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Palavras do querido Baddini :

“ Se Eu Pegar Covid-19, Por Favor, Me Deem Tubaína

Quando eu era criança, na década de 60 do século passado, adorava tubaína. Na verdade, eu


gostava mesmo era de Itubaína. Aquela da garrafa de vidro, rótulo branco, com o Monumento
do Ipiranga desenhado em azul, no alto impresso Primo Schincariol e Filhos. Itubaína era muito
doce, mais escura e menos gasosa do que as guaranás, e tinha gosto de tutti-frutti, seja lá o
que isso fosse. Ademais, a garrafa era grandona e permitia beber refrigerante até enjoar.

Naquela época, havia uma ditadura militar no país, mas nós, moleques, não tínhamos
consciência dos acontecimentos. Apesar disso, os governos militares deixaram marcas
profundas na minha geração, ainda que nem sempre seja fácil identifica-las:

Às vezes, justifico ir tomar banho para não me tornar um Sujismundo.

Outras vezes, me pego cantarolando canções da época:

“Eu te amo, meu Brasil, eu te amo,

Meu coração é verde-amarelo-branco azul anil.

Eu te amo, meu Brasil, eu te amo,

Ninguém segura a juventude do Brasil.”

ou

“Este é um país que vai pra frente

Ooooo

De uma gente amiga e tão contente

O o o o o”

E os bordões ideológicos, igualmente, nunca me abandonarão:

“Brasil: Ame-o ou Deixe-o”, ou ainda, “Brasil, País do Futuro”.

E saiba, que também frequentei aulas de “Educação Moral e Cívica”, “Organização Social e
Política do Brasil” e “Estudos de Problemas Brasileiros”. Desse modo, acabei doutrinado para
acreditar que este país tinha jeito, e o futuro seria risonho. Sim, acabei tornando-me positivista
como Benjamin Constant ou, quem sabe, o Jarbas Passarinho. E positivistas creem em ciência e
tecnologia igual religião. Tudo sempre embalado por aniversários com bolos cobertos de glacê
açucarado e bolinhas de confeito prateadas, regados a muita Itubaína.
Estudei medicina, treinei em residência médica, me especializei em doenças respiratórias, fiz
doutorado, pós-doutorado no exterior (rigorosamente falando dois pós-doutorados), carreira
acadêmica, ensino, pesquisa, assistência, formei recursos humanos, etc. Sempre procurei dar o
melhor de mim a tudo que me dediquei e, de repente, me descobri parte do grupo de risco da
pandemia. Mas, muito pior, foi começar a enfrentar dificuldades para compreender uma
época que não se encaixa naquilo que aprendi e ensinei ao longo de toda vida. Por isso, agora
me debato com questões irracionais.

Por que tanta paixão, polêmica e insensatez, no tocante a potenciais tratamentos para a
Covid-19? Quem trabalha com pesquisa clínica sabe que pode levar anos até se obter
respostas definitivas sobre a eficácia de tratamentos para qualquer doença. Além disso, o fato
de uma droga funcionar em testes de laboratório, ou em modelos animais, de maneira alguma
significa que ela funcionará eficazmente na vida real. Um exemplo disso é o próprio álcool. Nós
todos sabemos que ele é eficaz para matar o novo coronavirus nas superfícies de materiais,
mas não se preconiza que as pessoas fiquem embriagadas para tratar a Covid-19. Mas,
repentinamente, brotaram em todos os cantos do Brasil virologistas, epidemiologistas,
infectologistas, pneumologistas, intensivistas e imunologistas, que nunca sentaram em
nenhum banco de universidade, pontificando panaceias para a população. E, igualmente
condenável, médicos prescrevem coquetéis que mais parecem formulações alquímicas,
mesmo para pacientes com doença leve ou assintomática. Tudo isso, sem nenhuma evidência
científica robusta que suporte tais condutas.

Sim, vivemos uma pandemia, como foram a gripe espanhola e a peste negra. E deveríamos ter
aprendido alguma coisa com elas. Chá de folhas de goiaba e sais de quinino não diminuíram a
mortalidade pelo vírus influenza em 1918. Nem, tão pouco, beber vinagre e esfregar cebolas
no corpo trataram a peste. Infelizmente, em pleno século XXI estamos adotando
comportamentos parecidos. Talvez seja a necessidade de achar respostas, a vontade de fazer
alguma coisa, ou ainda, no fundo, no fundo, a obrigação de mitigar sentimentos de culpa da
nossa consciência. Compaixão, quem sabe, seja importante motivador desses
comportamentos. Mas nem sempre. Sabemos que atualmente não existem tratamentos
específicos para a Covid-19. O melhor é manter distanciamento social, e os casos graves
precisarão de cuidados médicos de qualidade, o que demanda leitos de unidade de terapia
intensiva, bons respiradores, equipamentos sofisticados, e profissionais treinados. Em um país
de Suíças e Biafras é impossível garantir tratamento adequado para todos. Como sempre, os
mais pobres arcarão com os maiores ônus em desassistência e número de mortes. Para ocultar
essa terrível realidade, vende-se a ideia de que a medicação A ou B trás proteção ou é efetiva.
Política rasteira transvestida em ciência.

A pressão por respostas rápidas faz com que estudos de baixa qualidade sejam divulgados
como verdades absolutas a partir de plataformas de preprints. Até The Lancet se envolveu em
saia-justa, após publicar artigo com dados duvidosos. Erros honestos cometidos pela pressão
para achar respostas, ou oportunistas tentando impor agendas pessoais? Aliás, a defesa de
agendas privadas é uma constante nesse momento de crise.

Por isso, por que não permitir, simplesmente, que a ciência e a medicina sigam seu ritmo
natural, sem interferências? Assim, aumentaremos as chances de alguma coisa dar certo.
Lamento informar-lhes, a ciência é criação humana e, por isso, igualmente falha. A ciência é
um processo, e nós apenas conhecemos fragmentos da realidade a cada passo. Portanto, não
será surpresa obtermos respostas confiáveis somente quando a pandemia estiver terminada. É
muita pretensão da Humanidade achar que um dia descobriremos toda a Verdade. Como
minúsculas poeiras cósmicas, devemos aproveitar esse momento terrível para reconhecer
nossa insignificância diante da infinitude do Universo. E por falar no Universo, esta também é
boa hora para lembrar Einstein quando disse: “Duas coisas são infinitas: o universo e a
estupidez humana”. Pode crer, ele disse realmente isso, não é fake-news.

Da janela do meu apartamento, observo pessoas andando na calçada sem máscaras e me


pergunto:

Por que o pseudo-ministro da saúde é militar, se tanques de guerra o vírus não vão matar?
Por que seu assistente é professor de inglês, se o vírus é chinês? Tentar ocultar dados
epidemiológicos no meio de uma pandemia faz lembrar enredo sem imaginação de novela
política de segunda classe. Em tempo, técnicos e acadêmicos rasguem os diplomas e evacuem
todo seu conhecimento. Para dirigir a saúde do país é mais útil ter curso de tiro.

É fato, o governo federal nega a pandemia e falha na sua condução. Mas, então por que
prefeitos e governadores reduzem o isolamento social em locais onde a mortalidade pela
doença não para de crescer? Será que isso vai dar certo?

Pode ser que essas dúvidas sejam infundadas e minhas ideias cem por cento equivocadas.
Afinal, seres humanos vivem errando. Eu mesmo errei ao votar no Bolsonaro em 2018. Mas é
triste constatar que estou no final da vida e, pelo menos para mim, o Brasil sempre foi e será
“o país do futuro”. Um futuro que nunca chegou, para um país perdido, que não sabe para
onde vai.

Desse modo, por favor, se eu estiver internado em alguma unidade de terapia intensiva com
insuficiência respiratória pela COVID-19, me sedem com tubaína. Sim, me deem doses tóxicas
de tubaína, até eu entrar em coma induzido. Daí, quem sabe, minha mente impregnada de
tutti-frutti possa voltar aos tempos felizes da infância, onde eu acreditava num futuro pessoal
e no do país. Uma época ingênua, em que eu escutava Jovem Guarda no radinho de pilha,
existiam biquínis de bolinha amarelinha, mas não se ouvia falar em terraplanistas.

E, para concluir, lembrem-se daquilo que os políticos nunca esquecem: mortos não votam.

José Baddini-Martinez

Professor de Pneumologia da EPM/UNIFESP

Professor Aposentado da FMRP-USP

Diretor Científico da SBPT”

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