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Ópera à América do Sul:

O Caso do Brasil e o Festival Pioneiro de Gehad


Hajar
por Mahima Macchione (publicado em 28 de agosto de 2020)

O Brasil tem um jeito próprio de fazer ópera. O número de festivais


continua aumentando e apresentações de ópera - sejam produções
completas ou recitais - estão sendo oferecidas em teatros e casas
de ópera de todo o país. Isso não quer dizer, porém, que a política
estadual e nacional não atrapalhe: como costuma ser o caso na
América Latina, tudo é afetado por um sistema político volátil,
incluindo as artes.
E, ainda assim, muitos dos principais nomes da ópera hoje vêm
desta parte do mundo, então certamente eles devem estar
entendendo algo, certo?
No momento, o Brasil parece estar se saindo especialmente bem
na construção de público, com um novo festival criado pelo
empreendedor (e claro, amante da ópera) Gehad Hajar, que está
mudando a paisagem cultural do estado do Paraná com sua
abordagem pouco ortodoxa.
A ópera brasileira reflete a história comercial do país. Seus
principais centros continuam sendo as antigas 'cidades portuárias'
do Rio de Janeiro, Manaus e Belém. Hoje, inevitavelmente, essa
lista também inclui São Paulo, o coração financeiro da nação.
Ao lado desses grandes pólos, outras atividades podem ser
encontradas em salas de concerto e teatros espalhados por outras
partes deste imenso país, como Belo Horizonte, Jaraguá do Sul,
Porto Alegre, Curitiba e Ouro Preto (que tem o teatro em
funcionamento mais antigo das Américas, a “Casa da Ópera”,
construída em 1769).
Os principais teatros do Brasil, como costuma ser o caso em outros
países latino-americanos, oferecem ópera apenas como parte de

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seus programas musicais gerais - não há temporadas completas de
ópera em um “teatro de ópera" totalmente dedicado.
Ópera e música instrumental normalmente ficam juntas, sem a
distinção que você pode encontrar nas capitais europeias e
americanas, entre óperas e salas de concerto.
A cena no Brasil gira em torno de algumas óperas encenadas pelos
principais teatros das cidades em questão ao longo do ano e,
paralelamente, festivais anuais de ópera que proporcionam
explosões de atividade em diferentes momentos.
A vizinha Argentina, em vez disso, oferece temporadas completas
de ópera no Teatro Colón em Buenos Aires além de uma série de
outros teatros com foco na ópera - notavelmente o Teatro Argentino
de La Plata e vários teatros provinciais, como o Teatro El Círculo
em Rosário.
As culturas operísticas do Uruguai e do Chile são indiscutivelmente
mais semelhantes às do Brasil, pois a ópera é oferecida ao lado de
concertos e balé. Montevidéu conta com o Teatro Sodré e o Teatro
Solís, ambos oferecendo alguns títulos operísticos por ano.
Muitos desafios permanecem, no entanto, para as casas de ópera
na América do Sul e ainda há por vezes a percepção de instituições
culturais não reformadas, debilitadas por questões de
financiamento e clientelismo, mecanismo pelo qual os dirigentes de
casas de ópera e teatros são obrigados a renunciar em cada
mudança no partido político ou prefeito, tornando todo o sistema
não tão eficaz quanto poderia ser. Isso inibe o planejamento futuro
e significa que os orçamentos podem ser diminuídos
repentinamente.
Mas os teatros e a programação se modernizaram e se
recalibraram com os padrões artísticos internacionais nas últimas
duas décadas e, quanto aos cantores, a América Latina não parece
ter problemas. Aqueles que alcançaram o reconhecimento
internacional no topo da profissão incluem Juan Diego Flórez
(Peru), Rolando Villazón (México), Javier Camarena (México),
Erwin Schrott (Uruguai), José Cura (Argentina), Bernarda Fink
(Argentina) , Marcelo Álvarez (também Argentina), Paulo Szot
(Brasil) e Ana María Martínez (Porto Rico).

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Mas como são vistos com muito mais frequência na Europa e nos
Estados Unidos do que em seus países de origem, fica claro que o
circuito operístico ainda tem mais a oferecer em outros lugares.
A mudança, porém, está definitivamente ocorrendo e parte do
crédito deve ser dado a instituições como a Ópera Latinoamérica
(OLA), que tem como objetivo avançar e divulgar a ópera na
região.
Um dos membros fundadores do OLA é o principal festival de ópera
do Brasil, o Festival Amazonas de Ópera, que acontece no Teatro
Amazonas de Manaus - um legado do boom da borracha do século
XIX no norte do país.
Enquanto os teatros municipais do Rio de Janeiro e de São Paulo
oferecem apresentações de ópera como parte de suas temporadas
de música orquestral, o Festival Amazonas é um dos festivais
preferidos dos amantes da ópera no país. É o mais antigo da
região, tendo começado em 1997, e até 2001 o único do gênero na
América Latina. Localizado no centro da maior floresta tropical do
mundo, a 22ª edição do festival em 2019 contou com um webinar
sobre “Ópera e Economia Criativa na América Latina” organizado
pela OLA para investigar o desenvolvimento da indústria como um
todo.
O ponto central da discussão era, é claro, sobreviver à crise de
Covid19, mas também o papel das organizações de ópera no
desenvolvimento de um “mercado” de ópera forte, inclusivo e
democrático. O trabalho do OLA foi fundamental, no entanto, para
abrir e facilitar o diálogo não apenas entre as instituições latino-
americanas, mas também com organizações em outras partes do
mundo.
Até agora, a OLA organizou mais de 15 desses tipos de eventos
com convidados da Royal Opera House, Opera Vision, Seattle
Opera, Teatros del Canal, Teatro Real de Madri, Liceo de
Barcelona, Los Angeles Opera House, Palau de les Arts Reina
Sofia e outros.
O Festival de Ópera do Theatro da Paz, na vizinha Belém, é o
segundo festival mais antigo do Brasil, em outra cidade que lucrou
muito com o comércio da borracha no século 19 (e foi apelidada de
“capital da borracha”).
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O programa do festival normalmente não é extenso, mas inclui
opções interessantes, que geralmente são estreias nacionais, bem
como palestras, workshops e masterclasses, e acontecem em
agosto e setembro. Sua última edição (2019) ofereceu um
repertório um tanto excêntrico: Il Matrimonio Segreto
de Cimarosa, Suor Angelica de Puccini e Amahl and the Night
Visitors de Menotti.
[O ano de] 2019 também marcou o primeiro ano do Festival de
Ópera de Pernambuco, no Nordeste do país, no que parece ser
uma vontade de homenagear a história da região e, com isso, a
ópera ali construída em meados do século XIX. Realizado no
Teatro Santa Isabel, em Recife, o Festival abriu com Leonor, a
primeira ópera composta por um nativo, Euclides Fonseca, e que
ali estreou em 1883.
Um festival de ópera iniciado em 2015 em Brasília, capital do
Brasil, não foi após seu quarto ano - prova de que nem todos os
festivais são automaticamente bem-sucedidos.
Mas é mesmo o empresário, amante da ópera e sobretudo
renascentista Gehad Hajar que está fazendo barulho no país com
seu Festival de Ópera do Paraná, que está em sua sexta edição.
Apoiado pela municipalidade e pelo Teatro Guaíra, Hajar e sua
estratégia de marketing têm sido extremamente bem-sucedidos,
com flash mobs nas ruas e terminais de transporte coletivo - de
modo que a ópera faz o trabalho de se vender - junto com a
cobertura da mídia local.
O programa inteligentemente planejado mostra as características
de um festival ambicioso, para atração de público, como Cavalleria
Rusticana, Flauta Mágica, Carmen e Die Fledermaus, mas também
repertório um pouco mais não-convencional como Rita de
Donizetti, La Serva Padrona de Pergolesi e L'enfant prodigue
de Debussy.
É uma curadoria ativa para atrair o maior público possível e inclui
ópera para crianças (Hänsel und Gretel
de Humperdink e A Sapateira Prodigiosa, (uma adaptação da peça
de Lorca), bem como a “cine-ópera” Hawwwah e uma “ópera-rock”.

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O festival paranaense também se destacou por resgatar e encenar
óperas brasileiras esquecidas. Os destaques das edições recentes
incluem a estreia mundial de A festa de São João, opereta da
compositora mestiça brasileira Chiquinha Gonzaga (1847-1935),
composta em 1879. Foi sua primeira obra para o teatro, mas foi
rejeitada na época por todos os teatros do Rio de Janeiro, por sere
escrita por uma mulher.
O próprio Gehad Hajar também descobriu duas obras operísticas
do Padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), o principal
compositor brasileiro do período clássico, que se tornou Mestre de
Capela da corte portuguesa do Rei Dom João VI, no Brasil, em
1808.
Apenas as partituras de O Triunfo da América e Ulissea
sobreviveram, mas Gehad desenterrou os libretos originais nos
arquivos do Palácio Ducal de Vila Viçosa, em Portugal, a permitir
que as obras [sejam] encenadas pela primeira vez desde a sua
apresentação original em Portugal no início do século XIX.
Além disso, duas obras de Júlio Reis (1863-1933) que nunca
haviam subido ao palco também tiveram sua estreia mundial no
festival paranaense, assim como Marumby, do compositor local
Benedicto Nicolau dos Santos (1878-1956).
Mas sua programação eclética é apenas uma ferramenta no
objetivo abrangente do festival de aumentar a acessibilidade. Na
verdade, a área na qual Hajar está realmente desbravando novos
caminhos é levar a acessibilidade a um nível totalmente novo,
sendo completamente gratuito para todos - possivelmente o
primeiro festival de ópera a fazer isso.
A lotação é limitada apenas pelo número de assentos disponíveis
em cada local - e os teatros estão lotados. Eles oferecem
audiodescrição para os cegos e linguagem de sinais para os
deficientes auditivos.
Muitas das óperas são integralmente traduzidas para o português,
ou têm seus recitativos traduzidos, enquanto as árias e outros
números são mantidos no idioma original.
As apresentações acontecem em diversos teatros da cidade de
Curitiba, mas seu compromisso inabalável com a acessibilidade e
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maximização da exposição à arte faz com que também sejam
realizadas produções para crianças em favelas, ruas, ônibus,
escolas públicas, praças e mercados de frutas e vegetais.
O festival também leva suas produções a cidades menores do
estado do Paraná e já montou a primeira produção de ópera em
uma localidade próxima às Cataratas do Iguaçu.
Em um movimento altamente original, Hajar e seu festival também
levaram ópera (Rita, de Donizetti) à uma tribo de 200 índios
Guaranis que nunca antes haviam encontrado a voz
operística. Suas reações de surpresa só podem ser imaginadas.
A missão de Hajar é “ópera para todos” e tem sido um sucesso
completo até agora: em seu primeiro ano, o festival apresentou
quatro óperas para um público de 2.000 pessoas. No segundo ano,
a audiência mais que triplicou, com 12 óperas em exibição.
Neste momento, 52 óperas já foram encenadas para cerca de
130.000 espectadores em 9 cidades, ao lado de masterclasses,
palestras e cursos para profissionais e o público em geral - todos
gratuitos.
Mas, acima de tudo, Gehad Hajar parece ter vencido um dos
maiores desafios da ópera hoje.
Um estudo sobre festival até agora mostra que mais da metade do
público são jovens com menos de 30 anos, um grupo demográfico
que geralmente não está associado à ópera. Ele deu a muitos a
oportunidade de experimentar a ópera pessoalmente pela primeira
vez - e eles estão viciados.
Não está claro se o festival continuará sendo gratuito, mas parece
uma forma poderosa e eficaz de construir um público local que
poderia no futuro se tornar frequentadores pagantes da ópera.
Portanto, uma verdadeira virada de jogo em como realmente
ampliar o apelo da ópera, especialmente entre os jovens.
Os padrões artísticos também estão, obviamente, no topo de sua
mente, com, entre outras coisas, ensaios exigentes para todas as
obras.

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Sua visão? Levar Curitiba de volta à posição que ocupava no final
dos anos 90 como a capital da ópera do Brasil (e, alguns dizem, da
América Latina).
Mas sua ambição atual é clara: ver o teatro lotado, todas as vezes.
E está funcionando.

- Mahima Macchione é doutoranda do King's College London, onde trabalha com


os contextos histórico, político e cultural da ópera no Rio de Janeiro em meados
do século XIX. Possui também mestrado em estudos de ópera pela Oxford
Brookes e é articulista regular do Opera Now, Limelight Magazine, Opera
Today e Opera Wire.

https://www.naxosmusicology.com/opinion/listening-to-latin-america-
opera-the-south-american-way-the-case-of-brazil-and-gehad-hajar-s-
pioneering-festival/

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