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REFLEXÃO

O DEGRAU ZERO DA BUSCA POR ESPIRITUALIDADE NA CULTURA


CONTEMPORÂNEA

Alberto da Silva Moreira


Goiânia - GO

Este texto trata inicialmente de um fenômeno aparentemente


contraditório, a crise da mediação institucional nas religiões
e a busca intensa por espiritualidade e religiosidade que
caracteriza a cultura contemporânea, inclusive na Internet.
Aspectos da crise das instituições produtoras de sentido são
comentados, bem com a nova situação dos indivíduos que agora
isolados decidem sozinhos sobre suas escolhas religiosas.
Nesse contexto a busca por espiritualidade(s) continua em
alta. Inicio então uma reflexão que tenta pensar através de
uma aproximação etimológica que experiências humanas básicas
estão na origem da busca por espiritualidade. Tento responder
às questões: o que significa o conceito espiritualidade, o que
buscam as pessoas quando buscam espiritualidade e porque ela
deve ser considerada algo constitutivo da trajetória humana.

Crise das igrejas, espiritualidade em alta

O panorama religioso em algumas regiões ou países do mundo


poderia ser descrito da seguinte forma: espiritualidade sim,
igreja não. Nos países europeus muita gente faz a experiência
do “believing without belonging”, do crer sem pertencer. Mesmo
no Brasil, cuja população se declara majoritariamente reli-
giosa – 92,7% declararam pertencer a uma religião em 2000 -,
os indicadores do último Censo mostraram um aumento da porcen-
tagem dos que se declaram “sem religião”: 7,3% da população, o
que daria hoje (2009), caso a proporção se mantenha, cerca de
14 milhões de pessoas. No mesmo Censo as igrejas protestantes
(evangélicos) mostraram um crescimento significativo: em 1991
eram apenas 9% da população, já em 2000 eram 15,4%, ou 26
milhões de pessoas. Do total de evangélicos os pentecostais

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Doutor em Teologia e Ciências da Religião, professor do Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de
Goiás, Goiânia. E-mail: alberto-moreira@uol.com.br. Publicado originalmente
na revista de espiritualidade Grande Sinal, Petrópolis, Vozes, 2010, n. 4.

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constituíam 68%, cerca de 18 milhões de fiéis ou 10,43% da
população brasileira. O Censo de 2010 deve alterar ainda mais
esta proporção; há previsões de que os pentecostais atinjam
mais de 75% dos evangélicos e 18,7% da população, o que daria
cerca de 36 milhões de fiéis. A Igreja Católica mostra um
recuo que já vem de longos anos: em 1940 os católicos eram
95,2% da população, caindo em 1970 para 91,1%, em 1991 para
83,3% e em 2000 para 73,8% (PRANDI, 2004, 21). Mas ainda
continuava largamente majoritária em 2000, com 125 milhões de
fiéis. Outras religiões ou organizações religiosas que
diminuíram em número de fiéis no Censo de 2000 foram a Umbanda
e a Igreja Luterana (PRANDI, 2004, 25).
Estes números contrastam com a realidade européia, onde o
quadro de afastamento das igrejas estabelecidas é dramático,
especialmente na França e na Alemanha. Já nos Estados Unidos a
religião também continua a ser uma força social e cultural
poderosa. O mesmo se pode dizer da Ásia e da África,
continentes onde a presença milenar das religiões influencia
marcadamente o cotidiano das populações, criando até mesmo
situações de tensão e choque entre grupos religiosos. No
contexto brasileiro e ocidental surge uma novidade importante:
mesmo onde a religião continua forte, há uma tendência de que
a instituição religiosa perca influência, enquanto os
indivíduos aumentam seu raio de decisão e escolha.
Por outro lado, um aparente paradoxo: até nos países e nas
situações onde a religião institucionalizada está em crise
histórica, a busca das pessoas por valores, sentido para a
vida e espiritualidade continua em alta. Como entender tais
mudanças? A experiência religiosa segue hoje ao que parece uma
tendência à fragmentação, individualização e desinstituciona-
lização. Há uma busca por diversidade e multiculturalismo, um
aumento da reflexividade (A. Giddens) que reforça a escolha
pessoal dos indivíduos. Algumas funções culturais da religião
foram assumidas pela mídia e pelo mercado e o próprio conceito
de religião se encontra num processo de transformação interna
(MOREIRA, 1996). Numa época em que as fronteiras entre os
sistemas simbólicos se diluem e a experiência religiosa pode
estar associada à terapia, ao turismo, ao marketing, ao show
midiático, ao esporte ou à administração de empresas,
pergunta-se pelo que o conceito de religião ainda significa
(MOREIRA, 2008).
A busca espiritual, no entanto, persiste também entre
aqueles que se confessam céticos e até ateístas (SOLOMON,
2002). Mesmo um filósofo e ateu convicto como o francês Luc
Ferry afirma em seu “humanismo radical” que a pergunta humana,
que a religião comunica e da qual ela dá testemunho,
continuará inalterada mesmo após o que ele considera ser o
“fim da religião”. Para Ferry a transcendência continuará a
nos ocupar em suas quatro formas incontornáveis: no imperativo

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ético, na experiência da beleza, na vivência do amor e na
busca pela verdade (FERRY & GAUCHET, 2004, 97).
Além dos filósofos, dos terapeutas e dos líderes
religiosos, muita gente hoje discute e se ocupa com a
transcendência. Basta uma rápida olhada na Internet para se
convencer da enorme atualidade do tema espiritualidade. Hoje a
palavra “espiritualidade” aparece no Google em 3.320.000
páginas; se digito a palavra “espiritual” já são 15.300.000
páginas; mas se coloco a palavra em inglês, “spiritual”, são
nada menos do que 114 milhões de páginas onde o termo ocorre!
Se visitamos algumas desses sítios ou páginas, nos deparamos
com as mais diversas religiões, comunidades e movimentos
religiosos, doutrinas existencial-filosóficas, mensagens,
grupos góticos, de tarot, astrologia, mística, ocultismo,
cabala, esoterismo, metafísica, filosofia oriental, psicologia
transpessoal, neurociências, parapsicologia, yoga, meditação,
zenbudismo, tantras, nova era, consciência cósmica, espírito e
matéria, nirvana, qi gong, sat sang, iluminação, cultos
vétero-germânicos, antigas religiões maias, ritos africanos,
religiões orientais e muitíssimo mais. Além, é claro, de uma
infinidade de sítios e materiais das religiões e das igrejas,
tanto os mantidos pela própria instituição, como os criados
por seus membros e seguidores. Nenhuma outra área temática
alcança vendagens tão expressivas no mercado editorial como a
chamada literatura de auto-ajuda, orientação para a vida e
espiritualidade-esoterismo. Leonardo Boff, Jean Ives Leloup e
Tic Nat Than são autores conhecidos e apreciados na
espiritualidade; outro best-seller, o monge beneditino Anselm
Grün, já deve ter atingido os 20 milhões de exemplares
vendidos mundialmente; e o Dalai Lama sem dúvida já deve ter
alcançado uma vendagem pelo menos dez vezes maior que esta.
Mas porque existe tanta busca por espiritualidade, cura
interior e auto-ajuda?
Parece claro que a chamada crise das instituições
religiosas não significa que todas as religiões sejam afetadas
da mesma forma e nem mesmo que haja uma crise da
espiritualidade. O Islã e o Budismo cresceram, mas uma
corrente cristã, o pentecostalismo, também se expandiu muito
internacionalmente. Na verdade a corrente pentecostal é, entre
todas as comunidades religiosas, a que mais cresceu no mundo:
segundo o Pew Forum (2009), uma entidade especializada dos
Estados Unidos, de 1903 até hoje os pentecostais passaram de
zero a cerca de 500 milhões de seguidores.
Justamente quando a mediação institucional das igrejas e
tradições religiosas parecem perder sua força performativa no
cotidiano dos fiéis, estes sentem a necessidade, como
indivíduos reduzidos a si mesmos, de buscar por conta própria
orientação e sentido para a vida. O indivíduo precisa ajeitar-
se para responder às enormes cobranças da sociedade
capitalista altamente competitiva e a crescente privatização

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dos espaços públicos. Se antes havia uma “grande-família”, uma
cultura e outras instituições que assumiam pelo indivíduo ou
junto com ele esta tarefa, hoje nos grandes centros urbanos
ele precisa decidir sozinho sobre tudo: trabalho, laços
afetivos, vida econômica, futuro, felicidade, valores,
religião. O indivíduo sente-se às vezes como um consumidor
diante de um grande supermercado de ofertas religiosas e
midiáticas e precisa orientar-se por conta própria para
satisfazer suas necessidades espirituais. A cultura nos
grandes centros se orientam segundo aquilo que promete sucesso
e retorno financeiro, o que é confortável e seguro, o que tem
boa aparência e oferece identidade e orientação, mas tudo sem
que o indivíduo se sinta muito pressionado ou tenha que se
comprometer excessivamente.
No vácuo criado pela crise das instituições tradicionais
que produziam explicação e sentido para a vida, cresceram
novas instituições que desempenham agora essa função, acima de
todas o complexo midiático-cultural (MOREIRA, 2003). Surgiu um
mercado altamente rentável para os símbolos, os estilos de
vida, as formas de pensamento, as fantasias, o desejo e as
projeções de felicidade. Moda, filmes, publicidade e
marketing, enfim a indústria da cultura, fatura alto nesta
atmosfera rarefeita de transcendência que caracteriza a vida
e o ambiente da grande metrópole urbana. Experimentamos um
boom de mensagens e propostas de sentido, promessas de
felicidade que nos vêm da mídia e da religião midiatizada, e
todas afirmam ter “a solução para os (nossos) problemas”.
Apesar disso salta à vista o fato de que negócios muito
profanos e lucrativos tem sido feitos à custa das
transformações do religioso, tanto no Brasil, na América
Latina como no resto do mundo. Em muitos lugares surgiram
impérios da mídia, do poder e do dinheiro baseados na
manipulação das necessidades religiosas das pessoas. Sabemos
como alguns fundadores de igrejas e movimentos religiosos se
tornaram poderosos e multimilionários, como o Reverendo Moon
na Coréia do Sul, os tele-evangelistas Jimmy Swaggart, Billy
Graham e outros nos Estados Unidos, ou os pastores
neopentecostais Edir Macedo e Estêvão Hernandes no Brasil.
Um outro aspecto desse processo tem a ver com o
deslocamento da competência específica dos mediadores ou
ministros religiosos. Hoje aparecem muitos outros atores
sociais que reivindicam para si a tarefa de transmitir
explicações e valores religiosos: são os jornalistas, os
comentaristas especializados, os locutores de auditório, os
conselheiros e filósofos da mídia, os especialistas em
marketing e publicidade, os terapeutas e psico-conselheiros.
Implica dizer que nem sempre as igrejas possuem mais o
controle da informação e da interpretação acerca dos próprios
códigos de sua religião.

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Da mesma forma, se antes a socialização religiosa se fazia
através da família, das escolas e igrejas, hoje esta
introdução das novas gerações aos conteúdos da fé religiosa é
feita frequentemente pela indústria cinematográfica e pelos
grandes complexos de mídia e entretenimento, ou seja, pelo
mercado. Holywood se tornou a catequista das multidões: um
único filme, como O Código Da Vinci, Harry Poter, Paixão de
Cristo ou Stigmata, “ensina” e catequiza as mentes de milhões
de pessoas pelo mundo, muito mais do que conseguiria qualquer
igreja sozinha. Hoje quando as pessoas querem saber “a
verdade” sobre Jesus Cristo, por exemplo, não vão à sua
igreja, eles simplesmente compram o último fascículo da
revista Super Interessante que traz um documentário em DVD, ou
adquirem alguma edição especial da revista Época. Qualquer
quiosque de jornaleiro tem mais informações sobre religião e
Deus e mais propostas para sua felicidade do que qualquer
igreja poderia oferecer... Ou seja: o mercado apoderou-se
também da religião e da espiritualidade.
No entanto nós não queremos nos ocupar com as ofertas pós-
modernas de espiritualidade e nem com o novo espírito do
mercado e do capitalismo, apesar de que estes sejam temas
importantes. Fica em suspenso a questão, se os novos estilos
de espiritualidade ou a cultura do mercado que os favorece,
podem realmente satisfazer as necessidades profundas dos seres
humanos na nossa sociedade atual. Também para outra ocasião
deixamos a questão sobre o necessário “discernimento dos
espíritos”, quando se trata de avaliar se alguns movimentos e
grupos religiosos contribuem de fato para uma espiritualidade
nova e integradora, ou se eles não acabam presos em esquemas
autoritários, ideológicos, étnicos ou etnocêntricos ou
dominados pela racionalidade do mercado. O que me parece claro
é o fato de que a busca por sentido, orientação e apoio, por
valores, transcendência e comunhão com o mistério pertencem
estruturalmente à condição humana e não são apenas
necessidades passageiras.
A permanência das questões religiosas mostra que a
modernidade nem substituiu nem acabou com a religião, nem
mesmo que a religião se reduziu a uma questão de gosto pessoal
e por isso não caberia no espaço público. A religião nunca
desapareceu do horizonte da modernidade, assim, a rigor não se
pode falar de um “retorno do sagrado”. Na verdade foram os
cientistas sociais, que talvez dominados por preconceitos
teóricos, chegaram a pensar a religião de forma simplista,
como um mero resquício cultural de um tipo de sociedade em
extinção. São eles que agora questionam ou modificam a sua
tese da secularização inevitável. Do ponto de vista da
teologia, mas também de qualquer psicologia social, pode-se
prever que, ao contrário, a crescente aridez, a violência
simbólica e a desumanidade existentes na nossa sociedade só

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vão aumentar a busca por formas de espiritualidade que as
pessoas considerem libertadoras e humanizadoras.
Mas, afinal de contas, o que entendemos por
espiritualidade?

O que é espiritualidade? Que experiência humana a


espiritualidade expressa?
O adjetivo spiritualis é um neologismo cristão, cunhado
talvez por Tertuliano, mas com certeza por Ireneu de Lion no
final do 2º século d.C. Ele traduz, segundo Wiggermann, o
adjetivo grego pneumatikós em 1Cor 2,13-3,1 (WIGGERMANN, 2000,
708s). Paulo distingue entre o homem somatikós, aquele homem
que age “segundo a carne”, e o homem pneumatikós, aquele que
vive “segundo o espírito” (SUDBRACK, 2000, 852s). O
substantivo spiritualitas aparece apenas no 5º séc. d.C. e de
forma isolada. Muitos séculos depois, só em 1900 a palavra
spiritualitas vai ganhar espaço novamente, traduzida no
catolicismo francês: spiritualité se torna a doutrina ou o
ensinamento da vida religiosa ou espiritual. O conceito
incluía também as noções de ascese e mística. Da França o
termo passou às demais línguas romanas e ao português, como
sinônimo de vida religiosa, piedade, religiosidade, mística.
Espiritualidade significa historicamente “um modo sempre
consciente de formar, de cultivar regularmente e de exercitar
metodicamente a religiosidade e a atitude religiosa” (KOPF,
2004, col. 1591). Segundo J. Sudbrack, desde a década de 1980
o conceito espiritualidade vive um boom também no âmbito
profano e significa nesse contexto, “a religiosidade
esotérica, errante, não-institucional ou dogmaticamente
estabelecida” (SUDBRACK, 2000, 852). Como nota Ulrich Kopf,
não existe uma definição abrangente de espiritualidade e que
seja aceita por todos:
“A diversidade de significados do conceito inclui desde
uma compreensão bastante ampla de religiosidade (por
exemplo, como orientação religiosa, mentalidade, atitude
religiosa, etc.) até uma simples listagem dos diversos
aspectos da religiosidade vivida” na prática (KOPF, 2000,
col. 1590).
No uso comum, espiritualidade pode incluir tanto “mística,
meditação, contemplação e mesmo a experiência cristã, como
também a sua compreensão teórica e sua prática ritual”
(SUDBRACK, 1993, 11). O conceito é empregado tanto de forma
abstrata e teórica como de forma concreta e prática, ele pode
significar o legado espiritual de um grande místico ou santo e
de sua família religiosa – como, por exemplo, espiritualidade
franciscana ou espiritualidade budista – como pode significar
a orientação religiosa do indivíduo concreto. Para o grande
estudioso do tema, J. Sudbrack, quando se fala de

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espiritualidade hoje, se pensa numa determinada mentalidade
que dá sentido e ultrapassa o mundo das coisas e dos fatos e
que inclui temas como o ser, a natureza, Deus, Buda, o vazio,
a evolução, as redes, energia e muitos outros mais (SUDBRACK,
1993, 853).
Justamente porque a palavra espiritualidade é usada e
vivida hoje de forma tão descontrolada, até o ponto de que seu
emprego pós-moderno “atribui ao mais raso dos esforços a
aparência de “santidade” (WIGGERMANN, 2000, 709), por isso
mesmo é necessário trabalhar bem o conceito, para que ele se
torne aproveitável.
O teólogo Hans Urs von Balthasar definiu espiritualidade
como sendo
.... uma postura fundamental, prática e existencial de um
ser humano, que é consequência e expressão de sua própria
compreensão do existir – ou de forma mais geral, de sua
compreensão e do seu comprometimento ético-existencial.
Trata-se de uma conformação ativa e persistente (habitual)
de sua vida, a partir dos seus juízos e objetivos últimos
e de suas decisões mais profundas (von BALTHASAR, 1965,
715; apud WIGGERMANN, 2000, 709).
Esta definição é rica e densa: uma postura fundamental,
prática e existencial da pessoa, uma conformação do seu ser a
partir de suas decisões e objetivos últimos. Mas que postura
existencial e prática o autor tem aqui em mente? Vamos tomar a
própria palavra espiritualidade pela raiz, para que possamos,
antes de tudo, perceber a experiência corporal, física e
existencial que um dia forneceu a base para a formulação do
conceito.
Espiritualidade vem do latim spiritus, que traduz o grego
Pneuma, que por sua vez repassa o feminino hebraico Ruach.
Ruach significa em hebraico vento, ar, respiração, fôlego,
alento, corrente de ar; mas significa também a presença de
Deus, sentida de maneira dinâmica como uma força que coloca em
movimento, tanto interior como exteriormente, como algo que
cria realidade e chama à existência. A Ruach é o hálito da
vida que atravessa o ser humano e que ele expira ao morrer.
Este sopro e alento é a energia vital de tudo o que existe,
como o sopro de Javé, que pairava sobre as águas primordiais e
criou a vida nova no livro do Gênesis. Por isso Ruach
significa em sentido figurado também força, vida,
persistência, espírito, fôlego longo.
Pneuma, o termo grego, não transmite tanto a profunda
experiência corporal, física e viva da Ruach hebraica. A
palavra soa já um pouco espiritualizada, algo abstrata, mas
ainda assim Pneuma mantém o significado fundamental de vento,
ar, respiração, alento e presença de Deus. No Novo Testamento
Pneuma é empregado para traduzir o Espírito Santo, entendendo

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por espírito santo em primeiro lugar o espírito que animava
Jesus. Mais tarde fala-se sempre mais do Espírito Santo no
contexto da espectativa da parousía, da vinda de Cristo no
final dos tempos, e esquece-se do alento, da respiração e do
fôlego que animavam Jesus de Nazaré. A comunidade de Corinto
faz experiências de êxtase e glossolalia, mas é advertida por
Paulo de que os carismas são mais importantes do que esses
dons. O Espírito Santo no Novo Testamento é fundamentalmente o
Inspirador e o Revelador daquilo que Jesus havia pensado e
querido.
Spiritus, a palavra latina, traz novamente o aspecto
físico e corpóreo que está no fundo do termo: significa sopro,
alento, respiração, hálito vital. Mas logo será empregada em
sentido figurado para designar a alma, a vontade, o entusiasmo
e a animação. O conceito não apagou, todavia, a experiência
corporal e existencial que está na sua etimologia.
Espírito em português foi espiritualizado, perdeu quase
totalmente o seu sentido primitivo e corporal, significa
agora, em primeiro lugar, “a parte imaterial do ser humano”, a
“alma”, ou o Ser supremo ou a entidade sobrenatural (HOUAISS,
2001, 1233). Mas ainda, mesmo se soterrado por muitos outros
significados, lá na 20ª conotação segundo o mesmo Dicionário
Houaiss, aparece: Gramática - espírito, sinal da língua grega
para indicar se a vogal é aspirada ou não. Além disso aparece
na 18ª conotação o seguinte sentido, tirado da alquimia
antiga: espírito - líquido obtido pela destilação, álcool,
álcool etílico; aguardente de cana, cachaça. Esta conotação
parece bem mais interessante, pois ainda devolve a noção de
que o espírito movimenta, alegra, esquenta e anima todo o
corpo e o ser da pessoa. Em outras línguas, como no alemão, o
sentido de espírito como álcool está ainda bem vivo: espírito
é algo que produz fogo, calor, luz, energia; é uma substância
que tem tanta energia e força no seu interior que pode até
explodir. Assim, por essa conotação somos lembrados de que
espírito tem a ver com energia e fogo interior.
Espiritualidade tem a ver com uma respiração, um alento que
vem de dentro, um fogo e um calor, uma energia e força que
brotam e sustentam o íntimo da pessoa espiritual. Portanto,
espiritualidade tem quase nada a ver com visões românticas e
idílicas, que associam o espiritual com a ausência total de
conflito, de tensão e de luta, como geralmente se pensa.

O que buscam as pessoas quando elas buscam uma


espiritualidade?
Vamos aprofundar um pouco mais a compreensão do conceito
espiritualidade. Também costumamos dizer que as pessoas
espirituais, os místicos, por exemplo, foram ou são pessoas
radicais. O que queremos dizer com isto? Radical vem do latim
radix, raiz; radicalidade vem do latim tardio radicalis e

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significa “o que vai à raiz”, “da raiz para cima”.
Radicalidade significa, portanto, ser suportado, carregado e
alimentado por uma raiz que está plantada fundo no chão. Como
uma árvore que se apóia, se sustenta e se alimenta das suas
raízes. Radical é aquele ou aquela que vive perto da raiz, que
se alimenta da raiz, que toma as coisas pela raiz, pelo
fundamento. O sentido que radicalidade transmite é esta
proximidade do chão, este estar-plantado no chão da vida ou
estar enraizado na terra, na realidade. Quando dizemos que os
homens e mulheres espirituais costumam ser radicais, queremos
mencionar, em primeiro lugar, esta proximidade da terra e do
húmus, esse enraizamento profundo que alimenta uma vida, que
sustenta o tronco e a copa da árvore em todo e qualquer tempo,
dando-lhes firmeza, consistência, força.
A dificuldade para entender o que é radicalidade vem da
postura fundamental da nossa cultura hoje, que é muito pouco
radical. Nós mal deitamos raízes em algo ou em algum lugar ou
junto a alguma pessoa. Em geral vivemos na superfície, no
cultivo da aparência, na distração do fundamental. Distração
quer dizer estar espalhado, estar ocupado em muitas coisas e
em diversas direções ao mesmo tempo, estar ausente, esquecido,
dividido, distante, apenas por cima das coisas. Superfície
significa aqui o esquecimento da raiz, significa viver na
distância da origem da vida, desarticulado e ocupado com o que
não é importante. Muitas pessoas passam pela vida assim,
distraídos como turistas, como voyeurs, que consomem sem
descanso paisagens e imagens de si mesmos, cujo olhar está
sempre ocupado com as vitrines ou o próprio umbigo e assim
nunca repousam, nunca chegam à raiz de nada. Esta forma de
vida chamamos também de alienação. Alienação quer dizer ser-
um-outro-do-que-si-mesmo, um allien, um estranho para si
próprio. Marx descreveu o processo de alienação de forma
exemplar na vida do trabalhador que vive sob as condições de
produção capitalistas (MARX, 2003). O trabalhador, junto com o
resultado do seu trabalho (que é no fundo seu próprio tempo de
vida), torna-se um estranho em relação à natureza, em relação
a si mesmo e aos outros; ele próprio e seu trabalho não lhe
pertencem, mas a um outro, a uma instância impessoal, anônima
e dominadora, que decide sobre ele e seu destino: as relações
do mercado.
Alienação, superficialidade e distração poderiam hoje ser
descritas como as disposições fundamentais da nossa cultura
capitalista de consumo. Vivemos no modo da alienação, do
esquecimento e da distração, distantes das raízes e do
fundamental. A conformidade com o sistema e o auto-engano são
cultivados e impingidos às pessoas, que desde cedo são
educadas para o culto narcísico da satisfação apenas das
próprias necessidades. Todavia, qualquer projeto de vida
baseado no auto-engano não pode ser autêntico e nem dar certo.
A vida na inautenticidade nos faz infelizes, nos torna doentes

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e traz ainda mais sofrimento às outras pessoas. Por estarmos
doentes, por este sistema de vida adoecer constantemente as
pessoas, é que necessitamos de tantas terapias e andamos em
busca de tantas ofertas de cura e de espiritualidade. Queremos
reencontrar e libertar nosso espírito, aproximar-nos de nossas
raízes, tornar-nos autênticos.
Mencionamos há pouco a radicalidade no contexto da busca
por espiritualidade. A palavra radicalidade também possui hoje
uma conotação pejorativa, ela se confunde com radicalismo. E
radical é usado muitas vezes simplesmente como sinônimo de
terrorista. Essa desnaturação político-fanático do conceito
radical talvez tenha a ver com o fato de que os radicais-
terroristas (pensemos p. ex. nos homens-bomba) demonstram uma
entrega tamanha e cega à sua causa, que lembram aqueles e
aquelas que vivem radicalmente do espírito de Deus. De fato há
semelhanças, mas também profundas diferenças entre os dois
radicais: ambos não estão à procura de conforto, de boas
maneiras ou de estética; também não buscam de forma neurótica
a conservação da própria segurança. Ambos são corajosos, não
se deixam dominar pelo medo, que é o que causa insegurança nas
pessoas comuns. Radicalidade, neste sentido, significa que a
pessoa está com força total concentrada no seu objetivo,
completamente subsumida pelo essencial no qual acredita. Mas o
radical-fanático não é radical o suficiente. Ele permanece
aprisionado na afeição do próprio coração, no amor do próprio
sentimento de vingança e ódio. O fanático se deixa levar pelo
ânimo exaltado da afeição do próprio coração e sua corajosa
doação não teme mais nenhuma barreira, não para diante de
nenhum limite. Ele não se detém sequer diante da morte de
pessoas inocentes. E o que era doação e coragem, torna-se
horror e violência, sofrimento e injustiça. O fanático vive
sua radicalidade apenas pela metade, ele se altera, se exalta,
se esquece e se distancia novamente das raízes, que são
frágeis e querem servir apenas à manutenção da vida.
Apenas aquelas pessoas que se mantêm próximas ao chão, às
raízes da vida, conseguem manter também esta postural
totalmente radical, a humilitas. Humilitas vem de húmus, o
chão escuro, úmido e fértil da terra. Humilitas é aquela
disposição ou qualidade do homem que sabe interiormente que
toda a vida vem da terra, que a ela nós devemos a existência e
ele nada mais deseja do que ser um filho agradecido da terra.
São Francisco de Assis, por exemplo, era uma pessoa assim,
viveu e sentiu-se intimamente unido à mãe terra, criada por
Deus. Nos instantes antes de sua morte quis ser depositado nu
sobre a terra nua. A humildade aponta para uma atitude
fundamental do ser humano que a ninguém se sente superior,
pois sabe que todos vêm da mesma mãe terra, são alimentados
por ela e a ela retornam no fim da vida. A humildade é uma
disposição do espírito de quem conhece perfeitamente tanto os
seus limites como as suas possibilidades e os acolhe

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cordialmente, sem murmuração. Os humildes não são os que
sempre abaixam a cabeça e dizem amém, mas os que sabem que
todos os seres humanos são material e constitutivamente
iguais, pois têm uma origem comum. Mesmo se a maioria deles há
muito já se esqueceu disso por causa da riqueza, do poder, da
ciência, do ódio ou do medo, do prestígio ou da vaidade.
Esta radical humildade que vem da proximidade do chão e da
comunhão com a terra produz piedade, respeito, cuidado,
atenção, sensibilidade, misericórdia e, sobretudo, doação e
coragem. Espiritual é, portanto, a pessoa humilde, que vive da
força que vem das raízes, que tem suas raízes fincadas
profundamente no chão da vida, como uma árvore. Como uma
árvore na parede de uma montanha, que apesar da inclinação do
terreno não cresce na horizontal, conforme o sistema, mas
busca o céu, vai na direção do sol.
A árvore, aliás, é uma metáfora viva da espiritualidade.
As árvores retiram o gás venenoso da atmosfera e o transformam
em energia para o seu crescimento interior. E ainda devolvem
ao meio ambiente um ar puro e saudável, com o qual outros
seres vivos e os seres humanos também podem viver e crescer.
Mas a árvore não espera que lhe agradeçam ou recompensem por
isso, ela o faz simplesmente, com vigor e (de) graça. Assim
acontece também quando vivemos na proximidade de homens
espirituais: nós nos sentimos refrescados, encorajados,
animados. Nós só percebemos como a atmosfera e o ambiente
podem se tornar ruins e venenosos quando essas pessoas, como
uma brisa fresca, não mais estão lá. Com as raízes fincadas
profundamente no chão da realidade, na terra humilde e fértil
que alimenta todo vivente; mas aberta para os lados, acolhendo
na sombra as dores dos caminhantes; superando os desníveis e
apontando na direção do sol, assim crescem a árvore e a sadia
espiritualidade (CASTILLO, 2000, 11).
Resumindo, vimos que espiritualidade vem de spiritus e tem
a ver com a respiração, o alento, o fôlego. Espiritualidade é
a arte de respirar corretamente, cada vez de forma integral,
atenta e concentrada, a partir do âmago, da profundidade, mas
também de maneira natural e leve, humilde, sem espalhafato.
Quem cultiva essa respiração integral, esse alento e fôlego do
espírito dentro de si, consegue caminhar mais longe, ir mais
adiante, não desanima ou esmorece quando muitos já estão com a
língua de fora. Espiritualidade significa, antes de mais nada,
não perder o fôlego interior em qualquer circunstância da
vida. Por isso a espiritualidade precisa ser cultivada.
Cultivo, culto, cultura vêm do verbo latino cultivare, que
significa trabalhar o campo, amansar a terra, tratar com
cuidado as sementes, cuidar da plantação; por isso também tem
o sentido de fazer crescer, melhorar, aperfeiçoar, levar algo
a uma condição melhor ou a um nível superior. Espiritual é
alguém que cultiva e cuida da respiração interior do seu ser
com o mesmo cuidado que tem o camponês quando trabalha a terra

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e a plantação. A pessoa espiritual é alguém que exercitou tão
bem a arte e o alento do espírito, que mesmo nas situações
mais difíceis da vida e do caminho ela não perde a energia, o
fôlego, a consistência. A força do seu espírito a conduz
adiante.
Dessa forma, a espiritualidade também exige que cada um
proteja o seu fogo, o seu calor, a sua chama interior e não a
deixe apagar-se por qualquer motivo ou situação banal.
Cultivar o fôlego, proteger sua chama interior, não
desperdiçar suas energias, não desgastar-se além dos limites,
seguir o longo caminho, às vezes ficar cansado e triste, mas
não sem alento: esta é a profunda experiência humana,
existencial, corporal e ao mesmo tempo mental e afetiva que a
palavra Espiritualidade traduz e quer expressar. Qualquer
outra forma, escola, estilo ou explicação acerca da
espiritualidade não podem esquecer ou passar por cima desta
experiência fundamental. Que por ser fundamental e humana,
está aberta a qualquer pessoa em qualquer tempo da história.
As diferentes espiritualidades, quando autênticas, são
traduções espirituais profundas desta experiência fundamental.
Portanto, a busca pela espiritualidade vem de baixo, das
raízes do humano, ela salta das profundezas da alma humana,
não vem de cima, do além ou como se fora apenas um enfeite que
se coloca de fora e do exterior na vida das pessoas. Quando
nós respiramos profundamente, o ar fresco, cheio de oxigênio,
penetra até as menores células do nosso peito e as revigora a
partir de dentro. Assim o homem imbuído da espiritualidade: a
cada minuto essa respiração acontece, sem ser notada,
questionada ou recompensada; acontece simplesmente porque já
está tão cultivada que pertence estruturalmente ao seu ser.
Espiritualidade pode assim ser descrita como o cuidado
permanente, esmerado, atento, mas sem pieguice, da respiração
da alma.
E aqui está o degrau zero, a razão básica pela qual os
seres humanos, independentemente de pertencerem a uma
religião, buscam e tem necessidade de uma espiritualidade. Ela
é a respiração do espírito, é o cultivo da força do espírito
em cada ser humano. Se o espírito não recebe o ar que
necessita, se ele não pode ou não consegue elevar-se para além
dos surdos instintos e da facticidade crua do mundo, o humano
sufoca, morre ou mata o espírito dentro de si.. Se deixar seu
espírito sufocar ou morrer, o homem pode degenerar e tornar-se
uma besta mais desumana do que qualquer outra. A busca da
espiritualidade nasce, portanto, do ímpeto interior do humano
por ser livre, por superar-se e poder crescer integralmente.
Neste sentido a espiritualidade é a mais elevada expressão da
estrutura transcendente do espírito humano, que através de
todas as situações da vida anela pela autenticidade de sua
existência.

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