar seus valores. Esse gosto,
exercido como algo objetivo, desempenhou, em termos de valores de classe, um papel suficientemente'
hegemónico para que f<'lsse aceito, tanto pelos "amadores cultos" que o exerciam, quanto pelo público
leitor que paulatinamente se ampliava. Williams (1979) chama atenção para o flto de esse "gosto ",
que passou a aquilatar como literários certos textos, possuir uma base caracteristicamente burguesa
e subjetiva, de forma que podia ser aplicado, sem reservas, tanto a textos como a vinhos: "Gosto em
literatura poderia ser confundido com 'gosto' em tudo o mais, mas, dentro dos termos de classe,
as reações à literatura foram notavelmente intq.,rradas, com a relativa integraçao do público leitor'­
(WILLlAMS, 1979, p. 54).
Esse exercício do gosto, inicialmente realizado pelos "amadores cultos", vai, a partir do séc. XIX,
passando ao domínio da crítica, que vai se transformar em uma nova disciplina praticada cada vez mais
nos ambientes relacionados às academias e às universidades.
U ma segunda e importante modulação 110 conceito de literatura é aquela operada na associação de
literatura com obras "criativas" ou "imaginativas", em oposiçao aos textos de caráter objetivo ou aos da
ciência. Assim, para ser literatura não hastava que o texto fosse bem escrito segundo o gosto burguês
vigente, o que poderia incluir um texto de história ou de ciências, mas esse texto deveria ser, de algum
modo, a expressão da criatividade humana,
Tal passagem tem, sem dúvida, certos correlatos históricos e sociais. Historicamente, essa
especialização do termo literatura corresponde à exigência do desenvolvimento das ciências indutiva
e experimental e do desenvolvimento de novas técnicas no bojo da sociedade capitalista industrial.
Esse desenvolvimento torna mais clara e patente a diferença entre os valores da moral ou da ciência
e os valores artísticos e estéticos. ''Assim, se constituía uma das antinomias fundamentais da cultura
ocidental nos dois últimos séculos - a antinomia da chamada cultura humanística versus cultura
científico-tecnológica" (AGUIAR E SILVA, 1988, p. 10), Essa antinomia, por sua vez, condicionaria a
separação entre textos de caráter "imaginativo" e textos de caráter "científico ou moral".
Socialmente, a especialização do termo literatura, enquanto textos de caráter "imaginativo" ou
"criativo", tem sua contrapartida num fenômeno também correlato ao desenvolvimento da sociedade
capitalista: a necessidade de desafiar as formas repressivas da nova ordem social através do argumento
da criatividade humana. Assim, dar vazão a textos criativos ou através dessa consciência imaginativa
era uma forma de contrapor-se às novas formas de relações humanas marcadas pela ética da produção.
pela dissolução da vida social em práticas exclusivamente marcadas pelo trabalho.
Como se vê, o termo literatura passou por um complexo processo de especialização, partindo de
um sentido inicial - as obras impressas que forneciam a seus leitores um atributo de possuidores
T .. " , . " u" • . . __ o I I .".~ . • . ,..". 71
I' W I I I I II I ' f I

de literatura - passando a textos de "gosto" e "sensibilidade" e, posteriormente. a textos de C1Líter


"imaginativo" ou "criativo". Ao chegar a esse nível de especialização, o problema central em termos c-k
conceituação da literatura passa a ser o ((ll//O \'alorizar os textos a partir desses critérios, ou seja, dando
mais importância à sua dimensão imaginatin ou estética, Nesse sentido. mais uma vez a crítica, aquela
mesma ati\'idade construída sobre ullla base burguesa, terá papel preponderante ao julgar entre ü
"cri~lti\'o" e o "estético", sempre através de critérios seletivos: nem tudo o que é literatura imaginativa
é "literatura", nem tudo o que é belo é imaginativo. o que atesta a imprecisão do termo e a dificuldade
de acercar um objeto de estudo cuja própria configuração é móvel, eTIl razão de seu caráter histórico
e social.
Essas tentativas de definição da literatura, entretanto, continuam e, a partir da segunda metade
do século XIX e início do século XX, ganham novo tom, pois busca-se definir literatura enquanto
dado objetivo, concreto, observável. Surgem, nesse momento, propostas de definição da literatura
como conjunto de textos portadores de características que corresponderiam à sua {iterariedade. Nessas
propostas, observa-se a ideia de que os textos literários teriam certas características estruturais ou ,..

textuais muito peculiares. as quais os tornariam diferentes dos demais textos, considerados, portanto.
não-l í teLlrios.
lrata-sc de uma tentativa de trazer a discussão sobre o que é literatura para um campo mais
objetivo, utilizando métodos que se distanciavam da subjetividade que permeara a definição do termo
até então. A defesa dessa especificidade objetiva como marca dos textos literários era feita com base em
métodos e processos de análise também objetivos. Essa concepção objetiva de literatura disseminou-se
fortemente nos estudos literários nas primeiras décadas do século XX através do Forlllalismo RlIsso, do
New Criticism e da Estilístira.
Um texto bastante conhecido de um autor formalista, Vitor Chklovski, ajuda a ilustrar como eles
procuravam demonstrar que o caráter literário de um texto poderia ser observado em suas qualidades
internas ou textuais. O próprio título do texto, ''A arte como procedimento", de 1917, refere-se ao fato
de que o autor do texto literário criaria certos procedimentos, certos modos de elaboração textual que
concederiam ao seu texto o caráter de literariedade. Para os formalistas, o caráter estético de um texto
seria resultado da utilização de procedimentos desautomatizados de linguagem em oposição à utilização
de procedimentos comuns, já automatizados no uso da linguagem cotidiana. Ao desautomatizar a
linguagem, o autor de um texto o tornaria singular, especial e, portanto, artístico. ou seja, literário.
Assim, o caráter estético em literatura seria a soma de todos os procedimentos desautomatizados
utilizados Dum texto:

[... ] chamaremos objeto estético, no sentido próprio da palavra, os objetos criados atravÉs
de proccdimentos particulares, cujo objetivo é assegurar para estes objetos uma pcrcepção
estética. [ .. _]
O objetIVO da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecllllcnto; o
procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que
consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção_ [ ... ] Em
arte, a liberação do objeto do automatismo perceptivo se estabeleceu por diferentes meios
(CHK.LOVSKI, 1971, p. 41, 45).

A proposta formalista parte da ideia, no que se assemelha ao New Critiâsm e à Estilístíra, de que os
textos literáriós possuem traços de linguagem ou de propriedades textuais, ou uma essência estética que os
irmana, tomando-os literários em oposição aos textos que não possuem tais traços. Em razão de estudarem
a literatura a partir dessas características textuais específicas, tais correntes de estudo ficaram conhecidas
como textualistas. Basicamente e de forma sumária, podem ser consideradas como marcas textuais de
literariedade: 1) a oposição da linguagem literária à linguagem comum, sendo a literatura uma forma textual
que coloca em primeiro plano a própria linguagem, ou seja, há ênfase nafiu/{ão poética dessa linguagem;
2) a integração da linguagem como organização especial de palavras e estruturas que estabelecem relações
específicas entre si, potencializando o sentido dos textos; 3) a distinção entre o caráter referencial dos textos
não-literários e o caráter ficcional dos textos literários, ou seja, a literatura abarcaria textos que criam uma
relação especial com o mundo: uma relação ficcional onde o mundo, os eventos e os seres evocados não

22 - T E o R J .\ LITERÁRIA
() \.,! li ! I I I F H .-\1 I' I< c\ ;

precisam, necessariamente, ser reais. mas criados ou imaginados; 4) os tc;.,1:os literários teriam um fim em si
mesmos, pois, ao colocar a própria linguagem em primeiro pLmo, estariam operando o seu caráter estético,
que ocasionaria, por sua vez, o prazer nos receptores desse te:x1:o.
Todas as características anteriormente apontadas podem ser facilmente obselyadas em muitos
textos arrolados como literatura e, não raramente, elas foram abstraídas pelos teóricos a partir do
estudo e da leitura de textos literários, como é o caso do próprio Chklovsk:i (1971), anteriormente
citado, que estuda as obras de Tolstoi (1828-1910) para dizer que uma das marcas da literatura é a
desautomatização da linguagem, feita por meio de muitos procedimentos, entre eles o de singularização
(criar uma percepção particular do objeto, diferente do mero reconhecimento).
Não tardaram, entretanto, as reações a essa visão objetiva ou essencialista de hteratura. Muitos
autores começam a questionar se, efetivamente, o que caracterizava a literatura eram certas
"propriedades internas" .dos textos. Assim, a partir da década de 60 do século xx, começam a surgir
várias reações a esse ponto de vista, cujos argumentos centrais podem ser encontrados nas relações entre
a literatura e seus leitores, já que muitos autores observam que os fatores distintivos de literariedade,
defendidos pelas correntes textualistas, não eram exclusividade de textos literários, podendo também
ser encontrados em textos de natureza referencial. Assim, o ponto de discussão sobre o que é literatura
desloca-se da esfera do texto e de suas "propriedades peculiares" e passa para a esfera do leitor, uma vez
que o texto só existiria a partir do ato de leitura dos leitores e o seu significado só emergiriã através de
um ato interpretativo.
Na França, essa preocupação com o estatuto do leitor e com as formas de circulação dos textos
aparece muito claramente em Sociologia da literatllra e Histoire des Littératurcs: littératurl's}imzfaiscs, (O/1/1I'."(I'S
ct marginales, textos nos quais Escarpit, em 1958, propõe o que chama de abordagem sociológica da
literatura. Nela, o caráter literário define-se basicamente por meio da recepção, das relações estabelecidas
entre autor/texto e o seu público e todos os meios de transmissão que os ligam:

Todos os escritores. no momento em que escrevem, têm presente Ulll públiCo para além dcles
próprios. Uma coisa não está inteiramente dita até' que é dita a alguém: IstO é, como vimos,
o sentido do acto da publicação. Mas podemos igualmente afirmar que uma coisa apenas
pode ser dita a alguém (isto é, publicada) se for dita por alguém. Os dois "alguém" não têm
forçosamente que coincidir. É mesmo raro que tal aconteça. Por outras palavras. existe 11m
plÍblilO-inferIomtor lia própria origem da criação literária (ESCARPIT. 1969. p. ] (,5, grifos nossos).

Ou ainda:

Todo o facto literário pressupõe escritores, livros e leitores ou, de maneira geral, criadores,
obras e um público. Constitui um circuito de trocas que, por meio de um sistema de
transmissão extremamente complexo, dizendo respeito ao mesmo tempo à arte, à tecnologia
e ao comércio, une indivíduos bem definidos (ESCARPIT, 1969, p. 9).

Também articulando as leituras realizadas pelos leitores ao longo do tempo no que se pode chamar
de história da leitura, Chartier (1997) propõe, contemporaneamente, uma abordagem de literatura
que leva em conta a figura do leitor. Para ele, a literatura não teria uma natureza característica, própria,
mas seria uma construção de sentidos propostos para certos textos. A historicização seria um modo
de desvendar os mecanismos de construção do literário, entre os quais a leitura teria impOl1:ância
preponderante:

Uma história da literatura é então uma história das diferentes modalidades de apropriação
dos textos. Ela deve considerar que o "mundo do texto", usando as palavras de Ricoeur, é um
mundo de "performances" cujos dispositivos e regras possibilitam e restringem a produção
do sentido (CHARTIER, 1997, p. 68).

Além da leitura, importa para Chartier (1997) a historicização do literário, ali seja, a verificação
de como acontecem as variações, no tempo e espaço, entre o que é considerado literário ou não. Em

Til ()J\'11\ ') BUN N 1 C:J / Lúc r A O\i\ NA ZOLl N (OUCJ\N I /,:\!JO !tE") - 23
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Dl'corrc daí a definl\":lu de dumílllus dc lI1vcstig,lçô\'S partlCltlaro (o que llão quer d17l'r
própnas a tal ou tal dlsclplIlla) aSSIIIl. por excmplo. ,I vana\"dO dos cntérios que definiram
a ~literaried;lde"" em dlfúcntes períodos, os dispositl\"(ls que constituíram os repertórios
das obras (dIHlIllC1S: .lS nJ:HCh dl'L,adas nas próprias obras pela "economia da l'scrita" em
que foram prudulldas (segundu as épocas e as possíveis coerções exerCIdas pela illstltlllÇ;lO.
pelo patrocínIO ou pelo mnCldo), ou. amda. as Cltcgonas que construíram a "mstltulÇ10
literária" (como as no<;óes de ""autor"' de "obra", de "lIvro"", de "'esenta". de "copyright" etc)
(ClIARTlER. 1997. p" 68-69)"

Em terras brasileiras, a noção de sistema literário, elaborada por Candido (1981), representa

uma abord~em semelhante, na qual o literário aparece associado aos leitores e onde a natureza

social do 1(terário é resgatada para a própria caracterização da literatura enquanto manifestação

,.
cultural.
Apresentado inicialmente em .1ltJUllação da literatura brasileira, de 1959, o conceito de sistema

literário é, para Candido, um modelo expliotlvo do processo de formação da literatura brasileira, no

qual os elementos da tríade autor-obLl-público aparecem como fundamentais para a caracteriz~ção

das condi<.,ôes em que a literatura poderia existiL Sem a articulação desses três elementos, haveria,

segundo o crítico, apenas nlal1[festaçôes literárias:

[""" 1convém prlllClplar distlllgu11ldo manifestações literárias, de literatura propriamente dita,


considerada aqui um sistema de obras lIgadas por denominadores comuns, que permitelll
reconhecer as notas dominantes de urna fase" Estes denominadores são, além das característICas
internas (língua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e psíquica, embora
literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da lIteratura aspecto
orgànico da civilização" Entre eles Sl' distinguem: a existência de um conjunto de produtores
literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando
os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor
(de modo gCLlI. uma linguagem traduzida em estilos), que liga uns a olltros (CANDIDO,
1981, p. 23)"

Além de constituir argumento de sua tese sobre a formação da literatura brasileira, o conceito

de sistema literário aparece em diversos outros tcx-tos de Candido, compondo uma trilha na qual

se podem perceber outros detalhes sobre os elementos constituintes de seu sistema. Em O escritor e o

púlJliro, de 1955, aparecem mais visíveis a noção de circulação literária e o mecanismo de retroação do

sistema literário, quando o autor mostra a dupla influência das obras sobre os leitores e dos leitores

sobre os autores e, consequentemente, sobre as obras:

A literatura é, pois, um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os
leitores; e só vive na medida em que estes a vivem decifrando-a, aceitando-a, deformando-a"
A obra não é produto fixo, Ulzívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando
uniformemente o seu efeito" São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se
junta o autor, termo inicial desse processo de círwlação literária, para configurar a realidade da
literatura atuando no tempo (CANDIDO, 1985b, p" 74, grifos nossos),

Mais recentemente, as mesmas ideias reaparecem no texto Iniciação à literatura brasileira,

publicado inicialmente em 1997:

Entendo por sistema a articulação dos elementos que constituem a atividade literária regular:
autores formando um cOIlJunto virtual, e veículos que permitem seu relacionamento,
definindo uma vida literária: públicos, restritos ou amplos, capazes de ler Oll de ouvir as obras,
permitindo com isso que elas circulem e atuem; tradição, que é o reconhecimento de obras
e autores precedentes, funcionando como exemplo ou justificativa daquilo que se quer fazer,
mesmo que seja para rejeitar (CANDIDO, 1999, p, 15).

24 - T E O R I /\ LITERÁRIA
Baseadas num pressuposto sociol()glCo, as ide ias de Candido sobre hteratura passam sempre pela
relação que a literatura estabelece com a sociedade onde surge. Disso decorre o caráter coletivo da
literatura, assim referido pelo autor: "A literatura, porém, é coletiva, na medida em que requer uma
certa comunhão de meios e~"}Jressivos" (CANDIDO, 1985a, p. 139). Se literatura é comunicação e se
erige entre os espaços que unem autor-obra-público, o conceito de sistema literário de Candido pode
ser produtivo como n"}Jlicação teórica do funcionamento e construção da literatura. O conhecimento
de como esses elernentos se relacionam dinamicamente no tempo pode ajudar a compreellder os
caminhos através dos quais a hteratura vai se construindo e se constituindo, enquanto expressão de
uma sociedade.

LnFR.ATURj\ E RELAÇÕES DE PODER

O panorama oferecido até aqui mostra como, ao longo do tempo, construíram-se os sentidos
do termo literatllra e todos eles são férteis exemplos para se mostrar que a sua definição, cqmo outras
definições, ou estabelecimentos de "verdades", é permeada pelo envolvimento do poder com o
conhecimento. Não são, portanto, apenas características intrínsecas a um determinado texto que fazem
com que ele seja liter:lrio ou não, mas também o poder do conhecimento específico vai determinar se
aquele texto pode ser considerado literatura ou não e, em sendo literatura, se é "boa" ou "ruim".
Vamos discutir essa colocação em outras palavras. Já vimos que aquilo que entendemos hoje por
literatura, na sala de aula, nem sempre foi visto como literatura. Como aponta Eagleton (2001), na
Inglaterra do século XVIII, por exemplo, a literatura abrangia todo o conjunto de obras valorizadas
pela sociedade, como filosofia, história, ensaios, cartas e poemas. Duvidava-se que o romance,
ainda emergente, pudesse vir a se tornar literatura. Os critérios que agrupavam textos literários
eram ideológicos, selecionando escritos que expressassem os valores e gostos de uma determinada
sociedade. A arte da palavra que se fazia nas ruas, como baladas e romances populares, não pertencia
ao rol literário.
É com aquilo que chamamos hoje de período romântico que as conceituações de literatura
começam a se desenvolver. Nesse período, escrever sobre algo que não existe, "imaginativo", passa
a ser interessante. Entretanto, como aponta Eagleton, a escrita imaginativa entra em choque com o
espírito revolucionário da época, já que os regimes feudais estão sendo derrubados, na França e nos
Estados Unidos, pela ascensão da classe média, enquanto a Inglaterra vem tornar-se a primeira nação
industrial capitalista do mundo. A situação social que se tem então é de uma quase escravidão da
classe assalariada recém-formada, com intermináveis horas de um trabalho massacrante e alienante,
e a rejeição de tudo aquilo que não pudesse ser transformado em mercadoria. A literatura romântica,
aqui, tem um papel a cumprir: denunciar e transformar a sociedade.
Assim, como uma forma de resistência ao estado absolutista no século XVIII inglês, havia sido
criado um espaço de discussão literária em clubes e cafés, bem como em jornais e periódicos. Em
meados do século, entretanto, o crescimento do número de leitores e do mercadojornalístico aumentou
as possibilidades de uma escrita profissional, propiciando o aparecimento da figura do "homem de
letras". Um precursor do intelectual do século XJX, o homem de letras possui um conhecimento
ideológico genérico, tornando-se capaz de discorrer sobre a cultura e a intelectualidade de sua época.
Fazendo da escrita seu ganha-pão, ele procurava ajudar o público a entender as complexidades da
transformação econômica, social e religiosa (EAGLETON, 1991).
Até o século XVIII, o público leitor era claramente definido: havia a "sociedade polida",
intelectualizada e interessada, tanto pelas artes, quanto pela manutenção de valores morais, e os
incapazes de ler, dedicados ao trabalho braçal, com os quais a produção crítica e literária não precisava,
grosso modo, se preocupar. A partir daí, entretanto, vai surgindo uma classe de leitores intermediária,
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1
que não é mais formada de "pessoas int1uentes", bem \Tfsadas nas discussões culturais e intelectuais,
nem pelos analfabetos que não conseguem ler coisa nenhuma. Essa nm'a classe de leitores é a1tàbetizada.
mas não faz o mesmo sentido da leitura feita pelas "pe~:;oas intluentes" intelectualmente. Assim, o
crítico literário dirige-se a um público que, como ele, trabalha para viver, mas não está inserido nas
formas do diálogo intelectualizado polido das elites. As questões de classe forçosamente passam a fazer
parte das preocupações do homem de letras.
Ao mesmo tempo em que essa nova classe de leitores burgueses é fortalecida, com suas novas
necessidades. o conhecimento especializado \'ai se definindo, tornando o trabalho do homem de
letras extremamente complicado. A função humanista desen\'oh-ida por ele de forma "amadorística",
ingenuamente não-profissional, com sua confiança na responsabilidade ética, na autonomia individual
e na livre transcendência do eu, como afirma Eagleton (1991), perde terreno para o conhecimento
especializado e para um gosto público determinado pelo mercado. Assim, o sábio decide afastar-se da
esfera social, buscando ambientes menos "contaminados" para sua busca pela verdade. É dessa forma
que a universidade passa a abrigar as discussões literárias. ,..

A instituição da literatura inglesa como tema acadêmico deu-se para buscar a satistàção de algumas
finalidades ideológicas. Primeiramente, o estudo do "inglês" destinava-se a "pacificar e incorporar o
proletariado, gerar uma sociedade complacente entre as classes sociais e construir uma herança cultural
nacional que servisse para fortalecer a hegemonia da classe dominante num período de instabilidade
social" (EAGLETON, 1991, p. 57). A indagação transcendental decorrente desse projeto justifica a
função alienadora atribuída, por vezes, à literatura. Além disso, a universidade veio profissionalizar
os estudos literários. A academização da crítica deu ao homem de letras uma base institucional e uma
estrutura profissional, mas o separou da esfera pública. Para Eagleton (1991), a crítica literária alcançou
sua segurança cometendo um suicídio político: seu momento de institucionalização acadêmica é seu
desaparecimento como força socialmente ativa. Suas preocupações com as "letras" ou com a "vida"
raramente saem dos limites universitários.
É dessa forma de discussão literária, institucionalizada nas universidades inglesas, que a crítica
literária atual deriva. É a academia, com suas pesquisas, estudos e publicações, além de discussões
em sala de aula, e trabalhos jornalísticos de críticos que passaram pelas universidades, que acaba
determinando, hoje em dia, o que é literatura, o que é literatura boa ou ruim, e como ela deve ser lida.
Entretanto, pode-se questionar até que ponto as discussões acadêmicas sobre literatura chegam ao
público leitor. Quem se importa, além de professores universitários e seus alunos, se o personagem é
plano ou redondo, se a narrativa é homo ou heterodiegética, qual seria uma leitura psicanalítica de um
conto ou desconstrutivista de um poema? Em quê essa leitura literária "profissionalizada" contribui
para a sociedade?
Vamos procurar discutir a importância da leitura literária acadêmica lembrando a questão do poder.
A resposta para nosso questionamento, se a leitura acadêmica importa ou não para o público leitor de
uma forma geral, vamos deixar para o final. Já vimos que a universidade, hoje em dia, tem um papel
fundamental na definição daquilo que é ou não considerado literatura, daquilo que é "boa" literatura, e
como deve ser lida. A comunidade acadêmica, portanto, tem o poder de definir literatura pela posição
que essa comunidade ocupa na sociedade,já que o conhecimento especializado é altamente valorizado.
Se a universidade e, por extensão, a escola de um modo geral, diz que determinado texto é literário e
de bom nível, entende-se que seja assim. O problema, entretanto, não reside tanto nas escolhas feitas
e nas exclusões delas decorrentes.
A crítica literária refugiou-se nas universidades para buscar a verdade de forma não poluída pelos
problemas sociais. Mas, o que é a verdade? Não seria a verdade uma questão de escolha, condenando
outras "verdades" ao esquecimento, mais do que a expressão de uma essência imutável? Foucault
(1996) afirma que a verdade nada mais é do que uma construção do discurso, mudando de acordo
com variações culturais e ideológicas, em diversos momentos da história. Discurso, conhecimento e
poder estão entrelaçados. Existem, portanto, condições para a produção do discurso que envolvem
relações de poder, gerando conhecimento e controlando o acesso a ele. O autor fala de uma série de
procedimentos que contribuem para a produção e controle dos discursos, ou seja, para a produção

26 - T E o R I A LITERÁRIA
~A I r N .\ I () '! l{ r Li I I-H:\rUH:\?

e controle da "vndadc·'. VaJllOS ficar COlll apel1:1S dois: a oposição clltre o verdadeiro e o t~lso e as
disciplinas.
A divisão entre verdadeiro e tàlso, segundo FOllcault (1996), é historicamente constituída, já que
aquilo considerado hoje C0l110 verdade nem sempre o foi. Para os poetas gregos do século VI a.C.,
por exemplo, o discurso verdadeiro era aquele que inspirava medo e terror. Aquilo que era dito era
considerado realidade, o discurso fazia acontecer, trançando-se junto com o tecido do destino. Se
saltamos para a virada do século XVI, em especial na Inglaterra, a verdade passa a ter a obrigaçáo de ser
observada, medida e classificada. O objeto a ser conhecido deve ser visível, verificável, comprovávcL Um
nível técnico de saber é necessário, o conhecimento precisa ser empregado para ser verificável e útil. É
essa forma de verdade que conhecemos até hoje. O verdadeiro, agora, é o científico, o comprovável, o
palpável. O deslJo de que a vndade seja alcançada move a busca científica e está SUjeito a um respaldo
institucional. Ele é renovado e reforçado por práticas, como a pedagogia, por exemplo, e por sistemas
de livros, publicações, bibliotecas, sociedades letradas e laboratórios. A verdade também é renovada
pela rnaneira como o conhecimento é distribuído e atribuído em uma sociedade. Assim, a verdade é
estabelecida por grupos detentores do poder do conhecimento e não representa uma essência imutável.
A~ próprias descobertas científicas são revistas e reelaboradas, e aquilo que é considerado verdadeiro
em certo momento e por certo grupo de pessoas poderá ser desacreditado no futuro. A mesma coisa
se dá COI11 a definiçáo e a valoração da literatura. Textos considerados lúo-literários no passado são
estudados como literatura hoje, e autores "menores", ou que produzem gêneros menos respeitados,
podem vir a ser valorizados pela academia. As disciplinas constituem o outro princípio regulador
da verdade nos discursos a ser considerado aqui. Para Foucault (1996), as disciplims são relativas e
móveis e permitem uma construção, mas dentro de certas fronteiras. A disciplina não é a sorna de
tudo que pode ser dito sobre algo, nem o conjunto de tudo que pode ser aceito sobre um mesmo dado
em virtude de algum princípio de coerência ou sistematicidade. As disciplinas são feitas de erros e
verdades, sendo aqueles indissociáveis destas. PafJ. que uma proposição pertença a uma disciplina, ela
deve ser capaz de ser inscrita em certo horizonte teórico. Dessa forma, cada disciplina reconhece seus
princípios verdadeiros e falsos, mas deixa além de suas margens os "monstros" do conhecimento não
reconhecido. Foucault (1996) afirma que uma proposição deve preencher requisitos pesados para estar
inserida no agrupamento de uma disciplina. Diferentemente de ser falsa ou verdadeira, a proposição
deve estar "inserida 110 verdadeiro" de uma disciplina. Para que um texto seja ou não literário, portanto,
não é necessário simplesmente que seus elementos constitutivos sejam literários, mas que aqueles
elementos que farão dele um texto literário estejam dentro dos padrões "considerados literários" pelas
disciplinas envolvidas. Em outras palavras, será literatura, em um determinado momento histórico,
aquilo que a teoria e a crítica literárias, além do mercado editorial, decidirem como literatura.
Dentro dessa linha de raciocínio, podemos entender a seguinte definição de literatura:

A literatura, poderíamos concluir, é um ato de fala ou evento textual que suscita certos tipos de
atenção. Contrasta com outros tipos de atos de fala, tais como dar informação, fazer perguntas
e fazer promessas. Na maior parte do tempo, o que leva os leitores a tratar algo como literatura
é que eles a encontram num contexto que a identifica como literatura: num livro de poemas
ou numa seção de uma revista, biblioteca ou livraria (CULLER, 1999, p. 34).

Culler (1999) chama a atenção para elementos que seriam diferenciadores do texto literário, que
fariam com que a fala cotidiana não fosse considerada literatura. A literatura mereceria uma atenção
especial de seus leitores. O seu caráter ficcional, por exemplo, possibilita que os leitores tenham uma
relação diferente com o mundo. Quando lemos um texto literário, sabemos que estamos em contato
com um evento linguístico que projeta um mundo ficcional que inclui falante, atores, acontecimentos
e um público implícito. Sabemos que não somos chamados a responder a um texto literário como
seríamos a um texto histórico ou científico, por exemplo. Entretanto, as fronteiras entre a história e a
ficção, ou entre a ficção e a ciência, não são tão rígidas assim. O caráter científico e histórico de Os senões,
de Euclides da Cunha, não pode ser desprezado. Os Sermões, do Padre Antônio Vieira, hoje estudados
mais por seu valor literário, foram escritos com fins doutrinários. Ao mesmo tempo, a história política
~A P P () ['>, I I \\' I I I I \\ I \ , I

" CU e n te, p'" exu n pio, po<k ca"'g,n , "'N go n HU '" do cu ,m, ti CCio U" 1d C OH n ", n 1"hd, '''''' tnt id,,'
Apesar d,l eXlstêncl,l de documentos que podem compn)\',lr este ou aquele LHO. atl; onde podemos
precisar o que realmente aconteceu no caso do ex-presidentl' brasileiro Fernando Collor de 1\1ello
(1990-1992) Até onde aquilo que sabemos sobre a trajetória desse político bL1sileiro é () "retrato d:l
realidade" e até onde é uma construç;10 ficciOIul da mídia e de interesses partlcuLtres l
O critério a que Culler (1999) se refere para sabermos se um texto é lIterário ou não-em que
seção da biblioteca ou d:llinaria ele se encontra-sugere certo grau de arbitrariedade l1a determinação
da literariedade do texto. Se dissermos que este livro é literatura, p,lssará a ser. Não é berTl assim
Como vimos, o contexto histórico faz com que as concepções das pessoas acerca de várias coisas
mudem. Essas coisas podem ser os costumes, a moda, a alimentação, a cit'ncia e, entre elas, a literatura.
Ao mesmo tempo, a questão de poder também deterrnin:l o que é ou não literatura. Se um grupo de
pessoas, entendidas no assunto, afirm:l que dl'terrninado texto é literárIO, ele passa a ser colocado na
seção de literatura de livrarias e bibliotecas. Se relacionarmos esse contexto situacional e histórico com
a questão do poder e do conhecimento de que nos tala FOllcault (1996), podemos chegar à seguinte
definição de literatura. de hsh (1980):

Literatura, é I1lCU argulllento, é ullla categoria convenclon,d. AqUIlo ljuc será, a qualquer
tempo, rcconlll'cido COlllU literatura c' função de unLl dCClsão COIllum sobre aquilo }lUl'
contará comu literatura. Iodos os textos têm POtcllCl:l! para ISSO. Ilaljuilo que é possÍ\'C1
considerar qualquC'f trecho de linguagem de tal forma que ele revelará aquelas propriedad,'s
presentcmente entendidas como literárias. [ ... ] A conclusJo é que cnqlLlnto Iitnatura é
ainda uma categoria, é uIlla categona aberta, não dcfil11da por ficcionalicbde, ou por descaso
CO!l1 ul11a verdade proposlclonal, 011 por uma predolllinânci:l de tropos ou figuras, mas

slIllplesmentc por aquílc\ quc dCCld1lllOS colocar ai, F :1 conclllsJo dessa c011c1uSJO é que o
leitor é quem "faz" ;l literatura. Isso soa COIllO extremo subJetiVismo, llIas é qualificado quase
imediatamente quando o leitor é definido não como um agente livre. fazendo literatura de
alguma fOrI11:l antiga, mas um membro de uma cOlllunidade cuj'ls élssunções sobre literatura
determinam o tipO de aten,::10 que ele prl'sta e, aSS1I11, c) tipo de liteLltura que "ele" faz. (As
aspas indiclIll que "ele" c "faz" não cst3U sendo elltendidas como seriam de acordo COlll
uma teori;) de agênCia individual autônoma). Assim, o ato de reconhecer literatura não é
compelido por algo no texto. nem emerge de uma vontade independente c arbitrária; em lugar
disso, procede de uma de'clsão coletl\'a acerca do que contará corno literatura. uma decisão
que estará em \'lgor somcllte enquanto Ullla cOll1uIlldadc de leltort'S ou crentes continuar a
sustentá-Ia (p. 10-11).

Nessa concepção de literatura de Fish (1980) fica claro que a decisão sobre aquilo que é ou não
é literatura, embora fortemente centrada no leitor, não é uma opção individual. A interpretação,
também podemos deduzir daí, não é um "achismo", escolha de cada leitor em particular. Embora a
experiência com o texto literário se dê de uma forma individual e única, o leitor não se desvencilha de
suas próprias histórias no momento da leitura e elas contribuem para a sua produção de significado.
Essas histórias são frutos de suas vivências e das influências que o leitor sofre de seu modo de ver o
mundo. E a escola, com sua forma de saber institucionalizada, é uma das grandes determinantes de
maneiras de se ver as coisas, ou de verdades. Assim, a literatura é definida por uma comunidade que
determina os critérios para se reconhecer o texto como literário. Essa "comunidade interpretativa",
como denominada por Fish (1980), vai não só definir a literatura classificando-a como de alta ou
baixa qualidade, mas também apontar as leituras possíveis. Fazem parte da comunidade interpretativa
literária, como vimos anteriormente, professores universitários, críticos literários, o mercado
editorial e a escola, de uma forma muito concreta, com seus professores e alunos.
Assim, a crítica e a teoria literárias estudadas nos meios acadêmicos têm papel fundamental na
definição de literatura e nas possibilidades e restrições das leituras literárias. Como nos ensina Foucault
(1996), as disciplinas não só possibilitam discursos como os restringem. Antes de os estudos culturais,
feministas e pós-coloniais, por exemplo, serem validados pela academia, leituras de literatura de massa,
de autoria feminina e de autoria de minorias étnicas e sexuais, estavam "fora da verdade" acadêmica.
O contexto histórico não propiciava que tais textos fossem considerados fonte legítima de estudos.
Hoje em dia, apesar de ainda encontrarmos alguma resistência por parte de alas mais conservadoras

751. _ T " n Q I A IITFRÁRfA


,~A I I "''' I, U (1 I; E F L I T I k ,,, 1 IJ H ..\ '

dos estudos literários, essas literaturas antes ditas "marginais" não são maIs banidas das salas de aula e
das publicações especializadas,
Da mesma forma, parece senso comum que o texto literário seja plurissignificativo, possibilitando
várias leituras, Prova disso é o grande número de correntes críticas contemporâneas, procurando
iluminar aspectos diferentes de um mesmo texto, É claro que, novamente, essa proliferação de sentidos
não equivale a nenhum sentido, Cada leitura que se quer válida recorre a elementos dentro do texto e
fora dele para comprovar seu ponto de vista, e as diversas correntes críticas, bem como a teoria literária,
proveem esses elementos. Outra forma de percebermos as diversas possibilidades de leituras de um
texto literário é a forte relação entre a literatura e as outras artes, como a pintura e o cinema, além da
televisão e da música, Um texto literário serve de argumento para a criação de outros textos literários,
dialogando entre si, bem como para a criação de textus visuais ou musicais, por exemplo, Narrativas
épicas viram quadros, romances viram filmes e desenhos animados, poemas viram canções populares,
A linguagem literária é traduzida em outras linguagens, at,'11çando o senso crítico e a criatividade de
leitores, espectadores e ouvintes, Em contato com essas diversas leituras, o público encontra sugestões
para suas próprias produções de significados, Nesses casos, discussões acerca da fidelidade ao texto
literário cedem espaço a considerações sobre traduções de uma linguagem para outra.
Final men te, não oferecemos urna def! nição única de litera tura, Acreditamos que todas as.definições
sejam parciais, já que localizadas em um contexto histórico que as valida durante certo tempo.
Entretanto, discutir literatura, teorizar sobre literatura, está longe de ser urna tarefa inútil por não
podermos precisar o objeto de estudo. Corno afirma Eagleton (1991), a questão teórica sempre lembra
a imagem da perplexidade da criança sobre práticas que ainda não lhe estão familiarizadas, levando-a a
produzir questionamentos acerca daquilo que, para o adulto que já perdeu esse estranhamento, parece
óbvio, A investigação teórica permite essa redescoberta do óbvio, o desafio a práticas consideradas
"normais" e "naturais", tais como a própria associação da palavra literatura com Dom Casmurro, citada no
início deste capítulo. A investigação teórica permite, assim, reavaliações da realidade e novas tomadas
de posições, Podemos voltar à nossa pergunta anterior: A quem interessa saber se o personagem é
plano ou redondo, ou qual a explicação psicanalítica de um texto? Se o objetivo dessas indagações for
meramente produzir assunto para a sala de aula, não interessa a ninguém, nem mesmo a professores e
alunos. Por outro lado, enquanto essas discussões proporcionam formas "estranhas" de se ver o mundo
e possibilidades de transformá-lo, interessam a todos. Assim, as histórias lidas ajudam a produzir novas
histórias, únicas para aquele leitor. E isso, afinal, é literatura.

REFERÊNCIAS

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WILLIAMS, R. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

30 - T E o R I A LITERÁRIA
PARTE II

eradores de
lei tura

.'
;i

OPERADORES DE LEITURA

DA NARRATIVA

Arnaldo Francq Junior

INTRODUÇÃO

Neste capítulo, apresentamos um conjunto de conceitos que podem ser caracterizados como
operadores de leitura do texto narrativo, ou seja, são conceitos-chave para o desenvolvimento de
uma análise e interpretação do texto narrativo pautada pela tradição dos estudos acadêmicos. Alguns
desses operadores são, muitas vezes, utilizados por diferentes linhas de teoria da literatura quando do
desenvolvimento do estudo de um texto literário a partir dos princípios e da metodologia que lhes são
pertinentes..
Reunimos, portanto, um conjunto do que consideramos ser os operadores de leitura mais comuns
no que tange ao estudo, análise e interpretação do texto narrativo. Quando necessário, apresentamos
as variantes no que se refere a uma definição ou delimitação conceitual dos mesmos, de modo a
oferecer informações que permitam ao leitor optar pela que lhe parecer mais adequada ou, ainda, mais
ajustada às eventuais exigências práticas quanto à condução do desenvolvimento de estudos sobre o
texto narrativo.

o GÊNERO NARRATIVO

É já um lugar-comum a divisão da narrativa em três grandes blocos articulados em torno do


conceito de conflito dramático, ou intriga, nos termos de Tomachevski (1976), cada um correspondente
ao que poderíamos classificar como movimentos próprios ao gênero, a saber: Introdução, Desetlvoll'imento
e Conclusão.
Uso o termo movimentos porque me parece melhor do que outro qualquer que sugira ou
pressuponha uma ordem fixa a partir da qual a Introdução, o DesenvollJimento e a Conclusão devam
aparecer. A própria experiência de leitura demonstra que tais movimentos apresentam uma grande
variabilidade no que se refere à ordem de sua posição nos textos. A conclusão, por exemplo, pode
C?R A N C O J UNI O R

I ser antecipada à introdução e ao desenvolvimento - fato comum a muitas das narrativas policiais,
de mistério, de terror e de suspense que se marcam, desse modo, por um início i/I ultima res, isto é,
que corresponde ao desfecho. O desenvolvimento pode prescindir de introdução e de conclusão,
como ocorre, por exemplo, em certos contos e romances modernos cuja leitura nos exige uma
mudança em nossos hábitos de leitura e recepção do texto literário. E, por fim, vale lembrar que era
uma convenção da poesia épica greco-latina iniciar a narrativa in media res, ou seja, apresentando ao
leitor um acontecimento adiantado da história que, depois, era esclarecido com a apresentação do
que ocorrera antes.
Embora pareça ponto pacífico, há divergências quanto a essa divisão da narrativa em três
blocos. Introdução, Desenvolvimento e Conclusão do quê? Da história, dirão alguns. Da
narrativa, rebaterão outros. Do texto, dirão outros ainda, já acrescentando que qualquer texto
pode ser assim dividido e que, portanto, tal divisão não é traço característico da narrativa. Qual
seria a especificidade da narrativa, então? Eis a questão que é preciso tentar responder, mesmo
sabendo que a resposta é sempre precária.
A especificidade da narrativa parece ser o tratamento conferido ao conflito dramático que lhe
é intrínseco. Sem conflito dramático, não há narrativa, mas ele não é um dado exclusivo ,da
narrativa. Está aí, há séculos, a poesia lírica para comprovar isso. E, além disso, a presença de
conflito dramático também em relatos - aliás, muito comum - confirma o que afirmamos.
A identificação do conflito dramático é, no entanto, fundamental para que se possa estabelecer
um estudo detalhado da narrativa na qual ele se manifesta - o que já se apresenta como uma
pista metodológica: identificá-lo, voltar a ele quantas vezes for necessário para pensar a história
narrada pelo texto que se está analisando, notar que a partir e/ou em torno dele circula uma
série de elementos que são passíveis de decomposição pela análise descritiva e passíveis de re­
união - operada sempre com algum distanciamento crítico - pela análise interpretativa.
Note-se que a distinção entre análise descritiva e análise interpretativa é, para o que aqui ..

nos interessa, um recurso didático. A análise descritiva é aquela voltada para a decomposição do
texto em elementos menores que o constituem e o fazem pertencer a um determinado gênero
literário. Tal decomposição do texto em elementos menores é, por assim dizer, algo como
uma dissecação do texto de modo a facultar a compreensão e a classificação das partes que o
constituem. A análise interpretativa, por sua vez, volta-se para a compreensão das possíveis
relações de sentido que se estabelecem entre tais elementos que constituem o todo textual
e, também, para a compreensão das possíveis relações de sentido que se estabelecem entre a
ordem que preside a organização de tais elementos sob a forma de texto e a história ali narrada.
Além disso, a análise interpretativa também diz respeito às relações entre o texto e o seu leitor,
o texto e o seu autor, o texto e a escola literária à qual se vincula e com a qual dialoga, o texto e •
a sociedade, o texto e a história etc.
A distinção entre a história narrada e o texto no qual ela se manifesta é fundamental. É
preciso levá-la sempre em consideração, pois não basta "extrair", após a leitura, a história narrada
do texto que' a veicula. No caso da narrativa literária, os dois aspectos estão sempre intimamente
vinculados e exigem igual atenção do leitor. É necessário observar, analisar, interpretar e avaliar
criticamente tanto a história que o texto narra como o modo pelo qual a narra. Isso exige uma
atenção para a própria composição do texto, para o modo como os recursos linguísticos e os
demais elementos constitutivos da narrativa estão, ali, organizados de modo particular.
O tratamento conferido ao conflito dramático pode ser o fator de distinção entre o que .
é, num determinado momento histórico, considerado literatura e o que não é considerado
literatura, entre o que é reconhecido como um tratamento literário dado a uma história e o que
não chega a sê-lo. Compare os dois textos a seguir:
--~ () I' E H .~ I> () H E, I' I L F I F U H A I> /, N A R H A T I V II

Assassinato na Rua da Constituição Tragédia brasileira

o funcionário do Ministério da Fazenda, Misael,


63, matou a tiros a ex-prostituta Maria Elvira, com Manuel Bandeira
quem vivia há três anos, O crime ocorreu na rua da
Constituição, Rio de Janeiro, motivado, ao que parece, Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de
por uma série de traições da mulher. Ao que tudo idade.
indica, os amantes mudavam-se de bairro toda vez que Conheceu Maria Elvira na Lapa - prostituída, com
Misael, avesso a escândalos, descobria uma traição de sífilis, dermite nos dedos, uma altança empenhada c os
Maria Elvira. A polícia encontrou a vítima em decúbito dentes em petIção de miséria.
dorsal, com marcas de seis tiros no corpo. Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a
num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista,
11lal1lCUra...
Dava tudo quanto ela queria.
Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita,
arranjou logo um namorado.
Mlsael não queria escândalo. Podia dar uma surra,
um tiro, uma facada. Não tez nada disso: mudou de
casa.
Viveram três anos assim. ,
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado,
Misaelmudava de casa,
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete,
Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila
Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado,
Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos,
Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos ...
Por fim, na Rua da Constituição, onde Misael,
privado de sentidos e de inteligência, matou-a com
seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito
dorsal, vestida de organdi azul.

Quadro 1, O texto jornalístico e o texto literário

Note que os dois textos narram a mesma história: uma mulher foi assassinada a tiros por um
homem que era traído por ela. No entanto, os efeitos que cada um dos textos suscita no leitor são
diferentes, e isso afeta a própria história narrada em cada um deles.
O primeiro texto se caracteriza como uma notícia de jornal, marcando-se pela minimização do
conflito dramático estabelecido entre os amantes e, também, pelo esforço de redução do grau de
ambiguidade em favor da objetividade jornalística no registro dos fatos. O segundo caracteriza-se
como uma narrativa literária, marcando-se pela exploração do conflito dramático de modo a suscitar
e manter o interesse do leitor e, também, pelo maior grau de ambiguidade que atribui a determinados
fatos e/ou elementos da história.
No texto de Manuel Bandeira, a história de amor, ciúme, traição e morte que une Misael e Maria
ElviH1 recebe um tratamento que torna dramático o conflito que os une (Amor x Traição). Note que uma
série de informações, consideradas de menor importância para o relato jornalístico do fato, são muito
importantes para a criação da expectativa e para a manutenção do interesse do leitor no texto de Manuel
Bandeira: a descrição do estado físico de Maria Elvira quando Misael a conheceu; os cuidados que ele
dispensou à saúde e à beleza da amante; a relação dos lugares em que o casal morou, o nome da rua em
que o crime ocorreu, a posição do corpo da mulher ao ser encontrada pela polícia, a cor e o tecido do
vestido que ela usava quando foi assassinada, o número de tiros com que o assassino a matou.
Na narrativa literária, tais detalhes ganham relevância exatamente porque intensificam tanto a
dramaticidade do conflito como o grau de ambiguidade que caracteriza a história narrada - o que faz com
que o texto tenha maior abertura no que se refere às suas possibilidades de interpretação pelo leitor.
CPR A N C O J UNI O R

, OS OPERADORES DE LEITURA DA NARRATIVA

o conjunto de operadores de leitura da narrativa que aqui vamos apresentar foi organizado
principalmente a partir das contribuições de textos de teoria e crítica vinculados basicamente ao
Formalismo Russo e ao Nel/J Criticism - não por acaso, linhas teóricas que privilegiam o estudo da
materialidade verbal do texto no desenvolvimento dos estudos literários. De certa forma o Formalismo
Russo e o NelU Criticism forneceram, dado o seu pioneirismo no que se refere à construção da teoria
literária como uma disciplina pautada por princípios e métodos embasados cientificamente, os
operadores de leitura básicos às demais linhas de teoria literária que se manifestaram no século xx.
Partindo-se das contribuições dos formalistas russos, e complementando-as com as contribuições de
outros teóricos, a narrativa pode ser analisada descritivamente utilizando-se os seguintes conceitos:

FÁBuLA,TRAMA, INTRIGA, ESTÓRIA, ENREDO

Afábula é um conceito que compreende os acontecimentos ou fatos comunicados pela narrativa,


ordenados, lógica e cronologicamente, numa sequência nem sempre correspondente àquela por meio
da qual eles são apresentados, no texto, ao leitor. Ela exige do leitor a capacidade de realizar uma
síntese da história narrada. Tal síntese deve ser capaz de abstrair, do texto narrativo, os elementos
fundamentais que compõem a história ali narrada. Isso significa que a fábula deve conter os dados
fundamentais que, de maneira sumária, condensem a introdução, o desenvolvimento e a conclusão da
história narrada, articulados a partir das relações de causalidade (causa-e-consequência):

Chama-se fábula o conjunto de acontecimentos ligados entre si que nos são comunicados no
decorrer da obra. Ela poderia ser exposta de uma maneira pragmática, de acordo com a ordem
natural, a saber, a ordem cronológica e causal dos acontecimentos, independentemente da
maneira pela qual estão dispostos e introduzidos na obra (TOMACHEVSKI, 1976, p. 173).

Ao reconstituirmos a fábula de uma história presente em um texto narrativo, organizamos


naturalmente a síntese da história a partir das relações de causa-e-consequência que facilitam a sua
compreensão por outras pessoas, sejam as que nos ouvem contar, por exemplo, a história de um
romance, de um filme, de um conto, de uma novela de televisão em poucas palavras, sejam as que
venham a ler os textos nos quais analisamos e interpretamos um texto narrativo.
A trama é um conceito que corresponde ao modo como a história narrada é organizada sob a forma
de texto, ou seja, ela é a própria construção do texto narrativo, sua "arquitetura". Tomachevski define
a diferença entre fábula e trama nos seguintes termos:

A fábula opõe-se à trama que é constituída pelos mesmos acontecimentos, mas que respeita
sua ordem de aparição na obra e a sequência das informações que se nos destinam. [... ] Na
realidade, a fábula é o que se passou; a trama é como o leitor toma conhecimento [do que se
passou] (TOMACHEVSKI, 1976, p. 173).

A trama de uma narrativa revela, ao ser identificada, o trabalho de criação do escritor, as escolhas
textuais que ele fez para contar a história desta ou daquela maneira, criando este ou aquele efeito,
afirmando um determinado conjunto de sentidos possíveis para a interpretação da história por meio
da organização das palavras sob a forma de texto. Isso significa que o(s) sentido(s) e os efeitos presentes
em um texto foram construídos pelo escritor por meio da estruturação, da composição, da construção
daquele mesmo texto de um modo determinado (aquele ali objetivamente registrado pela escrita sob
a forma de texto, e não outro), cuja especificidade deve ser levada em consideração. O leitor deve,
36 - T E o R I A L I T E R Á R I A
----~ o I' l !{ ,\ I) () R E S [) E 1 F I r U R,\ I) ,\ N A R H' T I V _~

portanto, aprender a construir a sua leitura (análise descritiva + análise interpretativa) a partir do
conjunto de possibilidades que o texto, organizado de modo singular, oferece.
A tralna, diferentemente da fábula, não é passível de síntese. Ela é identificada quando o leitor
investiga e define as relações que unem os diversos elementos que, articulados pela escrita, compõem
o texto narrativo.
o conceito de intriga difere dos de f:lbula e trama, embora seja intrinsecamente vinculado a eles_ A
intriga diz respeito ao conflito de interesses que caracteriza a luta dos personagens numa determinad:l
narrativa_ Tomachevski nos dá a seguinte definição de intriga:

o desenvolvimento da ação, o conjunto de motivos que a caracterizam chama-se intriga [ .. -l­


O desenvolvimento da intriga (ou, no caso de um reagrupamento complexo de personagens,
o desenvolvimento das intrigas paralelas), conduz ao desaparecimento do conflito ou à criação
de novos conflitos (TOMACHEVSKI, 1976, p. 177) .
.

A intriga está relacionada, portanto, com a noção de conflito dramático, que é desenvolvido a
partir das ações das personagens - elementos esses (ação; personagem), que se vinculam à noção
de lIlotivo, definido por Tomachevski (1976) como "unidade temática mínima" e obtido quando,
num processo analítico, a obra é decomposta em partes caracterizadas por uma unidade temática
específica:

A noção de tema é uma noção sumária que une a matéria verbal da obra. A obra intelLl
pode ser seu tema, ao mesmo tempo que cada parte da obra. A decomposição da obra
consiste em isolar suas partes caracterizadas por uma unidade temdtica específica.
[.. -I Através desta decomposição da obra em unidades temáticas, chegamos enfim às
partes indecompostas, até às pequenas partículas do material temático: "A noite caiu";
"Raskolnikov matou a velha", "o herói morreu", "uma carta chegou" etc. O tema desta
parte indecomposta da obra chama-se [---I motivo. No fundo, cada proposição possui seu
próprio motivo. [ ... 1
Os motivos combinados entre si constituem o apoio temático da obra. Nesta perspectiva, a
fábula aparece como o conjunto dos motivos em sua sucessão cronológica de causa e efeIto:
a trama aparece como o conjunto destes mesmos motivos. mas na sucessão em que surge
dentro da obra (TOMACHEVSKI, 1976, p. 174)_

Os conceitos de fábula e trama encontram, de certa forma, correspondentes nos conceitos


de estória (stof}') e enredo (plot) , disseminados a partir dos estudos de Forster (1974) e do New
Criticism norte-americano. Tal correspondência é, a rigor, imperfeita e, no limite, inadequada.
No entanto, é comum encontrarmos textos em que os termos estória e enredo estabelecem um
contraste semelhante àquele estabelecido entre a fábula e a trama. O conceito de estória é utilizado
tanto para identificar a história narrada pelo texto narrativo como, muitas vezes, para identificar
a síntese de tal história. O conceito de enredo foi originalmente criado para identificar o modo
como uma história é construída por meio de palavras e, portanto, organizada sob a forma de texto.
N esse sentido, ele corresponde, de fato, ao conceito de trama utilizado pelos formalistas russos.
No entanto, devido à sua larga e nem sempre rigorosa utilização, vamos, por vezes, encontrá-lo
em textos que contradizem esse sentido original, a saber: a) como termo que identifica a história
narr~da pelo texto narrativo; b) como termo que identifica a síntese da história narrada pelo texto
narrativo; c) como termo que identifica a temática e/ou o gênero que caracteriza a história narrada
pelo texto narrativo. É preciso tomar cuidado com tais empregos, pois eles deixam escapar um dos
traços essenciais da obra literária, a sua construção.
No quadro abaixo, construído a partir das contribuições de Lodge (1996, p. 4) e Aguiar e Silva
(1988, p. 711-712), apresentamos alguns dos termos utilizados por diversos autores e/ou linhas
teóricas para diferenciar esses dois planos da narrativa. Embora redutor, este quadro visa a estabelecer
correspondências entre a terminologia teórica utilizada para distinguir a história narrada do modo
como ela é construída sob a forma de texto.

THOMAS BONNICI ! L()C1A O'AN.' ZOl lN (ORGANIZADORES) - 37


JUNIOR

-
TEORINAUTOR HISTÓRIA NARRADA HISTÓRIA CONSTRUÍDA
Formalistas russos fábula trama
-

NeuJ CriticisnI (Forster) story plot ..


T. Todorov história discurso
G. Genette história (ou diegese) narração
Jean Ricardou ficção narração
-
Roland Barthes récir narração
Grupo 11 narrativa proprIamente dita discurso narrativo
Claude Bremond récit rafOnté récit racontant
Seymour Chatman história discurso
Quadro 2. Terminologia teórica

Destaque-se o fato de que Genette (1979) estabelece, na verdade, uma distinção tríplice, e
não binária, entre história narrada c história construída. Segundo Lodge,

ele dividiu o discurso narrativo em texto mesmo (rérit/narrativa) e no ato de narrar, o qual
produz o texto (narração). lsso ;~uda a definir subcategorias de narrativa técnica mais delicadas,
mas não afeta a oposição fundamental entre História e Discurso. Ele também, às vezes, usa o
termo "diegese" ao invés de llistoire e isso pode ser fonte de confusão. (Em Genette, Narrative
Dis(ourse, 1980, onde histoire é traduzida como história, récit como narrativa e narratiOlI como
narração) (LODGE, 1996, p. 4-5).

Para o que aqui nos interessa, o termo diegese, muito disseminado, corresponderá à noção de fábula,
de história narrada; o termo discurso, à noção de trama, de história construída. Veja-se o quadro abaixo:

NARRATIVA FORMALISMO RUSSO NEW CRlTlCISM NARRATOLOGIA


História narrada fábula estória (story) diegese

História construída tralna discurso narrativo ou


enredo (plot)
narração
Quadro 3. Os termos diegese e discurso

A PERSONAGEM E SUAS CLASSIFICAÇÕES

A personagem é um dos principais elementos constitutivos da narrativa. É sobre ela que recai,
normalmente, a maior atenção dispensada pelo leitor, dada a ilusão de semelhança que tal elemento
cria com a noção de pessoa. O que é uma personagem? Um ser construído por meio de signos verbais,
no caso do texto narrativo escrito, e de signos verbi-voco-visuais, no caso de textos de natureza
híbrida como as peças de teatro, os filmes, as novelas de televisão etc. As personagens são, portanto,
representações dos seres que movimentam a narrativa por meio de suas ações e/ou estados.
As personagens podem ser classificadas a partir de dois critérios: a) segundo o seu grau de
importância para o desenvolvimento do conflito dramático presente na história narrada pelo texto
narrativo; b) segundo o seu grau de densidade psicológica. As tabelas abaixo apresentam a classificação
das personagens segundo esses dois critérios.

38 - T E o R I A LITERÁRIA
. _-_.~<{D O P F R ,\ [) \1 I, [':, n r L r 11 c; H c\ IJ·\ N'\ H R ,\ [ I '. ,\

A personagem é classificada como principal quando suas ações são fundamentais I


para a constituição e o desenvolvimento do conflito dramático. Geralmente.
PRINCIPAL desempenha a função de herói na narrativa, reivindicando para si a atenção e u
interesse do leitor. Não é incomum que um mesmo texto apresente mais de ullla
personagem principal.

A personagem é classificada como secundária quando suas ações 11110 são


fundamentais para a constituição e o desenvolvimento do conflito dramático.
Geralmente, desempenha uma função subalterna, atraindo menos a atenção c
SECUNDÁRIA o interesse do leitor. Pode acontecer, no entanto, de a personagem secundária
revelar-se, por um artifício do enredo ou por uma reviravolta nos acontecimentos
da história, fundamental para o desenvolvimento do conflito dramático presente
na narrativa.
---------------~----------------------------------------------------------------------~

• Quadro 4. Classificação da personagem por sua importância no conflito dramático

~.

TIPO é aquela cuja identificação se dá, normalmente, por meio de


determinada categoria social. A enfermeira, o pirata, o cnmmoso, ()
açougueiro, a adolescente, o estudante ... são alguns dos possíveis exemplos.
Se a personagem é caracterizada a partir de uma categoria social e se suas
PERSONAGEM PLANA ações correspondem previsivelmente a tal categoria, confirmando os valores
é aquela que apresenta baixo que socialmente lhe são atribuídos, estamos diante de uma personagem
grau de densidade psicológica. tipo.
Em geral, tal personagem
marca-se por uma linearidade ESTEREÓTIPO é aquela cup identificação se dá por meIo da
no que se refere à relação acumulação excessiva de sigrlOs que caracterizam determinada categoria
entre os atributos que social. Exemplos: o pirata com perna de pau, olho de vidro, cara de mau,
caracterizam o seu ser (a sua barba por fazer, brinco de argola, lenço na cabeça, gancho na mão, chapéu
psicologia) e o seu fazer (as preto com caveira, papagaio no ombro, bebedor de rum etc; a enfermeira
suas ações) (FORSTER, de roupa, sapatos e touca brancos, cabelo preso, unhas curtas, bijuterias,
1974). Tal classificação inclui relógio e maquilagem discretos, prancheta na mão, caneta e termômetro
dois subtipos: a personagem tipo no bolso da camisa ou do avental etc. A personagem estereótipo é, pois,
e a personagem estereótipo. uma cristalização máxima dos lugares-comuns e dos valores socialmente
atribuídos às diversas categorias sociais. Pode-se dizer que, no texto literário,
sua psicologia e suas ações são como que determinadas pela categoria social
à qual pertence - fato normalmente construído por meio da descrição dos
seus atributos físicos e de seu figurino.

PLANA COM TENDÊNCIA A REDONDA é aquela que apresenta um grau mediano de densidade
psicológica, ou seja, embora se marque por uma linearidade predominante no que se refere à relação entre os
atributos que caracterizam o seu ser (a sua psicologia) e o seufazer (as suas ações), tal personagem não se reduz
totalmente à previsibilidade. Isso sigrIÍfica que suas ações podem, ainda que de maneira limitada, contrastar
com a sua caracterização psicológica - o que pode vir a surpreender o leitor (CANDIDO, 1976).

REDONDA é aquela que apresenta um alto grau de densidade psicológica, ou seja, marca-se pela alinearidade
no que se refere à relação entre os atributos que caracterizam o seu ser (a sua psicologia) e o seu fazer (as
suas ações). Noutros tennos: apresenta maior complexidade no que se refere às tensões e contradições que
caracterizam a sua psicologia e as suas ações. Tal personagem é imprevisível, surpreendendo o leitor ao longo
da narrativa, pois representa de modo denso a complexidade, os conflitos e as contradições que caracterizam
a condição humana e, nesse sentido, não é redutível aos limites de uma categoria social (FORSTER, 1974).

Quadro 5. Classificação da personagem segundo o grau de densidade

psicológica e suas ações (ser + fazer)


THOMA<;; RONNlíl / T (,riA n';;Ar--rA Z,'11 IN (nllr.ANI7AIH)1I1.C) - 1<)
tCpR A N C () J UNI () R

'I, AUTOR, NARRADOR, NARRATÁRlO E FOCALIZAÇÃO

A distinção entre autor e narrador é fundamental para o desenvolvimento do estudo do texto


narrativo a partir de princípios e metodologia científicos. A primeira coisa que se deve saber sobre o
narrador é que ele é uma categoria específica de personagem, e não deve, portanto, ser confundido com
o autor do texto, por mais próximo que pareça estar deste. Autor, para ficarmos com uma simplificação
extrema, é aquele que cria o texto e narrador é uma personagem que se caracteriza pela função de,
num plano interno à própria narrativa, contar a história presente num texto narrativo. Aguiar e Silva
atenta, ainda, para a distinção entre autor empíri(O, aquele que "possui existência como ser biológico e
jurídico-social", e autor textual, aquele que

existe no âmbito de um determinado texto literário, como uma entidade ficcional que tem
a função de enunciador do texto e que só é cognoscível e caracterizável pelos leitores deste
mesmo tell:to. [ ... ] é o emissor que assume imediata e especificamente a responsabilidade da
enunciação de um dado texto literário e que se manifesta sob a forma e a função de um eu
oculta ou explicitamente presente e actuante no enunciado, isto é, no próprio texto literário
(AGUIAR E SILVA, 1988, p. 227 - 228).

É comum que o narrador seja classificado a partir da pessoa do discurso que utiliza para narrar e,
também, segundo o seu grau de participação na história narrada. Embora relevantes, tais critérios são
insuficientes para o estudo da complexidade e da importância (estética, ideológica etc.) que o narrador
assume na narrativa.
Uma possível classificação do narrador segundo os critérios anteriormente citados estabelece uma
relação entre a pessoa do discurso utilizada para narrar e o grau de participação do narrador na história
que narra. Assim, o narrador que utiliza a la pessoa do discurso (Eu/Nós) seria classificado como
narrador participante, já que a la pessoa evidenciaria a sua participação na história narrada. Por sua vez, o
narrador que utiliza a 3a pessoa do discurso (Ele/Eles) seria classificado como narrador observador, pois
a 3 a pessoa evidenciaria o seu distanciamento em relação à história narrada. Além disso, a dicotomia
narrador participante/ narrador observador, muito disseminada nos Ensinos Fundamental e Médio,
parece ter origem nos conceitos de narrador-personagem e narrador-observador propostos, a partir da leitura
de Greimas, por Siqueira (1992).
Tal classificação requer, no entanto, uma boa dose de rigor no que se refere à sua utilização.
Não se pode estabelecer uma relação direta entre o uso da la ou da 3 a pessoas do discurso e o
grau de participação do narrador na história que narra. É possível imaginar, por exemplo, que
a testemunha que conta em um tribunal um crime que presenciou deva elaborar a sua história
valendo-se da la pessoa do discurso. Tal testemunha terá de contar aos presentes algo que viveu
(presenciar um crime), mas não na condição de protagonista (posição necessariamente ocupada
pelo réu e pela vítima). Desse modo, tal testemunha será um narrador que narra em la pessoa,
mas não p~rticipa da história narrada, senão numa posição secundária, periférica ou, mesmo,
neutra no que se refere à constituição e ao desenvolvimento do conflito dramático da história
narrada. Do mesmo modo, pode-se imaginar que um cientista narre o conjunto de estudos e
experiências"que realizou durante o desenvolvimento de uma pesquisa, valendo-se da 3a pessoa
do discurso. Nesse caso, ele será um narrador que participa fundamentalmente da história
narrada, embora minimize o seu grau de envolvimento com os fatos que constituem tal história,
privilegiando a apresentação dos fatos que caracterizam a pesquisa, em detrimento de seu alto
grau de envolvimento na realização da mesma. Tais exemplos, embora extremos, servem para
nos alertar do perigo de estabelecer uma relação direta entre a pessoa do discurso utilizada pelo
narrador e o seu grau de participação na história que narra.
Aguiar e Silva lembra-nos de que o narrador cumpre a função de uma voz fundamental no texto
narrativo e que, além disso, é o agente de um processo de focalização que afeta a história narrada:

40-TEORIA LITERÁRIA
~/:;-\
-----.~"'\3;,J () I' r li'l I) () H E \ ! F ! I \ 1 p.:\ !) _,\ N:\ P H i\ T I \- :\

o t('~tO narrativo Implica a mediaçao de um narrador: a I'OZ do narrador tàla sempre no texto
11.lrratlVO, apresentando características diferenciadas em conformidade com o estatuto da
perSOll<1 responscível pela enunCIação narratIva, e é ela quem produz, no texto literárIo narrativo,

as outras l'OZe" existentes no te~tO [--.1, A voz do narrador tem como funções primárIas c
Illderrog;íveis uma flmção de representação, isto é, a função de produzir mtratextualmentc
o universo diegético - personagens, eventos etc. - , e uma jUllção de organização e comr% das
estruturas do tC~tO narrativo, quer a nível tópico (microestruturas), quer a nível transtópico
(lllacroestruturas). Como funções secundárias e não necessariamente actualizadas, a voz do
narrador pode desempenhar uma função de illlerprelação do mundo narrado e pode assunllI
uma função de a{ção neste mesmo mundo (a assunção destas últimas funções repercute-se nas
duas primeiras e suscita problemas de focalização [ ... 1(AGUIAR E SIlVA, 1988, p 759).

Baseando-se em Genette, Aguiar e Silva apresenta as seguintes classificações do narrador, que


organizamos nos quadros abaixo:

É aquele que "não é co-referencial com nenhuma das personagensoa diegese, I


[__ .lnão participa, por conseguinte, da história narrada. [--.1 Pode manifestar-
HETERODIEGÉTICO
se como um 'eu' explícito ou como um narrador apagado, de 'grau zero' "
(1988, p. 761),

É aquele que "é co-referencial com uma das personagens da diegese,


participando da história narrada" (1988, p, 761),

HOMODIEGÉTICO Subtipo do narrador homodiegético, o narrador


autodiegético é aquele que "é co-referencial
AUTODIEGÉTICO
com o protagonista" (1988, p. 762) da narrativa,
narrando a sua própria história,

Quadro 6. Classificação do narrador a partir de Genette (1979)

Além disso, Aguiar c Silva considera que o narrador "caracteriza-se, ainda, pela sua relação,
enquanto instância produtora do discurso, com o nível da diegese construída pelo seu discurso"(1988,
p. 762). Nesse sentido, o narrador classificar-se-á como:

É aquele que ocupa a posição de narrador de primeiro grau em uma narrativa


EXTRADIEGÉTICO primária. Seu "acto narrativo é externo em relação aos eventos narrados naquela
narrativa" (1988, p, 762).

É aquele que ocupa a posição de narrador em uma narrativa secundária


produzida no decurso de uma narrativa primária. Seu ato narrativo é interno
em relação aos eventos narrados naquela narrativa,

Subtipo do narrador intradiegético, o narrador


INTRADIEGÉTICO
hipodiegétúo (ou, na classificação de Genette,
metadiegétúo) é aquele que "produz uma narrativa que
HIPODIEGÉTICO
se insere na narrativa primária, interrompendo-a,
representando formal e funcionalmente uma
narrativa dentro da narrativa" (1988, p. 763).

Quadro 7. Classificação do narrador segundo o nível da diegese construída pelo seu discurso
CPR A N C (l J lJ N I II H

'I He,",lte-,,, que, P'" Gene,,,, 0' nivei, cb m".ti", "'O 5'0 "I>,ivo, 'pco", '0 m",doe, uns i
i estrutura arquitetônica, chamemos assim, da narrativa e à posição que todos os personagens, e não
apenas o narrador, ocupam em relação ao evento narrado.
O narratário, segundo Aguiar e Silva, se define como o "destinatário intratextual do discurso
narrativo e, portanto, da história narrada" (1988, p. 698). Ele não é universal, ou seja, não existe
necessariamente em todos os textos narrativos. Manifesta-se preferencialmente naqueles textos em
que o narrador é personalizado, autonomizado, ou seja, nos textos em que a condição de personagem
do narrador é posta em destaque pela diegese, e não naqueles textos em que o narrador apresenta um
"grau zero" no que se refere à diegese e ao discurso narrativo. Aguiar e Silva destaca o fato de que o
narratário é "um 'tu' intratextualmente construído e particularizado como entidade ficcional" cuja
existência e função "articulam-se com os diversos níveis da narração que podem ocorrer num texto"
(1988, p. 699).
A focalização corresponde, como o próprio nome sugere, à posição adotada pelo narrador para
narrar a história, ao seu ponto de vista. O JO((1 l1arratil'o é um recurso utilizado pelo narrador para
enquadrar a história de um determinado ângulo ou pO/1to de /lista. A referência à "Visão, aqui, não é casual.
O foco narrativo evidencia o propósito do narrador (e, por extensão, do autor) de mobilizar intelectual
e emocionalmente o leitor, manipulando-o para aderir às ideias e valores que veicula ao cont~r a
história. Segundo Leite (1985), Friedman estabeleceu oito tipos de foco narrativo, a partir das seguintes
questões:

1) Quem conta a HISTÓRIA? Trata-se de um NARRADOR em primeira pessoa ou em


terceira pessoa? de uma personagem em primeira pessoa? não h~ ninguém narrando?; 2) de
que POSIÇÃO ou ÂNGULO em relação à HISTÓRIA o NARRADOR conta? (por cima? na
periferia? no centro? de frente' mudando?); 3) que canais de informação o NARRADOR usa
para comunicar a HISTÓRIA ao leitor' (palavras? pensamentos? percepções? sentimentos?
do autor? da personagel1l' ações? falas do autor? da personagel1l? ou uma combmação disso
tudo?); 4) Aque DISTÂNeIA ele coloca o leitor da história (próximo? distante? mudando?)?
(FRIEDMAN, 1955 apud LEITE, 1985, p. 25).

Antes, porém, de passarmos à apresentação dos oito tipos de foco narrativo identificados por
Friedman, convém estabelecer uma distinção entre cena e sumário - conceitos mobilizados para
a classificação que o autor faz da focalização. Por cena entenda-se a representação do diálogo das
personagens, efetuada por meio do uso do discurso direto; por sumário entenda-se o relato generalizado
ou a simples exposição dos eventos que caracterizam a narrativa, efetuados por meio do uso do discurso
indireto, logo, resumidos, sumarizados. A cena é um recurso que cria um efeito de proximidade entre
o leitor e a história narrada; o sumário, por sua vez, cria um efeito oposto, demarcando a distância
entre o leitor e a história narrada.
Segundo Friedman, o foco narrativo pode ser assim classificado:

1) '1-lutor" onisciente i/1truso - Esse foco narrativo caracteriza o narrador que adota um ponto
de vista divino, para além dos limites de tempo e espaço. Tal narrador cria a impressão
de que sabe tudo da história, das personagens, do encadeamento e do desdobramento das
ações e do desenvolvimento do conflito dramático. Ele usa preferencialmente o sumário,
suprimindo ou minimizando ao máximo a voz das personagens. "Como canais de informação
predominam suas próprias palavras, pensamentos e percepções. Seu traço característico é
a intrusão, ou seja, seus comentários sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que
podem ou não estar entrosados com a história narrada" (FRIEDMAN, 1955 apud LEITE,
1985, p. 26-27). O narrador que utiliza esse foco narrativo se interpõe entre o leitor e os
fatos narrados, elaborando pausas frequentes (digressões) para a apresentação de sua opinião
e de seu posicionamento, seja em relação à história e aos elementos que a constituem,
seja em relação aos comportamentos e/ou valores sociais aos quais a história narrada faz
referência e com os quais dialoga;

42 ~ T E o R I A LITERÁRIA
--- ._-~ \) I' E HA. I) () R r \ I) F L E J T U R A D.'. N A R R A 1 I \ \

2) Narrador ollÍscimte !lcl/lra - Esse foco narrativo caracteriza-se pelo uso da 3" pessoa do discurso.
Tende ao uso do sumário, embora não seja incomum que use a cena para a inserção de
diálogos e para a dinamização da ação e, consequentemente, do conflito dramático. Reserva-se,
normalmente, o direito à caracterização das personagens, descrevendo-as e explicando-as para
o leitor. Distingue-se do foco narrativo anterior "pela ausência de instruções e comentários
gerJ.is ou mesmo sobre o comportamento das personagens, embora sua presença, interpondo­
se entre o leitor e a HISTÓRIA, seja sempre muito clara" (FRIEDMAN, 1955 apud LEITE,
1985, p. 32);

3) "ElI" como testemunha - Esse foco narrativo caracteriza um narrador que narra de uma perspectin
menos exterior em relação ao fato narrado do que os anteriores. Faz uso da 1a pessoa do
discurso, mas ocupando uma posição secundária e/ou periférica em relação à história que
narra. Isso, no entanto, não impede que possa "observar, desde dentro, os acontecimentos,
e, portanto, dá-los ao leitor de modo mais direto, mais verossímil" (FRIEDMAN, 1955
apud LEITE, 1985, p. 37). Seu ângulo de visão, entretanto, é necessariamente limitado. Por
situar-se na periferia dos acontecimentos, esse narrador tem de restringir-se à sua condição
de testemunha, ou seja, não sabe de fato senão aquilo que presenciou, limitando-se a fazer
suposições, inferências, deduções etc. daquilo que lhe escapa. Pode utilizar tanto a cena como
o sumáno para narrar;

4) Narrador prata,15onista - Esse foco narrativo caracteriza um narrador que narra


necessariamente em 1 d pessoa, limitando-se ao registro de seus pensamentos, percepções
e sentimentos. Narra, portanto, de um centro fixo, vinculado necessariamente à sua
própria experiência, já que, como o próprio nome diz, é o protagonista da história
narrada. Pode valer-se tanto da cena como do sumário, aproximando ou distanciando o
leitor da história narrada;

5) Onisciência seletiva múltipla - Esse foco narrativo marca-se pela utilização predominante do
discurso indireto-livre. Tal recurso cria um efeito de eliminação da figura do narrador, que
é substituída pelo registro de impressões, percepções, pensamentos, sentimentos, sensações
que remetem à mente das personagens. Como tais percepções, pensamentos, sensações,
sentimentos etc. ganham o primeiro plano da voz narrativa e estão ligados a várias personagens,
não há mais um centro fixo como responsável pela articulação da história narrada, mas uma
multiplicidade de ângulos de visão e, consequentemente, múltiplos canais de informação.
Há, aqui, um predomínio quase absoluto da cena. Esse foco não deve ser confundido com
o foco narrador onisciente neutro, pois "o autor traduz os pensamentos, percepções e
sentimentos, filtrados pela mente dos personagens, detalhadamente, enquanto o narrador
onisciente os resume depois de terem ocorrido" (FRIEDMAN, 1955 apud LEITE, 1985, p.
47);

6) Onisciência seletiva - Esse foco narrativo é semelhante ao anterior, mas com a diferença de
que se restringe a uma só personagem. Narra de um centro fixo, seu ângulo é central, e
os canais de informação limitam-se aos pensamentos, sentimentos, percepções, sensações,
memórias, fantasias, desejos etc., do personagem central, que são apresentados diretamente e
sem mediação ao leitor. Marca-se, como o foco anterior, pelo predomínio do uso do discurso
indireto-livre e, não raro, pelo recurso ao fluxo de consciência;

7) Modo dramátú:o - Esse foco caracteriza-se pelo uso exclusivo da cena, logo, pelo predomínio
quase absoluto do discurso direto. A história é narrada a partir do encadeamento de cenas
nas quais somos informados, pelo discurso direto, sobre o que pensam, fazem, sentem e
objetivam as personagens. A história é narrada de um ângulo frontal e fIXO - o que cria o
efeito de estarmos presenciando os fatos no momento em que eles acontecem. É o foco que
caracteriza o gênero dramático, o texto de teatro e, de certo modo, o roteiro de cinema e das
telenovelas;
q>R ~ N C·O jUNloH

! 8) Câmera - Esse foco é, talvez, a tentativa mais radical de elimmação da presença do J.utor
e, também, do narrador na narrativa. "Essa categoria serve àquelas narrativas que tentam
transmitirflashes da realidade como se apanhados por urna câmera arbitrária e mecanicamente"
(FRIEDMAN, 1955 apud LEITE, 1985, p. 62). Tal propósito de atingir a máxima neutralidade
no narrar faz, muitas vezes, com que a narrativa seja construída a partir de fragmentos "soltos"
que rompem com a ilusão de continuidade, que é uma das características mais tradicionais
da narrativa. É urna ilusão, no entanto, acreditar que esse foco narrativo seja de fato neutro.
Basta tãzer urna comparação com a fotografia ou com o cinema para percebermos que há,
sempre, alguém por trás da câmera, decidindo o ângulo e selecionando o que deve ou não ser
representado. Pense-se, por exemplo, no fotojornalismo, que nunca é neutro no tratamento
que confere à imagens que veicula vinculadas ao texto e aos interesses do jornal. Vale o mesmo
para o telejornalismo.

OBSERVAÇÃO IMPORTANTE: não é um fato incomum a utilização de mais de um foco narrativo


por um mesmo narrador. Tal variabilidade caracteriza, por exemplo, muitos romances. No caso da
identificação de mais de um foco narrativo em um texto narrativo, procure observar qual deles é o q1le
predomina sobre os demais e, também, observar que efeitos de sentido são criados a partir de tal variação
de focos.

TEMA, MOTIVOS E MOTIVAÇÁO

Tema - É o assunto central abordado dramaticamente pela narrativa, ou seja, é o assunto que abarca
o conflito dramático nuclear da história narrada pelo texto narrativo. Embora o terna se imponha
pela força que adquire com o desenvolvimento da narrativa, ele pode variar conforme a posição
interpretativa adotada pelo leitor em relação ao conflito dramático. Tal variabilidade depende,
normalmente, do grau de ambiguidade da narrativa. Quanto maior o grau de ambiguidade no
tratamento do conflito dramático da história narrada, maiores serão as possibilidades de definição
do tema pelo leitor;
Motivos - Como já vimos, motivos são subtemas ligados ao terna e vinculados ao desenvolvimento
da história e ao conflito dramático. Definem-se, normalmente, a partir das ações das personagens
e, também, das situações dramáticas apresentadas no desenvolvimento da narrativa. Podem ser
essenciais ao desenvolvimento da história e do conflito dramático e/ou ser acessórios, secundários,
não-essenciais a tal desenvolvimento. No primeiro caso, não podem ser desconsiderados quando do
estudo da motivação que caracteriza uma narrativa;
Motivação - A motivação compreende o conjunto de motivos que, articulados ao tema, caracterizam
o modo como este é trabalhado ao longo da narrativa. Sua identificação e seu estudo são importantes
para que o leitor possa avaliar o posicionamento estético e ideológico do autor em relação aos assuntos
que aborda em seu texto.

Nó, CLÍMAX, DESFECHO

Nó - É o fato que interrompe o fluxo da situação inicial da narrativa, criando um problema ou


obstáculo que deverá ser resolvido. O nó é o que dá origem ao conflito dramático de uma narrativa.
Ele evidencia que só há uma história a ser contada, porque uma crise se instalou em determinada
situação, exigindo que se tente resolvê-Ia de modo a reequilibrar o que ela desestabilizou. Isso, no

44-TEORIA LITERÁRIA
entanto, não significa necessariamente o retorno à mesma sItuação inicial, pOIS, quase sempre, o
desenvolvimento do conflIto dramático tú com que a situação de equilíbrio final da história seja
diferente da sua situação de origem;
Clílllax - É o elemento que marca o auge do conflito dramático, momento do tudo-ou-nada entre
as forças contrárias que agem e se defrontam na narrativa (geralmente representadas pelas personagens
e pelos valores a elas ligados), engendrando e desenvolvendo a história. Diferentemente do desfecho,
o clímax caracteriza um momento em que a expectativa em relação à resolução do conflito central
da narrativa ignora qual das forças contrárias vencerá O clímax, portanto, suspende, mantendo por
instantes em tensão máxima, a história contada na narrativa;
De:ferJw - É a resolução do contlito central da narrativa, momento em que uma das forças contrárias
vence e se afirma sobre a sua oponente. Normalmente, liga-se à situação final da narrativa.


OBSERVAÇÕES IMPORTANTES:
a) os conceitos de nó, clímax e desfed/O não se ligam necessariamente às noções de introdução,
desenvolvimento e conclusão de uma narrativa. É preciso ter sempre em mente que uma narrativa se
compõe tanto de urna história como de um texto no qual tal história é veiculada. A distinção entre os
planos da história narrada e do texto narrativo que a veicula é importante para evitar confusões perigosas.
Não há nada que obrigue que a introdução, o desenvolvimento e a conclusão da história correspondam
à introdução, ao desenvolvimento e à conclusão do texto narrativo que a veicula. É preciso estar atento
a isso para que o desenvolvimento da leitura (análise + interpretação) do texto narrativo não apresente
equívocos ou distorções no que se refere à identificação de tais elementos e à leitura de sua função e de
seu sentido no texto;
b) assim como urna história não tem necessariamente a obrigação de apresentar uma introdução ou uma
conclusão fechada, podendo prescindir de uma delas ou, mesmo, de ambas, também não tem a obrigação de
apresentar necessariamente os conceitos de nó, clímax e desfecho, podendo prescindir de algum deles;
c) o clímax e o desfecho podem, em certas narrativas, se manifestar simultaneamente, marcando ao
mesmo tempo o auge do conflito e sua resolução.

ESPAÇO, AMBIENTE, AMBIENTAÇÃO

Espaço - O espaço compreende o conjunto de referências de caráter geográfico elou arquitetônico


que identificam o(s) lugar(es) onde se desenvolve a história. Ele se caracteriza, portanto, como uma
referência material marcada pela tridimensionalidade que situa o lugar onde personagens, situações e
ações são realizadas;

OI3'SERVAÇÃO IMPORTANTE: não é incomum que se encontre, em determinados estudos, o espaço


vinculado aos estados psicológicos da personagem por meio da expressão espafo psÜ:ológico. Tal expressão é,
a nosso ver, infeliz, podendo causar problemas e equívocos na leitura do texto narrativo. A psicologia da
personagem, que é normalmente uma representação da psicologia humana, marca-se, como esta, pela noção
de tempo - o que incluí tanto a consciência do presente como os conteúdos da memória e, também, as
projeções do desejo e da fantasia.

Ambiente - O ambiente é o que caracteriza determinada situação dramática em determinado


espaço, ou seja, ele é o resultado de determinado quadro de relações e 'Jogos de força" estabelecidos,
T LI r\).A 1\ .. f:j: r, ,,' "" r'l " r,', ,_ •• r'\,' •• , . '7,.... ••• , I " .. ,...." .. ' • ..,,· , , , , , , , ...... \
<.p R A N () J UNI () R

I normalmente, entre as personagens que ocupam determinado espaço na história. O ambiente é.


portanto, o "clima", a "atmosfera" que se estabelece entre as personagens em determinada situação
dramática. Conforme o conflito dramático se desenvolve a partir das ações das personagens, o quadro
relacional estabelecido entre elas muda, alterando a situação dramática e, portanto, o ambiente. Um
mesmo espaço pode, portanto, apresentar diversos ambientes;
Ambiflltação - a ambientação compreende a identificação do modo como o ambiente é construído
pelo narrador e, portanto, ela identifica também o trabalho de escrita do autor do texto, as escolhas
que ele faz para construir deste ou daquele modo os ambientes. Lins (1976) define três tipos de
ambientação, a saber:

FRANCA - é a ambientação produzida por meio do discurso de um narrador heterodiegético ou um narrador que
não participa dos eventos fabubres que narra. Esse narrador explicita. compõe o ambiente que caracteriza um espaço e
determinada situação dramática. Esse tipo de ambientação é bastante típico nos romance realistas, onde predominam várias
pausas descritivas.

REFLEXA - nesse caso, a ambientação é produZIda ou composta por meio da focalização de personagem(ns) que, a partir
de sua percepção Ol! ponto de vista, constrói(ern) o ambiente onde se desenvolve a ação. O termo "ambientação reflexa" jj
denota essa idela de que a ambientação é um reflexo do universo de uma ou mais personagens

DISSIMULADA ou OBLÍQUA - Nesse caso, o ambiente é construído, por um efeito de sugestão, a partir das ações j
da(s) personagem(ns).

Quadro 7. Classificação da ambientação segundo Lins (1976)

TEMPO E RECURSOS DE SUB]ETIVAÇÃO DA PERSONAGEM

Com relação ao tempo, parece-nos que uma das mais completas contribuições vem dos estudos
feitos por Genette, que propõe uma distinção básica entre o "tempo da coisa contada e o tempo da
narrativa" (1979, p. 3]).
Tanto a diegese (história narrada, fábula) como o discurso narrativo (a narração, história
construída, trama) estão inseridos num fluxo temporal. No entanto, a construção da narrativa torna
possível a existência de certas distorções temporais que se tornam importantes para o estudo do texto
narrativo. Os quadros abaixo sintetizam as contribuições de Genette (1979) para o estudo do tempo
na narrativa. Por uma questão didática, dividimos os conceitos entre aqueles pertinentes ao tempo
da diegese - que implica os acontecimentos pertinentes à história narrada e, também, o impacto
desses acontecimentos na subjetividade de determinadas personagens, posta, por vezes, em relevo na
narrativa - , e aqueles pertinentes ao tempo da narração ou do discurso narrativo, que compreende o
tempo dos acontecimentos, dos fatos, das ações apresentadas no discurso narrativo.

Referente à sucessão temporal dos acontecimentos. Pode ser mensurado pela


TEMPO OBJETIVO
passagem dos dias, das estações do ano, de datas, enfim, por todo tipo de marcação
(CRONOLÓGICO)
temporal objetiva.

Vincula-se ao tempo cronológico, mas difere deste porque se trata do tempo da


TEMPO SUBJETIVO experiência subjetiva das personagens. Caracteriza, pois, o tempo lJilJencial destas, o
(PSICOLÓGICO) modo como elas experimentam sensações e emoções no contato com os fatos objetivos
e, também, com suas memórias, fantasias, expectativas.

Quadro 8. Tempo da diegese (história narrada)

46-TEORIA LITERÁRIA
I
I I 1 L., !{ ,\ II .c\ !':.\ I~ n .\ ! I \- :\

} -------------,---­

NARRATIVA IN .MEDIA RES: o dIscurso narLltivo se IllICla COIIl a


ORDEM apresentaçJ() de um acontecimento que pertence ao desenvolvimento
da diegese.
Compreende a relação entre
a ordem (disposição) dos
A NARRATIVA IN ULTIMA RES: o discurso narrativo se 1I1ICla
acontecimentos da diegese
N com a apresentação de um acontecimento que pertence ao desfecho
(história) e a ordem de
A da diegese.
apresentação desses mesmos
C
acontecimentos no discurso
R
(história construída). Como ANALEPSES: recuos no tempo, que permitem a recuperação de
O
a ordem dos acontecimentos fatos passados. Corresponde ao que em linguagem cmematográfica
N
na diegese e no discurso é chamado deflashback, mas é anterior, como técnica narrativa, a esse
I
raramente coincide, criam-se recurso.
A
anarrol1ias - desencontros entre
S
a ordem dos acontecimentos
na dlegese e a ordem de sua PROLEPSES: antecipações no tempo, que penmtem a anteposlção,
apresentação no discurso no plano do discurso, de um fato ou situação que só aparecerá mais
narrativo. tarde no plano da diegese. Corresponde ao que, em linguagem
cinematográfica, é chamado de flashfimiJard.

Quadro 9. Tempo da narração (discurso narrativo): tempo dos acontecimentos,


dos fatos, das ações no discurso narrativo

CENA: coincidência entre os acontecimentos da diegese e o relato dos


mesmos acontecimentos lia narração. Sua marca mais evidente são os
diálogos, marcados pela presença do discurso direto.

sUMÁRIo NARRATIVO: mcont,'TUênCla entre os acontecimentos da


DURAÇÃO diegese e o relato dos mesmos acontecimentos na narração. O narrador
resume, em nível de discurso, os acontecimentos que, na diegese, marcam­
Trata-se de um desencontro se por um tempo longo. Sua marca mais evidente é a utilização de discurso
entre a duração dos indireto pelo narrador na apresentação resumida dos acontecimentos da
acontecimentos no plano diegese.
da diegese e a duração do
relato desses mesmos ELIPSE: o narrador exclui determinados acontecimentos da diegese no
acontecimentos no plano plano do discurso narrativo.
da discurso narrativo. As
relações de duração implicam
a construção dos seguintes e PAUSA DESCRITIVA: o narrador aumenta a temporalidade narrativa
disti'ntos recursos: por meio da inserção de descrições que "alongam o tempo", criando, desse
modo, anisocronias.

DIGRESSÃO: o narrador introduz comentários no discurso narrativo,


fazendo com que o tempo da diegese pare e o tempo do discurso narrativo
(narração) se alongue.

Quadro 10. Tempo da narração (discurso narrativo): tempo dos acontecimentos,


dos fatos, das ações no discurso narrativo
7 n, 11\.' ( ( ) U í; A N! 7 A J) n I1 T-'" - 47
A N c: () JUNIOR

FREQUÊNCIA NARRATIVA SINGULATIVA: é aquela que apresenta igualdade


entre o número de acontecimentos da diegese e o número de
Refere-se à rehção quantitativa apresentaçües de tais acontecimentos 110 discurso.
entre os acontecimentos da
diegese e o número de vezes NARRATIVA REPETITIVA: é aquela que reitera, no plano do
em que esses acontecimentos discurso narrativo (narração), um mesmo acontecimento pertinente ao
são mencionados no discurso plano da diegese, apresentando-o várias vezes.
narrativo. Dependendo do modo
con10 se estrutura essa relação, NARRATIVA ITERATIVA: é aquela que apresenta uma única vez,
produzem-se os seguinte tipos de no plano narrativo (narração), um acontecimento que aconteceu várias
narrativa: vezes no plano da diegese.

Quadro 11. Tempo da narração (discurso narrativo): tempo dos acontecimentos,


dos fatos, das ações no discurso narrativo

Os recursos de subjetivação da personagem, vinculados ao tempo, dizem respeito a determinados


recursos que se vinculam à construção do tempo psicológico na narrativa. O tempo psicológico
corresponde à organização do tempo interno das personagens, construindo-se a partir do conjl'lnto
de referências que responde pela subjetividade das mesmas (o que inclui o narrador). Não é
delimitado nem determinado pelo tempo físico, embora estabeleça relações com este. Também não
é controlado socialmente, ou seja, corresponde aos afetos, ao imaginário, ao desejo, à fantasia e à
memória das personagens. Sua lógica, nesse sentido, pode prescindir das relações de causa-e-efeito
e da necessidade de tudo explicar ao leitor. Os três recursos de subjetivação intimamente ligados ao
tempo psicológico são o monólogo interior, a análise mental e o fluxo de consciência. Vejamos cada
um deles:
a) Monólogo interior - em primeiro lugar, é preciso distinguir monólogo interior de mO/lólogo. Este
último é um recurso característico do gênero dramático (teatro), que pode caracterizar tanto
uma cena como uma peça teatral na qual uma personagem dialoga consigo mesma. O monólogo
interior também implica o diálogo de uma personagem consigo mesma, mas tal processo não
se realiza sob a forma de um solilóquio, e sim sob a forma de um processo mental no qual a
personagem questiona a si própria numa determinada situação dramática. O monólogo interior
evidencia, desse modo, que a personagem está mentalmente dialogando consigo mesma. Isso,
sem perder o controle de sua consciência ou as relações de causalidade que regem a noção
usual de lógica presente no cotidiano.
b) Análise mental - trata-se da representação de um processo mental no qual a personagem dá
vazão aos seus pensamentos sem perder de vista a sua posição numa dada situação dramática.
A diferença entre a análise mental e o monólogo interior reside no fato de que naquela a
personagem articula algo como uma dupla perspectiva, por meio da qual tanto vivencia como
analisa a sua inserção numa dada situação dramática. Isso, sem perder o controle de sua
consciência ou as relações de causalidade que regem a lógica cotidiana;
c) Flwço de conscíêtuia - trata-se da representação de um processo mental no qual a personagem dá
livre curso a tudo o que anima a sua subjetividade, a sua vida psíquica interior: pensamentos,
emoções, ideias, memórias, fantasias, desejos, sensações. Nesse sentido, o fluxo de consciência cria
um efeito de forte perturbação, perda ou, mesmo, abolição das relações de causalidade que regem
a lógica cotidiana e, também, um efeito de perda do controle da consciência pela personagem. O
fluxo de consciência é um recurso utilizado para aproximar maximamente o leitor da vida interior
da personagem, composta por elementos do consciente, do subconsciente e do inconsciente. Um
de seus traços característicos é a fragmentariedade e a dificuldade de avaliar se as referências e as
informações apresentadas pertencem à memória, à imaginação ou à fantasia da personagem, bem
como à imprecisão em relação à natureza real ou fictícia dos fatos narrados;

48 TEORIA LITERÁRIA
-~OPé.RAj)ORES DE LEIIURA D,\ NARRATIVA

OBSERVAÇC}ES IMPORTANTES:
a) O nlOlIólogo interior, a análise mental e o t1uxo de consciência são recursos que podem ser utilizados em um
mesmo texto;
b) Os limites entre monólogo interior e fluxo de consciênCIa não são precisos. Um tator de distinção, no entanto, reside
no fato de que o primeiro não cria o efeito de perda do controle da consciência pela personagem - traço característico
do segundo. É preciso notar, entretanto, que tais recursos podem ser articulados num mesmo texto. Não é incomum
que a partir de uma radicalização do monólogo interior a personagem passe ao fluxo de consciência.

******

ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO NARRATIVO COM BASE NOS OPERADORES DE LEITURA DA


NARRATIVA

Exemplo 1: Leitura, análise e interpretação de "Tragédia brasileira", de Manuel Bandeira (1985)

"Tragédia brasileira" é um poema em prosa que integra o livro Estrela da manhã, publicado por
Manuel Bandeira em 1936. O poema em prosa, criado e desenvolvido por poetas simbolistas franceses
como Rimbaud e Mallarmé, tunde, como o próprio nome sugere, características da poesia com
características da prosa, e foi particularmente cultivado pelos poetas modernistas brasileiros, entre as
décadas de 20 e 30 do século XX.
o texto narra, com certo humor, uma história de crime passionaL Para sermos mais precisos,
a fábula de "Tragédia brasileira" é a seguinte: Um homem de 63 anos conhece uma prostituta em
precárias condições econômicas e de saúde e a leva para viver junto dele. Após bancar a recuperação
da saúde e da beleza da amante, ele passa a ser traído por esta. Avesso a escândalos, decide mudar­
se de bairro cada vez que descobre uma traição da mulher. Após três anos e inúmeras mudanças de
endereço, ele a mata com seis tiros.
As personagem fundamentais do texto são: Misacl, Maria Elvira, os namorados de Maria Elvira. No
que se refere ao grau de importância para o desenvolvimento do conflito dramático, as duas primeiras
são yrinâpais e as últimas, assim como o médico, o dentista, a manicura e a polícia são secundárias.
Embora o texto não ponha em relevo os namorados, eles, mesmo secundários, são essenciais para o
desenvolvimento do conflito dramático.
No que se refere ao grau de densidade psicológica, as personagens classificam-se da seguinte
maneIra:
a) Misael - dependendo da pOSIção interpretativa do leitor, pode ser classifIcada como plana
ou corno plana [011/ tendência a redonda, já que sua reação final (o assassinato) pode ou não ser
avaliada como previsível. De qualquer modo, essa personagem não tem densidade suficiente
para ser considerada redonda;
b) Maria Elvira - no início da narrativa, sua descrição permite que a caracterizemos como plana­
.' estereótipo, pois caricaturiza a prostituta decadente, doente e miserável. Após a mancebia com
Misael, ela se classifica como plana-tipo, pois deixa de ser uma caricatura da prostituta decadente
para encarnar a promiscuidade e a traição da mulher infiel;
c) Namorados de Maria Elvira, médico, dentista, manicura, polícia - são todas planas-tipo, pois
são definidas por mera identificação de fimção social.
O Ilarrador de "Tragédia brasileira" usa da 3" pessoa do discurso para narrar. Ele demonstra ter
conhecimento de toda a história, embora não participe do conflito dramático nem da história narrada,
marcando-se pelo distanciamento em relação a esta. Por apresentar tais características, ele se classifica
corno Ilarrador obserl'ador.
rcpRANCO JUNIOR

o foco narrativo adotado pelo narrador é o narrador onisciente neutro. A história é narrada em 3a
pessoa; o narrador adota uma posição distanciada, de observação dos fatos, o ângulo de visão é global
(onisciência), mas não emite opiniões nem comentários sobre as personagens, a história ou, mesmo,
o temário (conceito que engloba tema e motivos presentes num texto narrativo) que aborda. E, além
disso, não invade a subjetividade das personagens para dizer o que elas pensam, sentem ou pretendem.
Note-se, por fim, que ele dá preferência ao uso de sumário para narrar - o que concentra o controle da
narração na sua voz, privilegiando, pois, a sua perspectiva na abordagem dos fatos.
Tais características do narrador e do foco narrativo, empregados por Manuel Bandeira nesse texto,
reforçam a aproximação de "Tragédia brasileira" com o gênero jornalístico e com o discurso jurídico,
marcando o poema em prosa do poeta modernista pela mistura de gêneros - traço importa~te da
literatura moderna/modernista. Note-se que o título do texto assemelha-se a uma manchete de jornal
sensacionalista e, também, que, no último parágrafo, a descrição da posição do corpo faz uso do jargão
de policiais e médicos legistas.
O cor!flito dramático (ou intriga) se estabelece entre as duas personagens principais: Misael e Maria
Elvira. Para melhor compreensão do conflito dramático, pode-se fazer um quadro de características
que opõem uma personagem à outra. Vejamos:

CARACTERÍSTICAS MISAEL MARIA ELVIRA

Funcionário do Ministério eb
Profissão Prostituta
Fazenda
1---- -­
Não definida. O texto sugere que é mais jovem do
Idade 63 anos
que Misael
_.

O tcxto não define, mas sugere que O te:-.:to não define, mas sugere, por melO da "aliança
Estado civtl
é solteiro empenhaeb". a existência de mTI casamento
---- - - - - - - - - - - -
Bairro em que mora (no Lapa (tradicional bairro dc boêmia e prostituição
Estácio (bairro de classe média)
início) quando o texto foi escrito)
-

Moradia Sobrado Não definida

No iníCiO: doente (sífilis), dermitc nos dedos, dentes


.
Características físicas Não definidas
arruinados_ Depois: bonita

Indumentária Não definida Definida no final: vestido de organdi azul

Tira Maria Elvira da prostituição;


Torna-se amante de Misael; recupera a saúde e
paga tratamento de saúde, banca
a beleza; satisfaz seus caprichos; trai MisaeJ com
Ações todas as vontades dcla: muda-se
outros homens em cada bairro em que vão morar;
de casa a cada traição; mata Maria
morre assasslllada com seis tiros
Elvira com seis tiros
--- I
Quadro 12. Personagens que constroem o conflito dramático

Noté~se, a partir de tal quadro, que MisaeI e Maria Elvira encarnam motivos (unidades temáticas
mínimas) fundamentais para o estabelecimento e o desenvolvimento do conflito dramático, a saber:
Amor (Ciúme) x Infidelidade (Traição). Se o tema deve ser definido de modo a abarcar os polos opostos
que constituem o conflito dramático, pode-se dizer que o tema de "Tragédia brasileira" é o crime
passional ou a infidelidade. Não se pode afirmar que Maria Elvira seja uma adúltera, pois o texto deixa
claro que ela não era casada com Misael. No entanto, isso não nos impede de reconhecê-la como
traidora, infiel.
Como em toda narrativa há uma íntima relação entre as personagens e os motivos, vejamos quais
são os motivos que as personagens encarnam:

50 TEORI/\ L I T E R Á I( I 1\
J~ o
-'--- --4:'0 P f R A Ll () R E S [) E L E I T li !Z ,\ J) ,\ N ,\ R R :\ T I V.\

,---'----- ----- -­

Misael
PERSONAGENS MOTIVOS (UNIDADES TEMÁTICAS MÍNIMAS)

Velhice, solidão, amor, devoção, paciência, discnção, violênCIa


J
Maria Elvira Jovialidade, prostituição, miséna, infidelidade, traição, ingratidão

Namorados de Maria Elvira Desejo, sexo

Quadro 13. Personagens e motivos

Note-se que os motivos da velhice (Misael) e dajovialidade (Maria Elvira) se opõem num aspecto
muito específico, articulando-se com os motivos do desejo e do sexo (namorados), para, nas entrelinhas,
sugerir que Misael não dava conta do desejo de Maria Elvira, não a satisfazia sexualmente.
Há várias referências espaciais no texto. Isso nos permite classificar os espaços em principal e
secundário, conforme o seu grau de importância para o conflito dramático, Vejamos:
• Espaço príncipal:Rua da Constituição, pois é nesse local, última moradia dos amantes, que
ocorre o assassinato.
• Espaços seCl/ndários: Lapa, sobrado no Estácio, bairros e ruas do Rio de Janeiro (Roclla, Catetc,
Rua General Pedra etc}
Não há arnbimte fixo nessa história. Pode-se deduzir, a partir das ações das personagens principais,
que, na situação inicial, Misael e Maria Elvira vivem em harmonia, mas, a partir do nó, passam a viver
em conflito. Esse conflito marca os diversos espaços, representados no texto pelos nomes dos bairros
e ruas do Rio de Janeiro, com uma tensão crescente, que explode em violência quando do assassinato.
Como o ambiente é definido exclusivamente a partir das ações de Misael e Maria Elvira, a ambientação
classifica-se como dissimulada.
O nó, elemento que introduz o conflito dramático, ocorre quando Maria Elvira arruma o primeiro
namorado, pois é a partir daí que as sucessivas traições e mudanças de endereço se realizarão, produzindo
um efeito tenso e cômico, este último criado pelo modo como as mudanças são representadas no texto:
por meio de uma enumeração, no penúltimo parágrafo, dos bairros em que o casal morou. Nesse
parágrafo, as reticências finais sugerem que as traições e as mudanças foram inúmeras, incontáveis ­
o que também serve para a constnlção de uma gradação que marca, progressivamente, o sofrimento
amoroso e o esgotamento da paciência de MisaeI.
Em "Tragédia brasileira", o clímax e o deifecho manifestam-se quase que simultaneamente, pois o
assassinato de Maria Elvira é, ao mesmo tempo, o auge do conflito entre ela e Misacl (Amor-Ciúme x
Traição) e a resolução do mesmo. O ato de matar realizado por Misael marca a sua explosão emocional;
a morte de Maria Elvira acaba com o conflito dramático, resolvendo-o de maneira trágica. Integra o
desfecho a seqüência final descrita pelo narrador, que nos informa que a polícia encontrou a morta
caída de costas, vestida de organdi azul.
Esses últimos detalhes reforçam o traço poético do texto de Manuel Bandeira,já que a partir deles
cria-se uma imagem plástica de forte apelo poético: a imagem da mulher morta, cujo vestido azul
semitransparente de tecido caro, que sedutoramente revelava e ocultava ao mesmo tempo o corpo,
está e'oberto de sangue. De certa forma, esse detalhe sintetiza, como numa alegoria, toda a história
de crime passional narrada em "Tragédia brasileira". Acrescente-se a isso o fàto de que o assassinato
ocorreu, ironicamente, na Rua da Constituição, que remete às leis e à Justiça que regulam as relações
sociais, proibindo e penalizando o assassinato na nossa sociedade.
Por fim, note-se que o narrador, embora lance mão do faco narrador onisciente neutro, não deixa de
posicionar-se em relação à história que narra. Sutilmente, o modo como a história é construída revela
que ele privilegia Misael em detrimento de Maria Elvira, construindo o texto com elementos que
tendem a influenciar o posicionamento do leitor em relação aos fatos narrados. Isso é particularmente
perceptível no fato de que a ingratidão e a promiscuidade de Maria Elvira são ressaltadas quando o .
ICPR A N C O JUNIOR

narrador afirma que, apesar de Misael dar "tudo quanto ela queria" e relevar as traiçôes, mudando-se
de bairro com ela em vez de lhe dar "uma surra, um tiro, uma facada", a mulher continuava a arrumar
namorados - o que reforça, na personagem, o traço interesseiro. No entanto, o texto, embora indique,
não destaca o fato de que entre os amantes pesa uma diferença de idade que afeta de modos diferentes
o sexo e o desejo. Se a essa diferença associarmos a diferença de classe social, torna-se menos fácil
responder à pergunta: quem, afinal, explora quem nessa história?

Exemplo 2: Leitura, análise e interpretação de "Um apólogo", de Machado de Assis (1975)

Umapólogo

Machado de Assis

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:

- Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingIr que vale alguma coisa neste mundo?

- Deixe-me, senhora.

- Que a deixe? Que a deixe, por que Porque lhe digo que está com um ar lllsuportáveP Hql1to que san, é" falarei

sempre que me der na cabeça.


- Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar?Cada
qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida, e deixe a dos outros.
- Mas você é orgulhosa.
- Decerto que sou.
- Mas por quê?
- É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
- Voeê? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?
- Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados ...
- Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você. que vem atrás, obedecendo ao que
eu faço e mando.
- Também os batedores vão atrás do imperador.
- Você, imperador?
- Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só ll1ostf3ndo o caminho, vai
fàzendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto ...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se dIsse que isto se passava em casa de uma
baronesa, que tinha a modista ao pé de SI para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pa no, pegou da agulha,
pegou d; linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que
era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana - para dar a isto uma cor poética. E
dizia a agulha:
- Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco~ Não repara que esta distinta costureIra só se importa
comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima ...
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela. silenCIosa e ativa,
como quem ~abe o que faz e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se
também, e foi andando. E era tudo sIlêncio na saleta de costura; não se ollvia mais do que o pli(-p!ic-p!ic-pli[ da agulha
no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no
quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestIr-se, levava a agulha espetada no
corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e plLxava a um lado ou outro,
arregaçav'a daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:
- Ora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elcgância~ Quem é
que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio
das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não dIsse nada; mas um alfinete de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre
agulha:
- Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vaI gozar da vida. enquanto aí ficas na
cdLxinha da costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
ConteI esta história a um professor de melancoliJ que me disse, abanando a cabeça: - T;ullbt'm eu tenho servido de
agulha a muita linha ordinária'

52 --- TEU E I A LITEHÁHI!\


"Um apólogo", conto de Machado de Assis, apresenta-nos a seguintejabula: Um narrador conta
a seu professor a história de uma disputa entre uma agulha e uma linha para definir quem era a mais
importante. A agulha provoca a briga, ofendendo a linha. Esta reage, mas, em certo momento, cala-se
e concentra-se no trabalho que ambas, manipuladas por uma costureira, faziam: o vestido de baile de
uma baronesa. A discussão cessa até o dia do baile. Quando a costureira termina os arremates finais
no vestido, a linha humilha a agulha demonstrando-lhe que é ela quem vai ao baile enquanto a outra
voltará para a caixinha de costura. A agulha cala-se e, depois, recebe um conselho de um alfinete. O
professor, ao ouvir tal história, fú um comentário no qual compara-se à agulha. Há, como-se pode ver,
duas histórias entrelaçadas no conto de Machado, mas a mais importante é a da disputa e.ntré a agulha
e a linha. Como elas estão animizadas, isto é, apresentando atributos humanos, estamos di~nte de um
tipo específico de conto: o apôlogo (conto maravilhoso protagonizado por objetos).
O conflito dramático (íntriga) do te:\.1:o pode ser definido de dois modos, complementares: Insegurança
x Autoconfiança ou Trabalho x Parasitismo Social. Podemos definir como tema o Opo'rtunismo, já que
ele é capaz de englobar a totalidade do conflito dram.ático. Poderíamos, também, afirmar que o tema
é: o Parasitismo Social, que também engloba a totalidade da intriga. Os principais motivos ligados ao
tema são: a ambição, a inveja, a vingança, a arrogância, a astúcia, a sobriedade, a esperteza, a tolice, as
diferenças sociais, a vaidade.
As personagem que protagonizam o wt~flito central são a agulha e a linha, por isso classificam-se como
personagens principais. As demais são personagens secundárias, a saber: o alfinete, a costureira, a baronesa, o
narrador e o professor de melancolia. No entanto, note-se que há um paralelismo entre as personagens
protagonistas (agulha e linha) e as personagens secundárias (costureira e baronesa; alunos ordinários e
professor). Esse paralelismo é responsável pela crítica social presente no conto, é o que o fàz um texto
que cumpre o compromisso com o Realismo ao qual se vincula Machado de Assis.
O conflito dramático desenvolve-se na casa da barones:l, que é o espaço principal da narrativa. Os
demais espaços, todos secundários, são: a sala de costura, o salão de baile (simples referência) e a
caixinha da costllreira. O ambiente dominante no espaço principal é de tensão. conflito, agressividade.
Como só podemos perceber o ambiente por meio das ações das pcrsonagcns, a ambiClltação presente
no texto é dissimulada.
O nó ocorre logo no início da narrativa, nas primeiras falas da agulha e da linha, quando a
primeira provoca a segunda, e contínua a procurar briga, mesmo com a resposta reservada da outra.
O desenvolvimento do conflito chega ao auge no dia do baile, quando a linha vinga-se da agulha ao
perrsuntar-lhe quem é que, afinaL vai ao baile. Nesse momento, ocorre o clímax da narrativa, pois
o conflito atinge o seu grau m;L'Cimo. Note-se, no entanto, que esse clímax liga-se imediatamente
ao deifecho da narrativa: a linha v;li ao baile e a agulha, humilhada, ganha um conselho em tom de
repreensão do alfinete de cabeça grande.
O narrador do conto vale-se da 3' e da 1a pessoas do discurso. Predomina, no entanto, a 3a pessoa, no
modo corno ele organiza a história da agulha e da linha e, por isso, ele classifica-se, nesse caso, como
r
observador. Quando, no final, o narrador utiliza a pessoa, incluindo-se na narrativa que nos conta, ele
classifica-se como participante.
O telllpo cronológico presente na narrativa é linear, ou seja, organiza-se segundo a concepção
dominante de tempo (passado-presente-futuro), e marca-se por relações de causa-e-consequência.
Não -Se pode dizer que o tempo psicológico tenha destaque nesse texto, já que as personagens principais
são planas e as secundárias são planas-tipo. No entanto, pode-se depreender uma psicologia e um tempo
das ações da linha e da agulha. A linha tem como traço psicológico dominante a paciência - o que faz
com que o tempo psicológico de suas ações marque-se por tal elemento. A agulha, por sua vez, tem
como traço psicológico dominante a agressividade - o que faz com que o tempo psicológico de suas
ações marque-se por tal elemento. Paciência sugere segurança, calma, ritmo comedido; agressividade
sugere, nesse caso, arrogância, irritação, ritmo veloz, insegurança.
As principais figuras de linguagem desse conto são: a personificação (evidente na animização da
agulha e da linha), a comp:tração (dedos da costureir:t - galgos de Diana), a onomatopéia (plic-plic-plic)

TII')M/\'\ B()!"i'~ll.1 / Li;(-1,\ OSl\!~I\ ZllllN (lllll;,'\Nfl/\!)(ll,r<.;) - 53


r,CPR A N C O J L' N I () R

f e, sobretudo, a ironia (que domina o texto do início ao fim, estabelecendo-se nas falas da agulha e da
. linha, e, também, na associação entre a posição e o comportamento de ambas e seus correspondentes na
costureira e na baronesa). A sutileza crítica de Machado de Assis fica evidente quando percebemos que
tal associação visa, na verdade, criticar a estrutura socioeconômica e política da época, baseada numa
brutal diferença de classes sociais. O grande parasita social do conto tem uma presença discretíssima:
é a baronesa, que usufrui do trabalho de todas as demais. Desse modo, pode-se notar que Machado
usa de elementos pertinentes ao conto maravilhoso como estratégia para, na verdade, fazer um texto
realista. "

Exemplo 3: Leitura, análise e interpretação de "domingo no parque", de Gilberto Gil (In: GÓES,
1982)

domingo no parque

Gilberto Gil

() rei da brincadeIra - ê josé o sorvete e a rosa - f: José


o rei da confusão - ê joão a rosa e o sorvete - f: josé
um trabalhava na feira - ê josé oi dançando no peito - ê josc'
outro na construção - ê joão do josé brincalhão - t: josé
o sorvete e a rosa - ê José
a semana passada no fim da semana a rosa e o sorvete - ê josé
joão resolveu não brigar oi dançando na mente - ê josé
no domingo de tarde saiu apressado do José brincalhão - ê josé
e não foi pra ribeira jogar julí:ma girando oi girando
capoeira oi na roda gigante - oi girando
não foi pra lá oi na roda gigante - oi girando
pra ribeira o armgo João - João
foi namorar
o sorvete é morango é vermelho
o josé como sempre no fim da semana oi girando e a rosa - (' vermelha
guardou a barraca e sumiu oi girando girando - olha a tlca
foi fàzer no domingo um passeio no parque olha o sangue na mão- ê josé
lá perto da boca do rio juliana no chão - ê josé
foi no p;rque que ele avistou outro corpo caído - ê josé
juliana seu amigo joão - ê josé
foi que ele viu
juliana na roda com joão amanhã nâo tem feira - ê josé
uma rosa e um sorvete na mão não tem mais construção - ê joão
juliana, seu sonho, uma ilusão não tem mais brincadeira - ê josé
juliana e o all1.~go joão não tem mais confusão - ê joão
o espinho da rosa feriu zé
e o sorvete gelou seu coração

domingo no parque é a letra de uma famosa canção tropicalista da música popular brasileira. Vamos,
neste breve estudo, nos ater apenas à narrativa de crime passional que ela encerra.
Um feirante brincalhão mata, por ciúme, um casal de namorados num parque de diversões em
pleno domingo - eis, sinteticamente, a flbula de domingo no parque. Para sermos mais precisos, no
entanto, organizemos afábula da seguinte maneira: José, feirante brincalhão, mata a facadas o capoeirista
João e sua namorada Juliana num domingo, em frente à roda gigante de um parque de diversões.
As personagens do texto são João, José e Juliana. Em relação ao grau de participação no
desenvolvimento do conflito dramático, João e José classificam-se como principais e Juliana como

54 T E () [( I l\ LITERÁRI!\
-----~ o P E fi A U O II , , , "t [L [ l LI l< 1\ D \ C; ,\ [I P ,\f [ \' ,\

secundária,já que ela, embora seja essencial para que o triângulo amoroso se configure, não fàz mais
do que ocupar a posição de objeto da disputa entre José e João.
Quanto ao grau de densidade psicológica, João e Juliana são planas e José é plana com tendência
a redonda, pois, além de nos surpreender com uma reação violenta motivada pelo ciúme, é a única
personagem cuja psicologia é enfatizada pelo texto, como se pode notar na terceira e na quarta estrofes,
em que uma breve utilização do foco narrativo onisciência seletilJa pelo narrador põe em relevo as
percepções, pensamentos e sentimentos dessa personagem diante do casal de namorado~ que cle vê
na roda gigante. '
O narrador, em "domingo no parque", é predominantemente observador, narra em 3" pessoa, não
participa diretamente do conflito dramático nem da história narrada e n;lO emite opiniões e;ou juízos
sobre a história ou as personagens. Isso confere ao texto um quê de objetividade que o aproxima
levemente do relato jornalístico. O narrador, entretanto, usa de dois focos narrativoS' para organizar
a sua narrativa: narrador onisciente neutro e onisciência seletiva. O primeiro foco é o que predomina no
texto, enfatizando a neutralidade do narrador e sua distância em relação aos fatos narrados. O segundo
foco manifesta-se na terceira estrofe e nos versos de 1 a 3 da quarta estrofe, aproximando o leitor
da perturbação mental e emocional de José, tomado pelo ciúme diante da visão de João e Juliana
namorando na roda gigante. Note-se:

---- ------ ,----- ,-,---- -----­

o sorvete e a rosa - ê josé


a rosa e o sorvete - ê josé
oi dançando no peito - ê José
do josé brincalhão - ê josé
o sorvete e a rosa - ê josé
a rosa e o sorvete - ê josé
oi dançando na mente - ê José
do josé brincalhão - ê josé
juliana girando - oi girando
oi na roda gigante- oi girando
oi na roda gigante - oi girando
o amIgo João - joão

o sorvete é morango - é vermelho


oi girando e a rosa - é vermelha
oi girando girando - olha a faca

Nesse trecho, os signos remetem simultaneamente a dados externos e internos, ou seja, aos
detalhes que José vê (os namorados, a roda gigante, a rosa, o sorvete de morango) e ao ciúme que
progressivamente cresce dentro dele. A repetição cria um efêito de circularidade, que tanto marca o
brirar dos namorados na roda gigante como a perturbação emocional que mistura amor e ódio ao ciúme.
A ênfase conferida à cor vermelha intensifica o conflito dramático, pois se presta tanto à simbolização
do amor como à simbolização do ódio.
O conflito dramático (íntriga) é polarizado por José e João, que protagonizam a rivalidade masculina
no triângulo amoroso que tem Juliana como vértice e objeto de desejo. Essas personagens encarnam
os principais motillos (unidades temáticas mínimas) do texto: Ciúme x Amor.
Há, em princípio, três possibilidades de tema:
a) o ciúme - uma vez que é o motivo que rege as ações. de José, o anti-herói da narrativa;

T! I ( 1 \,1 ,-\ -" B t ) N 1',' !t._ I I L li (_ I '\ ()" '\ :'~ 1\ Z () 1 I ~-J (() f{ \;:\ N 1/ :\ t) () \~! ,,) 55
q>H ANca JUNJOH

I
1
! b) a morte - uma vez que é o motivo que se liga tanto às ações de José como ao destino de João
e Juliana;
c) o amor - uma vez que é o motivo que se liga às principais ações das personagens.
Como o tema se define pela capacidade de abarcar a polaridade que caracteriza o conflito dramático,
também podemos dizer que seja o crime passional. Uma vez definido um tema, as demais unidades
temáticas passam imediatamente à condição de motivos vinculados direta ou indiretamente a este. Se,
por exemplo, o tema definido for o ciúme, o amor, a morte e o ódio tornam-se os motivos ass9ciados
a ele.
Os motivos (unidades temáticas mínimas) de domingo no parque são: amor, ódio, rivalidade,
competitividade, agressividade, violência, desejo, delicadeza, carinho, alegria, despreocupação,
fragilidade, descontrole, morte, tristeza. Alguns, como o amor, a violência, a morte, são ess~l1ciais para
o desenvolvimento do conflito dramático. Já outros, como a delicadeza c o carinho, que se vinculam
a Juliana e João quando estão namorando, embora importantes, ocupam uma posição secundária em
relação ao desenvolvimento do conflito dramático.
O nó da narrativa ocorre quando José se depara, no parque de diversões, com João e Juliana na
roda gigante e percebe que eles estavam namorando:

foi no parque que ele avistou


juliana
foi que ele viu
juliana na roda comjoão
uma rosa e um sorvete na mão
juliana, seu sonho, uma ilmJo
juliana e o amigo joão
o espinho da rosa feriu Zé
e o sorvete gelou seu coração

Tal visão dá início à reação passional de José, que se desenvolve nas estrofes 4 e 5, explodindo
quando ele puxa a 6ca e mata João e Juliana - trecho que caracteriza o clímax e o deifecho da narrativa:
olha aJaca/ olha o sangue na mão - êjosé/juliana no chão - êJosé / outro corpo caído - êjosé/seu amiy,o]oão - êJosé.
Note-se que o clíma.x, momento que caracteriza o auge irresolvido da tensão e das e)...'Pectativas geradas
pelo conflito dramático, ocorre em olha aJaca/ ollw o sa/lgue na mão - êJosé, ao passo que o desfecho, que
caracteriza a resolução do contlito e seus desdobramentos finais, ocorre nos versos finaIS dessa estrofe
e na estrofe seguinte:

Juliana no chão - ê josé


Outro corpo caído - ê josé
seu amigo João - ê josé
amanhã não tem feira - ê josé
não tem mais construção - ê João
não tem mais brincadeira - ê josé
não tem mais confusão - ê joão

56-TEORIA I.ITEHÁRIA
-_._~ o P F R A [) O R E S n E I E I T U l{.~ Il A N A R R .~I [V.\

o tempo cronológico lírIear é dominante na narrativa. A história é construída com começo, meio e fim,
organizados linearmente, ou seja, mantendo as relações de causa-e-consequência naturais entre um
episódio ou ação e seus desdobramentos. Além disso, nota-se uma distância entre o tempo da narração
e o tempo da história narrada, situada num passado em relação àquele que narra (o narrador). Um
dado importante é a referência ao domingo, dia da semana dedicado ao descanso e ao divertimento.
O tempo psicológico, vinculado ao foco onisciência seletiva, faz-se presente com veemência na terceira e
quarta estrofes, que destacam o estado passional de José, criando o efeito de uma máxima aproximação
entre o leitor e a subjetividade da personagem. ~. .

O espaço principal é o parque de diversões perto da boca do rio e, nele, a roda gigante é o
elemento mais importante. Há uma referência a outros dois espaços - a feira ea construção -,
que são secundários. A roda gigante passa, no texto, da denotação (referência física) à conotação
(referência simbólica e psicológica). Como isto acontece? Vejamos: ela remete, por associação
direta, à capoeira que João sabe e gosta de lutar, à circulação dos afetos positivos e negativos (amor
e ódio) existentes no triângulo amoroso, à confusão dos corpos no momento do ataque de José e
à própria vertigem de José em sua crise de ciúme diante da visão do casal de namorados. O texto,
por sua vez, reforça isso ao marcar-se pela circularidade construída por meio de elementos que se
repetem nos versos.
O ambiente sofre uma alteração progressiva ao longo da narrativa. Na situação inicial, de
apresentação das personagens (estrofes 1 e 2), é tranquilo, rotineiro. No parque, antes de José ver o
casal de namorados na roda gigante, é harmônico, alegre. A partir do nó, torna-se tenso, conturbado,
agressivo. Na situação final é melancólico, triste. A amlJíentação é dissimulada porque os ambientes vão
sendo definidos a partir das ações das personagens, ou seja, são essas ações que definem o "clima" que
se estabelece entre as personagens nas várias situações do texto.
Note-se que o crime passional cometido porJosé ocorre num espaço cujo ambiente, normalmente,
se marca pela alegria e pela descontração. O ataque com a faca e o assassinato do casal de namorados
destoa do espaço e do ambiente usuais de um parque de diversões.
A dramaticidade do conflito se dá pelo fato de que o crime passional ocorre em pleno domingo, dia de
descanso e de relaxamento das tensões cotidianas, e em frente à roda gigante de um parque de diversões,
que estão usualmente ligados aos motivos de prazer, divertimento, alegria, despreocupação.
Certos detalhes ganharão, no texto, uma dimensão simbólica importante. Os epítetos das
per~onagens masculinas que denotam características psicológicas habituais contrastam com as ações
que eles desenvolvem no conflito dramático criado pelo triângulo amoroso: José, o rei da brincadeira,
revela-se violento e assassino; João, o rei da conjúsão, revela-se amoroso e delicado com Juliana, além de
frágil ante a violência de seu rival.
Temos, também, a rosa e o sorvete que Juliana carrega na mão. Além de representarem a relação
amorosa estabelecida entre ela e João, esses elementosjá prenunciam, pela cor vermelha que apresentam
ou sugerem, o sangue na mão deJosé. O sorvete de morango, a rosa e o sangue nos remetem diretamente
ao vermelho, cor que sintetiza o tema e alguns dos motivos importantes da narrativa: o amor, a paLxão,
o ciúme, o ódio, a violência, a morte, o crime.
Por fim, destaque-se o fato de que os nomes das personagens começam com (J) e são grafados em
letras J11inúsculas - o que cria uma identidade entre João,José e Juliana, reforçando os laços de amor e
ódio presentes no triângulo amoroso e, também, demarcando a sua posição social subalterna.
domingo noparque marcou,j untamente com Alegria, alegria, de Caetano Veloso, o início do movimento
tropicalista na música popular brasileira em 1966-67. A canção de Gilberto Gil caracteriza-se

por sua construção cinematográfica em que, após situar as personagens e descrever o cenário
onde a ação se desenrolará, o compositor passa a narrar os fatos, empregando a técmca de
montagem em pequenosjlashcs. Além de letra e melodia, o compositor junta ruídos, palavras
e gritos sincromzados às cenas descntas, evocando realisticamente um parque de diversões
(GÓES, 1982, p. 26).

Tlll"_\!\:-' B'\:-Ji'''!i'!.I LUCI:\ O.',:\Nt\ '/,()lfí\ ({)R(,'\Nr/.,\I)nl'E~) --- 57


«f R A N C O J U N J O R

1
!I CONSIDERAÇÕES FINAIS
!

Apresentamos, neste capítulo, uma síntese dos principais conceitos operatórios para o
desenvolvimento da leitura e da análise do texto narrativo. Demos ênfase a uma abordagem de base
formalista-estruturalista em relação a tal instrumental de leitura em razão da função que, no todo deste
livro, este capítulo pretende cumprir. Destacamos, no entanto, o fato de que tal viés de abordagem do
texto narrativo é apenas um dos muitos possíveis, já que toda teoria pressupõe um método a p:;l.rtir do
qual sua utilização e seus resultados se tornam possíveis. Logo, o leitor encontrará outros camirrhos
para o desenvolvimento da análise descritiva e da análise interpretativa do texto narrativo se buscar
informações em outras vertentes de teoria da literatura.

REFERÊNCIAS

AGUIAR E SILVA, V M. Teoria da literatura. 8. ed. Coimbra: Almedina, 1988.

BANDEIRA, M. Tragédia brasileira. IIl: ____ Poesia completa e prosa. Rio ele J :lneiro: Nova Aguillar, 1985.

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GENETTE, G. Discurso da narrativa. Lisboa: Vega, 1979.

GÓES, F. Literatura comentada: Gilberto Gil. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

LEITE, L. C. M. O foco narratifJo. São Paulo: Ática, 1985.

LINS, O. O espaço romanesco em Lima Barreto. São Paulo: Ática. 1976.

LODGE, D.Aforma naficção: guia de métodos analíticos e terminologia. Tradução Maria Ângela Aguiar. Cadcrnlls

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TOMACHEVSKI, B. Temática. In: EIKHENBAUM, B. et aI. Teoria da literatura: os fórmalistas russos. Porto

Alegre: Globo, 1976, p. 169-204.

58 rLUR1A LITEHÁRIA
OPERADORES DE

LEITURA DA POESIA

Clarice Zamonaro .Cortez


Milton Hermes Rodrigues

NATUREZA E EXIGÊNCIAS DA POESIA

Quandonosdizem quea matéria-prima do poeta é o "sentimento" (PAIXÃo, 1984, p. 14), quea poesia
é o "estado emocional ou lírico do poeta" (AMORA, 1973, p. 74), somos levados a crer, no primeiro
momento pelo menos, que o interesse imediato da poesia não é a representação direta da rcalidade física,
histórica, que a leitura de poesia tem mais a ver com a busca de um estado, de uma emoção específica,
não distanciada de fatores estéticos e intelectivos. Essa emoção, é certo, alimenta-se de algum modo na
realidade, que é, afinal, resultado de institucionalizações, de ideias. Esse entendimento ligeiro de poesia
como comunicação de um "estado psíquico", na terminologia de BousoÍ1o (MOISÉS, 1982, p. 403),
define bem o interesse maior desse gênero literário: propor ao leitor uma experiência cognitiva mais
(digamos) imaterial, pedindo-lhe que se aproprie, até despudoradamente - para aceitar ou para recusar
-, do "sentimento", do "estado psíquico" que ela carrega, ainda que mais ou menos fingidamente. Ler
um poema seria também buscar o "estado poético do poeta, a fim de que ele suscite no leitor outro ou
similar estado poético", conforme Ângelo Ricci (apud DUFRENNE, 1969, p. xvii). EnfIm, a criação e
a leitura de poesia orientam-se, em termos amplos, menos pela busca de uma realidade (flsica, social)
do que pela demanda de um estado, de uma emoção particular. A mcnsagem poética, embora possa
conter um fato (ou fatos narrativos), busca ainda, às vezes mais do que outra coisa, acionar estados,
vivêJ?-cias, ideias, sutilezas. "O poeta é doador de sentido", diz Bosi (1983, p. 78).
Não se trata, pois, de negar à poesia força representativa, mas de destacar, pelos recursos que
normalmente aciona, suas proposições suplementares. Essa mensagem (de "sentido") costuma
abrigá~ nos pormenores fIgurativos (e em outros estratos do poema) segundas e terceiras intenções. A
metaíorização está no horizonte, em maior ou menor grau. Por isso soa impróprio invocar a questão
da inverossimilhança (principalmente a externa) no trato da poesia. Ela tem um modo de ser, uma
natureza diferente da que tem a prosa. Não se diz à toa que os melhores tradutores de poesia são
os poetas, talvez porque têm maior facilidade na captação de estados e na busca de seu correlato na
língua de chegada. Mesmo assim, há quem insista, até com certa razão, que a poesia é intraduzível
porque demanda estados e sensações nem sempre facilmente tangíveis. Se nossa inclinação imediata,
em fàce da prosa, é buscar a realidade representada, diante da poesia essa tendência precisa ajustar-se
aos parâmetros sugeridos pelo poema, ainda que este seja de índole narrativa. Neste caso, não se trata
~ORTEZ E RODRIGUES

I apenas e necessariamente de reconhecer no poema, por si só, ações e atitudes de algum personagem,
mas sim de apreender também um estado, ou uma emotividade estética. Uma outra significação se
instala na ação ou atitude descrita.
O contato com a poesia, seja ele de fruição espontânea, seja com intenção analítica mais alentada,
requer um ajuste do espírito e da inteligência para uma experiência emotiva e intelectiva específica,
intensificada. Que ativemos a intuição, que elaboremos a sensibilidade. Em alguns casos, a poesia chega
ao extremo do hermetismo, ao nonsense aparentemente gratuito, como notamos em poemas surrealistas.
Um leitor mais afoito diria que poemas assim concebidos buscam mais testar sua paciência... ,- ~
O poema funciona, de fato, como uma caixa de mil ressonâncias, onde pulsam cada fonema,
cada palavra, cada frase. Como objeto estético, haverá normalmente de "singularizar", de estilizar
seu recado, para melhor agilizar, explorar e segurar nossos sentidos. Sirva de exemplo "Mocidade e
morte", de Castro Alves. O lamento do poeta, distribuído em sete conjuntos (moduladq"cada um,
numa oitava e num dístico, como se vê logo adiante), testifica um percurso emocional, na descendente,
que vai do ânimo inicial ("Oh, eu quero viver [ ... ]"), passa pela consciência do inevitável ("E eu sei que
vou morrer...") e chega ao desânimo total, à entrega final ("E eu morro, ó Deus!..."; "Adeus, vida!" ...).
Entre um extremo e outro, entre, de um lado, o louvor da natureza, da liberdade, da mulher, do
talento pessoal, da glória vindoura, e, de outro lado, a voz da morte, o lamento do "triste Ahasverus",
a deposição de toda esperança; entre um ponto e outro, enfim, floresce uma exuberante figuração.
Essa antítese maior, geral (viver/morrer), pulsa também na maioria dos conjuntos, com os dísticos
rebatendo enfaticamente todo o ânimo positivo, também enfático, das oitavas. Essa ênfase brota da
figuração, como vemos no conjunto inicial, onde se destacam o pleito espacial (libertário) e a fruição
dos sentidos.

Oh! Eu quero viver, beber perfumes


Na flor silvestre que embalsama os ares;
Ver minha alma adejar pelo infinito,
Qual branca vela n'amplidão dos mares.
No seio da mulher há tanto aroma ...
Nos seus beijos de fogo há tanta vida ...
- Árabe errante, vou dormir à tarde
À sombra fresca da palmeira erguida.

Mas uma voz responde-me sombria:

Terás o sono sob a l;ijea fria (CASTRO ALVES, 1976).

No verso "Qual branca vela n'amplidão dos mares" a assonância do /a! reforça tanto a imagética
cromática (a "branca vela") quanto o sentido de abertura, de amplidão. A esse pleito espacial vem
juntar-se o apelo sensorial intensificado por sinestesias ("beber perfumes", "beijos de fogo", "sombra
fresca"). A ideia de calor ("fogo") que conota prazer e vitalidade, também ressoa na "tarde", num
contexto em que outra vez se intensifica a aspiração pelo espaço aberto, amplo, livre. Todo esse
pleito libertário vital vai esbarrar no dístico que se segue: "Mas uma voz responde-me sombria:/
Terás o sono sob a lájea fria". A si nestes ia aqui (voz sombria) remete à ideia de clausura, de túmulo.
Agora a ideia de sombra é negativa, interligando-se bem, dentro do anúncio negativo, com a ideia
de sono-91orte. Também o sentido de "fria" contrapõe-se ao de "fresca", negando aquela abertura
espacial. Essa reversão semântica a partir de vocábulos quase idênticos talvez revele o quão próximos
estão a vida e a morte. A morte, de visibilidade imediata, começa a ganhar maior sentido dramático
(e estético) quando percebemos no jogo antitético - oitava versus dístico - a sonegação, ao fim, de
claridade, de calor. A noção de fechamento espacial intensifica-se no dístico com o advento da
frialdade, para o que também contribui a assonância, na rima, do fonema/i!, sujeito a ajustar-se, pela
nossa sensibilidade, à ideia de frio, tanto que Augusto dos Anjos aproveitou essa relação sonoro­
semântica em alguns versos, como neste: "Fazia frio e o frio que fazia [ ... ]". Assim, em apenas dois
versos lacônicos opera-se a contradição do longo pleito vital (sensorial e espacial) do início, gravado
em oito versos. O desejo e sua negação - expressões de estado, de ideias - adquirem dramaticidade
60 _. T E o R I A LITERÁRIA
---~- ~ o l' l I! .\ II O R E;. D lo L E I T U R A D A P O E S r A

maior em razão da qualidade informativa, da ênfase estilística (estética) colocada à disposição da


sensibilidade e da intuição do leitor.
A natureza da poesia se define, pois, por cobrar do leitor um olhar especial, arisco, intensificado,
minucioso, algumas vezes necessariamente ousado. Que esse leitor force a visibilidade, no poema e
em si, de experiências sensíveis e emocionais amortecidas, indefiníveis às vezes; que ultrapasse a pura
intelecção, que calibre o olhar para um enfrentamento mais sugestivo de imagens obscuras, resistentes
à compreensão imediata. Algumas situações, figuradas ou não, recusam, de fato, a interpretação com
crivo apenas no referencial. Lemos no poema ''Aniversário'', de Fernando Pessoa: "O'-q~e eu sou
hoje é como a umidade no corredor do fim da casa/pondo grelado nas paredes[ ... ]". Não basta aqui
desmontar mecanicamente a comparação. A imagética de um poema, que reclama, é certo, em graus
variados, uma representação da realidade, nem sempre se resolve, para nossa compreensão, por uma
operação apenas intelectiva. Exige muitas vezes, pelo intrincado de sugestões, uma participação decisiva
da intuição, da afetividade, da experiência. Podemos enfrentar desde sugestões imag€ticas inusitadas,
tensas ou "difíceis", até a informação direta, franca, livre de figuração, de "efeitos", mas também
exigente. Num texto que se apresenta como poema, a informação seca, sem adereços figurativos, sem
rima, sem regularidade métrica, não raro suscita desconfiança nos menos avisados. Avancemos um
pouco mais nessa questão, considerando que, ainda aqui, perseveram na poesia uma natureza literária
especial e uma exigência especial.
Em poemas modernistas, o gosto do prosaico e o vezo do coloquialismo levam a uma espécie
de esvaziamento figurativo, ao desprezo pela rima, pela métrica. O leitor impaciente, acostumado
com a poesia tradicional, dirá logo que isso não é poesia. Tristâo de Athayde, embora reconhecesse
a poesia modernista, chamou os poemas de Poesia pau-brasil (Oswald de Andrade) de "patacoadas"
(TELES, 1980, p. 347). O poema "seco" incomoda. O esforço analítico, duvidando às vezes da própria
condição poética do texto, se obriga à explicação, nem sempre lograda, daquilo que apenas a intuição e a
sensibilidade poderiam arrancar de certas imagens, ou sugestões de imagens. O olhar atento, insatisfeito
com a e:x-posição de superfície, debate-se com a literalidade nua e crua, descobrindo qualidades em
poemas aparentemente primários. Vejamos isso, com mais vagar, tomando aquele "Poema tirado de
uma notícia de jornal", de Manuel Bandeira, incluso em Libertinagem, de 1930:

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem
número.
Uma nOIte ele chegDu no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atIrou na lagoa Rodngo de Freitas e morreu afogado (BANDEIRA, 1993).

O poema é todo narrativo, supostamente decalcado dejoma!, que é um meio informativo comprometido
maIS com o referencial, com a denotação. Podemos admitir, de início, que o autor coloca em prática o
ideal. moJemista de conferir poeticidade a fatos da realidade cotidiana, como pede Oswald de Andrade,
no 1\1anifesto da Poesia Pau-Brasil, de 1924. O jogo livre entre versos longos e curtos, que incomoda, é
ousadia de índole modernista. Também é modemista a opção pelo vocabulário simples, pela sintaxe direta,
liberta: Bandeira revelou noutro poema da mesma obra que estava farto do lirismo burocrático, escravo
dos manuais. Seu "Poema tirado de uma notícia de jornal" vincula-se, pois, pelo assunto (de jomal) e pela
forma, a uma estética, a um movimento literário. O tratamento aparentemente frio do suicídio faz ainda
lembrar o pedido modemista de Mário de Andrade no prefácio da revista Kla.xon (primeiro número), de
extirpação das glândulas lacrimais.
Essa primeira mirada nos permite começar a afastar uma eventual impressão de gratuidade ou de
superficialidade criativa. E essa impressão tende a desaparecer na medida em que, abrindo a sensibilidade
para as minúcias, para as ressonâncias poemáticas, nos pegamos descobrindo significações para além
da literalidade. Qualquer iniciante no jornalismo sabe que uma reportagem sobre acontecimentos

Tf!()!.,.t:\\ R(l."-JN!('j / LUCI.'\ O\I\Nr\ Zor IN (O!U;ANJ/AiJORE\) - 61


~o R TEZ E RODIlIGUFS

'I'

deve responder a algumas questões básicas: Quem? O quê? Quando? Onde? Como? Por quê? O
poema deixa em suspenso a última pergunta, ou é obtuso em relação a ela. E o motivo da morte acaba
sendo, de fato, o primeiro, talvez o principal incômodo para a inteligência e a sensibilidade do leitor.
Uma mirada ligeira descobre nesse fato um acaso, uma ironia do destino, pois o sujeito mostrava­
se antes aparentemente ~ustado ao mundo (trabalhando, divertindo-se). O mergulho na lagoa seria
apenas outra etapa do momento festivo. A morte inesperada, injusta, coloca-nos diante do trágico.
E assim o poema se resolveria, para nossa sensibilidade, com um grande mal-estar, pois expõe o ser
humano desarmado e impotente ante os desígnios do destino. Mas se nos aproximarmos l!lais do
poema, se repararmos bem que João Gostoso "se atirou" na lagoa, somos levados a crer que ele quis
morrer. E essa ilação pode redefinir os motivos da morte. Reparamos, por exemplo, que a situação
social do "personagem" se define pela carência. O apelido "João Gostoso" é certamente irôniéo, de
amesquinhamento da figura física. A profissão exige apenas força bruta, a co notar poucaou nenhuma
escolaridade, além de que, pela época, ausência de amparo previdenciário. Morar no morro era, de
certa forma, estar exilado, tanto mais que esse morro se chama "da Babilônia", lugar de padecimento,
de escravidão. A figura do pária social se completa naquele "barracão sem número", expressão que
define a pobreza não contabilizada, o homem afundado na anonimidade. Não se cogita aqui de uma
Sião redentora, da esperança que fizera os hebreus sobreviverem no exílio. A retórica da carência
se completa. Ir a um bar certa noite - beber, cantar e dançar - resultaria da extrema desilus~o. E
morrer na lagoa Rodrigo de Freitas - reduto dos remediados - soa ironicamente, parecendo coroar
uma derrota social. Assim, a leitura mais concentrada, inimiga da superficialidade, faz com que aquilo
que no poema apenas denotava acabe também conotando. O "morro da Babilônia", por exemplo,
transformou-se numa metáfora. No final, pensando no conjunto de informações, podemos dizer
que o poema abriga uma intenção, um "sentimento", que é o de fraternidade, o de solidariedade
para com os esquecidos, os oprimidos. Para reforçar essa conclusão, invocamos a presença forte, na
poesia de Bandeira, do tema da humildade. Ao resgatar para a literatura a notícia dessa morte, que o
jornal (pela sua rotatividade e pela natureza de sua linguagem) empurraria automaticamente para o
limbo, Bandeira "desautomatiza" o acontecimento, como que o eterniza, conferindo dignidade ao
homem comum, esquecido, invisível. Um leitor pessimista talvez dissesse que o poeta, reparando a
vida mesquinha e dissoluta do carregador, achou melhor, para corrigir tanto desacerto, que o sujeito se
matasse. O poeta teria analisado, julgado e sentenciado. Essa interpretação, que vê o poeta como uma
espécie de carrasco, só pode prosperar - e por isso ser válida - se o poema é tomado isoladamente,
porque o conhecimento de certas tendências na poesia de Bandeira a inviabiliza.
E se; afinal, a explicação social para o suicídio não satisfaz, podemos arriscar uma visada metafísica,
tomando João Gostoso como um homem que, por mais simplório que seja, descobre de repente
a inutilidade de todos os gestos, pensamentos e sentimentos. Imerso no tédio existencial, decide
matar-se. Assim entendemos, frise-se, por que o poema, e o poeta por ele, favorecem também essa
impressão. A rapidez narrativa, a linguagem denotativa (de superfície) e a ausência (imediata) de juízos
de valor como que abrem esse vazio metafísico, destacando, para nossa sensibilidade, o fato morte
e a sua modalidade talvez mais trágica, a autoimolação. A morte, ou a "indesejada das gentes", foi
sempre um fantasma para Bandeira, compondo uma das linhas temáticas mais nítidas de sua poesia.
Disse cérta ocasião, quase estoicamente, que, quando ela chegasse, encontraria "lavrado o campo, a
casa limpaj a mesa posta". No poema que abordamos, o estoicismo é apenas aparente. O apelo final,
de qualq:L1er modo, é direto: Por que esse homem, ou qualquer outro, se mata? O poema sugere
uma resposta, mostra-nos um processo, um ritual que conduz a tal desfecho. Primeiro, o homem aí
interage socialmente, cumpre papéis: o de divertido (por ser feio, por cantar, dançar), o de trabalhador,
o de morador, o de consumidor (bebendo). A conduta social de João Gostoso, ou de qualquer outro
homem, pode ser encarada como uma tediosa e angustiante repetição do mesmo. Esse sentimento,
que desmobiliza valores altruístas e esvazia o sentido dos compromissos, pode levar ao desespero
metafísico. A opção extremada pelo suicídio é já a anestesia da razão prática, e o bar se transforma num
centro dionisíaco, num espaço ritualístico onde o festim antecede o sacrifício, como ocorria em certas
culturas primitivas. Guardadas as diferenças de explicação entre a situação poemática e a primitiva,
nos dois casos a experiência metafísica da morte, uma constante antropológica, aproxima homens

62 - T E o R J A LITEHÁRIA
_._~ o P E R A f) O R F o !l f L E [ T L R A l) A l' O l S [ ,'.

de tempos e lugares diferentes. João Gostoso é o ser humano. O rito que levará ao autossacritlcio se
define pela euforia, pela movimentação. O homem bebe, canta e dança. A disposição dos verbos, cada
um valendo um verso curto, parece reforçar essa noção de movimentação rápida, de euforia. Depois, o
salto para a morte, o sacrifício. E na água, berço da vida (os psicanalistas talvez dissessem que o homem
retornou ao útero da mãe terra, da mãe-mãe mesmo, dona do abrigo seguro, de onde um dia saíra para
sofrer). Esse suicídio metafísico se colocaria como reação a uma práxis exigente e inútil. Como uma
atitude vingativa e desafiadora, compensaria a pouca ou nenhuma disposição para o combate repetitivo
do cotidiano. "
Parece razoável su por, a essa altura, que a condição poética de um texto não depende necessariamen te
da figuração explícita, de recursos sonoros intensificados. E, mais do que suposição, eyidencia-se
que a revelação do poético depende também, e bastante, da atitude do analista, ql,le deve mobilizar
a inteligência e o espírito para o reconhecimento da natureza especial da poesia, de suas exigências.
Assim torna-se ele mais apto a dialogar com ela tirando melhor proveito. Quando' áplicado a uma
análise mais detida, esse diálogo supõe ainda certo conhecimento técnico-teórico. O que é assonância?
O que pode conotar a presença de versos livres num poema? O reconhecimento dos recursos poéticos
agiliza o ânimo investigativo fazendo nascer ilações e relações importantes. Num quadro de múltiplas
sugestões, a interpretação divergente e a polêmica apenas chancelam o alto índice de variação do olhar
poético, sujeito a todo tipo de interferência (biográfica, emocional, estética, histórica). Pensemos na
distinção entre poesia e poema. Por estranho que possa parecer, há quem descubra ausência de poesia
em alguns poemas, como faz Moisés em relação ao "Vaso chinês", de Alberto de Oliveira, destituído de
subjetividade (1973, p. 57-58). Um amante da poesia parnasiana tomaria essa opinião como herética.
Costumamos associar a poesia à mensagem, à informação que, sendo estética, é também
testemunho de subjetividade. Ela expressa uma emocionalidade inserida numa forma, num invólucro.
Esse invólucro é o poema. Assim, o soneto é um poema e a angústia ou a alegria nele presente é a
poesia. Um é continente; a outra, conteúdo. Em termos bastante ligeiros, diríamos que a poesia é
a parte ideal (imaterial, digamos) e o poema a parte material (palavras, versos, estrofes ...). Ora, se é
verdade que forma pode carrear emocionalidade, resta perguntar: Haveria ausência de subjetividade,
de emoção, no citado poema de Alberto de Oliveira? Costuma-se dizer que cada leitor sente um
poema de modo particular. Que seja, mas é sempre melhor fruir a criação poética reconhecendo
alguns fundamentos técnico-teóricos.
Ensinam os manuais que ler poesia é destrinçar os estratos do poema, o semântico, o sonoro, o lexícal,
o s(ntático e o gráfico (ou visual). No primeiro localizam-se a metáfora, a metonímia, a hipérbole, o
paradoxo; no segundo, o verso, a metrificação, o ritmo, a rima, a aliteração, a assonância, a onomatopeia,
a repetição. O estrato lexical é o lugar do arcaísmo, do neologismo, da repetição vocabular, da sinonímia,
do contraste; o sintático revela o hipérbato, a sínquise, o anacoluto, o encavalgamento; o estrato gr4fico
expõe a visualidade do poema, particularmente dos poemas concretistas, refratários ao verso tradicional
e simpáticos ao grafismo. Ler poesia é, em menor ou maior grau, reconhecer fenômenos como esses,
avaliá-los, sondar seus entrelaçamentos e suas repercussões. Comecemos abordando o verso.

o VERSO
.'

Dito de maneira bastante simplória, o verso é uma linha de poema. Difere da linha prosaica porque
se sujeita, na poesia tradicional, a certa regularidade métrica e rítmica. Seu variado modo de ser impõe
um vasta terminologia. Verso branco é aquele destituído de segmento rimante, verso agudo é aquele
terminado em forma oxítona; verso decassílabo é aquele constituído de dez sílabas. A poesia moderna,
desprezando a regularidade métrica, devotou especial apreço ao verso livre, aquele descompromissado
com a medida dos outros versos do poema, normalmente também livres. Não obstante livre, ele tem
a sua medida, o seu ritmo, pois todo verso apresenta andamento melódico, oscilação entre sílabas

TIIlHvl:\> BUNN1CI / LlJ(:!/\ O>!\:'\JA ZOIIN (UHC/\NIZADORE:-') - 63


~ORTEZ E RODRIGUES

átonas e tônicas. Mas o apuro rítmico intencionalmente buscado se torna mais evidente em versos
situados num contexto de regularidade métrica. Ou seja, versos da mesma medida supõem maior
efeito rítmico, tanto mais expressivo quando rimante.
Houve momentos na história da criação poética em que a regularidade métrica constituía valor
estético por si só. Bom poeta era aquele que sabia dispor em estrofes "linhas" do mesmo tamanho.
Lembremos o Parnasianismo. Olavo Bilac, o poeta que, como diz um verso seu, "trabalha, e teima,
e lima, e sofre, e sua", escreveu com Guimarães Passos um tratado de versificação. Já o modernista
Oswald de Andrade teria ficado aliviado quando, na França, coroaram príncipe dos poetas umJsujeito
que escrevia versos livres, Paul Éluard. Estava liberado, enfim, o verso livre. •
O verso se mede pelo número de sílabas que abriga. Pode ser, na ordem: monossílabo, dissilabo,
trissílabo, tetrassílabo, pentassílabo, hexassílabo, heptassílabo, octossílabo, eneassílabo;decassílabo,
endecassílabo, dodecassílabo (ou alexandrino). Alguns versos recebem nomes especiais: o de cinco
sílabas é chamado de redondilha menor e o de sete, de redondilha maior. Os dois tip~)~ formam
as chamadas "medidas populares", porque preferidos nas trovas, nas estrofes de cunho popularesco.
A literatura de cordel, no Brasil, aproveita bastante essas medidas, também chamadas de "medidas
velhas", porque anteriores ao Renascimento, que conheceu a "medida nova", o decassílabo, trazido
para o universo da língua portuguesa, da Itália, por Sá de Miranda. Vários motivos explicariam a
opção pelas redondilhas: linguagem mais simples e direta; memorização [ícil, com o auxíliô das
rimas; potencial "desafiante", trovadoresco; alcance direto do leitor menos instruído; natureza "leve"
uu popular do assunto; remissão estética e/ou ideológica a quadros medievais. ()utra denominação
estranha à sequência nominativa é ale:,,:alldrino, que identifica o verso de doze sílabas. Vem, como
explica Moisés (1982, p. 512), da canção de gesta francesa, mais diretamente do Roman d'AlexCl/ldrc.
composição "iniciada por Lambert de Fort e continuada por Alexandre de Bernay".

ESCANSÁO

O verso é uma linha de palavra(s) e, visto como segmento rítmico, é uma sequência de síhbas
oscilando entre fortes e fracas. Costuma ser entendido, na sua forma tradicional, como uma linha
medida € ritmada. A apreciação do ritmo pressupõe a aferição da medida, o que, de verso para verso,
viabiliza a impressão sonora da estrofe, ou de determinados segmentos. A contagem silábica de um
verso, ou escansão, exige, como esforço inicial, uma leitura (silenciosa ou não) natural, isto é, que
respeite os acentos normais das palavras. Assim, lemos "contente" como paroxítona (acento forte
na penúltima), e não como oxítona ou proparoxítona. Essa recomendação pode parecer fútil, mas
encontramos com frequência pessoas praticamente amusicais, ou que, intimidadas pela impressão
de que os versos de um poema ditam prévia e artificiosamente sua cadência, perdem muito do senso
rítmico natural. Aconselha-se, pois, para melhor distinção da medida de um verso, que se marque a
cadência da leitura nos dedos, imprimindo mais força na prolação das sílabas fortes.
A contagem silábica do verso, passado esse primeiro esforço natural, exige o conhecimento de
certas licenças, de certos artifícios, presentes principalmente em versos de estrofes isométricas (com
versos do mesmo "tamanho"). Nesse caso, pressupomos que o autor de um poema, ao escolher certo
tipo de verso, ao optar pela medida fixa, tudo faz para não "errar". Se, por exemplo, decidiu-se pelo
verso de sete sílabas - o heptassílabo, ou redondilha maior -, aumentará um verso de seis sílabas ou
diminuirá um verso de oito. Dito de maneira simplória, fazer versos medidos é esticar ou encolher
"linhas" para ajustá-las a um padrão. Para essa operação o poeta serve-se de licenças legadas pela
tradição poética. A análise da poesia, especificamente da métrica e do ritmo, supõe o conhecimento
desses artifícios e, nesse particular, impõe-se uma lição prévia: eles ocorrem principalmente no campo
dos encontros vocálicos. Logo, torna-se penoso, se não impossível, deslindar as licenças (e, no fim,
a métrica) de certos versos sem saber o que são ditongo, tritongo e hiato, tal como a gramática os

64 T F o " I A LITERÁRIA
----~OPE\{AllORES DE LEITURA DA POESIA

entende. E começamos a entendê-los reconhecendo a existência de vogal forte (V) e de vogal fraca, ou
semivogal (sv).

DITONGO, TRITONGO, HIATO

No ditongo constatamos duas emissões, dispostas em dois esquemas: V +sv, como empai: (lAi! ou
-L _); e sv+ V, como em lingüiça (luI! ou _ -1-). O tritongo apresenta três emissões, uma forte (V)
entre duas fracas (sv), como em enxaguou (luOu! = _ ---L- _). Em termos de separação silábica, as
vogais, nesses dois casos, não são, segundo anorma, separáveis. Rei, com um ditongo cy" +sv), é palavra
de uma sílaba só; i-guais, contendo um tritongo (sv+V+sv), possui apenas duas sílabas (iguais). As
vogais do hiato, por sua vez, pede a gramática que sejam separadas. É que temos aqui, agora, o encontro
de duas vogais plenas (V + V), como em país (IAÍ! = ---L- ---L-). O hiato costuma ser mais nítido quando
no meio das palavras. É o que notamos em saara,jaísca, saúde, juízo, palavras trissílábicas. No verso
de sete sílabas "Cordeirinhos manteúdos" (Silva Alvarenga), o ditongo /Ei/ e o hiato /EÚI pedem a
seguinte divisão: Cor-dei-ri-nhos man-te-ú-dos. (Não custa lembrar: só contamos até a últ{ma sílaba
tônica, no caso, o lu/). O verso ''Arqueadas sobrancelhas" (T. A. Gonzaga) contém sete sílabas, pois em
arqueadas aparece um hiato; este, "A saudade faz verter" (S. Alvarenga), também é heptassílabo, pois o
lau! de saudade é ditongo, não separável, como pede a gramática.
Segundo a Norma Gramatical Brasileira (NGB), encontros finais átonos como lia! (história), I
iel (série), lua! (árdua), luel (atenue), luol (vácuo), passam por ditongos ou por hiatos, conforme prevê
sua emissão na língua portuguesa. Propõe Cegalla (1994, p. 27), considerando a proposição da NGB,
que, "não obstante, é preferível considerar tais grupos de ditongos crescentes". Verificamos, porém,
que na poesia as palavras terminadas em /Ia! e em lUa! aparecem quase que exclusivamente como
hiatos. São heptassílabos "Se lhe falta o dia, chora" (S. Alvarenga), "Tua frente a coroar" (idem),
"Da alegria suspeitosa", ''A alegria natura]", todos de S. Alvarenga; são endecassílabos "E os dias do
homem por dores se contam" e "Não são dos invernos as frias geadas", ambos de F. Varela. Palavras
como saia, raio e correio não são tritongos, embora juntando três vogais. Emitindo-as percebemos o
seguinte esquema: V+sv+V (lAiN, lAiOI, /EiOIIAiN, IAiOI, /EiOI = -L _ ---L-). O esquema do
trit\mgo, como vimos, é sv+V + sv L --L _). Então, como resolver, em termos de separação silábica,
saia, raio e correio? Segundo a gramática, seria assim: sai-a, rai-o, cor-rei-o, ou seja, um ditongo seguido
de uma vogal. Cegalla propõe que, em casos assim, temos dois ditongos (sic), como demonstrariam
as emissões: sai-ia, rai-io, cor-rei-io. Em relação à proposição gramatical, é também possível supor o
contrário se repararmos em veia, por exemplo, que o lia! está mais claramente para ditongo do que o I
ei/, de modo que teríamos uma vogal (leI) seguida de um ditongo (lia!). Eis dois versos heptassílabos
de S. Alvarenga com esse tipo de ocorrência: "O receio já pressago" (O re-ce-io já pres-sa-go), "Nem
o raio luminoso" (Nem o ra-io lu-mi-no-so).
Há, por fim, encontros de quatro vogais, não nominados em particular. Se em Uruguai temos
um tritongo (luAi/ = _ -L~, o que temos em uruguaio? Segundo a fórmula de Cegalla (1994,
p. 27), temos aí a junção de um tritongo e um ditongo, sendo assim dividida: u-ru-guai-io. Nada
impedé, contudo, que vejamos nesse encontro vocálico a configuração de um tritongo acompanhado
de uma vogal (luAi-OI). Também teria razão quem visse aí dois ditongos crescentes luA-i OI, solução
mais viável, parece, na leitura de versos. Esse tipo de encontro (tetrongo?) aparece mais no arranjo
entre palavras (quase que exclusivamente), como neste decassílabo sáfico "Porque meu seio é de
ilusões vazio" (F. Varela).
Haverá um momento, na aferição métrica, em que a nós, leitores, caberá descobrir, pelo sincopado
da prolação natural e pela cadência proposta pelo verso, quando um encontro vocálico menos simples se
definirá como uma sílaba métrica, ou mais. Precisamos sim de certo jogo de cintura para o enfrentamento
de seqüências vocálicas esticadas, como neste decassílabo heróico, esquisito de propósito: "E vai aí, iáiá, o
~ORTEZ E RODRIGUES

'", aio ao outeiro". No decassílabo heróico temos acento (forte) frxo na sexta e na décima sílabas, sendo livre,
fora desse esquema, a fIxação dos outros acentos. Logo, para escandir esse verso (forçado), para separar suas
sílabas, o acento na sexta selVirá de referência. Temos, no geral, uma sequência que dispõe um ditongo (vai),
um hiato (aí), dois ditongos siameses (iáiá), um ditongo com uma vogal sobrante (aio), e, fInalmente, três
ditongos (ao e outeiro). A leitura pelo natural, apenas com intensifIcação das batidas, revela logo que a sexta
emissão forte recai no segundo ditongo de iaiá. Então até a sexta temos o seguinte: E/vai/a!Via/iá. Restam
apenas quatro sílabas para se fechar o decassílabo, e elas estão na sequência "o aio ao outeiro". Segundo
a gramática, eis a divisão: o/ai!o/ao/ou/tei/ro. Sete sílabas. Para que possamos "encolher" a sequência,
começamos por admitir que só contamos as sílabas de um verso até a última tônica, e essa recai {m /Jei/.
Para as outras operações de redução precisamos reconhecer a existência de "licenças" específIcas na prática
(e no desvendamento) da metrifIcação. Por exemplo: a vogal final de uma palavra pode fundir-se Gom a
vogal inicial da palaVTa seguinte, formando uma sílaba só. É o que se entende comumente como elisão.
Em "ela está triste" contamos apenas três sílabas porque, além de dispensar a última (ltej), por ser átona.
fundimos o la! final de ela com o les/ inicial de está, ficando assim, na emissão sonora: laes (um ditóngo, pois),
ou, dependendo da leitura, les, sumindo toda a emissão do Ia/. Eis o resultado: e/les/ta/tris/te. Retomando a
sequência fmal do decassílabo,já com essas noções contrárias à gramática, mas válidas, verificamos que seu
encolhimento para quatro sílabas se viabiliza por uma refonnulação dos encontros vocálicos que, embora
respeitando a emissão natural, não respeita a integridade morfológica dos vocábulos. Não deve assustar,
portanto, se, na prolação corrida, descobrimos em "o aio ao outeiro" a sequência vocálica oAioAoOu.
Uma leitura que exagere as emissões fortes, tônicas, revela logo a presença de três sílabas (sendo o lei! de
outeiro, fora da seqüência vocálica, a quarta complementar da seqüência que abordamos), fIcando assim a
divisão silábica do trecho: oAi/oAoIOu/tEi/ro. Um olhar atento descobre certa lógica nessa solução, pois a
sequência vocálica é feita de dois tritongos (oAi, oAo = sv+V+sv) e um ditongo (Ou = V +sv), encontros
vocálicos que, segundo a gramática, não são separáveis. Por outro lado, as licenças afetaram a morfologia
ª
dos vocábulos: o artigo Qjunta-se ao inicial do substantivo aio, e o Q fInal dessa palaVTa se une ao do ª
vocábulo seguinte, ao.
Se a este ponto as coisas parecem complicar-se, lembremos que a separação silábica pela emissão
fonética natural (como primeiro passo) reconhece nossa capacidade espontânea para perceber os fatos
sonoros (gramaticais ou não), sem que soframos com a teoria. Importa conhecer os comandos gramaticais
na medida em que sua fonnulação aproveita essa espontaneidade (repetida); e, por outro lado, na medida
em que podem ser contrariados pelo poeta na elaboração de versos medidos. Assim, quando enfrentamos
um poema, particularmente a métrica e o ritmo, precisamos saber de antemão que pode o poeta afastar-se
desses comandos. Sabe ele que, como pede a nonna, não separamos as vogais dos ditongos e dos tritongos,
e que separamos as vogais do hiato. Respeitará tais mandamentos até que não contrariem seus interesses
métricos. Destaquemos esse até, porque um princípio deve prevalecer, o de que a contradição da norma não
é ordinariamente um mandamento criativo, uma prática sistemática, um recurso premeditado, gratuito.
Por isso não podemos avançar na escansão de um verso considerando, a príori, que tudo nele é artifIcioso,
fora da nonna. A preocupação com as licenças métricas corresponde a uma espécie de segundo passo, de
segundo recurso, no processo de escansão.

AR'nFíCIO,s MÉTRICOS NO PLANO DOS ENCONTROS VOCÁLICOS

Ao compor versos para estrofes isométricas (aquelas com versos de medida igual), o esforço
do poeta consiste basicamente, no plano técnico, em esticar e encolher linhas, em acrescentar ou
diminuir sílabas. É nos domínios dos encontros vocálicos que esse trabalho se desenvolve com
possibilidades e alternativas mais amplas. Ao contrariar a norma o poeta nada mais faz do que recorrer
à tradição poética, que lhe coloca à disposição um arsenal de recursos, de "licenças", de artifícios.
Tomemos esses artifícios como fenômenos que ocorrem, em termos gerais, entre palavras (ex.:
chorando está, receio amargo) e dentro de palavrcts (ex.: longo janeiro, desmaio fatal). Erltre palavras

66 TEORIA LITERÁRIA
-_.._~--c0 o P F R .~ D O R E S O E L E I T U R.'\ ]) ,\ P O E S I i\

temos: elisúo,sjnal~fã, dial~fa e hiato; e doltro de palavras temos: sínérese ediérese. Para facilitara memorização
de alguns desses termos e do fenômeno que cada um indica, consideremos a partícula sin- como
determinante de diminuição, de retração; e a partícula di- como indicativa de aumento, de expansão.
Assim, a sina1ifa indicará contração e a dia/dã, esticamento.

LICENÇAS INTERVOCABULARES (DE CONTRAÇÃO): ELISÁO, SINALEFA

Vejamos isso com mais vagar, começando pelas situações mtre palavras (intervocabulares). O
entendimento costumeiro de elisão, geralmente equiparando-a à sina1dâ, aponta para uma supressão
explícita (gráfica) ou implícita (oral) de uma emissão vocálica, ou simplesment~ 'de uma vogal,
quando, entre palavras, forma-se um encontro vocálico. A fusão de vogais, nesse caso, implica a
completa eliminação sonora de uma delas, ao contrário do que ocorre nasinalifa, onde essa fusão - entre
palavras, lembremos - conserva a emissão de cada vogaL Notamos a elisão explícita do lei no início do
heptassílabo "D'alvos peixes os cardumes" (S. Alvarenga); no la! de tua do decassílabo (sáfico) "Que
de tu'alma reverbera o céu" (F. Varela). A elisão implícita nem sempre a identificamos com facilidade,
uma vez que a emissão dos encontros vocálicos átonos costuma variar de leitor para leitor. Logo, no
verso heptassílabo "A serpente enfurecida" (S. Alvarenga), o encontro Ite enl será considerado eUsão se
quem o ler o tomar simplesmente como Itenl, eliminando a emissão de um leI. Se a leitura, mesmo
fundindo as duas vogais, conservar as duas pronúncias, gerando um ditongo (eEn = _ --L), temos
então uma sinalifa, que pode ser chamada, por fundir vogais iguais, de sinalifa-crase. Consideremos
outro verso, o heptassílabo "E se as trevas no horizonte" (S. Alvarenga). Parece-nos difícil uma leitura
que converta o Ise asl em Isas/, eliminando o som do lei, até porque mudaria o sentido do verso, que
resultaria em "Essas trevas no horizonte". Logo, estamos diante de uma sinalifa, pois que se conservam
os dois fonemas, um fraco, o do lei, e outro forte, o do la!, formando o ditongo leAs/. A supressão total
de um fonema parece mais visível e lógica no encontro Ino hol, que passa, em termos fonéticos, aluo
oi. De fato, lemos quase que naturalmente "trevas norizonte". Caso, pois, de elísão. A leitura eventual
dos dois Q~ separadamente, formando o ditongo 1001, levaria o caso para a sinalifa, e, mais uma vez,
sinaldâ-crase.É preciso ter em conta, sempre, que essa emissão distinta de vogais em contato não opera
urrp separação automática de sílabas, de modo qüe a sinalifa, geralmente conformada num ditongo,
continua indicando uma junção de vogais (entre palavras) para o "encurtamento" do verso. Tomemos
agora um caso menos simples, o do decassílabo "Soluça o arroio; diz a rola amores" (F. Varela). Uma
leitura espontânea dirá logo que os acentos fortes recaem sobre a segunda, a quarta, a sexta, a oitava
e a décima sílabas, ou seja, o decassílabo é a um só tempo heróico (acentos na sexta e na décima) e
sáfico (na quarta, oitava e décima). No segmento "Soluça o arroio" temos a sequência vocálica, entre
palavras, aoa (aoA = sv+sv+V = __ -L), um não-tritongo (que se expressa no esquema ----1­
_), um ditongo somado a uma vogal, que pede separação. A leitura natural revela, no entanto, que
prati~amente eliminamos o la! final de Soluça, restando a sequência "Soluç'o arroio". E conservamos
a sonoridade do artigo Q e da vogal inicial de arroio, restando um lç'oa! que vale como sílaba poética.
Como pronunciamos aqui os dois fonemas vocálicos, estamos diante de uma sínalifa, de modo que,
ao fim·;' detectamos naquela sequência vocálica (entre palavras) elisão e sinalifa. O encontro vocálico em
arroio (note-se: dentro da palavra) se ajusta ao esquema V+sv+V (OiO = -L---LJ: um ditongo mais
uma vogal, c não um tritongo, o que viabiJiza sua divisão, no caso. Aqui basta acompanhar a gramática:
ar-roi-o. (Há quem entenda que melhor seria ar-ro-io). Desse modo, temos, até aqui: So/lulçaoa!
rroi-o. Acentuação mais forte na segunda e na quarta sílabas. No resto do decassílabo, "diz a rola
amores", constatamos entre rola e amores ou uma elisão, para quem ler /la a! apenas numa emissão seca,
dando /la!, ou temos uma sinalifa-crase, para quem pronunciar os @. em dois tempos. Já percebemos
a esta altura que a sinaldâ se ajusta não apenas no ditongo, mas também na crase. E, mais ainda,
pod~ ajustar-se (sempre entre palavras) a um tritongo, dependendo das exigências métricas. É o que
~ORTEZ E RODRIGUES

1 vemos no heptassílabo "E deixaste a mágoa, os danos" (S. Alvarenga), particularmente no segmento
! "má~a, os danos", com um tritongo perfeito (oAos = sv+V+sv).

LICENÇAS INTERVOCABULARES (DE SEPARAÇÃO): DIALEFA, HIATO

"
Passemos agora para o recurso inverso, para a licença que fOlja, ainda entre palavras, o esticamento
do verso, o aumento de sílaba (s). Em muitos estudos de poesia aparece como hiato, mas, por ser,. aqui,
um caso de poética e não de gramática (onde o hiato reside dentro da palavra), mais ad~quado seria
chamar esse artifício dedialifa. Assim podemos explicá-lo também pela contraposição dasinalifa. Se esta
identifica a fusão de vogais com emissão sonora dupla, e às vezes tripla, a dialifa sinaliza a séparação do
encontro vocálico de dupla emissão (não soa impróprio pensarmos num desencontro vocálico). Não
obstante, assim como admitimos a sinalifa-crase, também podemos admitir a dialifa-hiato, verificável
quando a separação ocorre entre emissões vocálicas fortes. Numa estrofe com versos padronizados em
sete sílabas, este, "Sofá ávido de nós", contém necessariamente uma dialifa-hiato no desencontro /fá-á!.
No decassílabo sáfico "Sobre o passado correrá um véu" (F. Varela), somos levados a separar Q /rá­
um!, duas sílabas fortes. Da mesma forma separamos "tu és" do decassílabo "Oh! mundo encantador,
tu és medonho!" (F. Varela). É certo que nos ocorreria querer saber, aqui, a razão pela qual vemos
exatamente aí, nesse /tu és/, uma licença poética (dialifa), quando há no verso outro encontro vocálico,
o/do en/. Vejamos isso detidamente. Trata-se de um verso aparentemente fácil de ser deslindado
em termos métricos e rítmicos apenas com uma leitura espontânea que realce mais as sílabas fortes.
Sabemos já que a feitura e a leitura de versos costumam fundir os encontros vocálicos entre palavras, e
no verso transcrito temos dois encontros, Ido en/ e/tu és/o Primeira constatação: trata-se de um verso
de nove sílabas. Acontece que, se examinamos os outros versos do poema, descobrimos que todos
possuem dez sílabas. Seria precipitado admitir logo que o poeta errou. Adotando o critério gramatical,
constatamos onze sílabas ... Só resta uma estratégia: verificar se alguma licença poética incide sobre os
encontros vocálicos. Um desses encontros deve encolher, reduzir-se a uma só sílaba. Considerando a
leitura corrida, um deve ser esticado, transformado em duas sílabas. Fechando as contas: um encontro
deve encolher; outro, esticar. Para decidirmos melhor, um fator deve ser previamente considerado:
o verso decassílabo, na tradição, é sáfico (acento fixo na quarta, na oitava e na décima sílabas) e/ou
heróico (acento fixo na sexta e na décima sílabas). Assim, se esticamos em duas sílabas o encontro /
do en/ e encolhemos em uma o/tu és/, temos a seguinte leitura: Oh/mun/do/em/can/ta/dor/tués/me/
do/nho. Então nos perguntamos: o acento forte recaiu na quarta sílaba, no /em/? Recaiu na sexta, no
/ta/? Nenhuma resposta pode ser positiva. Essa solução não referenda, pois, o decassílabo sáfico nem
o heróico. Uma leitura que troque a incidência das licenças (Ohlmun/doen/can/taldor/tu/és/me/dol
nho) resolve todos os problemas.
Essa expl~cação minuciosa expõe a necessidade que temos, diante de certos versos, de criar e
conduzir uma argüição, de escolher caminhos, de inventar um processo. Os artifícios métricos e
rítmicos, como liberalidades, estimulam um jogo de desvendamento que coloca à prova, não raras
vezes, em certo estágio analítico, nossa capacidade de envolvimento lúdico. A lógica da escansão é, em
parte, a lógica do jogo, que respeita apenas o "tamanho" padrão do verso e, em muitos casos, seu ritmo.
Considerando o caso dadialifa-hiato (separação no encontro de duas vogais fortes, como no octossílabo
"Infante pela mão d!!..J-ªma", de A. Nobre), ocorre-nos pressupor, como que jogando, a existência de
uma dialifa não-hiato, ou simplesmente díalifa, que envolva a separação (entre palavras) não de duas
vogais fortes, ou plenas (separação até lógica, do ponto de vista gramatical, pois se trata de um hiato),
mas a separação de uma vogal e de uma semivogal, ou seja, de um ditongo, e até mesmo de duas
semivogais em encontro. Se o verso heptassílabo "A serpente enfurecida", abordado atrás, estivesse
numa estrofe em que todos os outros versos fossem de oito sílabas (octossílabos), teríamos de separar
o encontro /te en/, resultando correta esta solução: Nser/pen/te/en/fu/re/Cilda (lembrando ainda outra
vez: só contamos até a última sílaba tônica). Eis um heptassílabo autêntico com exigência de dialifa
em encontro vocálico ditongo: "Vede em que fogo ferve" (Camões). Nesta outra redondilha maior

68 - T E o R I A L I T E R Á R I A
- ---~ () f' L I< A [) O R E" D E L E 1 r {] k A ll.\ f' <, " S I .\

"Quero acabar comigo" (Camões), a dialtjã está no ditongo oA (sv+ V) da sequência "Quero/a-cabar".
Há casos, no entanto, de aferição menos simples, como em "O triste que a Amor serve" (Camões),
um verso que precisa ser de sete sílabas para acompanhar os outros da estrofe. Uma leitura corrida,
espontânea, revela, a princípio, seis sílabas, pois emendamos o Iquea! (sinalifa) e eliminamos o IN
de Amor (elisão). A dialifa se impõe quando, em vez de eliminarmos o IN, damos-lhe plena validade
silábica. Então o verso heptassílabo se resolve, em termos de licença poética, por uma sinalifa Iqu~ e
por uma dialtjã (quea-A). No decassílabo sáfico "Beijava a onda num soluço mago" (F. Varela) temos
uma elisão (va a = va) e uma dialtjã (va-on), e no heptassílabo "Já Etonte inflama o ar" (~~ Alvarenga)
temos, na sequência, uma díalifa (Já-E), duas elisões (do lei no encontro Ite in/ = Itin/, e do 101 no
encontro Ima oi = Imol, na verdade Imu/) e outra diahjà (/mo-ar/, ou Imu-ar).
Explicadas, pois, no campo dos encontros vocálicos, as licenças poéticas entre palavras (elisão, sírzalifa,
sinaltjã-crase, díaltjã e dialtjã-hiato), passemos agora à abordagem das licenças vocálicas~ncidentes dentro
do vocábulo (intravocabulares), a sinérese e a díérese.

LICENÇAS INTRAVOCABULARES: SINÉRESE (DE CONTRAÇÃO) E DIÉRESE (DE SEPARAÇÃO)

A primeira, que serve para red uzir o taman ho do verso, pode ser entendida como a transform ação
arbitrária (mas poética) de um hiato num ditongo. É o que ocorre no decassílabo sá.fico "Sonho de
rosas num país nevoento" (A. Guimaraens), onde o loen/ (um hiato) de nevoento é tomado como
ditongo, valendo, portanto, uma sílaba só. A palavra, que tem gramaticalmente quatro sílabas (ne­
vo-en-to), passa a conter três (ne-voen-to). Essa operação de encolhimento não pode incidir sobre
o outro hiato, país (que continua um vocábulo dissílabo), porque modificaria a condição sátlca
do decassílabo (acento fixo na quarta, na oitava e na décima sílabas), sem viabilizar o decassílabo
heróico (acento fixo na sexta e na décima sílabas), pois, com esse encolhimento (sínérese) de país
o acento forte recairia na sétima sílaba. Em versos como "Ainda com lágrimas relembro" (A.
Guimaraens), um octossÍlabo sem nenhum outro encontro vocálico, é fácil localizar a sinérese em
"Ainda", que passa a ter apenas duas sílabas (Ain-da).Já no caso de "Em sua miséria profunda" (F.
Varela), verso de sete sílabas com dois encontros vocálicos, temos de começar jogando. A contagem
po~ leitura espontânea revela aí oito sílabas, porque em sua temos um hiato e em miséria temos um
ditongo. A questão básica é esta: precisamos encurtar o verso, diminuir sílabas. Ora, o ditongo I
ia! já foi contado como uma sílaba, de modo que a operação só pode incidir sobre o sua, que se
transforma de vocábulo de duas sílabas (dissílabo) em vocábulo de uma sílaba (monossílabo).
Tomemos agora um verso menos simples, o alexandrino (doze sílabas, com cesura - acento - na
sexta) "Uma saudade cruel o coração me corta" (A. Guimaraens). Começamos jogando com a
leitura espontânea, que nos revela treze sílabas. Precisamos encolher o verso. Vemos nele três
encontros vocálicos, os ditongos laul, de saudade, e laol de coração; e o hiato lueI/, de cruel. Somos
induzidos, em princípio, a testar a redução do hiato a monossílabo. Uma releitura espontânea
reveIa que, se cruel se mantiver como hiato (cru-el) - o que por si só dá treze sílabas ao verso
- desfaz-se a tônica da sexta sílaba (aquela que promove a cesura, a pausa do meio do verso
alexandrino), pois o leI/, onde fica o acento forte, corresponde à sétima sílaba (U-ma-sau-da-de­
cru-el-o-co-ra-ção-me-cor-ta). Além disso, uma olhadela nos segmentos anteriores e posteriores
a cruel revela a impossibilidade, neles, de redução silábica. Logo, ocorrerá uma necessária sinérese
do cruel, e essa transformação de um díssílabo em um monossílabo, tanto reduz o verso a doze
sílabas como devolve o acento à sexta sílaba.
Quando houver necessidade de esticar um verso a partir de encontros vocálicos intravocabulares,
a questão é de diérese. A diérese, que estica o verso, que lhe acrescenta sílaba(s), indica a transformação
de um ditongo num hiato. Numa estrofe de Camões, com versos iguais de cinco sílabas, encontramos
este, aparentemente com quatro sílabas: "Saudosa dor" (Sau-do-sa-dor). Ocorre que o poeta esticou o
10'T'Z' Roo.,eu,'

j ditongo/au/, tomando-o por um hiato, ficando assim a divisão silábica: Sa-u-do-sa-dor (cinco sílabas).
f Só tomamos "Piedosas aparências" (Camões) como verso heptassílabo se consideramos a diérese do /ie!
de Piedosas. No caso de verso com mais de um encontro vocálico (e precisando ser esticado), o ritmo
dos outros versos (se uniforme) é que determinará o melhor lugar para a sillérese. Em se tratando de
verso em estrofe heterorrítmica (aquela composta de versos com ritmos variados), a escolha pode ser
aleatória. Em "Ferro, frio, fogo e neve" (Camões), desconsideradas as licenças, temos um verso de seis
sílabas (hexassílabo) que, pelo padrão dos outros da estrofe, deve ser de sete. Devemos, pois, esticá-lo,
para o que invocamos a possibilidade de licenças. Temos aí dois encontros vocálicos, um emfrio] outro
em /go e/, dois ditongos. Podemos, em princípio, esticar qualquer um dos dois, ficando com estas duas
possibilidades métricas: Fer-ro-frio-fo-go-e-ne-ve LL _ -L -L _ -L ->, ou Fer-ro-fri-o-fo­
goe-ne (-L _ -L _ -L _ -L). Qualquer das duas opções é teoricamente válida, mas a segunda
revela-se mais aceitável, pelo ritmo mais sincopado, pela seqüência regular de células rítmicas binárias,
ou pés troqueus (uma sílaba forte e outra fraca). Logo, a opção mais aconselhável é projetar.~ diérese no
frio, que passaria de monossílabo a dissílabo, enquanto o encontro /go e/ (entre palavras, note-se) fica
no que é como licença poética, uma sinalifã. São basicamente esses mesmos princípios que adotamos
na análise métrica do decassílabo heróico "Se frios como neve estais agora" (A. Guimaraens). Nove
sílabas, em leitura corrida que respeite a gramática. Só chega a dez se projetamos uma licença de
esticamento em um dos dois encontros vocálicos. Aqui nem sequer sofremos, pois uma releitura
mais cadenciada revela que, se mantivermos o frios - lugar do primeiro acento forte - como ditongo
(uma só sílaba), o segundo acento forte vai dar em /ne/, restando átona a sexta sílaba (/vel). Logo, não
chegaríamos ao decassílabo heróico, nem ao sáfico. Se, pelo contrário, enxergamos emfrios uma diérese,
um ditongo valendo como hiato, resolvemos todos os problemas.

ARTIFÍCIOS MÉTRICOS E METAPLASMOS

A arte de esticar e encolher versos, no plano intraverbal, alcança os metaplasmos. Há o caso, entre
palavras, da ealipse, que alguns estudiosos tomam como uma forma de elisão. Ocorre quando uma
palavra terminada com consoante nasal (ex.: com), em contato com outra palavra iniciada por vogal, ou
sendo toda ela uma vogal, perde o som nasalizado para que se reduza o número de sílabas de um verso.
ª
O exemplo mais comum é o da contração da preposição com com os artigos Q, e um. Nestes dois
versos heptassílabos de Anchieta, sequentes, temos o uso contraído e o uso normal: "Co'o sangue, que
derramastes! com a vida, que perdeste". São também heptassílabos "no peito, {'um arcabuz" (Anchieta)
e "Já co'a cauda o tronco açoita" (S. Alvarenga). Algumas vezes esse tipo de contração está implícito
e, não raro, corremos o risco de entender que o poeta errou. Assim, quando lemos este alexandrino
"Acaso vens com o teu olhar de eterna aurora" (A. Guimaraens), precisamos considerar o "com o" como
um "c'o", páia que não cheguemos a treze sílabas.
As licenças intraverbais identificadas com os metaplasmos podem ser tomadas como figuras de
morfológia. Recurso sonoro curioso, no vocábulo, é a desconsideração de uma emissão em certos
encontros consonantais, como o Ibj/ de objeto. De nada vale, nesses casos, ~ forma do vocábulo.
Não hav:eria diferença fonológica, assim, entre os heptassílabos "pois que sois tão digna esposa" e
"aquela imagem tão dílla" (Anchieta). Versos como "Deste lugar advogada" (Anchieta), "Admirando
o rico adorno" (S. Alvarenga), e "Doce néctar no seu rosto" (idem) possuem sete sílabas. Caso
fosse estendida a pronúncia das palavras advogada e admirando (três sílabas), gerando quatro sílabas
(adivogada, adimirando), teríamos um acréscimo sonoro no interior de cada vocábulo. Essa licença de
acréscimo, no meio do vocábulo, recebe o nome de epêntese. Não é preciso, frise-se, que o poeta estique
graficamente o vocábulo. Se o heptassílabo "Doce néctar no seu rosto" estivesse numa estrofe de
versos octossílabos, teríamos de "ouvir", de considerar, em "néctar", três sílabas nítidas, o que levaria
o verso também para oito sílabas. Devemos ter em mente, sempre, que o poeta usufrui as liberalidades
poéticas segundo seus interesses métricos. Num poema de Anchieta, construído em redondilhas

70 -- T E o R I A L I T E R Á R I A
-~~ o P F R A [) O R E S D E L E I T U R A D A P O F S I .~

maiores, encontramos o verso "por vós serão levantados", sem carência de licença, e o verso "Por vós
sou alevantada", com um necessário acréscimo de sílaba (em alevantada). Neste caso, tendo ocorrido
adição no início do vocábulo, configura-se uma figura morfológica chamada de prótese. Caso o aumento
ocorra nofim da palavra, como no "mártire" do decassílabo heróico "E depois que do mártir~ Vicente",
estamos diante de uma paragoge.
Casos há, como vimos, em que o poeta carece não de aumentar sílaba(s), mas de diminui-Ia(s).
Castro Alves cortou a sílaba inicial de "estamos" no verso "~tamos em pleno mar... doudo no espaço",
para ;tiustá-lo à medida dos outros, decassílabos. Esse corte no início do vocábulo tem um nome: qférese.
Já Anchieta e Camões, precisando de verso de sete sílabas, resolveram cortar sílaba no interi.or da palavra,
como vemos, respectivamente, em "O sab'roso e doce gosto" e"A tudo se of'receria". Caso ~e síncope. A
necessidade métrica pode levar ainda, por fim, à supressão de sílaba no final do vocábulo. O heptassílabo
"grande servo do Senhor" não exigiu de Anchieta nenhum malabarismo, ao contrário do verso "por este
grã cavaleiro", também de sete sílabas. Essa supressão no fim do vocábulo chama-se apóéope.

RITMO

As sílabas de um verso são, antes de tudo, frações sonoras. Decorre que o verso, por ser uma
sequência de sílabas átonas e tônicas, é, também (à exceção do verso monossilábico agudo), uma
sequência de frações sonoras oscilando entre alta e baixa prolação. Essa sequência alicerça o ritmo do
verso, de modo que ele se mostra, em princípio, no jogo silábico, no encadeamento de frações sonoras
átonas (a) e tônicas (t). No decassílabo "Que tudo mais rasgaram parte a parte" (Gregório de Matos)
temos a seguinte sequência sonora: a/t/a/t/a/t/a/tla/t (--1---1---1---1---1J. Neste outro,
do mesmo autor, "Estupendas usuras nos mercados", temos a/a/t/a/a/t/a/a/a/t (_ _ -1- _ --1­
____ -1-). Olhando com mais vagar os dois esquemas, notamos que alguns cor~untos silábicos
se repetem, a/t (_ -1-), no primeiro; e a/a/t L _ -1-), no segundo; de modo que, reparando bem,
repetimos cOI~untos sonoros específicos em sequência. Primeiro verso: at-at-at-at-at; segundo: aat­
aat-aaat. Os dois casos demonstram que um verso pode ser dividido em frações menores (sílabas)
e em frações maiores (grupos de sílabas). Assim, o verso "Que tudo mais rasgaram parte a parte"
possui dez sílabas e cinco segmentos sonoros de duas sílabas (ou frações binárias do tipo _ -1-).
"Estupendas usuras nos mercados" possui dez sílabas e duas frações de três sílabas (ternárias, do
tipo _ _ -1-), seguidas de uma fração de quatro (quaternária, do tipo _ _ _ -1-). Já não basta,
portanto, encarar o ritmo de um verso apenas como uma sequência silábica composta (regularmente
ou não) de emissões fracas e fortes. Ele é também, e mais, uma sequência de frações silábicas, ou de
(élulas, de pés métricos. Podemos dizer, sintetizando, que algumas sílabas formam uma célula métrica
e que algumas células métricas formam um verso (notadamente se for acima de quatro sílabas, porque
versos menores acabam se ajustando a um pé apenas). Ou, de outra maneira, que um verso é feito de
céllllas (macrofrações) e que uma célula é feita de sílabas (microfrações).
Essas soluções radicam no universo da poética clássica. Entendendo os mecanismos de
funcionamento dos fatos nesse universo, criamos condições de melhor compreendê-lo nos domínios
da po~sia de expressão portuguesa.

Do MODO CLÁSSICO AO UNIVERSO DA POÉTICA PORTUGUESA

No universo da poética clássica, o exame do ritmo começa pela adoção do acento quantitativo,
haseado na duração da emissão (Ionga/breve), e não na sua intensidade (forte/fraca), como sucede na

T 1I A'> Bn N I':! l..: l / L tJ c 11\ O":\:'..J A Z,) I IN (() H (;:\ N 1 / .'\ [) o Iz [...,) - 7I
~ORT'Z , RODR<GU"

t poética de língua portuguesa. Fala-se agora não de sílaba átona, mas de sílaba breve (chamada de tese,
! com emissão de um tempo de duração); não de sílaba tônica, mas de sílaba longa (ou arse, com emissão
de dois tempos da breve). Graficamente, representamos a breve por um lu! maiúsculo (U) e a longa por
um traço horizontal (_). Para facilitar o entendimento, ajustamos essa disposição aos signos já usados:
o marcador U indica a breve e o marcador Ll), a longa. Os exemplos em português nos obrigam
ainda ao esforço fingido de "ouvir" a duração da vogal e não a tonicidade ou a atonicidade.
O que entendemos por célula métrica (macrofração sonora) corresponde ao pé clássico. O jogo
distributivo, no verso, de sílabas e acentos eleva bastante as possibilidades combinatórias na fonnação
desses pés métricos, tanto mais se consideramos a morfologia vocabular (monossílabo, dissíla?o.~.), a
variação acentuaI (oxítona, paroxítona, proparoxítona) e suas repercussões no contexto do verso ou da
frase. Lembremos, ainda, nesse quadro de perspectivas matemáticas, a existência de dois tipós de ~ílaba,
a breve e longa, que projetam várias combinatórias (breve + breve, breve+longa, por exe~plo) ao tipo
de pé (de duas, de três sílabas ... ). O pé mais simples, o de duas sílabas, permite quatro formulações
sonoras, cada uma com uma denominação: 1) troqueu ou coreu: longa + breve Ll- _: sonho); 2) jambo
ou iambo: breve + longa (_ -L: lugar); 3) espondeu: longa+longa (-L-L: dá dó); e 4) pirríquio ou
díabraco: breve + breve (_ _ : para). O pé de três sílabas permite oito formulações sonoras: 1) dátilo:
longa+ breve + breve (-L--: vândalo); 2) anapesto: breve + breve + longa (---L: candomblé); 3)
molosso: três longas <-L -L -L :já vais ver); 4) tríbraco: três breves L __ : desde a); 5) anfíhraco:
breve+longa+breve L-L_: tomate); 6) anfímacro: longa + breve + longa (-L--L: vou voltar);
7) antibaquio: longa+longa+breve Ll- -L _ : vem logo); 8) baquio: breve + longa + longa (--L
-L: está lá). O pé de quatro sílabas permite várias combinações: 1) jônico maior: duas longas+duas
breves (-L-L--: não úníco); 2) jônico menor: duas breves+duas longas (---L-L: e sejáfoi);
3) coriambo: longa + breve + breve + longa Ll-__ -L:podeesperar);4) péonprimo: longa+breve+
breve+breve Ll- __ _ :finge-se-lhe que); 5) péon quarto: breve + breve + breve + longa (_ _ _
-L: o redentor). Os pés de quatro sílabas podem, no geral, ser tomados como um ajuste de dois pés
de duas sílabas. Assim, o pé coriambo <---L __ -L) corresponde à junção de um coreu Ll- -> e
de um jambo (_ ---L>; o pé jônico maior (-L -L _ -> vale por um espondeu <---L -L) somado a
um pirríquio L->.
Afirmamos atrás que o pé métrico é composto de sílabas (microfrações sonoras) e que o verso
é composto de pés métricos (macrofrações sonoras). Assim, o princípio combinatório que atua no
nível menor, tipificando os pés, também se projeta no nível maior, tipificando os versos, segundo a
disposição, neles, dos pés. Mais uma vez o olhar matemático intui a enorme potencialidade taxionômica
dessa combinatória, da qual damos apenas uma amostra. O princípio básico é este: um verso com
mais de três sílabas é feito de alguns pés métricos, iguais ou diferentes no tamanho. Outro princípio:
na delimitação ou separação dos pés, a fronteira é indicada pela sílaba longa (tônica, no universo do
português). E, finalmente, uma estratégia necessária, já antevista: o exemplário em português, que
faz vislumbrar alguma incongruência, como tomar a sílaba fraca, ou átona, por breve.
Chamamps de verso puro aquele que repete pés iguais, como em "Que tudo mais rasgaram parte a
parte" L -L _ -L _ -L _ -L _ -L), feito de cinco pés de duas sílabas (_ -L: pé jambo). Verso
puro é também o caso deste alexandrino de O. Bilac, "Para o norte inclinando a lombada brumosa"
L - l - _ -L __ -L __ -L), que apresenta uma sequência de quatro anapestos L _
-L). No verso "Não chores, meu filho" (G. Dias) encontramos um pé jambo, ou jâmbico (não cho
:_ -L) seguido de um pé anapesto (res meu fi : _ _ -L), de que resulta um verso feito de dois pés,
segundo o esquema _ -L __ -L. No decassílabo "Assim, não morrerei, porque sofri" (O. Bilac),
a sequência silábico-acentuaI ( _ -L ___ -L ___ -L) aponta, na ordem, um jambo, e dois
péons quarto, ou ainda, na ordem, umjambo (_ -L), um pírrico (_ ->, umjambo, um pírrico e,
enfim, outro jambo.Já nos é possível perceber o quanto os versos podem variar em termos de ritmo e,
atrás deles, vem uma vasta nomenclatura. Apenas para que tenhamos uma ideia, vamos a alguns casos.
Verso adônio: dátiIo (-L __) + troqueu Ll- -> ou espondeu (-L -L) = -L __ -L _ ou
-L---L-L. Verso gIicênio: três troqueus + um dátiIo = -L--L--L--L--. Verso
anacreôntico: dois troqueus entre dois pírricos =---L--L---. Parece lógico se encaramos
esse verso também com outras formações (Pés). Podemos ter aí, por exemplo, na sequência: anapesto
72 - T E o R I A L I T E H Á R I A
--~-~ o P E R A D O R E S n E L E I T U R A f) A P O E S I A

(__ -L) + jambo (_ -L) + tríbraco (_ _ ~. No universo da poética clássica, a combinação de


pés resulta em versos com denominação estranha aos nossos ouvidos: alcaico, alemânio, arquilóquio,
aristoranio, asclepiadeu, escazonte, falécio, ferecrácio, galiambo ...
A quem estuda o ritmo da poesia em língua portuguesa interessa dessa exposição a informação de que
os versos combinam células métricas (Pés), de que, por essa combinação, aproximam-se ou distinguem­
se uns dos outros, forjando o desempenho rítmico. Não chegou até nós essa disposição taxionômica
das lições clássicas, embora alguns estudiosos adotem, de maneira esporádica, e parcialmente, aquela
terminologia. Não nos preocupamos em nomear sistematicamente as células métricas e:segundo sua
distribuição, os versos. Falamos, sim, de estrofes isorrítmica e heterorrítmica, a primeira.composta de
versos com o mesmo padrão rítmico (com sequências iguais de células métricas) e a segunda variando.
O estudo do ritmo no verso português, inspirado nos parâmetros clássicos, ou se tornou mais simples
ou 6ltam iniciativas mais meticulosas. Convertemos o pé métrico em célula métrica, respeitando
agora o acento de intensidade (alto-baixo) e não o de duração (longo-breve). Evitamos a exuberância
terminológica clássica, de tal modo que, por exemplo, os quatro pés clássicos de duas sílabas L -L,
-L _, __ e -L -L) podem ser entendidos, todos, como células binárias; os pés de três sílabas, não
importa a localização da tônica, valem por células ternárias; as células quaternárias incorporam os pés de
quatro sílabas. Se a situação exige, pela diversidade de casos, recorremos à terminologia clássica.
Em dias mais recentes alguns estudos do ritmo poético negligenciam as lições clássicas, ~eduzidos
pelos recursos tecnológicos, pelos gráficos. O objetivo é sempre o mesmo: chegar o mais perto possível
da verdade, ainda que ela seja individual, principalmente quando se trata de ritmo.

RIMA

Ao lado da métrica e do ritmo, outros recursos podem engrossar o estrato sonoro de um poema.
A aliteração (repetição de fonemas consonantais), a assonância (repetição de fonemas vocálicos), as
repetições de modo geral proporcionam bons efeitos. Mas o recurso da rima, muito ao gosto da poesia
tradicional, é o mais conhecido.
A ideia de rima lembra sempre repetição de sons de base vocálica, um fenômeno que, na poesia,
costuma ocorrer dentro do verso (rima interna ou intraversal) e, com bem mais frequência, entre
versos (rima externa ou interversal). Chociay (1974, p. 167-178) situa a rima entre os processos do
"andamento fônico" da estrofe e lhe delega a responsabilidade pela "cadência fônica". Em muitos casos
a repetição sonora no final dos versos (principalmente) acaba sugerindo um padrão de leitura, uma
prolação frequentemente contaminada de emocionalidade.
'Tàl é a importância da rima para a poesia tradicional que não raro a tomamos como sinônimo
de verso, e mesmo de poesia. Ela produz certo efeito de encantamento e facilita a memorização, de
que dão testemunho, em termos simples, as quadras populares que conselvamos na lembrança e que
fazem a alegria dos concursos de trovas, sempre reinventados. É certo que a rima contribuiu para
que Campos (1962, p. 253) enxergasse "maior soma de verdade e maior dose de sabedoria em língua
portuguesa" nestes versos populares:

Até nas flores se encontra


a diferença da sorte:
Umas enfeitam a vlda,
outras enfeitam a morte.

Ao lado de outros recursos, como o ritmo e a aliteração, a rima testifica a vocação musical da
poesia, que, como se sabe, foi cantada nos seus primórdios. Said Ali, que recusa aos antigos gregos
e romanos o conhecimento desse "complemento do ritmo", informa que o uso intencional da rima
<? o R TEZ E R o D R I (; U E S

"documenta-se pela primeira vez na Europa sob a forma de rima interna na literatura monástica
medieval". Depois a rima migrou para o final do verso "nos cantos e hinos da Igreja". Em língua
portuguesa, foram possivelmente os trovadores provençais os primeiro a usá-la (1999, p. 121). Apesar
do desprezo modernista, continua a rima estimulando os criadores, e não se pode dizer, sem o risco do
equívoco e de exclusões premeditadas, que se trata de recurso superado ou a negligenciar.
O estudo meticuloso da rima implica o reconhecimento de uma vasta parafernália terminológica,
o que atesta não apenas sua riqueza de aplicação como o vezo nominativo da crítica teórica: rima
sinônima (olhar/mirar), rima antitética (falar/calar), rima derivada (pôr/ depor), rima homônima ou.repetida
(manga/manga), rima anagramática (alva/lava). E a coisa vai por aí, com enquadramentos beirándo
às vezes a gratuidade. Com frequência uma mesma configuração recebe vários nomes, como.o par
atento/sofrimento, cuja rima, por situar-se em vocábulos paroxítonos, pode chamar-se paroxítona,
grave, acatalétíca.
O conhecimento da rima como estatuto poético supõe inicialmente, como se vê, distinções e
classificações. Sua aplicação depende do poema e do interesse analítico, que impõem a escolha does)
aspecto(s) relevante(s). Consideremos aqui alguns deles, os mais frequentes da prática poética, sempre
presentes nos manuais teóricos. Uma décima de Castro Alves nos ajuda a começar:

Quebre-se o cetro do Papa,


Faça-se dele - uma cruz! (a)
A púrpura sirva ao povo
P'ra cobrir os ombros nus. (a)
Ao grito do Nia~ (b)
-­ sem escravos, - Guanabara (b)
se eleve ao fulgor dos sóis! (c)
Banhem-se em luz os prosúôulos, (d)
E das lascas dos patIôu}os (d)
Erga-se a estátua aos heróis! (c) (CASTRO ALVES, 1976).

Dois versos aí não rimam: o primeiro, terminando em "Papa", e o segundo, com o final "povo". É
o que também constatamos na quadrinha anterior, onde os versos terminados em "encontra" e "vida"
não rimam. Em estrofes como essas, em que, afinal, interessa o jogo rimante, parece não bastar aos
estudiosos da rima apenas identificar esse tipo de verso como branco. Trata-se de um caso de rimas
perdidas, óifãs. A teoria, como se vê, nomeia até o que não existe.

RIMAs AGUDA, GRAVE E ESDRÚXULA

Do que está, de fato, na estrofe de Castro Alves, consideremos, inicialmente, segundo uma
perspectiva classificatória, a posição do acento tônico no conjunto sonoro rimante. Os pares cf!!Y'nus
e s~eróis, compostos de segmentos rimantes oxítonos, exemplificam a rima aguda; o par Niagru:W
Guanabara, composto de vocábulos paroxítonos, aponta a rima grave, e o par prostíbulos/patíbulos,
com palaVras proparoxítonas, designa a rima esdrú:x:ula. Eis um tipo classificatório.

RIMAS SOANTE E TOANTE

Para continuar, consideremos que a rima se concretiza em, pelo menos, dois segmentos
rimantes. No dístico "Faróis à noite apagados/por ventos desesperados." (Cruz e Souza), temos
74 --- T E C\ I, 1 A LITEHÁHIA
-~ o I' r R ;\ [) o R E S D E L E I T U R A D A P o E S I A

dois segmentos rimantes, ado.s e ado.s. É tautológico: um segmento rimante, porque é rimante,
pressupõe outro segmento rimante, ou outros. Consideremos também que o segmento rimante
pode ser uma palavra (pôr, rimando, por exemplo, com dor), parte de uma palavra (casamento.,
em situação de rima), ou pode ser ainda uma locução (dai-me, rimando., por exemplo, com
Jaime). O segmento rimante é feito de uma sequência de letras, de vogais e consoantes (p-ô-r, e-n­
t-o., a-i-m-e) e essa disposição de vo.gais e consoantes sujeita-se a variações quando. comparamos
as palavras em situação de rima. Dito de outra maneira: numa rima, o nível de coincidência
sonora, letra por letra, pode variar de segmento rimante para segmento rimante, criando nova
possibilidade classificatória, novos tipos de rima. Antes de reconhecê-los, tomemos do.s estudiosos
uma lição preliminar: a aferição dessa tipologia de rima (baseada nos níveis de coinci,dência das
letras) leva em conta, corno início do segmento rimante, a vogal forte, e nãüa sílaba forte, de
modo que em "casam~nto." o início do segmento rimante reside no ~ e não no !!!lo Com esse
aviso, vamos à tipologia. Em termos gerais, chamamos de rima soante, ou consoáfzte (já rotulada
de suficiente), aquela fundada na identidade sonora completa (vogais e consoantes), como no par
Niagara/Guanabara. Mais completa, se assim podemos dizer, é a identidade sonora que aproveita
também a consoante da sílaba forte, corno acontece em prostíbulos/patíbulo.s. Trata-se de um
tipo de rima soante, antes chamada de opulenta, distinta da outra apenas por ser mais completa.
Um e o.utro teórico a to.mam por rima rica, relegando. à categoria de rima pobre aquela id!=ntificada
pela coincidência apenas a partir da vogal forte (mas a dicoto.mia rica/pobre se aplica mais a outra
classificação, adiante abordada). Há um caso, também incluso no âmbito da rima soante, em que a
identificação retroage mais, alcançando toda uma sílaba anterior à sílaba tônica, como em ferido./
desferido..
A rima soante, não custa relembrar, configura-se pela coincidência sonora, nos segmentos
rimantes, de vogais e consoantes. Quando essa coincidência atinge apenas as vogais, ou só alguma
consoante dentre outras, estamos diante da rima toante. Trata-se, pois, de identificação sonora
parcial. Na estrofe de Castro Alves transcrita não a encontramos. Sirvam estas quadras de Sérgio
C. Pinto:

o paletó O paletó
Imóvel cx!st~ (movimento cXPQstQ)
Mesmo nu tem coração
Veste o cabid~ atrás do bQIsQ (PINTO, 1983).

Esse afastamento do padrão perfeito, ou regular (próprio da sequênciasoante), muito ao gosto


de João Cabral de Melo Neto (talvez por intluência da poesia espanhola), pode aprofundar-se,
forjando urna coincidência so.nora bastante fraca, apenas das vogais tônicas, co.mo. vemos na
rima furQr/gQlfe, utilizada pelo citado. poeta pernambucano.. Não. é recurso muito utilizado.
Outra tipo.logia das rimas nasce da co.nsideração. das categorias gramaticais a que pertencem
as palavras em situação de rima. No fragmento. de Castro. Alves, os pares sQh/heróis, Niagara/
Guanabara, prostíbulos/patíbulos são. composto.s de substantivo.s, e essa falta de variação
co.rídena esse tipo. de rima a ser pobre. Será rica a rima centrada em vo.cábulos de classes gramaticais
diferentes, co.mo oco.rre na díade cr!!ynus, feita de um substantivo. e de um adjetivo. Numa das
quadras logo. atrás transcritas o. par existe/cabide abriga um verbo e um substantivo., fo.rmando.
também rima riw. Há caso.s de formações menos frequentes, co.mo. esta, dai-me/andaime,
de Linhares Filho, e esta, tarde/ar de, de Carlos Pena Filho. São as chamadas rimas raras, o.U
precIOsas.
Sentimo.s a este po.nto que o estudo da rima num poema tende a ser po.uco. "interpretativo."
(correlacionai). E os manuais mais populares, geralmente superficiais (até por exigências editoriais),
co.mo. que propõem essa solução. descritiva, técnica que passa, na elaboração. de trabalhos escolares,
como procedimento analítico. quase exclusivo. Assim, o. esforço. classificatório parece ser da natureza
do estudo da rima - um método que satisfaz até certo ponto.

T!-IOMAS BllNNrCI I LUCIA OSANA ZOUN (O[U;ANIZADORES) - 75


<?ORTEZ E RODRlCUES

I R.lMAs EMPARELHADA, CRUZADA, INTERPOLADA, ENTRELAÇADA

Potencialmente mais técnico que os outros critérios classificatórios é aquele que leva em conta
a distribuição das rimas na estrofe, forjando uma tipologia na forma de esquemas, do tipo aabbcddc,
presente na citada oitava de Castro Alves. Trata-se, como visualizamos nessa estrofe, de rimas externas,
aquelas de fim de verso; mas há casos de fomus poemáticas cujo esquema rímico prevê um lugar fIXo,
interno, para a rima. O rondó, por exemplo. E o haicai: ,_

Do beiral da casa

(ó telhas novas, vermelhas!)

vai-se embora uma asa (ALMEIDA, 1947).

o critério se escora, como se vê, na diferenciação das rimas (asa/asa é diferente de ellia/ellia) e na sua
identificação por letras (rima a, rima b rima c...), respeitando a ordem de seu aparecimento no poema, ou na
J

ª
estrofe (quando vista isoladamente). Tomemos a oitava de Castro Alves: o aponta a primeira coincidência
sonora (cryynus); o~, a segunda (Ni~Guanabara); Of, a terceira (sQWheróis); od., a quarta (prosuôulos!
pauôulos). Logo, o trabalho de análise das rimas se configura, segundo esse critério, pela identificaçã? dos
esquemas, que podem ser, entre outros, aa, aabb, abab, abcabc, aabaab. Temos o esquema aa neste dístico de
Mendonça (1995), tomado isoladamente, para efeito de exemplificação:

Que o poeta pese, (a)

a gula e a ascese. (a)

A rima apresenta-se aqui com segmentos rimantes em sequência, isto é, sem outro(s) segmento(s)
entre o primeiro ese e o segundo ese. Esse tipo de esquema aponta a rima emparelhada (pois nasce
de um par de segmentos rimantes), ou paralela (pois poderíamos ter uma sequência de três ou mais
segmentos rim antes idênticos, do tipo aaa). A rima paralela pode ainda enquadrar-se, conforme a
estrofe, nos seguintes esquemas, entre outros: aabb, aaabbb, aabbcc, aahbccdd. Uma estrofe de Albano
(1993), tomada isoladamente, exemplifica o último caso:

Dum profundo letargo me levanto (a)


E ainda sinto um lânguido quebranto. (a)
Sou, não era e contudo me parece (b)
Que sempre fui. Oh! quem fará que cesse (b)
Este mistério tão remoto e escuro (c)
Que em vão co 'o pensamento ver procuro, (c)
Pois não sei apesar de todo empenho (d)
Quem sou, aonde vou nem donde venho. (d)

Mais comum que esse emparelhamento ou paralelismo de rimas é a alternância delas. Os manuais
ª,
falam em rima cruzada, ou alternada, porque, sendo ela do tipo por exemplo, reveza, na sua distribuição
pela estrofe, com o tipo Q, formando o esquema abab, evitando, pois, a sequência de segmentos rimantes
iguais, do tipo aa. Eis um exemplo do esquema mais simples (abab), em conhecida quadra de Bandeira
(1993):

Enfunando os papos, (a)

Saem da penumbra, (b)

Aos pulos, os sapos. (a)

A luz os deslumbra. (b)

Outros esquemas das rimas alternadas: ababab, abcabc. O que se nota nesses casos é uma alternância
cerrada, sem concessão ao paralelismo. Há, no entanto, situações em que alternância e paralelismo se
apresentam juntos numa estrofe, como no esquema abba, por exemplo, com alternância na rimá e ª
76 -- T E o I( I A L I T E R Á H I A
---~--~ o P [ R A [) O R E S [l E L F I T U R ,\ n.\ P () E S I ,\

ª,
paralelismo na rima ll. Separando a rima temos não um segmento rimante (ou um verso), mas dois,
os que fazem a rima b. A rima a/a, realizada nos extremos, nos "polos" da estrofe, como em vibra!
fibra, da quadra logo adiante, são chamadas de interpoladas. Essa possibilidade de juntar alternância e
paralelismo cria uma variada gama de esquemas, tais como abbba, Abbabba, abbaaa, e daí por diante. As
rimas desses esquemas são chamadas de entrelafadas:

Sente como vibra (a)


Doidamente em nós (b)
Um vento feroz (b)
Estorcendo a fibra_ (a) (MORAES, 1987)

A distribução das rimas pela estrofe gera outros esquemas, outros desdobramentos nominativos.
A repetição de um só tipo de rima (aaaaaa .._) confere à estrofe o nome de monorrímica., ~strofe dirrímica
apresenta dois tipos de rima; trirrímica, três tipos. E por aí se vai. As rimas dispostas aleatoriamente na
estrofe, sem um sentido de simetria, são chamadas de rimas misturadas.

UMA ANÁLISE

Diante do que aí está, a pergunta é inevitável: como projetar esses fundamentos teóricos da rima
numa análise literária? Tudo depende do interesse, do alcance dessa análise, como foi dito. Por se tratar
de abordagem aparentemente mais técnica, talvez se possa dizer que o analista mais inspirado, mais
intuitivo, produz ilações consequentes, resultados mais densos, embora, na base, precise respeitar as
sugestões textuais. Uma coisa é analisar um poema curto, outra coisa é abordar um poema longo, ou
mesmo todo um livro, ou ainda toda a obra de um poeta. A abordagem depende, em certa medida,
da potencialidade do poema ou do conjunto de poemas escolhido. Uma das primeiras atitudes do
analista, mesmo em ensaios de longo fôlego, é delimitar o campo de atuação, o que deve ficar bem
claro logo no início de seu texto. A eficiência da investigação e o resultado satisfatório da análise
dependem muito dessa atitude "verticalizante".
Tomemos, como exemplo, o que ocorre no ensaio "Notas para um rimário de Augusto dos Anjos",
de proença (1974, p. 188-200). Diz este crítico, logo no início, que fará um "passeio sem itinerário
preestabelecido", que ficará, defato, nas "notas". Um pouco depois se propõe a um esboço de "linhas
gerais" e desincumbe-se de "conceituação opinante". Mas a coisa não é aleatória assim. Proença, que
não deixa de opinar, é objetivo e restritivo já no título do ensaio (método: elaboração de "notas";
interesse: a rima)_ Quando começa a tratar especificamente da poesia de Augusto dos Anjos, avisa:
"O de que cuidamos aqui é das rimas de fim de' verso". Livra-se de discutir "o uso de esdrúxulos e de
combinação de rimas agudas e graves, os efeitos humorísticos das rimas de proparoxítonos". Não lhe
interessa discutir "as razões que levaram a poesia moderna a preferir as assonâncias e a repelir a rima
de fim de verso". Ao fim de seu trabalho, constatamos, ainda, outra atitude restritiva, a análise mais
detida de um soneto, inserida entre situações generalizantes_
Essa liberdade e essas delimitações não desculpam um texto inconsistente, manco. A análise pede
uma 'argumentação razoavelmente estruturada, coesiva. Os trabalhos escolares, que servem também
ao reforço de aprendizagem, carecem de um exercício teórico suplementar. As ilações complexas ou
polêmicas exigem pisadas cuidadosas, em nome dessa coerência e, por fim, dos propósitos analíticos.
Proença (1974) quase pede desculpas ao lançar a hipótese de que Augusto dos Anjos tenha escrito
alguns poemas a partir de certa palavra rimante. Mas garante "a coerência e a verossimilhança" de seus
argumentos. Essa atitude de defesa parece salutar à prática da análise literária.
Encontramos esse esforço para construir um bom texto no ensaio de Proença (1974), que
exemplifica aqui, em exposição bastante didática, um estudo da rima. Seu desmembramento, a seguir,
se processa em duas etapas. A primeira, sintética e esquemática, procura demonstrar que aspectos
~ORTEZ E RODRIGUES

r podem ser levantados num estudo de rimas e como podem ser dispostos no texto; a segunda expõe
( mais detidamente essas informações, sem perder de vista os procedimentos metodológicos, as soluções
que ajudam a afastar do texto o pragmatismo meramente estatístico. Uma exposição, mais leve, prepara
a outra, minuciosa.
Em linha corrida, e na ordem, temos no ensaio: breve histórico do uso e desuso da rima (gregos,
romanos, hebreus, antigos franceses), discussão conceitual ("definições" de rima, efeitos da rima em
fim de verso e no refrão, aceitação e recusa da rima), fatos na poesia de Augusto dos Anjos. Nessa
última parte importam as rimas aliterante, toatzte e consoante; a atuação da rima (num soneto) como força
influente no tema; as rimas "naturais"; a repetição de pares rimantes e a presença reiterada, neles, de
certos vocábulos. O objeto central da análise - a poesia de Augusto dos Anjos - se faz acompanhar de
importantes reflexões periféricas (mas não inúteis) que engrossam o volume informativo, e aten~am o
impacto negativo da investigação meramente técnica. Assim, os aspectos periféricos valem como um
artifício, um recurso metodológico à disposição do analista. Outro recurso atenuante do esquematismo
é a prática das ilações, das pequenas deduções ou opiniões periódicas, acionadas e potencializadas, a
partir do texto, pela inspiração e/ou pela intuição do analista, que seleciona e destaca interesses. A
análise propriamente dita carece de comentários, lança hipóteses. Proença, por exemplo, sugere que a
rima, funcionando como força criativa inicial, artificializa a poesia. E deduz, eis outro exemplo, que o
uso de "termos correntes" em posição de rima faz de Augusto dos Anjos um poeta simples.
A desmontagem mais detida do ensaio revela melhor as estratégias e os recursos analíticos empregados.
Depois do pequeno "esboço histórico", a explanação conceitual invoca a "homologia da última vogal
tônica", a "identidade sonora", a "repetição periódica" de certos sons, o eco como "elemento rimante"
(utilizado até na prosa). Lemos também que outros recursos, além da rima, auxiliam o ritmo, que a rima foi
tirana durante certo tempo na marcação da pausa final do verso. No bojo dessa discussão teórica, Proença
ainda dedica particular atenção à melindrosa relação dos poetas e críticos com a rima, uns submissos a ela,
outros, os "modernos", desprezando-a. Cita Bilac, Ronsard, Boileau, Fénélon, Verlaine, Cocteau, Mário
de Andrade. E chega a Augusto dos Anjos, que "não teorizou", que "pouco se interessou pela rima", que
"não a adulou", embora tenha ela ajudado sua poesia a se tornar popular. Próximo dos românticos no uso
das rimas, Augusto "rimou mais com o ouvido", o que, em face de um poeta apegado a certos recursos
formais, soa como pormenor "curioso". Percebemos logo que a argumentação periférica se desenvolve
para chegar à central, ao texto poético de determinado autor.
Dito isso, o ensaísta avisa que abordará o rimário de Augusto dos Anjos considerando a rima de
fim de verso, o que o leva a discorrer, no plano teórico, sobre esse tipo de rima, tomada como mais
nítida à percepção, mais intensiva, semântica e foneticamente. Ele aponta alguns resultados das rimas
emparelhadas, como o efeito "monjolo", que, pela expectativa temporal e de repetição, emocionaliza a
leitura, preparando o ouvido para o ritmo. Também a rima fortalece o refrão (cita Poe), atua na "dinâmica
muscular", e, pela forma como se distribui na estrofe, cria tipos poemáticos, atuando até mesmo nas
"formas caprichosas", como o labirinto e a sextilha. Essas observações também valem como preliminares
à abordagem ,específica da poesia de Augusto dos Anjos, O método é simples, sem ser ineficiente:
estabelecer algumas formas de realização da rima no fim de versos a fim de verificar suas ocorrências na
obra do poeta. Uma dessas formas, vimos atrás, relaciona-se com a coincidência (letra por letra ou não)
dos segrÍlentos rimantes, coincidência que gera as rimas soante (consoante), toante, e, como sugere ainda o
crítico, aliterante (insuficientemente explicada, mas entendível como a rima cujos segmentos rimantes,
do tipo gozo/nervo!o, coincide nos sons consonantais com outra rima, do tipo beleza/ace!a. A rima
alíterante pode situar-se no mesmo verso, ou, estando em outro, deslocar-se do final, como neste caso,
citado por Proença (1974): "Palma, palmeira e palmitolPalmito, palmeira e palma."). Para cada tipo o
ensaísta relaciona as ocorrências em Augusto dos Anjos (sem recusar exemplos de outros autores) e em
torno delas faz breves ilações: o tipo aliterante "não foi usado sistematicamente, mas em associações do
tipo consoante, combinando rimas de quartetos e tercetos, estabelecendo uma dupla rima"; no plano do
tipo toante "o uso da mesma vogal tônica com diferença de timbre [/0/ aberto e /0/ fechado, por exemplo]
faz soar e aliterar versos normalmente assonantes, toando na mesma vogal tônica [cQrte/mQrte, pessQa/
rQaJ". Ao tratar da rima consoante (ou soante), o crítico é menos sucinto, menos técnico. Chega mesmo
a invadir os domínios dos procedimentos criativos. Primeiro informa com certo vagar que a rima pode

78 - T E o R I A LITERÁRIA
----~
J':\ o P E R A [) O R E S D E L E I T U R A D A P O E S I A

tiranizar, "dirigir o próprio pensamento do poeta", forçando "condições anômalas", como faz Castro
Alves rimando lampa!destampa!campa_ Pode mesmo, tomada como primeiro fio inspirador, conduzir
as ideias, notadamente nas estrofes ou formas poemáticas fixas. Proença transcreve a opinião de Órris
Soares, segundo a qual Augusto "não raro começava os sonetos pelo último terceto". Esse apego à opinião
alheia para endossar uma ilação pessoal é recurso analítico dos mais usados.
Surge, dessa forma, a hipótese de que a rima, nessa situação de primeiro agente ativo da criação,
forçaria a condição artificiosa do poema, e mesmo da criação poética. Daí o extremo cuidado de
Proença ao abordar a poesia de Augusto dos Anjos por esse prisma. Pede que não o julguemos mal,
pois uma "hipótese é o que a gente faz de conta que é, para ver, se fosse, como é que seria", Não obriga
ninguém a aceitar a sua, embora procure ser coerente e verossímil. Para reforçar a hipótese, transcreve
uma quadra de Augusto dos Anjos com versos incompletos, mas preservando as palivras rimantes, a
demonstrar que primeiro vieram as rimas. A análise propriamente dita incide sobre o soneto ''A ideia",
e essa guinada momentânea para o particular resulta, talvez, da insatisfação com a visadã generalizante.
O ensaísta como que pressente a necessidade de uma análise mais centrada, fechada sobre um texto
completo. Resulta disso, como informação metodológica, um exemplo de "verticalização", de redução
do campo investigativo. Muitos trabalhos se estruturam desse modo, inserindo um estudo mais
centrado e específico no meio da argumentação mais ampla, frequentemente com o intuito de validar
procedimentos, de reforçar hipóteses.
Voltemos ao ensaio, à abordagem das rimas no soneto. A "ide ia nuclear" do poema localiza-se,
segundo o crítico, no último verso do segundo quarteto ("Delibera e, depois, quer e executa!"). A
pressuposição é de que a feitura do poema começou com esta sacada da "psicologia elementar", depois
disseminada nos outros versos do poema. A palavra executa impôs a versos anteriores o segmento
rimante uta (na ordem, bruta!gruta/luta/executa). Ou seja, o poema começou pelo meio. Dito isso,
segue-se a abordagem, caso a caso, e de estrofe para estrofe, das rimas em uta e em osas, inge, ítica e arra,
também presentes no soneto. Verificou Proença que, do primeiro caso, "pouco abundante", a língua
portuguesa registra 37 substantivos, 27 adjetivos e 38 derivativas dos verbos em utar e utír. Para além dessa
informação técnica, o ensaísta busca as possíveis analogias (com o tema geral) das palavras rimantes,
consideradas centro de irradiação sígnica: gruta e luta, "termos correntes" que apontam um poeta
"simples na rima", seriam mais analógicas que bruta, de valor qualificante "bastante vago". Gruta como
que impõe (e explica), por "analogia linear", outros vocábulos do poema, cripta, estalactite; e contrapõe­
se a nebulosas, vocábulo que inicia a rima em osas, uma rima bastante abundante no português, até por
col1fundir-se frequentemente com o sufixo -osa, como ocorre no soneto (nebulosasl misteriosasl
nervosas/maravilhosas), testificando que aqui o poeta não preferiu as formas simples.
Sobre o segundo quarteto, lugar do verso inspirador inicial, ficaram registrados apenas a força
determinante do verso e da rima inaugurais e o valor "menos impressivo" de um outro verso. Já a
análise dos tercetos, com versos terminados sucessivamente em constringe/laringe/raquítica e amarra/
esbarra/paralítica, reforça esse interesse do crítico por ir além do relato técnico:

Nos tercetos, outro verso - agora, a chave de ouro - dirige a construção. Dirige tanto que
obriga o poeta a juntar à ideia o adjetivo pouco aceitável de raquítica ... Da parelha inicial do
pnmeiro terceto, parece que laringe é a nma determinante do primeiro verso que, afinal, se
realiza com felicidade, insistindo na imagem já enunciada em gruta com m(ifalo abs(onso, e
aproximando luta e (onstringe, termos que podem ter alguma afinidade semântica. Quanto
à parelha do segundo terceto, parece que a ordem foi natural, vindo em primeiro lugar o
amarra, associado a paralítica; o esbarra é solução bastante aproveitável de rima, pois não quebra
a coerência do conjunto (PROENÇA, 1974, p. 197).

Feito isso, o ensaísta se aplica na abordagem de "outros aspectos" no rimário de Augusto dos Anjos:
a presença de rimas naturais, "graficamente imperfeitas", como em Aquileslbílis e ~argos, onde,
na prolação, o lei e o 101 átonos finais viram, respectivamente, li! e Iu/. Esse tipo de rima se apresenta
ainda nas ditongações (fal~mais), no contraste entre vogal simples e ditongo (apcdrWbeija, bocal
louca). Proença conclui aqui, depois de muitos exemplos, e com o aval de Órris Soares, que, "de fato,
~ORTEZ E RODRIGUES

! a rima é muito natural e espontânea no Eu e outras poesias". Augusto não teria se preocupado com a
! variedade de rimas, considerando mais a "posição do vocábulo mais importante do trecho ou mero
recurso mnemônico". Essa despreocupação explicaria as repetições frequentes de pares rimantes,
dedução que leva o estudioso a estabelecer e abordar outro aspecto do rimário do poeta: a repetição de
pares rimantes, como ossos/grossos, três vezes presentes. Abundantes, explica o crítico, "são aqueles
em que uma palavra que se diria básica aparece como elemento constante dos pares de rima". O
trabalho do autor, aqui, consiste em buscar pares de rimas segundo a reincidência dessa palavra básica.
Cavalo, por exemplo, aparece em dois pares da rima em alo; laringe, em dois com rima em inge; e assim
por diante. A palavra leite entra em três pares com rima em eite; inferno participa quatro vezes d;s pares
rimantes em erno. O interesse aqui é mais estatístico: "Das vinte rimas em oso, oito recaem e'mgozo;
quinze vezes a palavra mundo aparece nas trinta e quatro rimas em undo". Proença observa, ao fim, que
esse levantamento vocabular não faz lembrar a especificidade terminológica do poeta, caudatária do
cientificismo então em voga. Isso pede uma outra estatística, que ele não se propôs a fazer., .
Não devemos estranhar, ao fim dessa recensão, que o ensaio de Proença resista à informação
temática. Mas não resolve alegar que o estudo da rima tende a anular ou minimizar esse enfoque. Tudo
depende do interesse do analista, do alcance da abordagem, e o resultado analítico satisfatório exige
respeito aos objetivos, pede cuidado metodológico.

FORMAS POEMÁTICAS

Poesia lírica
Derivado do verbo poiéo, que significa fazer, criar, compor, o vocábulo grego poíesis releva o
âmbito original da função poética enquanto componente demiúrgico, isto é, associado ao mito da
criação do mundo. Por isso, os romanos chamavam vate ao poeta, aquele que, possuído das musas
do Parnaso, participava na função divinatória concedida por Apolo, o deus do conhecimento do
futuro.
Por sua vez, o adjetivo lírico (lyrikós) evoca o instrumento grego da lira, símbolo de toda a música, cujas
cordas, ab vibrarem, despertavam as mais profundas emoções e sentimentos humanos. Por isso, a poesia era
cantada ou recitada por aedos (do verbo ádo, cantar). Foi a figura mitológica de Orfeu, legendário inventor
da cítara, que serviu de modelo à voz que canta os animais e seduz a natureza. Essa ligação com o canto não
é rompida; mesmo no sentido moderno do termo, o lirismo será definido como a expressão pessoal de uma
emoção demonstrada por caminhos ritmados e musicais. Paul Valery (1941, apud STALLONI, 2001, p.
151), em Tel Quel, declarou que "o lirismo é o desenvolvimento de um grito".
Na Idade Média, as composições líricas eram designadas como cantigas (de amor, amigo, escárnio
e maldizer), enquanto se chamava cansó o poema provençal que cantava o amor. No Renascimento,
na medi'da velha, contam-se, entre outras formas líricas, a cantiga e a trova; e na medida nova, além
do soneto (de sonare, tocar), também a canção entre as formas originárias da poesia italiana, enquanto
perdura a<designação grega de ode, nas vertentes moral ou filosófica, cívica ou política.
Toda essa terminologia acentua o caráter essencialmente musical da poesia, designadamente a
lírica, cujos elementos característicos são: o ritmo (combinação de sons tônicos/átonos, ou fortes/
suaves); a melodia (ou a progressão da frase em altura, segundo um movimento ascendente versus
descendente); e a harmonia (ou repetição intencional de sons, através de recursos como a rima, a
assonância, a aliteração, a onomatopeia, o eco).
Levando em consideração as diferenças teórico-ideológicas e estético-formais que marcam as
várias correntes literárias, desde os tempos medievais à contemporaneidade (para não falarmos da
Antiguidade), o discurso lírico é caracterizado pelo sentir, em conjugação com o pensar. O sujeito

80 -- T E o R I A LITERÁRIA
----.~ o P F RA [) O R E S D F L F I T U R A [) A P O E S I A

lírico interpreta as tensões e os conflitos que fazem parte do mundo individual e social, discutindo
temas como o amor e o ódio, a fidelidade e a traição, a paz e a guerra, entre muitos outros. Temas
representados com uma pluralidade de pontos de vista subjetivos e com uma variedade formal dos
esquemas estróficos, métricos, rítmicos e tono-rimáticos, em conformidade com a expressão estilística
do mundo imagético e metafórico, além do jogo sintático-semântico das antíteses, inversões e
trocadilhos - matéria lírica estimuladora da sensibilidade do leitor, espécie de apelo para compartilhar
ideias, emoções, sentimentos e atitudes.
A poesia lírica cumpre, assim, o seu papel de "satisfazer as necessidades estético-espirituais dos
leitores, ao mesmo tempo em que realiza uma tarefa educativa invejável, rivalizando com a música e
a pintura" (PAZ; MONIZ, 1997, p. 170). O poeta lírico, por sua vez, pintor de palaV'ras e.músico de
sons linguísticos, deve ser considerado um interlocutor e um intérprete privilegiado do mundo real e
do fantástico, das frustrações, dos desejos, das utopias, das dúvidas e das angústias de cada época e de
cada sociedade a que pertenceu. Quase sempre marginalizado, infelizmente, pelas esfer~; do poder e das
influências, valorizado postumamente, o poeta é considerado um "profeta que pregou no deserto".

Elegia
Dentre as formas poematlCas existentes, podemos, inicialmente, citar a elegia (do grt!go élegos),
canto deluto, que cumpre o papel de prolongar a inspiração lírica, não passando, porém, de um lirismo
limitado e codificado. Segundo os críticos, praticaram-na os poetas alexandrinos Calímaco e Filetas, e, na
lírica latina, Ovídio, Catulo, Tibulo e Propércio figuram como principais cultores, compondo dísticos
elegíacos, em hexâmetros (versos de seis pés) e pentâmetros (versos de cinco pés). Desses mestres, a
lírica provençal herdou o chamado pwnctus, do qual a lírica galego-portuguesa recolheu o pranto, como
aquele em que o jogral Joan Ruiz lamenta a morte de Dom Dinis e a decadência daquela escola:

Os namorados que troball d'amor

todos dcvian gr:lU dôu fazer.

e non tomar em si nen un prazer.

porque perdcron tan boô senhor

como cl-rei D. DenIS de Portugal (PAZ; MONIZ, 1987, p. 72).

No Renascimento, foi com Sá de Miranda que a elegia foi instaurada na literatura portuguesa. O
terçeto que compõe À morte do príncipe Dom João, filho de D. João III e pai de D. Sebastião, comprova
o fim da Idade de Ouro:

Nesta terra Já não, antes do desterro,

Daí lágrimas sem fim:lo mal infindo,

Idade pouco há d'ouro, hoje terro (PAZ; MONIZ, 1997, p. 72).

Camões herdou todo esse patrimônio estético-literário, compondo elegias em que tece com
inúmeras referências mitológicas e filosóficas a profundidade da sua retlexão e canta a mágoa lírica, sob
a clára influência expansiva de Ovídio; a mágoa do exílio humano que constitui, segundo a ideologia
platônica e neoplatônica, a vida terrena:

Esta imaginação me acrescenta


mil mágoas no sentido, porque a vida
de imagmações tristes se sustenta.
Que, pois, de todo vive consumida,
porque o mal que possui se resuma,
imagina na glória possuída
até que a noite eterna me consuma,
ou veja aquele dia desejado
em que Fortuna faça o que costuma;
se nela há i mudar um triste estado (CAMÕES, 1994, p. 242).
~o R TEZ E RODRICUES

Ode
Ao lado da elegia, poderíamos mencionar a ode (do grego odé, pelo latim, ode, significando canto),
termo atribuído pelos gregos a um certo tipo de poema lírico de caráter erudito, destinado a ser cantado
com acompanhamento instrumental. Admitia várias formas rítmicas, nas criações dos poetas Alceu,
Safo, Píndaro (originando a ode píndara) e Anacreonte.
A sua forma e inspiração são variáveis; estruturada em grupos de três estâncias, a estrofe, a antÍstrofe
(inversão) e o épodo (terceira parte de um canto, dividido em estrofes, na poesia antiga). Ad9tada e
cultivada por Horácio, que a distinguiu, quanto ao tema, as cívicas, as pastoris, as amorosas, as báquicas
ou anacreônticas e as particulares ou privadas. Recriadas, mais tarde, pelos clássicos.
N a poesia portuguesa, constitui, a par do soneto e da canção, uma das principais formas poem"áticas
importadas do Cinquecento italiano (período quinhentista), em medida nova. Sá de Miranda e António
Ferreira traduziram e imitaram as Odes horacÍanas. Camões escreveu treze odes, bem comá os poetas
portugueses neoclássicos Correia Garção e Cruz e Silva. Entre os poetas do século XX, merecem
especial relevo Antonio Botto e Miguel Torga.
As Odes camonianas, publicadas pela primeira vez em 1595, não destoam no conjunto de textos
líricos, apesar de apresentarem uma desigualdade entre si, mas os temas essenciais que caracterizam
a sua lírica todos se espelham nas odes, desde a projeção da poesia tradicional à influência da cultura
e da poesia clássicas, de Petrarca e dos poetas petrarquistas, do platonismo. O amor e a saudade ­
a experiência e o conceito do amor; a natureza, intimamente associada à vida amorosa, segundo
Cidade (1992), emolduravam o quadro lírico, antecipando o confessionalismo e a projeção do eu, nos
momentos de emoção do sujeito lírico, tão bem expresso nos versos da Ode VI, de Camões:

Pode um desejo imenso


arder no peito tanto
que à branda e à viva alma do fogo intenso
lhe gaste as nódoas do terreno manto,
e purifique em tanta alteza o esprito
com olhos ullortals
que faz que leia mais do que vê escrito (CAMÕES, 1994, p. 269).

Écloga
Outra forma poemática que pode ser também mencionada é a écloga ou égloJ;a (do grego eklogé,
seleção, destaque, pelo latim, écloga), poema de caráter bucólico-pastoril que canta a natureza
campestre, no qual as ninfas ocupam uma posição central. Na literatura portuguesa, a écloga
foi naturalmente produzida por poetas clássicos, sob a influência de Virgílio, desenvolvendo-se
em diálogo entre pastores, após uma introdução do autor; admite tanto a medida velha como a
nova.
No Renascimento, a sua composição era a de um exercício que tazia parte das atividades escolares
dos humanistas, por ser considerado importante na aprendizagem da língua e das poéticas latina
e vernácula. Essa torma clássica da poesia terá tido a sua primeira manifestação com Bernardim
Ribeiro, a:útor de cinco composições do gênero, seguindo-se por Cristóvão Falcão, a quem é atribuída
a Criifal, Sá de Miranda, autor da famosa écloga Basto, e Luís de Camões, que se identifica com a
brandura da écloga, com o diálogo dos pastores, num cenário aprazível e idealizado, verdadeiro
refúgio para abrigar as sem razões do mundo real, pelo que empreendem uma fuga sem retorno.
O leitor não encontrará nas éclogas camonianas a dicotomia campo/cidade nem a moralização, que
se evidenciam nas composições de Sá de Miranda. Mostram, contrariamente, a unidade essencial da
lírica e uma participação da problemática geral das Rimas. A Écloga VII, As doces cantilenas que cantavam,
texto-exemplo, transporta o leitor para o imaginário mitológico e para as formas do conhecimento
simbólico, suscitando uma leitura alegórica. que caracteriza o texto:

82 TEOPI/\ LITEHÁRIA
~o P E R ,\ O c) R E S D E L E I T V H ,\ I),~ I' () E S [ ,\

As doces cantilenas que cantavam


os semícapros deuses, amadores
das Napéias, que os montes habitavam,
cantando escreverei; que os amores
aos silvestres deuses maltrataram,
já ficam desculpados os pastores.

[ ... ]

No cume do Parnaso, duro monte

de silvestre arvoredo rodeado,

nace ua cristalina e clara fonte,

donde um manso ribeiro derivado,

por cima d'alvas pedras, mansamente

vai correndo, suave e sossegado (CAMOES, 1994, p. 366).

Madrigal
Podemos citar, ainda, entre essas formas poemáticas, o madrigal (do italiano madrigale, talvez do
latim tardio, matrica/e). Constitui uma pequena composição poética em que, de uma form! elegante
e galanteadora, se celebra uma dama. De origem popular, os poetas palacianos começaram a cultivar
o madrigal na metade do século XlV Aparenta-se originalmente com a pastoreIa provençal, e na
concepção renascentista faz lembrar um idílio grego.
Até fins do século xv, quando culto, o madrigal teve uma forma fixa; era um verso decassílabo
rimado e constava de dois ou três tercetos seguidos de um ou dois dísticos. Ajudado pela difusão
da forma musical com que passou a ser cantado, o madrigal italiano atravessou tronteira e chegou
a Portugal e Espanha. Seguiu a forma fixa muito próxima à original; o poeta Faria e Sousa (1615)
compôs perto de duzentos madrigais, quase todos em castelhano. Essa forma poética predominou
nos séculos XVII e XVIII em Portugal, destacando-se l'vladrigal excêntrico, nas Líricas e bucólicas (1884)
de António Feijó. No século XX, foi cultivado pelo poeta David Mourão-Ferreira (J 927-1996), um
dos mais importantes poetas portugueses da contemporaneidade. Comprovam-nos os versos de Entre
a sombra e o corpo:

Nada mais efêmero


Que uma taça e um ceptro
No deserto
És de novo uma fonte
Em tuas veias ouve
Quem não foste

Diante do teu ventre


Como não dizer "Sempre"
Novamente (MOURÃO-FERREIRA, 1980, p. 39).

Também o idaío (do grego eidylion, pequena imagem), fonna poética que designa uma composição
poética de tema bucólico ou pastoril, segundo os modelos de Teócrito (Idaios) ou de Virgt1io (Bucólifas)
e Aus6nio. Os traços comuns a tais modelos são o amor, a sensualidade e a presença viva e extasiante
da natureza. O próprio adjetivo ídaico conota e veicula tais traços.

Soneto

O verso e o poema de forma fixa são os meios favoritos do lirismo e dos grandes sentimentos
individuais, sendo os seus temas privilegiados. O soneto é a fonna mais viva e fecunda das fonnas fixas.
Codificado por Petrarca, vem da Itália e foi introduzido na França pela escola de Marot, antes de se
tornar gênero preferido dos poetas franceses Du Bellay e Ronsard.

Tll(lMA\ Bo NN ft" r / L úc tA OS!\NA Z(n [I'J «() i{C:\N r ZA D() R \,\) 83


,?ORTEZ E RODRIGUES

j Foi divulgado em Portugal, no século XVI, por Francisco Sá de Miranda, apesar de eXIstIr a
! possibilidade, segundo Faria e Sousa, de ter sido praticado, primeiramente, por D. Pedro. Mas foi
com Camões que assegurou o seu triunfo, uma vez que a sua incontestável vocação lírica e o seu vigor
de apaixonado, unidos à musicalidade de seu verso, definiram o tom do soneto escrito em língua
portuguesa, que perdurou até oS séculos XVII e XVIII, sob a sua influência. Composição poética
densa, típica do dolce stil nuovo, versando, normalmente, o amor, tem forma fIXa constituída por duas
quadras (ou quartetos) e dois tercetos, em verso decassílabo (raramente dodecassílabo), com cadência
6-10, ou, menos frequentemente, 4-8-10; no geral, graves. As rimas são dispostas de maneira estrita:
abba abba ede dcd, com variante nos tercetos cde, cde: ,-

Leda serenidade deleitosa,


que representa em terra um paraíso;
entre rubis e perlas doce riso,
debaixo d'ouro e neve, cor de rosa;

presença moderada e graciosa,


onde ensinando estão despejo e siso
que se pode por arte e por aviso,
como por natureza, ser fennosa;

falta de quem a morte e a vida pende,


rara, suave; enfim, Senhora, vossa;
repouso nela alegre e comedido";

estas as armas são com que me rende


e me cativa Amor; mas não no que possa
despojar-me da glória rendido (CAMÕES, 1994, p. 138).

o desenvolvimento da ideia subordina-se à elaboração das estrofes, fazendo-se por períodos que
se contêm rigorosamente nos limites destas, de forma que o fim de cada estrofe é marcado por uma
pausa. A composição deve" terminar com um verso que encerra o pensamento elevado numa cadência
sem defeito. É o verso chamado "chave de ouro".
O soneto barroco, porém, admite maior liberdade na escolha do assunto, apesar de confirmar todos
os preceitos do soneto quinhentista. A esse respeito, Felipe Nunes ensina em sua Arte poétua, composta
em 1615: "nos tercetos há-de estar a substância do soneto; os oito versos de antes [dos quartetos] hão­
de vir dispondo e fazendo a cama a estes derradeiros". O autor enumera, também, outras espécies de
soneto: (õ) soneto em duas línguas (português e castelhano ou português e latim), que tenham o mesmo
significado; o soneto retrógrado, que se pode ler da esquerda para a direita ou vice-versa, com versos que
sempre rimam e fazem sentido; o soneto com repetição, em que cada verso começa pela última palavra do
verso precedente (recurso utilizado pelos trovadores medievais); entre outros.
Segundo Prado Coelho (1996), a teoria da composição do soneto foi-se dificultando até o
movimento neoclássico (Arcadismo), passando pelos exageros gongóricos do Barroco. Surge a teoria
do silogismo: na obra Luzes da poesia, de Manuel Borralho, publicado em 1724, afirmando que o
primeiro quarteto deveria corresponder a uma premissa maior, o segundo, a uma premissa menor,
enquanto que nos tercetos dever-se-ia encontrar uma síntese. Essa exigência foi superada por Vemey,
no seu combate ao preciosismo seiscentista, proposta claramente refletida em poetas como Jerônimo
Baía, por ~xemplo: "Não viu tão doce, plácida e amenajBrame o mar, trema a Terra, o céu se agravej
Luz o céu, ave a Terra, o Mar sirena". Para Verney, o assunto do soneto deveria ser proposto na primeira
quadra, ou nos dois primeiros versos (se o poeta tivesse "mais cabedal"); o restante deveria conter
o desenvolvimento da proposição, argumentando-se nos tercetos. O pensamento final deveria ser
"nobre e natural" e precisava "dizer mais do que soasse".
Assim, os sonetos neoclássicos, estruturalmente corretos, apresentaram uma pobreza de conteúdo,
revelando-se poeticamente pobres. Bocage foi o mais inteligente compositor desse período, chegando
ao número de quatrocentos sonetos. Seu estilo eloqüente dominou até o advento do Romantismo,
contribuindo para tomar o gênero mais fácil, substituindo pelo jogo de artifícios poéticos os princípios
de composição demasiado rigorosos de Vemey e BorraJho. Apresentou uma sofrida reflexão sobre a

84-TEORIA LITERÁRIA
~OPERADORES DE LEITURA DA POESIA

vida e o homem contemporâneo, dando-se conta da ineficácia da Razão, motivo pelo qual abandona
a atitude regular e castradora, colocando em xeque as premissas filosóficas que explicam o estar-no­
mundo, além de lamentar os princípios canônicos que regiam a poesia arcádica, a que estava filiado:

Chorosos versos meus desentoados,

Sem arte, sem beleza, sem brandura,

Urdidos pela mão da Desventura,

Pela baça Tristeza envenenados:

Vede a luz, não busqueis, desesperados,

No mundo esquecimento a sepultura;

Se os ditosos vos lerem sem ternura,

Ler-vos-ão com ternura os desgraçados_

Não vos inspire, ó versos, cobardia

Da sátira mordaz o furor louco,

Da maldizente voz a tirania.

Desculpa tendes, se valeis tão pouco;

Que não pode cantar com melodia

Um peito, de gemer cansado e rouco (BOCAGE, 1968, p. 130).

o soneto foi retomado no século XIX por Antero de Quental (poesia metafísica), com feições
de pessimismo e seriedade. Conservou a forma clássica, apenas distribuindo as rimas, nos tercetos,
pelo esquema [cd/eed. Destaca-se a gravidade do assunto tratado pelo poeta e a autenticidade
da emoção em pleno Realismo ("Tormento do ideal"; "O palácio da ventura"; "Na mão de
Deus", entre muitos outros). De acordo com Prado Coelho (1976), coube a Antero a glória de
provar que com um antigo instrumento, a poesia pura, se podia fazer música nova. Mas foram,
porém, os parnasianos que conseguiram modernizar o soneto, analisando-o, desmontando-o,
reconstruindo-o.
Os catorze (tradicionais) versos foram mantidos, mas, quando convém, a disposição das estrofes é
alterada, embora se registre no papel a sequência de quartetos e de tercetos. A alteração está na pausa
final de cada estrofe, que pode deslocar-se ao interior da estrofe seguinte, de acordo com o conteúdo
lógico da expressão. Sendo assim, o ouvido pode surpreender uma quintilha e um terceto, onde os
olhos leem dois quartetos; ou ainda, pode-se ouvir uma quadra e um dístico, onde se leem dois
tercetos, numa verdadeira assimetria poética.
A mais e10quente expressão da temática parnasiana encontra-se nos poemas de Alberto de Oliveira
("Vaso grego", "Vaso chinês"; "Taça de coral"), representante da escola parnasiana no Brasil. O mérito
maior ficou com Olavo Bilac, pela técnica apreendida (Gautier e Lcconte de Lislc) e pela originalidade
das imagens conseguidas. O amor pagão da natureza e da vida, a sensualidade e a consciência dolorosa
do drama de envelhecer constitui a temática de sua poesia ("Remorso"; "lnania verba"; "A sesta de
Nero"; "Beijo eterno", "Ora, direis, ouvir estrelas", entre tantos outros).
O Simbolismo também cultivou e recebeu a forma fixa do soneto, enfatizando a descrição e a
suge,stão (a palavra vale enquanto símbolo). Além do "achado baudelairiano das Correspondências, a
natureza latente das vogais, revelada em soneto por Rimbaud, suscitaram imitações mais ou menos
felizes", e o soneto místico praticado por Verlaine reaparece em Alphonsus de Guimaraens. Nas
compósições, as sinestesias, de valor literário descoberto pelo Simbolismo, tornaram-se obrigatórias e
inspiradoras para os poetas portugueses e brasileiros das últimas décadas do século XIX. Gomes Leal,
ao lado de Camilo Pessanha (''Violoncelo''), em Portugal, e Cruz e Sousa e o já citado Alphonsus, no
Brasil, são os principais representantes do soneto simbolista.
No Modernismo, Vinícius de Morais revaloriza a forma fixa, publicando perto de quarenta sonetos
amorosos, de "nítida impostação camoniana", segundo Portella (apud SILVA, 1989, p. 134). Textos
como "Soneto de fidelidade", "Soneto de despedida", "Soneto de separação", entre tantos outros,
compõem a sua vasta produção poética, confirmando a intenção de reviver de forma inovadora o
soneto clássico.

f!IOM;\\ Bpi'iNI('/ / Ll:1CIA O\t\NA ZOLIN (OIH,A0JIZ/\UOltlS) - 85


C?ORTEZ E RODRIGUES

i
Cultivado desde o Renascimento até aos nossos dias, o soneto revela, segundo a crítica, um caso
único de sobrevivência dum molde literário à evolução e às mudanças do gosto estético.

LER POESIA

Da dificuldade da poesia
Retomando as ideias iniciais, fala-se muitas vezes na "dificuldade" da poesia. Cada poema é uma
porta que se abre para a solução de todos os seus problemas - caminho que acaba por nos conduzir ao
centro de um inesperado espaço que muitos julgam ser inexplorável ou intransponível. Realmente, os
que se veem obrigados a contemplar o texto poético reconhecem que não lhes é possível transitar de
um modo fácil nesse tipo de texto.
Não se julgue, contudo, que essa dificuldade da poesia resulte sempre de uma intencional
obscuridade, do recurso permanente a um conjunto de imagens ou palavras que, progressivamente,
se afastaram de nós e, tendo perdido o seu sentido comum, essa obscuridade tomou-se uma e~pécie
de respiração em cada poeta que lemos. Outro fator que devemos levar em conta é a própria evolução
da arte poética e a quebra do equilíbrio que deveria existir normalmente entre o artista (o poeta) e o
público leitor. Essa evolução é quase sempre determinada por um progresso nos meios de expressão,
ocorrendo desde o entrebescar los motz (linguagem poética ambígua, de vários sentidos) dos trovadores
medievais à agudeza dos barrocos ou à novidade vocabular dos simbolistas, ou, ainda, a uma posição
polêmica que negaria a própria dualidade obra/leitor, tal como ocorreu no Modernismo e suas
manifestações.
Como explicar esses desencontros, esses desníveis que se manifestam entre o poeta (criador de
valores estéticos) e o leitor (aquele que procura tomar consciência desses valores) na tentativa de
redescobri-Ios em cada poema que surge? A explicação poderia estar nas várias razões que contribuíram
para a definição dessa cultura através de uma concepção de vida, de uma certa orientação ideológica,
de uma seleção de atitudes, de ocupações diversas, onde a arte poética acabaria por estar também
incluída. Sem dúvida, um conjunto de condições sociais e culturais específicas cujo peso se impõe e,
muitas vezes, o poeta, ocultando-as ou referindo-se a elas nas suas obras, convencionou servi-las. Os
problem'as, as dificuldades de interpretação que essas obras apresentam desapareceriam em grande
parte com um estudo prévio desse condicionalismo, o qual forneceria as chaves para a solução dos
vários enigmas que, no caso da poesia, poderiam vir à tona sob a forma de tropas, temas ou alusões
históricas.
Outro caminho para tentar solucionar as inúmeras dificuldades poderia ser a leitura do poema,
tendo como ponto de partida a sua realidade expressiva. Exemplificando, numa leitura mais atenta
das cantigas de amor, de influência provençal, vamos sempre encontrar um sentido de mistério, uma
obscuridade, relacionada à sua linguagem. Impõe-se a necessidade de um conhecimento básico da
linguagem utilizada (o galego-português), considerando-se o aspecto lógico do seu desenvolvimento.
Sem esse prévio cuidado, o texto, na sua originalidade, mostrar-se-ia incapaz de fornecer ao leitor
sentido Plalor ao que o poeta se propunha revelar.
Essa "invenção" da linguagem não se trata, porém, de um jogo hábil e gratuito sobre o qual o
poeta se debruça. Se essa atividade existe (lembremo-nos de que a atividade de trobar inclui a noção de
inventar, descobrir) é porque ela se apresenta como o único caminho que se abre sobre uma realidade
cujo significado seria desvalorizado ou transferido, caso o leitor não dispusesse de tal recurso como
possibilidade expressiva. Insistindo na poesia trovadoresca, há que se considerar a possibilidade de
que o trovador deveria alcançar um conjunto de problemas e valores, os quais permaneceriam como
intuições ou sentimentos incapazes de se objetivar. Poderíamos destacar aqueles que se referem ao
intuito consciente ou inconsciente de conciliar uma tensão amorosa que deveria sublimar-se pela
adrniss:lo de uma hierarquia com raízes sociais e metafísicas (de um lado, o homem medieval está

86 TEORIA LITEnÁnlA
-~OPERADORES DE LEITURA DA POESIA

situado numa sociedade teocêntrica e, por outro, deveria atender à sua apetência erótica e emocional
mundana). A linguagem eÀ-pressiva constitui a tentativa de uma explicação ou uma conciliação dessa
dupla realidade vivida pelo poeta/trovador.
Enquanto a ciência valoriza a função lógica da linguagem, procurando estabelecer em face do real
um sistema de designações que permite formular leis rigorosas, capazes de descrever fenômenos, a
poesia, na tentativa de descobrir o que a ciência não consegue esgotar, faz uso de um registro diferente
da linguagem, a partir da apreensão da realidade, permitindo-se a incidência de um conjunto de valores
cÀ-pressivos que conduzem a alterações de sentido. As palavras não solidificam um cqnceito; pelo
contrário, há nelas uma tensão interior, resultante das suas potencialidades significativas, 6u até do
seu valor contextual. Por essa razão, cada poema poderá isolar-se em si mesmo, fechandó-se nos seus
enigmas e afastando-se das possibilidades de entendimento imediato do leitor; as palavras' resistem à
solidificação.
Um exemplo que evidencia essa expressividade da linguagem poética é a poesiá simbolista de
Eugênio de Castro e Camilo Pessanha, representantes do Simbolismo em Portugal. Esses poetas
praticaram em suas obras uma verdadeira renovação vocabular, tendo-se em vista a necessidade de
se propor uma leitura que se afaste de esquemas já gastos pelos movimentos literários antecedentes,
comprometendo, às vezes, a leitura dos próprios poemas. No poema Um sonho, pertencente à antologia
intitulada Oaristos, configura-se a expressividade da linguagem poética simbolista:

Na messe, que enlourccc, estremece a quermesse [... ]


O sol, o celestial girassol, esmorece[ ... ]
[ ... ]
As estrelas em seus halos
Brilham com brIlhos sinistros[ ... J
Cornamusas e crolatos.
Cítolas,cítaras, sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Em suaves,
Suaves, lentos lamentos
[ ... ] (CASTRO apud MOISÉS, 1991, p. 345).

Chorai arcadas
Do vlOloncelo l
Convulsionadas,
Pontes aladas
De pesadelo ...
[ ... ]
Trêmulos astros [ ... ]
Soidões lacustres [ ... J
Lemes e mastros [ ... J
E os alabastros
Dos balaústres I
[...J (PESSANHA, 1980, p. 49).

I lá um desencontro entre o leitor e o poeta, que não consiste em o primeiro deparar-se com uma
linguagem diferente, mas na sua recusa em proceder a uma nova leitura, que o próprio texto implica
ou exige. No caso dos poetas simbolistas acima mencionados, tudo é evocação (Chorai arcadas/ Do
vioI01JCelo!) e os objetos parecem perder o contorno (As estrelas em seus Iullos/ Brilham com brilhos sinistros),
criando uma imagem de um mundo vazio (Trêmulos astros.. ./Soidões lacustres.. ./Lemes c mastros...). Os
poetas, apoiando-se nos recursos estilísticos e formais (aliteração, invenção de rimas raras, escolha de
palavras exóticas), constroem um mundo diferente, fruto de uma espécie de delírio, vivendo estados
de espírito mórbidos e sensuais. É a chamada poesia culta, graças ao conhecimento e exploração
intencional de um conjunto de recursos estilísticos, descobrindo-se um valor musical das palavras e
do verso, objetivando afastar a poesia das impurezas da prosa, numa espécie de ressonância mágica,
relembrando Bremond: "não das ideias ou sentimentos do poeta, mas do estado de alma que o fez
poeta" (SILVA, 1989, p. 68). E esse "estado de alma" é traduzido em palavras que obedecem a uma
estrutura estrófica, às rimas, ao ritmo e à métrica.

THOMAS BONNICl / LLJcr,,, O\ANA ZOl.lN «)R(~ANI/.A1)DRES) - 87


~ORTEZ E RODRIGUES

! Quanto à estrutura estrófica, esta pode ser considerada um bloco ou agrupamento de versos de
que um poema é constituído, admitindo-se que esse elemento é estritamente gráfico, separado por
espaços em branco, visualmente registrado. Também denominada estância (termo utilizado pelos
poetas clássicos, hoje quase em desuso), constitui blocos fônicos (ligam-se com o ritmo de cada verso)
e unidades sintáticas. As estrofes são elaboradas em blocos de um a dez versos: monóstico (um verso
apenas), dístico (dois versos), terceto (três versos; muito presente nos sonetos); quadra ou quarteto
(quatro versos; também presente no soneto); quintilha (cinco versos); sextilha (seis versos), sétima
(sete versos); oitava (oito versos); nona (nove versos) e a décima (dez versos). "
,
Quanto às rimas, coincidências de sons em determinados pontos dos versos, participando da
oralidade do poema como uma ressonância associada ao ritmo, principalmente em razão de seu
posicionamento em sílabas fortemente acentuadas. As rimas constituem um recurso importante na
elaboração do poema, uma vez que são fonêmicos e não gráficos e que, considerada a sua sonoridade,
fácilitam a memorização. ' .'
De acordo com Pires-de-Mello (2001, p. 31), a rima "tem sido objeto de apaixonado acolhimento
e veemente repulsa através dos tempos". Datada do século XII, era cultivada na poesia trovadoresca,
persistindo por séculos, até a ocorrência de poemas em versos brancos no Romantismo. Na poesia
contemporânea, oscila entre a aceitação e a recusa, de acordo com as preferências individuais. t>. sua
classificação (e a sua nomenclatura) tem sido desencontrada, dificultando os estudos a respeito. O que
aqui se pretende é demonstrar de forma simplificada e comum os esquemas já existentes.
Quanto à natureza (ou oralidade propriamente dita), as rimas classificam-se em toantes
(ou assonantes, usadas em nosso idioma durante os séculos XVI e XVIII) e consoantes (perfeitas,
opulentas, imperfeitas e surdas); quanto à disposição nos versos, poderão apresentar-se emparelhadas
(ou geminadas), alternadas (ou cruzadas), intercaladas (ou interpoladas), encadeadas, continuadas e
misturadas. Já em relação ao seu posicionamento no poema, classificam-se como finais e internas
(coroadas), e, quanto à acentuação, podem ser oxítonas, agudas ou masculinas; paroxítonas, graves ou
femininas; proparoxítonas ou esdrúxulas. Finalmente, podem ser classificadas, quanto à sua qualidade,
como pobres (a mesma classe gramatical das palavras), ricas (classes gramaticais diferentes) e raras ou
preciosas (uma mistura de classes gramaticais),
Com o advento do Romantismo e a liberdade de criação poética, houve uma quebra de regularidade
da estrofe, excluindo-se a possibilidade da adoção de um plano uniforme de rimas. Segundo Pires­
de-Me1l9 (2001), "um determinado verso não se impõe pelo número de sílabas de que é formado,
mas pelo ritmo ou ritmos que, com base nesse número, é possível criar" (p. 33). Trata-se do poema
polimétrico, com estrofes construídas arbitrariamente, no que diz respeito ao número e à medida de
versos e à rima usada de maneira acidental.

Uma leitura
Vencidas essas etapas da descodificação do texto poético, um comentário de um poema não
se aprese;nta como fácil tarefa, porque não necessita referir-se ao autor nem ser um pretexto para
divagações à volta do texto. Trata-se de um trabalho que deverá considerar o texto como uma unidade
significativa, constituída por significante e significado, conduzindo a uma interpretação de cada leitor.
Podemos ifirmar que não há um método único de leitura crítica. Há, sim, abordagens possíveis de um
texto literário e podemos sugerir aqui uma delas.
O primeiro passo será em direção à decodificação do texto e à determinação do tema, logo após
uma leitura cuidadosa. As dúvidas podem ser esclarecidas com a ajuda de um dicionário, ao nível do
vocabulário, identificando-se, em seguida, o assunto através dos pormenores mais importantes e das
ideias que o texto desenvolve para se obter o tema, que deve ser formulado com clareza e brevidade. O
segundo passo será em direção à estrutura do texto poético, considerando o desenvolvimento do tema,
a partir de uma observação de sua distribuição em cada uma das partes que compõem o poema. A
ligação lógica entre elas, oposição, continuidade, causalidade e consequência, entre outras, devem ser

88 - T E o R I .A LITERÁRIA
·_-~ o P L H A I) O R I ' [) [ L E [ T ti R.~ [).\ P O E S I A

consideradas, para que o leitor atinja os processos de enriquecimento da mensagem e o seu significado,
partindo-se para uma análise formal e a ligação forma/conteúdo.
Nessa última etapa, três níveis de análise poderão ser considerados: o jônico (rima, ritmo, fonemas
dominantes, aliterações, alternâncias, repetições, pontuação etc.), o moifossintático (tipos de frase,
ligações sintáticas, categoria das palavras, como verbos, substantivos, adjetivos, entre outras) e o nível
semântico, compreendido pela conotação, denotação, ambiguidade, polissem ia, redundância e figuras
de estilo. Essas fases complementam-se com a redação de um texto em que se ressaltará claramente a
ligação entre cada uma das etapas da análise feita. Na leitura atenta, a relação com outros textos, um
alargamento do tema e suas implicações sociológicas, filosóficas, morais, estéticas, históricas serão
pertinentes.
Tomemos como exemplo o texto Ela canta, pobre ceifeira, de Fernando Pessoa:

Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez;

Canta, c ceifa, e a sua voz cheia

De alegre e anônima viuvez,

Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave _

Do som que ela tem a cantar,

Ouvi-la alegra e entristece,

N a sua voz há o canto e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões p'ra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão'

O que em mim sente 'stá pensando.

Derrama no meu coração

A tua iucerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo cu'

Ter a tua alegre inconsciência,

E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!

Entrai por mim dentro! Tornai

Minha alma a vossa sombra leve!

Depois, levando-me, passai! (PESSOA, 1981, p. 78).

Composição datada de 1914, ultrapassa em muito o primeiro momento poético do Paulismo


("Impressões do crepúsculo", poema composto no ano anterior), contendo as características formais
da poesia ortônima (escrita por ele-mesmo). Versa uma temática fundamental da sua obra (a dor de
pensar) e comporta referências linguísticas e ideológicas próprias dos heterônimos, criados algum
tempo depois (por exemplo, "a vida é tão breve" lembra-nos Ricardo Reis).
Partindo-se da observação do uso da quadra, a simplicidade e a depuração da linguagem para transmitir
grande; densidade ideológica e afetiva, a simbologia, o ritmo, o aproveitamento de alguns efeitos fôrucos típicos
de FeÍnando Pessoa estão presentes nesse poema, constituído por seis quadras, com versos octossílabos e
rima cruzada, segundo o esquema abab, havendo duas pequenas irregularidades: na primeira estrofe, é toante
a rima de ceifeira com cheia; na quinta estrofe, é forçada a rima de eu com céu.
Há vários exemplos de transporte ou encavalgamento e ainda aquilo a que, na poética trovadoresca,
chamava-se atafinda (até o fim), ou seja, a continuação do sentido do último verso de uma estrofe no
primeiro verso da estrofe seguinte, como acontece na passagem da primeira para a segunda e da quinta
para a sexta estrofe. Há, ainda, vários exemplos de aliteração:
• em l, no segundo verso da segunda estrofe;

TliOMAS BONNICI / LÚCIA OSt\NA ZOL!N (ORC,ANIZ:\DORES) - 89


~o R TEZ E RODRICUES

• em v, no terceiro verso da mesma estrofe;


• em s, na passagem do terceiro para o quarto versos da mesma estrofe (110 enredo suave! Do
som... );
• nos dois últimos versos repete-se o som v, mais uma vez.

A insistência nesses sons consonânticos, sugestivos de amplitude e de passagem, quando associada

à predominância de nasalizações, nas três últimas estrofes, com recurso ao gerúndio (ondeando, 'stá
pensando) empresta ao poema o seu som de arrastamento, a sua profundidade.
"
Numa segunda leitura, ainda mais atenta, verificamos que o poema pode ser subdividido em"dois
grandes momentos (ou duas partes): o primeiro, constituído pelas três estrofes iniciais, em que, de
modo geral, se descreve o canto de uma ceifeira, e o segundo, constituído pelas três quadras restantes,
em que se apresentam os efeitos da audição desse canto na subjetividade do poeta.
Essa divisão pode ser percebida, também, ao nível da pontuação e da frase, observando-sc o ponto
final e as frases do tipo declarativo, enquanto que, na segunda, todas as frases são exclamativas, com
exceção do verso: O que em mim sente 'stá pensando. Assim, na primeira parte há uma clara intenção de
descrever a exterioridade (trata-se do início de um conflito entre uma situação exterior ao poeta e o seu
mundo interior). A voz da ceifeira domina essa primeira parte com a sua suavidade, sugerindo alegria,
inocência e espontaneidade; observemos, também, o ritmo ondulante e o uso das aliterações: Limpo,
limiar; curvas, suave e o uso de sons nasais: ondula, um, canto, limpo. J á na segunda parte, podemos notar
as emoções que se desencadeiam a partir do canto da ceifeira, apesar da sua inconsciência.
A descrição marcada por algumas referências antitéticas, desde o início, dá-nos conta do
comportamento contraditório da ceifeira, porque, sendo pobre e de uma anônima lliuvez, julga-se feliz e
a sua voz é alegre. Ela canta, portanto, como se tivesse... razões para cantar. Conclui-se que o seu canto é
inconsciente, porque ele não se justifica, de acordo com o texto, embora a sua voz seja alegre, encante
e prenda o eu-lírico que, por um lado, se alegra por vê-la feliz e, por outro, se entristece, porque sabe
que, se aquela ceifeira se conscientizasse, não encontraria razões para cantar.
A segunda parte poderia ser subdividida em dois momentos distintos:
1. O primeiro momento, em que o eu-lírico faz um apelo (na quarta estrofe, momento em que
o eu-lírico pede à ceifeira que continue cantando, mesmo seltz razão, para que o canto entre em
seu coração: Ah! Poder ser tu, smelo eu!/Ter a tua alegre inconsciência/ E a consciência disso!) e formula
um desejo impossível, porque ter a consciência da inconsciência é praticamente impossível,
jvstificado nos verbos no infinitivo: poder ser e ter empregados com sentido hipotético: "se eu
pudesse"; "se eu tivesse".
2. O segundo momento, iniciando-se com a invocação: Ó céu!/ Ó campo!/ Ó canfão! Justifica-se o
uso do vocativo levando-se em conta a impossibilidade do cu-lírico de ser inconscientemcnte
alegre, como a ceifeira, sem perder a lucidez, uma vez que declara o peso da ciência: a ciência
pesa. Frustrada essa possibilidade de acumular a alegria inconsciente da ceifeira (com a consciência
disso), i.tma vez que a vida é tão breve, o eu-lírico se entrega ao céu, ao campo e à canção, à procura
de um alívio para a sua dor de pensar.
No aspecto morfossintático, há um predomínio, nas três primeiras estrofes, dos verbos no presente
do indicativo (canta, ond1lla, há curvas, há o campo), acrescentando à descrição uma grande vivacidade,
contrastaJldo-se com os verbos no imperativo da segunda parte do poema (canta, canta, derrama, entrai,
tornai, passai), com exceção dos versos A ciência/ Pesa tanto e a vida é tão breve! ,denotando a razão da sua
frustração e do apelo ao céu, ao campo e à canção para que o levem.
Já no nível semântico, há uma grande riqueza expressiva, salientando-se os recursos seguintes:
• Adjetivação expressiva, muitas vezes antitética: pobre,felíz, alegre, anônima (na primeira quadra);
limpo, suave (na segunda quadra); incerta voz (na quarta); alegre inconsciência (quinta quadra) e a
vida é tão breve; a vossa sombra leve, na sexta quadra.
• A antítese, definidora do tema: pobre ceifeira! julgando-se feliz; alegre e anônima viuvez; ouvi-la
alegra e entristece; poder ser .tu sendo eu r; ter a tua alegre inconscíênáa/ E a consciência disso.

90 - T E o R I A LITERÁRIA
~OPERADORES DE LEITURA DA POESIA

• Há uma comparação da voz (O canto) da ceifeira com um canto de ave (v. 1 da segunda estrofe)
e do ar limpo em que essa voz ondula como um limiar (v. 2 da segunda quadra).
• A metáfora também está muito presente no texto: a sua voz ondula; E há curvas no enredo suave;
Derrama no meu coração! A tua incerta voz ondeando. A ciência! Pesa tanto; Tornai minha alma
a vossa sombra leve!
• A personificação do céu, do campo e da canção, atribui-lhes qualidades de pessoa, possivelmente:
Entrai por mim dentro! Tornai! Minha alma a vossa sombra leve! Depois, levando-me passai!
• A apóstrofe, invocação de alguém ausente: Ó céu! Ó campo! Ó canção!
• O pleonasmo, repetição de uma ideia para realçar a sua amplitude, profundidade ou caráter
irrefutável: Entrai por mim dentro!
• Há, ainda, conotações sugeridas na parte final do poema de morte. Se o céu, o campo e a canção
transformarem a alma do poeta em sombra, e levando-o depois, podemos entender que isso
poderia implicar a morte ou um desejo de anular-se.
Retomando o conceito de poesia, que deriva do verbo criar, confirma-se a ideia de que o poeta é
aquele que faz. Ou melhor, o poema é uma obra de arte feita à semelhança de qualquer outro artefato,
sendo as palavras o material utilizado.
Assim, ao contrário do que quase sempre acontece quando usamos palavras para nos entendermos
uns com os outros, as palavras do poema não são só entendidas pela nossa razão. Há um elemento
emocional, diremos melhor, irracional, que sobreleva tudo o mais.
Vimos que, além das palavras, há outros fatores que poderão ser levados em conta, principalmente
aqueles que se referem à camada sonora. De aspecto musical, dependente do ritmo e da sonoridade
dos versos, são obtidos pela combinação de sílabas breves e longas, acentuadas e não acentuadas, bem
como pelo emprego da rima. Por vezes, em muitos poemas, o que prevalece é a característica musical,
como nos versos de Pessanha (1980), poeta anteriormente citado:

Chorai, arcadas

Do violoncelo l

Convulsionadas,

Pontes aladas

de pesadelo [ ... ]

O que mais importa nesses versos é a maneira como se diz, e não, necessariamente, o que se diz. Sendo
assim, a poesia deve procurar sempre a perfeita aliança entre o como e o que, para assim, por força do poder
mágico das palavras, revelar, com beleza, as coisas e as ideias. Igualmente importante é o componente da
liberdade de expressão e de leitura, experiência de descoberta e fruição do texto poético. O mesmo é dizer:
revelar o que há de belo, de hediondo c de trivial o que há no mundo que é nosso.
Este é o supremo papel da poesia.

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TIIOMAÇ BONNICI / L l ) ( l ' OSANA ZOllN (O"(;ANIZADOREÇ) -- 91


~ORTEZ E RODRIGUES

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.'

92 -- I E () R I A LITERÁRIA
OPERADORES DE
LEITURA
,
DO TEXTO
DRAMATICO

Sonia Aparecida Vido Pascola ti

FENÔMENO TEATRAL: TEXTO E ESPETÁCULO

Pode-se considerar a teatral idade algo intrínseco ao ser humano na medida em que o teatro tem
origem em rituais como danças tribais, ritos religiosos ou cerimônias públicas ou ainda na tendência
humana, particularmente infantil, de experimentar o mundo por meio do jogo, do lúdico. Aristóteles
(1993, p. 27; 1448b 5-9) adverte na Poética que a imitação - que não deixa de ser uma forma de
teatralidade, de percepção da vida social como representação e aprendizado - é natural ao ser humano
e fonte de prazer. Contemporaneamente, vemos a teatralidade ocupar muitas dimensões de nossa
vidà: os shows musicais de hoje são verdadeiras mega-produções que incluem dança, iluminação,
encenação, pirotecnia, etc; os ritos nas igrejas, nos mais diferentes credos, retomam os efeitos teatrais
remotamente utilizados na Idade Média; o teatro de rua tem sido forte instrumento de informação cf
ou conscientização social e política; a publicidade tem se valido de recursos dramáticos para a criação
de propagandas dos mais diversos produtos; até mesmo as simulações de operações policiais têm seu
vetor dramático. A observação desse cenário leva Martin Esslin (1978, p. 14-5) a constatar que "o
drama como técnica de comunicação entre seres humanos partiu para uma fase completamente nova
de desenvolvimento [ ... ]", não podendo nossa concepção de drama restringir-se ao espetáculo teatral,
afinal, "através dos veículos de comunicação de massa, o drama transformou-se em um dos mais
poderosos meios de comunicação entre os seres humanos".
Apalavra teatro tem origem no grego theatron que significa miradouro, lugar de onde se vê ou se
observa algo, por isso o termo está associado à arte da representação cênica, indicando também o local
onde a representação acontece; visão e observação implicam a ideia de público, plateia, assistência.
Desse modo, o termo teatro é associado à dimensão espetacular do fenômeno teatral. Já a palavra
drama, em grego, significa ação, remetendo à existência de uma tensão, de um conflito entre as
vontades das personagens e uma consequente dinâmica de causa e efeito entre suas ações.
Diferentemente dos demais gêneros, o estudo do gênero dramático implica uma dupla dimensão:
o estudo do texto, o que chamamos literatura dramática, e o estudo do espetáculo, a outra face do
fenômeno teatral. Em sua origem, na Grécia antiga, e conforme tcorizado por Aristóteles, o drama
~A S c o L A T I

1 caracteriza-se pelo modo de imitação que prescinde da mediação de uma instância narrativa, lançando
: mão de atores que agem diretamente; por isso, ao tratar das partes da tragédia, Aristóteles (1993, p. 39;
1449b 32-33) afirma que "o espetáculo cênico há de ser necessariamente uma das partes da tragédia".
Mas o próprio teórico, mais adiante, considera o espetáculo cênico "o mais emocionante, mas também
[é] o menos artístico e o menos próprio da poesia. Na verdade, mesmo sem a representação e sem
atores, pode a tragédia manifestar seus efeitos; além disso, a realização de um bom espetáculo mais
depende do cenógrafo que do poeta" (ARISTÓTELES, 1993, p. 45; 1450b 17-20). Aristóteles tanto
nos faz considerar o espetáculo como parte essencial do drama quanto nos lembra que o texto pode
atingir suas finalidades independentemente da representação cênica. Ou seja, apenas abre c~tnho
para que ganhem corpo as discussões sobre a prevalência do texto sobre o espetáculo e vice-versa.
Trabalhos recentes têm procurado aparar essas arestas do texto aristotélico, dentre eles o dé Daisi
Malhadas (2003), cuja proposta é compreender o papel e a importância do espetáculo 'no contexto
da produção dramática clássica e das formulações aristotélicas. Apoiada na primeira afirmação aqui
mencionada, a autora demonstra que a organização da ação das tragédias clássicas contempla a
dimensão espetacular do texto. Resumidamente, podemos afirmar que a palavra adquire uma dimensão
espetacular ao conduzir à visualização de gestos, movimentos, expressões etc.
A relação de interdependência entre texto e espetáculo tem sido alvo da reflexão de vários
estudiosos, muitas vezes dividindo opiniões. Para alguns, o texto dramático só se realiza plenamente
quando de sua atualização cênica, como afirma Anatol Rosenfeld (1997, p. 35): "O paradoxo da
literatura dramática é que ela não se contenta em ser literatura, já que, sendo 'incompleta', exige a
complementação cênica". Também Martin Esslin (1978, p. 16), ao procurar estabelecer a natureza do
drama, afirma: "O que faz com que o drama seja drama é precisamente o elemento que reside fora e
além das palavras, e que tem de ser visto como ação - ou representado - para que os conceitos do autor
alcancem sua plenitude". Outros discordam da ideia de incompletude do texto dramático, afirmando
sua autonomia, ou melhor, a autonomia de ambas as manifestações:

[... ] A literatura dramática possui uma vitalidade própria, que no palco pode ser realçada ou
não, dependendo da competência do encenador, do cenógrafo, dos artistas etc. [...].Quer
dizer, se o espetáculo teatral é autônomo em relação à dramaturgia, a recíproca também é
verdadeira. Uma peça pode ser lida, apreciada e estudada em sua forma original (FARIA,
1998, p. 10),

Sábato Magaldi (1991, p. 8) propõe uma posição mais abrangente, considerando que já em sua
essência' a literatura dramática pressupõe a ideia de representação, pois "no teatro dramático ou
declamado [ ... J são essenciais três elementos: o ator, o texto e o público. O fenômeno teatral não
se processa sem a conjunção dessa tríade". Observemos que o autor não estabelece nenhum tipo de
hierarquia entre os elementos, colocando-os em pé de igualdade, todos concorrendo igualmente para
a realização plena do fenômeno teatral.
Portantó; quando se questiona a autonomia do texto dramático em relação à representação ou
vice-versa, optamos por afirmar que ambos sejam autônomos, sendo possível o estudo do texto
dramático desvinculado da encenação, assim como a representação cênica pode compor-se a partir de
outros processos criativos que não o texto dramático em sua forma convencional. Contudo, devemos
lembrar que o texto dramático demanda uma leitura diferenciada na medida em que é produzido
tendo em' vista uma possível representação. A própria estrutura do texto obedece a uma dinâmica
específica, exigindo do leitor atenção à fluidez dos diálogos e às indicações cênicas, necessárias para
a caracterização das personagens e compreensão da ação que se desenrola. É claro que a narrativa e
o poema também requerem esforços imaginativos por parte do leitor, mas no texto dramático isso é
imprescindível para a compreensão de sua substância.
Virtualmente, o espetáculo está inscrito no texto dramático. Caracterização de personagens e
movimento de atores, iluminação e marcações, gestos e atitudes, tudo vem indicado nas rubricas,
também chamadas de didascálias ou indicações cênicas. A lista de personagens, a indicação do cenário,
as entradas e saídas de personagens e até mesmo sugestões de encenação também fazem parte das
94-TEORJA LITERÁRIA
--- -~ Ü P E R A D O R E S D t l.t I T li R A I) O r E x T o [) R A M Á T I C o

rubricas, ou seja. elas correspondem às orientações propostas pelo autor (ou por editores), destinadas
a esclarecer leitores e encenadores. Geralmente aparecem entre parênteses e em itálico a fim de serem
distintas das falas das personagens. Como exemplo, vejamos a indicação cênica inicial do texto infantil
A bruxinha que era boa (1958), de Maria Clara Machado (1921-2001):

Cenário Único: UMA FLORESTA


(Vêem-se as cinco bruxinhas em fila e a bruxa-instmtora, de costas. Todas estão montadas em vassouras.
A de costas, que é a bruxa-c!ufe, apita e as bruxinhas dão direita-volver. A bruxa-instrutora dá outro
apito. As bruxinMs começam a cavalgar em torno da cena, sempre montadas em suas vaf;ourgs. A bruxa­
instrutora toma a apitar; elas param) (MACHADO, 1994, p. 7).

o cenário é indicado de forma bem direta, simplesmente uma "floresta", sem qualquer descrição.
Na leitura, somos levados a imaginá-Ia, ao passo que na encenação a floresta deve ser materializada
diante dos olhos dos espectadores. A indicação cênica é responsável pela apresentação dás personagens,
demarcando movimentos e posições. O bom dramaturgo tem sempre em mente a dimensão espetacular
do texto de teatro, como atestam as rubricas de Auto da Compadecida (1955), de Ariano Suassuna
(1927- ), onde se leem indicações como "esta cena, a partir daqui, é cortável, a critério do erlcenador"
(SUASSUNA, 1983, p. 57) ou "Aqui o espetáculo pode ser interrompido, a critério do ensaiador, marcando-se o
fim do primeiro ato" (SUASSUNA, 1983, p. 71), demonstrando que o dramaturgo leva em consideração,
já na composição do texto, a leitura do encenador, isto é, esse segundo nível de enunciação (do
espetáculo) intrínseco à natureza do fenômeno teatraL
Outro aspecto a ser considerado na relação texto! espetáculo é a perenidade de um versus a
efemeridade do outro. Um espetáculo teatral é sempre único: a cada apresentação, os atores repetem
gestos e palavras, mas experimentando-os sempre de um novo modo, atualizando, paradoxalmente,
algo igual e diferente. A relação com o público nunca se repete, pois boa parte da dinâmica de um
espetáculo se deve à reação da platéia, incluindo aqui a necessária presença de espírito dos atores
diante de incidentes fortuitos que possam ocorrer durante a execução da cena (falha de equipamentos,
barulhos externos, intervenções inesperadas dos espectadores, etc). O espetáculo cênico se realiza
sempre num presente irreproduzível. Ao contrário, o texto dramático é a porção perene do fenômeno
teatral: findo o espetáculo, resta o texto a ser estudado, analisado, relido, reinterpretado, reencenado.
O mesmo texto dramático permite infinitas montagens cênicas, cada uma correspondendo a certa
leitura e interpretação do texto, umas mais próximas, outras mais distantes do "original". A montagem
de um texto dramático configura uma nova enunciação do texto, um modo de dar-lhe outra forma de
existência.
Para a criação e circulação do texto dramático basta existir o dramaturgo, o texto por ele
produzido e um leitor, mas a enunciação cênica do texto dramático demanda a concorrência de
vários elementos como música, cenografia, coreografia, figurino, iluminação, sonoplastia etc. A
enunciação cênica alicerça-se sobre o trabalho do ator, o qual conta com a orientação do diretor
ou do encenador, pois, "o dramaturgo é o autor do texto, o encenador é o autor do espetáculo"
(MAGALDI, 1991, p. 12).

GÊNEÍW DRAMÁTICO

Mesmo sabendo que os gêneros literários não são puros nem estanques, funcionando o mais das
vezes como classificações didáticas, é válido um esforço para caracterizar o gênero dramático. O ponto
de partida é a Poética de Aristóteles. Nela lemos que há várias espécies de poesia, diferentes entre si em
três aspectos: "ou porque imitam por meios diversos, ou porque imitam objetos diversos ou porque
imitam por modos diversos e não da mesma maneira" (ARISTÓTELES, 1993, p. 17; 1447a 16-18). A
tragédia é a espécie de poesia merecedora de maior atenção por parte do teórico. O meio de imitação

TIlOMA\ BONNICI / LÚCl:\ O:-il\NlI. Z(JUN (ORCANIZAnORE\) --- 95


~A S c o L A [ I

! utilizado pela tragédia é a linguagem poetizada que inclui o ritmo, o canto e o metro. O objeto de
imitação é a ação de homens de caráter elevado. Esses dois elementos são os pontos comuns entre a
tragédia e a cpopeia; é apenas no modo de imitação que esses dois gêneros diferem, pois enquanto a
epopeia é imitação que se efetua por narrativa, isto é, com o autor desdobrando-se em voz do narrador e
vozes das personagens, a tragédia permite que as pessoas imitadas ajam por elas mesmas. Composições
como as tragédias e as comédias, portanto, denominam-se "dramas, pelo fato de se imitarem agentes
[dróntasJ" (ARISTÓTELES, 1993, p. 25; 1448a29).
Embora o texto dramático englobe também uma narrativa, há algumas diferenças entre os -dois
gêneros, expostas no quadro abaixo:

NARRATIVA DRAMA

Permite multiplicidade de núcleos


Concentrado em uma ação nuclear.
narrativos. Pode se desenvolver e se
ENREDO
desdobrar em muitos episódios.
Circunscrito a poucos episódios. .
Podem ser inumeráveis e apresentar Em número reduzido e retratadas com
múltiplas dimensões, sendo possível pinceladas precisas. Traços essenciais,
PERSONAGENS
descrevê-Ias em pormenores e analisar valores e formas de pensar são revelados
seu Íntimo cuidadosamente. por atitudes e pelo diálogo.

Pode ser distendido indefinidamente,


Reduzido ao necessário para o desenlace
acolhendo antecipações ou jlashback.
TEMPO do conflito, focalizando as personagens
Possibilita grandes transformações das
numa situação bastante específica.
personagens.

Limitado ao essencial. Organizado em


Múltiplo e variado. Pode ser descrito função das necessidades do desenrolar da
ESPAÇO
minuciosamente. ação. Geralmente reduzido a um ou dois
ambientes.

. A leitura das indicações cênicas possibilita


a construção imaginária de espaços,
RECEPÇÃO Ritmo da leitura solitária.
movimentos e caracteres. Prevê a
recepção coletiva pelo público no teatro.
--

Quadro 1. Diferença entre o texto narrativo e o texto dramático

O gênero dramático apresenta o mundo como se fosse autônomo, livre da visão determinante de
personagens ou narradores. A ação deve obedecer a um encadeamento causal a fim de que a intriga
caminhe çoerentemente rumo à resolução do conflito. "O gênero dramático tem como elemento
principal a tensão entre antagonistas, traduzindo um conflito entre o 'eu' e o 'mundo'. A ação narrada
implica um choque de oposições, onde há uma tentativa de superar o conflito incidindo sobre o
interlocutor, o 'tu'" (VASSALLO, 1983, p. 5).
É possível estabelecer os traços estilísticos fundamentais da obra dramática pura, isto é, identificar
as características do gênero em sua manifestação exemplar. Um bom exemplo de texto que obedece às
regras abaixo é Fedra, de Racine (1639-1699). O texto é de 1677, época em que o Classicismo francês
opera um resgate da Poética, tomando as observações de Aristóteles como prescrições e levando-as às
pltimas consequências.

96 - T E o R I A LITERÁRIA
J::\
-------.~OPERAl)OHES DE lEITU1(:\ D() rFXTO J)R..-\\!All':O

TRAÇOS ESTILÍSTICOS FUNDAMENTAIS DA OBRA DRAMÁTICA PURA

apagamento das figuras do autor e do narrador por meio do diálogo direto entre as personagens;

mecanismo dramático deve desenrolar-se sozinho, por meio da ação das personagens e sem a interferência de um

mediador (narrador);

ponto de arranque do texto coincide com o desencadeamento imediato da ação, da qual apenas os pontos essenciais

devem ser retratados;

ação deve obedecer a um rígido encadeamento causal;

um conflito de vontades desencadeia a ação; ,_

o drama representa sempre um presente que caminha para o futuro (desenrolar da ação e seu desfecho); ­
as categorias essenciais do drama são ação, diálogo e conflito dramático;

respeito às unidades de ação (concentrada no essencial), lugar (preferencialmente único) e tempo (apenas Q necessário

para que o conflito chegue ao desenlace).

Quadro 2. A obra dramática (apud ROSENFELD, 1997)

Essa forma de drama estabelece-se com o teatro grego e posteriormente é erigido em modelo
incontestável de boa composição durante o Classicismo francês (século XVII). A despeito disso, mestres
como Shakespeare (1564-1616) provam que qualidade estética não está subordinada à fidelidade a
modelos. O Romantismo, herdeiro das inovações shakespearianas, propala a mistura de gêneros e
defende a liberdade de criação literária acima de qualquer modelo, por mais bem-sucedido que seja.
Deriva daí uma moderna concepção dos gêneros literários, segundo a qual não há pureza absoluta dos
gêneros. Emil Staiger (1975, p. 15) considera o "tom" da obra muitas vezes mais importante do que sua
estrutura na determinação do gênero. Para ele, não existe uma obra puramente lírica ou dramática, pois
"qualquer obra autêntica participa em diferentes graus e modos dos três gêneros literários, e [ ... ] essa
diferença de participação vai explicar a grande multiplicidade de tipos já realizados historicamente".
No caso do texto para teatro, a classificação nesse ou naquele gênero ou forma é menos importante do
que sua funcionalidade dramática.
Ao tratar do estilo dramático - portanto, de características que podem estar presentes tanto
no texto dramático quanto no narrativo ou poético -, Staiger (1975) aponta a tensão como seu
elemento primordial. Há duas formas de expressão do estilo dramático: o pathos (sofrimento,
emoção, circunstâncias que provocam piedade ou tristeza) e o estilo problemático, ambas organizadas
em. torno da tensão. A primeira pauta-se pela distância entre o que é representado e o público; o
elemento dramático causa tanto mais emoções quanto maior for essa distância e a tensão concentra-se
na expectativa em torno do fato principal (a vingança de Hamlet na peça homônima, por exemplo,
perpetrada apenas na última cena, mas em torno da qual se organiza toda a fabulação do texto). O
estilo problemático concentra-se em torno de um problema ou de uma ideia. A tensão é alimentada
pela pergunta "por que razão?", motor do interesse do leitor. O problema em torno do qual a peça se
organiza esboça-se desde seu início, mas só é plenamente revelado ao final. As duas modalidades de
expressão da tensão do estilo dramático podem ser combinadas na mesma peça. Resumindo, a tensão
dramática é o conjunto de elementos que faz o leitor ater-se à trama, colocando-o em constante estado
de eXpectativa, alimentando sua ansiedade pelo desenrolar dos fatos.
A tensão dramática é um elemento essencial ao desenvolvimento da comédia, com a diferença
de qu'e "o autor cômico cria a tensão para desfazê-la em seguida" (STAIGER, 1975, p. 158). Esse
movimento de tensão dramática e distensão cômica pode ser facilmente observado no desenrolar da
ação de Auto da Compadecida de Suassuna. Há sempre um problema para o qual João Grilo, sertanejo
esperto e bom de lábia, encontra uma solução que evite outros problemas ou lhe traga vantagens.
Mas a solução para uma situação acaba tomando-se um novo problema. Para convencer Padre João
a benzer a cachorra da mulher do padeiro, ele o faz pensar que o cachorro doente é de propriedade
do Coronel Antonio Morais. Para não arranjar problema com o Coronel, diz-lhe que o Padre está
louco, chamando a todos de "cachorro". Logo, a cada enrascada em que se mete João, cria-se uma
tensão, desfeita comicamente a cada solução encontrada por ele, normalmente um novo golpe sobre a

THPI\r1A" BnNNrcr / LÚCI,\ OSANA ZOI.!N (ORC/\NIZAJ)ORES) - 97


Cf A , c " C A T ,

, ingenuidade dos demais. Até mesmo no julgamento final, na presença de Manuel e Nossa Senhora, o
sertanejo dá umjeito de enrolar o próprio Eucourado (demônio).
Rosenfeld (1997) propõe dois modos de compreensão dos gêneros: o significado substantivo e o
significado adjetivo. À "dramática", em seu sentido substantivo, pertencem obras cuja estrutura é dialogada
e em que as personagens agem diretamente sem a mediação de um narrador. Contudo, considerando­
se que toda obra literária possui "traços estilísticos" que vão além da acepção substantiva de gênero, é
possível falar em drama lírico ou drama épico, por exemplo. Isso significa que, embora o texto obedeça
à estrutura do texto dramático, possui características de estilo ou linguagem que o aproximam dO,gênero
lírico ou narrativo. O marinheiro, peça escrita por Fernando Pessoa (1888-1935) em 1913 e Cl~O subtf'tulo
é "drama estático", é um exemplo de como o texto dramático pode assimilar traços do gênero lírico. A
peça se limita ao diálogo entre três veladoras mergulhadas num ambiente onírico emoldurado pelo mar
e pela noite. Embora as personagens dialoguem constantemente, a expressão poética de sentimentos e
desejos dá o tom da peça, ou seja, ao permitir a expressão, em primeira pessoa, do estado de alma das
personagens, a peça assimila o traço fundamental do gênero lírico, como na passagem abaL'\.o:

PRIMEIRA - Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo dezembros na alma ... Estou
procurando não olhar para ajanela... Sei que de lá se veem, ao longe, montes... Eu fui felíz para
além de montes, outrora ... Eu era pequenina. Colhia flores todo o dia e antes de adormecer
pedia que não mas tirassem. Não sei o que isto tem de irreparável que me dá vont;de de
chorar... Foi longe daqui que isto pôde &er... Quando virá o dia? .. (PESSOA, 2003, p. 5).

o mesmo procedimento é possível em relação ao épico. Embora o que caracteriza o gênero


dramático seja a ausência de um mediador na apresentação da intriga, o texto dramático pode lançar
mão de expedientes tipicamente narrativos como a presença de um mensageiro que relata fatos
acontecidos fora do palco ou num tempo distante ou o recurso ao monólogo, forma de expressão da
interioridade da personagem, chegando a procedimentos mais explícitos como os usados por Bertolt
Brecht (1898-1956) na criação do teatro épico. Segundo Brecht, o teatro épico deve mostrar ações de
uma forma objetiva, de modo que o espectador consiga manter um distanciamento em relação à ação
relatada. Para alcançar esse efeito, são constantes cortes e interrupções na ação e nos diálogos, inserindo
a figura do narrador como mediador da ação dramática. Na peça O círculo de giz caucasiano (1943-1945)
o dramaturgo chega a usar até mesmo.o discurso indireto em vez de permitir que as personagens falem
por si mesmas. Enquanto Grusche - uma piedosa serviçal que decide proteger a vida do filho de um
rico governador - está em fuga, uma personagem assume a função de narrador não só para relatar seus
gestos, mas também para contar ao leitor/ público seus pensamentos.

Cantor-

Enquanto se demora,

Entre a porta e o portão, ela escuta

Ou parece escutar um suave chamado: é o menmo

Que lhe faz um apelo, bem claro e sem choramingar,

Pelo menos assim tinha ela a Impressão de escutar:

"Moça, moça, me ajude"

- dizia, claro e sem chorar - [... )

Isto ouvindo...

Grusche dá alguns passos em direção ao lv1millo e inclina-se sobre ele.


Cantor ­
... ela volta e vai ver o Menino outra vez,

junto dele se senta,

a esperar se não chega mais gente: [... ] (BRECHT, 1992, p. 208-9).

Os experimentalismos do teatro moderno são outro momento de ruptura com o conjunto de


elementos que caracterizam o drama em sua forma pura, inclusive porque ele entra em crise em
meados do século XIX em função de um descompasso entre a forma e os temas que passam a ser
tratados pelos dramaturgos. Na obra Teoria do drama moderno, Peter Szondi investiga a ocorrência de uma
crise da forma do drama, que exige, por parte dos dramaturgos, a experimentação de procedimentos

98-- T E o R I A LITERÁRIA
_.-r::'\
-~o P E R A D O R E S D E L E I T U R A DO T E X TO D R A M Á T I C O

de renovação dramatúrgica. Para Szondi (2003, p. 29), a característica do drama da época moderna,
surgido no Renascimento, é a "reprodução das relações intersubjetivas" como modo de representação
dramática do mundo; a base do drama, portanto, é o diálogo. A consequência dessa afirmação é que
"da possibilidade do diálogo depende a possibilidade do drama" (SZONDI, 2003, p. 34).
As transformações sociais e econômicas da segunda metade do século XIX levam os dramaturgos a
adotar novas temáticas, colocando em cena personagens para as quais as relações intersubjetivas perdem
espaço para a exposição de sua interioridade. Dramaturgos como Henrik Ibsen (1828-1906), August
Strindberg (1849-1912) e Anton Tchekhov (1860-1904) criam personagens e intrigas qtJ.e já não são
abarcadas pela forma dramática tradicional, cujo suporte é o diálogo. Szondi (2003, p. 91) Considera
esse um momento de crise do drama: "Enquanto forma poética do fato presente e inte-tsubjetivo, o
drama entrou em crise por volta do final do século XIX". Assim, o fato perde espaço para uma situação
com menor concretude, o presente é substituído pelo sonho e pelo retomo ao passâdo, e o conteúdo
intersubjetivo é banido em favor da presença do intrasubjetivo e monológico.
Um exemplo dessa crise pode ser encontrado no tratamento dado à categoria tempo. O gênero
dramático define-se por fixar-se no tempo presente: é apenas a ação que se desenrola no aqui e agora
que interessa ao drama. Nos chamados "dramaturgos da crise", a situação presente é apenas um pretexto
para que o passado seja colocado em cena. No primeiro ato de Casa de bonecas (1879), Ibsen cria uma
situação dramática propícia à rememoração do passado: Nora recebe a visita de uma amiga a,quem não
vê há uns 10 anos. Esse reencontro possibilita que Nora lhe fale sobre a doença do marido e os sacrifícios
feitos para pagar-lhe um tratamento, assim como permite a Cristina recordar seu próprio casamento e
a doença da mãe, circunstâncias que também exigiram sacrifícios de sua parte. Desse modo, embora
a ação localize-se num presente auspicioso em meio aos preparativos para o Natal, todo o diálogo das
personagens retrata o passado que, aliás, determina seus modos de pensar e agir no presente.

ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DO TEXTO DRAMÁTICO

Ação
Conforme denuncia a etimologia do termo drama, a ação é o elemento fundamental do texto
dramático; tudo o mais se organiza a partir de e em torno dele. ''A ação resulta daquilo que uma
personagem Jaz para conseguir o que [...} quer (motivação), a despeito dos obstáculos" (BALL,
1999, p. 89). Ler uma peça de teatro é estar diante de uma série de ações não apenas concatenadas
umas às outras, mas uma decorrendo diretamente da anterior. A conexão entre duas ações permite
a progressão da peça, portanto, há sempre uma expectativa em relação ao que se seguirá após um
determinado evento. Se uma personagem abre a porta (ação 1) e outra personagem entra (ação 2), o
leitor/espectador fica à espera do que irá acontecer. Se a segunda personagem atira um copo de água
no rosto da outra (ação 1), espera-se uma reação que, por conseguinte, detonará uma nova ação, e
assim até o desfecho da peça. A metáfora do jogo de dominó, utilizada por David Ball (1999), ilustra
com exatidão o mecanismo de uma peça de teatro. Ela é como um dominó cujas peças (pequenos
eventos ou ações) são alinhadas em pé uma após a outra; quando a primeira pedra recebe um impulso
(desencadeamento da ação), imediatamente se lança sobre a próxima e assim por diante, até chegar ao
fim das peças e, portanto, ao desfecho da ação apresentada. Uma breve análise dos episódios iniciais de
Hamlet (1603) de Shakespeare ilustra esse mecanismo.
A situação inicial da peça é de equilíbrio, a despeito da tristeza de Hamlet pela morte de seu pai
e rei e pelo casamento precipitado da mãe com seu tio Cláudio. O que detona a ação é a aparição
do fantasma do rei falecido. Revelando suas intenções apenas a Hamlet, antes mesmo de confirmar
sua identidade e relatar as circunstâncias de sua morte, pede ao filho que se disponha a vingar-lhe a
morte. Com essa exigência solene, a personagem instala o motor principal que passa a mover a ação
de Hamlet, pois revela ter sido assassinado traiçoeiramente e conclama uma vingança. A revelação do

T1IOM/\:, BnNNf( r / Ll'}CL·\ OS,A..NA ZOllN (ORGi\N1ZAf)()HF:-) -- 99


'PA S c o L A T I

I
i espectro (ação 1) detona a próxima ação, qual seja, o comprometimento de Hamlet com o projeto de
1 vingança (ação 2). Esse comprometimento leva o príncipe a exigir segredo de seus guardas e amigos
sobre a cena passada naquela noite de vigília (ação 3). Assim uma ação é imediatamente decorrente da
anterior.

Diálogo
"Falar, no teatro ainda mais que na realidade cotidiana, sempre é agir" (PAVIS, 1999, p. 4), por isso
o diálogo contribui para a dinâmica da ação no drama, sendo outra categoria essencial a sua ná"tuteza.
O discurso de uma personagem pode revelar intenções (ou escondê-las), fornecer dados importantes
para a compreensão da intriga ou da configuração da própria personagem, mas acima de tudo tem por
objetivo agir sobre as demais. O diálogo é uma forma de manipulação do outro por meió do discurso,
configurando uma luta ideológica entre as personagens; nessa luta, interrupções brusc~sl silêncios
ou insinuações são tão significativos quanto as palavras. Quanto mais a réplica de uma personagem
é a resposta imediata à fala de outra, mais o diálogo parece autêntico e mais ele se torna dinâmico,
principalmente quando as personagens compartilham o tema e a situação discursiva. Para Pavis (1999, p.
93), "há diálogo quando as falas das personagens se sucedem num ritmo suficientemente elevado; sem
isto, o texto dramático assemelha-se a uma sucessão de monólogos que só mantêm relações distantes
entre si". A espontaneidade dos diálogos é um aspecto relevante no drama de feição naturalista; já
na tragédia clássica verifica-se uma alternância entre falas extensas e expositivas, sem deixa para uma
réplica imediata, e sequências dinâmicas de falas curtas e diretas entre as personagens em embate. Em
Ant(gona (441 a.C.), de Sófocles (aproximadamente 495 a.C.- 405 a.C.), um bom exemplo é o momento
em que o rei Creonte procura justificar a interdição do sepultamento de Polinices, morto em disputa
pelo trono de Tebas com o próprio irmão Etéocles. Por meio de falas incisivas, Creonte e Antígona
travam um duelo verbal em que medem forças e procuram erigir em verdade universal postulados
individuais. Essa dinâmica na interação verbal amplifica a dramaticidade do episódio, principalmente
quando se trata de personagens de igual caráter e força.
Em alguns dramaturgos modernos, o diálogo se revela uma categoria em crise. É o caso de Tchekhov,
que torna a impossibilidade do diálogo uma questão dramática, seja para a dinâmica da peça, seja
para a própria teoria teatral. EmAs três irmãs (1901), temos personagens mergulhadas num cotidiano
medíocre e monótono ao qual elas tentam a todo custo sobreviver alimentando o sonho de retornar a
Moscou e ao antigo ritmo de vida na metrópole. Amarguradas e solitárias, as personagens demonstram
sua densjdade por meio do discurso, não exatamente pelo diálogo, já minado por conta do isolamento
em que se colocam e da incompreensão dos que as cercam. Reproduzimos um diálogo entre Andrei
- o irmão de Irina, Olga e Macha, as três irmãs que dão título à peça - e um seu subordinado, o surdo
Feraponte. Nesse "diálogo", não há réplicas, mas sim uma alternância de monólogos, cada uma das
personagens fechada em seu próprio mundo e perdida em seus interesses:

FERAPONTE: Como? Mas os papéis para assinar...


ANDREI: Já estou farto de ti.
FERAPONTE (dando-lhe os papéis): O porteiro da Câmara do Comércio acaba de contar que
neste inverno, em São Petersburgo, o termômetro foi a duzentos graus abaixo de zero.
ANDREI: O presente é repugnante. Mas, quando penso no futuro, como tudo se toma
maravilhoso! Sinto-me leve, sinto-me libertado e vejo ao longe surgir uma luz ... Vejo
a liberdade e nos vejo, meus filhos e eu, livres da ociosidade, da limonada, do ganso com
repolho, do sono depois do almoço, da baixa preguiça.
FERAPONTE: Ele contou como duas mil pessoas morreram de frio. O povo, ao que ele
disse, estava apavorado. Foi em São Petersburgo ... ou, talvez, em Moscou ... não me lembro
mais.
ANDREI (deixando-se enternecer): Minhas queridas irmãs, minhas irmãs admiráveis! (sem conter
as lágrimas) Macha, minha irmã Macha... (TCHEKHOV, 2002, p. 142-3).

Importa observar como não há a menor troca entre as personagens, embora o texto esteja organizado
em forma de diálogo; não há interação intersubjetiva. Feraponte permanece alheio a toda a carga
100 - T E o R I A LITERÁRIA
---.~o P F. R 1\ D O R E S D E L E I TU R A DO T E X TO [) R A M A T I C O

sentimental presente no discurso de seu interlocutor e Andrei, por sua vez, mantém-se indiferente às
informações genéricas transmitidas pelo funcionário.

Conflito dramático

o conflito vem somar-se à ação e ao diálogo para completar o tripé sobre o qual o drama se
alicerça. O conflito dramático origina-se na divergência de vontades entre as personagens. O querer de
uma personagem e a existência de um obstáculo à realização desse desejo constituem a fOlLl1a canônica
de conflito no teatro. Para obter o que deseja, a personagem age e fala com a intenção cie manipular
as demais para remover os obstáculos que se interpõem à realização de seu querer. Em Lisfstrata ouA
greve do sexo (411 a.c.), do comediógrafo grego Aristófanes (445 a.c. - 385 a.C), o quçrerdas mulheres
de Atenas explícita-se desde o início da ação: colocar um ponto final na guerra. Esse desejo as leva a
promover uma greve de sexo, único meio de fazer os homens desistirem da guerra.
BaIl (1999, p. 51-2) estabelece quatro tipos de conflitos dramáticos, podendo existir mais de um
tipo na mesma peça:

CON- CARACTE­
EXEMPLO
FLITO RIZAÇÁO

--

Thérese, protagonista da peça La sQuvage (A selvagem, 1934), de Jean Anouilh


(1910-1987), é uma bclajovem de bom caráter, mas pertence a uma família
Personagem Forças divergentes
mteresseira e de moral questionável. Um jovem nco se apaixona por ela,
contra ela coexistem no interior da
sendo correspondido. Mesmo não havendo nenhum obstáculo exterior à
mesma mesma personagem
concretização do romance, Thén':se não se sente à altura do amado e, impelida
pelo sentimento de honra, abre mão do amor e da telicidade.
-----

Desejo de uma
personagem é
interditado pela vontade
Na tragédia clássica Medéia (431 a.C), de Eurípides (480 a.c. - 406 a.c.), a

de outra, configurando
Urna protagonista abandona sua terra natal e trai o pai e o irmão por amor a J asão,

assim um clássico
personagem com quem tem dois filhos. Ela luta para preservar a união, mas Jasão decide

conflito de vontades. O
contra outra abandoná-Ia para casar-se com Creusa, a filha do rei, mspirando assim a

conflito também pode


vingança brutal de Medeia que mata os próprios filhos.

se dar entre concepções


de mundo ou valores
morais divergentes

A situação dramática de O pagador de promessas (1960), de Dias Gomes (1922­


1999), ilustra esse tipo de conflito. Zé-do-burro promete a Iansã/ Santa
A personagem infringe
Personagem Bárbara carregar uma cruz até a igreja caso seu burro de estImação seja salvo,
uma regra SOCIal e corre
contra a mas é impedido de cumprir sua promessa sob argumento do Padre de ter
o risco das sanções
sociedade cometido uma heresia ao misturar o catolicismo ao candomblé. A personagem
cabíveis
luta até a morte contra várias forças sociais: nom1JS religiosas, repressão
policial, exploração comercial e manipulação da imprensa.
-
,
Em Édipo-rei (431 a.c.), de Sófocles, a ação gira em torno da tentativa de
Essas forças podem Édipo de fugir ao destino anunciado por um oráculo: matar o pai e unir-se
ser o UllIverso, os à mãe. Paradoxalmente, quanto mais ele se esforça para escapar aos fatos
Personagem deuses, forças naturais, trágicos, mais caminha em direção a eles.
contra forças o absurdo etc Típico O absurdo de uma espera vã é o obstáculo que configura o conflito
supenores conflito das tragédias dramático de Esperando Godot (1952), de Samllel Beckett (1906-1989). Dois
clássicas ou de peças do mendigos, V1adimir e Estragon, pennanecem num ponto da estrada à espera
teatro do absurdo de Godot, que simplesmente não chega. O diálogo das personagens revela
gradativamente o absurdo da existência humana.
'---­

Quadro 3. Conflitos dramáticos


COLATI

Fábula e intriga
A definição de fábula nem sempre é consensual, principalmente quando "enredo", "intriga" ou
"trama" são indiscriminadamente utilizados como sinônimos do termo. Em teoria da narrativa e de
acordo com Tomachevski (1976), a fábula corresponde aos fatos da narrativa ordenados logicamente,
configurando uma síntese da história narrada; já trama corresponde ao modo de construção do texto,
à forma como a história é dada a conhecer ao leitor (Capítulo 2). Em teoria do drama há duas acepções
concorrentes para fábula: uma a considera o "material anterior à composição da peça" - isto é, lenda ou
mito do qual o autor se apropria em sua criação - e outra a toma "como estrutura narrativa da história"
(PAVIS, 1999, p. 157). ~
o ponto de origem da duplicidade podem ser traduções da Poética de Aristóteles, pois a tradução
mais comum do termo mythos é fábula, mas a tradução conceituada de Eudoro de Souza propõe "mito"
(que evoca a substância anterior à composição da peça), Daisi Malhadas (2003, p. 19-20),~raduz por
"enredo" (similar a resumo dos fatos representados, equivalente a "sistema de atos") e traduções
francesas utilizam Jable ou histoire (remetendo à história narrada). Para Jean-Pierre Ryngaert (1996),
estabelecer a fábula (ou enredo, pois o autor considera os termos sinônimos) é destacar apenas a
matéria narrativa sem considerar qualquer arranjo dramático do autor. O termo intriga corresponde,
segundo o estudioso, à mecânica da peça: "fazer aparecer a intriga de uma peça consiste em col.ocar­
se no núcleo da ficção e desenredar-lhe os fios para desnudar sua mecânica subjacente. A intriga está
ligada à construção dos acontecimentos, a suas relações de causalidade, quando o enredo considera
apenas uma sucessão temporal dos tàtos" (RYNGAERT, 1996, p. 63).
Para analisar uma peça, interessa observar o modo como as ações, com suas peripécias (súbita
mudança na situação e reviravolta na ação da peça), são organizadas pelo dramaturgo. Um mesmo
conjunto de fatos responsáveis pela ação de uma peça, o mesmo "material anterior à composição da
peça" (PAVIS, 1999, p. 157), pode ser organizado dramaticamente de diferentes modos, de acordo
com o pendor do dramaturgo e a direção que ele queira imprimir ao texto. Um bom exemplo é o
interesse do público grego pela representação cênica de mitos já conhecidos e a existência de diferentes
textos clássicos que tratam dos mesmos assuntos mitológicos. Dentre as tragédias que chegaram até
nós, há três textos, um de cada grande dramaturgo clássico, que se servem do mito da vingança de
Orestes e Electra: As Cogoras, de Ésquilo, Electra, de Sófocles e Electra, de Eurípides. Todos partem
da mesma matéria narrativa, do mesmo objeto modelo/ mito (MALHADAS, 2003), mas chegam a
objetos poéticos diferentes por conta do modo como organizam as ações.
A divisão do texto em atos e cenas serve aos interesses da fabulação, da organização da intriga.
Optar por três, quatro ou cinco atos, ou mesmo concentrar a ação em um só ato, está relacionado aos
momentos de suspensão no desenvolvimento da ação. Por vezes, a divisão em atos é feita para marcar
mudanças espaciais ou temporais. Quando a peça é dividida em atos, observa-se geralmente que o
final de cada um é marcado por um aumento na tensão e pela instauração de uma expectativa quanto
ao desenrolar .da ação, como se o final do ato deixasse uma questão no ar que pode ser resolvida em
acordo ou desacordo com os interesses do protagonista.
A exposição é a apresentação de elementos importantes para a compreensão da situação de que
a ação é decorrente. Em Édipo-rei a fala de um ancião revela as consequências da peste que se abateu
sobre a ci~ade e os motivos da alta consideração devotada pelo povo a seu governante Édipo. Em
Antígona, 'a conversa entre a protagonista e sua irmã Ismena informa o leitor/ espectador sobre a
situação inicial da peça: houve um fratricídio durante a luta pelo trono de Tebas e o rei publicou um
édito proibindo o sepultamento de Polinices por ter trazido exércitos inimigos para invadir a cidade.
Na dramaturgia moderna, muitas vezes os dados que esclarecem os antecedentes do conflito e as
motivações das personagens são revelados aos poucos, não se concentrando no início da peça. As
circunstâncias do passado que levam as personagens ao estado de angústia, solidão e culpa em Longa
jornada noite adentro, de O 'Neill, são reveladas gradativamente: apenas no ato IV são informadas as
condições de penúria em que cresceu James Tyrone, o pai da família, e os reais sentimentos de Jamie
por seu irmão Edmund. Essa técnica mantém o leitor! espectador à margem de certos fatos, levando-o

102 TEOHIA LITERÁRIA


_ ,~o
-_..... P E R A D O R E S D E L E I T U R A DO T E X TO [) R A ;vJ A T I C O

a construir gradativamente o perfil das personagens, necessário para a compreensão de muitas de suas
atitudes.
É comum haver um nó na peça, isto é, uma complicação na performance do sujeito em busca de
seu desejo. As personagens agem no sentido de desatar o nó, procurando levar a ação ao desenlace e
restabelecer o equilíbrio. Vejamos o exemplo da comédia TartuJo (1664) de Moliere (1622-1673):
Exposição: Orgon, chefe da família, está dominado pela influência do interesseiro e manipulador
Tartufo.
Nó: Orgon pretende voltar atrás na promessa de conceder a mão da filha Mariane a vilhe, ambos
verdadeiramente apaixonados, e obrigar a filha a se casar com o falso beato. Desconfia da fidelidade da
esposa, expulsa o filho de casa, isto é, o nó se torna cada vez mais intrincado, como se não houvesse
meio de desatá-lo.
Clímax: Tentativa de desmascarar o impostor falha e Tartufo, aproveitando-se da cegueira e ingenuidade
de seu protetor, consegue tomar posse de todos os seus bens.

Desenlace: Personagens conseguem garantir o casamento do par amoroso e livrar-se da presença do

intruso. Como é característico da comédia, o desenlace é feliz, recuperando-se a situação inicial de

felicidade familiar.

Nem todo texto dramático parte da exposição e chega claramente a um desenlace. A peça em um
ato, por sua dinâmica e concentração de ação, espaço e tempo, tende a iniciar já em um momento de
crise ou tensão. Neusa Sueli, personagem de Navalha na carne (1957), de Plínio Marcos (1935-1999),
ao chegar em casa encontra seu cafetão Vado enfurecido por estar sem dinheiro. O conflito gira em
torno de descobrir o paradeiro do dinheiro deixado pela prostituta. Ao flnal, descobre-se que Veludo,
um homossexual, é responsável pelo roubo. Não há propriamente um desenlace: Veludo promete
devolver o dinheiro, o que resolveria o problema da peça, mas por se tratar de algo mais profundo - o
retrato do drama de pessoas que vivem à margem da sociedade, num ambiente degradado e violento
-, tem-se a impressão de não haver propriamente um desfecho e sim a manutenção da situação
apresentada pela peça, com as personagens resignando-se a degradantes condições de existência.

Personagem
Ao contrário da personagem no romance, cuja caracterização é feita pela voz do narrador, a
personagem dramática cria uma ilusão de independência, uma aparente autonomia que a distancia da
voz' autoral. Sem o narrador para descrevê-Ia, seu retrato é formado por gestos, falas, circunstâncias
da ação. Peça central no drama, por meio da personagem todos os demais elementos podem ser
materializados, tais como indicações temporais, elementos do cenário e informações sobre o enredo.
O discurso das personagens é fundamental para que a peça ganhe corpo, tenha movimento, enflm,
exista. O diálogo substitui a intromissão da instância narrativa, portanto, a narração do romance é
substituída pela ação do drama. "O primeiro passo para penetrar na personagem é descobrir: (1) o
que a personagem quer; (2) o que se antepõe à caminhada da personagem (obstáculo); (3) o que a
personagem fàz ou está disposta a fazer para conseguir o que quer" (BALL, 1999, p. 89).
A caracterização da personagem dramática exige economia e concentração de detalhes, por isso
deve-se ter uma ideia de sua classe social, ideais e valores no menor tempo possível e por meio de
traços'fortes e significativos. Em algumas formas dramáticas, o uso de alegorias (autos) e personagens
arquetípicas (commedia deU'arte) tem a função de facilitar a apreensão da totalidade da personagem. De
acordo com Prado (1970), há três modos de caracterização da personagem dramática:

a) O que a personagem revela sobre si mesma


Para revelar seu interior, a personagem recorre ao diálogo. Estados de espírito, reflexões íntimas e
pensamentos, expostos no romance com o auxílio da onisciência do narrador ou do fluxo de consciência
da personagem, têm de ser tornados concretos por meio do diálogo, isto é, pelo que uma personagem

T;I(),\lA\ B()NNI{ I / Ll'l:lA O-"'\NA Z,Jl IN (()He,.'\NI/,,\I'()HF\) - 103


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IZ. oncorrem para essa exposlçao mtenor tres expe lentes recorrentes na Istona a ramaturgla
I ocidental: a figura do confidente, o aparte e o monólogo.

O confidente, como o próprio nome aponta, é o guardião da intimidade do protagonista, a quem


este revela seus segredos, sentimentos e intenções. Encontramos esse tipo de personagem tanto na
tragédia grega - muitas vezes o Coro desempenha esse papel-, quanto no teatro clássico francês - em
Pedra, as personagens envolvidas nos conflitos amorosos têm seus confidentes - ou em textos cômicos
como os de Moliêre, que recorre com frequência ao expediente.
O aparte implica a ruptura da quarta parede, barreira imaginária que separa público o- palco,
mantendo esses espaços incomunicáveis; é um recurso típico do teatro ilusionista em que a presénça
do público é desconsiderada e o palco representa um universo autônomo. Respeitar a quarta parede
reforça o efeito ilusionista da representação teatral; desconsiderá-la surte um efeito derupt~ra da
ilusão dramática. Ao fazer um aparte, a personagem faz do público um confidente, ou seja, 'cúmplice de
suas ações, sem revelar suas intenções às outras personagens. Na comédia, o aparte permite instaurar
um jogo entre o que diz a personagem e o que ela pensa de fato; é o que podemos encontrar em O
Judas em Sábado de Aleluia (1844), de Martins Pena (1815-1848). Maricota é uma moça namoradeira às
voltas com vários pretendentes; um deles, Capitão Ambrósio, propõe-lhe uma fuga e ela argumenta
necessitar de uma soma em dinheiro para poder aceitar a proposta. Apenas ao público revela suas reais
intenções:

MARICOTA, à parte - Pateta, não percebe que [o dinheiro J era um prete:X1:o para lhe não

dizer que não, e tê-lo sempre preso?

CAPITÃO - Não respondes?

MARICOTA - Pois sim. (À parte): Era preciso que eu fosse tola. Se eu fugir, ele não se casa

(PENA, 2004, p. 92; grifo nosso).

O monólogo é considerado por muitos teóricos um recurso que trai a natureza do drama, beirando
ao inverossímil, afinal, não é convincente que a personagem "fale sozinha" no palco; contudo, é
relativamente comum, O mais célebre exemplo é o monólogo de Hamlet às voltas com sua própria
consciência refletindo sobre a necessidade de vingar a morte do pai e o meio mais justo de fazê-lo.
Algumas vezes a personagem pronuncia pequenas frases, sempre reveladoras, ao se ver sozinha em cena;
embora o destinatário seja o público, tem a aparência de um solilóquio com a mesma funcionalidade do
monólogo, mas sem a ruptura da ilusão do aparte (ao menos num teatro de concepção dramática).

b) O que a personagem faz


Embora a personagem se dê a conhecer por meio do discurso, do diálogo e seus desdobramentos, o
mais condizente com a natureza do drama é ela revelar-se em ação. Os estados de espírito manifestam-se
pelos gestos, o conflito faz emergir suas intenções. O encaminhamento da ação, o desenrolar da intriga
mostram as opções da personagem e estratégias rumo à concretização de seu querer, de seus objetivos.
Melhor do que um aparte para revelar intenções escusas é elas serem percebidas por pequenas atitudes
e expressões da personagem. No segundo ato de Casa de bonecas, Nora insiste para o marido ensaiá-la
para dançar numa festa, mas não consegue acompanhar o compasso do piano, dançando violenta e
alucinadamente. Seu objetivo, na verdade, é impedir que o marido receba uma carta revelando que
ela haviaJalsificado a assinatura do pai num documento. O ritmo da dança (gesto físico) expõe sua
tensão, a intensidade de seu desespero a ponto de o próprio marido dizer "Nora, meu amor, você está
dançando como se sua vida dependesse disso!" (IBSEN, 2003, p. 132).

c) O que outros dizem sobre a personagem


Essa forma de caracterização da personagem diz respeito à relação autor/ personagem. A despeito da
pretensa autonomia da personagem dramática, há por trás de sua criação uma voz autoral, responsável
tanto pelo que ela diz quanto pelo que dizem dela. Há dramaturgos que escolhem uma personagem
como porta-voz ou então fazem de toda a situação dramática e do diálogo uma forma de expressão de
104-TEORIA LITERÁRIA
-----~o P E R A D O R E S O E L E I T U R A DO T E X TO D R A M AT I C O

sua visão de mundo. Entre quatro paredes (1944) eAs moscas (1943) - esta última uma reescritura do mito
da vingança de Orestes e Electra - de Jean-Paul Sartre (1905-1980) são bons exemplos disso, afinal, por
meio da dramaturgia o pensador francês consegue demonstrar a exata medida da filosofia existencialista,
utilizando as personagens e a situação dramática em que estão envolvidas para demonstrar que não há
essência humana predeterminada e se é responsável por todos os atos praticados e escolhas feitas. Ou
seja: o teatro torna-se um espaço de discussão de ideias e difusão de filosofias.
Por outro lado, há textos dramáticos que seguem na direção oposta: elevam ao grau máximo a
ilusão de independência da personagem em relação a seu criador. Um expediente eficaz para isso é
ser o mais fiel possível à linguagem correspondente ao universo social da personagem - ~ncórporação
de gírias, características regionais ou jargão técnico - ou permitir diferentes pontos de vista dentre as
personagens sem que nenhum deles possa ser estritamente identificado ao ponto.?e vista do autor.
Um caso extremo de simulação de independência das personagens é Seis personagens à procura de um
autor (1921), de Luigi Pirandello (1867-1936). Depois de criadas por um autor, essas seis personagens
foram descartadas, isto é, seu drama foi apenas imaginado mas jamais posto no papel. Em busca de
uma vida ficcional plena e autêntica, elas invadem os ensaios de uma trupe e procuram orientar os
atores profissionais a representar o melhor possível seu drama. Nesse caso, as personagens não só são
autônomas em relação ao autor, mas vivem à revelia de sua vontade.

Espaço/Tempo
o espaço teatral é multidimensional: arquitetônico, cenográfico e dramatúrgico; visual e verbal.
Por meio das rubricas, o texto prevê a materialização de certos signos que constituem o espaço cênico,
ou seja, aquilo que está materializado e visível diante dos olhos do espectador (espaço mimético);
mas há também um espaço extracênico, mediado pela linguagem, o espaço diegético. O discurso
das personagens confere uma existência verbal (não visual) a certos signos (FACHIN, 1998); por
exemplo, uma personagem pode apontar discursivamente objetos não presentes de fato no ambiente.
É diegética também a referência a fatos passados fora da cena ou num tempo distante; a cena tem
apenas existência verbal, narrativa.
O tempo também pode ser dividido em tempo cênico e dramático, o primeiro referindo-se ao
tempo do espectador diante do espetáculo (duração da apresentação) e o segundo ao tempo em que
se passa a ação da peça, à temporalidade dos fatos. Da relação entre essas duas temporalidades - da
representação e da ação representada - surge o que Pavis (1999, p. 400) chama tempo teatral.
•A regra das trÊs unidades - ação, tempo, espaço - reinou em diferentes momentos da dramaturgia
ocidental, particularmente na tragédia grega e no Classicismo francês. Fruto de uma interpretação
ortodoxa do pensamento aristotélico, ela prega que a) a ação seja única, sem desdobramentos em
intrigas secundárias; b) não ultrapasse o tempo estritamente necessário para que a ação caminhe da
exposição do conflito para seu desenlace; e c) utilize um único espaço em torno do qual toda a ação
se desenrola.
A unidade de ação determina as duas outras. Além disso, certas características do gênero dramático
- concisão, dinamismo, economia de traços e elementos - acabam exigindo a concentração da ação
em' espaços únicos e um tempo reduzido e bem delimitado. O texto dramático é pensado para a
representação e algumas opções do dramaturgo são guiadas pelas possibilidades técnicas de futuras
enceRações da peça. Para nos atermos apenas a exemplos já utilizados até agora, podemos mencionar
alguns textos modernos como Casa de bonecas, Longa jornada noite adentro, Esperando Godot, Entre quatro
paredes, Seis personagens à procura de um autor, O pagador de promessas e Navalha na carne dentre tantos outros
que, mesmo sem qualquer preocupação com a regra das três unidades, optam por uma concentração
espacial e temporal que facilita o desenvolver da ação e a representação cênica do texto.
O mesmo não pode ser dito sobre o teatro épico. Optando por uma ação apresentada em curvas
e saltos e permitindo avanços e recuos temporais, a proposta de dramaturgia épica brechtiana não
demonstra a mínima preocupação com as unidades. Em O círculo de giz caucasiano há várias intrigas
paralelas - o salvamento do menino Miguel, o noivado de Grusche, a saga do juiz Asdak - que

T1IOMA~ BClNNICl I LUCIA OSANA ZOLlN (()RCANIZADORES} - 105


(Cf A S c o L A T I

.
pulverizam a ação em tempos e espaços absolutamente diversificados. A peça - cuja ação contempla
aproximadamente dois anos e cuja enunciação cênica completa leva aproximadamente três horas e
meia - possui recuos temporais e grande diversidade espacial, tudo facilitado pela inserção de recursos
narrativos.
Outras vezes a ruptura das unidades torna-se o elemento que confere originalidade ao texto. É o
caso da dramaturgia shakespeariana. Em suas peças, podemos observar paralelismos na fábula - em Rei
Lear, o tema da traição é desenvolvido tanto pelas ações das filhas do rei Lear, quanto por Edmundo,
filho bastardo do conde de Glócester - ou mudanças espaciais significativas. Na mesma peça~- a cena
I do primeiro ato se passa no palácio do rei, a próxima cena já é no castelo do conde de Glóscester e
a terceira no palácio do Duque de Albany. Véstido de noiva (1943) de Nelson Rodrigues (1912-1980),
é o marco do teatro moderno no Brasil por, dentre outras qualidades, propor uma ação que se passa
em três planos diferentes - a realidade, a alucinação e a memória, os dois últimos filtrados pela mente
desagregada da protagonista Alaíde -, constituindo-se num quebra-cabeça cuja montagerl1 exige a
relação entre diversas diretrizes temporais e espaciais.

Formas dramáticas
O gênero dramático passou por modificações ao longo dos séculos desde seu surgimento na
Grécia antiga e tem tomado as mais diferentes formas, sempre ligadas ao contexto histórico-social e às
concepções estéticas da época. Atualmente, a expressão formas dramáticas tem tido uso mais corrente
por ilustrar melhor a mistura de gêneros, a ideia de estrutura textual e abarcar a multiplicidade de formas
criadas pelo teatro ao longo da história. Por serem muitas, optamos por enumerar as mais conhecidas e
praticadas pela dramaturgia ocidental e apresentar-lhes apenas os traços mais característicos.
Tragédia: segundo a sistematização de Aristóteles (1993, 1449b 24-28), a tragédia responde pela
"imitação de uma ação de caráter elevado", cuja organização seja coerente e completa e cuja extensão
não ultrapasse o tempo necessário para a passagem da felicidade para a infelicidade. Essa imitação deve
efetuar-se com a concorrência de atores, sem a mediação de um narrador e provocar a catarse, isto
é, suscitar "terror e piedade" tendo em vista a purificação dessas emoções. Em sua forma clássica, a
tragédia apresenta as seguintes partes: prólogo (exposição do conflito que desencadeia a ação trágica);
párodo (entrada do Coro em cena); episódios ("cenas"; encadeamento das ações e desenvolvimento da
intriga); estásimos (cantos corais acompanhados da evolução cênica do Coro); êxodo (desfecho e saída
de cena do Coro) (ROMILLY, 1998, p. 25).
Os protagonistas das tragédias clássicas são heróis em embate com o próprio destino (moíra) e com
a força dos deuses. ''As noções de moíra e ananké [necessidade] apresentam o destino humano como
imutável e mostram o cosmos como algo organizado onde não se pode intervir sob pena da instalação
do caos" (COSTA; REMÉDIOS, 1988, p. 8). Procurando guiar-se pelo próprio caráter (etlws) , mas
subordinado ao gênio mal (dáimon), o herói incorre na falha trágica (hamartia) , impulsionado pela
desmedida (hybris); a conjugação desses elementos envolve o herói num acontecimento aterrorizante.
Ao final do evento trágico, a ordem do cosmos deve ser restabelecida. Édipo-rei de Sófocles é um ótimo
exemplo de encadeamento trágico da ação. A personagem central consulta o oráculo sobre seu destino
e toma conhecimento de que irá assassinar seu pai e casar-se com a própria mãe. Para evitar a catástrofe
e fugir ao-'destino, deixa seu lar em Corinto, mas numa encruzilhada da estrada, após uma discussão,
mata um homem e seu séquito. No caminho para Tebas, decifra o enigma da esfinge, feito pelo qual é
aclamado rei, com direito a desposar a rainha. Embora seja movido por boas intenções e marcado por
retidão de caráter, Édipo sucumbe à hybris e incorre em hamartia, isto é, acredita que o conhecimento
humano é capaz de controlar os fatos, quando na verdade seus atos o conduzem cegamente à ruína.
Ao entregar-se à tarefa de descobrir o assassino de seu antecessor, Laio, Édipo persegue a si mesmo,
pois descobre ter sido criado por pais adotivos e o homem que ele matara na encruzilhada era seu
verdadeiro pai com cuja esposa, jocasta, ele próprio tivera quatro filhos. Para restabelecer a ordem
cósmica, Édipo fura os olhos.

106 TEonlA LITEnÁnlf\


~
--~---~o P E R .'\ l1 O R F S D E L E I T U R A no T E X TO [) R A MÁ T I c: O

o século V a.c. conheceu o apogeu da tragédia grega num período em que concorriam duas
ordens de justiça: o mundo mítico agonizante e o emergente mundo racionalista da pólis, daí o gênero
ser representante de uma visão de mundo marcada pelo choque de forças opostas. Trata-se de uma
manifestação artística intimamente ligada, em suas origens, a concepções religiosas, ao mundo grego
mítico e politeísta. Segundo Bornheim (1992, p. 81), a tragédia,

como gênero literário, foi cultivada em apenas dois períodos ou situações históricas: a Grécia
do século V e a Europa dos tempos modernos. Em ambos os períodos encol\tramos, muito
significativamente, a crise das respectivas crenças religiosas: crise do mundo gr~go homérico e
crise da religiosidade medieval. Nos dois casos, incide-se em um processo de secularização ou
laICização da vida humana. Assim, o florescimento da tragédia, considerado de um ponto de
vista histórico, se move entre estas coordenadas, e se situa no choque,pa-crise, "no momento
de encontro de duas concepções de vida; se a religiosidade continua vIVa, subrepticiamente
tende a ganhar terreno uma concepção puramente humana das coisas. Of;tto histórico é que
a tragédia só se verifica na tensão entre estes dois extremos, no seu momento de incidência.

A tragédia conhece transformações ao longo da história, mas sua grande herança permanece: a
concepção do trágico. O sentimento do trágico não é exclusividade da tragédia, mas está intimamente
ligado a ela. O trágico nasce do confronto do herói com uma fatalidade, inevitável e insolúvel,
geralmente provocada pelo conflito do homem com algo que lhe é superior (princípio morai, preceito
religioso). Embora o herói corra o risco de ser destruído por essa fatalidade, ele o assume com o intuito
de afirmar sua liberdade (PAVIS, 1999). Em linhas gerais, pode-se dizer que a ação do herói trágico
clássico é impulsionada pelo desejo de cumprir um dever a qualquer custo (Antígona tem o dever de
sepultar o irmão; o rei Édipo deve livrar a cidade da peste e encontrar o assassino de Laio). Já o trágico
moderno é marcado pelo conflito entre o dever e o querer do herói; como resume Steiner (1965, p.
142), se a marca do teatro clássico é o destino trágico, em Shakespeare é a vontade trágica. Em suas
peças, o trágico surge exatamente da tensão entre o dever e o querer do herói, abrindo caminho para
novas concepções do trágico e novas formulações da tragédia. Abel (1968, p. 110) discorda da opinião
corrente de que "mesmo sem a metafísica grega a forma da tragédia era possível e válida", afirmando,
ao contrário, que a tragédia deixa de existir quando o homem moderno se assume senhor de seu
destino. Na modernidade, a própria condição da existência humana passa a ser considerada trágica,
como provam as inúmeras produções do teatro do absurdo. O individualismo burguês poupa o herói
do confronto com o mundo, tomando o conflito interno ao próprio sujeito.
Comédia: na Poética encontramos a promessa de um tratado sobre a comédia, mas, infelizmente,
ess~ documento não sobreviveu à história. Contudo, a comédia é geralmente definida em oposição à
tragédia, pois retrata seres de caráter pouco elevado ou condição modesta, tem desenlace feliz e seu
tom é jocoso, irônico, provocando o riso. A origem da comédia se confunde com a origem do próprio
teatro, pois deriva das celebrações dionisíacas, com procissões, cantos e máscaras. A presença dessa
forma dramática é marcante desde a Antiguidade clássica, coexistindo com o rígido controle religioso
da Idade Média, sendo praticada nos tempos modernos e deixando suas marcas no teatro burguês
(ARÊAS; 1990) .
.A ação da comédia caminha para o restabelecimento do equilíbrio. Ao contrário da tragédia e
da epopeia, cujos assuntos são extraídos dos mitos ou da matéria histórica, o alvo da comédia é o
cotidiano das pessoas comuns. Tendo o riso como um de seus componentes, a comédia lança mão
de expedientes variados para provocá-lo como: exagero na composição de tipos; contraste entre
personagens espertas e ingênuas; repetições de expressões e situações; uso de vocabulário e imagens
que apelam ao baixo corporal, assim como de palavras de duplo sentido e conotação maliciosa;
recorrência de quiproquós (equívoco oriundo de uma duplicidade possível na leitura da situação
dramática) e confusões; descompasso entre o gesto e o discurso da personagem, gerando contraste
(medo x coragem, por exemplo); inversão de papéis e posições sociais e posterior desmascaramento
(travestismos e reconhecimentos) etc.
Geralmente o texto cômico conta com a cumplicidade do público (o aparte contribui para
gerar essa cumplicidade) e tem uma feição crítica. Há vários tipos de comédia como a comédia de

r ~1 o Mi\" Hu N N IC [ / LOe iA OS.I\ N/\ ZO!.I N (CJH(;,'\N !L:\OOR L~) -- 107


~A , c " c " c ,

I costumes (análise do comportamento social dos indivíduos), de ideias (discussão bem-humorada de


. ideias filosóficas), de situação (enredo intrincado e ação dinâmica), satírica (crítica contundente a
práticas sociais, valores ou vícios), entre vários outros (PAVIS, 1999).

Tragicomédia: gênero que se desenvolve particularmente a partir do Renascimento, caracteriza-se por


um enredo que "podia facilmente acabar em catástrofe, mas chega, por um incidente miraculoso e
inesperado, a desfecho feliz" (DANZIGER; J OHNSON, 1974, p. 107). Descuidada de regras como a
coerência de tom (separação entre sério e jocoso), a tragicomédia tende a explorar efeitos espetaculares
como aventuras, reconhecimentos, quiproquós. Adapta-se bem ao gosto da era romântica, que1Jropõe
a união do grotesco ao sublime e compreende a existência humana como união de contrastes. Pod~ ser
apontada como germe do drama. Esslin (1978) considera as obras de alguns dramaturgos mod.ernos
como Brecht, Ionesco, Beckett e até mesmo Pirandello pertencentes a esse gênero intermediário entre
o cômico e o trágico.
Farsa: sua origem remonta aos mistérios medievais, nos intervalos dos quais era incluída a fim de
proporcionar um momento de riso e relaxamento em meio a uma representação séria. Geralmente
associada a um riso grotesco e pouco refinado, é considerada uma forma primitiva que não alcança
o mesmo status da comédia. Trata-se de um gênero popular, de estrutura simples, sem elaborações
no tocante à intriga, marcado pelo exagero do cômico por meio de procedimentos grosseiros e que
recorre a palavras e situações obscenas ou escatológicas. Sua dinâmica depende mais da ação do que do
diálogo e o leitor/ espectador é instado a sentir-se superior às personagens retratadas, por isso o riso é
mais franco e um tanto mais cruel. "A farsa deve sua eterna popularidade a uma forte teatralídade e a
uma atenção voltada para a arte da cena e para a elaboradíssima técnica corporal do ator" (PAVIS, 1999,
p. 164). Gil Vicente (1465-1536) no Renascimento português e Ariano Suassuna no teatro brasileiro
contemporâneo são bons exemplos da vitalidade do gênero.
Drama: no senso comum, a) designa qualquer texto destinado à representação, b) opõe-se à comédia
e c) é associado ao drama psicológico. Como forma dramática e ainda num sentido genérico, "é
o poema dramático, o texto escrito para diferentes papéis e de acordo com uma ação conflituosa"
(PAVIS, 1999, p. 109). Suas formas básicas são o drama burguês, gênero sério, a meio caminho entre
comédia e tragédia, que coloca em cena o homem fruto da revolução industrial; o drama romântico,
marcado por ruptura com a regra das unidades de tempo e espaço, mistura de gêneros, recurso a
ações espetaculares; o drama lírico, advindo das formas musicais do teatro (ópera), com ação limitada
e dedicada ao propósito de revelar liricamente estados de alma; o drama litúrgico, surgido na Idade
Média e.diretamente ligado à representação de cenas bíblicas; e o drama histórico.
Melodrama: surge no século XVIII e caracteriza-se pela presença de música com a intenção de acentuar
os momentos mais dramáticos da ação. Já no final do século adquire outras características ao colocar
em cena a luta entre o bem e o mal, com personagens representantes de uma visão maniqueísta do
mundo, e inundando o palco de efeitos cênicos que provocam grandes emoções no público. No final
da terceira década do século XIX é substituído pelo drama romântico. Por exagerar abusivamente
os traços heróicos, sentimentais e trágicos da tragédia, principalmente por recorrer demasiadamente
aos golpes teatrais (assassinatos, suspense e medo, reviravoltas na intriga, salvamentos miraculosos
etc.), pode ser considerado a forma paródica desse gênero sério. Os enredos estruturam-se sobre um
mesmo eixo e repetem temas e convenções: amor impossível, os bons perseguidos injustamente pelos
maus, triunfo da virtude e punição dos vilões, infelicidade profunda ou felicidade idealizada. Pelo
exagero dás situações, sempre mostradas em seus limites extremos, o melodrama beira o inverossímil;
embora sutja como representante da classe social burguesa, à época em ascensão, distancia-se dela ao
colocar uma realidade fantasista no palco, ocultando conflitos sociais e escamoteando contradições
ideológicas. Muito do que vemos nas telenovelas da atualidade é tributário dessa forma dramática,
bem ao gosto popular ontem como hoje.
Auto: forma predominante no período medieval, quando a Igreja valia-se do teatro como meio de
evangelização c doutrinação, chegou ao apogeu no século XVI. Peças de caráter popular, mescladas
a cantos e danças, os autos recorrem à alegoria (processo por meio do qual entidades, conceitos e
valores abstratos tornam-se concretos por meio de imagens e figuras, como por exemplo, o uso da

108 - T E o R I A LITERÁRIA
---~o f' l H cI [) () R to. D C L E r T Li [{ A l' O TE" I O !l R A .\1 A T I C O

figura da bruxa ou do demônio para simbolizar o mal) para tratar de temas como o bem e o mal, a
punição pelos pecados e a necessidade de salvação, a representação de episódios bíblicos e da vida de
santos. Destacam-se algumas de suas formas: auto de milagres, dramatização da vida de santos; auto de
mistério, representação de episódios bíblicos; auto de moralidade, cujo propósito é exaltar o modo de
vida cristão, recorrendo à dramatização da luta entre vícios e virtudes; auto sacramental, pautado na
representação de problemas morais ou teológicos como os sacramentos ou outros dogmas cristãos.
Dentre os maiores representantes temos Gil Vicente em Portugal e Calderón de Ia Barca (1600-1681)
na Espanha; no Brasil, José de Anchieta (1534-1597) utilizou o auto como recurso catequético e difusão
do catolicismo entre indígenas e colonos e, na atualidade, temos obras como Auto da Co:npadecida, de
Ariano Suassuna, que acena para a vitalidade dessa forma dramática.
Commedia deU'arte: Embora as raízes do gênero possam ser localizadas em ten;pos remotos, as
companhias de commedia deU'arte surgidas na Itália circulam pela Europa de meados do século XVI ao
início do século XIX, quando desaparecem sufocadas pelo Classicismo francês e pelo gósto burguês. A
forma desaparece, mas suas técnicas e procedimentos intluenciam práticas teatrais da atualidade como
o clown e o teatro de rua (PAVIS, 1999).
Forma popular - mas devidamente valorizada e remunerada pela nobreza -, a comrnedia deU'arte
era praticada por companhias profissionais, compostas por nove ou doze atores que desempenhavam
sempre os mesmos papéis, tipos fixos caracterizados por máscaras e um gestual corporal predefinido: os
jovens enamorados, as criadas e os servos (espertos ou estúpidos), os velhos. Marcada pelo improviso,
o ponto de partida do espetáculo é apenas um roteiro (scenario ou canovaccio) e certas inserções
cômicas programadas (lazzi) que indicam como as personagens devem agir e qual a sequência dos
acontecimentos; como não há texto escrito, o espetáculo é criação coletiva dos atores, cujo trabalho
exige constante aprimoramento técnico, particularmente no domínio gestual e acrobático (ARAGÃO,
1983). Pavis (1999, p. 62) enumera as principais características do gênero:

tema modificível. elaborado coletivamente; abundância de quiproquós; [íbula típica de


namorados momentaneamente contrariados por velhos libidinosos; gosto pelos disfàrces,
pelos travestimentos [sic J de mulheres em homens, cenas de reconhecimento no fim da peça,
nas quais os pobres ficam ricos, os desaparecidos reaparecem; manobras complicadas de um
criado tratante, porém esperto. Esse gênero tem a arte de casar intrigas ao infinito, a partir de
um pano de fundo limitado de figuras e situações [ ... J.

RECEPÇÃO DO TEXTO DRAMÁTICO

Nem sempre a literatura dramática tem tido o espaço merecido e suficiente nos currículos
dos cursos de Letras, sendo seu estudo, muitas vezes, relegado a disciplinas especiais ou cursos de
extensão. Faltam materiais para facilitar o encontro entre o discurso teatral e o professor em formação
e tornar mais rica e estimulante a experiência de leitura. A consequência é que o texto dramático acaba
ocupando lugar periférico também em outros níveis de ensino e não faz parte dos hábitos de leitura
de gr~nde parte dos alunos e professores. Historicamente, isso pode ser explicado pela prevalência, no
ensino, de textos narrativos e poéticos sobre os dramáticos. Além disso, a literatura dramática sempre
esteve associada à ideia de cena, de representação, disseminando a impressão de que o texto dramático
é escrito apenas para ser encenado, como se a leitura fosse um processo insuficiente ou incompleto.
As sociedades têm atribuído papel diferenciado ao teatro. Na Grécia antiga, ele tem função cívica,
fundamental para a organização da polis; na Idade Média, a Igreja recorre ao teatro como auxiliar no
processo de difusão da fé católica; a corte elisabetana o elege como um de seus principais divertimentos;
não raras vezes o teatro é utilizado como arma pantletária e de crítica social, sofrendo censuras em

T!lOMA\ BONNICI / LÚCIA OSAJ'JA Z()llN (URGANIZADORES) -- 109


Cf A , c o , A , ,

I muitos países e épocas. Isso só vem reforçar a importância do teatro no contexto de produção cultural
humana.
A duplicidade do fenômeno teatral implica falar em duas formas de recepção: a do texto dramático
e a do espetáculo cênico. A recepção do espetáculo é sempre coletiva e influenciada por uma série
de fatores como condições da sala ou do espaço de representação, competência de atores e diretores,
aparato técnico disponível (iluminação, música, efeitos especiais). A reação de um espectador pode ser
influenciada pela reação de outros; mesmo assim, a interação com o espetáculo é sempre individual.
Assistir ao espetáculo é bastante diferente de ler o texto, pois a situação de enunciação da ençenação
cria novas sentidos para o texto, por mais fiel que a representação pretenda ser às indicações do
dramaturgo.
O ato de leitura do texto dramático é semelhante ao de outros gêneros literários, com algumas
nuanças. A ausência do narrador implica envolvimento mais direto do receptor com o texto, cabendo
a ele criar mentalmente as personagens, imaginar o cenário, perceber intenções e sentimentós escusos.
É comum por parte do leitor habituado a textos narrativos que os primeiros contatos com a literatura
dramática sejam marcados por certo estranhamento com a estrutura do texto (atos, cenas, quadros;
presença das indicações cênicas). Em contrapartida, a leitura tende a ser mais dinâmica e rápida. A
leitura em voz alta é recomendável por evidenciar certas peculiaridades como agilidade do diálogo e
entonação, elementos fundamentais para a construção do sentido de uma peça. O título, o gênero e a
lista de personagens são elementos responsáveis por gerar expectativas no leitor - às vezes mesmo para
frustrá-las, outras vezes localizando-o temporal e espacialmente, assim como fornecendo informações
básicas sobre as personagens. Resgatar o contexto de produção da peça ajuda a compreender vários
aspectos: o modo de agir das personagens, certamente condicionadas por seu meio e contexto histórico;
o sistema de valores da época; o olhar do público contemporâneo à escritura do texto. A primeira
leitura da peça geralmente corresponde à apreensão do enredo; para a compreensão da urdidura da
intriga, faz-se necessário empreender nova leitura, dessa vez observando atentamente o encadeamento
das ações e as motivações das personagens. O encadeamento das ações prevê a disseminação de sinais
que tanto guiam a recepção quanto provocam indeterminações e ambiguidades capazes de sustentar o
interesse pela leitura e pelo desenrolar da ação.
Após a compreensão da fábula ou enredo, o passo seguinte é identificar o(s) conflito(s) da peça.
Para tanto, a pergunta fundamental é "o que quer a personagem?". Identificar esse querer é perceber
a direção das forças atuantes na peça. O querer de uma personagem é determinado por alguma força,
interna ou externa a ela, e dirige-se a um objeto. Entre o sujeito (personagem) e o objeto de seu
desejo, (orças podem se interpor, caracterizando os opositores; mas também há aqueles que auxiliam
a busca da personagem, chamados adjuvantes. Finalmente, algo ou alguém se beneficia do fazer da
personagem (ela mesma ou outros elementos! personagens). Em Lísístrata, de Aristófanes, a guerra age
como força sobre as mulheres que reclamam da ausência dos maridos e da perda de seus filhos nas
batalhas. Seu desejo ou o objeto de sua ação é o fim da guerra e para o conseguirem, promovem uma
greve de sexo. A resistência de algumas mulheres é o primeiro obstáculo a ser vencido pelo grupo,
mas também os homens serão opositores por insistirem em continuar a guerra. Vencidos pelo desejo
sexual, os guerreiros acabam se rendendo, permitindo às mulheres a consecução de seu objetivo. O
grande beneficiário da ação é a nação ateniense que alcança finalmente a paz.
Na análise do texto, além de delimitar claramente a ação, perceber o(s) conflito(s) e detectar a
ideologiáque perpassa o diálogo entre as personagens, é de grande auxílio destacar signos que colaboram
para a construção do sentido do texto. Em estudo sobre a representação teatral, Tadeusz Kowzan (1977)
estabelece 13 sistemas de signos essenciais à construção do espetáculo, mas que também podem ser
considerados na leitura do texto dramático, afinal, o autor dramático, embora prioritariamente "criador
dos signos da palavra, [ ... ] pode inspirar, mediante o próprio texto ou participando dos ensaios, signos
pertencentes a todos os demais sistemas" (KOWZAN, 1977, p. 77-8; grifo nosso). Os sistemas de signo
são: palavra, tom, expressão facial, gesto, marcação, maquilagem, penteado, indumentária, acessórios,
cenário, iluminação, música e som, todos eles evidentes na realização cênica, mas também passíveis
de análise textual.

110 TEORIA LITERÁRIA


_.-._~ o P E R A D O R E S D E L E I T U R A O O T E X T O O R .~ M A T I C O

Alguns signos tornam-se determinantes para a organização do sentido das peças. Em LongaJomada
noite adentro há sempre uma garrafa de whisky em cena, lembrando constantemente o desejo das
personagens de se manterem em estado de torpor, de anestesia para não encarar a realidade; em Gota
d'água (1975), de Chico Buarque (1944-) e Paulo Pontes (1940-1976) o trono de Creonte, dono do
núcleo habitacional em que se passa a ação, representa o poder e a opressão do mais forte sobre o mais
fraco; emA moratória o relógio de parede presente nos dois planos de ação aponta a passagem do tempo
e a transformação exercida por ele sobre as personagens.
A leitura de uma peça exige que o leitor leve em consideração a vocação cênica .da literatura
dramática; observe a estrutura do texto, tomando as indicações cênicas como compleméntares ao
diálogo; tenha discernimento do conflito e dos desdobramentos da ação; perceba as' implicações
ideológicas do discurso das personagens; conceba o signo teatral como elemento furtdaméntal para a
construção do sentido do texto. Trata-se de um processo que deve, em última instâncIa, deixar evidente
a teatral idade do texto, elemento que, afinal, é intrínseco à natureza da literatura dramática.

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112 - T E () R J A LITERÁPIA
PARTE 111

ítica literária
A

contell1poranea

F ORMALISMO RUSSO E
NEW CRITICISM

Arnaldo Franco Junior

INTRODUÇÃO

o Formalismo Russo e o New Crítícism caracterizam-se pela defesa de uma abordagem


imanente da literatura, ou seja, definem seus princípios e seu instrumental teóricos e, também,
suas propostas metodológicas limitando o seu objeto de estudo e investigação à materialidade do
texto literário.
Separados geográfica e culturalmente - o Formalismo desenvolveu-se na Rússia entre 1915­
17 e 1923-30; a Nova Crítica teve origem nos anos 1920-30, afirmando-se na América do Norte
entre as décadas de 1940 e 1950 - esses dois movimentos foram quase contemporâneos um do outro,
marcando, na primeira metade do século xx, uma ruptura radical com a herança da tradição da crítica
e da historiografia literárias do século XIX (crítica impressionista, psicologismo biografista; rigidez
retoricista).
Cada um à sua maneITa, os dois movimentos foram, em seus respectivos contextos de
manifestação e áreas de influência, decisivos para que a teoria literária se firmasse como
disciplina pautada por parâmetros científicos ao lado da linguística e das demais Ciências
Humanas.
Tanto num movimento como no outro, ainda que por perspectivas próprias e diferentes
entre~i,é visível a base positivista que exige que as hipóteses de investigação de um determinado
objeto de estudo - a literatura, no caso - só se convertam em teses se a argumentação e a
exemplificação que as sustentam puderem ser empiricamente comprovadas e demonstradas.
Isso significa que tanto o Formalismo Russo como o New Criticism elegem o texto literário
como limite e objeto privilegiado de suas reflexões, considerando os demais campos aos quais o
texto literário se vincula como campos de investigação secundária e/ou suplementar.
N este capítulo, vamos abordar essas duas tendências da teoria e crítica literárias, destacando alguns
de seus principais aspectos e contribuições para o estudo da literatura.
<PR A N C O J l' N I II E

1 o FORMALISMO Russo

Entre 1914 e 1917, na Rússia, alguns estudantes fundaram o Círculo Linguístico de Moscou
(1914-15) e a Associação para o Estudo da Linguagem Poética (OPOIAZ - 1917), instituindo, com
isso, um campo para o desenvolvimento de estudos da língua e da literatura, livre dos compromissos
com a tradição acadêmica vigente na época e marcado pelo entusiasmo para com o cientificismo que
caracterizava a então emergente disciplina de Linguística na Rússia e, também, em outros núcleos
í
universitários europeus.
o Formalismo Russo desenvolveu-se contemporaneamente às pesquisas e inovações estéticas do
Futurismo Russo, que teve na poesia a sua ponta de lança de afirmação dos valores de vanguarda
modernista em arte. Seu contexto de eclosão está marcado por uma forte turbulência social ligada à
crise do regime czarista e à emergência da revolução russa, que projetava a utopia de uma 'Sociedade
livre de classes sociais, capaz de abolir a propriedade privada e as limitações, estruturas e hierarquias
comprometidas com a velha ordem econômica, sociocultural e política - uma sociedade regulada
por um Estado democrático comprometido com os interesses coletivos da sociedade e regulado, em
suas ações, pela racionalidade e pela ciência. Revolução, igualdade, liberdade, sociedade sem classes,
democracia, participação ativa na construção da sociedade e da história não são meras palavras ou
ideias nesse contexto; são ideais que caracterizaram a ação de muitos dos que se comprometeram com
o obje':ivo de transformar a sociedade, de mudar a história.
Pode-se dizer que o período heroico de combate e afirmação dos valores, ideias e propostas
dos formalistas russos (1914-17 e 1923-25) coincidiu com o período heroico de afirmação das
utopias ligadas ao projeto de construção de uma sociedade comunista na - após a revolução de
1917 - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). A ascensão de Josef Stálin ao poder
a partir de 1924, a consolidação do stalinismo e a extensão de seus efeitos a todas as instituições
da então URSS (1924-1953) significou, para os formalistas e, também, para toda a URSS, a
distorção e o dilaceramento de boa parte das utopias projetadas como ideais durante a fase heroica
anteriormente citada.
o Fonnalismo Russo pode ser, portanto, dividido em duas fases. A primeira compreende mais
precisamente os anos de 1917 a 1923, momento de afirmação agressiva das novas ideias em relação à
abordagem científica da literatura diante de uma tradição acadêmica conservadora e resistente; a segunda
compreende os anos de 1923-25 e 1930, período de radicalização dos conflitos entre os partidários de uma
abordagem sociológica da literatura (e ideologicamente comprometida com os ideais da revolução socialista
e, também, com determinados interesses ligados ao exercício do poder pelo Estado) e os membros do grupo
formalista, que recusavam e/ou negavam certos princípios e pressupostos de tal abordagem sociológica. O
ano de 1930 marca, segundo Schnaiderman "a condenação pública e categórica do 'formalismo' [... ] e
sua virtual interdição" (1976, p. xviii), tendo, como efeito, o abandono do país por alguns dos membros
do grupo e a limitação dos que pennaneceram "a estudos literários em âmbito mais estreito, e que não
implicassem em teorização" (1976, p. xviii).
Feito esse breve histórico, vamos nos deter em alguns dos princípios e conceitos teóricos
fundamentais do Formalismo Russo.
Segundo Eikhenbaum (1976), o Fonnalismo Russo marcou-se mais propriamente pela afirmação
de detenninados princípios na abordagem da literatura do que pela proposição de um modelo
sistematizado de teoria de caráter dogmático. Nesse sentido, para os membros do grupo formalista,
a metodologia sempre ocupou posição secundária diante da literatura como objeto de estudo. Os
formalistas, segundo Eikhenbaum (1976), nunca hesitaram em transformar seus princípios e conceitos,
caso tal necessidade se impusesse, em razão do estudo de detenninado texto ou problema literário. Isso
explica o fato de que, lidos em conjunto, os estudos formalistas apresentam certas nuances e diferenças
no que se refere à utilização de alguns mesmos princípios e conceitos teóricos na abordagem de textos
e problemas literários distintos.

116 - T E o H I A LITERÁHIA
~
--"-"" ·"~FORMALISMO RUSSO E NEW CRITICISM

Dentre os mais importantes princípios formalistas, destaca-se a preocupação com a abordagem


da materialidade do texto literário, que recusa, num primeiro momento, às explicações de base
extraliterária:

A filosofia, a sociologia, a psicologia etc., não poderiam servir de ponto de partida para a
abordagem da obra literária. Ela poderia conter esta ou aquela filosofia, refletir esta ou aquela
opinião política, mas, do ponto de vista do estudo literário, o que Importava era o priom, ou
processo, isto é, o princípio da organização da obra como produto estético, pmais um fator
externo (SCHNAlDERMAN, 1976, p. ix). "

Os formalistas preocupavam-se em investigar e explicar o que faz de determinada obra uma obra
literária. Nos termos de Jakobson:

A poesia é linguagem em sua função estética.


Deste modo, o objeto do estudo literário não é a literatura, mas a literariedade, Isto é, aquilo que
torna detenninada obra uma obra literária. [ ... ] Tudo servia para os historiadores da literatura:
os costumes, a psicologia, a política, a filosofia. Em lugar de um estudo da literatura, criava­
se um conglomerado de disciplinas mal-acabadas. Parecia-se esquecer que estes elementos
pertencem às ciências correspondentes [... J e que estas últimas podiam, naturalmente, utilizar
também os monumentos literários corno documentos defeituosos e de segunda urdem. Se o
estudo da literatura quer tornar-se urna ciência, ele deve reconhecer o "processo" como seu
único "herói" GAKOBSON, 1921 apud SCHNAlDERMAN, 1976, p. ix-x).

O termo príom, que Schaidcrman traduz como processo, ficou mais conhecido entre nós como
procedimento. Trata-se de um dos mais importantes conceitos dos estudos formalistas, e foi definido
num famoso ensaio de Chklovski (1976): A arte como procedimento.
Nesse ensaio, Chk10vski (1976) reitera a ideia de Jakubinski de que há uma distinção entre a
natureza da linguagem poética e a natureza da linguagem cotidiana, que ele nomeia, respectivamente,
como língua poética e língua prosaica. A linguagem poética seria distinta da linguagem cotidiana porque nela
a função referencial não se reduziria ao utilitarismo pragmático nem ao automatismo que caracterizam
esta última. A linguagem poética se caracterizaria exatamente pela ênfase na desautomatização da
percepção que se encontra como que adormecida pelo hábito e pela economia e pragmatismo que
caracterizam a linguagem cotidiana:

E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é
pedra, existe o que se chama arte. O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão
e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização
dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a fomu, aumentar a dificuldade
e a duração da percepção; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que é Já
"passado" não importa para a arte (CHKLOVSKI, 1976, p. 45).

Note-se, na distinção entre recoflhecimento e visão, a oposição entre automatismo e percepção


desautomatizada. Segundo Chklovski (1976), a arte se caracteriza por procedimentos de construção que
visam, por meio da desautomatização da percepção adormecida pelos hábitos cotidianos, oferecer ao seu
destinatário uma percepção mais rica em informações sobre os temas ou assuntos de que trata. Tal visão
é construída pelo artista por meio de recursos de linguagem que se constituem em procedimentos de
singularização cuja função é oferecer novas informações sobre temas e objetos que integram a experiência
cotidiana, mas se encontram como que neutralizados pelo automatismo da percepção.
Os procedimentos de singularização promovem algo como uma "crise" nos hábitos que regulam
o comportamento humano regido pelas leis da linguagem cotidiana, dificultando, deslocando ou
transtornando tais hábitos de modo que o receptor da obra seja obrigado a rever as suas expectativas
e pré-conceitos e, também, a sua própria percepção do mundo. São, portanto, os procedimentos de
singularização que, segundo Chklovski (1976), definem a especificidade da linguagem poética ou
artística. Comparem-se, por exemplo, os seguintes textos:

Tl10;.,.1A:-' BONNICI / LUCIA OSANA Z~HJN (nl~{;ANJZA!)Unrs) -- 117


C?R A N C O JUNIOR

! ,----------------------­ Meio-dia na Sé
I
Alessandra P. Caramori
Ainda me lembro daquele beijo em plena praça central
da cidade quando os sinos da igreja anunciavam o Nossas bocas unidas
meio-dia. Nossas línguas

Um sino

E dois badalos.

No primeiro texto, a referência ao beijo é direta e, portanto, como que transparente à leitura e
à compreensão de todo e qualquer leitor (embora a intensidade e o valor afetivo desse beijo sejam
diferentes para aqueles que o realizaram, como demonstra a autora do bilhete). No segundo texto,
a referência ao beijo torna-se opaca à leitura e à percepção do leitor, que tem de ler a existência de
um beijo na relação estabelecida entre as bocas unidas e o sino com dois badalos (metáfora do beijo
apaixonado, erótico, de língua). No primeiro texto, as funções referencial e emotiva GAKOBSON,
1984) são as mais importantes, e não há necessariamente destaque para a função poética; no segundo
texto dá-se o inverso: a função poética se destaca e subordina as demais.
Os procedimentos adotados pela autora do segundo texto - a "descrição" haseada numa gradação
que vai do mais externo ao mais interno - tornam o referente (beijo) algo muito particular: (a) Já no
título, que indica a posição exterior e tensa dos ponteiros do relógio passando, por sugestão, à indicação
da posição das línguas que "badalam"; ou (b) na apresentação dos signos que compõem o beijo
(bocas; línguas), a escolha de uma metáfora (um sino, e dois badalos) para representar o movimento
e a intensidade das línguas e das emoções no beijo apaixonado; a ênfase onomatopaica conferida às
nasais [n], às linguodentais [d] e às bilabiais [b] que contribui para a percepção de uma cadência
relacionada com o caráter arrebatador da experiência do eu-lírico e afirma uma associação entre o
beijo e o bimbalhar dos sinos ao meio-dia. Tais procedimentos singularizam esse beijo, tornando-o
distinto de todos os demais beijos presentes em outros textos, sejam literários ou não. Esse processo
de singularização confere ao segundo texto uma densidade maior no que se refere à Iiterariedade, e é
ele que, dando ênfase ao apelo estético do texto, universaliza a experiência ali registrada, tornando-a
artisticamente próxima da experiência de vida do leitor - o que não acontece com o primeiro texto. Por
tais razões, pode-se dizer que Meio-dia na Sé é um texto literário, enquanto que o outro texto é apenas
um bilhete trocado entre enamorados.
Os procedimentos de singularização visam, segundo Chklovski, a "criar uma percepção particular
do objet~, criar uma visão e não o seu reconhecimento" (CHKLOVSKI, 1976, p. 50). Já o caráter
estético da linguagem poética (artística) "é criado conscientemente para libertar a percepção do
automatismo; sua visão representa o objetivo do criador e ela é construída artificialmente de maneira
que a percepção se detenha nela e chegue ao máximo de sua força e duração" (CHKLOVSKI, 1976,
p. 50). O discurso poético é, para Chklovski, um "discurso elaborado" (1976, p. 55) ao passo que o
discurso prosaico (cotidiano) é "ordinário, econômico, fácil" (1976, p. 55).
Concebendo a linguagem poética (artística) como fundamentalmente comprometida com a
desautomatização da percepção, o autor afirmará aexistênciade um estreito vínculo entre oprocedimento
de singularização e o efeito de estranhamento. É porque causa um efeito de estranhamento que a arte
desautomatiza a percepção, dificultando-a e prolongando-a ao exigir do receptor uma atenção mais
intensa e.demorada do que aquela conferida cotidianamente aos demais textos e mensagens.
Ao conceber a arte como algo marcado por um conjunto de procedimentos de singularização,
os formalistas russos contribuíram para um questionamento do modo como, até então, a crítica e a
historiografia literárias eram feitas.
A periodização literária canônica, que circunscreve autores e obras a determinados recortes
histórico-culturais e a determinadas escolas estéticas, organizados de modo sucessivo e linear, sofre,
a partir da noção de procedimento de singularização, um abalo. Pode-se, por exemplo, reescrever a
história da literatura a partir da identificação das séries literárias que tenham em comum um mesmo
conjunto de procedimentos dominantes.

118 - T E o ]( I A LITEHÁI<IA
~FORMALfSMO RUSSO E NEW CRfTfC1SM

Nesse sentido, a importância dada a distinções que se baseiam em valores extraliterários torna-se
secundária em relação ao valor das distinções calcadas em valores exclusivamente literários. Certos
distanciamentos estabelecidos entre textos vinculados a escolas estéticas diversas tornam-se menos
importantes do que o reconhecimento de que, independentemente da vinculação ideológica a esta
ou àquela doutrina filosófica, política, religiosa etc., os textos podem ser reagrupados numa história
da literatura que privilegie o reconhecimento, neles, de procedimentos de construção comuns. Vale o
mesmo para uma redefinição da noção de gênero em literatura, tão complexa e marcada por contradições
como a própria literatura em decorrência da heterogeneidade dos saberes que tradiçionalmente
sustentam a sua definição. '
A ênfase conferida ao estudo dos traços específicos do discurso literário pelos formaiistas fez com
que eles recusassem a distinção entre "forma" e "fundo" (forma x conteúdo) na abordagem crítica do
texto literário. Tal distinção, além de inadequada, dava origem a uma série de distorções e preconceitos
no que se refere à abordagem crítica da literatura. Os formalistas estabeleceram um conceito deforma
que integra tanto os procedimentos e recursos construtivos da linguagem como a própria escolha dos
temas a serem tratados pelo artista, a partir do uso de tal ou qual recurso ou procedimento linguístico.
Isso equivale a dizer que, em arte e literatura, o assunto ou tema nãopode ser dissociado do conjunto
de procedimentos construtivos que o constituem e o singularizam numa determinada obra, e vicc­
versa.
Segundo Eik.henbaum, Chklovski demonstrou, num estudo sobre a teoria do enredo e do romance,
"a existência de procedimentos próprios para a composição e sua ligdção com procedimentos estilísticos
gerais, baseando-se em exemplos muito diferentes: contos, novelas orientais, Dom Quixote de Cervantcs,
Tolstoi, Tristram Shandy de Sterne" (EIKHENBAUM, 1976, p. 16).
A afirmação da existência de procedimentos próprios para a composição da trama narratíva
(enredo) possibilitou que os formalistas deslocassem a concepção da trama narrativa (enredo), que era
tradicionalmente concebida como combinação de vários motivos (unidades temáticas), para uma visão
que a concebe como combinação de elementos de elaboração.

Assim, a noção de trama adquirira um novo sentido, sem todavia coincidir com a noção de
fábula [a história contada em uma narrativa] e as duas regras de composição [a fábula e a
trama] entraram lOgicamente na esfera do estudo formal enquanto qualidades intrínsecas das
obras literárias (EIKHENBAUM, 1976, p. 17) .

. Eikhenbaum (1976) destaca, ainda, nesse estudo de Chklovski, a importância da noção de motivação
para o estudo do romance e, acrescentaríamos nós, para o estudo da narrativa. A motivação pode ser
definida como a articulação, em um sistema marcado pela unidade estética, de motivos que constituem
a temática de uma obra. Segundo Eikhenbaum,

A descoberta de diferentes procedimentos utilizados ao longo da construção do enredo (a


construção em plataformas, o paralelismo, o "enquadramento", a enumeração etc.) nos levou
3 conceber a diferença entre os elenlentos da construção de uma obra e os elementos que

formam o seu material: a fábula, a escolha dos motivos, as personagens, as ideias etc. [ ... 1A
noção de motiv:Jção ofereceu aos formalistas a possibilidade de se aproximar mais das obras
literánas, em particular do romance e da novela, e de observar os detalhes de construção
(EfKHENBAUM, 1976, p. 20).

Chklovski (1976) define afábula como descrição dos acontecimentos de uma narrativa e a trama como
a elaboração desses acontecimentos e sua disposição numa narrativa. Correndo o risco de apresentar
uma definição redutora, podemos dizer que a fábula compreende a história contada em uma narrativa,
ao passo que a trama compreende o modo como tal história é construída e organizada sob a forma de
narrativa. A fábula é, portanto, "um material que serve à construção da trama" (CHKLOVSKI, 1921
apud EIKHENBAUM, 1976, p. 22).
Tomachevski retoma em "Temática", ensaio escrito em 1925, as noções de fábula, trama, motivo
e motivação, para investigar a relação entre a escolha do tema e a permanência, ao longo do tempo,

TfI()l\l,,\~ BON~"Jt'l,1 L(;CI,\ OSt\NA ZULfN (t)HC;AN17ADOIHS) - 119


1>' A N C O J U N , O R •

I do interesse por determinadas obras literárias. Segundo ele, o "tema apresenta uma certa unidade. E
. constituído de pequenos elementos temáticos dispostos numa certa ordem" (TOMACHEVSKI,
1976, p. 172). Tais elementos que constituem o tema são os motivos, definidos como unidades temáticas
mínimas (TOMACHEVSKI, 1976, p. 177).

A noção de tema é uma noção sumária que une a matéria verbal da obra. A obra inteira pode
ter seu tema, ao mesmo tempo que cada parte da obra. A decomposição da obra consiste em
isolar suas partes caracterizadas por urna unidade temática específica. [... ].
Através desta decomposição da obra em unidades temáticas, chegamos enfim !s p;utes
indecompostas, até às pequenas partículas do material temático: "a noite caiu", "Ra~kolnikov
matou a velha", "o herói morreu", "uma carta chegou" etc. O terna desta parte indecomposta
chama-se um motivo. No fundo, cada proposição possui seu próprio motivo. [::.]. .
Os motivos combinados entre si constituem o apoio temático da obra. Nesta perspectiva, a
fábula aparece como o conjunto dos motivos em uma sucessão cronológica de causa e efeito;
a trama aparece como o conjunto desses mesmos motivos, mas na sucessão ~m que surge
dentro da obra. No que conceme à fábula, pouco importa que o leitor tome conhecimento
de um acontecimento nesta ou naquela parte da obra e que este acontecimento lhe seja
comunicado diretamente pelo autor, através do escrito de um personagem ou através de
alusões marginais. Inversamente, só a apresentação dos motivos participa da trama. Um fato
qualquer não inventado pelo autor pode servir-lhe como fábula. A trama é uma construção
inteiramente artística (TOMACHEVSKI, 1976, p. 173-174).

Uma vez mais, note-se, o Formalismo diverge de concepções características da tradição acadêmica
dos estudos literários dominantes nas primeiras décadas do século:xx. O que explica a sobrevivência
de determinadas obras literárias ao longo do tempo e em contextos socioculturais e políticos distintos
não é a simples escolha do tema pelo autor ou sua suposta atualidade para o interesse do leitor, mas
o modo como tal tema é elaborado na construção da trama narrativa. Eis o que explica que, apesar de
apresentarem o(s) mesmo(s) tema(s), certas obras sobrevivam à passagem do tempo e à transplantação
para contextos culturais diversos dos que lhe deram origem, e outras morram no esquecimento. Se
a fábula é o material de que se alimenta a trama, é preciso estudar os procedimentos específicos de
composição da trama - o que, se não impõe, sugere uma revisão das bases tradicionais que sustentavam
a história e a teoria do romance e da narrativa.
Vejamos como Tomachevski define o conceito de motivação:

O sistema de motivos que constituem a temática de uma obra deve apresentar uma unidade
estética. Se os motivos ou o complexo de motivos não são suficientemente coordenados na
obra, se o leitor fica insatisfeito com as ligações entre esse complexo e a obra inteira, dizemos
que este complexo não se integra na obra. Se todas as partes da obra são mal coordenadas,
esta se dissolve.
Eis por que a introdução de todo motivo particular ou de cada conjunto de motivos deve ser
justificada (motivada). O sistema de procedimentos que justifica a introdução dos motivos
particulares e seus conjuntos chama-se "motivação" (TOMACHEVSKI, 1976, p. 184).

Segundo Tomachevski (1976), há três tipos distintos de motivação, a saber: motivação


composicional, motivação realista e motivação estética.
A motivação composicional é regida por um princípio de economia e utilidade dos motivos.
Como os'motivos podem tanto caracterizar as ações das personagens, constituindo os episódios, como
os objetos colocados no campo visual do leitor (os acessórios), é preciso que sua utilização tenha um
caráter funcional. "Nenhum acessório deve ficar inutilizado pela fábula. Tchekov pensou na motivação
composicional dizendo que, se no início da novela diz-se que há um prego na parede, é justamente
neste prego que o herói deve se enforcar" (TOMACHEVSKI, 1976, p. 184-185).
Há outros dois casos de motivação composicional, a saber: a introdução de motivos como
procedimentos de caracterização e a falsa motivação. No primeiro caso, os motivos introduzidos
devem se harmonizar com a dinâmica da fábula. Tal harmonização pode se dar por meio de analogia
psicológica ou por contraste. Pense-se, quanto à analogia, no modo como o Romantismo constrói uma

120 - T E o R I A LITERÁRIA
--~~.~
~t:\ F o R M .~ l [ , M Cl R U S S O F. N I W C R I T I C [ S M

correspondência entre os sentimentos e situações dramáticas vividas pelas personagens e o espaço,


fazendo com que a paisagem natural seja bela ou tétrica, agradável ou assustadora, acolhedora ou
agressiva. Já quanto ao contraste, pense-se na relação irõnica construída por meio da dissonância entre
um fato e o espaço em que ele ocorre, como, por exemplo, em Senhora, de José de Alencar, quando, na
noite de núpcias, Aurélia humilha Fernando, recusando-se a ele e mandando-o ir dormir num quarto
ricamente mobiliado que reitera, no caso dele, os motivos do interesse e da ganância. No caso da falsa
motivação, muito usada, por exemplo, no romance policial e na narrativa de mistério e suspense,
alguns acessórios e episódios podem ser introduzidos com a função de despistar o leitor, qiando falsas
expectativas ou compreensões que se revelam, numa reviravolta que faz com que a verdad~ venha à
tona num determinado momento, falsas, enganosas.
A motivação realista pauta-se pela exigência de que a obra seja verossímil. A. verossimilhança
caracteriza-se, geralmente, pela criação da ilusão de que os fatos dos quais o leitor toma conhecimento
sejam reais, quando, na verdade, são ficcionais. Segundo Tomachevski (1976), a ilusão realista exige
que cada motivo seja introduzido como um provável motivo para a situação dada. No entanto, é preciso
ter em mente que a ilusão realista é criada por meio das convenções que regem, num determinado
momento, a literatura e a arte. Nesse sentido, ela sofre mudanças conforme as convenções artísticas
e literárias; com o passar do tempo, mudam. Isso impõe, para o horizonte das reflexões sobre arte e
literatura, a necessidade de se pensar no realismo da obra como algo mais complexo do que o'resultado
de uma aproximação linear e simplória da obra com a realidade, pois

o matenal realista não representa em si uma construção artística e, para que ele venha a sê­
lo, é necessário aplicar-lhe leis específicas de construção artística que, do ponto de vista da
r~alidade, serão sempre convenções (TOMACHEVSKl, 1976, p. 188).

A motivação estética exige que a introdução de motivos obedeça ao caráter estético da obra literária,
harmonizando-se com ele. A distinção entre o "verdadeiro" e o "verossímil" evidencia o fato de que
este último responde a uma adequação entre a motivação realista e a motivação estética. Segundo
Tomachevski,

Cada motIVO real deve ser introdUZIdo por uma certa forma da construção do relato e deve
beneficiar-se de um esclarecimento particular. A própria escolha dos temas realistas deve ser
Justificada esteticamente.
As discussões entre as amigas e novas escolas literárias surgem a propósito da motivação
estética. A antiga corrente, tradicional, nega a existência do caráter estético das novas formas
hteránas (TOMACHEVSKl, 1976, p. 190-191).

Os procedimentos de singularização, vinculados, segundo Chklovski (1976), à criação de um ifeito


de estranlwmento, capaz de perturbar a recepção amortecida pelo hábito e pelas práticas cotidianas da
linguagem, são, segundo Tomachevski (1976), uma evidência da motivação estética.
Por fim, lomachevski concebe as personagens como uma espécie de suportes uivos para os diferentes
motillOS (1976, p. 193), afirmando que sua apresentação "é um procedimento coerente para agrupar
e coordenar" os motivos. A caracterização de uma personagem é um procedimento que a torna
reconhecível, facilitando a compreensão do leitor. A característica de uma personagem é "o sistema
de mDtivos que lhe está indissoluvelmente ligado. Num sentido mais restrito, entende-se por
característica os motivos que definem a psiquê da personagem, seu caráter" (TOMACHEVSKI, 1976,
p.193).
A caracterização de uma personagem pode ser: a) direta, realizada pelo "autor"/narrador, por
outras personagens ou por meio de uma autodescrição; b) indireta, realizada por meio das ações da
personagem. Numa obra literária, a "personagem que recebe a carga emocional mais viva e acentuada
chama-se herói. O herói é o personagem seguido pelo leitor com a maior atenção" (TOMACHEVSKI,
1976, p. 195). Tomachevski destaca o fato de que a relação emocional com o herói está contida na
obra:
A N C O JUNIOR

o autor pode atrair a simpatia para um personagem cujo caráter na vida real poderia provocar
no leitor um sentimento de repugnância e desgosto. A relação emocional com um herói
releva da construção estética e, apenas nas formas primitivas, coincidirá obrigatoriamente
com o código tradicional da moral e da vida social (TOMACHEVSKl, 1976, p. 195).

No que diz respeito à poesia, os formalistas russos efetuaram uma crítica à supervalorização da
métrica na tradição dos estudos acadêmicos. Opondo o ritmo ao metro, defenderam que o ritmo
é o elemento que constitui a unidade do verso e, a partir daí, propuseram uma teoria do verso que
o concebe como "uma forma particular do discurso, tendo suas próprias qualidades linguísticas
(sintáticas, léxicas e semânticas)" (EIKHENBAUM, 1976, p. 37-38).
Segundo Eikhenbaum, Ossip Brik demonstrou que

No verso existem construções sintáticas indissoluvelmente ligadas ao ritmo. Assim, a própria


noção de ritmo perdia seu caráter abstrato e ligava-se com a substância Iinguí;t;{ca do verso,
com a frase. A métrica recuava a um segundo plano, guardando um valor de convenção
poética mínima, de alfabeto. Esse passo era tão importante para o estudo do verso quanto o
estabelecimento da ligação entre o enredo e a construção para o estudo da prosa. A revelação
das figuras rítmicas e sintáticas derrubou definitivamente a noção de ritmo como suplemento
exterior que fiea na superfície do discurso. A teoria do verso pôs-se a estudar o ritmo como
fundamento construtivo do verso que determina todos os seus elementos, acústicos -e não­
acústicos. A perspectiva para uma teoria do verso estava largamente aberta, e esta teoria se
situava a um nível bastante mais elevado, enquanto que a métrica devia tomar o lugar de uma
propedêutica elementar (EIKHENBAUM, 1976, p. 24).

"O movimento rítmico é anterior ao verso. Não podemos compreender o ritmo a partir da linha
do verso; ao contrário, compreender-se-á o verso a partir do movimento rítmico" afirma Brik (1976,
p. 132). Isso, porque o ritmo preexiste ao verso, que nada mais é do que o registro das "marcas"
de um percurso rítmico realizado pelo poeta na construção do poema. Essa concepção desloca, no
estudo da poesia, o lugar e a importância atribuídos à divisão silábica que se presta à caracterização do
metro e às classificações da métrica. Ela afirma que o ritmo não pode ser reduzido à identificação das
sílabas acentuadas dispostas no verso, e, além disso, que a leitura dos versos não pode ser realizada de
modo isolado,pois, sendo o ritmo anterior ao verso, é ele quem determina o modo como os versos
devem ser lidos - o que explica, por exemplo, como determinados versos dispostos ao longo de um
poema mantêm a regularidade rítmica que domina o conjunto apesar de, se lidos isoladamente,
apresen~arem alterações no que se refere à identificação das sílabas acentuadas (cesura).

Teoricamente, cada sílaba pode ser acentuada ou não, tudo depende do impulso rítmico. Por
isso, distinguir as fortes, as semifortes, as levemente fortes, as fracas etc., e tentar penetrar
assim, na diversidade do movimento rítmico, não poderia ser senão uma empresa estéril.
Tudo depende do ritmo do discurso poético que tem como consequência a distribUição em
linhas e sílabas.
Os experts tentam fixar a intensidade de cada sílaba e devem admitir que diferentes pronúncias
do verso levam a resultados diferentes. O permanente mal-entendido tem como única causa a
contusão que se fez entre Impulso rítmico e verso pronto.
Se colocarmos de saída a primazia do movimento rítmico, o fato de que obtemos ao
curso de diferentes leituras resultados diferentes não terá nada de espantoso; não nos
surpreenderemos ao obter, no decorrer de leituras diferentes de um mesmo poema, uma
alternância diferente das unidades rítrmcas (BRIK, 1976, p. 133).

Para se ter uma aproximação concreta dos problemas apontados por Brik (1976), basta, por exemplo,
que dois leitores façam leitura em voz alta do mesmo texto, pois o ritmo está ligado ao sentido, que,
por sua vez, está ligado ao contexto, à interpretação e ao discurso, fatores que desencadearão mudanças
nos pontos de pausa (CHACON, 1998, p. 24).
Para Brik, "o verso é um complexo necessariamente linguístico, mas que repousa sobre leis
particulares que não coincidem com as da língua falada" (BRIK, 1976, p. 139). Nesse sentido, há
dois erros a serem evitados quando do estudo da poesia: a) a redução do verso às questões linguísticas
122 I E o R I A L ! T E R Á !( [ A
~Fo R M A L IS M O R U , S () E N E W c: I, I T I C I S M

(sintáticas), que negligenciam o valor e a importância do som e do ritmo para a construção do poema;
b) a redução do verso ao domínio dos sons convencionais e das imagens rítmicas, desprezando o valor
e a importância da estrutura semântica para a construção do poema (tal como faziam os futuristas
russos em sua fase mais radical). O estudo da poesia deve equilibrar um e outro aspectos, pois o ritmo
e a sintaxe "não existem separadamente, mas aparecem simultaneamente, criam uma estrutura rítmica
e semântica específica, tão diferente tanto da língua falada quanto da sucessão transracional dos sons"
(BRIK, 1976, p. 138).
Além de Brik, Tomachevski contribuiu, ao escrever A versificação russa (1942), para ;l construção
de uma teoria do verso que o concebe como elemento constitutivo de um "discurso específico, onde
todos os elementos contribuem para o caráter poético" (EIKHENBAUM, 1976, p. 26)..

o discurso poétIco é um discurso organizado quanto a seu efeito fônico. Mas, já que o efeito
fônico é um fenômeno complexo, só um de seus elementos sofie a carronização. Assim, na
métrica clássica, o elemento canonizado é representado pelos acentos que ela submeteu a uma
sucessão e regulou com leis [ ... ] Mas é suficiente que a autoridade das fonnas tradicionais seja
abalada para que apareça com insistência este pensamento: a essência do verso não se combina
com seus traços primeiros, o verso vive também pelos traços secundários de seu efeito fônico;
ao lado do metro, existe o ritmo que é também apreensível; pode-se escrever versos em que
só se observam estes traços secundários, o discurso pennanece poético sem que se mantenha
o metro (TOMACHEVSKl, 1922 apud EIKHENBAUM, 1976, p. 26-27). •

Os formalistas russos, por fim, efetuaram uma crítica ao modo como a questão da evolução
literária era tradicionalmente abordada. Partindo de uma concepção de forma como algo que resulta
da escolha de um tema e do conjunto de procedimentos que o singularizam como obra, os formalistas
reconhecerão a existência de um diálogo entre as formas literárias, já que, para eles, uma nova forma
sempre dialoga com as anteriores,justificando a sua emergência em razão do desgaste das formas que a
precederam. Desse modo, a chamada "evolução literária" passa a ser abordada por um prisma dialético,
que nega as bases a partir das quais ela erá estudada pela história da literatura e, também, pela crítica
literária, vigentes até as duas primeiras décadas do século XX. Segundo Eikhenbaum,

a história acadêmica da literatura se limitava de preferência ao estudo biográfico e psicológico


dos escritores isolados (que eram tão só e certamente "os grandes") [ ... J compreendia-se a
evolução como a ostentação passiva de uma herança que se transmitia de pai a filho, enquanto
a literatura como tal não existia: era substituída por um material tomado emprestado da
história dos movimentos sociais, da biografia dos escritores etc. [ ... ].
Deveríamos destruir as tradições acadêmicas e nos desembaraçar das tendências da ciência
jornalística. Para os primeiros, seria necessário opor à ideia de evolução literária a da literatura
em si, fora das noções de progresso e de sucessão natural dos movimentos literários, fora das
noções de realismo e romantismo, fora de toda matéria exterior à literatura que consideramos
como série específica de fenômenos. Para os segundos, deveríamos opor aos fatos históricos
concretos, a instabilidade e a variabilidade da forma, a necessidade de levar em consideração
as funções concretas deste ou daquele procedimento, isto é, de contar com a diferença entre
a obra literária tomada como um certo fato histórico e sua livre interpretação do ponto de
vista das exigências contemporâneas, dos gostos e dos interesses literários (EIKFIENBAUM,
1976, p. 32-33).

fo.s reflexões de Tynianov em Dostoievski e CagaI (1921) destacaram os problemas fundamentais da


evolução literária, concebendo a existência de uma "substituição dialética que se opera entre as escolas
literárias" (EIKHENBAUM, 1976, p. 33):

Quando se fala da tradição ou da sucessão literária, imagina-se geralmente uma linha reta que
encadeia novas folhas de um certo ramo literário a seus mais velhos. Entretanto, as coisas são
muito mais complexas. Não é a linha direta que se prolonga, mas assiste-se antes a uma partida
que se organiza a partIr de um certo ponto que se refuta [... ] Toda sucessão literária é antes de
tudo um combate, é a destruição do todo já existente e a nova construção que se efetua a partir
dos antigos elementos (TYNIANOv, 1921 apud ElKH~NBAUM, 1976, p. 33).

TIIOMA' BllNNil' / LU(IA O'ANA ZULlN (ClI1C;ANIZAD()Rb) - 123


Cf' A N C O J U N , " ,

Note-se que tal afirmação concebe a história da literatura como sucessão de formas literárias
marcada por uma contínua ruptura das novas formas com as antigas. Tal concepção, eminentemente
moderna, confina com a noção de tradição da ruptura (PAZ, 1984) ou tradição do novo, que, segundo
alguns críticos, é típica do modo como a história é vista a partir dos paradigmas da Modernidade.
Os formalistas russos vão privilegiar, em sua concepção da história literária como algo marcado
pela dialética das formas novas e antigas, o estudo dos elementos que, segundo a sua abordagem
imanentista da literatura, caracterizam a especificidade do discurso literário. Recusando-se a
comprometer o rigor de sua proposta de abordagem da literatura com hase na materialidasfe dos
signos e estruturas que constituem o texto literário, eles vão recusar as explicações e abordag~ns-que
subordinam a especificidade do discurso literário a fatores extraliterários (sociologia, psicotogia do
autor etc.). Os formalistas valorizam a investigação da formação dos gêneros literários e o estudo
das substituições que resultam do conflito entre o domínio de um gênero e a emergência de novos
gêneros que o contestam. Nesse sentido, eles se marcarão por uma maior abertura no que se refere
à valorização dos chamados gêneros "marginais", "menores" ou "subliterários", pois, para eles, "a
literatura de segunda ordem, a literatura de massa, tem então também valor, pois ela participa deste
processo" (EIKHENBAUM, 1976, p. 35).
Essa recusa à abordagem da literatura em seus aspectos não-linguísticos e eÀ'1raliterários pretendeu,
nos estudos mais radicais dos formalistas, afirmar uma autonomia que o fenômeno literário, na ver?ade,
não tem. A literatura não se define, como alguns de seus estudos sugerem, apenas a partir da "autocriação
dialética de novas formas". A própria noção de literariedade é construída histórica e culturalmente - o
que significa que ela resulta de uma interação complexa que envolve tanto os aspectos imanentes do
fenômeno literário como os aspectos normalmente considerados como extraliterários. No entanto, a
contribuição dos formalistas não pode ser ignorada ou menosprezada por apresentar, como qualquer
outra proposta de abordagem teórica da literatura, limitações ou, eventualmente, "erros". O privilégio
por eles concedido ao estudo dos elementos específicos que constituem a natureza do fenômeno
literário foi um dos mais importantes passos dados pela teoria literária no século XX, constituindo-se
numa herança que não pôde ser ignorada por nenhuma das propostas teóricas posteriores.

O NEW CRITICISM

O New Críticism é um "movimento" de crítica literária que se desenvolveu, considerando-se os seus


precursores, no sul dos Estados Unidos da América, entre os anos 20-30 do séculox:x, vindo a ocupar,
nos anos 40-50, uma posição dominante nos estudos literários. A utilização do termo movimento entre
aspas na frase anterior explica-se pelo fato de que não houve propriamente um movimento organizado
por parte dos chamados novos críticos, bem como não houve, em seus estudos, algo como uma reflexão
que se constituísse em um sistema fechado de princípios e conceitos teóricos seguidos por todos os
seus membros. A diversidade de posições c, mesmo, a existência dc divergências significativas entre as
posiçõeS e ideias defendidas pelos new crítics são características do "movimento".
Junqueira afirma que

o New Criticism está longe de constituir um bloco homogêneo, abrigando tendências das
mais divergentes, embora todas revelem um ponto comum: a origem na contribuição crítica de
Samuel Taylor Coleridge, a partir de cuja Biographia literária (1817) reaparece como exigência
basilar a necessidade de se ler, cada vez mais exatamente, as "palavras da página", o que se
prestou até para pesquisas estatísticas sobre a freqüência de certas expressões e imagens em
determinado poeta. [ ... ] De acordo com a lição de Coleridge, deve ser dispensada a mesma
atenção à estrutura do conjunto de palavras e à técnica de sua organização em estruturas
poéticas. Assim, a crítica literária passa a ser entendida como uma ciência autônoma que se
dedica ao estudo dessa técnica, sem qualquer preocupação com os elementos biográficos,
psicológicos ou históricos OUNQUElRA, 1989, p. 13).

124-- T E O f{ I A LITEHÁRlA
----.~-.~ F o R MAL I S IV! O R U S S O E N E W C R I T I C I S M

Segundo Cohen (1983, p. 3), a designação New Criticism já fora empregada por Joel Spingarn
em 1910, mas passou a restringir-se a um grupo de críticos influenciados por John Crowe Ramson,
que, além de batizar oficialmente o movimento com a publicação do livro The New Critícism, em
1941, combatia por uma crítica concebida em bases profissionais, mais voltada para a abordagem dos
aspectos técnicos da poesia do que preocupada com a exibição de erudição histórica. Cohen considera
importante, também, o fato de o New Criticism ter se desenvolvido "no final dos anos 30, num
momento em que a crítica marxista, até então muito influente, encontrava-se desacreditada e posta de
lado" (COHEN, 1983, p. 4). ,
Lobo afirnu que o New Criticism

marca, no contexto mundial, a passagem da crítica hterána para o âmbito do meio universitário, o
que caracteriza a crítica" científica" ou metodológica e epistemológica do século XX - isto é, aquela
que segue um método e uma teoria do conhecimento - com a superação da ~ritica impressionista
ou intuitiva. Inaugura-se o ciclo de publicações sistemáticas de revistas universitárias, e o professor
deixa de ser mero veiculador de ideias para tomar-se também pesquisador em equipe e escritor de
ideias (LOBO, 1998, p. 102).

Cohen aponta John Crowe Ramson, Allen Tate e Cleanth Brooks como os principais [tomes do
New Críticism, destacando, também, o importante papel de "colaboradores, colegas e outras figuras
que, sem pertencerem ao movimento, a ele se ligaram" (COHEN, 1983, p. 4): Robert Penn Warren,
Kenneth Burke, R P. Blackmur, Austin Warren, W Stallman e William K. Wimsatt Jr. Dentre os
precursores e teóricos que forneceram aos new [fities contribuições significativas, destacam-se, segundo
Cohen (1983), T. E Hulme, T. S. Eliot, Ezra Pound, I. A. Richards e William Empson.
Tomemos, para os fins deste capítulo, algumas das influentes ide ias de Eliot OUNQUEIRA,
1989) sobre a criação e a crítica literárias. No ensaio "Tradição e talento individual", escrito em 1917 e
republicado em 1920 e 1932, Eliot:

a) contrapõe à tendência de valorizar um poeta a partir dos "aspectos de sua obra nos quais ele
menos se assemelha a qualquer outro" a leitura que, livre desse preconceito, descubra "que não
apenas o melhor mas também as passagens mais individuais de sua obra podem ser aquelas em
que os poetas mortos, seus ancestrais, revelam mais vigorosamente sua imortalidade" (ELIOT,
1917 In: JUNQUElRA, 1989, p. 38);
°b) defende que a apreciação crítica deve estruturar-se em bases comparativas que considerem o
talento individual em suas relações com a tradição da qual ele emerge, pois

nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação complet1 sozinho. Seu significado e a
apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas
mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os
mortos. Entendo isso como um princípio de estética, não apenas histórica, mas no sentido crítico
(ELIOT, 1917 In: JUNQUEIRA, 1989, p. 39);

c) destaca o sentido histórico da tradição artística e literária, essencial tanto para a atividade de
criação como para a de crítica de arte, pois
..'

o que ocorre quando uma nova obra de arte aparece é, às vezes, o que ocorre simultaneamente
com relação a todas as obras de arte que a precedem_ Qs monumentos existentes formam
uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente
nova) obra entre eles. A ordem existente é completa antes que a nova obra apareça; para que
a ordem persista após a introdução da novidade, a totalidade da ordem existente deve ser [... ]
alterada: e desse modo as relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo são
reajustados; aí reside a harmonia entre o antigo e o novo [ ... ]. Neste sentido, em arte não
é absurdo que o passado deva ser modificado pelo presente tanto quanto o presente esteja
orientado pelo passado (ELIOT, 1917 In: JUNQUEIRA, 1989, p. 39-40);

TlIl))'vlr\~ BnNNI( I I LtH IA O\I\NA ZOl IN (Cl!{(;ANlll\J)O!U \) - 125


r
R A :) :e:en:e ::a :ti:i;ade critica voltada paca o "tudo da obra e deliberadamente desvencilhada
do apego positivista às abordagens extrínsecas (históricas, biográficas, sociológicas etc.), pois
"a crítica honesta e a sensibilidade literária não se interessam pelo poeta, e sim pela poesia"
(COHEN, 1983, p. 6). Desse modo, a arte é concebida como o resultado de uma atividade
mental capaz de transfigurar em obra as experiências vividas pelo artista:

A mente do poeta [...] pode, parcial ou exclusivamente, atuar sobre a experiência do próprio
homem, mas, quanto mais perfeito for o artista, mais inteiramente separado estará nele
o homem que sofre e a mente que cria; e com maior perfeição saberá a mente áig~rir e
transfigurar as paixões que lhe servem de matéria-prima (ELIOT, 1917 In: JUNQUEIRA,
1989, p. 43);

e) afirma que um poeta não deve ser avaliado senão por sua capacidade de produzir obras capazes
de suscitar no leitor os sentimentos e emoções que pode ou não ter experimentado em sua vida
particular, pois o

objetivo do poeta não é descobrir novas emoções, mas utilizar as corriqueiras e, trabalhando­
as no elevado nível poético, exprimir sentimentos que não se encontram em absoluto nas
emoções como tais. E emoções que ele jamais experimentou servirão [...] tanto quanto,as que
lhe são familiares (ELIOT, 1917 In: JUNQUElRA, 1989, p. 47).

A poesia, portanto, não consiste numa liberação das emoções ou numa expressão da personalidade
do poeta; ela consiste na capacidade deste para elaborar tais dados sob a forma de poema. Nesse sentido,
sugere, a crítica deve interessar-se pela poesia, e não pela vida individual do poeta que a criou, já que
"a emoção da arte é impessoal" (ELIOT, 1917 In: ]UNQUEIRA, 1989, p. 48), produto do trabalho
efetuado com a linguagem e, portanto, construída artificialmente a partir do domínio de determinado
conjunto de técnicas de composição.
Tais ide ias serão importantes para o desenvolvimento e a fundamentação das atividades do New
Criticism, já que elas afirmam uma ruptura para com os modelos oitocentistas de crítica literária,
até então fortemente calcados na exploração de dados extrínsecos ao próprio texto literário.
Segundo Teixeira, o conceito de correlato objetivo, teorizado por Eliot no ensaio "Hamlet and
his problems", tem origem na concepção da poesia como o resultado de uma "apropriação pessoal
da tradição literária, em que a visão individual das coisas deve, essencialmente, se transformar em
sabedoriã técnica" (TEIXEIRA, 1998, p. 34). Esse conceito terá enorme importância para o New
Criticism e, também, para as demais linhas de crítica e teoria literárias.

[O correlato objetivo corresponde à] criação de um co~unto de objetos, de uma série de


eventos, de uma situação ou de uma paisagem com poder de despertar no leitor a emoção
desejada. O poeta seleciona e dispõe os elementos de tal forma, que, uma vez vislumbrados
na leitura, desencadeiam imediata reação emocional. Quanto mais íntima a relação entre os
elementos do correlato objetivo e a vivacidade da emoção, tanto maior a eficácia do texto.
[ ... ]
Entendido como fórmula particular responsável por uma emoção específica, o correlato
objetivo pode indicar não apenas um determinado procedimento artístico, mas também o
conjunto acabado de uma obra (TEIXEIRA, 1998, p. 34-35).

Retomemos, aqui, o bilhete e o poema cujo referente é um beijo dado na praça central
de determinada cidade, que pode ser ou não São Paulo, dependendo do modo como se lê e
se interpreta o título "Meio-dia na Sé". No caso do bilhete, temos o registro de uma emoção
individual que funde amor e saudade na afirmação de uma experiência que não foi partilhada
pelo leitor. Naturalmente, não é impossível que o leitor compartilhe dessa experiência, mas, se
o fizer, isso se deverá ao fato de ser ele próprio o destinatário do bilhete ou de o tema remetê-lo
à memória de fatos que lhe aconteceram. Num caso e no outro, não é propriamente o texto que
lhe propicia a experiência de uma emoção particular, mas sim uma experiência vinculada a um

126 - T E o H I A L I T E R Á n I A
---~FORMALISMO RUSSO E NEW CRITICISM

evento que o inclua_ Logo, é bastante possível que muitos leitores não venham a compartilhar
dessa emoção, reconhecendo-a, pelo contrário, como algo que pertence exclusivamente à autora
do texto_ No caso do poema, dá-se o contrário: a articulação dos elementos que o compõem cria
um efeito emocional que é experimentado pelo leitor no momento da leitura e, desse modo, ele
sente-se como que compartilhando com o eu-lírico o prazer e a intensidade da paixão amorosa
- trata-se, pois, de uma emoção estética. Note-se que, no caso do poema, o beijo não se reduz a
uma lembrança de um momento de amor-paixão, instalando-se, no horizonte da leitura e da
interpretação, também como algo que acontece num aqui-agora da experiência eróticp-amorosa.
Por suas características, podemos vincular o poema "Meio-dia na Sé" a alguns dos traços
da poesia moderna e contemporânea brasileira, a saber: a utilização do verso livre ~ branco, a
abolição da pontuação, a concisão, a valorização do fragmento, a exploração dos_~spectos plásticos
da disposição do texto no papel, característica da poesia concreta. Além disso, o poema também se
aproxima da forma haicai, introduzida no Brasil no século XIX e muito cultivadã"no século XX,
por poetas como Guilherme de Almeida e Paulo Leminski_ Se considerarmos o seu plano sonoro,
veremos que o poema apresenta 18 sílabas gramaticais e 17 sons (já que ocorre uma contração, no
plano da leitura em voz alta, entre a última sílaba de "sino" e o "E" que dá início ao último verso).
Ora, 17 é o número de sons que caracteriza o modelo do haicai tradicional. Além disso, "Meio­
dia na Sé" marca-se pela apreensão poética do sujeito lírico que enfatiza um instante s~ngular da
experiência pretendendo anular, em seus efeitos, o tempo histórico - traço comum ao haicai. No
entanto, o poema apresenta diferenças em relação ao modelo tradicional do haicai, já que, como
os haicais de Guilherme de Almeida, tem título e, além disso, faz uso de quatro versos em vez
dos três que caracterizam o haicai tradicional. Observe-se, portanto, que "Meio-dia na Sé" dialoga
com a tradição na qual se insere, valendo-se dela para constituir-se como obra nova.
O correlato objetivo da emoção estética é, no poema, o modo como a imagem do beijo apaixonado é
construída: por meio de 4 versos curtos que enfocam as bocas, privilegiando uma "descrição" que vai
do mais exterior (as bocas unidas) para o mais interior (a imagem das línguas entrelaçadas, construída
por meio da metáfora "um sino e dois badalos"). A isso, somam-se o título, que situa geográfica e
circunstancialmente o beijo, contribuindo para a afirmação de sua importância e de sua intensidade,
os efeitos sonoros que, por associação, criam uma onomatopeia e sugerem uma sinestesia na ideia de
que o beijo se realiza como uma experiência marcada por uma multiplicidade de elementos táteis e
sonoros tanto ex'ternos quanto internos - o que se evidencia na densidade metafórica dos dois últimos
versos, em que as bocas transformam-se num único sino composto por dois badalos (línguas), que,
por sugestão, fazem o corpo e os sentidos "badalarem" na paixão.
A metáfora do beijo afirmada nos dois últimos versos constitui-se no correlato objetivo do estado
passional do eu-lírico, que, por sua vez, é uma voz que se universaliza, não se reduzindo à pessoa
individual da autora do poema. Por fim, note-se que a própria forma gráfica que caracteriza a disposição
dos versos no poema cria, como na poesia concreta, a imagem de um sino com duas bocas "atravessado"
pela língua compartilhada:

Nossas bocas unidas

Nossas línguas

Um sino

E dois badalos

Amais importante contribuição do NeuJ Criticism é a defesa do exercício de leitura e crítica de uma
obra com base no estudo minucioso de seus elementos internos, caracterizando o chamado dose reading.
Nesse sentido, os novos críticos regem-se por um princípio metodológico semelhante àquele defendido
pelos formalistas russos, privilegiando o estudo das técnicas que atuam sobre a materialidade linguística
da obra em detrimento dos demais aspectos a ela associados e concebendo, portanto, a literatura como
um fenômeno autônomo, "livre das supostas relações determinantes da sociedade com o artista e deste
com o texto" (TEIXEIRA, 1998, p. 34).

TllliMAI" BONNICI / LLCIA O\!\NA ZUl iN (Cl[U;ANI/i\J)ORf-\) - 127


<f R A
NCO JUNIOR

o dose reading pressupõe que a leitura de um texto deva


I
fundar-se em pressupostos objetivos, consagrados pelo sistema de uma teoria aplicável a
qualquer texto e à disposição de qualquer pessoa com um mínimo de condições técnicas para o
exercício da leitura. Esse exercício consiste no exame minucioso [... ] do poema, cuja forma os
novos críticos entendem como um organismo dinâmico, regido por tensões e ambiguidades.
Entender o poema equivale a resolver essas tensões e ambiguidades, estabelecidas pela relação
entre as diversas unidades semânticas do texto, que independem do sentimento da composição
(TEIXEIRA, 1998, p. 36).

Outros importantes conceitos a partir dos quais o New Criticism vai elaborar a sua metodologia de
abordagem do texto literário são: afalácia da intenção, afalácia da emoção, a heresia da panifrasee a busca de
((ensinamentos". A falácia da intenção e a falácia da emoção foram definidas em dois ensaios escritos por W
K Wimsatt e Monroe C. Beardsley.
No primeiro caso, nega-se o valor do reconhecimento das intenções ou dos sentimentos do autor
para a atividade de leitura crítica da obra por ele produzida, pois "o desígnio ou a intenção do autor
não é nem acessível nem desejável como padrão para julgar-se o êxito de uma obra de arte literária"
(WIMSATT; BEARDSLEY, 1983, p. 86).
Incorre-se na falácia da intenção quando se subordina a apreciação da obra à investigação, sempre
precária e pouco confiável, das possíveis intenções do autor ao escrevê-la ou, ainda, das possíveis
emoções experimentadas pelo autor no momento da criação da obra.
Wimsatt e Beardsley defendem um conjunto de ideias que consideram fundamentais para a
realização da leitura crítica, a saber:
a) Um poema não existe por acaso, mas nasce de um intelecto. Não se deve, entretanto, "conceder
ao desígnio ou intenção [desse intelecto J o papel de um padrão pelo qual o crítico pode julgar
o valor da realização do poeta" (WIMSATT; BEARDSLEY, 1983, p. 87 - colchete nosso);
b) "Se o poeta teve êxito em realizá-lo, então o próprio poema mostrará o que ele tentava realizar.
E, se o poeta não foi bem-sucedido, então o poema não é uma prova adequada e o crítico deve
extrapolar o poema, na busca de evidenciar uma intenção que não se efetivou no poema"
(WIMSATT; BEARDSLEY, 1983, p. 87);
c) "Julgar um poema é como julgar um pudim ou uma máquina. Exige-se que ele funcione. Só
ÍI!ferimos a intenção do artesão porque seu produto funciona. [ ... ] A poesia é uma operação
do estilo pela qual um complexo de significado é apreendido de um só golpe. A poesia triunfa
porque tudo ou quase tudo que nela se diz ou se encontra implícito é relevante; o que não
importa foi excluído, como os caroços de um pudim ou os enguiços de uma máquina. A este
respeito, a poesia difere das mensagens práticas, que são bem sucedidas se e apenas se inferimos
corretamente sua intenção" (WIMSATT; BEARDSLEY, 1983, p. 87);
d) "O significado de um poema por certo pode ser pessoal [ ... ] Mas até mesmo um poema lírico
curto é dramático, sendo a resposta de um falante (por mais abstrata que se lhe conceba) a uma
situação (por mais universal que seja). Devemos atribuir os pensamentos e atitudes do poema
de imediato ao falante dramático [eu-lírico - nota nossa] e, se de algum modo ao autor, apenas
p~r um ato de inferência biográfica" (WIMSATT; BEARDSLEY, 1983, p. 87-88);

e) "O poema não pertence ao crítico, nem ao autor (desliga-se do autor ao nascer e percorre
o mundo subtraindo-se ao poder ou ao controle do criador sobre ele). O poema pertence
ao público. Corporifica-se na linguagem, posse peculiar do público, e trata do ser humano,
objeto de conhecimento público. O que se diz sobre o poema é sujeito à mesma indagação
que qualquer afirmativa em linguística ou na ciência geral da psicologia" (WIMSATT;
BEARDSLEY, 1983, p. 88).
A falácia da emoção resulta da ideia de que a análise de um poema se reduz à análise da
emoção que ele produz. A emoção sus.citada na leitura é um efeito do poema, e não deve ser
128 -- T E o R I A LITERÁRIA
~~-'-~FOR."l'LI\MO RUo"O F NEW CRlrICISM

confundida com ele. Segundo Teixeira,

o poema é entendido como uma forma particular de conhecimento, mediante o qual se pode
aprimorar e intensltlcar o contato com a vlda~ Mas a função do analista é examinar o texto,
e não o seu efeito. A crítica deve procurar no texto as propriedades que o transformam em
poesia, caracterizando os componentes que o convertem em instrumento de conhecimento e
emoção estética, sem jamais perder de vista a ideia de que a emoção do texto é ficcional e não
se confunde com a emoção vivida (TEIXEIRA, 1998, p. 36).
"
A heresia da par4frase consiste no equívoco de se tomar por análise crítica a mera "tradução,r do texto
literário em termos simples. Incorre-se na heresia da panifrase quando se reduz a abordagem. do texto à
decodificação de seu significado referencial. Embora eventualmente útil como recurso de construção da
leitura crítica, a paráfrase não pode constituir-se em fim último desta, pois "o verdadeiro entendimento de
uma imagem não consiste na captação de seu significado lógico, e sim na percepção de súa configuração
estética, na fruição de seu valor expressivo" (TEIXEIRA, 1998, p. 36).
Finalmente, deve-se evitar, também, conceber o teÀi:o literário como mero veículo de mensagens
morais, pedagógicas, religiosas, políticas ou como fonte de "sabedoria" prática. Fazer isso é reduzir a
apreciação da literatura à message-h.untíng (busca de mensagens ou "de ensinamentos"). Segundo Teixeira,
para a "perspectiva da 'nova crítica', a sabedoria da arte decorre, não da apreensão das mensa'gens, mas
do convívio desinteressado com as formas que engendra" (TEIXEIRA, 1998, p. 37).

LIMITES DA TEORIA

Tanto o Formalismo Russo como o New Criticísm privilegiam, em sua abordagem da literatura, a
materialidade do texto e seus limites. São, portanto, correntes textualistas de teoria e crítica literárias.
Essa ênfase, embora muito importante para o desenvolvimento da crítica e da teoria literárias no século
xx, tende a desconsiderar os aspectos ligados à recepção do texto.
Se compreendermos a leitura como o resultado de uma articulação entre a materialidade do texto
(qu~ projeta um conjunto de possibilidades de sentido) e a recepção (que se marca pela escolha, pela
seleção e pela ênfase em determinados sentidos em detrimento de outros, além de ser potencialmente
afetada pelos planos emocional e afetivo do receptor, bem como por sua memória individual e histórica),
identificaremos com clareza os limites tanto do Formalismo Russo como do New Criticism.
Para essas duas correntes de teoria e crítica literárias, a verdade do texto (seus possíveis sentidos)
prescinde do polo da recepção para afirmar-se. Sabemos hoje, a partir da contribuição das teorias da
recepção, que serão expostas no Capítulo 9, que a leitura não é construída com base exclusivamente
nos elementos que constituem a materialidade sígnica e estrutural do texto, seja este literário ou não­
literário. A leitura crítica é o resultado de uma interação entre o texto e o leitor, e ela afirma uma
verdade possível (um sentido) a partir da articulação das informações de um e outro polos.

REFERÊNCIAS

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TII()MA\ BONNICI ! LUcI.' OSANA ZOIlN (ORGANIZADORES) - 129


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130·- T E o R I A LITEHÁRIA
TEORIAS
ESTRUTURALISTAS E PÓS­
ESTRUTURALISTAS

Thomas Bonnici

As NOVAS IDEIAS

É intrigante saber o porquê da preocupação dos formalistas russos e da Escola de Praga


sobre a forma ea estrutura das obras literárias. Seria insuficiente a tradicional análise da obra
literária? Não seria perda de tempo discutir algo de segunda importância, como a estrutura I
Discussões sobre a formados textos literários não seriam tediosas e maçantes, já que deslocam
a nossa atenção do prazer da leitura de um romance ou de um poema para a discussão sobre
sua forma e estrutura? Muitas pessoas, habituadas ao método crítico humanista, sentem que a
discussão sobre a forma e a estrutura dos textos ameaça sua experiência de leitura. Para muitos,
isso subverte o espírito e a liberdade do romance ou do poema, implode a perspectiva humanista
supostamente subjacente e introduz uma abordagem depreciativa à literatura e à cultura.
É interessante notar que, à semelhança das "provocações" dos formalistas russos, as abordagens
dos estruturalistas desafiam certos conceitos arraigados no leitor. Para muitos a obra literária é o
produtoda criatividade do autor e expressa o seu Íntimo. Ou seja, o texto é o lugar onde comungamos
os pensamentos e os sentimentos do autor. Outros assumem que o texto do romance ou da peça
teatral nos revela como são as coisas realmente. Não se pode, todavia, prescindir da forma e, mais
ainda, da estrutura. Parece que a arte exige forma e estrutura. Por mais próximo que um romance
esteja,da realidade, é o produto e o resultado de muitas decisões, que envolvem a forma e a estrutura
com ·que o "material" seria apresentado ao leitor. Para os formalistas, a forma está intimamente
ligada ao significado. Para os estruturalistas, a estrutura é a condição para que o significado seja
compreendido. Em outras palavras, a estrutura contribui para que o significado do texto literário
venha à tona.
Enquanto os formalistas russos desenvolviam seus trabalhos literários sobre a forma,
iniciava-se talvez o derradeiro esforço literário para o controle e a explicação da realidade
histórica. Yeats, Eliot, Pound, Joyce, Lawrence insistiam sobre o antropocentrismo da literatura
e da compreensão exaustiva da realidade através do texto literário.
«f0 N N I C I

! A perspectiva humanista de análise textual faz com que o leitor fique quase alheio às estruturas
f que funcionam na formação do significado. Tem-se a impressão de que o autor e o leitor criam
o significado. Não é verdade que criamos o significado quando queremos expressar algo através
da linguagem, da música, da pintura, da coreografia? Parece que o significado é criado por nós e
jamais pela estrutura fria, intocável e invisível. Apesar dessas indagações, a "morte" do autor já
foi declarada pelos estruturalistas, os quais também afirmam que o discurso literário carece do
conceito "verdade". Os estruturalistas opõem-se a todas as formas de crítica literária nas quais o
indivíduo é a fonte e a origem do significado literário, ou seja,jamais pode expressar-se nos textos
literários. í

O Estruturalismo é, portanto, uma prática interpretativa que procura certa ordem e inteligibilidade
nas inúmeras possibilidades de padrões do texto. O crítico estruturalista é capaz de isolar os padrões
significativos de signos a partir dos quais poderá chegar a conclusões sobre o significado e a cultura que
estão sendo transmitidos e pesquisados.

A BASE LINGUÍSTICA

O Estruturalismo tem sua origem na obra do linguista suíço Ferdinand de Saussure (1857­
1913), que revolucionou o estudo da linguagem no início do século XX. A linguística do século
XIX consistia em trabalhos filológicos, ou seja, estava interessada na história das línguas naturais
e formulava as leis que regiam os processos de alterações linguísticas. Seu interesse, portanto,
consistia em reconstruir a maneira pela qual as várias línguas europeias se desenvolveram
diacronicamente. No mesmo século houve também o trabalho dos gramáticos, que sistematizavam
as regras gramaticais que usamos inconscientemente quando falamos ou escrevemos. Os gramáticos
analisavam instâncias individuais da linguagem (mais tarde chamadas de parole por Saussure)
para obter as regras gramaticais. A abordagem de Saussure era algo completamente diferente.
A abordagem diacrônica foi abandonada e a linguagem começou a ser tratada do ponto de vista
a-histórico e abstrato. Perguntava-se: Como é que a langue funciona? É a pergunta fundamental
de Saussure, a qual deu início à linguística moderna. A finalidade de Saussure, portanto, era
proporcionar entendimentos que seriam válidos para todas as línguas e para todos as funções da
língua.•
Os princípios básicos da linguística saussuriana são: (1) a linguagem deve ser concebida
como um sistema de significantes (Saussure não usou o termo estrutura); (2) os significantes são
arbitrários, já que o significado não lhes dá uma forma específica; (3) os significantes têm a atual
forma devido à sua diferença de outros significantes. Vamos entender melhor esses princípios. Os
significantes são as palavras faladas ou escritas: livro, cão, ilha. Sabe-se que essas palavras, referentes
a objetos conhecidos no nosso dia-a-dia, são diferentes em outras línguas (book, dog, island, em
inglês; livre, chien, tle, em francês). Compreende-se, portanto, que é arbitrária a ligação fundamental
entre o'significante e o significado. Isso significa que o modo de dizer ou escrever ilha não é uma
necessidade. Na realidade, essa ligação arbitrária tornou-se uma convenção porque, na mesma
língua, há um relacionamento padrão entre, por exemplo, o significante ilha e "terra cercada por
água de todos os lados".
Se não há relação entre as palavras e o significado, de onde se origina o significante? Saussure
responde que vem da diferenciação: o sistema de linguagem está baseado nas diferenças. Nas
palavras porta, morta, torta, corta, aorta, apenas o primeiro fonema é diferente. As palavras, portanto,
funcionam num sistema que usa a diferença para criar seus componentes. Porém encontramos
aqui a genialidade da teoria de Saussure, quando diz que o princípio da diferença não apenas cria
os significantes (palavras), mas também seu sentido. Nesse ponto, a lógica exigiria que os objetos
no mundo real em que vivemos dessem às palavras o seu sentido. Os objetos dev~riam dar o

132 - T E o R I A LITERÁRIA
· --""-"~ T E O R J A S E S T R U T U R II L 1ST A S E I' Ó S - E S T R U T U R A L 1ST A S

sentldo às palavras. Isso não acontece. Se fosse assim, as palavras não difeririam de uma língua
para outra.

SIGNIFICADO

SIGNIFICANTE REFERENTE
/kaza/ (o objeto real
chamado casa
em português)
Quadro 1. Esquema linguístico de Saussure

Para Saussure, o significante (a forma) c o signf{icado (o sentido) não podem ser separados.
Se trocarmos porta por aorta, teremos não apenas outro significante (outra forma, ou palavra)
mas também um significado completamente diferente. O princípio diferenciador não funciona
apenas para distinguir as palavras, mas, ao mesmo tempo, diferenciar os significados. Uma
mudança, por menor que seja, no significante, produz novo significado.
Há outro item extremamente importante. Talvez contrariamente àquilo que normalmente
pensamos, o significado não é um objeto no mundo real (referente). No dicionário, o verbete peixe
é definido como "animal cordado, aquático, com nadadeiras". Essa definição não se refere a um
peixe específico no mundo real, mas a uma categoria de objetos. Peixe poderia incluir o dourado,
a curvina, a sardinha, a piapara e outros. O significado é uma categoria humana e um conceito.
Todas as palavras, como amor, país, criança, melo, referem-se a conceitos, indiretamente relacionados
ao mundo real. Os significados são o resultado de generalização e de abstração.

o ESTRUTURALISMO ANTROPOLÓGICO

Os princípios analisados acima são fundamentais para que se compreendam as várias abordagens
no campo da literatura que formam o Estruturalismo literário desenvolvido nas décadas de 1960 e
1970. Serão ainda mais indispensáveis para compreender o Pós-estruturalismo. Será com tal intuito
que analisaremos alguns aspectos do Estruturalismo antropológico desenvolvido na década de 1940
pelo Ç;ancês Claude Lévi-Strauss (nascido em 1908). Embora o Estruturalismo antropológico exercesse
apenas influência indireta nos estudos literários, sua compreensão e adaptação pelos estruturalistas e
pelos pós-estruturalistas são grandemente significativas.
Um dos princípios mais importantes no Estruturalismo antropológico consiste na concepção
saussuriana de que a linguagem é um sistema de signos regido pela diferença. O Estruturalismo
antropológico alargou a aplicação desse princípio, estendendo-o à antropologia, ou seja, ao
estudo das culturas "primitivas". O encontro e a colaboração entre Roman Jakobson (1896­
1982) e Claude Lévi-Strauss, na New School of Social Research em Nova York, a partir de

TIIUM:'\\ BONí\;ICI I LÚCIA OSANA Z()[ IN (OR(;.'\N!7.ADORES) - 133


<;>0 NN, C,

1 1941, foram decisivos para o desenvolvimento e a difusão do Estruturalismo no campo literário


r e antropológico.
No século XIX e no início do século XX, a antropologia era uma ciência descritiva:
apresentava as funções dos mitos, tabus, rituais e costumes de culturas não-ocidentais. Lévi­
Strauss quebrou essa tradição, (1) pela utilização dos estudos de Vladimir Propp e (2) pela
aplicação do princípio saussuriano da diferença. Em primeiro lugar, Lévi-Strauss estabeleceu
que os mais diversos mitos encontrados nas culturas analisadas são variações de um único padrão
narrativo. Em segundo lugar, percebeu que o sentido dos mitos e dos rituais nas culturas'-es!á na
diferença. Os mais insignificantes elementos que constituem uma cultura formam um sistema
de signos. Tudo o que não é biologicamente determinado é um signo. Por si só, cada item não
possui nenhum sentido; adquire sentido a partir do sistema de signos em que funciona, ou seja,
a partir das diferenças de outros signos. O item cultural não tem nenhum sentido intrínseco;
depende de todo o sistema para possuir sentido.

c---

PROPP LÉVI-STRAusS
. i

Estudo sobre os contos populares russos ~ I Os mitos são variações do mesmo padrão de narrativa.

O significado é o produto da diferença --+ Os fenômenos culturais (costumes de alimentação, tabu sobre
a menstruação, ritos de iniciação, parentesco) formam um
sistema sígnico
~
oposições binárias:

natureza / cultura
luz / escuridão
!
i
em cima / embaixo
~
presença / ausência
. (esse binarismo será o fundamento do Pós-estruturalismo
dos anos 1970)
I
Quadro 2. A influência de Propp sobre Lévi-Strauss

O Estruturalismo antropológico de Lévi-Strauss indagou sobre como os primeiros homínidas


começaram a dar sentido ao universo. A operação mental básica dos opostos foi provavelmente
utilizada: há coisas que se podem comer e outras que não se podem comer; há animais perigosos e
outros que são inócuos. O princípio básico de Lévi-Strauss foi o de que o homem primitivo usou
tal estrurura para compreender o mundo. O pensamento primitivo, portanto, era binário, ou seja,
ele começou a catalogar as coisas através de termos básicos envolvendo a presença e a ausência: luz
/ escuridão; sagrado I pr()t~no; voz I silêncio; em cima / embaixo. As oposições binárias formam o
que chamamos àe cultura. Evidentemente, ao longo dos séculos, essas oposições sofreram tantas
mutações e adaptações que, na maioria das vezes, tornaram-se irreconhecíveis ou contraditórias.
Sempre houve, todavia, um relacionamento de presença e de ausência entre os dois termos
opostos. Sabe-se que não apenas Lévi-Strauss emprestou essa ideia dos estudos de Jakobson sobre
os fonemas como opostos binários (!bl e Ipi), mas também os pós-estruturalistas dos anos 1970
retomarão e empregarão o conceito da oposição.

134 - TEU R 1 A LITEHÁRIA


-_. ---~ T E O R [ .-\ S E S T R V T U R A L 1ST i\ S E PÓS - E S T R V T U R A L 1ST A S

É mister frisar que, apesar de realçar a inter-relação entre a mente humana e o ambiente, o
Estruturalismo antropológico continua adotando a posição anti-humanista, ou seja, sua indiferença
pelo indivíduo. O Estruturalismo nega que os indivíduos sejam autônomos: os membros de uma
tribo primitiva não têm uma intenção subjetiva ou uma função individual, mas a contribuição de cada
um tem sentido apenas no contexto geral do universo deles. O Estruturalismo é também a-histórico,
porque resume todas as culturas e todas as versões culturais anteriores a um conjunto de dados não­
mutáveis, de número limitado. Diacronicamente, somente existem variações do mesmo padrão básico
de oposições binárias. __

A SEMIÓTICA

A partir da análise estruturalista dos mitos primitivos realizada por Lévi-Strauss, desenvolveu-se
uma investigação estruturalista de todos os fenômenos culturais. Em 1957, Roland Barthes (1915-1980)
publicou Mythologies, no qual aplicou o método estruturalista a fenômenos culturais contemporâneos.
O método de Barthes consiste em desmontar os elementos constituintes (signos) de ~ma certa
estrutura. Em seguida, analisa o modo como eles adquirem sentido pelas suas diferenças com outros
elementos na sequência. O Estruturalismo cultural é extremamente produtivo para se saber como as
culturas e as subculturas funcionam. Um senhor alto, uniformizado, usando óculos grandes de sol,
educadíssimo, ppra o motorista, vestido de calça comprida e camiseta, na estrada. O fato de que o
policial rodoviário usar uniforme já é um sinal de autoridade e de poder. Uma criança que frequenta a
escola também usa uniforme, mas nem por isso tem poder ou autoridade. Quer dizer, (1) o uniforme
em si não tem nenhum sentido inerente: seu sentido aparece em decorrência da diferença; (2) o
relacionamento entre o signo e o sentido é arbitrário: dependendo das circunstâncias, o uniforme tem
conotação de poder e de autoridade; (3) o uniforme do policial funciona de acordo com as oposições
básicas do Estruturalismo: dominação/submissão.

SISTEMA (IANGUE) SINTAGMA (PAROLE)

MODA

Conjunto de pt:ças de vestuário as quais não podem Justaposição de elementos diferentes com o mesmo
ser usadas ao mesmo tempo para cobrir a mesma parte estilo de roupa: saia, blusa e blazer.
do corpo. Sua variação corresponde a uma mudança
de significado da roupa (chapéu, boné, gorro).
-1- t
A moda não é vista como expressão pessoal ou O vestuário que se usa numa determinada ocasião
estilo individual, mas como sistema de vestimenta constitui sentença específica dita por um indivíduo por
que funciona como a linguagem. um objetivo específico (fala e sua competência na fala).

CULINÁRIA

Conjunto de alimentos com afinidades e diferenças, A sequência de pratos específicos escolhidos numa

do qual o indivíduo escolhe os pratos com o objetivo refeição.

de inculcar significação.

Quadro 3. Detalhes semióticos segundo Barthes


ero N N I C I

i Podemos dizer que, conscientes da função dos signos das coisas, começamos a enxergar os signos
! em tudo o que vemos ou experimentamos (por exemplo, o status que certo tipo de carro nos dá).
Essa abordagem semiótica ou semiológica em que os signos em si não têm nenhum sentido, mas o
adquirem a partir de sua função dentro de uma estrutura, é de suma importância. O ponto de vista
estruturalista da cultura é muito funcional em estudos literários e é por isso que atualmente a análise
literária inclui a cultura em geral no ensino da literatura e na crítica literária.

o ESTRUTURALISMO LITERÁRIO

o Estruturalismo literário se desenvolveu a partir dos estudos linguísticos e da antropologia


estruturalista. Já vimos como Lévi-Strauss procurou e analisou a estrutura subjacente em todas as
narrativas, consideradas no sentido mais amplo da palavra. Todorov em Grammaire du Décaméron,
publicada em 1969; Barthes, em Mythologies, publicada em 1957, e Bremond, em La logique des
possíbles narratifs e Logique du récit, publicadas em 1966 e 1973 respectivamente, tentaram encçntrar
uma gramática universal da narrativa que revelasse como a mente humana organiza sua experiência.
O resultado foi algo muito abstrato.

o MODELO DE BARTHES E BREMOND

Bremond (1973) sugere as possibilidades lógicas da narrativa, baseadas num modelo padrão
com três fases: (1) a virtualidade, ou a possibilidade de realização de uma ação; (2) a realização, ou
a passagem ao ato; (3) o resultado, o melhoramento ou a degradação. A fase 1 é básica: a narrativa
prepara um quadro que oferece uma possibilidade de ação. Em todas as narrativas há uma expectativa
de que algo vai acontecer. Na fase 2, pode haver elementos que levam (presença) ou não levam
(ausênóa) à ação. Se esta última opção acontece, a narrativa para; se a primeira opção é escolhida, há
o desenvolvimento da narrativa. Se há o desenvolvimento da narrativa, pode haver o melhoramento
ou a degradação. O novo estado servirá como um novo ponto de partida, uma nova virtualidade,
especialmente se uma degradação aconteceu.

sucesso
(objetivo alcançado)
.'
processo de atualização_ _--I
(os passos tomados)
potencialidade fracasso
-
(objetivo) (objetivo não alcançado)
nenhuma atualização
(nenhum passo tomado)

Quadro 4. Estágios lógicos da potencialidade, processo e resultado (BREMOND, 1973)

136 - T E o R I A LITERÁRlf\
----~ T E O R I A S E S T R U -r U R A r 1ST A S E PÓS - E , T !( li -I U R t\ L 1ST !\ S

---------------------------------- -----
Tebas Édipo

Sltuação rUim: má situação

Peste

\
~ ~
Necessidade dever de OUVir

de ajuda

apelo à ajuda ouve


ajuda concedida ajuda concedida dever de ajudar

ação para

ajudar \

processo de processo de

melhona deterioração necessidade

de oráculo

ação para
obter oráculo

oráculo I necessidade de
obtido I pu.mr assaSSinO

açao punItiVa

necessldade de necessldade de
descobnr assassino"'-- obter evidênCIa

procedimento para prooeESO paraol::ter


descobri-lo E'\1idências

as.assmo descoberto _ evidêncla Obtlda


I
situaçã() sltuação '\luda dada assaSSIno

melhor tráglca - pumdo

Quadro 5. A trama em Édipo Rei, de Sófocles, conforme o método de

Bremond (RIMMON-KENAN, 1986)

o MODELO DE PROPP E GREIMAS

Antes de analisar a abordagem de A. J. Greimas, encontrada em Sémal2tique structurale (1966),


é bom lembrar o método e as estruturas desenvolvidos por Propp (1984). Isso se faz necessário
porque, semelhantemente aos formalistas, os estruturalistas partem de pressupostos linguísticos e
quàem introduzir uma nova poética que estabeleça uma "gramática" da literatura, ou seja, as regras
subjacentes que determinem a prática literária. Como eles concordam que há uma relação especial
entre,a literatura e a língua, a teoria narrativa estruturalista se desenvolve a partir de certas analogias
linguísticas elementares. A sintaxe (ou as regras de construção de sentenças) é o modelo básico das
regras narrativas. A divisão sintática de uma oração envolve o sujeito e o predicado: "Lalino (sujeito)
depõe o violão e vai apanhar uma melancia" (predicado). Se substituímos Lalino por "caboclo" e
violão ou melancia por "paletó", a estrutura da oração fica a mesma. Foi exatamente essa analogia
entre a estrutura da oração e a narrativa que Vladimir Propp (1895-1970) usou em Moifología do conto,
publicada em 1928, para desenvolver sua teoria dos contos populares russos.
A abordagem de Propp pode ser entendida quando substituímos o "sujeito" da oração pelos
personagens (o herói, o vilão) e o "predicado" pelas ações. Embora contenham muitos. detalhes, todos
1'0 NN, C,

l esses contos são construídos sobre um conjunto de trinta e uma funções. A função pode ser definida
i como a unidade básica da linguagem narrativa e se refere às ações significantes que constroem a
narrativa. Embora nenhum conto as contenha em sua totalidade, as tlmções sempre têm a sequência
abaixo:

1. Situação inicial.
2. Proibição.
3. A proibição é violada.
4. O agressor tenta conseguir um esclarecimento.
5. O agressor recebe uma informação.
6. O agressor procura enganar a vítima com a mentira.
7. A vítima deixa-se enganar.
8. A falta do agressor.
9. A falta é divulgada e o herói fica sabendo.
lO. O herói consente em agir.
11. Início da ação na qual o herói parte.
12. Primeira função de um doador.
13. Reação do herói.
14. Um objeto mágico é dado ao herói.
15. O herói se desloca e se aproxima do objeto da busca.
16. O herói e o agressor se enfrentam.
17. O herói se distingue no combate.
18. O agressor é vencido.
19. A má ação inicial é reparada.
20. Volta do herói.
21. O herÓI é perseguido.
22. O herói é socorrido.
23. O herói chega incógnito (sem ser reconheCIdo).
24. Um falso herói se apresenta.
25. É dada ao herói uma tarefa difícil.
26. O herói cumpre a tarefa.
27. O herói é reconhecido.
28. O falso herói é desmascarado.
29. O herói tem nova aparência.
30. O falso herói é punido.
31. O herói casa e ascende ao trono.

Quadro 6. As funções de Propp (1984)

Por exemplo, ao final da Odisséia, aplicam-se as funções 20-31, porque revelam a volta de Ulisses à
sua casa em Ítaca; seu encontro com os pretendentes de Penélope; a competição com o arco e a flecha;
o desfecho vitorioso; a morte dos príncipes; o reencontro do casal após a separação de tantos anos.
Pode-se deduzir que as funções acima encontram-se não apenas em contos populares russos, mas em
comédias, mitos, épicas e romances em geraL
Como, porém, as funções proppianas têm grande simplicidade arquetípica, uma certa sofisticação
é necessária quando essas funções são aplicadas a textos mais complexos. No mito de Édipo, Édipo
consegue desvendar o enigma da Esfinge, o herói é reconhecido, casa-se e ascende ao trono. Édipo,

138 --- T E o R I A LITERÁRIA


-~TEORIAS ESTRUTURALISTAS [ PÓS-ESTRUTURALISTAS

contudo, é também o falso herói e o vilão (ele mata seu pai e casa-se com a mãe); portanto, é
desmascarado e se pune.
Propp acrescentou sete ejerasde ação ou papéis às trinta e uma funções: vilão, doador, ajudante,
objeto da procura, mandatário, herói, falso herói. "A mesma composição pode servir de base para
enredos diferentes. Se o dragão rapta a princesa, ou o diabo rapta a filha de um camponês, ou do pope
[sacerdote ortodoxo], é indiferente do ponto de vista da composição" (PROPP, 1984, p. 104).
Em Sémantique structurale (1966), AIgirdas-J ulien Greimas (1917-1992) elaborou a teoria de Propp.
Não se restringindo a um único gênero literário dos contos maravilhosos populares, Gr€itT).as queria
chegar a uma gramática universal da narrativa. Portanto, aplicou à narrativa a análise semântica da
estrutura da oração. Substituiu as esferas de ação por três pares de oposições binárias que incluem os
seis papéis, chamados acfantes:

Poder
Auxiliar ~ Sujeito (­ Oponente
Querer 1­ o

Destinador ~ Objeto ~ Destinatário


Saber

Quadro 7. O esquema actancial de Greimas (1966)

Os elementos básicos são os actantes, dos quais dois são mais fundamentais do que os outros:
o stljeito e o objeto. Portanto, em nível de querer ou de desejo, há o binário sujeito-objeto. O sujeito
(geralmente uma pessoa) é o elemento central na fábula e o objeto é a finalidade que o sujeito deseja
alcançar. Esse desejo dá o impulso aos eventos e os faz mover. Em nível de saber ou de comunicação,
encontra~sc o binário destínador / destinatário. O binário auxiliar I oponente pertence ao nível do poder,
ou de auxílio ou de impedimento. É importante notar que Greimas distingue acfante de personagem
(acteur): enquanto os personagens são muitos, o número de actantes é limitado. O mesmo actante
pode ser manifestado por vários personagens (sincretismo actancial) e o mesmo personagem pode ser
car~cterizado por vários actantes (sincretismo atorial).

Sincretismo actancia! Sincretismo ataria!

Um actante Vários actantes


tJ-t 1-J-~

Vários personagens Um personagem


Quadro 8. Relação entre personagem e actante, segundo Greimas (1966)

Para Grcimas, os actantes e as relações imutáveis entre eles formam o modelo básico de todas as
narrativas. Contudo, não se pode aplicar esse modelo como se fosse uma matriz interpretativa para analisar
os textos literários ou não. Em muitas ocasiões, é o leitor que escolhe se um personagem funciona como
auxiliar ou oponente. Ademais, em romances complexos há muitas subfábulas e, portanto, o modelo
greimasiano deve ser aplicado várias vezes ao mesmo texto. Pode acontecer que um personagem de
função auxiliar numa subfábula exerça função oponente numa outra. Esse modelo ajuda o leitor a olhar o

THO'v1AS B(JNNI{ I I LÚCIA OSANA ZOLlN (~)RC/\NIZA!)ORFS) - 139


'f0 NNI CI

J texto mais "clinicamente". O sentido de um texto literário será produzido pelo leitor como também pela
! estrutura. São esses dois agentes que fazem emergir o sentido.
Greimas reduziu para vinte as trinta e uma sequências narrativas de Propp (1984) e as agrupou em
três estruturas: (1) o sintagma contratual; (2) o sintagma peiformativo; (3) o sintagma disjuntivo. Por exemplo, o
sintagma contratual se refere à criação ou à quebra de regras. Ou seja, as narrativas podem usar uma das
seguintes estruturas: (1) o contrato (proibição) entre a pessoa e a sociedade gera a violação que resulta em
punição; (2) a falta de contrato (desordem) gera o estabelecimento da ordem.
Vamos agora aplicar esse esquema de Greimas a Édipo Rei, de Sófocles. Édipo procura os assassinos
de Laio e, ironicamente, ele (sujeito) está procurando a si mesmo (objeto). O oráculo de Apol.o révela
as falhas trágicas de Édipo. Tirésias, Jocasta, o mensageiro e o pastor confirmam a veracidade desse
oráculo. Realmente a peça gira em tomo da incompreensão da mensagem por Édipo. Embora Tirésias
e Jocasta tentem impedir Édipo de descobrir o assassino, o mensageiro e o pastor, sem ó saberem, o
assistem nessa procura. Édipo mesmo põe obstáculos à verdadeira interpretação da menságem. Além
do mais, a narrativa de Édipo contempla o sintagma contratual: ele quebra a proibição sobre o incesto
e o parricídio, o que resulta na própria punição.

o MODELO DE TODOROV

Todorov (1973) compilou sua teoria a partir dos trabalhos de Propp (1984) e de Greimas (1966).
Em primeiro lugar, as regras sintáticas da linguagem são utilizadas para analisar a narrativa. A unidade
mínima da narrativa é a proposição, a qual poderia ser agente (pessoa) ou predicado (ação). Na oração
"Édipo I casa-se com Jocasta sua mãe", a primeira proposição refere-se ao agente; a segunda refere­
se ao predicado, que funciona ou como adjetivo (proposição estática) ou como verbo (proposição
dinâmica).
A partir dessa unidade mínima; Todorov (1973) descreve dois níveis superiores de organização:
a sequência e o texto. Um conjunto de proposições forma uma sequência. A sequência fundamental é
feita de cinco proposições (equilíbrio! ,forçai, desequilíbrio,jorça 2 , equilíbrio2), descrevendo a violação de um
estado e o restabelecimento do mesmo, embora com certas modificações. Finalmente, as sequências
formam o texto. O texto, então, é formado pelas sequências organizadas por encaixamento (uma fábula
dentro de outra fábula; digressões), encadeamento (justaposição de diferentes histórias ou uma série
de sequências) e alternância (duas fábulas são contadas ao mesmo tempo, interrompendo ora uma
ora outra, para retomá-la na interrupção seguinte). O primeiro e o segundo tipos projetam as duas
relações sintáticas de subordinação e de coordenação. O terceiro tipo é o mais distante da literatura
oral (TODOROV, 1973).

1 Proposição Agente (e.g. personagem) - predicado (e.g. ação)

Equilíbrio l (e.g. paz)


,
Forçai (e.g. o inimigo invade um país)
Sequência (o conjunto de
2 Desequilíbrio (e.g. guerra)
proposições)
Força2 (e.g. o inimigo é derrotado)
Equilíbri02 (e.g. a paz, em termos diferentes)

Organização das sequências:

Texto (o conjunto de (a) Encaixamento

3
sequências) (b) Encadeamento
(c) Alternância
Quadro 9. O modelo de Todorov (1973)

140 - T E () R I A LITERÁRIA
---' ,--.. ~ T r, o R I -" S E S T R U T U R .-" I 1ST A S E P Ó <; - E S T R U T tJ R .A L 1ST A S

A NARRATOLOGlA

A teoria da narrativa teve seu grande expositor em Gérard Genette (nascido em 1930), especialmente
em Discurso da narrativa, publicado em 1972_ Maiores detalhes já foram expostos e analisados no Capítulo 2
e apenas um esquema sucinto será desenvolvido aqui. A partir da distinção formalista entrefabula (eventos)
e syuzhet (trama ou discurso), Genette (1982) divide a narrativa em três níveis: (1) a fábula (histoire), a
ordem cronológica dos eventos; (2) o discurso (récít), os eventos e as ações como apresentados,.no texto; (3)
narração (narration), o próprio ato de narrar.

Formalistas russos Genette


--
Fabula Histoire Eventos narrados cronologicamente

Syuzhet Récit A narrativa como contada ou escrita .


Narration Relação entre;] voz do narrador e o narratirio

Quadro 10. Componentes do discurso segundo os formalistas russos e Genette

Em Os lusíadas, Vasco da Gama é o narrador que desenvolve um discurso, revelando eventos em


que ele mesmo aparece como personagem. Essas três dimensões da narrativa são relacionadas por
três aspectos: (1) tempo; (2) modo; (3) voz, como se fossem a expressão de um verbo gramatical. O
item tempo analisa a ordem temporal c a disposição dos acontecimentos na narrativa, sua frequência c
duração. O modo analisa a colocação em perspectiva da narrativa, enquanto a voz detalha o emprego de
primeira ou terceira pessoa e a narrativa em primeiro ou segundo grau. O foco narrativo fica melhor
esclarecido através da distinção entre o modo e a voz, já que frequentemente deíxamos de distinguir
entre a voz do narrador e o modo (a perspectiva) do personagem. Em Dom Casmurro (1900), Bentinho
apresenta a perspectiva de quando ainda era jovem através da voz narrativa dele mesmo, mas agora
com idade avançada.
A categoria ordem relaciona as discordâncias temporais entre a fábula e o discurso/trama e cataloga
três posições: a narrativa pode vir depois (analepse ou flashback) , ao mesmo tempo (sincronia) ou à
frente da ordem cronológica (prolepse). Genette (1982) também discursa sobre a categoria duração. ou
seja, o relacionamento entre o tempo que um evento durou na narrativa e o tempo que realmente se
ocupou para narrá-lo. Trata de como a narrativa pode elidir eventos, f:1zer pausas, expandir e resumir
os episódios. No resumo, o tempo de leitura é menor do que o tempo cronológico descrito. Por outro
lado, um certo período temporal pode ser eliminado (elipse). Isso acontece quando o tempo da narrativa
vaga e,m cenas, comentários ou descrições.
A terceira categoria se refere àfrequência. É a relação entre o número de vezes em que certo evento
ocorre na narrativa e o número de vezes em que é realmente narrado. Um único evento pode ser
narrado uma única vez (narrativa síngulativa). Frequentemente, porém, ocorre o oposto, ou seja, um
evento que ocorreu apenas uma vez é repetidamente narrado (narrativa repetitiva). O mesmo evento
pode ser narrado por várias pessoas sob ângulos diferentes ou pela mesma pessoa em diferentes estágios
de sua vida e, portanto, a partir de perspectivas diferentes. O assassinato de Charles Bon por Henry
Sutpen no romance Absalom, Absalom! (1936), de Willíam Faulkner, é narrado 39 vezes. Há também
a narratil'a iteratit/a, quando se narra uma vez o que aconteceu várias vezes. A quarta categoria de modo
'f0 NNI CI

i pode ser subdividida em distância e perspectiva. A distância se refere a recontar a fábula (diegese) ou
representá-la (mimese).
A grande inovação de Genette (1982) consiste na categoria perspectiva, que vai além daquilo que
tradicionalmente se chama foco narrativo ou ponto de vista. Faz-se, em primeiro lugar, a abordagem
binária entre o narrador (Quem narra?) e o focalizador (Quem vê?). O narrador é capaz de falar e
ver, e pode realizar as duas ações ao mesmo tempo. Todavia, um narrador pode narrar o que uma
outra pessoa está vendo ou tem visto. Narrar e ver, a narração e a focalização, portanto, podem ser
atribuídas ao mesmo agente ou a agentes diferentes. Podemos resumir as distinções entre o narrador
e o focalizador:
1) Em princípio, a narração e a focalização são atividades distintas;
2) Em narrativas "terceira pessoa", o centro de consciência é o focalizador, e o narrador é terceira
pessoa;
3) A focalização e a narração são atividades distintas também em narrativas "primeira pessoa" de
narração retrospectiva;
4) No que diz respeito à focalização, não há nenhuma diferença entre o centro de consciência
"terceira pessoa" e a narração "primeira pessoa" de narração retrospectiva. O focalizador é uma
personagem na narrativa. A única diferença é a identidade do narrador;
5) Em certas ocasiões, a focalização e a narração podem coincidir.
O narrador que está fora da narrativa (ou seja, não é uma personagem diegética) é um narrador
extradiegético. Por outro lado, se o narrador é também uma personagem diegética, ele é um narrador
intradiegético. O narrador intradiegético e o narrador extradiegético podem contar a própria história
ou a história de outrem. O narrador heterodiegétíco conta a história de outra personagem (não a
história dele próprio); o narrador que conta a própria história ou, de algum modo, participa na
narrativa, é chamado narrador homodiegético. O grau de participação de narradores homodiegéticos
(quer extradiegéticos quer intradiegéticos) pode variar muito. Às vezes o narrador tem o papel
principal e narra a sua própria narrativa (é um narrador autodiegético), como o velho Bentinho,
atualmente Dom Casmurro, o narrador de Dom Casmurro (1900), de Machado de Assis; às vezes
o seu papel é apenas de testemunha, como Nick, em The Great Gatshy (1925), de Francis Scott
Fitzgerald. Tom fones, de Fielding, Sons and Lovers, de D.H. Lawrence e Pere Goriot, de Balzac,
têm narrador extradiegético e heterodiegético. Em Great Expectations, de Charles Dickens, e em
Dom C~murro, de Machado de Assis, os narradores Pip e Casmurro respectivamente podem ser
chamados extradiegéticos e homodiegéticos. Podem ser chamados simplesmente autodiegéticos.
Xerazade é uma narradora intradiegética e heterodiegética, porque ela é uma personagem ficcional
que está ausente nas histórias que conta. Lockwood, em Wuthering Heights, e Nick, em The Great
Gatshy, são narradores intradiegéticos e homodiegéticos, porque narram histórias nas quais são
apenas personagens-testemunhas.

[ Homodiegético (narrador conta a própria história)


Extradiegético (terceira pessoa)
Heterodiegético (narrador conta a história de outrem)
Narrador

Homodiegético (narrador conta a própria história)


'- Intradiegético (primeira pessoa) [
Heterodiegético (narrador conta a história de outrem)

Quadro 11. O narrador conforme Genette (1982)

142 -- T E o R I A LITERÁRIA
~~ T E O R I A S E ' T R U T U R l\ L I SI A S E f' () , ~ E S l R li T \) R A L 1 S TAS

A focalização tem um sujeito, o focalizador, e um objeto, o focaLizado. O focalizador é o agente cuja


percepção dirige a apresentação. O focalizado é o objeto que o focalizador percebe. A focalização pode ser
externa ou interna. AJocalização extema é de um agente (chamado narrador-jócalízador) intimamente perto do
narrador ("terceira pessoa"). Pode haver focalização externa também em narrativas de "primeira pessoa".
Isso pode acontecer ou quando a distância temporal e psicológica entre o narrador e o personagem é
mínima (O estrangeiro, de Camus), ou quando a percepção é mais do personagem que narra do que do
personagem que experimenta (o conto "Araby", de James Joyce).
Ademais, aJocalização interna acontece dentro dos eventos representados, vistos por umJocalizador­
personagem.

Agora, A [ ... ] entrou no quarto pela porta interna que dá para o corredor central. Ela não olha
pela janela escancarada, por onde, desde a porta, veria este canto da nranda. Voltou-se agora
para a porta a fim de fechá-Ia. [ ... ]
O grosso corrimão da balaustrada quase não tem mais pintura na pane supenor. O c1l1zento
da madeira aparece, estriado de pequenas fendas longitudinais. Do outro lado do corrimão, a
dois bons metros abaixo do nível da varanda, começa o jardim.
Mas o olhar que, vindo do fundo do quarto, passa por cima da balaustrada, só vai encontrar
a terra mUlto mais longe, no lado oposto do pequeno vale, entre as bananeIras da plantação.
Não se vê o chão entre seus penachos espessos de grandes folhas verdes. Não obstante,
como o cultivo desse setor é bastante recente, ainda se pode acompanhar distintamente o
entrecruzamento regular das tlleiras de mudas. Isso aconteceu também em quase toda essa
parte visível da concessão [ ... ] (ROBBE-GRILLE1~ 1986, p. 7-8).

No romance de Robbe-GrilIet não há um focalizador personificado e à primeira vista parece uma


focalização externa. Certas expressões como "[ela] veria este canto da varanda", "o olhar [... J vindo
do fundo do quarto, passa por cima da balaustrada", "em quase toda essa parte visível da concessão"
conotam, porém, uma posição (provavelmente do marido ciumento) na narrativa a partir da qual se
observam as coisas.
O focalizador externo pode perceber um "objeto" focalizado por fora ou por dentro. No
primeiro caso, apenas os fatores externos (atos, movimentos) aparecem, enquanto os fatores internos
(sentimentos, pensamentos) são ausentes. Na segunda hipótese, o focalizador externo (narrador­
focalizador) apresenta o focalizado por dentro e descreve seus pensamentos e sentimentos. "Havia algo
estranhamente penetrante em seu fito. Yvette sentiu isso; sentiu em seus joelhos. Fingiu que estava
interessada no cão vermelho-escuro" (LAWRENCE, 1982, p. 25). Do mesmo modo, um focalizador
interno pode perceber um objeto por dentro. Isso aconteceu no monólogo de MoIly Bloom em Ulysses
(1922), de James Joyce, quando o focalizador e o focalizado são o mesmo personagem. O focalizador
interno pode perceber apenas as ações externas do focalizado, como na passagem acima, de Robbe­
Grillet.

Percebe obJ"to de fora (a. mamfestações ",'{ternas do focalizado)


r N"rrador~focahzador
[
ExterIor da narrativa

Percebe objeto de dentro (,enttmentos e pensamentos do focalIzado)


F oc"lizador

Percebe objeto de fora (as mamfestações externas do focalIzado. )


'- Personagem ~focalizador
Interior à narrativa [

Percebe objeto de dentro (as mamfestações do focal,zado A personagem Molly


Bloom em Ulysses, deJoyce, é focalizador. e focalizada).

Quadro 12. O focalizador conforme Genette (1982)

TtHH,l,\:' BONNll:; / LÚCIA O~ANt\ ZOl.lN (ORCANIZADORE':') -- - 143


'f0 NN, C,

.i Com «fecência à n.nação, no inte,ine da fábula pode have'vá,ias nanativa" um pecsonagem


: pode narrar outra fábula, a qual pode conter outro personagem narrando outra. As narrativas
dentro de narrativas produzem uma estratificação de níveis a partir da qual uma narrativa interna
está subordinada à narrativa na qual está encaixada. O nível mais alto está ocupado pela narração
(nível extradiegético em Genette). É o nível do narrador de Contos de Cantuária (1387), de Geoffrey
Chaucer (1343-1400), que apresenta os peregrinos. Imediatamente vem o nível diegético, ou seja,
os eventos: a romaria dos peregrinos ao santuário de São Thomas à Becket, em Cantuária. Nesses
eventos pode haver narrativas de personagens, as quais constituem narrativas de segundo grau em
nível hipodiegético. I

. -­
NARRADOR NÍVEL

Narrador extradiegético narra a narrativa de 10 grau = o nível diegético .

Narrador diegético narra a narrativa de 2° grau = o nível hipodiegético .


Narrador hipodiegético narra a narrativa de 3" grau = o nível hipo-hipodiegético
Quadro 13. Níveis da narrativa

As narrativas hipodiegéticas têm várias funções dentro das narrativas nas quais estão encaixadas.
(1) Através dafunção actional a narrativa hipodiegética simplesmente causa o avanço da primeira
narrativa. Em Mil e uma noites, a vida de Xerazade depende de suas narrativas, cuja única finalidade
é manter a atenção do sultão. A narrativa hipodiegética pode desempenhar uma função explicativa: o
nível hipodiegético explica o nível diegético. Frequentemente responde à pergunta: Quais foram
os episódios que causaram a presente situação? Em Absalom, Absalom! (1936), Thomas Sutpen
narra eventos de sua infância ao general Compson. A finalidade dessa narrativa é explicar como
Sutpen tornou-se um mau caráter. A narrativa hipodiegética pode ter ainda uma função temática:
as relações entre os níveis diegético e hipodiegético são analógicas, de semelhança ou contraste.
Em The Real Life ofSebastian Knight (1941), o personagem V tenta alcançar o moribundo Sebastian
porque tem certeza de que este vai dizer algo importantíssimo para ele (nível diegético). Em
nível hipo-hipodiegético, todavia, Sebastian escreve um romance no qual há um agonizante que
guarda um s.egredo e morre antes de poder contá-lo e mudar a vida de muita gente. Contudo,
numerosos romances contemporâneos contêm muitos níveis narrativos, justamente para
problematizar a fronteira entre a realidade e a ficção ou para sugerir que não há outra realidade
além dá narrativa.
Quando se refere ao texto, em Palimpsestos (1982), Genette discute os problemas da
trallstextú'alidade, ou seja, a relação entre determinado texto e os outros textos existentes. São
cinco os fatores que compõem esse relacionamento. (1) A intertextualidade é a presença efetiva
de um texto dentro de outro; (2) a paratextualidade é a relação do texto com tudo o que o
acompanha, como título, prefácio, ilustrações, notas, epígrafes; (3) a metatextualidade consiste
no comentário ou crítica de um texto por outro texto; (4) a arquitextualidade é a relação que une
o hipertexto a um texto anterior chamado hipotexto. Enquanto a transformação (pela paródia) e
a imitação (pelo pastiche) de uma narrativa por outra caracterizarão a teoria de Júlia Kristeva,
a reescrita de obras canônicas será uma das estratégias mais importantes do pós-colonialismo
(Capítulo 14).

144 - T E o R I A L I T E R Á R I A
· ~--- ~ T E O R [ .~ S L S T R LI T LI R A L [ S TA" E I' Ó " - E S T R U T li R A [ [ S T ." S

REFLEXÓES SOBRE O ESTRUTURALISMO

Reconhece-se que o Estruturalismo é uma tentativa de fornecer parâmetros científicos


na análise de narrativas. De fato, os trabalhos dos autores acima mencionados estabelecem
aspectos para certa teoria científica fundamentada numa sintaxe universal da narrativa. Por
outro lado, parece que a poética estruturalista tem pouco a oferecer ao crítico literário. É
muito significativo o fato de que nos textos dos estruturalistas predominam o~ exemplos
envolvendo contos de fadas, mitos e histórias policiais e de aventura. Além disso, os"estudos
dos estruturalistas definem os princípios gerais da estrutura literária e nãó fornecem
interpretações de textos específicos. Tais objeções podem ser válidas; porém,para a finalidade
em razão da qual os estruturalistas se empenharam, talvez um conto de fadas, mais do que
Sagarana ou Macunaíma, forneça exemplos muito mais eloquentes sobre a gramática narrativa
essencial.
o Estruturalismo seduz porque pretende introduzir uma profunda objetividade e rigor
científico.à análise e à crítica literária. Essa objetividade, contudo, vem acompanhada de
certos prejuízos. O estruturalista negligencia a especificidade de textos reais e os trata como se
fossem configurações ordenadas e criadas por forças invisíveis. Ao isolar e analisar o ststema da
narrativa e ao se propor contrário à tradição humanista que considera o autor como a origem do
texto, o estruturalista elimina o autor, o contexto da obra literária e os substratos sociopolíticos
envolvidos. Para os estruturalistas, a narrativa prescinde de qualquer autoria, a linguagem ganha
precedência e o texto torna-se algo composto pelo material que já foi escrito.
Como o principal objetivo é isolar o sistema narrativo, os estruturalistas subestimam e, às
vezes, eliminam a história. Para eles, as estruturas narrativas são universais; em consequência,
os segmentos arbitrários (problemas de história versando sobre a mudança e a inovação) do
processo evolutivo e mutante são rejeitados. Os estruturalistas não estão interessados no
desenvolvimento do romance, na evolução das formas literárias, no momento da produção
literária ou de sua recepção e interpretação, mas na mera estrutura da narrativa, o que torna
estática e a-histórica a sua abordagem. As leis da mente que o Estruturalismo isola agem em
um nível de generalidades bastante distante das diferenças concretas da história humana
(EAGLETON,1983) .
.Ademais, o Estruturalismo é um desafio à crítica humanista representada e desenvolvida
por Matthew Arnold, em Criticai Essays, 1865; por F. R. Leavis, em The Great Tradition, 1948;
por O. M. Carpeaux, emA história daliteratura ocidental, 1959; por Benedetto Croce, em Estetica
come scÍenza dell'espressione, 1902; por E.R. Curtius em European Literature and lhe Late Middle
A,í!es, 1979; por Harold Bloom, em The Western Canon, 1994. Todos esses autores pressupõem
a linguagem como capaz de compreender a realidade como tal. A linguagem havia sido
compreendida como uma reflexão da mente do escritor ou do mundo visto pelo escritor,
além de expressar a própria personalidade dele. No período pré-estruturalista, dizia-se que a
linguagem deu origem ao texto; os estruturalistas afirmam que a estrutura da linguagem cria a
"realidade", e assim desmistificam a literatura. "As observações frouxamente subjetivas foram
castigadas por uma crítica que reconhecia ser a obra literária, como qualquer outro produto
da linguagem, um construto, cujos mecanismos poderiam ser classificados e analisados como
os objetos de qualquer outra ciência" (EAGLETON, 1983, p. 113). O significado não está
mais na experiência do escritor ou do leitor, mas nas estruturas pertencentes à linguagem.
A interpretação não depende do indivíduo, mas do sistema de linguagem do indivíduo. No
Estruturalismo, portanto, há uma busca científica para descobrir os códigos, as regras e os
sistemas que subjazem a todas as narrativas. Não somente há vários conjuntos de oposições,
sequências de funções e regras sintáticas por baixo de práticas individuais, mas também
as diferenças individuais se originam das estruturas. Foi justamente contra essa posição
supostamente objetiva que os pós-estruturalistas reagiram.

TIIOI\·j1\') B()~NI<:i / LLelA ()SANA ZPl IN (()RGANIZADOIH-\) - 145


rCf0 N N I C I

, o PÓS-ESTRUTURALISMO

°
Entre o fim dos anos 1960 e início da década de 1970, muitos adeptos do Estruturalismo, baseados
principalmente em teóricos franceses, tentaram ir além das ideias de Propp, Todorov e Genette. O Pós­
estruturalismo é a continuação do Estruturalismo e, ao mesmo tempo, a rejeição dele. A aceitação, pelo
Pós-estruturalismo, das posições mais contundentes do Estruturalismo e o surgimento do primeiro,
°
no final dos anos 1960, quando Estruturalismo ainda se desenvolvia, mostram que as duas cç>.rrentes
são, de fato, bifurcações do movimento linguístico anti-humanista. Como nessa época ainda vigorava
nos estudos literários a ideia humanista tradicional, os críticos e teóricos contemporâneos acharam
que o humanismo clássico e o essencíalismo (pelo qual se pretende conhecer a essência dascoisa's) não
eram mais sustentáveis e tornaram-se o principal alvo dos pós-estruturalistas. Ao mesmo tempo, a
crítica feminista, nas vertentes não-marxista e marxista, admitia ser possível uma concepção precisa e
verdadeira da realidade do mundo. Segue-se que, embora muitos críticos aceitem os postulados contra
os essencialistas, há outros que defendem a crítica humanista (Nova Crítica, a crítica conforme os
parâmetros de Leavis, certa crítica feminista e afro-americana). Enfim, todos são conscientes de que
cada perspectiva é problemática e sujeita a questionamentos. De fato, será difícil proferir a última
palavra sobre o texto literário.

DIFERENÇA

Não é possível conceber o Pós-estruturalismo sem o Estruturalismo. O Pós-estruturalismo (1)


adota a perspectiva anti-humanista do Estruturalismo e (2) acredita que a linguagem seja a chave
do conhecimento de nós mesmos e do mundo. Porém o Estruturalismo, é subvertido pelo Pós­
estruturalismo, quando algumas de suas pressuposições são questionadas. A linguagem encontra-se
no âmago dessa subversão e na diferença entre os dois "movimentos". Considerado uma sensibilidade
estética, o Pós-estruturalismo quebra o sistema de relações sobre as quais está construído o
Estruturalismo. Isso acontece porque os pós-estruturalistas admitem que o indivíduo é formado por
estruturas sociológicas, psicológicas e linguísticas sobre as quais ele não tem nenhum controle, mas
que poderiam ser descobertas por métodos investigatórios. Afirmam que é instável ° relacionamento
estrutural entre as unidades e as configurações internas dessas mesmas unidades. Para os pós­
estruturalistas, o Estruturalismo não tem consistência, pela simples razão de que todo significado
é relativo. Ou seja, questionam-se os métodos que tradicionalmente foram usados para conhecer
e descrever a realidade. O Pós-estruturalismo percebe as construções racionais como estratégias de
poder e controle social.
É interessante notar, também, que o Pós-estruturalismo não é uma escola de pensamento, mas
um conjunto de abordagens, as quais nem sempre são compartilhadas na íntegra por todos os adeptos.
É um conjunto de posições teóricas que tem em comum a ideologia de que o relacionamento entre o
texto e seu significado é apenas aproximado, resvalado e ambíguo.
Vamos dar um exemplo. Embora inicialmente rotulado como estruturalista, o filósofo e historiador
francês Michel Foucault (1926-1984) é um dos representantes mais importantes do movimento
pós-estruturalista. Foucault concorda com os estruturalistas em que a linguagem e a sociedade são
formadas por sistemas e regras, mas discorda deles em dois pontos. Não admite (1) que haja estruturas
subjacentes definitivas que possam explicar a condição humana e (2) que seja possível ir além do
discurso e analisar objetivamente nenhuma situação. Influenciado por Heidegger e Nietzsche,]acques
Derrida (1930-2004) afirma que todo tex"to é ambíguo e, portanto, é impossível uma interpretação
completa e definitiva. A desconstrução é empregada como uma técnica para revelar as múltiplas
interpretações de um texto.

146 - T E o R I A LITEHÁRIA
.Jf:\
--~~ .... ~ T E O R I A S E \ T R U T U R A L 1ST A \ E P () S - F S T R U T U R A I 1ST AS

ESTRUTURALISMO PÓS-ESTRUTURALISMO

I. anti-humanismo 1. anti-humanismo
2. antiessencialismo 2. antiessencialismo
3. a língua é chave do conhecimento 3. a língua é chave do conhecimento
4. há estruturas subjacentes que explicam a 4. o indivíduo é formado por estruturas sobre os
condição humana quais ele não tem controle
5. pode-se Ir além do discurso e analisar 5. o texto é ambíguo e o significado é relativo;
objetivamente qualquer situação há múltiplas interpretações e a interpretação
definitiva é impossível .
6. a leitura é o consumo passivo do produto 6. a leitura é desempenho através da piüralidade de
significados dados pelo leitor
7. o texto é uma sensibilidade estética 7. o texto é uma construção com estratégias de poder
e controle ..
Quadro 14. Semelhanças e diferenças principais entre o Estruturalismo e o Pós-estruturalismo

Pós-estruturalismo, portanto, é o nome dado à filosofia crítica e ao desenvolvimento da teoria


crítica moderna nos anos 1960 a partir das obras de Roland Barthes (1915-1980),]acques Laêan (1901­
1981), Jacques Derrida (1930-2004), Michel Foucault (1926-1984), ]ean-François Lyotard (1925­
1998), Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992). O ponto de partida é Ferdinand
de Saussure (1857-1913) e, embora os aspectos discutidos pelos autores acima mencionados sejam
diversos, é possível identificar algumas tendências gerais em sua rejeição ou extensão das teorias
estruturalistas. As tendências são:
1) A crítica do sujeito humano: os Pós-estruturalistas desconstroem a noção de "sujeito". Alegam
que a finalidade das ciências humanas não consiste na compreensão ou na construção do
ser humano, mas em sua dissolução. A realidade humana é um construto social e a própria
consciência humana é descentralizada.
2) A crítica do historicismo: os Pós-estruturalistas rejeitam a tese de que haja um padrão universal
de história ou que exista um texto confiável sobre a história. Não aceitam uma progressão
histórica linear a partir de um passado primitivo até a civilização presente, caminhando para
um futuro utópico .
.3) A crítica do significado: o Pós-estruturalismo nega a existência de uma verdade inerente ao
texto. O signo linguístico é arbitrário e significa algo apenas pelo uso e por convenção. °
Pós-estruturalismo insiste sobre a interação do leitor e o texto, ou produtividade. A leitura
não é mais o consumo passivo do produto; ao contrário, ela é um desempenho. Partindo do
princípio estruturalista da "morte do autor" e da não-existência da intenção autoral, o jogo de
significados e a pluralidade de significados do texto são realçados. A pluralidade textual nega
um discurso "científico" e objetivo, e consequentemente, elimina a demarcação nítida entre a
literatura e qualquer outra forma de escrita.
A este último item, o Pós-estruturalismo dá ênfase ao resvalamento entre o significante (a
palavra escrita ou pronunciada) e o significado (a abstração ou figura mental), entre um signo e seu
sucesSor, entre um contexto e o contexto seguinte. °
significado sempre está contextualizado, ou
seja, específico a um contexto dado. Isso acontece porque os pós-estruturalistas consideram inútil
a finalidade estruturalista de descobrir as regras pelas quais os significantes codificam a realidade.
Quando pronunciamos ou lemos a palavra água, podemos pensar em gotas d'água, num lago, numa
poça d'água, num copo d'água, no símbolo químico H 20, no oceano, no orvalho etc. Não vem à nossa
mente, portanto, uma imagem da "quintessência da água". Portanto, é solapada a opinião estruturalista
de um relacionamento direto entre o significante e o significado. Quando consideramos o conceito
água na expressão pOfa d'água, o processo continua, ou seja, pensamos em chuva, lama, barro, respingos
de água. Não pensamos num significado.definitivo e comum. Portanto, os significantes levam a outros
~o N N 1 C 1

í,
, significantes e não a significados definitivos. Esse conceito, chamado différance por Derrida (1976), e
t traduzido por "deferimento do significante" ou "o jogo incessante do significante", é o elemento­
chave da desconstrução, que é basicamente uma crítica pós-estruturalista. O Capítulo 10 retomará
com mais detalhes o problema da desconstrução.

Pobreza -+ exclusão -+ silêncio -+ revolta -+ violência -+ obséquio ardiloso -+ subversão -+ autono~ia •


t
marginalização
t
vida difícil -+ primitivismo -+ falta de cultura -+ oralidade -+ jeito diferente de pensar
t
SERTÁO -+ pouca vegetação -+ deserto

(região agreste, distante das povoações ou das terras cultivada s)

Quadro 15. Deferimento do significante "sertão"

ROLAND BARTHES: A INTERPRETAÇÃO PLURAL DO TEXTO

O tema central na obra de Barthes (1915-1980) é sem dúvida a convencionalidade de todas


as formas de representações, incluindo a literatura. Para o autor, a literatura é uma mensagem da
significação das coisas e não o significado das coisas. É ilusório o escritor fingir que a linguagem
seja um meio natural e transparente pelo qual o leitor compreende a "verdade" e a "realidade". O
verdadeiro escritor reconhece que toda escrita é uma impostura e que, portanto, ele tenta transformá­
la em jogo. É a ideologia burguesa que propaga a ilusão de que a leitura é algo natural e transparente.
Quando insiste que o significante (a palavra) acompanha o significado (a figura mental), todo discurso
é limitado a um único significado. Os pós-estruturalistas deixam os significantes criarem ad libitum seu
próprio significado e solapam a sua censura e sua insistência unificadora.
No ensaio "A morte do autor", publicado originalmente em 1968, Barthes (1977) rejeita a noção
tradicio~al referente ao autor como a origem do texto, a fonte do significado do texto e a única autoridade
para sua interpretação. O autor é uma espécie de encruzilhada onde cruza e volta a cruzar a linguagem
composta por citações, repetições e referências. O leitor, portanto, pode penetrar no texto por todos os
lados, já que não há um caminho considerado unicamente "correto". O processo significatório do texto
pode ser aberto ou fechado ao bel-prazer do leitor. A intenção do autor sobre o significado específico do
texto é descartada e o leitor poderá se conectar a qualquer sistema de significados. Barthes (1975) distingue
entre o texto de prazer e o texto de fruição ou de êxtase (jouíssance). O texto de prazer "vem da cultura,
não rompe com ela e está ligado a uma prática confortável da leitura". Por outro lado, o texto de fruição
é "aquele que nos coloca em estado de perda, aquele que desconforta, que faz vacilar as bases históricas,
culturais e psicológicas do leitor" (BARTHES, 1975, p. 25). Esse tipo de texto fomenta inclusive uma crise
no leitor·ém suas relações com a linguagem. Evidentemente esse êxtase produzido pelo texto não é o tipo
de prazer que a economia de mercado pressupõe. É mais do que provável que o contrário aconteça: para o
leitor ingênuo, Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, ou Finnegans TiUike, de James Joyce, ambos
textos de fruição, são "chatíssimos".
Contrariamente à presunção estruturalista de ver todas as fábulas do mundo dentro de uma
estrutura única, Barthes insiste em que cada texto é diferente. Cada texto se refere a um grande oceano
ou depósito que contém tudo o que havia sido escrito em épocas anteriores. O texto acabado (o
romance realista), com significado limitado e único, desencoraja o leitor para fazer uma ligação entre
o texto e o que havia sido escrito antes. O leitor é apenas o consumidor de um significado fixo. Barthes

148 TEORIA LITERÁRIA


-~T L () R I ,\ S f S T H li 1 U R ,\ r I \ f i\ S F P o S - E S r R U I U R A L 1ST A $

(1975) chama esse texto de legível (/isible). Outros textos (os romances modernos) dão ao leitor o
máximo de liberdade para produzir significados. Isso acontece porque colocam o leitor em contato
com a pluralidade dos outros textos. Esse segundo tipo de texto é escrevível (scriptible) porque é uma
"galáxia de significantes e não uma estrutura de significados; [ ... ] temos acesso a ele através de várias
entradas e nenhuma dclas pode ser considerada a principal".

"

OBRA ACABADA OBRA ABERTA


1------------------ -------t----------------­

Texto de prazer Texto de fruição


(leitura de best-sellers) (leitura que dcsconforta o leitor)
1------- - - - - - - - - - - ----.-----1---------.-----------------1

Texto legível Texto escrevível


(significado [L'm) (pluralidade de significados)
"----------- --- - - - - - - - - - - - - - - ' - - - - - - - - - - - - - ­
Quadro 16. Texto e leitura conforme Barthes (1975)

Barthes (1975), em vista disso, introduz cinco códigos que determinam a legibilidade do texto
narrativo. O código hermenêutica se refere ao questionamento, aos enignlas e às perguntas no início
de qualquer discurso, tais como: O que está acontecendo? Qual é o impedimento? Quais são as
finalidades do herói? Essas questões podem ser resolvidas ou dei.xar de ser resolvidas na fábula. O
código sêrnica se refere aos temas e às conotações na caracterização (por exemplo, riqueza, feminilidade,
objetificação). O código simbólica diz respeito às polaridades e às antíteses que permitem a multivalência
(por exemplo, os padrões do relacionamento sexual e psicológico que os personagens adotam). O
código proairétiro (escolhas ou ações) estuda a sequência de ações, acontecimentos e comportamento.
O código cultural engloba todas as referências de conhecimento produzidas pela sociedade ou seus
pressupostos ideológicos (por exemplo, o conhecimento físico, médico, psicológico, literário etc.).
O quadro abaixo toma como exemplo o conto Bliss, de Katherine Manstleld (1888-1923), utilizando
certas frases e aplicando os cinco códigos barthianos.

O título Blíss (Êxtase), embora enigmático, é um resumo da narrativa. Quem experimenta o êxtase?
Código Em quais circunstâncias? Que resultados? No códIgo hermenêutico revelam-se, no processo da
hermenêutico leitura, certos descortinamentos parciais, demoras e ambiguidades. A frase "esperando algo [... ]
divino para acontecer" é a sinalização que inevitavelmente mostrará outras revelações.

A palavra êxtase mostra um estado emocional e a frase inicial "Embora Bertha Young tivesse trinta
Código sêmico anos", ligada a outras informações sobre caráter e o,-pressões específicas formam um conjunto de SetneS
que resultam na totalidade do personagem.

"Por que nos é dado um corpo se temos de mantê-lo guardado numa mala, como um violino
muito, muito raro". Baseado em antíteses, o código simbólico opõe o exterior e o interior, o
Código simbólico
fechamento e a abertura, o calor (a queimação no peito) e o frio (dos quartos), Segundo Barthes,
o lugar de encontro desses opostos se dá no corpo (no corpo de Bertha em Bliss) .

"Ela ainda tinha momentos iguais a este." Procede a coleção dessas ações em grupos que movem
Código proaerético
a narrativa até o final.

A sua idade (30 anos) pertence ao vasto armazém de saber pelo qual interpretamos a nossa
Código cultural
experiênCIa.

Quadro 17. Aplicação dos códigos de Barthes ao conto Bliss, de MansficId

TI!~)MA\ BONNI('I / LfJC!A ()S.J\NA ZOt IN (tlHC;~\NLZAP01U:S) - 149


~o N N I C I

! JÚLIA KruSTEVA: A REVOLUÇÃO DA LINGUAGEM


!

Grande parte do trabalho de Kristeva é baseado no sistema psicanalítico e no processo pelo qual tudo
o que é ordeiro e racional está continuamente ameaçado pela heterogeneidade e pelo irracional.
O pensamento ocidental sempre teve a necessidade de um "sujeito" que tem o conhecimento e que
unifica a consciência. O meio pelo qual o sujeito percebe os objetos e a verdade é a sintaxe que requer
uma mente ordeira. Porém a razão sempre foi ameaçada pelo prazer, pelo sorriso, pela dança e pela,poesia.
Diga-se de passagem que Platão alertava contra essas influências perigosas, as quais podem ser resumidás na
palavra desejo. A ruptura poderá acontecer, não apenas no nível literário mas também no nível sociaL
Kristeva (1974) mostra o relacionamento entre o normal e o poético. No início de sua 'vida, o ser
humano é o espaço pelo qual transitam ritmicamente os impulsos psíquicos e físicos. Aos poucos,
esse fluxo indefinido de impulsos é ordenado pelos ditames da família e da sociedade (identificação de
gênero, a distinção entre o público e o privado, e outros). No estágio pré-edípico o fluxo de impulsos se
concentra na mãe e na demarcação de partes do corpo humano e suas relações. Um fluxo desorganizado
e pré-linguístico de movimentos, gestos, ritmos e sons forma o semiótico, que permanece ativo sob o
desempenho linguístico maduro do adulto. Kristeva (1974) usa o termo semiótico porque descreve um
processo significante não-organizado (a ilógica dos sonhos parece mostrar esse fato). Com o tempo,
o semiótico fica regulamentado e transforma-se na sintaxe lógica e coerente e na racionalidade do
adulto. Kristeva chama simbólico a linguagem falocêntrica, enquanto o semiótico continua representando
o aspecto feminino e reprimido da linguagem. Usando o semiótico e dominando-o parcialmente, o
simbólico coloca as coisas ordenadamente e dá aos sujeitos a própria identidade. Contudo, o semiótico é
sempre capaz de subverter o simbólico.
Kristeva (1974), portanto, considera a poética como o lugar privilegiado de análise, porque está
equilibrada entre os dois polos do sistema e porque, em muitas ocasiões, se abre aos impulsos básicos
do desejo e do medo que funcionam fora dos sistemas racionais. Se constatamos que a mudança social
acontece quando há o rompimento dos discursos autoritários, é através da subversão do semiótico que
a linguagem poética abala a ordem simbólica e fechada da sociedade. Para Kristeva, a linguagem poética
irrompe dentro da e contra a ordem social, especialmente quando se trata do semiótico como associado ao
corpo feminino. O anarquismo (a concretização do semiótico) é a posição filosófica e política adotada pelo
feminismo para acabar com a predominância do falogocentrismo. Nos Capítulos 12 e 18 sobre o gênero,
.
essas teorias serão retomadas e discutidas no contexto do feminino e da literatura feminina e feminista .

É a presunção de que a linguagem seja autêntica e capaz de produzir um significado fixo e


Logocentrismo
exato.

A organização dos sistemas simbólicos de diferença sobre a sexualidade, nos quais a diferença é

Falocentrismo
determinada de acordo com a posse ou a falta do falo como significante privilegiado.

O sistema que privilegia o falo como o marcador principal da diferença sexual e a garantia da

Falogocentrismo
verdade e do significado na linguagem.
(não é a ciência da Semiótica) o estágio pré-simbólico da criança, antes que seu corpo e sua mente
sejam regulados pela linguagem e pela ordem simbólica. Localiza-se o feminino no semiótico
SemióticÔ quando o sujeito integra-se na ordem masculina. O semiótico não é anulado quando de sua
entrada no simbólico; vigora como força subversiva por comportamento antissocial, transgressão,
pela arte da vanguarda.
A alegria suprema contém o aspecto transgressor; não aceita sua representação no simbólico e,
Jouissance
portanto, é associada ao feminino.
O desejo é produzido por uma lacuna entre a necessidade básica e a incapacidade da linguagem
de articular um pedido para que a necessidade seja satisfeita. O desejo (acontece na transição do
Desejo
imaginário para o simbólico) é uma marca do insucesso da linguagem e da perda do estado pré­
simbólico indiferenciado da criança.
Quadro 18. A nomenclatura da linguagem segundo Kristeva (1974).

150 - T E o R I A LITERÁRIA
~·~.-~TEORIA' ESTRUTURALISTAS E P()S~LSTRUTURALISTA,

IMPLICAÇÓES DO PÓS-ESTRUTURALISMO

o Pós-estruturalismo introduziu na análise literária a descrença no logocentrismo e uma


implosão dos centros privilegiados que ele constrói, além da quebra do sujeito. As implicações do
Pós-estruturalismo podem ser assim apresentadas:
• O Pós-estruturalismo contrapõe-se ao Estruturalismo em suas pretensões "científicas". Para
os estruturalistas, as estruturas que eles descreviam e analisavam estavam objetivamente no
texto. Qualquer um podia descobri-las. Para os pós-estruturalistas, a estruturq de'" um texto
é uma combinação produzida pelo leitor, que, temporariamente, sustou o fluxo .infinito dos
significados gerados pelo texto. O texto, portanto, não é uma estrutura, mas uma seqüência de
signos que produzem o sentido, os quais têm uma posição privilegiada.
• O Pós-estruturalismo é mais abrangente do que o Estruturalismo. A filosofia ocidental é
basicamente fundamentada na razão pela qual o homem tem oportunidade e capacidade de
conhecer a realidade dos objetos. Um dos princípios fundamentais do Pós-estruturalismo é a
incontrolabilidade do sentido. Segue-se que a pretensão da filosofia ocidental de conhecer o
mundo é falsa.
• O Pós-estruturalismo revela algo sobre nós mesmos. Normalmente pensamos que a nossa
razão e o nosso ser não têm nada a ver com a linguagem que usamos. A razão e a presença
são aspectos do "eu" que considera a linguagem um instrumento de comunicação. Os
estruturalistas questionam esse "eu" porque usamos uma estrutura linguística que existia antes
de nós e porque nos expressamos no contexto de estruturas culturais também pré-existentes.
Os pós-estruturalistas afirmam que o indivíduo é o produto dessas estruturas. "O 'eu' que
vem ao encontro do texto já é uma pluralidade de outros textos, uma pluralidade de códigos
infinitos ou, mais exatamente, de códigos cuja origem se perdeu" (BARTHES, 1975, p. 10).
Para os pós-estruturalistas, o indivíduo (como qualquer outra estrutura inerentemente instável)
é também um arranjo temporário ou uma interrupção passageira de um fluxo de sentido. A
nossa estabilidade é mera aparênci.a; somos instáveis e sem um centro. Somos, portanto, sem
estrutura, apenas constituídos por fragmentos conflitantes. A noção de sujeito livre, dotado
de autodeterminação, autonomia moral e coerência, foi constantemente subvertida a partir
da década de 1970 pelos pós-estruturalistas. Outros não concordam com essas afirmações dos
pós-estruturalistas e alegam que a experiência diz o contrário.
• A interpretação de textos literários não tem um resultado determinado e definitivo. As
interpretações são uma imagem instantânea num fluxo de significações.
• o Pós-estruturalismo aboliu a diferença entre a literatura e outras escritas. Tradicionalmente,
o texto literário tem um significado permanente, porque nos mergulha na condição humana.
A literatura introduz o indivíduo nas verdades e nos valores imutáveis. Esses fatores são
negados pelos pós-estruturalistas. Como qualquer outra forma de linguagem, a literatura
é condicionada à différance. A única diferença admitida entre um certo tipo de literatura e
outras escritas é o final aberto ou a incapacidade de ter um fechamento (Diante da lei, de Kafka;
Finnegans Wáke, de James Joyce). Esses textos de final aberto são muito mais interessantes do
que aqueles que tentam esconder sua impotência (textos de filosofia, história) ou pretendem
apresentar o mundo real (os romances realistas). Os textos oriundos da estética realista
escondem a supressão da dijJérance e realçam a presunção de que o leitor tenha absoluto
controle do texto. Para os pós-estruturalistas, qualquer texto literário cria uma infinidade de
sentidos e, portanto, a interpretação depende do leitor. Isso equivale à morte do autor e ao
nascimento do leitor (BARTHES, 1977). Podemos concluir que, se para os estruturalistas o
sentido estável do texto está prestes a ser descoberto nas estruturas analisadas cientificamente,
para os pós-estruturalistas há apenas a interação do texto e do leitor para produzir relances
diferentes e momentâneos de sentido.

THOMAS BONNlcr / LUCIA OSANA ZO! IN (ORGANIZADORES) - 151


<f0 NN, C,

:I A CULTURA E OS ESTUDOS CULTURAIS


!

Em seu livro Culture and Anarchy, publicado em 1869, Matthew Arnold, um dos críticos ingleses
mais renomados e influentes do século XIX, fabrica uma oposição binária entre a cultura (sinônimo de
coerência e ordem) e a anarquia. O termo cultura é definido de modo específico como "alta cultura", a
cultura de uma elite específica.]amaisArnold refere-se à cultura no sentido antropológico ou sociológico,
como se faz atualmente. Para acadêmicos do final do século :xx e do início do século XXI, a cultura
também se refere ao modo de viver e ao WeLtanschauung da classe operária, algo incompreensíV-el para
Arnold. A classe baixa e os empresários ávidos, fabricantes de uma economia desumana e utilitária, só
seriam capazes de criar anarquia, ou seja, a antítese de qualquer cultura.
A oposição entre a "alta cultura" (a literatura é incluída nessa categoria) e as "culturas" das
classes baixas permeia praticamente toda a crítica literária ocidental, inclusive a de nações jovens
influenciadas pelo Ocidente. A consolidação do cânone literário brasileiro é um caso eloqüente. O
escritor e crítico anglo-americano T. S. Eliot (1888-1965) culpa "a dissociação de sensibilidade" no
final do século XVII, a qual cria a anarquia contra o mundo ordeiro do Renascimento. Em meados
do século:XX, F. R. Leavis (1895-1978) escreveu The Great Tradítíon (1948), retomando a posição
de Eliot e afirmando que a civilização tecnológica e a industrialização produziram esse hiato ~ntre
a "alta cultura" e as várias "culturas". A "alta cultura" assume, portanto, uma posição proselitista
e, ao mesmo tempo, uma atitude de defesa, já que se considera cercada por todos, prontos para
destruí-la. É interessante notar que a "alta cultura", avessa à "cultura da classe baixa" e à "cultura
de massa", jamais se mostrou interessada em conhecê-las e examiná-las (CULLER, 1999).
A publicação deThe UsescifLiteracy, em 1957, de Richard Hoggart (nascido em 1918), e Culture
and Society 1780-1950, em 1958, de Raymond Williams (1921-1988), provocou uma reviravolta.
Embora Hoggart analisasse a cultura do ponto de vista humanista e Williams da perspectiva marxista,
ambos insistiam sobre os valores das culturas, especialmente a cultura da classe operária, condenada
categoricamente pela "alta cultura". Apesar de insistir no final de CuLtureand Society sobre a necessidade
de uma cultura comum, Williams sabe que, na sociedade, sempre haverá várias culturas. "Em nossa
cultura como um conjunto há uma interação constante entre esses modos de vida [culturas] e uma
área que pode ser considerada comum ou subjacente a ambas" (WILLIAMS, 1961, p. 313). Williams,
portanto, dá à cultura uma dimensão antropológica, sem desmerecer o papel da literatura:

Além da literatura são várias as maneiras pelas quais recorremos a outra experiência. No caso
da experiência formalmente presente recorremos não apenas à fonte riquíssima da literatura,
mas também à história, à arquitetura, à pintura, à música, à filosofia, à teologia e à teoria
social, às ciências físicas e biológicas, à antropologia c, de fato, a todo o conjunto do saber. Se
somos sábios, recorremos também à experiência presente nas instituições, nos costumes, no
comportamento e nas memórias das famílias" (WILLIAMS, 1961, p. 248).

Tomaram-se, portanto, a partir da década de 1960, de interesse acadêmico os assim chamados


Estudos CuLturais, analisados no Capítulo 17. Os críticos começaram então a ir além das relações entre
literatura e sociedade, e, de fato, testemunhamos, desde meados da década de 1970, a expansão dos
estudos literários para outras disciplinas ou grandes áreas. Essa interdisciplinariedade foi extremamente
realçada áevido à contribuição pós-estruturalista na ruptura da presumida diferença entre o texto
literário e o não-literário. Nos anos 1980 e 1990, os especialistas em Estudos Culturais adotaram os
parâmetros pós-estruturalistas, especialmente as ideias de Derrida e de Foucault. A cultura, seja aquela
oriunda do Renascimento, seja aquela nascida nas favelas ou nos acampamentos do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, é atualmente concebida como algo artificial. A cultura é algo
fabricado e o produto final de uma série de interações e trocas. Nenhuma cultura pode autodenominar­
se autêntica ou pretender atingir a verdade além de seu discurso. Consequentemente, a fabricação
da cultura e sua ligação à história produziram duas tendências críticas extremamente férteis para os
estudos literários: o Novo Historicismo e o Materialismo Cu'tural (CEVASCO, 2003).

152 - T E o R I A LITERÁRIA
-_.- ~T E O R I ,\" E S T R U T U R i\ I I S T-I S E P li s - E S T R U T U R i\ L 1ST i\ S

SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS

Nas décadas de 1980 e 1990, surgiram nos Estados Unidos da América e na Inglaterra duas
modalidades de críticas históricas vigorosas influenciadas principalmente pelas teorias de Foucault.
O Novo Historicismo e o Materialismo Cultural nasceram, respectivamente, nos Estados Unidos e
na Inglaterra. A finalidade de ambas é detectar e trazer à tona as relações de poder e os processos de
construção ideológicos e culturais. O Materialismo Cultural diferencia-se do Novo f;Iistoricismo,
talvez, unicamente em sua busca de instâncias de dissidências, subversão e transgressão que sejam
relevantes na luta política contemporânea e em seu compromisso de transformar a ordem social que
explora as pessoas através da raça, gênero e classe.
As duas correntes introduzem nas análises tradicionais (inicialmente sobre o Renascimento inglês,
de modo especial, nos estudos shakespearianos e depois em todas as épocas literárias) parâmetros
marxistas e pós-estruturalistas. Concentram-se nas noções pós-estruturalistas sobre o sujeito, a
construção da identidade, o discurso, o poder, os discursos como meio de poder. Embora haja diferenças
conceituais entre o Marxismo e o Pós-estruturalismo, a tendência do Materialismo Cultural (termo
cunhado por Raymond Williams em 1977 com a publicação de Marxism and Literature) gira em torno
de esquemas marxistas, focalizando a ideologia, a função das instituições, a dissidência e a subversão.
O Novo Historicismo e o Materialismo Cultural têm em comum os seguintes princípios:
1. Ambos rejeitam a autonomia do autor e do texto literário, este último visto como inseparável de
seu contexto histórico. O papel do autor é determinado por circunstâncias históricas. "A obra
de arte é o produto de um acordo entre o artista ou classe de artistas, munidos de um conjunto
de convenções, compartilhado pela comunidade, e as instituições e práticas da sociedade"
(GREENBLATT, 1989, p. 12).
2. O texto literário está envolvido num amplo conjunto formado por elementos históricos,
culturais, políticos, econômicos e sociais. O texto literário está imerso numa construção verbal
ligada a um período e a um lugar específicos, os quais sempre têm conotações políticas. Como
discurso ideológico, o texto literário veicula o poder e participa positivamente na construção
e na consolidação de discursos e ideologias. Ele também é um instrumento na construção de
identidades individuais e coletivas (por exemplo, de nações). A literatura e qualquer outro texto
religioso, político, histórico, portanto, fazem a história, desenvolvem a ideologia e iniciam a
hegemonia.
Em meados da década de 1980, o Novo Historicismo e o Materialismo Cultural estenderam
o âmbito de seus estudos e começaram a abranger todas as correntes e épocas literárias. O rápido
desenvolvimento dos Estudos Feministas e a consolidação dos Estudos Pós-coloniais no início dos anos
1990 fizeram com que as linhas divisórias entre o Materialismo Cultural e o Historicismo Cultural
se apagassem. Consequentemente, o final do século XX e o começo do século XXI viram as quatro
correntes como um conjunto coeso de crítica acadêmica tentando efetivar as mudanças políticas num
mundo globalizado.

o Novo HISTORICISMO

O termo Novo Historicismo foi cunhado por Stephen Greenblatt, em 1980, na publicação de
Renaissance Self-fashioníng: From More to Shakespeare. O Novo Historicismo é definido como "uma
interpretação crítica que privilegia as relações de poder, [ ... ] uma prática de crítica que apresenta os
textos literários como um espaço no qual tornam-se visíveis as relações de poder" (BRANNIGAN,
1998, p. 6). O Novo Historicismo, portanto,

T!!OMl\S B()~N!,'I / L0(-IA OSANA ZOI.IN (OR{;ANIZADORF.S) - 153


N N I C I

rastreia as ligações entre os textos, os discursos, o poder e a constituição da subjetividade [ ... )


[Seus adeptos) enfocam como os textos literários renascentistas se situam em meio a práticas
discursivas e às instituições do período, tratando a literatura não como um reflexo ou um
produto de uma realidade social mas como uma das diversas práticas às vezes antagonistas
(CULLER, 1999, p. 125).

o N ovo Historicismo analisa os textos para detectar:


1. a construção, mesmo parcial, da identidade e subjetividade humana;
2. a submissão do indivíduo às relações de poder;
3. a forma pela qual o indivíduo é o produto de uma interação entre a maneira como ele se
apresenta (seus discursos, as omissões) e as relações de poder em que participa;
4. a maneira como a literatura está positivamente envolvida na construção da história através de
sua participação em práticas discursivas;
5. as fontes, frequentemente escondidas e inimagináveis, e os veículos de poder;
6. a maneira pela qual o poder suprime ou marginaliza discursos rivais.

Seus métodos podem ser resumidamente listados:

1. As circunstâncias socioeconômicas de um período histórico e os dados biográficos do aut~r não


são levantados com a finalidade de esclarecer o texto literário, ou vice-versa;
2. O período histórico é considerado como uma cultura remota, cujas manifestações discursivas
(relatos de viagens, textos religiosos, despachos governamentais, cartas etc.) são analisadas
e contrastadas para que se conheçam as relações de poder e as forças existentes naquela
cultura;
3. São analisadas as formas discursivas, especialmente a retórica, que o poder usa;
4. É utilizada a descrição densa ("thick description"), ou seja, a leitura e a investigação detalhada e
minuciosa de práticas sociais e culturais.
Como exemplo dessa prática, pode-se analisar a influência que a obra shakespeariana teve
no favorecimento da classe dominante na Inglaterra e, portanto, a maneira pela qual os leitores
foram orientados a ater-se à ideologia dominante e evitar significados subversivos. Em Julius
Caesar, os tribunos romanos Flavius e Marullus entram em cena para dispersar alguns cidadãos
que des~jam homenagear o imperador. No diálogo entre os tribunos e o sapateiro, os primeiros
ganham no "bate-boca" e mandam a turba para casa. O trocadilho verbal usado pelo sapateiro
(impossível na tradução para o português), todavia, é uma magnífica vitória contra o discurso
dominante do tribuno. Acontece que jamais foi dada muita importância a esse episódio. Se muita
importância tivesse sido dada ao evento, a interpretação da peça inteira colocaria sérias dúvidas
sobre a excelência da classe governante. A partir desse ponto, o Novo Historicismo analisaria esse
discurso no contexto do poder nas décadas finais do século XVI: a caracterização e a degradação
das classes baixas, a repressão, o abuso intencional da classe dominada pelos nobres, a interação
entre a força bruta e a inteligência do marginalizado. Semelhante análise poderá ser feita no caso
das peças Medida por medida, Rei Lear, A comédia dos erros e outras. O Novo Historicismo jamais
nega o cóntexto social, as contradições e a pluralidade do discurso, mas desmascara a maneira
como a ideologia dominante manteve-se presente e continuamente impôs-se através da prática
educacional.
Pesa sobre o Novo Historicismo seu pessimismo referente à possibilidade de resistência
oriunda dos marginalizados e oprimidos - é patente a grande influência de Foucault. De fato,
muitos novos historicistas começam sua análise a partir do pressuposto de que a subversão é
produzida e usada pelos mantenedores do poder. Esse pressuposto coloca a metodologia a príori
numa arapuca, porque concede ao sujeito uma liberdade limitada diante do discurso hegemônico
da cultura.

154 IEonlA LITERÁRIA


--~TEOHIAS ESTRUTURALISTAS E PÓS-ESTRUTURALISTAS

o MATERIALISMO CULTURAL

o Materialismo Cultural estabeleceu-se como crítica literária em meados dos anos 1980, e seus
maiores expoentes foram os ingleses Jonathan Dillimore, Catherine Belsey, Alan Sinfield e John
Orakakis. O termo cultura (no adjetivo cultural) é usado analiticamente, já que procura descrever todo
o sistema de significações através das quais uma sociedade compreende a si mesma e suas relações
com o mundo. Inclui-se a pesquisa sobre as culturas dos subalternos, marginalizados, mú,sica popular
e outras manifestações. Nesse caso, cultura não tem a conotação valorativa, ou seja, ma~tefledora da
"alta cultura" com seus valores superiores e uma sensibilidade refinada. Contrapondo-se ao idealismo,
o termo materialismo mostra que a cultura não pode transcender as forças materiais e as relações de
produção. O Materialismo Cultural, portanto, estuda as implicações dos textos literários na história.
O Materialismo Cultural propõe-se como uma alternativa à prática tradicional da-crítica literária.
O envolvimento do contexto histórico, método teórico, compromisso político e análise literária com
o texto proporcionará ao crítico mais ferramentas em sua crítica literária. Em primeiro lugar, o contexto
hístórico subverte o sentido tradicional dado ao texto literário e recupera seu próprio histórico. O método
teórico distancia o texto de uma crítica imanente cuja tendência é se reproduzir e se perpetuar. O
compromisso socialista efeminista desafia as categorias conservadoras que até então foram predominantes
na crítica literária. A análise textual cerceia a crítica das abordagens tradicionais. Três aspectos d~ processo
histórico e cultural são proeminentes e investigados pelo Materialismo Cultural: (1) a consolidafão se
refere aos meios ideológicos pelos quais uma posição dominante se perpetua; (2) a subversão mostra
a transgressão e as tentativas de solapar essa ordem; (3) a contenfão revela a repressão às pressões
subversivas.
O Materialismo Cultural acentua que no âmago do texto literário encontram-se indícios eficazes de
subversão e de dissidência. Em outras palavras, embora muitos fatores no discurso literário indiquem
apoio à hegemonia ou à ideologia contemporâneas, os materialistas culturais admitem que a cultura
dominante sempre está sob pressão de pontos de vista alternativos. A coerência do discurso é apenas
aparente e a ordem está constantemente ameaçada em seu interior por contradições internas e por
tensões que o discurso tenta esconder. Na Carta, de Caminha, escrita em 1500, abundam episódios de
visão panótica do colonizador português, de seu fitar objetificador, de sua superioridade cultural diante
da nudez dos nativos. O discurso, porém, revela inúmeras tensões, ou seja, traços de insubordinação
(a recusa de alguns indígenas para depor as armas), indiferença (o modo sem-cerimônia como dois
nativos brasileiros embarcam no navio de Cabral; o velho indígena com grande cocar), cortesia ardilosa
(imitação de atividades dramáticas na primeira missa, no levantamento da cruz, nas atitudes dajovem
tupiniquim), todas indicativas de contradições num texto hegemônico.
Sinfield (1992) chama essas contradições internas de falha tectônica, a qual, por sua vez, produz
a potencialidade dissidente. (1) As falhas tectônicas encontram-se em todas as culturas e, evidentemente,
em textos literários. Embora sob controle ideológico, a literatura abre espaço onde as contradições e
as tensões podem ser localizadas e trabalhadas. Mesmo nos textos mais reacionários, o Materialismo
Cultural detecta pontos de dissidência que permitem ouvir a voz dos indivíduos socialmente
marginalizados e expõe o sistema ideológico responsável pela exclusão. (2) O Materialismo Cultural
investiga como a recepção de textos literários ofusca a presença de falhas tectônicas ideológicas. Essa
cumplicidade entre o texto e a crítica literária pode ser vista, por exemplo, na presença de Iracema
(1865), de José Alencar, na crítica literária brasileira. O romance mostra as primeiras relações entre
colonizadores brancos e indígenas brasileiros na terra recém-aberta aos colonizadores portugueses
e a chegada da cultura branca, cristã, ocidental. A luta pela terra e a aniquilação da cultura indígena,
entretanto, são relativizadas e deslocadas para o fundo da cena, significativamente no contexto da
afirmação e na consolidação da subjetividade da nação brasileira no período pós-independência.
Legitimam-se, portanto, as leituras alternativas e subversivas. (3) As leituras dissidentes do Materialismo
Cultural desafiam a crítica tradicional e conservadora de estudos acadêmicos e daqueles que controlam
instituições de cultura (currículo das escolas secundárias, dos cursos de Letras nas universidades)
para efetivar mudanças políticas na atualidade a partir dos pontos de vista socialista ou feminista.

TIIOM,'S B()N"'CI I LVI-IA OSANA ZOLlN (ORGANIZ;'OORES) - 155


~o N N , C ,

i\ A constatação da supressão ("ausência") da voz da mulher negra na literatura brasileira até o século
I XIX provoca discussões sobre as causas e, mais ainda, sobre a situação da mulher na literatura e nas
práticas sociais contemporâneas. "Contrariamente à crítica consolidada, o Materialismo Cultural não
mistifica sua perspectiva como a interpretação natural, óbvia e correta de um texto, mas registra seu
compromisso na transformação de uma ordem social que explora as pessoas através de argumentos
de raça, sexo e classe" (DOLLIMORE; SINFIELD, 1989, p. viii). Por isso, o Materialismo Cultural
focaliza episódios de dissidência, subversão e transgressão em textos literários, já que sua relevância
influencia a luta política (feminista, pós-colonial, de minorias) contemporânea.
o Materialismo Cultural analisa como a literatura canônica (por exemplo, os relato~ de
viagens nos séculos XVI e XVII, os poemas de Gregório de Matos, a épica de Santa Rita' Durão
e de Basílio da Gama, os romances de Alencar e de Machado de Assis) foi utilizada em épocas
diferentes, a ênfase dada nos exames vestibulares, as seleções mais antologizadas. Analisa não
apenas a literatura não-canônica, intencionalmente deixada ao esquecimento e sistematicamente
menosprezada, mas também discursa sobre quem se apoderou e se privilegiou da perpetuação
dessa seleção e da sua colocação no currículo escolar. Os materialistas culturais (DOLLIMORE;
SINFIELD, 1989) descobriram que as peças de Shakespeare foram apropriadas pela direita
política para mostrar a superioridade da literatura inglesa em detrimento das culturas de povos
colonizados pelos ingleses. Certas peças ou atos específicos foram inclusive utilizados. para
conter as aspirações de classes subordinadas dentro da Inglaterra (irlandeses, galeses, os fora­
da-lei) e de povos não-europeus. Elizabeth I reclamou que a peça Ricardo II (provavelmente de
Shakespeare) foi encenada quarenta vezes nas ruas e nas casas particulares antes da sublevação de
1601 contra a sua autoridade (apud DOLLIMORE; SINFIELD, 1989, p. 8). A rainha percebeu
que a identificação do personagem Richard com ela, a repetitividade da encenação e a aniquilação
da ficcionalidade causada pela apresentação nas casas serviam à causa da rebelião contra o estado
inglês. Macbeth (1603) foi também utilizada por representantes do império inglês para consolidar
a legitimidade da realeza e mostrar a punição implacável de quem se levanta contra ela. A rebeldia
de Calibã, Trínculo e Stefano em A tempestade (1611) foi realçada para mostrar a incapacidade de
povos marginalizados de organizar um governo e para ridicularizar as pessoas que, na periferia da
sociedade, tentam fazer ouvir a sua voz de protesto e de resistência.

.
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156 - T E o R I A L I T E R Á R I A
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.. '

T1I(lMA\ BUNNICl / LUCIA OSANI\ ZOI.IN ({)!{CANI7A])(lHt\) - 157


ABORDAGEM ESTILÍSTICA

Milton Hermes Rodrigues

Este estudo é destinado principalmente aos alunos de graduação, e por isso se ressente de
certo didatismo, ajudando alguns, irritando outros. Não pretende ser um manual de estilo, de que
as bibliotecas andam cheias, nem tenciona historicizar o desenvolvimento da estilística, labutando
com os estudos de Saussure, BalIy, Spitzer e outros. Volta-se apenas para a abordagem estilística do
texto literário, desobrigando-se de longas polêmicas conceituais (na forma tradicional), fugindo da
exposição sistemática dos fatos estilísticos em si. Não tem a pretensão de fornecer receitas definitivas,
fórmulas seguras, primeiro porque elas não existem, e depois porque a garantia de um bom trabalho
depende, e muito, da intuição e do empenho do pesquisador, somados ao auxílio do professor ou
orientador. Importa mais aqui. expor o alcance e alguns requisitos e recursos da crítica estilística, e
analisar, para vê-la posta em prática, alguns estudos, em busca principalmente dos procedimentos
adotados. Entendamos já, de começo: o estilo é execução primeira, original, e remete ao criador; a
estilística é trabalho derivado, é um teÀ'1o segundo fundado num texto primeiro, e remete ao analista,
ao crítico. Ainda é oportuno firmar a diferença entre gramática e estilística: "ao contrário do que
sucede na Gramática, em Estilística não há propriamente erros, porque para os maiores desvios é
achada uma determinante psicológica, natural" (LAPA, 1977, p. 216).
Se existe aqui um método prevalecente, este é o da exposição problematizadora, conscientemente
adotado para estimular o espírito crítico do analista iniciante. O aproveitamento bibliográfico
sistemático, que incomodará alguns, também cumpre esse propósito. O interessado deverá sair desta
leitura com algumas noções sobre o alcance e os procedimentos da abordagem estilística, e conhecerá
"por dentro" alguns estudos que a adotaram.

REQÚISITOS IMEDIATOS

o texto literário sujeita-se a vários enfoques, tudo dependendo do gosto e do interesse do analista.
A abordagem estilística é um deles, e supõe-se que quem a escolhe possui acuidade e sensibilidade
para detectar certas particularidades da linguagem escrita (semânticas, lexicais, sintáticas, sonoras,
morfológicas). Monteiro (1991, p. 25), inspirado nas lições de Jakobson, informa que, de todas as
funções da linguagem, a que mais instiga o analista do estilo é a que "destaca os aspectos criativos
ou expressivos da linguagem". Mas não basta, para se obter um bom trabalho, essa simpatia pela
@.··ODRIGUES

'l! linguagem. É preciso saber um tanto de linguística, de gramática, de estilo, ou, quando menos, ter
! boa disposição para adquirir esses e outros conhecimentos correlacionados, como o de estética, o de
história literária, e até biográfico. Isto porque o entendimento comum de estilo tanto envolve a noção
de beleza discursiva quanto serve à caracterização de movimentos literários. E quando se diz que o
estilo é o homem, somos conduzidos ao interesse biográfico. Nem esqueçamos os entraves para se
estudar o desempenho linguistico em texto vertido, se viável estudá-lo. Espera-se, pois, do estudioso,
certa desenvoltura intelectual. Sem alguma base não se cumprem as duas expectativas básicas em
relação a uma abordagem, estilística ou não: bom desempenho linguístico (correção, clareza, eficiência
informativa), e desenvoltura estrutural (disposição dos blocos argumentativos, amarram'ento e
sequencialização de informes, aproveitamento adequado da teoria, e outros). Mas que não se faça do
pouco conhecimento um obstáculo intransponível, e que as exigências, reservas e censuras sirvam
apenas de alerta e incentivo. Daí a parcimônia com que devemos encarar opiniões carrancudas, como
esta de Modesto Abreu (1963, p. 166), ao defender a presença de termos técnicos e científicos em
Os sertões: que o leitor desta obra tenha uma "formação cultural mínima" (é obra de ciência), uma
"preparação básica". Ainda: não se pode "saborear" obras de alguns escritores (Castro Alves, Eça de
Queirós, Machado de Assis, entre outros) "sem estar em plena posse do mais seleto vocabulário e dos
melhores recursos expressionais da língua portuguesa". Acontece que coisas como o senso da imagem
singular e a intuição do ritmo podem ser adquiridas, e sua posse, como a de outros conhecimentos,
atual ou por se realizar, é que cria condições para o bom trabalho argumentativo, para o desenvol~endo
de ideias, viabilizando descobertas, estimulando o raciocínio, sugerindo correlações. Existe, portanto,
segura correlação entre nível de leitura e desempenho discursivo, seja este visto como capacidade
linguística e estrutural, seja como aporte informativo. Mas fique a ressalva: levadas ao extremo, a posse
de conhecimento e a exaltação intuitiva podem, se tisnadas de excessiva erudição, arrancar ilações
inusitadas, algumas vezes matizadas de personalismo hermético. A análise da canção "Cajuína", de
Caetano Veloso, feita por Miguel Wisnik (1996), serve de exemplo.

A MIRADA ACADÊMICA

o texto literário abriga uma variedade de fatos linguísticos. A escolha dos aspectos que interessam
e a profundidade da abordagem dependem de alguns fatores: a destinação (trabalho de disciplina,
monografia, tese, artigo para jornal, texto para periódico especializado), o alcance (um poema, um
romance, toda a obra de um autor, alguns aspectos estilísticos, todos eles ... ), o tempo disponível
para pesquisa e estudo, e o método (preocupações com a cientificidade, por exemplo). Estes fatores
podem impor maior ou menor rigor informacional e estrutural, maior ou menor exigência teórica,
debate crítico. Não estranha que uma crônica ligeira abuse do impressionismo, mas estranha que uma
monografia acadêmica ignore totalmente o debate (temático, teórico, histórico, metodológico) e a
organização coerente das informações. O trabalho acadêmico, seja nas elaborações mais avançadas e
eruditas, seja ajustado ao didatismo imediato da graduação e da especialização, busca sempre respeitar o
que se pode chamar, sem evitar certo pedantismo, de espírito científico. Num momento correrá o risco
de se conyerter, pelos níveis de linguagem e de informação, numa prédica para iniciados, arrancando
aqui e aliarrufos, pela especificidade das informações e, principalmente, pelo vezo conceptista-abstrato;
noutro instante, ajustando-se ao interesse didático, retomará, reciclará e acrescentará informações
relacionadas com as atividades de sala, convertendo-se, por esse interesse, numa espécie de exercitação
crítica em face de um problema. Isso explica, ao menos em parte, a especificidade das exigências,
tomadas por alguns como rigorosas, por outros como pedantes. A repetição de certos procedimentos
metodológicos (praticar o debate teórico, por exemplo) responde tanto a essa finalidade didática, num
nível, quanto à necessidade, num plano mais elevado, de testificar ou negar opiniões.
A mirada acadêmica quer ser, de certa forma, a porta-voz de alguma verdade melhor examinada,
daí impor-se como atividade de pesquisa, o que implica experimento (em alguns casos) e leituras. No

160 - T E o R I A LITERÁRIA
-_.~..~ A l$ o R D A r; t M E S T I L i S T I C A

caso da abordagem estilística, a formulação de um conhecimento se concretiza, no plano mais simples,


pela identificação de fatos estilísticos, normalmente organizados, nos manuais, em campos específicos:
lexical, semântico, sonoro, sintático, morfológico. Esse conhecimento elementar não prescinde do
informe teórico-conceitual, principalmente aquele voltado para o estilo.
Os manuais de estilística primam por quatro interesses gerais básicos: 1. sondar o conceito, ou
conceitos, de estilo, geralmente invocando fundamentos Iinguísticos e gramaticais; 2. identificar e
expor os recursos considerados estilísticos, organizando-os mais ou menos nos campos lexical, sonoro
e sintático, principalmente, mas nem sempre acompanhando esta rotulação; 3. formar umex~mplário,
ao qual se juntam comentários, e, em alguns casos, alguma análise mais alentada; e 4. ensinar o ofício
de escrever bem, e artisticamente. Como rescaldo, num e noutro manual encontramos algumas
lições metodológicas sobre a abordagem estilística em si. Tais obras são bastante úteis ao pesquisador,
fornecendo-lhe um instrumental teórico básico no campo linguístico-estilístico, com um tanto de
gramática.

o QUE DIZEM OS MANUAIS

Em termos de bom falar ou bom escrever, a estilística é coisa vetusta. Confundida com a retórica,
parece deitar raízes nos gregos e romanos antigos. No início do século XX começou a sistematizar­
se, ganhando certa autonomia a partir do instrumental fornecido inicialmente pela linguística, mais
particularmente pelos estudos de Saussure e de Bally. A evolução das relações entre uma disciplina e
outra não interessa aqui. Mas a problematização conceitual do estilo, que sugere limites para a conduta
analítica, essa interessa, e na medida em que a retomam os estudiosos da estilística. A apresentação de
alguns estudos, a seguir, pretende expor essa demanda conceitual em torno da ideia de estilo, mas num
quadro em que também se possam vislumbrar, em alguns manuais bem conhecidos, as preocupações
e as informações que formam a base do conhecimento relativo à estilística. Estas são as obras: Estilística
da língua portuguesa, de M. Rodrigues Lapa (9". ed., 1977); Estilística brasileira - o estilo e sua técnica, de
Silveira Bueno (1964); Contribuição à estilística portuguesa, de J. Mattoso Câmara (3a. ed. 1978); e A
estilística, deJosé Lemos Monteiro (1991).
-O tratado de Lapa (1977) passa por um dos primeiros estudos mais alentados e sistematizados
do assunto. Nem por isso se aplicou o autor numa discussão teórico-conceitual alongada sobre
estilo, ignorando com isso nomes tradicionais no campo dos estudos linguísticos e estilísticos.
Não se obriga Lapa a discutir a langue saussuriana, mesmo sendo uma obra sobre a estilística da
língua portuguesa, como registra o título. Pelo exemplário, é também uma estilística da literatura
em língua portuguesa (c um pouco da galega), e já talvez por isso o autor lembra, de passagem,
a parole de Saussure, tal como fizeram alguns estudiosos tentando definir estilo como o uso
individual e concreto de recursos da língua. Esse desprendimento talvez explique a concepção
flexível de estilo, detectável nas sacadas esparsas, na explicação de ocorrências, na exemplificação:
o estilo repercute, sim, como valor estético, e é também "uma permanente criação pessoal",
mas .pode configurar-se na informação clara e eficiente. Essa minguada preocupação teórico­
conceitual tem seu contraponto no esforço para sistematizar toda uma complexa gama de fatos
estilísticos, o que torna sua consulta bastante proveitosa. A obra começa com um mergulho direto
nessas ocorrências, que são explicadas com acuidade (algumas vezes com vagar, sem perder a
eficiência), dentro de certa pegada teorizante, mas teorização não partilhada com outros críticos.
Trata-se monografia bem centrada, amarrada a um exuberante exemplário (nenhum texto literário
completo), e em permanente diálogo com a gramática, embora tentando evitar a gramatiquice pura
(nem sempre conseguindo) adotando em certos momentos a leveza da curiosidade, e dispondo-se
a acusar deslizes. É obra bastante didática, sem evitar o tom professoral (tem um pouco de manual
de redação). Alonga-se nas suas 302 páginas a expor os fenômenos estilísticos em vários planos

TI1()M.'\:" Bl)NN!('! I Lt"J(:I/\ O<.)I\N/\ Z()! IN «()H(;ANll.AI)()Hr\) - 161


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eXlca , estl IStICO, sonoro, semantlco, eVI amente exemp 1 lca os. IS a guns tOplCOS gra ea os:
! significação vocabular, eufemismo, neologismo, arcaísmo, estrangeirismo, gíria, jogo de palavras,
palavras variáveis e invariáveis, formação daspalavras, valor estilístico do artigo, relações do artigo
com o adjetivo e o substantivo, pronome, vozes verbais, concordância verbal, ritmo, clichê.
Para Rodrigues Lapa, o estilo literário resulta de uma "transposição", feita pelo escritor, da
linguagem cotidiana e corriqueira para uma expressividade mais bela. A fonte de recursos pode ser
também o dicionário: "A arte do estilo consiste em escolher, nesses grandes armazéns de palavras que
são os dicionários, os termos justos, que hão de dar forma e cor aos nossos pensamentos" {LAPA,
1977, p. 25). O estilo resulta, portanto, de uma operação de escolha com fim estético. Mas, segun'do a
flexibilidade acima apontada, também a clareza e a eficiência informativa fazem o estilo.
O estudo de Silveira Bueno (1964) reitera, na distribuição dos tópicos, as preocupações básicas
da estilística: lexical, sintática, sonora, semântica. E avança alguns fundamentos do estrato gráfico (ou
visual) nos tópicos "A visualização", "O volume dos vocábulos", "O prestígio da maiúscula", "Grafia
e ortografia". Mas os temas não se apresentam em blocos estanques, dispostos em sequência rígida,
antes espalham-se por dezenas de tópicos, muitos deles ("Prosa e poesia", ''A linguagem poética", "A
prosa da oratória", "A inspiração e a execução", "O talento e a técnica") mais ligados à poética, à técnica
criativa, justificados, aliás, já pelo título da obra. Eis alguns enfoques especificamente estilísticos,
segundo o nome dos tópicos: "O ritmo", "O vocábulo", "Sonoridade e temperamento", "A aliterâção",
"Prefixos e sufixos", "A pontuação", "Comparações e metáforas", ''A construção do período". Entre
um tópico e outro, entre a exemplificação abundante e a preocupação com a evolução histórica dos
fenômenos, entre a explicação de um fragmento miúdo e a análise de poemas curtos, percebe-se um
estudioso combativo e polêmico, afeito ao escracho e ao elogio pomposo, azedo com a gramatiquice,
inimigo das liberdades modernistas, desconfiado do verso livre, amigo da rima e admirador de Bilac
e do Padre Vieira.
Comparado ao trabalho de Lapa, o de Silveira Bueno (1964) avança um pouco na discussão teórica
do estilo, mas, como o outro, evita o debate crítico. Bally, Spitzer e Mattoso Câmara estão ausentes.
Bueno invoca Vossler para exigir a compreensibilidade da comunicação linguística, e Saussure (langue/
parole) para informar que a atitude do escritor é a de escolha em face da língua. Cita Buffon para
corrigi-lo: "O estilo não é o homem qualquer, mas somente o homem de personalidade" (p. 43). De
fato, sua compreensão de estilo considera a interferência de um "temperamento" especial, movido
pelo bom gosto e pela formação intelectuaL Assim, além de comunicar, a obra de excelência propõe
"um estado atual ou superior de prazer estético, de adesão intelectual" (p. 42). Trata-se, pois, de um
entendimento que valoriza o efeito estético e a intermediação autoral: "Pelo estudo estilístico das obras
podemos chegar ao íntimo do autor" (p. 56). O estilo é "a projeção da personalidade do indivíduo
através dos meios de comunicação" (p. 43). Mas esse destaque da personalidade autoral, que subjetiva
a configuração do estilo, não impede que Bueno detecte nessa mesma configuração a interferência
coletiva e admita tacitamente uma espécie de estética coletiva particularizada pelo estilo: a labuta
criativa, além de sujeitar-se à psicologia do autor e à língua, submete-se às tendências sociais. Logo,
não basta ao escritor escolher os recursos linguísticos, "urge dispor o material escolhido segundo
um determinado plano de acordo com formas já assentes pela experiência das escolas" (p. 42). O
estilo resulta, pois, de atividade individual e de atividade coletiva, esta, de qualquer forma, marcada
por certa~ particularidades e apresentando-se como estilo de época. Bueno, atento à evolução histórica
dos fenô~enos, se empenha na demonstração do que ocorria na antiguidade, no Classicismo, no
Romantismo, no Parnasianismo.
No estudo de Mattoso Câmara Jr. (1978), toda a argumentação pode ser resumida em alguns
poucos pontos: os fundamentos conceituais do estilo (linguísticos e psíquicos), a atividade literária
estilística, as proposições metodológicas da abordagem estilística, e, para encerrar, um resumo dos
"aspectos" fônicos, lexicais e sintáticos. CâmaraJr. é um linguista, dos mais conhecidos. Não estranha
que situe a estilística "metodicamente" no âmbito da linguística (ela complementaria a gramática),
como não estranha o aproveitamento programático do argumento linguístico. Daí o diálogo com
linguistas de nomeada, entre eles Saussure, Sapir, Bally; Meillet,Jakobson (os dois primeiros, os mais

162 - T E o R I A L I T E H Á R I A
---.~AHORD;\GEM ESTILisTICA

diretamente invocados). Daí, na discussão conceitual, estes assuntos: complexidade da linguagem,


gramática comparativa, linguagem como fenômeno psíquico. N essa argumentação conceitual, Câmara
Jr. vai do interesse pela consolidação dos estudos linguísticos ao debate sobre a "função secundária"
(linguística) do aparelho fonador e a localização da linguagem no cérebro. Em alguns momentos essa
influência da linguística conduz a certa erudição, a certas particularidades e filigranas quase invisíveis a
olho nu, a certos exemplos por vezes áridos, refratários ao leitor comum. Por outro lado, essa influência
é responsável por boas soluções interpretativas. A estilística de Câmara Jr. é uma estranha estilística
da tangI/e, inspirada principalmente em Saussure e em Bally. E é também uma estilística)iterária que
aproveita um pouco das lições de Vossler e Spitzer. Os exemplos, quase todos de autores brasileiros,
provêm mais da "poesia lírica", mas não ocorre qualquer análise de poema completo, ainda que miúdo.
A bem da verdade, a palavra "análise" não cabe aqui.
A demanda conceitual sobre o estilo, em si, aproveita principalmente proposições de Saussure.
A estilística, para CâmaraJr., circularia entre a língua (langue) e o discurso (parole), não se ajustando
bem em nenhuma instância. Estão fora do âmbito da língua saussuriana, por exemplo, a emoção e a
vontade, que são componentes do estilo. E o problema da estilística também fica "mal colocado" no
âmbito do discurso (parole),já porque o termo parole tem "um alcance muito heteróclito e confuso
para uma exploração científica dessa ordem". Certo é, para Câmara Jr., que a personalidade
autoral trabalha na matéria da língua, individualizando o ato comunicativo, mas é preçiso situar
neste âmbito da língua, como quer Bühler, além da função representativa prevista por Saussure,
a manifestação anímica e a força do apelo. Câmara Jr. faz dessa componente psicológica e do
fator apelo os pontos fundamentais de seu entendimento de estilo, encarando-o então como "uma
espécie de língua individual", como "a definição de uma personalidade em termos linguísticos".
O trabalho estilístico pressupõe atividade linguística concretizada, individualizada, revestida de
"entusiasmo" e de apelo, de que resulta a expressividade. O estilo é o uso expressivo da linguagem.
Pouco faz Câmara Jr., contudo, para vê-lo projetado em manifestações coletivas,. Apenas admite
em certo momento que a estilística pode atuar no "âmbito literário, concentrando-se num poeta
ou num prosador de nota", ou numa "escola literária".
Dos quatro estudiosos, José Lemos Monteiro (1991) é o que mais investe no debate
teórico-crítico, já mais dentro de certo espírito acadêmico, tal é o cuidado com que manuseia a
terminologia (alguns aspectos levam-no mesmo a uma pequena revisão bibliográfica). É também
o mais atualizado (cita, entre outros, Câmara Jr., Barthes, Cohen, Eco, Costa Lima, Riffaterre).
No capítulo inicial discute "os limites da estilística" (conceito de estilo, norma e desvio), e nos
demais se voltam para a descrição das ocorrências estilísticas nos pIanos lexical, sintático, sonoro
e semântico. Mas Monteiro recusa essa taxionomia surrada e frequentemente insufIciente. Estuda
os clichês e as figuras (ou metáboles) sob a rubrica "O desvio estilístico". O capítulo "Escolhas
estilísticas" abarca ocorrências sintáticas, lexicais (adjetivação, substantivação), casos de colocação
pronominal e do artigo; os fenômenos sonoros são vistos dentro do "simbolismo fonético"; os
semânticos, no tópico ''Alguns problemas do significado". O último capítulo apresenta as virtudes
e os víéÍbs do estilo.
O livro de Monteiro (1991) confirma que a estilística é sempre mais ou menos, com maior ou
menor ecletismo teórico, uma descrição de fatos estilísticos. O tom acadêmico impôs uma discussão
conceitual de estilo não tão sucinta, se considerarmos o tratamento do assunto nos outros manuais. Falar
de e.~tilo, observa Monteiro, é falar de linguagem, discutir suas funções (Jakobson, Bühler, Martinet).
Estilo é "uma fonna peculiar de invocar a linguagem com uma finalidade expressiva" (1991, p. 10).
Ao ensaísta parece manco um entendimento interessado no indivíduo, como em parte propõe, entre
tantos, Middleton Murry (na paráfrase de Monteiro: o estilo é "uma qualidade de linguagem peculiar
ao escritor, que comunica emoções ou pensamentos"), e essa ressalva possui amparo crítico: Stephen
Ullmann entende que o estilo persevera tanto numa "língua" quanto na "expressividade de um
escritor"; Guiraud admite uma "estilística da expressão" e uma "estilística do indivíduo"; Paul 1mbs
chega a admitir uma escala hierárquica em que figura, como circunscrição mais ampla, uma "família
linguística", a partir da qual, descendo na escala, encontramos desde uma "língua específica" até "uma
frase ou enunciado", pass;jl1do por, entre outros, "um gênero literário", "um escritor", "uma obra

TIIOMAS BONN1CI / LÚClA OSANA ZOIIN (OI~(;ANIZt\J)()HFS) - 163


~o f) R I C; U F S

específica". O estilo é, portanto, um fenômeno de linguagem localizável nas condutas individuais


e coletivas. Respaldam a exposição de Monteiro nomes consagrados da linguística e da estilística
pioneira: as noções de langue e parole (Saussure) se projetam sobre os entendimentos dicotômicos de
UlImann e de Guiraud; as proposições de BalIy (estilística da expressão, descritiva), de Vossler e de
Spitzer (estilística do indivíduo) ajudam na compreensão da proposta inflada de Imbs. Valorizando os
"princípios formais", Monteiro toma a parole como "discurso expressivo" e situa a estilística no "vasto
campo" dos "discursos" (paroles).

CONCEITO DE ESTILO E ALCANCE DA ABORDAGEM ESTILÍSTICA

Depreende-se do que foi visto que estilo é um fenômeno da linguagem escrita que pressupõe
uma utilização particularizada (singular ou coletiva) da língua, com algumas finalidades, entre
elas a de alcançar a beleza. Tendo à sua disposição o cabedal da língua, o escritor atua selecionando
os recursos que mais lhe convêm, lexicais, sintáticos, sonoros, semânticos. Esse trabalho de
escolha, condicionado por alguns interesses (estéticos, temáticos, ideológicos), particulariza o
uso da língua, que se apresenta, então, timbrada por certa originalidade. As repercussões deste
entendimento são as seguintes: 1. a particularização do estilo repercute em dois níveis: é textual
e é autoral; 2. a particularização não se projeta apenas na individualidade textual e autoral: incide
sobre o conjunto de obras e de autores (categorias literárias e estilos de época). 3. O valor estético
determina, para a análise estilística, a escolha de textos. Insistamos um pouco mais em cada uma
dessas proposições, na ordem.
A ideia de particularização faz supor a individuação do texto e do autor. Há, pois, um
texto particularizado pelo estilo assim como há um autor particularizado pelo estilo, de modo
que a tarefa da crítica estilística consiste, em termos amplos, na identificação e análise dessa
particularização, mas tem sido cada vez mais frequente a centralização do interesse no texto,
seja porque não cabe ou não importa a informação biográfico-psicológica, seja pela dificuldade
de acesso a ela. Essa dispensa da personalidade autoral tende a ignorar o entendimento de estilo
centrado na parole (uso concreto e individualizado da língua) e, por isso, a desconsiderar o ato
comunicativo como uma atividade seletiva, particular e psicológica, de recursos expressivosjunto
ao "depósito" linguístico geral, abstrato e coletivo; não importa, por fim, se o entendimento de
estilo implica o reconhecimento, pelo que o texto sugere, dessa individualidade externa. Para
o estudo basta o texto, e, seja como for, ele não pode mesmo ser dispensado na abordagem
estilística, literária. "No nível textual", observa Monteiro (1991, p. 52), "isto [a vida do autor]
não deve ser levado em conta [ ... ] O que se tenta analisar é o estilo da obra, não os problemas
da vida do autor". Sirva de exemplo a análise que Câmara Jr. fez do soneto "A cavalgada"
(apresentada adiante), onde ignorou a vida de seu autor, Raimundo Correia. É aceitável e
factível; no entanto, porque o conceito de estilo permite, o interesse pela personalidade autoral.
A de Castro Alves por exemplo, plasmou seu estilo poético, imiscuiu-nos seus poemas. Eugênio
Gomes (1958) estudou, com esse interesse, o estilo de Raul Pompéia, como fez Abreu (1963) a
propósitó do de Euclides da Cunha.
A segunda repercussão conceitual, estendendo o sentido de particularização ao fenômeno
literário coletivo (gênero literário, escola, estilo de época), amplia o campo de atuação da crítica
estilística, que pode discorrer, por exemplo, sobre o estilo épico ou o estilo modernista, o que a leva
a sair do texto para explicá-lo. Informa Monteiro (1991, p. 19) que "o método estilístico tem que
recorrer constantemente à noção de contexto. As informações de ordem biográfica [... ] ou de cunho
sociológico têm utilidade na medida em que comprovam as inferências obtidas pelo estudo das
relações contextuais". E, num quadro em que discute o conceito de estilo, invocando BalIy, Vossler,
Spitzer, Rifatterre e Barthes:

164 - T E o R I A L I T E R Á R I A
.~-~ A B () R Jl A (. L M E ' T I L í S T I C ,\

Quando se fala em estilo de um gênero literário leva-se em consideração o cOIlJumo de


procedimentos formais que o caracterizam. Assim, o estilo de um conto não se assemelha ao
de um romance e muito menos ao de uma carta.
De um modo análogo, são princípios formais que distinguem em essência os mOVImentos
literários. A adjetivação exuberante e a preferência por certos vocábulos são constantes do
estilo romântico, o uso de preciosismos é próprio do barroco, o equilíbrio e a correção da
linguagem atestam uma tendência para o clássico e assim por diante (MONTEIRO, 1991,
p.11).

Gilberto Mendonça Teles (1970), entendendo que o meio literário atua sobre o escrit6r ~mpondo­
lhe certas marcas discursivas, localizou na estilística da repetição de Drummond de Andrade a
interferência de uma estilística coletiva "personalizada", modernista.
A terceira repercussão conceitual de estilo é a mais polêmica, porque associa a originalidade
expressiva (outra forma de particularização, agora respeitando a qualidade da linguagem) .ao desempenho
estético. Entender o estilo como resultante de um esforço orientado para a beleza cria um problema:
o sentimento do belo sujeita-se a variações de toda ordem: de pessoa para pessoa, de época para época,
de lugar para lugar, de formação para formação, de interesse para interesse. Se a beleza se definir
apenas pelo gosto apurado, pelo refinamento intelectualizado, então somente as obras pertencentes
à chamada "alta" literatura (tomada em certa medida como canônica) podem ser objeto de análise: as
de Bilac, de Castro Alves, de Guimarães Rosa, por exemplo. "Os escritos de Machado dt Assis, de
Rui Barbosa", observa Bueno (1964, p. 55), '~iamais poderiam ser populares: não se dirigiam ao povo,
à massa, mas a determinados grupos sociais". Se a percepção do belo é menos exigente, justifica-se
a escolha, para análise, de uma obra de valor então considerado mediano (de Francisco Otaviano, de
Monso Schmidt, por exemplo). Mas, como todos sabemos, uma literatura não se faz apenas de obras­
primas, ou de obras de excelência. No outro extremo, abaixo do padrão mediano, estende-se o vasto
campo da chamada subliteratura, ignorada muitas vezes pela historiografia literária e sujeita ao azedume
da crítica periódica, quando toca nela. Essa literatura de massa não mereceria atenção da crítica, pois
destituída daquele sentido de bom gosto que, segundo certo entendimento, define o valor estético. O
mesmo Silveira Bueno (1964, p. 55), tomando a obra de Jorge Amado como imoral, assim explica seu
sucesso: "A maioria [dos leitores] é grosseira, é mal-educada, é de estopa grossa e pode deliciar-se com
os palavrões, com as indecências para não dizer sujeiras de tais ~ados"'. Segundo esse modo exigente
de ver, e para além dessa moralidade, o valor estético se mostra na linguagem escorrei ta, cuidada,
"alta"; na inventividade, na disposição do tema, da intriga. O olhar mais conservador vai adiante: a
"imoralidade" afeta esse valor. Fica, pois, que a chamada subliteratura não cumpriria certas exigências
"de gosto". Não se justifica, hoje, que prospere essa restrição,já não a permite a sociologia da literatura,
que também se interessa pelas manifestações populares, pelos números do mercado editorial, pelo gosto
dos leitores, pela movimentação econômica. A literatura de cordel tem sido objeto de muitos estudos,
inclusive acadêmicos. O leitor mais despachado, intrigado com o sucesso popular de Cassandra Rios
e de Adelaide Carraro, bem pode se aplicar no desvendamento de seus artifícios linguísticos, já que
os temáticos parecem mais facilmente explicáveis. Sairá em busca de um estilo, tomando por estilo
o desempenho linguístico modesto (sem pretensões ostensivas com a "artisticidade"), voltado para
uma comunicação simples e direta. Esse tipo de texto foi trabalhado tendo em vista um leitor menos
exigente da forma, e não se resolve, aí, a questão do estilo pela negação simples e automática. No
limite, a falta de estilo é também estilo, e isso pode ser detectado pelo analista, como tem feito, de
pass?gem, a crítica ligeira, às vezes para detratar. Constatamos, por fim, que o conceito de estilo, tão
intéressado no autor, no trabalho expressivo e no efeito estético, reclama a outra participação, a do
leitor. Observa Roquette-Pinto (apud ABREU, 1963, p. 47) que o estilo de Os sertões foi moldado
para que a grave denúncia nele contida repercutisse: "Para ser ouvido, é preciso falar de certo modo".
Euclides da Cunha buscava indignar o leitor. Essa possibilidade de o desempenho estilístico prever
um tipo de leitor abre um bom campo de pesquisa para o analista do estilo, que se verá inclinado, se
for o caso, a adentrar os domínios da estética da recepção. Pode, por exemplo, descrever os recursos
intensifIcadores do sentimento amoroso num poema de Gonçalves Dias; da sexualidade em contos
de Márcia Denser; pode analisar os processos sensibilizadores do feminino num romance de Clarice
Lispector; o charadaismo intelectualizante em poemas de Ana Cristina César.

TIIOi\.IA\ Bl)Ni'llC! / LÚCIA ()\/IN!\ ZOLrN (ORCANIZADORES) - 165


Cfo D R I G U E S

; Consideremos, por fim, a existência do estilo fora do universo literário artístico. Enquanto escrita
estética, o estilo se confunde com o modo de ser da linguagem literária, segundo o entendimento mais
comum de literatura, aquele que invoca sua natureza artística, sua literariedade feita de estranhamento.
Mas se todo texto escrito é feito de linguagem, se a estilística se interessa pelas nuancas linguísticas,
ela haverá de se interessar por toda obra (escrita, no caso) feita de linguagem. Levando ao extremo a
validade (talvez duvidosa) desse silogismo, e admitindo um entendimento amplo de estilo, franqueamos
para a análise estilística obras de história, de biologia, de física, de sociologia. Quando se diz que um
manual de geografia foi bem escrito, a referência é estilística. E não há porque impedir que se ~usque
estabelecer o modo de ser do discurso histórico ou o de um historiador, por exemplo. Houv; quem
tentasse desmerecer a sociologia de Gilberto Freyre em função de seu estilo, um tanto literário: O que
manda, no final das contas, são os interesses e os objetivos do pesquisador.

o OBJETO INTRATEXTUAL DA CRÍTICA ESTILÍSTICA

Acabamos de ver que a abordagem estilística encontra vasto espaço de atuação, de que dá mostra o
"encaixe hierárquico" de Paul 1mbs, descrito por Monteiro (1991, p. 10). 1mbs toma como circunscrição
mais ampla suscetível de estudo a "família linguística". Seguem-se, na descendência: uma língua
particular, uma época, um gênero literário, uma escola ou movimento literário, um escritor, uma fase
da vida do escritor, uma obra específica; um capítulo, parte ou parágrafo; uma frase ou enunciado.
Nem todos os casos lembram a atividade analítica intratextual direta, exclusiva.
O objeto intratextual da crítica estilística são as ocorrências linguísticas, distribuídas entre escaninhos
já estabelecidos por certa tradição, em parte inspirada na classificação gramatical: o semântico, o lexical, o
sintático e o sonoro, não necessariamente nesta ordem. Essa taxionomia nem sempre é seguida ao pé da
letra, até porque é comum uma ocorrência participar de vários campos. Anota Monteiro (1991, p. 38):
"a análise estilística não se resume a somente um dos planos estruturais do discurso [o lexical]. Ou seja,
nos níveis sintático e semântico, o mesmo poema fornece farto material para considerações de ordem
interpretativa". A abordagem estilística consiste, em termos bem amplos, na identificação de fenômenos
linguísticos distribuídos por esses campos. Passemos rapidamente por eles, começando pelo semântico.
Os ().Studiosos da teoria estilística não têm tido facilidade para criar uma estilística semântica de
fronteiras rígidas, e isso se deve, talvez, à grande mobilidade das significações, que estão tanto num
fonema quanto num vocábulo, tanto numa locução quanto num período longo. Essa mobilidade
dificulta o estabelecimento rigoroso de limites. As gramáticas costumam associar a semântica ao estudo
(descritivo ou diacrônico) da significação das palavras. Bastaria, portanto, para se resolver esse (suposto?)
problema taxionômico da estilística, situar a semântica no campo dos estudos lexícais, que se preocuparia
também com ás chamadas figuras de pensamento. Almeida (1981, p. 293), reproduzindo certa tendência
geral, aponta as seguintes figuras semânticas: sinédoque, metonímia, metáfora, eufemismo, hipérbole,
prosopopeia, perífrase. Embora os estudiosos centrem a questão no vocábulo, sabe-se que os sentidos
inerentes a essas figuras decorrem da contextualização, ou, dito de outro modo, o vocábulo isolado, na
literatura, pa estilística, perde força significativa. Se entendemos que as formas linguísticas alcançam
também a frase com mais de um termo, aceitamos que Luft (1971, p. 180) e CâmaraJr. (1981, p. 215)
ampliem o campo de ação semântica quando a encaram como o "estudo da significação das formas
linguísticas". Luft inclui entre os aspectos da semântica descritiva (polissemia, homonímia, antonímia,
sinonímia) a associação, correlação e oposição entre palavras. No campo específico da análise literária, a
perquirição semântica também aproveita as orações e o contexto. Salvatore D'Onofrio (1983), ao abordar
o "estrato semântico" da poesia, observa que a palavra, enquanto abriga sentido (sema), é também semema,
pois produz um "efeito de sentido", e esse efeito pode estar numa "frase inteira". Na sua exemplificação
de "tropos semânticos" (metáfora, metonímia, sinédoque, oxímoro, redundância, eufemismo), em
nenhum momento aparece a palavra isolada. Parece, pqrtanto, que a estilística semântica teria como

166 - T l' o R I A LITERÁRIA


-~ A fi () R D A (; E M f S T I L i S T J C ,\

finalidade imediata o estudo das figuras de pensamento nas suas variadas formas, podendo, se interessada
na evolução dos sentidos (semântica história), entrar na seara dos arcaísmos. Mas esta solução não resolve
o desconforto dos teorizadores do estilo. Câmara Jr. (1991, 110) aponta, num momento, três campos de
atuação estilística: o fônico, o sintático e o semântico, este interessado na conotação, no "valor afetivo
ou socialmente convencional que adere à significação das palavras"; noutro instante (1978), propõe três
estilísticas, a fônica, a lexical e a sintática. O manual de Vilanova (1977) possui cinco capítulos, os quatro
primeiros contemplando, na ordem, as estilísticas "fonética", léxica, morfológica e sintática. O último
capítulo, onde se estudam a comparação, o símile e a metáfora, aparece com o título de "Linguagem
figurada". Monteiro (1991) situa a questão denotação/conotação no capítulo "Os limites da estilística";
e estuda no capítulo ''Alguns problemas de significação" a polissem ia, a homonímia, o sentido figurado,
a sinonímia, a hiponímia e a gradação. Essa distribuição, mais ou menos livre, está presente nas obras de
Lapa e de Bueno aqui abordadas.
Passemos à estilística lexica1. Talvez o primeiro procedimento estilístico seja o da escolha
vocabular. "O vocábulo", explica Câmara Jr. (1977, p. 50), "sofre o contágio das sensações agradáveis
ou desagradáveis que decorrem das próprias coisas: céu tem a tonalidade de doçura e encanto; mar, de
majestade e trágica magnitude". Lapa (1977, p. 26) lembra que as palavras "evocam os meios sociais
em que são geralmente empregadas" (o camponês preferiria caldo; o citadino, sopa). Há, portanto, uma
variedade de fatores interferindo nessa escolha. A estilística lexical costuma se interessar pelas seguintes
ocorrências: arcaísmo, neologismo, estrangeirismo, gíria, regionalismo, sufIxação, coloquialismo,
sinonímia, vocabulário erudito, vocabulário técnico. Eis alguns casos, neste universo, apontados por
Lapa (1977): não se encontra em português uma palavra que substitua bem o francês bibelot, mas
gauche possui bons substitutos, sendo aconselhável evitá-lo; o arcaísmo expõe "o suave aroma das
coisas velhas", mas pode carregar intenção jocosa; a gíria é caso de coloquialismo e pode confundir­
se com o calão; o vocabulário regional dá "colorido especial" à fala; o palavrão técnico, "arrevesado e
inexpressivo", deve ser evitado; uma palavra formada de dois substantivos abstratos (ex.: beleza-espanto)
costuma ser erudita; os sufixos carregam mais "paixão" e "energia" do que os prefixos; o sufixo -inho
pode carregar intenção afetiva ou pejorativa, sendo que os diminutivos de ternura são "próprio das
mulheres"; o substantivo pluralizado produz algumas vezes bom efeito ("a família passava fomes .. _");
evite-se o adjetivo trivial, tornado clichê, tapa-buracos (lindo, admirável, enorme).
Sobre asintaxe como instância estilística,assim se pronunciou Bueno (1964, p. 151): "éverdadeiramente
° campo em que se exerce o talento do escritor". É opinião fartamente repetida. Monteiro (1991, p. 40)
anotou: "A tentativa de conferir ao texto literário um significado plurivalente, sempre sujeito a reIeituras,
enGOntra no campo da sintaxe infinitas possibilidades de romper com a norma". Tomemos inicialmente o
caso da pontuação. Muitas das frases de Clarice Lispector, lembra o mesmo Monteiro (1991, p. 40), "são
fragmentárias, truncadas, com uma pontuação mais psicológica ou rítmica do que lógica ou sintática". A
ausência de pontuação, ou seu esgarçar no rarefeito, dá ao monólogo interior condições para testificar o
fluxo de consciência, e sugere um compromisso estético-linguístico mais moderno; já o uso exagerado
pode prejudicar o ritmo da frase, como faz Rui Barbosa no seguinte trecho: "Quem quer sejas, amigo ou
não, o coração do escritor não faz, hoje, reservas, não abre, neste momento, exceções" (Bueno, 1964, p.
°
134). escritor também pode escolher entre usar ou não usar o verbo. A construção nominal, isto é, sem
o uso do verbo, intensifica o sentido de estaticidade, como neste trecho de Mário Palmério: "Soljá meio
de esguelha, sol das três horas. A areia, um borralho de quente. A caatinga, um mundo perdido. Tudo,
tudo parado: parado e morto" (MONTEIRO, 1991, p. 60). A frase verbal, por sua vez, impõe, a princípio,
dina~icidade. Mas estes fundamentos não são rígidos. O contexto e a sensibilidade do leitor interferem.
Vilanova (1977, p. 89) detectou numa construção verbal de Vulas secas, feita de orações coordenadas
justapostas, a ideia de vagareza, de lentidão, de desânimo: "Agachou-se, atiçou o fogo, apanhou uma brasa
com a colher, acendeu o cachimbo, pôs-se a chupar o canudo de taquari cheio de sarro". Explica Garcia
(1986, p. 106) que "foi depois do nosso movimento modernista que essa preferência pela frase curta,
incisiva, desenleada, se tornou - dig~unos assim - avassaladora". Se eventualmente quiséssemos emprestar
(mais) agilidade aos movimentos, a repetição da conjunção e (síndeto) e a ausência de vírgula ajudariam,
pois dinamizam a oração coordenada curta: "E avisou e alertou e gritou e foi batendo". A gradação aí
expõe o crescendo do ânimo, da raiva, mas poderia, como de-gradação, expor o gradual arrefecimento de

TI!OM,I.\ BONNI'" I LUCiA Q'ANA ZOIIN (l)RCANIZAIH1IU.') - 167


~o D R I G U E S

, um estado de espírito: "Era ódio mortal; não, apenas ódio; nem isso: só ressentimento". A construção da
tI-ase aproveita uma liberdade capaz de contrariar a gramática. Pensando na concordância, observa Lapa
(1977, p. 219): "É sempre lícito aos artistas escolherem a que melhor lhes parece". No caso do sujeito
coletivo com verbo no plural ("O casal estavam ... ") ocorre uma "concordância mental" estilisticamente
válida. Essa liberdade vale também para a regência, para o uso do modo e tempo verbais. Encaixa-se neste
último caso o enunciado "Ali está Tiradentes, na tI-ente de seus algozes". Essa presentificação, afirma Lapa
(1977, p. 208), aproxima de nós o passado, "como uma lente que nos faz ver melhor os objetos distantes".
De vasta aplicabilidade na frase são os adjetivos, com resultados estilísticos (semânticos) detectáveis,
por exemplo, na sua localização em relação a um substantivo: "um pobre homem" é diferente de ':um
homem pobre". Sua repetição costuma intensificar a qualificação: "Um homem magro, magro'? é mais
do que um homem apenas magro. Da Cal (1968) fez estudo alentado da adjetivação nas obras de Eça de
Queirós, e Teles (1970) escreveu monografia de longo fôlego sobre a repetição (em várias modalidades)
na poesia de Drummond de Andrade. A estilística sintática possui vasto campo de interesse, cada caso
desdobrando-se em várias ocorrências, repercutindo frequentemente em outros campos.' Éis outros
aspectos: a inversão dos termos frásicos (hipérbato, sínquise), os usos do infinitivo, do paralelismo, das
séries verbais, das formas perifrásicas ("passar desta pra uma melhor" por "morrer"), o emprego do
artigo ("recebia bons livros": maior quantidade; "recebia os bons livros": menor quantidade), a colocação
pronominal, as formas pleonásticas ("Combati o bom combate"), a locução, o trocadilho.
A estilística sonora costuma se preocupar, no plano mais restrito, com o valor simbólico dos fonemas,
e, num plano mais amplo, com o ritmo. Vai do fonema ao vocábulo e à frase. Estão no seu campo de
interesse a assonância, a aliteração, a onomatopeia, a métrica, a rima, a cacofonia, as repetições de um
modo geral, a locução, a frase. Monteiro (1991), para quem "a constituição sonora dos vocábulos pode
desencadear imagens ou sensações pertinentes ao significado", gradeou o valor simbólico das vogais,
associando o fonema a, por exemplo, à seguintes visualizações: amplitude, iluminação, paz, claridade:
mar, alvorada,formídável, colossal, imensidade etc.; o fonema u lembra fechamento, escuridão: túmulo, sepulcro,
luto,gruta,jurna etc (1991, p. 93, 101). Num fragmento de Os Lusíadas (Já no largo oceano navegavam/ As
inquietas ondas apartando; / Os ventos brandamente respiravam, / Das naus as velas côncavas inchando;
Ida branda escuma os mares se mostravam / Cobertos, onde as proas vão cortando), a predominância
da vogal a imprime, segundo Bueno, "a sensação de calma, de tranqüilidade", reforçando o sentido
de brandura proposto pela descrição em si (1964, p. 75). Num trecho do poema "Banzo" (descrição
de selva), de Raimundo Correia, aparecem as palavras fuzila , basilisco e Níger. CâmaraJr. (1978, p. 44)
percebeu no i agudo "o traço brilhante que corta o ambiente". Num soneto de Bilac, "Maldição", a rima
em ão dos dois quartetos (maldição / vulcão / ferverão / solidão) chegou assim aos ouvidos de Bueno
(1974, p" 69): "Cada ditongo final de palavra final de verso tem a força de um murro, de um impacto
que reboa no bojo da malfadada nasalação". Os sons consonantais, também sujeitos ao mesmo tipo de
gradeamento, suscitam impressões do mesmo tipo. Mas o virtuosismo criativo nem sempre agrada,
como ocorre, segundo entende CâmaraJr. (1978, p. 43), num poema de Cruz e Souza com este trecho:
"Vozes velada, veludosas vozes, / volúpia dos violões, vozes veladas, / vagam nos velhos vórtices velozes /
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas". Anota o crítico: "o som do violão claro, langoroso, ou de um assobio
argentino, esvaiu-se diante dessa insistência descabida de um só fonema, que, parcela apenas do efeito
total, açambarca o texto em afrontoso relevo".

EXPLICAÇÃO, VALORAÇÃO E ARROLAMENTO

otrabalho básico da estilística consiste em detectar e explicar certos fenômenos linguísticos,


e estabelecer relações de interesse biográficas, ideológicas, estéticas, temáticas. Em quase todos os
teorizadores prevalece como critério básico de identificação a carga afetivo-expressiva do vocábulo
(com seu corolário sonoro) e/ou da frase. A explicação normalmente fica entre o elogio e a censura dos
resultados, entre a notação da e:x-pansão significativa e o aconselhamento mais ou menos professoraL

168 T E o I( I A L I T E R Á H I A
-_.-~ A B o R D A C E M E S T I L í S T I C A

Diferentemente dos manuais, que aceitam o risco, talvez inevitável, de se tornarem um arrolamento
de ocorrências estilísticas e de exemplos, a análise centrada, orientada, pode ir um pouco além, mesmo
que seu propósito seja o de detectar apenas a excelência linguística. Proença (1973), na sua "análise
métrica ou estilística" da poesia de Augusto dos Anjos, inseriu, para quebrar o vezo do arrolamento
automático, a análise de um soneto. Trata-se de estudo longo, envolvendo toda a poesia de Augusto.
Mas nem sempre o tempo e o espaço (para publicação) permitem isso. O alcance do estudo determina a
pegada, o empenho, sendo mesmo aceitável a centralização do interesse na identificação das ocorrências
e na exposição dos exemplos. É o que faz, em grande medida, Antônio Pádua (1972),}0 estudar a
poesia de Castro Alves. No extremo oposto está o desprezo pelos arrolamentos sistemáticos, como
faz CâmaraJr. ao estudar o soneto "A cavalgada", de Raimundo Correia (visto adiante). Há trabalhos
que nem sequer transcrevem fenômenos estilístico da obra em foco, como o de Fr~nklin de Oliveira
(1969), "O universo verbal de Os sertões", apesar do título. Outros se voltam para a concepção de estilo
de um escritor, sem ir ao seu texto literário, como faz Cassiano Nunes (1969) no artigo "Monteiro
Lobato: uma teoria do estilo".
o arrolamento não constitui, portanto, em alguns casos, recurso metodológico indispensável.
Mas continua válido principalmente quando o estudo se orienta pelo critério da excelência textual
(alta qualificação estética) e se aplica em fazer das explicações encômios, ou libelo impressionista.
O elogio sistemático, sem outras observações, encontramos no terceiro capítulo (primeira parte)
da citada obra de Modesto Abreu (1963), carregado de fragmentos de Os sertões, para a glória
euclidiana. É aconselhável, portanto, no caso de análise mais alentada, flexibilizar ou ultrapassar o
interesse estético ralo, evitar ou amenizar o jogo simples da constatação/valoração/exemplificação.
Essa valoração a serviço do exemplário pode encaminhar-se para processos de aferição mais densos,
mais consequentes. Neste sentido, também a estatística serve de auxílio. Levando ao extremo sua
utilidade, observa Teles (1970, p. 52): "A delimitação do valor de qualquer aspecto do estilo num autor
requer, inicialmente, o levantamento da frequência e da homogeneidade ou heterogeneidade dos
esquemas em que atua o fato a ser estudado". Teles, no seu estudo, vai além da constatação numérica,
faz ilações, propõe desdobramentos argumentativos. A forma linguística, apta a repercutir no (e
como) significado-tema, estabelece, segundo o desempenho estilístico, outras significações, nem
sempre visíveis imediatamente, mas que, detectadas pela intuição do analista, se transformam em
objetos válidos de estudo. Em Iracema as comparações, normalmente usadas para qualificar alguém,
algo, ou uma situação, acabam, pela sua quantidade e pela qualidade aparentemente esdrúxula de
muitas delas, por estabelecer um outro universo temático e, por isso, um outro sentido, uma outra
rela'ção. Elas forçam, pela profusão, pela exuberância da comparante naturalista, a leitura da natureza
brasileira, firmando e confirmando, de cambaio, o compromisso nacionalista do autor e da estética
romântica. O fato estilístico leva, portanto, à História, à ideologia romântica e, em parte, ao autor.
Logo, esse interesse pela natureza, pelo país, também repercute como desempenho estilístico, e
isso pode ser avaliado. Assim, sair do mero arrolamento significa estipular quadros mais amplos de
repercussão para o desempenho linguístico.

UM ESTUDO CURTO DE POESIA (MATTOSO CÃMARAJR.): "A CAVALGADA"


J

Trata-se de abordagem centrada, de pequeno alcance investigativo, assentada em pouco mais


de seis páginas. Mattoso Câmara (1975) adotou um princípio (estilo demanda arte e afetividade),
escolheu um poema (o soneto "Cavalgada", de Raimundo Correia), detectou um "problema" estilístico
(repetição de ideias no primeiro e último versos, alterando-se a localização dos termos nessas frases­
versos) e o isolou, e definiu o interesse investigatório (analisar essa repetição e essa alteração como
recursos estilísticos potencializadores do tema e da afetividade). O resto é argumentação com certo
apoio teórico.

Tl!(I.\o1.\" Bl)N:"JICl / LÚCli\ O~t\NA ZUL1N (ORf;Ai'\IZAIH'HF\\) --- 169


ero o R I G U E S

! Chama a atenção do crítico a repetição da mesma ideia no primeiro verso (''A lua banha a solitária
! estrada") e no último, agora com a colocação dos termos mudada (''A lua a estrada solitária banha").
"O tema da poesia é o contraste de um transitório momento de alegria e vida, em face da quietude
permanente da noite enluarada. Impunha-se, assim, no fim da descrição, inarcar o retomo ao momento
inicial de quietude, que a passagem da cavalgada veio por um instante interromper" (CÂMARAJR.,
1975, p. 145). A retomada, no último verso, da ideia contida no verso inicial, produz efeito temático
em função do desempenho linguístico.
A análise explora duas situações, uma macroestrutural (relações entre dois versos situados
nas extremidades do poema), e outra verificável no âmbito de cada um desses versos-fraseS (os
deslocamentos do verbo "banhar" e do adjetivo "solitária"). As duas situações se cruzam nessa busca
de expressividade estilística. Na análise dos deslocamentos intrafrasais, os seguintes.aspectos são
pontuados: 1) "banha" vai para o fim da frase, no verso final, 2) "solitária", anteposto inicialmente
ao substantivo "estrada" ("solitária estrada"), aparece, ao fim, posposto ("estrada solitária"). Ao
crítico interessa desvendar as consequências de tais mudanças. Considerando o primeiro verso do
poema (''A lua banha a solitária estrada"), a localização de "estrada", no fim, aponta preocupação
maior de informar sobre o local da cena. Onde está, o termo passa a ser a "chave da comunicação",
como indica a tradição sintática da língua portuguesa. No último verso (''A lua a estrada solitária
banha"), onde "banha" assume a posição final, o poeta, centrando o "valor informativo" no ~rbo,
pretende destacar o silêncio (retomado) da estrada "banhada pelo luar", depois que passa a cavalgada.
Quanto ao deslocamento de "solitária", o ensaísta, depois de breve colóquio teórico, detecta na
forma "solitária estrada" (primeiro verso) um efeito conotativo, a sugestão de "erma quietude da
estrada, para criar um clima emocional capaz de nos fazer sentir o contraste de vida e alegria que a
cavalgada vai trazer à paisagem noturna" (p. 147). A solidão, aqui, repercute mais "na alma do poeta
e do leitor", menos como descrição da estrada. Já a construção "estrada solitária", no último verso,
busca mais descrever a estrada, forçando o contraste entre as situações inicial e final do poema. Essa
variação, embora enquadrada nos padrões subjacentes à língua, comporta, como no caso anterior de
variação, "objetivos expressionais bem delimitados e nítidos" (p. 148).
O analista reforça sua interpretação com uma pequena incursão teórica. Em relação ao deslocamento
verbal, explica que, segundo os padrões do português, "é o último termo de uma oração que dá, em
princípio, a informação nova da comunicação feita" (p. 145).Já considerando a posição do adjetivo em
relação ao substantivo, invoca a sintaxe inglesa e a famosa díade machadiana "autor defunto"/"defunto
autor", de Memórias póstumas de Brás Cubas, tudo para explicar que a anteposição do adjetivo introduz
uma "intenção afetiva" enquanto a posposição se ajusta a uma "função descritiva".
Trata-se, como foi dito, de uma abordagem interessada apenas no fenômeno de "colocação"
(no plano poemático e no plano sintático). Talvezjustificando essa restrição de interesse, o crítico
reconhece, ao fim, a alta complexidade do fenômeno poético, as implicações secundárias, para sua
interpretação, do ritmo e da rima. Toma então os dois versos de interesse e esboça uma análise do
ritmo e da rima. Assim, na sequência sonora "a solitária estrada" a localização da tônica (do "icto")
no/tá! de "solitária" sugere bem "a visão de uma extensão indefinida" (p. 149), ao contrário do que
ocorre no último verso, onde o isolamento da décima sílaba enfatiza o verbo "como um grupo de
força autônomo". Em relação à disposição rímica, aquela em "-ada", de que participa o primeiro
verso, é "clara e cantante", favorecendo a ideia de que o desfile dos cavaleiros foi "rumoroso e
vibrante"'; já a rima em" -anha", de que participa o último verso, é "abafada e morna", favorecendo
a visão de uma estrada "soturna e silenciosa".
O que percebemos, ao fim, é que: 1) a redução do interesse investigativo determinou o
menor alcance da abordagem, mobilizando, assim, poucas informações teóricas e bibliográficas;
2) essa redução, por outro lado, como que criou alguns incômodos, exigindo pequenas incursões
complementares, não exatamente dentro do eixo imediato de interesse; 3) é oportuno justificar
certas ilações recorrendo à teoria (às vezes estabelecendo um diálogo crítico); e 4) é preciso
reconhecer no conduta estilística efeitos estéticos e/ou afetivos enriquecedores, ou mesmo parte,
do assunto.

170 - T E o R I A L I T E R Á R I A
---"--~ A B o R J) !\ l, E M E S T ( L í ST [ C A

UM ESTUDO LONGO DE PROSA (MODESTO DE ABREU): EUCLIDES DA CUNHA E Os SERTÕES

o estudo bstilo e personalidade de Euclides da Cunha, de 1963, não tem rigorosamente índole
acadêmica. É bem informado e de leitura agradável. Sua avaliação, aqui, interessada também nos
aspectos discursivo-estruturais, quer ser didática e haverá de ser, por isso, um tanto "tendenciosa",
opondo alguns reparos decorrentes da mirada acadêmica, não raro mais exigente. O livro sobrevive
sem esta opinião, com o beneplácito do leitor comum. >'

A obra é dividida em três capítulos. O primeiro, sem título, se propõe a um diálogo. com críticos
.
de Euclides; o segundo, também sem título, procura estabelecer relações entre biografia.e estilo. O
terceiro, intitulado "A estilística de 05 sertões", divide-se em duas partes: a primeira carrega o elogio
da descrição, da dissertação e da narração euclidianas; a outra se volta diretamente para as questões
"filológicas" do estilo. Embora unificados pelo título da obra, esses capítulos parecenÍ ter sido escritos
separadamente (longo trecho presente num deles, reaparece, inteiro, noutro). Vejamos cada capítulo
considerando primeiro os assuntos desenvolvidos, ao que se segue a análise da organização discursiva
e estrutural, estratégia repetida nas seções seguintes. O esforço analítico maior recai sobre o capítulo
três, segunda parte, onde se concentram os informes "filológicos".
No primeiro capítulo (p. 17-65), centrado na recepção crítica do texto euclidiano, o autor define
inicialmente, em poucas palavras, seu interesse por Os sertões, estabelece a relação entre estilo e
personalidade autoral e define estilo como linguagem individualizada movida por uma personalidade
("Estilo é a maneira pessoal de sentir e de ser, é originalidade"). Depois, em todo o resto, o ensaísta
invoca críticos de Euclides, polemiza com alguns, sempre na defesa apaixonada do escritor, com
pequenas restrições. A excelência do texto euclidiano supera, às vezes negando, algumas ressalvas
críticas, como as de Joaquim Nabuco (Euclides escrevia '"com cipó") e as de Gilberto Freyre (em
Euclides perseveram o "falar difícil", o gongorismo). Euclides, explica Abreu, seguia as tendências
de seu tempo, que o levavam, até por seu temperamento, a trabalhar obsessivamente o texto. As
opiniões contrastantes de Silvio Romero e de Mrânio Peixoto sobre Os sertões (o primeiro destacando
adimensão científica e o segundo, a poética) apenas confirmam a variedade e a complexidade de Os
sertões. Roquette-Pinto é diretamente positivo, elogia a força estilística e o aporte científico de Os sertões,
tomando-o como "o grande livro do Brasil", aquele que se tornará "o livro nacional". Nessa revisão
crítica, e por caminhos menos polêmicos, Abreu se aplica também em apresentar o Euclides socialista,
avesso ao capitalismo e conhecedor da doutrina marxista. Na elaboração da obra, foi cuidadoso com
as fontes documentais e científicas. Modesto Abreu conclui reafirmando a inteligência e o talento
de Euclides, que seu estilo Ué o desenvolvimento, a exteriorização, o desdobramento sensível e mais
perceptível de sua personalidade".
Avaliação discursivo-estrutural: Neste primeiro capítulo interessa alinhavar "impressões [ ...] de
modo perfunctório" sobre o estilo e a personalidade de Euclides. De fato, rapidez e impressionismo
conduzem o entendimento de estilo, sem qualquer incursão teórica ou remissão a estudos sobre o
assunto, o que contraria postulados da crítica acadêmica. O embate com os críticos de Euclides apresenta
certa leveza de crônica histórica na medida em que aparecem alguns fatos biográficos de Euclides, sem
que isso fragilize as informações como suporte explicativo para o estilo. Essa leveza "irresponsável",
comum à crônica, contamina, em parte, a própria concepção e distribuição dos tópicos. Alguns deles
acusam certa frouxidão de amarramento, como nesta sequência: "Euclides socialista", "Tapuia, celta e
grego", "Os sertões e Facundo", "Gongorismo de Euclides".
Passemos ao segundo capítulo (p. 67-113), onde o autor apresenta um esboço biográfico de
Euclides para identificar sua personalidade singular, formada à custa de adversidades. Desde a
infància, sujeita-se ele à interferência de um "um fado adverso": orfandade aos três anos, e morte,
dois anos depois, da tia que o criava. Forma-se "sua estranha compleição psico-somática, de fundo
iniludivelmente neurótico". No internato, onde faz os estudos primários, demonstra gênio irascível,
sofre a "desgraça da orfandade", predispondo-se ao "agravamento de um gênio já de si violento e
impulsivo, propenso ao desencadeamento de energias descQntroladas". Mais tarde, na Escola Militar,

TIlOMAS BONNlCI I LÚCIA OSANA ZOLlN (OR"ANlzAnoIlES) - 171


crODRIGUES

j preparando-se para ser engenheiro, sente-se deslocado, cria casos, é indisciplinado. A afeição pelo
I republicanismo o leva a um gesto espetaculoso, "histérico": tenta quebrar a espada no joelho, em
protesto contra a visita do ministro da guerra, uma autoridade monárquica. É desligado. Proclamada
a República, rematricula-se, forma-se engenheiro. Depois, indisposto com a tirania florianista, deixa
o exército. Tempos depois segue, como jornalista, para Canudos, de onde recolhe material para Os
sertões. De volta, precisando de dinheiro, aceita "encargos transitórios". Participa de várias comissões
no Ministério das Relações Exteriores. Numa delas, num rebocador para Vitória, com Vicente de
Carvalho, exaspera todos forçando, ante uma tempestade, a continuação da viagem, pois era "um
obstinado e um escravo do dever". Quando o boêmio gozador Emílio de Meneses candidata-s~ a uma
vaga na Academia, Euclides posiciona-se contra seu ingresso. Durante a prova oral de um concurso
para lecionar no Colégio Pedro lI, parece "um louco na expressão fisionômica e no conspecto geral";
e depois enerva-se com a demora na escolha da nomeação. É "pai extremosíssimo", adorado pelos
filhos, mas leva uma vida conjugal infeliz, paga injusta para um homem inteligente, afetivo e de
"caráter imaculado", para um homem que zelava por suas virtudes "até o exagero" e era capaz de
fazer valer seu "gênio impulsivo e violento", responsável pelo seu fim trágico. O seu drama final
revela, enfim, um homem de "alma sensitiva que a vida se comprouve em torturar, desde os mais
verdes anos. E talvez jamais haja podido ter um momento de sadia ventura, de felicidade íntima que
lhe não viesse amargada por um laivo travoso de fel".
Avaliação discursivo-estrutural: O objetivo deste segundo capítulo é apresentar uma biografia
psicológica de Euclides para explicar seu estilo. Esforço logrado, embora se trate de estudo isolado,
sem contato com o texto literário, tarefa reservada para o último capítulo. As ressalvas que se seguem
poderiam ser resumidas num único ponto: também aqui ficam fora preocupações acadêmicas. Embora
se respeiteacronologia, persiste certa liberdade na disposição dos assuntos-tópicos, com o afrouxamento
da amarração em alguns momentos. Por exemplo: a relação entre fato biográfico e personalidade
"nervosa", bem definida na descrição da infância e da juventude do escritor, fica praticamente
esquecida quando se retrata a vida adulta do burocrata viajante, funcionário do Ministério das Relações
Exteriores, para reaparecer no quadro dos episódios trágicos que ceifaram a vida de Euclides. Essa
liberdade informativo-estrutural, que já desincumbira o ensaísta de polemizar teoricamente sobre
o estilo, se manifesta aqui no trato teórico da questão psicológica, todo ele resolvido com breves e
espaçadas interferências impressionistas, bastante receptivas ao um determinismo "atávico". Confirma­
se, contudo, neste segundo capítulo, a importância biográfica para o estudo estilístico, corroborando
velho entendimento, com suas restrições ao sensacionalismo de circunstância, desvio combatido com
respaldn bibliográfico. E justiça seja feita: percebe-se que Modesto Abreu leu mais do que indica.
O terceiro capítulo ("Estilística de Os sertões") divide-se em duas partes. A primeira se aplica na
apresentação, com o elogio costumeiro, do estilo euclidiano na descrição de "quadras", na dissertação
de "temas" e na narração de "eventos"; a segunda parte se encarrega dos casos "filológicos". Na primeira
(p. 115-48), o interesse pelos temas tratados se faz acompanhar da valoração linguística, na proporção
atrás apontada. A variedade e complexidade de temas e tipos discursivos dificultam o enquadramento
categorial de Os sertões. Modesto de Abreu opta por encarar a obra como um "libelo" acionado por
um estilo "nervoso, vibrátil, inquieto", trabalhado à saciedade. Lendo a parte inicial, "A terra", onde
ocorre úma "excursão através do mapa orográfico do Brasil", o ensaísta descobre um escritor "atraente,
mestre da arte difícil da palavra escrita, senhor de um estilo maleável e rico de matizes", capaz de
colocar Qrtema árido "ao alcance do leitor comum". Os períodos longos estão na ordem direta e a
pontuação é bem distribuída. O "poder descritivo" pode ser notado na apresentação de aspectos do
maciço atlântico; e duas passagens (o soldado e o cavalo mortos, mumificados) demonstram o "pendor
de retratista". Na descrição de um aspecto da flora sertaneja Euclides chega à poesia quase pictórica,
noutro momento notamos "delicadeza e primor descritivo". A descrição da caatinga é "empolgante".
Assim, Euclides constrói "no bronze do idioma monumentos perenes de beleza, de perfeição
expressional". Esse vezo do elogio alcança a dissertação euclidiana, a "exposição de conhecimentos"
voltada para "o problema da formação geogenética dos desertos e das zonas áridas ou semiáridas do
nosso planeta". O tratamento de temas "tão sugestivos" como a seca, a queimada, exige de Euclides
minuciosidade e documentação. Ele "nunca expõe de forma vulgar um tema vulgar", vivendo um

172~TEORIA LITERÁRIA
.j~
-_.-. ~ A B o R l> A (; E M E S T I L í S T I C A

"constante tormento estilístico". De alguns fragmentos citados por Abreu, um, sobre a seca nordestina,
carrega a força de um libelo na "sapientíssima lição", nas sugestões de solução. Essa postura estilística
e ideológica também se faz presente na segunda parte de Os sertões, "O homem". Aqui Euclides se
mostra muitas vezes entusiasmado pela teorização. Pensando nas origens do índio americano, por
exemplo, adota a "tese poligenista do autoctonismo", discorre sobre os tipos raciais brasileiros, discute
a mestiçagem, a "formação racial do mestiço nordestino", sempre suscitando debates e controvérsias,
como quando admite ser a mestiçagem um "fator de desequilíbrio" e argumenta sobre o mestiço
invocando fatores como a esquizofrenia e a loucura. Interessado em buscar segredos psicológicos
de um povo, Euclides vai ao folclore, e explica o sertanejo nordestino pelo contraste co~ e gaúcho.
Argumentação e narração se fundem na apresentação da vaquejada, do homem lutando contra o solo
ingrato. O argumento sociológico chega à religião, às superstições, num desempenho estilístico que
mistura o épico, o dramático, o trágico. Antônio Conselheiro foi analisado com "espírito percuciente",
o mesmo com que Euclides denunciou, na terceira parte de Os sertões, ''A luta", o crime daquela guerra.
O que viu foi descrito "de maneira personalística", como o demonstram os cinco trechos transcritos no
ensaio: descrição do arraial, do coronel Moreira César, do marechal Bittencourt, de um "lance épico"
(de "virtuosidade ímpar"), e de uma "curiosidade narrativa" (um menino jagunço prisioneiro).
Avaliação discursivo-estrutural: Em relação ao estudo do estilo propriamente dito, esta parte da
obra de Modesto Abreu se mostra lacunosa no quesito análise (propriamente dita). Tudo se resolve
pelo elogio dos desempenhos descritivo, dissertativo e narrativo, com a farta transcrição de exemplos,
alguns bem longos. A argumentação se estrutura em blocos, sugestionada pelos três tipos discursivos,
estratégia que confere à seção, como um todo, certa lógica sequencial e certa coerência_ O critério
para a escolha dos exemplos é o da excelência antológica, ficando de fora questões lexicais, sintáticas,
sonoras. Não ocorre em nenhum momento estudo particularizado de algum trecho, não entramos
nos "processos" estilísticos, tarefa a certo momento apregoada pelo ensaísta. Diz ele, no início, que
examinará "sucessivamente cada uma dessas partes [de Os sertões]", fazendo, ao fim, uma "síntese do
extenso e copioso rdado da Campanha". Reafirma-se, portanto, a preocupação temática, interessada
em ide ias de Euclides, de onde brota alguma polêmica crítica. Ao sujeitar-se a essa necessidade de
apresentar os temas da obra, o ensaísta externaliza, ao seu modo, a possibilidade de encarar as situações
temáticas como objeto de abordagem estilística.
Chegamos finalmente às "anotações filológicas" (p. 148-206), última parte do ensaio, em tese o
mais identificado com a análise estilística. Abreu começa defendendo, outra vez, o estilo de Euclides:
não é empolado, os vocábulos técnicos seguem o "senso de oportunidade" e o gosto do tempo;
não há mal algum no gosto pelo adjetivo e pelo verbo pois são usados com propriedade e lógica (a
resistência ao adjetivo era uma solicitação do jornalismo, ávido de síntese e rapidez). Atrás de tudo está
o temperamento do escritor. Após essa defesa, o ensaísta se põe a registrar as ocorrências linguísticas.
Euclides usou com frequência o "não há ... " seguido de oração infinitiva ("Não há desejar mais .. _"),
"feito" como recurso comparativo (" ... feito dilatado muro... "). Utilizou "até a... " sem importar-se
com o a supérfluo ("... até a unl caule ... "), preferiu "pouco e pouco" em vez de "pouco a pouco", e eTn
certos casas optou pela regência direta de visar, de contrastar (" ... contrastava a placidez ... ") e pela indireta
de tomar (tomar de_ ..), aconchegar (aconchegar de .. _), determinar (determinar de._.), comefar (começar
de ... ), Alguns casos de "construção" são apontados como "clássicos" (principiou de, começou de, " __ .
rio de São Francisco ... "). Essa influência clássica seria a responsável também pela presença de arcaísmos
(metaplasmos, geralmente), como alevantar, arruído, amostrar, entrajar, quaderno, embruscar. Ainda é
clássicci o uso de passar sem o pronominal se ("O fato passou em 1833"). Evitando a "palavra espúria",
Euclides preferiu [ajem a laje, perdimento a perdifão, mimismo a mimetismo; foi ao "sentido próprio"
dos vocábulos (adornar é virar a doma, diserto nada tem a ver com deserto, temeroso é temível). O
vocabulário técnico-científico, sujeito aos critérios da propriedade e da lógica, alcança os mais variados.:
campos: geográfico e cosmográfico; geológico e mineralógico; físico-químico, botânico e zoológico;
etnográfico e antropogeográfico; histórico e filosófico; medicinal, anatômico c fisiológico; topográfico
e matemático, da arquitetura e da engenharia; da engenharia militar, da navegação. O caráter científico
dos assuntos levou aos latinismos (incombentes, cereus, ictus, urbs, habitat; ad hoc, magna pars, cactus opuntia,
!wmo americanus) e aos estrangeirismos (do alemão: Krupp,feld-marechal; do inglês: landlord, steeple-chase,
~o D R I G U E S

1 colding; do francês, e francesismos:falaise, croquis,plateau,prantivo, decampar; espanholismos: aquerencíado,


I antojava, canhada, peleador; do italiano, apenas lazzarina. Dentre brasileirismos usados temos, do tupi,
caapora, caatinga, caapão, cajuí; o regionalismo gaúcho forneceu, entre outros, bombacha, guaiacca). Para
Abreu, a presença de períodos longos em Euclides "não constitui defeito" (como andaram apontando),
pois os mesmos submetem-se a uma pontuação variada e adequada, embora alguns casos apresentem
deficiência. O ponto-e-vírgula, nem sempre com uso apropriado, aparece mais nas enumerações, e
é usado para quebrar períodos muito longos; o travessão substitui os parênteses, em certos casos; as
reticências reforçam efeitos irônicos ou de continuação de uma ação; o ponto final reparte, junto com
o ponto-e-vírgula, uma frase longa em duas ou mais curtas, em nome da clareza e do vigor. ~en.to à
expressividade, Euclides, ao lidar com os verbos, preferiu haver a ter ("... houvesse o compromisso ...");
ignorou a concordância gramatical em alguns casos, como em ''A cidade de Lençóis fora investida [... ]
e emJequié se cometiam toda a sorte de atentados". Na sua semântica expressiva, acaroar-descreve um
rosto rente ao chão, encalçar é sair ao encalço de alguém, circuitar é rodear, esbotenar é esboroaI;",.su'1'resar é
causar surpresa, bizarrear é jactar-se. Também o uso dos infinitos (pessoal e impessoal) é algumas vezes
agramatical, um aparecendo no lugar do outro ("O chuvisqueiro [ ... ] sem deixarem traços", "E ao
enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido"). No campo da "prefixação", Euclides permuta
tencionando "fugir à vulgaridade", chegando ao neologismo: ablegadas, desdeu, eJluía, simulcadência. Na
colocação pronominal, submete-se ao padrão lusitano, sem evitar certos "deslizes", como este desprezo
pela mesóclise gramatical: "E revelariam-no os resultados imediatos da ação". Em termos de gênero,
Euclides utiliza pampa ora no masculino (uso do português), ora no feminino (uso espanhol), como
faz ainda com estepe, no masculino por influência francesa; usou caudal no feminino, virago aparece no
masculino. Em relação ao número, opta por "meio-dias" e "lugar-tenentes" (neste caso, como quer
o crítico, agindo bem). Abreu cita uma prática incorreta ("Era preciso uma explicação qualquer para
sucessos de tanta monta"), onde o sujeito, "explicação", pede um predicativo ("preciso") no feminino.
Euclides procurou fugir dos advérbios em mente, muito vulgares, lançando mão de locuções pouco
utilizadas, como em "... largou à esporajeita para Queimadas ... ", em "... e viam-nos descendo, lento e
lento, por ela abaixo ... "; algumas vezes, no entanto, em nome da ênfase, repetiu o sufixo mente numa
sequência adverbial com frequência desaconselhada, como em " ... surprendedoramente, teatralmente
e gloriosamente ... ". Em termos de acentuação, preferiu'orquidéia a orquídea ("por influência francesa"),
e bátavo a batavo (levado talvez por desinformação). Euclides trabalhou bastante para evitar a cacofonia,
chegando a suprimir, sem necessidade, segundo Abreu, um m na sequência " ... sem redução alguma,
em u'a mestiçagem embaralhada... ". O cuidado estilístico não impediu alguns escorregões, como em
"É inconstante como ela". Euclides, apesar do cuidado excessivo, pôde tanto engendrar um anacoluto
obscuro'e defeituoso quanto pleonasmos ruins ("... aumentando-lhes maior...", " ... tal incidente, em
que incidiam ... "). Em certo instante desrespeita (erro tipográfico não corrigido?) a aplicação correta
dos modos verbais, a: correlação de tempos: " ... o predestinado trepou sobre o madeiro e ordenou, em
seguida, que dois homens apenas o levantem". Aqui, trepou e ordenou pedem levantassem.
Na sequência expositiva temos a presença da repetição e do polissíndeto, casos de parafonias
("... espadarncintilações de espadas ... "), efeitos onomatopaicos (" ... empedra-se o chão, gretando,
recrestado ... "), identificados também como aliterações (" ... entretece a trama ... "). Conhecedor das
técnicas ;versificatórias, Euclides plasmou em certas frases combinações rítmicas que lembram versos
e estrofes. Já para o final do ensaio de Modesto de Abreu o leitor se depara com generalizações
apenas confirmadoras do estilista consciencioso que foi Euclides: a originalidade na descrição de
quadros é' cenas dramáticas (um soldado faminto e desesperado, por exemplo), o gosto da ironia e
da caricatura. Nas últimas páginas, onde aparecem algumas leituras de Euclides (Guerra Junqueiro,
Faguet e Lombroso), as preocupações !ingllí~ticas cedem lugar às temáticas. Abreu informa sobre o
agnosticisr:::,-, Jc F'_1dides, fundado numa resistência de fundo positivista à metafísica; sobre seu interesse
pela psique religiosa popular-folclórica (informações usadas na descrição de festas, superstições, e do
próprio Conselheiro); e, por fim, sobre a condição de libelo do livro, tal como reitera seu final, onde
Euclides, repudiando os acontecimentos, imprime sua condenação.
Avaliação discursivo-estrutural: O ensaísta pretende demonstrar, tendo em vista Os sertões, um
desempenho linguístico distinto do uso ordinário da linguagem, e apontar a variedade e a versatilidade
174 - T E o R I A LITERÁRIA
- -~_.~ A II o R D A (; E M E S T [ L í S T [ c: A

de Euclides no trato linguístico. A exemplo do que ocorreu no início do ensaio, o entendimento de


estilo aqui pode apenas ser intuído. Não ocorre investimento teórico, não se abre debate conceitual.
Interessa a Modesto Abreu, agora, alinhar "uma série de comentários e anotações filológicas a Os
sertões". Três são, portanto, os pontos básicos determinantes da conduta metodológica: apontar
ocorrências estilísticas (título dos tópicos), comentá-las (no caso, com critérios variados) e ajuntar­
lhes exemplos. Sabe-se que a eficiência da argumentação depende da amarração dos informes e da
sua organização (estruturação). Um capítulo ou subcapítulo, ou um tópico ou subtópico, agrupa
informações mais ou menos próximas, de acordo com algum critério, ou alguns. Na ftstruturação
geral de qualquer ensaio, um capítulo, ou subcapítulo, equivale a uma seção orientada pot certo(s)
interesse(s), com sua organização interna mais ou menos fechada segundo um plano argumentativo.
Na obra de Modesto Abreu, no quadro em se processa a abordagem propriamenté estiÍística, essa
organização não ocorre, ou é frouxa, solta. Falta certo rigor taxionômico, orientado, por exemplo,
pelos blocos argumentativos comumente apontados pela estilística teórica (lexical, fônico, sintático,
semântico). A impressão de uma estruturação mais ou menos livre pode ser atestada na concepção das
seções: uma pode ter um interesse amplo, tomando várias páginas, como a abordagem do vocabulário
técnico-científico; outra, metida em meia página, como o tópico "acentuação", que poderia ajustar-se
no campo da estilista sonora. Também os campos se espalham por seções nem sempre próximas ou
afins. Num instante, por exemplo, deparamos com casos de sinta.xe (regência, por exemplô), ao que
se seguem ocorrências lexicais (caso dos arcaísmos), para depois, na sequência imediata, voltarmos à
estilística da frase. Uma seção sobre latinismos e estrangeirismos abriga tanto questões vocabulares
quanto "locuções e expressões"; outra, sobre os usos do verbo, inclui preocupações semânticas e
sintáticas. É bem verdade que não existem fórmulas para uma classificação eficiente e infalível dos
fenômenos estilísticos, que se cruzam de vários modos. Sem desconsiderar as abordagens com objetivo
reduzido - que amealham menos recursos -, e mesmo a variedade de interesses, parece mais coerente
a formulação das seções e sua disposição seqüencial que atendam a certa lógica, ainda que seja aquela
proposta, em termos taxionômicos, pelos manuais teóricos. Essa preocupação não orientou, a rigor,
o trabalho de Abreu, onde se percebe certa desarticulação na distribuição dos tópicos. Vamos de um
para outro (de conteúdo ou interesse diferente) meio ao sabor do acaso, como ocorre de "Emprego de
verbos" para "Prefixação". Entre as páginas 184 e 188 temos esta sequência: "Gênero e número", "Era
preciso ... ", "Locuções adverbiais", "Acentuação", "Encontros cacofônicos", "Pleonasmos". Seções
afins, não sequentes, talvez pudessem estar próximas, quando não fundidas numa só, como "Locuções
adverbiais" e '1'-.dvérbios em mente". O mesmo vale para alguns tópicos voltados para a estilística fônica
("Ei-tcontros cacofônicos", "Parafonias". "Efeitos onomatopaicos"), que tem no seu campo, entre
outras seções, "Pleonasmo", "Advérbios em mente". Este sentido de descontinuidade alcança também
a natureza das informações apresentadas, que de filológicas, passam, ao fim do ensaio, a temáticas,
como as seções sobre o agnosticismo e a demopsicologia de Euclides, e sua condenação veemente
aos crimes daquela guerra. É frequente, na colheita dos dados literários, que a empolgação por certos
aspectos leve o estudioso a inserir informações nem sempre bem ajustadas ao interesse da seção, ou
do capítulo, e mesmo do ensaio em si. O oposto - a ausência de informação (quando aconselhável)
- ocorre mais na exemplificação, com casos pouco ou nada aproveitados. Neste particular, Modesto
Abre~ se contenta, em alguns momentos, com o arrolamento seco, como ocorre na seção "Vigor
e energia de expressão", onde, ante a exemplificação, se recusa a tecer "maiores comentários". Na
seção '~Ironia e caricatura" informa de antemão que se limitará a transcrever alguns exemplos. Mas a
ausência de informação mais sentida diz respeito à adjetivação euclidiana, objeto de polêmica anterior
e agora resolvida apenas com um rebate a duas opiniões desabonadoras. Parece ter faltado empenho
ainda na exemplificação do léxico "afro-negro" e no comentário da sinta,xe euclidiana. Já quando o
assunto é vocabulário técnico-científico, o critério é outro. O ensaísta se aplica na classificação e no
arrolamento percuciente, num quadro em que importa também defender Euclides dos detratores.
Esse procedimento, esse comentário que atenua a mudez dos exemplos, foi algumas vezes adotado,
como quando o ensaísta criticou deslizes, invocou a gramática, elogiou a expressividade e explicou os
motivos de certas escolhas linguísticas.
,?o D R I G U E S

IREFERÊNCIAS

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176 TE("RIA LITERÁRI.A


C RÍTICA SOCIOLÓGICA

Marisa Corrêa Silva

OQUEÉ

Para tentar uma definição (e definições e generalizações são sempre discutíveis), crítica
sociológica é aquela que procura ver o fenômeno da literatura como parte de um contexto maior:
uma sociedade, uma cultura. Sob o nome genérico de crítica sociológica encontram-se diversos
autores e tendências. A classificação desses autores é, por vezes, polêmica: existem autores que
colocam Bakhtin sob o título de "pós-formalismo", ou que colocam Lukács na crítica marxista;
há quem ache que a crítica marxista é um tipo de crítica sociológica e há quem separe totalmente
as duas.
O conceito de crítica sociológica que utilizamos é muito influenciado por Antonio Candido,
um dos autores estudados neste capítulo. Isso quer dizer que, ao contrário de outros autores
(notadamente alguns autores marxistas), não acreditamos que um tex'toliterário seja melhor porque
reflete bem a sociedade; mas, sim, que um texto literário é bom porque é bem escrito, porque
trabalha a linguagem de forma criativa, porque utiliza "os espaços em branco" (interstícios) para
enriquecer as possibilidades de leitura etc. Nem toda corrente que se intitula "crítica sociológica" ou
"sociocrítica" partilha esse ponto de vista. Portanto, é preciso atenção às definições que cada autor
utiliza.
Os a~tores aqui contemplados foram escolhidos por terem algo em comum: pensar a
literatura como um fenômeno diretamente ligado à vida social. Em outras palavras, a literatura
não é um fenômeno independente, nem a obra literária é criada apenas a partir da vontade e da
"inspiração" do artista. Ela é criada dentro de um contexto; numa determinada língua, dentro de
um determinado país e numa determinada época, onde se pensa de uma certa maneira; portanto,
ela carrega em si as marcas desse contexto. Estudando essas marcas dentro da literatura, podemos
perceber como a sociedade na qual o texto foi produzido se estrutura, quais eram os seus valores
etc.
Não se pode, porém, confundir uma crítica que leve em conta apenas a história de vida do
autor (crítica biográfica) com a crítica sociológica. Esta última não está preocupada com apenas um
indivíduo, mas com grupos sociais aos quais eventualmente o autor pertenceria. A crítica biográfica
focaliza eventos na vida de um autor, mesmo que esses eventos sejam de caráter social, e a crítica
sociológica quer uma visão mais ampla. Por exemplo, uma crítica biográfica saberia que Graciliano
Ramos foi preso durante o ,Estado Novo de Vargas: essa crítica daria importância total ao fato de que
ff[
,
L V A

t
a obra Memórias do cárcere seja o depoimento pessoal de Ramos sobre esse período terrível. Conclusão:
como Graciliano é um grande escritor e escrevia sobre o que tinha vivido, o romance só poderia ser
muito bom.
A crítica sociológica, de posse dos mesmos dados, leria Memórias do cárcere não como um
acontecimento na vida de um único homem, mas como o relato simbólico de como muitos
homens e mulheres sofreram durante o Estado Novo. Mesmo quem não foi preso ou perseguido
sentia que a liberdade individual diminuíra; era como se todo o país estivesse sofrendo, em maior
ou menor grau, uma prisão. Não é tão importante saber que o romance seja autobiográfico,
mas sim verificar, através da leitura, que esse romance faz uma ponte estética entre r<?aliaade
social, coletiva, e representação artística. O valor do romance não viria simplesmente do~ato de
Graciliano ser "bom escritor" (mesmo ótimos escritores podem escrever um livro ruim), mas
do fato de Memórias do cárcere conseguir mostrar, em sua estrutura, os mecanismos da repressão
e da demagogia funcionando no país. O valor vem da obra em si, e não do nome 'de quem a
escreveu.
Barberis (1996) diz que o papel da crítica sociológica é,justamente, fazer com que cada leitor comece
a observar o mundo que nos cerca e perceba, aos poucos, que os nossos hábitos, crenças e valores não
surgiram "naturalmente", nem são eternos. A partir daí, começamos a entender que muito daquilo
que nós julgamos "verdade absoluta" não é bem assim; que a sociedade que nos cerca já foi difêrente
do que é hoje, e que pode e deve mudar ainda mais; que muitas das coisas que julgamos impróprias
não são erradas, mas apenas condenadas pelo estado atual dos valores sociais. Ao percebermos o quanto
a nossa própria consciência do mundo é manipulada por ideias que não são "verdades", mas apenas
convenções arbitrárias, nós nos tornamos mais fortes e aptos a agir positivamente no mundo em
que vivemos. Claro que isso exige certa prática, pois alguns textos podem estar justamente tentando
reforçar os valores e ide ias "consagrados" do seu tempo, exaltando os próprios preconceitos e, se o
leitor for ingênuo, pode acabar apenas aceitando o ponto de vista do texto, sem pensar sobre ele ou
discuti-lo.

COMO SURGIU

Dois dos primeiros autores a fazer um tipo de crítica que tentava mostrar as relações entre a
literatura e a sociedade foram os franceses Mme. De Stael (1766-1817) e Hyppolite Taine (1828­
1893). A primeira, já em 1800, com o livro Da literatura considerada em suas relações com as instituições
sociais, já se posiciona como uma crítica que pensa a literatura dentro do contexto social. Em De
la littérature e De l'Allemagne, estuda as características dos diferentes expoentes da literatura nos
países considerados "mais desenvolvidos" da Europa do final do século XVIII: Inglaterra, França,
Alemanha. Ela fala sobre as consequências da Revolução Francesa (1789) no pensamento europeu,
com o surgimento dos ideais de liberdade, e de como nessas sociedades pós-revolucionárias surge
um novo tipo de literatura, com características próprias. Taine já tem uma postura mais influenciada
pelo Determinismo, ou seja, a crença de que o destino de cada ser humano era determinado pelo
meio social no qual ele nasce e é criado, e por sua raça. Ele achava que a obra de um autor era
principalmente um reflexo da vida e do "momento", isto é, das condições sociais da época do
autor. No Brasil, Sílvio Romero vai fazer esse tipo de crítica, no século XIX. No século:xx, vários
estudiosos importantes vão contribuir para a crítica sociológica. O conceito de uma crítica literária
baseada nas relações entre obra de arte e sociedade já estará mais sofisticado do que na época de
Taine, e muitos dos estudiosos vão divergir entre si, alguns tendendo mais à sociologia e outros
privilegiando o fator estético-literário. Dentre eles, destacamos Gyõrgy Lukács, Mikhail Bakhtin e
Antonio Candido. Nas páginas seguintes estão alguns dos pontos mais importantes do pensamento
de cada um deles.

178 -- T E o R I A LITERÁRIA
-~c H [ r [C A S (\ C I o L Ó G I C.,

LuKÁcs

Lukács (1963) fazia uma crítica influenciada pelo marxismo, isto é,já tinha uma visão do mundo
como luta de classes e fazia um paralelo entre o desenvolvimento de certas formas literárias e o
desenvolvimento do capitalismo. Para o autor, a literatura não reflete a realidade social apenas na
descrição dos ambientes, objetos, roupas, gestos etc. (ou seja, num fluxo de detalhes realista), mas
também - e principalmente - na sua essência, na maneira com que a fábula se desenrola, n? articulação
dos mecanismos que estruturam um texto. O texto passa a refletir o todo social, a maneira como
a própria sociedade está montada e organizada. A degradação dos valores humanistas causada pelo
capitalismo está, segundo ele, revelada na literatura. Por isso, há estudiosos que colocam Ltikács numa
subdivisão intitulada "crítica marxista".
Em seu livro de juventude (publicado em 1920), Teoria do romance, Lukács (1963) começa analisando
a postura do homem em sociedades distintas. Segundo ele, a sociedade grega era do tipo "fechada",
pois dava uma explicação harmoniosa do mundo. A doença e o sofrimento podiam tirar a vida, mas não
podiam tirar o sentido da vida. Ao passar para o Ocidente, essa ideia sofreu a influência judaico-cristã
e tornou-se a cultura medieval, angustiada e cheia de dúvidas quanto ao sentido da vida. A religião era,
para o homem medieval, um refúgio necessário contra o medo que o oprimia, ao contrário db homem
grego clássico, que não precisava de urna religião oficial, pois se sentia seguro no mundo..
Partindo dessa diferenciação, Lukács (1963) analisa as diferenças entre os gêneros épico, lírico c
dramático; e, principalmente, a diferença entre a epopeia (clássica) e o romance (gênero moderno),
mostrando que as formas de cada um correspondiam à mentalidade da sociedade que originou cada
um deles. A epopéia corresponde a uma visão do mundo como um todo harmônico; o sofrimento era
parte natural e lógica desse todo, a distância entre o humano e o sagrado era reduzida, cada indivíduo era
uma parte cumprindo seu papel nesse todo, mais importante do que as unidades que o compunham.
Já o herói do romance é um herói isolado, apartado do resto do mundo. Seu destino individual, fruto
de acasos, esforços e erros, é o que importa e comove o leitor. Nesse universo, o todo não é visível nem
decifrável, e fica difícil entender se há um papel a ser cumprido ou se tudo na vida não passa de mero
acaso, sem nenhum sentido ou razão.
Tal distinção pode ser exemplificada em Édipo Rei: por mais terrível que seja o destino de Édipo, o
leitor ou espectador é conduzido a sentir que esse destino já estava marcado, que precisava acontecer,
porque havia sido determinado por forças muito superiores às humanas, pelo Fado ao qual os p'róprios
deuses do Olimpo se submetem - e que, portanto, estaria fora das mãos de qualquer humano impedir
a história. Isso fica bem claro pelos esforços de Laia, abandonando o menino às feras, e do próprio
Édipo, fugindo da casa de seus pais adotivos. Esses esforços pretendiam impedir o cumprimento da
profecia, mas apenas serviram para precipitá-lo.
Por outro lado, em Dom Casmurro, apesar da queixa final de Bentinho de que o destino quisera
que sua amada e seu melhor amigo o traíssem, o leitor sente que essa queLxa é mais retórica do que
representação de uma conformidade com o Fado. O texto, por diferentes meios, indica ao leitor que a
amargura e a solidão final do Casmurro são frutos de um desastre (a possível traição de Capitu) c dos
defeitos do próprio Bentinho, que reagiu muito mal ao fim do seu casamento.

LuKÁcs E GOLDMANN: O HERÓI PROBLEMÁTICO

Na epopeia, o mundo interior da personagem e o mundo exterior a ela eram harmônicos,


coerentes; no romance, mundo interior e mundo exterior apresentam um para o outro um
"caráter estranho e hostil" (LUKÁCS, 1963, p. 83). O herói do romance seria, portanto, um
"indivíduo problemático" (LUKÁCS, 1963, p. 87), ou seja, um indivíduo que está em luta

T!!OMt\S BONj\;"ICI / LUCIA OS,!\NA ZOIIN (nR(;ANrZA1H)f{ES) .- 179


CP' L V A

1 contra um mundo que ele não conhece completamente, nem é capaz de dominar. O processo
interno do romance seria um caminhar do indivíduo problemático para o autoconhecimento.
Se esse indivíduo alcançará a felicidade ou será aniquilado, não é tão importante. O que fica do
romance é a caminhada do protagonista pelo mundo, e o mundo fazendo com que o protagonista
aprenda mais e mais não sobre o mundo, mas sobre si mesmo. Lukács diz que "o romance é a
epopeia de um mundo sem deuses" (LUKÁCS, 1963, p. 100), isto é, é a literatura possível numa
sociedade que não tem mais certeza de que forças superiores e sábias guiam constantemente os
passos dos seres humanos. "
O trabalho de Lukács influenciou outros pensadores importantes, como Lucien Goldmann, 'que,
na Sociologia do romance (1967), estudou a história do romance enquanto gênero literário, fa~endo
uma relação entre a parte formal de um romance e a estrutura do meio social no qual esse romance
foi produzido. Segundo Goldmann, o pensamento coletivo e a criação artística têm uma homologia
de estrutura, uma semelhança na forma, e não uma identidade de conteúdo. No prólogo do seu
livro, Goldmann comenta muito bem a teoria de Lukács: o romance seria uma busca degradada de
valores autênticos, feita pelo herói problemático num mundo degradado 011 inautêntico, ou seja, num mundo
onde esses valores não são mais possíveis. Esses valores autênticos, para Goldmann (1967), não são os
valores que o leitor considera verdadeiros, mas sim os valores que, mesmo não aparecendo de forma
explícita no texto, organizam o universo criado no romance.
Para exemplificar, utilizaremos o Bentinho de Dom Casmurro. O menino Bento tem a vida pautada
por alguns valores: o amor por Capitu, a conveniência de ser o único herdeiro de uma bela fortuna, a
necessidade de não contrariar frontalmente as exigências de quem detém o poder (no caso, sua mãe).
Bento leva anos para construir uma vida organizada de acordo com esses valores, mas, após desfrutar
certa felicidade durante alguns anos, descobre - ou pensa que descobriu -que o amor não existia, seria
apenas uma ilusão. Por causa disso, toma-se amargo, rancoroso e desagradável, isolando-se dos amigos
e vendo sua vida se esvaziar e tornar-se uma aparência sem sentido.
O mais interessante na construção desse texto não é permitir ao leitor descobrir se Capitu
traiu ou não o marido; afinal, Bentinho era extremamente ciumento, e a maledicência de José
Dias já havia insinuado, quando Bento e Capitu eram jovenzinhos, que o interesse da menina
seria casar-se com um herdeiro rico. Segundo essa visão, torna-se implícita a conclusão de que o
amor verdadeiro é impossível num mundo capitalista, onde a posse dos bens materiais determina
o valor de cada indivíduo. Mesmo que Capitu fosse inocente, a sociedade em que ela vivia a faria
parecer<:ulpada na primeira oportunidade, e o próprio amor que Bentinho dizia sentir por Capitu
revelaria sua outra face: um sentimento egoísta de posse, que não perdoa a ofensa feita ao orgulho
do dono, e que chega a ponto de desejar apaixonadamente a morte de uma criança inocente,
Ezequiel, porque Bentinho julga que ele não seja seu filho, mas sim de Capitu com Escobar. Que
amor era esse?
Ao contrário da busca nobre, feita às claras, pelo herói da tragédia grega, Bentinho pensa que
buscou a felicidade a vida inteira, mas na verdade buscou a afirmação do seu poder de homem rico - e
isso o conduziu à infelicidade e à solidão mais extrema.

UJK:\CS: A passagem do gênero épico para o gênero romance é, também, a passagem do mundo grego, do
equilíbrio entre Homem e Mundo, ordenado pelo Destino, para o desequilíbrio entre Homem e Mundo,
criando o Indivíduo, solitário e cheio de conflitos.

LUKÁCS / GOLDMANN: O herói do romance é um herói problemático, procurando valores autênticos num
mundo degradado.

Quadro 1. O herói segundo Lukács e Goldmap.

180 TEOltIA LITERÁltlA


--~--~CRíTICA SOCIOL()(;ICA

BAKHTIN: DIALOGISMO E POLIFONIA

Mikhail Bakhtin (1895-1975) teve uma contribuição importantíssima para a crítica literária. Dois
de seus conceitos são a base para o trabalho de muitos outros críticos: o díalogismo e a carnavalização.
Também aparece adiante o conceito de cronótopo. Utilizaremos inicial maiúscula em "Diálogo"
e "Dialogar" quando nos referirmos ao sentido criado por Bakhtin, e inicial minúscula quando
utilizarmos o sentido tradicional das mesmas palavras.
"
O dialogismo parte do princípio linguístico segundo o qual todo ato de linguagem sempre leva
em conta a presença, ainda que invisível, de alguém para quem se fala ou escreve. Ora, ie tudo o que
se diz ou escreve é criado tendo em vista, ainda que subconscientemente, um interlpcutor,' então todo
ato de linguagem participa, mesmo que num grau pequeno, da intenção de convencer, de persuadir o
ouvinte/leitor; e também prevê, ou imagina prever, a(s) possível(is) reação(ões) desse ouvinte/leitor.
Isso constituiria um diálogo, pois o ato de linguagem já traria embutido em si próprio toda uma cadeia
de respostas, críticas e comentários do interlocutor, e já tentaria responder a essa cadeia antes de ela
ser enunciada. Bakhtin (1984) diz que, se esquecermos essa relação dialógica, o significado do ato
de linguagem desaparece, pois todo significado depende de uma relação entre quem emite e quem
recebe. Assim, não são apenas as personagens de um livro que interagem (Dialogam) entre si, mas,
quando uma pessoa lê um livro, está interagindo (dialogando) com esse livro. O autor, ao escrever,
imaginaria as possíveis críticas do leitor, e já escreveria tentando rebater essas críticas.
Para veicular suas ideias e opiniões, a personagem possui uma voz. E essa voz não é apenas ligada à
ex-pressão das ideias e valores daquele indivíduo; ela expressa valores e ideias necessariamente ligados
a uma instituição social. Tal afirmação encontra justificativa no conceito linguístico de discurso que,
segundo Benveniste (REIS; LOPES, 1994, p. 110), é o "enunciado considerado em função das suas
condições de produção", ou seja, aquilo que o talante enuncia fará sentido apenas se considerarmos
todo o contexto no qual esse falante se encontra.
Assim, a voz, tal como a entende Bakhtin (1984), expressa visões de mundo que terão sido
forçosamente tiradas do contexto sócio-histórico no qual ela se inscreve. Tais visões não são individuais;
o indivíduo toma conhecimento delas, aceita-as ou não, através do contato com as instituições, como
a família, a escola etc. Isso implica no fato de o Diálogo não acontecer apenas num nível pessoal, entre
leitor e obra; ele também acontece num plano mais amplo, onde o leitor atua como representante de
certas instituições, com suas maneiras específicas de ver o mundo, e Dialoga com a mundivisão (ou as
mundivisões) representada(s) na obra.
Bakhtin (1984), ao estudar autores russos como Tolstoi e Dostoievsky, concluiuque certos escritores
(ele usa Tolstoi como exemplo) são monolôgícos (ou "Newtonianos"), ou seja, constroem romances nos
quais todas as personagens e acontecimentos reforçam o ponto de vista do narrador, de modo que todas
as contradições, brigas, opiniões diferentes etc., parecem apenas estágios diferentes de uma evolução,
do ponto de vista do narrador. Convém reiterar que um narrador pode ser personagem ativa no livro
(narrador homodiegético ou autodiegético, antigamente chamado "em primeira pessoa"); ou pode ser
uma voz "sem corpo" (narrador heterodiegético, antigamente chamado "em terceira pessoa"), mas
existe sempre; e que o narrador não coincide com o autor do livro, portanto não se deve confundir
autor com narrador.
Lbgo, um autor monológico seria um criador de romances, os quais, do ponto de vista ideológico,
apresentam ao leitor um bloco maciço de ideias, sem brechas que permitam questionamento, ou seja,
não levam o leitor a duvidar das ideias que orientam as opiniões do narrador, em geral veiculadas
como "verdade". Um exemplo simples: assista a um filme politicamente correto como "Dança
com lobos", de Kevin Costner. Nele, os homens brancos são todos maus, corruptos, sádicos etc.; os
únicos que se salvam são os que aprendem os valores da cultura dos índios americanos. Os índios
são bons, nobres, generosos, honestos, sem nenhum tipo de defeito moral. Ou seja: tudo na cultura
do branco é mau, porque destrói a natureza e a alma; e a cultura do índio é perfeita. A personagem
principal é uma das poucas que abandonam os valores do branco, adotando os valores do índio. Como

TIIOMA' BONN'" I LUCJA OSANA ZOUN (OR(;ANIZADO".,) - 181


Cf I L V A

I a narrativa cinematográfica procura acompanhar a trajetória desse protagonista, a voz do filme está
! sempre reiterando ao espectador a "verdade" que deseja transmitir. Tomando a sequência em que o
protagonista encontra o lobo, observemos que, enquanto o homem olha o animal do ponto de vista
do branco, a fera parece ameaçadora e inimiga; em vez de matá-la imediatamente, o homem prefere
observá-la, vê-la interagir com o ambiente; a partir daí, seu olhar se aproxima do olhar do índio,
respeitando a natureza. Imediatamente, o lobo se mostra dócil e companheiro. Tal solução, embora
pouco verossímil, encontra acolhida do espectador porque reitera, de forma exagerada, a ideia de que
a cultura do nativo americano permite uma relação harmoniosa com a natureza. J

Portanto, o filme não deL'Ca espaço ao espectador para duvidar da sua "verdade". Se o lobo, f~mi~to,
atacasse o homem, e este se visse na obrigação de matá-lo para salvar a própria vida, haveri~ um
conflito entre a visão do branco e a visão do índio, pelo menos dentro da forma maniqueísta com que
o filme trata a ambas: se os brancos fossem mostrados justificando as próprias ações, não pelo prazer
em fazer o mal, mas de forma lógica e coerente, o espectador poderia continuar preferindó a cultura
indígena, mas reconheceria a inevitabilidade do conflito entre nativos e brancos. Da forma como a
ação é apresentada, porém, não existe espaço para se ouvir a voz da cultura europeia, a não ser como
rugido sádico e destruidor.
Outro exemplo, desta vez na literatura, são os contos de Nelson Rodrigues, enfeixados em 4 vida
como ela é. Tudo o que acontece nessas histórias tende a persuadir o leitor de que a classe média brasileira
dos anos 1950-60 era hipócrita, reprimida e obcecada com tudo aquilo que considerava "sujo". Isso
não quer dizer que Nelson Rodrigues não seja um bom escritor. É apenas uma característica dessa
obra. Se, no meio dos contos, surgissem personagens que representassem outras visões de mundo,
que não sucumbissem à perversão criada pela repressão excessiva, que conseguissem lidar de forma
saudável e positiva com as próprias frustrações, isso enfraqueceria o tom de denúncia da hipocrisia
social que é tão marcante nesses textos.
Já os autores polifônicos são autores que, ao colocarem falas na boca das personagens, criam a
possibilidade de que elas discordem totalmente dos valores, visão de mundo e ideologia do narrador. A
voz do narrador torna-se apenas uma entre muitas, e o desafio desse tipo de autor é, como na música,
harmonizar as vozes diferentes num todo coerente. Para Bakhtin (1984), o herói desse romance não é
um herói que lida com fatos, mas sim um herói da palavra. Exemplificando, assista a um filme como
"Entrevista com o vampiro", de Neil Jordan, no qual Louis encarna o vampiro que quer preservar
seus antigos valores humanos, e Lestat o ridiculariza, afirmando que tudo o que era humano, inclusive
as noçõe'!; de Bem e de Mal, deve ficar para trás. Quem está com a razão? Não é tão simples decidir,
mesmo sabendo que vampiros não existem e, portanto, o "dilema" do filme é uma ficção. E o filme
termina sem indicar ao espectador qual dos dois estaria "certo", porque afinal não existe um "certo" e
um "errado", mas apenas pontos de vista diferentes.
Em Os sinos da agonia, Autran Dourado inicialmente centra a narrativa no mameluco Januário, mas
depois se afasta gradualmente do rapaz, deslocando o foco narrativo para a história de Malvina e Gaspar.
Estes últimos, ricos e bem-nascidos, representam o mundo da aristocracia, seus valores, distorcidos ou não,
sua ideologia. Januário, filho bastardo, pertence a outro segmento social e vê a história desenrolar-se com
outros olhos. Quem é o verdadeiro herói do romance, J anuário ou Gaspar? Responder a essa pergunta não
é importante, mas o fato de podermos fazê-la mostra que as duas possibilidades coexistem na narrativa,
dependenélo da posição que o leitor assuma em relação à interpretação do texto.
Se observarmos, parece haver um problema de nomenclatura: "monólogo", normalmente,
se opõe a "diálogo", não a "polifonia". Mas Bakhtin (1984) usa "monológico" como oposto de
"polifônico", não como oposto de "dialógico". Talvez fosse mais lógico utilizar uma palavra como
"monofônico" ou "uníssono". Observe que o Diálogo existe sempre que alguém fala ou escreve
alguma coisa, mesmo se o escrito for o que Bakhtin chama de monológico, isto é, mesmo que
exprima uma única "verdade". Mas a polifonia existe dentro do texto quando o texto, além de
Dialogar com o leitor, que está fora do livro, traz dentro de si várias maneiras diferentes de pensar,
Dialogando internamente.

182 TEORIA LITERÁHIA


--"-~c R í T I c: A S O C 10 L Ó (; I C A

Para Bakhtin (1984), o conhecimento deve ser dialógico e polifônico, aberto para as contradições
e para receber críticas às próprias limitações, e não monológico, fechado, incapaz de ver outros lados
de cada questão.

BAKHTIN: A CARNAVALIZAÇÁO

Outro conceito fundamental em Bakhtin é o de carnavalização. Investiga ele a cult~ra popular,


especialmente nas épocas medieval e renascentista, e conclui que, juntamente. com a chamada
"alta cultura" (autores consagrados, assuntos "sérios" etc.), há uma corrente que vem desde a
antiguidade clássica, dos diálogos de Sócrates, e passa pela sátira de Menipo que, segundo Bakhtin
(SCHNAIDERMAN, 1983), é "o gênero por excelência da mistura do simbolismo elevado, das
reflexões sobre as questões últimas e do naturalismo mais grosseiro"), pelos livros de Apuleio, chega
a Boécio e às peças medievais; passa por Boccaccio e Rabelais, chega às comédias de Shakespeare,
Cervantes, Voltaire, Balzac e Hugo. Essa corrente tem como característica o fato de que a tradição,
nelas, é virada pelo avesso. A literatura dessa corrente é joco-séria, satírica, dialógica, poi!> o avesso
pressupõe o direito, ou seja, para invertermos uma série de valores, primeiro é preciso reconhecer que
essa série existe. Postular o oposto dela significa, portanto, criar uma voz que apregoa esse oposto e que
dialoga com a voz que prega os valores iniciais, os "do lado direito".
Na carnavalização há uma inversão dos valores da vida cotidiana, numa espécie de libertação
coletiva, e o poder é ridicularizado, vítima de uma espécie de "vingança" por parte do povo. Vejamos,
por exemplo, a figura do Rei Momo: em vez do rei terrível, temível, que explora o povo com
impostos e faz a guerra, é um rei obeso e simpático, que só deseja comer, beber, dançar e fazer amor. A
carnavalização, na literatura, propõe uma outra ordem do mundo, totalmente diferente daquela à qual
estamos acostumados, mostrando, através elo exemplo, que essa ordem não é natural nem absoluta,
mas apenas uma convenção, e que pode ser mudada.
A carnavalização, então, acontece quando um texto literário, de alguma forma, apresenta o chamado
"mundo às avessas", ou seja, uma inversão crítica e/ou satírica das formas tradicionais do poder estabelecido
e da organização sociopolítica da sociedade. Um bom exemplo disso sãoAç viagens de Gulliver, de Jonathan
Swift. Talvez muitos leitores só conheçam a primeira parte da obra, que narra a viagem à Lilliput, terra
de homens minúsculos, mas a obra fala de quatro viagens: a segunda teria sido até um reino de gigantes,
a terceira à Laputa, uma ilha onde o governo e a vida aconteciam dentro de uma burocracia ridícula e
intolerável, e, finalmente, a viagem ao reino dos Houyhmhnms, que eram cavalos inteligentes, vivendo
numa sociedade perfeita, honesta e tolerante; e os humanos daquelas terras eram irracionais, viviam como
animais. As quatro sociedades descritas nas viagens, na verdade, funcionam como uma espécie de metáfora
satírica da Inglaterra em que Swift ,-iveu.
Um exemplo brasileiro é l\1acunaíma, onde logo de cara se põe de cabeça para baixo o conceito
tradi.cional de "herói": Macunaíma é chamado de "herói" o tempo todo, para deixar bem claro que ele
não é um anti-herói; mas é covarde, preguiçoso, ardiloso, guloso, luxurioso, engana os próprios irmãos e
frequentemente é malsucedido em suas aventuras. Mário de Andrade não estava simplesmente querendo
escrever uma história de pícaro (personagem tradicional na literatura europeia, alguém de baixa condição
social, cujas aventuras ridículas têm como objetivo fugir da fome, do frio, enfim, dos males da pobreza).
Ele estava fazendo o leitor perceber que, para criar uma literatura tipicamente brasileira, era um bom
começo carnavalizar, virar pelo avesso algumas das tradições literárias europeias.
Na verdade, carnavalização e dialogismo não são conceitos muito distantes. Através da
carnavalização, a literatura nos mostra a Alteridade, que é todo e qualquer modo de pensar, sentir e
ver o mundo que não seja exatamente igual ao nosso. O "eu" se constrói exatamente numa relação
de oposição/complementaridade com o Outro. Enxergar o ponto de vista do Outro é uma forma
de Diálogo. Ao olharmos o Outro, primeiramente o achamos ridículo, depois incompreensível; se
CPl L V A

I formos pacientes, acabamos por descobrir que também fazemos coisas ridículas e incompreensíveis
! no nosso dia-a-dia. O que é mais absurdo: uma casta de nobres que só pode ouvir o que lhes dizem
se levarem uma pancada nos ouvidos, dada por um funcionário subalterno, ou entrar num elevador
cheio de pessoas que moram no mesmo prédio e todos fingirem estar sós, nem sequer olhando uns
para os outros, ou (.'sboçando um cumprimento? O primeiro comportamento existe na ficção de Swift;
o segundo, acontece por vezes conosco. O primeiro salta aos olhos como absurdo; o segundo, nem
sempre. Ao permitirmos o Diálogo com o Outro, acabamos por ver melhor a nós mesmos.

BAKHTIN: O CRONÓTOPO

Bakhtin também tratou do conceito de cronótopo, que seria, por um lado, "a conectividade intrínseca
das relações espaciais e temporais que são expressas artisticamente na literatura" (HOLQUIST, 1991, p.
109); nesse nível, o cronótopo é um pouco abstrato. Ele é a ideiade que, dentro da literatura, não se
pode criar um tempo sem criar, simultaneamente, um espaço, e vice-versa. Tomemos o poema do tipo
"No meio do caminho", de Carlos Drummond de Andrade, que tem um espaço, representado' pelo
meio do caminho. Mas esse caminho pode ser interpretado como metáfora da vida, da mesma maneira
que fez Dante na Divina comédia; então, o espaço (caminho) deixa de ser espaço para se tornar tempo
vivido. Isso poderia constituir um problema: como é que, simplesmente, espaço torna-se tempo e
vice~versa? Se aceitarmos o conceito de cronótopo, não existe o problema: tempo e espaço ficam sendo
duas faces da mesma moeda. O cronótopo, ao pressupor uma relação necessária entre tempo e espaço,
faz com que as duas maneiras de ler a expressão "no meio do caminho" funcionem logicamente de
modo complementar.
Quando se observa como a relação espaço/tempo foi criada dentro de um determinado texto,
pode-se perceber que essa relação espaço/tempo vai ser fundamental para mostrar que tipo de texto é
esse. Como exemplo, Bakhtin (1984, p. 109) fala da estrutura do "romance de aventura e provação"
(adventure novel of ordeal): após uma catástrofe inicial (a noiva é raptada por piratas, por exemplo), o
herói passa por mil provações diferentes até reconquistar a felicidade. Há inúmeras variações das
aventuras pelas quais o casal de apaixonados deve passar, mas o cronótopo desse tipo de romance tem
um tempo "vazio" e um espaço "abstrato", ou seja, não importa quantas aventuras diferentes sejam
vividas, o herói não muda, não envelhece nem se torna mais sábio; é como se o tempo não passasse. E
o espaço não precisa ser definido: se os piratas fogem pelo mar, pode ser qualquer mar. As aventuras
poderiam se passar em qualquer lugar.
Comparemos isso com um romance do tipo Dom Casmurro: Bentinho muda ao longo dos anos.
De menino ingênuo torna-se adolescente apaixonado, depois marido ciumento. Pouco a pouco, as
experiências vividas tornam-no amargo, desiludido, cínico, frio: Casmurro. O espaço da casa materna,
cheia de agregados, onde se podiam escutar as conversas dos adultos, vai revelar ao menino Bentinho
o amor por Capitu e trazer, logo no início do romance, as primeiras insinuações maldosas sobre o
caráter da menina. O fato de Capitu morar na casa ao lado da de Bentinho, com o famoso muro que
ora serve ,para separá-los, ora para uni-los (como quando Capitu escreve os nomes de ambos), ora
para protegê-los, sendo vigiado o espaço em que ambos se encontravam, também é importantíssimo.
Temos, portanto, um texto onde o tempo passa e deixa marcas profundas nas personagens, e onde o
espaço também é fundamental para determinar os acontecimentos.
E como poderíamos descrever o espaço em Dom Casmurro? Que tal "urbano, burguês e
oitocentista"? Ora, "burguês" diz respeito a uma classe social que está ligada a uma determinada época.
Seria inadeqUldn di7~, que o palácio de um rei grego de 4.500 a.c. é "burguês" pelo fato de o palácio
;cr iuxuoso. E "oitocentista", isto é, do século XIX, também está mais ligado à ideia de tempo do que
de espaço. Percebe-se, portanto, que o conceito de cronótopo é útil, pois permite enxergar o quanto
tempo e espaço são ligados no texto literário.

184 - T E o R I A LITERÁRIA
----~ c: R i T I c.~ s O C I O L 6 G I C A

Por outro lado, o cronótopo também poderia ser entendido como

uma unidade da análise Iwrratiua, lIma llgura de tempo/csp:lço típICa de certas tramas (P/ots)
hIstorIcamente dadas. Nesse nível, o cronótopo seria um tipo de estrutura recorrente,
muito pouco dIferente daqUIlo que os formalistas russos chamavam de mecanismo (device)
(BAKHTIN, 1984, p. 110)_

Nessa maneira mais limitada de entender o conceito, o cronótopo seria uma espécie de matriz,
uma forma mais ou menos padronizada, que teria um número determinado de variaçÕes,possíveis
e seria aplicável, na qualidade de estrutura, a qualquer texto narrativo. Isso se aproxima daqueles
conceitos dos formalistas russos (Capítulo 5), que tentavam criar descrições de todos os tipos possíveis
de estrutura do texto, mostrando que todo texto ohedece a um padrão estrutural predeterminado,
e que as inovações devem levar em conta a estrutura padrão que caracteriza o gênero literário e sua
história. O tipo de cronótopo do gênero romance seria, então, totalmente diferente d~ da poesia épica.
E um texto nunca teria um único cronótopo, mas vários. Partindo disso, Bakhtin escreveu um texto,
publicado em 1973, que é uma tentativa de classificar uma série de cronótopos que tenderiam a repetir­
se em culturas diferentes (o da Estrada, o do Julgamento, o da Cidadezinha Provinciana etc.). Mas essa
classificação é objeto de estudos e polêmicas.

Dialogismo. Todo ato de linguagem ( um diálogo, pois leva em conta um receptor, ainda que apenas
Imaginário, e suas possívos reações.
Carnavalização. "Mundo às avessas", recurso de origem popular que, ao apresentar para o leitor uma ordem
social invertida, faz com que ele reflita sobre a ordem social que conhece no mundo real.
Cronótopo. Conjunto de relações necessárias entre o espaço e o tempo na obra de arte literária.
Quadro 2. Conceitos bakhtinianos.

ANTONIO CANDIDO: CRÍTICA SOCIOLÓGICA É CRÍTICA LITERÁRIA

No prefacio de Literatura e sociedade, Antonio Candido (1985) explica que a crítica sociológica
deve mostrar os elementos sociais como constituintes da estrutura, e não da superfície, do texto.
Parafraseamos aqui o exemplo escolhido por ele: no romance Senhora, José de Alencar mostra
dimensões sociais evidentes: uma referência a um lugar, uma moda no vestir, um costume qualquer.
Isso é óbvio e não constitui atividade crítica.
Além dessas dimensões evidentes, o tema do livro é um tema social: a compra de um marido.
Notar isso e enxergar como o romance desmascara uma situação social que era rotineira na época,
o casamento por dinheiro, já é interessante, mas ainda não é crítica literária, pois ainda não fizemos
a ponte entre a forma, a estrutura do livro e a temática social. Dizer algo como "o casamento por
dinh~iro não era incomum no Brasil do século dezenove, vejam o caso de Senhora", não é fazer crítica
literária: é fazer sociologia usando o texto para dar exemplo.
Então, ele pede que observemos a composição de Senhora. O livro é, afirma Candido, uma "espécie
de longa c complicada transação - com cenas de avanço e recuo, diálogos construídos como pressões
e concessões" (CANOIDO, 1985, p. 6), cada lado, representado por um dos personagens, cedendo
e depois endurecendo, os dois protagonistas (Aurélia, a mulher-compradora, e Seixas, o marido­
comprado) obcecados pelo ato da compra. Essa transação seria uma espécie de representação literária
do mecanismo de compra e venda. É como se, ao organizar os capítulos, o autor estivesse tentando
representar literariam~nte uma negociação entre dois capitalistas.
(f! L V A

Isso funciona, dentro do livro, para mostrar que uma relação que deveria basear-se em princípios
mais nobres (o amor) torna-se degradada e insuportável, quando baseada no interesse econômico, e o
único resgate possível dessa degradação é a volta do princípio nobre. Quando Seixas compra de volta
sua liberdade e Aurélia cai de joelhos aos pés do marido, declarando sua paixão, ambos reconciliam-se
e o livro termina num final feliz.
Esse terceiro momento já é uma análise que mostra como o tema social entrou na estrutura do
romance, e é esse tipo de análise que Candido (1985) privilegia, pois ela tem a questão estética e
literária como ponto principal e como objetivo. ..
Ele também deixa claro que a crítica sociológica não deve ser fechada; o crítico deve kva; em
conta as possibilidades psicológicas, religiosas, linguísticas etc., que enriquecem a interpr~tação
do texto.

A RELAÇÃO ENTRE OBRA E SOCIEDADE

Candido (1985) entende que a arte tanto é influenciada pela sociedade quanto a influencia. A
influência da sociedade na obra aparece tanto na superfície do texto (descrição de casas, roupas, hábitos
etc.) quanto na caracterização das personagens (sua psicologia, seus preconceitos, ambições etc.) e
na estrutura profunda do texto (como vimos em Lukács, 1963 J, que mostra que a sociedade grega
clássica possuía um gênero literário característico, a épica; e que, quando a cultura ocidental chegou à
Idade Média, esse gênero já não correspolldia ao modo de o homem medieval ver e sentir o mundo,
e foi transformado no romance). A influência da obra na sociedade acontece porque os indivíduos
que leem o texto recebem dele certa influência que pode traduzir-se na prática, mudando de alguma
maneira o comportamento desses leitores. Essa influência vem de dentro do livro, e não depende de o
autor ter ou não ter tido consciência e/ou intenção de produzir esse efeito.
Candido (1985) também propõe uma subdivisão possível das obras literárias em dois grupos: arte
de agregação e arte de segregação. A primeira seria um tipo de arte que se inspira "na experiência coletiva
e visa a meios comunicativos acessíveis" (CANDIDO, 1985, p. 23). Isso significa que essa arte quer
ser compreendida pelo maior número possível de leitores, e toma cuidado para não inovar demais,
principalmente no campo formal, porque o leitor médio tende a não gostar de novidades que não
sejam superficiais.
Explicando: se um indivíduo, por exemplo, aprecia a leitura de romances "para mocinhas", esse
leitorjá espera encontrar elementos conhecidos numa trama repetida: o mocinho e a mocinha, um amor
verdadeiro impedido por diferenças sociais, brigas familiares ou intrigas de rivais; desentendimentos,
sofrimento e,ao final, a vitória do sentimento nobre sobre as dificuldades. Na superfície, pode haver
muitas variações: ora a mocinha é pobre e o mocinho rico, ora vice-versa, a ação se passa em Pernambuco
ou em Katmandu, a mocinha pode engravidar e abortar num acidente ou permanecer virgem até o
casamento etc. Mas se houver uma mudança radical na ideologia (por exemplo, o mocinho casar
com a mocinha no antepenúltimo capítulo e o casamento se revelar um desastre apesar do amor,
terminando em divórcio no último capítulo, um ano depois), o leitor provavelmente vai rejeitar a
obra. Se a linguagem da história for muito experimental, o leitor também vai encontrar obstáculos,
considerando o texto "difícil".
A arte de segregação é a arte que está preocupada em inovar o sistema simbólico. Por sistema
simbólico, entenda-se todo um complexo de esquemas e estruturas que já estão incorporados ao
imaginário coletivo. E isso pode acontecer tanto na forma quanto no conteúdo. Um exemplo de
conteúdo: um jovem medíocre acorda um belo dia transformado num inseto gigante. Não se apavora,
não grita, não procura uma explicação. Sua família, em vez de ficar histérica, trata de escondê-lo,
trancando-o no quarto. Agem como se a transformação fosse uma vergonha, um embaraço, mas

186- T E o R I A LITERÁRIA
-~c R í T I C A S () C I O L Ó G I C A

jamais se perguntam o que foi que houve. Depois de algum tempo, o inseto morre. A família fica feliz
c aliviada. Não há a menor explicação para os acontecimentos. Essa é, resumidamente, a trama de A
metamorjóse, de Franz Kafka. Ora, nas estruturas mais difundidas no imaginário coletivo, quando uma
personagem sotre urna transformação mágica, procura imediatamente descobrir do que e por que foi
vítima, e reverter para a forma humana. Tal estrutura corresponde, entre outras, à de alguns contos de
fadas, onde a vítima do encantamento deseja, sobretudo, reverter para a forma humana. Toneladas de
papel e tinta já foram gastas para tentar "explicar" as reações de Gregor Samsa e sua família.
Da Illesma forma, já estamos acostumados com algumas maneiras de expressão e algumas
estruturas textuais. Por isso é que tantos leitores pensam que Guimarães Rosa é "difícil". Ainda hoje
a sua linguagem é criativa, quando comparada à média. A "arte de segregação" vai tent~r quebrar as
nossas expectativas de encontrar algo já conhecido, apresentando novidades, e isso logicámente faz
com que ela tenha menos leitores, pelo menos até que os novos esquemas que ela propõe comecem a
ficar conhecidos e sejam absorvidos no nosso imaginário, no nosso sistema simbólico. A metamoifose,
por mais chocante que seja, já foi consagrada.

A relação entre obra literária e sociedade deve ser investigada na estrutura que compõe o texto, não em
sua superfície.
A relação é dialética, sociedade influenciando a obra, que por sua vez influencia a sociedade, num equilíbrio
dinâmico.
As obras "de agregação" procuram ficar dentro do sistema simbólico já conhecido pela massa dos leitores. A
obra "de segregação" é a que deseja inovar, de algum modo, o sistema simbólico de uma cultura.

Quadro 3. Conceitos propostos por Candido (1985).

PROBLEMAS DA CRÍTICA SOCIOLÓGICA

O próprio Candido aponta bem para o maior problema da crítica sociológica: é a tendência que
algUns críticos, especialmente da linha marxista, adquirem de se prender demais aos aspectos sociológicos,
tentando explicar a literatura não como também produto de uma sociedade, mas como apenas produto de
uma sociedade, fechando os olhos para uma série de outras possibilidades de leitura. Assim, esse crítico
"viciado" em sociologia poderia ver-se incapaz de explicar fenômenos comuns na literatura. Por exemplo:
para um crítico que só se preocupa com os aspectos históricos e sociais, os contos de fadas não são "boa"
literatura, pois são histórias de origem popular, comprometidas com uma época de repressão, a Idade
Média, onde o senhor feudal tinha direito divino sobre todos e o servo não tinha direito nenhum. Por isso,
a mensagem, repetida sempre nos contos de fadas, de que a criança "virtuosa" (boa, obediente, paciente,
aceitando a tutela dos adultos, religiosa etc.) seria recompensada, era vista corno apenas urna tentativa de
passar adiante esses valores de submissão.
Ora, corno isso explicaria o permanente sucesso dos contos de fadas? O crítico que imaginamos
não saberia responder e talvez se limitasse a lamentar o fato. Bettelheim (1978), um psicanalista
estudioso de literatura, notou que muitas das imagens marcantes dos contos de fada tradicionais são
imagens que falam ao inconsciente do ser humano, acalmando os medos básicos da criança (medo de
morrer de fome, de ser abandonada, de não ser amada etc.), garantindo-lhe, de forma simbólica, que
essas ameaças podem ser enfrentadas e vencidas. Uma crítica psicanalítica, portanto, respondeu a uma
pergunta que a crítica sociológica não teria sabido responder.
Eis por que Candido (1985) declara que, embora seja válido que o crítico privilegie o(s) aspecto(s)
da crítica com 0(5) qual(is) mais se identifica, ele não deve se fechar para outras tendências.

THOMI\S B{)NNIC! / LUl'l!\ OSAN!\ ZOI.IN (ll]«;ANIZAPUHES) - 187


'f""'
IREFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Problems on Dostoevsky's poetics. Minneapolis: University ofMinnesota Press, 1984.

BARBÉRIS, P. La sociocritique. In: BERGEZ, D. (Org.) lntroduction aux méthodes critiques pour l'analyse littéraire.

Paris: Dunod, 1996, p. 121-153.

BETTELHEIM, B. Psicanálise dos contos defada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

CANDIDO, A. Literatura e sociedade. S. Paulo: Editora Nacional, 1985.

GOLDMANN, L. Sociologia do romance. Rio: Paz e Terra, 1967.

HOLQUIST, M. Dialogism: Bakhtin and his world. London/New York: Routledge, 1991.

LUKÁCS, G. Teoria do romance. Tradução Alfredo Margarido. Lisboa: Presença, 1963.

REIS, Co; LOPES, A. M. Dicionário de narratologia. Coimbra: Almedina, 1994.

SCHNAIDERMAN, B. Turbilhão e semente: ensaios sobre Dostoievski e Bakhtin. São Paulo: Duas Cidades,

1983.

188 - T E o R I A L I T E R Á R I A
ESTÉTICA DA RECEPÇÃO

Mirian Hisae Yaegashi Zappone

CARACTERIZAÇÃO GERAL E INSERÇÃO mSTÓRICA DA ESTÉTICA DA RECEPÇÃO

o que fazemos ao ler ou que processos desencadeiam-se quando lemos? Essa é uma pergunta que
teóricos de diversas áreas de conhecimento têm se preocupado em responder. Dos estudos cognitivistas, aos
linguísticos e até históricos, a leitura enquanto processo, habilidade e atividade social ou coletiva tem sido
vastamente estudada, como comprova farta bibliografia sobre o tema. Embora a relação leitura e literatura
scja bastante evidente, o campo dos estudos literários só passou a tematizá~la a partir das primeiras décadas
do século XX e, de fonna mais sistemática, a partir da década de 1960. Pode-se dizer que esse interesse é
tributário, em grande parte, do redimensionamento das noções de autor, de texto e de leitor.
Com relação ao autor, assistiu-se à sua morte nas últimas décadas: ele morreu enquanto entidade
"detentora do sentido" do texto que escreve. Embora seja o produtor do texto, ou seja, aquele que articula
linguisticamente ideias, sentimentos, posições, entende-se, hoje, que ele não controla o(s) sentido(s) que
sua produção pode suscitar. O autor não é mais considerado o "dono" do sentido do texto nem pelos
leitores, nem pelos responsáveis por editar ou transformar um original em objeto que vai ser lido.
O texto, por sua vez, desvencilhou-se das amarras estruturalistas/funcionalistas que atribuíam
exclusivamente à textualidade as chaves para a interpretação de uma obra. A partir de novas abordagens
da linguagem (pragmática, teoria da enunciação, análise do discurso), que passaram a considerar mais
enfaticamente a relação linguagem-sociedade, o texto deixou de ser mera organização linguística que
"carrega" ou que "transmite" pensamentos, informações ou ideias de seu produtor.
A linguagem passou a ser entendida, nos estudos linguísticos contemporâneos, como incapaz de
traduzir todas as intenções do falante. Tal concepção de linguagem influenciou a caracterização do
texto como estrutura cheia de lacunas e de não-ditos.
Óra, se o texto já não diz tudo, nem scu autor é o dono de um scntido para ele, o leitor tcm sido
considerado peça fundamental no processo de leitura. Seja individualmente, seja coletivamente, o
leitor é a instância responsável por atribuir sentido àquilo que lê. A materialidade do texto, o preto no
branco do papel só se transformam em sentido quando alguém resolve ler. E, assim, os textos são lidos
sempre de acordo com uma dada experiência de vida, de leituras anteriores e num certo momento
histórico, transformando o leitor em instância fundamental na construção do processo de significação
desencadeado pela leitura de textos (sejam eles literários ou não).
E é esse lcitor, com novo status, o principal elemento da Estética da Recepção. Embora com
nuanças diferenciadas, pode-se dizer que o princípio geral das várias vcrtentes da Estética da Recepç~o
!~A P P o N E

,i é recuperar a experiência de leitura e apresentá-la como base para se pensar tanto o fenômeno literário
! quanto a própria história literária. Em suma, trata-se de uma estética fundada na experiência do leitor
(saliente-se que a palavra leitor tem diferentes sentidos para os diversos representantes da estética da
recepção), como se verá com mais detalhes adiante.
Como já se disse, o interesse pela leitura e pela figura do leitor como elementos importantes
para se pensar a caracterização da literatura é fato bastante novo. Ao comentar sumariamente
o desenvolvimento da moderna teoria literária, Eagleton (1989, p. 80) sugere três grandes fases: a
primeira, marcada pelos modelos da crítica romântica, que teria vigorado até meados do século XIX,
e cuja tônica residia nos estudos biognificos do autor, sendo a obra literária o fruto de uma genialidade. O
segundo momento estaria delimitado às primeiras décadas do século XX e seria marcado pela excessiva
preocupação com o texto, como se pode notar nas tendências tanto do Formalismo (ênfase nas estrãtégias
verbais que faziam de um texto literatura) quanto do New Criticism (ênfase nas relações entre os
traços linguísticos e as consequências destes no sentido do texto, uso de técnicas de leitura'cerrada dos
textos). O terceiro momento abarcaria certas tendências mais contemporâneas de estudos literários
que privilegiam a figura do leitor, como a Estética da Recepção em suas várias vertentes.
Como sugere a proposta de desenvolvimento da teoria literária de Eagleton (1989), cada um dos
elementos envolvidos na leitura desempenhou certa influência sobre os modelos teóricos que se preocuparam
com o estudo da literatura: primeiramente o autor, posteriormente o texto e, finalmente, o leitor. •
Essas mudanças teóricas, normalmente, são decorrentes do desenvolvimento de modelos
filosóficos que proporcionam novas formas de ver a realidade e o mundo. O advento da Estética
da Recepção como um modelo teórico de leitura/interpretação do texto literário e de elaboração da
história literária está diretamente relacionado a uma dessas mudanças, cujo centro de irradiação parece
ter sido a Fenomenologia.
Em linhas muito gerais e sumárias, a Fenomenologia surgiu dos trabalhos desenvolvidos, no
começo do século xx, pelo alemão Edmund Husserl (1859-1938). Ele propunha que se repensasse
o problema da separação entre sujeito e objeto, consciência e mundo, enfocando-se a realidade
fenomênica dos objetos ou, em outras palavras, a maneira pela qual os objetos e a realidade são
percebidos pela consciência. A base do método fenomenológico de Husserl consiste em ver todas as
realidades como puros ftnômenos, ou seja, a partir do modo como elas se apresentam em nossa mente.
A fenomenologia consiste num método filosófico na medida em que procura questionar as próprias
condições que tornam possível qualquer forma de conhecimento. O conhecimento é possível quando
se compreende um fenômeno qualquer de maneira total e pura, o que para Husserl significava
apreender dele o essencial e o imutável.
A chave básica de ligação entre a Fenomenologia e a Estética da Recepção é explicitada por Eagleton:

Se a fenomenologia assq,'1lrava, de um lado, um mundo cognoscível, por outro estabelecia


a centrahdade do sujeito humano. Na verdade, ela prometia ser nada menos do que uma
ciência da própria subjetividade. O mundo é aquilo que postulo, ou que "pretendo"
postular: deve ser apreendido em relação a mim, como uma correlação de minha consciência
(EAGLETON,1989, p, 63),

Trazendo tais considerações para o campo da literatura, um texto seria um puro ftnômeno se se
apreenddse sua essência, o que só poderia dar-se através da experiência de um sujeito, ou seja, de um
leitor. Pensando na experiência da leitura, a obra literária seria aquilo que é dado à consciência do leitor.
No sentido dessas considerações de Husser!, o texto literário não seria uma realidade independente
de uma consciência que o percebesse. Ele só seria um texto literário mediante uma consciência que o
experienciasse, e tal experiência só seria propiciada mediante a atuação de um leitor.
Um fenômeno, qualquer que seja, é afetado pela percepção que dele tem aquele que o apreende por
meio da consciência e, claro, da própria subjetividade. Nesse sentido, ler é, também, criar o texto. Por
isso, pode-se afirmar que as raízes da Estética da Recepção situam-se em princípios da fenomenologia e
que as vertentes da Estética da Recepção são uma espécie de fenomenologia direcionada para o leitor.

190 -- T E o R I A LITEHÁRIA
~ESrElICi\ DA RECEPçAo

ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E OUTRAS TEORIAS BASEADAS NO ASPECTO RECEPCIONAL

Representando, pois, um dos diversos ramos da moderna teoria literária, as teorias orientadas para
o aspecto recepcional valorizam a figura do leitor, fazendo da leitura ou dos mecanismos ou atividades
que ela pressupõe uma forma de desvendamento do texto literário e de compreensão da literatura e de
sua história. Muitos são os autores que discorreram sobre a literatura a partir do enfoque recepcional:
Roman Ingarden, com seu A obra de arte literária, de 1931, Roland Barthes em O prazer do toçto, de 1937,
Hans Robert Jauss com A história da literatura corno desC!{io à (eoria literária, de 1967, Umbe;to -Eco com
Leitura do texto literário, de 1979, Wolfgang Iser com O ato da leitura: uma teoria do ifeito estético de 1976,
Stanley Fish com 1s there a text in this class? (1980), Robert Escarpit com o seu Sociologia da literatura, de
1958 e, mais atualmente, trabalhos como A ordem dos liL'ros, de 1992, Práticas de leitura, de 1985, e outros
estudos produzidos por Roger Chartier.
O que esses autores têm em comum, efetivamente, é o foco a partir do qual estudam a literatura,
o de sua recepção, pois se por um lado podem ser colocados sob a rubrica de autores de uma teoria
recepcional, por outro seus pontos de vista sobre o que enfocar da recepção parecem ter suas particularidades.
Esses diferentes olhares sobre a recepção de um texto literário ganharam status de vertentes da Teoria da
Recepção.
Deve-se ressaltar que o título deste capítulo foi escolhido em razão de ser esta a rubrica sob a qual
mais frequentemente se valoriza a figura do leitor, e que a expressão Estética da Recepção relaciona-se
de modo específico às ideias formuladas por Hans Robert Jauss, o mais importante representante
das teorias orientadas para o aspecto recepcional. Tendo em vista essa informação, para o objetivo
deste item, seria melhor pensar em Teorias da Recepção, ou seja, aquelas abordagens teóricas que
propõem a figura dos receptores/leitores e mesmo o ato da leitura como elementos fundamentais para
a caracterização do fato literário.
Nesse sentido, podem-se divisar três linhas de abordagem das Teorias da Recepção:
1) Jauss (1978; 1994) aparece como um dos autores mais exponenciais e mais significativos entre
os que colocam o leitor e a leitura como elementos privilegiados nos estudos literários. As ideias
de Jauss são particularmente conhecidas sob a rubrica de Estética da Recepção. Além de pensar o
caráter artístico de um texto em razão do efeito que este gera em seus leitores, Jauss também
propõe uma nova abordagem da história literária pautada também no aspecto recepcional. Sua
proposta de história literária articula tanto a recepção atual de um texto (aspecto sincrônico)
quanto sua recepção ao longo da história (aspecto diacrônico), e ainda a relação da literatura
com o processo de construção da eÀ-periência de vida do leitor. Jauss reivindica que se tome
como princípio historiográfico da literatura o modo como as obras foram lidas e avaliadas por
seus diferentes públicos na história.
2) Outra vertente da teoria recepcional, o Reader-Response Criticism, desenvolveu-se mais nos domínios
norte-americanos. Seus representantes mais difundidos em nosso meio são Stanley Fish (1980),
Jonathan Culler, e seu representante alemão, Wolfgang Iser (1999). O que esses teóricos têm em
comum parece ser o fato de pensarem mais especificamente nos ifeitos que os textos desencadeiam
em seu leitor. Contrapondo-se radicalmente à ideia de que o texto é uma estmtura de onde emana
um sentido, esses autores consideram que o texto só ganha existência no momento da leitura e os
., "resultados" ou "efeitos" dessa leitura são fundamentais para que se pense seu sentido.
3) Também caracterizada como uma teoria recepcional, a Sociologia da leitura tem um sotaque
eminentemente gaulês, como o provam a maioria de seus representantes, capitaneados por
Robert Escarpit (1969), um dos autores pioneiros, a quem se seguiram outros como Roger
Chartier (1996; 1999) e Pierre Bourdieu. O texto de R. Escarpit, Sociologia da literatura, de
1958, já traz as indicações principais da direção que seguem esses estudos de recepção. Para
esses autores, o estudo da literatura é feito por via dos elementos que dão base e sustentação
para que ela exista, a saber, o público (leitores), o próprio livro e a leitura. Escarpit entende a
literatura não a partir de se,:s elementos textuais, mas como um tipo de leitura que é feita por

TlltJM," BONNlt:I / L'';ClA OSANA ZOIIN (Ol«;ANIZA[)"HES) - 191


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,l gratuidade e que permite a evasão, o que exclui de suas pesquisas o aspecto estético. Interessa­
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se, também, por todos os circuitos que envolvem o livro (sua produção na esfera do autor, do
editor, sua distribuição e circulação). Chartier, por sua vez, volta-se mais especificamente à
história do livro e da leitura, privilegiando o aspecto das "apropriações" que os leitores fizeram
dos textos, a história da leitura, bem como a "materialidade" dos textos enquanto aspecto que
exerce influência direta sobre a(s) leitura(s) que se pode(m) fazer de um texto.

JAUSS: NOVA HISTÓRIA LITERÁRIA BASEADA NA ESTÉTICA DA RECEPÇÃO

A inserção de Hans Robert Jauss no cenário da moderna teoria literária deu-se em 1967, quando,
em uma palestra na Universidade de Constança, na Alemanha, criticou severamente a teoria literária
anterior e contemporânea a ele. J auss tece várias considerações sobre essa teoria e historiografia literárias.
Embora seja uma forma de história, a historiografia literária não consegue abarcar o aspecto histórico
tal como Jauss o compreende, ou seja, diferentemente de um mero encadeamento cronológico de
obras e autores.
Vejamos com mais detalhes: Jauss considera que as histórias da literatura em geral, nas suas formas
mais habituais, embora tentem fugir desse encadeamento cronológico de autores e obras, sempre
acabam limitando o aspecto histórico à cronologia. Muitas vezes, acusa ele, tais projetos historiográficos
eram disfarçados, tentando-se escamotear o dado cronológico, pressuposto como histórico, através de
outras justificativas para o encadeamento de obras e autores. Uma dessas tentativas de escamotear-se
esse aspecto cronológico foi considerar como "nexo" ou ponto comum para a reunião dos textos ora
a identidade nacional, ora a continuidade da herança da Antiguidade (a semelhança com os clássicos),
tentando-se buscar sempre aquilo que, nos textos literários, não se modificava. Entretanto, para Jauss,
mesmo levando em conta esses outros fatores, o que persistia nesses modelos historiográficos ainda
era a ordenação cronológica, considerada como seu aspecto de historicidade.
Para Jauss, essas correntes de historiografia enfrentavam um dilema: o da conclusão e do avanço
da história, pois, baseando-se nos critérios da mera ordenação cronológica, "o historiador da literatura
limita-se à apresentação de um passado acabado [ ... ] e, apegando-se ao dnone seguro das 'obras­
primas' f permanece ele o mais das vezes, em sua distância histórica uma ou duas gerações atrasado em
relação ao estágio mais recente do desenvolvimento da literatura" UAUSS, 1994, p. 8).
O que Jauss procura mostrar é que a qualidade ou o valor de uma obra literária não podem ser
medidos ou apreciados nem a partir das condições históricas ou biográficas de sua origem nem do
lugar que ela ocupa no desenvolvimento de um gênero. Para ele, a qualidade e a categoria estética
de um texto vêm "dos critérios de recepção, do efeito produzido pela obra e de sua fama junto à
posteridade" UAUSS, 1994, p_ 7).
Nesse sentido, sua crítica atinge também duas importantes orientações dos estudos literários, o
Formalismo (método imanentista) e o Marxismo (sociologia da literatura). Para Jauss, os estudiosos
dessas duas linhas teóricas também tentaram formular explicações metodológicas para esclarecer a
sucessão -histórica das obras literárias. Ou seja, tentaram formular critérios para considerar um texto
como fato literário e, assim, explicar a sucessão histórica. Segundo Jauss, ambas falharam em seu
intento.
A sociologia da literatura, baseando-se numa concepção marxista de arte, reduziu, segundo
Jauss, a literatura a mero reflexo de estruturas sociais. Assim, para a teoria literária marxista, o grau
de importância de uma obra era medido em razão do espelhamento que essa obra fazia da realidade e
do processo social. Tratava-se, portanto, de uma estética da representação, pois tinha como princípio
a identidade entre a forma do texto e a realidade social a que ele se referia. Uma história da literatura,
segundo esses princípios, selecionaria as obras que melhor tivessem representado as estruturas

192 _.~ T E o R I A LITERÁRIA


-~.".-~ESTÉT[C:A DA RECEPÇÃO

sociais bem como a luta de classes. Para Jauss, essa forma de conceber a literatura ocasionou um
grande problema: como, então, se poderia ver a literatura moderna que transgrediu e subverteu
os procedimentos miméticos (representação e espelhamento da realidade) e buscou exatamente
romper com eles? Essa é uma pergunta a que o método de Jauss procurará responder, como se verá
adiante.
O Formalismo, por sua vez, é visto porJ auss como um método que desconsiderou as condicionantes
históricas da literatura, entendendo-a como uma estrutura autônoma, cujo valor, como propõe a
famosa fórmula utilizada por Chklovski, residiria na soma de todos os procedimentos artísticos que a
compõem e que seriam capazes de desautomatizar a linguagem (CHKLOVSKI, 1971, p. 41-43). Ora,
se o texto literário possui uma organização estrutural, uma série de procedimentos singuLtres, ele só
será considerado arte se puder ser percebido por alguém. Nesse sentido, também os formalistas levam
em consideração o aspecto recepcional, pois o leitor precisa desvelar o procedimento, perceber a forma
como uma criação que se contrapõe a modelos e formas já automatizadas. Ao consíderar o aspecto
recepcional, os formalistas tiveram que retomar à questão da historicidade, pois perceber um objeto
como diferente ou mesmo como contraposição a outros modelos implica levar em consideração outras
formas de arte ou de procedimentos anteriores a esse objeto. Nas palavras de Jauss, "a interpretação
deve levar em conta também a sua relação com outras formas existentes anteriormente a ela. Com isso,
a escola formalista começou a buscar seu próprio caminho de volta rumo à história" GAUSS, 1994,
p. 19).
A saída formalista foi elaborar a ideia de sistemas estético-formais que se sucederiam: os textos
canonizados de uma época acabariam sendo automatizados e novas formas desautomatizadas surgiriam,
ocupando o lugar das anteriores, de forma sucessiva.
Embora ambas as teorias (sociológica e formalista) tivessem tentado resolver o dilema entre
história e estética, para Jauss nenhuma delas conseguiu. Vejamos um resumo dos posicionamentos
dessas duas teorias sobre o caráter estético e histórico da literatura e, posteriormente, a proposta de
Jauss:

o caráter estético dos textos reside nos o "nexo" ou a relação histórica de uma obra
procedimento5 desautomatizados que o texto com outra é feito através da sucessão de obras
pode trazer em oposição aos procedimentos canônicas que deixam de sê-lo quando surgem
já automatizados. obras novas com formas que desautomatizam
Teoria a perceptibilidade das formas antigas,
formalista substituindo-as. A "evolução" literária situa­
se no pêndulo entre automatismo e inovação
e constrói-se através ou por meio da oscilação
entre convencionalismo e tradição e ruptura e
afirmação de novos modelos.

o caráter estético dos textos está em seu A sucessão ou história literária é observada sob
poder de reprodução da realidade e do proces5o o nexo ou relação entre as obras que melhor
5ocial. A literatura, enquanto aspecto da espelharam a realidade social, valorizando-se,
superestrutura, refletiria a infra-estrutura nos textos, o seu caráter mimético, concebido
Teoria (condições político-econômicas de a partir de uma noção de verossimilhança
sociológica produção) num percurso dialético entre afeita ao Realismo do séc. XIX. Tal critério
"mostrar" e "ocultar", o que caracterizaria de historização exclui todas as estéticas que
a ideologia do texto e também a função não se valem do caráter mimético, como, por
ideológica que ela cumpre num dado exemplo, o Modernismo.
momento e numa dada sociedade.

Quadro 1. As teorias sociológica e formalista e o dilema entre história e estética.


~' , , o N ,

1 A proposta de Jauss ou a saída para o dilema de como Ulllr em um só aspecto a estética e a história
i vem da incorporação de uma dimensão pouco trabalhada pelos estudos literários até então: a dos
leitores, dos espectadores ou do público.

Considerando-se que, tanto em seu caráter artístico quanto em sua historicidade, a obra
literária é condicionada primordialmente pela relação dialógica entre literatura e leitor,
[ ... ] há de ser possível, no âmbito de uma história da literatura, embasar nessa mesma
relação o nexo entre as obras literárias. E isso porque a relação entre literatura e leitor possui
implicações tanto estéticas quanto históricas OAUSS, 1994, p. 23). -­

Para Jauss, portanto, na instância ou na dimensão do público ou dos leitores de um texto. é que
se encontram as bases metodológicas para que se possam verificar tanto o valor estético de um texto
como o nexo que ligaria as obras numa sucessão histórica:

o
valor estético de um texto é medido pela o "nexo" ou o elemento de relação entre a
recepção inicial do público, que o compara sucessão de textos na história literáriâ é o
com outras obras já lidas, percebe-lhe as próprio leitor/público. Jauss pensa numa
singularidades e :ldquire novo parâmetro para cadeia de recepções que teria continuidade
Estética da avaliação de obras futuras (elabora um novo e na qual a compreensão dos primeiros
Recepção horizonte de expectativas). leitores iria sendo sobreposta pela recepção
dos públicos posteriores. Essa sucessão de
recepções do texto, por sua vez, mostraria
o significado histórico e o valor estético dos
textos.

Quadro 2. Valor estético e a recepção conforme Jauss (1994).

Depois de apresentar seu ponto de vista sobre como unir história e estética, Jauss propõe-se a
fundamentar essa nova metodologia de reescrita da história literária. Para tal, lança mão de sete teses,
onde expõe conceitos básicos de sua proposta.

SETE TESES PARA UMA NOVA HISTÓRIA DA LITERATURA

A primeira tese
Jauss procura mostrar em sua primeira tese que a historicidade da literatura não "repousa numa
conexão de 'fatos literários' estabelecida postJactum, mas no experienciar dinâmico da obra literária
por parte de seus leitores" (JAUSS, 1994, p. 24). Ao fundamentar seu princípio metodológico
para uma: história literária baseada no leitor, Jauss vê a necessidade de distinguir o modo como a
história positivista vê um texto literário e como ele o concebe em sua nova metodologia.
Para a concepção positivista, o texto literário seria um objeto que existiria por si só, de forma
atemporal e que apresentaria para os espectadores, de diferentes momentos, um mesmo aspecto ou
significado. Essa ideia de texto aproxima-se da ideia de "monumento", enquanto marco histórico
e atemporal. Assim, os textos literários seriam vistos como fatos literários tal como os fatos
históricos. Para Jauss, no entanto, há uma grande diferença entre ambos. Vejamos um exemplo:
A guerra de Canudos consiste num fato histórico datado no tempo e que teve suas premissas e
desenvolvimentos posteriores. O texto literário, para Jauss, não pode ser. considerado da mesma

194 - T E o R I A LITERÁRIA
J::\
_··_··-~ESTf'TICA D,\ RECEPÇÃO

maneira, pois ele não existe por si mesmo independente do leitor. Jauss, então, desenvolve a noção
de acontecimento literário: Os sertões, de Euclides da Cunha, só se tornam um acontecimento
literário quando um leitor o lê, observando suas particularidades em relação a outros textos
literários que já tenha lido, o que o faz adquirir novos parâmetros para avaliação de outras obras
que venha a ler posteriormente. Logo, o texto literário não é um fato, nem urna ação, mas um ato
de recepção.
Diferentemente do acontecimento histórico, Jauss assinala que o acontecimento literário só tem
consequências se a recepção de um texto se propagar para públicos posteriores ou se for por eles
retomada, ou "na medida em que haja leitores que novamente se apropriem da obra passada, ou
autores que desejem imitá-Ia, sobrepujá-la ou refutá-Ia" (JAUSS, 1994, p. 26).

A segunda tese
A segunda tese de J auss é, na verdade, uma contra-argumentação à possível crítica de que sua
proposta metodológica de historiografia baseada na experiência do leitor pudesse resultar numa leitura
impressionista ou mesmo em alguma espécie de psicologismo.
Para contrapor-se a essa possibilidade, Jauss explica que a experiência literária do leitor (o
acontecimento literário) pressupõe um "saber prévio", que funciona corno conjunto de sabêres tanto
literários quanto da própria vida, "com base no qual o novo de que tomamos conhecimento taz-se
experienciável, ou seja, legível" (JAUSS, 1994, p. 28).
Tentando demarcar o modo como o leitor confere sentido ao texto, Jauss restringe mais o sentido
desse conhecimento prévio, entendendo-o como sistemas histórico-literários de referência trazidos
tanto pelo leitor quanto evocados pelas obras. Esses sistemas abarcariam as mais diversas convenções
literárias, como certas marcas dos gêneros, o estilo, certas formas, técnicas narrativas etc. O sistema
histórico-literário que cada leitor utiliza em cada obra recebe o nome de horizonte de expectativa.
Tomemos como exemplo uma convenção literária como a da caracterização da heroína romântica, a
moça pura, ingênua, idealista em sua concepção do mundo e do amor, branca e pálida, cuja aspiração
de vida é o matrimônio. Construída pelos romances românticos, ela se tornou marca dos romances
até o Realismo. Entretanto, quando Eça de Queiroz constrói suas heroínas, a Luísa de O primo Basílio
ou a Maria Monforte de Os maias, por exemplo, evoca, em seus textos, o horizonte de expectativa
do romance romântico para depois repudiá-lo. Ele o faz transformando o modelo feminino evocado
no J.torizonte de expectativa de seus textos no avesso do horizonte de expectativa do leitor, através da
caracterização de heroínas cuja aparência assemelha-se às das heroínas românticas, mas que são levadas
pela luxúria, tornando-se mulheres adúlteras, que abandonam o casamento, os filhos e sua posição
social. Assim, o autor choca o público acostumado com as heroínas até então conhecidas e oferece-lhe
outra configuração para essas personagens.

A terceira tese
Considerando que o horizonte de expectativa de uma obra pode ser reconstruído ou demarcado
de forma objetiva, J auss propõe outra noção, a partir da qual o caráter artístico de um texto pode ser
medido: a noção de distância estética. Jauss a entende como o afastamento ou não-coincidência entre o
horizónte de expectativa preexistente do público e o horizonte de expectativa suscitado por uma nova
obra.
Assim, se a distância estética entre o horizonte de expectativa do público e o da obra é pequena,
ou seja, se a obra atende, acomoda-se ao horizonte de expectativa do público, ela se aproxima do que
Jauss chama de arte "culinária" ou ligeira. Seria o caso dos best-sellers, dos romances femininos de
banca de jornal, cujas convenções ou sistemas literários de referência não se alteram. Ao contrário, se a
distância estética entre os horizontes de expectativa (do público e da obra) aumenta, seu valor estético
tende a ser maior, transformando, normalmente, as peculiaridades desse novo modelo num novo
sistema literário de referência. Note-se aqui que, embora Jauss pretenda afastar-se de uma concepção

Til<\ivlAS BONNICI I LÚCI!\ O\ANA ZlHIN (tHU;AN1ZADORE".) - 195


~APPONE
I
.I linear da história, regulada pela alternância entre inovação e ruptura, ele próprio acaba por adotar
uma concepção de tempo e história muito semelhante àquela que critica nos teóricos formalistas e
marxistas. A diferença reside, portanto, no fato de a validação do caráter estético dos textos ser efetuada
pela instância receptora dos textos - o leitor.
Um caso ilustrativo de grande distância estética (portanto de obras de valor estético) podem ser
os textos dos modernistas brasileiros. Os horizontes de expectativa evocados em obras como Paulicéia
desvairada (1922),Amar, verbo intransitivo (1927), Macunaíma (1928) de Mário de Andrade, ou Memórias
sentimentais deJoão Miramar (1924) de Oswald de Andrade e muitas outras, além de afastarem-se do
horizonte de expectativa de seu público inicial, chegaram a contrariá-lo, a ponto de essepúGlico
- formado pelos leitores e pela crítica da época - ter-se posicionado acirradamente contra e~as. O
horizonte de expectativa evocado nos textos modernistas, caracterizado pelo experimetalismo, pela
rejeição ao academicismo, pela acolhida da linguagem cotidiana, pela valorização do prosaico e do
humor, pela valorização do folclore, do primitivo e pelo interesse pela vida cotidiana cóiltrariava e
superava o horizonte de expectativa do público da década de 1920, delineado a partir do prosseguimento
dos modelos realistas, naturalistas e parnasianos.
Como mostra]auss, no entanto, o novo horizonte proposto pela(s) nova(s) obra(s) força o público
à transformação de seu horizonte de expectativa, de modo que o horizonte antes desconhecido
transforma-se em obviedade, em expectativa familiar e passa a ser, portanto, o sistema hist6rico­
literário de referência para leituras posteriores. Assim se deu com os textos modernistas, cujas propostas
estéticas, em sua maioria, transformaram-se, para o público leitor de literatura, em procedimentos
literários familiares.

A quarta tese
Ao tentar fundamentar seu método, ]auss poslClOna-se, nessa tese, contra os métodos do
objetivismo histórico nos estudos literários, que imaginam o trabalho de interpretação como o simples
"descortinar do sentido atemporalmente verdadeiro de um texto" QAUSS, 1994, p. 37).
Por isso, faz uma série de considerações sobre como entende que os sentidos de um texto são
construídos ao longo da história. Para ele, a reconstrução do horizonte de expectativa de uma obra
é um aspecto fundamental para essa construção do sentido. Tal reconstrução é importante, pois ela
permite que se conheça a história do tftito (conceito emprestado de Georg Gadamer), ou seja, o modo
como o,próprio ato da compreensão está abarcado pela história. Expliquemos: para ]auss, a própria
consciência que interpreta um te:x'to (leitor, público, críticos) está envolvida num processo histórico
que afeta o modo como esse texto é lido.
Para explicar melhor a história do tftito,]auss tece uma série de considerações sobre a leitura de textos
do passado. Para ele, são equivocadas tanto as interpretações que levam em conta apenas os critérios
do passado quanto as que leem tais textos a partir de critérios do presente (perspectiva sincrônica).
Isso porque o processo de interpretação é bem mais complexo e deve, segundo ]auss, efetuar uma
reconstrução do horizonte de expectativas a partir do qual uma obra foi criada e recebida. Para efetuar essa
reconstrução,]auss novamente retoma um princípio de Gadamer: a aplicação da lógica da pergunta e
da resposta à tradição histórica.
Para eXplicar tal lógica, ]auss cita uma frase de Collingwood que ajuda a entender o princípio da
pergunta e da resposta: "só se pode entender um texto quando se compreendeu a pergunta para a qual
ele constitui uma resposta" QAUSS, 1994, p. 37). O texto seria a resposta a perguntas feitas pelo público.
É como se o texto fosse criado a partir de um conjunto de pressuposições de um público; por isso, sua
compreensão necessitaria de levar em conta esse conjunto de pressuposições. Para descobrir a pergunta para
a qual determinado texto é a resposta,]auss assevera ser necessário reconstruir o horizonte de expectativa
da obra e do público e o processo de comunicação instaurado entre eles.
Entretanto, quando um intérprete do presente tenta responder à pergunta para a qual o texto seria
uma resposta, a. sua compreensão já representa um processo de incorporação das outras interpretações

196- T E o R I A LITERÁRIA
-----~) E S I É T I C A lJ A R E C E P <,: Á O

feitas durante o processo histórico de recepção do tex1:o. O juízo estético adequado para Jauss é aquele
que desenvolve o que ele chama de potencial de sentido da obra, que, por sua vez, não estaria apenas no
processo reprodutivo (a obra literária propiciaria o reconhecimento, e nisso estaria seu valor), mas no seu
processo produtivo (a obra de arte pode também transmitir um conhecimento quando "antecipa caminhos
da experiência futura, imagina modelos de pensamento e comportamento ainda não experimentados ou
contém uma resposta a novas perguntas" GAUSS, 1994, p. 39).
Partindo dessas quatro teses iniciais, que dão sustentação à sua estética baseada na recepção, Jauss
desenvolve outras três teses, nas quais procura mostrar que a história literária deve levap-em conta a
compreensão progressiva da literatura e sua função produtiva. Esse projeto de história literária" articula­
se em torno de 3 aspectos: 1) de seu caráter diacrônico, 2) de seu caráter sincrônico e 3) .da relação
entre literatura e vida prática.

A quinta tese
Nessa tese, Jauss descreve como entende o caráter diacrônico de seu projeto de história literária.
Não se trata, para ele, simplesmente de ver a história literária como sucessão de obras que tenham
alcançado um ápice estético no interior de um sistema, tal como supunham os formalistas. Embora
Jauss reconheça o projeto de história literária formalista como um avanço, não deixa de observar seu
principal limite, ou seja, que seus aspectos histórico e estético são baseados no mesmo critério: a
inovação da obra literária.
Para Jauss, "as mudanças da série literária somente perfazem uma sequência histórica quando
a oposição entre a forma velha e a nova dá a conhecer, também, a especificidade de sua mediação"
GAUSS, 1994, p. 43). Essa HII:diação, por sua vez, significa aquilo que uma obra pode colocar e legar
como leituras possíveis para os públicos posteriores, ou seja, depende de seus significados virtuais.
Como se vê, para Jauss, o lugar de uma obra na série literária não pode ser determinado apenas
em razão de sua recepção inicial, portanto baseando-se apenas no contraste entre o novo e o velho no
momento de sua aparição. Essa função ou lugar depende, também, da história das recepções de um texto.
Explica que, às vezes, o valor de uma obra não é percebido no momento de sua recepção inicial,já que
a distância estética entre o horizonte de expectativa da obra e o do público é muito grande e, talvez, seja
necessário um longo processo de recepção para que a obra venha a ser compreendida.
Logo, para Jauss, a história literária baseada no critério recepcional não é um processo linear,
seqvencial, de obras literárias, mas um conjunto aberto de possibilidades, já que sentidos novos podem
ser vistos em textos antigos, o que permite um constante reavaliar dos textos literários.

A sexta tese
A sexta tese discorre sobre o aspecto sincrônico do projeto de Jauss. As obras devem ser lidas a
partir de-sua história de recepções, num movimento diacrônico que articula várias fases, mas deve,
também, articular a leitura da obra no momento de seu aparecimento:

A contemplação puramente diacrônica [ ... ] somente alcança a dimensão verdadelfamente


histórica quando rompe o dnone morfológico, quando confronta a obra importante do ponto
.' de vista da história das formas com os exemplos historicamente falidos, convencionais, do
gênero e, além disso, não deixa de considerar a relação dessa obra com o contexto literário no
qual ela, ao lado de outros gêneros, teve de se impor GAUSS, 1994, p. 48).

Para Jauss, a historicidade da literatura se revela exatamente nos pontos de interseção entre
diacronia e sincronia. Uma dimensão efetivamente histórica da literatura deve levar em conta as
sucessivas recepções de um texto (aspecto diacrônico), mas relacionar essas recepções ao longo da
história à recepção da obra num dado momento (sua recepção inicial). Relacioná-la ao seu momento
significaria reconstituir o horizonte de expectativa a partir do qual a obra é recebida "como atual ou
inatual, como em consonância corp a moda, como ultrapassada ou perene" (JAUSS, 1994, p. 48).

TtrOM:\\ B()NNll'[ I LÚCIA OSANA ZOI IN (Of{{;ANrZf\DOítr_s) - 197


~A r P () N E


·1
Jauss propõe que sejam feitos cortes no antes e depois da diacronia para que se possa perceber
1 que, embora os textos literários (te:x.'tos produzidos em diferentes tempos históricos) apareçam para o
público como se pertencessem a um só tempo, sendo, pois, submetidos ao horizonte de expectativa
desse público, eles foram alvo de recepções específicas em certos momentos históricos.

A sétima tese
Essa tese é a apresentação do terceiro aspecto considerado no projeto de história literária dy Jauss:
além de observar os aspectos diacrônico e sincrônico, tal história deve também voltar-se para os efeitos
da literatura na vida prática de seus receptores.
Ao abarcar a experiência cotidiana do leitor, Jauss pretende que a literatura seja pensada não
apenas em termos de seus efeitos estéticos, mas também a partir dos efeitos éticos, sociais, psicológicos
que possa suscitar. Ela seria, na concepção desse autor, capaz de romper com a percepção comum
que o leitor tem dos próprios fatos da vida cotidiana quando permite "antecipar possibilidades não
concretizadas, expandir o espaço limitado do comportamento social rumo a novos desejos, pretensões
e objetivos, abrindo, assim, novos caminhos para a experiência futura" GAUSS, 1994, p. 52).
Para Jauss, a distância entre história e literatura e entre estética e história pode ser diminuída
quando a história literária é capaz de abarcar a função emancipadora da literatura, que, ao transfôrmar
percepções da vida, é capaz de propor novas formas de vê-Ia e de relacionar-se com ela.

ESTÉTICA DA RECEPÇÃO: LIMITES E AVANÇOS

Sem dúvida, as ideias de Jauss contribuíram significativamente para que se repensasse o caráter
tanto estético quanto historiográfico da literatura. E, no bojo de sua proposta de um "novo" tipo de
história literária, Jauss, de certo modo, acaba por propor novas categorias para se pensar o que é a
literatura. Ora, se os textos são passíveis de diferentes recepções porque lidos por públicos diferentes
no tempo e no espaço, o status desses textos também se modifica, o que força certa reformulação
dos critérios que estabelecem o que é e o que não é literatura. Para Jauss, esse novos critérios são
estabeletidos através do "experienciar dinâmico da obra literária por parte de seus leitores" GAUSS,
1994, p. 24).
Entretanto, se se observa o aspecto privilegiado por J auss para propor um novo modo de ver a
literatura, ou seja, a recepção do público, sua teoria esbarra em um problema: a caracterização do
leitor. O leitor proposto por Jauss certamente não é um leitor virtual de textos. Trata-se, antes, de
um leitor muito específico, com habilidades de leitura refinadas, pois precisa ter como conhecimento
prévio todo um sistema de referências que abarca desde as diferenças entre o uso estético e prático da
linguagçm até o conhecimento de gêneros, de temáticas, de convenções literárias. Jauss fala, portanto,
de um leitor especializado e plenamente integrado nas estruturas do campo literário. Nesse sentido, a
teoria de Jauss abarca apenas em parte o aspecto social e histórico que pretende ou, em outras palavras,
o caráter'social e a questão da historicidade ficam balizados apenas pelo conjunto dos leitores que
possuem o horizonte de expectativa por ele pressuposto.
Enfim, embora enfatizando um leitor especializado em detrimento de leitores reais, as ideias
de Jauss introduzem, de forma mais sistemática, a discussão sobre o aspecto recepcional dentro dos
estudos literários, abarcando uma instância fundamental do circuito autor/obra/público sobre o qual
a literatura se erige. Por isso, a Estética da Recepção e suas vertentes providenciam um espaço, não
novo, mas mais amplo, para que se pense a literatura como categoria histórica e social e, portanto, em
contínua transformação. Nesse sentido, sua crítica aos modelos tradicionais de historiografia literária
é 'plenamente válida e pertinente.

198 - T E o R I A LITERÁRIA
-~ESTE1ICA IlA RE( El'çAO

REFERÊNCIAS

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":.;.

TlrUMAS BnNNIC! / LucrA OSAN:\ Zor IN (~)I{(,f\NIZ.,\I)()HI'~) - 199


A DESCONSTRUÇÁO D-E
jACQUES DERRIDA

Marco~ Siscar

A PROBLEMÁTICA ESTRUTURALISTA

o termo desconstrução (déwnstruction), tal como é conhecido pelos teóricos da literatura, provém
da obra do filósofo franco-argelino Jacques Derrida (nascido em 1930 em EI-Biar, Argélia e falecido na
França em 2004)_ A palavra aparece pela primeira vez na obra Gramatologia, publicada em 1967, como
maneira de traduzir e adaptar aos propósitos do autor as palavras do filósofo alemão Martin Heidegger
Destruktiotl ou Abbau. Evitando, nesse processo de leitura e tradução, o uso da palavra "destruição", a
desconstrução procura distinguir-se de uma operação de aniquilação que estaria talvez mais próxima
da "demolição" proposta por Nietzsche. A desconstrução não propõe um movimento negativo de
destruição, de desarticulação ou de decomposição do pensamento, apesar da notoriedade jornalística
de que goza essa interpretação do termo.
Como eX'}Jlica no texto "Carta a um amigo japonês", Derrida procurava com essa palavra
designar "uma operação relativa à estrutura ou à arquitetura dos conceitos fundadores da ontologia ou
da metafísica ocidental" (1987, p. 388). A desconstrução apresenta-se, assim, como uma leitura da
analítica existencial heideggeriana, herdeira da fenomenologia de Edmund Husserl, instalando-se, ao
mesmo tempo, no coração da problemática estruturalista, propriamente dita. Curiosamente, ao mesmo
tempo em que o Estruturalismo se estabelecia institucionalmente, tanto na crítica literária quanto em
outras ciências humanas, Derrida (1967b) propunha uma crítica ao conceito de estrutura. No livro
A Escritura e a Diferença, o autor constata uma "invasão estruturalista", afirmando que na questão da
estrutura está em jogo muito mais do que um fenômeno de moda. Para ele, a opção pelo conceito e
pela ferramenta analítica da estrutura cristaliza maneiras de pensar que são bem mais antigas. Pode­
se dizer, portanto, que a proeminência da problemática estmturalista foi o ponto de partida para que
Derrida desenvolvesse uma análise da noção de estrutura e a situasse no contexto de uma vasta e
rigorosa abordagem de suas raízes e ressonâncias em toda a tradição filosófico-crítica.
Para Derrida, a teoria estruturalista, apesar de procurar romper com os discursos da verdade e da
centralidade, quer seja ao retomá-los em parte, quer seja ao rejeitá-los em bloco, acaba por manter a
suposição de uma origem e, de certa maneira, a funcionalidade estável de um centro. Nesse sentido,
trata-se de constatar que, apesar da radicalidade do gesto antimetafísico, questionador dos fundamentos,
cp. S C A R

1 o salto para fora da metafísica é problemático, pois "não há nenhum sentido em se abandonar os
conceitos da metafísica para abalar a metafísica" (DERRIDA, 1967b, p. 412). A partir da leitura de
conceitos desenvolvidos por Saussure, Lévi-Strauss e Foucault, Derrida aponta para a quase inevitável
duplicação (redoublement) metafísica efetuada pelo gesto de ruptura antimetafísico. Ao basear-se numa
ideia de estrutura como sistema de relações diferenciais que eliminariam a necessidade da origem,
opondo-se ao jogo regrado e centrado característico da tradição filosófica, o gesto estrutural se realiza
no elemento de sua própria impossibilidade como origem.
A leitura que Derrida faz do Estruturalismo funda-se, portanto, em uma interpretação do tra~ento
dispensado à ideia do jogo da estrutura e não pode ser reduzida à proposição do abandono dos referenciais
lógicos da tradição. O "jogo livre", ou jogo sem fundamento assegurado, frequentemente interpretado
como uma espécie de ausência generalizada de regras (free play, segundo a expressão· americana
popularizada), contribuiu para o enorme mal-entendido em relação a uma suposta indeterminação do
sentido pregada pela desconstrução. É preciso compreender esse jogo, não como tentativa de demolição
de qualquer possibilidade de sentido, o que estaria mais próximo de um certo traço estruturalista, porém,
mais exatamente, como maneira de descrever a lógica conflitante do discurso da estrutura, uma das
variadas manifestações da crença na presença em nosso pensamento ocidental.
A "determinação do ser como presença" caracteriza a forma matricial da metafísica ocidental, cujas
variantes seriam a essência, a existência, a substância, o sujeito, a transcendentalidade, a consciência,
Deus, o homem etc. A crença nessa presença, nessa manifestação presente da coisa, inclusive do próprio
sujeito do discurso (o que determina a ideia de razão e consciência), seria uma forma de o pensamento
garantir sua estabilidade e a centralidade de seu dizer. O pensamento ocidental, para Derrida, é um
logocentrísmo, resultado do privilégio e da central idade da razão entendida como presença.
Ao conceito de presença, ligado à identidade, Derrida articula a palavra différance, sonoramente
idêntica à palavra francesa dijférence (diferença), porém comportando um "erro" inaudível na pronúncia
da palavra, um "a" no lugar do "e" (dijférance é traduzida em português de diversas maneiras: diferança,
diferência~ diferância, difer~nça). A alteração gráfica, que não configura exatamente um neologismo,
escapa à ordem do sonoro e do sensível, inscrevendo-se na lógica derivativa da escritura. Com essa
dramatização retórico-teórica, Derrida busca mostrar que a diferença em relação a si é constitutiva
do pensamento e, mais do que isso, que não há como refletir sobre essa diferença sem inscrevê-la na
mesma lógica do desvio em relação ao sentido próprio, sem duplicá-la incessantemente. A palavra
dijférance procura fazer juz a essa constatação, inserindo a diferença derivativa da escritura na própria
formulação do conceito; não só no seu sentido, mas inscrita no próprio corpo da linguagem.

A LÓGICA DO SUPLEMENTO

Nessa focalização de problemas abrangentes do pensamento, temos o questionamento da ideia de


um sujeito que se sente e se percebe, de uma voz que ouve seu próprio murmúrio. O logocentrismo
liga-se, historicamente, a um jonocentrismo, a um privilégio da voz, do "murmúrio" da consciência, da
sensação, ,da natureza como elemento que assegura a autenticidade da experiência. A propósito, em
Gramatológia, Derrida (1967a) analisa o texto e o pensamento de Jean-Jacques Rousseau, destacando o
processo de exclusão, que nele se opera, da escritura como artifício e perda da presença. Para Rousseau,
como mais tarde para Lévi-Strauss, a escritura é um fenômeno da cultura. No sistema de pensamento
rousseauísta, em consonância com um privilégio que se inicia na própria filosofia platônica, a voz está
próxima da pureza e, consequentemente, da legitimidade conferida ao natural; a escritura aparece
em Rousseau, por outro lado, como um suplemento da voz em sua ausência e, como tal, suspeita de
inautenticidade.
O gesto da desconstrução consiste aqui em retomar a noção de suplemento e analisar suas
consequências no texto de Roussc-au, atentando para os contextos c- relações por ela instaurados.

202 - T E (l H I A L1TEnÂP1A
--' -~ /\ I) E S C O N S T R U (: AO [J E J ,\ C () U E S D E R R I D A

Surpreendentemente, do ponto de vista do sistema de pensamento de Rousseau, Derrida encontra


ali momentos em que o autor estabelece a necessidade, geralmente culposa, do suplemento a fim de
suprir uma falha da natureza. O exemplo mais claro é o da cena em que Rousseau explica porque se
tornou escritor, afirmando que o ocultamento provocado pela escritura é necessário para se mostrar a
verdade do sujeito que faz suas ConfISsões: "Eu presente, não se saberia o que valho", escreve Rousseau.
O suplemento, necessário para preencher a lacuna do natural, também aparece no momento em que
o auto-erotismo impõe-se sedutoramente como maneira de suprir o contato com o sexo ausente.
Vemos, nessa análise, de que maneira o que é condenado como destruição da presença (a escritura,
o auto-erotismo) é reabilitado subrepticiamente como estratégia para se reapropriar dá'quilo que a
experiência perdeu. O que era veneno, mostra-se também remédio: um pharmakon, na ambígua palavra
usada em Platão e analisada por Derrida, em A Farmácia de Platão (1972a). O suplemen(o toma-se assim
o elemento a partir do qual se operam as aporias, os conflitos insolúveis do pensamento. A escritura é
um suplemento, na medida em que ela reúne em si as características de substituta da pr~sença (origem
da perversão, exterioridade do mal) e as características da adição produtiva (sorte da humanidade,
positividade da cultura).
Nessa leitura do filósofo e romancista Jean-Jacques Rousseau, Derrida nota que a origem é concebida
como aquilo que se afirma e se perde concomitantemente, que a imediatez é sempre já, desde o início,
derivada. Isso se aplica à própria intencionalidade da escritura que é sempre suplementada por, algo mais,
algo menos ou coisa diferente do que se quer dizer. Vemos, exemplarmente, como o texto de Rousseau
afirma de maneira explícita uma condenação à escritura, mas a pressupõe e a reafinna continuamente, em
espécies de "pontos cegos" na perspec1:iva do pensamento.
Para Derrida, a leitura não deve ter como ilusão o respeito do conteúdo dito intencional de um
texto, ainda que um domínio instrumental do que convencionalmente se considera o conteúdo
(histórico, convencional etc.) de tal texto seja fundamental; não há intencionalidade do texto, conteúdo
unívoco daquilo que ele quer dizer. Por outro lado, e de maneira paradoxal, a leitura também não pode
transgredir o texto a partir de referentes exteriores (metafísica, história, psicologia), impor-lhe uma
verdade a partir de um conhecimento exterior; ou seja, não há um fora do texto ("il n'y a pas de hors
texte"), não há referente ou significado transcendental.
Na verdade, é por meio das cumplicidades e dissonâncias entreo sistema de pensamento e a realização da
escritura de determinado autor que temos a revelação de uma textualidade mais ampla, que se afinna e que
se nega ao mesmo tempo. O ponto cego, o não~visto, é aquilo que abre e limita a visibilidade (o sentido) de
um texto. O seu sentido se localiza, assim, em um lugar intermediário - o hímen, diria Derrida (1972a) em
sua-análise de Mallarmé, em La Dissémination - e aporeticamente indecidível.
Na medida em que o sentido de um texto não coincide com aquilo que parece ser a sua literalidade
ou intencionalidade, toda leitura de texto pode ser considerada como uma produção de sentido.
Assim sendo, a desconstrução é um gesto produtor de sentido, mas uma produção que tem como
particularidade a ativação ou a aceleração do movimento conflitante no qual o próprio texto e sua
leitura estão implicados. A esse movimento, Derrida preferiria mais tarde dar o nome de duplo gesto
ou double bind, usando a expressão inglesa. A desconstrução interpreta o texto como um double bind no
qual está em jogo a própria (im)possibilidade do sentido ou da experiência. Pensada dessa maneira,
da~do ênfase à importância da singularidade do ato de leitura e a suas trocas com o próprio texto, a
desconstrução dificilmente poderia ser tomada como ponto de apoio para o estabelecimento de um
método de análise.

LITERATURA E VERDADE

A centralidade do problema da origem nos faz considerar que aquilo que está em jogo no
discurso (incluindo~se aí o literá:io) é sua relação com a fundação do sentido, sua relação com

TI/OM" IlUNNIC! / LÚCIA OSAN.' ZOIIN ("RGANIZADORE'j - 203


~I S C A R

i a "verdade", segundo a palavra filosoficamente prestigiada. Nesse sentido, é preciso lembrar que o
! conceito de literatura é uma produção da filosofia, é uma ideia criada por filósofos. Quando Platão,
por exemplo, fala de literatura ("poesia"), ele está construindo um conceito, um "filosoferna". Por
isso, podemos dizer, como Derrida (1972a), que a literatura é, de alguma maneira, "filha" da filosofia,
faz parte de sua história, é um dos elementos de seu sistema e está marcada consequenternente por
uma série de estruturas e noções de natureza filosófica (imitação, forma, tempo etc.). Nesse sentido,
o conceito de literatura, definido tradicionalmente pela ideia de desvio imitativo, funcionaria no
fundo como uma estratégia do discurso filosófico para legitimar-se e garantir sua especificidade como
discurso neutro. ;
Marcada desde sua origem por traços característicos do pensamento filosófico, pode-se dizerque na
literatura está em jogo a problemática da verdade. Por extensão, nela está também ernjogo o problema
de sua verdade, enquanto gênero ou tipo de discurso. Em outras palavras, a literatura é 'um lugar no
qual a relação com a própria identidade é fundamental para se compreender o sentido de um texto. A
consequência mais imediata disso é que a literatura não pode ser vista como objeto a ser classificado ou
analisado de acordo com normas pré-estabelecidas. Se existe literatura, é na medida em que esta não se
deixa apreender em termos de pertença a um campo ou a uma classe, como afirma Derrida (1985) em
texto sobre Franz Kafka. Ou seja, uma definição do literário não pode ser anterior ao literário. Como
dizer o que a literatura é sem levar em conta o que nela se apresenta como sendo literatura? Como
fazê-lo sem projetar sobre ela, do seu "fora", um referente ou um significado transcendental?
Vemos que, se não existe essência da literatura, um domínio propriamente literário, nem por isso
aquilo a que chamamos texto literário exclui o problema da sua nomeação, de sua "verdade". Pelo
contrário, é precisamente esta a questão que parece se impor: o problema da literatura está presente
em todo te>.1:o que se coloca como literário ou que ao literário, de alguma maneira, se opõe. Pode-se
dizer que a verdade da literatura constitui interesse e sentido do texto literário. Na "literatura", realiza­
se um drama do nome, uma relação paradoxal com a verdade do nome que comparece num processo
de insubstituível singularidade. Por isso, a "lei" de que fala "Diante da lei", de Kafka, analisado por
Derrida (1985), é antes de mais nada a lei da literatura, a lei própria diante da qual um texto se coloca
e que o define como tal; é a propriedade do próprio lugar do qual se fala que está em jogo, o que tem
ressonâncias evidentes com problemáticas de natureza ideológica e psicanalítica, entre outras.
Mas se na literatura está emjogo a verdade, devemos nos interrogar também sobre os modos pelos
quais essa relação se estabelece. Sabemos que, tradicionalmente, a relação da literatura com a verdade é
tida como ilegítima. A literatura é definida como uma derivação imitativa, ou seja, como um desvio em
relação ~o discurso mmtro, sério e responsável (Platão). À literatura é dado constituir sua excelência
dentro do espaço de coerência das regras do bom uso da imitação (Aristóteles) e não naquele de sua
relação com o lugar da origem. Mas essa constatação talvez seja ainda muito genérica. Derrida lembra
que a história dessa relação entre literatura e verdade é organizada, não apenas ou não exatamente
pela mimesis ("imitatio", segundo a problemática tradução latina: "imitação", em português), mas por
certas interpretações da mimesis. De Platão, que condena a mimesis como falseamento da verdade e
irresponsabilidade do poeta, ao poeta simbolista Mallarmé, que reinscreve o problema mimético
como pqnto de originalidade e de dificuldade do literário, segundo Derrida, "uma história teve lugar"
(1972a, p. 209). Essa história constitui a história da própria literatura, ao longo da qual acompanhamos
a constante reafirmação ou contestação do literário entendido como desvio da neutralidade, da
literalidade ou da racionalidade. Pode-se dizer, basicamente, que essa história consiste na oscilação
entre duas maneiras de interpretar a mimesis. Por um lado, a relação entre o texto e o mundo é vista
como adequação, relação de semelhança ou de igualdade (homoiosis ou ada?quatío); por outro lado, a
relação entre texto e mundo é entendida como desvendamento daquilo que estava oculto (aletheia).
Nessas duas interpretações, a mimesis está vinculada ao processo da verdade. Por um lado, ela
interpreta o discurso em sua relação de semelhança com a coisa; por outro lado, ela o interpreta como
apresentação da coisa ela mesma. A oposição entre esses dois traços resumiria as razões e os problemas
do embate pela ideia de literatura no Ocidente. A literatura deve ser entendida na sua relação com a
realidade pré-exjstente ou estabelece, ela mesma, a sua realidade? Derrida não pretende vincular-se

204 - T E o R I A LITERÁRIA
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a nenhuma dessas alternativas, lIem mesmo propor uma terceira; trata-se simplesmente de revelar d
lógica dessa oposição, as cumplicidades e as consequências específIcas que caracterizam e delineiam os
discursos sobre a literatura.
O importante, para Derrida, parece ser a demonstração de que, nos dois casos, mantém-se intocada
a ideia de uma origem reconhecível. Caracterizando-se por apresentar a coisa ou por assemelhar-se
a ela, o discurso literário mantém intacta a ideia de que essa coisa é delimitável, relatável, nomeável,
ainda que, por vezes, essa ideia se construa por meio de procedimentos de negação, de descrença
no poder de nomeação da linguagem. Ou sejd, apesar das diferenças (que se poderiam associar de
maneira produtiva às di\'Crgências atuais entre as ideias de expressão e produção), encontramos de fato
uma cumplicidade que não altera fundamentalmente a situação teórica, tal como a apresentamos. Ao
descrever o resgate ou a produção da verdade, estamos permanentemente supondo a possibilidade,
ainda que aposteriori, de designar e, portanto, de definir essa verdade. Não há dúvida de que as diferentes
soluções para o problema da rnimesis literária estão associadas a práticas históricas e metodológicas
bem diversas; porém, ao mesmo tempo, devemos lembrar que essas diferentes abordagens reforçam a
vinculação do pensamento com uma linhagem metafísica que as empenha teoricamente.
Apesar da vinculação com o discurso da verdade, a literatura não consiste apenas em uma
maneira de reiterar uma lógica que a precede. Diferentemente, nesse ponto, da crítica de natureza
ideológica, a referência à questão é também ocasião, para Derrida, de sugerir uma certa produtividade
daquilo a que chamamos literatura, uma força deslocadora que não é exatamente uma ruptura, mas
um redimensionamento do problema à força de incorporá-lo em seu processo. Assim, ao analisar a
obra de Mallarmé, Derrida distingue paralelamente a ocorrência de um deslocamento na história da
metafísica literária, quando o texto passa a incorporar, em sua textualidade, por meio de encadeamentos
miméticos, essas co-implicações conflituosas com a verdade. A escritura enxerga-se no abismo da
própria representação. Esse deslocamento operaria uma alteração na trajetória da nossa reflexão sobre
a mimesis literária. Acompanhando a análise derridiana de outros autores, como Edmond Jabes, Francis
Ponge e Paul Celan, por exemplo, fica claro que está em jogo na literatura uma função de abertura
para a alteridade (DERRIDA, 1986). A literatura é uma abertura para o acontecimento, isto é, para a
manifestação do sentido em sua (im)possibilidade (palavra na qual os parênteses indicam uma dupla
afirmação, conflituosa e indecidível).
De uma maneira ou de outra, não é difícil perceber como a literatura, no sentido moderno (isto
é, a partir do romantismo alemão), dramatiza a problemática da mirnesis e da relação com a origem do
sentido, colocando-se a difícil tarefa do cruzamento da criação com a reflexão crítica. Segundo o crítico
americano De Man (1999), a história recente da literatura pode ser entendida como a história de uma
"desmistificação", isto é, da revelação da historicidade do sentido e da impossibilidade de reter a sua
deriva. Analisando a obra de Jean Genet, em Glas, Derrida (1974) afirma que, mais ambiciosamente,
o grande desafio do discurso literário é experimentar uma lenta e constante "transformação em coisa".
O projeto do discurso literário é constituir o texto para além dos limites da representação; o texto
literário deseja se realizar não como texto de (ou sobre a) coisa, mas como texto-coisa. Dessa forma,
a paixão do poeta, na qual se realiza sua sabedoria, sustenta Derrida a propó~ito de Edmond Jabês, é
"traduzir em autonomia a obediência à lei da palavra" (1967b, p. 101). À força de pensar e de elaborar
a "obediência" constitutiva da palavra como convenção ou lei, o poema seria capaz de realizar uma
espécie de sentido. Ao fazer isso, o poema estaria transformando e metamorfoseando a própria lei que
se apresenta como incontornável.
Esse gesto ousado de liberação da palavra de sua natureza convencional, reiterativa, expressiva,
é, não exatamente sua natureza, mas o desafio que a literatura se coloca. Trata-se no fundo de um
gesto contraditório, .uma vez que a liberação da palavra se dá em nome da própria revelação dessa
impossibilidade. O discurso literário avizinha-se de uma visão da linguagem que revela os limites da
ideia de semelhança e adequação, ao mesmo tempo em que coloca o gesto literário bem próximo de
uma lógica criacionista na qual o texto é visto como fundação mítica do sentido. Por isso, o aspecto
. comunicacional da linguagem passa a ser apontado como uma espécie de ingenuidade do platonismo
da imitação e o caráter performativo como o grande desafio do literário.
cp! \,: A F

'I A CRIAÇÁo IMPURA

o peiformatillo, função da linguagem teorizada por J. L. Austin, serviria aqui como modelo daquilo
a que se propõe a linguagem literária: a realização, pelo enunciado, daquilo a que esse enunciado
se refere (exemplo: a frase que articula uma promessa, "eu prometo [... ]", é a própria promessa, a
instaura). Dizer é fazer, segundo esse uso da linguagem. O performativo é o enunciado no qual está
emjogo o acontecimento de sentido.
Não seria difícil demonstrar que a visão performativa da linguagem está muito próxima da teoria
da literatura de inspiração formalista ou devedora do New CritiáslIl, que enfatiza :l capacidade de
produção de sentido intrínseca do texto, esvaziando, em contrapartida, os vínculos desse texto com
elementos extra-linguísticos (história, biografia, cultura etc.). As cumplicidades entre função poética
Gakobson) e função performativa da linguagem são patentes, se as tomarmos pela perspectiva de sua
relação com o problema mimético. Uma das ide ias mais comuns sobre o texto literário. partilhada
aliás por várias tendências críticas, é justamente a que afirma a união entre som e sentido, entre forma
e conteúdo, outra maneira de dizer que a literatura diz aquilo que ela faz. A coincidência entre fazer
e dizer é de praxe e a identificação entre esses dois extratos define, para muitos, a natureza do texto
literário, prescrevendo ao mesmo tempo a tarefa da demonstração detalhada (às vezes, estratificaçla)
dessas cumplicidades.
Ora, analisando o performativo, Derrida (1972b) nos mostra uma outra maneira de pensar essa
questão. Segundo ele, a teoria dos Speech Acts não leva em conta funçôes citacionais da linguagem,
como a ironia, a paródia, o pastiche etc. Para que um performativo seja reconhecível como tal, é preciso
saber se uma promessa, por exemplo, não é uma encenação ou uma ironia, se o enunciador que diz
"eu prometo" intenta de fato fazer uma promessa. Para ser reconhecido, portanto, o performativo
pressupõe o conhecimento e o domínio do contexto (sentido, intencionalidade). É preciso que o
contexto seja absolutamente determinável para que se possa dizer com certeza que uma manifestação
de linguagem é um performativo e não uma citação de performativo, uma "referência". Derrida
constata, não obstante, que a ideia de contexto não é problematizada pela teoria dos Speech Acts; o
contexto é apenas pressuposto como dado.
Ora, falamos sempre fora de contexto. A manifestação da palavra (da "fala", nos termos de Saussme)
é um desafio à determinação da totalidade de seu contexto. Nesse sentido, o contexto de uma fala
não é nunca absolutamente determinável. As teorias das funções da linguagem, no entanto, operam
basicamente a partir da ideia de que o contexto pode ser descrito em sua totalidade. Se pensarmos
na conhecida "função poética" de Jakobson (definida por ele como "o enfoque da mensagem por ela
mesma"), notamos claramente como a determinação dessa função produtiva da linguagem depende
de um cálculo do contexto e como ela pode ser referida, citada, usada em outros tipos de contexto. A
natureza dos próprios exemplos de Jakobson para explicar a função poética são esclarecedores: a função
poética pode estar numa publicidade ("I like Ike") ou mesmo na linguagem cotidiana. Mas como
saberemos quando há citação, uso parasitário, e quando há um uso sério de determinada função? Ou
seja, como saberemos onde termina o poético e onde começa a publicidade? Jakobson responde a essa
pergunta propondo calcularmos o caráter "dominante" de determinada função dentro de um texto. O
que define essa dominância, porém, não é uma determinação puramente quantitativa, mas o problema
anterior do {econhecimentodo tipo de uso (efetivo ou citacional, sério ou não-sério) que cada função
recebe em contextos específicos. Dizer que um slogan político não é poético é apenas reiterar o que
já está dito e percebido pelo senso comum e formalizado numa tautologia (um slogan político é uma
frase com função política). Em que condições se pode determinar a função política de uma frase?
Na teoria dos atos de fala, para que um performativo de fato se realize é preciso que haja essa
depuração dos dados contextuais, não podendo haver dúvidas quanto ao sentido ou à intencionalidade
do processo. Em outras palavras, o performativo deve ser necessariamente puro e presente a si mesmo,
necessariamente bem sucedido. Considerando a dificuldade de um controle total do contexto, Derrida
lança a seguinte questão: o que é o sucesso quando o fracasso (considerado acidental) continua sendo

206 - T E o R I A LITERÁRIA
--------.~ lI, 11 I n :-< ') I H ti \," :\ () 1) 1:. J:\ , - () U L \,. I) I' H H I I) .-\

uma possibilidade estrutural? quando a enunciaçio perfórmativa cominua passível de ser citada, por
exemplo? Temos aí um caso "anormal" e "parasitário", segundo as palavras de Austin_ Austin atribui
ao fracasso do performativo as mesmas características que a tradição destina à escritura (o parasitário,
o não-sério, o não-ordinário); procurando anular a "parasitagem" do uso anormal do performativo,
acaba considerando como uso comum e neutro do performativo uma determinação teleológica e
ética da lmguagem_ A5sim, conclui Derrida, definir o performativo depende de sermos capazes de
reconhecer o que seria sua deformação: o performativo supõe compartilharmos um certo código_ Eis
que, "consequência paradoxal mas inelutável - um performativo bem sucedido é necessariamente
um pertormativo 'impuro'" (1972b, p. 388), ou seja, a noção de performativo dependente de uma
estrutura citacional.
Como pensar a literatura a partir da função pcrformativa, linguagem sem referência? Em certos
contextos, essa alteração na concepção referencial pura, "imitativa", da linguagem pode servir como
uma interrogação importante para a própria teoria da linguagem. Pode agir no sentido de liberar o
texto do controle interpretativo de uma transcendência (social, histórica, psíquica etc.) que o precede
e o determina de antemão. Coloca-se, portanto, como elemento a partir do qual a literatura busca a
,ingularidade e a potência nomeadora da palavra. Entretanto, entendida como traço dominante do
literário, a função produtiva não faz senão reiterar um traço recorrente do discurso sobre a mimcsis
instauradora. Vimos que, na sua formulação descritiva, o performativo deixa em aberto o' problema
da relação com a origem, tal qual o vínhamos discutindo acima. Não se trata de negar a existência
de "efeitos" performativos, mas de lcrnbrar que, para existirem, eles pressupõem a possibilidade de
fracasso; ou seja, no fundo, constituem-se da relação dissimétrica que mantêm com sua possibilidade
de fracasso. Em outras palavras, o performativo está sempre envolvido com sua própria dificuldade ­
é sempre impuro. Eis aí, portanto, as razões da dificuldade do "desafio" literário. Esse cspar,amento na
estrutura do performativo, isto é, essa não-coincidência do performativo consigo mesmo, aproxima
a escritura daquilo que seria uma criação, mas uma criação impura, para a qual a ruptura da presença
aparece como característica de seu modo ambivalente de manifestação (seu trar,o).
À preferência manifestada por Austin por enunciados em primeira pessoa, na voz ativa e presente
à enunciação, Derrida prefere retomar a noção de assinatura como caso do conflito da presença no
discurso escrito. A originalidade enigmática da assinatura se deve a uma singularidade que perdura,
"a reprodutibilidade pura de um evento puro" (1972b, p. 391). Sendo manifestação da singularidade
do indivíduo, a assinatura claramente coloca em jogo a natureza e o papel do "estilo" em literatura.
Em Signéponge (1988), livro sobre o poeta francês Francis Ponge, Derrida explora as implicações do
interesse de Ponge pela assinatura, associando-a inclusive com a visão que o poeta tem da língua
francesa e da necessidade de depuração do discurso ornamental. Colocando a poesia na proximidade
da mais desarmada "lição de coisas", a assinatura que confere a Ponge a sua singularidade pressupõe
constantemente, ao mesmo tempo, a necessidade de uma contra-assinatura (a contra-assinatura das
"coisas") para poder confirmar-se e validar-se. O que é um estilo, marca da singularidade (o próprio
homem; segundo o dito famoso de M. de Buffon: "le style est l'homme même") , quando essa singularidade
identitária precisa do contraponto necessário (e às vezes mesmo da injunção, de um você deve) da
alteridade manifesta nas coisas?
Como no caso dessa leitura da poesia de Ponge, ao entender o estilo a partir das disjunções da
assin.~tura, a desconstrução nos coloca também a tarefa de rever vários outros elementos que constituem
os instrumentos de base do discurso literário.

DESCONSTRUÇÃO E TEORIA DA LITERATURA

A contribuição da desconstrução para a teoria da literatura ainda não foi suficientemente


pensada, embora seja preciso lembrar desde o início que a própria ideia de "contribuição" tem um
r'p:e;o : ~~g"
, uma concepção ,,'U u'" lati" ,> teleológiu 01 c n'mia, Do m"n", modo quo Dwida não
, elabora e não fornece um método de análise hterána, não há como formular uma teoria da literatura
da desconstrução sem trair suas próprias proposições. Isso a começar pelo simples fato de que a obra
de Derrida não se organiza em torno de formulações teóricas. É, aliás, característica da obra do autor
a produção, não de tratados sobre problemas gerais, mas de análises de textos e problemas específicos
de diversos autores. Pensadores inspirados pelo seu trabalho, como Jean-Luc Nancy e Philippe
Lacoue-Labarthe, na França, têm seguido esse caminho. Para Derrida, como vimos, o problema não
é tanto dizer o que uma obra literária é, mas analisar o sentido daquilo que se acredita ou se afirma
ser literatura. A desconstrução é menos uma exegese de fatos (uma vez que não há fato que não seja
produção interpretativa) do que um drama da interpretação, uma vez que a interpretação configura
um fato, e este uma interpretação, e assim por diante.
Seguindo aqui o diagnóstico de Culler (1999), a polêmica estabelecida em torno de problemas da
teoria da literatura não é tanto pelo que ela pode nos dizer sobre o que é uma obra literária, mas pelas
consequências que essa definição tem em relação à escolha dos métodos utilizados na sua análise. Cada
maneira de se ler uma obra implica tipos de inscrição estética e cultural muito diferentes entre si e tem
consequências importantes para o próprio papel da crítica.
Perspectiva relativamente diferente em relação à maneira de se referir à desconstrução tem ,sido
adotada pelos autores anglo-saxões, preocupados, em alguns casos, em explicar e operacionalizar
metodologicamente as propostas desse saber sobre o texto. Nesse sentido, o leitor interessado em
tomar a problemática da desconstrução retrabalhada pela perspectiva das categorias literárias lê, com
proveito, o trabalho de críticos ingleses e americanos (sobretudo os da chamada "desconstrução
americana") que ajudaram a divulgar o trabalho de Derrida e fizeram importantes intervenções na
teoria da literatura das últimas décadas. Paul de Man, Jonathan Culler, Geoffrey Hartman, J. Hillis
Miller, Peggy Kamuff, Christopher Norris, Derek Attridge e Geoffrey Bennington são alguns desses
autores que, de maneiras diferentes, mas pontuais, ajudaram a estabelecer o prestígio internacional
hoje ligado à obra e às ideias de Derrida.
De uma maneira ou de outra, a desconstrução não tem se omitido em desempenhar um papel
de destaque nos debates atuais, sobre a natureza da literatura e sobre seu lugar dentro das relações de
poder do mundo contemporâneo, ainda que o faça de maneira complexa e eventualmente conflitante,
uma vez que, sob o mesmo rótulo "desconstrução", inclui-se uma gama muito variada de autores,
nem sempre afinados em relação àquilo que o termo quer dizer.
Do ponto de vista da tradição acadêmica americana (e em parte da brasileira), a desconstrução
é geralmente interpretada como um modo de pensar o texto que questiona os postulados do
Estruturalismo e da New Criticism, além de incomodar a boa consciência teórica da crítica marxista
ortodoxa. Na medida em que esse contexto nos dá um elemento de diálogo, seria possível reconhecer
algumas referências e remissões teóricas que aparecem direta ou indiretamente nas análises propostas
por Derrida, às quais podem ser entendidas no contraponto com ide ias e conceitos operatórios
característicos da crítica literária nas últimas décadas.
Questíonando o privilégio da ideia de presença a si consciente e estável, a desconstrução pode ser
entendida como um gesto de pensamento que coloca em questão idealidades metodológicas muito
comuns na_crítica literária, tais como: a individualidade criadora (a "autoria"), a obra como totalidade
reconhecível, a unidade da leitura, o caráter acidental da figuração, o papel fundador da experiência
vivida ou da formalidade linguística, os conceitos de "gênero", de "forma", de "expressão", entre outros.
Noções como a intencionalidade (autoral ou textual) e singularidade do estilo (individual ou histórico),
como vimos, são também afetadas por um procedimento que podemos descrever como uma atenção a
todo tipo de instância na qual esteja envolvida a definição de presença ou identidade. Considerando, por
exemplo, a maneira pela qual um texto literário trabalha questões como o "desejo", o "corpo", o "tempo",
o "nacional", a "alteridade" etc., a crítica estaria comentando a relação desse texto com o acontecimento
do sentido. Trata-se não de negar sistematicamente as referidas "idealidades" do discurso da crítica, mas
de reconhecer no texto o lugar onde se constitui a base de sustentação de uma identidade discursiva

20R - T F n R I A I.ITFRÁRIA
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e mostrar, por meio de seus deslocamentos, suas exclusôes e suas hierarquizaçóes, os impasses desse
discurso do ponto de vista de sua relação com a ongem.
Se considerarmos a desconstrução como uma fórma de dramatização dos conflitos entre o
discurso e suas exclusões, repressões ou cumplicidades não admitidas, podemos dizer que se trata,
fundamentalmente, da leitura de um texto, de sublinhar a estrutura tensa que está na base da relação
supostamente pacificada com a origem do sentido (a relação logocêntrica). Dito de outra maneira, trata­
se de dar destaque à discordância entre a "gramática" (aquilo que um te:-.."1o fú e diz explicitamente) e a
"retórica" (a produtividade textual implícita) de lima obra, usando as palavras de De Man (1996).
Tomemos um exemplo. Em análise de te:-."1o de Marcel Proust. extraído de E/II husca do tempo perdido.
De Man mostra como o autor trabalha a situação romanesca por meio das assoCiações metafóricas. No
episódio descrito, o narrador conta sua relação com a leitura e a insere na situação solitária do quarto
envolvido pela penumbra. Essa situação ganha sentido a partir da associação com a exterioridade da
rua, promO\Tndo a aproximação entre o escuro (luminoso) do quarto e o claro da rua, entre a agitação
externa e o turbilhão da leitura. Nessa correspondência interior/exterior, segundo De Man, Proust dá
destaque ao procedimento metafórico e, paralelamente, concebe o ato de leitura como momento de
correspondência entre o significado externo (texto) e o entendimento interno (leitura). A gramática
do texto de Proust consiste, portanto, numa práxis figurativa que coincide com a defesa explícita de
uma espécie de superioridade estética da metáfora. •
No entanto, segundo De Man, o texto não pratica exatamente aquilo que prega. A presença de uma
teoria metafigurativa (que, por meio de procedimentos metafóricos, defende um ponto de vista solnl'
o problema da figura) complica a ideia de que o conhecimento se constitui pela metáfora. De maneira
semelhante, as estruturas metonímicas que sustentam o texto entram em conflito com as articulações
metafóricas explícitas. Usada para aumentar o grau de persuasão da defesa da metáfora, a presença da
relação metonímica estabelece uma tensão que corresponde à dissociação entre a gramática e a retórica
do texto de Proust. Pode-se dizer, nesse caso, que a retórica desautoriza a gramática do texto. Apesar de
compreender o ato de leitura como uma confluência entre o fora e o dentro, inclusive tematicamente,
ou seja, como uma união do sentido do texto com o sentido da leitura, o texto de Proust se revela
justamente no ponto em que a leitura desautoriza a produção.
Percebemos aí uma maneira de trabalhar o texto bastante diferente dos gestos de conciliação,
que procuram articular em um sistema analítico fechado elementos que se apresentam em contínua
oscilação, entre a convergência e o descompasso (forma e conteúdo, social e formal, real e textual etc.).
Essa desconstrução não concebe o texto como totalidade harmônica. Embora o desejo ou o projeto de
totalização seja uma das instâncias a serem consideradas, a tcxtualidade do texto é constituída por um
duplo gesto, uma relação de cumplicidade conflituosa entre o projeto afirmado e suas exclusões.
Nesse sentido, pode-se dizer que a desconstrução valoriza o reconhecimento do impasse,
instaurado por meio de dissimetrias discursivas. Esse reconhecimento não é da ordem da contradição
performativa (inconsistência teórica), nem de um puro pcrformativo da contradição (realização
poética). Trata-se, mais exatamente, de um efeito que nos leva a experimentar as dissociações entre
o fazer e o dizer. Se por um lado a desconstrução questiona o performativo poético, por outro
lado, no mesmo gesto, coloca como condição de existência da literatura a realização de um efeito de
impureza: apenas é literatura aquilo que, num determinado ato de leitura, se realiza como gesto que
desautoriza a sua própria apreensão como modelo. Nada mais estranho, portanto, ao literário do que
considerá-lo como uma forma da ajuda, ou da "autoajuda": a literatura teria a ver mais exatamente
com a inquietação e com o desassossego, ainda que não exatamente psicológicos.
Comportando ao mesmo tempo a impureza e a revelação dessa impureza, a literatura acabaria
produzindo implicações praticamente intermináveis para uma tentativa de definição do literário. Quando
Fernando Pessoa, no primeiro verso de um poema (do livro Mensagem), declama: "Todo começo é
involuntário", ele expõe o impasse do saber literário (do conhecimento que não pode se conhecer) e se
lança no âmago de uma ambivalência performativa que caberá a seu poema viver numa arriscada luta
corporal, tanto filosófica quanto histórica, padecendo inclusive dos revezes e dos nós dessa relação entre
história e verdade, essenciais para a definição de sua própria condição identitária,
"11\1\
Cf' ,, , , .. . .

1 Retomando o sentido mais geral da desconstrução p<lr:l <l tcona da literatura, podemos dizer que
, ela discute e coloca em questão, tanto a ideia do literário como discurso ilegítimo sobre a verdade,
quanto a ideia do literário como "forma de conhecimento" privilegiado. A leitura dos textos de
Derrida parece propor que a verdade do literário só pode ser vislumbrada no impasse ou na paixão
de uma experiência singular. No texto "Che (05'(: la poesia" (1992), Derrida apresent<l a questão da
poesia, distinguindo a noção de texto poético, tanto da ideia construtiva implicada no fazer (poiein) ,
quanto do projeto idealista da "poesia pur<l" e, até mesmo, guarante ele, da "realização-da-verdade"
de inspiração heideggeriana. Questionando visões de texto baseadas no argumento da identidade, o
autor propõe uma "certa paixão da nlarca singular" como o modo de manifestação do pensamento
sobre o poético. Nessa mudança de perspectiva do ponto de vista da teoria da literatura, é a própria
relação com o saber teórico (com a prática histórica, com a experiência identitária etc.) que se encontra
transformada. Passando a incluir o problema da paixão como maneira de sintetizar a dádiva e a dúvida
do conhecimento, somos convidados a suportar a responsabilidade de um sentido que nos ensina e
nos desautoriza, no momento mesmo em que acreditamos colocar um ponto final.

REFERÊNCIAS

CULLER,]. li'Oria da literatura: um,1ll1trodução. Tradução S;l.l1dra G.T. Vasconcelos. São Paulo: Beca, 1999.
DE MAN, P Alegorias da Leitura. Tradução Lenita Esteves. Rio de Janeiro: lmago, 1996.
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DERRIDA,]. Préjugés, devant la loi. In: DERRIDA et a!. LaJacu/té de juger. Paris: Minuit, 1985.
DERRIDA,]. De la grammatologie. Pans: Seuil, 1967a.
DERRIDA,]. Clas. Paris: Galilée, 1974.
DERRIDA,]. I.:écriture et la différcnce. Paris: Minuit, 1967b.
DERRIDA, J. La dissémination. Paris: Seuil, 1972a.
DERRIDA,]. Marges ­ de la philosophie. Paris: MinUlt, 1972b.
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DERRIDA,]. Signéponge/Signsp0n.~e. Tradução Richard Rand. Colurnbia: CUp, 1988.

210 -~ T E o R I A LITERÁRIA
MATERIALISMO

LACANIANO

Marisa Corrêa Silva

o QUE É MATERIALISMO LACANlANO

o materialismo lacaniano é uma corrente inicialmente ligada à filosofia política, e alguns de seus
principais representantes são o esloveno Slavoj Zizek (pronuncia-se "Slavói Jijéc") e o francês Alain
Badiou. Esses pesquisadores formularam suas teorias para críticar o pensamento marxista convencional.
Isso não significa que eles rejeitam Marx, mas que, aceitando as contribuições do filósofo alemão
para a história do pensamento, fazem a ressalva de que a economia e a luta de classes apenas não são
suficientes para dar conta de tudo o que acontece. Muitos pensadores já haviam feito essa crítica.
Por exemplo, Homi K Bhabha, citando Stuart Hall, explica que a doutrina ortodoxa da esquerda
utilizava uma lógica "unilinear e irreversível, movida por alguma entidade abstrata que denominamos
o econômico ou o capital" (HALL, apud BHABHA, 1998, p. 246). Em outras palavras, o pensamento
marxista ortodoxo não dá conta de fatores importantes que influenciam os acontecimentos dentro de
uma determinada sociedade.
Zizek (2001) dá um exemplo disso, comentando a obra de Badiou: quando a Itália, país ultra­
católico e conservador, aprovou a lei do divórcio. A mídia e os interesses dos grupos dominantes
eram majoritariamente contra; a população era submetida a um discurso que via na legalização do
divórcio um golpe de morte contra a família; mesmo assim, a lei foi aprovada. Ora, se utilizarmos
as ferramentas marxistas para pensar o assunto, essa aprovação é inexplicável, uma vez que ia contra
a tradição, o modo de pensar que se supunha típico da maioria da população italiana e os interesses
econômicos e políticos que prevaleciam naquele contexto. A esse tipo de fenômeno, Badiou dá o
nome de "evento", e Zizek diz que um Evento é sempre inesperado, vai contra todas as expectativas
e traduz uma "verdade" profunda, que não é expressa nos discursos, sejam eles de esquerda ou de
direita, relativos ao imaginário, ou seja, que pretendem explicar como um determinado grupo pensa
e quais são os seus valores.
Para dar conta desses elementos não contemplados pelo materialismo dialético, esses novos
filósofos recorreram às ide ias do psicanalista francês Jacques Lacan. Ler Lacan é uma aventura, uma
vez que seus escritos não propõem uma organização convencional de ideias. Os conceitos de Lacan
são vagos e indefinidos: o entendimento deles depende da leitura que se fizer e, ao longo dos livros,
percebe-se que ele próprio mudava a aplicação (e, portanto, a definição implícita) desses conceitos.
Ainda assim, os IlOVOS lacanianos fizeram uma leitura criativa e aplicações diferenciadas dessas
ideias. Segundo eks, Lacan, com sua recusa de definições, sua perpétua abertura para o jogo de novos
significados e sua proposta de que o Inconsciente se estrutura como linguagem (ele foi influenciado
pelos trabalhos de Ferdinand de Saussure, pioneiro da Linguística), se aproxima de autores como
Derrida e Deleuze, no sentido de recusar as formas de pensamento fechadas, calcadas na lógica
de origem grega, que acabavam resultando em formas autoritárias de pensamento, uma vez que
caíam facilmente no dualismo e no maniqueísmo. Esse maniqueísmo (que definiremos, de forma
simplificada, como a ideia de que as coisas são ou absolutamente boas ou absolutamente más) teria
sido o principal erro do pensamento das esquerdas ao longo do século XX.
Essa aplicação de Lacan resgata o subjetivo, o psicanalítico e as pressões do Inconsciente para
o campo da coletividade, do social. Ao fazê-lo, eles se propõem a retomar as propostas da esquerda
tradicional, ou seja, de buscar um humanismo possível, de defender os grupos sociais e a humanidade
da lógica do Capitalismo, que vê no lucro a finalidade e o bem maior, sacrificando a maioria dos seres
humanos, os animais, o meio ambiente, entre outros fatores, para cumprir suas propostas. Por isso, a
nova corrente recebeu o nome de materialismo lacaniano, em oposição ao materialismo dialético.
O materialismo lacaniano é complexo, mas sua aplicação é vasta. Zizek levou o tema para além
da filosofia política e aplicou os conceitos em campos como o dos Estudos Culturais, analisando
fenômenos como os atentados de 11 de Setembro, manifestações da chamada Cultura de Massa cômo
os filmes de Alfred Hitchcock etc.
Dentro da Literatura,já há aplicações importantes dessa corrente, como o livro de Phillip Rothwell,
A Canon ofEmpty Fathers, no qual o pesquisador britânico radicado nos EUA demonstra que a história
da Literatura Portuguesa pode ser revisitada, fazendo a ligação dos conceitos de império ultramarino
com as explicações lacanianas sobre a função da figura paterna, proibitiva e ameaçadora, na psique
coletiva e, portanto, na representação literária que o português faz de si mesmo.

CONCEITOS BÁSICOS DE ]ACQUES LACAN

Faz-se necessária uma breve explanação de alguns conceitos que Zizek tomou emprestado de
Jacques Lacan. O leitor deve ter em mente que o trabalho de Lacan, vasto e redigido com profusão
de jogos de palavras, trocadilhos, paradoxos, foi repensado e reelaborado pelo próprio ao longo dos
anos, sem que o autor tivesse a preocupação de criar um set de definições "finais", de modo que vários
desses conceitos são polêmicos e despertam interpretações divergentes. Embora este texto procure o
manter-se o mais próximo possível de Zizek, as explicações resumidas de tópicos complexos sempre
trazem perigo de erro: esses breves parágrafos constituem uma tentativa de familiarizar o leitor com a
ferramenta teórica utilizada neste texto, mas não podem ser considerados um sumário do pensamento
de Lacan.
Em "In His Bold Gaze my Ruin is Writ Large" (ZIZEK, 1992), o filósofo esloveno faz considerações
importantes,sobre a narrativa:

A "curvatura" do espaço narrativo registra o fato de que o sujeito nunca vive no "seu próprio
tempo": a vida do sujeito é fundamentalmente barrada, atrapalhada; ela cai numa modalidade
"ainda-não", no sentido de ser estruturada como a expectativa e/ou a memória de um:x, de
um Evento no sentido pleno (o nome que Henry James dava para isso era o pulo da "fera
na selva"), gasto na preparação para um momento em que as coisas vão "realmente começar
a acontecer", quando o sujeito vai "realmente começar a viver" ... mas quando finalmente
nos aproximamos de:x, ele se revela no seu oposto, na morte - o momento do nascimento
coincide com a morte. O ser do sujeito é um ser-para... estruturado em relação a um X
traumático, um ponto de simultânea atração e repulsão, um ponto cuja extrema proximidade
provoca uma eclipse do sujeito. Ser-para-a-morte é, portanto, em sua estrutura inerente,

212 - T E O R I A LITERÁRIA
----.---~ M ,\ T F H I 0\ I I S M (l l. ,\ (', N I A N ()

possível apcnas com um scr-de-lmguagem: o espaço curvo é sempre espaço sImbólico; o que
causa a curvatura do espaço é o fato de que n campo sIlllbóhco é, por definiçao, estruturad()
e!ll torno de um ~elo perdIdo" (p. 243, tLldução nunha).

Para ele, essa curva é a ligação alegórica entre espaço narrativo e o processo de enunciação, e o
que ele chama de "fechamento narrativo" é o fato de o sujeito, retroativamente, conferir significado
numa série de eventos contingentes (casuais) e assumir seu destino simbólico, colocando-se num
lugar "próprio" na tessitura da narrativa simbólica.
Vale a pena lembrar que Zizek utiliza o conceito de "Simbólico" em termos lacanianos, ou seja,
trata-se do estágio no qual o indivíduo estruturou uma série de códigos, leis e proibições, que permitirão
sua socialização. O simbólico surge através da internalização do "Nome-do-Pai" (em francês, Nom­
du-Pére, trocadilho entre "nome" e "não", de modo que "Nome-do-pai" também significa a proibição
paterna original: o incesto edípico.), portanto através da ruptura com o tempo idílico de comunhão
absoluta com a mãe (notemos que mãe e pai, para Lacan, não são necessariamente a mãe e o pai
biológicos, mas quaisquer entidades que operem funcionalmente como tais; são categorias simbólicas).
Essa ruptura se cristaliza como uma "falta", um Éden perdido, sentida agudamente pelo indivíduo.
Uma castração, metaforicamente falando, O indivíduo, traumatizado por essa ruptura, projeta essa
integração absoluta para sempre perdida em objetos diversos, que Lacan chamou de "objeto a" (ohject
petit a), que passam a funcionar ao mesmo tempo como objetos de desejo e como dolorosa evidência
da falta da integração harmoniosa.
Lacan conceitua neurose, perversão e psicose com relação ao Simbólico. De maneira muito
resumida, dir-se-á que a neurose é o resultante da aceitação das regras do Simbólico, uma vez que
essas regras se configuram como proibição, originando a repressão de desejos, e a repressão nunca é de
fato efetiva: o reprimido retorna, algo escapa ao controle e se manifesta como neurose. A perversão é
conhecer as regras e agir deliberadamente como se elas não existissem; a psicose é falhar ao conhecer as
regras, é de fato não saber que elas existem. Se o neurótico tem que lidar com uma culpa angustiante,
o perverso tem prazer na culpa e o psicótico não tem culpa.
Se o Simbólico é a ordem do significante, é preciso que outra ordem corresponda ao significado
e à significação. Essa seria, para Lacan, a ordem do Imaginário. Ele crê que o Simbólico estrutura o
Imaginário, que engloba o campo visuaL A linguagem, portanto, tem relação tanto com o Simbólico
quanto com o Imaginário,
Lacan também criou conceitos como o Real (que não é a nossa realidade no sentido do senso
comum, nem é o oposto do Imaginário). O Real é o que está para além do que pode ser representado
na rede do Simbolismo. Se o que chamamos realidade é um produto distorcido das nossas percepções,
o Real é um excesso (surplus) que não cabe nessa realidade, só pode ser percebido pelo seu brilho,
para o qual não se pode olhar diretamente, como o brilho do SoL É indizível e, portanto, chocante,
traumático. Segundo Zizek, o Real pode irromper na vida do sujeito através de um evento traumático,
seja ele físico ou psicológico. No momento em que isso acontece, "a vida perde o sentido", por assim
dizer, os laços simbólicos desatam, deixando que mergulhemos no caos. O ..Real não pode ser dito,
representado, mas pode ser indicado e um dos termos que Lacan utilizou para essa coisa que o indica
é, justamente, "a coisa" (Das Ding). Ela indica o Real indizível mas não é o Real, é externa a ele, da
mesma maneira que a emissão de raios X em torno de um buraco negro invisível não é o buraco, mas
o indica,
Zizek (2006) diz que Lacan diferencia Desejo (desire) de Pulsão (drive). O primeiro é para sempre
impossível de satisfazer, urna vez que remete ao tempo anterior ao Nome-do-Pai e à intervenção
do Simbólico. O Desejo pode se concentrar num objeto mas, assim que o obtém, desvia-se dele
para se focar em outro, pois nenhum objeto realmente supre o que o Desejo pede. Mais que isso, o
Desejo sequer pertence ao sujeito: ele é sempre o desejo do Outro (Autre), uma entidade contra a qual
ainda na inrancia o sujeito se erige mas em relação à qual ele se coloca como objeto: o Outro sempre
estJ observando o sujeito, fazendo-o reagir. Qualquer ação é, em verdade, uma reação ao olhar do
Outro internalizado; deseja-se porque se supõe que o Outro deseje. A "situação" de sujeito, portanto,
y','
~
'I A. I . . h . . .
e re aCIona: para se engtr em sUJeito, um ser umano preCIsa constitUir esse Outro vagamente
ameaçador e se colocar em relação a ele. O Desejo não é, portanto, uma força vital, mas o resultado do
processo de perda pelo qual o sujeito passa ao se constituir. O discurso do Outro seria um sinônimo
do Inconsciente, a voz daquilo que o sujeito não reconhece como seu.
Já a Pulsão é um mecanismo que se contenta em repetir infinitamente a aquisição do objeto para
o qual ela aponta, repetindo também infinitamente o processo da perda. Se o "objeto a" representa a
perda para o Desejo, para a Pulsão a própria perda se torna o objeto a ser perseguido e reencenado.
jouíssa/lCe, costumeiramente traduzida por "gozo", implica mais do que prazer: é a absoluta entrega
que vai do máximo prazer à máxima dor e que engloba todos os pontos dessa trajetória ao mesmo
tempo, numa concentração única. Lacan, porém, alterou ao longo do tempo esse conceito, de modo
que ele pode significar simplesmente prazer em alguns trabalhos. Nos anos 70, ele teorizou que, para
se constituir sujeito, adentrando o Simbólico, o gozo deve ser sacrificado, ao menos parcialmente.
Portanto, o gozo reinsere o indivíduo na dimensão pré-simbólica. Discutindo "Psicose", de Hitchcock,
Zizek (1992) aponta como Deus pode funcionar como Nome-do-Pai, reduzido a uma figura de
autoridade simbólica: sendo assim, esse Deus desconhece o gozo, uma vez que a ordem simbólica,
instaurada a partir do Nome-do-Pai, oblitcra o Real, "matando-o".
Zizek também utiliza bastante a teoria lacaniana dos quatro discursos, que seriam quatro
formas de relação intersocial organizada através dos comportamentos discursivos: (1) o discursô do
Mestre, objetivando dominar, penetrar: é considerado inautêntico e inconsistente; (2) o discurso da
Universidade, implantando como valor absoluto o conhecimento supostamente "objetivo". Inautêntico
mas consistente, em geral esse discurso serve a algum discurso de Mestre dominante, ainda que não
o assuma; (3) o discurso da Histérica: autêntico mas inconsistente, trata-se de uma modalidade que
revela resistência ao discurso do Mestre; (4) o discurso do Analista: autêntico e consistente, ele subverte
deliberadamente o discurso do Mestre em dominância.
A teoria de Lacan também contempla o conceito do Outro (big Other, em inglês). O Outro é uma
instância onipresente, criada pelo indivíduo no processo de separar a si próprio do resto do mundo,
ou seja, no processo de individuação. Ele é invisível, mas está sempre em torno de nós. Por exemplo,
quando alguns amigos estão juntos e todos sabem um segredo vergonhoso de um deles. Enquanto
ninguém toca no assunto, eles estão à vontade, conversando e fazendo piadas. De repente, um deles
deixa escapar uma referência ao segredo. Imediatamente, todos ficam constrangidos. Por que, se todos
já sabiam do assunto? Segundo Lacan, é porque agora o Outro sabe (ZIZEK, 2006).
Esse conceito é utilizado por Zizek (2001) para comentar os expurgos de Stálin. O camarada
acusado de conspirar contra o Socialismo, antes de ser condenado, era forçado a reconhecer em voz
alta, durante o 'Julgamento", os "crimes" ou "erros" que teria cometido. Por que, pergunta ZiZek,
se ele seria condenado da mesma forma, se os indivíduos responsáveis pela sentença já estavam
irremediavelmente convencidos de que a condenação era inevitável? Porque o Outro deveria ser
informado. É como se ele fosse uma espécie de fiscal (embora diferente do Superego postulado por
Freud, que é uma instância interna da personalidade do indivíduo), vagamente ameaçador, pairando
sobre nossas cabeças.
Além do Outro, Lacan teorizava que havia o outro, uma espécie de "outro eu", resultante do
autoexame ,da criança no espelho. Assim como a imagem no espelho, esse outro "não sou eu, mas a
mim se assemelha muito". Essa ideia tem alguns pontos em comum com o conceito romântico de
doppelganger, o Duplo, explorado por vários artistas, como José Saramago, em seu romance O Homem
Duplicado. O outro, ao contrário do Outro, pode ser projetado em outros seres humanos ou até
em objetos e não é, necessariamente, atemorizador. Essa projeção é necessária porque, para Lacan,
"identidade" é uma ilusão, criada pelo sujeito à custa de enormes sacrifícios psíquicos.
Outro conceito lacaniano importante é o capitonê (quilting poínt, em Zizek), que é o "ponto de
amarração do sentido", UTJl momento em que um determinado conjunto de significados parece parar de
deslizar sob os significantes e adquirir sentidos fixos, seguros. O capitonê assemelha-se ao Significante
Mestre, na medida em que cria uma versão coesa da realidade índizível; por isso, os dois termos são

214 ~ T E o R I A LITERÁRIA
-- - ~ M.'\ I I H I .A I I ' .'1') L\, c\ I.A N (l

usados como sinônimos. Por exemplo, Phillip Rothwell nos Seminários de Pós-Graduação da Rutgers
University, propõe que a ideia de Império Ultramarino é, até hoje, um capitonê no imaginário de
Portugal, nação marcada pela conquista marítima.
O "Significante Mestre" (Master Signifier) , segundo Zizek (relendo Laclau e MoutTe), é um ponto
central, vazio, nulo, a partir do qual a complexa rede de discursos concomitantes que lutam pela
hegemonia dentro da sociedade podem ser observados e estruturados. Da mesma maneira que, na
linguagem, os signos não possuem sentido per se mas apenas através de suas relações de oposição com
todos os outros, os elementos ideológicos só podem pretender ancorar a realidade na medida em que
se articulam e contrastam uns com os outros. O que confere sentido, unidade, ao Social, só pode ser
nomeado por algo que esteja fora dela. O Significante Mestre seria um ponto panóptico, a partir do
qual essa visualização pode ser feita. Ele funciona retroativamente: é um vazio, mas a partir desse vazio
a realidade começa a se assemelhar ao que ele descreve.
Um exemplo que ZiZek dá de master signifier é a releitura que São Paulo faz da "ida de Cristo.
Inicialmente, a morte ignominiosa na Cruz é a perda traumática, o signo do fracasso absoluto do
projeto de reformar a sociedade judaica. Porém, São Paulo desloca a leitura dos fatos para a seguinte: a
morte na Cruz foi a absoluta vitória, o cumprimento total dos objetivos do Cristo (padecer para remir
a humanidade do Pecado Original, restaurando a harmonia com o Pai e livrando os humano~ da culpa).
Com a introdução desse novo olhar, a reforma social aparentemente fracassada com a eliminação
de seu líder acabou ocorrendo, embora não necessariamente tivesse mantido seu projeto original.
(ZIZEK, 2007). Retrospectivamente, ele confere um novo sentido à vida de Cristo e estabelece as
bases do catolicismo, ou seja: cria uma nova configuração na economia simbólica do social.

EXEMPLOS NO CAMPO LITERÁRIO

Para exemplificar como essa corrente de pensamento pode ser útil aos estudos literários, observemos
o conto "An10r", de Clarice Lispector. Nesse conto, Ana, a protagonista, tem uma epifania ao observar
um cego mascando chicletes num ônibus. Nos breves momentos q11e se seguem a essa visão, Ana
sente sua vida virada pelo avesso, num movimento de estranhamento ou de fulguração que as palavras
custam a expressar. Quando o momento epifânico passa, essa mulher "retoma" à normalidade e ao seu
cotidiano inexpressivo de dona-de-casa.
Ora, por que essa experiência epifànica avassaladora é recusada pela protagonista? Por que o
evidente alívio e gratidão que a mulher sente ao "retornar" à normalidade? Seria isso uma crítica
velada à mulher pequeno-burguesa? Mas esse tipo de preocupação não é nada característico da obra
de Lispeétor. Como explicar o comportamento de Ana e de outras protagonistas de Lispector que
também parecem não serem capazes de retornar nem mais sábias nem mais capazes da experiência
epifànica, como a mulher anônima de "O Búfalo"? .
Ora, se considerarmos que as epifanias de Lispector são encontros com o Real lacaniano, suas
respostas fazem pleno sentido. Elas são incapazes de colocar o Real em palavras, e recusam essa
experiência porque é isso que qualquer ser humano faz, se colocado nas mesmas circunstâncias.
O encontro com o Real é assustador, impossível de ser descrito em palavras, traumático, uma vez
que o ser humano é incapaz de apreendê-lo. O texto é uma tentativa de ressimbolizar a experiência,
arrastando-a, por meio da palavra, para o domínio conhecido e seguro do Simbólico.
Outro exemplo de como o materialismo lacaniano pode enriquecer o entendimento do texto
literário é sua aplicação numa reflexão sobre as personagens femininas do romancista português José
Saramago (SILVA, 2008). Conhecido pela idealização que projeta sobre suas protagonistas, sempre
centradas, benéficas, razoáveis, amorosas c fonte de conforto e de companheirismo, Saramago
é considerado um autor simpático às feministas, mas com a possível ressalva de que o excesso de
T';~e~;:çãO pmJeta oa molhe< os papé;s h;sto<;camente «pcess;vos de mãe/amante/«cva. Como
, explicar essa idealização sem cair no equívoco, ou na simplificação, de acusar Saramago de repetir
estereótipos falocêntricos e machistas?
Para isso, é preciso observar exatamente como suas personagens femininas funcionam, no texto,
em relação aos parceiros amorosos. Ora, a realização amorosa, em Saramago, sempre vem a braços
com uma retomada do equilíbrio da personagem masculina. Quando Raimundo Silva se relaciona
com Maria Sara, em História do Cerco de LislJOa, ou quando Cipriano Algor finalmente se decide a
viver um romance com Isaura, em A Cavema, tais momentos marcam uma "virada" na trajetória do
protagonista, ocorrendo concomitantemente à decisão, ou à descoberta, de tomarem as rédeas de suas
vidas e de iniciarem uma existência mais consciente e autônoma, em oposição à angústia mesclada de
solidão e de impotência na qual esses dois homens viviam antes.
Portanto, a mulher em Saramago representa não o "objeto a", simultaneamente sedutor e
assustador, como a mulher fatal dos romances noir, mas sim o falo, no sentido lacaniano, ou seja, o
elemento que representa a cura do corte primordial, aquilo que foi "perdido" no instante em que o
indivíduo sofreu a entrada no Simbólico, sendo separado da Vontade da Mãe pelo Nome-do-Pai. Esse
corte primordial, equiparado à castração, é necessário, embora doloroso: continuar em harmonia com
a Mãe, ou o Todo, representaria a morte. Mas o Falo lacaniano é a representação dessa falsa harmonia,
desse estágio edênico do qual o indivíduo julga que foi separado.
Portanto, a mulher em Saramago é de fato uma idealização, pois representa uma oportunidade
(impossível e, na realidade, desastrosa se de fato ocorresse) de reintegração com a fase pré-simbólica.
Por isso ela sempre traz conforto, paz e completude ao seu companheiro.
Como podemos ver, o materialismo lacaniano é complexo e exige muito cuidado com o rigor em
sua aplicação: ainda assim, trata-se de uma proposta capaz de lançar luzes sobre a composição literária,
além da filosofia, política, sociologia e Estudos Culturais.

REFERÊNCIAS

BHABHA. H. K "O Pós-colonial e o Pós-Moderno". In O Local da Cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço
de Lima Reis e Gláucia R. Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p. 239-273.

SILVA, M. C. "Representações femininas em Helder Macedo e Saramago: olhares masculinos". Comunicação

apresentada no XI Congresso Internacional da ABRALIC,Julho de 2008. Disponível em <http://www.abralic.

orglmodlglossary/view.php?id=31>. Acessado em 25 novo 2008.

ZI.ZEK, S. For they know not what they do. London: Verso, 2007.

ZIZEK, S. Row fé Read Lacan. N. York/London, ww. Norton, 2006.

ZIZEK, S. Did Somebody Say Totalitarianism? London: Verso, 2001.

ZIZEK, S. (org.). In his bold gaze my ruin is writ large. In: ZIZEK, S. (org.). Everythingyou always wanted to know

about Lacan (but were afraid to ask Ritchcock). London: Verso, 1992. p. 231-232.

216 - T E o R I A LITERÁRIA
I
r
!

CRÍTICA FEMINISTA

Lúcia Osana Zolin

OS ESTUDOS DE GÊNERO E A LITERATURA

Desde a década de 1960, com o desenvolvimento do pensamento feminista, a mulher vem se


tornando objeto de estudo em diversas áreas de conhecimento, como a Sociologia, a Psicanálise, a
História e a Antropologia. Também no âmbito da Literatura e da Crítica Literária, a mulher vem
figurando entre os temas ahordados em encontros, simpósios e congressos, bem como se constituindo
em motivo de inúmeros cursos, teses e trabalhos de pesquisa.
No entanto, tal presença não deve ser analisada como um fato que passa a despertar curiosidade
por estar ligado a esse momento de afirmação. Na verdade, é uma presença que ultrapassa o pontual
e o eufórico para se conjugar a todo um processo histórico-literário. Mais importantes do que
as polêmicas geradas a partir do movimento feminista são os efeitos provocados por ele em seus
diferentes momentos. Um desses efeitos, e é o que nos interessa neste capítulo, está ligado a um
dos diversos instrumentos de que dispomos hoje para ler e interpretar o texto literário: a crítica
feminista.
Desde a sua origem em 1970, com a publicação, nos Estados Unidos, da tese de doutorado
de Kate Millet, intitulada Sexual politics, essa vertente da crítica literária tem assumido o papel de
questionadora da prática acadêmica patriarcal. A constatação de que a experiência da mulher como
leitora e escritora é diferente da masculina implicou significativas mudanças no campo intelectual,
marcadas pela quebra de paradigmas e pela descoberta de novos horizontt<s de expectativas.
Nas últimas décadas, muitas facções críticas defendem a necessidade de se considerar o objeto de
estu90 em relação ao contexto em que está inserido; de alguma forma, tudo parece estar interligado.
No que se refere à posição social da mulher e sua presença no universo literário, essa visão deve muito
ao feminismo, que pôs a nu as circunstâncias sócio-históricas entendidas como determinantes na
produção literária. Do mesmo modo que fez perceber que o estereótipo feminino negativo, largamente
difundido na literatura e no cinema, constitui-se num considerável obstáculo na luta pelos direitos da
mulher.
Estudos acerca de textos literários canOl1lCOS mostram inquestionáveis correspondências
entre sexo e poder: as relações de poder entre casais espelham as relações de poder entre homem
e mulher na sociedade em geral; a esfera privada acaba sendo uma extensão da esfera pública.
Ambas são construídas sobre os alicerces da política, baseados nas relações de poder.
:~o 1 J N

·1 Se", cebçõ" "''', ,,, ,ex", ". dNnvohm "gundo um, micn"ç'o politi" , de p"b. tamhém
. a crítica literária feminista é profundamente política na medida em que trabalha no sentido de interferir
na ordem social. Trata-se de um modo de ler a literatura confessadamente empenhado, voltado para a
desconstrução do caráter discriminatório das ideologias de gênero, construídas, ao longo do tempo, pela
cultura. Ler, portanto, um texto literário tomando como Il1strumentos os conceitos operatórios fornecidos
pela crítica feminista (veja quadro a seguir) implica investigar o modo pelo qual tal texto está marcado
pela diferença de gênero, num processo de desnudamento que visa despertar o senso crítico e promover
mudanças de mentalidades, ou, por outro lado, divulgar posturas críticas por parte dos(as) escritores(as) em
relação às convenções sociais que, historicamente, têm aprisionado a mulher e tolhido seus movimentos.
Considerando as circunstâncias sócio-históricas como fatores determinantes na produção da
literatura, uma série de críticos(as) feministas, principalmente na França e nos Estados Unidos, tem
promovido, desde a década de 1970, debates acerca do espaço relegado à mulher na sociedade, bem
como das consequências, ou dos reflexos daí advindos, para o âmbito literário.
O objetivo desses debates, se os contemplarmos de modo amplo, é a transformação da condição de
subjugada da mulher. Trata-se de tentar romper com os discursos sacralizados pela tradição, nos quais a
mulher ocupa, à sua revelia, um lugar secundário em relação ao lugar ocupado pelo homem, marcado pela
marginalidade, pela suhmissão e pela resignação. Tais discursos não só interferem no cotidiano femillino,
mas também acabam por fundamentar os cânones críticos e teóricos tradicionais e masculinos que regem
o saber sobre a literatura. Assihl, a crítica feminista trabalha no sentido de desconstruir a oposição homem!
mulher c as demais oposições associadas a esta, numa espécie de versão do pós-estruturalismo.

Termo empregado em dois sentidos distintos; a determinação de cada um depende do


contexto em que está inserido: na maIOr parte das vezes, o termoJeminino aparece em
oposição a masculino e faz referência às convenções sociais, ou seja, a um conjunto de
Feminino
características (atribuídas à mulher) definidas culturalmente, portanto em constante
processo de mudança. Pode referir-se, todavia, simples e despojadamente ao sexo
feminino, ao dado puramente biológico, sem nenhuma outra conotação.

Trata-se de um termo que não é utilizado no sentido panfletário que costuma ter
entre nós, mas tal como é utilizado em língua inglesa: como categoria política, e
Feminista não pejorativa, relativa ao feminismo entendido como movimento que preconiza a
ampliação dos direitos civis e políticos da mulher, não apenas em termos legais, mas
também em termos da prática social.

Categoria tomada pela crítica feminista de empréstimo à gramática. Originariamente, gênero


consiste no emprego de desinências diferenciadas que visam designar indivíduos de sexos
diferentes ou coisas sexuadas. A crítica feminista, todavia, fez com que o tenno assumisse
outras tintas: toma-o como uma relação entre os atributos culturais referentes a cada um
Gênero
dos sexos e à dimensão biológica dos seres humanos. Trata-se, portanto, de uma categoria
que implica diferença sexual e cultural. O sujeito é constituído no gênero em razão do
sexo a que pertence e, principalmente, em razão de códigos linguísticos e representações
culturais que o matizam, estabelecidos de acordo com as hierarquias sociais.

Termo utilizado no sentido empregado por Jacques Derrida, seu criador, para designar
Logocentrismo o pensamento canônico, num contexto marcado pelo empenho em desmontar e
desqualificar a mistificação implícita no discurso filosófico ocidental.

Termo tomado por algumas escritoras e críticas francesas para desafiar a lógica predominante
Falocentrismo
no pensamento ocidental, bem como a predominância da ordem masculina.
~ _ _ _ _ _ _---L-_ _ _ _ _ _ _ _ _ __

")1\1 fTTJ:'RÁQJA
--_.~ c: P 1 1 1 <: A f 1 M f " 1 ' 1 .'1

Termo uti lizado para designar uma espécie de organização famihar ongm;Ína dos povos-j
antIgos, na qual toda lI1stltUlção sOCIal concentrava-se na fi~Tura de um chefe, o patrI:lrca,
Patriarcalismo cuja autoridade en preponderante e incontestáveL Esse conceito tem permeado a maiori:l I
das dIscussões, travad:1s no contexto do pensamento fem1l11sta, que envolvem a questão
da opressão da mulher ao longo de sua história,
I---

Termo que provém da obra de Jacques Derrida, utilizado pelos teóricos da literatura I

em uma espécie de crítica das oposições hierárquicas que estruturam o pensamentu


ocidental, tais como: modelo x imitação; dominador x dominado; forte x fraco; presença
Desconstrução x ausência; corpo x mente; homem x mulher. Trata-se de se apoiar na convicção de que
oposições como essas não são absolutamente naturais, nem inevitáveis, mas construções
ideológicas que podem ser desconstruídas, isto é, submetidas a estrutura e funcionamento
diferentes,

A dialética da identidade/alteridade foi originalmente elaborada pela filosofia (de Descartes


a Sartre) , sendo que a "identidade foi concebida como um núcleo e a alteridade como
uma 'exterioridade', um 'estranho', uma 'negativa' do si-mesmo, orbitando ao seu redor"
(WADDINGTON, 1996, p. 337). Trazendo-a para o mundo das relações de poder na sociedade
patriarcal, o núcleo coube ao homem, "senhor da razão, da lei, da religião e proprietário das
riquezas" (WADDINGTON, 1996, p. 337); a periferia, à mulher, expropriada desses atributos
A partir desse contexto da exterioridade, da estranheza e da negatividade, foi atribuída uma
Alteridade
alteridade à mulher, mas alteridade entendida como sinônimo de condição objetaI e de
identidade em falta, e não uma alteridade autêntica, intersubjetiva. Esta permaneceu por ser
conquistada, O desnudamento da alteridade da literatura de autoria feminina constitui-se na
base da abordagem feminista na literatura. Isso implica dizer que a análise das obras escritas
por mulheres é realizada visando promover o desnudamento da alteridade do discurso
feminino, de acordo com o princípio da diferença, ou seja, como um discurso "outro" em
relação ao "mesmo".

Categorias utilizadas para caracterizar as tintas do comportamento feminino em face dos


parâmetros estabelecidos pela sociedade patriarcal: a mulher-sujeito é marcada pela insubordinação
Mulher-sujeito
aos referidos paradigmas, por seu poder de decisão, dominação e imposição; enquanto a mulher­
c
Mulher-objeto
o~eto define-se pela submissão, pela resignação e pela falta de voz, As oposições binárias subversão/ I
aceitação, inconfonnismdresignação, atividade/passividade, transcendência/imanência, entre
outras, referem-se, respectivamente, a essas designaç('xs e as cornplementam.

Quadro 1. Conceitos operatórios da crítica feminista.

Fió:mais claro entender o que vem a ser crítica literária feminista, e como ela funciona, quando
se tem conhecimento de algumas noções prévias acerca do feminismo entendido como o movimento
social e político que lhe deu origem. Em razão disso, passemos, de início, a umá espécie de mapeamento,
ainda que rápido, do contexto em que se desenvolveu essa facção da crítica literária, como origens,
precprsores, reivindicações etc. para, posteriormente, de posse dessas informações, determo-nos
propriamente em sua essência.

A QUESTÃO DA MULHER NO SÉCULO XIX

Alguns teóricos(as), apoiados(as) na premissa de que se podem localizar na história inúmeras fomus
de feminismo, entendidas como frentes de respostas para a "questão da mulher", defendem a tese de que
~ () L I N

I sua abrangência estende-se dos matriarcados neolíticos ao feminismo radical contemporâneo. Seja como
t for, mesmo que se entenda que o feminismo esteja restrito aos últimos dois ou três séculos, trata-se de
um movimento político bastante amplo que, alicerçado na crença de que, consciente e coletivamente, as
mulheres podem mudar a posição de inferioridade que ocupam no meio social, abarca desde refonnas
culturais, legais e econômicas, referentes ao direito da mulher ao voto, à educação, à licença-maternidade, à
prática de esportes, à igualdade de remuneração para função igual etc., até uma teoria feminista acadêmica,
voltada para reformas relacionadas ao modo de ler o texto literário.
Algumas declarações públicas que descrevem "mulheres" como uma categoria social distinta, com
status social inferior, remontam ao século XVIII. É o caso do documento Some reflecfÍorzs upon marriage
lAlgumas reflexões sobre o casamento], de Mary Astell, datado de 1730, que ironiza a sabedoria
masculina e despoetiza as relações existentes na sociedade familiar. Ela questiona o fato de o poder
absoluto não ser aceito no estado político, por ser um método impróprio para governar seres racionais
e livres, mas existir na família. Do mesmo modo que questiona o fato de todos os homens nascerem
livres e todas as mulheres nascerem escravas. Até a construção social do sujeito feminino é discutida
por Astell, quando ela afirma que Deus distribuiu a inteligência a ambos os sexos com imparcialidade,
mas que o conhecimento foi arrebatado pelos homens a fim de que eles se mantivessem no poder.
Na França, Marie Olympe Gouges, uma das ativistas da Revolução de 1789, apresenta à Assembléia
Nacional, em 1791, a sua cor;:úosa Déclaration des droits de la jemme et de la citoyennc (Declaração dos dir,eítos
da mulher e da cidadã), em que defende a ideia de que as mulheres devem ter todos os direitos que o
homem tem ou quer para si, inclusive o de propriedade e de liberdade de expressão; em contrapartida,
devem assumir também toda sorte de responsabilidades que cabem aos cidadãos do sexo masculino,
como o pagamento de impostos, a punição por crimes cometidos e o cumprimento de todos os deveres
públicos cabíveis a um cidadão comum. Além disso, Gouges cobra das mulheres vigor nas reivindicações
de mais liberdade democrática para seu sexo. Em 1792, a inglesa Mary Wollstonecraft escreve um dos
grandes clássicos da literatura feminista, A Vindícation of the Rights ojlMJman (A, reivindicações dos direitos
da mulher), retomando as reivindicações da extensão dos ideais da Revolução Francesa às mulheres.
Baseada no argumento do dano econômico e psicológico sofrido pelas mulheres em decorrência de
sua dependência forçada do homem e da exclusão da esfera pública, ela defende uma educação mais
efetiva para elas, capaz de aproveitar-lhes o potencial humano e torná-las aptas para se libertarem da
pecha da submissão e da opressão, tornando-se, de fato, cidadãs, como lhes é de direito.
No entanto, o feminismo organizado só entrou no cenário da política pública nos Estados Unidos
e na Inglaterra por volta da segunda metade do século XIX, por meio das petições que reivindicavam
o sufrágio feminino e das campanhas pela igualdade legislativa.
Em 1840, as americanas Elizabeth Cady Stanton, Susan B. Anthony e Lucy Stone passaram a
liderar um sólido movimento pelos direitos das mulheres. As duas primeiras criaram aNationallMJman
Suffrage Association (A~sociação nacional para o voto das mulheres), que, além de reivindicar o voto feminino,
lutava pela igualdade legislativa, enquanto Stone criava aAmerican Woman's SuffrageAssociatiol1 (Associação
americana para o voto das mulheres), que somava às reivindicações sufragistas outras ligadas à reforma das
leis do divórcio. Essas duas organizações foram fundidas em 1890 para formar a National American
lMJman's SuffrageAssociation (NAWSA) (Associação nacional americana para o voto das mulher;s), que, contando
com o apoio de outras ativistas, conseguiu o direito de voto às mulheres americanas em 1920.
Na Inglaterra, a condição social da mulher na Era Vitoriana (1832-1901) foi tenazmente marcada por
diversos tipos de discriminações,justificadas com o argumento da suposta inferioridade intelectual das
mulheres, cujo cérebro pesaria 2 libras e 11 onças, contra as 3 libras e meia do cérebro masculino. Resulta
disso que a mulher que tentasse usar seu intelecto, ao invés de explorar sua delicadeza, compreensão,
submissão, afeição ao lar, inocência e ausência de ambição, estaria violando a ordem natural das coisas,
bem como a tradição religiosa. Eram esses os valores apregoados pela rainha Vitória em suas cartas e
por suas súditas em guias vitorianos como The Jemale instructor (A professora), de autor anônimo, ou The
women of EnJ?land (As mulheres da Inglaterra), de Sarah Stickney Ellis, publicado em 1839. O primeiro
relembra insistentemente à esposa sua condição de dependente e submissa, recomendando-lhe o uso
constante da aliança de casamento, de modo que, quando se sentisse "perturbada", ela pudesse colocar

220 - T E o R I A LITERÁRIA
-----~ C R í I I l ,\ F I· M I N I , r II

os olhos sobre ela e lembrar-se de quem a dera para si. O segundo reitera que a condição de subjugada
da mulher deve ser tomada como sendo de vontade divina.
Se no âmbito da lei, as mulheres eram destituídas de poder, no âmbito das práticas sociais e
familiares a realidade era outra. A maioria delas, além de não ter interesse em se submeter a esse
tendencioso modelo de organização social, não tinham condições para tal. Pesquisas mostram que
em meados do século XIX grande parte das mulheres inglesas trabalhava fora como domésticas.
costureiras, operárias em fábricas ou em fazendas. De modo que o tédio que supostamente marcaria a
existência da mulher idealizada pela ideologia vitoriana não consistia, absolutamente, no seu principal
problema; era prerrogativa de uma minoria. Nesse sentido, a oposição erigida contra tal ideologia era
impelida por, pelo menos, duas razões: uma referente a valores ideológicos, outra à necessidade de
sobrevivência.
Esse estado de coisas acabou por desencadear uma série de ações que caminharam no sentido
de instituir o feminismo como um movimento político organizado na Inglaterra. A partir de 1850,
começaram a ser encaminhadas às autoridades petições advogando o status legal da mulher, como o
direito ao voto, obtido em 1918; demandas solicitando permissão para as mulheres casadas gerirem
seus bens, as quais culminaram na votação da Lei de propriedade da mulher casada (Married UJomen's
property acts, 1870-1908); campanhas contra a Lei das doenças contagiosas (Contagious diseases acts, 1864),
que exigia exames médicos de mulheres suspeitas de serem prostitutas; além de obras feministas que
deram continuidade ao primeiro argumento pelos direitos da mulher, escrito no final do século XVIII
por Wollstonecraft. É o caso, por exemplo, de The subjection ofUJomen (1869), de John Stuart Mill, e de
The Enfranchisement ofWomen, de Harriet Taylor, que, partindo de argumentos utilitaristas e liberais por
uma sociedade que considerasse ,os interesses de todos e, ao mesmo tempo, os protegesse, põem em
cheque crenças estabelecidas há muito tempo acerca do papel da mulher na sociedade, como aquelas
relacionadas a desigualdades na esfera política, na vida econômica, na educação etc. O direito ao voto
é tomado como uma das principais bandeiras, já que consiste no mecanismo por meio do qual outras
reformas poderiam vir a ser conseguidas (ABRAMS, 1979).
O feminismo no Brasil oitocentista, por sua vez, desenvolveu-se ao lado dos movimentos em prol
da abolição dos escravos e da proclamação da república. A republicana e abolicionista Nísia Floresta
Brasileira Augusta (pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto) foi, também, a primeira teórica do
feminismo no Brasil. Seu primeiro livro, Direitos das mulheres e injustiças dos homens (1832), inspirado no
Vindications ofthe rights ofwoman, de Wollstonecraft, põe em discussão, a partir de conceitos e doutrinas
do Iluminismo europeu, os ideais da mulher de igualdade e independência, configurados pelo direito à
educação e à vida profissional, bem como O de serem consideradas como de fato são: seres inteligentes
e capazes, portanto dignos de respeito. Trata-se, no entanto, de uma manifestação isolada, já que não
se encontram registros de outros textos do gênero publicados na época, excetuando-se alguns artigos
esparsos em periódicos, o que denuncia que Nísia Floresta consistiu em uma exceção em meio às
mulheres brasileiras sem voz de seu tempo.
Como consequência dessa primeira onda do feminismo, muitas mulheres tornaram-se escritoras,
profissão, até então, eminentemente masculina; mesmo que para isso tenham tido que se valer de
pseudônimos masculinos para escapar às prováveis retaliações a seus romances, motivadas por esse
"detalhe" referente à autoria. É o caso, por exemplo, de George Eliot, pseudônimo da inglesa Mary
AnnrEvans, autora de The míll on the jloss e de Middlemarch; de George Sand, pseudônimo da francesa
Amandine Aurore Lucile Dupin, autora de Ullentine. Outras escritoras conseguiram impor seus nomes,
não sem muito esforço, no sério mundo dos homens letrados. Caso da inglesa Charlote Bronte,
autora de Shirley e Jane Eyre. No Brasil, diversas foram as vozes femininas que romperam o silêncio e
publicaram textos de alto valor literário, denunciadores da opressão da mulher, embora a crítica não os
tenha reconhecido na época. O primeiro romance brasileiro de autoria feminina de que se tem notícia,
Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, foi seguido de muitos outros, dados, agora, a conhecer pela
crítica feminista (MUZART, 1999).
\i A casta de textos literários representada pela pequena amostragem acima deu início a uma tradição
da literatura de autoria feminina na Europa e na América, que, de certa forma, reverteu os valores que
r
~o L I N

I ahmça"m a tnd.ç'o li""tia m"'olina no qoe tange, "Tmentaç'o da mollia e ao, nl",,, a eb
referentes. Como se pode venficar com mais detalhes em um dos Itens do Capítulo 18, intitulado
"Literatura de autoria feminina", deste volume, personagens femininas tradicionalmente construídas
como submissas, dependentes, econômica e psicologicamente do homem, reduplicando o estereótipo 'I
patriarcal, passam, paulatinamente, a ser engendradas corno sendo conscientes de sua condição de
inferioridade e corno capazes de empreender mudanças em relação a esse estado de objetificação. Ou,
de outro lado, passam a ser inseridas em contex"tos que, de alguma forma, trnem à baila discussões
acerca dessa problemática.

o FEMINISMO DE VIRGÍNIA WOOLF

A escritora e ensaísta inglesa Virgínia Woolf (1882-1941), além de autora de romances que
rompem com o formalismo tradicional da ficção da Era Vitoriana, sobretudo no que se refere ao uso
de técnicas narrativas inovadoras como o monólogo interior e o fluxo da consciência, escreveu uma
série de ensaios sobre a escrita da mulher, sendo, por isso, considerada urna importante precurs'ora
da crítica feminista. Em vista disso, passemos a perscrutar algumas de suas principais ideias, as quais
impulsionaram um novo olhar em relação ao terna "mulher e literatura", até então marcado por toda
sorte de preconceitos e discriminações.
Em A roam cf one's OUln, um de seus principais ensaios, publicado em 1929, traduzido para o
português como Um teto todo seu, organizado a partir de anotações que fez para conferências proferidas
em estabelecimentos de ensino para mulheres na Inglaterra, ela aborda o modo como as circunstâncias
atuam sobre o trabalho da mulher escritora e questões relativas à sua sujeição intelectual.
A ideia central desse importante ensaio gira em torno da tese de que para escrever ficção ou
poesia de qualidade a mulher necessita de "um teto todo seu" em que possa trabalhar em paz e de
urna renda anual capaz de lhe garantir independência. A genialidade de Shakespeare e sua vultosa
produção literária são tomadas corno exemplo. Ela argumenta que se Shakespeare tivesse tido urna
irmã igualmente dotada, com talento para ficção e desejosa de obter experiências a partir do contato
com vidas de homens e mulheres e do estudo de seus estilos, teria certamente enlouquecido e se
suicidado ou terminado sozinha e ridicularizada em algum refúgio. É que naturalmente ela não teria
sido mandada à escola, corno ele, nem tido oportunidade de viajar para conhecer o mundo, nem
aprender Gramática e Lógica, muito menos o latim para ler Horácio e Virgílio. Em vez disso, ter-Ihe­
iam proibido de ler e escrever e feito dela a noiva de algum negociante importante, que a tornaria uma
respeitável "rainha do lar". Em face dessa realidade, a mulher que nascesse com o veio poético no
século XVI, no entender de Woolf, seria uma mulher infeliz e em conflito consigo mesma. O mesmo
aconteceria com as mulheres dos séculos seguintes, com igual inclinação para a arte. Mesmo no século
XlX, tais mulheres, além de terem que enfrentar a hostilidade, a arrogância e toda.fiorte de sermões
e recriminações sociais (que no caso de homens escritores da casta de um Flaubert, por exemplo,
se traduzia apenas como indiferença), tinham que enfrentar as dificuldades materiais e a questão da
dependênci~ Para a maioria delas, ter um quarto próprio estava fora de questão; o mais comum era
dividir conjugados de sala e quarto com toda a família. O dinheiro para os "alfinetes" dependia da boa
vontade do pai e mal dava para mantê-las vestidas. A não ser que se tratasse de filha de pais muito ricos
ou muito nobres - raras exceções.
Outro aspecto fundamental da abordagem de Virgínia Woolf acerca do tema "mulher e ficção" está
ligado à questão do ressentimento que marca a literatura escrita por mulheres e que, de certa forma,
interfere em sua qualidade. Os poemas escritos por mulheres abastadas do século XVII, como os de
Anne Finch Winchilsea (1661-1720) ou os da duqueza Margaret Newcastle (1623-1673), bem como
os romances (escritos nas salas de estar comuns) de centenas de mulheres que, a partir do século XVIII,
começaram, gradativamente, a ganhar dinheiro com eles, são visivelmente marcados pela amargura,

222 - T E o R I A LITERÁRIA
- -----.~ C H I; 1 C\ 1 1 \\ 1 N 1ST A

pelo ódio e por ressentimentos em relação aos homens, seres odiados e temidos por deterem o poder
de barrar-lhes, entre tantas outras coisas, a liberdade de escrever.
Para a ensaísta, essa revolta das mulheres escritoras dos séculos XVII e XVIII, espécie de "ervas

daninhas" a enredar-lhes o talento, consistiu no principal empecilho à emergência de uma literatura


de autoria feminina a que se pudesse atribuir valor. Apesar disso, tais escritoras consistiram em peças
fund;iI11entais na tradição literária feminina que se consolidou nos séculos XIX e XX:
I

Sem aquelas precur<;oras, Jane Austcn e as Brolltcs c George Eliot não teriam tido maIOr

I,
t
possibilidade de escrever do que tena Shakespeare sem Marlowe, ou Marlowe sem Chaucer,
ou Chaucer sem aqueles poetas esqueCIdos que prepararam o terreno e domaram a selvageria
natural da língua. As obra<;·primas nãu são frutos isolados e solitários: são o resultado de muitos
anos de pensar em conjunto, de um pensar através do corpo das pessoas, de modo que a

I
,
exveriência da massa está por trás da voz isulada (WOOLF, 1985, p. 87).

Woolf salienta, ainda, que mesmo os considerados "bons romances" (e raros) das escritoras
oitocentistas referidas no trecho acima, Villete, Emma, O morro dos /lentos uivat1tes, Míddlemarch,Jane Eyre
etc., fóram escritos nas salas de estar comuns, por mulheres pobres que mal podiam comprar o papel
onde escrever, privadas de experiência, intercâmbio e viagens. Daí persistir nesses livros, por mais
esplêndidos que sejam, um tom de rancor que os contrai; toda a sua estrutura está erigid; por "uma
mente ligeiramente tirada do prumo e forçada a alterar sua visão clara em deferência à autoridade
externa" (WOOLF, 1985, p. 97).
As reflexões da ensaísta em relação à escrita feminina avançam até o momento presente da
produção do ensaio (1929), momento em que ela constata que "talvez a mulher esteja começando
a usar a literatura como uma arte, não como um método de expressão pessoal" (WOOLF, 1985, p.
105). Por entender que os livros continuam uns aos outros, ela tece, agora, suas considerações a
partir deA aventura da vida, provavelmente o primeiro livro dajovem e desconhecida escritora Mary
Carmichael, publicado naquele mesmo ano, como se fosse o último da série que vem examinando.
O exame detalhado do volume aponta um estilo mais conciso do que os de suas predecessoras,
parecendo evitar o tom sentimental, comumente atribuído aos escritos delas; a sequência esperada
da frase é quebrada, causando certo estranhamento em relação a temas como amor, morte etc.;
a mulher é representada com outros interesses, diferentes daqueles por tanto tempo enfocados,
referentes ao mundo doméstico e às relações amorosas; não é, sobretudo, representada a partir
do olhar do outro sexo e em relação ao outro sexo, como tradicionalmente acontece na ficção,
mas é vista em relação à própria mulher; o homem não é mais a "facção oposta"; do ódio e
do medo em relação a ele ficaram apenas uma alegria pela liberdade (mais acentuada do que o
desejável) e certo tom cáustico e satírico ao referir-lhe. Em resumo: a escritora desconhecida
escreve como mulher, sem a consciência disso. Mas, apesar de tantos avanços, falta-lhe conseguir
construir "com o efêmero e o pessoal o duradouro edifício que permanece de pé" (WOOLF, 1985,
p. 123). Do ponto de vista da ensaísta, isso implica dizer que, para escrever um grande romance, é
necessário à escritora, ao se defrontar com uma "situação", mais que roçar ~superfícies, "mergulhar
o olhar até as profundezas". Em vista disso, é preciso que a mulheres saltem, ainda, uma série de
obstáculos, ignorando o olhar de reprovação que emana dos bispos e deões, dos doutores e lentes,
dos patriarcas e pedagogos: "Deem-Ihe mais uns cem anos [ ... ]".
Para concl uir suas ponderações acerca do tema "mulher e ficção", ao final dessas reflexões acerca
da trajetória da literatura de autoria feminina, Woolf discute os prejuízos acarretados, sobretudo
para a ficção, com o fato de pensar-se em cada um dos sexos separadamente; a seu ver, isso interfere
na unidade da mente. A partir do princípio da "androginia", frequentemente discutido pelo grupo
crítico-literário de Bloomsbury (Londres), que reunia a quinta-essência dos escritores britânicos
entre 1907 e 1930, ela pondera que é natural os sexos cooperarem entre si. Com Coleridge (1772­
1834), ela afirma que as grandes mentes não pensam especialmente ou separadamente no sexo; são
andróginas, como era andrógina a mente de Shakespeare (1564-1616) ou de Proust (1871-1922).
Casos bem diferentes daqueles observados em escritores oitocentistas da casta de um Tolstoi
(~()LIN

" (1828-1910), poc exemplo, que, '" emevecem 'pen" com o lado ",",cuhno do cécebm, pocecem
, criar obstáculos na comunicação: a emoção que lhes permeia a ficç;lo é incompreensível à mulher.
Trata-se de livros que carecem do poder da sugestão e que por isso não atingem a mente em
sua totalidade. Daí defender a necessidade de se ser masculinamente feminina e femininamente
masculino para que a arte se realize e comunique experiências com integridade.

o FEMINISMO EXISTENCIALISTA DE SIMONE DE BEAUVOIR

Antes de nos determos, finalmente, no trabalho de estudiosas que aliam, a partir de 1970, feminismo
e literatura, dando origem à crítica literária feminista, perscrutemos as ideias disseminadas por Simone
de Beauvoir, em Le deuxieme sexe (1949), acerca da situação da mulher na sociedade, publicado em
português como O segundo sexo, em 1980. Isso porque o modo de Beauvoir encarar a relação entre os
sexos, qual seja, a mulher sempre como escrava (o Outro) e o homem sempre como senhor, vem sendo
problematizado ao longo da trajetória dos estudos de gênero: em alguns aspectos, contribuiu com os
estudos empreendidos pela nova geração de feministas; em outros, foi rejeitado, conforme vere~lOs.
Beauvoir (1980) discute a situação da mulher por meio de uma perspectiva existencialista, numa
espécie de resposta ao marxismo, que, segundo ela, não explicou o sexismo a contento; não o tendo
feito, tornou-se incapaz de elaborar um programa adequado para a libertação das mulheres. De sua ótica,
não basta apontar as relações de propriedade como responsáveis pela opressão feminina; é necessário,
também, explicar por que as relações de propriedade foram instituídas contra a comunidade e entre
os homens.
O feminismo existencialista da pensadora pode, de um lado, oferecer um estudo da opressão
das mulheres e, de outro, sugerir formas de emancipá-Ias dessa opressão. No que tange ao primeiro
aspecto, ela analisa a problemática feminina de modo a salientar que não existe absolutamente uma
essência feminina, responsável pela marginalidade da mulher; existe apenas o que cla chama de situação
da mulher: o fato de a mulher dar à luz é tomado como a matriz das diferenças entre os sexos. Estando
impossibilitada de ir à caça e de dedicar-se a trabalhos pesados em razão das limitações físicas e dos
cuidados com o bebê, ela foi privada de afirmar-se em relação à natureza, como fizeram os homens.
Como a superioridade, explica Beauvoir (1980), é dada não ao sexo que dá à luz, mas ao sexo que mata,
a mulher é tomada como o Outro, contra quem os sujeitos masculinos se afirmam.
O privilégio maior do homem, portanto, reside no fato de a sua "vocação de ser humano"
(transcendência) não se chocar com seu "destino de macho"; em contrapartida, a mulher vive dividida
entre essa mesma vocação e o seu "destino de mulher" (imanência). Tal destino, no entender de
Beauvoir (1980), não está ligado apenas à questão da maternidade; a sexualidade feminina também
concorre para a perda de sua subjetividade. O ato sexual, por si, a obriga a cumprir o papel de objeto
passivo, o. qual acaba por contaminar todos os seus tratos não sexuais com o mundo. Já no que se refere
ao homem, seu ser sexual é congruente com sua transcendência.
Desse modo, a situação da mulher no mundo (a de oprimida) lhe nega a expressão normal de
humanidade e frustra seu projeto humano de autoafirmação e autocriação. Enquanto os homens são
encarregados de "remodelar a face da Terra", apropriando-se dela, impondo-lhe sua marca, à mulher é
vedada a possibilidade de ação. Além de estar aí, sua opressão está também, e principalmente, na crença
de que o destino da mulher é ser passiva, uma vez que a passividade integra, irremediavelmente, sua
natureza. Em vista disso, e não podendo rebelar-se contra a natureza, o mundo não lhe pertence e
sua energia é canalizada para o narcisismo, o romantismo ou a religião. O acesso a elevados valores
humanos, como o heroísmo, a invenção e a criação lhe é vedado.
Partindo do pressuposto de que o sujeito humano deve ser livre, Beauvoir (1980) questiona as
razões que levam a mulher a se submeter à opressão. Para explicá-las, ela invoca a noção sartreana de

224 ~ T E o R I A LITERÁRIA
"má fé", um dos pontos mais intrigantes do livro de Jean-Paul Sartre sobre filosofia existencialista
O ser e o /1ada, publicado em 1943: os seres huma!los são livres, mas podem enganar-se, fingindo
não sê-lo. No caso da mulher, os meios são mais favoráveis para que esse processo se realize: SlLl
fraqueza é estimulada. No entanto, a má fé dos outros em anular-lhe a liberdade - que é inerente
à sua condição de ser humano - não é suficiente para a plena realização dessa empreitada; a mulher
mesma aceita a opressão que lhe é imputada, tornando-se cúmplice da própria escravização.
Isso posto, a filósofa parte paL1. a proposição de uma maneira de reverter esse estado de cOisas:

I cabe à mulher inverter os papéis. Ao recusar os desmandos q LIe lhe são impostos pelo homem, ela se
torna o sujeito e o opressor torna-se a "coisa". I lá que se aprender a ser f'Homme, sobretudo através
da conquista de uma profissão. A armadilha do casamento e, consequentemente, dos filhos deve ser
evitada; ao invés da família, ela deve assumir seu lugar no mundo em meio aos homens.
Nesse sentido, a noção de igualdade e semelhança de todos os seres humanos consiste na pedra
fundamental do feminismo existencialista de Beauyoir (1980). Trata-se do principal aspecto que afasta
seu feminismo daquele defendido pela nova geração do feminismo francês. Segundo Moi (1985), as
teóricas pós-Beauvoir teriam abandonado o anseio liberal dela de obter igualdade com os homens para
enfãtizar a diferença, isto é, exaltar o direito de a mulher proteger os yalores especificamente femininos
e rejeitar a referida "igualdade", entendida como disfarce para forçar as mulheres a se torn~rem como
homens.
No entanto, a despeito dessa divergência, a amplidão dos temas tratados em O segundo sexo preparou o
caminho para muitas das alebraçôes dos adeptos do feminismo radical, uma das correntes que integram o
movimento, ao lado da liberal e da socialista (veja Quadro 2). Nye (1995) arrola as principais delas:
• o patriarcado é a constante universal em todos os sistemas políticos e econômicos;
• o sexismo data dos inícios da história;
• a sociedade é um repertório de manobras nas quais os sujeitos masculinos firmam o poder
sobre objetos femininos;
• violações, pornografia, prostituição, casamento e heterossexual idade são imposições do poder
masculino sobre as mulheres:
• a aquiescência das lnulheres é uma indisposição de má fe de enfrentar sua própria falta de
poder.

1) Tendência do feminismo que, inspirada em Beauvoir, toma a divisão sexual, e não a


de classe, como central na análise do social. A luta pela libertação da mulher dirige-se ao
combate de seu papel como reprodutora (gestação, criação e educação dos filhos).
Feminismo 2) Tendência do feminismo que, aliada à desconstrução de Derrida, visa destruir a supremacia
radical masculina, por meio da desconstrução das oposições binárias que mantêm a dominação das
(dois sentidos) mulheres pelos homens. Isso porque entende-se que as referidas oposições nada mais são
do que linguagem, e a linguagem exorbita a realidade. Ao desconstruir a oposição binária
, homem x mulher, essa facção do feminismo coloca no seu lugar o andrógino, o ser humano
acima das diferenças de sexo.

Tendência do feminismo que atribui a causa da opressão feminina à ausência de igualdade de


Feminismo
direitos entre os sexos; em vista disso, defende uma sociedade em que homens e mulheres
liberal
tenham oportunidades iguais garantidas pela legislação.

Tendência do feminismo que parte da premissa de que todos os antagonismos sociais passam
Feminismo pela questão da hierarquia de classes, onde se localizam todas as relações de poder. Nesse
socialista sentido, essa facção defende a tese de que a liberação feminina está atrelada a uma sociedade
socialista, em que os princípios igualitários se estendam à sociedade como um todo.
Quadro 2. As principais facções do movimento feminista.
~o L I N

·1 O FEMINISMO POLÍTICO DE RNrE Mn.LET

A crítica feminista propriamente dita tem seu marco inicial com a puhlicação de Sexual poli/i[s,
de Kate Millet, em 1970. Como já antecipa o título, a obra suplanta o aspecto puramente literário
e, com uma aguçada consciência política, traz à tona discussões acerca da posição secundária
ocupada pelas heroínas dos romances de ,Hltoria masculina, como também pelas escritoras e
críticas literárias. Millet (1977 apud SELDEN, 1988; BENNETT ROYLE, 1999) discute as
causas da opressão feminina a partir do conceito de patriarcado - a lei do pai Nos limites desse
sistema, o ser feminino é subordinado ao masculino ou tratado como um masculino inferior;
o poder é exercido na vida civil e doméstica de modo a submeter a mulher, que, a despeito dos
avanços democráticos, tem continuado a ser dominada, desde muito cedo, por um sistema rígido
de papéis sexuais.
Ao lado de outras feministas, Millet (1977 apud SELDEN, 1988; BENNETT; ROYLE, 1999) ataca
os estudiosos sociais que tomam esses papéis femininos culturalmente ensinados como próprios da
natureza feminina. Esse modo de pensar é perpetuado não só por homens, mas também pelas próprias
mulheres. Concordando com Sartre (1957) e Beauvoir (1980), Millet acredita que toda manifestação
de poder exige o consentimento por parte do oprimido. No caso da mulher, tal consentimen!o é
obtido através de instituições de socialização, como a família, ou através de leis que punem o aborto
ou a violência à esposa, afirmando, às avessas, o poder masculino.
Ao serem perpetuados, os papéis femininos tornam-se repressivos; a necessidade de representá­
los, que se impõe no âmbito da relação entre homem e mulher, caracterizada pela dominância de
homens e subordinação de mulheres, é o que Millet chama de "política sexual".
Essa política de força, segundo a teórica, afeta a literatura na medida em que os valores literários
têm sido moldados pelo homem. Ela pondera que, nas narrativas de autoria masculina, as convenções
dão forma às aventuras e moldam as conquistas românticas segundo um direcionamento masculino.
Além disso, são construídas como se seus leitores fossem sempre homens, ou de modo a controlar a
leitora para que ela leia, inconscientemente, como um homem.
A fim de opor resistência a essa doutrinação da leitora, Millet (1977 apud SELDEN, 1988;
BENNETT; ROYLE, 1999) expõe exemplos dessas constatações retirados da ficção canônica
masculina, enfatizando a exploração e a repressão feminina que permeiam as descrições dos papéis
sexuais nas novelas de escritores como D. I L Lawrence, Henry Miller, Norman Mailer e Jean Genet,
tidos em alta conta por muitos críticos pela ousadia e liberdade no relato de relações eróticas.
Essas discussões empreendidas por Kate Millet ilustram o que hoje se classifica como sendo uma
vertente mais tradicional da crítica feminista. Concentrando-se na mulher como leitora, tal vertente
busca responder a questões como: Que tipo de papéis as personagens femininas representam? Com
que tipo de temas elas são associadas? Quais as pressuposições implícitas contidas num dado texto em
relação ao (à) seu (sua) leitor(a)?
Ao trabalhar no sentido de responder a essas questões, asCos) crítica(os) feministas mostram como
é recorrente o fato de as obras literárias canônicas representarem a mulher a partir de repetições de
estereótipo~ culturais, como, por exemplo, o da mulher sedutora, perigosa e imoral, o da mulher
como megera, o da mulher indefesa e incapaz e, entre outros, o da mulher como anjo capaz de se
sacrificar pelos que a cercam. Sendo que à representação da mulher como incapaz e impotente subjaz
uma conotação positiva; a independência feminina vislumbrada na megera e na adúltera remete à
rejeição e à antipatia.
Na literatura brasileira, muitas são as obras que retratam a mulher segundo esses estereótipos.
Em Luríola, de José de Alencar, Lúcia transita da menina inocente à prostituta imoral, para
posteriormente regenerar-se, encarnando a mulher-anjo, capaz de sacrificar-se pelo bem dos que a
cercam. Em Dom Casmurro, de Machado de Assis, Capitu é, na visão do marido Bento, uma sedutora
imoral e dissimulada, capaz de traí-lo com seu melhor amigo. Também na literatura portuguesa

226 - T E () R I A LITERÁRIA
'~, ~,-,~ (- H I I I " I I I \1 I N I ,

são abundantes as figuras estereotipadas. Em .-1l/1or de perdifâo, Teresa encarna a mocinha II1defesa
afastada de seu grande amor, em razão das rivalidades reinantes entre as duas famílias. Em O prilllo
Basl1io, Eça de Queiroz põe em cena a megera chantagista, na pele de Juliana, e a adúltera imoral na
pele de Luísa.
O exame cuidadoso das relações de gênero na representação de personagens femininas,
tarefa dessa primeira vertente da crítica feminista, aponta claramente para as construçôes sociais
padrão, edificadas, não necessariamente por seus autores, lllas pela cultura a que eles pertencem,
para servir ao propósito da dominação social e cultural masculina. Assim, o femlIlismo mostra a
natureza construída das relações de gênero, além de mostrar, também, que muito frequentemente
as referências sexuais aparentemente neutras são, na verdade, engendradas em consonância com
a ideologia dominante: o engendramento masculino possui conotações positivas; o fem1l1ino,
negativas.

ESTEREÓTIPOS CONO­
EXEMPLO NA LITERATURA
FEMININOS TAÇÃO

Lúcia (Ludola, de José de Alencar); Capitu (Dom Cas/1/urro,


Mulher sedutora e/ou
de Machado de Assis); Ema (Madame Bovary, de Gustave Negativa
perigosa e/ou imoral
Flaubert); Luísa (O primo Basílio, de Eça de Queiroz)
' ­

Mulher como megera Juliana (O primo Basílio, de Eça de Queiroz) Negativa


Mulher~anjo e/ou
indefesa e/ou incapaz e/ou Teresa (Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco). Positiva
impotente
I
Quadro 3. O modo tradicional de representação da mulher na literatura.

As TENDÊNCIAS DA CRÍTICA FEMINISTA CONTEMPORÂNEA

Numa fase posterior a essa, preocupada essencialmente em desmascarar a misoginia da prática


literária, a crítica feminista expandiu-se segundo outros direcionamentos: ao invés de se ocupar dos
textos masculinos, passou a investigar a literatura feita por mulheres, enfatizando quatro enfoques
principais: o biológico, o linguístico, o psicanalítico e o político-cultural.
'Tais enfoques emergem da ênfase dada a certos aspectos, em detrimento de outros. Mas todos
são constituídos a partir da ideia básica do pensamento feminista: desnudar os fundamentos culturais
das ç.onstruções de gênero (opondo-se às perspectivas essencialistas e ontológicas dos estudos que
abordam a questão da mulher) e promover a derrocada das bases da dominação de um gênero sobre
outro.
A crítica que se vale de argumentos que tratam a biologia como fundamental tem sido utilizada, de
um lado, por homens, que, baseados na máxima "a mulher não é nada além de um útero", desejam
manter as mulheres em seus "lugares". Trata-se de tomar o corpo da mulher como o seu destino e,
portanto, de aceitar os papéis a ela atribuídos como sendo da ordem da natureza. De outro lado, algumas
feministas radicais celebram os atributos biológicos da mulher como atributos de superioridade, ao
invés de inferioridade. A anatomia física é entendida como sendo textualidade, e o corpo, como fonte
de imaginação.
~() L I N

'. , O enfoque linguislico, ou "xlual, encerra diseu",ões acnea de problema> f,losófieos,


, linguísticos e práticos do uso da linguagem pela mulher. Tais discussões buscam responder
se homens e mulheres usam a língua de forma diferente; se tais diferenças, no caso de uma
resposta afirmativa, seriam teorizadas em termos de biologia, de socialização ou de cultura;
se as mulheres podem criar novas linguagens, próprias, e se a fala, a leitura e a escrita são
marcadas por diferenças de gênero. Esse enfoque privilegia ainda questões relacionadas
à ideologia dominante: partindo do argumento de Foucault de que a verdade depende de
quem controla o discurso, e alimentados pela crença de que o domínio dos homens sobre o
discurso tem aprisionado as mulheres nas armadilhas da verdade masculina, alguns estudos
têm se ocupado em contestar o controle da linguagem pelos homens, ao invés de meramente
recuarem-se no gueto do discurso feminino. Estudiosas francesas defendem a reinvenção da
linguagem, ou seja, a adoção de uma linguagem feminina revolucionária, capaz de romper
com a ditadura do discurso patriarcal, de estrutura falocêntrica, falando não apenas contra
ele, mas fora dele.
As teorias psicanalíticas consistem em um terceiro enfoque, e incorporam os modelos biológico e
linguístico, situando a diferença na psique do autor - moldada pelo corpo, pelo desenvolvimento da
linguagem e pela socialização do papel sexual - e na relação do gênero com o processo criativo.
Inicialmente, a crítica psicanalítica tomou os postulados de Freud do complexo de castração
e da fase edipiana para defiilÍr a relação da mulher com a escrita; mais recentemente, tem-se
orientado pela metáfora da desvantagem linguística e literária feminina proposta por Lacan.
Segundo o psicanalista, o fato de a aquisição da linguagem e o ingresso na sua ordem simbólica
ocorrerem na fase edipiana, em que a criança aceita sua identidade sexual, implica a aceitação
do falo como uma significação privilegiada. Sendo a linguagem da ordem do masculino, porque
são os valores do mundo masculino que ela veicula, a criança adere a ela pela Lei do Pai: ao
dizer "eu sou", distinguindo essa frase de outras como "você é" ou "ele é", a criança estaria
assumindo sua posição na Ordem Simbólica e abandonando o direito à identidade imaginária
com a mãe e com todas as outras posições possíveis. Assim, o acesso da menina à linguagem é
problemático, já que ela só se torna capaz de exprimir-se por meio de frases condizentes com o
polo masculino da cultura.
Tendo em vista essas considerações, a crítica feminista, psicanaliticamente orientada, estuda
as especificidades da escrita feminina em relação à problemática da identidade da mulher. Aí,
um certo sentimento de inferioridade marca a sua luta pela afirmação como artista, ao mesmo
tempo em que diferencia seus esforços de criação daqueles empreendidos pelos escritores.
O enfoque político-cultural da crítica feminista engloba linhas diversas: tendências marxistas
que estabelece~ a relação entre gênero e classe social como categoria de análise, enfatizando .
I
formas de cultura popular, relatando mudanças sociais, condições econômicas e transformações
relacionadas ao equilíbrio de força entre os sexos; tendências que tomam a noçã9 de experiência
!1
l
ligada às práticas culturais dos sujeitos femininos na sua relação com a produção literária;
tendências que analisam a arte literária da mulher tendo em vista o contexto histórico-cultural no
qual se insere.
Esses quatro enfoques referidos podem sobrepor-se, de modo que cada um incorpore o anterior.
Eles estão contidos em duas grandes vertentes da crítica feminista: a anglo-americana e a francesa.
Ambas estão articuladas em torno de um eixo fundamental, o da investigação e contestação da estrutura
patriarcal que sustenta o nosso sistema social.
No entanto, há que se considerar que mesmo no interior de cada uma dessas vertentes existem ..

diferenças e antagonismos de pensamento, configurados em termos de oposições binárias, como:


mulher/gênero, igualdade/diferença, privilégi%pressão, centralidade/ marginalidade e essencialismo/
antiessencialismo.

228 - T E o R I A L I T E R Á R I A
'---~~ C F I I I ,,\ I I " I N I , I A

1) De um lado, a tradição patnarcal dcfcnde a idcia de quc o corpo d:l mulhcr é seu
dcstino, ou seja, os papéis sociais a cla atribuídos são tomados como sendo da ordem
Enfoque biológico do natural;
2) Dc outro, as fl'Il1ll11stas cclcbram os atributos hiológlCos da mulher como atributos
de superioridade: o corpo como textualidade e fonte de imag1l1ação.

1) Tenta respondcr sc as difcrenças de gênero llnphcam o uso da linguagem de forma


Enfoque diferente por cada um dos sexos;
linguístico ou
2) Contesta o controle masculino da Imguagcm;
textual
3) Propõe a adoção de uma linguagem fcrmnina revolucionária.

1) Incorpora os modelos anteriorcs;


Enfoque
2) Debruça-se sobre as especificidades da escrita feminina (écriwrctt'IlIilzine) à luz da
psicanalítico
• teoria da fase pré-cdipiana dc Lacan .
-
1) Tendência marxis t:l como categoria dc :lnálise (relação entre gênero c classe

Enfoque político­
social);
.
2) Estabelece analogias entre a noção de experiência e a produção literária da mulher;
cultural
3) Analisa a literatura de autoria feminina tendo ClT! vista o contexto histórico-cultural
no qual essa produção sc insere.

Quadro 4. Principais enfoques da crítica feminista contemporânea.

A CRÍTICA FEMINISTA ANGLO-AMERICANA

A crítica norte-americana Showalter (1985) sistematiza os estudos sobre mulher e literatura


identificando dois tipos de crítica: a "critica feminista", que se dedica a mulheres como leitoras,
ocupando-se da análise dos estereótipos fcmininos, do sexismo subjacente à crítica literária tradicional
e da pouca representatividade da mulher na história literária; e o que cla chama de "ginocrítica", que
se dedica a mulheres como escritoras, constituindo-se num discurso crítico especializado na mulher,
alicerçado em modelos teóricos desenvolvidos a partir de sua experiência, conhecida por meio do
estudo de obras de sua autoria,
Ao centrar-se genuinamente na mulher, configurando-se como corrente crítica independente
e intclectualmente coerente, a ginocrítica coloca-se numa postura de op06ição às tendências que
continuaram a alimentar-se da tradição crítica androcêntrica, do "discurso dos mestres", numa espécie
de revisionismo, que, no fim, torna-se uma homenagem, A questão essencial, portanto, nessa segunda
vertente crítica, não é mais tentar reconciliar pluralismos revisionistas, mas discutir a diferença por
meio do estudo da mulher como escritora, privilegiando a história, os estilos, os temas, os gêneros
e as estruturas dos escritos de mulheres; a psicodinâmica da criatividade feminina; a trajetória da
carreira feminina individual ou coletiva; e a evolução e as leis de uma tradição literária de mulheres
(SHOWALTER,1994).
A ginocrítica é tomada por Showalter (1994) como um instrumento capaz de possibilitar o
conhecimento de "algo sólido, duradouro e real sobre a relação da mulher com a cultura literária".
Dos quatro principais modelos da diferença dos escritos femininos de que atualmente as teorias
feministas fazem uso, quais sejam, o biológico, o linguístico, o psicanalítico e o cultural, Showalter
defende o último como sendo o mais capaz de proporcionar uma maneira satisfatória de discorrer
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I da mulher, mas as interpreta em relação aos contextos sociais nos quais elas ocorrem" (1994, p. 44).
Em vista disso, são consideradas as diferenças existentes entre as próprias mulheres escritoras, como
classe, raça, nacionalidade e história, as quais são tomadas como sendo determinantes literárias tão
importantes quanto a própria noção de gênero.

Crítica A mulher como leitora:


feminista 1) Análise dos estereótipos femininos na literatura canônica;
2) Análise do sexismo subjacente à crítica literária tradicional;
3) Análise da pouca representatividade da mulher na história literária. I

Ginocrítica A mulher como escritora:


1) Estudo da história, do estilo, dos temas, dos gêneros e da estrutura dos textos literários

de autoria feminina;

2) Estudo da psicodinâmica da criatividade feminina;

3) Estudo da trajetória da carreira literária da mulher, tanto individual quanto coletiva;

,
4) Estudo da evolução e das leis da tradição literária de mulheres.

Quadro 5. Os estágios da crítica literária feminista segundo Elaine Showalter (1994).

Além de privilegiar o estudo da literatura de autoria feminina, a crítica feminista anglo-americana,


nesse segundo momento, ou a ginocrítica (SHOWALTER, 1985), passaram a se dedicar, também,
a uma revisão dos conceitos básicos dos estudos literários, formulados pela tradição masculina. O
contato da vertente norte-americana com a inglesa e a francesa contribuiu para o crescimento do
interesse em relação às teorias:

A crítica inglesa, ao estabelecer a relação entre gênero e classe SOCIal como categoria de análise,
cnfatiza formas de cultura popular e dá origem à versão feminista da teoria literária marxist:l.
A escola francesa com seu interesse pelo feminino, pelo modo como é defillJdo, rcprcsent:ldo
ou reprimido nos sistemas simbólicos da linguagem, da psicanálise e da arte, relaciona a
escritura com os ritmos do corpo feminino (FUNK, 1994, p. 19).

Em face desse panorama, a crítica feminista contemporânea nos Estados Unidos ocupa-se de
uma gama bastante variada de questões. As mais debatidas referem-se a: 1) noções de gênero, classe
e raça, discutidas em confronto com a noção de essencialidade da mulher; 2) noção de experiência,
que enfoca as práticas culturais da mulher relacionadas com sua produção literária, a fim de recuperar
uma "identidaclé feminina" e rejeitar a repetição dos pressupostos da crítica literária tradicional; 3)
noções de representação literária, de autoria e de leitor/leitora; 4) noção do cânone literário e crítico,
discutindo a legitimidade do que é, ou não, considerado literário e denunciando a ideologia patriarcal
que o permeia e determina sua constituição; 5) discute, por fim, a problematização do projeto crítico
feminista, n9 que tange às possibilidades de intervenções nas relações sociais (QUEIROZ, 1995).
Em relação ao tópico que contempla os estudos acerca do modo de representação da mulher
na literatura de autoria feminina, há que se salientar aí a preocupação em reconhecer-se uma
tradição que lhe seja específica. Estudos mostram que também a escrita de autoria feminina
pode ser engendrada, no sentido de refletir a experiência da mulher. Veja-se, por exemplo, a
obra das críticas feministas Sandra Gilbert e Susan Gubar, The madwoman in the attic: the woman
writer and the nineteenth-century literary imagination, publicado em 1979. Nesse livro sobre a criação
literária, mais especificamente sobre o ato da escrita como prática masculina por excelência, elas
caracterizam a mulher escritora como uma figura dividida entre as imagens de "anjo" e "monstro",
construídas pelo imaginário masculino. Em vista disso, a criação literária só seria possível se essas

230 - T E o R I A LITERÁRIA
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imagens fossem destruídas, ou seja, se essa identidade fabricada e polarizada fosse desestabilizada.
Dada a força da cultura sobre as identidades, os trabalhos literários das escritoras do século XIX
apresentam um forte interesse por certas limitações impostas às mulheres. Tal interesse expressa­
se numa "série de imagens obsessivas de confinamento que revela a maneira com que essas artistas
sentiam-se presas e 'doentes' tanto pelas alternativas sufocantes quanto pela cultura que as criara
e impusera" (GILBERT; GUBAR, 1979, p. 64).
Um exemplo desse comportamento dos textos escritos por mulheres que sucumbiram às
armações das representações estereotipadas pode ser reconhecido em Orsula (1859), de Maria
Firmina dos Reis. Trata-se de um dos primeiros romances escritos por mulher brasileira, em
que a heroína enlouquece em consequência das atrocidades que sofre: é raptada após assistir ao
assassinato do noivo à porta da igreja. Também em D. Narâsa de Vila r, romance contemporâneo
de Úrsula, escrito pela catarinense Ana LuÍsa de Azevedo Castro, a trajetória da protagonista segue
um 5crípt parecido: na noite em que ia se casar, por conveniência, com um rico coronel português,
é raptada pelo homem que ama; após uma fuga permeada de adversidades, são encontrados e
assassinados. Outra faceta dessa casta de romances pode ser reconhecida em A falência, de Júlia
Lopes de Almeida, cuja protagonista Camila encarna o estereótipo da mulher prendada, boa mãe
e boa esposa que se degenera ao tornar-se amante do médico da família, mas depois se redime
em busca da felicidade conjugal, equacionada em termos de honestidade, trabalho, obediência,
sujeição e servidão ao marido.
Por outro lado, a crítica feminista tem mostrado que a produção literária de mulheres após a
década de 1960 tem seguido outros direcionamentos. As escritoras, partindo de suas experiências
pessoais, e não mais dos papéis sexuais atribuídos a elas pela ideologia patriarcal, debruçam-se
progressivamente sobre a sexualidade, identidade e angústia femininas, bem como sobre outros
temas especificamente femininos, como nascimento, maternidade, estupro etc.
Veja-se, à guisa de exemplo, textos de Clarice Lispector, como Perto do coraçelo selvagem, em que
Joana, a heroína problemática do texto, não consegue adaptar-se à estereotipia dos papéis femininos
predeterminados pela família pequeno-burguesa. Ela se incompatibilíza com a imagem da boa filha
e da boa dona de casa, optando pela errância por entre a memória, o presente e as projeções do
desejo, a fim de transpor as limitações impostas pela ideologia vigente. Em Uma aprendizagem 01/ ( )
livro dos prazeres, ao narrar o romance entre Lóri, uma professora primária, e Ulisses, um professor
universitário, Lispector também põe em discussão questões ligadas ao modo de a mulher estar no
mundo. O namoro dos protagonistas estabelece-se como uma relação de ensino-aprendizagem
voltada para o relacionamento amoroso, em que Lóri é a aprendiz. Terminado o aprendizado, ela
se entrega ao professor, revelando-lhe, durante o ato amoroso, que sabe mais que ele. Por fim
recebe uma proposta de casamento, mas a história termina em aberto, com a protagonista dividida
entre dois extremos: a independência feminina, caracterizada pela liberdade sexual, entre outras, e
a alienação de si que o vínculo matrimonial oficializado pela ideologia patriarcal implica.

A Cl!JTICA FEMINISTA FRANCESA

Hélene Cixous e Julia Kristeva são algumas das principais representantes da teoria feminista
francesa. Diferentemente dos estudiosos da vertente anglo-americana, todavia, elas não se detêm
explicitamente sobre o campo literário, mas no da Linguística, da Semiótica e da Psicanálise. Trabalham
no sentido de identificar uma possível linguagem feminina_
A fim de reunirem argumentos capazes de desmistificar e deslegitimar a discriminação do
sexo feminino, as referidas estudiosas puseram em xeque, a partir de uma abordagem psicanalítica,
o conceito tradicional dos gêneros masculino e feminino enquanto categorias absolutas, cUJdS
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dIferenças são sIstematIzadas a partIr de rígIdos aparatos conceituaIs. A tese que defendem é a de
que as diferenças sexuais são construídas psicologicamente, dentro de um dado contexto social.
Nesta ordem de ideias, ao contrário das feministas americanas dos anos 1960, que se insurgiram contra
o t:110centrÍsmo freudiano, as francesas tomam a Psicanálise como sendo capaz de fornecer uma teoria sobre
as origens e a fornlação dos gêneros. Isso porque elas a entendem como sendo um método emancipador,
capaz de examinar a construção do sl~eito humano em todos os seus aspectos. Seu pressuposto mais básico
é o de que tal sl~eito consiste em uma entidade complexa, que abrange desejos, impulsos, ímpetos infantis
reprimidos, além de fatores materiais, sociais, políticos e ideológicos de que estamos apenas parcialmente
conscientes. Na esteira de discussões desta amplitude, são trazidos à tona questionamentos mais específicos
sobre a mulher e suas re !ações com a sociedade e a linguagem (ClARKE, 1998).
Essa facção do feminismo, cups bases são constituídas a partir do pensamento pós-estruturalista de
Derrida e Lacan, trabalha basicamente com os conceitos de différa11ce e de imaginário. O primeiro consiste
no conceito-chave da crítica da desconstrução da lógica binária proposto por Derrida, a base da crítica
feminista radical; o segundo, relaciona-se à teoria da fase pré-edipiana de Lacan, que busca a definição
de uma érritllreféminine. Trata-se de investigar as ligaçôes entre sexualidade e textualidade, bem como de
examinar o campo de articulações do desejo na linguagem (HOLLANDA, 1992).
Para a escritora e crítica literária Hélene Cixous, a oposição homem/mulher (ou macho e fêm>ea)
consiste em um elemento fundamental na cultura ocidental e está presente, subjacentemente, a
todos os tipos de oposições que aparentemente não têm relação com ela. Nessa ordem de ideias,
o termo "inferior" é sempre associado com o elemento feminino; o termo que ocupa a posição
privilegiada, com o masculino: trata-se da "solidariedade do logocentrismo ao falocentrismo".
No polêmico ensaio Rire de la Méduse (1975), publicado no Brasil como O sorriso da medusa, Cixous
(1988), através do estilo da "não-racionalidade", que afirma ser próprio da mulher, defende a tese de
que o corpo desta e sua escrita, se não policiados pela heterossexual idade patriarcal, constituem-se em
armas desconstrutoras dos valores falocêntricos, capazes de promover sua libertação. Expliquemos:
partindo da recusa da falta que a Psicanálise atribui à mulher e considerando que seu corpo representa
impulsos instintivos e desejos que surgem do inconsciente, ela o toma como o instrumento da
"escritura feminina". O corpo fala e, ao falar, "inscreve o que a mulher diz em si e por si, nas marcas
biológicas de uma natureza que irrompe em arritmias sintáticas, vazios, ilogicidade, sopro, respiração
advinda da relação com o corpo da mãe, que nunca cessa" (QUEIROZ, 1995, p. 150).
Seguindo na trilha da desconstrução de Derrida, Cixous abole as dicotomias escrita/sujeito e
escrita/fala, liberando tais conceitos das hierarquias binárias. Assim, a distância entre escrita e sujeito
que escreve é abolida, de modo que o discurso produzido pela mulher passa a ser entendido como
uma espécie de metonímia dela. Nessa mesma ordem de ide ias, a mesma escrita deixa de ser tomada
como um ato governado por fatores externos e limitadores, para aproximar-se da fala, entendida como
um veículo de eXpressão da interioridade.
De sua ótica, há na mulher um imaginário inesgotável propulsor de um texto subversivo. Esse
texto, ou essa escrita feminina, no entanto, não pode ser sistematizado ou definido rigidamente; não
implica absolutamente, segundo a teórica, uma prática fechada, o que não significa que ela não exista.
Não só existe como ultrapassa o discurso que regula o sistema falocêntrico e patriarcal masculino,
tomando lugar em áreas que não estão subordinadas a ele.
Cixous (1988) não reconhece a "escritura feminina", subversora do falocentrismo e do
patriarcalismo, apenas como sendo oriunda do ser biológico feminino. Embora ela considere a
mulher privilegiada ao seu acesso, homens também podem eventualmente produzi-la. Na verdade,
ela chama de ftminina a escrita subversiva que ela tem em mente, porque aquela marcada pela opressão
é claramente masculina.
Já a crítica literária e psicanalista Julia Kristeva (1974), seguindo na trilha da Psicanálise lacaniana,
integrante do que alguns chamam de crítica pós-feminista, combinando Linguística, Literatura e

7~7 T " n R I A lITERÁRIA


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Psicanálise, também problematiza, na década de 1970, as questões referentes à sexualidade, identidade,


escrita e linguagem femininas, mas nega uma (,la ou uma escrita específica da mulher.
Por considerar que é através da linguagem que o indivíduo expressa a instahilidade que lhe é
f, inerente como ser humano, Kristeva (1974) a toma como o ponto central de seus estudos,
detendo-se, sobretudo, na problemática que a envolve e no modo pelo qual se define_ Ela
considera a Linguística moderna autoritária e repressiva, uma vez que suas investigações têm
f como alicerce estruturas monolíticas e monogêneas_ Do seu ponto de vista, a linguagern deve
i ser analisada como um processo heterogêneo, complexo, em que o sujeito falante (dividido,
descentralizado e instável) é tomado como objeto central na investigação_
Visando melhor definir essas características que integram o ser humano, Kristeva criou
o termo "sujeito em processo", não apenas no sentido de "sujeito em curso", mas também
como processo de lei, já que o indivíduo está constantemente em julgamento, ou seja, seu
comportamento está sempre sendo posto à prova.
Tendo em vista os três registros essenciais que Lacan distingue, no campo da Psicanáhse
(o SimbóLico que aproxima a estrutura do inconsciente à da linguagem e mostra como o sujeito
humano se insere numa ordem preestabelecida; o Imaginário, caracterizado pela preponderância
da relação com a imagem do semelhante, e o ReaL), Kristeva explica as raízes do teNTIO acima
referido por meio de dois conceitos: o Semiótico e o Simbólico. Por entender que o Simbólico
está comprometido com o polo masculino da cultura, ela redefine os conceitos de Imaginário
e de Simbólico, deslocando a força que Lacan imprime à ordem deste último para a ordem
do Imaginário. Trata-se de localizar na fase pré-edípica, anterior à entrada do Simbólico, um
momento em que a criança e a mãe falam num discurso próprio, que pode ser considerado a
matriz da linguagem sequestrada da mulher. A esse lugar do Imaginário, Kristeva chama de
Semiótico, como modo de significação alternativo ao Simbólico.
O Semíótíco, portanto, retorna às fases pré-linguísticas da infância, em que a criança balbucia
os ruídos que ouve, tentando imitar o mundo que a rodeia, sem, no entanto, possuir os sinais
linguísticos necessários para que haja, na linguagem, o sentido lógico e convencional. Trata­
se de um momento anterior à crise edipal já referida, em que não se possui identidade estável
nenhuma, e sim padrões e quadros flutuantes.
Ao integrar, através da aquisição da linguagem, o universo social definido pelo pala
masculino da cultura, a criança passa a ser definida por ele, ficando privada de ser um sujeito
pleno, realizado e unificado. É nessa fase da trajetória humana que o desejo e o inconsciente são
criados; e o são em razão dessa falta. O inconsciente, nesse sentido, consiste em uma espécie de
repositório de tudo o que deve ser reprimido por chocar-se com a posição assumida pelo sujeito
na sociedade.
Kristeva emprega a imagem do khóra, um vocábulo grego, retirado do Tímeu de Platão, que
significa receptáculo, espaço fechado, útero, para descrever o conteúdo essencial do inconsciente_
Trata-se de uma "instância do pré-Édipo e do pré-verbal que se definé como o Locu5 onde o
mundo é percebido pela criança como rítmico, intonacional, melódico" (QUEIROZ, 1995, p.
152), o qual jamais pode ser eliminado ou reprimido plenamente.
Em vista disso, o sujeito, para Kristeva, é constituído em linguagem na interação entre o
Semiótico e o Simbólico, como um "sujeito em processo". Daí ela defender a impossibilidade de
definir-se a mulher: ela nega-lhe uma essencialidade biológica, do mesmo modo que nega uma
especificidade da fala ou da escrita feminina. Do seu ponto de vista, a mulher, ao liberar-se da
rigidez da ordem simbólica, é capaz, sim, de produzir textos peculiares. Mas as peculiaridades que
os caracterizam não podem ser atribuídas nem à especificidade feminina, nem à marginalidade
social, mas a ligações com o locu5 original da khóra.
O feminino, para Kristeva, como para Cixous, não implica a mulher real, pois, no que diz
respeito à escrita, sujeitos biologicamente masculinos podem ocupar uma posição de sujeito
~o L I N

I feminino na ordem simbólica, conforme ela observa nas obras de artistas de vanguarda como
, Joyce e Mallarmé, entre outros. Ela vê no feminino a negação do fálico e, mais especificamente.
na escritura feminina, uma força capaz de quebrar a ordem simbólica restritiva.

~'-----~---------------------------------------------------------------------------,

1) Argumento pós-estruturalista: différanee (Derrida); imaginário (Lacan);


2) O pensamento funciona por meio de oposições duais e hierarquizadas, de modo que a oposição
Hélene homem/mulher (superior/inferior) está presente em todos os tipos de oposições (solidariedade
Cixous do logocentrismo ao falocentrismo);
(1988) 3) Essa oposição repressora pode ser deruída a partir da escrita da mulher;
4) Écriture feminine = texto subversivo;
5) Homens também podem produzir essa écriturefeminine.

1) Argumento pós-estruturalista: imaginário (Lacan);

2) Cria o conceito de "sujeito em processo" a partir da definição de duas modalidades: o Simbólico

e o Semiótico;

3) Toma a linguagem como ponto central de seus estudos;

4) A escritura da mulher é examinada a partir de uma perspectiva antiessencialista e anti­

Julia humanista;
Kristeva 5) O que foi reprimido e consignado ao Semiótico encontra possibilidades de manifestação em
(1974) todos os tipos de linguagem que, por qualquer razão, não estão totalmente sob o controle do
falante ou do escritor, cujas estruturas de linguagem acham-se restritas aos códigos linguísticos
do poder patriarcal;
6) As escritoras são capazes de construir textos que oferecem resistência às regras da linguagem
convencional, assim como a linguagem não totalmente regulada das crianças e da doença
mental.

Quadro 6. Representantes do feminismo francês.

A atitude de desconstrução em relação à oposição homem/mulher que a crítica feminista francesa


pressupõe pode ser mais facilmente reconhecida em textos de escritoras(es) contemporâneas(os) do que
ao longo da história da literatura. Tomem-se, por exemplo, os romances da primeira fase da produção
literária de Nélida Piflon, como Madeira feita cruz (1963) ou A casa da paíxão (1972).
No primeiro, a trajetória de Ana, a personagem central, traz à tona a discussão acerca dos conflitos
da mulher gerados pelo choque de ideologias: uma que lhe é própria, outra que lhe é imposta pelo modo
de pensar dominante. O conflito se instaura na medida em que ela adquire uma profunda consciência
de sua realidade corpórea e de seus desejos e, ao mesmo tempo, da realidade do cristianismo, em que
a sexualidade é marca do pecado original.
A solução se dá com a protagonista reinventando um cristianismo mais humano, uma
espécie de, "evangelho" próprio: após uma "viagem de aprendizado", concretizada por meio
de uma caminhada pela floresta, na qual se dá a descoberta solitária de seu próprio corpo e a
felicidade daí advinda, a personagem toma o machado e destrói a imagem de madeira de Cristo
na parede, num gesto de destruição dos modelos canônicos e de reinvenção dos conceitos do
Bem e do Mal.
Em A casa da paixão, a atitude da escritora de "subverter a sintaxe oficial", no que se refere à
tradição dos papéis conferidos à mulher, atinge um de seus pontos mais altos. O romance é, de certa
maneira, uma grande discussão acerca da tradição cristã e da tradição cultural no Ocidente, sobretudo
no que diz respeito à normatização da sexualidade apenas nos limites do casamento, com fins
de reprodução, e a consequente eliminação da legitimidade do desejo físico. Segundo a autora,

214 - T E o R I A LITERÁRIA
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"é um texto em que talvez o discurso feminino alcance uma proemmência muito gr:mde_É a
história da relação amorosa de uma mulher. Como ela inaugura o corpo. E como o corpo, um;)
vez inaugurado amorosamente, erotizado, altera o pensamento" (PINON, 1988 apud PROENÇ/\
FILHO, 1998, p. 4).
Marta, a protagonista, tem como meta tomar a palavra, falar e nomear, tornar-se uma mulher­
SUjeito através do domínio do próprio corpo, entendido não como o templo de Deus, como quer o
cristianismo, mas como a casa da paixão, desvestido de qualquer ideologia de natureza espIritual
O estado inicial da narrativa é de uma aparente harmonia: de um lado, o pai como chefe incOl1testân-]
e natural, exercendo sua função de proteger a filha contra a cobiça dos homens; de outro, Antônia,
serva e governanta, aquela que ocupa o papel subalterno e hipotético de mãe, a ajudar, à sua moda, a
filha a tornar-se mulher.
Ao atingir a idade adulta, através da revelação de sua sexualidade, Marta, todayi:1, reage contrJ :1<;
imposiçôes paternas. Tal reação se dá através da exibição de seu desejo carnal, num gesto que a torna
autora de seu projeto de vida e, consequentemente, subversora do código que rege o comportamento
feminino.
Diante desse estado de coisas, o pai traz para casa Jerônimo, o homem que deverá ser o l~arceiro da
filha, numa relação oficializada - "Se é de macho que ela precisa, eu lhe darei" (p. 44).
Assim Jerônimo e Marta desempenhariam os papéis que a cultura ocidental convencionou como
sendo masculinos e femininos: enquanto ele, subordinado à ideologia patriarcal e ao cristianismo,
é marcado pela razão, pela disciplina, pela organização e hierarquia; ela é marcada pelo desejo, pelo
inconsciente e pela intuição. Correspondem, respectivamente, aos pares dicotômicos: atividade e
passividade, intelecto e sentimento, espírito e corpo, cultura e natureza etc.
A narrativa, todavia, se resolve com o surgimento de uma descoberta a partir do confronto entre
esses dois polos: trata-se de uma espécie de reinvenção da relação homem-mulher, a qual vai acabar
por permitir que tais personagens relacionem-se entre si sem que uma tolha a essência da outra_
Ambos deverão despojar-se de suas antigas formas de entender a realidade para inaugurar uma outra,
numa tentativa de conciliar os dois ideais, ou seja, equilibrar as forças antagônicas do masculino e do
feminino. Marta insere Jerônimo no universo feminino por ela vivenciado, ao mesmo tempo em que
resgata o seu lado masculino com a ajuda de Jerônimo.
O que Nélida Pinon propõe, portanto, em A casa da paixão, é, em certo sentido, destruir os
contornos nítidos das diferenças sexuais, com vistas à afirmação do direito da mulher de usufruir sua
sexualidade. Sem tais adaptações, certamente não seria possível a Marta alcançar a plenitude,já que ela
não se adapta ao modelo feminino consagrado pela ideologia. O par amoroso, aqui, aproxima-se de
uma situação ideal no que se refere à relação homem-mulher, por meio da masculinização de uma e
da feminilização do outro: ele abre mão dos preceitos patriarcais, que relegam a mulher à passividade
e lhe impõem a submissão, para aproximar-se do verdadeiro modo de ser de Marta, vivenciando-o ao
lado dela; ela complementa a nova situação (que lhe é favorável) através da eXperimentação do papel
masculino, como o entende Jerônimo.

PROBLEMAS E NOVAS PERSPECTIVAS DA CRÍTICA FEMINISTA: MULTIPLICIDADE E HETEROGENEIDADE

O conceito de gênero, considerado por Showalter (1985) "uma das mudanças mais marcantes
dentro das ciências humanas e das letras na década de 80", passou a ser amplamente usado pela
crítica literária feminista com o objetivo de evitar algumas armadilhas ou ambiguidades contidas
nos conceitos de identidade feminina e lugar da diferença. A procura da definição desses conceitos é, a
T'lr'~~rAC O"'~''''''-T {t ,'........ r"'\ .•• • , .

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" eigoe" p<eowp'ção cem,,[ ó, du," peinnp,is ve<lmt" d, c"t.", fenuni,,,, confoeme d"cutüum
, nos Itens antenores.
A tendência anglo-americana empenha-se na definição de uma identidade feminina e do lugar da
d!ferC/lça por entender que tais definições são fundamentais na luta contra as instituições patriarcais
dominantes. Nessa ordem de ideias, trabalha 110 sentido de: 1) denunciar a ideologia patriarcal que
permeia a crítica tradicional e determina a constituição do cânone na série literária: 2) empreender uma
arqueolo~a literária para resgatar obras de mulheres que foram excluídas da história da literatura; 3)
estudar a produção literária da mulhEr contemporânea, particularizando-a como um lugar privilegiado
para a experiência social feminina.
A noção de identidade, entretanto, está comprometida com a estrutura da lógica patriarcal: ao
reforçar a noção de mulher como o outro, o pensamento feminista anglo-americano corre o risco de
apenas legitimar e garantir a supremacia masculina, ou seja, a supremacia do mesmo.
Em relação à tendência francesa, também são registrados problemas estruturais, na medida
em que seus defensores preocupam-se com a especificidade de uma linguagem essencialmente
feminina, investigando as relações entre sexualidade e textual idade e proclamando uma escrita do
corpo, sem, 110 entanto, explicitar as relações concretas que as determinam, as práticas sociais que
as constituem.
Além disso, essa polêmica teoria da escrita do corpo, proposta, principalmente, por Hélêne
Cixous, acaba por entrar em choque com os caminhos teóricos da d!fférance, os quais buscam a
desconstrução das oposições binárias que regulam o logocentrismo. A esse propósito, Castello
Branco (1994) assinala que considerar que o feminino se constrói em oposição ao masculino
implica o risco de mergulhar-se num raciocínio simétrico e antinômico. E, sendo assim, ao invés
de suspenderem-se as dicotomias e os maniqueísmos que envolvem as relações de sexo, está-se
reiterando essas relações.

É só no entrecruzar desse duplo movimento - daquele que parte com aquele que fica, daquele
que rompe com aquele que repete, daquele que é o outro com aquele que é o mesmo - que
se pode VIslumbrar essa especificidade feminina do discurso. Aí o seu traço, aí ü seu rastro, aí
a sua diferênâa (CASTELLO BRANCO, 1994, p. 49).

Na verdade, ao proclamar a existência de uma linguagem feminina, o feminismo francês


tenciona valorizar e potencializar a obscuridade e a falta que caracterizariam essa linguagem,
em oposição à racionalidade e à implacabilidade da linguagem hegemônica masculina. Segundo
Hollanda, "é inegável que os discursos marginalizados das mulheres, [ ... ] no momento em
que desenvolvem suas 'sensibilidades experimentais' e definem espaços alternativos ou
possíveis de expressão, tendem a produzir um contradiscurso" (1992, p. 59). Todavia, as noções
de linguagem feminina e de identidade feminina, entendidas como construções sociais, exigem
o exame dos contextos sociais e históricos nos quais se estruturam. Há que se considerar,
numa perspectiva historicizante, a multiplicidade de posições cabíveis. Daí as tendências mais
contempQrâneas da crítica feminista estabelecerem o conceito de gênero como uma categoria
analítica fundamental.
Nesse ~entido, a análise textual realizada do ponto de vista do feminismo crítico desnuda, em
meio ao desnudamento dos mecanismos artísticos de construção do texto, o processo por meio do
qual são construídas nele as relações de gênero, bem como a maneira através da qual tais relações são
articuladas pela ideologia dominante, além de enfocar a interação dessas relações com outras relações
sociais, como as de raça e classe. Desse modo, as relações de gênero não teriam essência fixa, variando
dentro e através do tempo (HOLLANDA, 1992).
Em meados da década de 1980, contudo, também a noção de gênero passou a ser questionada, por
ainda explicitar uma tendência de universalização da oposição homem/mulher. Esse questionamento,
no entanto, não minimiza a importância do conceito para o estudo do texto literário do ponto de vista
feminista; antes, aponta para a necessidade de ampliá-lo, visando à otimização de sua aplicabilidade. A

236 - T E o R I A LITERÁRIA
,,--~ C!l I I I '" ,\ I" L \1 I " I S I A

tendência, em vista disso, é tomar a noção de gênero como uma configuração variáve I de posicional idades
discursivas sexuais.
É o que defende Teresa Lauretis. no ensaio ''A tecnologia do gênero" (1994). Abandonando o
sistema sexual de gênero como esfera autônoma, ela passa a considerá-lo como a representação de
uma relação, a relação de pertencer a uma classe, a um grupo, a uma categoria, a uma posição da vida
social em geraL
Em vista disso, elabora o conceito de sujeito do feminismo, com o qual quer expressar uma concepção
do sujeito (feminino), não no sentido de Mulher com letra maiúscula (representação de uma essência
que seria inerente a todas as mulheres, como Natureza, Mãe, Objeto de Desejo etc.), nem como
mulheres (os seres reais, históricos e os sujeitos sociais, engendrados nas relações sociais), mas no
sentido de uma construção teórica caracterizada por constituir-se em um movimento para dentro e
para fora do gênero como representação ideológica:

Um movimento de vaivém entre a representação do gênero (dentro dé' seu referencial


androcêntrico) e o que esta representação exclui, ou mais exatamente, torna irrepresentávcl
É um movimento entre o espaço discursivo (representado) das posições proporcionadas
pelos discursos hegemônicos e o space-ojf, o outro lugar destes discursos: esses outros
espaços tanto sociais quanto discursivos, que existem, já que as práticas femililistas os (re)
construíram, nas margens (ou "nas entrelinhas", ou "ao revés") dos discursos hegemômcos
e nos interstícios das mstítuições, nas contra-práticas e novas formas de comunidade
(LAURETIS, 1994, p. 238).

A conveniência mais expressiva desse conceito para a crítica literária feminista está, portanto, no
fato de ele atuar num espaço marcado pela ambiguidade e pela exterioridade, em relação ao quadro das
estruturas de representações das relações de gênero, as quais excluem espaços sociais ou discursivos
produzidos nas margens.
Outro viés da crítica feminista desenvolve-se a partir de estruturas não-eurocêntricas. Trata­
se dos estudos sobre a mulher nas sociedades periféricas, uma reivindicação da crítica pós-colonial
desde meados da década passada. Spivak (1995), pensadora indiana radicada nos Estados Unidos,
caracteriza as teorias feministas do chamado Primeiro Mundo como uma espécie de globalização que
faz desaparecer a heterogeneidade do Terceiro Mundo. Ao reproduzir clichês imperialistas, próprios
do discurso colonialista e ao obliterar a compreensão das diferenças inerentes às mulheres dos países
antes colonizados, a crítica feminista, segundo Spivak (1995), torna-se uma espécie de cúmplice de
certas ideologias racistas e colonialistas.
A pensadora, assim, reivindica, para o universo dos estudos empreendidos pela crítica feminista,
a reintrodução da dimensão histórica, quase esquecida pelos estudos da linguagem empreendidos
por Kristeva (1974) e Cixous (1988), que tendem a tomar a literatura como um fato fechado em si
mesmo. Do lugar de que fala Spivak (1995), tais estudos estariam mostrando formas de discursos
capazes de romper com a tradição, mas que não promovem a construção de novos sentidos para
o feminismo, nem escapam à determinação histórica do sexismo. Spivak, I}esse sentido, repudia a
definição da mulher a partir de uma suposta essência, para defender a sua pluralidade histórica; trata-se
de defender a adoção de uma postura fenomenológica de abordagem existencial e deslizante na visão
perq:ptiva do mundo (LOBO, 1999).
Essa reivindicação da crítica pós-colonial, e mais incisivamente de Spivak, consiste em um dos
caminhos possíveis, e mais atraentes, no dizer de Hollanda (1992), para a crítica feminista nas próximas
gerações:

Um dos caminhos possíveis - e mais atraentes também - que se abre para a ampliação do debate
teórico sobre as questões feministas, neste momento, seria, talvez, o investimento mais vigoroso na
multiplicidade e na heterogeneidade das demandas femininas, bem como nas próprias diferenças
manifestas entre mulheres de contextos e circullstâncias diversas. Nesta perspectiva cOllsidero
como importantíssimo o recente impulso dos estudos sobre a mulher nas sociedades periféricas.
São estes estudos os grandes responsáveis pelo movimento de inclusão dos temas do racismo, do
L I N

antI-scmÍtlsmo, do lI11pCfl;Jlísmo, do colonI~lísmo t' da t'nfasc nas chferenças de classe no debate


femil1lsta mais recente (I-IOLlANDA 1992, P 60-(1),

o conceito dc di{erenfil, de fato, tem assumido importância cada vez maior nas articulações
contemporâneas accrca do gênero, Trata-se de uma pcrspectiva que investe no desnudamento
das especificidades do sujeito, climinando o silêncio e a exclusão da alteridade c promovendo o
reconhecimento das similaridades na diferença; consequentemente, promove, também, a desconstrução
da lógica binária, É por meio desse pensamento pós-estruturalista que o sistema sexo-gênero tem sido
ultimamente equacionado,
Em Problemas de gê/1ero (2003), Judith Butlcr reformula a crítica às categorias de identidade
produzidas e naturalizadas pelos discursos hegemônicos, fazendo definitivamente cair por terra a
lógica do essencialismo que rondava a noção de mulher em favor do desnudamento do sujeito do
feminismo como uma categoria multifacetada e instável.
Na verdade, Butler desconstrói o conceito de gênero, sobre o qual está alicerçada toda a teoria
feminista, questionando a diferenciação que até então se imprimia, scm maiores percalços, entre as
categorias de sexo e gênero, A premissa de que o sexo é natural e o gênero é socialmente construído é
posta na berlinda: para a pensadora também a idcia de sexo é uma construção, uma vez que a mesma
não existe em um mundo pré-discursivo, "natural", Assim, se tudo é construção, já que desde o
nascimento a menina e o menino são definidos a partir da ideia previamente construída acer~a das
peculiaridades físicas apresentadas por cada um, não há diferença entre sexo e gênero, Em ambos os
conceitos, a cultura é o destino,
A partir dessa discussão, a teórica passa a questionar o conceito de mulheres como sujeito do
feminismo, O desmonte da construção de gênero redunda no desmonte de uma equação na qual o
gênero seria concebido como essência universal e, como tal, só poderia funcionar dentro do humanismo',
Não havendo unidade na categoria mulheres, ou seja, não sendo possível isolar-lhe uma presumível
essência, fica estabelecida a inexistência do sujeito que o feminismo quer representar. Trata-se de uma
categoria des-essencializada, ou seja, sem identidade fixa, sempre em processo, cuja evolução é afetada
pelo entrecruzamento com outros eixos, além do gênero, como raça, classe, sexualidade, etnia etc
Não existindo como categoria coerente e estável, o sujeito do feminismo acaba por consistir em um
problema político que há que se gerenciar sob pena de reduzir uma realidade múltipla e disforme a
uma representação estável, universal, porém, deturpada, que rejeita "a multiplicidade das intersecções
culturais, sociais e políticas em que é construído o espectro concreto das 'mulheres'" (BUTLER,
2003, p. 34-5),
Procuramos, neste capítulo, dar um panorama da crítica literária feminista, desde suas origens,
na década de 1970, até o momento contemporâneo. Conforme dissemos, quando se alude ao debate
teórico feminista de forma ampla, pensa-se imediatamente em duas grandes vertentes: a francesa e
a anglo-americana. Ambas as tendências, após um momento inicial em que trabalhavam no sentido
de desmascarar a misoginia das práticas literárias masculinas, passam a um momento mais maduro,
voltado para a investigação da literatura de autoria feminina, através de diversos enfoques, como o
biológico, o linguístico, o psicanalítico e o político-cultural.
O modo com que a crítica feminista lê a literatura, calcado nos pressupostos teóricos do
feminismo, constitui-se a partir de contradições socioculturais que fazem emergir a relação entre
sexo e gên~Io. Em decorrência dessa origem, é natural o fato de essa tendência crítica não encerrar
um modelo explicativo, homogêneo e monolítico. Daí o complexo de visões e práticas a que
nos referimos acima, articuladas ao redor de um objetivo básico: analisar e contestar a estrutura
patriarcal de nossa sociedade, por meio da análise da constituição dos gêneros e da opressão de um
gênero sobre o outro.
Nesse cenário, tem sido comum a revisão de conceitos, entendidos como instrumentos de
análise de textos literários de autoria feminina: inicialmente, falava-se no estudo da categoria

De acordo com Heidegger, o humanismo pressupõe como óbvia a essência mais universal do homem,

238 - T E O R I A LITERÁRIA
I
-~.--~ C R I T I C ,\ í- E .'1 I N 1ST A

I "mulher "; a seguir passou-se a estudar a categoria de gênero; ultimamente, tem-se problematizado
as catcgorias cuja tendência é universalizar, ainda subjacentemente, a oposIção homem/mulhcr.
Antes dc essa diversidade de discussões teóricas implicar um jogo dc mocinhos e bandidos no universo
da crítica feminista, implica diálogos salutares, que só tendcm a aprimorar os estudos acerca do tema
"mulher e literatura".

A CRÍTICA FEMINISTA NO BRASIL

Se nos Estados Unidos e na Europa, o início dos estudos ligados à mulher e sua represcntação
na literatura datam dos anos 1970, no Brasil, até recentementc, o tema não era considerado objcto
legítimo de pesquisa. Segundo Boletins do GTMulher e Literatura da Anpoll, a consolidação de trabalhos
dessa natureza nas instituiçôcs acadêmicas brasileiras data de mcados dos anos 1980, quando grupos de
pesquisadores(as) passaram a se reunir para desenvolver estudos, apresentar resultados de pesquisas e
discutir textos teóricos relativos ao tcma.
Essa consolidação deveu-se à criação de associações de estudo, grupos de trabalho e de
seminários sobre o tema: em 1984, foi criada a Associação Nacional dc Pós-Graduação e
Pesquisa em Letras e Iinguística (Anpoll), cm que se integra o GT Mulher e Literatura, composto
por professorcs pesquisadores( as) do tema; em 1985, foi criado o Seminário Nacional Mulher &
Literatura, que se caracteriza pela divulgação de trabalhos e pesquisas nos meios acadêmicos,
por seu caráter intcrdisciplinar, pelo deslocamento por diferentes instituições brasileiras de
ensino supcrior e pelo cmpcnho em possibilitar a atualização dos pesquisadorcs do tema por
meio de intercâmbio com cspecialistas nacionais e estrangeiros; a Associação Brasileira de
Literatura Comparada (Abralic), criada em 1986, também tem contribuído para a consolidação
dos estudos de gênero no Brasil, na medida em que boa parte dos trabalhos aprescntados nos
encontros refere-se a essa temática, constituindo-se, portanto, num espaço privilegiado para
divulgação de pesquisas.
Na avaliação da coordenação do GT Mulhere Literatura daAnpoll, essas diversas oportunidades
de encontro dos pesquisadores do tema têm permitido o intercâmbio de experiências entrc
pesquisadores de diversas instituições e nacionalidades, a divulgação de resultados de pesquisas
e trabalhos críticos, além do estabelecimento de linhas de pesquisa nos cursos de pós-graduação
e departamentos de língua e literatura, constituindo-se em referência obrigatória para a área.
O resultado positivo dessas iniciativas pode ser constatado pelo substancial aumento de seminários
específicos sobre a mulher, de cursos de extensão e pós-graduação, de teses e monografias e de
publicações sobre o tcma. Trata-se de trabalhos voltados para a reconstrução e crítica de modelos
tradicionais que torna compreensiva e instigadora a perspectiva feminina nos "estudos literários e que,
em última análise, têm revertido progressivamente o quadro de carência que caracterizava os estudos
ligad~s ao tema Mulher e Literatura no Brasil.

As linhas de pesquisa em que se enquadram esses trabalhos derivam das duas grandes tendências
mencionadas no item anterior: a anglo-americana e a francesa. As investigações empreendidas pelos
pesquisadores ligados à Anpoll privilegiavam, inicialmente, grandes linhas intituladas "Mulher e
Literatura: perspectivas teórico-críticas"; "Representações do feminino no texto literário"; "Literatura
e feminismo" (enfoque sócio-histórico); "Literatura e o feminino" (enfoque psicanalítico); "Literatura
e mulher" (enfoque estético-formal).
Posteriormente, fez-se necessária, mais de uma vez, a reformulação dessas linhas, tendo
em vista as especificidades e diversidades das investigações e o fato de elas terem se constituído
em ponto de referência para os cstudos sobre Mulher e Gênero nos cursos de Letras oferecidos
~o I J N

, em nossas ul11\'Crsldades. AssllTI, em 1993, as refendas Imhas de pesqUisa assumIram a segumte


, configuração: "Tcona e crítica feminista: vertentes'"; "A questão do Cãnone" e "Gellder ­
estudos de gênero". Em 1999, assumiram outra configuração: "Resgate", "Teoria e críticas",

"Interdisciplinaridade" e "Representação". Em 2006, tomaram a configuração atual (veja quadro

abaixo)

~~~,-~~~~~--~- --'~~-- .. ------------_. -- - - ' - ­

Pesquisa t' constitUIção de um corpus significativo da produção desconhecida


dt literatura de autoria ftminina. tornadas invisíveis pela mediação crítica, quase
exclusivamente masculina, a partir de uma postura de revisão do cânone e de
Resgate e inclusão
desconstrução dos saberes hegemôl11cos, buscando outros.

Palavras-chave: resgate, inclusão, autoras, história literária.

Desenvolver investigações teóricas que subsidiem o discurso crítico com vistas a I

análises feministas de obras no âmbito da história literária e da crítica cultural, a partir

Teorias e críticas de conceitos de identidades e de diferenças no contexto nacional e transnacionaf.

Palavras-chave: feminismos, teoria(s), identidade(s), diferenças.

Representações de Investigação das representações/construções de gênero na literatura e/ou em


gênero na literatura outras linguagens a partir de uma perspectiva crítIca fc'minista.
e em outras
linguagens Palavras-chave: representação, construção, gênero.

Quadro 7. Linhas de pesquisa ligadas à crítica feminista desenvolvidas no Brasil.

o crescimento de estudos ligados a essas linhas de pesquisa, desenvolvidos por pesquisadoras(es)

de todo o país, atestado pelas constantes publicações de antologias, dicionários, ensaios, coletâneas

de estudos críticos, anais de congressos etc., permite falar, neste início de século. na crítica literária

feminista no Brasil como algo consolidado.

No entanto, a despeito disso, os escritos de mulheres, assim como aqueles relacionados às minorias

étnicas e sexuais e dos segmentos sociais menos favorecidos, são relativamente pouco difundidos nas

salas de aula. É como se essas vozes Outras não fossem dignas de figurar nos currículos escolares,

inclusive naqueles dos cursos de Letras.

Se, no âmbito de nossas pesquisas, nós educadores temos trabalhado no sentid,o de desenvolver

enfoques multiculturais no estudo da literatura, no âmbito do ensino tendemos a nos manter no

"topo da pirâmide", rendendo tributo aos discursos dos "mestres", perpetuando o cânone literário,

constituído pelo homem ocidental, heterossexual, branco e de classe média-alta; e, nesse sentido,

contribuindo com a exclusão ou o silenciamento das vozes Outras. Apesar de sermos tão críticos

quando nos investimos do papel do pesquisador, não nos damos conta da influência do professor

na criação e perpetuação de cânones, nos tipos de experiências que devem ou não ser preservadas

e quais os segmentos da humanidade que merecem valor histórico.

Embora seja difícil desafiar os valores instituídos e arraigados no inconsciente coletivo, os nossos

alunos dos cursos de Letras, sobretudo, têm o direito de conhecer não apenas os textos literários

canônicos, mas também outros tipos de textos, provenientes de outros segmentos culturais, para que

eles possam aprender a ler de modo crítico, questionando ideologias e contribuindo para mudanças

de mentalidades.
It
240 ~ T E o R I A LITERÁRIA
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.'

242 - T E O R I A LITEHÁRIA
1
I,
I
I

CRÍTICA
~

PSICANALITICA

Adalberto de Oliveira Souza

INTRODUÇÃO

Neste capítulo, pretende-se apresentar alguns elementos fundamentais para a compreensão da


Crítica Literária Psicanalítica. É um esboço das condições básicas para que se possa aplicar esse tipo de
análise. Vê-se que há exigências primordiais para entrar nesse campo de pesquisa: em primeiro lugar,
o conhecimento prévio tanto da literatura como da psicanálise. Por isso, fez-se necessário recorrer
a um apanhado histórico, isto é, uma verificação de como foi o processo de sua origem, como está
caminhando a sua existência e qual a sua importância dentro dos estudos das Ciências Humanas.

SITUAÇÃO DA CRÍTICA PSICANALÍTICA

A psicanálise não é uma prática literária. É uma metodologia clínica e terapêutica. Tem,
contudo, um relacionamento complexo com as práticas de leitura ~ de escrita e com os
pressupostos que se faz sobre o porquê de as pessoas escreverem e como os textos afetam os
leitores. A Crítica Psicanalítica é de orientação interpretativa, portanto de cunho hermenêutico
e fenomenológico, isto é, procura-se captar um sentido irredutível às intenções reveladas
pelo autor, para se chegar a uma essência única de compreensão da obra literária. A Crítica
Sociológica, a Crítica Temática e a própria Crítica Hermenêutica, esquematizadas por Paul
Ricoeur, têm o mesmo objetivo.
Tem-se que observar que essa orientação crítica sofre censura de algumas outras correntes
de crítica literária, que a consideram como uma tentativa de se afastar das Ciências Humanas.
Os desconstrutivistas acusam-na de permanecer fiel a uma concepção teleológica, ou seja, visar a
um fim supremo; os críticos de tendência formalista apontam nela o abandono da literariedade,
ao estabelecer conexão com textos que mostram realidades que ultrapassam aspectos dessa
literariedade, que é um dos traços distintivos da literatura.
LITERATURA E PSICANÁLISE

o relacionamento entre a psicanálise e a literatllfd se reduz ao ohJeto do processo psicmalítlco


e do sentido reprimido que se espera recuperar. "Enquanto <, ltteratura pode ser considerada um
corpus linguístico a ser interpretado, a psicmálise refere-se a um corpus epistemológico, um conjuIlt(}
de conhecimento, Cl~a competência é invocada para efdudr a interpretaçlo. Em outns palavras. d
psicanálise é o sujeito, enquanto a litentura é o ohJeto"' (FELMAN. 1982, p. S). A psicanálise da
literatura cria uma luta para o poder. O relaCIonamento entre o crítico. o texto e o escritor podeL~ ser
discutido no contexto das relaçôes entre o analista e o paciente. Analisam-se, portanto, o relacionamento
paciente/texto e também o relacionamento leItores/críticos.
Além disso, há um relacionamento entre a psicanálise e a literatura porque os conceitos mais irnportantes
em psicmálise são definidos por seu referencial a mitos e autores clássicos. ldl é o ClSO em "complexo de
Édipo", "narcisismo", "masoquismo", "sadismo". "'A literatura é a linguagem que a psicanálise usa pan fJlar
de si mesma, para dar nome a si. A literatura não está fora da psicanálise, já que motiv:l e nomeia os seus
conceitos. É a referência pela qu:d a psicanálise denomina as SU:lS descobenas" (FFLMAN, 1982. p. 9).
Não se pode negar que a Crítica Psicanalítica remonta a Sigmund Freud (18S6-1939). Sabe-se
que a psicanálise tem pouco mais de 100 anos, assim como a Crítica Psicanalítica, pois FreuJ, 'apesar
de hesitar, aproveitou para a sua teoria a área da criação artística, haja vista seus estudos sobre Éd,jJO
Rei, de Sófocles, e Hamlet, de Shakespeare, e111 sua IlIterpretação dos sO/lhas, publicada em 1900. Desde
1897, Freud passou a associar na análise de seus pacientes c na sua autoanálise o complexo de Édipo,
para construir um de seus conceitos fundamentais. Mais tarde, em 1928, ele acrescentou o romance
de Dostoievs16, Os irmãos Karamazov, para refórçar sua teoria, além de ampliar suas pesquisas a obras
menos canônicas como Gradi/la, de Jensen.
A literatura e sua prática sempre foram um exercício da linguagem, tanto oral como escrita. criando
um espaço marginal às formas habituais da comunicação e tendo como fundamento a expressão de uma
subjetividade. Ademais, a ferramenta mais importante da psicanálise é a linguagem, seu traço comum
com a literatura. Além disso, ambas têm como fundamento a subjetividade, até quando transmitem
uma ocorrência de amplo valor social. No entanto, a psicanálise exige para si foros de ciência. por \Im
lado, ahrangendo um campo de pesquisas todo seu, que aharca a patologia mental, as neuroses. as
paranoias. as psicoses, as perversões e tantas outras mais. Isto é. a psicanálise tem um ohjetivo clínico
e inovador, que é a [Ura pela pala/lra de um doente em partic11lar. Por outro lado, ela também se volta,
num segundo plano, para as explicações das produções culturais.
Nota-se, portanto, que há vários fatores pelos quais a psicanálise associou-se à literatura e esta, por sua
vez, apropriou-se das descobertas realizadas pelos psicanalistas. Sobretudo porque a psicanálise, cumpre-se
repetir, é uma experiência que se constrói unicamente pela linguagem, sendo esta sua base metodolÓgica.
Haja vista a observação dos atosJallws, da livre asso(Úlção, por pane do paciente ou do objeto analisado e, por
parte do analista, a atenção flutuante, que deve escutar ou observar, sem preconceitos, sem partidarismo, o
discurso ouvido ou lido, mas, em seguida, ser muito atento e preciso para formular sua'interpretação.
Por isso, era de se esperar que se criasse uma crítica literária de cunho psicanalítico, ou melhor,
uma crítica assumidamente psicanalítica, estabelecendo seus métodos em bases freudianas.

o INCONSCIENTE

A Crítica Psicanalítica existe devido à psicanálise e à sua descoberta mais fértil: o inconsciente.
Pode-se dizer que o inconsciente é o conceito fundador da psicanálise e é a maior contribuição ao
pensamento contemporâneo.

244 - T E o !( I A LITERÁRIA
~
':1<111"·\ 1,,1, ·\N·\IIII'.-\

Freud, nos seus livros: .'l illtopretaçiio dos 5011110.1, A psicopatol(1<~ia da pida (otidi,l/la, Ü /1I111l0r e slIas
relações COI/l (1 illconsclente, O .Ionizo e li slIa illte/pretação, divide a representação espacial do psiquismo
em três sistemas: o inconsciente, o pré-consciente e o consciente, colocando uma outra lógica nos
processos conscientes (BERGEZ, 1996).
Essa outra lógica está na análise sistemática do sonho, que é, para ele, o caminho que leva ao
inconsciente, comparando o wllteúdo lIlall[{esto do sonho, ou seja, a narrativa que dele se fiz, ao cOllteúdo
la te/lte, que é aquele obtido através das associações. Freud também apresenta os mecanismos que
mostram como interpretar sonhos, tais como a condensação, o deslocamento, a figurabilidade e a
elaboração secundária,
A cotldellsação é feita quando um elemento único, no sonho, representa vanas correntes
associativas ligadas ao conteúdo latente. Esse elemento pode ser uma pessoa, uma imagem,
uma palavra. É preciso decifrar, nesse caso, o ponto comum desconhecido que dá sentido a essa
condensação.
O deslocamento é realizado quando uma representação aparentemente insignificante fica
investida de uma intensidade visual e de uma carga afetiva que incomoda, chama a atenção.
Através da análise dessa insignificância que se sobressai, pode-se, então, descobrir desejos
inconscientes.
A figurabilidade é executada quando pensamentos inconscientes tomam a forma de imagens, e
pensamentos abstratos são substituídos por formas concretas.
A elaboração seczmdária ocorre com a intervenção do subconsciente quando a narrativa do sonho é
elaborada pelo paciente.
Esses mecanismos podem ser usados para a análise de obras literárias e podem ser vistos de duas
maneiras:

a) O texto como encobrindo a verdade nua e crua do inconsciente;

b) O texto como contetido lI1an[{esto do inconsciente.

No entanto, em ambas as maneiras de encarar o texto, essas visões devem ser interpretadas,

porque tanto o sonho como o texto nos trazem, apenas, uma deformação do que está presente no
inconsciente. Freud supõe uma teoria dinâmica do inconsciente, uma vez que ele vê no sonho
uma descarga psíquica de um desejo em estado de recalque. Desse modo, toda produção psíquica
é uma formação de compromisso entre a força do desejo e a potência censora ou de recalque do
consciente, e do pré-consciente.

A LEITURA E A INTERPRETAÇÃO PSICANALÍTICA

Retomando o fato de a psicanálise não ser intrinsicamente uma prática literária, é importante
verificar os problemas técnicos de interpretação, que podem ser aplicados ao texto literário sem
se preocupar com o tratamento terapêutico no qual basicamente esse tipo de análise é usado e
para o qual foi criado. Existem algumas categorias que devem ser ressaltadas:
• O enigma - Todo discurso é enigmático, já que propõe a articulação de processos entre
significações inconscientes e conscientes.
• A detecção - Não é fácil definir o conjunto de regras que rege essa detecção. O analista (ou o
"detetive") deverá recolher índices desconhecidos, despercebidos ou negligenciados e organizá­
los para encontrar uma solução convincente e eficaz, reconstruindo uma história visando a
uma verdade.

TIIOMAS BONNICI I T.t'ICIA O\ANA Znl IN (nIU;ANI7.AOORF\) - 24:')


U 1. !\

• o desejo de saber ~ Como a \'ontade de saber é exacerbada, UI11 caso psicanalítico pode ser

interpretado de vários modos, pois são inesgotá\Tis as possibilidades de signdicl<,Jo.


• A i/ltcrpretaçclo dos SI~í?/lOS ~ A psicanálise pode ser colocada elltrl' os sistCIlL1S "semiótlcos" de
conhecimento, ao lado da medicina clíl1lCJ. da história, da pesquisa polici.ll e da exegese dos
textos.
Por isso. a Crítica Psicanalítica é especificamente mterpretativa, mas tem uma prátIca singular dessa
interpreta<,-ão, pois ela é parcial e tem seus lirnit\:'5 COlll relação a outras forllLls de críticas literárias. Para
fazer urna abordagem psicanalítica de Ulll texto, o crítico deve sempre a\lsar quais são suas escolhas,
seus pontos de vista e seus métodos segundo o texto analisado. Não é demaIS reIterar que esse tipo
de crítica é uma prática adaptada de uma situação estritamente crítica para outra que tem de levar em
consideração a especificidade do texto literário_

A DIVERSIDADE DAS CONCEPÇÕES

Freud teve in úmeros seguidores, herdeiros de sua teoria, médicos. pl'sq uisadores, críticos e filósotos
que constataram uma fecundidade efetiva em suas pesquisas, tais como Adie r, Abraham, Adorno.
Bettclhcim, Cooper, Ferenczi, Froom, Croddlck. Horney,]ones,]ung, Laem. Laillg, Marcuse, Rank,
ReICh, Reik, Roheim, Sartre e muitos outros. Os caminhos seguidos forarll muito variados assim
como os objetivos a serem alcançados.
Muitos críticos literários recusaram-se a uma aliança com os fundadores dessa disciplina e
negaram-se a aceitar uma sistematização imposta. Assim mesmo, não deixaram de utilizar conceitos
psicanalíticos.

CARLJUNG

Em geral, a parte mais importante da crítica psicanalista se apoia em bases freudianas. Mas
há, também, outros críticos que se \oltam para Carl ]ung (1875-1962), um discípulo dissidente
de Freud, cuja teoria, no início, está perto do mestre, no tocante à associação de palavras, que seria
uma forma de controlar a associação livre da técnica psicanalítica. Em seguida, Jung caminha para
um sistema mais complexo e menos passível de verificação experimental. Ele transforma o sistema
de concepção básica de Freud na descrição da interação organismo e ambiente. Não aceita, por
exemplo, os conceitos de ego, superego e id (consciente, pré-consciente e inconsciente) e cria outros
conceitos, o mundo externo-mundo interior, col1Sciência-incol1Sciência (pessoal e colcti/lo) , persona ~ al1imus e
anima, ego-sombra .

.'

JEAN PAUL SARTRE

J ean- Paul Sartre (1905-1980) critica a psicanálise freudiana, considerando seus conceitos
insuficientes, especialmente no tocante ao inconsciente e à censura. Esse filósofo tenta substituí-Ia
por uma psicanálise existencial. A filosofia de Sartre é uma filosofia da liberdade, portanto implica
uma moral de responsabilidade. Se nossos atos não nos pertencem e têm a sua causa na obscura

246 - 1 E o R I J\ LITERÁRIA
..i~ C H I I I, .\ I' \ I ( ,,,.\ I I I I ( ,\

química de um inconsClente, não há moral possível. Não se pode aprovar ou desapun'ar um rio
que deságua no mar. Para Sartre, a psicanálIse é um imoralisl11o determinista que se fundamenta
numa prática repressIva e norl1lativa. Ele aplica sua tentativa de pSIcanálise existencial el1l sua
obra Baudelaire, expondo que esse "poeta é o homem que, experimentando mais profundamente
sua condição de homem, procurou de forma mais apaixonada mascaLl-la", segundo Constat
(MAGAZINE LITTÉRAIRE, 1980, p. 41). Sartre ataca a noç;'io tríplice de heud: o inconsciente.
o pré-consciente e o consciente, JustIficando que se o consciente n;'io pode tocar o inconsciente.
devido à censura do pré-consciente, ocorre uma má fé dessa censura. Uma vez que ela saiba o que
deve censurar, ela é consciente (pois saber é saber que se sabe). Assim sendo, a censura colabora
com o consciente; ela pode mentir, enganar tanto o analista quanto o analisado.
Em suas aplicações futuras de psicanálise existencial, ele aplica também teorias freudianas,
quando analisa a obra de Jean Genet, Saillt Genet, (o/Ilédiell et martyr, e a de Flaubert, L}idiot de la
famille, onde não volta a refutar a teoria do inconsciente porque fala do (l/l,ido: apenas recusa ()
determinismo psíquico e inverte os termos em nome da liberdade de escolha e os II1tegra no campo
da responsabilidade. O que bem explica isso é a fórmula de base de sua antropologia: "o mais
importante não é o que fizeram de nós, mas o que fazemos de nós meSI1lOS daquilo que fizeram de
nós" (MAGAZINE LITTÉRAIRE, 1<)80, p. 42).

GASTON BACHELARD

Há também o caso de Gaston Bachelard (1884-1962), que introduziu a imasil1ação da matéria como
o principal objeto de estudo, insistindo na crítica da consciência do sujeito que escreve. A imaginação
da matéria é o elemento que escapa à ciência, mas não os devaneios (que não são sonhos), elementos
fundamentais de suas análises.
Antes dos anos 1970, período 110 qual a ling4ística triunfa sobre todos os outros métodos analíticos
de textos, os métodos de Bachelard vão inspirar, praticamente sozinhos, o que foi denominado NcuJ
Critirisln ou Nova Crítica.
Bachelard dá um sentido outro aos termos usuais psiwlláliseJCI1omel1ologia e poética (TADIÉ,
1987). Quanto à psicanálise, por exemplo, o inconsciente, para ele, é uma camada menos
psíquica e mais intelectualizada (seria, para Freud, o pré-consciente), e, como já se disse, ele vai
dar mais importância aos devaneios que aos sonhos. O devaneio é a sedução de uma imagem
preferida e não elementos soltos no inconsciente freudiano. Quanto à fenomenologia, para
ele, esta,é um estudo do fenômeno da imagem poética, quando emerge na consciência como
produto direto do coração da alma, do ser e do homem captado na sua atualidade (TADIÉ,
1987). A sua poética, portanto, também tem um sentido diferente, pois seu único objeto de
estudo é semelhante à estupejacíC/lte i/l1agem dos surrealistas. A crítica literária de Bachelard quer
reconstituir o significado a partir de uma imagem principal na obra do poeta ou escritor e,
entãb, descobrir, nas imagens, o mundo mais significativo para o artista.
Num de seus livros, A psicanálise doJogo, ele escreve: "o álcool de Hoffmann é o alcool que flameja;
está marcado com o signo todo qualitativo, todo masculino do fogo. O álcool de Poe é o que submerge
e que proporciona o esquecimento e a morte; está marcado com o signo todo quantitativo, todo
feminino da àgua" (BACHELARD, 1938 apud TADIÉ, 1987, p. 114).
Existem outros autores que roçam a Crítica Psicanalista; no entanto, seria melhor chamá-los
de críticos do imaginário, uma vez que tentam escapar dos conceitos freudianos, assim como Jean­
Pierre Richard, Gilbert Durand. Northrop Frye, Mario Prazo Sem dúvida eles ofereceram grandes
colaborações também à crítica literária.
l.: "- ,~

]ACQUES LACAN

Há também o oposto: psicanalistas que nJo eram ligados à literatura e passaram a tazer críticl
literária, notoriamente Jacques Lacan (1901-1981), com seus trabalhos sobre Bataille, Claude\' II ugo.
Joyce, Moliere, Plauto, Pascal, Shakespeare. Wedekind. Poe, Gide e Duras.
Vale a pena deter-nos no scu trabalho. Já que ele não foge dos pressupostos freudianu\
e. sim, tenta recuperá-los. De EIto, ele tenta uma reescrita da obra de Frcud. utiliz:lI1do-sc
da linguÍstica estrutural. Sua maior mfluência está no emprego de métodos psicanálitícos
para analisar textos culturais, como literatura e filmes. A teori::l psicanalítica de L::lC::ln (1966)
foi apropriada em várias abordagens pós-estruturalistas, de modo especial na teOrIa m::lrxis(;l
avançada de Althusser, nas obras de teóricas feministas francesas, como veremos. e na teoria
pós-colonial (BOWIE, 1991).
Os estruturalistas sempre consideraram a teoria do sujeito como ll1gênua e reacionária. /I.,.
crítica lacaniana desenvolveu Unia análise do inconsciente que tornou mais aceitável a teoria do
sujeito falante. O inconsciente é um produto da linguagem e tem a estrutura dela. A linguagem
é um fluxo constante de significantes instáveis, os quais jamais estão amarrados a concei,tos
fixos (significados). Para Lacan (1966), o mecanismo do desejO impede a fixaçJo definitin
do significado (semelhante ao príncipio da dijférance, de Derrida, discutido no Capítulo 10),
embora ele mesmo não seja adepto da pluralidade de significados. Lacan afirma que o simbólico
é controlado por um significante privilegiado e transcendental chamado phallus (nJo é o pênis,
mas o seu símbolo). O pltallus, o significante da diferença sexual, é o símbolo do controle do
pai sobre o desejo da criança. É o phalllls que ajuda todos os outros significantes a adquirirem a
unidade temporária com seus significados, garantindo a estrutura patriarcal do Simbólico.

!
A criança está no estágio pré-edipal. Ela está no Imagílliírio (o SClI1iôfiro de Kristeva), 011 seja, ela não
possui linguagem, gênero, identidade ou noção de distinção entre si e os outros, não tem conhecimento
de limites, e está sujeita a impressões e fantasias. Portanto. não sabe que seu corpo não é o mundo
exterior. Pela jiue do espelho a criança entra no Simbólico, ou seja, entra no mundo da linguagem, no
qual o mundo real é simbolizado e representado pela linguagem e outros sistemas que se operam como f
a linguagem. Diga-se de passagem, esse mundo real jamais pode ser conhecido, porque está fora da
linguagem. Em sua entrada no Símbóliw a criança não apcnas se reconhece como um ser distinto, mas
aceita a linguagem e os sistemas sociais e culturais que formam o seu ambiente. Essa imagem é uma
projeção imaginária do ego unificado e autônomo. A identificação da criança com tal imagem, porém,
é um falso reconhecimento, já que ela se encontra dividida entre o "eu" que percebe e o "eu" que está
sendo percebido.
O segundo' estágio de desenvolvimento, portanto, envolve a entrada da criança no Simbólico,
ou seja, no conjunto dos sistemas de significantes culturais dos quais a linguagem é uma peça
fundamental. Essa poderosa configuração de autoridade operacionada pela lingu'agem é chamada
de Nome-da-Pai, diante do caráter patriarcal do complexo social em vigor. A criança participa desse
processo p~ra se diferenciar dos outros e tornar-se um sujeito autônomo. A introdução dela à
linguagem envolve uma segunda divisão: deve identificar-se com o "eu" da primeira pessoa do
singular para formular suas necessidades e se diferenciar do pronome "tu". Mais uma vez essa
identificação com o "eu" da elocução é um falso reconhecimento. Presume-se que haja uma
identificação entre o "eu" que fala, o sujeito do enunciado, e o "eu" representado na e1ocução, o
sujeito da enunciação. Lacan (1966) afirma que o "eu" da elocução fica sempre subvertido pelo
inconsciente. Ele concorda com a explicação de Freud (que usa as expressões "condensação", ou
seja, várias imagens que se misturam num único símbolo, e "deslocamento", ou seja, a mudança de
significação de um símbolo para outro adjacente) para mostrar como o inconsciente representa os
desejos reprimidos através da metáfora e da metonímia.

248 ~ T E o R I A LITERÁRIA
r

~ ( ' " , 11' \ "\1, \N \1 11.\

1. Imaginário Estado pré-slll1bólico: InLlgens conscientes e incOlbClcntc, \I\'e Ilciadas


ou fruto de Ell1tasias,

2. Estágio do espelho A tr:lIlsiçao do Imagi!lário ao SIIllb(")lico,

3, O Simbólico O domÍllIoda Iins'uageIll e da represcn tlç;lO da aq ulsH,;ão da SlI

da linÉ,'lngem e da consciênCIa da clifcrl'ncLl\'Jo.



4. Nome-do-Pai (Nom-du-Pere) CaracterÍ5tica do SlInbólico: figura repressiva. el1lbora uma g;lLlIltÍa ao
significado, ,\ normalidade e à sanidade,

5. Outro (Autre) O domíl11o do feminino, fora do Simbólico, assoCIado :lO !li Ctlllsciente.

6. outro (autre) O objeto oriundo dos outros, recebido pelo sUjeito !lO Si mhóEco, o
relacionamento entre o sujeito e n objeto
f­ - -

7. Desejo Prod1!zido por C:!usa do hiato entre a nccessidade e a inca pacidadc da


linguagcm de articular a demanda. É smal du fracasso da lingllJgem e da
perda do estado pré-Simbólico imhfercllciado.
1

8. Gozo (jouissance) Contentamento, imbuído de sub"lTSJo, que desafia o Simháli"" I


associado ao feminino

Quadro 1. Termos básicos em Lacan (1966),

A análise do conto de Edgar Allan Poe, intitulado The J!lIrloined [etter (A carta roubada) introduz
na psicanálise o modelo da linguística estrutural. Lacan (1966) tenta elaborar uma nova teoria do
inconsciente e das leis que regem as relaçóes intersubjetivas (MULLER; RICHARDSON, 1988). De
fato, procura uma lógica do inconsciente, de intersubjetividade e de rl'laçóes com a verdade. Em 1956,
ele pensa tê-lo conseguido, graças a uma leitura do texto de Pol', narrando um inquérito policial em
que a personagem do detetive Dupin se s;:ti hem.
O conto não é relacionado com sonhos ou com associações de pacientes ou do psicanalista que
escreve, como ocorre em Freud. Lacan (1966) coloca em relação dois tipos de textos para produzir o
seu: o de Freud (teoria) e o de Poe (ficção). Ele coteja esses dois textos para lhes resgatar a "verdade";
ou melhor, repensa os textos freudianos relacionando-os com o conto, tentando ilustrar "a verdade"
que quer mostraI', A codificação do conto permanece ambígua, mas isso não tira nenhum interesse
desse estudo, que não se contenta em refazer o inquérito de Dupin para encontrar outra solução para
o enigma: esse estudo procura as leis do enigma e do inquérito,

Vamos ao conto, que se desenvolve em dois episódios:


.1. O primeiro se passa na antecâmara real: a rainha recebe uma carta; o rei entra; ela dissimula e
coloca a carta sobre a mesa, virada com o subscrito para baixo. O ministro vê o embaraço da
rainha, compreende o motivo e tira do seu holso uma carta idêntica e a troca pela primeira. A
rainha vê o roubo, mas não pode fazer nada. O rei não vê nenhuma das duas cartas. A rainha
sabe que o ministro tem a carta e ele também sabe que ela sabe disso.
2, O segundo episódio se passa no gabinete do ministro: a polícia revista a sala sem sucesso e não
encontra a carta lá. Dupin se faz anunciar ao ministro e, com os olhos cobertos com óculos
verdes, reconhece a carta num bilhete amassado num porta-cartas pendente sobre a lareira. Ele
volta no dia seguinte e, provocando um acidente na rua, desvia a atenção do ministro e troca a
carta por outra, O ministro não sabe que ele não tem a carta; a rainha sabe que ele não está mais
I.pC'
ç~
I.' Z\

~
com ela. Dupin sabe que o ministro não tem mais ;1 carta, mas lhe deixa um bilhete sarC:lsticll I·

c devolve a carta à rainha.


Lacan (1966) loloca de lado todo estudo psicológico das personagens c faz uma icJtura estruturJI.
Ele analisa o segundo episódio como a repetição do primeiro: um mesmo sistema de três figuras ligadas
pelo mesmo acontecimento (o roubo) em volta de uma mesma carta, Com isso procura a organização
lógica: a lógica das relações com a verdade, a lógica da intersubjetividade e a lógica do inconsciente.
Lacan observa que o conteúdo da carta não é revelado e o desenvolvimento do conto não se dá
nem pelos personagens nem pelo conteúdo da carta, mas pela posição dela em relação aos personagens
presentes em cada episódio. Define as diferentes posições do sujeito diante da verdade, analisando o
Jogo de olhares, segundo a equivalência ver = saber:
a) o primeiro tipo de olhar (do rei e do chefe da polícia) não vê nada;
b) o segundo tipo de olhar (da rainha e do ministro) percebe que o primeiro tipo de olhar não viu
nada l considera sua posição segura;
c) o terceiro tipo de olhar (do ministro e do detetive Dupin) percebe que os primeiros olhares
deixaram a carta secreta exposta para quem quisesse se apoderar dela.
A carta, desse modo, funciona como um significante, porque transforma as personagens da
narrativa em sujeitos. Lacan (1966) considera que nesse conto o simbólico é constitutivo do sujeito
porque o sujeito recebe uma orientação decisiva a partir do lugar do significante (a carta). O conto,
portanto, é uma alegoria da psicanálise e esta é um modelo da ficção: não é o inconsciente do autor
nem o inconsciente dos personagens que são interpretados na análise, mas sim o inconsciente do
texto. Este revelará as relações entre linguagem, texto e leitor.
Lacan (1966) nota que, de um episódio a outro, a rainha, o ministro e Dl1pin se sucedem deslocando­
se para os mesmos lugares. A carta, que representa o significante e a letra do alfabeto, ao circular, faz
circular os sujeitos no interior de um pequeno número de lugares fixos. A carta não é propriedade de
ninguém, é tê-Ia em mão que determina em qual lugar ficar. Isso prova a determinação maior que o
sujeito recebe do percurso do significJnte. Todo sl~eito está sujeito à ordem simbólica que o transcende
e define seu lugar, não importando quais sejam os dons inatos, a posição social, o caráter ou o sexo.
Se a carta representa o phal!us ou um grande corpo de mulher (falicidade ou simbolização do phallus
ausente) fica claro que as duas cenas estruturam um história edipiana, organizada em torno do complexo
de castração. As três posições: o pai (o rei), a mãe (a rainha) e os filhos (o ministro, filho infiel, e Dupin,
filho fiel), sendo que este segundo filho pela sua fidelidade restabelece a ordem correta inicial, através de
um comércio com a mãe, a rainha. São as duas figuras desdobradas do sujeito,
Lacan (1966) define uma lei universal da intersubjetividade em torno do phallus: o rei detém o poder
conferido pelo phallus, com a condição de confiar a guarda à rainha, Esta, como se sabe, não o tem e só tem
o poder de transmiti-lo. Ela deve ser fiel àjura feita ao rei (o pacto do casamento). O ministro, detendo
a carta, se crê todo poderoso, mas fominiza-se ao pegá-Ia; Dupin não escapa ao seu destino devolvendo-a
à rainha. Vê-se como essa lei inscrita no inconsciente encontra-se em harmonia com as leis da sociedade
patriarcal da qual ela garante a necessidade universal, Graças à sua leitura do conto, Lrcan transforma o
Édipo para fazer dele uma lógica geral do sujeito tomado na ordem do parentesco (BERGEZ, 1996).
Para Lacan (1966), o inconsciente é estruturado como uma linguagem, isto é, como uma língua, uma
lógica: esper;m-se então combinações infinitas de elementos finitos, mas plurais e ligados diferentemente
entre eles. Na Iinguística, cada um é marcado pela ausência dos outros e pela presença do que falta nos
outros, Nesse conto não ocorre isso e, sim, o fato de que o inconsciente não é mais a ordenação singular de
significantes de desejo de afetos caracterizando um indivíduo. Há uma carta, um significante, o phattus, o
único representante do desejo os governa: a psicanálise repousa sobre a afinnação da preeminência do pênis
ou do phallus, emblema único e indivisível da sexualidade, Nesse conto, o inconsciente funciona, como
uma máquina, de acordo com a alternância repetitiva da presença e da ausência do phallus (a carta).
Problemáticas são as apropriações pós-estruturalistas feministas da teoria de Lacan (1966). Para
ele, o phallus é o significante que significa o caráter patriarcal, ou seja, o phallus é o símbolo do poder.

250 TEORIA LITERÁRIA


_ .. ~ (: R i I I <- ..\ P \ I " .\ ~ .\ I I I I, .\

o simbólico, portanto, é falocêntrico, denotando a tàlsa ideia de que o ser masculino é natural como
fonte de autoridade e poder. O pha 11115 , contudo, contém em si a promessa inatingível da plenitude para
ambos os sexos. Em outras palavras, os homens e as mulheres carecem da plenitude simbolizada por
ele, que, consequentemente, permanece como fonte universal do complexo de castração.
O quadro abaixo sugere uma tentativa de crítica literária psicanalítica do personagem príncipe Hamlet,
da peça homônima de Shakespeare, diante da imposição do pai, rei Hamlet, de vingar o assassi03.to dele e
da sua hesitação em realizar a vingança. Contrastam-se as interpretações freudiana e lacaniana.

Pressupostos: (1) o príncipe Hamlet é um personagem e jamais deve ser tratado como pessoa; (2); em
consonância ao enfoque dado ao texto literário, os sintomas dos problemas psicológicos de Hamlet estão em
suas palavras, as quais funcionam como a chave ao seu inconsciente .

Freud (1985; • Na fase pré-edipiana o menino está orientado exclusivamente para a mãe. Na fase
trabalho posterior, o pai torna-se um "rival" às afeições da mãe. A ameaça de castração obriga
originariamente o menino a abandonar o desejo incestuoso e, consequentemente, começa a ver o pai
publicado em 1905) como modelo e não um rival. Realiza-se, portanto, a transição para a vida adulta.
• Em certas ocasiões a fase edipiana não se realiza satisfatoriamente. A repressão do
desejo inconsciente ocorre, mas permanece latente à espera de momentos de crise.
• Embora Hamlet tenha suprimido seus desejos edipianos, a crise (o assassinato do
rei Hamlet) faz emergir seus desejos e impede-o a agir (a hesitação de vingar a
morte do pai).

Lacan (1977) • A "loucura", real ou fingida, de Hamlet faz com que ele fale através de ambiguidades,
usando trocadilhos e jogo de palavras. Em crítica psicanalítica, esse jogo de linguagem
indica uma personalidade esquiva e instável, e revela o inconsciente de Hamlet.
• O discurso de Hamlet é essencialmente polissêmico (o texto escrível de Barthes) e
admite a pluralidade de interpretações.
• Os trocadilhos de Hamlet se referem a seu complexo de Édipo. Constantemente
mencionando o incesto de sua mãe Gertrudes com Cláudio, Hamlet identifica
o rei Hamlet com Cláudio. A identidade de Hamlet com um sujeito masculino
depende de sua repressão satisfatória do desejo edipiano. Parece que essa repressão
está prestes a desaparecer, provocando resultados terríveis.
• O casamento incestuoso de Gertrudes faz com que Hamlet veja a sexualidade,
incluindo a de Ofélia, como algo mórbido e animalesco. No contexto, o jogo de
palavras imbuídas de sexualidade que Hamlet usa diante de Ofélia, Gertrudes,
Rosencrantz e Guildenstern (nada = carência do phallus; objeto = Cláudio tem o
objeto masculino que Hamlet gostaria de cortar e reduzir a nada; o diadema precioso
= Cláudio possui a sexualidade de Gertrudes; um rei em pedaços e retalhos = a
castração) mostra esse desejo de castração.
• Lacan conclui que os processos pré-conscientes de Hamlet estão manifestos em
ambiguidades, metáforas, trocadilhos e lapsos de língua. O estudo sobre essa
estratégia de Hamlet é muito significativo para a compreensão psicanalítica da peça.
É a contribuição da crítica literária psicanalítica que analisa apenas a textualidade ou
o discurso que esconde os processos pré-conscientes.

Quadro 2. Perfil de uma crítica psicanalítica de Hamlet.

A teoria de Lacan sugere que a criatividade pertence à etapa pré-edipiam do inconsciente na qual a criança
se identifica com "o corpo da mãe" e existe num estado de fluxo semiótico. Kristeva (1974), que vamos discutir
mais adiante, mostra que a criatividade poética é capaz de entrar em contato com essa energia criativa não-

TIIOMAS BONNICI I LÚCIA O'ANA ZOI IN (ORCANIZADORFS\ - 251


repnmida. Do mesmo modo subverte "a lei do pai" c resiste à dominação falocêntrica pela subversão das leis da
sinta:\:e. Nessc contcx:to são rclev::mtes as teorias de autores têministls, especialmente sobre o relacionamento
entre a libido femimna, a escrita suhversiva feminina. a criação de uma nova linguagem, a ll1ultiplicidade e
diversidade dos possíveis signitlcados de textos, sua incompletude e suas contradições.
A obra de Lacan tem marcado muito os críticos que pretendem fazer crítica psicanalítica.
Atualmente é um ponto de referência ohrigatório.
Quando a ohra literária é o ohjeto de estudo, não é o texto literário que faz o papel de mediador
entre a clínica e a teoria, e sim :l psicanálise, que é a medIadora entre as obras e os leitores Por isso. o
resultado dessa crítica vai depender de como o crítico vê a psicanálise.

I
Estágio pré-edipal: o imaginário Estágio do espelho Estágio simbólico: Nom du pêre
I --------------~------------------------------~

• a criança não t:ala. • Confronta-se C01ll a Imagem que • Submissão à linguagem e à


• a criança aceita impressôes/ o mundo extenor devolve para razão.
fa n tasias/ínstintos. nós.
• o mundo exterior é
• não tem limitações ou· Imagem é uma distorção que
simbolizado e representado
fronteiras. leva ao "reconhecimento errado".
pela linguagem e outros
O "reconhecimento errado" é a sistemas que operalll igual à
• não sabe que seu corpo não •
é a realidade exterior. base de nossa identidade. Imguagem.
• Precisamos do reconhecimento • Aceitação da linguagem c dos
dos "outros" e do "Outro" para sistemas sociais e culturais.
reconhecer nossa identidade. • O pha/lus (não o pênis) é ()
• Nossa "subjetividade" é significante do patriarcalismo.
construída n,1 interação com os • Nossa identidade ( relacional,
"outros", ou seja, indivíduos que portanto baseada nas
são semelhantes a nós, mas que diferenças.
são diferentes. • Por ser relacional, nossa
• Tornamo-nos nós mesmos pelos identidade não é fixa ou estável.
pontos de vista sobre quem É um processo que jamais será
somos. completo.
• Tornamo-nos nós mesmos por • Nossa identidade é incompleta
cansa do "olhar ,. do Outro (grand e incoerente. É UIlI construto
autre) . linguístico. Nós somos
construídos na linguagem.
• A perda do estado original
causa o de5(jo, o qual pode ser
substituído por pressupostos
simbólicos.
• o
Repressão é efeito da nossa
introdução na ordem social.
• Inconsciente da sociedade
está repleto de tudo o que é
indesejado ideologicamente.
• Ideologia é a dimensão
consciente da sociedade.
• A linguagem que a sociedade
usa trai a ideologia reprimida
(desigualdade social,
oportunidades desi!:,'Uais, falta
de liberdade).
Quadro 3. Os estágios lacanianos.

252 - T E o R I A LITERÁRIA
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f1 A PSICOCRÍTICA DE CHARLES MAURON

Charles Mauron foi o primeiro autor a sistematizar a crítica psicanalítica. Ele criou o termo
psiwcrítica para sublinhar a autonomia de um método que forja sua própria instrumentalização em
razão de seus objetivos, que são as produções estéticas (BERGEZ, 1996; TADIÉ, 1987).
Em sua tese, Das met4fóras obsessillas ao mito pessoal, Mauron explica os quatro tempos de seu método:
i
1. As "superposições" que permitem a estruturação da obra em torno de uma rede de associações.
Trata-se de uma adaptação à leitura literária do princípio das assoáaç6es lil'res e da eswta.filltllalltc.
Qualquer texto pode servir de contexto associativo a um outro e qualquer leitura ouve num
texto o eco dos outros. Trabalha-se aqui o primeiro tópico freudiano: inconsciente/pré­
consciente/ consciente.
2. A exposição de figuras e de situações ligadas à produção fantasmática, A rede de associações é
uma estrutura textual, comum a vários textos e autônoma com relação ao tema consciente de
cada um: ela expõe uma figura presente, mas esparsa em cada texto.
3. O "mito pessoal", sua gênese e sua evolução, que simboliza a personagem inconsciente e sua
história. Pode-se definir "o mito pessoal" como o fantasma mais frequente em catla escritor,
ou, melhor ainda, a imagem que resiste à superposição de suas obras.
4. Os estudos dos dados biográficos servem de constatação para a interpretação, mas só recebem
importância e sentido no confronto com a leitura das obras.
Esse tipo de crítica hoje faz parte de nossa paisagem cultural e é confrontada com outros estudos
de ciências humanas, com novas teorias do texto e com a produção textual.
Os discípulos de Mauron, mesmo fiéis ao seu método, partiram para novas perspectivas
valorizando o que ele deixou em silêncio. Por exemplo: (1) Anne Clancier estuda a análise da
personalidade inconsciente relacionada com a simbolização poética, a posição do leitor em face do
texto (transferência/contratransferência); (2) Yves Gohin e Serge Doubrovsky estudam as relações
entrelaçadas entre as estruturas conscientes e inconscientes na extrema singularidade de um texto;
(3) Marcelle Marini estuda o trabalho da enunciação: a fantasmatização que se destaca da expressão
de fantasmas fixos e a distância ou as contradições que produzem a direção enunciativa; (4) Jean
Bellemin-Nod cria um método que desfoca o sujeito com relação ao texto criado por ele. Essa
teoria é chamada por ele de o inconsciente do texto, que é uma forma ambígua, pois pode criar um
inconsciente impessoal, ou substituir o sujeito-leitor pelo sujeito que escreve, ou ainda tomar só
por interlocutor o sujeito teórico. No entanto, essa teoria também propõe que o escritor escreva
para seu "público interior" e o leitor se construa num autor com a sua leitura.

A SEMANÁLISE DE JULIA KruSTEVA

Os estudos de Júlia Kristeva, depois de seu livro Para uma revolução da linguagem poética, vão se
dirigindo cada vez mais em direção à Psicanálise.
Com a semanálise, Kristeva (1974) cria uma teoria que abarca todos os saberes contemporâneos,
mas o que é mais importante, em questão, é a articulação que faz entre semiologia e psicanálise.
É fundamental na teoria de Kristeva a oposição entre geno-texto (o semiótico) e feno-texto (o
simbólico). Segundo a autora, "geno-texto" é a origem do texto e está ligado ao pulsional, ao arcaico, às
práticas da língua da primeira infância ou da esquisofrenia: é uma categorização semiótica e designada
como maternal e feminina. "Feno-texto" concerne às leis da linguagem, da organização dos signos, da
sintaxe, da semântica linear, do discurso construtor: é uma categorização simbólica e designada como
(~O li Z l\
,,'
I

i paternal e masculina. Essa é uma dicotomia fundadora da filosofia ocidental: mãc-corpo-natureza/

pai-língua-cultura.

Kristeva (1974) tenta ler os textos poetlCos como o confronto dialético dessas duas ordcns

heterogêneas. Ela valoriza a atividade semiótica, restituindo na poesia a força pulsional, a musicalidade.

a explosão dos sentidos, o trabalho das significâncias.

"O semiótico"; o reprimido aspecto femimno da

linguagem. É capaz de subverter o simbólico.

Exemplos do "semiótico": crianças no estado pré-edipal;

Geno-texto Pulsional; aberto discursos não racionais marginalizados pelo simbólico

(históricos. artistas vanguardistas, esquisofrênicos).


Está mais evidente em certas pessoas ou em certas
ocasiões em sujeitos masculinos e femininos

"O simbólico", emprestado de Lacan, é a ordem


da linguagem e da representação. O sujeito deve eslar
Feno-texto Estrutural e organizacional; fechado integrado ao simbólico para atingir o reconhecimento

pelos outros. O simbólico reprime as forças subversivas

para existir.

Quadro 4. O semiótico e o simbólico segundo Kristeva (1974).

A Crítica Literária Psicanalítica está no centro dos problemas contemporâneos porque toca na

questão dos excluídos, isto é, naqueles que não contribuíram para "as crises do sentido, do st~eito

e da estrutura"; nas transformações do pensamento humano, segundo Kristeva. Ela própria recusa

sexualizar as produções literárias, propondo que o "dizer", o sujeito, na sua enunciação, não é nem

masculino nem feminino, escapando a essas categorizações. Não existe a escritura masculina ou

feminina, mas uma fuga dessas representações no ato de escrever.

Ocorre que para a psicanálise a questão da feminilidade é um obstáculo, pois para a teoria freudiana

a dupla sexualização é um tópico dificil e inacessível. Ou seja, há uma recusa, na cultura ocidental, do

pensamento misto, isto é, da ide ia de que ele seja proveniente da fusão entre os dois sexos. O pensamento,

aceito nos cânones, é ortodoxamente masculino. A crítica literária psicanalítica levanta esse problema,

toca numa questão que atinge frontalmente os textos literários que abordam temas tais como o racismo,

a loucura, a censura, o politicamente correto, a doença, a homossexualidade, a delinquência.

Essa crítica pretende obter respostas ou constatações das dúvidas existentes e verificar o

pensament,o em processo da humanidade, tanto no território do feminino como rio dos excluídos.

Por isso é um assunto passível de polêmica. Os textos literários e os textos psicanalíticos se

esclarecem mutuamente, mas a especificidade do trabalho literário é mitigada, tanto que a atenção

se volta mais para os efeitos de busca da verdade, o que desagrada bastante os descontrutivistas.

REFERÊNCIAS

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254 - T E o R I A LITERÁRIA
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.'
· TEORIA E CRÍTICA PÓS­
COLONIALISTAS

Thomas Bonnici

o DISCURSO E O PODER: FOUCAULT E SAIO

A teoria e a crítica pós-colonialistas, constituindo uma nova estética pela qual os textos
são interpretados "politicamente", baseiam-se na íntima relação entre o discurso e o poder.
Antes, portanto, de analisar o Pós-colonialismo em todos os seus aspectos, necessário se faz
indagar sobre uma faceta do pensamento pós-estruturalista referente à equação discurso e
poder. As forças políticas e econômicas, o controle ideológico e social subjazem ao discurso
e ao texto. É evidente que o poder, com todas as suas consequências, é exercido para que
surta o máximo efeito possível. Gerações de europeus se convenciam de sua superioridade
cultural e intelectual diante da "nudez" dos ameríndios; gerações de homens, praticamente
de qualquer origem, tomavam como fato indiscutível a inferioridade das mulheres. Nesses
casos, estabeleceu-se uma relação de poder entre o "sujeito" e o "objeto", a qual não reflete
a verdade.
Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) proclama que os indivíduos primeiro decidem
o que desejam e depois encaixam os fatos em seus objetivos. Consequentemente, o homem
encontra nas coisas somente o que ele mesmo colocou nelas. Para Nietzsc)Ie, todo conhecimento
expressa "o desejo do poder". Como a verdade e o conhecimento objetivo não existem, esses
dois fatores são apropriados por sistemas de poder para camuflar seu desejo de poder. Os
indivíduos adotam certo tipo de filosofia ou teoria científica quando está de acordo com a
"verdade" proposta pelas autoridades intelectuais ou políticas contemporâneas, pela elite ou
pelos ideólogos.
A teoria do discurso de Michel Foucault (1926-1984) une o ceticismo referente ao discurso
e a abordagem histórica da interpretação. Reconhece que o discurso, escrito ou oral, jamais
poderia estar livre das amarras do período histórico em que foi produzido. Ou seja, o discurso
está inerente a todas as práticas e instituições culturais e necessita da agência dos indivíduos para
poder ser efetivo. Semelhantemente à teoria de Lacan, a subjetividade é construída através do
discurso: o indivíduo se identifica com ou reage contra várias posições de sujeito oferecidas por
uma variedade de discursos num dado momento. Os indivíduos que pensam ou falam fora dos
'~()NNll:l

I parâmetros do discurso dominante são definidos como loucos ou reduzidos ao emudecimcnto,


Em A história da lourura (1961), ~'igiar e punir (1975), /l história da scxllalidade (1976), Foucault
examina os campos discursivos mutantes em que esses problenLls se desenvolvem em ctapas
específicas da história e chega à conclusão de que os indivíduos não pensam nem falam sem
obedecer aos arquiLJos de regras e restrições sociais, especialmente ao sistenn educacional, o
qual define o que é racional e acadêmico. Essas regras, controlando a escnta e o pensamento,
formam o arquitJo ou o inco/1scie/1te positiuo da cultura.
As regras estruturais que informam os vários campos de conhecimento vão além da
consciência individual. Não conhecemos o arquivo da época em que vivemos, porque é
sinônimo do inconsciente a partir do qual falamos. Compreendemos o arquivo de outra época.
porque somos absolutamente diferentes e distanciados dela. Por exemplo, percebemos as várias
correspondências que formam o discurso do período medieval; os escritores da Idade Média
percebiam os eventos contemporâneos e pensavam através dessas correspondências e, portanto,
não podiam vê-las como nós as vemos atualmente.
Foucault tenta descobrir as regras do discurso de um período específico e relacioná-las
à análise do conhecimento e do poder. O discurso é historizado e a história contextualizada.
Ele considera a história em termos de uma luta sincrônica do poder. Para ele o poder não
é necessariamente algo repressivo, mas uma força produtiva que une as diferentes forças'da
sociedade. Nenhum acontecimento nasce de uma causa única, mas é o produto de uma vasta
rede de significantes e de poder. Ademais, a história e a história das ideias são intimamente
ligadas à leitura e à produção de textos literários. Esses textos, por sua vez, são a expressão de
práticas discursivas determinadas histórica e materialmente. Esses discursos são produzidos
dentro de um contexto de luta pelo poder. De fato, na política, nas artes e na ciência o poder se
constrói através do discurso e, portanto, a pretensão de que haja objetividade nos discursos é
falsa, havendo, então, apenas discursos mais poderosos e menos poderosos.
A utilização da geografia e da ciência ilustrará esse ponto. Quando se analisam os mapas
dos cartógrafos medievais e renascentistas, percebe-se que eles, com seus contornos, detalhes
e nomes, tornaram-se uma tecnologia do império, uma interface gráfica indispensável não
apenas para navegar mas especialmente para gerenciar o mundo. O conhecimento e o saber dão
direito às terras prometidas supostamente de "ninguém", à divisão cio mundo, ao heroísmo dos
exploradores, à diversidade cultural, à alteridade, ao racismo. A partir da Naturalis Historia (77
d.C.), de Plínio, e passando pelo Líber Chronicarum (1493), de Hartmann Schedel, e pelo Systema
Naturae (1758), de Linnaeus, até as obras de certos cientistas do século XIX, especialmente A.
de Gobineau, em A desigualdade das raças humanas (1855), as discussões diretas ou indiretas
sobre o racismo pareciam sempre tender a comprovar a superioridade das raças europeias e
colocar na alteridade o resto do mundo. A apropriação das ciências seguiu o mesmo padrão
do colonizador, definido como a "inclinação a dividir, subdividir e redividir o seu tema sem
nunca mudar de opinião sobre o Oriente como algo que é sempre o mesmo objeto, imutável,
uniforme e radicalmente peculiar" (SAID, 1990, p. 107). O legado do imperialisIJlO foi construir
as estruturas científicas sobre crenças existentes e herdadas, com a finalidade de indicar e
consolidar os supostos donos do mundo.
Para Foucault, o saber é o produto de um discurso específico que o formulou, sem nenhuma
validade fora disso. As "verdades" das ciências derivam do discurso ou da linguagem. O saber não
é o efeito do acesso das ciências para o mundo real ou para a realidade autêntica, mas das regras de
seu próprio discurso. Segue-se que o saber das ciências humanas é construído porque as pessoas
foram persuadidas a aceitá-lo como tal. É saber porque o discurso é tão poderoso que nos faz
acreditar que seja saber. O saber, portanto, é produzido pelo poder. Para Foucault, a questão da
veracidade ou falsidade de um discurso não é importante, já que a "verdade" é produzida pelo
poder. Concentra-se, portanto, naJormação discursíLJa, ou seja, nas regras pelas quais o discurso é
coerente ou nos princípios subjacentes ao discurso. Esses discursos determinam o nosso modo
de falar e pensar sobre, por exemplo, a sexualidade ou a sanidade mental, e nos persuade para

258 - T Ic U R I A LITERÁRIA
...~ T 1 () " 1.\ I (I' I I I (A I' () ( - ( () I () N 1 \ I I \ T .\ ,

o autopoliciamcnto e a supervisão dos outros. FUIlcionando independentcmcnte das intençocs


específicas individuais (Foucault não está falando sobre o abuso do poder por indivíduos ou
por governos que manipulam seus súditos e os mantêm sob seu controle), os discursos sc
perpetuam pelos usuários que reproduzem seu poder. Na concepção de Foucault, o discurso
é internalizado por nós, organizando o nosso ponto de vista do mundo e colocando-nos como
um elo (inconsciente) na cadeia do poder. Foucault, portanto, coloca a linguagem no centro du
poder social e das práticas sociais. É nesse ponto que se encontra o papel social da linguageln e
da literatura como poder hegemônico. Todo o discurso de Os lusíadas, que intluenciou inteiras
gerações lusas, começando pela sua imitação da Elleida, até as proezas heroicas dos portugueses
nos pontos embrionários da África e da Ásia, constrói a base de sua ideologia da superioridade
do europeu, que, por mandato divino, submete os outros povos à sua lei "superior". Semelhante
intluência exerceu o discurso das peças teatrais de Shakespeare, que outremiza e hierarquiza
os povos limítrofes (os irlandeses), os desordeiros (homens e mulheres das tavernas) e os
habitantes das longínquas colônias (Calibã). Esse fator será visto melhor no contexto do pós­
colonialismo.
Embora o discurso seja repleto de poder, não é imune aos desafios ou às mudanças internas:
é o lugar de contlito e luta, encarregado de criar e suprimir a resistência. Para Fpucault, o
discurso reforça o poder c, ao mesmo tempo, o subverte. Ao ser exposto, o discurso torna-sc
frágil e fica mais propenso a ser contrariado.
Seguindo os parâmetros de Foucault e Gramsci, Edward Said (]l)j5-2003), em Orientalis/Ilo,
publicado em 1978, demonstra como a teoria da desconstrução poderá desafiar a pretensão de
objetividade no contexto da história cultural. Desconstruindo a natureza do poder colonial,
Said (1978) aprofunda a crítica pós-colonialista que se desenvolveu durante os últimos quarenta
anos. Ele desconstrói a imagem que o mundo ocidental tem do Oriente, imagem essa que foi
construída por historiadores, escritores, poetas e estudiosos durante vários séculos. Utilizando
"não só os trabalhos eruditos mas também as obras literárias, as passagens políticas, os textos
jornalísticos, livros de viagens, estudos religiosos e filológicos" (SAID, 1990, p. 34), Said mostra
a construção do Oriente através de romances, descrições e informações sobre a história e a
cultura orientais.
Essas formas de escrita ocidental constroem um discurso foucaultiano, ou seja, um sistema
de afirmações e pressupostos que constituem um suposto saber e pelos quais se constrói o
"conhecimento" sobre o Oriente. Evidentemente, tais discursos, aparentemente dedicados
exclusivamente ao saber, estabelecem verdadeiras relações de poder. Para Said (1990), as
representações do Oriente (ou Orientalismo) feitas pelo Ocidente levam consciente e
deterministicamente à subordinação. Percebe-se, de fato, um discurso etnocêntrico repressivo
que legitima o controle europeu sobre o Oriente através do estabelecimento de um construto
negativo. A esperteza, o ócio, a irracionalidade , a rudeza, a sensualidade, a crue Idade, entre outros,
for.mam esse construto, em oposição a outro construto, positivo e superior (racional, democrático,
progressivo, civilizado etc.), defendido c difundido pela cultura ocidental. Encontra-se nesse
ponto a hegemonia do discurso ocidental. Segundo Gramsci (1998), a hegemonia é a dominação
con;entida, ou seja, o método pelo qual os dominadores conseguem oprimir os subalternos
através da aprovação aparente dessas mesmas classes sociais, especialmente pela cultura. O
Orientalismo, portanto, legitimou o imperialismo e o expansionismo para os próprios europeus
e convenceu os "nativos" sobre o universalismo (a mais adiantada civilização do planeta é a
europeia) da civilização europeia.
A teoria de Said (1990) e de outros teóricos pós-colonialistas, quase simultaneamente
adotada pelos adeptos de estudos afro-americanos e por feministas, subverte os pressupostos de
uma objetividade espúria que sustenta o Ocidente, a unicidade de sua cultura e de seu ponto
de vista.
,
'rO NN, "

j
I
Etnografia
A pLítlC1 ctnogr:ífíca torlla-~e uma descri~,lo
di' """op""o' h'gemõni,m d", conqoi,,,d,,,,,.

O sujeIto hegemônico europeu.


precon(Tltual da cultura de uma raçl a partIr
I
I
Outro

Além de sigmficar o domínio de um estado sobre outro. hegemonia é o poder da classe


Hegemonia dominante para convencer as outras classes de que os interesses dela (da classe domlllantc)
SJO lllteresses comuns; conscquentemente. SJO aceitos por todas as outras cIJsses.

O sujeito marginalizado pela hegemonia europela; uma pessoa de raça ou etnia diferente, I
outro
ou seja, nJo-branca e nJo-europeia.

Distlllta da identidade racial, a etnicidade da pessoa incl \li seus ;lspectos culturais, como ;]
Etnicidade
religião, tradições de vestimenta e de comida, vVeltallschauung etc.
~-------+-----------------------~ - -~~-

O texto transformado pelo contexto ou interpretação; portanto, altamente carregado pela :


Discurso
ideologia dominante, que exclui e degrada qualquer outro discurso.

Frequentemente, é um termo degradante para significar a pessoa primitiva, pagJ, não-I


Nativo
educada, desprovida de literatura ou cultura.

A prática política e ideológica de uma nação hegemônica para outremizar o não­


Império
europeu.

É um sistema de supervisão, consequência do poder sobre o sujeito outrell11zado. o qual é I


Panótico
ameaçado por todo tipo de reprovação moral e cultural e de exclusão. I

Quadro 1. Poder e controle.

HISTÓRIA DO PÓS-COLONlALISMO

Iniciou-se o século:XX com um triste panorama composto (1) por dezenas de povos e nações
submetidos ao colonialismo europeu, (2) pormilhões de negros, descendentes de escravos, especialmente
nos Estados Unidos e na África do Sul, discriminados em seus direitos fundamentais, (3) pela metade
feminina da população mundial vivendo num contexto patriarcal, (4) pelo poder político e econômico
nas mãos da raça branca, cristã e rica em países industrializados. Apesar dessa imagem sombria, um
dos fatores mais característicos do século:XX foi a nítida consciência da subjetividade político-cultural
e da resistência ,de povos e nações contra qualquer tentativa para manter a objetificação ou iniciar uma
nova modalidade de dependência. O Renascimento do Harlem (movimento cultural e literário entre
escritores e artistas norte-americanos, especialmente na cidade de Nova Iorque, ~uja finalidade foi
realçar o interesse na cultura africana ao redor do mundo) nos Estados Unidos nas décadas de 1920 e
1930 mostra a recusa em deixar a cultura eurocêntrica, cristã e branca continuar definindo o outro em
geral e a p~pulação afro-americana em particular (APPIAH; GATES, 1997). Idêntica atitude estava
por trás do movimento Négritude na década de 1930 em vários países africanos. Essa tendência para a
autodeterminação dos povos em todos os aspectos teve um recrudescimento, após a Segunda Guerra
Mundial, especialmente nos movimentos pelos Direitos Civis nos Estados Unidos e na luta contra
o colonialismo britânico, francês, português, alemão, belga em todos os continentes. Nesses casos a
autodeterminação política e a autodefinição cultural andavam juntas. Na prática, o Renascimento do
Harlem e Négritude são definidos como um momento cultural, literário e político de tal envergadura
que o teórico martiniquiano-arge!ino Frantz Fanon confere grande poder de luta política às culturas
e literaturas nacionais.

260 - T E o R I A LITERÁRIA
~ T 1 () H 1·\ F. " H I r I ,: ..\ I' () , - , (l I ,) N 1 .-\ 1 1 , 1 ..\ ,

----

D\?scolonização I Movimcntos Indepcndência no Dcscolonizaçl" II M,willlclltns pré- Dc,colnniz,l<;.l,) !lI


(1776-1825) (1920-1939) CommonwcaIth (1945-1949) independência (195:;-1 'n'i)
britânico (década de 1'.J3ll)
(1930-1942)

Estados Unidos: Renascimento do Canadá: Austrália. Índia: Paquistão: .'\Jél(rilwle. na África: África do None:
América Central; Harlem, Estados Indonésia: guerrilhas. África equatorial c
América do Sul. Unidos: Oriente Médio. subequatoriaI: il1us
Négrit/lde. na do Carihc l' coIêllli",
África. do sudeste 3si:lticu l'
Occania.

Quadro 2. Mapa da descolonização entre 1776-1975.

Historicamente o movimento pró-independência, especialmente das Américas britânica,


portuguesa e espanhola, respectivamente no último quartel do século XVIII e no primeiro quartel
do século XIX, favoreceu certa autonomia às culturas não-europeias (mas não-indígenas), com
o consequente nascimento de uma literatura nacional (JOZEF, 1982). Nos séculos XVIII e XIX,
abundam no Brasil escritores e escritoras que desenvolviam seu trabalho com larga incôrporação
de temas brasileiros, seguindo padrões estéticos europeus, Foram o Modernismo brasileiro, contudo,
iniciado na década de 1920, e suas subcorrentes que apresentaram propostas de uma arte
essencialmente brasileira. Em geral, todavia, fortes laços ainda amarravam as literaturas americanas
aos modelos europeus. Praticamente até meados do século XX, no contexto dos países novos
fabricados pelo colonialismo, não existia uma literatura nacional na África e na Ásia, e a literatura
produzida nesses continentes seguia padrões eurocêntricos, já que foi escrita por viajantes,
missionários, mulheres de administradores coloniais e soldados intimamente ligados à metrópole
colonizadora. Raríssimos foram os casos em que surgiram produções literárias diferentes das da
metrópole. Por outro lado, não havia embasamento teórico para detectar a resistência na literatura
de então. Tampouco eram desenvolvidas formas de leitura e escrita que pudessem "responder" à
colonização europeia arraigada nos parâmetros do essencialismo, de superioridade cultural e de
degradação da cultura dos outros.
O período após a Segunda Guerra Mundial viu o surgimento da terceira onda de independência
política especialmente nas nações caribenhas, africanas e asiáticas e, ao mesmo tempo, de uma
literatura escrita pelos nativos, não sem problematização, nas línguas dos ex-colonizadores. Os
romances The Palm-Wine Drinkard (1952), de Amos Tutuola, e Things Fali Apart (1958), de Chinue
Achebe, ambos nigerianos, foram talvez as primeiras expressões literárias autenticamente nativas
oriundas da África e escritas em inglês. Nasce então uma literatura original em inglês a partir das ex­
colônias britânicas, a qual não poderia ser chamada simplesmente "literatura inglesa". Críticos da
metrópole inglesa logo desenvolveram a ideia de CommonwealthLiterature (literatura da comunidade
das ex-colônias britânicas). Evidentemente, pode-se ver que a ideia de uma Commonwealth Literature
semia os antigos padrões metrópole-colônia, com a Inglaterra posicionahdo-se no centro e as
novas nações independentes colocadas na margem. Na década de 1970, os escritores caribenhos,
africanos e asiáticos rejeitaram qualquer conotação do Commonwealth, devido à continuação do
euroéentrismo pela crítica britânica e à recusa dos escritores nativos em admitir a superioridade
da civilização britânica e europeia. A expressão Commonwealth Literature foi abandonada e surgiu a
ideia de chamar Literaturas em inglês à expressão literária em língua inglesa oriunda das ex-colônias
britânicas. Esse fenômeno não ficou restrito à literatura em língua inglesa, mas a todas as literaturas
nascidas nas ex-colônias. Em seu importante livro, Dathorne (1976) intitula os capítulos "Teatro
africano em francês e em inglês", "Literatura africana em português".
Nestas últimas três décadas surgiu o problema de como ler as obras de escritores que,
escrevendo nas línguas europeias, são etnicamente não-europeus. Há atualmente escritores
africanos escrevendo em francês, inglês e português; autores caribenhos escrevendo em espanhol,
inglês, francês ou holandês; escritores indianos, paquistaneses e egípcios desenvolvendo uma
'C?n N N I ( I

1
!
literatura em inglês. É justo ler essas obras, profundamente inseridas numa cultura não-ocidental,
através de parâmetros estruturalistas, pós-estruturalistas, materialistas culturais, ou seja, através
de uma abordagem ocidental? Qual é o status dessas literaturas produzidas nas ex-colônias? Se a
relação entre a metrópole e a colônia sempre foi tensa, não deveria essa literatura, escrita a partir
da invasão colonial até o presente, mostrar as tensões inerentes aos encontros coloniais? Se a
literatura da metrópole foi usada para enfatizar a superioridade europeia através da degradação ou
aniquilamento da cultura não-européia. qual é o papel dessas literaturas pós-coloniais?

COLONlALISMO

o termo cololl ia IiSIIlo caracteriza o modo peculiar como aconteceu a exploração cultural durante
os últimos 500 anos causada pela expansão europeia. Distinguem-se o imperialismo mediterrâneo
da Antigüidade e o colonialismo pós-Renascimento. No mundo antigo, as grandes civilizações
mediterrâneas orgulhavam-se em possuir colônias e insistiam na hegemonia da metrópole sobt:e a
periferia, a qual era considerada bárbara, inculta e inferior. Said (1995, p. 40) define esse il1lperium
como "a prática, a teoria e as atitudes de um centro metropolitano dominante governando um
território distante", como aconteceu a partir de 336 a.C., quando o império de Alexandre da
Macedônia levou a civilização helênica para fora do Mediterrâneo e polarizou as ideias e as
energias europeias para o Oriente, ou quando o império romano, após 264 a.C., conquistou as
ilhas mediterrâneas, a Espanha, o norte da África, o Oriente Médio, o Egito, a Gália, a Alemanha e a
Inglaterra. Por outro lado, o mesmo autor afirma que o colonialismo praticado após o Renascimento
"é a implantação de colônias em território distante" como consequência do capitalismo incipiente,
com a finalidade de exploração material para o enriquecimento da metrópole.
A expansão colonial europeia nos séculos XV e XVI coincidiu, portanto, com o início de um
sistema capitalista moderno de trocas econômicas. As colônias foram imediatamente percebidas como
fonte de matérias-primas que sustentariam por muito tempo o poder central da metrópole. Limitando­
nos ao Brasil, pode-se constatar que, a partir da Carta de Pero Vaz de Caminha até a publicação, em
1711, de Cultura e opulência do Brasil, de André João Antonil, inúmeros são os textos informativos sobre
os recursos econômicos das colônias e as práticas de exploração do território colonial. Ademais, o
sistema panóptico pelo qual se supervisionava o espaço colonial era o método de viajantes e exploradores
europeus dos séculos XIX e XX representando o conhecimento e o poder. Entre o colonizador e o
colonizado estabeleceu-se um sistema de diferença hierárquica fadada a jamais admitir um equilíbrio
no relacionamento econômico, social e cultural.
Mais grave tornou-se a.situação de povos colonizados que eram racialmente diferentes (os
"hotentotes" na costa africana) ou que formavam uma minoria (os aborígenes da -Óustrália). Entre
o colonizador e o colonizado havia o fator raça, que construía um relacionamento injusto e desigual.
Os termos raça, racismo e preconceito racial são oriundos da posição hegemônica europeia. Esse tópico
transformolJ-se numa justificativa para introduzir o regime escravocrata a partir de meados do
século XVI, quando se formou a ideia de um mundo colonial habitado por gente "naturalmente"
inferior, programada pela natureza para trabalhar braçalmente e servir ao homem europeu branco.
Do ponto de vista dos gregos e dos romanos, os barbaroi apenas não falavam a língua "culta" e
situavam-se fora da história e da civilização. Aos olhos dos europeus colonizadores, o estado
naturalmente inferior dos colonizados era um fato indiscutível, "provado" no século XIX pelas
teorias da evolução e da sobrevivência do mais forte na doutrina darwinista. Se frequentemente o ...

colonizado aceitava a ideologia e os valores do colonizador e transformava-se emfantoche (mimic


man nos romances de V.S. Naipaul), em outras ocasiões mostrava sua resistência e subversão
através da mímica e da paródia.

262 - T E o R I A LITERÁRIA
Segundo Ashcroft et ai. (1991), podemos sistematizar as colônias em (1) colônias de povoadores,
(2) colônias de sociedades invadidas e (3) colônias de sociedades duplamente IIlvadidas. Nas
colônias de colonizadores (América espanhola, Brasil, Estados Unidos da América, C~aJ1Jd;i,
Austrália, Nova Zelândia), a terra fOI ocupada por colonos europeus que conquistaram, mataram
ou deslocaram as populações indígenas. Uma modalidade de civili7aç;10 europeia foi transplantada
no vazio construído e os descendentes de europeus, mesmo após a independência política.
mantiveram o idioma não-indígena. Os colonos inquestionavelmente consideravam que o idioma
europeu era apropriado para expressar a complexa realidade do lugar ocupado, marginaliz:mdo as
línguas indígenas.
Nas colônias de sociedades invadidas (Índia e África com suas civilizações em vários estágios de
desenvolvimento), as populações foram colonizadas em sua terra. Os escritores nativos, port:mto, já
possuíam ideologias, organizações societárias e formas políticas, embora estas fossem mar~,;nalizadas
pelos colonizadores. Raramente o idioma europeu substituiu o idioma do nativo; no mais, ofcreceu­
lhes uma oportunidade para comunicar-se com outras sociedades, elevar seu nível cultural e manter
as ligações com a metrópole. Em todos os casos, o idioma europeu sempre causou e ainda causa certa
ambiguidade, especialmente na literatura nativa.
As colônias das sociedades duplamente invadidas referem-se ao espaço ocupado pelas ~ociedades
primordiais dos indígenas das ilhas do Caribe, as quais foram completamente exterminadas nos
primeiros cem anos do descobrimento. A população atual das Índias Ocidentais veio da África, Índia,
Oriente Médio e da Europa, e é o resultado do deslocamento, do exílio ou da escravidão. Entre todas
as sociedades colonizadas, talvez a sociedade ci.ribenha seja a que mais sofreu os efeitos devastadores
do processo colonizador, onde o idioma e a cultura dominantes foram impostos e as culturas de povos
tão diversos, aniquiladas.

COLÔNIAS DE POVOADORES COLÔNIAS DE SOCIEDADES COLÔNIAS DE SOCIEDADES


INVADIDAS DUPLAMENTE COLONIZADAS

AllIl'ricas espanhola e portuguesa, Índia e ÁfrIca 1\" ilhas do Caribe: o genocídIO


Estados Unidos da América, Canadá, pratIcado contra os indígenas efetivou o
Austrália, Nova Zelândia. deslocamento de populações da África.
Índia, Ásia, Oriente Médio e da Europa
para a rCgJão.

Línguas nativas quase extintas, Línguas nativas praticadas Línguas originais suprimidas totalmente,
prevalecendo as línguas europeias. intensamente; língua europeu prevalecendo as línguas europeias.
apropriada.

Quadro 3. Tipos de colônias, vicissitude das línguas nativas e línguas dominantes.

A colonização e o discurso colonialista eram também impregnados pelo patriarcalismo e pela


exclusividade sexista. O termo homem e seus derivados incluíam o homem e a mulher; o mesmo
privilégio não era dado ao termo mulher. A ideologia subjacente consistia, portanto, na junção das
noções metrópole e patriarcalismo que estavam empenhadas em impor a civilização europeia ao resto
do mundo. A ação "civilizadora" levada ao interior pelo colonizador britânico, a partir de 1750, na
África, Índia e no sudeste asiático, era tão bem preparada que escondia a violência e a degradação às
quais foram submetidos os nativos. Dois séculos antes, a mesma justificativa de Colombo para tlzê­
los "cristianos" e de Caminha para "salvar esta gente" foi utilizada por portugueses e espanhóis para
camuflar a utilização de mão-de-obra indígena em suas colônias americanas. A tarefa civilizadora e
a tutelagern paternal assumidas pelas nações europeias nada mais foram que um pretexto pelo qual
TI t,., ,. A ~ o,-,.,~" ,-, I T ,
1" N N , C ,

1 mtensificavam a rapinagem c ::l luta par::l a aquisição de m::ltérias-primas para supnr as n::lções em
I processo de industrialização crescente.
O estigma da inferioridade cultural e do racismo impregnou tamhém os colonos brancos,
que, aos olhos dos agentes governamentais e da ml'trópole, ficaram degenerados pelo hibridismo. ff
i.
Em Widc Sar.gasso Sca (1966), de Jean Rhys. foram atribuídas à protagonista Antoinette Cosway
acusações de incesto, loucura, adultério c ninfomania, porque ela era o resultado da mestiçagem
lj
~I
!
de descendentes britânicos com negros cmbenhos. No romance O rortiço (1890), Jerônimo, o
português exemplar, mergulha na massa hlllnana da favela e degrada-se diante dos encantos do
ambiente, da música tropical c, de modo especial, da sensualidade de Rita Baiana. A metrópole,
portanto, enfatizava o fato de que esses colonos degenerados, prescindindo da herança cultural
de seus antepassados europeus, desenvolveram as características dos nativos (preguiça, dança)
ou generalizaram aspectos de sua tipicidade nacional (a hebedeira dos irlandeses). Todos esses
aspectos criaram um sistema mundial no qual certas culturas e sociedades eram consideradas
essencialmente inferiores. Nos séculos XVI e XVII, os colonizadores espanhóis, portugueses
e holandeses, e, mais tarde, nos séculos XVIII, XIX e XX, a Inglaterra e a França, puseram
em prática o conceito polarizador "nós - eles" ou Outro - outro. Para garantir a coesão do
Outro diante das vicissitudes do mundo moderno, o colonizado foi incentivado a recebe'!' c
compartilhar as henesses da civilização. Para o colonizado, esse futuro promissor foi sempre
preterido.

OUTRO (O COLONIZADOR) Outro (O COLONIZADO)


-

1. O centro imperial (a) constrói o sistema pelo 1. O outro é formado por discursos de (a)
qual o sujeito colonizado forma :1 sua identidade primitivismo; (b) canibalismo; (c) separação

COITlO dependente ou outro; (h) torna-se a binária entre o colonizador e o colonizado; (d)
única estrutura pela qual o st~eito colonizado afirmação da supremacia da cultura, ideologia e
compreende o mundo. visão do mundo do colonizador.
2. Representa o Outro Simbólico e a Lei-do-Pai 2. O sujeito colonizado é "filho" do império e o
(conforme a terminologia de Lacan). sujeito degradado do discurso imperial.

Quadro 4. O Outro e o outro no sistema colonial.

ocolonialismo, portanto, gira em torno de um pressuposto no qual o poderoso [entro cria a


sua periferia. Embora o binômio centro/margem seja uma noção binária, ela defit:!-e o que ocorreu
na representação dos indivíduos durante o período colonial. O mundo foi dividido em duas
partes, hierarquicamente constituídas, e o centro se consolidava apenas através da existência do
outro coloni_~ado. Segue-se que o centro, a civilização, a ciência, o progresso existiam porque havia
todo um discurso sobre a colônia, a selvageria, a ignorância, o atraso cultural. Constituindo­
se o centro e relegando tudo o que havia fora dela como periferia da cultura e da civilização, a
Europa sentia-se na incumbência (missão) de colocar, sob diversos pretextos, essa margem em
seu âmbito. Enquanto Dom João IH escreve em 1548 que o principal objetivo de "povoar as ditas
terras do Brasil foi para que a gente delas se convertesse à nossa fé católica", em 1897 o secretário
das colônias inglês ]oseph Chamberlain considerava as colônias britânicas como estados não­
desenvolvidos que jamais poderiam se desenvolver sem a assistência imperial e que não havia
outra solução para garantir emprego pleno aos ingleses sem a criação de novos mercados (LANE,
1978).
')h.1 _ T co n DIA TTTCORÁR1A
SUJEITO E OBJETO

A opressão, o silêncio e a repressão das sociedades pós-colonl:ús decorrem de uma ideolot',Ll de


sujeito e de objeto mantida pelos colonizadores. Nas sociedades pós-coloniais, o sujeito e o objeto
pertencem a uma hierarquia em que o oprimido é fixado pela superioridade moral do dorninador.
O colonizador, seja espanhoL português, inglês, se impõe como poderoso, civilizado, culto, forte,
versado na ciência e na literatura. Por outro lado, o colonizado é descrito constantcmente como sem
roupa, sem religião, sem lar, sem tecnologia, ou seja, em nível bestial. É a dialética do sUjeito (at',clltc)
e do objeto (o outro, suhalterno). A língua cortada do personagem Friday no romance Foc (1986), e!c
J. M. Coetzee, é o símbolo do colonizado mudo por ato voluntário do colonizador. A ausência de
relatos de Índios ou de escravos hrasíleiros e de mulheres escritoras em todo o período colonial e pré­
republicano é emblemático. A autoetnografia não existe por força da hierarquia imposta.
Pode-se usar o termo subalterno para descrever o colonizado-ohjeto. O subalterno, termo emprestado
da ohra Note slllla storia italial1a (1935), de Antonio Gramsci (1891-1937), retere-se a pessoas na
sociedade que são o objeto da hegemonia das classes dominantes. As classes subalternas podem ser
compostas por colonizados, trabalhadores rurais, operários e outros grupos aos quais o acesso ao poder
é vedado. Os estudos coloniais interessam-se pela história de grupos subalternos, neces'sariamente
fragmentária, já que sempre está submetida à hegemonia da classe dominante, sl~eito da história
oficial. O colonizado quase não possuía meios para se apresentar e tampouco tinha acesso à cultura c J
organização social. No Brasil existe apenas a etnografia de índios do século XVI, escrita e manipulada
por grupos europeus. Praticamente o mesmo pode ser afirmado dos escravos negros trazidos ao Brasil
e de seus descendentes brasileiros, das mulheres, dos agricultores sem terra, dos operários urbanos
excluídos.
Foi o colonizador europeu que lançou o espaço colonial e o nativo à vista do mundo num processo
que Spivak (1987) chama de lVorlding. T+órldín,í; é a maneira pela qual a colônia começou a existir como
parte do mundo eurocêntrico. A grande quantidade de textos, incluindo mapas, pinturas, frontispícios
de livros, sobre o Brasil nos séculos XVI e XVII e publicados na Europa, formou, no imaginário
europeu, um conjunto de conceitos sobre a América portuguesa. É a inscrição do discurso imperial
sobre o espaço colonizado. O método mais óbvio consiste no preenchimento do mapa brasileiro com
nomes de acidentes geográficos, o que significa conhecer e controlar. O segundo tipo de lVorldÍfI.íZ é
o "passeio" do europeu pelo país colonizado. Há muitas gravuras e desenhos mostrando o soldado
inglês caminhando por território indiano ou africano. Nesse caso o sujeito colonial está mostrando
ao nativo quem realmente manda naquele espaço. Em sua Carta, o escrivão Caminha descreve os
"passeios" dos portugueses pelas praias baianas, impondo na mente dos indígenas a supremacia do
branco colonizador. A terceira modalidade refere-se à degradação sistemática do nativo. Por que
na cartografia brasileira e nas primeiras páginas dos livros impressos nos primeiros dois séculos de
colonização encontram-se constantemente cenas de antropofagia? Por que a nudez, o ateísmo, a
preguiça, a selvageria, a sensualidade e a ignorância são tópicos constante:i na descrição do negro,
quer no Brasil, quer na África do Sul? A imagem do nativo/escravo em tais condições foi o gatilho
psicológico para a rapinagem da colônia em todos os sentidos.
'Os críticos tentam expor os processos que transformam o colonizado numa pessoa muda e as
estratégias dele para sair dessa posição. Spivak (1995, p. 28) discursa sobre a mudez do sujeito colonial
e da mulher subalterna: "o sujeito subalterno não tem nenhum espaço a partir do qual ele possa falar".
Bhabha (1998) afirma que o subalterno pode falar e a voz do nativo pode ser recuperada através da
paródia, da mímica e da cortesia ardilosa, que ameaçam a autoridade colonial. Fanon (1990) e Ngugi
(1986) admitem que o colonizado pode ser reescrito na história, embora esse tipo de descolonização
sempre seja um fenômeno violento. O colonizado fala quando se transforma num ser politicamente
consciente que enfrenta o opressor. Embora escritos por europeus, muitos relatos de viagens e
romances pré- e pós-independência revelam inconscientemente a voz e os atos dos oprimidos.
Materializa-se, portanto, o processo de agência, ou seja, a capacidade de alguém executar uma ação livre
TT"~"A(" A,-,"'''-''''' I J',rrt. íllA"'A 7(","-1 {(11)(:AN17r,])()!cl=-"\ _ ?h~
e independentemente, \Tnccndo os impedimentos processados nJ construção de sua identidade. Note­
se que em O Urag/lOl, CUJd finalIdade foi a exaltação do ITurquês de Pombal. destacam-se as vozes dos
índios. Esse bto mostra a superação de estado de ohjetos e os revela como agente,. Nos estudos pós­
coloniais, a agência é um elemento fundamental. porque revela a autonomIa do sUjeito em revidar e
contrapor-se ao poder colonial. Nesse contexto, é importante a teoria da subjetividade construída pela
ideologia (segundo Althusser), pela linguagem (segundo Lacan) e pelo discurso (segundo Foucault),
já que qualquer ato do sujeito é consequência desses três f1tores. A questão el1\oln' a constituição da
identidade n:l divisão Outro-outro imposta pelo colonlalismo (TODOROV, 1991).

L SlIbalterl/o: literalmente slgmflclI1do "sl~eito de categoria infenor", o termo tói criado por GramsC1: trata-se de

qualquer sujeito sob a hegemoll1a das classes d011lmames.

J Em tcrnws pós-coloI1i~us, os cstllei(); mIJa/terl/o' se rdr'rclll J arüEsc da subordmação fI:l sociecl:Jdc devido à classe, casta,

reLlde. gênero. profissão, religião c outros.

3. O Elwr maIs constante nos estudos subaltcrtlos SJU os métodos de resistê/lcia adotados contra U colonizador ou a eEt~

dOl11madma.

4. Pode (1 Sll/Jilflml()l;llar~ é a pergunta maIS importante.

S. Em sociedades pós-colomals, a I/flllher é duplamente subal terna: c la é' o objeto da historiografia colorualtsta e da

construção do gênero.

6. O diswrso pós-colol/ial e a apropriaçrlo da lill,l;lIagem pelo subalterno constituem métodos para que a voz marginaltzada

lI
possa ser ouvida.

Quadro 5, O subalterno e sua voz.

COLONIALISMO E FEMINISMO
I
Há estreita relação entre os estudos pós-coloniais e o feminismo. Em primeiro lugar, há uma
analogia entre patriarcalismo/feminismo e metrópole/colônia ou colonizador/colonizado, "Uma
mulher da colônia é uma metáfora da mulher como colônia" (DU PLESSIS, 1985, p. 46). Em segundo
lugar, se o homem foi colonizado, a mulher, nas sociedades pós-coloniais, foi duplamente colonizada.
Os romances de Jean Rhys, Doris Lessing, Toni Morrison e Margaret Atwood testemunham essa
dialética. Na história do Brasil, a mulher sempre foi relegada ao serviço do homem, ao.silêncio, à dupla
escravidão, à prostituição ou a objeto sexual. Na literatura, muitos são os romances que representam,
através de suas personagens femininas, essa situação. Diversos romances de Jorge Amado, por exemplo,
retratam essa.subjugação da mulher.
O objetivo dos discursos pós-coloniais e do feminismo, nesse sentido, é a integração da mulher
marginalizada à sociedade, De modo semelhante ao que aconteceu nas reflexões do discurso
pós-colonial, no primeiro período do discurso feminista, a preocupação consistia na substituição
das estruturas de dominação. Essa posição simplista evoluiu para um questionamento sobre as
formas literárias e o desmascaramento dos fundamentos masculinos do cânone. Nesses debates, ...
o feminismo trouxe à luz muitas questões que o pós-colonialismo havia deixado obscuras, e vice­
versa. De fato, o pós-colonialismo ajudou o feminismo a precaver-se de pressupostos ocidentais
do discurso feminista.

266 - T E o R I A LITERÁRIA
-....~ T l () Il 1.'1 E C H I T I C.-\ I' (' , - ,: (1 i C' " l I I I , T.-\ \

1. A mulher é dllJ'lillllellll' (C''''l/izada pela sociedade indígem e pelo poder colonial.

2. fiTquClltCmcntc as questões de gêllero sOlu IlllTlII111zadas ou relegadas a segundo plano lU an;ilise pós-culonial.
f---­
.3. A c1IVClif/(aç<lo da tlllIlher torna-se J ll1et:-ífora da degradação das sociedades sob o co]ol1ialIsl1lo.
f---~

-t. A 1'02 d" mlllher na ficção e no desem'o]vlIllcnto do cânone literário rompe os pressupostos masculinos

5. Questões de idcwidade, ((l/lImle, poder ("yi'II{/ll) c de autoria tornam-se as mais relevantes.


----------------------------------------------~-
6. Consolida-se o estilo htcririo caracterIzado pela diferença, dil'ersidade e imprevisibilidade.

7. Há necessIdade de constante vigilâllcia contra as manobras do Outro (a sociedade branca ou homens negros).
---= ~
I

- - - -
Quadro 6. O feminismo em sociedades pós-coloniais.

Petersen (1995) observa que cm muitos países do Terceiro Mundo há o dilema sobre o que é
necessário empreender primeiro: a igualdade feminina ou a luta contra o imperialismo presente m.
cultura ocidental. Em Things Fali Apart} o personagem Okonkwo é castigado não porque ba,tcu em sua
esposa, mas por haver batido nela numa semana considerada sagrada. Petersen (1995, p. 254) resolve
a questão com uma citação de Ngugi: "Nenhuma libertação cultural sem a libertação feminina". A
escritora nigeriana Buchi Emecheta insiste sobre a "autêntica perspectiva feminista, a focalização na
exploração da mulher e a luta dela pela libertação" (BENSON; CONOLLY, 1994). Efetivamente, a
dupla colonização causou a objetificação da mulher pela problemática da classe e da raça, da repetição
de contos de fada europeus e da legislação falocêntrica apoiada por potências ocidentais. Entre
outras, a mais eficaz estratégia de descolonização feminina concentra-se no uso da linguagem e da
experimentação linguística. Muito esclarecedor o romance A república dos sonlws (1984), de Nélida
Piíion, no qual se descreve e se analisa o processo de crescente conscientização política de Eulália,
Esperança e Breta em três períodos políticos distintos do século Xx.

o QUE É A LITERATURA PÓS-COLONIAL

Diante dos prinClplos acima, podemos definir a literatura pós-colonial como toda a literatura,
inserida no contexto de cultura, "afetada pelo processo imperial, desde o primeiro momento da
colonização europeia até o presente" (ASHCROFT ef aI., 1991, p. 2). A crítica pós-colonial, portanto,
abrange a cultura e a literatura, ocupando-se de perscrutá-las durante e após a dominação imperial
europeia, de modo a desnudar scus efeitos sobre as literaturas contempornneas. De fato, todas as
literaturas oriundas das ex-colônias europeias, sejam elas portuguesas, espanholas, inglesas ou
francesas, (1) surgiram da experiência da colonização e (2) reivindicaram-se perante a tensão com o
pode'r colonial e diante das diferenças com os pressupostos do centro imperial.

Tensão com o poder colonial


Experiência da colonização literatura pós-colonial
DIferenças com os pressupostos do centro
imperial

Quadro 7. A formação da literatura pós-colonial.

THOMA, BONN1CI I LUCI,' ChhNA ZOllN (OIlCANIZADOHESl 267


:r;() N N I L I

A emergênCia e o desenvolvimento de literaturas pós-coloniais dependem de dois fatores


importantes: (l) a progressão gradual da conscientizaç30 nacional e (2) a convicç30 de serem diferentes
da literatura do centro imperial. Na primeirJ expressão "lIter:í.ria" brasileira, nem a conscientização
nacional nem a diferenciação têm ressonância. De fato, ela envolve textos literários que foram
produzidos por representantes do poder colonizador (viajantes, administradores, soldados e esposas
de administradores coloniais). Tais textos e reportagens, com detalhes sobre costumes, fauna, flora
e língua, privilegiam o centro em detrimento da periferia, porque \'isam exclusivamente ao lucro
que a metrópole terá com a invasão e a manutenção da colônia. As descrições de Fernão Cardim, em
Do clima e terr,) do Brasil (edição inglesa de 1625), Jean de Léry, em r'Í')cVClII â terra do Brasil (1578), e
Gabriel Soares de Sousa, em Hatado descritil'o do Brasil (1587), com sua pretensão de objetividade sobre
frutas tropicais, esmeraldas, rios e outros temas, como também a atomização dos objetos descritos
pelos pintores e botâllicos holandeses, como Albert Eckhout, Willem Piso, Johann Nieuhoff e Georg
Marcgraf, escondem o discurso imperiaL
A segunda etapa envolve textos literários escritos sob superVisão imperial por nativos que
receberam sua educação na metrópole e que se sentiam gratitlcados em poder escrever na língua do
europeu (nessa época não havia nenhuma consciência de ela ser também do colonizador). A classe
alta da Índia, os missionários africanos e, às vezes, prisioneiros degredados na Austrália sentiam-se
privilegiados em pertencer à classe dominante, ou em ser por ela protegidos, e produziram volumes ge
poemas e romances. A Prosopopéia (1601), de Bento TeL'Ceira, e O Uraci?ual (1769), de Basílio da Gama,
são exemplos clássicos desse fenômeno na literatura brasileira.
Embora muitos dos temas (o fato de que supostamente a cultura do colonizado era mais antiga do
que a europeia, a brutalidade do sistema colonial, a riqueza de seus costumes, leis, cantos e provérbios)
abordados por esses autores estivessem carregados de subversão, sem dúvida os autores não podiam ou
não queriam perceber essa potencialidade. Além disso, a manutenção da ordem e as restrições impostas
pela potência imperial não permitiam nenhuma manifestação que pudesse mostrar algo diferente dos
critérios canônicos ou políticos.
A terceira etapa envolve uma gama de textos, a partir de certo grau de diferenciação, até uma total
ruptura com os padrões da metrópole. Evidentemente, essas literaturas dependiam do cancelamento do
poder restritivo, ou seja, começaram a ser escritas ou umas décadas antes ou a partir da independência
política. A oscilaç30 de "brasilidade" nas obras de Basílio da Gama, Santa Rita Dur30, Cláudio Manoel
da Costa, dos poetas românticos e de José de Alencar é muito nítida: a bajulação ao colonizador, o estilo
literário português, o afastamento da retórica camoniana, temas brasileiros, fabricação da mitologia
brasileira. Pela conscientização pós-republicana, com Machado de Assis e com o Modernismo,
I
ocorre a guinada completa do estranhamento e afastamento da literatura brasileira dos parâmetros
metropolitanos, sejam esses portugueses ou franceses. Devido à manutenção da centralização britânica,
acredita-se que a literatura em inglês oriunda das ex-colônias britânicas tenha ido mais longe em sua
ênfase na linguagem, na paródia e na sátira. Em Thíngs Fall Apart (1958), Chinua Achebe ridiculariza
o administrador éolonial que deseja escrever um livro sobre os costumes primitivos dos selvagens
do alto rio Niger, quando o autor já havia exposto a complexidade de costumes, religião, hierarquia,
legislação e provérbios da tribo dos Igbos na região chamada Umuofla.

1. textos literários produzidos por representantes do poder colonial (viajantes, administradores, esposas dos colonizadores,
religiosos) .

2. textos literários produzidos por nativos, mas sob supervisão colonial (religiosos nativos, classe intelectual educada na
metrópole, protegidos dos colonizadores).

3. textos literários escritos por nativos a partir de certo grau de diferenciação dos padrões da metrópole, até sua
ru ptura total.

Quadro 8. Os três momentos da literatura pós-coloniaL

268 - T E o R I A LITERÁRIA
~ J I " R J 1\ r (' k J T 1 c" I' () \ - (' () J 11 !'C i ,) I J SI,) S

QUESTIONANDO O CÂNONE LITERÁRIO

Quais são os documentos históricos ou literários nos quais a voz do slIba/temo é transmitida? Como
o colonizado se descreveu durante séculos de submissão? Como o europeu viu a presença do Ol/tro l No
dnone literário o colonizado encontrou sua voz ou esta ficou relegada à ausência? Ninguém pode negar
que atualmente há uma verdadeira e:-..1:el1são do dnone literário,já que textos de mulheres, indígenas,
escravos e membros de outros grupos historicamente marginalizados começaram a emergir. Houvc
tempo em que o dnone literário estava fechado: somente um cOl-uunto de tn.1:OS, consagrados C01110
esteticamente excelentes, era escolhido pelo grupo social e politicamente dominante, e considerado
digno de ser lido, com a consequente exclusão de outros textos que não coadunavam com o ponto de
vista do grupo hegemônico. Um maior número de textos estão sendo estudados como representações
da experiência e da cultura da mais variada gama de grupos de pessoas. Houve comprometimento nos
padrões literários? Os to:tos formadores do dnone foram escolhidos pela sua excelência literária ou
pela representatividade cultural? É legítimo insistir sobre uma representação politicamente correta
para cada minoria, em detrimento da utilização de critérios literários?
Discutem-se muito, atualmcnte o dnone literário e sua formação. Enquanto Harold Bloom,
em O cáno/le ocidental (1995), insiste sobre a autonomia do estético e deplora qualquer ideologia na
crítica literária, os adeptos do Pós-modcrnismo (multiculturalismo, feminismo, Novo Historicismo,
afi'ocentrismo) dilatam a abrangência do dnone. Não faltam críticos, como Perrone-Moisés em
Altas Literaturas (1998), que tomam posição intermediária. Sabe-se, contudo, que a formação do
cânolle literário deu-se porque certas obras literárias em determinados períodos históricos cultuavam
interesses e propósitos culturais particulares, como se fossem o único padrão de investigação literária,
É extremamente interessante saber como certos textos foram selecionados por interesses, tornando­
se, portanto, dignos de serem estudados. É interessante investigar como as ideias de excelência
literária permearam as escolas do ensino fundamental, os exames vestibulares, o currículo dos cursos
de Letras nas universidades. Os romances de José de Alencar (1829-1877), o principal escritor da
ficção romântica brasileira e expoente máximo do Indianismo, foram apropriados no cânone literário
brasileiro porque nos períodos pós-independência e pós-república necessitava-se de alguém que
mostrasse orgulho, amor, defesa da pátria, e criasse arquétipos de uma terra edênica e da unificação
nacional. Na Inglaterra, as obras de Alfred Tennyson (1809-1892) naturalmente entraram no cânonc
literário por causa de seu enaltecimento do imperialismo britânico, da coragem de seus soldados e
dos arquétipos criados no conjunto de poemas sobre os fundamentos míticos do povo inglês. Por
outro lado, numa sociedade patriarcal e machista, os textos e as biografias das escritoras brasileiras do
século XIX e do início do século XX foram quase todos suprimidos. Suas obras foram literalmente
relegadas ao esquecimento. Somente nestas últimas décadas a academia brasileira (especialmente nas
universidades federais do Rio Grande do Norte, de Minas Gerais e de Santa Catarina) resgatou a
história e as obras de autoras brasileiras. O mesmo aconteceu no bojo da sociedade branca e europeia
dos Estados Unidos. Entraram no cânone literário estadunidense os textos dos ex-escravos Frederick
Douglass (1817-1895) e Harriet Ann Jacobs (1813-1897) apenas nos últimos vinte e cinco anos do
século xx, devido a interesses de diferentes experiências culturais e de form~s literárias.

ARELEITURA

A releitura é uma estratégia para ler textos literários ou não-literários e, dessa maneira, garimpar suas
implicações imperialistas e trazer à tona o processo colonial. A releitura do texto faz emergir as nuanças
coloniais que ele mesmo esconde. Quando se lê um romance da literatura brasileira do século XIX, por
exemplo, nada se depara, à primeira vista, sobre os ccntrapontos da riqueza pessoal dos personagens,
da suntuosidade de seus solares e de sua vida folgada. A reinterpretação ou a leitura contrapontual
T0 N N " ,

" ,<vela que a o,igcm de"a nqueza ",á emaizada no c",,'",'idáo de índio, c negm" no coméccio da
! carne humana, na invasão e violação de terras alheias, nos castigos horrendos, na manutenção do
estado racista. Fundamentando-se não na íntima relação entre literatura metropolitana (portuguesa)
e colonial (brasileira), mas na realidade social e culturaL a releitura é uma volta "ao arquivo cultural
[que é lido] de forma não unívoca, mas em contraponto, com a consciência simultânea da história
metropolitana que está sendo narrada e daquelas outras histórias contra (e junto com) as quais atua o
discurso dominante" (SAID, 1995, p. 87).
A reinterpretação é, portanto, uma maneira de reler os textos oriundos das culturas da metrópole e da
colônia para focalizar os efeitos incisivos da colonização sobre a produção literária, relatos étnicos, registros
históricos, discursos científicos e anais dos administradores coloniais. A releitura é a desconstrução das
obras dos colonizadores, de nativos a serviço dos colonizadores e de escritores nacionais. Demonstra
como o texto é contraditório em seus pressupostos de raça, civilização,justiça, religião. Põe em evidência a
ideologia do colonizador e o processo da colonização. A desconstrução empreendida pelo romance Things
Fali Apart revela que o colonizador que insiste na selvageria das tribos da Nigéria é um mentiroso, porque
o romance de Achebe está cheio de episódios de literatura oral (orat/lra, provérbios), de leis para dirimir
questões litigiosas, de práticas religiosas, de convivência social harmoniosa.
A reinterpretação faz parte da inevitável tendência do acadêmico que trabalha com o pós­
colonialismo para subverter o texto metropolitano. As estratégias subversivas revelam (1) a forn;a
da dominação e (2) a resposta criativa a esse fato. Isso acontece quando (1) se denuncia o título de
"centro" que as literaturas europeias deram a si mesmas, e (2) se questiona o ponto de vista europeu
que "natural e constantemente" polariza o centro e a periferia. É importante desafiar este último item,
ou seja, frisar que não é legítimo ordenar a realidade dessa maneira.
Até meados da década de 1960, Próspero, o duque e mago, emA tempestade (1611), de Shakespeare,
era analisado como um homem maltratado pelo próprio irmão. Próspero é descrito como um pai
bondoso, um orientador de sua filha Miranda e de seu futuro genro Ferdinand, um homem que
castiga apenas quando a necessidade urge, um cavalheiro que sabe perdoar os inimigos e esquecer o
mal que lhe fizeram. Uma leitura pós-colonial, no entanto, começa a desenvolver-se a respeito desse
personagem. Próspero revelou-se o usurpador que se apoderou da ilha pertencente a Calibã; o senhor
que escravizou o nativo após seduzi-lo; o controlador da memória de Ariel, Calibã e Miranda para
satisfazer sua ambição; o déspota que mantém o domínio sobre a sexualidade de sua filha Miranda e
de seu futuro genro Ferdinand; o personagem que sai da cena triunfante e imune a qualquer ato de
insubordinação. Essa releitura revela as implicações do encontro entre colonizador e colonizado, as
estratégias de dominação do primeiro, a marginalização e a objetificação do nativo, a resistência do
escravizado pela utilização da língua do colonizador e pelo revide físico. Revela também a incipiente
história da colonização britânica e suas estratégias de polarização que serão desenvolvidas na terrível
história do império inglês entre os séculos XVIII e :xx.
A peça NaJestá de São Lourenço (1587), deJosé de Anchieta (1534-1597), parece revelar simplesmente
um drama singelo e primário com que o missionário podia facilitar a pregação da doutrina cristã. Uma
leitura pós-colonial traz à tona a demonização e a zoomorforização dos índios, as quais revelam o
maniqueísmo (ou binarismo) de Anchieta, a objetificação dos nativos, o vilipêndio de sua cultura, a
superioridad~, da civilização europeia (e da religião cristã). O texto dramático expõe às claras a ideologia
colonial.
Normalmente a leitura de OAteneu (1888), de Raul Pompeia, mostra a história do internato como
reflexo da sociedade no terceiro quartel do século XIX, ou seja, a história da elite brasileira, "enriquecida
pela setentrional borracha ou pela charqueada do sul", no contexto de falência e da decadência do
regime monárquico de base escravista. Uma releitura poderia revelar o sistema educacional europeu
como centralizador e esmagador da personalidade; a resistência de uma sociedade oprimida que anseia
por uma independência verdadeira, em todos os sentidos; a elite traidora da nacionalidade e do povo; a
incapacidade de distanciar-se do contexto de dependência completo; o surgimento de sujeitos/agentes
que constroem dos escombros a autonomia da nação.

270 - T E o R I A LITERÁRIA
- <~ T I () H I ,\ E C R I I I' ..\ i' U \ (' () I () N I .\ I I \ T /\ S

1. Passar de um,l atItudc' que' ddine a littTdtura com,) cn.t1tcccc!ora c transccndelltc para uma "iS;JO de IítCLHI1Ll lIlSerida
no co!ltc:-;to histónco c no espaço geopolítico . I

.. J Pcrcdxr como as obras di certo" autores aprofundaram o impenaltsmo, o colonial ismo c o patriarcalisIllu.
espeCIalmente quando supõell1 que os kltores sejam do se:.;:o masculino e brancos.
-
, Classificar o autor segundo o csquem,] representando os três momemos da EtcratuLl Plb-colonial.
--

4. Detectar na ficção a ambigtlllLtdc JIl1Caç,lc!or;J do nativo e da Illulher diante eb H]eologla dominante da conqUIsta.

5. Descobnr o sIlênCIO absoluto, escondendo o sistenB cscra\'agtsta, a obJetificação da mulher e () avIltamento de nativos,
embora Illascarados atLís de manitCstações de riquezas e de patriarcaEsmo.

6. Investigar o apnslOnaIllcnto do espaço colonial e pós-coloni;tl pelo tn.LO europeu ou pela teona Eterária onundos das
metrópoles rcnascentIstas ou modernas.

Quadro 9. Estratégias para analisar uma obra do ponto de vista pós-colonial.

A REESCRITA

A reescrita é um fenômeno literário, muito utilizado em língua inglesa (porém não exclusivo
desta), que consiste em selecionar um texto canônico da metrópole e, através de recursos da paródia,
produzir uma nova obra escrita do ponto de vista da ex-colônia, A reescrita faz parte do contradiscurso,
originalmente usado por Terdiman (1985) para demonstrar os métodos empregados pelo discurso da
periferia contra o discurso dominante do centro imperial. A seleção gira em torno de certos textos
particularmente preeminentes e simbólicos que o discurso dominante irradiava para impor sua ideologia,
A reescrita tem por finalidade a quebra da ocultação da hegemonia canônica e o questionamento dos
drios temas, enfoques, pontos de vista da obra literária em questão, os quais reforçavam a mentalidade
colonial. Logicamente, a reescrita desemboca na subversão dos textos canônicos e na reinscrição dentro
do processo subversivo.
Vários autores latino-americanos reescreveram A tempestade. Além das obras de George Lamming e
Aimé Césaire, basta mencionar A tempt'stadt', de Augusto Boal, Utopia sell/agcm, de Darcy Ribeiro, a peça
Caliban (1997), de Marcos Azevedo, e A-tor-men-ta-do Calibanus (2001), de Guilherme Durães. O romance
WuJe Sargasso Sea (1966), da caribenha Jean Rhys (1890-1979), é uma reescrita de Jane Eyre (1847), de
Charlotte Bronte (1816-1855); Robinson Crusoe (1719), de Daniel Defoe (1660-1731), foi reescrito em Foe
(1986), do sul-africano J .M, Coetzee (nascido em 1940), A subversão do cânone literário através da reescrita
não consiste em apenas substituir um texto canônico por outro moderno, De fato, o cânone em si contém
algo extremamente complexo, porque envolve pressupostos individuais e comupitários sobre a literatura,
estilo, gêneros literários e outros, Esses fatores estão embutidos nas estruturas institucionais e formam as
grades escolares, a publicação de textos escolares, exames para vestibulares, hierarquização em menção e
em çitações pela academia, A finalidade da reescrita é (1) a substituição de textos, (2) a conscientização das
instituições acadêmicas, (3) a relistagem da hierarquia dos textos e (4) a reconstrução dos textos canônicos
através de leituras alternativas.
Robínson Crusoe, uma narrativa "autodiegética", não menciona sequer uma vez o sexo feminino, mas
mostra a grande previdência e trabalho meticuloso do homem em várias situações limites, O romance
reescrito Foe tem a personagem Susan Barton (inexistente no romance canônico) como narradora; ela
dá sua versão das aventuras do Robinson Cruso (su) na ilha desabitada. Na segunda e terceira parte
do romance, Susan luta para que o escritor Defoe não se aproprie da versão feminina da narrativa e,
mais uma vez, anule a voz feminina recuperada, No romance pós-colonial Friday, ao contrário do
caribenho salvo por Crusoe, não é o indígena ingênuo que aceita sem nenhuma problematização a
!Cf(l N N I (' I

versão religiosa, comportamental e linguística do europeu. O negro e mudo Fnchy, agora reescrito. dI
·1
recusa a recuperação de sua história pelo homem branco e tema articular di\"l'r~()s modos de c:-:preSSã\l
para "escrever" a história do negro pelo negro.
Em O coração das trel'as (1902), de Joseph Conrad. os africanos são descritos sob o ponto dt' vista
colonialísta, como "um rodopiar de braços negros. um bater infinito de palmas das mãos, de pisar
adoidado de pés, o balançar dt' corpos, de rolar de olhos, sob a enlangl.lcscência de folhagt'm cansada
t' imóvel". Escrevendo TIlÍllc~s Fali Aport (1958). Achebe reinstala a rica cultura africana, rejeita os
estereótipos criados pelos colonizadores, confirma a comple:-:ídade e a ambivalência da cultura afncana,
constrói uma profunda e criativa etnografia e, acima de tudo, apropria-se da forma do romance (a
ferramenta dominante da representação imperial bntànica) .

A DESCOLONIZAÇÁO

O deslocamento do cânone literário, a releitura e a reescrita tàzem parte de um programa geral de


descolonização. A dcscolonização é o processo de desmascaramento e demolição do poder colonial ein
todos os seus aspectos. Enganam-se aqueles qut' pensam que a declaração de independência política
produz, por si, a descolonização da mente e que as literaturas nacionais e o ensino da ciência, da história e
da geografia ficam livres de inscrições e de resíduos coloniais. Ao contr~lrio do que muita gente pensa, a
descolonização é um processo complexo e contínuo e não ocorre automaticamente após a independência
política. Após a independência política das colônias, há resquícios poderosos, sempre latentes, das forças
culturais e institucionais que sustentavam o poder colonial. Como em geral os defensores e proclamadores
da independência sentem-se herdeiros dos modelos políticos europeus e relutam em rejeitar a cultura
importada, não podem escapar de uma profunda cumplicidade com os poderes coloniais elos quais
queriam se libertar. Em muitos casos, portanto, a libertação pura e simples dos liames coloniais (modelos
econômico, político e cultural) não ocorre. Historicamente, isso aconteceu mais nas colônias de pouoadorcs
do que nas colônias de sociedades il1l'adidas. Embora nestas últimas a descolonização fosse mais radical e
abrangente, profundos resíduos ainda existem.

,-----------------------------------------,---------------------------------------- ------­
1. Contestação das interpretações eurocêntricas. 1. Reescritura autorreflexiva da história da colônia na qual
se percebe que a realidade do passado tem influenciado o
presente.

2. Desafio à centralidade, à universalização e às forças 2. A marginalidade ou excentricidade (raça, gênero,


hegemônicas. normalidade psicológica, exclusão, _distância social.
hibridismo cultural) é uma fonte de energJa criativa.

3. Instalação do contradiscurso pela transgressão e 3. A ironia e a paródia trabalham com os discursos existentes
dissoluçãõ' das formas literárias europeias ou suas e, ao mesmo tempo, os contestam.
fronteiras.

Quadro 10. Os princípios da descolonização.

A estratégia do poder colonial é deixar uma elite nativa que perpetua sua ideologia e seus paradigmas.
Operando através do antigo conceito de comprador, o neocoloníalísnw toma-se manifestação das operações da
globalização do capitalismo ocidental e a estratégia para o controle global. Pode-se dizer que a globalização
da economia mundial baseia-se (1) no fato de que as mudanças no controle econômico e cultural não

?7? __ T " n R I A LITERÁRIA


l' P 1 J \ -\ P \) \ - \ i! I \) N 1 ,--\ 1 J :; T . \ '\

ocorreram c (2) na convicção de que a tê))"Inação da clite compromctida com as naçôes hcgcl11ônicas era
premeditada e realizara-se através de discriminações, lutas classistas e práticas educacionais Ademais, o
eurocentrismo continuou intluenciando a mcntalidade das nações politiclIl1ente independentes com
seus modelos culturais, especialmcnte pelo binarismo (literatura e oratura: línguas europeias e línguas
indígenas: inscrições culturais europeias e cultura popular etc).

1. AproprIação da língua colol1la! pelo escritor orIundo "0 eSCrItor [africano 1 deve ser capaz de moldar a língua
da ex-colôl1I;l. do colol1lzador para que possa transrllltlr a sua experIência
específica" (ACHEBE. 1975).
---------- ---------------------~

2. Recusa de adotar d língua do colol1lzador. "Qual é a diferença entre um político que afirma que a
ÁfrIca 1130 se desenvolve sem o nnperiallsll10 e o escritor
que afirma que a África necessrta das línguas emopcias;>"
(NGUGI,19H(').
----------- ---

3. Recupnação e reconstruçJu d.1 cultura pré­ Spivak (19()S) e Bhabha (19H4) argumentam sobre a
colol1lal. impossibilidade dessa recuperação devido a processos dc'
miscigenação cultur:r1 durante o período colonial.

4. Aceitação pelo escritor de uma Identrdade tr:msr1:lClonal "O império rctnlcl :\0 centro" (Sdlmal1 Rushdie).

e ao mesmo tempo, o aprofundamento da crítica

diante da cultura contemporânea influenciada peLI

globalização e pelo neocoIOl1l3lismo.

5. Os dirigentes intelectuais, especialmente os escritores, Conclusão de Fanon (1990) a partrr de seu estudo sobre
devem reconstruir radicalmente a sociedade sobre os os efeitos da dominação colonial sobre os colonizados e da
alicerces da tradrção do povo e seus valores. análrse marxista do controle social e econômICO.

6. A dcscolonização é um processo complexo e Conclusão de B. ;\shcroft, G. GrIffiths e H. Tiffin (1991)


contínuo; não é algo Jlltorn:ítICo a partir da em seus estudos sobre as sociedades pós-independência.
rndependência polítICa.

7. VigIlância contra fonnas contempor:1ncas de colol1lnção '/\ dcscolonização frequcntemente significa J dcs­
(neocolonialismo, globalrzação, ncohbcralrslllo). ocidentalização cll1preendrda pelo homem branco" (Tnnh
Minh-ha).

Quadro 11. Opiniões sobre métodos de descolonização.

A tarefa descolonizadora é extremamente árdua, como se vê na África e na Índia. O caso das ex­
colônias de colonizadores, como a Austrália e o Canadá, é outro grande pr-oblema. Embora nesses
países a independência nos moldes europeus fosse concedida há tempo, suas populações, de maioria
branca, sofrem de uma profunda submissão cultural, sentem-se impotentes diante das propostas de
desmantelar os elementos coloniais embutidos em suas instituições e culturas, e têm dificuldades em
cortar o liame mãe-filha incrustado em sua identidade. Até certo ponto, as asserções acima aplicam­
se ao Brasil também, embora seja ele um país mestiço, com predominância da classe branca ou
"embranquecida", o qual ainda possui fortes resquícios culturais europeus.
Apesar da grande influência e abrangência da globalização, destacam-se para fins de descolonização
da mente (1) o fomento das línguas nativas, (2) a relativização das línguas europeias, (3) a democratização
da cultura, (4) a recuperação cultural e literária. No caso da literatura, parece que a tarefa dos escritores
oriundos das sociedades pós-coloniais consiste em teorizar extensivamente a problemática do poder e do
estado pós-independência. A literatura descolonizada passa a ser polifônica em lugar de monocêntrica,
híbrida no lugar de pura, carnavalesca em lugar de persuasiva. Caracteriza-se pela narrativa fragmentána,
1" N N , , ,

, pelos incidentes duplIcantes, pelos comentários met;dlccionais, pela cronologia interrompida, pelos
gêneros mistos. Além disso, existe um problema que poderia ser chamado "existencial", U I1l dos escritores
pós-coloniais, o sul-africano J M. Coetzec. de ascendência ellropeia, sente-se receoso em representar
ficcionalmente os excluídos dos impérios capitalistas, como os negros e os escravos, O ex-colonizado e
o neocolonizado têm outras e diferentes f()rmas para desenvolver a sua subjetividade e a reprcsentaçJo

literária de sua identidade. No romance Fot', a europeia Susan RlrtOIl tenta em vão escre\'Cr a história

do negro Friday, cuja língua foi cortJda. Além disso, inutilmente incentiva-o a eSCI'C\'er. relembrar ou

expressar-se por gestos para contar a sua história, Os métodos europeus não funcionam e o próprio

Friday deve recuperar a "voz" no processo de subjetificação. A tarefa de Friday, portanto, é a metonímia

da função literária do escritor nativo que busca a própria subjetividade e a do povo. Fanon escren~:

o (sentor da colÔllIa deve usar o passado para ahrlr esp:lç() ao futuro, Cllmo um convite :í
ação e como a base para a esperança, I. J A responsahilidade da pessoa culta não é' apcnas
uma respomabilíd,ldc dial1l(' da cultura naclUfuL nus Im];) rcspollqhilidade glohal r,:ferclltc
à totalidade da Ilação, cuja cultura representa apenas um aspecto da ll3ção (fANO N, 1990,
p.1R7).

A conscientização e postura pós-colonial que a academia assume são a base da descolonização


:'."-.;
da mente, Em primeiro lugar, a Jcademia brJsileira não pode apropriar-se da teoria pós-colon.ial

J
;~i
sem questionamentos, A noção do sujeito descentralizado não poderia ser mais uma estratégia do
colonialismo ocidental? O estudo do pós-colonialismo não poderia ser a análise de um pequeno
grupo ocidentalizado de escritores e pensadores que comercializa os produtos culturais do capitalismo
1
mundial para os intelectuais da periferia' Não é possível que a íntima ligação entre pós-modernismo . ·.·.1
"

e pós-colonialismo, este considerado o filho do primeiro, aconteça não por novas perspectivas sobre
a cultura ou de uma reviravolta do poder, mas apenas um pretexto, ou seja, por causa da visibilidade
crescente de intelectuais dos países emergentes como inovadores? Essa problematização não invalida
a atitude e o esforço do acadêmico brasileiro, profIssional de Letras, em seu comprometimento par::!
descobrir como os povos estão feudos em estruturas opressivas e para descortinar a subjetificação de
tais indivíduos (neo)colonizados. O seu esforço para a flexibilidade da teoria existente e o surgimento
Ij
f
de outras teorias autóctones são de grande valia para reinterpretar todos os textos pré- e pós­ J
independência política oriundos da inscrição colonial (BONNICI, 2000). i
~
~

Tendo como princípio que descolonizar llão é simplesmente livrar-se das amarras do poder

imperial, mas procurar também alternativas não repressivas ao discurso imperialista, a descolonização

da literatura e da crítica literária darão um novo e mais aprofundado entendimento ao acadêmico. É

análogo ao sentimento do escravo afro-americano Frederick Douglass (1817-1895), quando descobriu

o segredo da escrita, "Houve uma nova e especial revelação, explicando coisas até então obscuras

e misteriosas, contra as quais o meu entendimento juvenil tentava vislumbrar, mas lutava em vão,

[.. ,] foi uma grande vitória, estimada por mim sobremaneira. A partir daquele momento, entendi o

caminho da escravidão para a liberdade" (DOUGLASS, 1988, p, 78),

ALÉM DO PÓS-COLONIALISMO

Se o termo 'pós-colonialismo' e a teoria "pós-colonial" referem-se ao impacto cultural

entre os europeus e os outros, recém descobertos e inventados, desde os primeiros contatos até a

contemporaneidade, há uma estreita ligação entre os eventos contemporâneos envolvendo os povos

do Sul e aqueles relacionados ao projeto colonial europeu de outrora, Novas formas de capitalismo,

veiculadas por uma mais vigorosa e sofisticada globalização, geraram outras questões ou revelaram

aspectos mais profundos da história dos últimos quinhentos anos, No início do século 21, a

literatura é assaz sensível para representar, a seu modo peculiar, as repercussões do racismo, diáspora,

274 - T E o R I A LITERÁRIA
.n.8 r I (1 H I l_H J ! ! ( ,\ 1) (J " - { {) I ,,) N I ,\ I I \ '\ ..\ ..,

multiculturalismo e outros tópicos que revelam a condição humana e sua luta para encontrar sentido
de sua existênci:l.. Portanto, a teoria pós-coloni:l.1 VJ.i :l.lém de uma mera releitura p:l.Ll a recuperação
histórico-literária retirada de textos C:l.nônicos ou não; tampouco é um relato de culpabilidJ.des,
acusações e lamúrias sobre o sofrimento hJ.\'ido e sobre a perda cultural irreparáveL

Por onde ,e olll:l. no Ocidente ou nas sociedades do 'ICrcc'lf() Mundo, parece que o ser étICo
não pode ,n separado do um ciclo aprofundado de crut!\'lchde através do qual podere!llo,
\'ls\lah7;lr llnu rllptuLl da vlOlência absoluta. Esu r\lptuLl C\Ii'C que acenemos os contexto, do
adn'rscÍ[]() 110S qU;l1S ,I, culturas lutam entre SI e qllt' adotemos estratégias de camuflagem ( de
máscaras como arcabouço, tlcxín'is dentro do 1l11sténo de transformação genuín,1 (I1l\IUUS,
1985, p. 128).

Consoante os seus conceitos de hibridismo e olhar enviesado, Barris mostra que estes conceitos
são desafios éticos-políticos que a literatura propõe para o debate e a intervenção.

"RAÇA" E RACISMO

Durante mais de 450 anos ser europeu significava ser um homem (n1:l.sculino) branco e partíCIpe
de uma sociedade que dominava o planeta. A hegemonia branC:l. em toda a extensão dos impérios
europeus se deve a pressupostos que atualmente não são apenas debatidos, mas rechaçados por
razões históricas, ideológicas e biológicas. Historicamente pode provar que a constituição étnica dos
países europeus é tão mista quanto a de qualquer outra comunidade heterogênea. Portanto, a suposta
cultura homogênea e a pseudopureza racial são apenas um construto (HALL, 2003), Todavia, foram
exatamente estes fatores, especialmente o conceito de raça superior, que se tornaram necessários para
fundamentar ideologicamente os impérios europeus e, desta maneira, impor seus valores e outremizar
os diferentes povos não-brancos que integrariam, como subalternos. 110 projeto capitalista engendrado
pelo binarismo metrópole-colônia. A revelação da existência de certa convivência racial na Europa
desde o século XVI, e mais tarde, a introdução dos conceitos de multiculturalismo e de diversidade
cultural (BHABHA, 1994) após a II Guerra Mundial e durante o período de descolonização, solaparam
o conceito de identidade nacional, seus ideais e seu lugar no mundo.
Embora o termo "raça" possa ser apenas uma palavra de usos variegados, a carga de preconceito
a ela inerente é tão forte que muitos questionam a conveniência em usá-la. Na acepção fenotípica,
"raça"(raça negra; raça amarela) é um conjunto de traços físicos que permitem a identificação de
indivíduos como pertencentes a um determinado grupo. Na acepção geográfica, "raça" denota a
ancestrabdade geográfica, dando origem a termos como "raça africana" ou "raça europeia". No sentido
biológico o termo "raça" é sinônimo a subespécie, ou seja, denota uma população geneticamente
diferente. Todos os antropólogos afirmam que não há atualmente raças humanas, mas uma única raça
humana. Homo sapiens emergiu da África oriental cerca de 150.000 anos atrás; deixou o continente
aproximadamente há 60.000 anos e aventurou-se subsequentemente para o resto do planeta. As
difer-enças entre "raças" somente poderiam ter ocorrido após sua saída do continente africano. Portanto,
as características "raciais" (pigmentação da pele, cor e textura de cabelo, forma de nariz e espessura
de lábios) são controlados por um número pequeno de genes diferentes e permitem uma seleção
rápida impactadas por pressões ambientais. Nada tem a ver com inteligência, habilidades e talento. A
trajetória imperialista, baseada num conceito espúrio da filosofia e da ciência, a partir do século XVII,
infestou o termo e produziu o racismo atuaL As "raças" não-europeias foram estigmatizadas como em
vários estágios de civilização para que pudessem servir aos empreendimentos das metrópoles. A partir
do Iluminismo, a razão e a civilização tornaram-se sinônimos à "raça branca" e ao norte da Europa,
enquanto o primitivismo e a selvageria foram alocados às "raças não-brancas", geograficamente postas
fora da Europa (MALIK, 2008).

THOMAS BONNICI / LUCIA OSAN,' ZOLL" (ORC;ANIZAIlllRES) - 275


~n N N J r: J

i SEMÂNTICA DO TERMO "RAÇA" (PENA, 2008)

Sentido fenotípico caracterização física (textura de cabelo: cor da pele)


Sentido geográfico ancestralidade geográfica (raça oriental: raça maori)
Sentido biológico população geneticamente diferenciada ou subespécie (Holllo saplclls: Homo
/leal1derthalfllsis) .
Quadro 12. Semântica do termo "raça"

Diante de um racismo construído em favor do imperialismo europeu (e estadunidense) e diante


do estabelecimento de condição de pessoas com "desvantagem racializada", surgiu uma literatura
negra onde se representa a condição racial não apenas do afro-descendente mas de todos os excluídos.
Concomitante às experiências da literatura negra estadunidense e da literatura caribenha, uma
das modalidades mais significativas da resistência contra os parâmetros e as estratégias coloniais e
neocoloniais europeias é o surgimento da própria literatura pós-colonial, iniciada por Tutuola, Achebe
e Ngugi. O surgimento de uma literatura negra britânica é um fato próprio e inegável, oriundo a partir
dos anos 1960. Em contraste à literatura afro-americana estadunidense, define-se a literatura negra
britânica como um conjunto de obras literárias escritas por "negros" (nascidos ou emigrantes no Reino
Unido) caracterizado pela representação do multiculturalismo, das dificuldades de convivência étnica,
da diversidade cultural, dos problemas de abertura e tolerância, e de entraves a um desenvolvimento
da difJérance. A heterogeneidade desses autores (africanos, sul-asiáticos, caribenhos, ilhéus da Oceania,
primeiras nações australianas, maori neozelandeses) e dos gêneros literários empreendidos talvez
ofusque apenas as diferentes variedades da língua inglesa utilizadas, produtos das intercomunicações
entre as comunidades linguísticas diferentes na Inglaterra e nas ex-colônias. O que realmente pode
ser chamada de "literatura negra britânica" registra a zona de contato entre o pós-colonialismo e as
culturas britânicas no Reino Unido, produzindo um entremeio no centro literário britânico. Refuta­
se, portanto, a noção excludente de que somente autores brancos podem contribuir legitimamente
1

1
i
à construção contínua da literatura britânica, salientando o fato que o texto literário negro britânico
é, a partir de meados do século:xx, o loeus apropriado para a recuperação da voz do ex-colonizado, o
banimento do racismo e a negociação na diversidade cultural (GUPTARA, 1986; STEIN, 2004).
Embora a população brasileira atingisse um nível elevado de mistura gênica e a grande maioria
dos brasileiros tenha algum grau de ancestralidade africana, somente recentemente estudos
sociológicos e antropológicos mais profundos, como Dois Atlânticos, de Sérgio Costa; Conceitos
de literatura e cultura, organizado por Eurídice Figueiredo; Uma história de branqueamento ou o negro
em questão, de A. Hofbauer; Razão, 'cor', e desejo, de Laura Moutinho, Racismo e discurso na América
Latina, de Teun A. van Dijk, América afro-latina, de George Reid Andrews; Racismo à brasileira, de
Edward TeUes; Àjlor da pele: Reflexões de um geneticista e Humanidade sem raças? de Sérgio Danilo
Pena, entre outros, têm sido publicados no Brasil sobre o problema da constituição racial e do
racismo no Brasil. Algo análogo ao caso de obras de autoria feminina ou de tópicos feministas,
a representação literária do racismo e suas repercussões, o discurso sobre a democracia racial
brasileira, o multiculturalismo, os temas do ostracismo negro estavam (e até certo ponto estão)
sujeitos à hregemonia branca, com grandes dificuldades para emergir e ser objeto de debates
acadêmicos' e da crítica literária. O resgate que recentemente Eduardo de Assis Duarte fez por
sua antologia Machado de Assis afro-descendente foi de grande valia e coragem porque revelou um
aspecto suprimido e (propositalmente) abrogado do maior escritor brasileiro.
Em seus romances negros britânicos, Caryl Phillips, Zadie Smith, Andrea Levy; Salman Rushdie, Monica
Ali e outros, entrelaçam o leitrnotiv da escravidão, a degradação do negro e a repercussão da instituição
escravagista europeia, especialmente a luta pela inclusão, na vida do negro contemporâneo. Admitindo a
diversidade de cada autor, a construção destes romances se realiza através de mudanças contínuas de tempo
e lugar, de estados mentais, de memórias e esquecimentos, de subversão cronológica, de viagens erráticas, de
culpa e remorso para fazer emergir os temas de pertença, identidade e "raça". Esse deslocamento contínuo é

276 - T E o R I A LITERÁRIA
\ 1,: 1 I 1 \ :\ I' \ I - I (1 1 () N I .\ I

a metonímia da diáspora, em todos os sentidos, causada pela intervenção europeia na Áfiica e nas ex-colônias,
e se realiza pelo realce do papel do negro na civilização modema e contemporânea, St1::t ::tocrtura à diversichde
cultur::tl e a urgência de integração de populações inteiras às be\1esses da civilização pós-modema (LEDENT
2002). Salientam-se ainda nestes romances os temas da exclusão e da auto-culpabilidade do sujeito não-branco
O primeIro tema mostra que o parâmetro e o centro é ainda a comunidade branca, hegemônica e sedutora.
Os romances de Caryl Phillips revelam uma sociedade na qual as pessoas em geral fonnam um grupo coeso
baseado na cor branca. Quando Gilroy emblematicamente intitulou seu lino 71ne ain't 1/0 Elark i/1 riu' Uníon
Jack queria enfatizar que ser britânico (ou ser europeu) é ser branco e que o conceito de unheímli(hkcit é o
parâmetro de quem não é. Parece que a ideia de não-assimilação de negros é um fator endêmico na população
britânica e europeia. O segundo tema refere-se ao discurso racial. o qual produz um complexo de culpa não m
sociedade que o engendra, mas na pessoa que dele é vítima. Os personagens Faíth e Hortense, respectivamente
nos romances Fmit f!fthe Le/llol1 e SlIIall úlal/d, sentem culpa por serem negras, falam um inglês "diferente" e
possuem jeitos sociais diferentes da maioria branca. Tlivez a frase que mais representa esta culpabilidade foi
proferida pelo personagem Francis Barber em }-<'orelç;lIers, de Phdlips, quando diz: "L(x)k liberty in thc !;lCC"
(PHILLIPS, 2007, p. 53), ou seja, ele mesmo se aborrece de sua alforria. contemplada com desdém, como se
a liberdade fosse algo que gera a devassidão e o desfecho físico e rnoral do negro.

. ­

TEMAS PRINCIPAIS EM ROMANCES RECURSOS LITERÁRIOS DE AUTORES

NEGROS BRITÂNICOS NEGROS BRITÂNICOS

• escravidão • mudanças contínuas de tempo e lugar;


• degradação do negro • deslocamento de estados mentais;
• deslocamento • esquecimentos;
• exclusão • procura de memória c de história;
• luta pela inclusão • subversão cronológica:
• st~eito fragmentado • VIagens erráticas; I
I

• culpahilidade • sentimento de culpa e remorso;


• emulação do estilo de vida do branco • sentimento de identidade e "raça";
• identidade e subjetividade • fluxo de consciência;
• abertura ao outro • o nq,'To como metonímia do excluído;
• unheímlíchkeít • l1lStoricidade da escravidão

Quadro 13. Temas e recursos literários em romances negros britânicos

Em muitas ocasiões Fanon (2005), Said (1990) e Bhabha (1994) mostraram que o negro, produto da
Europa, sofre a crise identitária devida à negação de valores culturais imposta pela civilização europeia,
a qual "o colocou fora da história e fora da cidadania" (MEMMI, 1967, p. 113). O olhar do branco
desenvolve no negro uma imagem negativa de si próprio e constrói uma "reàlidade" que adere à sua
personalidade, agora caracterizada como perfeitamente dispensável. Todavia, a subjetividade do negro
rechaça de "voltar-se] contra sua raça, identificando-se totalmente com a positividade da brancura que
é ao inesmo tempo cor e ausência de cor" (BHABHA, 1991, p. 194).

DIÁSPORA

A diáspora (do grego, dia = longe, distante, e speirein = espalhar) é o deslocamento livre ou forçado de
populações fora de seu país para novas regiões. O colonialismo provocou as duas modalidades: milhões

TIH'''_'' BONNICI / LÚCIA OSANA ZOLlN (ORGANIZADORES) - 277


1°,"," .
1
.. .. '. .
de europeus mIgraram para as colomas da Amenca, da Mnca e da Austraha para conqUIstar terras c
; garantir a manufatura c o comércio de produtos requeridos nJ EurOp3. Milhões de africanos, oriundos
de várias tribos e nações, foram escrJvizados e involuntariamente foram transportados às fazendas do
Novo Mundo como solução à escassez de mão-de-obra na produção de mercadorias para as metrópoles
(SEED, 1995; THOMAS, 1997). Após a abolição da escravatura no Caribe em 1834, millures de
trabalhadores da Índia e do sudeste asiático foram contratados (quase escravos) e levados àquela região
para trabalharem nas fazendas, Por outro lado, a partir de 1948, no caso dos Caribenhos, e especialmente
a partir dos anos 1960s, no caso de árabes, africanos e sul-americanos, começou-se uma migração maciça
para os centros metropolitanos à procura de trabalho e estudo. A fome e as guerras civis na África c na
Ásia provocaram novas ondas diaspóricas para os centros metropolitanos e formaram um contingente de
"imigrantes ilegais" na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá (FARRELL, 2000).

;------­

TIPOLOGIADADIÁSPORA (SPIVAK, 1996)


~ --------- --------,,---------------------- - - ----­

Di:íspora pré-transnacional a) escravidão de africanos para a América do Sul, Caribc e Estados


Unidos;
b) trabalhadores contratados da Índia e do sudoeste asiático (indentured
labour)

diáspora transnacional a) sujeitos ex-coloniais para as metrópoles;


b) refugiados de guerras civis e de fome;
c) sujeitos procurando estudo, emprego e bencsses nas metrópoles.

Quadro 14. A diáspora

As características da diáspora são (1) a dispersão de um "centro" original para uma região
distante; (2) a retenção de memória e mitos coletivos sobre a "pátria"; (3) a crença que a população
diaspórica jamais se inseriria completamente no país hóspede, produzindo ou um isolamento mental
ou um gueto geográfico; (4) a idealização do "lar" de seus antepassados; (5) a crença que todos os
descendentes manteriam certa ligação com a pátria original; (6) uma mentalidade étnica baseada na
identidade e na história e no futuro comum (SAFRAN, 1991). Embora as migrações sempre fizessem
parte da história humana, o deslocamento populacional tomou rumos significativos a partir do fim
da 11 Guerra Mundial e do movimento de descolonização. A diáspora na modernidade tardia é algo
mais complexo, diversificado e global porque envolve a deslocamento e a fragmentação, embora
não signifique necessariamente uma ruptura completa com o país de origem (APPADURAI, 2003).
Portanto, diferente da diáspora provocada por perseguição, guerras civis e fome, a diáspora dos que
procuram benesses, trabalho e estudo não é necessariamente algo traumático. A nova terminologia
atualmente empregada, como transnacionalidade e transmigração, coloca em evidência três tipos de
populações transmigrantes: (1) o tipo tradicional, com a mente fixa numa pátria imaginada; (2) o
tipo afinado -à cultura local, o qual limita os "perigos" de encontros interculturais; (3) o tipo com
afinidade local limitada, mas com orientação cosmopolita manifestada através da mobilidade e cultura
profissional.
Existe atualmente uma nomenclatura diversificada para descrever o mesmo fenômeno cultural
provocado pela diáspora: "cultura cosmopolita" (HANNERZ, 1996); "cultura transnacional" (SMITH,
1991); "cultura global unitária" (TENBRUCK, 1990); "culturas mistas translocais" (PIETERSE, 1994);
"identidades hifenizadas" (LI PMAN, 1995); "culturas híbridas" (GILROY, 1993; BHABHA, 1994;
HALL, 2003). Nestes contextos as identidades tornam-se instáveis e locais de diferença nas relações
de poder. Consequentemente, a identidade é constantemente negociada e construída, intimamente

278 - T E o R I A LITERÁRIA
ligada à globalização, ou seja, no entremeio entre as condições globais e as situações locais (HALL
2003).
A identidade do sUjeito diaspórico amarra-se à identidade nacional ou à consciênCia nacioml.
descritas como "comunidades imaginadas" por Anderson (1983). A nação sempre é concebida como
uma camaradagem horizontal profunda onde os indivíduos sabem que são. ao mesmo tempo, iguais
e diferentes. Todavia, a partir da perspectiva diaspórica, pode-se dizer que as condições translocais
fórmam zonas de conflitos e sujeitos fragmentados. Como consequênci3, o sujeito diaspórico se
liberta da posição étnica fixa e da ideia de um mito fundador e assume possibilidades novas e lI131S
abertas ao outro.
Por outro lado, a diáspora considera também os conceitos de unheimlich e IIl1heilll!i(hkeir ('não­
estar-no-lar'; 'estranhamento'), originariamente desenvolvidos por Freud e Heidegger. No C3S0 de
colonizadores voluntários, o espaço não colonizado deve ser transformado em lugar 'civilizado' através
da língua, invenção de termos apropriados, nova visão da terra física, processamento de uma nova
mentalidade. Começa-se uma cultura que nem é uma repetição da pátria mãe nem uma adaptação exata
da terra local. Tal identidade diaspórica produz positivamente o hibridismo. No caso das populações
nativas que não foram deslocados fisicamente para outras regiões, há um tipo diferente de diáspora. Sua
cultura foi degradada e deslocada enquanto a alternativa ocidentalizada foi imposta através da religião,
educação, administração e justiça hegemônicas. Quando se trata de diásporas forçadas, na-escravidão
entre os séculos 16 e 19 e nos movimento migratórios devido às guerras civis, a fragmentação do sujeito
diaspórico é mais profunda e duradoura. Neste ambiente, uma nova terra, uma língua diferente e um
novo sistema de trabalho são impostos, enquanto os membros da família são dispersos, os conceitos
de cultura são rompidos, e o desenraizamento e a des-memoração prevalecem. Contudo, no passar
dos anos, os descendentes dos sujeitos diaspóricos reestruturam novas e poderosas formas culturais
através das quais construíram uma nova identidade e subjetividade.

I
CONSEQUÊNCIAS DA DIÁSPORA

colonizadores voluntários • transfórmação de "espaço" em "lugar";


• invenção de termos linguísticos;
• re-visão a terra e do ambiente; I
• hibridismo e nova mentalidade.

('lhe Sto/y ofan African Farm, de Olive Schreiner)

populações nativas não deslocadas • cultura degradada e deslocada;

• alternativa ocidentalizada foi imposta através


da religião, educação, administração e justiça
hegemônicas.
(Conquista Espiritual, de Antonio Ruiz de
Montoya) ­
população escrava e contratada • Imposição de uma nova terra, uma língua
.. diferente e um novo sistema de trabalho;
• dispersão dos membros da família;

• rompimento de conceitos de cultura;

• desenraizamento e des-memoração.

população diaspórica rumo à metrópole • negociação constante;

• ou assimilação ou afirmação da identidade

num contexto hegemonicamente "branco".


(Uma margem distante, de Caryl Phillips; Fruit of lhe
Lemon, de Andrea Levy).

Quadro 15. As consequências da diáspora

TI!\)M}\,.S BONNICl / L(TC1A CJS.AN ..... ZCHIN (ORGANIZADORES) - 279


'c;; \} N N I l: I

!,
A representação da diáspora na literatura é um fenômeno novo, embora constante, nas literaturas
de língua inglesa. Com exceção dos eventos lnigratórios de retirantes nordestinos para o sul do país.
na literatura brasileira a diáspora é muito pouco analisada e discutida apesar de o Brasil ser um país
de diáspora em todos os sentidos acima mencionados. A representação ficcional da diáspora africana
pré-transnacional jamais foi central na literatura brasileira. Poucos romances analisam a imigração
europeia ou a vida de seus descendentes no Brasil. Destacam-se Amar, verbo in tra I1sitillO , de Mário
de Andrade, Callaã, de Graça Aranha, O triste Jim de Policárpio Quaresma, de Lima Barreto, NOl'elas
palllistanas, de Alcântara Machado, Max e 05 felinos e O ce/ltallro 110 jardim, de Moacyr Scliar, CO/ltos
do illl(qra/lte, de SanlUel Rawet, Relato de 11m cel10 Oriel/te e Dois irmãos, de Milton HatouIll, e Lal'oura
arra ica , de Raduan Nassar. Praticamente nenhum romance foi publicado (exceto MorC/1O romo I'ocês,
de Sônia Nolasco Ferreira) representando a diáspora envolvendo brasileiros no exílio político Oll d
procura de trabalho e estudo nas metrópoles europeias ou da América do norte. Todavia, a literatura
brasileira tem grande potencialidade a ser explorada e discutida, muito vezes através de parâmetros
diferentes daqueles usados nas literaturas de língua inglesa.
N a literatura pós-colonial em língua inglesa, Caryl Phillips analisa em todos os seus romances
a diáspora negra, especialmente suas repercussões no mundo contemporâneo. Enquanto Crossil1 '? c

lhe River descreve três personagens diaspóricos, os quais são a metonímia de seres humanos
fragmentados pela diáspora forçada, A Distant Shore e Foreigners, com suas analepses e elipses,
representam a nova diáspora, salientando a fragmentação do africano e do Negro britân;co
contemporâneos e sua frustração em viver num ambiente supostamente tolerante e democrático.
Os romances de Andrea Levy, como The Fruit ofthe Lemon e Small Island, revelam os eventos pós­
II Guerra Mundial e mostram o estranhamento provocado pela diáspora na vida de imigrantes
negros caribenhos. Embora os problemas raciais constituam marcas profundas na sociedade branca
que usa as populações de suas colônias para defender os seus ideais enquanto as exclui de suas
benesses, as populações diaspóricas formam comunidades e iniciam os processos de subjetificação
através da memória e da identidade. Em Brick Lanc e em The Namesake, Monica Ali e Jhumpa
Lahiri, respectivamente, descrevendo as vicissitudes da comunidade bangladeshiana e indiana
no Reino Unido e nos Estados Unidos, mostram os variegados efeitos culturais da diáspora que
afetam os sujeitos diaspóricos proporcionalmente à sua inserção na sociedade hegemônica branca
e ocidentalizada. Com muita jocosidade e comicidade, Zadie Smith, em White Teeth, talnbém
descreve comunidades distintas de caribenhos, judeus, britânicos, bangladeshianos e indianos.
Embora estas populações diaspóricas se misturem, sem traços de hierarquização, elas mantêm
ainda uma imagem mítica do país de origem, a memória do passado, a referência de identidade
e a negociação da subjetividade com a comunidade branca hegemônica. Por outro lado, Nadine
Gordimer em The Pickup descreve as negociações quase traumáticas de um árabe diaspórico que
procura um emprego, primeiro na África do Sul e depois nos Estados Unidos para que possa
exercitar a sua cidadania e usufruir das benesses da "civilização" ocidental. Parece que o leitmotiv
destes romances de autoria negra é a negociação para que se evidencie a identidade do sujeito
diaspórico.

MULTICULTIJRALISMO

o termo "multiculturalismo" descreve o conjunto das diferenças culturais nas sociedades


contemporâneas. Define-se como o reconhecimento da diferença e o direito à diferença, colocando
em questão o tipo de tratamento que as identidades tiveram e ainda têm nas democracias tradicionais.
O termo "multiculturalismo" no contexto de um mundo globalizado pode assumÍr tantas facetas
semânticas e tantas utilidades filosóficas e políticas que muitas vezes se torna uma palavra tão equívoca
que seu uso põe o conceito em risco. O multiculturalísmo está intimamente ligado à diversidade e
à política do Estado, o qual, após a II Guerra Mundial, a derrocada do colonialismo, a fragmentação

280 -- T E o R I A LITERÁRIA
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da União Soviética e a construção da Comunidade Europeia, estabelece políticas de convivência no


seu próprio país. De fato, a partir dos anos 1980, o termo "multiculturalismo" torna-se uma palavra­
código vinculada aos significantes que incluíam "ação afirmativa" contra "raça" e racismo, enquanto
nos anos 1990 o significado se estende a questões de inclusão de homossexuais e lésbicas. Portanto, ()
multiculturalismo é um conjunto de políticas para a acomodação de povos diaspóricos (não brancm)
e de minorias, ou seja, uma resposta liberal para contornar a realIdade racialIzada destas sociedades c
frequentemente para esconder a existência do racismo institUCIOnalizado.
A crítica multicultural radical salienta o poder, o privilégio, a hierarquia das opressóes c os
movimentos de resistência. Por outro lado, a crítica multicultural tradicional analisa as teorias de
diferença e da administração da diversidade geopolítica nas antigas metrópoles coloniais e nas suas
ex-colônias. É, portanto, um discurso globalizado porque compreende a diáspora moderna, os
imigrantes e sua convivência, populações minoritárias e hegemonia cultural, e problemas de gênero,
"raça", etnia e classe. A crítica multicultural analisa a relação entre as culturas das "minorias" e a
cultura hegemônica, especialmente quando as minorias são oriundas de populações ex-coloniais
cuja identidade cultural foi profundamente transformada pelo regime imperial. N urn contexto
hegemônico as "minorias" são catalogadas através dos termos "raça", "etnicidade" e "indigeneidade"
cuja origem tem sido sempre o colonialismo, a diáspora e várias formas dt' objetificação operada
pelos "brancos". Portanto, o multiculturalismo é visto como uma camuflagem ou até r'eforço das
diferenças racializadas (MALIK, 2008) exigidas por uma política de tolerância, ou seja, "um marcador
simbólico da diferença cultural não-absorvida" (STRATTON & ANC, 1994, p. 155). já que v:"írias
minorias (argelinos, nigerianos, mexicanos, brasileiros, quenianos, povos eslavos) foram aceitas nos
anos 1970 e 1980 devido a vários fatores econômicos, o multiculturalismo tornou-se uma exigência
de política estatal para a convivência dessas minorias no contexto de uma cultura local hegemônica
e alheia (McLEOD, 2004). ''Apesar dessas mudanças, a ideologia constante que o termo carrega é
sua conotação de 'interesse especial,' opondo-se supostamente a um interesse geral subjacente"
(MOHAN, 1995, p. 374).

DESCRIÇÃO DO MULTICULTURALISMO CRÍTICAS AO MULTICULTURALISMO I

~----------------------------------------+--------- --'
• política de convivência de populações etnicamente • camuflagem das dIferenças nciais

diversas

• Acomodação de povos não europeus e de minorias • reforço das diferenças racialízadas

• relacionamento entre cultura hegemônica (branca) • "interesse especial" no contexto de um interesse


e culturas das minorias geral subjacente (branco)

• tolerância / homogeneizantes das diferenças étnicas

Quadro 16. Multiculturalismo: descrição e críticas

Como conceito, a diferença cultural preconiza não apenas a convlvencia de vanas culturas
hierarquizadas e, portanto, a reprodução do binário metrópole-margem, mas questiona os efeitos
homogeneizantes dos símbolos culturais e a autoridade da síntese cultural. A partir desse conceito,
Bhabha desenvolve a sua teoria do hibridismo, da ambivalência no discurso colonial, do Terceiro
Espaço (BHABM 1994). Segundo Bhabha, a diferença cultural é dinâmica, mutante e aberta a
ulteriores interpretações. Como consequência, o multiculturalismo torna-se vazio sem a conotação
de hibridismo, o qual é concebido como uma ameaça à autoridade cultural e colonial, subvertendo o
'~() N N I ,: J

1
1
c onceito de origem ou identidade pura da autoridade dominante através da ambivalência criada pela
negação, variação, repetição e deslocamento.
Enquanto Hall (1995; 2003) o considera racista c Bhabha (1993) um significante flutuante, Gilroy
(2006) defl'nde o multiclllturalismo como a solução para os países ex-imperialistas, os quais devem
enfrentar o seu passado colonial. Para Gilroy (2006), a "convivialidade", um outro nome que dá ao
multiculturalismo,

não descreve J JusêllCiJ do raCismo ou o triunfo da toler;'lncia. O tenHO sugere uma ambiente
dlferente para seus rItualS vaZlOS e inter-pessoals. lO multlCulturahsl1lo/convivlalidade I
come<;'ou a slgnificar outra coisa quando da ausêncla de uma forte crença em raças absolutas
ou intactas. [ ... ] A convivialidade introduz certa distância do termo importante 'identidade'.
a qual tem sido uma fonte ambígua para analisar raça, etnicidade e política. A abertura
radical, a qual torna a convivialidade algo interessante, ridiculariza a identidade fechada. fixa
e coisificada. e focaliza os mecalllsmos sempre imprevisíveis da identificação (GILROY. 2006.
p. Xl).

Constatando o hiato existente entre Jovens britânicos, para os quais o termo "raça" é irrelevante,
e a atitude de britânicos mais tradicionais que rechaçam o multiculturalismo, Gilroy alcunha esses
últimos como acometido por melancolia, ou seja, ressentidos pela queda do império e pela constilnte
negação das atrocidades cometidas durante a existência do Império Britânico.

TEORIAS DO MULTICULTURALISMO

Bhabha O multiculturalismo deve ser acoplado ao hibridismo: a diferença cultural é dinâmica, mutante
e aberta.

Hall Multiculturalismo é racista porque é uma política de assimilação

Gilroy "Convivialidade", sem a noção absoluta de "raça" e com profundJ Jbertura ã alteridade.

Quadro 17. Teorias do multiculturalismo

A representação do multiculturalismo na literatura negra britânica reflete a ambivalência do


termo. Analisado sob o ponto de vista filosófico, o multiculturalismo é o reconhecimento, a aceitação
e o respeito às diferenças culturais (PAREKH, 2006). Todavia, essa definição já implica na existência de
um centro, dotado de autonomia e hegemonia, que reconhece a existência de outros que são diferentes
dele, mas periféricos. Os termos "aceitação" e "respeito" conotam tolerância, condescendência e
hierarquização e jamais valores iguais com igual direito de existência e de exercício. Segue-se que,
ao contrário da opinião de Gilroy (2006), o multiculturalismo é um termo que leva à intolerância e,
obrigatorialJ1ente, à assimilação na cultura hegemônica, das culturas etnicamente em desvantagem.
Embora a assimilação possa ser chamada "convivência", esta não vai além de uma política para evitar
desigualdades e injustiças. De fato, o termo "assimilação" foi substituído por "multiculturalismo" com
implicações raciais latentes.
Não há duvida que o multiculturalismo esteja frequentemente vinculado às diferenças racializadas
e à fragmentação dos modelos nacionais tradicionais na tentativa de uma representação homogênea
apesar da heterogeneidade existente. Por outro lado, o multiculturalismo é utilizado pelas minorias
para a participação das mesmas, baseada precisamente em suas diferença cultural, e para o combate
à política de assimilação empreendida pelos governos. Embora o multiculturalismo possa ser um
significante vazio, ele é uma importante estratégia contra práticas hegemônicas exclusivistas, contra

282·- T E o R I A LITERÁRIA
----~ TE,)HI,\

F ,:HIIIC_'I I ' , ) S - , : O l ONIAIIS I.'IS

a tendência de voltar ao statl/S ql/O, contra a noção essencialista e purista da cultura e contra a abolição
das políticas afirmativas.
Embora o Brasil seja um país multicultural, a representação ficcional do multiculturalismo
..
não é tão saliente em sua literatura. Provavelmente deve-se este fato aos estudos incipientes
sobre racismo e sua representação literária e a um gradual despertar da sociedade diante de sua
condição híbrida e multicultural. Por outro lado, a literatura negra britânica contemporânea
insiste em mostrar uma sociedade multicultural, problematizando-a, debatendo a sua viabilidade
e revelando as suas máscaras. Esta saliência deve-se à reação ao fato que autores britânicos brancos,
em seus romances nos últimos cinquenta anos, ou seja, no período em que se estabeleceu e se
consolidou a política multicultural na Inglaterra, não incluem personagens negras e não analisam
a modificação híbrida e multi cultural da sociedade britânica neste meio século. Ao contrário, os
escritores negros britânicos incluem personagens negros e brancos em sua ficção.
Todavia, a preocupação de escritores negros é a relação entre a identidade negra inclusiva e
a cultura hegemônica branca. Uma análise de alguns romances mostra indivíduos diaspóricos,
oriundos das ex-colônias britânicas da África, do Caribe e do sudeste asiático, na Inglaterra
supostamente materna e multicultural. Cada personagem carrega a sua cultura (bangladeshiana,
nigeriana, jamaicana etc.) enraizada em suas atitudes existenciais e negocia a sua identidade no
contexto de uma sociedade "homogênea" branca caracterizada por "olhos hostis" (PHILbIPS, 2007,
p. 157) diante da "invasão" de suas fronteiras. Embora a ficção revele o convívio com a cultura
dominante sem muita interferência direta desta sobre a cultura diaspórica, a intercomunicação
dialógica acontece mais sutilmente.
Confirmando dados sociológicos, os romances mostram que a cultura é um fator dinâmico que
evolui através da transculturação e do hibridismo. No romance Brick Lane, de Monica Ali, Nazneen
aceitou casar-se com um homem desconhecido, seguindo a tradição bangladeshiana, mas em Londres
transgrediu as fronteiras impostas pelo gênero e pela cultura negociando o espaço em que ela subsiste
e abrindo-se a um relacionamento com Karim e a uma vida ocidentalizada. Outrossim, todos os
personagens de White Teeth, de Zadie Smith, se encontram hifenizados, desafiando sua identidade
cultural e abrindo-se à heterogeneidade do outro. A abertura híbrida não é algo sem conflito ou sem
perdas. O inglês Archie, por exemplo, parece traçar a relação entre o essencialismo cultural (passado)
e a abertura à diversidade cultural (futuro). "É uma mentira sórdida afirmar que o passado sempre
é perturbador e o futuro perfeito" (SMITH, 2000, p. 448). No hibridismo o embate agônico entre
as culturas poderá lhes dar algumas condições de conviver na sociedade britânica branca, a qual
paulatinamente os assimila.
Por outro lado, nos romances Fruit ofthe Lemon e Foreigners, respectivamente de Levy e de Phillips,
percebe-se que as diferentes experiências de FaithJackson em Londres e de David Oluwale em Leeds
mudam sua percepção da sociedade britânica. A primeira torna-se consciente que a experiência dos
negros é uma experiência diaspórica e, ao voltar à Inglaterra, imagina as diferentes cores dos fogos
de artifíéio como um símbolo da convivência racial e, portanto, de negociação. O segundo assume
uma atitude subjetificante e não assimiladora, insistindo na cultura negra legitimada por si mesma
e não apenas como o direito à diferença. Embora os problemas do multic~lturalismo não tenham
uma solução definitiva, a ficção pós-colonial, especialmente aquela em que o multiculturalismo está
em t;vidência, contribuirá para denunciar o aprofundamento da marginalização das culturas não­
brancas e, portanto, a falácia exacerbante da equação multiculturalismo-assimilação, além de criar
símbolos referentes à legitimidade da identidade e da pertença de todas as culturas.

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THOMAS BONNICI / LÚCIA OSANA ZOLlN (ORGANIZADORES) - 283


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lO

CRÍTICA GENÉTICA

Adalberto de Oliveira Souza

Toda opção metodológica para a realização de uma análise literária pressupõe certa
concepção do próprio texto literário e uma concepção específica do que possa ser o homem.
Este trabalho de abordagem crítica não pretende entrar em concorrência com outros
métodos de análise de textos, mas sim abrir novas perspectivas num campo inexplorado e
procurar confirmar ou anular, com objetividade, hipóteses interpretativas sobre a obra
literária.
Neste capítulo, o que se pretende é esboçar um quadro panorâmico através do qual se
possa vislumbrar a situação e a função da Crítica Genética nos dias de hoje.
Muitas são as maneiras de conceber a Crítica Literária, sua utilidade e o lugar que ocupa
dentro da literatura, sempre tendo como fundamento de sua realização o relacionamento
entre o autor, o texto e o leitor, pois para cada concepção crítica uma dessas três categorias
fica evidenciada, de acordo com o enfoque daquele que executa essa operação. A Crítica
Genética, assim como a Crítica Biográfica, é uma crítica erudita, pois preocupa-se com os
textos inéditos, com as correspondências dos autores e com a história da obra em si mesma.
Mas, de qualquer forma, a essência de toda crítica é sempre a explicação das obras e um
convite à sua leitura.
Muitos métodos críticos foram se desenvolvendo na tentativa de desvendar o mistério ou a
razão de ser da obra literária. Dentre esses métodos, podem-se citar alguns que acabaram por
ser mais utilizados, tais como: o da crítica psicanalítica, o da crítica temática, o da crítica formal
e o da crítica genética. Os métodos utilizados se entrecruzam, mas fêm sua especificidade
própria.
./ \ pretensa sistematização dos métodos da Crítica Genética, no final do século XX, veio
corresponder, não somente a um aspecto da nossa modernidade, a estética do inconcluso, a teoria
que presume que toda obra literária é inacabada, e a estética da expansão de significados, a obra
aberta apregoada por Umberto Eco, mas também a uma insuficiência dos estudos de genética
textual tradicionais.
Cumpre dizer que essa crítica interessa ao estudioso preocupado, isto é, que se interroga
sobre o trabalho da criação do texto, analisando a aventura intelectual exercida, ou para a
escolha de um texto e não de outros possíveis, ou para detectar as possibilidades de existência
virtual de outro (ou outros textos) não redigido. Sempre se trata, portanto, do estudo de
manuscritos.
(Cf') U Z 1\

! A FILOLOGIA CLÁSSICA

Uma vez que o objeto de estudo é o malluscrito, é COI1\Tlúente clIscorrer sobre o tratamento dadu
a cle pela filologia clássica, a chamada Crítica Textllal, dIsciplina que Azevedo Filho (1987, p. 15)
considera ser inclusa na Eedótica, pois está voltada "apenas para o estabelecimento crítico de um texto
e não para a totalidade dos problemas que envolvem a técnica e a arte editorial" Segundo seu ponto
de vista, portanto, pode-se deduzir que a Eedótira tem caráter mais abrangente, que envolve todos os
aspectos de uma edição, mesmo aqueles não-linguísticos, tais como: a disposição da parte escrita de
uma página em oposição à margem, os títulos, o uso diferenciado dos caracteres gráficos, o conjunto
das ilustrações, as filigranas etc. A"sim sendo, na Eedót;m poderia caber virtualmente também a Crítica
Genética, se esta não tivesse outros objetivos, embora atuando sobre a mesma matéria.
A Eedôtica tem longa data, como bem observa Spina (1977), que não faz a mesma diferença que
seu colega, mencionado anteriormente. O seu nascimento ocorreu após o apogeu da cultura grega,
quando se iniciou a fase helenística dominada por Alexandre Magno e sentiu-se a necessidade
não só de repensar o passado, mas de exportá-lo. Então, na Biblioteca de Alexandria, entre 322 e
146 a.C., obras foram ordenadas, catalogadas e restauradas, procurando-se sua autenticidade. Os
eruditos da época reviam as obras, comentavam-nas, proviam-nas de sumário, glossário, indicaÇ'Ses
marginais sobre as variantes das palavras, de tábuas explicativas, tudo isso complementado com
digressões biográficas, questões gramaticais e até juízos de valor de natureza estética.
Como surgiu uma cultura de tipo livresco, de tendência literária, houve a necessidade de preparar
textos legíveis, de apurá-los e publicá-los. Foi aí que começaram a ser aplicados os procedimentos
elementares da apuração de texto.
A atividade ecdótica manteve-se atravessando os séculos, embora sem o brilho da fase helenística.
Somente no Renascimento esse brilho ressurgiu, começou-se a trabalhar com o mesmo empenho
existente no momento em que apareceu essa disciplina, sobretudo devido ao nascimento da
Imprensa.
Apenas no século XIX, a Crítica Textual, parte da Ecdótica, foi realmente sistematizada, isto é,
Karl Lachmann (1793-1851) estabeleceu para essa disciplina posições teóricas e metodológicas.
Até os nossos dias, fazem-se edições críticas, às vezes com mais rigor, às vezes com menos, e
o objetivo é sempre oferecer ao estudioso de literatura um texto impresso que corresponda o mais
possível ao original do autor.
Existe uma série de operações, procedimentos e pressupostos que são seguidos pelo crítico
textual:

recensio; eliminatio codicum descriptorum; classificação estemática que é a interpretação e


classificação na tradição manuscrítica e na tradição impressa das variantes de um texto para
a determinação das relações existentes entre vários testemunhos; emendatío; coll5tÍtutío textus,
após, aselectio; apresentação do texto reconstituído; aparato das variantes (AZEVEDO FILHO,
1987, p. 15).

Mas, na verdade, três dessas operações são as fundamentais: reeens;o, que consiste no levantamento
de toda a tradição manuscrita e impressa existente da obra, na eliminação de cópias coincidentes e
cheias de interpolações, inserções deliberadas de elementos que constavam do original, para constatar
os erros comuns, reagrupar o material remanescente em famílias e formar uma árvore genealógica
para descobrir o texto arquétipo; emendatio, que consiste na correção do texto arquétipo para remontar
o original, e originem detere, que remata o processo, reconstruindo a história do texto, através de exame
paleográfico do material subsistente e demais informações fornecidas pelos códices.
É verdade que, quanto mais antigo o texto for, mais apuradas devem ser as técnicas de Ecdótica
a serem utilizadas; num texto moderno as técnicas em geral são mais simplificadas.

288 - T E O R I A LITERÁRIA
--_._- ~ C li I I I , .\ (; I " [ J 1(' ..\

ECDÓTICA CRÍTICA TEXTUAL

InícIO: Antigüidade Clássica Início: século XIX


.

Aspectos gerais Aspectos particulares

SIstematização fle:-.."Ível Sistematl?açâo ríf';1da

Manuscritos e elementos próxl1l1os Somente manUSCritos

Quadro 1. Edição crítica (Filologia clássica).

GÊNESE DA CRÍTICA GENÉTICA

o objeto da Crítica Genética é outro. Não é chegar ao texto único, o mais original, o mais perfeito,
o mais próximo do ânimo autoral, a última vontade do autor, mas sim avaliar a criação do autor, 9s diversos
momentos da criação, o como e o porquê da criação. Por isso os críticos genéticos não falam em variantes
e erros, e sim em rasur~s e consistências, pois as opções do autor revelam momentos diferentes da criação
e iluminam a compreensão da obra como um todo, o passado e o presente deIa_
Os procedimentos da Crítica Textual podem ajudar o crítico genético, pois a matéria sobre a qual
se trabalha é a mesma, o que vai mudar é a maneira como esses dados serão observados. O i/!ferno da
Crítica Textual, aquilo que deve ser jogado fora, colocado para trás, é o paraíso da Crítica Genética, pois
é o material que o crítico vai estudar e de onde vai tirar suas conclusões.
A crítica literária do século XX caracterizou-se por uma investigação constante em conjunto com
outras disciplinas. A crítica literária aliou-se à história, à sociologia, à psicanálise, à linguística, para
explicar o fenômeno literário.
Embora a crítica genética tenha tomado uma forma mais nítida no final do século xx, podemos
constatar que ela teve sua origem no século XIX. Aos poucos, foi-se conhecendo a importância dos
rascunhos, dos manuscritos, das edições sucessivas para a explicação do trabalho literário. A preocupação
em investigar o processo de criação do escritor vem de há muito tempo. Como não lembrar A filosofia
da composição, de Edgar A1lan Poe, texto no qual o autor explica como ele compôs seu poema O como.
Não podemos tampouco nos esquecer dos teóricos como Gustave Lanson, Daniel Mornet e Gustave
Rudler, que estabeleceram princípios nos quais a Crítica Genética não pôde deixar de se apoiar.
Lanson, nos seus Essais de métlwde de crifique ef d'hístoire littéraire, de 1910, expõe todo o trabalho que deve
ter o crítico para buscar todas as informações necessárias sobre o autor e a obra em livrarias, bibliotecas,
catálogos, inventários, relatórios, correspondências particulares, diários íntimos, processos etc., devendo,
em seguida, usar o mesmo procedimento com outras obras do autor e de outros autores, comparar
os elementos afins e ~par as obras que tenham semelhanças, ligando-as às correntes intelectuais e
morais. Ele sustenta, também, que é fundamental observar as obras de qualidade inferior. Para ele, essas
são "Íes opérations princípales d' ou se tire la connaissance exacte e complete -jamais complete en réalité,
mais la moins incomplete possible - d'une oeuvre littéraire" (LANSON, 1965, p. 45).
Lanson realizou edições críticas, e em toda a sua obra ele demonstra a preocupação com o
manuscrito. Jean-Yves Tadié observa que, num artigo de Lanson, Un manuscrit de Paul et Virginie (1908
- Revue du mois), suas análises não são finalistas, isto é, não admite que o último texto seria o melhor e
definitivo (TADIÉ, 1992). Ele verifica isso, também, em outras ocasiões na obra de Lanson.
Rudler (1923 apud TADIÉ, 1992) também foi um precursor da Crítica Genética. Era discípulo
de Lanson, foi professor em Oxford e, em 1923, publicou Techniques de la critique ef de l'histoire
líttéraíre, onde vê a importância de definir a evolução do "mecanismo mental dos escritores".

TIlOMAS BONNICI / LUCIA OSANA ZOLlN (ORGANIZADORES) - 289


iC?() li l A

I
Estabelece a distinção entre crítica externa e interna. A primeira diz respeito aos testemunhos
dos escritos e aos que conviveram com ele, suas cartas. datas, intenções, influências, fontes. A
segunda parte refere-se ao conhecimento dos manuscritos, das rasuras, dos "sentidos constantes"
ou consistências que ajudam a conhecer as tendências conscientes e inconscientes do autor.
Ele acha também que todos os ramos da crítica ajudam a crítica da gênese. Rudler (1923 apud
TADIÉ, 1992) pretende determinar a "fórmula total do escritor". superpondo e comparando
suas fisionomias sentimentais, ideológicas e sensoriais, para depois descobrir os procedimentos
de elaboração e "procedimentos de composição" através da análise e ordenação dos manuscritos.
partindo do detalhe para o todo, indutivamente.
Audiat (1924 apud TADIÉ, 1992) propôs uma tese em La biographie de l'oeuvre littérairl.', na qual
se deveria buscar a ideia geradora de uma obra, partindo do geral para se chegar aos pormenores
Enfim, revela um interesse declarado pela crítica da gênese de uma obra, levanta problemas que
serão reestudados posteriormente. Ele é um dos primeiros críticos literários a ter interesse pela
psicanálise.
I louve outros trabalhos que se interessaram pela gênese das obras: Flaubcrt ct ses projets inédits,
de 1950, de Marie-Jeanne Durry; La ,Renese de la jllll.' Elise, de 1960, de Rubert Ricatte; Le manuscrit de
CO/ltcmplatiol15, de 1956, de Claudine Gothot-Mersch; Nouvelle versioH de A1adamc BOlIary, de 1949; de
Jean Pommier; LI' livre de Mallarmé, de 1957, de Jacques Sherer; L:oeuvre inachevéc de Stendhal, Lucien
Leuwen. Foram, todavia, as publicações das obras de Proust Jean Santeuil, em 1952, e Contre Sainte­
Beuve, em 1954, os mais importantes geradores de polêmicas, fazendo sentir a necessidade de estudar
com mais afinco a Crítica Genética.
Em 1957, houve uma publicação muito importante: o estudo da gênese de La jeune parque, de Paul
Valéry. NadaI (TADIÉ, 1992) estuda 800 páginas dos manuscritos desse poema, tentando "descobrir
os segredos e os mecanismos da criação literária". Considera, entretanto, que tudo que encontrou em
sua pesquisa não se iguala ao poema terminado e publicado pelo autor. Sendo assim, pode-se ver que
ele ainda está preso a uma visão finalista.
Bosi, em um prefácio, menciona a polêmica que suscitou na Itália a crítica das variantes, que tentava
compreender os "padrões de gosto estético que teriam guiado a mão do poeta no labor estilístico das
refacções do léxico, ordem, ritmo" (WILLEMART, 1993, p. 9). Ele cita, também, Benedetto Croce,
que acreditava que as correções do autor num manuscrito não significavam meras revisões formais,
com simples valor estético, mas algo mais, uma reestruturação perceptual do artista, a substituição de
outro matiz afetivo ou cognitivo.
O fato é que com essas e outras polêmicas persistia ainda a ideia de que a versão final é a que devia
ser a mais importante, isto é, o ânimo autoral deveria ser respeitado.

Filologia Clássica Crítica Genética

A Ecdótica-é a Crítica Textual

Os manuscritos Os manuscritos

O texto (o ânimo autoral) O prototexto

O finalismo O inconcluso

A obra fechada A obra aberta

Quadro 2. Os estudos do manuscrito.

290 - T E () R I A LITERÁRIA
-_.._.. ~ C H I TI':.\ ,; L N t T I C .\

Pode-se dizer que a Crítica Genética recebeu o estatuto de disciplina independente em 196~,
quando Louis Hay encabeçou uma equipe de pesquisadores, no Ce1Itre Natiollal de Rechercht's ScimtU,q/lL'S
(CNRS), em Paris, para organizar os manuscritos do poeta alemão Heinrich Heine, que acabavam de ser
..
adquiridos pela Biblioteca Nacional Francesa. A equipe era formada principalmente de germanicistas_
Em seguida, essa equipe associou-se a outras, que se interessaram pelos manuscritos de Proust, Zola,
Valéry e Flaubert. Daí começou-se a ver a problemática geral que havia na Crítica Genética e foi criado
um laboratório específico dentro do CNRS: o ITEM (Institut de Textes et Manuscrits Modernes),
composto atualmente de várias equipes que estudam Aragon, Baudelaire, Nerval, Flaubert, Heine,
Joyce, Proust, Sartre, Valéry, Zola. Há, também, "laboratórios de codicologia moderna, de tratamento
ótico das escrituras, de informática, de manuscrito e linguística e de manuscrito e cultura" (SALLES,
1992).
No Brasil, esse estudo foi introduzido por Willemart, que organizou o primeiro colóquio desse
gênero e incentivou vários pesquisadores a se dedicarem a esse assunto.
Hoje, há no Brasil vários pesquisadores dedicando-se a esse gênero de pesquisa, haja vista os
inúmeros congressos que aqui já ocorreram, e grupos que se dedicam a essa forma de estudo, buscando
princípios básicos comuns.
A Crítica Genética conseguiu seu estatuto de disciplina independente porque tem um propósito
definido, um objeto, um campo demarcado de estudo. Esse propósito é a indagação do nasêimento de
uma obra de arte, como ela foi surgindo, como ocorreu o processo criativo. O texto chamado definitivo,
assegurado pelo ânimo autoral, passa sempre por várias transformações e, ao lado desses manuscritos,
há, também, elementos paralelos que podem ajudar na compreensão do processo criativo: rascunhos,
anotações, bilhetes, documentos relacionados àquela obra e que não foram publicados, mas estiveram
presentes no momento da criação.
O problema é como fazer essa análise, como descobrir o que foi importante ou mais decisivo para
a criação.
Jean Bellemin-NoeI, em 1972, publica Le texte et l'avant-texte. O termo avant-texte, pro to texto,
foi fundamental para a Crítica Genética, pois o objeto dessa crítica é o estudo desse material, isto é,
de tudo o que veio anteriormente ao texto definitivo. No artigo Reproduzir o manuscrito, apresentar 05
rascunhos, estabelecer um prototexto, publicado em dezembro de 1977 na revista Littérature, ele reconhece
a necessidade de uma metodologia para os estudos de Crítica Genética, nota que é preciso designar
precisamente os materiais redacionais anteriores à impressão de uma obra e refletir sobre a prática
desse tipo de análise (BELLEMIN-NOEL, 1993).
Como diz o próprio título do artigo, ele classifica esquematicamente em três tratamentos especiais,
em três instâncias (hipóstases) a análise genética:
1. A reprodução dos manuscritos é o conjunto que antecede à publicação; eles não precisam
n~cessariamente ser escritos à mão, podendo ser datilografados ou gravados em fitas magnéticas.
É preciso garantir a autenticidade do escrito. Essa reprodução converte o manuscrito em objeto
de um culto, algo como que sagrado.
2. Os rascunhos são o testemunho do trabalho do escritor. Através da análise desses rascunhos,
podem-se desvendar os mecanismos da produção. Os planos, o roteiro, as anotações táticas
ou de referência fazem parte do rascunho de uma obra. Fixam o perfil da atividade de criação,
revelam momentos da vida, eventos políticos e socioculturais, fontes, influências. A finalidade
é apreender o que o escritor queria realmente fazer, o significado de um texto aos olhos do
escritor.
3. O prototexto é uma reconstrução, estabelecida pelo crítico, dos antecedentes de um texto. O
crítico delimita seu campo de análise de acordo com sua tomada de posição, de um método
específico.
Bellemin-Noel não acha que seja necessário um tipo de análise especial de Crítica Genética. Ele
estabelece que os

TIWMAS BONNICI I LÚCIA OSANA ZOllN (ORGANIZADORES) - 291


l! L .-\

[... ] pressupostos teóricos de uma leitura de gênese não precisam ser descnvolndos ,lljUl.
uma \TZ que scu fundamento é idêntICo ao das análises do Texto [publIcado 1, c quc SClI
alicerce configurou-se llIstoricamente em relação ao estudo do Texto e não dos dnCuIllcntos
de redação (13ELLEMIN-NOEL. 1993, P 137).

Efetivamente, a natureza da Crítica Genética é interdisciplinar. Não há um instrumental teórico


definido para a análise da gênese de uma obra. Por isso, para a abordagem do material colhido, o
pesquisador necessita escolher um caminho que ele considere adequado e que resolva o seu problema.
Os pesquisadores, em geral, têm usado métodos da semiótica de Peirce, caso de Cecília Almeida
Salles, analisando a obra de Ignácio de Loyola Brandão; a Análise do Discurso, caso de Almuth
Grésillon e Jean-Louis Lebrave, discutindo os modelos linguísticos na gênese dos textos; a Psicanálise,
caso de Philippe Willemart, analisando um conto de Flaubert. Esses são apenas alguns exemplos. as
possibilidades são inúmeras e, como a Crítica Genética é uma ciência nova, está aberta a inúmeras
tentativas, que só poderão enriquecer esse estudo.

GENÉTICA TEXTUAL

É oportuno que se faça a distinção entre esses dois termos, pois eles traduzem significações distintas:
a Genética Textual, que estuda materialmente os manuscritos e os decifra; e a Crítica Genética, que
procura interpretar os resultados dessa decifração. Ambas têm a mesma finalidade, que é reconstruir a
história do nascimento de um texto, tentando encontrar os segredos da fabricação de uma obra.
Biasi (1996) tenta sistematizar uma metodologia que pode ajudar a compreender melhor a análise
genética, primeiramente estabelecendo 4 fases da gênese:

1. A fase pré-redacional
Como o nome indica, é a fase precedente ao trabalho de redação de uma obra e pode ter duas
etapas: a exploratória, onde estão as tentativas, as colheitas de materiais que variam de importância
de acordo com cada obra e cada autor. Nessa fase, incluem-se os recortes de jornais, de revistas,
os objetos pessoais, as fotografias, as cartas, os mapas, os guias de viagem etc. São elementos
recolhidos pelo autor para montar seu projeto. A segunda etapa é aJasc de dccisão, aquela na qual
o autor decide quais são os elementos que vai utilizar e os ordena. São as listas de palavras,
títulos, planos, notas de pesquisa, uma provisão para a futura redação.
2. A fase redacional
É a fase de execução do projeto recolhido anteriormente; são os rascunlws da obra. Pode-se dizer
que é uma exigência fundamental das informações; o autor compõe uma atmoifera global, mas
pouco específica. Se for o caso de uma obra narrativa, ele vai escrever sobre a época em que se
passa, em que lugar vai ocorrer, traços psicológicos de personagens. Depend~ndo do autor, há
casos em que esses textos (fólios) são escritos e reescritos inúmeras vezes. Encontram-se até 20
versões ou mais de uma mesma passagem, tanto em prosa como em poesia.
Nessa fase, comparando-se as versões, vai-se vendo como o futuro texto emerge do caos dos
rascü'nhos. As rasuras e os acréscimos encaminham o analista a detectar uma espécie de pré­
texto definitivo.
3. A fase pré-editorial
É o último estado autógrafo do prototexto, um estado quase final da obra, sobre a qual alguns
arrependimentos podem ainda aparecer, mas que dão a imagem do modelo sobre o qual será
reproduzida a versão impressa.
A partir do século XIX, os escritores começaram a pegar o hábito de proteger esse
documento, solicitando a transcrição caligrafada por um profissional, assim como,
no século xx, a transcrição datilografada desse texto. Aí surgem arontecimentos genéticos

292 ~ T E o R I A L I TERÁ R I A
\ " I " I t .\

interessantes, pois, ao copiar mecanicamente os llLllluScritos definitivos, () copista introdul


quase inevitavelmcnte erros de /eitllra que o autor poderá ver e corrign, não pcrcelwr ou
permitir a mudança,
As provas fornecidas pelo impressor e corrigidas pelo Juto! pertencem J última L1Sl' do
prototexto. É o momento em que o autor julga-o como ddinitivo. A pclrtir daí. sai-se do esp:lço
genético do prototextn para se entrar na história do texto.
4. A fàse editorial
No momento em o autor Julga o texto pronto e perIllltl' a pllhllCl~ão da prillleira ('di(,/(,.
tem-se, então, o [('xto da obra, mas não necessariamente o último estado du texto da obra.
O autor podcr:í modificá-lo em outras edições. Essas modificações pertencem à ;-írea dos
estudos genéticos, mas distinguem-se dos ('s[ados de redação que se podem observar nas
três primeiras fases em que o [ex to ainda não existia. O obJ<:'tivo primordial da análise
genética é o prototexto, ainda que o [exlo seja In'ado em consideraçJo cemo ponto de
referência.

A ANÁLISE DOS MANUSCRITOS

Cada fase de elaboração do prototexto constitui uma etapa cronológICa da gênese de uma obra.
Através dos indícios apresentados em cada fase será possível detectar as escolhas do autor, interpretar
o conjunto do processo de criação e buscar uma significação para cada uma dessas escolhas que ele fez
para criar o seu texto e dar forma à sua obra.

o e stabelecimento dos documentos


o crítico deve fazer um íl1\Tntário do conjunto de peças relacion;ld.1~ à obra que o a\1tor
usa para inventar o seu texto. Esse trabalho pode demorar anos de Pl'squisas e negociações el11
bibliotecas, museus e coleções particulares. Deverá, também, submetCl l'S5;lS obras a U111 controle
de autenticidade.

Especificação das peças

Essa operação consiste em separar cada documento em sua fase de realização (pré-redacionaL
redacional, pré-editorial, editorial).

Classificação genética

Essa operação baseia-se na classificação dos documentos encontrados situando num eixo
paradigmático de similaridade as características encontradas nos esboços e rascunhos já separados em
suas respectivas fases, procurando dar uma sequência sÍlltaglllática cronológica para esses documentos.
Isso pode revelar uma imagem do que era a obra inteira em cada uma das etapas da sua gênese.

Decifração e transcrição

A classificação genética não pode ser conduzida sem uma decifração integral dos documentos
É a decifração dos fólios que permite a classificação e a transcriçJo deles. Para isso, é necessário IIIll
rigor obsessivo ao transcrever as ras/lras (fragmentos de textos, frases, expressões riscadas pelo autor),
os acréscimos (fragmentos de textos, expressões adicionadas pelo autor), as manchas ou traços nas
entrelinhas, anotações.

Tllll\1_\" R,'''-''_I. I / r I { r
Técnicas de perícia científica

Muitas \'Czes, podell1-~c \lsar recursps t'~~)Ccíficos d;)~ ciências exatas, como numa ill\Tstigação
policiaL que fórnecem materiais adequados para informações indispensá\'eis:

A codicologia

É a ciência dos suportes materiais da escrita: a composição química de uma tinta, a presença no
papel utilizado pelo autor de um tipo especial de filigrana. sua espessura, sua cor. sua dimensão. O
papel e a tinta podem se tornar índices preciosos para a classificação de documentos problem;iticos,
revelando a data em que o documento fói escrito.

A análise ótica: a técnica laser

Esse dispositivo permite a detecção d:! autenticidade de um documento, se ele fói escrito do
COl1leço ao fim pela mesma pessoa, se fi.li escrito de maneira contínua ou descontínua.

A análise informática

Já existem programas de infórlll;ítica q\le Sl'rn'l11 para a realização de ediç(jes alltoll1átimsde manuscritos
e os primeiros diáo/lários de SlIbstitllif(lO, lj\le ;~i\ldam na análise de (O/PIlS de longa extensão.

A ABORDAGEM PSICANALÍTICA

É muito importante a ahordagelll psicanalítica de Wilkmart (1993). Ele expõe aí um panorama da


crítica genética, dá como exemplo uma análise genética psicanalítica e sugere que a Crítica Genética
pode também abranger as Ciências Exatas.
Na introdução, Willcmart (1993) retoma a imagem romântica do mistério da inspiração, que tem,
embora remotamente, certa relação COIll a Crítica Genética. Faz um quadro geral, começa verificando
que existem dois momentos dialéticos da criação: o primeiro, das anotações sem critério aparente
por parte do escritor; o segundo, quando "o escritor deixa a iniciativa à instância narrativa e torna-se
instrumento de sua cultura e de sua escritura" (p. 16). Ele faz um histórico da preocupação com o
prototexto e a relação existente entre a Crítica Textual e a Crítica Genética e, em seguida, reforça a
importância da guarda. do tratamento a ser dado ao manuscrito: o estudo técnico da tinta, do papel,
da caligrafia, a' data da composição, a decifração da escritura escondida atrás das rasuras, manchas
e rabiscos e, finalmente, a classitlcação dos fólios, a ordem, pois cada autor, cada. escritor, tem sua
maneira própria de rascunhar.
Estando o manuscrito legível e em ordem, o crítico pode entrar no jogo da escritura, que é preciso
ser entendiélo /iteralme/lte em todos os semídos, como dizia Rimbaud. A linguagem e a cultura se impõem
através da escritura e codirigem a organização do texto. O estudo do prototexto limita a interpretação.
mas evita a projeção do crítico, que dificilmente poderá confundir o seu inconsciente, seus valores ou
sua ideologia com o autor.
Toda teoria propõe a busca de uma verdade ou de uma lógica. O crítico genético deve procurar
uma lógica no prototexto, e isso independe de um padrão teórico estabelecido por uma escola
determinada.
O prototexto propicia uma visão nítida entre o discurso poético e o discurso comum, o que provoca
esse distanciamento entre os dois discursos, o despojamento progressivo do escritor, ou melhor, do

294 - T E o R I A LITEHÁHIA
(, !< i j i ~ \ ", i :< I i I ( .-\

srripfor a seryi~'o de uma instância poética ou narrativa (a asct'se). Nem todos os autores ~lt1l1gCI11 um
grau elcyadu de ascese. mas a escritura de algulIl;} fórma tende a dominar a todos.
Segundo a psicanál ise. o distanciamento do eu, exigido pelo processo poético. \'lsí\c I no prototl\:tU.
..
decorre de uma atitude mais abrangente do artista com relaç:io J linguagem. É \lllla puls:io de murte
uma tendência permanente inconsciente que dirige e incita a atividade, um distanciamento da
linguagem social. dos pontos de rdi..'rência habituais (dicionário, sintne). da relação entH' ,igniflcldo
e significante.
\V'ilklllart (1993) tenta criar uma teoria da gênese da escntura baseand()-se na decifr.l<',;'lu.
classificaçJo e análise de 106 fólios do 1° capítulo do conto Hcrodias, de Gmtave Flaubert.
Primeiramente ele parte do conceito de JedIl Bellemin-Noel de inconSCIente do texto pard
elaborar o inconsciente genético ou da gênese e, por conseguinte, verificar as relaçües entre a
rasura e a consistência e, em seguida, o significado do primeiro texto. Posteriormente. estuda as
espécies de tempo que regem a escritura. o tempo da puls:io e o tempo do desejo. Finalmente.
tenta ,üdstar-se da separaçáo epistemológica. estabelecida por Kant, entre Ciências HUll1alL1S c
Ciênci,ls E\:;1tas, relacionando os fenômenos imprevistos que surgem na lllatelll;ltica e na física

o inconsciente do texto
Com o termo texranal)'se, Jean Bellemin-Noe\ (1983) evoca a hipótese do inconsciente do texto,
que é o desejo do escritor. Ocorre que o escritor é uma séne de desejos escalonados sobre v,ín:ts
gerações e o fruto de um momcnto cultural preciso. A língua. que c1e utiliza, o domina e o submete,
fórça acomodações, obriga-o a deslocar elementos, tanto em nível do sintagma quanto do paradigma.
Importante seria [llar do desejo do narrador, pois assim podemos diferenciar o desejo singular dos
desejos múltiplos, o que nos permite qucstionar o porquê da riqueza e da variedade de uma escritura.
O desejo do narrador seria o inconsciente do texto somado ao desejo; envolveria a sociedade, o passado
e o próprio desejo.
Através das análises do prototexto, o crítico pode ter a oportunidade de encontrar o que o clínico
Ch;lIl1a de sintomas. que são situaçôes cercadas de angústia, obsessão, i1usáo. alucinação.
A observaçáo dos atos falhos também ajuda na busca dos sintomas. O importante na textanálise
I1áo é chegar a um dos fantasmas do autor, mas descrever o percurso desse fantasma no texto, discernir
os remanejamentos de escritura que ele provoca e observar COlllO uma fórmub indizível conseg\liu
caminhar até o texto publicado.

o inconsciente genético ou da gênese

Tudo o que foi transcrito em um caderno ou em um manuscrito, visando a uma narrativa


determinada, fica na memória da escritura. O inconsciente genético é o esquecimento, ou rejeiç:io.
do passado do manuscrito. Para perceber o inconsciente genético é preciso ver a interligação entre
os fólios, isto é, como os fólios se interpenetranL Através das análises do prototexto de Herodias, de
Flaubert, Willemart (1993) verifica como o narrador opera uma seleção e submete-se progressivamente
ao desejo presente na escritura a partir de possibilidades armazenadas na cultura de seu tempo.
Reconhece-se que existe um saber resultante da escritura, como salienta Foucault: o delírio resulta
de um saber preciso, que,

apesar dos dados colhidos por ela, o escritor-protonarrador se olha, se enuncia, se d17, sonha,
entra no intertexto, cata aqui e acolá os significantes que lhe II1teressam e, sem sabê-lo, isto
é, inconscientemente, deixa-se levar na corrida louca dos documentos, levado, mas também
guiado, por uma lei que pode ser da l1lStória. de uma língua antiga, da composição ou d0
enredo da narrativa. É a pulsáo do escritor (WILLEMART, 1993. p. (2).

Por isso tudo, ele insiste que, para se procurar o inconsciente genético, n:io se pode deixar de levar
em consideração o prototexto mais o texto publicado.
l /\

A rasura e a consistência

Nos anos 1960, a crítica tl'StL~JOU a mortl' do ,llltur: nLlÍs 1I11l'urUl1tes sni,11l1 .ts l,lte~(1ri.ts
resultantes da narratologia do texto. () autor é tcllllhéIl1 leitor. e Il:io 'l[Knas o sUjeito de! CllllIlCi,lÇ,-IO
ou do enunciado: portanto, ncsscl relação de autor/leitor illsinlla-'c UIll Terceiro L)ll o Outro, quc
pode ser a tradição II terá ria ou histórica. () inconscien te do autor ou ou tros t~ltorcs que cXCl'delll
o autor.
Em outras pabvras, a cada leitura que Cu (1 autor. (l Outro se insere. e Ccllb L1SULl feiu lwlo
scriptor pro\'(Ka uma consistêJl(Ll lHl\cl, onde fica IlLlrcad:! a inslstélllLI desse Outm. ljllL des\Ll ,I
intenção primeir:! do autor. No elltanto, :1 \'(mudl' de ull1sistência SClllplT permdnllT 1l1,Il1tÍCSLl nos
comentários do autor.
Em suma, a passagem ininterrupLl do autor/leitor p:nJ () autor/scnptor prO\'lKa 110 eSCrItor
uma depressão, uma insegurança, uma incerteza diante do desconhecido c. quando ele supeLI essa
depressão, essa "série de lutos". e n:io tem mais díl\·idas. ele é hbcrudo l e!ltra !l,j subIJllIJ\,lO. Por ISSU
que essa série de sItuações por que passa o escritor pode ser chamad,] de \1111 período .Iscético

o primeiro texto
O desejo inconsciente do narrador c o incollsciente do texto separam Cltcgorlcamcntl' a inst;ll;cLI
do escritor da instância do autor.
o
escritor é, ao n1esmo tl'mpo. dependente c autônomo de sCl1 111t"llllScicl1te e (k SIU cultura.
porque cria lima nova cultura, uma nova memória na escritura.
O autor/scriptor maIs o autor/leitor s:io coagidos a dar uma nova consistência dO seu texto. dn'ldo
à pulsão e ao desejo de escrever. A pulsão de escrever é o moyimento repetitivo, que tallto FremI como
Lacan sustentam partir de uma zona erógcna: l' () desejo de escrenT dependc' da atLllJO c da tens:io
provocada pelo primeiro texto "i nspiLldo". N dO hJ 11111,1 scmelhallçJ CIl tIl' esse prime iro t,:\tu e () texto
puhlicado, mas há uma relação de silltomas entre des.

o manuscrito e as Ciências Exatas


Tudo o que antes era visto cOJJ]O sistclllil e se compreendia COl1l0 posslllndo uma cstrut\1LI. IHlJL'
se vê como clementos desintegradus. lima 1'111I'llldildc ,J/JtT(11 q/lC [J!iril L1 li/L)S. Uma \TI que a CrítiCl
Genética tem de lIdar com ditát'ntes lI1stâncias qm' regem a produ<"lL) cio texto. ela 11,1() p\)lk deixar
de levar em consideração essa dcsintegração
Willemart (1993) tenta aproximar os procedimentos da Crítica Genética à Teoria das Cat;.ístrofl's.
elaborada pelo matemático René Thom, e à Teoria das Estruturas Dissipativas. desenvolvida pelo
físico I1ya Prigogine. Essas teorias realçam a importlnCIa do aleatório. do acaso, pois Tho111 pron que
"há uma catástrofe quando se ohseT\'a uma derinção súbita de dados em uma direção desconhecida".
c:
e Prigogine atesta que não se pode falar de "trajetória no sentido que se pode prever ponto de queda"
(WILLEMART, 1993, p. 126). Há uma semelhança com a análise genética, mas também há diferença.
pois o que nas Ciências Exatas só se pode atribuir ao acaso, na Crítica Genética pode-se atribuir ao
scriptor. De qualquer forma, fica sugerida uma aproximação que poderá ser útil a ambos os campos de
pesquisa.

PERSPECTNAS DA CRÍTICA GENÉTICA

o
que dev~ ser evitado na Crítica Gcnética é o(inlilismo. É bem verdade que existe a necessidade
de uma estruturação do campo de estudos genéticos. A classificação e a transcrição dos fólios implicam

296 - T [ () R J A L J T E J( Á R J A
: ( \ .. ; I "- 1 I I (

uma \·is.1tl finalIsta do prototexto, como se cicia etap,l representasse um caminho para o c;t.ígIO 1111,11
que seria o 11'.\:10. No el1t'll1to. essa representaç.lo crolJológlCol, esse procedimento, 11.10 t~ o ohjcti\'o da
Críticl Cenética. Esse mergulho 110 p:lssado do texto \·is;\ il1tmeluZlr () crítICO num unin'rso lll()\ll
..
omk l1ad.l é dcfinitin). O que \"ai interessar é o não-dito, o qU:1Sl' dito, o desintegrado, o imprn·lsÍ\cl.
a multIplicidade de compol1el1tes. ;1S nozes contraditórios e rcpletus de d'\Trgências, que se ChOUlll:
el1fllll. a exploração de uma IC/Til Í/lCcÍ;;/Úlil. Por exemplo, os rascunhos dt' um rOIl1anCe podem COllt\."l
IlJÚIllCLh II1trigas e c!cst<xlw" clIflTel1tc", .1té incompatÍw'is. em q11e (l c!cstlJ10 das persollagcll". (\
sel1tl<.1(\ d.l narrativa, a atmostcr:l, possalll conhecer mctamortl)SeS c!inTsas, que re\Tlam () que () Sl'I
JIlteiro escreve - e tudo o quc ele n.lo escreve. Por isso, os pressuposto:;; d;l Crítica Genética ,',CIO
próximos dos da psican:1lise e da teoria da descoIlStruç:lo.
Se, por um lado, a Crítica Genética usa outros métodos, tais como o da Poética, da IJIlguÍstica. da
Crítica Sociológica c amda outros, o seu foco de interesse é específico, seu objetinl é o processo de
criação e a dlll:1mica da escritura. Entlm, ela é uma pesquisa sobre os sfcí;redos dffabrimção de uma obLl.
Ao contrário de isolar elementos específicos metodológicos, a função da Crítica Genética é re\lI1lr
várias inst:1ncias analíticas que expliquem as ll1utaçóes durante o processo de criação liter:íri:L
Scm dúvida, é Ullla abord:1L';cm nova que está sob a mira de interroL';açóes, exigindo conceituaç(lcs
I )i;) a dia, entretanto, esse tipO de abordagem de crítica literária VCI1l rccebendo colaboLlçóc\ de
pcsq u isadorcs, revela ndo descobertas i11 C-di tas.

REFERÊNCIAS

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WILLEMART r Ul1il'ClSO da rriaçãoliterária. São Paulo: Edusp. 1<)9:1.
.'
..

PAPTE IV
. . " ,

.• PJÓ s - m O d e r n i s m o

. .)

. literatura
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~

POS-MODERNISMO

Giséle Manganelli Fernandes


Bu! he(llrc CI'(r )'t/1/1I,1(, l!It'l't' ',i lOfl,1Z!lII,,<!(

1.\LlS, dl/leI de tlldo, há a fill,gllügCIII /


1)011 Dt'Lill"

(C''1I1'(/,',dll''''' lI'irl, no" DcI.cil/o, :!()(}5)

Definir Pós-Modernismo traz em seu bOJo uma dificuldade extra: o fato de suas manifestações
serem recentes e ainda estarem acontecendo no presente momento, além de revelarem grande
pluralidade de formas e conteúdos. Os debates acerca do Pós-Modernismo são bastante instigantes
porque provém de linhas teóricas que até contrastam entre si, mas este fato somente aumenta as
possibilidades de engrandecer as pesquisas e as diversas formas de abordar o mundo e a arte produzida
neste novo contexto.
Primeiramente, cabe-nos mostrar que há uma diferenciação relatin aos termos Pós-Moderno.
Pós-Modernidade e Pós-Modernismo, pois estas noções são importantes para o nosso trabalho. Para
tanto, tomaremos os conceitos formulados por Terry Eagleton:

A palavra PÔ5-lIIor!cmislllo geralmente refere-se J ulTla fÓflna de cultura contemporânea.


enquanto que o termo pÓ5-/IIodemidade alude a um período lllstórico específico. Pós·,
modernidade é um estIlo de pensamento que duvida das noções clássicas de verdade. razão,
Identidade e objetividade. da ideia de progresso e emancipação universais, de estruturas únicas,
grandes narrativas ou fundamentos definitivos de explicação. [ .. ,1 Pós-modernismo é um
estilo de cultura que reflete alguma coisa dessa mudança de uma época, numa arte pluralista,
superficial, descentralizada, infundada, autoreflexiva, divertida, derivativa, eclética, que torna
indistintas as fronteiras entre cultura 'alta'e 'popular', bem como entre arte e experiência
cotidiana (1997, p, vii)l

Podemos, assim, verificar que o termo Pós-Modernismo está relacionado às artes, enquanto que
Pós-Modernidade tem conexão com o modo de viver e de pensar. O termo Pós-Moderno engloba pós­
modernismo e pós-modernidade.
A fim de estabelecer quando o Pós-Modernismo teve início, utilizaremos as explanações de Perry
Anderson:

a ideia de um 'pós-modernismo' surgiu primeiro no mundo interno hIspânico dos anos


trinta, uma genção antes de seu aparecimento na Inglaterra ou na América. Federico de Onís.
um amigo de Unamuno e Ortega, foi quem lançou o termo pó5-tI1odemislllo. Ele utilizou-o

Algumas citações apresentadas neste texto f()ram publicadas anteriormente em Femandes (2005).
I{Ni\NIlE\

para dcscrCHT Illll ret1uxo ((lnSlT\·'ador de11tro do pníprtn lIlodernislllo: aquele que prOCIILI\';1
refúgIo de scu tOrIIlld;ívcl desafio línco nUlIl pntl-lclUlllJnH1 mudu de det.1lhe l' hlllll\l!
irônico, cuy caractcrísticl mais origll1al cr;l :1 110\';1 ,IlJU'lltICl c~prcss:l() cOllcl'ej,cll .ís lllltlhcrn
(19'H p, 3-4),

Anderson ainda aponta que "a verdadeira mudança ocorreu com °


aparecimento, no
outono de ] 972, em Binghamton, de um periódico com o subtítulo expressivo de jOllma/ 01
Postlllodcm Litcratllrc Illld CII/tllrc---the review bOlll1dar)' 2" (1999, P 15), Em 1971. Ihab Hassan
havia escrito Thc DislIlclllbcrlllcllt c2fOrphells: 7(Jluards a Postmodem Litcratllrc e tambcÇm colaborava
com a bOlllular)' 2, Ainda acerca da periodização do Pós-Modernismo, o crítiCO marxista Fredric
Jameson declara:

Cabe-me agora dizer uma palavra sobre o uso adl'quddo desse CLJncClto: ele não é apenas
mais um termo para descrcver um estilo específico t. t:ll11b,'m, pelo menos tal como
° emprego, um conceito penodizante, cuja funç~o é correlacionar a emergênCIa de
IlOVOS aspectos formais da cultULl com a C'lllergêncla de nO\'os a'pectus formais da

cultura com a emergênCIa de um novo tipo de VIda SOCial e com lIma nova ordelll
econômic;l~ aquilo que muitas vezes se ch;ulla, clIfemisticJlllcnte, dc lllodcrniza~,lo,
sociedade pós-industrial ou de consumo, sociedade da mídia uu dos espetáculos, Ou
capItalismo lllultinacion;d, Esse novo momento do capIt;dismo pode ter sua dataçJ~) no
surto de crescimento do pós-guerra nos Estados UnIdos, no fim da década de 1940 c
início dos anos cinquenta, ou, na Fr:ll1ça na fundaç:lo da V RepúblIu, em 195H, Os ,lIlOS
sessenta são, sob llluitos aspectos, o período transicional fundamental, um período em
que a nova ordem internacional (o neocolonulisl1lo, a Hcvolllção Verde, a computação
c1etrôl1lca c a informática) foi, ao mesmo tempo, instalad,l c assolada ou abalada pur
suas próprias contradições illternas e pela resistênCIa externa (In: KAPLAN, 199.1, P
27),

Para Jameson, O pós-modernismo é também marcado pela erosão "da fronteira entre a alta
cultura e a chamada cultura comercial ou de massa" (1998, p, 2), Assim, podemos analisar
o período pós-moderno sob perspectivas artísticas, econômicas e sociais, Na atualidade,
vivemos sob o domínio do chamado "capitalismo tardio", título da obra de Ernest MandeI
[Der Spã·tKapitalisfflus]. Jameson utiliza-se desta teorização de MandeI para apontar que estamos
vivendo um momento do capitalismo multinacional, transnacional. Em consequência, os
mercados mais volúveis estão em desvantagem, e as grandes corporações têm mais poder que
os Estados nacionais,
Existe uma explosão de consumo, levando as pessoas a consumirem produtos impulsivamente,
Vivemos também na sociedade de vigilância. Somos controlados por monitores e câmeras por
todos os lugares em que passamos e temos a sensação de que a tecnologia irá nos salvar de todos
os perigos. To.davia, nos Estados Unidos, por exemplo, existe o Weather Chmmel, com previsão
do tempo vinte quatro horas e os desastres climáticos continuam a acontecer. Apenas temos a
ilusão de estarmos no controle pelo fato de dominarmos a tecnologia, mas, na verdade, isto não
ocorre.
Diante, de toda essa nova configuração da sociedade no mundo pós-moderno, as manifestações
artísticas não poderiam deixar de refletir este momento tão diversificado, Há novas experimentações
com a linguagem, os autores empregam técnicas narrativas que rompem com a maneira tradicional
de narrar. Há uma mescla de vozes ("eu", "nós", "ele", "ela"). Muitas vezes temos de reler os diálogos
para conseguirmos entender a quem pertence determinada fala. Os parágrafos podem começar apenas
com o pronome "Ele" e os leitores vão descobrir o nome da personagem várias páginas à frente,
Ocorre também a inserção de fotografias, de letras em itálico, de espaços em branco. A" narrativas têm
um ritmo rápido e não são mais lineares, cronológicas, pois o que vemos hoje é a fugacidade do tempo,
Os parágrafos tendem a ser curtos assim como as sentenças, Muitas vezes, fica para o leitor a impressão
de estar percorrendo um site de maneira veloz e a narrativa nos remete à linguagem cinematográfica
amencana,
""'L~ o l'l'\-\1ClI111'NI'\1')

Ainda a respeito do estilo de narrativa no Pós-Modernismo. Brian McHalc considera que ;J


preocupação epistemológica do romance moderno do início do século cedeu lugar à preocupação
ontológica:

enquanto a ficção de orientação epistemolÓgica (modernismo. fIcção polICiaI) est<í preocupad,l


com questões tais COI11O: o que há para se conhecer sobre o mundo? Quem s,lbe isso. e quão
e
confiável Como é transmitido o conhecimento. para quem. e quão contií\'cl etc .. ,1 tlcÇ,lt1 e
de orientação ontolÓgica (pós-modcrnismo. ficção científica) est;í preocupada com questões
tais como: o que é um mundo? Como um mundo é constituído; I Lí nllmdos alternatl\'os
e, se há. como eles são constituídos; Como mundos dIferentes e tipos diferentes de mundo
diferem. e o que acontece quando alguém pass,l de um lllundo para outro; etc (Mel IALE.
1992, p. 247).

A diversidade de escolhas estéticas impede-nos de apresentar uma estetlca pós-moderna


definitiva, pois as experimentações com a linguagem têm sido uma das características marcantes
deste período. Notamos a ocorrência de letras maiúsculas, itálico, trechos que parecem tirados de
telegramas, frases curtas, espaços em branco, parágrafos de tamanhos diversificados, entre outras
formas de escrita. A respeito dessa diversidade presente na literatura Pós-Moderna, Brian McHalc
assinala que:

Os críticos sempre descreveram a escrita pós-modernista como dcsWIl tíll lia , mas nem
sempre reconheceram a conexão entre esta descontinuidade semântica c narrativa e
seu "correlativo objetivo" físico, o espaçamellto do texto. Os textos pós-modernistas são
tipicamente espaçados, literal e fIgurativamente. Capítulos extremamente curtos, ou
parágrafos curtos separados por largas faixas de espaço em branco tornaram-se a norma
(McHALE, 1994, p. 181-182).

A temática diversificada de pontos que são tratados por escritores considerados pós-modernos
inclui: conspiração, tecnologia, poder da mídia, poder da imagem, televisão, cultura popular.
multiculturalismo, retorno crítico à História, consumismo, sociedade de vigilância, tragédia nuclear,
poder do capital, terrorismo, paranoia, religião, morte. A intertextualidade é uma característica
essencial do Pós-Modernismo, pois textos já produzidos surgem em outros textos, mas em um novo
contexto.
Além de todos esses aspectos, o pastiche e paródia também estão presentes na arte pós-moderna.
Segundo ]ameson, o pastiche está na imitação de "estilos mortos" e isto poderia ser visto nos "filmes
de nostalgia", como Guerra nas Estrelas. No Pós-Modernismo convivem estilos novos e antigos
misturados, com outras formas de apresentação.
Por sua vez,]ean-François Lyotard, em sua obra The Postmodern CO/ldition [A condição pós-moderna],
define o,Pós-moderno como "incredulidade em relação às metanarrativas" e aponta para o fato de a
função narrativa estar perdendo "seu grande herói, seus grandes perigos, suas grandes viagens, seu
grande objetivo", e acrescenta que "não estabelecemos combinações de linguagem estáveis" (1984,
p. Xxiv). Partindo do conceito de Wittgenstein, Lyotard assevera que "Há muitos jogos de linguagem
diferentes" (1984, p. xxiv). Assim, para o filósofo, as grandes narrativas totalizadoras não têm mais a
mesma credibilidade. Neste sentido, Harvey afirma que "as verdades universais, se é que existem, não
podem ser especificadas" (1989, p. 45). Portanto, não temos mais as narrativas fechadas, de sentido
completo.
Esta noção é corroborada por Silviano Santiago, em cujo ensaio "O narrador pós-moderno" lemos
que "as narrativas hoje são, por definição, quebradas. Sempre a recomeçar" (2002, p. 54). Neste seu
texto, a partir de contos de Edilberto Coutinho, Silviano discute o narrador pós-moderno, realizando
as seguintes considerações:

Tento uma primeira hipótese de trabalho: o narrador pós-moderno é aquele que quer e:\1:rair a
si a da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele narra a

TIIO\-\:''''' B().~Nl{"1 / Lli( 1J\. O\ANJ\. ZOIIN (nJ((;,J\NIZA])()Hf-\) - 303


~
( F:) J. J( '" ." N I) J \
(
;IÇ:!Uenquanto espetáculo a que assiste (htlTl11l1entc ou não) da plateia. da arqt11banC1Cb (lU ele
uma poltrona na sala de sur ou na bibliotl'Cl: ele não narra enquanto atuante. [ ... J 1ellto UIlLl
segund,l 11lpótcse de trabalhu: () lJ;Jrr,ldor pós-moderno é () que transn1!lC UIILI "sabedorIa"
que é decorrênCIa da obser"açãu de lima \'ivêIlCla ,!Ihela ;1 ek, VIsto que a ;l<;,~() que lIarLl não
fOI tecida 11.1 substância \'iva da 'lU e~istl·Ilcia. Nesse scntldo. de é o puro IlcC!o!l!st.l. pOIS tem
de dar "autentlCldade" a uma ação que, por nJO ter o respaldo da \'I\·ênCla. l:'stana dcsprm'Id.l
de autenticidade. Esta ad\'('m da vcrossllllilhaIlça. que é prodmo d;l lógica interna do rehw
O narrador pós-moderno s;lbe que o "rcal" e o "autêntico" <10 cOllStruçôes da lingu.!gelll
(2002. p. ~3-~6).

Assim, \TmOS que o narrador pós-moderno não tem 11l11d só maneir3 de se apresentar nas narrativas
e as vozes misturam-se constantemente; por conseguinte, o leitor tem uma maior participação na
construção do texto, que agora é fragmentado, e tem múltiplas possibilidades de análise.
Diante desta incredulidade em relação as narrativas totalizadoras, fechadas, concluídas, o Pós­
Modernismo, segundo Harvey, aceita totalmente
.

o efêlllcro. a fragmentação, a desccllltlIluidadc. e o caótICO que formou a lllcude do conceIto


de moderllldade de Baudelalre. Porém, o Pós-I110derIllSlllo responde a este tato de um modo
muito particulaL Ele não tenta transcender. opor-se ou até dcfllllr os elementos 'cterIJos c
lllluláveis' que podcm nele existi L O Pós-IIlodernismo nada, até deita de fórllla rCbXlld;l.
nas correntes fragmentárias e caóticas de mudança se é isto tudo o que se apresenta (1 'Jíl'J. p.
44).

Harvey mostra que Derrida considera a "colagem/rnontagem como a forma básica do discurso pós­
moderno". Para Harvey, ao considerarmos que o produtor c o consumidor de textos (aqui entendidos
de forma geral) têm poder para construir significados

cria-se;! oportunidade para partIcipa<;'ão popular, c a determinação delll()cr~tlcl de valores


culturaiS, mas às expensas de uma certa lIlcoerência ou UllU mais problemática vulncrabilidade
para a manipulação do mercado de massa. De (jILllqucr maneira que possa ;l('onteceL ()
produtor cultural meramcnte cria materiaiS crus (fragmentos c e!cI1lC'ntos). dei~and()-()s
abertos para que os consumidores os recombincm do modo que desejarem. O efeito é quebar
(desconstruir) o poder do autor de impor significados ou de oferecer uma narratin colltínuJ
(1989, p. 51).

Podemos concluir que não há mais uma úmCl maneira para se ler os textos, há sempre uma
recombinação, uma reavaliação de formas conteúdos. Dessa forma, vemos quc o Pós-modernismo
não tem uma definição única, que pode ser aplicada em todos os casos. Precisamos de novos e vários
instrumentos de análise para estas diversificadas possibilidades artísticas e também para a "nova ordem
mundial", em que as incertezas preponderam e o poder do capital determina todos os tipos de relações,
inclusive a da produção de conhecimento.
No momento em que as certezas ruíram, a Literatura apresenta o questionamento sobre o conceito
de "verdade" e, segundo a teórica Linda H utcheon, o que temos hoje são "verdades''', no plural (1988.
p. 109). A teórica afirma ainda que as escritas ficcionais não estão mais fechadas ("totalizadas") e sim
abertas a vár~as interpretações, como já afirmamos anteriormente.
U ma das possibilidades oferecidas pela ficção pós-moderna é a reavaliação da História, mas
não de um modo ingênuo, e sim de maneira crítica. O conceito de "metaficção historiográfica"
de Hutcheon refere-se às ficções que se baseiam em fatos históricos, mas em que há uma
reavaliação do passado, apresentando múltiplas perspectivas para a análise da História de
um país, já que a História oficial também é um discurso e, como tal, pode ser interpretado e
reinterpretado.
Hutcheon encontra alicerce para estas suas considerações na obra do historiador Hayden White.
que expõe o fato de os historiadores utilizarem-se das técnicas dos ficcionistas para escrever seus textos.
Ora, os historiadores têm um determinado ba[~í!rollnd, fazem seleção de seu material e, portanto, seus

304 - T E o R I A LITERÁRIA
\)\··\1l),~ F~l

discursos podem ser reJyaludos com tlTqiiência Segundo WhItl', tanto ,I I listória quanto a ti",,!n SJ<l
formas discursivas e, portanto, sujeitas à várias interprcuçúes. Para () teórico "a história Ilão é menu,
uma forma de ficção do que o romance é uma tCmm de rcprcselltação histórIca" (19<)..1-, p. U7- L1ü).
Hutcheon ainda nos mostra que conhecemos o pa,sadn "pelos seus discursos, pelos seus
textos--isto é, pelos traços dos eventos históricos: os materiais de arquivo, os documento,.
as narrativas de testemunhas ... e os historiadores" (1993, P 36). OS ,HJ tores de ficção P,)s ..
moderna incluem documentus históricos em scus textos para denuncLH a ILnLltl\'izaç;1o (kste,
documentos.
Autores americanos como, por exemplo, DOI1 DeLillo, Tim (),Bnen, Tcmi Morrison.
Jonathan Safran Foer escreveram rornal1ces COI11 reavaliJçóes da IIistória. Don DeLillo, em
seu romance Libra, publiCldo em 1988, ficcIOll,lI iza a \·ida de Lel' I Lnvey OS\\'ald, o suposto
assassino de Kennedy. O autor rejeita a idela de 11m atirador solidrio e apresenta uma teoru
de conspiração que pretendia apenas assustar o Presidente, n1.ls acabou fugindo do controle.
resultando na morte de Kennedy.
Libra (1991) não é uma obra sobre a vida de Kennedy, mas de Oswaldo A grande pergunta que norteLl
o livro é "Quem foi Oswald?" Ao escolher um anti-herói como personagem principaL Don DeLdlo
mostra-se um escritor que busca a renovação, a trallsgressão. Seu estilo denota o inconformismo com
a História contada somente pelo ângulo dos vencedores. Ele contesta. incomoda, denuncia a outra
América, não a dos heróis, mas a marginal. A crítica social é um problema crucial em Libnl. Oswald é
um produto americano tanto quanto Kennedy. DeLillo n;10 conta a história acerca do presidente, ma,
sim de seu suposto assassino. DeLillo 11;10 confirma a História: sua ótica a dcs-sacraliza, dcs-estrutura,
dcs-articula, dcs-faz. A participação detiva de Os\vald no assassinato de KenIlcdy cOIltinuara a ser
uma incógnita e hipóteses sempre emergirão na tentativa de decitlar este episódio tráglcu da IIistória
amencana.
Em U/ldcrIl'orld (1997), () autor trabalha COlll 5() anos de I listória americana, notadamente C011l
o período da Guerra Fria, que e causava apreensão em todo o globo, pois, a qualquer momento,
outra guerra mundial poderia ocorrer. A Guerra Fria SlT\'iu paLl as duas potências manterem-se nu
domínio dos blocos que lideravam, mando e abusando do poder. A obra UlldClll,,'rld tem lIlício no
dia três de outubro de 1951, quando ocorreu a final do campeonato de baseball entre os Dodgcrs
e os Giants, com a vitória dos Giants, e o teste com a bomba atômica no Casaquistão feito pela
União Soviética. O teste atômico serviu para reforçar a GUC1"Ll Fria. O autor H'\"Cla a problemática
relação "Nós-Eles" e toda a preocupação com o que os Inimigos esuriam construindo. Cabe
salientar que a figura histórica do Diretor do FBI, J. Edgar Hoover, é subvertida no romance.
A ficção pós-moderna que se baseia na História mistura personagens criados e históricos, mas
subverte estes últimos. O mais recente romance de DeLdlo intitula-se Fallin,í; 1V11111 (2007) e trata
dos acontecimentos de 11 de setembro. em um tcxto qUl' busca entender C0l110 e as razôes pelas
quais os ataques aconteceram.
Toni Morrison, em BeloIlcd ((1987] 1998), baseia sua narratin em I1Ill fàtp histórico, ocorrido em
1863, quando uma escrava foragida, ao perceber que iria ser recapturada com seus filhos, tenta matar as
crianças e consegue assassinar uma delas. No romance, esta menina, Beloved, volta em forma de uma
moç-a para a mãe, Sethe, que precisa passar por um processo de cura a fim de libertar-se das cicatrizes
do passado e, finalmente, seguir em frente, não mais temendo o homem branco, mas enfrentando-o
com coragem, sabendo que não deve sentir-se vítima do sistema por ser uma mulher negra, mas lutar
para ter seu espaço respeitado na sociedade.
Tim O'Brien é um veterano da Guerra do Vietnã que escreve sobre o conflito do ponto de vista
dos soldados, daqueles que realmente andavam no terreno difícil e enfrentanm as armadilhas dos Viet
Congs, Em seus dois livros lf I Dic in a CO/l1bat ZOlle: Box me up and Ship me Home ([1971] 1999)
e The Thi/l,í?s They Carricd ([1990]1999), O'Brien mostra os sentimentos mais fortes que os soldados
carregavam: o medo, as angústias, as lembranças. Ele foi convocado para a guerra (drafted), sua posição
era contrária ao conflito, mas ele veritlcava que as pessoas não discutiam e nem queriam debater de
'T, , r .... , .~" 7 " , ,'-, 1,"\O(:.\1'.!r7.\I)()I~F') -- lO.S
modo profundo o porquê de os Estados Unidos estarem no Vietnã. O autor posiciona-se cuntra elS

ações americanas naquela empreitada.


Jonathan Safi-an Foer, em seu romance Extrel/lel)' LOlld alld Illcrcdib/y (Jose (2005), focaliza o 11 de
setembro. A personagem principal Oskac cUJo pai falaceu no ataque ao World Ti-ade Center, encontra
uma Cha\T em um envelope no doset de seu pai. em meio a pcdaços de um \'aso que ele tinha quebrado.
Na parte de trás do envelope está escrita a pa1ana "Black" e ele decide encontrar a fechadura certa para
aquela chave. em uma busca também por paz.
Em seu ensaIo "The PO\\!Tr of Hi,tory". Don DeLillo reforça o argumento de que necessitamos
da ficção para entender o que foi escondido pela História: "O passado é grande e profundo. Ele pode
tàzer um escritor expandir, abrir-lhe perspectivas e cmoções que o seu próprio ambiente limitado
tàlhou em revelar" (1997, p. 63).
A tlcção pós-moderna revela-se como uma maneira consciente de estabelecer as relações entre
linguagem e realidade. e volta ao historicisl110, não apenas como um retorno ingênuo, mas para uma

reescrita crítica da História. Ainda, segundo a teórica, "Ao problematizar quase tudo que o romance
histórico tinha como certo, a mctaficção historiográfica desestabiliza as noções antes recebidas de
história e ficção" (HUTCHEON, 1988, p. 120).
A História oficial pode ser reinterpretada. reavaliada sob diversos :1ngulos e a ficção pós-moderna
questiona a versão dos vencedores, a que sempre prevaleceu no passado, trazendo outras formas de
abordagem do passado histórico, colocando em xeque as fronteiras entre tltO e ficção. Para Hutcheon.
"as frontClras entre arte e realidade são mesmo desafiadas, mas somente porque as fronteiras ainda
estão lá - ou assim pensamos. [... ] Ao invés de síntese, encontramos problematização" (1988, p.
221). Documentos históricos são inseridos na ficção pós-moderna, a fim de denunciar a própria
narrativização destes documentos. Esta mescla de discursos acentua a fragmentação do texto e torna o
leitor um "colaborador consciente" (HUTCHEON, 1993, p. 88).
Outra característica do mundo pós-moderno é o fato de estarmos na era da informação que faz as
pessoas estarem sempre dominadas por telas, sejam as do computador ou a da TV Há um fascínio pelo
imediatismo. A televisão exerce um poder muito grande no mundo atual, pois estamos no mundo
das imagens, na "sociedade do espetáculo", como afirma Guy Debord (1995). Além disso, como
aponta I Iarvey, "a televisão é em si um produto do capitalismo tardio e, como tal, tem de ser visto no
contexto de promover a cultura do consumismo" (1989, p. 61). Em consequêncÍa, ocorre um estado
de alicIlaç:lo em que as pessoas perdem o contato com o real.
Certamente, a tecnologia avançada causou mudanças nas relações sociais, mas estes avanços
ainda excluem grupos menos favorecidos, que tlcam esquecidos por não estarem conectados à
rede, constituindo os excluídos da sociedade de consumo, isto é, do sistema capitalista. O processo
de globalização serviu para evidenciar a grande distância entre os ricos e os pobres.
É perceptível também a tendência a um processo de McDonaldização, isto é, as pessoas devem
querer e gostar das mesmas coisas. O mercado tende a promover uma padronização e o poder do capital
também se faz presente nesse caso, obtendo lucros por meio de um consumismo in--controlável.
Ora, após a Segunda Guerra, os Estados Unidos tornaram-se a única potência mundial e
a imediata ,consequência dessa vitória americana contra a antiga União Soviética foi o triunfo
do capitalismo, ou melhor, do "capitalismo tardio", com todas as suas características que
trouxeram mudanças para a sociedade americana em várias áreas, tais como consumo, tecnologia,
mídia e vigilância. Na atualidade, a sociedade americana encontra-se em um proccsso de
"McDonaldização", definida por Ritzer como "o processo pelo qual os princípios de restaurantes
jast-food estão passando a dominar mais e mais setores da sociedade americana assim como do
resto do mundo (1996, p. 1).
Portanto, a McDonaldização (ou também Wall*Martização") não está somente relacionada
à proliferação de restaurantes jast-Jood, mas aplica-se a outros segmentos, como, por exemplo, o
consumismo ajudado pela ação da mídia. Podemos observar que este processo também ocorre no

306 - T E o I, I .A. LITERÁRIA.


BrasiL l' ClllS,1 discussões sobre o tãto de este processo afetar a nossa cultura em maIor 0\1 111e11or
grau.
UJí ;1 grande solução que se apresel1u com as redes deJlsr-joud em que os fllnciol1~írios dn'em
obedecer a um padrão de qualidade para Jtender a todos os pedidos com rapidez e serem cO!1sideLldo\
eficazes. Fazer as refeições em casa tlCOU aparentemente "inefIciente" diante da força da propag.,llld.l
que incentiva o consumo dej!lir~Flud, como aponta George Ritzer:

PaLI 111111("S, ,nu IllUlto maIs efiCiente prcpaLlr 11l1lJ rclel,,'\() l'!ll elS,l do que colour ,I t:ll11íh,1
110 carro, dmglr até um Mcl)onald's, encher-se de cOllllda, e depem dirigir jl,l!.1 eIS;; outLl
\·ez. Isto l1ão pode ser verdade a respeito de ollgumas refeições prq);lrad,ls em c.\sa ,I p:mir do
zero, nus é certamente \'Crdadeiro sobre comidas congeladas, refeIções de lmero-ol1das ou
relelções completas traZidas do supCTmcrcado. Entretanto, estinl11ladas pela propag,lllda dos
restaurants dejà."(-Ji)od, lllUltas pessoas persIstem na crença de que é mais l'ÍICICIltC comer Lí
do que em casa (19<)6, p. 123).

Na televisão proliferam-se os "reality shows", mas que na verdade, não mostram o real. mas
sItuações elaboradas por uma produção c pessoas que criam personagens para vender a imagem que
desejam passar.
A c\lltura pós-moderna é classificada como a cultura das imagens e, sem qualquer sombra
de dúvida, a televisão mudou ;1S vidas e as rotinas das pessoas na m;l1or parte do planeta, HOJe
as pessoas não consomem apcnas objetos, mas também imagens, principalmente daqueles quc
\Tndem suas imagens para serem compradas como qualquer outra mercadoria, e depois clamam
por privacidade.
A televisão traz imagens ao vivo constantemente e tudo acontece de um modo muito
acelerado, as imagens são substituídas umas pelas outras de tal forma que logo possam ser
esquecidas. Assim, vivemos, segundo Jameson, sempre no presente, perdendo a noção de
História:

o dC5;\palTCJ1lIl'llto do sentimcnto da histÓrIa, o modu COIllO () nosso slstellla "lCl.d


COlltClllpOrJllCO CUllleçou, pouco a pouco, a perder 5\1;\ cljl,lCldade de reter seu pr"pnn
passoldo, começou a viver num presente perpétuo c nUllla perpétua mudança que oblItcr;1 ()
tipo de tLlclIçõcs que todas as formações sociais anterIores, de 11111 modo ou de outro, tivcLlIll
que prl'Sel\'ar. Basta pensar no esgotamento de notíCias pela mídia: em como Nixon c, !lU"
ainda, Kcnnedy S:lO figuras de um passado agor:l disLlntc. Ficamos tentados a dizer que a
própna função da mídia é relegar ao passado essas c,--penencJ;ls históricas recentes, com ,I
maior rapidez possível. A função informacional da mídIa conslsmia, portanto, em nos :lJudar
a esquecer, a funcionar corno os próprios agentes e mecanismos de nossa anméSla histórica
(In: KAPLAN, 1993, p. 43).

As imagens de catástrofes têm grande apelo visual e são repetidas à exaustão para que os
telespectadores possam revê-las o maior número de vezes possível e que todos possam ter os
mesmo sentimentos ao mesmo tempo. Jameson aponta o assassinato do Presidente Kennedy como
o primeiro evento transmitido com a tecnologia disponível para que tudo tosse acompanhado pe los
telespectadores por várias horas sem interrupções de qualquer natureza, nem das propagandas,
Cabe-lembrar, no entanto, que o Presidente Kennedy e sua esposa sabiam usar a mídia, o poder das
imagens. Hoje os políticos sabem que precisam da mídia para serem eleitos e sempre querem estar
expostos nos meios de comunicação, notadamente na Tv, devido ao seu enorme alcance e à sua
resposta rápida.
Nos acontecimentos do 11 de setembro, as imagens foram repetidas por muitas vezes até que
as pessoas estivessem exaustas de tanto ver as mesmas coisas. Não causa estranhamento o fato de os
terroristas também usarem imagens para divulgarem suas mensagens, seja os que estão se preparando
para morrer, ou os que desejam provocar a ira de seus antagonistas. Os terroristas são conscientes de
que ao causarem grandes tragédias terão seus nomes veiculados em todo o mundo e seu grupo est:lrá
em evidência,

TI{(1"-1-\' R()"-.:NI(! I ! I,{ 1·\ ()','r>..l,\ 7.\1 I,. (1Il1(;ANI/.\,!)()ltl-,' - 1()7


I{ N !\ N II F \

Para Jean Baudrillard (1988, p. 170), as imagens têm sucessivas fases, a saber:
1. ela é o ref1exo de uma realidade básica:
2. ela mascara e perverte a realidade básIca:
3. ela mascara aIalta de uma realidade básica;
4. ela não mantém nenhuma relação com nenhuma realidade: ela e seu própno puro
simulacro.
Teríamos, então, para Baudrillard. o IlIper-real, algo mais real quc o rcal, pelo tãto de termos
perdido a conexão com o real. Ele cita como exemplo a Disneylândia, que trabalha com "ilusões e
tãntasmas: piratas, a fronteira, o mundo futuro etc. Este mundo imaginário é supostamente o que faz
o sucesso da operação [... J A Disneylândia é apresentada como imaginária pra nos fazer acreditar quc
o resto é real, quando, de fato, toda a Los Angeles e a América em volta não são mais reais, mas estão
na ordem do hiper-real e da simulação. Não se trata mais de urna questão da falsa representação da
realidade (ideologia), Illas de esconder o tãto de que a o real não é mais real e, portanto, converte o
princípio da realidade" (BAUDRILLARD, 1988, p 171).
Esta perda de noção do rcal podc ser observada quando dos ataques ao World Trade Center
em 11 de setembro de 2001, quando IllUltas pessoas achavam que aq ue las cenas pertencia!J1 a
um filme e não eram reais. Mas ali houve o encontro de mundos diferentes, que precisam ser
entendidos.
Cabe salientar que a TV também incentiva as pessoas ao consumo, pois cria necessidades que
podem não existir na verdade. O consumismo exacerbado contribui para a manutenção do sistema
capitalista. Neste sentido, Jean Baudrillard aponta que o consumo e a acumulação de bens ganharam
um aliado no cartão de crédito:

o cartão nos livrou dos cheques, do dinheiro vivo, e até das dificuldades financeiras no final
do mês. Portanto, para pagar, você apresenta seu cartão de crédito e assina a fatura. Isto é tudo
() que há a f;Jzc')' A cada mês. você recebe ullla conta ql1e você pock p:lg:lf totalmente' ou em
prestações (BAUDRILLARD, 1988, p. 34).

Com todos os chamados "templos do consumo", isto é, os shoppill,í!,-rCllters, os supermercados


e os hipermercados, as facilidades de compra ampliaram-se por meio de uma imensa possibilidade
de escolha de produtos, além do fato de lojas ficarem abertas vinte e quatro horas por dia, sete
das por semana. Existe toda uma estratégia para fazer o consumidor pensar que necessita deste
ou daquele produto e leva-lo a consumir até mesmo o que não precisa. Nos Estados Unidos, há
grandes redes de restaurantes, hipermercados, lojas de brinquedos e de outras utilidades estão
espalhadas por todo o país, dando uma sensação de conforto aos seus consumidores, pois existe
o fator previsibilidade, isto é, as pessoas sempre sabem quais as opções que terão disponíveis
para escolher. Consumir é o ato que socializa os homens.
Entretanto, pode também representar o desencadeamento de um processo de alienação, o que
pode ser bastante perigoso se pensarmos na importância de nos preocuparmos com os outros e que
todos possam ter melhores condições de vida. Cumpre a todos pensar naqueles que são excluídos do
sistema e lutar pelo bem-estar coletivo.
A internet proporcionou um contato mais rápido entre as pessoas, mas também causou uma
série de problemas, e um deles é com a segurança das mensagens, pois há hackers que podem
invadir os computadores, propagando vírus, causando danos muitas vezes irreparáveis nas vidas
das pessoas. O e-comércio também facilitou, agilizou as compras, aumentou o consumo de bens
materiais, embora problemas relacionados à segurança possam ocorrer.
Uma das questões que se levantam acerca do Pós-Modernismo é a sua oposição ao Modernismo.
Ihab 11assan nos oferece um quadro apresentando essas formas:

308 - T L () H I A LITERÁHIA
MODERNISMO PÓS-MODERNISMO
------~
Roman tisll1o/S iIl1 bollSlll0 "Patatlsica"/D::tdaÍsmo

-~

Forma (conJuntiva/tccll.lda) Antiforma (disJ\lntiva/aberta)

------ --1
f-----­
Propósito Espontaneidade I
f----- -- - ­ -~-

Projeto Acaso
I
I{ierarquia Anarquia
r--­ ~~
--- ~-

DOlllÍnio/Logos Exaustão/SilêncH) I
f---­
Objeto de Arte/Obra Acabada Proce 550/Peiforlllilll(C/Happl.'lI iIlc\?
Distância
r-­ --
Criaçãorrotalização
Participa~';ío

Descrição/Desconstrução

---
---1
Síntese
Presença
Antítese

Ausência
~
Ccntração
--
Dispersão
~~-

---i
Gênero/Fronteira Texto/I n tertexto
ParadIgma Sintagll1a . I

IlipotL,e Parataxe
--
j
Met:ífora Metonímia
,
Seleção Combinação

Raiz/Profundezas Rizoll1a/Superfície

Interpretação/Leitura Contra a lnterpretação/Desleitura

Significado Significante

-
Lisib/c (Legível) Saiptib/e (Escrevível)

Narrativa/Grand J Jistoirc Antinarrativa/Petit Histoire

Código Dominante Idioleto

Smtoll1a Desejo
I
GenitaVF{jlico Poli morfo/And rógi no

Paranoia
r---­
Esquizofi"Cnia
j
Origem/Causa Diferença-Di ferença/VestÍf,'lo
I
Metafísica Ironia
Determinação Indeterminação
Transcendência Imanência

Qúadro 1. Diferenças entre Modernismo e Pós-modernismo (In: CONNOR, 1992, p. 94)

Podemos observar que a arte no Pós-modernismo tem características que a diferenciam do


Mod'ernismo. Trata-se de uma arte mais heterogênea em suas formas, com mudanças constantes
do narrador (primeira, segunda e terceira pessoas) e não há um fechamento, mas sim uma "des­
totalização", como afirma Linda Hutcheon (1993). Terry Eagleton discute o panorama em que se
encontra a arte no pós-modernismo:

No mundo pós-moderno, a vida social e cultural estão novamente muito aliadas, mas af:()Ll

na l<lflTl:l de estétIca da wlI1l11odity, a espetaculanzação da polítlCa, do consumo do estIlo de


vida, 2 centrahzaçlo da imagem, e a Integração final da cultura na produção de wlnll1oditie' em
geral (2000, p. 30).
I~E li "J :\ N Il te ,

Assim. a indústria cultur:1, notadamente a americana, \Tnde seus produtos C0l110 qU:1lqucr

mercadoria, visando o lucro. Adorno c I Iorkheimer definem eSS:1 transfórmação que a indústria

cultural significou para a arte:

A lI1dústru cultural pode-se v,lI1gloriar de han'r at\1.ldo (\111 cncl-gJa I' de tcr erigldo el1l
pnncíplO a tLlIlSpOSIÇ,lO - untas veles grossclLI - d.! ,!rtc p,\L1 a '.'slera do consumo, de
h;l\Tr hhcLH1" o dlllll.,'ClIICIIf d:! SU,1 ingenuld,Hk l110llS dcsagL!cL!\T I I' ele- h:l\'er IlldhoLldo ,1
C()l1tecçl() d:l\ nwrcadon.!s (In: LIMA. 199(), 1', 17.~).

I
Além de converter arte em mercadoria. nem sempre a indústria cultural prima pela qualidade do

conteúdo do que é exibido mas, pelo contrário, reproduz de modo frenético os modelos que obtêm

sucesso, embora possam trazer mensagens de significado duvidoso. Por isso, há sempre discussôes

sobre a violência que aparece como uma constante em filmes e também sobre demais imagens que são

consideradas não "aconselhá\'Cis" para estarem presentes 110S meios de comunicação em determinados
1

I
horários.

Toda essa estrutura econômica q Ut' a ind ústria cultural american:1 possui pode significar a destruição

das produções locais, como afirma Fredric Jameson:

Esta destruiç.lo dI produção de tilme naCIOnal, c com cI:!, potennalmente, a da cultura local
e nacional CO!llll um todo. é o que pode ser tcstemullhadr) elll todos os lugares no terceiro
e segundo 1ll1ll1Clm. De\'(' ser entcndldo que () tnunfc) do f,lme de I !ollywood (do qual cu
não vou sep:lrar a televisão, que hOJe é tão importante ou mais) não é meramente um triunfo
econômlco. é formal e também polítICO (1998, p. ()2).

Assim, os valores americanos conquistam seus espaços nos mais diversos lugares e essa "cultura

do consumo" é apregoada em todo o mundo. Segundo Harvey, "O pós-modernismo, então, assinala

nada mais do que uma extensão lógica do poder do rnercado sobre a inteira abrangência da produção

cultural" (1989, p. 62),

A produção cultural pós-moderna está intimamente ligada de modo lI1trínseco ao capitalismo,

com a chamada "cultura de massa". Agor:1, segundo Harvey, "Os produtores culturais aprenderam a

explorar e usar as novas tecnologias, a mídia, e fiILllmente as possibilidades de multimídia" (1989, p.

59).
No campo das artes plásticas. Anel)' Warhol apareceu com suas séries de imagens e, segundo Perry

Anderson,

Com o Warhol mais tardio, um pós-moderno realmente, completo chegou de maneira


inquestionável: gráficos, pintura, tótografia, filme. jornalismo, música popular, a indiferente
intersecção de formas - gráficos, pinturas, fotografia, filme, jornalismo, música popular. a
inclusão calculada do mercado, a hcliotrópica ligação entre a mídia e o poder (1999, p. 96).

I-Iarvey destaca o trabalho de Rauschellberg:

um dos pIoneiros do movimento pós-modernIsta, propaga imagens de Rokcby Ví'/lIIS, de


Velazquéz. e de Ví'UIIS at her toi/el, de Rubens, em urna série de pinturas nos anos 60 [ ... ]. Mas
ele usa estas imagens de uma maneira muito diferente, simplesmente utilizando o processo de
silk-scrcf1l para colocar a foto original em uma superfície que contém todos os tipos de outros
objetos (caminhões, helicópteros, chaves de carrof (1989, p. 55).

Na arquitetura, Charles Jenks afirma que

o ohjetivo maIs comum dos arquitetos Pós-Modernos é atingIr 11m url)(lIlismo urba/lo. [ .. 1
As novas construç,:lCs. de açodo com esta doutrina, devcm ser adapLldas c estenderem ()

310 I F U R r A L ! T E R Á !( ! A
~~ () I' U S - ,\1 U I) I I' N 1 .\ \1 ()

(O!1tCÜ()llrb?IH1. rcllsar as COll\Untes, comll AS rnas. arcadas e praças, ,\tendendo talllbc'lll ,IS

novas tecnologias e os me")' de tLlI1SpOrtc (1987, p, 336),

Jcnks aponta a1l1da que o Pós-Modernismo é "igualmente determinado a reter e a preservar


aspectos do passado, tanto quanto a mO\'er-se para frente; entusiasmado sobre o rel'il'al, mas querendo
escapar das fórmulas mortas do passado" (1987, p. 349). "A arquitetura pós-moderna", como aponta
Harvey, "utiliza partes ou peças do passado bem ecIeticamente e as mistura à sua vontade" (19f\<). p.
5-+).
Segundo Eleanor Heartney, a fotografia desempenha um papel pós-moderno ao apresentar a
questão da originalidade tão debatida no contemporâneo,já que "podem ser feitas infinitas impressôes
igualmente bem definidas de um único negativo" e. assim, "não existe o 'origina!', condição que se
ajusta perfeitaIllente à negação pós-moderna da exclusividade e da originalidade" (HEARTNEY, 2002,
p.33).
Sobre Rauschenberg and Warhol, explica Robcrt Dunn: "O que começou com Rauschcnberg
{(Ji completado pela arte pop. As histórias em quadrinhos de Roy Lichtenstein e as latas de sopa de
Andy Warhol toram o começo de uma apropriação amplamente baseada na estética da mídia de massa"
(DUNN, 1991, p. 116-117). Então, obra de arte deixa de ser algo inatingível e também passa a ser urna
w/Ill1lOdiry, o que a diferencia de visões anteriores.
Outro aspecto presente na literatura pós-moderna é o cyberpunk, que segundo Brian McHale,
"é claramente uma continuação ou extensão da prática de ficção científica de maneira geral, porque
a ficç:io científica, com frequência, origina elementos de seus mundos ao literalizar metáforas do
discurso cotidiano da ficção e da poesia" (1992, p. 246).
No mundo pós-moderno, a questão de fronteiras torna-se crucial, pois a tecnologia encurtou
distâncias e colocou culturas diferentes em contato, provocando desejos de haver uma vida sem
fronteiras, que as pessoas pudessem circular livrernente, com a quebra de paradigmas e, mormente,
de estereótipos. Benjamin Abdala Júnior, em seu livro Fro/1teiras múltiplas, identidades plurais, ressalta
que não podemos mais pensar em fronteiras como aquelas estabelecidas por limites geográficos. Para
o autor. este limites

continuam importantes e constituem base sinérgica capaz de inverter ou de se cOntrapOI


aos fluxos aVdssaladores, mas não bastam. Cada vez mais o mundo torna-se uma realidade
de fronteiras múltiplas, internas ou externas, São fronteiras que podem se abrir 011 fechar,
conforme a natureza da conexão desejada. caso tenhamos a base necessária para impor fluxos
(2002, p. 125).

Esta possibilid:tde de poder transpor e romper fronteiras, acontecimentos altamente desejáveis


e permitidos pela tecnologia da informação, representa uma série de consequências para a
contemporaneidade. Por um lado, temos contato com várias culturas e podemos buscar e entender
melhor outras maneiras de ver a realidade, mas, por outro, há um choque cultural quando dois
"mundos se encontram", expressando o questionamento de Brian McHale:-"o que acontece quando
mundos diferentes são postos em contato?" (McHALE, 1992, p. 247)
Com os processos migratórios e o contato entre culturas diferentes, a identidade dos sujeitos passa
a na; ser única, mas fragmentada. O sujeito não é unificado, mas assume posições diferentes. Stuart
HaIl aponta este problema em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade:

o SUJeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se
tornando fragmentado; composto de não de uma única, mas de várias identidades, algumas
vezes contraditónas ou não-resolvidas. [". 1 O próprio processo de identificação, através do
qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tomou-se mais provisório, variável e
problemático, Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo
uma identidade fixa, essencial ou pennanente. A identidade toma-se uma "celebração móvel"
[",], O sujeito assume identidades diferentes cm diferentes momentos. identidades que não
são unificadas ao redor de um "eu" coerente. Dentro de nós há identidades contraditónas,
empurrando em diferentes direçôl's, de ui n]()dn quc nossas Idelltlticaçôes l'SLi" scndo
CllntllllLll1lCntc deslocadas, [ .. ] lI. IdClltlllldc pkll:llllente uniticad:L COlllpleU, SC'",tlLl c
cocreme é UIlla tântasia (I ')')<), P J 1 \

Temos, Cllt:10, um hibridismo cultural c os lmEdduos buscam Ul11.l ickntldadc, mas encontram-se
divididos, fLlg:mentados,
Autores como Ma.'Cine Hong Kingston, Glona Anzaldúa, Pat Mora, Guillcrmo Gómez-Pena,
Gusta\'o Pére7 Firmat mostram a angústia de \'i\'l'rem entre os valores de snas trac!)(,:()es e a vida nos
Estados Unidus. O sentimento desta dl\'lSJO está expressa nos textos destes escritores. A ideia do
Aleltillg Pot nos Estados Unidos não é perfeitamente aceita, pois o que se verifica hoje é o uso de hífens
para designar grupos que desejam marcar suas diferenças, tais como os Afro-Americanos, os Sino­
Americanos, os Hispano-Americanos, os Cubano-Americanos. Parte de um projeto multicultural ruiu,
mormente após os atentados de 11 de setembro. Pode-se notar na sociedade americana uma divisão e
não uma aglutinação de etnias. A visão do "cadinho" tem dado espaço para a visão multicultural e isto
tornou mais evidente a necessidade da compreensão cL! clIversidade presente naquele país,
Nos dias atuais, a grande imigração latina tem int1uel1ciado muitos hábitos nos Estados Unidos,
pois estão crescendo de modo constante. Em vários locais já sc tomou possível encontrar avisos
cm inglês e em espanhol. A corrente migratCma latina encontra sua voz em escritores como Gloria
Anzaldúa e Guillermo Gomes-Pena, que denunciam problemas em relação às condições ruins' de
trabalho enfrentadas por imigrantes ilegais nos Estados Unidos, Podemos observar as inquietações .,,
dos imigrantes asiáticos pela seguinte passagem da obra In!.' VUlIllilll ~Vrl/li(lr (JCJ89), de Maxine f10ng
Kingston:

Chineses-Americanos, quando voci's tentam cntender quais coisas em vocês são chinesas,
COIllO vocl's separam o que é característICO da intància, da pobreza, insanidades, uma fâmília,

sua mãe que marcou seu crescimellto com histórias, do que é chinês? O que é a tradição
chlllesa c o que são os filmes' (J98'), p, 5-(,)

A questão do sujeito pós-moderno, fragmentado, hifenizado aparece de forma clara neste trecho,
pois verificamos a divisão em que o sujeito se encontra entre romper com as tradiçôes dos ancestrais
e viver em um novo modo de vida Ila América. Isto também nos leva a tentar entender quantas
gerações são necessárias para que estes imigrantes serem considerados americanos, Estes indivíduos
sofrem também pelo fato de não serem reconhecidos pelos mexicanos como mexicanos e nem como
americanos pelos americanos, Anzaldúa luta para que seu povo não se esqueça de suas tradições e
mostra a força da Raza, que "se levantará, [ ... ] carregando o melhor de todas as culturas" (1999, p.
225), A autora prega a necessidade da criação de uma "consciência mestiça",
A questão da língua que dá identidade para estes imigrantes é debatida por Gloria Anzaldúa,
pois os Chicanos (cidadão americano ou habitante dos Estados Unidos descendentes de Mexicanos,
que têm um engajamento político), pois, para a autora, os chicanos falam Inglês Standard, Espanhol
Standard, Tex-Mex, Espanhol Chicano (com variações no Texas, Novo México, Arizona e Califórnia),
e outras,
O fato de escreverem em inglês e em espanhol revela a condição híbrida destes autores. Esta
questão da e9ucação bilíngue é ainda debatida e Gloria Anzaldúa aborda-a em sua obra:

Ao final deste século, os falantes de espanhol comporão o maior grupo de minorias nos Estados
Unidos, um país em que os alunos do ensino médio e de universidades são estimulados
a ter aulas de francês porque o francês é considerado mais "culto". Mas para uma língua
pennanecer viva, ela deve ser usada. No final deste século, inglês, e não espanhol, será a 1ínb'l.Ia
pátria da maioria dos chica nos e latinos (ANZALDÚA, 1999, p. 81)

Este hibridismo é a forma que eles encontraram para expressar seus esforços a fim de romper não
somente fronteiras físicas, mas também as culturais, sociais e, sem dúvida, as de gêneros literários.
Anzaldúa mistura narrativa com poesia, e além de Anzaldúa abordar questões de imigração, ela expõe

3 12 -- T E () R 1 A LITERÁRIA
sua posição na qualidade de lésbica, e dehate a condiç;lo das mulheres no mundo contemporâneo.
Escrever foi a maneira encontrada pela autoLl para estabelecer a sua posição frente ao mundo.
Anzaldúa também discute a violênci;l na tronteira Estados Unidos-México contra os imigrantes
.
que tentam entrar nos EUA de maneira ilegal. bem como a ação dos chamados (()yotcs. A autora focaliza
notoriamente o caso das mulheres que sofrem todo tipo de humilhação para cruzar a fronteira, sendo
que a fronteira física é apenas uma das que devem ser transpostas. Os mexicanos estão fazendo o
caminho de volta para o norte, para a terra que era originalmente deles, "quando o Texas era México",
na afirmação de Anzaldúa (1 <)()9, p. 222).
Donna llaraway, em seu ensaio ''A Manifesto fór Cyhorgs" utIliza a imagem do [yhor:g para discutir
a opressão sofrida pelas mulheres em dccorréncia da dominação masculina e também do raCismo
entrentado pelas "mulheres de cor" e a sua luta pela construção de identidade. Sua definição de [)lbO/:g
relaciona-se a "matéria de ficção c de experiência vivida, mudando o que conta como a experiéncia das
mulheres no final do século XX. Trata-se de U111J luta sobre vida e morte, mas o limite entre a ficção
científica e a realidade social é uma ilusão de ótica" (1985, p. (6).
A autora debate questões de raça, classe, géllero, identidades e fronteiras, tópicos importantes para
o mundo pós-moderno, bem como as relações de trabalho que foram modificadas ao longo dos anos,
abordando o papel da mulher no "capitalismo tardio".
Outra problematização apresentada pelo pós-modernismo está relacionada à questão do cânone.
Obras que não eram alltes estudadas na academia, passam a ter sua importância estética reconhecida,
trazendo a possibilidade de estudos de novos textos. Jamais deixaremos de ler os escritores consagrados,
mas torna-se fundamental que outras vozes sejam ouvidas, pois "a ideia de que todos os grupos têm o
direito de falar por eles mesmos, na sua própria voz, e ter aquela voz aceita como autêntica e legítima
é essencial para a postura pluralista do pós-modernismo" (HARVEY, 1989, p. 48). Na verdade, o
Pós-modernismo possihilitou o aparecimento de novas vozes no campo artístico, pois havia grupos
que tinham sido silenciados por muitos anos, como por exemplo, as mulheres, os negros, os gays, as
lésbicas. Hoje esses grupos fllam por si, não há necessidade de outros que se "Julgavam" competentes
para esta tarefa, falarem por eles. Também as vozes de ex-colônias passam a ser ouvidas. Segundo
I hraway, "escrever tem um sigmtlcado especial para todos os grupos colonizados" (1985, p. 93).
Em relação ao Brasil, Domício Proença Filho afirma que o nosso pós-modernismo também possui
um caráter próprio, com realizações que demonstram ainda uma ligação com o moderno até outras
que conectam a cultura erudita e a popular (1 <)95, p. 70). Além disso, conforme aponta Rincón, debate
sobre o pós-moderno pode ser vinculado ao sen processo JlIstónco, com fatores culturais e políticos
que incluem:

o surgimcnto da ideia dc resistência cultural, o Cinema NO/lO, a Canção de protesto, a integração


dos Jovens, a explosão dos meios de comunicação, a configuração da cultura como espetáculo,
a cOlltracultura, o /Jlldngrolllld, o Teatro Oficina, a crise do logocentrismo, o milagre eCOllôllliw
do regime militar, a repressão, o crescimento inusitado da indústria cultural, as culturas
alternativas, a Abertura, a redemocratização (RINCÓN, 1995, p~ 108).

Huyssen oferece-nos uma possibilidade de analisarmos um "Pós-Modernismo de resistência",


inclu,sive contra o "Pós-Modernismo do 'vale-tudo''', mas ressalta que o meios pelos quais esta
resistência pode ser articulada em obras de arte não podem ser prescritos, Para o teórico

O ponto não é eliminar a tensão produtiva entre o político e o estético, entre a IllStória e o
texto, entre o engajamento e a missão da arte. O ponto é intensificar esta tensão, até mesmo
para redescobri-la e trazê-la de volta para o foco da arte e também da crítica. Não importa o
quão perturbador isto possa ser, o cenário do pós-moderno nos circunda. Ele delimita e abre
horizontes simultanearnentc. Ele é o nosso problema e a nossa esperança (1986, p. 2211

Embora publicado em 1986, quando Huyssen considera o Pós-Moderno como "a nossa esperança".
Indubitavelmente, o período Pós-Moderno não se trata apenas de uma reação ao Moderno, mas traz
~
'F~f H N ANil E S
-(
outras perspecti\'as ;J.rtístic;J.s, sociais c políticas que dn'em ser ;J.nahsadas com outros instrumentos.
Verifica-se, na atualidade, uma maior consciência em rel;J.ção;J. outras culturas, à busca do entendimento
do diferente, e que novas alternativas de produçJo de bens de\TIll ser utilizadas para a não-extinção
dos recursos naturais existentes, Daí, "a nossa esperança" de modificações essenciais que precisam
ocorrer no mundo. Precisamos estar preparados para enfrentar estas mudanças e também para buscar
solnções para os problemas que deverão surgir em consequência dos novos desafios que o mundo
Pós-Moderno já vem apresentando à hurnal1Idade.

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LITERATURA E ESTUDOS
CULTURAIS

Maria Elisa Cevasco

Toda forma de interpretar manifestações culturais encerra opções teóricas e pratICas. Essas
opções são tingidas pelo momento histórico em que se dão e configuram respostas às exigências e
determinações dos tempos. As características da nova forma são um amálgama desses fatores que
também vão se transformando a medida em que a nova forma toma parte no debate intelectual e
registra as marcas que a prática lhe imprime.
Assim os Estudos Culturais, que começaram a se constituir na Grã-Bretanha nos anos 1950,
configuram uma corrente crítica que vem para mudar não só o que se estuda na prática mas também,
de forma crucial, como e para que se estuda, ou seja, a abordagem teórica e a intervenção que se
pretende levar a efeito com o trabalho da interpretação.
A que contexto respondiam os Estudos Culturais? A Inglaterra do segundo pós-guerra passava
por um momento de reacomodação social: era preciso pelo menos tentar incluir os que ajudaram
a ganhar a guerra. A consciência de que uma sociedade injusta é indigna do conceito de sociedade
começa a ganhar adeptos mesmo entre os que se beneficiam das desigualdades. Em plena guerra,
o governo conservador de coalizão encomenda um relatório que faça recomendações sobre como
abolir as privações na nova era que se iniciaria com a derrota do nazi-fascismo, levada a efeito pelo
esforço conjunto de todas as classes sociais. Lido hoje, em dias em que não mais se fala de provisão
social para a melhoria de todos, o relatório parlamentar de Sir William Beve!idge soa como panfleto
radical: "Um momento revolucionário na história do mundo é um momento para revoluções não para
remendos".
-Claro que sabemos hoje que a revolução acabou se convertendo apenas na melhoria das condições
sociais que atende pelo nome de "Welfare State", e não pela produção da igualdade entre todos.
Entretanto, não se pode negar que naquele momento os ventos da história sopravam para direções muito
mais progressistas do que em nosso tempo quando noções de bem comum se dissolvem na ideologia
que se pode resumir como a "do cada um por si e todos com o desejo atrelado ao consumo".
A educação, esfera onde vão se desenvolver os Estudos Culturais, reflete esses impulsos
progressistas. Em 1944, um ato do Parlamento eleva para quatorze anos a idade mínima para deixar
a escola e obriga o governo a prover escolas gratuitas para todos. No âmbito da educação militante,
uma organizaçio se destaca como o chão institucional onde vai se constituir a nova disciplina. Como
convém a suas tintas democratizantes, os Estudos Culturais não começam em uma universidade de
~L\'\\( "

elite mas em uma escola noturna para adultos, a Workers' EdllCltioI1al Associ:ltioll, destinada a prmTr
os meios eduClcionais para a integração social dos trahalhadures.
Na reconstituição dos professores de humanidades participante\ do projeto, (br aulas aí no pós­
guerra foi uma experiência ed ucacional no sentido Iórte da palavrJ. Ullla experiência de troca e111 que
alunos e professores se enriquecem. Para esses últimos, tratan-se de l'xplicar as diferentes disciplina0
em termos que pudessem ser entendidos por todos e, principalmente, pudessem ser utilizadas como
fórmas de intervenção em movimentos sociais reais. Com isso. tiveram que alterar quase tudo. Dt'
saída, tiveram que mudar o que ensinavam. Os ql1e \'ieram de litl'LltULI. por exemplo. tiveram que
expandir o currículo para incluir os meios de comul11cação de mas'<lS que começn'<lm a mudar as
formas da socialização a caminho da atual sociedade da imagem c da comunicação, TI\TL1m. ainda.
que achar um novo modo de ensinar. lc\'ando mais em consideração as necessidades reais de alunos
acostumados a buscar re levância e propósito em todas suas atividades, Os estudantes buscavam nos
fenômenos culturais uma forma de entender o mundo que os rodeava. Esse entendimento era visto não
como a aquisição desinteressada de mais uma hahilidade, mas como tlTLlmenta para a transtt)J'!nação
social. Todas essas opções práticas acabam moldando as opções teÓrIcas e disciplinares.
Começando com a literatura inglesa, a disciplina começou a 'c'r cIlsinada de 10rma tardia nas
grandes universidades britânicas. Oxtord começou a incluir a literatura no currículo no fim do século
dezenove e Cambridge apenas em 1917, O projeto mais intluente foi o desLl universidade, liderado
pelo crítico F. R. Leavis (1895-1978). Para ele, o conjunto das obras que formam a grande tradição da
literatura de um país é o acel\'O que preserva os grandes valores da humanidade. Aprcnder literatura
é ser treinado a reconhecer e propagar esses valores. Essa tarda é especialmente urgente em um
momento em que a cultura se modifica, com, por exemplo, a inclusão, ainda que restrita, de outras
classes sociais em um processo de educação até então reservado a um grupo seleto de uma mesma
classe, e, também, com a expansão dos meios de comunicação que concorrem com a literatura na
tarefa ideológica de construir os significados e valores de uma sociedade.
Para Leavis, a literatura era a articulação da linguagem da humanidade, unindo passado c
presente, e constituindo parte central da esfera da cultura. Na sua acepção, esta esfl'ra é um
âmbito ideal em que não há conflitos, pois todos compartilhamos dos mesmos valores espiritlLllS,
Mas apenas uma minoria seleta, no caso da literatura, a dos críticos, tem a capacidade de Julgar o
que é bom na tradição literária e que "deve ser preservado para a continuidade da melhor torrna de
vida, sem a qual a distinção cio espírito se apequena e perde a coerência" (LEAVIS, 1(43).
Leavis considerava que sua nllssão educacional era apropriar-se da apreciação da literatura. até
então nas mãos enluvadas de uma aristocracia do gosto, em nome de uma outra minoria, a dos que
tivessem as qualidades para transformá-la no carro chefe das humanidades e baluarte de resistência
contra a cultura de massas.
Para opor-se à crítica de gosto do número restrito de críticos que legislavam sobre a literatura
baseados em sua sensibilidade, Leavis e seu grupo preconizam um nO\'o modo de ler a literatura, o
chamado dose reading, que ensina a ler as obras do ponto de vista interno. com toda a atenção voltada
para as palavras na página. Quando transposta para os Estados Unidos e adaptada..ao dinamismo das
universidàdes americanas em expansão, esta forma de ler, também conhecida como New CriticislIl, vai
se transformar na maneira "natural" para ler literatura, a maneira na qual todos nós somos trc1l1ados,
Não há dúvida de que há um ganho de conhecimcnto ao lermos um texto do ponto de vista interno
sem termos que seguir o gosto pcssoal de críticos consagrados, mas o dose readillg nos leva a ler literatura
como se ela existisse em uma esfera autônoma, e não facilita a tarefa de estabelecer as ligaçõcs entre a
literatura e a vida social.
Aí está justamente um dos problemas do projeto de Leavis: a literatura se constitui aí em um
mundo à parte, onde reinam valores espirituais, desligados da realidade. Isso por um lado eleva a
literatura a um estatuto muito especial, mas, por outro, a faz perder relevância uma vez que não se
rcfere ao mundo real onde vivemos e lutamos. Além dessa visão idealizada da literatura como uma
esfera separada da do conflito social, ainda mais um problema: o elitismo de sua concepção da
minoria iluminada capaz de falar a linguagem da humanidade. Como pode a literatura ser a articulação

320 - T E o R I A LITERÁRIA
I I I I '" I I H.' I I '\ I t ~ I) ( ) " \ 1 I i \ !: \ I "

do que vivemos e sentimos e, ao mesmo tempo, se dar em ullla esfera ide,l onde não há choques nCIll
conflitos? Como pensar, sem cair lU irrelevância, valores espirituais desvinculados da vida material
onde se concretizam? A noção de uma humanidade em geral é bastante problemática para os que
vivem as realidades de uma sociedade dividida em classes onde sempre alguns são mais humanos do
que os outros. Como conciliar a noção inclusiva "de linguagem da humanidade", portanto de todos,
com a de uma "minoria" que a entende e deve promulgá-la? Os novos tempos do pós-guerra pediam
uma visão mais democrática e inclusiva de cultura e uma torma mais integrada de ver as f<:)[Jl1:ls
culturais como articulações de processos sociais reais.
Estes são os fundamentos sociais que vão moldar os Estudos Culturais. Os três primeiros li\TOS
considerados fundadores da disciplina demonstram bem os rumos da mudança. Thc Uscs ofLíterarary
[1957] de Richard Hoggart (1918-) amplia o conceito de Leavis de cultura: seguindo a visão veiculada
pela antropologia de que cultura, além das grandes realizações artísticas, constitui-se em "todo um
modo de vida", ele estuda as tradições culturais de um segmento da classe trabalhadora urbana do
norte da Inglaterra. Mostra o impacto da nova cultura de massas sobre esse tecido de relações. Embora
não questione os valores da cultura de minoria defendida por Leavis, Hoggart concentra seu estudo
na imprensa popular, no cinema e na vida cotidiana, abrindo espaço para a inclusão de todos esses
assuntos no âmbito da crítica cultural. Está dado o passo de ampliar o que se estuda na nova disciplina.
Anos mais tarde, não mais corno professor da WEA, atividade que desempenhou por mais cte dez anos,
mas como professor de Literatura Inglesa Moderna da Universidade de Birmingham, ele fundou o
primeiro departamento de Estudos Culturais em uma universidade, o Centro de Estudos Culturais
Contemporâneos, de que foi diretor até 1968.
Um segundo livro associado à criação da nova disciplina é o do historiador E.r Thompson (1924­
1993), também instrutor da WEA. Membro do grupo de historiadores oriundos do Partido Comunista
da Grã-Bretanha, que inclui os historiadores mais importantes da historiografia inglesa contemporânea,
corno Eric Hobsbawm, John Saville e Christopher Hill, Thompson trabalha na intersecção entre
literatura e história. Seu The Makil1g C?fthe E/lglish VUlrkillg Class (1963) narra a formação da consciência
da classe trabalhadora através de inúmeros movimentos sociais que dão o contorno da história social
inglesa do ponto de vista sistematicamente negligenciado pela história oficial: o dos derrotados, os que
são sempre deixados de lado. Com esse livro fica clara a aliança política da nova disciplina que deveria
se alinhar sempre com os "de baixo".
O terceiro livro é do crítico cultural britânico mais importante e inovador dessa formação, o galês
Raymond Williams (1918-1988), Como Hoggart, Williams era da classe trabalhadora e teve acesso
à universidade através do sistema de bolsas, urna das conquistas de anos de luta dos movimentos
contra a exclusão da maioria do sistema de educação superior. Corno Thompson, era membro de
uma formação que renova a produção intelectual inglesa do século :xx, a New Lift. Esse grupo de
intelectuais de diferentes disciplinas vai, nas palavras de um deles, Perry Anderson, transformar a
atmosfera provinciana da intelligentsia inglesa, voltada até então para um exame introspectivo da vida
nas ilhas britânicas e, no resumo de um de seus comentadores, "cultivada mas desconfiada do poder
das ideias, cheia de responsabilidade social, mas suspeitando da política" (Mulhern, 1981, p. xix), na
"mais viva República das Letras do socialismo europeu" (ANDERSON, 1992, p. 197).
A contribuição de Williams para essa República se dá na transformação das maneiras de se
fazer crítica cultural. Seu primeiro grande livro, Culture and Society 1780-1950 [1958] é urna
reconstituição das maneiras pelas quais o conceito de cultura vai se modificando da acepção
original de cultivar - tanto a terra corno, por extensão, as faculdades mentais - para se constituir
em urna esfera separada da vida social a partir da qual se pode criticar a sociedade do ponto de
vista geral de todos. Mostra como os discursos sobre a cultura foram se constituindo a partir do
século dezoito em formas de reagir às mudanças do modo de vida determinadas pela Revolução
Industrial. Não lhe escapa que a ideia de cultura vai ficando cada vez mais abstrata e absoluta.
A cultura seria o polo oposto da sociedade, o lugar do espiritual em oposição à materialidade
da vida, o da criatividade em oposição ao mecanicismo da sociedade industrial, o da grande arte
em oposição à percepção da vida cotidiana, o de urna minoria iluminada em oposição às pessoas
fLVASCO

comuns. Ao serrar as relações entre cultura e sociedade, essa forma de pensar erige a cultura C(lfllO
uma espécie de tribunal de onde se pode julgar a qualidade de vida de uma sociedade a partIr de
um slafldard ideal, mas torna esse julgamento inócuo, na medida em que é feito fora das relações
reais que constituem a vida social. Para Williams, é necessário restaurar J culturJ como produto
social, como a produção material de um sistema de significação através dos qUJis uma ordem
social se comunica, se reproduz, é vivida como experiência, e explorada como possibilidades e
Iimitc~. A criatividade não está restritJ à grande arte e se manifesta em várias áreas: por exemplo.
pensar uma nova forma de organização social baseada no princípio da solidariedade e não do da
individualidade é também uma forma de criação cultural. A cultura não é apenas a realização de
uma minoria, mas pertence a todos.
Repensar o conceito de cultura como uma realização da sociedade dá rumos políticos e teóricos
distintos para a nova disciplina. Se a cultura não é o reduto de uma minoria mas um bem e uma
realização sociais, é preciso estender os meios de produção e de compreensão culturais a todos. Se as
formas da cultura se engendram /la sociedade não se pode entender nenhuma produção cultural, seja
ela a criação de um sindicato ou de uma grande obra de arte, isolada de seu chão social. Rememorando
a constituição dos estudos culturais em um texto de 1989, Williams enfàtiza a posição teórica que
corresponde à avaliação do papel da cultura na sociedade:

Quero começar com um problema teórico fundamental, que t, a meu ver, central para os
estudos de cultura amda que nem sempre seja lembrado nesta dlsclplma. E esse problema.
para usar os termos contemporâneos ao invés dos termos mais mfOfll1<lIS com que ele foi
originalmente definido, é que não se pode entender um projeto artístiCO ou intelectual sem
entender também a sua formação. O diferencial dos estudos de cultura é preCisamente que
tratam de ambos ao invés de se especializar em um ou em outro. Os estudos de cultura
não lidam com uma formação da qual um determmado projeto é um exemplo ilustrativo,
nem com um projeto que poderia ser relacionado a uma formação entendida como seu
contexto ou pano de fundo. O projeto e a formação nesse sentido são maneIfas diferentes de
materialização - maneiras diferentes, então de descrição - do que é de fato uma disposição
comnm de energia e de direção. Esta foi, penso, a invenção teórica crucial: a recusa de se dar
prioridade ou para o projeto ou para a formação, ou, usando termos mais antigos, a arte ou a
sociedade (WJLUAMS, 1989, P 151).

o que muda com essa posição teórica? Claro que estudar, por exemplo, uma obra literária em
relação a seu contexto sócio-histórico, ou ilustrar esse contexto através de suas produções culturais, não
é nenhuma novidade. O diferencial dos Estudos Culturais é que se propõem a ver produção cultural
e modo de vida social como diferentes manifestações de um mesmo impulso. Os projetos artísticos
e intelectuais são constituídos pelos processos sociais, mas também constituem esses processos na
medida em que dão a forma pela qual eles são percebidos. Os elementos que se costuma, em crítica
cultural, considerar externos - como, por exemplo, modo de produção econômica, relações sociais,
tempo histórico- são de tato internos, na medida em que são eles que estruturam a forma dos produtos
culturais. Estes, por sua vez, concretizam esses elementos e os tornam perceptíveis.
Essa posição teórica dá conta do aspecto cognitivo da produção cultural: fazer crítica cultural é
também apreender o funcionamento real de uma determinada sociedade. Claro que para uma crítica
assumidamente militante, conhecer esse funcionamento é parte fundamental do projeto de modificar
a sociedade;' tornando-a mais justa e democrática.
Mas, como ensinam os próprios Estudos Culturais, os projetos mudam de acordo com os tempos.
Os anseios revolucionários que embalavam o começo do projeto foram sendo amainados pelas novas
realidades históricas: mais do que um reino da liberdade para todos, o rearranjo do mundo Ocidental,
que sacode o segundo pós-guerra e tem seu momento alto na era das revoluções dos anos 1960,
inclina-se muito mais para a Direita, tão bem representada pelo longo reinado da primeira ministra
conservadora Margareth Thatcher entre 1979 e 1990.
A disciplina de Estudos Culturais centrou-se em universidades. O centro fundado em Birmingham
por Hoggart conheceu um período de grande expansão sob a direção de Stuart I Iall. Alunos vindos

322 -- T E o R I A LITERÁRIA
"~_~ 1 I I I I< .\ I 1 H \ I I \ I I I ],> \ I"

dos Estados Unidos e Austrália voltam paL1 seus países de origem e dão llllCIO :1 prolit'tra\:lo de
programas de estudos culturais que caracteriza nossos dias, Os trabalhos que S;10 escritos a p,lrtir do
Centro de Estudos da Cultura Contemporânea marcam a prática dos Estudos Culturais llas dite'rentes
universidades.
Como caracterizar essa forma que se espalha por diferentes países e se confronta com difercntC\
formações que lhe imprimelTl novas marcas) Talvez seja mais Lícil pensar em termos do que o
projeto, eminentemente interdisciplinaLJunta de formas e assuntos de outras áreas. Seu lnten'SSl'
no tempo presente se traduz em uma preocupação com os meios de comunicação de maS',lS.
assunto preferencial dos estudos dos mídias. Da sociologia, vem o interesse pela etnografia e
pelas subculturas - os primeiros estudos saídos de Birmingham, por exemplo, abordam assuntos
como as "tribos" de jovens ou as comunidades étnicas inglesas, os ex-súditos do império em
difícil convivência com a metrópole. Da história, continua o envolvimento com os de haixo, com
interesse pela história oral e pela memória popular. Da literatura, disciplina de origem de Hoggart
e Williams, mantêm-se o estudo dos textos e dos modos da representação da realidade. Mas () foco
se amplia. Os gêneros menos nobres, como ficção científica ou romances vendidos em bancas de
jornal, dividem a atenção com uma leitura política de textos da alta literatura. O c;lnone - listJ
do que são consideradas grandes obras - é rediscutido e expandido com a redescoberta de obras
antes relegadas ao esquecimento escritas por mulheres, negros, homossexuais e Ollt~OS. Nesse
aspecto, os estudos culturais se intersectam com os estudos feministas, os pós-coloniais e os ch
literatura negra. Com estes divide a ira de certa crítica formalista para quem as novas abordagens
privilegiam o contexto social em detrimento do que é específico da produção cultural, ou seja, a
construção de uma estrutura formaL As críticas mais acirradas vêm de alguns críticos literários para
quem a literatura, bem na esteira da posição representada por Leavis, gozaria de uma autonomia
do contexto onde se dá, e caberia à crítica concentrar-se nos elementos internos da obra, como
significantes, estruturas, relações formais. Basta reler a formulação teórica de Williams sobre a
interconstituição projeto/formação citada acima para se dar conta de que os estudos culturais,
quando estudam a literatura, trabalham efetivamente com a forma literária, mas para eles essa
forma é objetiva, ela está na realidade social que é ela mesma formada. O trabalho da crítica 0
evidenciar as ligações entre a formJ social e a forma estética, as d \las aspectos diferentes, poréIII
não alheios, de uma mesma estrutura.
O momento atual é de grande expansão da disciplina. O editor de uma coletânea inglesa de
ensaios sobre Estudos Culturais chega mesmo a dizer que os anos 1')<)() passarão à história das
editoras como os anos dos Readers de estudos culturais - antologias extensas, escritas por diversos
autores.
No Brasil, os Estudos Culturais chegam de forma oficial nos anos 90. Há programas de
Estudos Culturais em várias universidades, como na Universidade Federal do Rio de Janeiro,
na Universidade Federal de Santa Catarina e na Universidade de São Paulo, para citar três
exemplos entre outros. Mas a maneira materialista de estudar a cultura e. a Iiteraturajá existiam
entre nós. Um exemplo claro é o da obra do crítico paulista Antonio Candido cujo 05 Parceiros
do Rio Bonito, escrito em 1954, teve, nas palavras do autor "como origem o desejo de analisar as
relaç,ões entre a literatura e a sociedade e nasceu de uma pesquisa sobre poesia popular, como
se manifesta no Cllruru, dança cantada do caipira paulista... " (CANDIDO, 2001, p. 11). Vê-se
de saída que tanto o enfoque metodológico - pensar literatura e sociedade juntas - quanto o
assunto - forma de expressão dos de baixo - estão em conjunção com os Estudos Culturais.
Mas a semelhança entre a maneira de estudar de Candido, levada adiante por Roberto Schwarz,
e a dos estudos culturais como estruturados pelo materialismo cultural de Williams se vê mais
claramente na questão da falsa dicotomia texto/contexto, alvo da crítica dos que veem os Estudos
Culturais como a morte dos estudos da forma literária. A explicação de Candido ecoa a de Williams
e esclarece o que diferencia a abordagem dessas vertentes críticas de outras formas de estudar
literatura:
I !oJC sabemos que' a ll1tegndade' d.! obra n'-Io pcrnntc adotar ncnhum dessas Visões dlssoC!.ldas:
c que só a podemos cntender. fUIldIlldo t('"to c contc"W numa interpretação dlalctlc.llllcIltC
íntegra, eIll que tanto o velho ponto de \'ISt.l que e:--'ll]jCl\'a pelos f.1torcs externos, qtLlllW o
outro, norteado pela Il()~';l() de que a estrutura é \'lrttJ:llnwlltc IIldepC'nlkntC' se combinam
como momentos Ill'Cl'S"írI<ls do processo ll1terpretatl\'O, S,lbcIllOS, dlnda, qUe o exterIlo
(no caso o social) ll11portl nJl) como causa, nem como sigIllfiudo, mas como elemento
que desempenha um papel lU constituição da estrutura, tomando-se, portanto, Intcrno
(CANDIDo. 20011, p 4)

Claro que nem todas as abordagens que lcnm o nome de Estudos CulturaIS atingem o patamar
de exigência implícito na aparente facilidade de mostrar como o externo se torna interno ou como
formação e projeto se interconstituem, Como todas as outras correntes, a produção dos Estudos
Culturais é bastante heterogênea e, em um momento como o atuaL de e;\,"]Jansão por todo o globo,
fica difícil fazer generalizações sobre essa maneira de estudar a cultura, Claro que nada escapa à sua
própria história e as marcas de ongem ainda ressoam, como se pode ver no resumo do americano
Lawrence Grossberg no número de abertura de uma revista internacional da disciplina: "[Os Estudos
Culturais são] uma prática diferente de teorizar, uma maneira diferente de politizar a teoria e de
teorizar a política" (GROSSBERG, 1998, P 66) Por mais que vivamos em tcmpos em que as noções
de mudanças políticas radicais estejam em baixa, os estudos culturais ainda conservam suas aspirações
de impulsionar os anseios por um mundo mais justo através de uma intel\'enção nas formas que
produzem os significados e valores que organizam nossa vida sociaL É possível que esta seja sua
característica mais fundamental.

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CEVASCo, Maria Elisa, Para ler Raymond vVil/iaIl15, São Paulo: Paz e Terra, 2001.
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324 ·TF.UElf\ LITERÁRIA


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@ LITERATURA DE AUTORIA
FEMININA

Lúcia Osana Zolin

A crítica feminista, surgida por volta de 1970 no contexto do feminismo, fez emergir uma tradição
literária feminina até então ignorada pela história da literatura. Tomando como elemento norteador a
bandeira do feminismo e, portanto, a ótica da alteridade e da diferença, muitos historiadores literários
começaram a resgatar e a reinterpretar a produção literária de autoria feminina, numa atitude de
historicização que se constituiu como resistência à ideologia que historicamente vinha regulando
o saber sobre a literatura. Trata-se de promover a desestabilização de paradigmas estabelecidos e
saberes instituídos, como o de "essencialismo, homogeinização e universalismo que sustenta a
institucionalização da literatura e que subjaz às noções vigentes de tradição e cânone literário, ao
discurso crítico da historiografia literária, às estratégias interpretativas e critérios de valoração
herdados e legitimados na cultura patriarcal" (SCHMIDT, 1999, p. 36). O resultado do processo de
questionamento dessas práticas que determinam a invisibilidade histórica da mulher, entendida como
sujeito não só da produção literária, mas também da produção crítica e teórica, aponta, como bem
assinala Schmidt, para a territorialização desse sujeito num espaço tradicionalmente entendido como
sendo da alçada masculina.
Historicamente, o cânone literário, tido como um perene e exemplar conjunto de obras-primas
representativas de determinada cultura local, sempre foi constituído pelo homem ocidental, branco,
de classe. média/alta; portanto, regulado por uma ideologia que exclui os escritos das mulheres, das
etnias não-brancas, das chamadas minorias sexuais, dos segmentos sociais menos favorecidos etc. Para
a mulher inserir-se nesse universo, foram precisos uma ruptura e o anúnciQ de uma alteridade em
relação a essa visão de mundo centrada no logocentrismo e no falocentrismo.

Ser o outro, o excluso, o estranho é próprio da mulher que quer penetrar no "sério" mundo
acadêmico ou literário. Não se pode ignorar que, por motivos mitológicos, antropológicos,
sociológicos e históricos, a mulher foi excluída do mundo da escrita - só podendo introduzir
seu nome na história europeia por assim dizer através de arestas e frestas que conseguiu abrir
através de seu aprendizado de ler e escrever em conventos (LOBO, 1999, p. 5).

Essa exclusão da mulher do mundo da escrita, de que fala Lobo (1999a), fica mais bem esclarecida
mediante o fragmento que destacamos a seguir, retirado do artigo "Feminismo activo", publicado em
1911, do escritor e jornalista João do Rio. Trata-se de uma amostragem da postura crítica, extremamente
discriminadora, em relação à literatura de autoria feminina, própria da ideologia reguladora da tradição
canônica, essencialmente marcada pelo repúdio das diferenças:
Eu sempre tive peLis sl'llhClLlS que tãzclll lIteratura - um atel1lOradu respeito.
!\s rc!açôcs com \lIlLl pUl·tIS'\ <\0 \Trebelem)s des,\strrs illlpossí\'ClS de rClllrdiar. lllas que cl
~alantcj() s(leul obri~a a 'lCorc'<;oar. Qu,mdo '\.Ii'/II1/1(' dc /mlc.'· deixa o verso e emb.1Llfu5ta pOl
outras depeIl(lcllcias da compilc;](b ,\rte de escrever. .15 rl'!açCles passam à caLlIIlldadc. [ ... J p",
.,.­
que CS(fI'l'cm C,,'S<1.\' _\-cllhoflF? l\nJl,.\!.II(~'" (1 sOllbe; llil1,f?IIf~H1 t) _\'l1hcrâ. C'O"1 (ct1cza porq1le ,úl() ri1lJw111 11111i.\"
"ql/cfazer, (0//10 a Dl/quc::'1 d,. VIIJO ..\[,IS c/O., cserc/'('/I/, ('S{fC/'t'II/, C.'m'I'CIII ooAo DO RIO I') 11.
apudXAVIER.199(J,p 19).

São posicionamentos críticos como esse, moedJ corrente na nOSSJ tradição literária. que têm
impulsionado a crítica literária feminista contemporânea a trabalhar. no sentido de desmascarar os
pt:incípios que têm fundamentado o cânone literário. seus pressupostos ideológicos. seus códigos
estéticos e retóricos, tão marcados por preconceitos de cor, de raça, de classe social e de sexo, para.
então. desestabilizá-lo, reconstruí-lo.
O que se observa, na verdade, é uma reação impulsionada pela descoberta de que o valor
estético da literatura canônica não reside apenas 110 próprio texto. mas em fatores como os acima
arrolados, construídos em consonância com os valores da ideologia patriarcal. A intenção é promover
a visibilidade da rnulher como produtora de um discurso que se quer novo, um discurso dissonante
em relação àquele arraigado milenarmente ]1;l consciência e no inconsciente coletivos, inserindo-a na
historiografia literária.
No Brasil, como no exterior, a literatura de autoria feminina, de até bem pouco tempo atrás, não
existia efetivamente, isto é, não aparecia no cânone tradicional. Conforme observa Viana (1995, p.
168-9), as "I listórias Literárias" de José Veríssimo c Sílvio Romero "nos deixam a impressão de que
o mundo da literatura era povoado somente por homens". Até mesmo A história da literatura hrasileira,
de Lúcia Miguel Pereira, publicada em 1950, crítica que se fez reconhecer no "estreito círculo dos
literatos masculinos", refere-se apenas a J tilia Lopes de Almeida, certamente por não considerar que as
demais escritoras da época tenham participação na formação da identidade nacional ou, simplesmente,
por considerar suas obras inferiores em relação àquelas modelares dos "homens letrados". Do mesmo
modo, as "f listórias" mais recentes referendam a exclusão da mulher como sujeito participativo da
I
história,
O novo lugar que a mulher passa a ocupar na sociedade em decorrência do feminismo fez-se
refletir (e não poderia ser diferente) nesse status quo. De um lado, a crítica literária, antes de domínio
quase exclusivamente masculino, passou a ser praticada por mulheres; de outro, estas passaram a
escrever mais como literatas, livres dos temores da rejeição e do escândalo.
Nesse sentido, tem fundamental importância o trabalho de resgate da produção literária de autoria
feminina, relegada ao esquecimento pela tradição canônica sob o pretexto de consistir numa produção
de baixo valor estético em face da chamada alta literatura de autoria masculina. No Brasil, o resultado
desse trabalho aponta para a descoberta de inúmeras obras de escritoras do século XIX, que, apesar de
sua qualidade estética, jamais foram citadas pela crítica.
Na esteira desse trabalho de resgate da produção literária de autoria feminina vem o trabalho de
revisionismo crítico. Considerando que o cânone consiste numa instituição capaz de determinar e
indicar a literatura representativa de determinada cultura, pode-se dizer que sua constituição é uma
decorrênci~ do discurso crítico dessa cultura. No contexto da cultura literária patriarcal, o sentido do
canônico nele se inscreve. Isso implica dizer que as obras aí valorizadas são aquelas que encerram os
pressupostos consensuais do patriarcalismo (SCHMIDT, 1999).
Ao se dedicar a esse trabalho de resgate e reavali::J.ção de obras de autoria feminina, o tC::minismo
crítico, erigido sobre o pensamento pós-estruturalista que busca desconstruir a neutralidade que
supostamente marcaria a construção do saber, revisita as categorias instituídas da crítica literária a fim
de ampliar as perspectivas de análise; submetê-Ias a um outro olhar, um olhar capaz de detectar e de
desnudar particularidades a que a convenção masculina nunca esteve atenta.
A editora Mulheres publicou, em 1999, a antologia Escritoras hrasileiras do século XIX, organizada
pela professora Zahidé Lupinacci Muzart. O trabalho é resultado de um projeto desenvolvido por
pesquisadoras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) e da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), com o apoio do CNPq. As mais
tTTcnÁDIA
<x~ L I I F H .-\ I l: H·\ il I ..\ l' I (l R I \ I I \\ I N I N .\

de <)00 páginas dessa antologia revelam uma produção literária e jornalística de 52 autoras, marcada por
um vigor estético e por uma atualidade surpreendentes, que, apesar disso, foi esquecida por todo um
século. Em 2003, publicou o segundo volume da antologia - a continuação da pesquisa sobre
as escritoras brasileiras que gerou o primeiro volume -, contendo dados de mais 51 escritoras
nascidas entre 1860 e 1886 e que publicaram mais no século XX do que no XIX.
Atualmente, muitos outros estudos estão sendo realizados no Brasil no sentido de mapear
os atributos desta produção, não apenas no eixo Rio-São Paulo, onde a produção literária de
autoria feminina tem sido mais explorada, mas em diversas regiões do país.
Há que se compreender a crítica feminista mediante a relação dnone x história-literária­
falocêntrica, numa perspectiva revisionista alicerçada nos pressupostos da Estética da Recepção:

1. A história é qualificada a partir de um olhar que retrocede no tempo de forma seletiva.


2. Ela não é estática, não ratifica ou coleciona ojá dado, numa tradição canônica. nus altera-se
constantemente numa revisão fenomenológica.
3. Ela constitui-se de narrativas que a todo momento compõem novos conjuntos literários e
de interpretação narrativa e historiográfica (que analisa a própria história). Assim. o cânone se
enriquece e se desvia a cada época, a partir de releituras crítieas e sedimentações temporais que
ocorrem em função de acontecimentos políticos, mudanças sociológicas, mas principalmente
de mudanças de mentalidades (LOBO, 1999b, p. 45). ' •

o mesmo impulso que a revolução cultural dos anos 1960, empenhada em destronar a autoridade
do falo-etno-euro-centrismo, exerceu sobre os estudos críticos feministas pode ser observado em
relação à literatura de autoria feminina. As isoladas aparições de mulheres escritoras nos anos 1930 e
1940 na lista de escritores consagrados dão lugar, nos anos 1970 e 1980, a uma explosão de publicações:
Raquel de Queiroz e Cecília Meireles, ao serem reconhecidas nacionalmente, abrem as portas das
editoras a outras escritoras, mas é Clarice Lispector quem "abre uma tradição para a literatura da
mulher no Brasil, gerando um sistema de influências que se fàrá reconhecido na geração seguinte"
(VIANA, 1995, p. 172).
Inserida nesse contexto de mudanças, a literatura brasileira agrega a si "outras" vozes. Na trilha de
Clarice Lispector, surgem as hoje imortais da Academia Brasileira de Letras Lígia Fagundes Telles c
Nélida Pifion, seguidas de muitas outras escritoras reconhecidas, como Lya Luft, Adélia Prado, Hilda
Hilst, Patrícia Bins, Sônia Coutinho, Zulmira Tavares, Márcia Denser, Marina Colasanti, Helena
Parente Cunha, Judith Grossman e Patrícia Melo, para citarmos apenas algumas.
Trata-se de escritoras que, tendo em vista a mudança de mentalidade descortinada pelo feminismo
em relação à condição social da mulher, lançam-se no mundo da ficção, até então genuinamente
masculino, engendrando narrativas povoadas de personagens femininas conscientes do estado de
dependência e submissão a que a ideologia patriarcal relegou a mulher.
Tendo detectado o fato de que a mulher sempre fora produtora de uma literatura própria,
embora esta tenha permanecido por tanto tempo no limbo, críticos(as) feministas, ao
desempenharem a função de fazê-la emergir, reinterpretando-a e revisartdo os mecanismos dos
pressupostos teóricos que a marginalizaram, têm-lhe perscrutado a trajetória com o objetivo de
descrevê-la, dando a conhecer suas marcas, suas peculiaridades em cada época específica. É o
que"taz, por exemplo, a ensaísta norte-americana Elaine Showalter (1985). Em A lilerature oflhei,.
own: British women novelísts from Bronte to Lessing, ela entende que quando se debruça sobre os
trabalhos das escritoras, tomados coletivamente, pode-se perceber a recorrência, de geração para
geração, a determinados padrões, temas, problemas e imagens. É o que ela chama de "female
literary tradition" e que busca descrever, tomando como corpus a tradição literária feminina no
romance inglês. Showalter (1985) argumenta que os grupos minoritários acabam por encontrar
formas próprias de expressão em relação à sociedade dominante em que estão inseridos. No
caso das mulheres escritoras, elas teriam construído uma espécie de subcultura dentro dos
limites da sociedade regulada pela ideologia patriarcal. Noutras palavras, elas construíram
sua tradição literária (que não é absolutamente inata ao sexo biológico) a partir das relações,
'~(l L I "!
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ainda em desenvolvimento, travadas com a sociedade maior em que se inserem, O objetivo
de Showalter (1985), nesse sentido, é investigar as maneiras pelas quais a autoconsciência da
mulher traduziu-se na literatura por ch produZIda num tempo e espa<,'o determinados e como
ela se desenvolveu.
No entender da ensaísta, todas as subculturas literárias, como a negra, a judia, a canadense, a anglo­
indiana, a americana etc., percorrem três grandes fases: a de imitação c de intcmalização dos padrões
dominantes; a flse de protesto contra tais padrões e valores; e a fase de alltodesroberta, marcada pela busca
da identidade própria. Adaptando essas t:lses às especificidades da literatura de autoria teminina, tem­
se a tàse feminina, afelllinista e afêl/lea (ou mulher), respectivamente. Nessa ordem de Ideias, Showalter
(1985) chama a literatura inglesa produzida no período entre 1840 e 1880 de ftminina, por caracterizar­
se pela repetição dos padrões culturais dominantes, ou seja, pela imitação do modelo patriarcal, caso
do romance ja/le E)'re, de Charlotte Bronte, publicado em 1847; a fase félllinista da literatura inglesa
vai de 1880 a 1920 e é marcada pelo protesto e pela ruptura em relação a esse modelo; os romances
de Virgínia Woolf, lv[rs, Dal/olVa)' (1925) e To the lighthollse (1927), podem ser citados como exemplo; a
fase fêmea, marcada pela autodescoberta e pela busca da identidade, inicia-se ainda na década de 1920
e estende-se até os dias atuais, sendo ljue apresenta um novo estágio de autoconsciência na década de
1960, caso de The bloody c/lamber (197()), de Angela CarteL O termoférnalc (fêlllea) contrapõe-se a male
e se afasta do aspecto relacional (masculino e feminino) contido no conceito gênero para centrar-'se
no dado biológico. Assim,fcmale significa silllplesmente do sexo feminino. Essas categorias não são,
absolutamente, rígIdas, mas misturam-se, de tal modo que é possível encontrar todas elas presentcs
na obra dc uma mesma escritora.

La pri/1(fSsc de Clfue (1678), de Madame de Lafayette;


Imitação e intcrnalização ja/lf l;.'yre (1847) e Shirley (1849), de Charlotte
Fase feminina
dos valores e padrôes Bronte; The Mil/ on the Floss (1860) e Middlemarc!1
((em i 11 ill e)
vigentes. (1871), de George Eliot: I/alenti/lc (1832) e Lêlia
(1833), de George Sand.

Protesto COIItLl os valores Mrs. Dal/olllay (1925) e To the 1~!Zhthouse (1927), de


e os padrões vIgelltes: Virgínia Woolf; Pilgrimagc (1915, em folhetim; 1967,
Fase feminista
como romance), de Dorothy Richardson; The hotel
(femil1ist) defesa dos direitos c dos (1927), de Elizabeth Bowen; A conuidada (1943), de
valores das minorias. Simone de Beauvoír.

The bloody chamber (1979) e Wtse children (1991), de


Angela Carter; Strange meeting (1971), de Susan Hill;
Fase remea (ou The color purple (1982), de Alice Walker; The s!Veetest
Autodescoberta;
mulher) dream (2001), de Doris Lessing; The p;ckup (2001),
busca de identidade própria.
(ffmale) de Nadine Gordimer; Les armoires uides (1984), Ce
qu'il, disent ou rien (1977), Lafemmegeleé (1981), de
Annie Ernaux.

Quadro 1. Fases da tradição literária de autoria feminina, segundo Showalter (1985).

Na literatura francesa, os romances de Madame de Lafayette (1634-1693), sobretudo La príncesse


de Clcue (1678), e os de George Sand (1804-1876), válentine (1832) e Lélía (1833), poderiam ser citados
como representantes da fase ftmínina; o romance A convidada (1943), de Simone de Beauvoir, como
exemplar da fasefeminista e os romances de Annie Ernaux (1940 -), Les arlnoires llides (1974), Ce qu'ils
i
i
discnt 011 rien (1977), La ftmme geleé (1981), como típicos da fase fêmea.

330 - T Lo o !{ I A LITERÁRIA
.~ ~\~_ _ .~) 1 1 I 1 g :\ I l' !~ \ J) I -\ l I () I~ 1 -\ ! i \ 1 I N I N .-\

Na litcraturJ bLlSlkira. esse percurso da tLljl'tória da Jutoria feminina, descrito por Showalter
(1 <)8:;). sofi-e algullLls l1lodificaçóes 110 que tange à cronologia. A pesquisadora carioca Elódia Xavier.
no eI1S,l1() "Narrati\'a de autoria (CllllIlllla na literatura brasileira: as marcas da trajetória" (l()(m),
seleCIolla algumas autoras e obras tu111ada~ C01110 1l1arCOS repITsL'Ilt;1ti\'os de cada Ullla das etapas
rdl'ridas. Aji'lIIillillo teria se illicIado com a publicação de l':r_i/l/il (1859), de Maria Firmina dos Hels,
UllI dos primeiros romances brasIleiros de Jutoria teminina, e se estendido até 1944, quando ClancL'
LIs!JCctor II1augura sua prod IlÇ,10 Iitcrána com a publicação de Perto do (Oração scluagC/lI. De modo
gCL1L a obra c1ariceana estrutura-se cm torno das relações de gêncro que tLl7em à tona as diferenças
sociais cristalizadas entre os sexos, as quais cerceiam quaisquer possibilidades de a mulhcr atingir
sua plenitude existenci:d. Trata-se, portanto, de a escritora inaugurar uma nova fase na trajetória da
literatura brasileira de autoria feminina no Brasil ~Icl11il1isto, na terminologia de Showalter ~ marcada
pelo protesto e pela ruptura em relação aos modelos e valores dominantes_ Fase essa que, uma vez
inaugurada, contou com muitas outras representantes, conforme veremos mais adiante, e estendeu-se
até os anos 1990, quando começam a surgir romances escritos por mulheres que se caracterizam por
não mais fazer das relações de gênero o dado determinante dos dramas narrados, inaugurando a fase
H:fI/CI1, em que se pode vislumbrar a representação de uma nova imagem tCminina, livre do peso da
tradição patriarcaL
Telldo em vista o recorte prop()sto por Xavier (1998, 20(2), passemos a perscrutar algumas
obras representativas da trajetória da literatura de autoria feminina no Brasil, buscando salientar
como se processa, no âmbito da históna narrada, cada uma das fases referidas. Podemos tomar como
representantes genuínos da fase ji'fllillillo, de internalização dos valores vigentes, cujas obras são
marcadas pela reduplicação da tradição, tanto no que se refere às questões éticas e ideológicas, como
no que tange às estéticas, os romances ÚrslIfa (1859), de Maria Firmina dos Reis; li intrusa (1908), de
Júlia Lopes de Almeida e.4 SI/ccssora (1934), de Carolina Nabuco. O primeiro reduplica os valores
patriarcais, através de seu estilo gótico-sentimental, enquadrado nos padrões românticos. A autora põe
em cena a frágil donzela sendo disputada entre o mocinho e o vilão. A protagonista Úrsula, símbolo
de pureza c de bondade, é objeto de desejo de dois homens: o virtuoso Tancredo, a quem ama, e o
poderoso e o cruel Fernando, Com a morte da mãe, Tancredo protege a desvalida órfã da vilania de
Fernando, levando-a para a proteção de um convento, onde permanece até o casamento, Na saída da
igreja, Fernando assassina o marido e rapta a noiva, que, consequentemente, enlouquece e morre.
Nesse típico romance da fase feminina, tudo é construído de acordo com a mais estrita ideologia
patriarcaL em que a mulher não tem \'OZ, nem vez; a maior arma de que dispõe para atingir seus
objetivos é o pranto,
Em A i/ltrusa, Júlia Lopes de Almeida cria um universo ficcional em que o final feliz é dado
pela revelação da beleza e do encanto de uma autêntica "rainha do lar". Argemiro, um advogado de
sucesso, promete à esposa no ~eito de morte que jamais se casaria novamente. Contrata, então, uma
governanta para gerenciar a casa, com quem não quer ter nenhum contato; estando ele presente,
ela deve desaparecer de suas vistas. Apesar de sua invisibilidade, um dado fundamental na narrativa,
ela vai conquistando Argemiro pelos serviços prestados: a casa está sempre impecável; a comida,
deliciosa; a filha, antes rebelde, passa a aprender as prendas domésticas e a c-omportar-se como uma
senhorinha. Ele não conhece o sUjeito de tudo isso, mas está completamente seduzido, até que tem
que fazer uma viagem e, então, sua sogra, desconfiada de que alguma coisa pudesse estar acontecendo,
dem.rte a governanta. No seu retorno, quando tem que acertar as contas com ela, vê o seu rosto e
se rende a seus encantos. Esse desfecho ratifica plenamente a ideologia patriarcal: Argemiro não se
rende, propriamente, aos atributos da mulher, tomada como indivíduo, mas aos atributos dos serviços
prestados por ela, somados à sua beleza.
A sucessora, de Carolina Nabuco, inscreve-se no mesmo momento da trajetória da literatura
de autoria feminina dos romances referidos acima, Apesar de o conflito da protagonista ser
psicológico, implicando um texto mais elaborado desse ponto de vista, a autora não se esquiva de
reproduzir aí os valores dominantes na sociedade patriarcaL Tendo sido criada no campo, Marina
é trazida, após o casamento, para um espaço urbano, passando a viver num ambiente prenhe da
presença da primeira esposa de seu marido, cujo símbolo máximo está no retrato pintado a óleo na
T) 1
'fl) LIN

parede da sala. Seu papel na casa resumia-se em dar continuidade à vida dela. Até que, ao final da
narrativa, o conflito é resolvido quando Marina se descobre gLlvida. É, portanto, por meio de um
atributo biológico, o da reprodução, que ela consegue exorcizar o f;lI1tasma da prImeira esposa.
que era estéril.
A obra de Clarice Lispector significa. na trajetória da literatura de autoria feminina no
BrasiL um momento de ruptura com a reduphcação dos valores patriarcais que caracteriza a
fasefclIlinina que ilustramos acima. Pode-se dizer que ela inaugura outra forma de narrar dentro
de um espaço tradicionalmente fechado à mulher. Trata-se do rnarco inicial da fase feminista.
Chamá-Ia de feminista não significa, contudo, que as obras que nela se inserem empreendam
uma defesa panfletária dos direitos da mulher. Significa, apenas, que tais obras trazem em seu
bojo críticas contundentes aos \'alores patriarcais, tornando visível a repressão feminina nas
práticas sociais, numa espécie de consequência do processo de conscientização desencadeado
pelo feminismo. É o que acontece na coletânea de contos Laços defamílía (1960). E, no entanto,
seu valor estético, assim como o da obra c1ariceana como um todo, é indiscutível. São narrativas
que questionam, por meio de discurso irônico, o modelo patriarcal em que a mulher fica reduzida
ao que o espaço privado pode lhe proporcionar. Um exemplo é o conto "Amor", em que Ana, a
personagem central, depois de umaJuventude intensa, enquadra-se no "destino de mulher", ou
seja, no cotidiano doméstico, até que a Imagem de um cego mascando chicletes em um pohto
de bonde desencadeia nela um irremedi:lvel processo de autoconhecimento. Trata-se de uma
espécie de "vertigem" de bondade que a faz rdletir acerca da legitimidade da organização de
sua vida cotidiana. O automatismo do movimento de mascar praticado pelo cego faz com que
se dê conta do automatismo em que está mergulhada na sua rotina de dona de casa exemplar.
Ela vê descortinar diante de si outras realidades que a rota doméstica a impede de conhecer.
No entanto, entre o mergulho nas paixões que se abrem com essa revelação e sua "felicidade"
cotidiana, ela opta, não sem dilemas interiores, pela segurança desta última, metonimizada
pela figura do filho, a quem aperta com violência, como quem se agarra ao confortável mundo
pequeno-burguês, apesar de não ser mais a mesma.
Seguindo na trilha dessa nova maneira de narrar inaugurada por Clarice Lispector, muitas
outras escritoras brasileiras passam a trazer à tona em seus textos literários a problemática da mulher
inserida em uma sociedade regulada pela ideologia patriarcal. É o caso, por exemplo, de Lya Luft,
cujas personagens femininas dos romances da década de 1980 aparecem enredadas nos "laços de
família", acabando sempre vencidas pelo sistema. Como bem avalia Xavier (2002). apesar de estar
em decadência, a ordem patriarcal impede qualquer forma de transcendência por parte da mulher;
a família é retratada como instituição falida, geradora de conflitos, mas é, tragicamente, um beco
sem saída. Daí o caráter caricato que ela apresenta. É de imagens e situações que acentuam, pela
deformação, as práticas sociais que se compõem romances como AI" parceiras (1980), A asa esquerda do
alijo (1981), Reunião defamília (1982), QuartoJeclwdo (1984) e Exílio (1987). Na mesma linha, estão
as narrativas de Patrícia Bins, autora de Antes que o amor acabe (1984), cujos romances primam por
retratar os dramas existenciais de mulheres flagradas em situação-limite, para querp o mundo perde
o sentido, desencadeando um processo de despojamento das máscaras sociais, num processo de
individuação.
Também Márcia Denser, em Diana caçadora (1986), constrói uma coletânea de contos cuja
disposição retrata a crescente degradação da protagonista, uma jornalista inteligente e independente
que, numa tentativa de subversão das regras opressoras do sistema, adota uma postura de caçadora,
mas acaba sempre derrotada. Isso porque, ao buscar se encontrar através de relações eróticas efêmeras
e ocasionais, frequentemente esbarra nas armadilhas que permeiam a trajetória das mulheres liberadas
dos anos 1980, inseridas numa sociedade estruturada sob os alicerces tradicionais. Em "O vampiro
da Alameda Casabranca", por exemplo, na falta de companhia melhor, passa a noite com um poeta
pedante e desinteressante a pretexto de assistir a um bom filme, ao qual se seguem sessões de leitura,
uma festa regada a iguarias e bebidas importadas, cocaína e pessoas exóticas, para se fechar com um
previsível e doloroso ritual de sexo. Ao acordar foge, nauseada; após tomar café nUIlla padaria, dorme

332 TEORIA LITERÁRIA


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num banco de prdlll1, onde é assaltada. Por fim. sem a bolsa, sem as chaves, com frio e precisando de
um banho, dá ao taxista, "suspirando", o endereço do "vampiro".
A narrativa de Sônia Coutinho também faz parte da chamJda fasefel/1illista da narrativa brasilciLl
de autoria teminina. A temática constante de sua obra, presente em .'ltire C/li Sofia (1989), é a da
mulher madura, vinda do interior, sozinha na cidade grande, tentando realizar-se como indivíduo.
Suas personagens são construíciJs como vítimas da cisão entre os nlores patriarcais, ou o "destino de
mulher", e as grandes transt(JrIllaçôes dos anos 1980 que abrem caminho para a mulher realizar SUJ
"vocação de ser humano".
A condição feminina, ou a discriminação social da mulher, constitui-se, também, numa espécie
de tema recorrente na obra de Nélida Piflon. De uma forma ou de outra, ele é retomado em cada uma
das narrativas que compõem sua produção literária, sempre de maneira crítica e contestadora, capaz de
incomodar o pensamento ideológico, calcado nos ideais do patriarcalismo. No entanto, como acontece
na ficção das demais escritoras referidas, evita cair na de tesa panfletária ou partidária do sexo feminino,
contaminando sua obra artística com as tintas da ideologia. Em vez disso, ela aborda o tema pondo em
cena figuras femininas inseridas em situações que fazem eclodir essas discussões, seja por meio dos
questionamentos das próprias personagens acerca do espaço que lhes é reservado na sociedade, seja
por meio de um discurso irônico que, ao retratar a mulher enredada nas relações de gênerp, desperta
o leitor para o absurdo de certas leis sociais que regulam o comportamento teminino. Esse é o caso de
"1 love my husband", um de seus contos mais conhecidos, em que ela põe em discussão o binômio
linguagem do senso-comum/linguagem da mulher. A narrativa inicia-se com a narradora-protagonista
enumerando as ações praticadas diariamente no âmbito do lar, que concorrem para o sucesso da vida
exterior do marido, com a intenção aparente de convencer a si própria e ao leitor de seu amor por
ele e de seu ajustamento ao ideal burguês de casamento. No entanto, a certa altura da narrativa, ela
se rebela diante da afirmação do marido de que ela pertenceria só a ele, nem mesmo a si própria. Tal
rebelião se dá por meio de um delírio no qual, através de sucessivas metáforas, proclama sua liberdade
e afirma seu poder de reação e de dominação. Mas, ao final, retoma o seu posto de "rainha do lar",
numa atitude que remete à impotência da mulher numa sociedade erigida sobre os valores da cultura
pa triarcal.
EmA república dos 50l1h05 (1984), Nélida Piflon, ao narrar a saga do imigrante Madruga no Brasil,
num certo sentido, narra também a história da emancipação feminina. Tal história, embora não sep
explicitamente declarada, aparece diluída ao longo do romance, em que estão retratadas as trajetórias
das várias gerações de mulheres que se fizeram presentes na vida do protagonista: a avó, a mãe, a
esposa, as filhas, as noras e a neta. As trajetórias dessas figuras femininas acabam por constituir um
grande painel em que se podem vislumbrar as personagens principais, Eulália, Esperança e Breta,
representando os diversos estágios por que passou a mulher até atingir o grau de emancipação que a
vemos desfrutar em meados dos anos 1980, o momento presente da narrativa. São personagens que,
guardadas as diferenças impostas pelo momento histórico em que estão inseridas, são semelhantes
entre si, principalmente no que se refere aos atributos da insubordinação e da não-estagnação, num
aut.êntico diálogo com a ideologia dominante que marginaliza a mulher. A arrilise da evolução de suas
trajetórias, segundo uma orderll cronológica, leva-nos a reconhecer, no conjunto, a mesma lógica que
marcou a trajetória das conquistas sociais da mulher no século passado, viabilizadas pelo movimento
femíÍüsta. Dito de outra forma, o modo como Eulália, Esperança e Breta foram construídas nos
convida a fazer associações com o percurso histórico da mulher, galgado nos limites do século xx,
rumo à sua emancipação; pelo menos a emancipação que pode ser atribuída a ela nos anos 1980. Se, no
caso de Eulália, o marido e o pai haviam-lhe explicado a vida segundo a cartilha da ideologia patriarcal,
daí a retração e a modéstia de seu comportamento, marcado, em face das incongruências das relações
de gênero, mais pela resistência que pela ação, sua filha, Esperança, não se contentou com as meias
verdades. Em nome do sonho de viver a plenitude da vida, abdicou do conforto da casa paterna e lutou
vorazmente por isso. Os frutos dessa luta ela não os pôde colher, mas os deLxou de herança a sua filha
Breta, uma escritora que não se deixa enredar pelas relações de gênero, conseguindo fazer-se respeitar
em sua individualidade.
Em razão da representaç::ío de uma figura feminina como Bret:!, cujos conflitos em que aparece
enredada não encontram suas origens na dominaç::ío masculina apregoada pelo sistema patrIarcal,
autoriza-nos a pensar.4 república dos sonhos como sendo um romance que j;í integra a tãse fêl/lca
da trajetória da literatura de autoria fl'minina no Brasil. Se, através de personagcns C0l110 Eulália
e Esperança, Piüon põe em discuss::ío os padrões e os valores patnarcais, ao pôr em cena uma
personagem como Breta ela os toma por superados, inaugurando uma no\';) fórma de representar a
mulher.
Adélia Prado, embora seja mais conhccida como poetisa, é autora de chvcrsos romances
que sempre trazem como protagonistas mulheres, cujas trajetórias são permeadas por crises
existenciais desencadeadas pela não-adequação aos valores apregoados pela ideologia dominante.
Também em O homelll da //Ião seca (1994), a personagem central, Antônia, encontra-se emergida
em questionamentos acerca de imposições que oprimem sua existência; as imposições da lei de
Deus, mais especificamente, consistem no ponto fundamental de suas crises. No entanto, após
passar por um longo período de carência e de opressão que a paralisava, ela triunfa, inscrevendo li

o romance na tãse fêlllea da literatura escrita por mulheres. Sendo a narrativa toda dividida em
partes, as quais se abrem sempre com epígrafes, em sua maioria, bíblicas, é sintomático, no último
segmento, o fato de a epígrafe que o anuncia ser de Guimarães Posa, sugerindo o batismo de
uma nova mulher: "Toma, filha de Cristo, senhora dona: compra um agasalho para esta que 'vai
nascer, defendida e sã, e que deve se chamar apenas Felícia Laudes Antônia" (PRADO, 1994, p.
157), anunciando o sucesso da protagonista (antes chamada Antônia Travas Felícia Laudes) em
relação à busca de sua identidade, ao encontro consigo mesma, livre de amarras, de imposições e
de conflitos interiores.
Os romances de Lya Luft publicados na década de 1990 também colocam em cena personagens
femininas cujo desfecho de seus conflitos apontam para uma saída em que as relações de gênero não são
mais centrais. Em A sentinela (1994), a autora retrata uma personagem feminina que consegue desfazer
os nós de sua existência e encontrar uma saída que lhe confere a tão sonhada plenitude existencial.
Depois de uma infância e adolescência permeada de angústias e sofrimentos, a narradora encontra seu
norte, inaugurando, no presente da narrativa, uma tecelagem. Paralelarnente ao ato de tecer os fios
para montar as tapeçarias, ela vai tecendo sua identidade de modo a libertar-sc das amarras de gênero,
aceitando as próprias escolhas e as escolhas d~ filho. Em O ponto [ecí?o (1999), Luft faz uma explícita
condenação do patriarcado. O romance é narrado por um menino que se recusa a crescer para não
integrar o desagradável mundo dos ad\lltos. Em certo momento, sua m::íe, tendo sido sempre submissa,
adaptada à ideologia dominante, resolvc abandonar a casa, pondo um fim naquela rota de opressão que
vinha cumprindo. O menino, agora na companhia do pai, banaliza os valores androcêntricos, numa
atitude de desconstrução da família patriarcal e, consequentemente, de construção de uma identidade
desvinculada dos arquétipos do patriarcalismo.
Relativizando ainda mais a ideia de que a literatura de autoria feminina se debruça exclusivamente
sobre temáticas memorialistas, autobiográficas, com ênfase no universo doméstico e no eu, com ênfase
nas relações de gênero e na opressão da mulher, a escritora brasileira contemporânea Patrícia Melo, que
tem suas obras publicadas em vários países da Europa e Estados Unidos, surpreende a crítica ao dar a
público livros narrados em primeira pessoa, por narradores masculinos, não raramente, identificados
como assassinos, narrando questões relacionadas ao universo do crime em que se encontram imersos.
É o caso de seus três primeiros romances, Aequa Tolfana (1994), O Matador (1995) e Elogio da Mentira
(1998).
Em Ullsa Negra (2003), todavia, quinto romance da escritora, o leitor não se depara com um
narrador homicida, mas chama atenção o fato de ser narrado, também, em primeira pessoa por um
narrador enlouquecido de ciúmes que, ao narrar as mazelas de seus relacionamentos amorosos, traça
seu próprio perfil, como se estivesse se deixando analisar pelo/a leitor/a psicanalista.
Trat::l-se de um maestro brasileiro de grande sucesso que abandona a mulher e a filha adolescente
para se casar com Marie, uma das violinistas de sua orquestra, moça trinta anos mais jovem do que ele

334 - TEU" I A LITERÁRIA


~~~ LI; I 1 \ 1 I· H.\ I' 1 \ \' 1 \ I' 1.\ 1 1\1 1 ~ I ," .\

e que, tahTz por isso, desperta nele um ciúme qne atIllgc proporções patológicas. A "valsa negra" do
título remete Ilão apenas J r ÍlI\~<l da dor, de Vih Lobos, mas. t;)IllbéIll, parece se remeter à interminável
"dan<;a" da personagem entre os valores modernos que regulam a relação a dois na nossa civiliz;lç;l()
e aqueles tradicionais ditados pela ideologia patriarcal que \'inha há séculos ditando compassos. Ao
mesmo tempo em que ele reconhece e se sente fascinado pelos atributos de Marie, uma mulher
bonita, independente e competente na esfera proflssional. sente-se constantemente atormentado pela
possibilidade eminente da traição advinda dessa sua condição. Daí subjugá-la, investido que está do
poder de dominação que SUl sexo herdara do patriarcalismo.
Outra lógica, portanto. rege a construção do romance em si. se comparado JS estruturas das
narrativas de autoria feminina das décadas antenores, c, sobretudo, da flgura feminina que o integra.
Trata-se de uma mulher deflnitivamente arrojada, inserida em um ambiente favorável a que se somam
sua condição econômica e intelectual, sua profissão ligada à cultura c à arte, seu modo de bem se
relacionar com a família, seu interesse pelo judaísmo, cOIlsequentemente, pela diferença, e, acima
de tudo. sua lucidez em relação ao modo de estar da mulher na sociedade contemporânea. Nesse
contexto t;lo ta\'orável. os entraves ficam por conta da atração e da paixão pelo maestro desambientado
em relação a esses novos tempos marcados pela ascensão dos ideais feministas e pelo declínio do
patriarcado.

r-
I Fase [lrsl/la (1859), de Maria Firmina dos Reis:. 4}1lénâa (1902) e A intrusa (1908), de Júlia Lopes
Feminina deAlmei d a; A sucessora (1934), d e Carolina Na b uco; Dedicação de lima amiga (1850), de Nísia
ifClIlil1ille) Floresta; D. Narása de Vilar, de Ana Luísa de Azevedo Castro;

Romances e contos de Clancc Llspector tais como: Perto do coração seluagem (1943), Cidade sitiada
(1949). I.I1(0I defanl/1ia (1960). Uma aprendizagem 011 () Iil'ro dos prazeres (19ô9); As parceiras (1980),
Fase
A asa esquerda do anjo (1980), Reullião de(aI/111ia (1982), Qual10 fechado (1984), de Lya Luft; Diana
Feminista
[{jçadora (1986), de Márcia Del1ser; Atire ('/// Sofiü (1989), de Sônia Coutinho; A mulher 110 espelho
(11'111 in ist)
(1985), A~s doze {Ores do I'crlllelho (1988), de Helena Parente Cunha; Mulheres de Ttju{Opapo (1987),
de Marilene Felinto; A [(jsa da paixão (1972), de Nélida Pifion;

A repúbliC<l dos sonhos (1984). de Néhda Pifion; () homem da mão seca (1994), de Adélia Prado;
Fase Fêmea
A sentinela (1994) e () ponto [ego (1999), de Lya Lutt; romances de Patrícia Melo, tais como O
ou mulher
//latador (1995), Interno (2000), Válsa negra (2003);jóias defámília (1990), de ~ulmira Ribeiro
ifemale)
Tavares.

Quadro 2. A trajetória da literatura de autoria feminina no Brasil: obras representativas.


.f

RUMOS

Diante desse pequeno panorama da trajetória da literatura de autoria feminina no Brasil, pode­
se dizer que, se as vozes femininas, assim com as vozes das minorias étnicas e sexuais, estiveram
por tanto tempo silenciadas no âmbito social e, consequentemente, na literatura, o final do século
XX assistiu a uma considerável reviravolta nesses domínios: o reconhecimento institucional da
existência da literatura escrita por mulheres como objeto legítimo de pesquisa. No entanto, resta ao
pesquisador e ao professor de literatura fazer com que essas vozes "outras" sejam ouvidas não apenas
entre eles próprios, nos limites das reuniões acadêmicas, dos grupos de trabalho e dos seminários que
se debruçam sobre a temática "Mulher e Literatura", mas também nas salas de aula, numa atitude de
renovação e não de perpetuação de ideologias hegemônicas, como a patriarcal.
T"""", R"",,,'l~-' I J ,'".,. r"'\,-.... , ..•. I._",-.~ • • • .
'r9'( o L I N

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, T "T C J) D T A
[2 LITERATURA DE AUTORIA

"
DE MINORIAS ETNICAS E
SEXUAIS

Célia Regina dos Santos


Vera Helena Gomes Wielewicki

Miscigenados, excluídos, marginalizados, confundidos. Ao longo desses 500 anos de "existência" do


Brasil, que representação os índios, negros e homossexuais sustentam no contexto do que somos no universo
da literatura brasileira? Por que ainda hoje hesitamos/evitamos agregar textos produzidos por esses grupos ao
conjunto dos nossos bens simbólicos? Este capítulo objetiva apresentar e discutir produções literárias diversas
que a instituição exclui de seu campo de legitimidade ou que são minorizadas pela instituição acadêmica
por representarem uma reação contra o sistema dominante ou, se comparadas à literatura oficial brasileira.
contêm elementos e características não compatíveis com a mesma.
Historicamente, o negro e o índio estão inseridos no contexto cultural, científico e religioso do
Brasil desde a formação do Brasil colônia, porém há sempre uma sensação de estranheza diante desses
grupos. Em O turi5ta aprendiz, Mário de Andrade (1976 apud CORREIA DE ARAÚJO, 2000) fala
sobre o aproveitamento superficial das culturas africana e indígena brasileiras, apontando assim para
a sua "folclorização".

Há uma espécie de sensação ficada da insuficiência, de sarapintação, que me estraga todo o


europeu cinzento e bem arranjadinho que ainda tenho dentro.de mim [ ... ] de que o Brasil,
em vez de se utilizar da África e da Índia que teve em si, desperdiçou-as, enfeitando com
elas apenas a sua fisionomia, suas epidermes, sambas, maracatus, trajes, cores, vocabulários,
quitutes [ ... ] E deixou-se ficar, por dentro, justamente naquilo que, pelo clima, pela raça,
.' alimentação, tudo, não poderá nunca ser, mas apenas macaquear, a Europa (CORREIA DE
ARAÚJO, 2000, p. 60-61).

Mas a verdade é que atravessamos um longo período de silêncio, durante o qual os escritores
brasileiros não se incomodaram com a realidade das chamadas minorias. Pelo menos, não no que tange
à sua produção literária. Assim, este capítulo discutirá não só a mitificação desses grupos subalternos
como também a exclusão ou silenciamento dos textos ameríndios, afi-icanos e homoeróticos que pouco
intluem em nossa poesia literária pelo simples fato de ainda hoje permanecerem desconhecidos. A
marginalização dos textos indígenas c negroafricanos é um retlexo, no ambiente letrado, do estatuto
subordinado dessas culturas no espaço mental brasileiro - na estrutura da sociedade nacional.
W I E 1 L \\ I L K [

Apesar de o terna sobre a sexualidade ter sido ahordado por muito tempo em refnência ;) psicolo?,Ll.
terapia e medicina, não se observa o mesmo em relaçJo à literatura. Veremos, aqui, como os tC\."tm
homoeróticos buscam discutir a homossexualidade em duas vias: constituída dentro de Ulll cOIltexto
moral e/ou religioso onde se apresenta como tr:msgress3o à ordem vigente, e dentro de um contexto d:l
literatura contemporânea que busca uma identIdade homossexual positiva, vinda de um;! elaboL1Ç'.lc)
de sensibilidades homoeróticas mais complexas, que ultrapassam a dimensão do gueto.
Observaremos as várias formas que essas literaturas marginalizadas têm buscado para resistir ao
conceito de marginal, tendo em mente a ide ia de Oacanal (1978, p. 1CJ) de que o conceito na verdade'
pouco tem de pejorativo/negativo, pois forma culturas marginais (lllltradepelldclltes, ou sep, uma torça
que "conseguirá destruir seu 'ser dependente' e nascer libertada e autêntica para a História". Na
formação dessa literatura contradependente esbarraremos em assuntos/tópicos n30 somente relati\'os
à literatura mas também à história, à teoria da lint,'ruagem, à psicanálise e à socioantropologia

LITERATURA INDÍGENA BRASILEIRA

A Carta de Pero Váz de Caminha (1500) é considerada, na maioria dos manuaIs liteLírios, como a
"qr:rtidão de nascimento" da história e da literatura brasileiras.,Infelizmente, tal consideração exclui a
importância da tradição oral das populações indígenas, por desconsiderar a cultura dos povos que aqui
estavam no período conhecido como "descobrimento do Brasil". Alfredo Bosi (1994), por exemplo,
aponta alguns textos signifIcativos na "formação" de nossa história e literatura, entre 1500 c 1600, os
quais chama de "textos de informação", pois são "il1{tmnações que viajantes e missionários europeus
colheram sobre a natureza e o homem brasileiro (grifo nosso)", Além da Carta de Caminha, Bosi destaca
o Diário de flaucgação (1530), de Pero Lopes e Souza; o Ii'atado da terra do Brasil e História da pro/línria de
Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil (157ó), de Pero Magalhães Gândavo; a Narrati/la epistolar c
Tratados da terra e da gente do Brasil (1583), do jesuíta Fernão Cardim; o Tratado descritiuo do Brasil (1587),
de Gabriel Soares de Souza; e o Diálo~(!o sobre a ro/l/ll'rsão dos gCl1tios, do Pe. Manuel da Nóbrega, entre
outros, Risério (1993) refere-se a esses textos como "relatos etnogL1flcos", os quais podemos também
chamar de "textos de viagem".
Tais textos revelam a marginalização do índio no que tange à opção textual lusocêntrica como
representante e tormadora de nossa literatura nacional, A análise desses textos prova-nos que a históna
da crítica literária brasileira não reconhece a existência do que Risério (1993) chama de "textual idades
extraliterárias" ou criações textuais "extraeuropeias". Ou seja, apesar de serem ágrafas, as culturas
indígenas aqui encontradas possuíam uma arte verbal muito rica e diversiflcada, a qual Risério (1993,
p, 39) denomina poemLÍsira. Nessa perspectiva, a "poesia dos índios" seria o início da criação textual em
nossos trópicos..
Como suporte, o autor cita o emprego constante da expressão "grandes cantares" no relato
etnográfic~ de Gabriel Soares de Souza (1587), sobre os índios tupinambás. Apo~ta também para
o texto do francês Ferdinand Denis, que, em sua "temporada tropical" no BrasiL de 1816 a 1819,
escreveu Resumé de l'histoire littéraire du Brésil. Em seu resumo, Denis mencionou pela primeira vez a
poesia indígmá aqui existente e apontou pioneiramente para o binômio natureza-indianismo, assumido
mais tarde pelos românticos brasileiros. Porém, como Cascudo (1984, p. 137) comenta, "a poética
indígena foi, intrinsicamente, o elemento de menor influência na literatura oral brasileira". Certamente
o fato de esses textos extraeuropeus não terem conhecido a codificação escrita levou o grafocentrismo
a relegá-los a U1Tl plano inferior ou não-existente. Por acreditar que o texto criativo não depende da
escrita, Risério levanta a problemática da tradição oral e escrita na produção da literatura indígena, a
qual discutiremos mais tarde.
No entanto, precisamos lembrar que nossa história não tem o ponto de partida na língua portuguesa.
No "encontro" das culturas europeia e indígena, em 1500, a língua de contato foi, na verdade, o

338 - T E o R I A LITERÁRIA
.~) L I I I H :\ I l. !~ -\ I) 1 .\ l' I t) H I -\ I) I \1 I N t) I~ I .-\;-, I J N I t -\"' I "' F '\. l: .\ J \

tupinambá OU tupi antigo, falado pela maior comunidade da época, os Tupi-Guarani. Na vinda dos
missionários religiosos e dos missionários linguistas, o objetivo não era aprender a língua do outro para
estabelecer um elo de comunicação producente entre os povos ali representados, mas sim catequizar o
nativo. O "aprender a língua tupi" era apenas um veículo para a conversão dos índios ao cristianismo.
No período colonial, chamam-nos a atenção a poesia e o teatro de intenções morais e pedagógicas
do Padre José de Anchieta, ou o período de "dramaturgia didático-catequética" dos jesuítas. Na peça
O auto da festa de São LOllrCII{o, Anchieta (1583 apud FERREIRA, 1999) observa a marginalização do
nativo através do discurso dominante, contando da conversão do tamoio (Guaixará) representando
um espírito ruim que atacara os lusitanos em São Sebastião do Rio de Janeiro em 1566:

Qucm sou cu'

Eu sou conceituado.

sou o diab30 assado,

Guaixará chamado, por aí aflll1ado

[ ... J De cnfi.ITccer-sc, andar matando,

comer um ao outro, prender tapuias,

amancebar-se, ser desonesto, espijo adúltero.

Ao buscar aprender a língua dos silvícolas, os jesuítas lusitanos não estavam dispostos a agir como
decodificadores de suas mensagens. Recusavam a possibilidade de partilhar códigos, pois para eles
estes não possuíam o valor de mensagens. Ou seja, o missionário não via o índio como um emissor
de mensagens, mas um destinatário. Ele queria aprender a língua do índio para ensinar-lhe as suas
verdades - a verdade do pensamento europeu. Submetida a um leitor que não estava disposto a lê-la, a
mensagem, ou a poesia indígena, serviu simplesmente como gancho onde pendurar ideias doutrinais.
Assim, Risério (1993, p. 50) aponta para a deséstruturação do mundo indígena pela "ação conjugada
de padres e capitães". Enquanto os soldados do rei cuidavam da "desestruturação política, social e
econômica dos grupos tribais", cabia aos jesuítas a "desintegração espiritual, pela supressão de um
pensamento indígena milenar e a imposição de um novo imaginário".
Voltemos, por hora, à discussão das representações do índio na literatura brasileira. Durante o
Arcadismo, apontamos para a construção do poema Caramllrtl, de Santa Rita Durão, o qual via o índio
como subespécie. Escrito para honra e glória do colonizador Diogo Álvares, seu texto mostra o índio
como perdedor e matéria-prima de uma ideologia que visa ilustrar os dogmas católicos aos libertinos
europeus. Veremos o resultado das representações do índio dentro do Indianismo e Romantismo em
outro momento.
No século xx, a posição do índio brasileiro não mudou muito em relação aos séculos passados. O índio
permanece subjugado, limitado às reservas, levado na maioria das vezes a tornar-se dependente da cultura
branca. Alguns aspectos positivos, porém, começaram a aparecer no cenário da literatura indígena. Apesar
de ser um reconhecimento tardio, a constituição de 1988 tornou oficial a "existência das línguas indígenas"
no Brasil', o que possibilitou a abertura para a educação bilíngue nas escolas indígenas. Souza (2001) aponta
que as escolas indígenas já existiam no Brasil antes dessa data, no entanto elas eram administradas, em sua
maioria, por missionários e eram obrigadas a seguir o currículo nacional brasileiro de educação, não se
permitindo o conhecimento local indígena em seu programa.
A. criação de uma escola bilíngue entre as comunidades indígenas abriu espaço para um novo texto
sobre o índio e para o índio. Apesar de em sua maioria serem de cunho antropológico e educacional
(registros e transcrições de histórias contadas pelos índios e transformados em material didático),
muitos livros sobre a cultura indígena vêm sendo publicados e usados nos últimos anos nas centenas
de escolas indígenas espalhadas pelo Brasil. As estratégias na criação desses livros são pensadas de
acordo com a percepção política e consciência histórica de cada povo. Assim, histórias do mundo
moldadas pelos índios vêm sendo documentadas em diferentes publicações, algumas delas de autoria
dos próprios índios.
A antropóloga Betty Mindlin defende o nascimento dessa produção textual, pois acredita
que o que antes parecia utopia torna-se realidade através desse tipo de texto. Os índios, como
fS) ~ TOS
',,(lI E W I E l lo W I \: K I

I
i antropólogos e pesquisadores de sua própria sociedade, transmitem aos seus leitores, geralmente
as crianças nas escolas indígenas distribuídas pelo território nacional, uma forma de educação
através da escritura de literatura e ficção, dialogando com a comunidade ao elaborar o registro
escrito das narrativas contadas e recontadas ao longo das gerações. Dentre os produtores de
"escrita indígena" destacamos três grupos: os antropólogos, os professores bilíngues indígenas
e os escritores indígenas que "migraram para os centros urbanos nacionais, e conviveram com a
cultura dominante, escrevendo dc e para a cultura dominante não-indígena" (SOUZA, 2001), bem
como para o seu próprio povo.
Entre os antropólogos preocupados em resgatar essas narrativas, temos Luís Grupione, Ciça
Fittipaldi, Betty Mindlin e muitos outros. O livro de Grupione, 'Via,ítcm ao /ll/lI1do illd(~clla, narra cinco
estórias/histórias de povos que habitam a região central do Brasil: os Bororós, Xavantes, Nambiquara
e Kadiwéu. Em um segundo livro do autor,jlllltos lia aldeia, encontramos histórias sobre os povos
Tupi-Guarani e Caribe. Fittipaldi publicou as narrativas de histórias indígenas em A árr'Ore do /lllIlIdo c
outrosfeitos de Macunaíma (1988). Lançado em 1997, o livro de Mindlin, ~iJzcs da origem: estórias escritas, é .

uma coleção de mitos dos índios Suruí, de Rondônia, contados em sua língua indígena à antropóloga
e traduzidos para a língua portuguesa. Dividido em três partes (estórias, guerreiros famosos e pajés), o
livro aborda temas que revelam aspectos da vida social e cultural da comunidade Suruí. A antropóloga
Juracilda Veiga também aponta o livro O í1ldio na literatllra dita il!fallto-jllf1cllil (1996), de Wilmar
D'Angelis, como fonte de conhecimento sobre a literatura educacional indígena.
Numa afirmação promissora de nossa diversidade cultural e linguística, muitos mitos e narrativas
orais têm sido transpostos para o português por indígenas recém-letrados e resultado em livros como
Shenipabu Miyui: história dos antigos, de autoria coletiva da Organização dos Professores Indígenas do
Acre, publicado pela UFMG em 2000. Antes deste, o grupo já havia produzido outro livro, Antologia
da floresta (1997), editado pela Multiletras. Entre outros textos, destacamos o lançamento, no mesmo
ano, de O livro das árvores, da Organização Geral dos Professores Indígenas Ticuna Bilíngues.
Ferreira (2000, p. 1-2) observa que "a escrita alfabética figura como a conquista tecnológica
que permitiu a construção da 'Memória do Xingu"', nome dado ao jornal escrito e editado por um
grupo de escritores indígenas em pleno Parque Xingu na década de 1980. A pesquisadora acredita
que o uso da escrita alfabética mostra a importância da construção da memória histórica desses
povos, pois "trata-se de uma reflexão sobre o impacto de uma técnica de comunicação em povos
cujas línguas se desenvolveram de maneira exclusivamente ora)". Apesar dos povos indígenas
possuírem sistemas gráficos, como a pintura e a tatuagem corporal, que se valem de "códigos
estruturados para suas representações", a escrita oferece a vantagem de "cristalizar" tais relatos e
criar registros históricos.
O terceiro grupo de escritores é representado por indígenas como Daniel Munduruku e Kaká Werá
Jecupé, entre outros. Vindo da nação Munduruku e mestre em Antropologia Social pela USp, Daniel
teve seu livro História de índio (1997) traduzido para o inglês, e também é autor de Meu avô Apolillário
e O banquete dos deuses. Jecupé é índio txucarramãe (guerreiro-sem-armas) batizado entre os guarani.
Desde 1989, Jecupé participa de ações voltadas para o resgate, defesa, difusão e desenvolvimento da
cultura indígena brasileira. Trabalhando como terapeuta, o escritor faz uso da medicina nativa, das
danças sagraqas indígenas e faz palestras voltadas para a integração do homem com a Mãe Terra. Jecupé
é autor dos ÜvrosAwé Roirua-ma (Todas as vezes que dissemos adeus), Osfilhos da terra e A terra dos mil
povos, publicados em 1998.
Veiculadas através da tradição oral, as textual idades literárias indígenas no Brasil são diversas e
pouco conhecidas. Apesar de podermos encontrar traços recorrentes, a multiplicidade e diversidade
das culturas indígenas, bem como seu universo linguístico, devem ser cuidadosamente observadas,
respeitadas e preservadas. Embora recebam o interesse de etnógrafos, folcloristas, lingüistas, entre
outros, as narrativas produzidas pelos dois primeiros grupos são normalmente consideradas em
sua qualidade de "mito", predominando, assim, uma leitura bastante antropológica da cultura
indígena.

340 - T E o R I A LITERÁRIA
Souza (2001) chama a atenção para o perigo de se "naturalizar" ou "homogeneizar" essas
narrativas, pois, sendo a tradição oral parte de uma cultura ágrafa, o ato de contar ou narrar uma
estória possui características "performativas" (impostação da voz, pausas, repetições. gestos)
muito difíceis de serem "transpostas" ou traduzidas para o texto escrito. Corre-se o risco.
nesses casos, de perder a riqueza da "performatividade" da tradição oral, que tem como objeti\'o
construir e reconstruir, através das estórias contadas, a história de uma dada comunidade. Soma­
se a isso a questão da autoria na tradição oraL Souza afirma que, na cultura oral, o contador n;"lo
se vê como o "criador da narrativa. e sim como uma espécie de transmissor" ou "repetidor"
da mesma. Consequentemente, quando a transcrição de uma "narrati"a oral é publicada por
escrito, dando crédito ao contador como autor dela conforme regem as regras da cultura escrita,
as normas da tradição oral de alltoria coletiva são imediatamente violadas" (SOUZA, 2001, grifo
do autor).
Apesar de estar expandindo-se local e nacionalmente, Souza (2001) destaca que a "nova escrita
indígena" ainda se mantém marginal no que tange às academias e às instituições literárias, que a vêem
como uma "espécie de literatura de massas, sem grande valor literário". Quando esses livros encontram
o caminho do mercado nacional (consumidor/leitor), são geralmente classificados como literatura
infantil. Porém, pelo fato de ser uma literatura que já nasce no seio escolar das comunidades indígenas
(o texto indígena como literatura didática), esses textos possuem características de autolêgitimação,
pois a instituição escolar possui mecanismos de inclusão e exclusão curriculares que "formam a base
para a construção, destruição ou transformação dos cânones literários" (SOUZA, 2001).
Nesse contexto positivo para as comunidades indígenas brasileiras, taz-se necessário lembrar
que, mesmo estando no início do século XXI, nossa sociedade ainda vive na desinformação e no
desconhecimento da história e da realidade sobre sua população nativa. Poucos sabem que ainda hoje
existem pelo menos 50 grupos indígenas que jamais mantiveram contato com o homem branco e que,
apesar de terem sido quase três milhões de habitantes no período do "encontro" com o europeu, em
1500, hoje não passam de 326 mil. Ainda assim, são 215 nações e cerca de 170 línguas diferentes entre
toda a população indígena. Entre eles as tribos mais numerosas são os Ticuna (23 mil índios).
Entre o período de colonização brasileira e o início do século xx, porém, várias tribos indígenas
foram extintas, vítimas do contato com o homem branco e sua cultura. Entre elas, citaremos alguns
grupos extintos e sua população estimada: Aimoré (30 mil); Caeté (75 mil); Carijó (100 mil); Goitacá
(12 mil); Potiguar (90 mil); Tremembé (20 mil); Tamoio (70 mil); Tupinambá (100 mil); e a tribo
Tupiniquim (85 mil), os primeiros índios vistos por Cabral, na Bahia. Salientamos que no momento há
várias tribos ameaçadas de extinção, a saber: os Xetá (Paraná); os Juna (Amazonas); e os Avá-canoeiros
(Goiás). Os dramas mais rumorosos têm sido o suicídio coletivo entre os Guarani-Caiová, do Mato
Grosso do Sul.

LITERATURA AFRO-BRASILEIRA

Por caracterizar-se este como um texto panorâmico da literatura afro-brasileira, optamos por uma
apresentação limitada de autores e obras representativas dessa literatura produzidas entre os séculos
XVIII, XIX e parte do século xx.. Por sua grande contribuição no desenvolvimento do perfil da literatura
afro-brasileira, daremos ênfase a alguns escritores representativos entre os anos 60 e 80, no século
xx, bem como apresentaremos alguns conceitos e implicações ligados à expressão "literatura afro­
brasileira", muito debatidos por autores, críticos de literatura, estudiosos de áreas como antropologia
e sociologia, e o público interessado por essa linha literária. Faz-se necessário, porém, conceituarmos
a distinção entre raça e etnia, visto que muitos são os conceitos atribuídos a esses termos, muitas vezes
de forma ambígua.
~
IS;)·\ \! T () \ W I I I I II I \: " I
-,rll
,

COIlceito que diz respeito a certos atrihutos tlsicos bloló t,'1cos comuns a um detcrmllladcl
6'TUIXl, geralmente classificando os gruposraciais em negro. hr:mco. amarelo etc. COIlStruíclo
sohre fenótipos. o concClto de raça está ligado ao sentido de tipo. classificando os seres
humanos por suas características físicas ou anatômicas (cor d.l pele. textura do cahelo.
fOn11a da cabeça etc.). bem cumo por sua capacidade menr-1L As Iduas sohre raça mostram­
Raça se limitadas e simplificadoras da complexidade humana e SOCiaL pOIS eliminam os aspectos
históricos dos llldivíduos e das populações. que são as Cldtmas prodUZidas. Essas ideIas
fórtalccem os sistemas autorir-irios e produzem manitl·stl~·(·lCs racistls l' segreg,lCionistas.
como foram o apart/lCid na África do Sul e o nazismo alcmJu. Em sentido amplo. o conceIto
de raça está geralmente carregado de uma ideologia de discriminação e intl'noriza()o
sempre obstinada em explicar diferenças sociais por fatores hiológicos.

Articulação das lutas de classe, das particularidades de gênero. dos processos culturais
e históricos. A etnicidade de um povo ou ;'TUpO refere-se às diferenças "raciais" que se
aproximam por relaçôes múltiplas de língua. religião. história. conhecil1le!lto e defesas
Etnia comuns, constituindo. assim, um campo de comunicação e interação que o dlstillt,'1t!r;í
de outros. Grupos étnicos são os que se supôem ter um comp()rtamento susceptível de
mudar. Etnicidade também pode ser definida como ullla "identidade social. caracterizada
por parentesco I1H:'tat('lrico ou tlctício" (GUIMARÃES. 199<). p. 23).

Quadro 1. Raça e etnia.

Primeiramente, observa-se que na busca da autoreferencialidade há uma hesitação relacionada


ao uso dos termos "literatura negra" e "literatura afro-brasileira". Bernd (1987, p. 80) acredita
que o primeiro transcende o limite de nacionalidade e idioma e remete a "um espaço ou território
supranacional e supraidiomático no qual os autores constituem uma mesma comunidade de destillo"
enquanto que o termo "afro-brasileira" reflete somente "uma literatura empenhada em resgatar
uma ancestralidade africana". Como o conceito desses termos, bem como a sedimentação dessa
literatura, ainda estão em construção, optamos pelo uso de literatura afro-brasileIra, por ser a
referência mais comum nos textos atuais. Nada impede, porém, o emprego do termo "literatura
negra" neste trabalho.
Há alguns critérios geralmente usados na tentativa de conceituar a literatura afro-brasileira, a
saber: o critério étnico (ligação da obra à origem negra ou mestiça do autor); o critério temático
(conteúdo literário relacionado aos temas referentes à cultura afro-brasileira); e o que chamaremos de
critério de transgressão (o texto como forma de reivindicação e resistência). Por sua êntàse epidérmica.
o primeiro critério limita a abrangência da literatura negra, pois, em um país mestiço como o Brasil.
torna-se difícil classificar um texto literário baseado na cor mais ou menos negra de seu autor. Já o
segundo critér:i9 tem sido considerado pelos críticos como mais abrangente, desde que o texto revele
as dimensões peculiares aos negros e seus descendentes. Isso respeita o fato de nossa formação literária
ser composta por escritores negros que usam padrões clássicos europeus e autores não-negros que
escrevem sobre assuntos relacionados aos afro-brasileiros (escravidão, histórias dos quilombos, cultura
negra, preconceito racial etc).
De far6, tal critério é mais abrangente do que o pnmeiro; no entanto, abre espaço para a
discussão de uma problemática - textos escritos sobre o negro ou sua cultura, mas que não se
propõem a desconstruir a história da escravidão, discriminação e preconceito, para construir
uma literatura específica da causa afro-brasileira em seus aspectos étnicos, históricos, sociais e
psicológicos. Contribuem para a melhor compreensão dessa discussão estudos como o de Teófilo
de Queiroz Jr., Preconceito de cor e a /11ulata na literatura brasileira (1982), que analisa a criação do
estereótipo da mulata em obras como as de Manuel Antônio de Almeida, Jorge Amado e João
Guimarães Rosa; do brasilianista David Brookshaw, Raça e cor /la literatura brasileira (1983); Negritude
e literatura na América Latina (1987) e Introdução à literatura negra (1988), de Zilá Bernd. Esses estudos
provam como é recente a abertura para discussóes sobre a questão da literatura negra no BrasiL

147 - T F () li f A f ITFRÁRfA
~ L I I I H '\ T t I H.\ I i I '\ I i J ri H I \ II i \\ I .N " H I ,\, I ; N I , .\' I ' I " \. \ i

Dessa f()fll1a, o critério de evidência textual, de transgressão, de "articulação de uma reivi nJ1Cação"
(HOFFMANN, 1981 apuJ BERND, 1987): aquele que cria uma literatura disposta a desconstruil
as normas da literatura como institllição bLlIlca ou europeia; aquela "disposta a romper um contratu
de fala vigente e a buscar uma dicção nova dentro do cOl1te:-.1:o literário", corno nos aponta Bemd
(1987, p. 18), será uma literatura consistentemente "afro-brasileira".
Ao tentar recriar uma cronologia da representação literária do negro no Brasil. o pesquisador/
leitor observará que, antes de o escritor negro existir, sua presença no contexto brasileiro hIstórico
é representada através de textos considerados "oficiais" ou dos dnones literários nacionais. Tórna­
se óbVIO, porém, que não foram somente os românticos que excluíram a presença do negro e de
sua criatividade textual. A representação do negro na literatura desde o seu início foi apagada: C­
como se os negros, forçados a cruzar os mares como escravos, tivessem deixado na costa africana
todos os seus sistemas, formas, elementos e práticas culturais e religiosas.
Não houve quem quisesse correr o risco de se referir à "capacidade poética" dos escravos africanos
Ao fixar-se exclusivamente na figura do índio e não do escravo, o Romantismo, por exemplo.
promoveu uma fusão paradoxal do "exótico" e do "autóctone". Risério (199:'1), porém, mostra que
essa escolha era estratégica: as tribos indígenas já estavam, em sua maioria, domesticadas, esgotadas,
dispersas, fragmentadas o suficiente para apresentar qualquer resistência. Já o negro, no período áureo
das insurreições (1808 a 1835), representava uma ameaça à ordem escravocrata. O negrô, portanto,
some da literatura brasileira como forma de se evitar os temas de insurreição. Se o próprio escravo
negro parece ser invisível aos olhos do produtor literário brasileiro da época, mUIto mais os seus
"textos" trazidos para cá.
Romero (1990 apud RISÉRIO, 1993) aponta que o "motivo histórico e moral" do
desaparecimento ou "silêncio voluntário" de nossos escritores sobre o "estado de escravidão" bem
como sobre a influência do negro na cultura nacional do começo da história brasileira, até meados
do século XIX, deu-se pelo receio do estigma da contaminação' Falar sobre os negros traria sohre
o escritor questionamentos sobre suas ligaçôes com os mesmos, e até mesmo sobre sua linhagem
"pura".
O negro aparecerá novamente na literatura da segunda parte do século XIX, em especial
de 1850 a 1888, porém ainda mantendo a sua posição marginal na literatura. Nesse período ele
aparece na ordem sociopolítica, mas não textual. E é nesse período que começam a surgIr negros
e mulatos letrados e escritores (não quer dizer que nenhum negro escrevera antes deles, como
são os exemplos de Henrique Dias e D0IT1111gos Barbosa). Nesse contexto de discriminação racial,
muitos dos negros que tiveram acesso ao código literário também não quiseram ser ligados à
questão da escravidão, geralmente impregnada pela ideologia do primitivismo. Daí a discussão e
crítica a esses escritores sobre o problema da autonegação e do "branqueamento" do negro, no
qual o escritor negro copia os modelos da literatura europeia e se esquece de sua ancestralidade
africana. Sem., porém, absolver este ou aquele escritor, Risério afirma que se até mesmo o escritor
branco tinha receio da discriminação social e literária, o que se dirá do escritor que fosse negro.
No início do século xx, a questão racial criou certos mitos para amenizar os preconceitos aqui
exiStentes. Um deles baseia-se na contemplação de uma democracia racial, ou seja, o ponto básico das
discussões sobre a miscigenação brasileira, resultado da mistura das raças branca, negra e índia, apregoava
uma.ideia errônea de harmonia social e racial que realmente não existia. Casa-grande & senzala (1930).
de Gilberto Freyre, é nítido exemplo de um cenário bastante idealizado para a escravidão brasileira. Ao
generalizar o ambiente particular e excepcional da escravidão doméstica - transformando-o em um
modelo de cativeiro - o autor oficializa a ideia de democracia ou paraíso raciaL A imagem de senhores
severos, mas paternais, e escravos fiéis e amigos, ou seja, a mitificação da ideia de que a escravidão era
boa, perpetua as noções de democracia racial, dificultando discussões sobre direitos igualitários.
Apesar de todas as dificuldades em direção a um espaço social e literário no contexto da cultura
brasileira, apresentamos, a seguir, um quadro, baseado nas pesquisas de Bernd (1987) e Pereira (1995),
no qual, para fins didáticos, nomeiam-se alguns autores negros, suas características e obras, as quais,
dentro de um critério ou outro, representam a literatura afro-brasileira.
~
'S·\:'-!I'" \\1 I I I I \1 I " ~ I
(

Domingos Caldas Barbosa (1738-18()()): Mestiço, poeta c músICo Ilhado ;10 Arcadisll1o, escreveu ll1odll1has, lundus c
poemas preparados paLl serem canLldos: EpiT,!lállli,' (1777).

Antônio Gonçalves Dias (18.:'3-186-+): Fdhu de eSCL1\:1 cafu?a, sltu,l-se 110 CllllpU do Indnmsll1o, ll1as ddlll " tellla d, 1
negro em SILl pocsn: Prilllár"" C<l/IT,lS (18-+6).

Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882): Grande ddt-nsClr d,l c,lllsa aboliciunista. Fez use) da sátirA tUL1 critlclr
mestiços brasdclrclO que aSpILI\':lIn fazer-s,' l'llropeus. U prmleiro csentor a usar a literatura par:l transgrechr :15 nOrIna,
\'1gentcs da escravatur:l sobre a 1I1ferioridade do negro. Em sua poeSia, ele também canta Ericamente a beleza da mulher
negra, -Ji-"I'<lS lJ/lrlc_,(as (18S9).

Joaquim Maria Machado de Assis (1::n'J-l (08): li m dos lll:llS cOI1heCldm escritores br,lsllciros, J\tlC!t,ldo de
ASSIS tem Sido acusado por alguI1s críticos por recusar a sua próprIa origem étnlcL Outros, no entanto, o absoln'lll
dessa crÍtio, apontando que, além de o padrão de sua época I1JO considerar o negro como tem;1 Incr;irio, o fato de
a obL) de Macll:ldo dl' Assis conter UllLl crítica à socicchde sua c0l1tempOdnl':1 clractcriza-;1 como uma litcratuLI
de T-csIstência, de Corma COllSClente ou 11:10: l\1c/IIórios ]'6"lIIllIas de Buís ClIba" (1 H81), Q/l1/1((/s Borba (11)').:') e DOIII
Ca_IItl /I no (1900).

Tobias Barreto de Menezes (1839-1889): Líder da Escob de Recife. Apesar de I1JO Edar dirct:llncntc com os t('nu, ~;1
eSCL1\"ldão, abriu clIscussôes em torno da idclltldade raCial do mestiço.

José do Patrocínio (1853-19()5): Dedicado ao tema aboliciolllsta, cscre\"Cll textos em prosa de C1Lítn ITdli,u que
cvid<:ncÍ,ll11 suas an;íltses de questôcs sociais. Em suas obras, o autor denuncia a contradIção da valonzação do negro em
colltraponto aos m()delos de beleza e harrnOlll:l da cultura branca. Os ReTira/ltes (1877) c Pedro E'po/l/lOl (1884)

João da Cruz e Sousa (1861-1898): Filho de pais escravos, Cruz e Sousa cscreveu crônicds aboltcionistas, Certa vez,
não pôde assumir o cargo de promotor por preconceito racial. lU certa tensão em sua literatura devido às referências js
f()rrnas "alvas, brancas c claLls", IIHerpretadas como uma forma de reJeiçJo à sua cor. Alguns críticos, contudo, ligam essa
característica à estética simbolIst:l usada pelo autor, que é llegro, e também parte de uma sociedade escravocrata; Bl"<'q/léi.,
(1893), l-~lIâis (1900).
"

Afonso Henriques de Lima Barreto (1891-1 (22): Seu romance socL1l expôs as cnntradlçôes de um ambtente soual que
lhe deu a percepção crítica das forças do paternalismo (' do preconcclto social; 7;-;'TC{11II de PolíOllPO QlIareslll.! (I') 11).

Lino Guedes (19()()-1 (51): Poeta da fase modernista da literatura brasil<:ira, descreve o estigma do negro dl'\'ldo :i
escLl\'ldão c sua l11drginalízaç;10 do período pós-abolicionista; NI',f!.ro 1',",'{O, {Or da lIoiTe (1 ()32).

Solano Trindade (1908-1974): Poeta expressivo da negritude brasileira contemporânea, sua obra reivllldlca
melhores condições sociais para o negro_ Sua poesia está voltada para a dura vida das minorias negras marginaltzadas
e para a evocação das tradiçôes populares dos negros do Brasil; Poemas d'uma I'ida simples (1 (44), CaIlT<1rc.' ao lIle/l
POPO (1961),

Quadro 2. Representantes da literatura afro-brasileira,

Pode-se' observar que entre os autores apresentados no quadro anterior não se encontra
nenhuma mulher. Essa é uma temática - escritoras negras - que mereceria ampla discussão
por sua complexidade e amplitude. A dupla marginalização da mulher negra imprime a seus
escritos características próprias, tanto no tocante à sua produção quanto à sua circulação, De
forma sucinta, podemos mencionar que entre as escritoras negras, apesar do romance de Maria
Firmina dos Reis, ÚrslIla (1859), publicado no século XIX, grande parte da literatura produzida
por esse grupo duplamente discriminado tem sido publicada em canais alternativos, Assim,
dentre as escritoras a quem essas "associações literárias" ou "editoras alternativas" têm dado
voz, destacamos Miriam Alves, Sônia Fátima da Conceição, Lia Vieira, Marta Monteiro e a
jornalísta Esmeralda Ribeiro,
1,,1-1 _ T " n R T A 1 TTFHÁRIA
~ L J ; j H \ I \ H " 11 i \ ~ J \) i·' ! -\ ;1 l \1 i 0.' () H I -\'~ I : ". , "

Nascidos em sua maiona após os al10s (lO, no século passado, esses can:m lidal1l
especificamente com a discussão do "ser negro", Dentre eles destacamos u grupu Q/lilolll!)()/I('i"
(São P,lUlo), formado em 1978, o qual criou a série Cadflllos Sc\!.ros, que contém ubras em pro",
e verso. Suas publicaçóes anuais dão a oportunidade a escritores afro-br.-lsdclrus 0\1 escritull's
cngapdos 110 movimento negro de, mesmo fora do cânone lIterário oficial brasileiro, serem
ouvidos (ato definido pelo grupo corno "militância ativa da palavra"). O número de leitores
de Cadernos tem aumentado nos últimos anos, porém ainda é marginalizado pela sociedade
literária brasileira, A náo-legitimação de sells textos pelos canais ofiCiais ou illSfif/l içtlc' , UI'
comu as editoras, revistas, livrarias, bibliotu:as e, até mesmo, as uni\'Crsidades, institlIl\,Ju
responsável pela crítica literária, faz com que não se encontrem entidades naCionais dispmus J
publicá-Ias, divulgá-Ias ou vendê-las, Dois outros grupos também existentes, e que partilham
da mesma condição marginalizada, são NeJ!,ríria (Rio de Janeiro) e Cells (Bahia). Da mesma
f()rma, não podemos deixar de destacar as contribuições do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da
Universidade Federal da Bahia (UFBa), grupo que se dedica a "estudos relativos às POPUL1(JlCS
africanas, asiáticas e seus descendentes no Brasil e alhures".
Na primeira parte do século xx, porém, antes mesmo de esses grupos começarem a se articular,
podem-se destacar outras contribuiçóes na formação do perfil da literatura afro-brasileira. Por exemplo,
no início do século já surgia uma imprensa voltada para a questão do negro no Brasil. Ferrara (1980
apud BERND, 1987) a divide em três períodos:

1. 1915-1923: apesar de iniciar as discussóes sobre problemas do ponto de vista racial, l~ Ulll
período de integração do negro à sociedade branca através de uma tentatin de cópia dc ,ClIS
valores culturais Gomal Mmeli(k);
2, 1924-1937: período de fortes reivindicações. porém interrompido por Getúlio Vargas em 1937
(Clarim da Alllorada e A UJz da Raça);
3. 1945-1963: período de rearticulação da imprensa com um toco maior na luta de classes (l\ll1/1do
NOIJO e NO/lO Horizonte).

Dentro dos dois últimos períodos, o surgimento de teatros, tais como o Teatro Experimcntal
do Negro (TEN) e o Teatro Popular Brasileiro (TPB), em 1944, e a formação de associaçõcs
de movimentos negros como a Frente Negra Brasileira (FNB), atuantes de 1931 a 1937, e ;j
Associação de Negros Brasileiros (ANB), fundada em 1945, também contribuíram para n
incentivo à comunidade negra na busca e investimento da compreensão do seu "eu" e de sell
papel na sociedade da época. Peças teatrais onde o negro deixa a posição de objeto para assumir
a de sujeito colaboraram para esse "descobrimento". Citamos como exemplo a peça dc Abdias
Nascimento Dramas para negros e prólogos para bral1(os (1961), Posteriormente, é criado em 1978 o
Movimento Negro Unificado (MNU), cujo objetivo principal é fortalecer a união das entidades
afro-brasileiras na luta contra a discriminação.
Muitos desses movimentos foram influenciados pelo moviment? caribenho chamado
N egritude, o qual nasceu de três ideias básicas: a construção de uma identidade: a rejeição de
uma arte baseada na cópia de modelos europeus; a revolta contra a política colonialista europeia.
Prisi9neira de uma mística de raça, porém, a negritude fracassou porque se restringiu a questões dos
valores culturais e deixou de lado a questão política e social que gera os verdadeiros preconceitos
que oprimem o negro. Bernd (1987, p. 42) afirma que, enquanto o negro não for capaz de
converter-se em agente histórico e político pela "destruição do sistema que o negou durante
séculos, não estará esgotado o ciclo que se instaurou com os primeiros negros quilombolas: o
da busca de sua completa emancipação como ser social e ser individual", Isso implica o conceito
de identidade dever ser tomado como um processo dinâmico de construção e desconstrução de
discursos, sistemas insti tuídos, história etc
Assim, apresentamos a seguir um quadro sobre as características e funções da literatura que nasceu
desses movimentos,
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-----

Características Expressão dos sentimentos profundos do negro; presença do "cu" enunci,ldor:


"rememoraçJo" de um passado coletivo; processo de questionamento: apresentaç:io
de testemunhos ou depoimentos (pref:icios. epíl-,'Tafes etc) que t\lllcionam como
manifestos de retlexJo dos pmhlcmas dos negros (tendência à teorizaçJo do parate:-.:to):
conta uma nova hIstória. do ponto de vista do negro; reverte imagens pejorativas sobre
o negro: nasce de uma reSIStência contra as ll1dica~-ôes de discriminação do negro
em nossa sociecLldc: desohedece aos padrões consagrados, revelando tonalidades
cdmutladas_
- - -

Funções Conscientlz,lr: comunicar em particular o sentimento do negro; afirmar a identidade


da negritudc: reencontrar a verdadeira imagem; evidenciar uma intencional atitude
de reSIstência; fornecer uma visJO do negro lIvre dos estereótipos através dos quais
a literatura tradicional sempre os retratou; vencer o "sufoco do silêncio imposto";
dar voz aos "homens invisíveis"; ser o porta-voz de uma realidade; resgatar a sua
Identidade através do folclore, do s1l1cretismo, do mito, mas também da história
brasileira; denunciar e protestar contra as situações de discriminação; despertar atravl~S '"
da palavra poética a consciência do negro para seus próprios valores; contribuir para
modelar a identIdade de um grupo social; revogar c Ljuestionar a tradição literária
que institucionalízJ () dIscurso sobre o negro; e, finalmente, preencher a lacuna da
literatura brasileira.

Quadro 3. Características e funções da literatura afro-brasileira, com ênfase na poesia.

Com base nesse quadro, focalizamos três constantes discursivas encontradas na literatura negra e
discutidas por Bernd (1987, p. 133-136):

El/lt'l:~(;l1á(l do "CII" flllll/{iador: produção da obra liter;íria como busca da própria existênCIa, pOIS
é atr:l\'és do texto que a passagem ou "translllut2ção" de objeto a sujeito ocorre
COIISIIII(eiO de lima «'slll,,~ol1ia: a referência às ongens tem o ohJetivo de pôr tlm ao estereótipo

do povo sem ongem (11~() só ligações com a "Mãe-África" IlUS com a história de seus
antepassados ,ksck o Brasil colônia). Por exemplo, o quilomho é Vlsto na literatura negra
como uma lllCt:í!(.ra de 11l)(Tcbde, organização social, l1.lnnOllla e Justiça- Faz-se então
necessária a ênfase à cnaçJo de modelos de identificação nano Ganga Zumba e Zumbi
de Palmares. Assim. na hmca p()r uma identidade, o negro preCIsa resg:ltar a sua memória
coletlva (tradiçües afnclllas) c nacional (releitura da história do negro no Brasil para reverter
estereótipos cnados ao longo da mesma).
Ordmareio de lima Ilova ordem simbólica: a apropriação de símbolos criados para subjugar,
interiorizar e estigmatizar o negro, como o navio negreiro e a senzala, permite ao
poeta transformá-lo em referenciais positivos, muitas vezes através da paródIa ou da
carnavalízação. Vemos isso em "Cantares da América" (Cantares ao meu ]Jovo, 1961), de
Solano Trindade: Lá vem o navio 1lfgreiro/Com carga de resistência/Lá ()em o naIJio l1egreiro/
Cheinho de inteligêllcia.

Esse sistema de apropriação e reversão de símbolos também se aplica a cores. Geralmente usada
como estereótipo negativo, a cor preta - cujo referencial remete a imagens de luto, medo, trevas ­
passa a repre'sentar a brasa, a força, a harmonia e o belo do negro. O vermelho representará não só o
sangue derramado pelos escravos ou pelos povos que sofrem, mas a cor de Iansã (deusa dos ventos e
das tempestades), a cor do poder; o verde vincula-se a Oxóssi, caçador e protetor das matas, logo, do
Quilombo dos Palmares, símbolo da resistência negra no BrasiL
Torna-se claro, portanto, que a literatura afro-brasileira reflete-se na busca da identidade negra no
Brasil e seu fortalecimento. Isso se caracteriza no resgate da História e na reconstituição de aspectos
ligados à cultura negra através de um olhar que não é mais o do colonizador c do dominador, o qual
tenta opacificar a presença do negro na construção da mesma, mas através do olhar do negro como
agente. Ao resgatar a história da destruição de Palmares, no poema "Para Domingos Jorge Velho",José

346 - TEU R I A LITERÁRIA


~ L 1 r I. j{ .-\ 1 li j{.-\ I) r .-\ l' 1 \) H I.'. I) 1 ~1 1 N \) j{ I.'.' f 1 N 1 \ \, 1 ' I " li.-\ 1 ,

Carlos Limeira (Cadcmos, 1980) aponta não somente para a destruição física do local. mas tamhém
para o "sonho justo da liberdade'".

DOMINGOS, bem que você poderia


Ter sido menos canalha!
Está certo que eras um filho da Coro,\,
Súdito leal.
E os negros de Palmares [ ... ]
Ora, negro é negro.

Jorge meu caro


Entendo que estivesses vendo seu lado,
Ouro, carne-seca, farinha, eram bem pagos
VELHO, o que me dói
É o tâto de teres com alguns milhares
De porcos dizimado um sonho
Justo de Liberdade.
E ainda por cima voltaste com
Três mil orelhas de negros.
TRÊS MIL!
Ontem senti um tremendo nojo
Quando te vi como herói no livro
de História do meu filho.
Mas foi no fim muito bom
Porque veio de novo a vontade
De reescrever tudo
E agora sem heróis como você
Que seriam no máximo, depois de revistos,
Assassinos, e bem baratos!

Em Roteiros dos talltãs (instrumento musical de origem africana), o gaúcho Oliveira Silveira (1981)
narra a "descoberta de suas origens":

Encontrei minhas origens


em velhos arquivos
livros
encontrei
em malditos objetos
troncos e grilhetas
encontrei minhas origens
no leste
no mar em imundos tumbeiros
encontrei
em doces palavras
cantos
em furiosos tambores
ritos
encontrei minhas origens
na cor de minha pele
nos lanhos de minha alma
.. ' em mIm
em minha gente escura
em meus heróis altivos
encontrei
encontrei-as enfim
me encontrei.

Assim, além de poetas como Oswaldo de Camargo (Um homem tenta ser anjo, 1959; O estranho,
1984); Cuti, também conhecido como Luís Silva (Poema da carapinha, 1978; Suspensão, 1983), e Paulo
Colina (Fogo cruzado, 1980; Planos de vôo, 1984), também contribuem para a "redescoberta" e afirmação
do "eu-negro" os contos Canga Zumba (1970), de João Felício dos Santos, A casa da água, de Antônio
T ........ Q" .. , .. " , - , I J ,'".,. n . .. ,. 7 .• , o.' / " .. , • " ....... ",. \ 111,

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Olinto, e Os tal/lbores de Silo LI/Ís (1()7S) de Josué Montello. Não podemos esquecer o romance de
Adonias Fílho LI/a/lda Beira Atii(ll (1977). no qual o autor representa a trajetória da colonização europeia.
enfatizando conscientemente a importância do elemento africano em nossa formação cultural.
Em seu sentido amplo. podemos dizer que a líteratura afro-brasileira constitui-se como "literatuLl
de resistência", pois, como assevera Bernd (1987, p. 86), ela se constrói sobre a "matéria da cultura
africana que sobreviveu na América eI1l presença dJ cultura europeia e indígena". O escritor afro­
brasileiro faz uso do "aporte desta cultura resistente em uma produção que ser\'irá para singularizar
um grupo, t<.xnecendo-lhe mitos, símholos e \·alores. em suma. elementos que permitem a emergência
de uma imagem positiva de SI próprio".

LITERATURA HOMOERÓTICA

Como na literatura indígena e na afro-brasileira, a história da homotextualidade ainda está em


processo de construção e autodetlnição no campo da legitimidade institucional. Limitar-nos-el11.0s.
portanto, a um levantamento introdutório sohre o tema gay e sua produção líterária, segUIndo uma
perspectiva histórica. Concelltraremos nossa discussão na delimitação de uma perspectiva sobre os
discursos homoeróticos masculinos que transitam entre diversos gêneros literários, discutindo como
a problemática das relaçóes homonóticas emerge através de temas. comportamentos e personagens.
Assim, apresentaremos algumas obras. ora isoladas, ora em contexto de articulação com outras obras,
a partir do século XIX.
Nesse mapeamento histórico-literário não podemos deixar de considerar que temos como
pano de fundo a existência de uma divisão do ser humano em classes essenciais quanto à "natureza"
de sua sexualidade - a dualidade heterossexualidade/homossexualidade - sendo que o termo
"homossexualismo" surgiu somente 110 século XIX, conforme aponta Foucault (1986). Torna-se
relevante discutir que a normalização da heterossexualidade no BrasiL transvestida de uma aparente
flexihilidade e aceitabilidade sexual, é responsável pelos processos de exclusão e relações de poder
derivados desses processos, que limitam e marginalizam a discussão sobre a identidade homocrótica.
No século XVTIl, por exemplo, qllJndo ainda não havia se definido um vocabulário distinto para
as diferenças da sexualidade, a medicina oitocentista classificava os homossexuais como "invertidos
sexuais". Como resultado disso, a homossexualidade ganha o seu estigma sexual dentro de um
contexto moral/religioso que se apresenta envolto por ide ias de "pecado", "perversão" e "anomalia",
como transgressões à ordem heterossexual vigente.
Como foi discutido anteriormente, o levantamento histórico de grupos oprimidos resgata a memória
fundamental para se entender os processos identitários experimentados em cada grupo. Observamos,
porém, que, em sentido lato. tal levantamento deve ir além de ressentimentos, mitific;;lções de histórias
de resistência, da opressão c repetição de estereótipos produzidos por ideologias oficiais; no caso da
literatura homoerótica, a misogenia, a homofobia, o heterossexismo, entre outros. Nesse prisma, a
revisão histórica construirá memórias alternativas constituídas em um referencial político central para
a constituição de uma sociedade multicultural como a brasileira. Dentro dos estudos homoeróticos.
observamos a presença de uma emergência política muito próxima dos Queer Studies americanos, ainda
pouco exercitada pelos grupos indígenas e afro-brasileiros.
Apesar de bastante marginalizado, principalmente nas prateleiras das livrarias, o envolvimento
político-literário de grupos homoeróticos militantes tem chamado a atenção de algumas editoras para
a temática da homotextualidade. O selo criado pela Summus Editorial, em 1998, as Edífões GLS (gays,
lésbicas e simpatizantes), tem dado a oportunidade a escritores de serem melhor recebidos no mundo
literário. Em 2000 eles promoveram um concurso literário de contos, originando o livro Triunfo dos
pêlos e trazendo um prefácio assinado por Silvério Trevisan. Dois anos antes, a editora Record lançara
14R - T F () n I A LITERÁHIA
~ I I I r H .\ I U H ..\ I) I .-\ \' r () H 1.-\ I' I \1 I N () H I ..\ \ r I N I C .-\ \ F ' I '\ t .\ I \

a coleção CO/ltralll;:: (poesias, romances, contos, biografias e ensaios), abordando a temática sexual,
especificamente dirigida ao público GLS.
O trabalho pioneiro de levantamento de uma produção literária da homoteX1:ualidade brasileira é
o livro Dellassos /la paraíso (2000), em sua 4' publicação revista e atualizada desde 1986, no qual Silvério
Trevisan apresenta uma história completa da homossexualidade, do período do Brasil colônia até o fim
do milênio. Em uma linha próxima a esta pesquisa, temos a obra do brasilianistaJames Green (1999),
intitulada Além do carnaval: o homossexllalis/llo 110 Brasil do século XX. Com informações de base desses
livros, iniciaremos este resgate histórico no final do século XIX, com o romance Bom-criolo (1895), de
Adolfo Caminha, considerado o fundador do homoerotismo na literatura brasileira.
Considerada a obra literária pioneira da representação da homossexualidade, o BOI/l-criolo
apresenta a franca explicitação do relacionamento entre dois marinheiros, Amaro e Aleixo. Marcado
pelas características do Naturalismo, o texto transita próximo à representação do Romantismo; porém,
apesar de sua linha dramática, não é uma obra romântica-apelativa. Amaro, homossexual, virgem até
os trinta anos, negro e protagonista, é iniciado ao amor através de Aleixo, adolescente andrógino,
que vê Amaro mais como um amigo do que companheiro eterno. A paixão de Amaro pelo jovem só
cessa com a morte, após sua degradação pela bebida, humilhação e violência. O texto fala da busca da
liberdade e constitui-se na representação de espaços que ora libertam, ora aprisionam; são felicidade
e "túmulo de ilusões".
Contrapondo-se à franca explicitação dos sentimentos de Amaro e Aleixo, O Ateneu (1888), de Raul
Pompéia, fala sobre a representação da sexualidade das classes dirigentes, de uma sociedade rigidamente
dividida e hierarquizada entre o masculino e o feminino. A questão de sexualidade e poder cria a divisão
entre os alunos masculinos e femininos - rapazes tímidos e ingênuos, representando "as meninas",
os quais são silenciados pela sociedade, criando nesse espaço discrepante uma ruptura entre fortes e
fracos (divisão misógina e homofóbica). Frisa-se aqui que, para o bem da moral vigente, as amizades
particulares não devem cruzar o limite da sexualidade. Como uma crítica aos internatos, o romance
abre espaço para uma crítica à pouca virilidade dessas instituições, que escondem sua permissividade
sob a capa de uma falsa moral e valorizam, sobretudo, a aparência e o poder do dinheiro.
No século xx, o Modernismo marca a emergência de figuras decisivas da identidade homoerótica:
o culpado e o solteirão. A primeira figura está marcada pela forte angústia religiosa e/ou existencial do
indivíduo, como a Crônica de lima casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso. Nessa crônica, vemos a
solidez de uma família patriarcal desestruturada por uma linhagem de diferença: uma antepassada que
se vestia de homem; o adolescente andrógino; o travesti isolado em seu quarto usando roupas de sua
mãe, na busca da verdade e beleza. Já a figura do homem solteiro assume a carga da solidão em meio à
espera do companheiro ideal, aquele que talvez 'Já nos tenha procurado [ ... ] e não soubemos ouvir, e
muito menos identificar. Esperávamos sem estar preparados para a espera", declara o protagonista em
Os solteirões (1975), de Gasparino Damata (apud LOPES, s/d).
Nos anos 1960 e 1970, período em que se discute a sexualidade em suas relações sociais, econômicas
e polític~s, nasce, pela organização de Gasparino Damata, a primeira coletânea de assuntos gays na
nossa literatura, intitulada Histórias do amor maldito (1967). Nesse período, a literatura homoerótica
carácteriza-se por colocar em cena a repressão política e sexual, por buscar uma imagem que se
distancie da autonegação e por uma narrativa direta (neonaturalista). Citamos, como exemplo, O sexo
portátil (1968), de Luiz Canabrava, e Crescilda e os espartanos (1977), de Darcy Penteado. De forma mais
crua e agressiva, vemos também nesse período a poesia obscena de Glauco Mattoso, Em memória de um
puteiro (1981), na qual há um forte fascínio pela impureza.
Quando essas forças utópicas e rebeldes dos anos 1960 e 1970 começam a perder sua energia,
começa a surgir com o Pós-modernismo uma literatura que transita entre a melancolia e a alegria, a
deriva sexual e o temor à AIDS, solidão, ternura e busca de novos tipos de relações. Nos anos 1980 e
1990 o que define a literatura gay, enquanto gênero literário específico, não é simplesmente revelar o
cotidiano sexual dos "diferentes", "perversos" e "invertidos". Trata-se sobretudo de transformar em
matéria de arte e reflexão a experiência muito contemporânea do que vulgarmente se chama "sair do
armário", um atitude pessoal séria, não folclórica, exercício de cidadania fundamental ao surgimento

THOMA\ BONNI< l/LúCIA Oc.. .\ NA ZnllN (OR(;ANIZAIHHtE,\) - 149


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da militância gay. Nesse período. Ítalo Moriconi (2002) destaca que a literatura homoerótica apresenta­
se em três dimensões básicas: a sentimental. a erótico-pornográfica e a escrita da AlDS.
No quadro de uma trajetória sentimental. a literatura fala do amor. da solidão e do afeto em i
~
;
uma narrativa intimista. Há uma ênfase na volta à intancia e à adolescência, fragmentos da memória I

como forma de ajuste de contas. cercada pela família. pela moral. Isso pode ser observado nos contos
"Pequeno monstro", no livro Os dra.'Sõl's lIiio conhecem o paraíso (1988), de Caio Fernando de Abreu;
"Sobreviventes" em Troços I' destroços (1997). de Silvério Trevisan, e na novela KeithJarrett 110 B/lle Note.
de Silviano Santiago (1996).
No campo erótico-pornográfico. Luís Capucho, com Cinl'lIla ar!)' (1999). aparece no meio da
obsessão sexual e das dezenas de relações anônimas diárias. mostrando que mesmo os gays mais
devassos desejam sobretudo amor, afeto e carinho. As ruas. clubes e bares transformam-se em espaços
de encontros furtivos que traduzem a instabilidade do desejo e passam a constituir lugar comum para
a busca da afetividade. O poema "Noturno", de Ítalo Moriconi, exemplifica bem essa busca: "Colhi
este rapaz do oco da noite/entre uma esquina e antigas angústias". Essa busca frenética, cuja base
está no desejo, mostra-se insatisfeita em .Mell corpo daria /1111 romance, de Herbert Daniel: "Quando
comecei a frequentar os lugares de pegação, abusei de trepar anonimamente, perdendo minha noção
de individualidade egoísta para ser estritamente corpo genitalizado, sedutor e seduzido, em fadas
gostosíssimas e nada além do que o gosto inonimado da fada". •
A escrita da Aids é composta por textos que tematizam a experiência de adquirir, viver com, e
finalmente preparar-se para morrer em consequência da condição de soropositivo. O tema da Aids
perpassa as obras completas de Herbert Daniel e Caio Fernando de Abreu, assim como o romance
Uma história de Jâmília (1992), de Silviano Santiago. Mencionamos aqui também Teixeira Coelho e
sua novela epistolar Os histéricos (1993), e o depoimento seco e sem sentimentalismo de Bernardet em
A doença: uma experiência (1996, p. 31), no qual o protagonista diz "não perder tempo a não ser que
seja de modo agradável com os amigos. Escrever-lhes, ainda que tarde. Receber cartas deles, ainda
que tarde" (p. 31). No entanto, em "Anotações sobre um amor urbano", em Ovelhas negras, de Caio
Fernando de Abreu (1982), nota-se mais claramente a expressão de insatisfação seguida de formas
estratégicas de sobrevivência: "Tenho pressa, não podemos perder tempo [... ] Amor, amor certamente
não. [ ... ] Viver agora, tarefa dura. De cada dia arrancar das coisas, com as unhas, uma modesta alegria;
em cada noite descobrir um motivo razoável para acordar amanhã."

CONCLUSÃO

À guisa de cónclusão, podemos afirmar que a problemática da literatura de autoria de minorias


étnicas e sexuais confunde-se com a problemática político-social desses grupos. É inegável que índios,
negros e homossexuais são marginalizados em nossa sociedade. Seu conjunto de características causa
estranheza nos meios letrados por ser visto como constituinte do "outro", aquele que não sou eu,
com quem 9ão me identifico. Quando muito, esse conjunto pode ser analisado como objeto de
estudos, levando a sua folclorização ou mitificação como forma de isolar elementos para uma melhor
compreensão e consequente dominação.
Entretanto, estamos cientes de que, embora tenhamos neste estudo "catalogado" grupos de
produções literárias e seus autores, segundo determinado critério - a marginalização étnica e sexual
-, tal "rotulação" deve-se a fins acadêmicos, que carregam consigo elementos que proporcionam,
ao mesmo tempo em que restringem, os significados para os leitores. Pretendemos contribuir com
a proliferação de significados na medida em que desejamos trazer para a discussão acadêmica vozes
de autores e textos traduzindo temas originários de grupos específicos que não costumam dispor
de muitos ouvidos, fora desses grupos, para ouvi-las. Ao mesmo tempo, entretanto, procurando

350 - T E o R I A LITERÁRIA
""'\L~ l I I I H,\ I [' H \ I) I \ I \ ]< I \ I) j. \ \ I N t) R I :\ \ L I N 1 ( \" ~ ,,!"\.. l: ."\ I \

moldar tais textos ao padl<lo acadêmico, corremos o risco de deixar escapar significados distll1tivos,
pasteurizando-os segundo a cultura dominante
De qualquer forma, a academia sai ganhando com a incorporaç'ão da liteLltura não-canônica ao seu
campo de estudos, ao passo elll que pode IT\'er valores e perceber formas de e~lJressão de significados
H'icubdos não apenas através do "eu" ou do "outro", mas, também, através do contato, do contlito,
da disCUSSJo.

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I 1 T 1: D
PARTE VI

outras artes

.'
~i

'LITERATURA E PINTURA

Clarice Zamonaro Cortez

A imagem, segundo os críticos mais renomados, exerce, nas sociedades contemporâneas,


um protagonismo evidente. A relação entre a palavra e a imagem, entre a palavra e as coisas
(e a sua representação) tem sido um tema constante nos processos de comunicação entre os
homens. Desde os mais remotos tempos, essa ideia de fraternidade das artes esteve presente
no pensamento humano, justificando algo muito mais profundo do que a mera especulação.
Mário Praz (1982) aponta esse fato para uma sondagem esclarecedora do mistério da criação
artística, argumentando que, desde os tempos pré-históricos, as ideias foram traduzidas
em sinais abstratos traçados na pedra, seguindo-se-lhes os hieróglifos e símbolos da escrita
egípcia.
Na Era Clássica, os textos místicos, dramáticos e científicos também foram ilustrados,
do mesmo modo que as iluminuras complementaram a escrita na Idade Média, atendendo às
necessidades de comunicação da época. Eram livros escritos a mão e decorados com pinturas
e ornamentos de diferentes tipos. A palavra "iluminura" vem do 11S0 do verbo latino iluminare,
em conexão com o estilo oratório ou narrativo, significando "adornar" (Figura 1).
Esse paralelismo entre as letras e as artes plásticas, em geral, atinge o seu ponto culminante
nos séculos XV e XVI, respectivamente. Entre as inúmeras preocupações dos humanistas
italianos, destaca-se o conselho de Leone Battista Alberti (1404-1472) aos pintores, sugerindo
uma familiarização com os poetas e retóricos, que resultasse no recebimento da inventio, ou
no estímulo à descoberta de temas pictóricos. Há o registro, nesse sentido, de que Agnolo
Poliziano (1454-1494), poeta e humanista italiano, tenha sido o consellreiro do pintor Sandro
Botticelli (1445-1510), famoso pelas suas telas em que se evidencia uma leitura pictórica da
mitologia clássica. Partindo dos versos de Poliziano, contidos em suas Estâncias, Botticelli
criotfum espaço simbólico em sua tela (1,84 x 2,85) para concretizar a leitura e a interpretação
do nascimento de Vênus, segundo a narrativa mitológica e os versos do poeta italiano:

Una donzela non con uno manto volto

da Zeferi lascivi spinti a proda,

zir soura un nicchio;

e par de il ciel ne goda (FRANCASTEL, 1982).

Os textos de Poliziano, entretanto, resultam da intertextualidade com os de Anacreontes, Hesíodo,


Ovídio e de hinos homéricos:
É Afi-odite. a bebo a vIrtuosa que quero cantar.
O sopro do vento oeste trotlxe-J
da espUI113 que forra por cima do mar prolllIldo i
até Chipre. a sua Ilha com as margens franjadas de vagas.

E as horas coroadas de ouro

J
acolheram-na com alegria (FRANCASTEL 1982).

Figura 1. Iluminura Epitre D'Othéa, 1410, Critine de Pisan.

Comentando o exemplo acima, fica claro que o pintor passou da narrativa poética sobre o
nascimento de Vênus (o dito) para o pictórico, ao produzir a tela O Nascimento de Vênus (o visto),
famosa, hoje, no Museu Galleria degli Uffizi, em Florença. Considerada a deusa dos amores, da
formosura e de todas as graças e delícias pelos antigos, os autores fazem menção de quatro (como
Cícero, no livro De natura deomm), mas os poetas costumam confundi-las e tod-as vêm a reduzir­
se à que finge haver nascido da espuma do mar, de onde, possivelmente, foi levada a Chipre pelas
ondas do mar em uma concha (Figura 2).
Vênus foi uma manifestação das facetas femininas para a cultura grega clássica: deusa do amor, da
beleza, da reprodução, da proteção, da sedução, da pureza e do erotismo. E, como tal, representada nos
afrescos das paredes, pintada em vasos e ânforas, esculpida em umas funerárias, moedas e na estatuária.
Correspondeu a cânones que Policleto e Praxísteles elaboraram ao buscar um ideal estético feminino.
Esse cânone era codificado em medidas, tais como a que media a distância entre os dois mamilos, ou
aquela que separava os mamilos do umbigo e o umbigo de entre as pernas. Durante muito tempo,
tais medidas foram canônicas e, posteriormente, caíram em descrédito e voltaram a ser utilizadas no
Renascimento, tanto em pinturas como em esculturas, principalmente naquelas decorrentes de temas
mitológicos.
~ L I T F I( ,\1 U H.\ F i' I N I \. H ,\

Poetas da Antiguidade greco-romana também foram tomados como modelos a serem imitados,
reaparecendo os clássicos poemas pastoris, elegíacos, odes, éclogas, epopéias L hinos homéricos. NA
tela em questão, o pintor passou do verbal (o dito), a narrativa sobre o nascimento de Vênus, paLl
o não-verbal (o visto). A representação do mundo mítico nesse simbólico texto pictórico (a tela)
foi feita por meio da linha e da cor. A temática do nascimento da deusa grega do amor, Mrodite, foi
inserida na cultura florentina da época. A tela de Botticelli é uma figurativização das esculturas gregas
e do texto narrativo mitológico. Comunica-se com o espectador por meio da sinésica, ou ciência da
gestualidade.

Figura 2. Nascimento de Vênus (1484-86). Sandro Botticelli, Galleria degli Uffizi, Florença.

SegundoJulia Kristeva (1974 apud AGUIAR E SILVA, 1990), a gestualidade é uma prática e, como
tal, o gesto que transmite uma mensagem num quadro é mais do que linguagem - é a elaboração
da mensagem - o trabalho que precede na comunicação, mais a realidade apresentada, representada
e representável. O gesto pintado ou esculpido não é somente um gesto, integra-se no conjunto
decodificado da representação figurada. Tudo na tela em questão é movimt;nto: mar, flores, folhas,
cabelos, tecidos e gestos.
Os versos "É Mrodite, a bela, a virtuosa que quero cantar/ o sopro do vento oeste trouxe-a" estão
retratados na tela pela elegância da figura feminina que nasce das águas e navega sobre uma concha
impelida pelos ventos, mostrando a esplêndida nudez, nascida da espuma do mar, no momento em
que toca a terra. Do mesmo modo, os versos "E as Horas coroadas de ouro/Acolheram-na com alegria"
também estão presentes à direita da tela, na figura da deusa Primavera, que avança para receber Vênus,
estendendo-lhe um manto repleto de flores. Ela, a princesa, veste uma roupa azulada e florida, portando
um colar de mirta. Seus cabelos, com tranças semidesfeitas, voam ao vento, misturados às folhagens de
três loureiros, símbolos da imortalidade. À esquerda, Zéfiro e Clóris, suspensos por asas e envolvidos
por roupas esvoaçantes, sopram, com força, a fim de conduzir Vênus à terra, ao mesmo tempo em
que dispersam, pelos arredores, buquês de rosas. Botticelli metamorfoseou Vênus ("Mrodite, a bela, a
virtuosa que quero cantar") e sua sensibilidade foi substituída pelo olhar contemplativo e pelos gestos
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.
pudicos da deusa. A linguagem gestual, como atesta Kristeva (1974 apud AGUIAR E SILVA, 19(0).
constituiu-se na própria mensagem.
O escritor dos séculos XV e XVI, assim como o pintor, foi antes de tudo um criador. O poeta,
que especulava como um filósofo, pretendeu desenvolver, igualmente, a sua capacidade sensorial de
"pintar", numa crescente preocupação de atribuir aos te:x'tos escritos um caráter pictórico, produzindo
imagens a partir de representações plásticas. O texto deveria agradar à vista e ao entendimento e a
palavra deveria ser uma realidade visual nesse apelo à plasticidade. Nos séculos sllbsequentes, essas
questões foram revistas através das produções artísticas e das inúmeras discussões filosóficas e críticas
da Poética de Aristóteles e dos conceitos de mimesis, base sólida do pensamento clássico que então
vigorava.
Numa época em que a arte pictórica reclamava uma visão cognitiva, no caráter heurístico, apontado
por Platão e mais tarde pelos neoplatônicos, a Poesia e a Pintura assumem um papel essencial. Em
Portugal, foi o pintor Francisco de Holanda, em 1538, que estabeleceu um paralelo entre as duas artes,
permitindo a real distinção entre as expressões ut pietura poesÍ5 (como a pintura é a poesia) e ut poesis
pie{ura (como a poesia é a pintura). Outra figura de destaque foi Frei Heitor Pinto, ao reafirmar em
sua obra Imagem da vida cristã (1563 e 1572), muta poesis, eloquens pietura (muda a poesia, é a pintura que
fala). ArItônio Ferreira (1528-1569), considerado o mais fiel seguidor de Horácio e o mais consc~ente
do Renascimento português, equaciona a arte da palavra poética com a arte das cores, numa alusão
direta à teoria da pintura. Exemplificam os seus versos:

Já de longe resplandece
teu raio, e a tua chã pintura
nova aos olhos do Mundo
oferece-se.
[ ... ]
Não lágrimas fingidas, não de cores
falsas o rosto tinto; não cortadas
as palavras por arte, nem pintadas
em versos engenhosos, falsas dores.
[ ... ] (FERREIRA. 1980, p. 65)

Nos versos acima, o eu-lírico refere-se à poesia como escultura: as palavras cortadas [... ] por arte e à poesia
como pintura:jãlsas dores/ pintadas em versos engenhosos, sugerindo sempre que o poeta não escreve. mas pinta
e esculpe, numa espécie de substituição simbólica da pena pelo pincel e pelo cinzel, respectivamente.
Preocupado sempre com a causa final da poesia, o ensinar e o agradar (doeere et delectare) , o poeta português
ArItônio Ferreira procurou atribuir o caráter plástico à sua poesia, ressaltando o sentido da visão do leitor,
para que a "lição" fosse mais bem apreendida. Do mesmo modo, Pêro de Andrade Caminha (1520-1589),
seu discípulo, defendeu a ideia de que a poesia deveria imitar o il di dentro (o interior); reafirmou essa ideia
nos versos ''[...] vi muito/senti muito/nos doces brandos, graves, doutos versos! [...] Neles vi pintadas/ as
vãs inquietações da humana vida", em sua Epístola XI.
Essa trajetória poética culmina com a figura de Luís de Camões, também poeta do mesmo século,
em Portugal, o qual reúne em sua poesia fatores de extrema importância, como o contato com as obras
de arte (plehas de vida e de beleza, dignas de culto e de admiração), a valorização do corpo humano,
objeto de contemplação e de elevação espiritual e, finalmente, o contato com paisagens exóticas que
levaram o poeta (e o artista renascentista) a encontrar protótipos de tudo o que era grandioso no
universo visível. Está presente, portanto, em toda a sua obra, essa ideia de uma arte verbal que pudesse
suscitar tais visões, a partir de uma arte figurativa, auxiliando na construção de uma "poesia que
pinta".
Esse breve histórico percorrido teve o propósito de introduzir o leitor nos processos de composição
da poesia e suas implicações com a arte visual. Vimos que a literatura e a pintura têm-se mantido
"criações" distintas, historicamente. Esse fato leva-nos a questionar se haveria um desconhecimento

358 - T E o R I A LITERÁRIA
~ L 11 f H ..\ 1 LJ H.\ F P I !'J ·1 U H .\

entre elas ou de uma delas dos que a praticam, ou ainda se essa aproximação poderia ser denominada
um simples equívoco, como afirma Dionísio (1983).
Vários estudos têm polemizado o paralelismo e a analogia entre a literatura e a pintura,
particularmente entre a poesia e a pintura. Essa comparação tem desencadeado vivas polêmicas estéticas
e filosóficas, no entanto justificadas por práticas milenares, procedentes do próprio ato de escrever,
que pode ser interpretado como ato de marcar, de gravar ou de rasurar. E, quando desprovido de sua
normatividade, mais se aproxima do desenho e se afasta da leitura.
Iniciemos as nossas reflexões considerando que a escrita obedece a regras para ser legível e, quando
desconsideradas, acarretam sanções em todos os níveis, podendo essa atitude ser classificada como ato
irreverente ou antissocial. Desde a Idade Média, o livro e os escritos sagrados eram muito prestigiados e
tinham considerável peso sociocultural. A arte da caligrafia, de difusão muito restrita, revestia-se de um
caráter sagrado e de certa forma superior; ao contrário da imagem, que poderia suscitar interpretações
ambíguas, era censurada e evitada com frequência. As iluminuras e as miniaturas cumpriam uma
comunicação autêntica e uma hermenêutica sagrada, visto que a imagem não dispensava a tutela da
escrita e, muitas vezes, a sua leitura não era correta, excetuando-se a dos artistas.
Torna-se, assim, obrigatória a arte escrita manual na formação escolar, a partir do século XVI,
atingindo o seu ápice no século subsequente, ou seja, no período barroco. Escrever com artç tornou-se
um ato de civilidade, a tal ponto que o gesto e o controle da mão deveriam guiar corretamente a pena
para que a letra fosse degante e rebuscada (Figura 3).

Figura 3. A arte caligráfica.

Essa legibilidade foi reiterada pelos estudiosos dos séculos posteriores, embora afastados
das ·preocupações sociais e decorativas do passado, como o consagrado linguista Ferdinand de
Saussure, por exemplo, ao estudar o funcionamento da escrita por oposições recíprocas dentro
de um sistema linguístico. Mas é na prática da escrita que as palavras irão adquirir diversos
significados, podendo assumir um grau de visualismo e de simbolismo, lembrando uma tela ou
uma ilustração.
A escrita sempre pressupôs a imagem, mesmo anteriormente à sua fonetização, como, por exemplo,
nos primitivos desenhos das cavernas, que ainda não obedeciam a nenhum código de representação
gráfica, ou na escrita egípcia e chinesa com os seus abstratos ideogramas, que se afastam do figurativo.
Finalmente, a escrita fonética (impressa ou manuscrita) nunca deixou de corresponder a um gesto
plástico, capaz de promover a atração do visual.
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;
Do TEXTO À IMAGEM

Em todos os tempos o homem interessou-se pela escrita e pela imagem. Devemos reconhecer
que em nenhuma outra época foi-lhe dedicada uma paixão comparável à da atualidade. Já não
somos homens só de pensamento ou só de regras imbatíveis; além disso o nosso alimento
interior não se resume mais nos textos. O momento histórico atual é conduzido pelos choques
sensoriais, em especial pelos olhos e ouvidos. Ao simples toque de uma tecla, chegam-nos
imagens e sons de qualquer parte do mundo. Esse processo é, sem dúvida, irreversível.
Cada vez mais crescem as relações possíveis entre o texto verbal e o não-verbal. O paralelo entre
literatura e pintura encontrou na Arte Poética, de Horácio (1984), uma tradução mais atualizada da
expressão ut pictura poesis, que se tornou célebre.
Voltando-nos ao mundo helênico, podemos examinar os poemas de figuras, verdadeiras
manifestações de erudição, presentes em constantes alusões mitológicas, nas quais palavras raras,
perífrases eruditas e trocadilhos concorriam ao pouco valor literário que possuíam. Esses poemas
configuravam, em seus versos, formas diversas de animais, instrumentos musicais e altares de diversos
deuses. Curtius (1957) refere-se a eles, também presentes na literatura persa, por herança grega, e
posteriormente recuperados no século XVI. Encontraremos algumas reabilitações desse tipo de escrlta
na época barroca e, como experimentação gráfica, na época moderna, pela sua extrema simplicidade
de elaboração.
Toda essa teoria clássica, que aproxima a literatura da pintura, está fundamentada na lIIetáfora,
conforme as conclusões dos textos teóricos que discutem o assunto. Essas leituras decorreram
de uma primeira deficiência, ou melhor, da falta de uma reflexão estritamente pictórica, visto
que as considerações sobre a pintura incluíam-se no âmbito das poéticas clássicas, acentuando­
se a ideia da unidade das artes com base na semelhança dos processos criativos de uma mesma
natureza mimética fundamental. Tanto o poeta como o pintor movimentam-se num mundo de
perspectivas, e a obra de arte (poética ou pictórica) encontra a sua razão de ser nessa plurivalência
estética.
Esse empenho estendeu-se até o século ~ conforme estudos apresentados. Desde o século xv,
os homens foram livrando-se dos entraves que lhes eram impostos à atividade intelectual, alcançando
o pleno desenvolvimento de suas forças, conseguindo criar um novo tipo de humanidade - o homem
que tende, por sua intelectual idade e moralidade, a dominar todos os recursos da natureza e deles se
aproveitar para edificar uma vida feliz sobre a terra, sem esperar a recompensa eterna que a religião
lhe prometia após a morte. Espécie de "renovação das energias humanas", também considerada um
movimento religioso e místico no interior do próprio Cristianismo, a Renascença, em pleno século
XVI, tornou-se o princípio dos tempos modernos na Europa.
Com os descobrimentos, o horizonte intelectual dos europeus ampliam-se. Matemáticos
e astrônomos realizaram grandes descobertas que eram confirmadas pelos navegadores de
mares perigosos e terras habitadas com vida, crenças e hábitos próprios, abalando os antigos
valores ensinados pela Igreja, mas reforçando o impulso e a vontade de levar em frente as
pesquisas cie,ntíficas, esclarecedoras da exata situação do homem no universo. Foram três os
momentos supremos dessa época: o acordar do espírito que se lança irrefletidamente nos braços
do mundo novo que descobria; a dúvida ou o estado de luta e a indecisão que se levantaram no
espírito e, finalmente, a resolução forçada de voltar ao passado e a sua reação. Em todos esses
momentos, o homem assume o papel de sujeito da história e do progresso. Na primeira época
do Renascimento, o mundo cristão, com a Igreja à frente, abraça o mundo antigo, e as grandes
figuras da época, como os humanistas Marsílio Ficino, Pico della Mirandola, Lorenzo de' Medici,
entre outros, defendem a reconciliação de Jesus e Platão, de Orpheu com Moisés. Creem nos
profetas bíblicos como nas sibilas, musas e ninfas. Espiritualismo e paganismo materializam
o Cristianismo herdado da Idade Média, formando a alma dos mármores de Michelangelo e

360 - T E o R I A LITERÁRIA
x~ L I I I fi .\ T U H.\ I I' I N I I I' '.

das telas de Rafael e Leonardo da V1I1ci. O caminho da civilização estava ellcontrado. a cle as
pessoas deveriam se lançar.
A literatura dessa época foi marcada pelos descobrimentos como a maior contribuição para
a cultura do Renascimento. Obras C0l110 Ásia, de João de Barros, Peregrirzafão, de Fernão Mendes
Pinto, relatam vivamente as viagens, os naufrágios e as aventuras em diferentes terras, onde os
valores da civilização eram diferentes. Destaque para Os LlIsíadas, de Luís de Camões, considerado
unanimemente pela crítica, o expoente máximo desse período fértil em Portugal, ao retratar o
cenário Já apresentado por Vasco da Gama, integrando-se nesse espírito de valorização étICa das
descobertas marítimas, enquanto manifestação da capacidade do homem em "dar ao mundo novos
mundos". E foi diante desse novo mundo, sentindo-o, descrevendo-o, que se recolheu Camões
dentro de si mesmo.
N uma trajetória heróica, descreve mares, céus, perigos, aventuras e desventuras dos
descobridores. Deuses do Olimpo, num concílio constante, decidem a grande viagem.
comportando, ao mesmo tempo, uma análise ideológica e uma investigação lírico-mItológica.
Faz uma verdadeira imersão no mundo pagão, com poder erótico, força lírica e visão mitológica
que acabam por influir em sua concepção de beleza e indicam-lhe o ponto de transcendência das
coisas perecíveis do mundo e das verdades da época.
Inúmeros estudos já registraram o poder de sua linguagem visualista, que conduz o leitor
para o plano do imaginário, possibilitando-lhe a construção de quadros e cenários. A sua larga
experiência do mar, onde naufragou, faz com que a sua capacidade criativa e o seu poder verbo­
visual ofereçam aos olhos do leitor uma grande tela, cujo cenário é o mar e o vento, ao longo
do seu poema épico. Ao iniciar a narração, um quadro do primeiro momento da viagem já
pode ser esboçado, observando-se o aspecto imponente das embarcações a caminho de Ceuta.
A sensação de amplidão pode ser sentida nos primeiros versos (largo Oceano/inquietas ondas), no
momento em que o vento brando "respira", provocando nas naus um inchaço, enquanto as águas
cobertas pela espuma branca são cortadas pelas proas das embarcações, que vão obedecendo ao
ritmo inquieto das ondas, A grande aventura estava sendo iniciada, rumo ao desconhecido, ao
inusitado:

Já no largo Oceano navegavam,


As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respIravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam

Cobertos, onde as proas vão cortando

As marítimas águas consagradas,

Que do gado de Proteu são cortadas (CAMÕES, 1982, p. 54).

É admirável a criação poética e plástica de Camões, que se prolonga no decorrer do poema:


retratos, cenas trágicas e batalhas dramáticas que, ao longo da leitura, são desenhadas pela intuição
do leitor, num desdobrar permanente de quadros compostos pelas "pinceladas" da adjetivação, das
comparações e metáforas, pela força de expressão dos verbos e pelos inúmeros sons sugeridos.
O se~ discurso torna-se uma pintura, passando a ser uma "ilusão de pintura", e nesse universo
da representação o visível é reduzido a uma crença, ou a uma ilusão produzida pelas qualidades
retóricas da própria linguagem.
É no mundo mitológico, possivelmente através do mito grego ou da Gigantomachia de
Claudiano (século IV) que Camões pinta um extraordinário retrato, concretizando com a
sua prodigiosa imaginação os elementos fantásticos que povoavam os mares desconhecidos.
Referimo-nos à figura mitológica do gigante Adamastor (Canto V, 37-60), motivo de variado
estudo e que tem sugerido inúmeros modelos para :l pintura e para a escultura. Vale recordar
que no século X\lI os descobrimentos de novos mundos e o renascimento da cultura greco­
latina repuseram a ampla literatura sobre monstros e prodígios, \'istos e interpretados como um
sinal da ira divina,
Surpreendidos em plena noite, os m;mnheiros dIstraídos, sentados na proa da nau, depois de cinco
dias claros (cinco sóis), surge uma nuvem negra tão temerosa e rarrec<?ada que atemoriza toda a tripulação,
levando o Gama a interpelar o próprio Deus Todo-Poderoso. A aparição do monstro (estâncias 39-40),
caracterizado física e psicologicamente nos versos através de uma adjetivação sugestiva e abundante
(por vezes dupla e superlativada), relaciona a imponência da figura e o terror e a estupefação do Gama
e de seus companheiros:

[... ] quando IlUa figura [... ]

Se nos mostra no ar, robusta e válida

De ,i!sfónIlc e grandIOsíssima estatura:

() rosto carregado, a barba esquáhda,

Os olhos encovados, e a postura

Medonha e má, e a cor terrena e pálida:

Cheios de terra c crespos os cabelos,

A boca negra, os dentes amarelos.

Tão grande era de membros, [... ]

C'um tom de voz nos fala, horrendo e grosso.

Que pareceu salr do mar profundo (CAMÕES, 1982, p, 184).

o cenário do retrato é o negro mar (palco improvisado), que batia furioso "como se desse
em vão nalgum rochedo", Aparece, primeiramente, ao Gama, sob a forma de uma súbita nuvem
carregada que os ares eswrece, descrita como figura de um estranho ser que habita nas profundezas
do mar. Em resposta à invocação do Gama, surge essa figura do desconhecido, do caótico e do
indomável, "pintada" por meio de adjetivos duplos e de alguns superlativos, intencionalmente
carregados de cor, da ressonância dos sons fechados, com o predomínio de nasais, e outros abertos
para melhor traduzirem a sensação de espanto de quem presenciava a cena: a figura era robusta
e flálida: dis{tmne e ,í]randíssima estatura: o rosto carregado; a barba esquálida; os olhos eneovados; a
postura l/1edonha e má e a cor terrena e pálida, Os cabelos cheios de terra são crespos, a boca negra, os
dentes amarelos e o seu tom de voz cn horrcndo e grosso, agravando-se mais a cena de horror, que a
anlIna.
A atmosfera é sombria e todo o conjunto de atitudes do episódio aumenta o pictórico da linguagem
poética de Camões, Esse episódio pode ser comparado a uma tela dramática do pintor inglês do século
XIX, William Turner (Figura 4).
Essa figura de aspecto gigantesco, representada com perfeição de mestre, vem confirmar uma das
grandes linhas da epopeia - o real maravilhoso - representando as dificuldades de passagem do
Cabo, a existência de profecias (História de Portugal) e o lirismo, que irá ligar-se, mais tarde, à
narração majestosa da Ilha dos Amores.
Camões mostra-se um perfeito organizador de sensações e impressões dos mais variados
tipos em Os Lusíadas. Os estudos sobre a poesia visualista da epopéia camoniana têm tomado
diversas abordagens, ora analisando, preferencialmente, os níveis retórico-estilísticos, ora
concentrando-se nas estruturas linguísticas. Podemos ilustrar as nossas considerações com os
estudos realizados por Saraiva (1995). Em seu capítulo intitulado Ut píctura poesís, ele argumenta
sobre o descritivismo essencial do poema, destacando os esquemas sintáticos e semânticos
predominantes no texto. Saldanha (1995) refere-se, igualmente, aos enunciados descritivos que
se repetem e nos quais se inscreve uma verdadeira galeria de cenas e retratos pictóricos.
A poesia, segundo os críticos, rivaliza-se com a pintura, não através de processos imitativos
e descrições pictóricas, mas pela apreensão da sua sugestão, ao conciliar o sensível com o
intelectíve 1, a sugestão pictural com a intelectual e o seu conteúdo moral. Segundo a crítica
especializada, essa representação poesia/pintura é intelectual e não sensitiva e busca o ideal,

162 TI-OHJA LITERÁRIA


~

LITEIZ,,!ulZ,\ F I'INTLH'\

combinando, ao mesmo tempo, elementos realistas e metafóricos, traços simbólicos e índices de


conotação sentimental que as pinturas não poderiam oferecer.

Figura 4. Tempestade no mar (1842).]. M. W Turner, Tate Gallery; Londres.

No Renascimento, pintura e poesia apresentaram uma base comum, como pudemos


perceber. Leonardo da Vinci expressou-se a respeito do assunto, afirmando: ''A pintura é uma
poesia que é vista e não ouvida e a poesia é uma pintura que é ouvida, mas não vista". Afirmação
feita, anteriormente por Horácio, em sua Arte Poética:

Como a pintura é a poesia: coisas há que de perto mais te agradam e outras,


se à distância estiveres. Esta quer ser vista na obscuridade e aquela à viva
luz, por não recear o olhar penetrante dos seus críticos; esta, só uma vez
agradou, aquela, dez vezes vista, sempre agradará (HORÁCIO, 1984,
p. 109-110).

A fórmula ut putura poesis, na poética horaciana, discute a questão de alguns poemas lidos com
prazer uma só vez e de outros que podem ser lidos muitas vezes. O mesmo ocorre com as telas ­
algumas são apreciadas nos seus mínimos detalhes, enquanto outras são apreciadas no seu significado
globa,L
Aguiar e Silva (1990) explica as relações da literatura com as outras artes, referindo-se, também,
à questão dessa "pintura legível" (a poesia); considera que, desde o Renascimento ao Neoclassicismo,
a estreita relação estabelecida entre a poesia e a pintura expõe a frequência com que os pintores
escolheram para tema dos seus quadros figuras e cenas extraídas de obras poéticas e a moda de que
usufruiu, sobretudo no Barroco, a poesia que descreve, recria, comenta e exalta uma obra de arte
(pintura ou escultura).
No século XVII, destacaremos a poesia seiscentista (ou barroca), comumente chamada gongórica,
como a escola literária que domina o século. É importante lembrar que o cultismo e o conceptismo são
duas expressões de um conceito de poesia fundamentalmente idêntico e que se integra no estilo da
THOMAS BONNIf:l I L(JrIA O'ANA 7nftI'J {nDr..ANI7Annn~<:.\ - ~h~
(y (1 !( T F S

I época barroca, o que reduz a uma atividade poética puramente lúdica, daí o descritivismo apontado
I pelos teóricos. Essa forma descritiva não e'\:priml' a vida e, sim, distrai da vida; quando muito, sobrepõe
ao plano da realidade o plano ideaL construído com o que de mais belo e puro, fulgurante c nobre,
apresenta-se a realidade.
Caracterizam essa poesia descritiva jogos de palavras, trocadilhos ou equívocos; jogos de
imagens de variado tipo para transfigurar a realidade; construções, com que se organizam as
frases e molda-se o pensamento dentro de modelos predeterminados - simetrias, paralelismos,
cruzamentos, antíteses, alternâncias, enumeraçôes e suas repetições. Podemos exemplificar
com um fragmento de texto do poeta português Jerônimo Baía, extraído da coletânea Fênix
Renascida:

Quando o Sol nasce c a sombra principia,


A doce abelha, a borboleta airosa
Procura luz ardente c fresca rosa,
Que faz da terra céu c a noite dia.

Mas quando a flor se entrega, à luz se fia,

Uma fica infeliz, outra ditosa,

Pois vive a abelha e morre a mariposa

Na favorável rosa e chama ímpia (NORONHA, 1999, p. 128).

Se dividirmos o texto em duas partes lógicas, veremos que a primeira é construída pelas duas
primeiras quadras, em que o poeta apresenta a imagem da abelha e da borboleta, procurando
respectivan'lente a rosa e a luz, e as consequências dessa procura. Os adjetivos estão bem escolhidos
para este contexto, assim, a abelha é doce e, por isso, entrega-se às carícias dafresca rosa, dafavorável
rosa, que, por essas qualidades, atrai a abelha e permite as suas carícias. Já a borboleta é airosa
e, por esse motivo, fia-se na luz ardente, na chama Ímpia, como agente destruidor da borboleta,
que também pode ser considerada como fonte de ilusão, de engano, uma vez que faz a noite dia.
Verdadeiro malabarismo formal, que não nos deixa ver uma emoção vivida, até porque, certamente,
ela não existiu no poeta. O que se pretendeu com esse visualismo foi o fulgor da arte.
Confirma-nos a concepção visualista da poesia que encontrou a sua realização no
descritivismo, tendo sido muitíssimo cultivada nas literaturas europeias dos séculos posteriores.
Aguiar e Silva (1990) considera o emblema como uma manifestação importante da união da
poesia c da pintura, nos séculos XVI e XVII, registrada em 1531, na obra Emblcl/1atum libellus,
do humanista italiano Andréa Alciato. Nessa obra, um texto poético (o verbal), que poderia ser
um lema, um mote ou uma inscrição, coexiste com uma gravura (o texto pictórico). Registra-se a
existência de epigramas, textos curtos explicativos, geralmente em latim, escritos em versos e de
caráter satírico. Tinham por objetivo sempre realçar a sua lição de moral e didática (Figura 5).
Outros modelos de emblema também tipificaram o predomínio dessa sensibilidade visual e foram
estudados até o século XIX, por teóricos como Mário Praz, por exemplo.
Retomando a ideia inicial, todos os tratados de arte e o conceito de sinestesia foram discutidos
no Maneirismo e no Barroco, tais como "o poeta pintor dos ouvidos e o pintor poeta dos olhos".
Podemos afirmar que a Poética de Aristóteles (1992) influenciou sobremaneira nas relações e nos
limites entre as artes, desde o século xv, conjuntamente com Horácio, conhecedor da existência
e do alcance do problema, recomendando o artista a preservar-se no relativismo e refugiar-se na
autoridade do crítico honrado. Refletindo nessa recomendação, confirma-se a impressão de que
um mesmo texto transmite, literalmente, a relativização da verdade e do gosto artístico. O poeta,
como o pintor, movimenta-se num mundo de perspectivas e a obra de arte (poética ou pictórica)
encontra a sua razão de ser na plurivalência estética, explicando e justificando o comportamento do
homo ludens.
O período posterior à Renascença, considerado precursor dos modernos tempos, recebeu de
Lucien Febvre (apud AGUIAR E SILVA, 1990, p. 154) a denominação de "civilização do livro". Hoje,

364 - T E o R I A LITERÁRIA
~~ L I I I H .\ I L' H.\ I I' I N J li H .\

ultrapassada, pode ser substituída pela c:\.'pressão "civilização da imagem", em decorrência da verdadeira
função apelatin que esta exerce 110 receptor, conforme nos afirma o autor. Assim, como houve no
passado um preconceito contra a desobediê'Ilcia às regras da legibilidade da escrita, a imagem também
\'i\TU períodos semelhantes~

F! l'li,dr?r jnrJn'lftr rrf(' ha impclr,lQ


Que (,Yft' 0'
bJ[)o ~'tm III /f!L'lt~ mia.
r:' qmrl d~ \ptt~ \ que Jil('r(~ fJjrfl {Tf'(.ido
:tJ«m,mdQ (lf mr.f rrm3 a p~)l}la.
St' na de D,,}\'t'r' a mi. qlle' lu. lIJilh~'rü
]/.1mú.' U)f''( l?u"TlU uhrlJ .\<~ d<'.~ifUi{'w.

Figura 5. Exemplo de emblema. Desenho de Andréa Alciato (1531).

Foi com Platão (século V a.c.) que a pintura conheceu uma oposição da filosofia, tendo sido ele
um dos raros a levar a sério as imagens e a acreditar nos seus poderes. Manifestou o desejo de fechar a
entrada de seus domínios a todos os tipos de imagens, quaisquer que fossem e sob qualquer disfarce.
Tinha a certeza de que, atrás do discurso e de suas figuras retóricas, viriam primeiro as imagens do
corpo e, em seguida, as representações pintadas estariam nas telas, formand~ um universo de figuras
silenciosas que invadiriam as palavras.
Outra referência importante é a participação de Aristóteles, Em sua Poética, um dos pilares de
sustentação na analogia literatura/pintura, concebeu a poesia como imitação, diferenciando-se da atitude
acusatória de Platão em face dos imitadores. Julgou-a, contrariamente, uma característica distintiva
do ser humano, atribuindo-lhe uma função didática, principalmente quando aponta a epopeia e a
tragédia. Vale lembrar que a imitação, segundo Aristóteles, nem sempre era fiel aos modelos originais
imitados, daí a consideração pela lJerossimilhança. Afirma em seu texto que "o poeta é imitador, como o
pintor ou qualquer outro imaginário" (1984, p, 266).
Do mesmo modo, Horácio (1984), no século I a.C., também acrescentou importantes
preceitos da teoria da imitação à sua conhecida Epístola aos Pisões, mais conhecida como Arte
poética, conservando a linha aristotélica, atribuindo à poesia as funções de dar prazer e de instruir,
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colocando-a entre a vida e a arte, entre a Imitação da natureza c o domínio retórico Advertia
os poetas e os pintores a não retratarem o impossível ou o inexistente. mas sim;) aproximação
de conteúdos e não de formas ou modos de imitar, como Aristóteles. Numa leitura de sua
frase IIt pictu ra poesis (a pi ntura com as letr:ls), podemos concl UI r que, teoricamente, não visava
identificar as duas artes ou encontrar entre elas semelhanças estruturais.
Segundo a crítica, esse paralelo foi utilizado por Horácio para distinguir as obras perfeitas,
resistentes à crítica e ao tempo, das ohras medíocres que apenas propiciavam prazer efêmero, não
permitindo um exame mais minucioso. ConclUI-se que, tanto em Aristóteles quanto em Horácio, não
está explícita uma teoria de identificação entre a poesia e a pintura, mas apenas umJ aproximação de
ambas com base, fundamentalmente, no seu poder de visualização e na sua capacidade de reprodu7ir
as coisas e seres existentes na sua uil'oridode natural ou no seu processo.
Essa fundamentação da analogia literatura/pintura suscitou, mais modernamente, alguns estudos
bastante pertinentes. Praz (1982) afirma que a obra de arte mantém-se por si própria e recorre a
exemplos históricos que comprovam a sua subsistência, a despeito de guerras e destruições. Aborda,
primeiramente, a questão das "artes irmãs", como uma ide ia permanente no homem. Ilustra a aliança
entre a poesia e a pintura, também apresentando Horácio como uma autoridade que iniciou esse
conflito harmonioso. Esclarece que a expressão ut pÍaura poesis, de sua Arte poética, interpretada corno
um preceito, muito embora o poeta estivesse explicando o fato de que certas pinturas e certos poenias
agradam uma única vez, tem resistido a leituras e a exames críticos exaustivos e minuciosos, ao passo
que a expressão já citada mula poesis, eloqllens pictura tem auxiliado a prática de poetas e pintores no
decorrer de muitos séculos.
Antecipando o Modernismo, em pleno século XIX, o poeta português Cesáno Verde (18.')'1-1886)
escreve uma poesia que chama a atenção dos estudiosos pela sua qualidade visuaL pictórica, uma
plasticidade que se evidencia no próprio texto. não sendo necessário ser um especialista para perceber.
Críticos renomados como João Gaspar Simões, Joel Serrão e vários outros têm, ao longo dos anos,
afirmado que Cesário é um poeta dominado pelo vÍsual. O vocabulário empregado em seus poemas
refere-se à arte pictórica. Dotado de uma visão agudíssima, percebe o mundo que o rodeia e tàz
declarações que surpreendem o leitor de todas as épocas: "Pinto quadro por letras. por sinais/ Tão
luminosos como os do Levante [ ... r.
O verbo pintar aparece várias vezes, bem como o substantivo
"quadro" para descrever o ofício do escritor.
Lobo (1999, p. 16) faz um exaustivo levantamento do vocabulário poético de Cesário e conclui
que o poeta "tem plena consciência de que o material e o uso que o escritor dele faz ao escrever não são
os mesmos do pintor [ ... ] mas o quadro que ele pinta não é inferior ao realizado pelo artista plástico"
(p. 16). No poema abaixo, Cesário reproduz com fidelidade a atmosfera das paisagens campestres das
telas dos pintores impressionistas franceses Monet e Renoir:

Naquele PU-Il;C de burguesas,

Houve uma coisa simplesmente bela,

E que, sem ter história nem grandezas.

Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,

Foste colher, sem imposturas tolas,

A um granzoal azul de grão-de-bico

Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos.

Nós acampamos, inda o sol se via;

E houve talhadas de melão, damascos,

E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas do púrpura, a sair da renda

1,(;(; _ T 10 () R I A lITERÁRIA
"~

1111"'\11.'1<.\ 1 I'INI\·I<.\

Dos teus dois seios como duas rolas.


Era o suprelllo ellclllto d,l lllcn:nda
O ramalhete ruhro das papoulas (VERDE, 1982. p. 77).

Causa-nos surpresa a atitude pictórica do poeta nos versos acima, uma vez que ele "olha" a natureza
com uma clara intenção pictórica e nos faz lembrar uma aquarela, inspirada nos versos da segunda
estrofe e um déjellellr 511r f'herbe (um desjejum sobre a relva), nas estrofes três e quatro.Um dos maiores
críticos do poeta, João Pinto de Figueiredo, aproximou o poema à obra de Renoir. Sem dúvida, além
do pictórico, há a presença do gestual conferindo ao texto um dinamismo, no momento em que a
mulher desce do burrico e colhe um ramalhete de papoulas vermelhas, em meio a um campo de grão­
de-bico, que diz ser azuL A exemplo dos pintores impressionistas, as sobreposições sintáticas, métricas
e gráficas equivalem à técnica da mistura óptica impressionista de mesclar as cores e obter uma nova
tonalidade (o azul e o vermelho misturados refletem o tom violeta - a cor púrpura do primeiro verso
da quarta estrofe). Também a visão bucólica do campo e a fartura dos alimentos retratam o cenário
campestre, igualmente exaltado por pintores do século XIX.
As relações da literatura com as artes plásticas, especialmente a pintura, tornaram-se mais próximas
e importantes no Modernismo e nos movimentos de vanguarda, como o Futurismo e o Cubismo. O
texto poético passou a ser explorado visualmente e adquiriu características estruturais que o fizeram
funcionar semioticamente, assemelhando-se ao texto pictórico. O texto poético deve ser Tido e visto,
segundo Mallarmé, o primeiro a conceber o poema como um objeto pictórico-verbaL Em Um lance de
dados (1896), experiências são realizadas com "o poema que se desenvolve em cinco ou seis textos que
se entrecruzam e se misturam, espalhados pelo espaço das folhas abertas, em blocos de frases como se
as palavras fossem constelações no céu branco da página" (apud AGUIAR E SILVA, 1990, p. 165).
Esses princípios, na segunda metade do século xx, com os movimentos da poesia concreta,
encontraram um apoio em metalinguagens diversas, espacialização e pictorialização do texto poético.
Desde os caligramas da poesia grega até os textos da poesia concreta, passando pelos quadros das
palavras em liberdade dos futuristas, causaram uma grande transformação nas relações entre a literatura
e a pintura. Novos mecanismos semióticos foram criados na produção dos textos poéticos, obrigando
o leitor a adotar processos de leitura e estratégias de recepção também inovadores. A partir dessa
abordagem visual do texto, o leitor passa a ser cada vez mais solicitado no ato da recepção; não apenas
para "ler" o texto, decodificando signos e apreendendo o essencial, mas adquirindo uma atitude de
"ver" além do texto e "olhar" além das palavras.
Um olhar crítico em constante movimento, capaz de ver, observar, refletir, sentir e criar - é a
atitude do leitor de sempre, uma vez que o poeta não tem o recurso da luz, das cores, do desenho e do
signo global imediato, mas, em seus versos, usa as metáforas, a adjetivação expressiva, os contrastes e
as alegorias, estabelecendo um ritmo poético que o poderá igualar àqueles que com pincéis, traços e
cores construíram paisagens e retratos.
Repetem-se os gestos. Repetem-se os mitos. Criam-se poesias.

REFERÊNCIAS
,

AGUIAR E SILVA, V. M. Teoria e metodologia literárias. Lisboa: Universidade Aberta, 1990.


ARISTÓTELES. Apoétíca. Tradução Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 237-329.

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CURTIUS, ER Literatura europeia e Idade Média latina. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957.

DIONÍSIO, M. Literatura e pintura - um velho equívoco? Colóquio Letras. Lisboa, n. 71, 1983.

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'C?ORTES
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VERDE, C. Poesia completa e cartas escolhidas. In: MOISÉS. C. F. (Org.). Poesia completa e canas cswlhidas. S30

Paulo: Cutrix: Edusp, 1982.

368 - T E o P I A LITEHÁPIA
Anelise Reich Corseuil

QUESTÓES TEÓRICAS

Quando um texto literário é adaptado para o cinema, é comum ouvirmos comentários e lermos
análises a respeito da "fidelidade" ou "infidelidade" do filme em relação ao romance ou peça em que se
baseia. Leitores de um romance vão assistir a sua adaptação para o cinema com certas expectativas, dentre
as quais pode se incluir uma hierarquia de valores que definem o romance como obra original, legítima e
representativa de uma certa época ou sociedade. O filme, por sua vez, é visto como obra que pode ser, até
certo ponto, criativa, mas que está necessariamente em condição de dependência ao romance adaptado.
Dentro dessa perspectiva, tende-se a detinir a complexidade e a validade do tilme a partir da forma como ele
vai representar certos temas, signiticados e questões formais que já se apresentavam na obra literária. O que
se revela problemático nessas leituras comparativas é o cerceamento de signiticados, indiretamente imposto
pelo texto literário, ao analisar-se uma adaptação para o cinema. Cerce;nnento este que acaba reduzindo a
pluralidade de signiticados que o filme possa ter como obra independente. Ao contrário dessa perspectiva
redutora de adaptação, vários estudos de adaptação têm proposto uma análise mais contextualizada do
filme adaptado, respeitando o momento histórico-cultural em que ele é produzido e inserindo-o nos vários
discursos que o constituem como produção cinematográfica, tais como: a performance dos diversos atores
e como eles operam na indústria cinematográfica, a ideologia dominante no tilme, o sistema de divulgação
e produção, os elementos narrativos e a linguagem específica ao cinema (NAREMORE, 2000).
Existe uma cultura de adaptações "fidedignas" que pode ser extremal1'!ente problemática, uma
vez que muitos filmes adaptados esvaziam-se de significado próprio, quando tendem simplesmente a
repetir diálogos intermináveis. Esses filmes funcionam também para atender a audiências que querem
con~,umir romances (predominantemente romances do século XIX) de uma forma mais facilitada,
dentro de um período de duas horas, no cinema ou em casa, pela televisão. Nessa perspectiva, filmes
adaptados para a televisão britânica, predominantemente adaptações de autores britânicos, tais como:
Charles Dickens, ]oseph Conrad e ]ane Austen, perfazem duas funções distintas: (1) a de reavivar o
passado britânico com o chamado heritagefilm ou o cinema de tradição, ou denominado ainda de "cinema
de qualidade", uma vez que as reproduções de época são perfeitas em seus detalhes de reconstituição
de um certo período histórico e (2) a de conseguirem uma fatia do mercado internacional, disposta a
importar filmes de qualidade (CAUGHIE, 1997). Ocorre que tais filmes nem sempre atualizam os
temas tratados nos textos literários, dando a impressão de que o filme é um teatro filmado, inerte e
sem expressão própria.
'~()FSE\lIl.
I
Nesse contexto, observa-se que as análises baseadas apenas no grau de "fidelidade" do filme
podem Ileutralizar os elementos cinematográficos que diferenCIam a linguagem literária, \TrbaL lb
cinematográfica, predommantemente visual. Dessa forma, é lleCeSSJno que se ressalte a importância
de uma perspectiva crítica que leve em conta os elementos específicos da linguagem cinematográfit a,
incluindo elementos como montagem, fotografia, som, cenografia, ponto de vista narratin),
responsáveis pela construção de significados no sistema semiótico compreendido pelo cinema. Aliada
à linguagem específica do cinema, existem outras diferenças que produzem certas limitações a cada
meio: enquanto um filme é exibido em um teatro. pelo tempo médio de :2 horas de duração, um
romance pode ser lido durante horas, dias ou meses - fâto que impossibilita qualquer adaptação literal
de um longo romance. Além dessa diferença entre os dois meios, há também a questão linguística
do texto original. Caso uma atriz esteja mais adequada a este ou aquele papel, a questão linguística
do texto original nem sempre pode ser primordial (STAM, 2000). Podemos, assim, ter uma figura
histórica ou literária, cuja língua matem3 difere do idiom3 fa13do pelo ator ou atriz que o representa,
mas cuja performance é perfeitamente adequada para o p,lpcl representado. Da mesma forma que o
cinema apresenta certas limitações, um romance não dispõe de trilha sonora ou da simultaneidade de
leitura, proporcionada pelas imagens projetadas em uma te13, o que possibilita uma leitura não linear
da história narrada. A construção do espaço narrativo no cmema, com uma plenitude de detalhes
visuais, constitui um espaço físico literal e figurativo diferente daquele apresentado no texto literário
(C HATMAN, 1992). •
Tendo em vista as diferenças acima mencionadas, qualquer comparação entre um filme adaptado
e o texto literário poderá ser mais produtiva se levad3s em conta, tanto as especificidades de c3d3 meio
como as similaridades das narrativas adaptadas, e, a partir daí, propor uma reflexão crítica sobre os
efeitos que a adaptação conseguiu ou não criar. O filme de Martin Scorsese, A épora da illocência, será
utilizado ao longo desse capítulo para que se compreenda melhor os elementos pertinentes ao filme e
suas relações com a obra literária de Edith Wharton. Scorsese faz uso de dois elementos específicos do
cinema para recriar a crítica presente no romance de Wharton: a mise-en-SCC/le e a narrativa em voz-oucr.
Vale ressaltar que no Brasil emprega-se o termo voz-off"para toda e qualquer situação em que a fonte
I
emissora da fala não é visível no momento em que a ouvimos". Nos Estados Unidos emprega-se voz­
over para uma voz que emana "de um espaço que não correspondc ao da cena imediatamente vista" e
o termo voz-off para "a voz de uma personagem de ficção que fala sem ser imediatamente vista mas
que está presente no espaço da cena" (XAVIER, 1983, p. 459). Na análise do filme A época da inocência,
utilizar-se-á o termo voz-over, uma vez que a voz d3 narrador3 eman3 de um espaço diferentc daquele
que está sendo mostrado no filme.
O outro elemento a ser analisado no filme de Scorsese será a mise-en-scene, que pode ser definida
como os elementos que estão diante da câmera, antes quc se dê início ao processo de filmagem
(BORDWELL; THOMPSON, 1979). O filme de Scorsese utiliza uma mise-en-scene excessivamente
rica em detalhes, com um movimento de câmera extremamente rápido, ao mesmo tempo em que a
narrativa em voz-ouer é contida e calma. Através dessas justaposições técnicas, específicas à linguagem
do cinema, o filme não apenas recria a crítica de Wharton, ao revelar a coexistência de um rápido ritmo
de mudanças da sociedade de Nova Iorque do fim do século XIX e a necessidade de- cerceamento de
tais mudanças, mas, principalmente, atualiza a ironia contida de Edith Wharton para uma linguagem
específica aoçinema.

FORMAS DE ADAPTAÇÃO

A fim de respeitar as especificidades da linguagem cinematográfica, vários teóricos do cinema


que trabalham com adaptação substituíram o termo "fidelidade" por outras denominações que dão
conta das vári3s formas de adaptação. Andrew subdividiu as diferentes formas de adaptação nas

i 70 - T F n R I A LITERÁRIA
~ LI [ I H ..\ 1 l' I< ..\ 1 ( [ " 1 \1 .\

seguintes categorias, borrollJill~í? ou "empréstimo", illferscctill.í? ou "interseção", e trall~f<mllill.í? SOtlrccs ou


"transformação das fontes" (1984, p. 98). Para Andrew, os tllmes podem estabelecer uma relação com
o texto literário que varia em grau de intensidade, expandindo, criticando e reatualizando o texto
original. Além dessa flexibilização, o termo adaptação passou a ser utilizado para detlnir qualquer
relação semiótica de uma forma de expressão com outra, envolvendo meios artísticos como a música,
o teatro, a dança ou a pintura. Segundo Andrew, é

possível cruzar elementos de vários sistemas: o som da tuba se parece mais com o da pedra do
que com o de um pedaço de corda: se parece mais com um urso do que com um pássaro. Nós
somos capazes de estabelecer estas distinções e insistir naquilo que é de domínio comum pOIS
estamos cruzando elementos [significados 1equivalentes (ANDREW, 1984. p, 102).

Além de Andrew, outros críticos como George Bluestone (1957), em seu livro Nouels imo Film:
The Metamorphosis of Fictioll illto Cillcllla, exploraram as relações entre cinema e literatura de forma
a trabalhar as especitlcidades e as semelhanças de cada meio. Bluestone distingue o "conceito da
imagem mental" possibilitada pelo texto literário e "a percepção da imagem visual", no cinema,
como a grande diferença entre os dois meios, mas conclui que as imagens conceituais provocadas
pelo estímulo verbal são, na realidade, pouco diferentes daqueles conceitos gerados pelp estímulo
não verbal (BLUESTONE, 1957, p. 47). Keith Cohen, em Film and Fiction: The Dynamics oJ Exchange
(1979), traça um panorama do processo de convergência entre o cinema e a literatura, apontando para a
neutralização da voz do narrador, no romance moderno de Conrad e James, que rompe com métodos
narrativos mais tradicionais. Ocorre no romance moderno a substituição da voz do narrador como algo
perceptível que "conta" a história por uma voz quase que imperceptível que apenas "mostra", sendo
que, no processo de mostrar, a voz do narrador tende a desaparecer. Cohen (1979) utiliza romancistas
como Virginia Woolf para exemplitlcar a influência que o cinema exerceu sobre as técnicas narrativas
do romance moderno. Para Cohen (1979) os conceitos de montagem de Eisenstein influenciaram a
narrativa literária de fluxo de consciência, onde o narrador desaparece para dar lugar à percepção que
o próprio personagem possa ter do mundo tlccional. Além dessas categorias mais formais e estruturais
em estudos de adaptação, comparações intertextuais, que levam em conta as mais variadas produções
culturais, também têm sido producentes. Deteremo-nos, a seguir, na aplicabilidade do conceito de
intertextualidade em estudos de adaptação, seguida de alguns exemplos específicos.

INTERTEXTUALIDADE

A relação entre as artes não se dá apenas em uma mão única, dá-se, ao contrário, de várias formas.
A comparação entre a literatura e o cinema pode ilustrar a dimensão intertextual das artes, sendo
que filmes também podem gerar romances, como é o caso de O piano (i993). Por outro lado, o
cinema também pode redimensionar a importância de obras literárias menores, como na adaptação de
Uma,janela indiscreta, filme dirigido por Alfred Hitchcock em 1954. O filme se tornou um clássico do
cinema enquanto que o conto homônimo de Comer Woolrich (1942) foi praticamente esquecido. Há
também a experiência da televisão, onde minisséries como O Auto da Compadecida (minissérie adaptada
inicialmente do teatro para a TV) geram filmes para o circuito comercial.
O cinema pode também incorporar outras formas artísticas como a pintura, a dança e a escultura,
ocorrendo uma multiplicidade de significados. EmA época da inocência, Scorsese habilmente incorpora
elementos de outras artes, tais como: a música, a escultura e a pintura, para traçar o perfil psicológico
dos personagens, sem a intromissão do narrador, mas sempre com um toque sutil e irônico. Esse filme
será analisado posteriormente, mais especificamente em relação à inclusão de outras artes na narrativa
do próprio filme, gerando novos significados.
H S I li I I

A partir dos estudos de Genette (1980), Stam (2000) aponta para a intertextualidade decorrente
da prática de adaptação no cinema como uma prática de transformação de um "hipotexto" (o tex'1o
original, o romance) que, em sua forma adaptada, pode ser transformado através de uma série dc
operações como seleção, amplificação, concretização, atualização, crítica, ex'1rapolação, analoglzação,
popularização e recontextualização. Ao contrário dc análises centradas na fidelidade do filmc, na rclação
intertextual não ocorrc uma hierarquização de valores, podendo o filme ser analisado em todas as suas
modificações ideológicas, técnicas, críticas e interpretativas, partes integrantes de qualquer processo
de adaptação. O tilme Belll-Amada (Belol'ed), de Jonatham Demme (1998), uma adaptação do romance
homônimo de Toni Morrison, apresenta uma prática intertextual de diversos gêneros de cmema. Em
sua estrutura, o filme apresenta o drama tâmiliar, o filme de época, o horror e o suspense, especialmente
nas cenas em que o fantasma de Beloved tem de ser confrontado. O absurdo da cscravidão encontLl
formas dc representação a partir dessa mistura de gêneros do cinema americano, deslocando-os de
suas formas tradicionais, naquilo que pode se definir como um processo de estranhamento, que é
consequência, tanto da história como da narrativa.
O cinema, por ter uma linguagem específica que inclui tanto uma diversidade de gêneros
,.
narrativos como o uso de certas técnicas vinculadas à montagem, som e fotogratia, pode dispor de
relações intertextuais que são próprias ao cinema. A sequência das escadarias de Encouraçado Potelllkil/,
por cxcmplo, foi aludida em diversos filmes, como uma forma de homenagem a Eisenstein. Diversos
filmcs conseguem remetcr a outros tilmes, quando parodiam gêneros cinematográficos, como o do
Illestern, o filme de gangster, o filme de ação, ou de qualquer outro gênero do cinema. Filmes como
CarlotaJoaquina (1994), produção brasileira de Carla Camuratti, e Walker (1988), direção de Alex Cox,
são uma releitura não apenas da história oficial, mas também de gêneros cinematográficos como o
filme histórico (CORSEUIL, 2000). O filme de Camuratti também propõe uma rcnovação na forma
de narrar, subvertendo a ordem e o lugar das legendas para audiências brasileiras (GATTI, 2000). Em
Walker, no processo de recontar a história da Nicarágua, Cox parodia vários códigos narrativos do
filme histórico, como as cartas, os diários, a narrativa em voz-over. É nesse processo intersemiótico
que a adaptação necessita ser vista, não como obra scgunda, necessariamente fidedigna a um romance
ou a um texto histórico, mas como obra independente, capaz de recriar, criticar, parodiar e atualizar
os significados do texto adaptado.

NARRATNA

Além de uma comparação entrc cinema e a literatura a partir de suas relações intertextuais, a
narratologia (estudo de narrativas) também possibilita um campo prolífico para os estudos de
adaptação. Conforme explicitado por Chatman (1992), em seu trabalho sobre a narrativa no cinema e
na literatura, qualquer narrativa apresenta uma mesma estrutura de base ou o que se sfenomina como
deep structure·. Essa estrutura é comum a todas as formas narrativas, independentemente de seu meio dc
expressão. Para Lévi Strauss (1996), as narrativas também são responsáveis pela transmissão de certos
mitos. O trabalho de Lévi-Strauss influenciou os estudos de gênero no cinema como uma forma de
discurso mítico que tende a reforçar certas ideias e valores. Há mudanças culturais que influenciam a
forma através da qual certos gêneros se renovam ou incorporam mudanças, mas certos elementos da
narrativa se fazem sempre presentes.
Além da transposição das conotações psicológicas e míticas de uma narrativa a outra, existem
elementos estruturais presentes em qualquer narrativa como, por exemplo, a estruturação temporal,
que diferencia o tempo em que a história propriamente aconteceu (histoire ou story-time) daquele em que
ela é narrada (discourse-time). Linearidade,jlashbacks,jlashforward são algumas das técnicas empregadas
que podem alterar a estruturação temporal de uma narrativa, podendo ser ela mais ou menos linear.
Um bom exemplo da importância da estruturação temporal de uma narrativa pode ser ilustrada na
17? _ T ro n D T A IITFRÁR1A
adaptação do romance de Nathaniel Hawthorne, A letra escarlate (1995), dirigida por Roland Joffé.
O filme apresenta uma história linear, omiti rido totalmente "A Introdução" (The CustOIl1-HOlIse)
que introduz o romance de Hawthorne. É na introdução, no entanto, que Hawthorne apresenta o
contexto histórico-social em que o autor/narrador se encontra e que é diferente do universo histórico
de Hester Prynne, a protagonista da história. Essa diferença temporal, evidenciada pela separação
temporal entre o autor e a protagonista da história, sugere ao leitor do romance que os signos tão
prontamente interpretados pela sociedade puritana de Hester passam a ter um significado dúbio e
inexato para o narrador do romance, sugerindo um certo distanciamento entre esses dois universos. A
análise comparativa de um filme e de um texto literário serve, nesse sentido, para que se busque definir
os elementos que podem ser facilmente transferidos de um meio ao outro e aqueles que oferecem
resistência e exigiriam, por parte de Joffé ou do roteirista, uma narrativa menos linear, mas nem por
isso menos vinculada ao cinema.
As abordagens narrativas têm sido frequentes em estudos de cinema, com enfoques que
vão desde uma linguagem mais técnica, formal e estrutural até estudos mais historicistas e
sociológicos, convergindo para uma crítica de representação e de ideologia. A narratologia é uma
área que ganhou espaço a partir dos trabalhos dos formalistas russos como Viktor Shklovsky,
dos estruturalistas franceses como Claude Lévi-Strauss, Roland Barthes e Gérard Genette e de
anglo-americanos como Percy Lubbock e Wayne Booth. A partir desses trabalhos voltados para
a narrativa literária, Metz (1968) elaborou os fundamentos teóricos da narrativa cinematográfica
sob uma perspectiva semiótica. Outros estudos na área de cinema, como o artigo de Hendersoll
(1983) sobre narratologia, publicado em Film Qllarter/y, e de Chatman, "What Novels Can Do
that Films Can't (and Vice Versa)", estabeleceram as relações entre os elementos narrativos no
cinema e na literatura, apontando para as similaridades e as diferenças dos dois sistemas em
relação a vários elementos, tais como: a manipulação do tempo (temporalidade), a caracterização,
o enredo, a voz do narrador, o ponto de vista e a presença do filtro (aquele personagem através
do qual sentimos as emoções) e do focalizado r (o personagem através do qual se vê a ação).
Além do aspecto formal, os estudos de narrativa têm sido utilizados para que se defina as formas
como certas culturas são sistematicamente representadas na narrativa cinematográfica ou literária.
Vale aqui destacar o trabalho de Burgoyne, em Film Nation (1997), um estudo das formas como
fatos históricos dos Estados Unidos são representados no cinema contemporâneo de Hollywood.
Burgoyne (1997) analisa os filmes Tempos de glória, Nascido em 4 de julho,]FK e Forrest Gllmp, como
narrativas populares que têm ajudado a compor a memória histórica dos Estados Unidos, muitas
vezes atuando como uma "imagem social de consenso" que substitui a história oficial. Nesse
sentido, a análise narratológica pode auxiliar a consolidação de estudos que levem em conta os
aspectos formais e estéticos de um filme e suas relações com elementos socioculturais.

ESPAÇO E TEMPO NA NARRATIVA FÍLMICA

.l?r0rdwell et aI. (1985) estabelecem uma inter-relação entre o espaço e o tempo na narrativa
cinematográfica, definindo uma série de critérios que ajudam a identificar os vários elementos que
constituem a narrativa clássica hollywoodiana. A partir de um estudo dos filmes produzidos entre
1917 e 1960, os autores levantam algumas características presentes na grande maioria dos filmes ­
características essas que tendem a garantir a continuidade da narrativa, no espaço e no tempo, e que
são subdivididas da seguinte forma:

1. Técnicas. Sistema de iluminação, com três focos de luz e com iluminação difusa (frontal,
contraluz de ângulo oposto e luz oblíqua); edição/montagem analítica (tende a obedecer ao
princípio de continuidade do espaço); trilha sonora; enquadramento centrado da imagem.
Essas e outras técnicas fazem parte de um estilo próprio do cinema clássico hollywoodiano;
"1'7'1
E li I I

2. Sistemas ou categorias. Conforme indicado por Bordwell et a!. (1985), as téclllcas


cinematográficas fazem sentido e têm um significado quando elas desempenham certas
funções. Por exemplo, a fusão entre diferentes tomadas pode indicar passagem de tempo. A
articulação das convenções técnicas no cinema clássico hollywoodiano obedecem a certos
princípios básicos de articulação do espaço físico e metafórico na narrativa fílmica. Dessa
forma, as diferentes técnicas cinematográficas tais como: iluminação, som, montagem e
composição da imagem tendem a obedecer ao sistema de representação contínua do espaço,
sem cortes abruptos, de fOrI1u que os espectadores possam reconstruir o espaço e o tempo
da história narrada. lemos aí três categorias básicas do cinema clássico de l-!ollywood:
tempo, espaço e lógica narrativa (ou causalidade);
3. Relação dos sistemas ou das categorias. A relação entre o tempo, o espaço e o sistema da
lógica narrativa definem o estilo clássico hollywoodiano, de forma que esses três sistemas estão
intrinsicamente relacionados, No cinema clássico hollywoodiano, espaço e tempo são utilizados
para recriar a causalidade lógica exigida por qualquer narrativa. Dessa forma, uma montagem ...

pode introduzir o tempo passando ou apresentar novos espaços através dos quais as personagens
transitem. Bordwell et a!. (1985) esclarecem que ao longo das décadas houve mudanças
significativas nas formas de filmar que obedeceram às diferentes necessidades dos gêneros e
estilos, mas, de uma maneira geral, há, em todos os filmes, uma certa anuência ao princípio
básico de continuidade exigido pela lógica narrativa do cinema clássico hollywoodiano.
Seguem abaixo as definições de alguns termos comuns em análise narrativa de filmes e textos
literários, bem como de exemplificação.

• Narrador
Diferentemente da forma sucinta como uma história pode ser resumida - geralmente centrada
no conflito de duas forças opostas - , as técnicas narrativas empregadas, ao se contar uma história para
uma plateia ou para leitores, são elementos cruciais na caracterização de diferentes obras artísticas. Para
que se determine a inclusão de uma obra em um determinado gênero, para um direcionamento de sua
recepção e para uma melhor compreensão de seus significados, é necessário que todos os elementos
que compõem a narrativa sejam devidamente analisados. Apesar da diversidade dos estilos literários e
dos diferentes usos de um narrador, por exemplo, o realismo marca o apagamento ou a neutralização
do narrador para alcançar seus efeitos característicos, a presença do narrador em um texto literário é
evidente para o leitor, uma vez que a produção verbal implica um distanciamento entre o momento
passado, em que a história aconteceu, e o tempo presente, em que a história é narrada.
No cinema, o fato de as palavras serem substituídas por imagens, como se a plateia estivesse
vendo a ação sem a interferência de um narrador ou de sua voz, produz a impressão de que não há
narração, mas apenas um processo de mostrar. No entanto, seguindo as formulações que Chatman
(1992) faz sobre o sistema narrativo no cinema, pode-se dizer que a presença do narrador no cinema
se dá pela edição de imagens, reveladora da interferência do narrador na organização dos eventos da
história. Através da edição, ou da montagem, diferentes planos, situados em um segmento espaço­
temporal, podem ser articulados de forma subsequente e sequências podem ser organizadas, não
apenas linearmente, mas também numa variedade de formas. A montagem, determinada pela forma
como uma história é contada, aponta para a existência de um mediador que organiza os eventos da
história no tempo e no espaço: o narrador. O termo narrador não está necessariamente associado a
uma individualidade, mas revela a presença de um agente organizador da diegese, ou seja, da narrativa.
Como vimos, a "Introdução" de Hawthorne, em A letra escarlate, gera significados diferentes daqueles
que encontramos no filme de Joffé, uma vez que o narrador de Hawthorne se apresenta como uma
individualidade e encontra-se em um momento histórico próprio, diferente daquele em que os
protagonistas da história narrada se encontram. No filme de Joffé, existe um outro narrador, que é o
organizador da história, mas este narrador não recria a problematização que o romance de Hawthorne
apresenta, especificamente no que diz respeito às dificuldades de se interpretar os significados da letra
escarlate imposta a Hester.
17,1 _ T' r: n o r A rrTFPÁIlIA
.~ LIII;''.I\!I'' I . ,,~ I 'j

Além da montagem, outras técnicas cinematográfIcas também apontam para a presença de


um narrador, tais como: a focalização, a lIlisc-clI-scclle e a trilha sonora. O focalizador tem sido
definido de uma maneira geral como o agente que vê e sente as clções. No cinema, os estudm
de Genette (1980) sobre perspectiva levaram à definição do focahzador. Através do focalindor
é possível distinguir a atividade do narrador, que organiza as ações do universo ficcional. da
atividade dos personagens, enquanto posição que eles ocupam no texto e através da qual a ação l'
vista. O focalizador é o agente que vê e sente, e é através de sua sensibilidade que a plateia de um
filme pode entender as emoções dos personagens e a visão que eles têm do mundo ficcional. selll
que a manipulação do narrador (ou o camcra narraror) se torne visível. Enquanto que 110 romaIlce,
o pensamento e as ações dos personagens são intermediados pelo discurso direto ou indireto
do narrador, 110 cinema ocorre um apagamento dessa intermediação através da focalização dos
eventos pelo próprio personagem, sem a aparente intermediação do narrador.
Um exemplo ilustrativo de focalização ocorre em A épow da illocência, em suas sequências iniciais,
quando Newland reencontra Ellen Olenska em seu camarote, na casa de ópera,juntamente com May.
Aparentemente, a casa de ópera está sendo mostrada pela câmera, mas é, na realidade, os olhares de
Newland e Leffert que apresentam os carnarotes. As cenas entre Newl:md e Olenska vão introduzir o
foco principal da trama narrativa, e o olhar de Leffert, sempre pronto a expressar as intrigas da sociedade
de Nova York, servirá, desde o início da narrativa, como o catalisador de duas forças antagônicas, a
coesão social que mantém a ordem vigente e a força da explosão dos desejos individuais. Dessa forma,
a justaposição de planos fechados, médios e abertos, introduz o foco da trama narrativa sem que se
perceba a intermediação do narrador. É a soma de fatores tais como: a movll11entação da câmera, CU!l1
um escaneamento da plateia, ajustaposição de planos (através da edição de imagens), o detalhamento
da mise-en-scene, como, por exemplo, o dose das cravos nas lapelas, e a alternação do focalizador (entre
Newland e Leffert), que nos possibilitará a devida compreensão do jogo de tensões da narrativa.
Enquanto no filme o jogo de tensões se dá sem a verbalização do narrador, no romance a mesma cena
descrita é realizada com a completa intermediação da voz do narrador.

• Mise-en-scene
Além de adaptar a narrativa de Wharton para o cinema, sem tornar o filme um "teatro filmado".
Scorsese atualiza a crítica social de Wharton. O filme não engessa a narrativa de Wharton em um
passado histórico distante e nostálgico, passível de ser transformado em um objeto de consumo; ele
não cria um filme nostálgico de um passado sem crises e rupturas. Ao contrário, ao apresentar a história
de Wharton com cortes acelerados, uma movimentação de câmera rápida, como, por exemplo, na cena
da ópera em que a câmera mostra a audiência através dos binóculos de Leffert, com um congelamento
das imagens, uma após a outra, mostradas sucessivamente, Scorsese apresenta uma narrativa atualizada
em seus próprios recursos cinematográficos, distante do teatro filmado de muitas adaptações. Um
outro exemplo da transformação do gênero "filme histórico" praticada por Scorsese está nos doses
das lapelas, com cortes uniformizados, sistematizados, como se Scorsese quisesse chamar a atenção
para a ausência de individualidade na sofisticação das regras de etiqueta da sociedade vitoriana nova
iorquina. Dessa forma, Scorsese vai tecendo a sua própria crítica àquela secíedade, indo além dos
sigIÍificados sugeridos pela narrativa de Wharton, à medida em que ele desfamiliariza o gênero "filme
histórico". O filme de Scorsese não se apresenta como espetáculo recriador de uma época e facilmente
consemível; ao contrário, ele apresenta uma nova leitura do romance de época de Wharton, com
uma crítica própria, renovando os significados da crise social apresentada por Wharton para o cinema
contemporâneo.
No filme de Scorsese, um elemento da mise-en-sccne, bastante utilizado para introduzir as
características da sociedade e de todo o aparato utilizado para sustentá-la, em suas regras e padrões do
aceitável, é o exagero de detalhes nos arranjos das recepções e ceias preparados, não apenas para figuras
sociais importantes, mas também para demarcar as funções sociais e a ordem vigente. Nos jantares, os
lugares são marcados e os convites são distribuídos de acordo com a função e o papel que cada um deve
desempenhar socialmente. Existe nesse caso uma distribuição de papéis bem administrada por aqueles
que devem manter o status quo da alta sociedade vitoriana de Nova Iorque. O jantar de despedida
'9JÍ () H S l, C I I

de Ellcn Olensb, por exemplo, tem a funçao de redefinir os lugares e os papéis, reestabelecendo :1
ordem: Newland separa-se de Ellcn, e Ma)' assume oficialmente a sua posiçao de esposa. Os riscos são
eliminados, a ordem é mantidd e Ellen é colocada à margem daquela sociedade, ocupando novamente
seu lugar como "europeia", "estrangeira" e "exótica", inabilitada a absorver as regras de Non Iorquc
() elemento do filme que reycla o esmero com que esta sociedade tenta reprimir qualquer descjo
individual através de rituais sociaIs é a lIIise-en-scfIle, com as mesas ricamente decoradas, com o brilho
dos cristais e da prataria e as especiarias gastronômicas, ricls em detalhes, formando um espetáculo
re\Tlador do excesso de rituais sociais que fazem parte da ordem vigente. É no ato de mascarar a
necessidade de reprimir desejos e paDcões, de forma tão exagerada, que estes rituais sociais chamam a
atenção para si próprios. Dessa forma, os detalhes da IlIise-fIl-S(CIlC, enfatizados pela edição de imagens
e pelos closes da prataria, da beleza dos arranjos ornamentais de centros de mesa, revelam o luxo do
espetáculo mantenedor da ordem SOCIal - os rituais sociais necessários para conservar a ordem. O
filme elabora assim uma crítica social através dos seus efeitos da mise-en-s(cne e da justaposição de
imagens que vão, pouco a pouco, descobrindo o ato de mascarar e reprimir os desejos e as paixôes que
ameaçam a ordem preestabelecida.

• Descrição e Narrativa
Eisenstein (1992) chamou a atenção para a influência que Charles Dickens exerceu sobre o cinep1d
de D. W Griffith, um dos precursores do cinema narrativo. Eisenstein aponta para as similaridades
entre as montagens paralelas de GritIith e as passagens descritivas de Dickens. Tanto na descrição como
na montagem paralela ocorre uma ruptura da continuidade narrativa em termos de tempo, uma vez
que a ordem dos eventos da história é interrompida para a introdução de ações que correm paralelas
à açao principal da história narrada. Eisenstein define o uso das passagens descritivas nos romances
de Dickens como elemento de transformação e não de congelamento da ação, ocorrendo assim a
continuidade narrativa. O exemplo utilizado por Eisenstein é o capítulo XXI de Oliver Ttvist, quando
Dickens descreve o mercado público em diferentes etapas do dia, como uma espécie de montagem
(amanhecendo e anoitecendo, tornando-se mais e mais movimentado). Dessa forma, percebe-se que a
descrição e a narrativa, que tendem a ser vistas como distanciadas uma da outra, andam juntas. Mesmo
nas passagens mais descritivas, teremos uma relação intrínsica entre narrativa e descrição, sendo esta
última o elemento constitutivo de qualquer narrativa.
No caso do cinema, onde a utilização de uma narrativa em voz-over é rara, a descrição de cenas
se concentra no trabalho da câmera, que, como foi dito anteriormente, pode ser definida como um
narrador, pois não está apenas a mostrar, mas também a construir o universo ficcional, com todos os seus
significantes. No filme de Scorsese, a descrição funciona de forma poderosa, não apenas reconstruindo
cenas de época (Nova Iorque no final do século XIX), mas também tecendo um comentário crítico
àquela sociedade. A descrição dos jantares, com a câmera enquadrando as ceias com closes dos detalhes
dos talheres, louças, arranjos ornamentais, detalhes das vestimentas, não apenas descreve os rituais da
elite nova iorquiFa do século XIX, substituindo a voz da narrativa de Wharton, mas também revela a
necessidade de revestir de requinte o verdadeiro motivo de tais rituais: a manutenção da ordem social.
O aspecto ornamental das cenas parece indicar que os rituais são um pretexto à manipulação social
escondida por detrás da riqueza dos detalhes, como uma performance social necessária para manter
um equilíbrio de forças delicado e precário.
O filmóie John Huston, Os mortos e os vivos, uma adaptação do conto homônimo de James Joyce,
"Os mortos e os vivos", apresenta também uma série de cenas descritivas, mas com urna narrativa
mais lenta e distanciada das personagens. No conto de Joyce, as descrições são parte integral da
narrativa. O narrador do conto descreve os detalhes do perfil psicológico das irmãs Mork.an, em total
apreensão pela iminente chegada de Freddy Malins. O narrador descreve também, de forma sutil,
o distanciamento entre Gabriel e sua esposa. Essas tensões nos dão subsídios para que entendamos
os antagonismos existentes desde o início da narrativa, ao mesmo tempo em que nos dão o tom de
tensão psicológica predominante na narrativa. No filme, entretanto, ocorre um distanciamento entre
as sequências descritivas e o desenvolvimento do enredo, como se as descrições estivessem dissociadas
das tensões da trama. Da mesma forma, a câmera de Huston parece distanciada da subjetividade das
17f. _ T r. " I> I A IITFHÁRIA
~ L I I 1 I! .\ I \' H.\ I ,I N r \, \

personagens, de forma que as sequências descritivas do filme não apresentam uma perspectiva pessoaL
mas impessoal. Quando a câmera de Huston invade a privacidade do quarto de Juba, o olhar da câmera
não é filtrado pelo olhar ou sentimento de qualquer personagem. Dessa forma, ocorre uma ruptura
entre as cenas descritiva e narrativa.
No cinema, o focalizador permite distinguir a atividade do narrador, que reflete sobre a ação
do mundo ficcional, da atividade do personagem enquanto posição na história de onde a ação é
vista. O tocalizador é o agente que vê, sente e é através de sua sensibilidade que o espectador pode
entender as emoções do personagem e a sua visão do mundo ficcional No cinema, o focalizador
é essencial, pois torna possível que o narrador manipule a narração sem a sua direta interferência
nela. Os filmes tendem a apresentar um focalizador através do qual a audiência percebe o mundo
ficcional. Nesse contexto, pode-se entender que o distanciamento entre a câmera de Huston e o
mundo dos personagens compromete até mesmo o momento epifânico em que Gabriel recupera
parte do seu passado, pois a emoção contida no conflito de Gabriel não foi, ao longo do filme,
devidamente explorada. Enquanto que no conto de Joyce o tocalizador é Gabriel, no filme o
personagem não tem espaço para desenvolver seus conflitos, sua subjetividade e suas descobertas
da mesma forma que no conto. No filme, repetidamente ele aparece preocupado com seu discurso.
e até mesmo seu primeiro confronto com Lily não comunica qualquer sensação de desconforto e
culpa por parte de Gabriel. A câmera não oferece uma dimensão mais aprofundada do's conflitos
internos do personagem, pois a focalização, que deveria estar preponderantemente nele, varia
muito ao longo do filme.
Um bom exemplo para pensarmos sobre a importância do focalizador est~l no filme de Scorsese,
A época da inocência. Nesse filme a focalização recai sobre Newland Archer, explorando adequadamente
todas as nuances psicológicas e conflitos dele ao se deparar com a sua paixão por ElIen Olenska.
Quase todas as cenas do filme são introduzidas pelo olhar de Newland (o camarote de May, o baile
dos Beauforts, a cena do pier), até o momento final em que o flashback de Newland, produzido por
um raio de sol na veneziana do apartamento de Olenska, em Paris, reconstitui a cena do pier onde
Olenska se encontrava, sob os raios de sol, com um barco à vela ao fundo. O flashback do filme de
Scorsese sugere significados que vão além da narrativa de 'X'harton, revelando o inatingível que
Olenska sempre representou no imaginário de Newland. Como afirma Newland, se, na cena do pier.
ela se virasse e o olhasse, como em um sonho impossível, Newland ficaria com ela. O tempo passou,
ambos envelheceram, e o desejo de Newland por Olenska revelou-se irreal. Esse desejo situa-se no
plano imaginário de sonhos quase que telepáticos. Como em um conto de fadas, essa é a história de
amor inatingível, e que assim deveria manter-se para não alterar a ordem social vitoriana.

CONCLUSÃO

Os termos acima descritos e exemplificados buscam ilustrar algumas das possibilidades de análise
em estudos de adaptação. Traçou-se um panorama das várias tendências em estudo de adaptação, na
tentativa de demonstrar a importância de análises que considerem questões como a linguagem do
cinema, a intertextualidade e a narrativa, em suas possibilidades de incorporar, expandir e atualizar
os significados do texto adaptado. É importante que se pense a adaptação, não apenas em relação a
textos literários, mas também em relação a todos os elementos que a indústria cultural pode produzir:
produção de romances a partir de filmes bem sucedidos, e, na televisão, a produção de filmes comerciais
a partir de seriados. Ainda em relação à intertextualidade decorrente da prática do cinema, é importante
observar que o cinema tem as suas próprias formas de remeter a si mesmo, com alusões e paródias de
gênero (o western, o film-noir, o gangster e outros). O cinema apresenta, assim, uma linguagem específica
que deve ser analisada em relação as suas técnicas e sistemas de significação, avaliando-se questões
como iluminação, trilha sonora, míse-en-s(ene, enquadramento, corte e montagem. Esses elementos
não podem ser analisados isoladamente, mas sim dentro do Sistema de significação construído pelo
filme. Todas essas técnicas tazem parte de um sistema de construção de significados.
As adaptaçôcs também foram analisadas sob uma perspectin narratológica, com a análise de
elementos como a \'oz do narradoL focalizadoL construção do tempo e do espaço e a descrição.
N este sentido. o fi lme de Martin Scorsesc,.1 épo((/ da inorê/lria, il ustrou as várias questões teóricas
lcnntadas. Verificou-se que, em termos de adaptação. Scorsese conseguiu atualizar a crítica social
de Wharton. através de seu uso da /Ilisc-cll-S(C/lC, da focalização, da movimentação de câmera, dos
cortes e montagens. Como contraponto a essa ;1I1álise, utilizou-se outros exemplos de romances e
contos adaptados, demonstrando que o cinema apresenta uma linguagem própria e que dificilmente
pode-se analisar um filme sob a ótica de sua fidelidade. Ao contrário, as adaptações mais criativas
são as que melhor atualizam para diferentes audiências a riqueza de significados de um texto
literário.

REFERÊNCIAS

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17R - T E Cl R I A LITERÁRIA
LITERATURA,
,..
ILUSTRAÇAO E O LIVRO
ILUSTRADO

Nilce M. Pereira

A ideia de unir a literatura com a representação imagética remonta às antigas civilizações: o Livro
dos Mortos egípcio, uma coletânea de orações, hinos e fórmulas mágicas, elaborada pela ocasião de um
funeral (geralmente de faraós e pessoas eminentes do reinado) era totalmente ilustrado (BLAND, 1958;
HARTHAN, 1981); os fragmentos de papiros remanescentes de escavações, as sequências de desenhos
em meios como afrescos, mosaicos, terracotas, mármore, entre outros e, em particular, os manuscritos
bizantinos, comprovam uma intensa atividade ilustrativa na Grécia Antiga (WEITZMANN, 1()47,
1949, 1951, 1959); e, pode-se ir além, trazendo à memória a arte oriental chinesa, na qual os livros
xilográflcos, escritos em madeira - muitos dos quais provavelmente ilustrados - eram conhecidos
desde anteriormente ao século XIV a.c. (BLAND, 1958). Apesar de centrada na representação
textual, a arte produzida nesses períodos está longe de designar a obra ilustrada no sentido em que
a conhecemos, desenvolvida a partir da Idade Média e a invenção do pergaminho (a página feita de
pele de animais) e do códice (a reunião de pergaminhos, formando o livro) e, posteriormente, com
o surgimento da impressão, que revolucionaram a produção bibliográfica em todo o mundo. Desse
modo, embora possuindo uma história própria, o desenvolvimento da ilustração, especialmente
no que diz respeito à gravura, está intimamente relacionado com a evolução das artes gráficas e o
florescimento dos gêneros literários .
. Historiadores da ilustração como David Bland (1958) e John Harthãn (1981) consideram as
iluminuras 1 medievais como os primeiros produtos da arte ilustrativa ocidental. Entre as razões para

fu iluminuras são assim denominadas em razão da técnica de iluminação (a pintura com cores vibrantes e uso o,1:ensivo de
dourado e prateado) com quc eram produzidas, mas, outros termos como manuscrito iluminado ou manuscrito mcdieval,
podem ser também utilizados para a sua referência. O desenvolvimento da iluminação coincide com o nascimcnto do
Império Bizantino e a fusão do estilo clássico grego com elementos orientais, que começou a surgir em Constantinopla
a partir de sua instituição como capital imperial, em 330 (BLAND 1958); e tem na religião cristã o tema central de sua
composição. É típico do manuscrito iluminado o texto em colunas verticais, no pergaminho, geralmente nas caligrafias
cursiva ou uncial-com exceção da Artc Insular, proveniente da região conheCIda como Rcino da Nortúmbria, na Grã­
Bretanha do século VII, que popularizou a cscrita do mesmo nome - , com a letra inicial (capitular) decorada, urna 011
!Tlal, miniaturas (os desenhos), distribuídas em posições variadas no seu interior, e uma borda, também elaborada com
decorações, que o envolve e sc cstende até os limites da página. Como a rnaior partc das Iluminuras era criada na f(xma
de códice, a Bíblia completa ou em partes (como nas composições dos livros do Pentateuco, por exemplo, ou em gt'l1cros
cspecíficos como os evangeliários c os saltérios) constitui o tipo mais comum de obra iluminada - embora outros
1\0)
t

tanto, apresentadas por BLmd (1958), estJ o fato de que :1 ilustração impressa deriva da pintura de
miniaturas (a denominação dos desenhos no manuscrito iluminado) e que, se essas obras nunca
puderam ser produzidas em larga escala, como é () caso dos livros impressos, o intuito de suas cópias
era inegawlIllente a obtenção de réplicas, E h;i ;lInd,1 ;\ obscTva("Jo do autor de que os problemas
enfrentados pelo m!Oiatllrista eram praticamente os mesmos do ilustrador moderno: quais passagens
ilustrar, representar ou não () texto literalmente, e assim por diante (BLAND, 1958). Outros estudiosos,
no entanto, preterem contar a história da arte ilustratin a partir do advento da impressão (que se deu em
seguida à im'enção da prensa mecânica, por Johannes Cu tenberg, por volta de 1439) e das pu blicações
Impressas, primeiramente com os tolhetos xílográfícos avulsos e os incunábulos (a denominação
dos livros nessa época), nos quais tanto as imagens quanto os tipos que compunham o tc;,,'to eram
entalhados no mesmo bloco de madeira, até a proliferação dos livros ilustrados propriamente ditos.
Edward Hodnett (1990) o tú, partindo desse período.
De um modo ou de outro, o desenvolvimento da ilustração está em grande medida relacionado ao
continente europeu e faz notória a menção das regiões abrangidas pelo Império Bizantino, no período
medieval, influentes no surgimento dos estilos de maior proeminência na produção de iluminuras e, a
partir da ilustração impressa, países como a Alemanha e a Itália, no século XVI, os Países Baixos, no
século XVII, a França, no século XVIII e a Inglaterra, no século XIX, quando do apogeu da ilustração na
Europa (BLAND, 1958; HARTHAN, 19S I). Nas Américas do Norte e do Sul, embora em países c~mo
o México o primeiro livro tenha sido impresso ainda na primeira metade do século XVI e, no Peru, na
segunda metade desse mesmo século (MELLO, 1979), de modo geral a ilustração pode ser considerada
um fenômeno tardio. No Brasil ~ de fato, o último país a recebê-Ia no continente americano ~, a
impressão foi oficializada somente em 1808, com a instauração do decreto de criação da Impressão
Régia pelo príncipe regente D. João VI, o que ocasionou um grande atraso para que a produção ilustrativa
(e até mesmo livresca) começasse a se desenvolver. Admite-se que, a partir dessa data, e em torno
da Impressão Régia, o trabalho de alguns gravadores pioneiros 2 começasse a dar forma à impressão
de imagens (TEIXEIRA LEITE, 1966); também favorecida pelos primeiros avanços nos processos
técnicos). No entanto, essas produções não constituem ilustrações literárias e a prática de ilustração
da capa, comum entre os anos de 1890 e 1900 (HALLEWELL, 1985), ou de gêneros como a revista,
que começou a despontar no Brasil ainda no final do século XIX, é insuficiente para caracterizar uma
atividade ilustrativa para o período. Assim, é oficial que até o final desse século a ilustração brasileira
tenha permanecido incipiente (MINDLIN, 1995).
Quando se considera a ilustração, refere-se mais comumente à gravura, em suas diversas técnicas.
A definição do termo, caracterizada por Martim Itaphy (1987. p. 16) como a "arte do traçado
resultante de incisão em uma superfície (madeira, metal, couro etc.), de modo a permitir a prensagem
[e] possibilitando múltiplos da imagem gravada", envolve operações comuns, como o acabamento
da prancha, o desenho, a incisão, a tintagem e a tiragem de provas e os processos específicos em cada
técnica. A gravação na madeira (xilografia), após a execução do desenho, pode ser realizada por meio
de cortes com facas ou goivas (quando se tratar da gravura a fio, no sentido das nervuras da madeira),
ou com um buril (no caso da gravura de topo, em que o corte se dá transversalmente ao tronco);
a gravação em mctal envolve a incisão das chapas (mais comumente) de cobre OtLaço, com buris e
corrosão c"om ácidos; a litografia se dá com a elaboração do desenho diretamente no bloco de pedra,
com um lápis gorduroso, o lápis litográfico, que torna possível a sua aderência a essa superfície; e
assim por q,iante. Porém, outras técnicas podem ser utilizadas na ilustração e seu produto descrito
como tal. A pintura em aquarela, por exemplo, a contar de sua utilização milenar, desde a China

segmentos, como os livros de horas ou os breviários fossem igualmente caractensticos e alguns códices seculares, como o
Dioswrides de Viena (ca. séc. I), a Cillegética de Opiano de Apaméia e as duas versões da Eneida, Vergilius Romanus e Vergilius
Vaticanus, constituíssem raridades muito conhecidas.
2 Teixeira Leite (1966) menciona João Caetano Rivara, que retratou várias personalidades da época,Joaquim José (q11e executou

I
na madeira o desenho das annas reais), além de nomes como João José de Souza, A. do Canno, Brás Sinibaldi, entre outros,
envolvidos com a gravação de imagens.
3 Para se ter uma ídeia, a litografia, inventada somente no final do século anterior, era praticada no Brasil em 1818,juntamente
com a gravura em metal e a xilografia (TEIXEIRA LEITE, 1966).

1RO _ T ~. n n r A liTERÁRIA
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do período dos imperadores (designada como pintura a pincel) e sua própria utilização na elaboração
dos manuscritos iluminados, é ainda hoje uma técnica muito empregada na ilustração. Artistas como
N. C. Wyeth fizeram das ilustrações em aquarela grande parte do conjunto de sua obra, na primeira
metade do século XX.
Alguns fatos sobre a ilustração são notórios no decorrer de seu desenvolvimento, tais como
a sua alternância com a decoração - que Bland (1958, p. 12) considera como a sua "contraparte
abstrata" -em períodos específicos, nos quais uma se sobressai sobre a outra. Para citar apenas uma
dessas instâncias, durante a produção de iluminuras, o autor afirma que, embora a ilustração tenha
surgido primeiro, a decoração colocava-se mais em evidência, uma vez que os manuscritos eram
destinados aos ricos e instruídos e que, em grande parte, constituíam matéria filosófica - o que
naturalmente a distanciaria da ilustração, mais descritiva. Porém, Bland (1958) também argumenta
que essas distinções possivelmente não existiam para os apreciadores da arte ilustrativa dessa época,
podendo tudo ser visto como ilustração. É curioso ainda que a ilustração tenha pertencido ao artefato
de diferentes mãos, no decorrer de seu desenvolvimento, notadamente do ilustrador propriamente
dito, que elabora o desenho e o transfere para o meio em que será executado (a madeira ou o metal,
por exemplo) e do gravador, que, de fato, o executa nesse meio. No início da gravura, essas distinções
não existiam e tampouco a autoria da obra era atribuída a esses artistas. Como os tipógrafos eram
geralmente responsáveis por todos os aspectos da produção do livro e somando-se o futo de que
a reutilização das matrizes do desenho e, por conseguinte, a repetição das ilustrações em obras
distintas, era um fenômeno bastante comum, as ilustrações eram geralmente creditadas a esses
profissionais 4 • A partir do século XVII, com os regimentos das guildas (as associações de artesãos),
embora lentamente, começou a haver uma distinção entre as atribuições individuais de cada artista
(BLAND, 1958). Na ilustração moderna, a ilustração de uma obra é atribuída mais comumente
ao ilustrador (mesmo não sendo ele próprio o gravador). Grandes mestres como Gustave Doré,
Eugene Delacroix e William Blake, para citar alguns, porém, são dominadores da composição e (na
maioria das vezes, inovadores) da técnica.
Um outro aspecto da ilustração é que ela acompanha as tendências manifestas pela arte,
representadas mais comumente na forma de movimentos estéticos e literários. Como sugerido por
Harthan (1981, p. 7):

[a 1ilustração literária é como um espelho de mão, no qual se podem ver refletidos os grandes
acontecimentos históricos, as transformações sociais e o movimento das ide ias no decorrer
dos séculos. O modo como um artista ilustra um determinado texto informa-nos sobre a
maneira por meio da qual ele e seus contemporâneos consideram a si mesmos. E a escolha
dos textos para ilustração em diferentes períodos é por si significativa, indicando mudanças na
atmosfera do pensamento (minha tradução).

Em sua análise das ilustrações da Eneida em diferentes períodos, Craig Kallendorf (2001) afirma
que, cónscientemente ou não, os artistas tendem a visualizar as obras do passado de acordo com a
ótica de seu próprio tempo. O autor acredita também que a maneira como os temas clássicos são
tratados visualmente, em épocas distintas, promove um tipo de ritmo para ã arte, que a faz alternar­
se em momentos nos quais o artista intenta resgatar o passado em seu trabalho, enfatizando a arte
per se, ou, de modo contrário, em que evita os modelos antigos, mudando o enfoque para si mesmo
e su~ habilidade técnica. Isso revela especialmente a literatura grega e romana como favorecendo as
periodizações da arte; e as ilustrações, uma das formas de se perceber essas nuances.
Quanto aos gêneros mais comumente ilustrados, no entanto, algumas considerações sobre o
intuito deste trabalho podem auxiliar na sua compreensão. Discorrer sobre a literatura ilustrada é,
de antemão, tarefa insana em qualquer estudo com espaço delimitado e que envolva os pressupostos
históricos das artes em questão. Ainda no final do século xv, afora a literatura religiosa, a literatura

4 Embora tenha havido exceções, como é o caso de Albrecht Dürer, que alcançou fama, reconhecimento e, até mesmo,
compensação financeira. ainda em sua própria época (o final do século XV e início do XVI), como ilustrador profissional
(PANOFSKY, 1971).
lJJ F I{ í I li :\
I
t
secular ilustrada podia até mesmo ser subdividida em categorias, como descrito por IIodnett (19()O) Ii
a respeito dos livros mformativos (sobre direito, I11edicillJ, ciêIlCIJ, histórIa, \'lagel1l, economia II
doméstica etc), educacionais (que incluíam as gramáticas latinas e os dicionários) e literários (que
traziJl1l a poesia, a sátira, a prosa e o romance em \'Crso como principais gêneros). E, mesmo que se
elegesse apenas 11m gênero para consideração, como a literatura infantiL por exemplo, somente os
diferentes formatos que o segmento comporta (como os livros de história, os livros infantis e juvenis,
t
as histórias em quadrinhos, entre outros) seriam suficientes para demandar uma obsernção amph
dos muitos aspectos que a envolvem. Assim, norteando-se pelo intento cauteloso de um trabalho mais
direcionado, este estudo propõe considerar apen:ls o livro ilustrado, alguns aspectos da rehção do
texto literário com a ilustração, nesse tipo de publicação e as abordagens em destaque sobre o assunto
nos últimos anos. Certamente, que as possibilidades de um estudo histórico se desfazem na própria
consideração das razões que acabam de ser apontadas. No entanto, o trabalho do historiador não será
abandonado nos momentos em que os dados históricos demonstrarem-se relevantes nas questões em
discussão. Nas considerações a seguir, eles visam cumprir esse propósito.

A ILUSTRAÇAo E o LIVRO ILUSTRADO

Na concepção moderna do termo. o livro ilustrado está em grande medida relacionado ao


surgimento do romance. Certamente, que outros gêneros, tendências estéticas e literárias e, até mesmo,
obras específicas representam um papel de grande importância n:l combinaç:io da literatura com :l
arte ilustrativa, Na França, por exemplo, a chegada do estilo rococó, no século XVIII, inf1uenciou na
diminuição do tamanho da página e na concepção mais intimista da relação do texto com os desenhos
(BLAND, 1958); bem como alterou os temas propícios à publicação - e ilustração - , o que colocou
os livros de poesia e drama em muito mais evidência do que os de cunho religioso ou científico
(BLAND, 1958), A simples menção de edições ilustradas de autores como Ovídio, Boccaccio, Molicre
c RacÍne, além de nomes tradicionais, como La Folltaine, é suficiente para compronr essa tendência.
E, na Inglaterra, mesmo anteriormente a esse período, o lançamento de versões ilustradas de obras
inglesas e ontras da literatura clássica traduzida, entre as quais as primeiras edições ilustradas de O
Peregrino (1680), Dom Quixote (1687) e Paraíso Perdido (1688), é também significativo, considerando­
se o curso que a ilustração seguiria até a sua consagração nesse país no século XIX. No romance,
entretanto, provavelmente em decorrência de sua própria forma organizacional, com enfoque nas
personagens e na ação, a narrativa visual pode ser percebida de forma mais coesa. A observação de
Harthan (1981, p, 156), sobre o efeito do romance na ilustração, de que "[o] embelezamento do
texto ficou em segundo plano diante do fortalecimento moral, em termos visuais, dos episódios da
narrativa" (minha tradução), mais provavelmente atesta esse fato.
O aparecimento do romance - e, especificamente o que pode ser entendido pela nomenclatura
como designação das narrativas de ficção - não é uma questão simples de ser esclarecida. De acordo
com Ian Watt, no célebre A Ascenção do Romance ([1957]1996), o romance é um produto da literatura
inglesa do início do século XVIII e tem nas publicações de Aventuras de Robínson Crusoé (1719), de
Daniel Def~e, Pâmela (1740) e Clarissa (1748), de Samuel Richardson e Tom Jatles (1749), de Henry
Fielding, as primeiras manifestações do gênero. Entre os principais fatores que distinguem o romance
das formas literárias anteriores, sustentando-o como novidade, Watt aponta o "realismo formal", como
denomina, que abrange, entre outras, as características de credibilidade e probabilidade (o romance
apresenta personagens e situações plausíveis de existência), familiaridade (que, por retratar a experiência
humana, leva à identificação do leitor), individualidade (que favorece a consciência do mundo e de
si mesmo no indivíduo). A crítica literária pós-moderna e pós-estruturalista, entretanto, não apenas
contesta as conclusões de Watt (especialmente, com relação à novidade do romance e à concepção de
realismo do autor) como considera que outros gêneros ofereçam uma estruturação semelhante à do
romance (entre outros HUNTER, 1990). Além disso, com a ascensão da crítica feminista, nas décadas
II"T'CnÁUIll.
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de 1970 e 1980. as obras de autoria fl'minina passaram a ocupar uma posição de maior relevância nas
questões literárias, Tanto que, Oroolloko (1688), da escritora inglesa Aphra Behn, encontra-se entre as
primeiras a reivindicar a real "inauguração" do gênero (DAVIS, 1983, p, 106-7),
De qualquer modo - considerando que a discussáo sobre a sua origem não pertence ao
escopo deste estudo - , o romance é o gênero mais comumente associado com a ilustração literária
(HODNETT, 1990) e compõe, especialmente com o romance de aventura e as histórias fantásticas,
o conjunto das fr1fl1IaS literárias que mais recebem edições ilustradas em todo o mundo, Isso pode
ser C\'idenciado pela popularidade de autores como Robert Louis Stevenson, Charles Dickens, Lewis
Carroll, Mark Twain, james Fenimore CoopeL Louisa May Alcott. além de Daniel Defoe e Jonathan
Swift, nuas obras ilustradas podem ser encontradas em praticamente todas as línguas, Certamente,
que a longa trajetória da ilustraçáo de títulos como as Fáblllas de Esopo ou La Fontaine (ou, ainda,
dos Contos de Fadas, dos irmãos Grimm), bem como de toda a tradiçáo literária que envolve desde as
lendas do Rei Artllllr e R(l!Jill Hood, passando por obras de gr:mde preferência do público, como Dáfnis
e Cloé (ca, século II), para citar apenas um exemplo, até as obras consagradas de imortais, como Dante,
Milton e Shakespeare, não devem ser esquecidas; e tampouco o talento individual de artistas como
William Blake, que de modo singular eternizou a união da ilustração à poesia. As obras representativas
do romance, entretanto, podem ser consideradas as constituintes da literatura clássica contemporânea,
daí a sua grande popularidade em edições ilustradas,
É significativo, por exemplo, que as obras de ficção tenham logrado tantas contribuições para o
desenvolviIllento das teOrIas tradutológicas (em especial das adaptações literárias) em todo o mundo,
Watt (1996, p, 30) afirma que, em virtude do predomínio da função referencial, o romance é "o mais
traduzível de todos os gêneros", Além disso, as obras pertencentes ao gênero romance estão entre as
mais propensas à adaptação também no âmbito imagético, Basta considerar que a ênfase na ação, que
ocorre nessas obras, torna propícias as descrições diferenciadas dos acontecimentos da narrativa, à
medida que história recebe novas ilustrações, ou, mais ainda, quando é traduzida para outras lín§,ruas e
esses acontecimentos sáo visualizados pela ótica da cultura que a recebe.
Esse fato torna oportunas as questões sobre como o livro ilustrado caracteriza-se no Brasil e de
que modo a literatura nacional e mundial é tratada 110 âmbito editorial brasileiro, no que diz respeito à
ilustração. Começando pela última questão, como mencionado, até o final do século XIX a ilustração é
pouco significativa, sendo a maioria dos livros impressa sem ilustrações. José E Mindlin (1995, p. 64­
65) relata que, mesmo nos casos em que o volume dizia-se ilustrado com "esplêndidas gravuras" (como
em edições das Mil e UlIla Noites ou RobíllSOIl Cmsoé, com que o autor exemplifica), as ilustrações eram
de má qualidade e "sem expressão artística" e não se sabia se sua procedência era europeia ou brasileira.
Somente a partir das inovações introduzidas por Monteiro Lobato, quando de sua enveredada para
a publicação de livros, é que as ilustrações, bem como toda a parte gráfica do volume, passaram a ser
destacadas nas obras de ficçáo, Lobato foi responsável por uma verdadeira revolução editorial, a partir
da década de 1920: "Chamei desenhistas, mandei pôr cores berrantes nas capas. E também mandei por
figuras! (Leitura, setembro de 1943, p. 13 apud HALLEWELL, 1985, p. 251). Suas melhorias incluíam
a importação de tipos novos e modernos, a mudança na qualidade do papel e a contratação de artistas
co~o Antônio Paim, Belmonte e Mick Carnicelli, ademais de J Wasth Rodrigues, que havia ilustrado
capas de Urupês (1918) e Saci (1921). Assim, também, as considerações sobre a primeira questão partem
em 'grande medida de seus empreendimentos,
N o entanto, o próprio momento favorável da ilustração literária a partir da década de 1920 (LIMA,
1985), somado aos avanços da indústria gráfica, as oportunidades a novos escritores (em quase que
totalidade também de iniciativa de Lobato) (HALLEWELL, 1985), a implantação de novas casas
editoriais e o lançamento de coleções ilustradas de clássicos nacionais e estrangeiros (HALLEWELL,
1985), podem ser considerados os alicerces da produção de obras ilustradas no BrasiL Nos anos de 1920,
destacam-se as tradicionais revistas de veiculação e suporte da cultura, como a Kosmos, a Renasccnça, a
Ilustração Brasileira, a Panóplia, a Revista do Brasil, a Novela Scmanal, a Revista Nacional, a Feira Literária e
a Ariel, já em circulação antes desse período, juntamente com a KJaxon, a Papel e Tinta, a Novíssima, a
Revista de Antropofagia e a Terra Roxa c Outras Terras, ligadas ao movimento modernista, todas ricamente
-

1(EI<E!R'\

ilustradas (LIMA, 1985). E, na década de 1<)50, o interesse da José Olympio por grandes coleções
ilustradas deixou um legado de obras como a ficção ilustrada de José de Alencar (l <)51), em dezesseis
volumes, as obras completas de Oliveira Vianna (1957), em quinze volumes, a História e 7radiç6es da
Cidade de São Rwlo (1953), de Ernani da Silva Bruno, em três volumes, com desenhos de Portinari.
nas páginas de rosto e 112 ilustrações de Clóvis Graciano, a História do Brasil (1959), de Pedro Calmon,
em dez volumes, com 948 ilustrações de grandes artistas, entre eles J. Wasth Rodrigues, além de uma
nova tradução de Dom Q/lixote' (1952), em edição anotada de cinco volumes (traduzida por Almir de
Andrade e Milton Anudo) , com 376 ilustrações de Gustave Doré, a coleção completa de Dostoiévski
(1952), em dez volumes, com um total de 457 ilustrações de artistas diversos, incluindo Oswaldo
Goeldi, com os desenhos para Hllmilhados e Qfendidos, Recordaç6es da Casa dos Mortos e O Idiota (que
haviam sido elaboradas na década anterior) (RUFlNONI, 2006, p. 181), as obras completas ilustradas
de Charles Dickens (1957), em trinta volumes, de Tolstoi, em doze volumes, e de Casanova, em dez
volumes, entre muitas outras (HALLEWELL, 1985).
No entanto, a literatura ilustrada tornou-se popular com os denominados "clássicos de aventura"
(embora envolvendo outras temáticas), traduzidos para o português, a partir das primeiras décadas do
século XX. Em seu estudo sobre as traduções brasileiras de escritores norte-americanos do século XIX,
que se dedicaram à ficção em prosa, Irene Hirsch (2006) inclui MlIlherzinhas, de Louisa May Alcott,
i
Moby-Dick, de Herman Melville, O Último dos Moicanos, de James Fenimore Cooper, A, AIJellt/!ras ;

de Tom Sa1Vyer, A, A/lenturas de Hllckleberry Fintl e O Príncipe e o Mendigo, de Mark Twain, A Cabana
do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe, Chamado Sel/Jagem, de Jack London, entre outras, como as
obras mais traduzidas no Brasil; e títulos como Alice 1/0 País das Mara"ilhas e Alice Atra/lés do Espelho,
de Lewis Carroll, A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, Viagem ao Celltro da Terra, de Julio
I
:11

Verne, Robinson Crusoé, de Daniel Defoe e A, Viagens de GIIllil'er, também podem ser somados a elas('.
Essas obras são encontradas em coleções ilustradas como a "Clássicos da Literatura Juvenil", da Abril
Cultural, "Elefante", da EdiourofTecnoprint, "Grandes Aventuras", da Editora Abril, "Obras Célebres"
da Melhoramentos, "Eu Leio", da Ática, "Reencontro", da Scipione, entre outras, mais comumente
em edições integrais ou adaptações dirigidas aos públicos infantil e juvenil; embora edições para os
adultos não sejam incomuns: o volume de Alice - Edição Comentada (2002), da Jorge Zahar é apenas
um exemplo.
Os desenhos nas coleções são geralmente adaptados ao público a que o texto é destinado.
Principalmente nas obras traduzidas, as ilustrações acompanham os mesmos direcionamentos (de
público, faixa etária etc.) estabelecidos para a publicação em que figuram (PEREIRA, 2(07). As edições
para as crianças, por exemplo, além de mais apelativas a essa audiência pelas próprias características dos
desenhos, são mais didáticas e explicativas. É bastante comum também a reprodução das ilustrações
originais, ou que tenham sido elaboradas por artistas estrangeiros, nas edições traduzidas. Essa prática
pode ser até mesmo considerada uma estratégia de mercado, na qual a condição primordial dos
desenhos é utilizada para conferir maior credibilidade ao texto traduzido e ao volume como um todo
(PEREIRA, 2007). Nesses casos, as ilustrações influenciam de forma mais eficaz na recepção da obra,
uma vez que o conteúdo textual será visualizado na cultura alvo, de acordo com a ótica do ilustrador
original. De fato, as ilustrações são as maiores responsáveis pela transmissão de referentes de uma

5 Mora o Dom Quixote das Cria/lças, adaptado segundo os padrões de Lobato para ser narrado por D. Benta, em 1936, Dom
Qllixote haviG sido traduzido em 1901, por MiJler (HALLEWELL, 1985), para a Laemmert. Da tradução em questão consta
que, quando a primeira edição e uma segunda, revista, de 1954, esgotaram-se, José Olympio contratou Cândido Portinari
para elaborar os desenhos da próxima edição. Por causa do falecimento do artista, no entanto, tal edição não chegou a ser
lançada, sendo as vinte e duas ilustrações concluídas nessa ocasião publicadas posteriormente, e de forma isolada, por uma
outra editora.
6 De acordo com John Milton (2002), o Clube do Livro, que atuou na distribuição de livros no Brasil entre 1943 e 1989,
inclui uma grande parcela de obras traduzidas. Milton (2002) cita as coleções da Editora Globo de Porto Alegre, a Coleção
Amarela, de romances policiais, a Coleção Nobel, que entre 1933 e 1958 publicou autores como Thomas Mann,James
Joyce, Gide, Virginia Woolf, Kafka, Aldous Huxley, Proust, Steinbeck, Pirandello e Faulkner (AMORIM, 2000, p. 108-10
apud MILTON, 2002) e a Biblioteca dos Séculos, cujos títulos, em circulação entre 1942 e 1952, incluíam Guerra e Paz,
Grandes Espera/lças, Vragt'lls de Gulliver, O Vérmelho e o Negro (AMORIM, 2000, p. 157-59 apud MILTON, 2002). Porém, as
edições para o Clube do Livro não são geralmente ilustradas.

384 - T E O R I A LITERÁRIA
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cultura para outra e o IIno ilustrado (traduzido (lU não), UIlla das maneiras mais óbvias de se observar
as nuances entre as representações verbal e visuaL

A ILUSTRAÇÃO NO LIVRO ILUSTRADO

o livro ilustrado é um tipo singular de publicação, que coloca lado a lado não apenas dois meios
distintos, um verbal e outro visual, mas dois tipos de linguagem que diferem entre si enquanto
realizações estéticas, Não obstante a aparente obviedade dessa afirmação, o encontro da palavra
com a imagem no mesmo espaço físico do livro é um fenômeno bastante complexo, envolvendo a
sua consideLlção em conjunto e o entendimento de suas relações necessariamente como dialogais,
De acordo com Lima (1985), a correspondência entre ambos os meios, na obra ilustrada, é sempre
circunstancial, não podendo ser prevista ou pré-estabelecida -- e a autora está correta a esse respeito,
No entanto, a observação inicial dos fltores que determinam a sua associação pode, se não oferecer
o próprio entendimento das relaçóes que estabelecem, auxiliar na compreensão de como podem ser
caracterizadas, Assim, as questões posteriores sobre que função(ões) as imagens podem desempenhar
na representação do texto e sua importância na recepção da obra poderão ser discutidas com maior
nitidez, É também de importância a distinção entre as ilustrações autônomas, criadas para obras
canônicas como os livros bíblIcos ou os dramas de Shakespeare (e geralmente publicadas em catálogos
e volumes especiais ou expostas em galerias de arte) e as ilustrações denominadas "literárias", que
compõem os livros ilustrados (HODNETT, 1986, p, 11). Ao passo que as primeiras podem ser
abordadas independentemente, como fazendo referência às obras que representam, as segundas devem
ser consideradas na sua relação com o texto nos volumes ilustrados.

A ASSOCIAÇÃo DIALOGAL DO TEXTO COM A IMAGEM

De modo geral, os principais influcntes no caráter das relaçócs que a imagem estabelece com
o texto são a seleção do que deve ser descrito visualmente e o assunto em si a ser representado. O
primeiro está diretamente ligado às escolhas do ilustrador. Edward Hodnett (1986) coloca o momento
da escolha entre os mais importantes nas resoluções de um artista; e classifica duas principais decisões
a serem tomadas antes do início do trabalho (mesmo com a passagem já selecionada): o momento
exato a ser ilustrado e a distância a partir da qual a cena será apresentada. Exemplificando com Dom
Quixote, se a passagem de "Dom Quixote e Sancho Pança contra os moinhos de vento" fosse ilustrada,
o ilustrador poderia contar com quatro principais momentos: (a) Dom Quixote e Sancho Pança
discutindo (e discordando) sobre se estavam vendo gigantes ou moinhos de vento, à distância, no
meio da neblina; (b) Dom Quixote com a lança empunhada horizontalmente, cavalgando na direção
dos moinhos; (c) o momento do impacto; e (d) o momento seguinte ao impacto; e que poderiam,
por sua vez, ser subdivididos. Se a quarta opção fosse selecionada, por exemplo, o ilustrador poderia
optar por apresentar Dom Quixote suspenso no moinho, dando voltas em urna das asas, desbaratado,
no chão, ou com Sancho Pança ajudando-o a se recompor. E, quanto à decisão sobre a distância, o
ilustrador deve considerar especialmente o ponto de vista a partir do qual apresentar a cena. No caso
de Dom Quixote preso ao moinho, poder-se-ia optar por urna retratação em dose-up ou à distância,
vista de cima, corno se o ilustrador estivesse no ar, acima do moinho, ou de baixo, em que visualizasse
a cena do chão.
As decisões sobre o que ilustrar estão em grande medida condicionadas à coordenação da
publicação por parte do editor. O editor é geralmente responsável pela contratação do ilustrador,
l{;J
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F R E I n !\

pelo estabelecirnento da quantidade de ilustraç(lCs e o lug.u onde dC\LTão tlguLlr c, até lllc',mo, d.]
técnica utilizada e as passagens a serem escolhidas (HODNETT 1<)86), Pode acontecer também de
o autor encarregar-se dessa parte da publicação, cllldando pesso;]lmclltc ch contrat:l\'ão do artlsU e
ou acompanhando o processo criatiVO das ilustrações, Casos do tipo IIlcluem () de Lcwis CarrolL que
chegou a enviar a fotogratla de um:1 criança sua conhecida (Mary I -lilton 13adcock) para que () dllstrado]
John Tennicl utilizasse como modelo na composição de Alice, durante a primeira edição de Allri' 1/(1
País das A1ara"ilhas (1865) (GAHDNER. 1965): de Mark Twain, que comandou o processo illlstratim
original de AI' A I'CII til ras di' HlIrklcbcrry Fillll (188--+). para que os temas (de violênCia. perseguição raciJL
morte, e outros) considerados tabus t(JsseIl1 amenizados visualmente (DAVID, 19(4): e. talvez. o nnis
famoso, de Charles Dickens, que instruía seus ilustradores com relação as cenas e a maneira como
deveriam ser elaboradas, bem como aprovan ou reprm'a\'a cada desenho antes de sua pllbhcação
(COHEN, 1980: WAUGH, 1937: LESTER. 20(6), Diz-se do autor que possuía uma "Imaginação
visual", que demandava que os desenhos devessem corresponder à maneira exata como os h;wia
previamente idealizado (COHEN, 1980, p. 5).
O texto também pode impor ITstriçôes ao artista, expandindo ou delimitando as suas opções de
..

escolha, Em seu estudo das ilustraçôes bíblicas, Meyer Schapiro (1 <)73) menCiona as instâncias em
que o texto não fornece informações suficientes para que o ilustrador possa visualizar como uma
cena ocorreu. Citando a passagem em que Caim mata AbeL no capítulo quarto de Gêncsis, o au!o!
argumenta sobre a quase impossibilidade de se ilustrar essa passagem sem os det:tlhes de como se deu
o crime, ou da arma utilizada (visto não serem mencionados textualmente), de modo que qualquer
imagem das circunstâncias do acontecimento terá sido fruto da imaginação do artista. E, se podem
citar ainda os casos das narrativas em primeira pessoa, nas quais a inexistência de descrições pessoai~
- Robinson Crusoé, por exemplo, raramente refere-se a si mesmo com rel:tção :t sua aparência físic1
- oferece, do mesmo modo, uma ampla margem criativa ao ilustrador. No entanto, além desses
fatores de ordem geral, existem os próprios elementos formais de cada linguagem, que interagem na
justaposição de ambas no espaço do livro e são igualmente significativos na construção interpretativa
da obra.
A começar pelo formato e tamanho do volume e a textura do papel utilizado. todos os constituintes
do livro ilustrado são idealizados a promover a confluência das duas linguagens A capa, por exemplo.
pode não apenas oferecer "pistas" do conteúdo do livro, como do público a que é destinado, do tipo
de linguagem empregada, da existência de ilustrações em seu interior e, até mesmo· - e de forma
mais óbvia - da qualidade da publicação. Nas capas de Ali{i' 1/0 País das Marallilhas publicadas pela
Summus Editorial (1980) e pela Companhia Editora Nacional (1970) essas informações são notórias
a uma primeira olhada. Na primeira, cuja edição visa o público adulto e acadêmico, a capa não possuÍ
nenhum desenho, apresentando sobre sua superfície lisa monocromática apenas o nome do autor,
o título dos dois livros de Carroll (também, Atrallés do Espelho e o que Altá Encontrou Lá [1871]), que
compõem o volume e o nome da editora7 • E, na segunda, direcionada às crianças, além da figura de
Alice, colorida e executada na forma de cartoon, as própnas letras que compõem o título são criadas
para divertir, por seu formato aludindo a chaves, velas, objetos decorativos 8 etc. Elas exemplificam,
respectivamente, as capas tipográfica e figurativa, como as classifica Lima (1985).

7 Embora esse fato não implique em dizer que esse tipo de capa não possua atrativos ou não esteja relacionada ao conteúdo
significativó da obra. Ao contrário, no caso particular dessa edição, todas as infonnações descritas na capa estão atreladas
ao texto: a superficie que acolhe os tipos (letras) em uma única cor (verde água), os tipos em fonnato tipográfico, ambos
denotando seriedade e evitando "congestionamentos" visuais e, principalmente, a maneira como estão diSpostas no seu
espaço. Do lado esquerdo, em urna coluna vertical, estão o nome do autor, em branco, e, abaLxo, os títulos das duas obras
(Aventuras de Alice 110 País das Maravilhas e Através do Espelhn e O que Alice Encontroll Lá), em tom verde vegetaL E no lado
oposto, em posição simétrica estão, também, em urna coluna vertical, o nome do autor, em branco, e os títulos, em um tom
um pouco mais claro que o da coluna da esquerda e escritos de fonna contrária, como que refletmdo a coluna paralela. Essa
disposição pode referir-se tanto ao fato de que o texto constitui uma tradução (que espelharia o original), quanto ao própno
conteúdo de uma das obras, em que Alice se encontra do lado de dentro do espelho, onde os acontecimentos se dão de fonna
"contrária", como se realmente executados de frente para um espelho.
S Esses elementos, de fato. são utilizados de modo a fonnar a palavra 'Alice': o A é fomlado por duas pernas abertas e os pl'S
virados para dentro, com um lenço amarrado em cada uma (fonnando o 'corte' da letra); o L é urna chave; o I, urna vela acesa;

T I T t: [) 4. n , A
,.'(~( 2') 1. J -I r p ,-\ I l jl.\ i [ 1: \ [- 1< .\', -\ \) I \) I I \" H () I I I " ] H :\ I) i)
V

Juntamente com as capas, os elementos que compóem a linguagem \'isuaL como o meio, o estilo.
as cores. a forma e as lmhas. S:lO org;mi7ados de modo a prod\l7ir o eteito desepdo pelo artista As
cores, por exemplo, podem criar diferentes estados de espírito para a história (N ()l)ELMAN, 19i-l8):
e as linhas podem afetar a maneira como as passagens são vis\1alizadas, De acordo com Nodelmall
(1988, p, 127), nos livros infantis - e que podem ser aplicadas ao livro ilustrado - , as linhas que se
juntam para formar os espaços promovem solidez e estabilidade, ao passo que as linhas que não se
conectam, além de não possuírem essa qualidade, dão a impressão de estarem desordenadas, Além
disso, O\1tros recursos como a representaçJo simbólica. a retrataç:lo em c!OSC-IIP 0\1 COI11 as cenas em'oltas
em molduras e a posição que as figuras ocupam em meio ao te:-"lO servem para modificar as impressóes
desses elementos. Nodelman (1988, p, .=iO) afirma que a moldura colocada em volta de uma tiguLl
torna-a mais ordenada, mas menos eficaz, ademais de que "a visualizaçJo de acontecimentos cercados
por fronteiras estritamente definidas implica em destacamento e objetividade, uma vez que o mundo
dentro de uma moldura é separado do nosso próprio mundo, demarcado para que o observemos"
(minha tradução). E quanto à posição ocupada pelas i1ustraçôes, apesar de centrada na relação física
do texto cotn a imagem, está diretamente ligada às implicaçóes significativas. A ilustração posicionada
antes da passagem textual que representa, por exemplo, pode antecipar as informações textuais. Stephen
C. Behrendt (1997) afirma sobre o frontispício (a denominação da ilustração da página de rosto, que
abre os volumes ilustrados) que, quando esse desenho apresenta algum tipo de ligação com,a narrativa
(por exemplo, pela apresentação de uma cena que será repetida no interior do livro), projeta a atenção
do leitor para o futuro, desencadeando previsões do que acontecerá na história: o leitor fará a leitura,
esperando que os acontecimentos correspondalll a suas expectativas preestabelecidas.
O posicionamento da ilustração também dá origem a um ritmo, que se forma à medida que
a história vai avançando. Assim como as palavras, as imagens possuem temporalidade, sugerindo
a passagem do tempo por meio da sequência em que são ordenadas (NODELMAN, 1988), Essa
qualidade da imagem, por sua vez, está relacionada à sugestão de movimento, originada, entre outros
elementos, pelas linhas contínuas, pelas distorçôes dos corpos, pelo direcionamento das figuras da
esquerda para a direita, pela repetição de personagens em locais diferentes, pela apresentação de
personagens estáticos, sugerindo intensa atividade emocional (NODELMAN, 1988; SCHWARCZ,
1982). Assim, as ilustrações vão construindo um outro tipo de narrativa. feita de imagens, mas, que,
do mesmo modo, apresenta a progressão dos acontecimentos textuais. Nodelman (1988, p. 171) alega
que "se uma figura pode. fJzendo uso de drias convenções, transmitir a noção de movimento e de
passagem do tempo (ou nos surpreender pela aparente ausênCIa dessas qualidades), então, ela pode,
obviamente. também sugerir os acontecimentos organizados de uma história - a interconexão lógica
de causa e efeito que fonna o enredo" (minha tradução): a imagem é capaz de narrar uma históna
tanto quanto as palavras.

A(s) FUNÇÃO(ÓES) DA ILUSTRAÇÃO

Esses fatores levam ao pensamento de que a função primordial da ilustração é a de narrar o texto
visuàlmente, o que de fato ocorre no livro ilustrado. No entanto, em se tratando que as imagens
desempenham ainda outros papéis no seu relacionamento com o texto, algumas considerações a esse
respeito podem expandir os pressupostos para essa conclusão. Primeiramente, tanto a função quanto
o conceito de ilustrar encontram diversas definições. Para]. Hillis Miller (1992, p. 61), por exemplo,

o C, dOIS braços, que partem do meio da letra, cuja mão esquerda, acuna, segura um relógio pela ponta dos dedos e cUjd
mão dIreita. abaixo, serve de apoio para um pires com uma xícara. Colocados na parte supenor, como estão, ocupando todo
o espaço da mancha (a denominação da área da capa), com a figura de Ahce logo abaixo, no centro (miolo), esses elementos
fonnam a chamada capa referencial (Lima 1985), em que a palaVTa identifica o desenho e o desenho identifica a palaVTa, uma
linguagem funcionando como legenda da outra.
ilustrar é "trazer à luz "; para Sob Gill e John Lewis (196-L p. 7). "informar", "elucidar", ou "entreter";
e, para Edward Hodnett (1990, p. 1), "decorar". "informar" e "interpretar". E, quanto à flmção c.b
ilustração, a sugestão de Gill e Lewis (1964, p. 7) de que as illlstrações podem trazer "uma resposta
visual a um problema literário específico", ou de N. C. Wyeth, de que de\Tm "acrescentar" (de acordo
com Andrew Wyeth (1987, p. 80 apud GANNON, 1991. p. 93), podem certamente somar-se aos
propósitos que lhe são conferidos por Behrendt (1997, p. 28), de que podem "alterar", "expandir",
"contradizer", "ridicularizar" ou, até mesmo, "repudiar" ° texto; ou ainda por Frank Weitenbmp( de'
que podem "elucidar", "adornar", tàzer "ambas AS coisas" ou "nenhuma delas" (WEITENKAMPF
1919 apud HARTHAN, 1981, p. 8).
Essas atribuições estão entrelaçadas: quando MilIer (1 ()tJ2, p. () 1) afirme) que ilustrar é "trazer à
luz" é o mesmo que dizer que a função da ilustração é "cIantlcar"; e se Behrendt (1997) confere papéis
diferentes dos que são geralmente creditados à ilustração é porque, para ele, ilustrar compreende
outras formas de se evocar o texto. Se, por 11m lado. isso Il~O acarretJ maiores problemas, por outro.
pode levar ao pensamento de que, em todos os casos, as ilustrações devem "esclarecer" o texto, ou de
que ilustrar é sempre "acrescentar", ideias que não poderiam ser generalizadas. Uma razão para tanto é
o fato de que ilustrar adquiriu significações diferentes ao longo do dcsenvoh-imento da arte illlStrativ:),
à medida que a função dos desenhos na obra também se diversificou. Se ilustrar era embelezar o
manuscrito, no período das iluminuras (BLAND 1958), nessa mesma época, a funç20 da ilustração
era essencialmente utilitária, servindo como único meio de acesso do texto aos que não possuíam
instrução (BLAND 1958). Se, diferentemente, as ilustrações nos livros xilográficos visavam promover
a popularização do conhecimento (DRIVER, 2004, p. 3), tornando-se uma "ferramenta intelectual"
no acesso das significações textuais, essas dimensões deixam de existir, nos séculos XX e XXI, para dar
lugar a questões como a política, a ética e a ideologia implicadas no conceito e função de ilustrar.
Esses exemplos identificam diferentes funções para a ilustração, que, por sua \'ez, a distinguem
enquanto forma de arte e como manifestação peculiar a um período ou gênero literário. Considerada
como arte, quer tenha sido utilizada para servir de auxílio aos iletrados, como no caso das miniaturas
nos manuscritos iluminados, ou para figurar cada número das obras de Dickens, quando de sua
publicação inicial em fascículos, a função da ilustração é a mesma: reproduzir o conteúdo verbal a que
está atrelada na forma de imagens. Vista na especificidade desses exemplos, entretanto, a(s) função(ões)
que as figuras podem desempenhar não somente está(ão) condicionada(s) a fatores como a época em
que são produzidas e as características de sua realização, como não podem ser generalizadas. Assim, é
coerente pensar que as ilustrações desempenham a função primordial de narrar o texto visualmente
mas, cuja(s) função(ões) adicional(is) somente pode(m) ser identificada(s) a partir da consideração
específica de sua relação com ele, no sentido de como as informações textuais (enquanto função do
processo ilustrativo) são representadas no meio imagético. Ou seja, a função primária das ilustrações é
a de representar o texto, mas, as funções secundárias são dependentes da maneira como o fazem -de
modo a esclarecê-lo, de modo que outras informações lhe sejam acrescentadas, ou de qualquer outro
modo aceito como forma viável de descrição pictórica de um determinado texto, como expresso nas
definições que abrem este item,

A INFLUÊNCIA DAS ILUSTRAÇÓES NA RECEPÇÃO DA OBRA

A maneira como a informação textual é vertida para o meio visual é fundamental no processo de
construção significativa da obra. De fato, quaisquer recursos empregados na elaboração imagética e
que confiram características peculiares ao desenho podem ocasionar mudanças conotativas no texto e
na própria imagem: o uso das cores, a espessura do traço, os contrastes entre claro e escuro, ademais de
constituírem elementos da narrativa visual, como se viu, são peças chaves das significações. A qualidade
interpretativa da criação pictórica - e que tàz com que o ilustrador priorize determinadas passagens
.rltl,{ 2'~ I I I F P -\ I I H -\. I I ti '\ T H :\ ,,: -\ \) l () I I \" !z \) I L \ " I ;{ .-\ I) ()
d

em detrimento de outras. que acrescente ou omita informações textuais etc. - é. no entanto. um


dos aspectos mais notáveis da intluência das ilustrações na recepção da ohra no universo em que está
illSerida. Behrendt (1997, p. 24) afirmJ que.

ao lIleslIlo tempo que o ilustrador necessari.\lllt'IJtt" JJ1terprct:l :1 obra IJterána. transnlltmdo


sua, lI11preSSóes du .!SSUllto ou "conteúdo" do te'(to de t(lrI!l:! \·Isual. frequentcmente /1II1',i,
a Sll,! 1Ilterpreta\:~o :\ uma ncgoclação intelcctu.ll c estétICo! que, em outras nrcunsLilku,.
ell\'okcru :\PCIUS () autor c o leitor (l1l111ha tndução).

Para evidenciar esse fato basta observar qualquer obra ilustrada por mais de um artista, assim
como o fez David Blewett (1995), em seu estudo das ilustrações para Allenturas dc Robi/lsoll Cmsoé,
durante duzentos anos de publicação da obra (1719-1920) na Inglaterra e na França. Questões como a
retratação do personagem de frente ou de costas para o navio. após o naufrágio, quando de sua chegada
na ilha, a descriçdo de seu cotidiano, de sua relação, especialmente com Sexta-Feira, e a priorização
de cenas em que está sozinho ou acompanhado são suficientes para suscitar não apenas diferentes
imagens de Crusoé, mas mensagens distintas para o texto de Defoe, ainda que as palavras permaneçam
as Illesmas.
o poder da ilustração em influenciar de maneira tão decisiva o modo como a audiênci.a entra em
contato com a obra talvez seja o motivo por que alguns autores demonstram-se sisudos em relaçdo
a sua utilização no acompanhamento do texto. Sabe-se, por exemplo, que Jane Austin e as irm:ls
Charlotte e Emily Bronteeram contrárias a que seus livros fossem ilustrados (LEAVIS, 1994). Ainda no
final do século XVIII, por ocasido do lançamento da exposição "Shakespeare Gallery", com produção
subsequente de reproduções para comercialização. Charles Lamb exclama, furioso, diante das gravuras:
"Ficar preso a um rosto exato de Julieta! Ver o retrato de lmogene! Confinar o ilimitáveJl" (LUCAS,
1935, p. 394 apud BEHRENDT, 1997, p. 30). Outrossim, Q. D. Leavis (1994, p. 429), recorrendo
aos comentários de Lynton Lamb, de que nenhuma obra de ficção deveria precisar de ilustrações e de
que alguns romances parecem estar fechados a qualquer tipo de ilustração (LAMB, 1962, p. 35 apud
LEAVIS, 1994, p. 429), alega que "todo leitor sensível" deveria ser partidário do mesmo pensamento.
Como lembrado por Behrendt (1997, p. 30), a propósito dos comeIltários de Charles Lamb, "nem
todos os leitores aceitam de bom grado que se façam escolhas imaginativas em seu lugar" (mlllha
tradução).
Esses tipos de pronunciamento "purIsta", como Harthan (1981) os classificaria, no entanto,
ademais de pertencerem à esfera pessoal - e, nesse sentido, pode-se mencionar também a opinião
contrária (ou seja, favorável à ilustração) de Leonardo da Vinci, para quem era necessário "desenhar
e descrever" (itálicos do autor, citado em BLAND, 1958, p. 15) - , não afetam as estreitas ligações
que a literatura estabelece com a imagem na obra literária e sua recorrência à representação visual
em diferentes gêneros. A trajetória da ilustração em conjunto com a literatura é a evidência mais
concret;;J.da necessidade do diálogo entre ambas as artes. E comentários como os descritos acima, a
demonstração do interesse da crítica contemporânea pelas relações entre a palavra e a imagem.

A IL~STRAÇÃO LITERÁRIA NO CONTEXTO ATUAL

A ilustração encontra-se em destaque no contexto atual dos estudos literários, não apenas no que
diz respeito às abordagens dedicadas ao relacionamento da imagem e do texto em obras ilustradas
em geral, que incluem as adaptações cinematográficas de obras literárias, como na atenção que lhe
vem sendo dispensada em reuniões científicas e recentes criações de associações dedicadas ao seu
estudo. O periódico Word and Imac!?c, publicado pelo Grupo Taylor and Francis (Filadélfia, EUA) e a
revista eletrônica, Image & NarralÍlle, do Departamento de Artes da Katholiek Universiteit de Leuven,
na Bélgica, são significativos da preocupação com o estudo em conjunto de ambos os meios; assim
como é representativa a atuação da International Association ofWord and Image StudiesíAssociation
Internationale pour I'Etude des Rapports entre Texte et Image, que realizou a sua oitava conterência em

2008. E. conta-se. ainda, o recém-criado periódico elctrônicojollmall?{Illllstratioll Stlldies, Cl~o primeiro


número foi lançado no final de 2007. que tem como alvo o estudo sistemático da ilustração. enquanto I
disciplina possuidora de seu próprio substrato investigativo e seus próprios métodos críticos.
Um interesse crescente pela ilustração é percebido também nas discussões sohre essa arte elll
outras áreas que não os Estudos Visuais. Em 1993, o estudo pioneiro de Riitta Oittinen, 1.-11/1 Me - I
.11/1 Other (transformado em TrallSlatillgj(Jr ChildrclI. em 2000), que incluía a análise de ilustrações em
traduções finlandesas de clássicos intàntis. abriu caminho para trabalhos como os de Cay Dollerup.
Tales and Translatioll (1999), sobre as ilustrações nas traduções dinamarquesas de contos de flda, de
Isabel Hofmeyer, The Portable Bll/1yall (2004), no qual são analisadas as ilustrações nas traduções sul­
africanas de O Peregrino, entre outros, que, além da consideração do tex1:o traduzido, levam em conta
a sua relação com as imagens. A atenção dos Estudos da Tradução aos elementos visuais durante o
processo tradutório é demonstrada, em particular, nos encontros da disciplina. O primeiro congresso
da Associação Internacional de Estudos Tradutológicos e Interculturais (IATIS), em 2004, apresentou
como um dos temas, a relação do tradutor com o verbal e o visual na tradução literária, que resultou na
publicação de Across Boundaries: Translatio/l frOIn ali IlItermltural Perspccti/J{' (2007), com vários trabalhos
sobre a tradução e o meio imagético, e fomentou o número especial da revista canadense, META, CtIjo
volume 53 "Le Verbal, le Visuel, le Traducteur"/"The Verbal, the Visual, the Translator" (março/2008)
é dedicado inteiramente à relação de ambos os meios nos estudos tradutológicos.
O Brasil está inserido nessa tendência: não obstante a carência de estudos que relacionem
especificamente a ilustração com a literatura (além daqueles que consideram as obras de artistas em
particular), algumas publicações periódicas demonstram interesse pelo tema. A revista Itillerários,
publicada pelo Departamento de Letras da UNESp, em Araraquara, dedica várias páginas a artigos
sobre o inter-relacionamento da imagem com o texto, em obras ilustradas. E presencia-se no Brasil
uma abertura semelhante para a ilustração, como descrito a respeito das associações estrangeiras e
os estudos de caso sobre essa arte pela perspectiva de outras disciplinas. A Associação Brasileira de
Literatura Comparada (ABRALIC) cada vez mais abre espaço para a discussão de diferentes artes em
associação com a literatura. Na conferência de 2008, diversos simpósios foram devotados a essas áreas
(tais como "Do Ícone ao Texto", "Interdiscursividade: Literatura e Outras Linguagens", "Literatura e
Outras Artes", "Literatura e Outras Artes na Pós-Modernidade", "Literatura e Outras Manifestações
Artísticas"), além de um simpósio, "Literatura e Artes Visuais: Processos Tradutórios", que propõe a
observação de suas relações pela perspectiva dos estudos tradutológicos.
Entre as abordagens mais comuns, encontradas em fontes como as mencionadas, está a ilustração
investigada como forma de interpretação. Por esse prisma, as ilustrações são vistas como podendo
ser adaptadas a poéticas, correntes estéticas e ideologias distintas (de acordo com os próprios valores
do artista); e que, não apenas concorrerão para transmitir as características do texto no meio visual,
mas tornar-se-ão "visíveis" como peculiares ao seu trabalho. Entre os estudiosos que se concentram
nesse tipo de análise estão Craig Kallendorf (2001) e Stephen C. Behrendt (1997), cujos trabalhos
foram citados, juntamente com Eleanor Winsor Leach (1982), Eric T. Haskell (1987), Jill P. May
(1985) e Susan R. Gannon (1991). Leach, por exemplo, analisa as ilustrações nas edições da Eneida
de Sebastian-'Brant (1502) e Jacob Tonson (1697), com tradução de John Dryden e gravuras de Franz
eleyn, demonstrando que os esforços para a recriação do passado nas ilustrações dessas obras dão-se
por meio da fidelidade ao texto, combinada com a interpretação de acordo com a ótica contemporânea
de cada artista. Haskell comprova que, nas ilustrações para Aurélia, de Gérard de Nerval, nas versões
que analisou, o leitor visualiza a obra a partir do ponto de vista de cada artista. May descreve como
elementos autobiográficos estão presentes nas ilustrações de Trina Hyman para três contos muito
conhecidos dos irmãos Grimm, Clwpeuzinho J,frmelho, Branca de Neve e Rapunzel, seus objetos de
estudo. Ademais, Gannon demonstra como as escolhas do ilustrador N. C. "Wyeth foram significativas
para transmitir de maneira peculiar os elementos da narrativa nos romances de aventura de Robert
Louis Stevenson.
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''!~ L1TFP.\rlIH-\, !l( "1R.:\í.:-\\J I (l i )~ \) I 1 l' " I P :\ I) \)

Um outro tipo de abordagem é vista nos estudos de Urpo Kovala (1996) e Selllla! Tahir-C;ürçagLn
(2002), que utilizam a teOrIa de Gérard Genette (1997) sobre os paratextos c anahsam as ilustraçi)cs
como ocorrências paratextuais em obras traduzidas. Os paratextos SJO dctlllldos por Genette como
elementos e convenções pertellcentes ao livro, ou que lhe fnem ref('n~I1cia. e que constit\1cm
mediadores entre ele, o autor, o editor e o leitor. Assim, são conSIderados paratcxtos (com subdi\'isóes
cntre peritexto e epitexto), os componentes do volume, como títulos. nomes de autores, epígrafes.
prefácios etc.; a crítica da obra. expressa em resenhas. comentários na capa e contracapa etc.: c as
ilustraçóes. No estudo de K(wab (1996). os desenhos da capa são descritos juntamente com os dellLli,
elementos como convergentes para a ênfase específica em determinados aspectos (como o conteúdo.
o contexto social, entre outros) das traduções de romances clássicos na Finlândia. entre 1890 e 1839.
E no estudo de Tahir-Gürçaglar (2002), em que são analisadas as ilustrações (internas) propriamente
ditas, nos mesmos tipos de obras clássicas, traduzidas na Turquia na primeira metade do século XX.
os desenhos são considerados reveladores de fenômenos trad utórios presentes de f()[m:i concreta ou
explícita nas traduções.
Finalmente, uma vertente recente de análise da ilustração, que se demonstra Já na consideração
dos temas em reuniões científicas. como mencionado a respeito do simpósio da ABRALlC, referido
acima, é o exame da imagem como um tipo de tradução do texto. Esse tipo de abordagem propóe ,I
análise da imagem pela perspectiva dos Estudos da Tradução, em mais uma il1lciativa de dialogo entre
essa disciplina e os Estudos Visuais. Seu prillcipal fundamento é a qualidade interpretativa da imagem,
que dá margem à observação cios tipos cle relação que o texto pode dese[]volver com os desenhos. à
discussão de questões como a tradução literal ou a adaptação da imagem às necessidades da publicação
(que pode ocorrer tanto nos desenhos confeccionados para obras originais como nos compostos para
as traduções dessas obras), e ao estudo da função dos desenhos na obra ilustrada. Essas diferentes
abordagens demonstram que, no mundo multi-imagético atual, em que especialmente a imagem
digital torna-se cada vez mais atuante na construção da identidade cultural da sociedade globalizada, a
ilustração literária não apenas mantém o seu espaço, como o ocupa com distinção e propriedade.

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.'
(!JNDICE REMISSIVO

arquivo 258, 270

A arte de agregação 186

arte de segregação 186, 187

artlculação 24,119,127,129,179,245,253,343,348,374

Abreu. CF 350

assimilação 277.279,282,283

Abreu, M. 1(,(). 164, 169, 171-173, 175,350

academia 2(,·28,269.271,274, 3S]


assinatura 207

ação 37.43.4(,.57,60,9.1,94,%-108,110,111,116,13(,.
Assis,JM. 19,58, 142, 156,227.268,344

asson~ncia 60, 63, 73, 80

138-140, 166. 174. 182. 186, 195.213,224,263,

266,274,281, 303-304, 306, 313, 333, 339, 372­ A tempestade 156,270,271

377,382-383
atenção flutuante 244

Achebe,C 261,268,270,272
atos falhos 244, 295

acontecimento literário 195


Audiat, P 290

actantes I,)'J
Austin, P 125, 206, 207

adaptação 13".253,369-373,376-'78
auto 62-63. 109. 203,209,214. 224, 244,265,272-277,

Adkr, A. 246
301,339,342

Adorno, C. 246
autor 20,22-25, 120-122, 124, 128, 131, 145, 147-148,

A Época da I/loci'llría 370-371,375,377-378


151, 153-154, 177-178, 181-182, 186, 189-190,

agência 28.257,265,267
192, 195, 198,201,203,208-210,220,228,243,

agricultores sem terra 265


250, 253, 262, 268, 271, 287-290, 292-296, 3."8,

Aguiar e SIlva, VM. 15,20,40-41. S8, 364


340-344,348,365,373

Alencar.,l. 19,121,155-156, 18S, 226-227, 268-2(;9


autora 118,127,221-222,234-235,331-332,334

Alexandre Magno 288


Azevedo A. 231,271,288,335

Ali, M. 276, 280, 283

Ali, S. 73

aliteração 63,73,80,87,89

alta cultura 152, 155, 183

alteridade 205,207-208,219,258,327

Althusser, L 248,266
B
ambientação 45-46,51,53,57

ambiente 134,182,246,248,264,331,337,343-344

analepse 141
Bachelard, G. 247

análise descritiva 34,37, 58


Bakhtin, M. 177-178,181-185,188
análisé interpretativa 34,37,58
Barbosa. D.C. 165

análise literária 77,135,151,155,1(;6,208,287


Barroco 364-365

análise mental 48, 49


Barthes, L 38,135-136,147-149,191,251,373
anarquismo 150
Basílio da Gama,J 156,268
Anchieta,]. 70-71,270,339
Bataille, J 248

ânimo autoral 289-291


Beauvoir, S. 224-226, 330

anti-humanismo 147
Bellemin-Noel,]. 253,291,295
antítese 60,90, 152
Bettelheim, B. 187,246
Antonil, AJ 262
Bhabha, 11. 265, 273

antropofagia 265
Biasi, B-M. 292

aparte 104, 107


binarismo 134, 270, 273

Arnold, M. 30,145, i52


Bloom, H. 145,269
Blllestone, C.)71 c,,!(;nias de ,uCIl'(bck, dllpLlllll'llll' lllvallId,l' 2(,,)

SoaI. A. 271
cu!cinI:ls de SllCll',hcks Ill\,ldid:l, .2(», 272

borda 379
COIOll!L,ld(, 2h2, 2()4-2h6. 2hS-269, 2'0, 274

Bosi, A. 59, 290, _:,-~S


colonizador 155,258.262-26(,. 2!J>-:. 270. 27.0" .\39 . .)4h

Botticelli, S..)5::>. 357-3.~S


cOllll;c!Ja 97, 103, 104, 106- \08. I 11. 1'i4, 184

Brandão, LI. 292


('ommcdld de II' ark 103. 1{)(J. 109

branqueamento 313
COlllll/01I11'Cedlh Lilt'/'elll1rC 261

bnsilidade 2(,S

comprador 27'2

breviários 380

comUlllcl\''\O 2:=i. nil, 1-"). 1~ I, l,)h, 224. 244.3Y). 340.

Bronte. C 221. 271.O,29-.lO,O.l\('

342,j:ú .\:=i7,''i r)

Bueno, FS. 161-162,165, 167-1(,S

Ctllldcnsaç:lo 245,24>-:

Burgoyne, R. 373

condil;,]o [l'minin;l .tt3

buril 380

confessionalisll1o 82

contlito dramítlco T)-,)~, 37-40, 42-4(), 49-::> 1. 53-57, 'n,

101

conhCCllll,lltO 20.2)-28,120-1'21. lTí. 128-12'). 14(,-147.

c 149-150, 181. 183, 189-100, 195, 197-198, 20.'\.

20(" 209-210, 217, 210-220, 229, '24.'\. 24(" 248.

2=;7 -259. 2(L~, 29(),WJ .'\40, .'\42

CalIbã 156,259,270 COllr::Jd,] 272, 369, 371

Caldas B:lrbosa, D ..")44 cOl1SciC'nti7a<,.lo 267-268,271. 274, 332

Câmara JL, J.M. 1(,2-164, 166-169


consistênCIas 289-2ql)
Camôes, L 19,358,361-363 consolidação 116,152. 1=;3, 155, 2Y), 267,373
Candldo, A. 24-25, 177 -17í~, 185-1 S8
((lIlSlíllllio tCXIII" 288

canibalIsmo 264
construto 145, 147,259
cânone 152, 192, 1')7,230,236,240,266-267,26'),271­ consumidor 148, 341

272,284,327-329,336,345.357
contenção 155

capa referencial 387


conteúdu manifesto 245

capitalismo 179,262,272,274

conto,:to sócio-llIStónco 181

capitalismo tardio 302. 306, 313

contradiscurso 236, 271

c'lpitonê 214,215

"convivlahdade" 2í\2
capitular 379

criação artísUCl 20, 180,244, .'\55


Cardirn, F 268, 338

crítICa cultural 321-322

Caribc 261,263,340

crítica fcmil1lsta 14(). 217-218, 221-222, 226-232, 234­


Carlota jaaqui/la 372

carnavalização 181, 183, 346


240,242..')27, 329

catam.' 62,63,106, 109,203,209.214.224.244.265,272,


crítica humal1Ista 145-146

277, 301, 339, .)42


crítica Iitn:íria 26, 123-126, 132, 135, 145, 152. 155, 178.

Caughie, J. 369,378
181, 185. 201, 208, 217-219, 224, 229-2,0. 232,

Celltre Natiollal dr Rccherches Sriemifiqllrs 291


235. 237-238. 240. 243-244, 247-248. 254. 269,

centro 142, 151, 190,201,254,259.261-262,264.267­ 274,289,297,328,338,345

268.270-271. 273
crítica pós-coloma! 237,267

Césaire, A. 271
crítica SOCIológica 177-178, 185-188

Chartier, R 23.191 crítica textual 288-290, 294

Chatman, S 38,372-.,74 Croce, B. 145,290

cmema 29,217,369-378 cronótopo 181, 184-185

civilização europeia 259, 263, 270


Cruz e Souza, J. 344

Cixous, H. 231-234,236-237.241 Cubismo 367

classe 21. 25-26, 152-156, 182, 184, 204, 225, 22S-230,

CuIler,] 27,29,152,154,156,210

236-238,240,260,265-268,273,327-328,342

culpa 102,152,213,215,276-277,377

Clalldel, P 248

cultura 21,25,131-135,148,152,154-155,177,179,181­
clímax 44-45,51, ::>3, 56, 106

183. 186, 202-203, 206. 218, 227-233, 235, 241,

códice 379

254, 258-260, 262-265, 267-270, 272-274, 288,

codicologia 291,294

código cultural 149


291, 294-296, 327-328, 333, 338-344, 346, 348,

código hennenêutico 149


351,357,361-362,369

código proairético 149


cultura africana 272

código simbólico 149


cultura de massa 152,310. 315

Cohen, H. 125,371
cultura dominante 340

colonialismo 144, 238, 257, 259-262. 264, 266-267, 270­ culturas híbridas 278

271,274,284
cursiva 379

colônias de colonizadores 26.~. 273


(yberpu/lk 311

1Qfi - T F n R I A LITEHÁHI/\
Duras, M. 248

D
Durry, M-I I. 290

Damata, G. 349

decoração 381

deferimento 148

Defoe, D. 271

Deleuze, G. 147

De Man, P. 205, 209

Eagleton, TIS, 25, 26, 29, 190

dependência 220,222,260,270,329,369
ecdótica 288

Derrida,J. 146-148,152,201-208,210,218-219,225,232,
Eco, U 191,287
234,248
efeito estético 191, 199

desautomatização 23,117-118
Eisenstein, S. 371, 372,376
descodificação 88

elaboração secundária 245

descolonização 261, 265, 267,272-274

elimillalÍo codimm descriptomlll 288

descolonização da mcnte 272

Eliot, TS. 125-126,130-131,152,221,223,330

desconstrução 146, 148,201-203,207-210,218,225,234,


emancipação 333, 345

236,259,270,297,334,345 elllflu!atio 288

descrição 19-20, 118-119, 127, 154, 179, 186,246,260,


enigma 138, 245, 249

265,376,378
cnredo 37,38,39,89-91,119,122,295,373,376

desejo 27,45,48,51-52,55-56,60,82,90-91, 101, 103,


Era Clássica 355

107, 110-111, 139, 150, 208-209, 213, 231-235,


Escarpit, R. 21,23,191

245-246, 248, 250-252, 257, 276, 295-296, 319,


escola bilíngue 339

323,331,350,366,376-377
Escola de Praga 131

desenlace 96-97, 103, 105, 107


escravidão 25,263,266,270,274,342-344,372

desenvolvimento 20-21,116, 126, 129, 133, 136, 145, 147,


escravos 221,260,265,269,274,343-344,346

153, 179, 190, 192,217,228,248,250,263,267­ esferas de ação 139

268,330,340-341,360,376
espaço 23,25,29,121,150,153,155,182,184-185,198,

desfecho 34, 44-45,47, 51, 53, 56, 62, 138, 331, 334
204, 218, 233, 237, 239, 244, 262-263, 265, 271,

deslocamento 205,239,245,248,263,272 274, 293, 327, 330-333, 337, 339, 342-343, 349,

destino de mulher 224, 332-333


355,367,370,373-374,377-378

desvantagem racializada 276


espaço diegético 105

detecção 245, 294


espaço mimético 105

dialogismo 181, 183


essência 22,26-27, 123, 179, 190,202,204,219,223-224,

diálogo 13,26,42,48,63,82,96-101, 103-105, 108, 110­ 235-237,243,287

111, 123, 154, 161-162, 170-171, 181-182, 185,


essencialismo 146-147,228,261,327

208,333,389,391
estereótipo 217,222,231,342,346

Dias, G.A. 344


estética da recepção 189-190, 198

diáspora 275, 277- 281


estética do inconcluso 287

diáspora pré-transnacional 278


estética realista 151

diáspora transnacional 278


estilística 61,81,159,161-171,173,175-176

diegese 142,374 estilo 84, 89, 128, 135, 159, 161, 162, 163, 164, 165, 166,

diferenças racializadas 281-282


167,169, 171, 172, 173, 175, 176, 195,207,208,

diferenciação 133,179,268 223, 230, 232, 267, 268, 271, 331, 355, 364, 373,

différance 1,48, 151,202,232,236,248 374

discriminação 231,333,342-343,345,346 estória 341

discurso 26-27, 118-119, 122-124, 132, 141, 146-149,


estratégias 144,146-147,190,241,265,270,284,327,339,

1527 155, 181, 189, 202-205, 207-210, 218-219,


367

228-229, 232-233, 235-237, 244-245, 253, 257­ estruturalismo 133-134,145-147,151, 153,202,208,218

260, 263-266, 268, 270-272, 274, 294, 327-328,


estruturalismo antropológico 133-134

332-333,339,346,362,366,372,375,377
estruturalismo literário 133, 136

discurso feminista 266


Estudos Culturais 16,28, 152, 156,321,324

dissidência 153, 155


estudos literários 22,26,29, 116, 120, 124, 133, 135, 146,

distância estética 195, 196, 197


152,189-192,194,196,198,230,239

doúe stil nuovo 84


etnia 260, 341

Dostoievsky, F. 181
etnicidade 260, 342

drama 85,93-94,97-105,108,111-112,172,204,208,270,
etnografia 265, 272

372,382
evangeliários 379

dramaturgia didático-catequética 339


evocação 87, 344

duração 22,117,118,141,370
exclusão 148, 155,202,220,238,240,260,269,272,277,
Durães, G. 271
321,327-328,337,341,348
Durand, G. 247
ex-colônias britânicas 261,268

THOMA~ Rfl1'l.1~." ..•• I T ,'. __ 'H'\"7


~
'(

I exposição -E 61. 73. 77-78. ()9. 102-106. 159. I(,·t 1(,'). ~54. 542. 34~372.374-375.377
172.253 . .lH9 C;CI1('(tc. C. ):--i. 41-42. 4('.141- \44.14(, . .1'72-3,.1. ,-::;
~C'I1()- tTxt() ~~_~

(;Idc, A. 248

CIlrm, P 277-278.202
gillucrítlCl 229-230

F glob;]l!l;l~'lo 2.17.272-27.0,
goi\';]s .,80
GoldllLlllIl, L 17')-180
fíhula 36-3H. 4(J. 49.5.'-54. 102. 10(,. lU()- \ lO. 119-120. (;nl1~aln's DIaS, A. .,44
139-142, 1~4. 149.179 ,,-osto 20-22, 2(" 2')(). ,50. ,(,5
falha tectônica 155
Cothot-Mnsch. C. 2')()
falocentrisl11o 232, 234. 327
gLll1l,ítio 20. 64--()8. 7U, ')2, \)6- U7. 1.1'). 145. 1')9-1(,2.

falogocentnsI1lo 150
1(,8. 17(,. 209, 21H

Fanon, F 2(,0,265,273-274 Cr:n1lSci, A. 259. 2(,5-261J

farsa 108
gravaç:ío em meul .lHO

femea 232,330-331. ."'134 2,r.l\ador 3H I

feminma 28, ISO, 219. 22 L 223-22(,. 22H-2)(), 2.)8-239. gLl\'llLl 364.379-0,81 •

241,252-254,260,267,271, 327-336..)57 gLl\'llLl a fio .)80

feminino ISO, 195,217-220,226-228,230-233,2.)5-2.)7. !'.Ll\·ura de' topo ."HO

239,241,247,254,271,330,333,336,349,357 Greenblatt, S 1')3, 157

femulISmo 150,217-222,224-227,232,234,236-2.)9.241. Greimas, A. 40,137,139-140

266-267,269,327-329,332,336 Grésilloll. A. 292

fenomenologia 190, 201. 247


Gll'lttari. F. 147

feno-texto 253
Gul'Clcs, F. 344

ficção 27, 144, 182, 184,222-223,22(,,241,249-250,267,


glllldas 3R 1

269,271,329,333,340,370

figurahilidade 245

figurativa 209,359-360,368,370,386

filologia 288

finahsmo 290, 296


H
Fish, S. 28, 191

'c,
Flaubert, G. 222-227,247,290-292, 295

Florença 356
I lall. S. .1 22,325 'I."
.,i;:,

fltLXO de consciência 371


harmoIlIJ SI. 80. 125, 235, 250. 34.0-344, 346

focalização 142-143,202,2(,7,375,377-378
Hay, L 291

focalizador 142-143,373,375,377-378
hegenlOllla 26, 153, 155,259. 2ilO, 2(,2. 265. 266, 271

foco narrativo 141-142, 182


lieidcgger, M. 14(J.201
Fac 265,271,274 hermenêutica .)5')
fOllocentrismo 202
herói problemátICO 17()-180
formalismo russo 22, 116
hctcrogeneidJde 119, 150,235.237
Formalistas russos 129-131
hibridismo 264,272,275,279.282-283,312-314
Foucault, M. 26,27,28,146,147, 152, 153, 154,202,228,
hierarquia 225,235,265,268,271,369
257,258,259,266,295,348
hierarqUização 271,372
frequência 124, 141, 359, 364
hipóstases 291

Freud, S. 228,244-249, 251, 255, 296


hlstóna 20-21,23,25-27,29,116,118-120,123-124,132,

frontispício 387
145, 147, 151-155, 177, 179-180, 182-183, 185­
fruição 60-91,129,148-149
186, 190-194, 196-199, 203-296, 209, 219, 225,

Frye, N. 15,247
229-231, 234-236, 245-246, 250, 253, 258-259,

funções 118, 123, 132-133, 138-139, 144-145,206,345­ 262, 265-266, 269-270, 272, 274, 287-289, 292­
346,366,369,374-375
293, 295, 327-329, 331, 333, 338,340-342, 345­
Futurismo 116\ 367
346,348-351,367,370-377

história do efeito 196

histónas da literatura 21, 192

histórias em quadnnhos 311,382


histórias fantásticas 383

G historiografia literária 192,199,327,328


Hoggart, R 152

homem de letras 25-26

Cal/eria degli Uffizi 356


homotextualidade 348-349

gênero 119, 124, 139, 150, 153, 179-180, 183, 185-186,


horizonte de expectativa 195-198

192, 197, 204, 208, 217-218, 221, 224, 227-230,


Hugo, V 183,248
235-241, 248, 266-267, 272, 291, 330-331, 333­ Husserl, E. 190,201

398 - T E O R I A LITERÁRIA
..~
~N I' I ( I P I \\ I " : ! "

I K

Idade Média 186-187,258, )':'5, 359,,61, 368


Kaki WCLíjnupl' .\40
Idealismo 155
Knstc\'a,J 144,150,231-2.14,2.,7,241,248,251,253-254,
identidade 13,57,75,78,99,142. 150, 153-1::;·4, ISO, 192,
"\57-358
202,204,208,210,214,219,228,230-231, 233,

235-236, 23S, 240-241, 24S, 251, 252, 260, 264,

266-267,273-283,301, 311-314, 328, 3"\(), ,'4

338,342,344-346, 34í-k\49, )')1


Identidades 153, 23 1,240,278, 280,) 11-314

identIdades hifenizadas 27S


Ideologia 146, 14S, 153-155, 182, 186, 193, 22L 227-228,
Laun,J 147,211-21-1, 216, 228-229, 232-2,H 246, 248­
230-231,235-236,259-260,262-266,269-272,294,
252,254,257,264,266,296

327-32~ 331-334,339. 342-343,369, 373


bchlllanll, K. 288

ideologJa dommdnte 154


Lammmg, (; 271

ilumin\lLl 355
1<111,1;1/(' 132,135,161-164

iluminuras 355,359,379-381, 388


Lanson, (;. 289

ilustrador 380-381,384-386,388-390 Lapa, M.R 161, 162, 167, 168

illlagem 29, 127, 129, 147, 151, 231, 233-234, 245, 247­ l:íplS litográfico 380

248, 253, 259-260, 265, 292- 294, .'132, 343, 346,


lar 106,220,222,265,278-279,331,333

Leavls, FR 14S-146,152

348-349,355,359-360,364-365,371,373-374

Lebrave,J-l 2'12

imagéticu 81

Ledent, B. 277

imagJn;íno 150, 186-187, 230, 232, 234, 247, 2i).=', 339,

legibilidade 149,360,365
361,366,377
leItor 21, 23,25-2(,,28-29, 118, 120-122, 12(" 129, 131,

imanência 219,224
139, 145, 147-149, 151, 178-183, 18(" 189-191,

imigrantes ilegais 278,312


193-196, 198, 208, 226, 230, 250, 253, 287, 296,

imperialismo britânico 269


333, 339, 341, 343, 358-359, 3f, 1, 362, 366-]67,

império 156, 258, 262, 264, 270, 271


37.l-374

imperil//I1 262
leitora 217, 22(;, no
inclusão 237,240,276-277, 28L 3j(), 320-321, 341,,71,
leitores burgueses 26

374
leItura pós-colonial 270

inconsciente 232-233, 235, 240, 244-251, 253, 258-259,


Léry,J. 268

294-296, 328
Leu\Vcll, L 290

Lévi-Strauss, C 133-136,202,372-37]

incontrohbilichde do sentido 151

Levy, A 276,279-280,283

incun~íbl1los\80
léxico 17'5, 2')(j

indústria cultural 310,313,377

Lima Barreto, Ar 344

intencionalidade 203, 206, 208


linguagem 13,15-16,22-24,28-29,62,64,86-87,89,117­
interdisciplinariedade 152
119, 121, 126, 128-129, 132-133, 135, 138, 140,

intertextualidade 144,303,356,371-372,377
145-146, 148, 150-151, 159-160, 162-166, 169,

intervenção 245,319-320,324
171, 175, 177, 181, 185-187, 189, 193, 196, 198,

intriga 33,37,50,53,55,96,98, 100, 102, 104, 106, 108,


202, 205-207, 225, 228-234, 236-237, 244, 248­
110, 165
254, 258, 266-268, 294-295, 320, 333, 338, 357­
introdução 29-30, 120-121, 125, 156, 199,210,248,294,
358,3(,1-362,369-370,372-373,377-378

373,376
linguagem comum 22

Iser, W 191
linguagem literária 22, 206

línguas nativas 263,273


lmguística 122,127-128,132,151,160-163,166,176,189,

208, 228, 247-248, 250, 267, 272, 289, 291, 340,

370

lirismo 61,80-81,83,363
J líterariedade 22-24,28,117-118,124,243
literatura 19-30, 115-119, 121, 123-124, 127, 129-131,

133, 135, 137, 140, 145, 147-148, 150-156, 177­


Jakobson,R, 117,133,134,206

180, 183-184, 187, 189-194, 196-199, 201, 204­


Jauss, H.R 191-198
210, 217-224, 226-227, 229-230, 234, 236-241,

Jensen, W 244
243-244, 248, 255, 259-263, 265-271, 273-274,

jouissall[e 148
284, 287-288, 297, 327-332, 334-346, 348-],52,

Joyce,], 131,143,148,151,234,248,291,376-377
359-362,364,366-367,371-373

Jung,C 246
literatura afro-brasileira 341-342, 345

litnatura de resistência 344,348


lllonólogu 48,4'),98,104,143,167,182,22-'
hteratura c história 321
11lOIh:'dogo IIlterior 22~
lttcrarnra indígena 338-339
MOIltCI[(),lL 15(), 161, 163-164, 166-j()(), 176

ltteratura IllfmtIl 341, 382


MO[!lct, D. 289

literatura Illglesa l'iC" 261,320,330


morte 35. 51. 56-57, 60. (,2, 7.1. 78, 81. 84,91. 132. U8,

literatura n,1(lona1 2C,1, 338


147-148, 151. 180, IS(). 22.1. 247. 251, 295-296,

lIter;ltllLl lll'gra bnt:lnica 276,282-283


331. 349, 360

lIteratura pós-colollIal 267-268. 271


motivaç:io 119-121

liwgratla 380
motIvo 119-121, 217, 249,0,4). riO..\62.364, .17(,

li\TC assocIação 244


mulher 156,185,217-23".20\').241, 250. 2(,3. 2(,5-267,

li\Tcl Ilustrado 9,382-383,385-387


271.327-335,34~367
lIvros de história 382
mulher como colônia 266

lIvros de horas 380


nmlher-obJclO 219

hvros infàntis c juvenis 382


nIllltlclllturalis1l1o 269,275-276,280-283, 3()1

lIvros xilográficos 379, 388


mundo às avessas 183

logocentrismo 151, 202, 232, 234, 236, 327


mundo degradado 180

lúdico 68
Munduruku, D..)..1.0

Lukács, G, 177-180,186
mÚSICa 20,29. ])2, 152, ISS, 182,264,371

Lyotard,J-F 147
mUSIcalIdade H4,254

M N

mancha 387
Nachl, O 290

maniqueísmo 270
Narcmorc, J. 369,378
manuscrito 288-291,294-296,297
narrador 121, 141-144, 181-182,209,295-296, .171, 373­
manuscrito iluminado 379-380
378

manuscrito medieval 379


narrador pós-moderno 303-304

rnargen1261,264,288,336,376
narrat:íno 141

marginalidade 224,228, 233, 272


narratIva 26,119-121,134,136-145,149,156-157.182,

marginalização 148,270,337-339,344,350
185, 235, 245, 250, 271, 274, 292. 294-295, 297,

margl11alizado 154,260,345,35]
129,331-334, .141, 349-350, ),,5-.157, 370-377

marxismo 179, ]92, 224


narrativa clássica hol1ywoodl:md .)7.1

materialismo 155
narrarologia 141, 188,296,372-.)73
Materialismo Cultural 153, 155-156
nascimento do leitor 151

Materialismo L:Jcll1lano 21 ]-212,215-216


nativo 182,263,265,270-271.274,3)')
Mauron, c:. 253
negro 175,213,260,264-265.2(,7,270,272,274,276-277.

Me Donaldização 306
337,342-347, 349-)') 1, 362

melodia 57, 80, 85


neoco\onialismo 272-273

melodrama 108
Neli' Critiâsln 115, 124- 126, 128-130, 190,206, 208

memória 45,48, 106, 126, 129,212,231,270,277-278,


Neli' Lerr 321,324-325

280,295-296,323,340,346,348-351,373,379 Ngugi, T. 265,267

mercado 24-28,148,341,369,376 Nietzsche, F.W 146,201,257

metaficção historiográfica 304,306 Novo Historicismo 153, 154,269

metafísica 201-203,205
metáfora 62,63,91,118,127,183-184,209,228,248,266­
267,346,360

métrica 61,63-66,70-73,87,122-123

metrópole 261,264,266,268,270-271

mídia 28

o
Millet, K 217,226

mimesis 204-205, 207


objetificação 149,222,260,267,270-271
mímica 262, 265
objetividade 145,258-259,268,287
miniaturas 359,379-380,388
objeto 19,22-23,27, 29, 115-118, 128, 132-133, 138-140,

minorias 28, 156,240,327,330,337,344,350


143, 185, 189-190, 193-194, 204, 217,219,224,

miolo 387
233, 239, 244, 247, 252, 257-258, 265-266, 288­

I
mise-cll-scellc 370,375,377,378
289,291,331,345-346,350, 3S8, 367, 375

misoginia 227,238
objeto a 27,204,213-214,216.346
mitologia 268, 355
obra aberta 287, 290

Moliere 248
obra acabada 149

1:
400 - T E O R I A LITERÁRIA
OCidente 152,179,20-+, 25 r) puder colonial 259, 2()(,-2h7, 26ti, 272

O roniço 264
podn imperial 27-+

Olimpo 179,361 Poc, EA 78,247-2-+9,255,289

o mesmo 26, 119, 135, 139, 1,+3, 2US, 236, 2-+3, 2'iS, 2(,2­ poeSia 20, 3-+, -+9, 59-65, 68, 71. 7,), T5, 77 -1l2, 85-S'), <) 1.

263, 265,288-289,33R
92, 116-117, 122, 125-129, ISO, 185,20-+,207,210,

o outro 24,27, 118, 179,224, 236-231l, 260,26-+-265,327


222, 254, 292, 337 -3W 344, 349, 351. 358-35'),

operários urbanos 265


363-364,366-367

oposição binária 152, 225


poe,," mdígena 338-339

oratura 270,273
poeta 50, 59-60, 62, ()-+, 66, 68-71. 75-81. 83-87, ')0-9!,

OrimfalislI/o 259,285
122. 12-+-126, 128, 20-+-2ij=;, 207, 2-+7, 290-291.

Onente 25R-259,261-263
3.'2,3-+-+,'1-+6,355, ,,)51l, 3(,0, )6-+-)67

or(gil/ell/ detere 288


poética 22, 117-11K 122, 127, UO, U7, 145, 150, 20ô, 2()(),

outro 29,115,123,125-126, 129,133,141-1-+5, 141l, 153,


222, 247, 251, 253, 295, 331l, 3-+3, 3-+~ 356, 358,

179,182,185,190-191,202-204,209,219,222-224,
360, 362,364-)ô5

227, 229, 231, 235, 237, 244, 246-2-+ti, 250, 253,


polifonia 181-182

259-262, 264-266, 269, 271. 273, 2ti5, 287, 2ti9­ política 16,27,80, 11()-117, 119,150,153, 156,206,217­
290, 32S, 339-340, 34-+, 350-,51, 366, 370-.:175
218, nO-221, 226, 258, 260-261, 263, 267-2(,tl,

Outro 56, 72,78,86,95, 182-1 S-+, 21,)-215,222,22-+, 2\7,


272-274, 321,323-32-+,339,3-+~,348-3-+9

249,252,260,264,266-267,2%,311
Poliziano, A. 3~5, 356

l'ommiCf,j. 290

Pompeld, R, 270, 340

pós-colonialisl1lo 144, 266, 274

pós-modernidade 242,301,) 11,314

p pós-modernismo 9, 274, 301-30'l, ,10.,13, 315

pós-moderno 216,301,314

prática educaclOml 154

página de rosto 387


Praz, M. 247,355, 365-3ô6

panóptico 262
presença 134,136,144,151,155,181,202-203,207-209,

papéis 139,225-227,229,231,234-235,375
217,219,250,269,294,331,343, 34e, 348, 367,

paratextos 391
)73-375,378

paródi,l 144,206,262,265,268,271-272, 346


prolepse 141

parole 132,1,)5,161-164
Propp, V Ul-l3-t, 137-140, 14(,

Pascal, B, 248
prototexto 200,291,292,293, 294, 29~, 297

pastiche 144,206
Proust, M, 209,223,290-291

patriarcalismo 232,263,266,271,328,333,334
psicJIl.1lise 230,232,243-244,246-247,249-250,252-254,

Patrocínio, j. 344
289-290,295,297,338

Paulismo 89
pulsão 295-296

Peirce, CS 292

perform:lt'vo 1-+0,205-207,20')

pergaminho 379

Perrone-MOlsés, L 269

personagem 26,29,120-122,139-144,149,156,179,181,
Q
183, 187, 234, 249, 253, 265, 267, 270-271, 332,

334,370-371,373,375,377

Pessanha, C 85, 87, 91


quadro línco 82

phallus 248, 250


quarta parede 104

pharmakoll 203
quarteto 79,84, R8
Phillips, C 276-277,279-280,283-284
quatro discursos 214

Pifllln, N, 234-235,267,329,333-335

Pmto da Gama, LG, 344

pintura 20,29,132,143,152,340,358-360,362-364,366­
,'368,371

pintura a pincel 381


R
pintura em aquarela 380

plasticidade 358, 366

Platão 150,203-204,233,358,361,366
raça 153,156,178,230,236,260,262,267,270,272,275,

Plauto 248
328,337,341-342,345

pluralidade de significados 147, 149,248,369


racismo 237,254,258,262,264,275-276,281-283,313,

pluralidade textual 147


351

poder 25-28,116,126,128,135,139,144,146-147,153­ Rank, O, 246

154, 180, 183, 192-193, 205, 207-208,217,219­ rasuras 289-290, 292-294

221, 223-226, 234, 243, 250, 257-260, 262, 265­ realidade 24,27-29,121,131-132,144-148,151,154,178­
268,272-274,333,346,348-349,361,366
179, 190, 192-193, 204, 221-222, 225, 234-235,

L!()1
258.263.270. 272, .\)7, .'-"),)-11. .'-IC), Y)7-.15K 181. 1')-1.20.1-20-1.209. 2·m. 291. 2')=',)(,-1 '\(,').

36-1. 37L 375


1'7.)-.,7-1

rl'calque 2-15
Sl~')lltlClIltÇ 132-1)), 1-I7-1-IR. 150, 2-+R. 2='0, 29=;
rat'II.(Ío 288
slgnItlcante mestre 21-1-21 =,
reesenta l-l-l, 2-18, 271. 272
sIgnos 118. 12-1, 132-1.)7" n~, I =, L 2-1C" 2='3. 367. 37.)
re!Crentc 126, L)), 1-18,203-20-1,221. 257. 27-1
SImbólIco 1-19-150.178, 18C,-187 233-2:)-+.2-11. 248, 250­
regra cLls três ullJ(bdcs lO=;
2=, 1.2='3 . .1=,=" 3=;7

Rl'Ich, W (), 2-16. 3(}), 393


sIllcrollIa 1-11. 197

rCIIltcrprctaç;\() 2()')-270
slIltagma I-+U.295

Reis, M.F St), 22L 23 I. .)3 I. 335, 3-1-1


'lllLlgnl.l cOIltratu,11 1-10

rc leitura 2CJ'J-270, 272. ,0,72


slIlt.lgnLl dISjllIltI\'O l-1lJ

RenaSCImento 152-153,260-262,288,357-.)=;8,361. 363­ 'imt,l\:" (,j, 123, 129. 137, I-+='. 1='0. Ih7, 170. 17=', n-l,

364
2=;2-2='3, 29=;

rcpresCIltação 150.178-179, 185, 1')2, 2U=;, 222. 22C)-227,


sIstema CSCL1VJpsta 271

no, 237, 239,2-15, 2()-I, 269, 272. 27·+' 297. 331.


slsten],]s 1l1stórico-literános 195

33-1. 336-337. 3-\3. 3-l'!. 355, 357, 360, 362-,0,63.


Snllth, Z 276,280,283

372-37-l
Soales de Souza, C;, 338

J(eplÍblÍCtl dos SO/1hos 333-.D5 SOCIedade de COIlSumo 306

resistência 25, 28, 15-l, 15(1. 226. n-l. 259-262, 266, 270,
SOCIedade do espetáculo .0,06

,27, 3.D, 3-12-'-13. 34(), 3-18. :'>73


soC!ologÍ,l da leitura I t) 1

retóncll:i-l.179,2I)t),268
Sófocles 137, 1-+0.2-1-+

Rhys,J 2ú-l, 266, 271


So!ano Trmdade 344, 3-1()

RibCIlo. B. 82, 2-12, 27 I. 335, .,-15


'l)I]oro 60,63.70,13·7-1,127. 161-1(,,l, j(,6, 169,202

Ricatte, R. 290
SpinJ. S 288 ;1

Richard,J-1' 1=;2,1=;(,,210,2-17
Spivak. C.c. 156.237, 2(,=;, 27.3
~I

liI

Ricoem, P 23,243
Stacl Mmc, de 178

rima 60-61. 63. n-so. 88-89, 91


Stam, R 372

nql1ezas 219,271
Suh.lltnno 18-1. n5, 265-26ô, 269

ritmo 53,63-64,66.68.70-13. 78, 80, 87-91, 122-123.


subjetiVIdade 22,46,48,50,57,63,90,154-155,190,224,

130,290,361,368,370 244, 2-+9, 252, 257, 260, 266, 274, 277, 279-280, 'I

romance 25,36,46,58,101,103,119-121. 131,141, 143­ .176-377 !


145, 148, 155, 160, 165-1 (16. 178-180, 182. 184­ subversão 1-16, 148, ISO, 15.1-15(" 219, 252, 262, 268, 271,

186, 188, 195,214,216,221. 223, 231, 234, 241,


332

244, 264-265, 2ô7, 2ô9-272, 274, 280, 283, 297,


SUjClto 27,127-128,137-140,14.1,147.150-151,153-154.

303, 305-30(J, 329-331, 333-335.1-\-1, 348-'\50,


190, 202-203. 21i:\-220, 224-22=;. 232-235, 237,

'\iJ'J-'\75,382-383
247-2-+8, 250, 25'\-25-+, 2')7, 260, 2M-266, 274,

romance de :Wt'I1tULl 184, .0,83 29~327-328, 331,345-3-16, 361

ROll1ero, S. 178,328,343 ';tlJClto diaspórico 279-2S0

Roussc:lU, J-J 202, 203


sUJcito fi-agmentado 277

Rudler. C;. 289


s upcrvisão imperial 268

ruptura 11=;,12-1, 126, 150,152,193,196,202.205.207­ \ uplelllcnto 122, 202

268,327, 330-332,349,37ô-377
supressão 151, 156,339
ruptura da ilusão dramática 10-1

Rushdie, S. 273,276

T
s Tadié, l-Y. 289

Tamc,l1, 178

Said, E, 259
teatro épico 98, 105, 112

SaBes, CA 292
tecnologia 23,237,241,258,265

saltérios 379
TeL'\:eira, B. 126, 129,268,350

selectio 288
teleológica 207-208,243

semântica 60,78-79, 123, 139, 1ô2, 166, 174,253


tema 26,119-120,123,126,148,185-186,189, 222-2n,

scmiologia 253
~30-239,253,258,333,338,344,350,355,3M
semiótica 135,253-254,292,371,373 tempo 19-20,23-29,119-121, 127, 131, 133, 135, 140­
sermótico 150, 233-n4, 248, 251, 253, 370
142, 146, 150, 152, 178, 183-185, 187, 194, 196,

sensibilIdade 20-22,126,146-147,152,155,358,365.375.
198, 201, 203-209, 218, 221, 223, 228, 234-236,

377
259, 261-262, 269, 272-21''>, 284, 289, 295-2%,

seql1ênm 135,138,140,149,151,182,197, 2n, 293, 372


328-329, 338, 350, 357-358. 361, 363, 366, 370.

significado 20, n, 28, 125, 128-129, 131-135, 1-15-1=;1.


372-374,376-378

402 - T E O R I A LITERÁRIA
I' , \ l I.' j " 1 l ~ " í , \.

tcmporalidadc 373
\·l~.ó1JnCL1 -:'ú7
Tcnnyson. A. 26') \·lrtll.lIlcbdc Ui)
tensão drallljtlCl 97
\'15,10 pall,·)[](.l I')')

teoria da cultura 230


vlsibihdadc 2U.' . .1'7 -+.328

teorias da recepção 129


vocação de' ser hllllLlI1U 22-+. YH

leorias da Recepção 191


\OZ 122. 127. U-+, 1-+1. 155-15h. 181-183.202 . .1(F 21'),

teona sociológica 19.3 221. 22.1. 26:'-2(17. 2()'). 271. 27-+.,,1.1-+1. ,-+5·
Terceiro Espaço 282
346..'>62. 37()-.17(J. 3:8
tnceto 79,81. 85. 88

texto 2(k'9. 115-119, 122. 12-+. 126-129, UI-L''::. 1)<)­


141,144-149. 151-155. 177-180.182-186. 189-I(F.

201-210. 217-218. 22U. 22(,. 231-232. 23 l-nó.

239, 245-246, 2-+9-250, 252-253, 257, 260, 269­


271, 287-297. 328, 331, 338-3"9.'141-142. 346.

w
349,357-358.360,363-367,369-.375.377-378

texto de fruição 148


Walkcr. A. 372

texto de prazer 148

texto escrevÍ\T I 149


flIde Sa(~ds.,,' :\,.,1 21A.271
texto legível 149
Wdkmart. l' 2()(), 295-2')7

textos de viagem 338


WdILllllS, R 19.20,21. ,0.1'12, h.l. 157.121.12-+

Thompson, E.p. 321. 325


W()olf V 222.223. J.l(), .171

tipográfica 386
Il'orldillg 265

tipos 24,27,42,46,48,64,72,75,77-78,89,97. 101, 107,

109, 120, 140, 172-17,), 185,206,208,220. 22'),

232, 234, 240, 249, 27~. 30~), 304, 311. 34(), ):1.S.

%3, %6, 380, 383, 385-38(J, 389, .391

Todorov, T 38, 136, 140, 146

tragédia 35, 49-51, 58, 106, 112

trágico 62, 106-108, 111, 172-173,305

tragicomédia 108
xJ!o[-,'Tafia 380

trama 119,120,137,141,186.187,375.376
transcendência 26,207,219,224, -,J2, 361

transgrcssJo ISO, 153, 155, 156. 272..D6, .338, 342. J4\

tr:msnaClonaltdade 278

Trevisan, S. 348,349.350 Z
trovador 86

Tutllola, A. 261

u
uncial 379

/lt pictura pocsis 358,360, 364, 366

/li poesis pietllra 358

v
Valéry, P. 290,291
variantes 202,288-290
Vaz de Caminha, P. 262, 338

verdade 26-28,121,124,129,131-132,147-148,150,152.

178. 180-183, 190, 195. 20!, 203-205, 209-210.

217, 227-228, 232, 236, 245, 249-250, 254, 257­


258,288,294,296,328..137-339, 349, 365

Verney, C. 84

VIda social 21,122,177,237,340

T-".". " u. "-,, " , I T ,',._,. ". Ar)']


@OBRE OS AUTORES

Adalberto de Oliveira Souza é professor de Literatura Francesa na Universidade Estadual de Maringá.


Doutorado pela Unesp, campus de Assis Autor do livro Celldrars, tradutor do Brasil (Ed. Annablume) e das
coletâneas de poemas Ca/lluf7agClII, Cil/Jl!lIil I' LI/(í;lIlilS c sC/1sações.

Anelise Reich Corseuil é prott:ssora lU Ulll\C'rsidade Federal de Santa Catarina. com doutorado em LiteratuLl
de Língua Inglesa pela Wayne Statc U lllVCTSI ty c Pós-doutorado em Cmcm3 pela Universidade de 'Glasgow. f:
autora de vários capítulos de livros e organizadora de livros e periódicos, C01110 Estudos Culturais; Fíllll, Literatlllc
(lIId I !istll/y: e () E/lSil/o de I-itCr<lllllil c CII!tlllil\ dI' lJII,i(/w Inglesa 110 Brasil.

Arnaldo Franco Junior fez doutorado pela Universidade de São Paulo. Lecionou na Universidade Estadual
de Maringá e atua como prott:ssor na Universidade Estadual Paulista-Unesp, campus de São José do Rio Preto.
Desenvolveu pesq\lisa sobrc okitsch na literatura brasileira contemporânea estudando as obras de Clarice Lispector
e Dalton Trevisan. As áreas de seu interesse e pesquisa são literatura brasileira moderna e contemporânea,
literatura e indústria cultural, lIteratura e outras artes e teoria literária.

Célia Regina dos Santos é professora de Língua Inglesa e Literaturas de Língua Inglesa na Univerdidade
Estadual de Maringá. Doutoranda em Literatura Pós-Colonial pela Universidade Fedenl de Santa Catarina,
COIll pesquisas em literaturas de lllilluri,lS e l'scritos de VIagem.

Clarice Zamonaro Cortez, d<lutOLI ('111 [ctLI\ peLl Unesp, com pós-doutorado pela Universidade Estadual do
Rio de Janeiro, em Estudos Medll\',w" cimente da Universidade Estadual de Maringá, atua na área de Literatura
Portuguesa, Desenvolve projeto de pCSqUi\;l sobre poesia portuguesa e pintura. Pertence ao Grupo de Pesq Ulsa
Texto e Imagem da FAAC/Unesp-Bauru, possui publicações em livros e revistas especializadas.

Giséle Manganelli Fernandes possui graduação em Letras - Habilitação em Inglês/Portugês pela Universidade
de São Paulo (1987), mestrado em Letras (Teoria da Literatura) pela Universidade Estadual Paulísta Júlio de
Mesquita Filho (1993) e doutorado em Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês pela Universidade de São
Paulo (1997), Realizou Pós-Doutorado na University ofFlorida (2000-2001) com bolsa da FAPESP Atualmente
é Professor Adjunto da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, câmpus de SãoJosé do Rio Preto.
Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literaturas Estrangeiras Modernas, atuando principalmente
nos seguintes temas: Don DeLillo, Literatura e História, Pós-Modernismo, Literatura Norte-Americana.
Cultura Norte-Americana, Literatura Comparada.

Lucia Osana Zolin é doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista, autora de Desconstruindo a
opresj;ão: a imagem feminina em A república dos sonhos, de Nélida Piiion, com pós-doutorado pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro, em Literatura Brasileira sobre a ficção de Patrícia Melo. É professora na Universidade
Estadual de Maringá. Publica regularmente na revista Unimar!Aaa Scientiarum. Desenvolve projetos relacionados
aos estudos de gênero.

Marcos Antonio Siscar é professor de Teoria da Literatura na Unesp de São José do Rio Preto. Publicou Os
amores amarelos, de Tristan Corbiere;]arqucs Derrida.· Rhétoriquc ct Philosophie. Atua também como tradutor, poeta e
editor de revistas.

Maria Elisa Cevasco é professora livre-docente de Inglês na Universidade de São Paulo-USP e professor,l
associada de Estudos Culturais e LIteraturas em Língua Inglesa na USP Com várias publicações no Brasil e no
exterior, sua mais recente produção compreende Para ter Raymond VVifliallls (2001), O espírito de POl10 Alegre (2003)
c Dc ...-lIçilcs sol!!c E'ludos Cu!tll/ilis (2000,) Ii'aduziu P,i,'-fll,ldcrJli'fll,'. d !Ó"z/CIl m!rllr,)! dI' ,dj!/IIiI1Sflll 1 rardl". de Frnlrl(
JameSOIl (1997)
Marisa Corrêa Silva l; doutorJ em Letras pela Uncsp de Assis. ,11ltOr;j de Hl1tcs de AII·/lu. c.lIto~ratla de UIlla
ickntidade cultural portuguesa (Edufe 2(02). e de ,lrtlgOS ,,)brc liteLlt\lfa brasiklLI. portUg\ll'S,I. infmtil l'
compJradJ. Com pós-dotltoLldo em IItLTatura portuguesa COlltL-JI1porâne.ll' materiali'1l1<l L!cllli,IJlU pd,l Rutger.
Univcrsitv (The State University ofNew Jersev). é protc'SSOL! ela ,írCI de Temi:] d.l LiteLltUD e LiteratuLls de
Língua Port\1guesa na Universidade Estadual de Maring;í.

Milton Hernu's Rodrigues é professor do Dqnrt.llllenw de Letras CLl U 111\ CfsIchdc Esudual d,' Marillg;í.
com mestrado e doutorado elll Teoria Llter.íru e LIteratura COll1paLldl) PesqulS.! a narratlY:I t;llltástlCl c :1 tlcç;io
brasileira contemporânca. sobre as quais tem y:írias produ<;ôes crÍtlC,lS em revistas especiaJi/.ld;ls,

Mirian Hisae Yaegashi Zappone l- proíc'ssora de Teorn LItCfária c LItLTaturas e Língu:l I\l!wguesa d.l
UnIYCfsidadc Estadual de l\1aring;í. FeL dotltOLlc!O 11,1 Uni\l'r\Idade Esud\l,d de C:lmpll1aS em 2()()] , Tem 'l'
dedicado a estudos sobre literatura, leitura e enSII10 e sobre a IIteratuLl lIlf:\I1to-Jl1\Tnil bnsdeILL

Nilce M, Pereira é graduada peb U lllversid:ldc Estadual P,ll1lista, o!1(k obteve. também. () diploma ele
espeCialista em "Estudos Annçados de Língua Ingles:L" É mestre em Estud()s da Traduç,io peh Universidade
de São Paulo, com a dissertação intitulad(L--l!i(f 110 Brasil, tradllçôcs, ,u{aptaçôcs c /!ustraç(lcs. Após drias pesquisas no
Brasil e na Universidade de Surrey, Inglaterra, obteve <.1 grau de doutOr;] em 20()l) através de sua tesc 7iw{lI::illi{,'
{OI/I il/lagells: il il/lstraç,io (01110 rcc-'Critllra, a i!/Istraç(lo ((11110 tmdllçt1o. rL'alizado ('um () apoio eL FAPESP

Sonia Aparecida Vido Pascolati é protessora ela Universlcl.tdc Estadt]'ll de LondflILl c doutor:l elll Estudos ":1
Literários pela UNESP de Araraquara, Ministra disciplinas 1l0S cursos de Gradu:lc:JO c Pós-Cr,1duaç;io em Lltras ~I
da UEL e realiza pesquisas na ;írea de estudos te:1trais,

Thomas Bonnici, doutor em Letras pela Unesp, professor de LIterat\lras de Língua Im~leS;J 1l:J Universidade
Estadual de Maringi, Autor de artigos científicos publicados em revistas CIentíficas 110 Brasil e 110 extenor. :lléIlI
dos livros O pós-colonialismo c a literatura (2000: 2004), Silort Stories:.-11/ AntllOlo}zy.fclr Ul1d(,I:~mduiltes (2002): Poetry
oI tlu' Nineteentll and Iil'Cl/tictlr Cent/lries (2004); COI/(l'itos-rlJill'C da teoria pós-co!<ll1ial (2005): Teoria i' crítira /lterári,1
,ff'lllini5fa: conceitos f tcndhlcúF (2007); Rcsist(llri'l t' illtlTI't'Ilçih1 I/Il' !ltnatlIl'ils PÔ'-C(l!Ollill/S (20()())

Vera Helena Gomes Wielewicki é professora de Língm Inglesa e LIteraturas de Língua Inglesa na Univl'fsidade
Estadual de Maringá. Doutora em Letras pela UniversIdade de São P;l\!Io, com pe'iquisa em lIteratura e cnSII1o.
Publicações sobre pesquis:l ctllográfica voltada pan :l cduca(lu lIterária.

4011 - T F () R I A L I T E J( A IZ I A

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