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(C) 1980 - BENNY MANPIN

Publicado no Brasil pela Editora Monterrey


Série FBI Azul nº 1
Título original: “Chantagem e Corrupção”
380608
1
Assassinato Federal

O gabinete do senador Henrique Portela atravessava a


noite imerso na escuridão. E sempre fora assim. À uma hora
da madrugada, todos os corredores e saldas do Senado
estavam desertos e ninguém jamais imaginaria que
Henrique, praticamente reeleito pelo Estado de Minas
Gerais, precisasse trabalhar àquela hora. Entretanto, o
telefone começou a tocar. O som repetia-se em intervalos
marcados de três toques e cessava. O chamado foi
interrompido depois de soar pela quarta vez.
 Está tudo bem – disse uma voz soturna e desligou o
aparelho.
O vulto movia-se na escuridão, certo de que nada o
atrapalharia e, cautelosamente, ergueu o fone do aparelho e
desparafusou-o. Calçava um par de luvas para evitar deixar
marcas de digital. Instalou um diminuto microfone no bocal
do fone e discou.
 Está ouvido bem? – perguntou pigarreando.
 Aguarde – responderam do outro lado.
Imediatamente um gravador foi acionado.
O homem de luvas repetiu o número setenta e oito várias
vezes. Finalmente a voz do outro lado resmungou
solenemente:
 Perfeito. Pode desligar.
O estranho apertou as luvas contra os dedos e iniciou
uma pequena busca. Revirou os arquivos particulares do
senador e em pouco tempo juntou sobre a mesa dele alguns
documentos. Com uma câmara fotográfica acoplada a um
flash especial, tirou uma longa série de fotos. Um após o
outro, os papéis eram examinados e devolvidos na mesma
ordem para a pasta. Remexeu nas gavetas e começou outra
séria de fotos, e finalmente deu-se por satisfeito. Enfiou a
câmara no bolso da jaqueta marrom e saiu fechando
delicadamente a porta.
O homem de jaqueta chamava-se Miguel Campos e
trabalhava para o departamento da Receita Federal...
As largas avenidas de Brasília, desertas pelo rigoroso
inverno, e a cidade submersa pela névoa observaram Miguel
entrar num discreto Monza azul escuro e afastar-se
vagarosamente.
 Tudo certo? – perguntou o motorista.
 Vamos para o escritório. Tenho que entregar um filme
para a revelação – comentou Miguel.
 Sim senhor.
O prédio do departamento era um imenso cubo de vidro
negro, todo cercado por delicados pinheiros. Um foco de luz
iluminava o número do prédio e para chegar á sua garagem
dava-se uma volta ao quarteirão, entrando pelos fundos.
Não havia guardas sonolentos como os do Senado. Câmaras
de vídeo espalhadas pelas redondezas cumpriam
eficazmente sua missão vigilante.
A garagem do departamento parecia em festa, tal era o
número de carros e motoristas espalhados. O vozeio ecoava
pelas paredes lisas do estacionamento interno.
 Pode ir para casa – resmungou Miguel. – Vou
demorar.
O funcionário da Receita Federal saltou do carro e
entrou no elevador. Quando chegou ao décimo primeiro
andar, a porta do elevador abriu-se e, novamente, câmaras
de vídeo registraram sua presença.
Antônio Gonçalves aguardava-o.
 E então? – perguntou Gonçalves.
Não sei – respondeu Campos discando um número de
telefone interno do departamento.
 Alguma coisa interessante? – insistiu Gonçalves.
 Virgilio? – indagou Campos sem dar atenção a
Gonçalves. – Tenho um filme urgente para você. Revele-o e
copie. Vou esperar.
O funcionário da Receita Federal tirou o sobretudo e
acendeu um cigarro. Gonçalves o observava, sem perguntas.
 Amanhã conversaremos – disse Campos para o colega.
– Assim que o filme estiver pronto, vou para casa e verei o
que posso dizer-lhe. Meu relatório deverá estar pronto lá
pelo fim da tarde.
O rapaz do laboratório apareceu e apanhou o filme sob
número de ordem 78. Miguel procurou a pasta confidencial
que tinha sobre o senador Portela, abriu-a e ficou lendo,
silencioso e preocupado. Na verdade, mais desnorteado do
que preocupado.
 Até amanhã – despediu-se Gonçalves.
Assim que ele deixou a sala, Miguel esticou as pernas e
colocou os pés em cima da mesa, jogou a pasta para o lado,
deu um longo bocejo e cerrou os olhos. Em alguns minutos,
um ronco baixo e contínuo ficou a ecoar pela sala fria do
departamento.
Quando Virgílio voltou, quase uma hora depois da saída
de Gonçalves, Miguel Campos estava mergulhado em sono
pesado. O rapaz encostou o pesado envelope com mais de
vinte fotos na perna de Campos, o que de nada adiantou.
Chamou-o pelo nome e nada. Foi obrigado a dar um forte
cutucão. O homem abriu os olhos, assustado.
 As fotos, senhor – disse Virgílio timidamente.
Miguel levantou-se e pegou o envelope.
 Obrigado, Virgílio.
 Até amanhã, senhor Campos.
Até amanhã.
***
 Não faça barulho, ele está chegando. Já sabe o que
queremos!
 Certo – confirmou um homem alto e moreno,
enquanto apertava o silencioso de sua automática.
Quando Campos abriu a porta e entrou em casa,
lembrou-se de que havia esquecido a pasta confidencial
dentro do carro. Tirou o casaco enquanto acendia a luz da
sala. Cansado como estava, não pensou em guardar o
envelope com as fotos; jogou-o em cima do sofá e saiu para
apanhar a pasta.
 Feche essa porta! E vire-se lentamente – ordenou uma
voz atrás dele.
Um frio subiu pela espinha de Miguel e o agente
obedeceu sem hesitar.
 Passe as fotos para cá – continuou o assaltante.
 Como? – gaguejou Miguel sem entender o que estava
acontecendo. – Fotos?
 Vou contar até um – resmungou o homem, enquanto a
.38 entrava em cena, apontando direto para o estômago do
agente.
 Quem são vocês? – indagou Miguel.
 Batman e Robin, senhor Campos.
O agente jogou-se no chão e tentou arrastar-se para fora
da casa. O assaltante apertou o gatilho. Uma vez, para
conter a fuga do agente, e mais outra para liquidá-lo. O som
da arma parecia o de uma pancada surda sobre uma
almofada. Campos virou-se com o impacto e no seu rosto,
uma expressão de pavor estampou-se.
 Veja que envelope é esse! – ordenou a voz inalterada.
Em poucos segundos, o sangue do agente da Receita
Federal começou a penetrar no tapete da sala. Sua feição foi
transformando-se e empalidecendo. O horror foi substituído
por uma palidez macilenta e a boca entreaberta
movimentou-se. O braço esquerdo do agente contraiu-se
num espasmo e o corpo virou ainda outra vez como se
quisesse alcançar a porta.
O assaltante examinou o conteúdo do envelope e
grunhiu:
 Podemos ir...
A automática ainda foi acionada, disparando na direção
do corpo agonizante de Miguel Campos. A porta principal
foi cerrada silenciosamente.
Poucas horas depois, o dia amanheceu.
***
 Qual é o endereço, por favor?
 Rua Castelo Branco, 87. Venha imediatamente.
A faxineira de Miguel Campos tremia da cabeça aos pés.
Sentou-se no sofá e ficou observando por alguns instantes o
cadáver gelado de seu ex-patrão. Logo levantou-se
novamente e começou a passar aereamente um pano de pó
pelos móveis da sala.
A polícia não demorou, e as perguntas começaram.
 Eu venho aqui duas vezes por semana. Às segundas e
quintas. Nesses dias acordo o senhor Miguel e preparo o
café da manhã. Faço todos os trabalhos da casa. O senhor
sabe... Lavar a cozinha, louça, passo alguma roupa e... essas
coisas... ele era uma pessoa organizada, sem chegar a ser
um desses homens sistemáticos, cheios de detalhes e
bobagens.
 Sargento, venha aqui – pediu um dos policiais.
 Com licença, minha senhora.
 Sargento... O homem era agente da Receita Federal.
Miguel Campos de Souza, idade 44.
 Telefone para o diretor do departamento agora.
Localize-o. Acho melhor não deixarmos a imprensa saber
de nada. Invente uma história qualquer.
 Sim, senhor.
 Outra coisa: evacuem a frente da casa. Saia com os
carros como se nada tivesse acontecido. Rápido.
 E o diretor da Receita? – perguntou o policial.
 Procure-o na delegacia. Encontro você lá. Leve o meu
carro e mande a ambulância dentro de uma hora. Vou
acabar de conversar com a faxineira.
O policial saiu com os outros dois colegas, inclusive o
fotógrafo de perícia.
 Muito bem, vamos prosseguir – disse o sargento para a
assustada mulher.
 Ele era um homem bom, gostava de dar-me presentes
e até me ajudou a pagar o hospital para meu filho mais
velho. Ele ficou doente...
 Seu filho?
 É! Ele...
 Deixe isso para lá. A que horas chegou aqui?
 Às sete e meia. Um pouco mais cedo do que habitual;
aproveitei uma carona de meu marido.
 Há quanto tempo trabalha para o senhor Campos?
 Três anos, quase quatro.
 Era casado? Separado da mulher?
 Viúvo, senhor. E não tinha filhos.
 A senhora mexeu em alguma coisa?
 Não, senhor.
 Tem certeza? – insistiu o sargento olhando para o
corpo.
 Tenho.
 Muito bem. Escreva o seu endereço aqui. Nome
completo.
 Sim, senhor.
 Tome esse dinheiro e vá para casa. Será chamada
dentro de vinte e quatro horas para depor na delegacia. Pode
ir.
O tapete da sala havia endurecido, o sangue secara e em
torno de Miguel formara-se uma estranha mancha
avermelhada, contrastando com o tapete muito claro. O
sargento sentou-se e ficou a observar a sala, tomou nota de
algumas coisas e telefonou para a delegacia. Os policiais
ainda não haviam chegado. Levantou-se e chegou até a
janela. Não havia mais ninguém em frente da casa. Deu-se
por satisfeito.
O telefone tocou.
 Miguel? – indagou a voz do outro lado.
 Não. É o sargento Milton, 7o. Distrito Policial.
 Podia chamar o Miguel, por favor.
 Quem está falando?
 Sargento! É Estevão Dourado. Diretor do
Departamento de Investigações da Receita Federal. Chame-
o!
 Não pode ser. Lamento! Miguel Campos foi
assassinado pela madrugada.
 O quê? Miguel foi assassinado? Quando?
 Infelizmente. Ainda não sabemos a hora aproximada.
O senhor pode vir aqui, agora?
 Deixe a imprensa fora disso! Vou já para aí.
Alguns minutos depois chegava o senhor Dourado,
pálido e afobado. Quando deparou com o cadáver do seu
agente, mirou-o por alguns segundos e virou as costas.
Caminhou até a janela e de lá começou a fazer perguntas ao
sargento que nada podia dizer.
 O senhor é que poderia responder a algumas
perguntas. Havia motivos para que Miguel Campos viesse a
ser assassinado?
 Sem resposta, sargento.
 Como?
 Desejamos que o corpo vá para o legista. Essa será a
participação da polícia estadual neste caso. Não tenho mais
nada a dizer.
 Negativo, senhor Dourado.
 Não banque o cumpridor da lei, sargento. Miguel era
um agente da Receita Federal. Agradeço por ter sido eficaz
ao ponto de não ter deixado a imprensa intrometer-se neste
assunto. Isso será mencionado ao tenente de seu distrito
policial. Você agiu com astúcia. Além do mais, não faço a
menor idéia do motivo da morte de Miguel. Sei quase tanto
quanto você, sargento.
 Eu gostaria de dizer que...
 Não perca o seu tempo. Será que não fui o suficiente
claro?
 Muito bem. Vou aguardar o legista. A autópsia será
enviada para a Receita Federal. Quem ficará a cargo da
investigação.
 Hum... – resmungou displicente Dourado, virando as
costas para o policial. – ligue para a Polícia Federal e
mande chamar Júlio Pontes. O diretor, se é que lhe
interessa. E, por favor, nada mais de perguntas.
O sargento vacilou por alguns instantes, Dourado
aproximou-se da janela e ali ficou em silêncio. O policial
relutou, mas acabou ligando para a Polícia Federal.
2
Nas barbas da lei

O inspetor João Vítor viera de Belo Horizonte para a


sede da Polícia Federal em Brasília especialmente
recomendado e imaginando que lá as coisas seriam mais
movimentadas. Nisso ele estava certo. Brasília representava
um centro de decisões em todos os sentidos. O mais
estranho, talvez, passava a ser o ritmo especial e sigiloso
com que se desenvolviam todas as investigações. João
custou a compreender essa diferença.
Na verdade, se as investigações tornavam-se lentas, os
dados que a superintendência possuía armazenados em seus
computadores eram tão preciosos e vastos que, em poucos
segundos, obtinha-se informações mais complicadas, as
quais em Belo Horizonte, mesmo estando interligado os
sistemas, levariam dias e dias. Talvez essa fosse uma das
razões o levavam a sentir a lentidão das investigações. Era
um engano de João Vítor pensar assim. Ele confundia a
agitação de Belo Horizonte com a discreta eficiência de
Brasília.
 Não estamos conseguindo nada com o falsário, João 
exclamou o inspetor Branco.
Vítor estava perdido em outros pensamentos Quando
Branco entrou e sentou-se à sua frente.
 Não faz mal. Vamos deixa-lo de molho.
 Sob que acusação?  perguntou Branco.
 Esse sujeito está metido em altas esferas. O que estava
fazendo em Bogotá? Aonde arranjou dinheiro para ficar no
melhor hotel da cidade? Como conseguiu sair do país? E
além do mais, porque sua pena foi reduzida?
 Você tem razão, João. Mas. veja bem, o fato da pena
ter sido reduzida não nos diz respeito. Isso faz parte da
administração judiciária. Talvez um comportamento
exemplar, isso é possível. O que me intriga é de onde está
saindo o dinheiro para ele ficar indo e voltando de Bogotá
para o Rio.
 Se não podemos apertá-lo mais, vamos deixá-lo sob
vigilância dia e noite. Acho que não será tempo perdido. O
que você me diz?
 Não custa tentar. De qualquer maneira ele vai ficar
completamente frio de agora em diante. Se é conexão de
alguma organização, seja qual for, aos poucos será
desligado de qualquer atividade.
 Terá que arranjar dinheiro para viver. Vamos ver de
onde virá a grana, certo?
 Tenho a sensação de que não iremos longe atrás dele 
argumentou Branco.
 Isso é evidente. Mas eu faço questão de não deixá-lo
em paz.
 Nós não devíamos ter segurado o homem, Agora
teremos que esperar que cometa algum erro, o que acho
extremamente difícil. Você sabe quanto teria gastado,
aproximadamente, em menos de seis meses?
 Hum...  resmungou Vítor, passando um dedo na face,
num costume adquirido quando alguma coisa não lhe parece
bem.
 Dez mil reais! Apenas em viagens e despesas de
hotel...
 É o que digo. Vamos segurá-lo, ele tem que viver.
 Nós o condenamos, João. Esse cara vai sumir do
mapa.
 Droga!  praguejou o inspetor. Saiu de trás da mesa e
caminhou até o arquivo. Ficou lendo e relendo a ficha de
Gerson Bispo, o falsário, até que resmungou para Branco: 
Esse sujeito não está mais metido em falsificação. Tenho
quase certeza disso. O pessoal da Divisão de Narcóticos não
tem nada sobre ele, mas algo surgirá.
 Vamos esperar, João. Se apagarem o nosso falsário, é
porque a coisa pode ser maior do que pensamos.
 Ligue para o...
Nesse instante o telefone interno tocou. Branco atendeu
e passou o aparelho para o inspetor Vítor.
 João Vítor?  perguntou a voz no outro lado da linha.
 Sim. Quem está falando?
 É o assistente do diretor. Ele quer que se apresente
imediatamente no gabinete.
 Tem idéia do que se trata? indagou o inspetor
cautelosamente.
 Negativo  respondeu o assistente.
João Vítor desligou o aparelho e passou a pasta de
Gerson Bispo par a as mãos de Branco.
 Desde a minha chegada de Belo Horizonte, é a
primeira vez que sou chamado pelo diretor. O que acha
disso?
 Estão querendo aumentar o seu salário  comentou
Branco sorrindo.
 Eu imagino...  sussurrou o inspetor.
***
Não havia muita diferença entre o gabinete do diretor da
PF e o de um bem sucedido executivo. Na verdade, apesar
das medidas de segurança que cercavam o diretor, Júlio
Pontes, quem não soubesse que estava dentro das
instalações da Polícia Federal, confundiria aquele gabinete
com o escritório de um homem de negócios.
Apesar de trabalhar como inspetor há muitos anos, João
Vítor sentia-se intimidado por toda aquela ostentação.
O assistente levou-o até a secretária. Ficou na sala de
espera por quase meia hora, e finalmente foi solicitada sua
presença.
Ao lado da mesa do diretor, encontrava-se Estevão
Dourado, Júlio Pontes levantou-se educadamente quando
Vítor aproximou-se.
 Inspetor João Vítor?  perguntou rotineiramente.
 Sim, senhor  respondeu João com um sorriso
amarelado.
 Tenho as melhores recomendações sobre seu
desempenho. Sinto muito não tê-lo chamado anteriormente,
mas devo confessar que estou muito ocupado. Conhece o
diretor da Receita Federal?
 Muito prazer, João Vítor  disse o inspetor tentando
demonstrar o quanto era polido.
 Estevão Dourado  respondeu o outro a examiná-lo.
 Sente-se, Vítor. Fique à vontade.
Vítor não estava nada à vontade. E obedeceu à ordem do
superior.
 Estevão  resmungou Júlio Pontes,  vou narrar os
acontecimentos para o inspetor. Por favor, interrompa-me se
cometer algum engano.
O diretor da Receita Federal fez um sinal de anuência
com a cabeça e continuou em silêncio.
 Muito bem. Você conhecia Miguel Campos, inspetor?
 Miguel Campos? Acho que não, senhor.
 O que vou relatar é de absoluto sigilo. Altamente
confidencial. A sua prova de fogo em Brasília. Um caso
delicado e talvez muito perigoso. Miguel Campos
trabalhava como agente da Receita em casos especiais de
sonegação e investigações fiscais. Instalação de microfones
secretos, levantamento de documentos particulares... Enfim,
um trabalho altamente explosivo e não-constitucional. Estou
lhe falando nesses termos para que saiba com o que vai
lidar. Não vamos discutir se estamos agindo certo ou errado,
invadindo a vida privada dos cidadãos, mas a verdade é que
privacidade é um privilégio que perdemos ao nos tornar
homens públicos.
Estevão Dourado recostou-se na poltrona e acendeu um
fedorento charuto.
 Miguel Campos  prosseguiu o diretor um pouco
nauseado  foi assassinado pela madrugada, por volta das
três horas. Levou três tiros de 38. Estava investigando o
senador Henrique Portela, eleito por Minas. De acordo com
o senhor Dourado, há uma infiltração estrangeira na
operação. Ninguém, com exceção dele próprio, tinha
conhecimento da operação. Campos trabalhava nesse tipo
de coisas há cinco anos e com resultados excelentes, sabia
que o segredo era condição essencial para qualquer
investigação dessa natureza. E foi assassinado. Os
documentos que fotografou foram os do senador em
questão, é óbvio. Alguém sabia da operação. Roubou as
fotos e não se importou em liquidar o agente. Esse é o
número um quem matou e quem mandou matar? O número
dois é o mais incrível; os negativos sumiram do laboratórios
do departamento da Receita Federal! Enfim, a investigação
voltou à estaca zero.
 Posso dizer algumas coisas?  perguntou Estevão
soltando uma baforada de seu intragável charuto.
O inspetor Vítor virou-se ligeiramente para o
desagradável fumante e esperou.
 O microfone que Campos colocou no gabinete do
senador, no telefone, para ser exato, continua em
funcionamento perfeito. Por que? E uma brincadeira? Quem
acabou com Miguel e levou os negativos, obrigatoriamente
tinha conhecimento disso. Esse é o número três: talvez o
senador queira ou alguém  isso é importante , além do
senador, queira que o microfone continue lá.
 Uma denúncia do senador sobre o microfone seria
excelente manchete para as próximas eleições  comentou
sorrindo o inspetor.
 Não brinque, inspetor Vítor  disse Dourado
levantando a voz e mordendo o charuto.
 Você acha que estou brincando?  continuou sorrindo
o inspetor.
 Parece que sim  comentou o diretor.
 Estou acompanhando o raciocínio de vocês, mas
afinal, por que fui chamado? Para investigar? Estou
investigando!  respondeu o inspetor irritado.
 Certo, Vítor. Vá em frente  sugeriu Júlio Pontes.
 O senador poderá utilizar o microfone com melhor
proveito do que a Receita Federal. Basta deixá-lo onde está
e fazer uso do mesmo quando for necessário. Se há alguma
coisa contra ele, digamos assim, pode estar limpando a área
neste instante e deixando o microfone como arma de contra-
ataque. Os senhores não concordam comigo?
 Talvez  resmungou Estevão.
 Do ponto de vista político a sua análise é correta,
Vítor. Mas temos que prestar atenção ao crime que foi
cometido. Este é o número um. Se chegarmos ao senador,
ótimo. Senão, paciência. A Polícia Federal não pode se
confundir com a disputa eleitoral. Mas concordo com você.
 Posso continuar?  insistiu o agente.
 Pois não  assentiu polidamente Pontes.
 Vamos ligar um aparelho ao da Receita. É preciso
aproveitar essa possível fonte de informação. Quero todas
as fitas gravadas. A ficha de Campos e carta branca.
 Está de acordo, Dourado? — perguntou o diretor da
PF.
 Para que a ficha de Campos? Acho isso inútil. Quanto
à ligação de um segundo aparelho de vocês, não vejo
problema. Mas espero que vocês confessem que também se
aproveitaram da invasão de privacidade. Certo, Júlio?
 A política o preocupa muito?  perguntou o inspetor.
 Eu sou partidário, filiado ao mesmo partido do
senador, inspetor.
 Sou de Minas Gerais  comentou João Vítor sorrindo.
Dourado fez-se de desentendido, diminuiu o Vítor de
voz e após um breve silêncio e outra série de baforadas mal-
cheirosas, resolveu dar prosseguimento ao relato.
 A pasta confidencial do caso que Miguel investigava
foi encontrada no automóvel. Nela havia algumas deduções
e indicações dos caminhos que o caso iria tomar, segundo
Miguel, é claro. Parece que os assassinos não se
preocuparam em revistar o automóvel, ou, o que é mais
provável, sabiam exatamente o que queriam.
 Porque foi iniciada a investigação sobre o senador? 
indagou o inspetor Vítor.
 Esse caso foi mais uma iniciativa de Campos. O
departamento havia levantado uma série de declarações
suspeitas de contribuintes na área federal. A partir dessa
lista e outras investigações paralelas que são feitas
habitualmente por computador, Campos percebeu, o que
agora é claro para o departamento, como o sistema de
processamento de dados pode ser inteligentemente
manipulado. Quem está interessado em sonegar impostos
encontra esses obstáculos, aparentemente assustadores para
o contribuinte comum. Mas que também acabam sendo
ultrapassados por métodos tão sofisticados e equivalentes ao
dos computadores. São questões ligadas ao nosso próprio
sistema de coleta de dados. Na verdade, quando Campos
tomou a iniciativa de investigar o senador Henrique Portela,
eu pessoalmente o incentivei, O que pretendíamos era fazer
uma verificação detalhada de todo o sistema. Isso está
relatado na pasta em minúcias.
 Quais são os dados básicos, senhor Dourado?
 Leia o relatório de Campos, é provisório, mas pode ser
retomado. Com a diferença que Miguel foi assassinado e
não havia, aparentemente, razão para que as coisas
chegassem a esse ponto.
 Sugiro  interveio o diretor da PF  que o inspetor leia
a pasta o mais breve, possível. Assim que haja tirado suas
conclusões, nos reuniremos novamente.
O delegado Júlio Pontes abriu uma das gavetas de sua
mesa e retirou volumosa pasta com o número 78 que a
identificava dentro do departamento da Receita Federal.
Passou-a ao inspetor.
 Há muitas cópias de fichas de computador, isso não
tem importância para você, inspetor  afirmou Dourado 
Leia e se houver muitas dúvidas técnicas, poderei explicar-
lhe em pouco tempo. Não se preocupe.
 Quais as últimas pessoas que estiveram com Campos?
 indagou o inspetor.
 O rapaz do laboratório e... possivelmente, Antônio
Gonçalves. Nenhum tinha conhecimento da investigação de
Campos. Inclusive o pessoal da gravação na central de
informações, só conhecem o número do caso e nada mais.
Isso é uma norma, para quem está sendo investigado. O que
complica as coisas é não termos a menor idéia de como
houve infiltração.
 Eu não preciso dizer-lhe que cancele todos os seus
casos pendentes, inspetor  disse levantando-se o diretor.
 Sim, senhor. Gostaria de saber o endereço de Campos.
 Rua Castelo Branco, 87.  afirmou apagando o charuto
Estevão Dourado.
 Senhor Dourado, vou mandar colocar os dois últimos
homens que estiveram com Campos sob vigilância. Há
algum problema?
 Não me importo com seus métodos. Apenas gostaria
de ter esperanças quanto ao resultado final. Acredito que a
escolha do delegado Pontes tenha sido a melhor possível.
O inspetor Vítor colocou a pasta sob o braço e afastou-se
dizendo:
 Estarei em contato com os senhores.o mais breve
possível. Bom-dia.
 Boa sorte, Vítor  desejou-lhe sorrindo Júlio Pontes.
Estevão Dourado continuou com o olhar preocupado e
sem esconder a tremenda ansiedade, que o levava a temer
pelo destino da investigação. Observou o sorriso confiante
do diretor da PF e apanhou outro charuto.
O inspetor Vítor apressou-se em deixar o gabinete do
delegado e diretor Júlio Pontes.
3
Brincando com fogo

A procura de digitais por toda casa de Campos foi inútil.


Além das do próprio agente, apenas as digitais da faxineira
foram encontradas. O inspetor João Vítor farejou de longe
que ali nada encontraria. O assassinato de Campos fora um
serviço de profissionais; seria perda de tempo esperar que
algo surgisse naquele caminho
Vítor aproveitou o silêncio e sossego da casa deserta
para ler a pasta confidencial. Sublinhou os objetivos da
investigação; eram a repetição do que havia dito Dourado e
sentiu que uma enorme parede levantava-se a sua frente.
Cada direção que procurava tomar, denunciava
imediatamente que estava enganado. Durante mais de uma
hora ficou a ler o conteúdo da pasta. Tomou nota das
principais ligações políticas de Henrique Portela e apenas
uma coisa o deixou intrigado. O senador tinha participação
em uma empresa, cujo principal investimento era um
projeto gigantesco de reflorestamento na Colômbia.
Segundo os dados de Campos, ele tinha uma participação
declarada de três por cento, o que não era tão significativo,
mas não devia ser desprezado.
Continuou a leitura e acabou deparando com fotografias
do senador e políticos colombianos em frente de um
luxuoso hotel na capital do país. Por instantes lembrou-se
de Gerson Bispo, o falsário.
Na página seguinte a da foto, havia uma ilustração que
repetia os contornos de cada uma das pessoas na foto.
Seguiu a numeração respectiva a cada pessoa e descobriu
algo mais sólido. Anotações de Campos. O agente
sublinhara dois números. Referiam-se a Márcia Portela,
filha única do senador, e o secretário particular do político
Jaime Espátula.
O inspetor Vítor retirou as duas páginas da pasta e
prosseguiu a leitura, que de resto se mostrou enfadonha e
meramente técnica sobre os possíveis mecanismos de
sonegação que o senador republicano aplicava à receita
federal, O inspetor voltou à parte do projeto de
reflorestamento e anotou todos os seus principais
participantes, colombianos e brasileiros. Os computadores
da PF iam ajudar.
Vítor chegou até a janela, sacou seu telefone celular e
acionou a tecla de memória.
 Alô. Branco?
 Ele mesmo respondeu o colega.
 Sou eu. Vítor. Preste atenção. Tome nota destes
nomes. Quero tudo que possa encontrar sobre eles. Certo?
 Onde você está?
O inspetor leu a lista para Branco.
 Está entrando para a política, João?  perguntou
Branco.
 Não. A política é que está no meio do meu caminho.
Deixe o que encontrar em cima de minha mesa. Ponha um
confidencial nisso, certo?
 Sem problemas, chefe  disse ironicamente Branco.
João Vítor desligou o celular e voltou-se para o telefone
da casa que estava tocando, atendeu. Assim que pôs o
aparelho no ouvido e respondeu, o aparelho desligou. Vítor
não deu importância ao fato, mas quando a mesma coisa
aconteceu mais duas vezes e ninguém respondeu, o inspetor
começou a sentir que alguém queria incomodá-lo, a ele, ou
a quem estivesse na casa de Campos. Vítor colocou o fone
no gancho novamente, pegou a pasta e saiu. Quando ia
entrando no carro, lembrou-se do que deveria ser feito.
Voltou imediatamente. Respirou mais profundamente e
sentou-se ao lado do aparelho. Tinha um plano em mente
que não custava tentar.
O que suspeitava acabou acontecendo. O telefone tocou
novamente. Vítor pegou o aparelho e deixou-o fora do
gancho. Sacou seu celular e ligou para a PF.
 Chame o Rubens. É o inspetor Vítor quem está
falando.
Em poucos segundos, Rubens entrou na linha.
 Qual o problema, inspetor Vítor?
 Descubra rápido quem está ligando para...
 Qual é o número?
 Droga! Eu não sei, o endereço é Castelo Branco, 87. E
suficiente para você?
 Serve. De onde está falando?
 Do meu celular.
O inspetor levantou-se, deu alguns passos a esmo e
torceu para que conseguisse o que queria.
Passaram-se alguns minutos e Rubens Chamou.
 Tome nota: Planalto, 845  apartamento 36.
João Vítor voltou até o aparelho telefônico e devolveu o
fone ao gancho. A tal rua ficava a oito quadras de onde
estava. Correu até o carro.
Quando chegou ao endereço indicado era tarde demais.
 Como? Acabaram de sair?  perguntou o inspetor.
O zelador do edifício hesitou e somente resolveu dar
informações quando o emblema da PF foi enfiado a alguns
centímetros de seu rosto.
 Eram dois homens. Esse apartamento está sempre
vazio. De vez em quando, alguém aparece e fica um ou dois
dias. Depois, outras pessoas chegam. Não são os mesmos
nunca. Eu sou apenas um zelador. Não devo controlar a
vida pessoal de nenhum proprietário ou o que faz com o
apartamento. O senhor sabe...
 Já sei. – resmungou rispidamente o inspetor Vítor e
chamou Rubens outra vez pelo celular.
 E então, inspetor?
 Na mosca, Rubens. Quem eu procurava saiu para
passear, mas não faz mal. Quero saber tudo sobre o
apartamento, certo? E peça a alguém para vigiar o local.
Estou na portaria e vou lá em cima agora.
 O endereço é Planalto, 845 - apartamento 36. Certo?
 Exato. Obrigado, Rubens. Se fosse em Belo Horizonte,
ainda estaria esperando sua resposta.
 Sempre às ordens, inspetor.
Apesar da relutância do zelador em deixar Vítor invadir
o apartamento sem um mandato judicial, Vítor acabou
conseguindo convence-lo com uma nota de cinqüenta reais.
Os ossos do oficio, como praguejava Cleber ao relatar
algum caso na sua querida Belo Horizonte.
O inspetor quase caiu para trás quando entrou no
apartamento.
 Tem certeza de que este é o 36?  perguntou olhando
para o zelador.
O homem não se dignou a responder e perguntou:
 Quer descer?
O maldito apartamento estava completamente deserto.
Nada havia dentro dele. Absolutamente nada, nem um
tapete ou uma cadeira. E pior que isso. Nem um fantasma
ou sombra de telefone...
 Você não me disse que dois homens haviam saído
daqui?
 Sim, senhor. Mas este edifício tem oitenta e seis
apartamentos. Posso ter-me enganado. E possível.
Vítor enfiou as mãos nos bolsos e deu um passeio pelo
apartamento. Os quartos completamente intocados, os
banheiros empoeirados. Nenhum sinal de vida. Quem
poderia esperar por essa?
 É... Estão brincando comigo...  comentou abatido
Vítor e caminhou lentamente em direção a porta.
 Boa-tarde, inspetor  despediu-se o zelador, quase
sorrindo de satisfação.
***
Todos têm ficha limpa, é claro. Você esperava o
contrário?  indagou Branco.
João Vítor não respondeu e sentou-se abatido.
 Qual é o telefone interno de Rubens?  perguntou o
inspetor.
 Ramal 17 ou 18. Mas acho que ele saiu, Vítor.
 Não faz mal, vou tentar.
Rubens acabara de voltar e Vítor fez seu pequeno
relatório.
 O apartamento está sob a guarda da Fazenda Pública.
Pertencia a um militar de reserva, que morreu há um ano e
meio. Não tinha família. A Fazenda está guardando a
propriedade até que apareça alguém. Um primo, sei lá...
Nunca houve locatários.
 Nem telefone, Rubens.
 Como é?  perguntou espantado Rubens.
 Exatamente. Esse é um telefone fantasma. Como é o
nome do militar ou seja lá quem for?
 Francisco Rimsky. Filho de imigrantes russos que já
faleceram há muitos anos...
 Está bem, Rubens. Obrigado.
O inspetor Branco ficou a observar o desnorteado
colega.
 Qual é o caso, Vítor?  perguntou Branco.
 Não posso comentar, pelo menos por enquanto. O
diretor pediu sigilo. Mas bem que gostaria de conversar
com alguém. Estou meio confuso.
 Esse negócio de confidências é um inferno. Eu vim de
São Paulo há cinco anos e até hoje não me acostumo com
esse tipo de coisa. Afinal, se não cooperarmos uns com os
outros, como iremos em frente?
 Vou conversar com o delegado Pontes sobre isso.
Assim que for possível, é claro. Também não quero bancar
o inspetor que foge às normas do serviço. Mas essa é
mesmo uma droga...
 Nosso homem já está nas ruas — disse Branco
referindo-se ao falsário Gerson Bispo.
 Olho nele, Branco. Olho nele.
 É... Vamos ver  completou desanimado o inspetor.
 Procure o endereço de...  João Vítor deu uma olhada
nas folhas que tirara do relatório sobre o senador Portela. 
O endereço de Márcia Portela e Jaime Espátula.
 Esse Jaime Espátula é secretário do senador Portela. E,
é claro, vive em Brasília. Não tenho o endereço dele, mas
posso verificar. E Márcia Portela é filha única do senador,
estudante de administração. Mora na sua cidade: Belo
Horizonte. Tem um apartamento no bairro Funcionários,
certo? O endereço é...
 Está bem. Quando tiver os dois endereços você me dá.
Não pretendo ir a Belo Horizonte por estes dias. Tenho
muito que fazer por aqui mesmo.
 O Rubens pode arranjar o endereço do secretário.
 Certo. Vou sair novamente. Amanhã nós conversamos.
 Outra conversa confidencial, inspetor?  perguntou
Branco.
 Sei lá  resmungou Vítor guardando a pasta de
Campos dentro do arquivo.
João Vítor foi direto para o departamento da Receita
Federal. Quando estacionou o carro do outro lado da rua,
seu estômago deu francos sinais de rebeldia e começou a
roncar violentamente.
O inspetor olhou em volta à procura de algum lugar
onde pudesse comer qualquer coisa que acalmasse o corpo
e. o espírito.
4
Todo cuidado é pouco

 Assassinado? — perguntou com a voz quase


inalterável Antônio Gonçalves.
 Às três horas da madrugada, esse é o cálculo do legista
 resmungou João Vítor.
 Ninguém me disse nada, eu pensei que Miguel
estivesse em casa trabalhando. Ele me disse, antes de sair,
que traria um relatório à tarde. Isso é...
 Desconcertante?  sugeriu o inspetor.
 No mínimo, inspetor. Um homem com a experiência
de Miguel sabia o que fazer.
 O senhor foi a última pessoa a vê-lo?
 Acredito que não. Virgilio deve ter sido o último, pelo
menos aqui no departamento.
 Virgilio?
 Exato, O laboratorista da noite. Deve chegar daqui há
pouco. Que horas são?
 Cinco e meia. Não se preocupe com ele. Sobre o que
conversaram, senhor Gonçalves?
 Praticamente nada. Miguel não era de muita conversa,
principalmente quando estava investigando algum caso.
Tinha uma espécie de carisma, fazia questão de criar um
clima de mistério em torno de si mesmo.
 Como assim?
 Fazia de investigações simples, casos complicados e
muito importantes. Era um técnico; entretanto tentava
convencer os colegas que talvez fosse a reencarnação de
Sherlock Ho1mes... Mas, fora isso, era muito competente.
Tanto que, nos últimos meses, vivia em contato direto com
Dourado.
 O diretor da Receita Federal...
 Exato. Esse caso que investigava, por exemplo,
ninguém no departamento sabia do que se tratava. E agora,
com a morte dele, quem, além do próprio diretor, saberá o
que fazer?
 A PF tentará esclarecer o que aconteceu.
 Veremos  resmungou ironicamente Gonçalves.
 O seu endereço, Gonçalves?
 Avenida Getúlio Vargas, 187  apartamento 29. Fica a
algumas quadras daqui.
 Está bem. Muito obrigado.
 Pode encontrar Virgilio no oitavo andar, O laboratório
fica lá.
O inspetor Vítor acenou com a cabeça e dirigiu-se para o
elevador. Uma coisa ficara da conversa com Gonçalves.
Virgilio devia ter sido o último a estar com Campos, pelo
menos aqui no departamento.
João Vítor achou aquela insinuação muito ousada e
perspicaz para quem mal acabara de tomar conhecimento de
um assassinato. Talvez o Sherlock fosse o próprio
Gonçalves. De qualquer modo, qualquer que fossem as
intenções dele, uma coisa havia conseguido: pusera mais
uma pedra no caminho do inspetor. Como Vítor iria
descobrir se Campos não fora direto para casa? Voltou até a
sala de Gonçalves.
 A que horas você deixou Campos?  perguntou o
inspetor com um bloco nas mãos.
 O quê?  respondeu surpreso Gonçalves.
 A que horas deixou Miguel Campos?
 Deviam ser.., duas horas ou quase isso. Lembro-me
que cheguei em casa às duas e pouco. Minha mulher estava
acordada e perguntou-me as horas. Daqui até minha casa
são uns cinco minutos...
 Mais uma vez, obrigado.
Vítor tomou nota no caderninho e foi para o saguão. As
câmaras de circuito interno de televisão vigiavam-no
permanentemente. O inspetor parou de costas para uma
delas e ficou de frente para outra. Quando a descobriu o
elevador já havia chegado. O ascensorista sorriu
amavelmente.
 Oitavo andar  resmungou mal humorado o inspetor.
Virgílio, o rapaz do laboratório, entrava no trabalho às
seis horas da tarde, Eram pouco menos que seis quando o
inspetor sentou-se no saguão próximo a enorme área que
ocupava o departamento fotográfico da Receita Federal. Um
departamento fotográfico de fazer inveja a qualquer jornal
da cidade, inclusive o Jornal do Brasília.
À medida que o tempo passava, o pessoal que trabalhava
durante o dia ia saindo e aos poucos os ruídos iam
diminuindo. O inspetor resolveu dar uma olhada no relógio;
logo nada mais ecoava no silêncio do saguão. E um guarda
caminhou cm sua direção.
Eram seis horas e quarenta e cinco minutos.
 Estou esperando um rapaz chamado Virgílio.  disse
Vítor para o guarda.
 Desculpe-me, mas terá que aguardar lá no térreo.
O inspetor mostrou o distintivo da PF para o guarda.
Apanhou seu bloco com anotações.
 Qual é o horário de Virgílio?
 Seis horas, inspetor.
 Costuma atrasar-se?
 Não, senhor. É contra as normas do departamento. Sou
responsável pela segurança desta área há seis meses,
inspetor. Ë a primeira vez que Virgílio não chega
pontualmente. Talvez esteja doente...
 Hum... Diga-me uma coisa: notou algo de anormal no
laboratório na madrugada de hoje?
 Nada de anormal, inspetor. Ou melhor, apenas uma
coisa que não costuma acontecer. Não posso chamar isso de
anormal, mas enfim... O agente Campos esteve aqui
procurando Virgílio às... Espere um momento.
Vítor seguiu-o.
 Às duas e quarenta e cinco. Saiu com Virgílio às duas
e cinqüenta. O rapaz do laboratório voltou sozinho às três e
cinco. Depois não houve movimento algum até às seis,
quando Virgílio foi para casa.
 Interessante. E antes disso, guarda?
 Houve um telefonema de Campos para Virgílio à...
uma e cinqüenta, inspetor. O laboratorista saiu depois do
telefonema e voltou logo. Desceu outra vez com um
envelope às duas e trinta e voltou.
 Aí então, chegou Campos...
 As duas e quarenta e cinco, inspetor.
 O agente saiu com alguma coisa nas mãos?
 Sim, senhor. O mesmo envelope que Virgílio levara
para ele poucos minutos antes. Foi isso que aconteceu. Acha
isso anormal, inspetor?
 Não, absolutamente normal  sorriu Vítor.
 O senhor vai esperar Virgílio, inspetor?
 Faça o seguinte: assim que o laboratorista chegar,
telefone para esse número, 9134-0778. Está bem?
 Sim, senhor.
 Como posso comunicar-me com você?
 É só chamar o segurança Haroldo...
 Certo. Telefono mais tarde, se for necessário.
João Vítor sentiu que finalmente algo mais interessante e
sólido surgia a sua frente, O atraso de Virgílio seria
eventual?
Na portaria do departamento da Receita Federal, o
inspetor encontrou o endereço da casa do rapaz. Não
hesitou em ir procurá-lo.
O edifício onde morava ficava nas vizinhanças do
apartamento fantasma que visitara à tarde. Para um simples
laboratorista  pensou Vítor , até que Virgílio não se
escondia mal. Muito pelo contrário, O prédio guardava uma
imponência e elegância típicas dos anos sessenta, à época
da inauguração da Capital Federal, até o zelador parecia ter
nascido ou brotado no próprio local. Seu comportamento e
maneiras educadas levaram o inspetor a sentir-se fora do
tempo. E aos poucos, mergulhar na investigação.
Os delicados lustres da portaria toda em mármore âmbar,
o grosso tapete verde claro, os pequenos detalhes artísticos
diferentes da moderna arquitetura, a suave brisa que soprava
por tudo aquilo, levaram o inspetor João Vítor ao coração
de um prédio elegante da burguesia de décadas atrás. Na
verdade  refletiu Vítor , depois do cubo asséptico da
Receita Federal, um prédio daqueles passava a ser como
uma ducha morna e acolhedora. Parecia, na verdade, uma
construção deslocada naquele cenário todo.
 O jovem Virgílio?  indagou o zelador inclinando-se
até O agente.
O inspetor afrouxou o nó da gravata, encostou-se ao
balcão e ficou a observar o impávido senhor com suas
fontes grisalhas e altamente respeitáveis. Vítor apenas
confirmou com um aceno a indagação do outro.
 Um momento, por favor.
―Esse sujeito deve atender a todas as pessoas da mesma
forma  pensou Vítor , desde um mendigo a um
embaixador. Que raridade.‖
Movendo-se lentamente, o idoso senhor aproximou-se
do interfone. Falou durante alguns instantes sem que Vítor
pudesse ouvir; finalmente, virou-se para o inspetor e
perguntou:
 Deseja falar com a senhora Durval?
 Sim  respondeu Vítor automaticamente.
O porteiro ainda trocou algumas palavras com a pessoa
do outro lado da linha.
 Pode subir, senhor.
O inspetor entrou no elevador. À medida que ia sendo
levado, podia ver através das portas maciças e suas grades
douradas, os enormes e atapetados corredores que se abriam
a seus olhos a cada andar que passava. Quando o elevador
parou. Vítor descobriu que estava fazendo uma espécie de
viagem no tempo. Não se surpreenderia se diáfanas
senhoritas desfilassem para ele com sedas negras e lindos
chapéus.
O apartamento da senhora Durval era o 62.
A campainha tocou sem que o inspetor sequer a ouvisse.
Uma mulher de meia-idade num discreto e sensual
roupão azul escuro abriu a porta.
 Senhora Durval?  hesitou o inspetor.
 Entre, por favor.
O convite direto e informal agiu ao contrário em Vítor.
A mulher nem ao menos respondera à pergunta e convidara-
o a entrar como se não fosse necessário responder.
Caminhou à frente do inspetor, passou por duas salas
finamente mobiliadas e chegou à copa. Na mesa havia um
pequeno lanche. Nada de café. Chá. E pelo aroma,
delicioso.
 Gosta de chá?  perguntou a mulher ao sentar-se.
Vítor continuou de pé. meio fora do ar.
 Sente-se, por favor  disse ela empregando um tom de
quem não está acostumada a ser contrariada.
 Que aroma, esse chá...
 Oh! Desculpe-me. . . Seria impossível tomar chá sem
uma xícara, não é verdade? Senhor...?
 Inspetor João Vítor da Polícia Federal, senhora.
 Por favor, não me chame de senhora. É horrível, não
acha? E um pouco agressivo também, não é? Faz-me
parecer muito mais velha do que realmente sou.
 Como?
 Senhora isso, senhora aquilo. Por favor, fique à
vontade, inspetor.
Vítor ficou completamente inebriado quando a mulher
levantou-se, caminhou até o armário e apanhou outra xícara.
O roupão caía em seu corpo tão naturalmente sensual e
delicado. Tão inatingível. Vítor teve vontade de gritar e sair
correndo dali.
 Eu sou Virgínia Durval, inspetor. – disse ela diante do
mutismo dele.
 Claro!  respondeu o inspetor confuso.
 Açúcar ou adoçante, inspetor?
Vítor imaginou como aquela elegante mulher poderia
apreciar a efusão.
 Prefiro natural.
 Graças a Deus, inspetor. Tomar esse chá adoçado seria
uma leviandade, não pensa assim?
 Evidentemente, Virgínia.
 O que deseja, senhor Vítor?  perguntou sorrindo a
mulher.
O agente começou a sentir-se mais relaxado. Não sabia
se era o chá, mas achou que estava meio nas nuvens.
Mostrou os dentes a ela como se tivesse marfim atrás dos
lábios.
 O rapaz, Virgílio? Ele é laboratorista noturno no
departamento...
 Virgílio é meu sobrinho, inspetor.
 Ele foi trabalhar?
 Não veio dormir em casa. Se foi trabalhar...
 Ele entra às seis e até às sete não havia aparecido.
 Qual é o problema, inspetor? Seja direto, por favor.
 Eu não sei qual é o problema, Virgínia. E ainda não
desconfio. Precisava conversar com Virgílio e vim até aqui.
Essa é a história.
 Conversar sobre o quê?
 Bem...  resmungou Vítor e pigarreou um pouco
teatral.  Um agente da Receita foi assassinado de
madrugada. Virgílio foi o último a estar com essa pessoa.
Seu nome é Miguel Campos. Estou encarregado das
investigações. Essa é a história.
 Ainda engatinhando?  perguntou Virgínia encarando
O agente.
 Estou começando a andar, se quer saber.
 Isso é bom. Andar é muito bom. Virgílio... 
continuou Virgínia naturalmente  vem tentando ser um
artista. Perdeu os pais há três anos e veio para cá a meu
convite. Sua mãe era minha irmã mais velha. Virgílio esta
com vinte e cinco anos. Ela era quatro anos mais velha do
que eu. Tinha trinta e nove anos quando faleceu num
estúpido desastre de carro no interior do Rio. O marido
estava ao volante.
 Desculpe perguntar, mas... O rapaz trabalha por
necessidade?
 Claro, inspetor. Quem não trabalha por necessidade? 
respondeu Virgínia, num tom, demonstrando um certo
desapontamento pela pergunta.
O agente tentou consertar, mas foi impossível.
 O senhor imagina que sou uma pessoa muito rica, que
vivo isolada e pratico caridade com o desvalido sobrinho.
Não é assim?
 Peço desculpas, Virgínia. Eu não quis dizer isso e nem
acho que se fosse assim haveria razões morais para censurá-
la. Cada um vive como pode.
 Tome seu chá, inspetor. Saboreie.
 Gostaria que me avisasse quando Virgílio aparecer.
Ele costuma não dormir em casa?
 Muito raramente. Ele tem liberdade aqui.
Vítor sorriu e ficou a contemplar a beleza de Virginia,
uma beleza completa, natural, sem exageros. Elegante sem a
menor afetação, uma raridade como o porteiro.
 Confesso que foi um prazer tomar este delicioso chá
em sua soberba companhia. Virgínia.
 Somos da mesma geração, inspetor. E apreciamos um
bom chá. Não é um mau começo.
 Claro. Foi o melhor que me aconteceu nesta cidade.
 Você não é daqui?
 Sou de Belo Horizonte.
 Isso também é bom. Mineiros têm fama de trabalhar
em silêncio. Não é assim que se diz?
 É sim. Bem, acho que devo ir. Se importaria se a
procurasse outra vez? Talvez possa ajudar-me. Conhece o
senador Henrique Portela?
 Portela? São tantos senadores e deputados, não é?
João Vítor levantou-se sem esperar qualquer resposta e
caminhou em direção à saída. Virgínia passou a sua frente e
foi abrindo firmemente as portas que haviam atravessado.
Vítor hesitou ao sair, virou-se um pouco tímido e sorriu
para a mulher.
 Acho que já ouvi esse nome. Não pelos jornais, é
claro. Mas em casa. Portela...?
 Fale com Virgilio. E, por favor, qual o seu telefone?
Ela informou o número que ele teve o cuidado de anotar
em sua caderneta.
Está bem, obrigado. Importa-se que telefone se for
necessário?
Virginia Durval limitou-se a sorrir levemente e
completar:
 Avisarei o meu sobrinho que um inspetor da Polícia
Federal esteve aqui.
Vítor saiu agradecendo e sem despedir-se, meio
atabalhoado e morrendo de vontade de chegar em casa.
Tomar um bom banho e descansar.
Havia sido um dia e tanto.
E aquela tia de Virgilio! Que bênção para os olhos...
5
Acima de quaisquer suspeita

A Getúlio Vargas em Belo Horizonte estava semi


deserta quando Márcia Portela chegou em casa. Fora ao
cinema com o secretário de seu pai, Jaime Espátula. Os dois
conversavam animadamente e subindo o elevador beijaram-
se demoradamente. Não que o senador aprovasse aquela
ligação entre a filha e o secretário, mas, de qualquer forma,
esperava coisa melhor para a senhorita Portela. Jaime não
era mau sujeito, apenas andava rápido demais e com o
costume de não olhar para trás.
 Você tem mesmo que voltar para Brasília amanhã?
O secretário do senador sorriu e encolheu es ombros.
 Se pudesse ficar, não largaria você, Márcia. E correria
o risco de que enjoasse de mim, não é?
 Quem sabe... Márcia abriu a porta do apartamento e
procurou lembrar-se se as luzes estavam acesas quando
saíra. Ela não tinha esse costume. Jaime não deu
importância ao fato e deitou-se no sofá, tirando logo os
sapatos.
 Venha cá, boneca — sussurrou ironicamente o
secretário.
 Ahn? O que você disse?
 Hei! Acorde!
 Gozado... Não me lembro de ter deixado as luzes
acesas...
 Bobagem. E se deixou, qual é o problema?
Márcia retirou-se da sala sem responder e foi até o
quarto.
 Jaime! Venha aqui, por favor suplicou com a voz
apertada e fina demais.
Em cima da cama havia um envelope.
 Você deixou isto aí?  indagou Márcia nervosa.
 O quê? Esse envelope? Eu?
 Responda sem rodeios.
Está maluca? Nem sei que envelope é esse...
 Veja o que é, Jaime. Por favor.
Jaime Espátula sentou-se calmamente na cama e abriu.
Uma série de fotos foram surgindo à sua frente.
Inicialmente, sem compreender do que se tratava, o
secretário passou os olhos sem atenção. A filha do senador
tremia um pouco e saiu do quarto. O rapaz quis chamá-la
mas preferiu continuar tirando as fotos do envelope. À
medida que a coisa começou a intrigá-lo, tudo ficou claro.
O rosto dele tornou-se pálido e um gosto amargo invadiu
sua boca. As fotos revelavam todas as remessas do senador
para a Suíça e Turquia através da Colômbia. Centenas de
milhares de dólares.
 Meu Deus  balbuciou Jaime. Passou a mão pela testa,
procurou mais e encontrou um pequeno bilhete dizendo:
Essa será a plataforma de sua campanha para a reeleição?
Márcia retornou ao quarto com um copo de uísque na
mão.
 Do que se trata?
 Preciso ir para Brasília, imediatamente. Algo vai mal.
 Como algo vai mal? Que fotografias são essas?
 São os documentos particulares do senador.
 Que documentos?
 Remessas nada lícitas de dinheiro para o exterior.
 Como assim? Não estou entendendo. Meu pai...
 Chega de perguntas. Preciso examinar isso com calma.
 Por favor  suplicou Márcia.
 Chega! Isto é uma bomba relógio e tem que ser
desarmada. Agora fique quietinha, está bem?
Márcia Portela saiu batendo a porta. O secretário virou
as fotos e começou a examiná-las uma por uma. No verso
de todas estava o carimbo de ordem de serviço de
investigações especiais do departamento da Receita Federal,
O pensamento de Jaime foi direto para Estevão Dourado.
Será que ele estava atrás disso?
Uma por uma as fotos revelavam as ligações do senador
em sua campanha. Ligações nada recomendáveis que se
misturavam a ilustres ladrões oficializados.
Enfim, a política a pleno vapor.
O secretário parou para refletir. Afinal, por que a Receita
Federal mandaria o envelope para Márcia? Haveria alguém
trabalhando para fora, dentro da Receita? Ou algum partido
de oposição queria afastar o senador? Se Dourado estivesse
por detrás uso, estaria se arriscando muito. Uma manobra
arriscada demais.
 Márcia!  gritou o secretário excitado. Ela apareceu
abrindo bruscamente a porta e quando Jaime ia dirigir-lhe a
palavra, cortou-o rispidamente.
 Saia daqui. Saia desta casa! Você, o senador, o
dinheiro! Saiam todos!
 Fique calma. Você precisa telefonar para seu pai. Por
favor!
 Se eu puser as mãos no telefone, ouça bem, ligarei
para a polícia!
 Não seja patética e tão ingênua.
 Vá pro inferno, senhor secretário!
 Certo! Talvez seja mais seguro ligar da rua. Você tem
razão. É preciso dar importância à nossa segurança,
principalmente agora.
 Cale essa boca e desapareça da minha frente. Leve
essas malditas fotos! Saia do meu quarto. Já!
O secretário devolveu lentamente as fotos para o
envelope e colocou o bilhete no bolso.
 Telefono amanhã à noite, está bem?
 Suma da minha vida! Suma, entendeu?
 Sei  respondeu Jaime sarcasticamente.
Ele calçou novamente os sapatos e saiu. Ia procurar um
hotel e resolveu deixar a idéia de telefonemas para o
senador Portela de lado. Aquele caso exigia uma conversa
pessoal e urgente com o senador. Afinal, estavam as
vésperas das campanhas eleitorais. E Jaime não tinha a
menor intenção de afundar com Portela. Além disso, sem
perder o sangue-frio, pensou o secretário: seria
recomendável tirar diversas cópias daquelas fotos.
Jaime Espátula sorriu para si mesmo caminhando pela
Avenida Getúlio Vargas.
***
Bem que o inspetor Vítor, cansado como se sentia,
merecia o que sua mãe costumava chamar de sono dos
justos. Entretanto, isso ia se tornando impossível e Vítor
teria que aguardar pacientemente, embora o cansaço o
vencesse,
O inspetor ligou para o segurança Haroldo muito depois
das onze. Virgílio não aparecera. João Vítor pensou em
ligar para Virginia, mas algo lhe disse para ir devagar e
deixar tudo como estava. O que já não era pouco. Tudo o
que recolhera durante o dia formava um imenso mosaico
com informações e acontecimentos que de alguma maneira
deviam ter alguma relação. Ele não conseguia perceber
ainda por onde seguir. De uma coisa porém estava certo:
Virgílio passava a ser a peça mais importante da
investigação. E a morte de Miguel Campos já não era tão
intrigante quanto antes. Parecia óbvio  segundo o inspetor
 que o agente não tinha necessidade de voltar ao
laboratório. Se o rapaz já havia levado as ampliações por
que voltara até lá? Ou os negativos estariam com o próprio
Virgílio?
O que protegia Virgílio das incursões mentais do
inspetor era, evidentemente, a tia do rapaz. A imagem da
mulher não saía da cabeça de João Vítor. Se ele não dormia,
a senhora Durval tinha grande parte de culpa nisso. Não
sabia nada dela. Seria viúva? Divorciada? Teria alguém na
sua vida?
Mas o sono acabou vencendo as ilusões do inspetor...
***
No dia seguinte, o relógio despertou o inspetor às sete
horas. Ele se arrancou da cama como um zumbi infeliz, a
barba por fazer e uma incômoda dar nas costas. Levantou-se
e caiu no sofá da sala por alguns minutos. O que o acordou
definitivamente foi o telefone.
 Alô!
 Vítor?
 É! Pode ir falando.
 Virginia Durval.
O inspetor passou a mão pelos cabelos desarrumados
como se ela estivesse à sua frente e ajeitou-se no sofá.
Estava acordado agora.
 Está me ouvindo, inspetor? Recebi um telefonema de
Virgílio há cinco minutos. Ele está bem. Disse-me que vai
ficar sumido por uns tempos. Não disse mais nada.
 Onde está?  perguntou o inspetor.
 Estou em casa, inspetor  respondeu Virgínia.
 Não. Seu sobrinho.
 Não quis me dizer. Ele está muito assustado, inspetor.
 Eu preciso falar com ele.
 Virgilio acha que o senhor também está correndo
perigo de vida.
 Disse a ele que o estou procurando?  indagou João
Vítor.
 Disse. Mas ele desligou. Apesar de tudo, me pareceu
estar bem.
 Bem? Em termos, Virgínia. Em termos.
 Bom-dia, inspetor.
 Alô. Alô!  berrou o inspetor.
Vítor recostou-se no sofá, um pouco apático e
profundamente irritado. Bom-dia, inspetor.
Levantou-se, a superintendência da PF estava a sua
espera.
***
Jaime Espátula pediu à telefonista do hotel que
localizasse o senador em Brasília e partiu para o aeroporto
da Pampulha. Se tudo corresse normalmente, às nove da
manhã estaria na capital.
Henrique Portela achou um pouco estranho que uma
telefonista de hotel desse o recado do secretário. Havia um
ar de mistério e urgência naquilo que não o agradou.
Sabia que o secretário era eficiente, mas às vezes
tornava-se eficiente demais. Esperto demais. O recado o
deixou tão inquieto, que preferiu ausentar-se da sessão do
Senado e aguardar a chegada de Jaime.
O secretário teve a presença de espírito suficiente para
tirar algumas cópias das fotos no aeroporto de Brasília.
Abrir uma caixa postal particular e guardar as cópias.
Chegou ao requinte de fotocopiar o bilhete.
Portela esperava ansioso no gabinete do Senado.
Às nove e trinta da manhã, secretário e senador estavam
frente a frente.
 Que idéia essa de mandar uma telefonista para
localizar-me, Jaime?
 Era necessário, senhor Portela.
Jaime passou o envelope para as mãos do senador e
acendeu um cigarro. Enquanto Henrique Portela examinava
o conteúdo do envelope, o secretário ficou a dar voltas pelo
gabinete, visivelmente agitado.
 Sente-se. Não gosto de conversar com ninguém que
me rodeia.
Muito tempo se passou sem que o senador dissesse uma
só palavra.
 As fotos saíram da Receita Federal, senhor Portela 
observou Jaime com os olhos brilhando.
 Pelo menos o carimbo está aqui, não é?
 E então?
 Este bilhete aqui é bem específico, Jaime. Certo?
 Quem está por detrás disso? Alguém de algum partido
de esquerda? A própria Receita?
 Talvez nem uma coisa nem outra. Estevão Dourado
está cansado de conhecer minhas ligações. As remessas
ilícitas, bem... Isso está me cheirando mal. Muito mal. Se
querem me derrubar, pode estar certo de que muita gente
virá comigo. Você, inclusive, Jaime. Certo?
 Mas... Eu não tinha conhecimento de nada disso. Eu só
sigo suas instruções. Não posso colocar meu pescoço nessa
corda. De qualquer maneira, o senhor ficará bem. Tenho
certeza disso. Por que eu serei sacrificado?
 Gostaria de saber como esses papéis foram
fotografados. Jaime. Mas isso não tem importância, agora.
 Suas contas no exterior poderão ser bloqueadas e a
campanha irá toda por água abaixo. Isso é evidente 
afirmou o secretário.
 Se quiser dar o fora, não faça cerimônia, nem demore
muito. Preciso de alguém que não me atrapalhe.
Jaime ficou surpreso com a reação fria e controlada do
senador. Percebeu também que ele, como secretário, não
representava nenhuma ameaça concreta.
 A porta foi arrombada. E eu não vou colocar trancas.
Vou deixar que apareçam. Não acredito que interesse ao
partido um escândalo.
 Principalmente com os partidos de esquerda querendo
entrar no planalto – reforçou Jaime, solícito e recuando.
 Os políticos de esquerda também fazem negócios
escusos, Jaime. E que só vêm à tona na hora calculada. Isso
pode ser apenas uma ameaça, um sinal de atenção para
mim.
 Como é? — perguntou atônito o secretário.
O presidente da empresa do projeto de reflorestamento
na Colômbia é testa-de-ferro de uma quadrilha muito bem
organizada que age no Rio. Eduardo Torres representa os
interesses dessa quadrilha. Enfim, um executivo de alto
escalão. Mais ou menos da altura do Senado, Jaime. Um
círculo fechado do poder. O único medo que tenho é que
queiram colocar-me para fora do círculo. Mas pode ser
apenas uma ameaça. Eles gostam de trabalhar assim, nesse
clima de tensão. E competência, muita competência.
O secretário ficou mudo e empalideceu. Pensou nas
cópias guardadas na caixa postal do aeroporto e estremeceu.
 Quer dizer que Eduardo Torres...
 Estou lhe afirmando isso, mas duvido que alguém
consiga abrir essa concha, Jaime. A não ser que esse país dê
uma meia-volta. Mesmo assim, isso não será de repente. E a
capacidade de adaptação e renovação da organização é algo
de surpreendente.
 Está tudo bem, então?  perguntou o secretário.
 O que você acha?  replicou o senador.
 Eu acho que sim, não é?
 E o que imaginava. Você está boiando, não é Jaime? E
eu pensava que andasse rápido demais. Enganei-me.
 O que quer que faça, senhor Portela?
 Aguarde minhas instruções. E não faça nada!
 E se for a Receita mesmo que mandou o envelope?
 É isso que preciso saber. Vou procurar encontrar essa
fonte, O que está me intrigando é o seguinte  disse
pausadamente o senador:  Estevão Dourado é amigo
íntimo do Juiz Torrente na Fazenda Pública. E acontece que
Torrente está na esfera de influência de Eduardo Torres.
Logo...
 Por que iriam derrubar o senhor, senador?
Henrique Portela reclinou-se na enorme poltrona de
couro, passou a ponta do dedo indicador na sobrancelha
como se a penteasse. A luz forte da manhã espraiava-se por
todo o gabinete. Guardou as fotos no envelope junto com o
pequeno e ameaçador bilhete.
 Vá para sua mesa, Jaime  respondeu depois de um
longo tempo.
6
Tudo no escuro

 Rodolfo acabou de ligar, Vítor. Tem alguma


informação para você.
O inspetor mal entrou em sua sala, Branco deu o recado
e passou-lhe o endereço de Jaime Espátula e Márcia Portela.
E continuou a falar.
 O nosso falsário, Gerson Bispo, desapareceu. Mandei
que ficassem de olho nele e o homem sumiu. Num passe de
mágica...
Vítor sentou-se e fez a ligação para Rodolfo.
 Vá tomando nota, inspetor. A escuta transmitiu o
seguinte: ligação de Belo Horizonte para Henrique Portela
com recado de Jaime Espátula. A telefonista mandou avisar
que Jaime chegava em Brasília às nove horas da manhã de
hoje e precisava conversar urgente com Portela. Você sabe
a localização da escuta, inspetor?
 Sei.
 O apartamento fantasma está sob a jurisdição de
Miguel Torrente. Estou com dois agentes revezando no
local e até agora nada. A coisa está aparentemente fria. Esse
Torrente é juiz da Fazenda Pública, certo?
 Hum... Vá em frente — resmungou o inspetor.
 Por enquanto é só isso.
 Rodolfo, me diga uma coisa: vou lhe dar dois nomes
um é Miguel Campos e outro e Virgílio, possivelmente
Durval, não é certo. O primeiro é agente da Receita Federal
e o segundo trabalha no laboratório da Receita. Está
tomando nota?
 Perfeitamente. Pode ir falando.
 Muito bem. Quero que você os identifique e cheque
com o zelador do apartamento fantasma. Caso positivo,
preciso de todos os detalhes possíveis. Me diga: dá para ser
feito rápido?
 Vou tentar. Você vai ficar aí?  indagou Rodolfo.
 Não. Estou saindo para a fonte da gravação.
 Perfeito. Ficaremos em contato.
João Vítor desligou o telefone e procurou a foto conjunta
do senador com a filha, secretário e outros políticos.
Revirou a gaveta atrás de uma lente de aumento; finalmente
encontrou uma pequena e examinou o rosto do secretário.
 Até já, Branco.
No caminho para o Senado, o inspetor percebeu que a
água começava a ferver. Olhou para o relógio. Eram oito e
quarenta e cinco. Hesitou. Quanto tempo demoraria até o
aeroporto? Com aquele trânsito?
Pisou fundo no acelerador e mudou de rumo.
Direto para o aeroporto.
Quando chegou eram nove e cinco minutos. Correu até o
balcão de informações. O vôo proveniente de Belo
Horizonte estava no horário. Os passageiros
desembarcavam.
João Vítor percorreu o saguão do aeroporto duas vezes
e...
 Ai está você, Espátula  resmungou o inspetor.
O secretário do senador acabava de guardar um envelope
numa caixa postal. Esperou que o homem se afastasse e
tomou nota do número da caixa. Foi até a segurança do
aeroporto e identificou-se.
 Um momento. Vou chamar o capitão  informou rim
guarda.
O chefe da segurança demorou o suficiente para que
Vítor perdesse as esperanças de seguir o secretário. A
intuição do inspetor talvez o estivesse traindo. Quando o
capitão chegou, Vítor procurou controlar-se para não perder
a calma.
 Inspetor João Vítor, da Polícia Federal.
 Pois não  disse educadamente o capitão.
 Preciso dar uma busca na caixa postal 2840-A.
 Qual é o problema inspetor?
 Pode me acompanhar. capitão? indagou Vítor
indicando o caminho.  Contrabando de jóias, estou atrás de
uma pista. Valiosa, talvez. Vamos?
 Claro. Vamos lá.
O capitão pegou a chave mestra no balcão da segurança.
João Vítor seguiu-o.
A intuição de Vítor valera alguma coisa.
Lá estava um envelope volumoso.
 Devem ser cópias fotostáticas, inspetor  disse o
capitão passando-lhe o envelope.
 E... Ainda estão quentes.
Vítor revirou as folhas e viu do que se tratava.
 Vou tirar cópias disto.
***
O inspetor Vítor trancou-se no automóvel em frente do
aeroporto. A leitura dos documentos o deixou mais confuso
ainda. Se por um lado era evidente o que estava em jogo
para o senador Portela. por que Miguel Campos teria sido
assassinado? Se os documentos tinham vindo à tona, o
maior prejudicado acabara sendo o agente da Receita.
João Vítor não pensava errado. De qualquer maneira,
Virgílio ainda tinha que sair da toca, O que temia o
sobrinho de Virginia Durval?
E por que a atraente mulher permanecia incrivelmente
calma e demonstrando não estar preocupada com o perigo
que Virgílio corria?
 Droga. Estou andando em círculos. O que estou
fazendo é entregar o senador para o Diretor da Receita.
Numa coisa porém avançara e bastante, O inspetor
tomara posse de documentos importantes e um ameaçador
bilhete.
Pela primeira vez em sua vida de inspetor da PF, Vítor
desconfiou que lidava com algo realmente explosivo.
Virou a ignição do carro e calmamente dirigiu-se para a
casa de Virgínia.
Ela tinha que ajudá-lo a desenrolar aquela novela.
Sua esperança de encontrá-la em casa foi em vão. O
porteiro, educadamente como sempre, informara que a
senhora Durval não estava e iria demorar. Mas que o
inspetor deixasse um recado; ele o daria assim que a mulher
voltasse.
João Vítor precisava conversar com alguém. Trocar
idéias. Voltou para o escritório.
Rodolfo tinha mais novidades...
 Acho bom ir conversar com o zelador, inspetor.
 Conseguiu alguma coisa? indagou Vítor.
 Esse Virgílio de que falou ainda não identifiquei, mas
o tal de Campos. O zelador o reconheceu para o Agente
Wilson. O rapaz que está de vigia no local.
 Que horas são, Rodolfo?
 Quase meio-dia, inspetor. Por quê?
 Nada. Não é nada. Talvez eu mesmo possa identificar
Virgílio na Receita. Eles devem ter uma fotografia do rapaz.
Obrigado, Rodolfo.
Quando Vítor ia saindo da superintendência, o telefone
tocou.
Branco atendeu e fez um sinal para ele.
 Diga que já saí  resmungou o inspetor.
 É o secretário do chefão  informou sorrindo Branco.
Vítor encostou-se ao umbral da porta, visivelmente
irritado e foi atender ao telefone. Júlio Pontes solicitava sua
presença ao gabinete. Solicitava.
***
 E então, inspetor Vítor? Alguma novidade? Estevão
Dourado acabou de me ligar. O homem está preocupado.
 Posso sentar-me, senhor?
 Me desculpe. Sente-se, por favor.
Vítor tentou estudar o que ia dizer para o diretor. Mas o
homem parecia estar com pressa e insistiu.
 E então?
 A coisa está enrolada, delegado. Ainda estou tentando
encontrar o laboratorista da Receita. Ele sumiu. E de acordo
com as informações que obtive através do guarda de
segurança, havia algo de suspeito entre Campos e Virgílio.
Os negativos devem ter saído do departamento pelas mãos
do próprio agente ou então Virgílio está metido nessa
história até o pescoço. De qualquer modo, há uma trama
política dos diabos por trás disso tudo. Acho estranho que o
senhor Dourado tenha ficado surpreso com essa
possibilidade.
 Como assim? Acha estranho?
 Parece evidente que um senador faz parte da polícia e
defende seus interesses partidários, ou particulares. A morte
de Campos liga-se intimamente a esses fatos. Resta saber
como isso aconteceu. E Virgílio é uma peça fundamental
para que nos aproximemos de uma resposta. Pelo menos na
linha de raciocínio que venho desenvolvendo.
 Hum.. . E os fatos, inspetor? Essas são suas suspeitas!
 Com licença, delegado. São suspeitas baseadas em
fatos. Veja bem. O segurança da Receita tomou nota dos
horários em que houve encontros desnecessários entre
Campos e Virgílio. O agente depois de ter recebido as fotos
dos documentos voltou ao laboratório e esteve com Virgílio.
Para quê?
 Tudo é possível. Vítor  afirmou Júlio Pontes.
 Não. Menos de uma hora depois, Campos foi
assassinado. Estou pensando nesses termos. Campos não
iria apenas bater um papo com o rapaz do laboratório. Havia
uma razão específica para que o procurasse novamente. E
além disso, o próprio segurança afirmou que isso era
bastante incomum. Campos poderia ter usado telefone
interno. Se fosse o caso de refazer alguma das cópias,
suponhamos, pediria pelo telefone a Virgílio. E mais ainda,
o agente ficou menos de cinco minutos com Virgílio no
laboratório. Tempo curto demais para se refazer uma cópia.
Enfim, Campos não agiu normalmente. E Virgílio
desapareceu.
 Até agora está nesse ponto?
 Houve também uma coisa interessante. Ontem fui a
casa de Campos depois de conversar com o senhor.
Acontece que a casa do agente estava sendo vigiada e
alguém  não identificado ainda  telefonou para lá no
momento em que permaneci no local. Muito bem. Após
alguns telefonemas sem resposta do outro lado da linha,
consegui localizar a fonte. Fui rapidamente até o local e
nada. Não havia ninguém, nem o telefone. Esse apartamento
está sob controle. Vou até lá agora para conversar
novamente com o zelador...
 Vítor, você está me escondendo alguma coisa. Não faz
mal. Eu compreendo. Vou dizer ao Dourado que você está
avançando, certo?
 Apenas isso. Prefiro manter o senhor Dourado de
molho. Eu não acho bom que as informações saiam da
superintendência. Pelo menos por enquanto, o senhor
compreende.
 Perfeito, Vítor. Deixe comigo. Você está fazendo um
bom trabalho, Mas gostaria que me informasse se as coisas
começarem a esquentar. Acho que há política demais nisso
tudo. E é bom tomar cuidado.
 Como assim?
 Não queremos morder o nosso próprio rabo, não é?
João Vítor sorriu abertamente para o diretor.
 Meu rabo caiu há muitos anos, diretor.
Júlio Pontes não retribuiu o sorriso e ficou olhando
seriamente para Vítor e avisou:
 Não me deixe fora dos acontecimentos. Você precisará
de mim.
 Eu sei disso. E conto com o senhor.
 Pode contar, inspetor.
Quando Vítor deixou o gabinete do diretor da PF em
Brasília a sensação que tinha é que estava atravessando uma
sala no escuro. Conhecia os móveis. Sabia que as cadeiras e
os sofás estavam aqui e ali. Mas quem sentara nos lugares?
Encontrar o zelador do apartamento fantasma não era
tarefa das mais agradáveis depois daquela conversa. Mas
era isso mesmo. O inspetor foi em frente. Meio no escuro.
***
 Esse sujeito eu conheço, inspetor.
 Tem certeza?  insistiu Vítor.
 Absoluta. Ele veio aqui umas três ou quatro vezes no
último mês. Não demorava muito. Mas tenho certeza de que
veio. E sempre sozinho.
 Como sabe que ia para o apartamento?
 Uma vez cruzei com ele pelo corredor. Senti uma
reação dele esquisita. O homem acabara de sair do
apartamento e ao me ver fechou bruscamente a porta. Era o
tal apartamento, tenho certeza disso.
 E agora essa  resmungou Vítor para o agente ao seu
lado.
 Algum problema, inspetor?  perguntou o a gente.
 Não. Nenhum problema. Quero que fique de olho no
local. E avise Rodolfo se houver algo estranho. Se alguém
subir no apartamento pode segurar. Seja quem for. Até o
presidente, certo?
O agente sorriu para o assustado zelador. Vítor
continuou:
 Outra coisa. Está precisando de mais alguém aqui?
 Nunca é demais  concordou o agente.
 Vou falar com Rodolfo. Daqui a pouco terá
companhia.
 Sim, senhor.
 Obrigado, zelador. Você...  Vítor interrompeu a frase.
Observou o olhar do zelador e calou a boca. Um sujeito
muito estranho. Com um olhar sempre cheio de cinismo.
***
O inspetor Branco aguardava João Vítor com muita
ansiedade.
 Uma mulher acabou de telefonar para você, João. Está
querendo entrar em contato e...
 Que mulher, Branco?  perguntou agitado o inspetor.
 É... Espere aí, tomei nota aqui. Deixe ver. Droga, onde
está o papel?
Vítor foi para o telefone.
 Rodolfo?
 Ele mesmo.
 Inspetor Vítor, Rodolfo, mande um agente para ajudar
o...?
 Wilson, senhor.
 Isso. Mande agora mesmo.
 Certo. É pra já.
Branco saiu de sua mesa e passou o papel para o
inspetor.
Virgínia Durval.
 Ligou há muito tempo, Branco?
 Meia hora no máximo.
João Vítor procurou pelo telefone da tia de Virgílio em
seu bloco de anotações.
 Senhora Durval?
 Inspetor?  perguntou uma voz aflita.
 Sim. O que houve?
 Por favor. O senhor pode vir até aqui? Agora?
 Até já.
João Vítor desligou o aparelho. Investigação ou não, seu
coração batia forte como um tambor.
***
O secretário do senador Portela aproveitou o primeiro
tempo livre que surgira para ir correndo ao aeroporto. Tinha
que dar um fim àqueles documentos. Jaime tremia só de se
lembrar do senador falando sobre uma organização
internacional de traficantes.
Ele pegou os papéis na caixa postal e desapareceu do
aeroporto. Correu pelo saguão como um maluco, entrou no
automóvel e se dirigiu para fora dos limites da capital.
Se dependesse do secretário, aqueles malditos
documentos desapareceriam da face da terra.
Quase uma hora depois, Jaime encostou o carro na beira
da rodovia 040 a quilômetros de Brasília e pôs fogo em
todos os papéis.
Suas mãos tremiam tanto, que mal conseguiu dirigir de
volta para a cidade. Quando a silhueta do Senado apareceu a
sua frente, ele se imaginou caminhando lentamente para o
matadouro...
―Mas sou inocente.”  dizia pateticamente para si
mesmo.

7
Sem segredos, continua o mistério

Virgínia Durval não ocultava mais o medo que a


invadiu.
Quem sabe, ela começasse a entender o perigo iminente
que de algum modo corria seu sobrinho, Virgílio. E agora,
depois do que tinha acontecido, recorria ao inspetor da PF,
mesmo não sendo solução que a agradasse.
 Foram dois homens, inspetor. Um moreno alto e forte
que não disse uma palavra. E outro com uma voz grave e
pausada como um som contínuo, inalterado. Esse tal era um
tipo bem vistoso, parecia um homem bem educado. Um
estilo de executivo, entende?
 Hum!  resmungou João Vítor sentando-se.
 Estou com medo, senhor Vítor  sussurrou a atraente
mulher.
 O que pretende fazer, senhora Durval?
 Por quê a formalidade agora?
 Desculpe, Virgínia. Pois bem, o que você pretende?
 Eu? O que posso fazer?
 Não sei. O mesmo digo eu. Dois homens vieram à
procura de Virgílio. Muito bem. E daí? Eu não posso
proteger Virgílio. O máximo que farei, se assim desejar. é
colocar um detetive para defendê-la de qualquer possível
ameaça.
 Um guarda? Em minha casa? perguntou hesitando
Virgínia.
 Preste atenção. Eu estou com as mãos meio amarradas.
Esse caso está assumindo proporções e caminhos diversos
do que esperava. Seu sobrinho, assim espero, pode me
ajudar. Não tenho a menor idéia se você está mentindo ou
falando a verdade. Certo? Pessoalmente, compreendo que
queira esconder seu sobrinho. Ele está correndo perigo.
Agora temos certeza a esse respeito, não é?
 Eu juro que não sei onde ele se meteu! Pode ter se
enfiado num buraco a quilômetros daqui.
 O que eles disseram? Os dois sujeitos...
 Nada. Quer dizer, perguntaram por Virgílio e me
ameaçaram.
 Mencionaram a Polícia Federal?
 Não.
 Uma coisa tem que ser feita. Aliás, é a única maneira
que você pode me ajudar. Venha comigo até a
superintendência. Se esses caras têm ficha, e acredito que
tenham, você irá identificá-los para mim.
 Mas podem me matar. O senhor já pensou nisso?? 
indagou Virgínia Durval, forçando a voz para que soasse
neutra.
 Pense em Virgílio. E, além disso, não pense que a
deixarão em paz enquanto o rapaz não aparecer.
 Eu não sei... Tem que ser agora?
 Quanto mais cedo melhor, Virgínia.
O tom quase íntimo com que Vítor pronunciou
claramente a frase desarmou um pouco a hesitante mulher,
que se levantara. De costas para o inspetor, Virgínia apertou
os seios com os braços, fortemente. E deu um suspiro curto
e angustiado.
 Está bem, Vítor  respondeu retribuindo a intimidade
que O agente oferecera naturalmente.  Isso vai demorar,
existem milhares de fichas, não é?
 E possível que sim. Imagino que esses sujeitos sejam
os mesmos que liquidaram o agente da Receita Federal.
Começaremos pelos matadores profissionais.
 Profissionais?
 Profissão bastante lucrativa. E muitas vezes, com
cobertura e álibis de gente importante  concluiu o inspetor.
 Pode ser que Virgílio telefone. Vou ligar a secretária
eletrônica.
***
João Vítor e Virgínia Durval passaram a tarde inteira
olhando retratos. O sistema de informática da
superintendência havia filtrado os padrões: idade, estatura,
tez, olhos e particularidades. A elegante senhora Durval foi
aos poucos perdendo sua postura distanciada e descobrindo
nas fichas um vastíssimo mundo sempre disfarçado e
encoberto.
Depois de horas, a superintendência quase deserta, a
mulher e o inspetor estavam exaustos.
De repente Vítor teve uma idéia absurda.
 Alô, Rodolfo ainda está aí?
 Um momento.
Rodolfo, o homem das mil e uma utilidades, atendeu
com voz cansada.
 Rodolfo falando.
 Vítor.
 Diga, inspetor  respondeu o colega visivelmente
irritado.
 Sinto muito, Rodolfo. Estou incomodando você numa
hora dessas. Mas é que preciso de arquivos com homens
que tenham sido mortos ou que desapareceram, eu não sei 
disse indeciso Vítor.
 Eu não sou mágico, Vítor. Não posso tirar o que você
quer da cartola.
 Eu sei, Rodolfo.
 De qualquer maneira existe um arquivo morto. Ex-
presidiários que cumpriram pena e faleceram de morte
natural, acidental e rixas diversas. E um ou outro caso
esquisito.
 Você já acabou com o que tem no banco de dados?
 Nem cheguei à metade, Rodolfo.
 E então?  perguntou o colega discretamente
chamando a atenção do inspetor.
 Não sei, é uma intuição, Rodolfo.
 Está bem, Vítor  respondeu paternalmente Rodolfo. 
Vou mandar o detetive Raimundo com o material. Até
amanhã, Vítor.
 Você é demais, Rodolfo.
 Quem? Eu? Compre um espelho para sua sala, Vítor.
 O quê?
Rodolfo desligou.
Virgínia Durval continuava observando as fotografias
digitais se alternando no terminal de vídeo. O inspetor saiu
da sala e voltou com vários envelopes.
 Vamos brincar um pouco, Virgínia.
 Gostaria de tomar um café  sugeriu a mulher.
 Está bem, eu vou mandar vir. Enquanto isso, sente-se
aqui. Abra os envelopes. E monte o rosto dos dois sujeitos.
 Como é?
 Abra o envelope  insistiu Vítor.
Virgínia levou um susto quando deparou com uma
infinidade de olhos, bocas, narizes e orelhas. Todos os
detalhes de um rosto humano possível e imaginável
surgiram de dentro daqueles envelopes.
 Que tal?  perguntou Vítor enquanto solicitava dois
cafés ao serviço de copa.
 Isso é... Isso é incrível, Vítor  disse a mulher rindo
abertamente.
O detetive Raimundo chegou com os discos digitais
mandados por Rodolfo.
 Precisa de ajuda, inspetor? Perguntou o rapaz.
 Talvez, O centro de dados continua funcionando?
 Vinte e quatro horas por dia, senhor. Se precisar pode
telefonar, eu sou o Rodolfo da noite e da madrugada...
Vítor compreendeu tudo e deu um tapinha nas costas do
rapaz, visivelmente orgulhoso, quase infantilmente feliz em
estar seguindo os passos do competente Rodolfo.
 Boa-noite, senhora  disse para Virgínia e retirou-se.
A mulher cumprimentou Raimundo com um suave
meneio e mergulhou a atenção para os detalhes de rosto que
desfilavam à sua frente. Vítor colocou a xícara de café na
mesa de Virgínia Durval.
 Faça o melhor que puder, Virgínia.
 Acho que vamos perder muito tempo, Vítor.
 Pelo contrário. Quando você terminar, poderei
procurar e não apenas ficar olhando você prestando atenção
em tantas fotografias de bandidos.
Depois de outro café, uma hora já havia passado,
Virgínia Durval montou os rostos daqueles que, segundo o
inspetor poderiam ser os assassinos do agente da Receita.
Enquanto isso, Vítor dedicara-se a uma atenta leitura dos
documentos do senador. Uma coisa ficara clara para o
inspetor: havia ali material para complicar a vida de
qualquer político. Entretanto, se o senador tivesse bons e
influentes amigos, não seria difícil contornar a situação
embaraçosa. Não seria esse o primeiro nem o último caso de
corrupção envolvendo um político brasileiro. Henrique
Portela poderia transferir as remessas para a Colômbia e
reunir suas fabulosas sonegações fiscais ao projeto de
reflorestamento. A verdade é que nenhum gerente de banco,
regiamente gratificado, se recusaria a desfazer depósitos
ilícitos. Tudo poderia ser meticulosamente encoberto,
principalmente tratando-se de um senador da república.
Essa ordem de idéias fez o inspetor perceber a
importância dos negativos. Enquanto existissem, o senador
Portela correria o risco de ser chantageado ou, o que era
mais provável, desviado das atividades políticas. Isso tudo
aconteceria naturalmente, sem mais escândalos, para que a
democracia brasileira não sofresse outros traumas
desnecessários. Já que se encontrava bastante debilitada.
Vítor precisava falar com Virgílio. Sem o rapaz, o
inspetor ficaria rodando em círculos eternamente, cheio de
intuições e até certezas, mas sem provas.
Deviam ser mais de onze horas da noite, quando
finalmente Virgínia Durval encontrou um dos suspeitos nos
intermináveis arquivos da PF. O inspetor seguia buscando
através do retrato montado por ela, os dois sujeitos no meio
dos ‗mortos‘ e casos não resolvidos que Rodolfo lhe
mandara.
O inspetor aproximou-se do terminal onde Virgínia
estava apontando com o dedo.
 Cansou?  perguntou Vítor prestando atenção na unha
longa e bem cuidada que apontava o rosto de um homem.
 Esse é o tal que não disse uma palavra – murmurou a
mulher.
 Você achou? Tem certeza? E esse o sujeito?
 Certeza absoluta, inspetor.
 Antônio Benedito. Carioca, trinta anos, condenado por
seqüestro e assalto a banco. Pena de seis anos, em liberdade
condicional há dois meses. Muito bem.
 Vamos continuar?  perguntou exausta Virgínia
Durval.
 Você quer parar, não é? Está bem. Amanhã
recomeçamos.
O inspetor acionou o ícone de impressão da ficha de
Benedito e, assim que a impressora laser cuspiu o papel
impresso ele colocou-o dentro do envelope com as
fotocópias que conseguira na caixa postal do secretário do
senador. E escreveu um bilhete para o inspetor Branco:
―Antônio Benedito. Assim que você chegar mande o
pessoal disponível à caça do sujeito. Controle a busca
pessoalmente. Assunto com prioridade total. Agradecido,
Vítor”.
 Alô, Raimundo? Quero que verifique tudo sobre
Antônio Benedito.
 Antônio Benedito  repetiu o detetive.
 Até amanhã.
***
Virgínia e Vítor voltaram silenciosos para casa. A tia de
Virgílio exaurida e preocupada não dizia nada. E o inspetor,
abarrotado de suposições e suspeitas, devaneava absorto na
direção do carro.
Fazia dois dias que corria feito um louco de um lado
para o outro. Apartamentos desertos. telefonemas estranhos,
ligações complicadas. Afinal, o que Miguel Campos iria
fazer no tal apartamento? Por que Virgílio se recusava a
encontrar com ele? E o diretor da Receita, qual seria o grau
de envolvimento entre ele e o agente? Miguel estaria agindo
por conta própria?
 Sabe de uma coisa  resmungou o inspetor para
Virgínia , não sei o que é mais importante: os assassinos
de Campos, ou as razões dele. Será que o agente estava
trabalhando para fora? Um serviço realmente especial?
Virgínia olhou para Vítor e continuou em silêncio.
 Estou lhe incomodando?  perguntou o inspetor.
 Vá em frente, Sherlock.
 Quem matou Campos sabia o que continha o envelope.
Queria os negativos, mas não levou. Como eles sabiam da
operação da Receita? Apenas o diretor estava por dentro do
assunto. Isso é o que me deixa confuso.
 Será?  perguntou ironicamente Virgínia.
 O quê?  retrucou mais confuso ainda o inspetor.
 Eles sempre exploram vocês assim? Chupando seus
miolos? Eu não entendo porque uma pessoa pode se prestar
a tais tarefas. Acho que você está sendo usado, senhor
Vítor. E não está percebendo.
 Seja mais específica, Virgínia. Por favor.
 Mais do que estou sendo?
 Explorado pela PF? Concordo. Usado pela PF?
Concordo. Estou na PF a quinze anos e sou inspetor há sete,
não acho esse serviço uma maravilha. É até podre. Mas o
que não é podre, Virgínia?
 Vá com calma, Vítor. As coisas não são fáceis para a
maioria das pessoas. Quanto à podridão... Acho que não
vale a pena generalizar. ‗Na verdade, nós somos pouco
civilizados, atrasados, meios bárbaros ainda.
 E armados de bombas nucleares que podem destruir o
planeta uma centena de vezes.
 Nem todos, inspetor. Nem todos.
 Todos ouvirão e sentirão os efeitos da barbárie.
 A maioria silenciosa, inspetor?
 Talvez. Mas não é isso o que me interessa agora. Eu
sou usado pela PF apenas? É isso que quer dizer? Ou estou
sendo usado por mais alguém? Achei isso interessante. Sabe
por quê?
Virgínia sorriu:
 Talvez o diretor da Receita esteja me usando para
pegar os negativos e entregá-los sem perguntas. Pode haver
uma maquinação nisso.
 Brilhante, inspetor. Então, também o diretor da
Receita está usando descaradamente.
 E o que posso fazer?
 Inspecione, inspetor.
 Existe uma coisa que realmente me intriga: por que
Dourado não procurou o seu próprio pessoal?
 Para demonstrar como era isento e eficiente ao
solicitar os serviços da PF.
 Não sei… Eu preciso de Virgílio.
 Acho Benedito e seu amigo mais perigoso.
 Esses não falarão. E como provar que assassinaram
Campos? Se é que foram eles. Quem sabe?
 Estamos chegando, Vítor.
 Você acha?  perguntou o inspetor referindo-se ao
caso.
 Chegando em casa. Esqueça o caso. Vá descansar.
 Eu não posso parar, Virgínia. Me desculpe.
 Sinto por você. Não por mim.
 Será que Virgílio a procurou?
O carro foi estacionado em frente do edifício da senhora
Durval.
 Onze e meia, Vítor. Estou cansada. Tenho que
trabalhar amanhã.
O inspetor desceu e acompanhou Virgínia até a portaria.
A mulher abriu a porta. O esplendor de um dia atrás se
encobrira pela escuridão e silêncio. As luzes pareciam
fracas, e o local tendia para o lúgubre.
 Será que Dourado está me usando?  insistiu Vítor
 Pergunte para ele.
 Senhora Durval!
Uma voz sibilante e envelhecida soou vindo de algum
lugar.
Vítor levou um susto e colocou a mão na automática.
 Pereira?  indagou Virgínia calmamente.
 Seu sobrinho está. .
Um disparo surdo e invisível derrubou o porteiro,
 Abaixe-se  gritou Vítor e imediatamente correu para
a porta do edifício.
Agindo daquela forma, o inspetor João Vítor interceptou
a fuga de Benedito e seu comparsa. Os dois carregavam
Virgílio.
 Não se meta nisso. É assunto ruim para você! – alertou
um deles.
João Vítor estava a poucos metros dos três. A poucos
passos de conseguir sair daquele maldito cipoal. Recuou
para trás de uma coluna e gritou:
 Eu sei quem você é Benedito. Vou pegar você.
 Não tente. O rapaz é o primeiro que vai pagar.
Virgínia socorrera o porteiro, ajudara-o a afastar-se do
fogo cruzado e depois desapareceu.

8
Quem espera nunca alcança

As luzes se acenderam.
Uma série de disparos derrubou o não identificado
companheiro de Antônio Benedito. A chance para que
Virgílio se atirasse ao chão e escapasse em direção à porta.
Benedito começou a gritar ameaças para o inspetor.
Vítor emudeceu completamente desnorteado com o que
acontecera nos últimos minutos. Primeiro a portaria
mergulhara em completa escuridão e agora, com a
claridade, o companheiro de Benedito era baleado e Virgílio
conseguia escapar...
 Sou eu, inspetor, Raimundo, Detetive Raimundo.
João Vítor sentiu que as coisas haviam evoluído sem o
seu conhecimento.
 Ora, que diabos você está fazendo aqui, Raimundo?
 A senhora Virgínia chamou-me pelo telefone. Estou
com mais detetives. Eles estão avisados quanto ao sobrinho
da mulher. Fique tranqüilo.
Então, Virgínia Durval… Que mulher surpreendente!
 Você ouviu isso, Benedito? Vai bancar o herói? 
perguntou o inspetor.
Não houve resposta, o bandido percebeu que se resistisse
não ia durar muito. Afinal cumprira com suas obrigações
para o mandante. Ele conseguiria alguma proteção.
 Então. Benedito? Não tenho muito tempo!
 Você ganhou. inspetor.
 Jogue sua arma para cá  ordenou João Vítor.
O ruído do ferro no mármore avisou o detetive
Raimundo que podia avançar.
 Leve esse sujeito para a superintendência. Tenho que
ficar por aqui, Raimundo.
 Qual é a acusação, inspetor?  perguntou o detetive.
 Suspeita de homicídio  respondeu Vítor procurando
com os olhos Virginia Durval.
 O quê? gritou Benedito.  Eu não matei ninguém, que
papo é esse?
 Depois conversamos  disse o inspetor.
 Eu não matei ninguém! Inspetor!
 Vamos embora, vagabundo resmungou Raimundo
algemando-o.
Vítor deu uma volta na portaria e não encontrou
Virgínia. Quando se virou para sair ao encontro de Virgílio,
dois enfermeiros passaram por ele em direção ao porteiro
gravemente ferido.
 A senhora Durval, vocês a viram?
 Uma morena de vestido claro?
 Isso.
 Está lá fora, senhor.
Virgílio e a tia estavam abraçados. O rapaz visivelmente
transtornado virou o rosto quando o cadáver do
companheiro de Benedito veio carregado pelos detetives até
a ambulância. Virginia mantinha uma calma absoluta e
sorriu para Vítor quando ele se aproximou, o olhar
carregado.
 Surpreendente, Virgínia. Você tem sangue frio, heim?
 Muito pelo contrário, Vítor. Virgílio é o único parente
que me resta de uma família que poderia ter acabado há
poucos minutos.
 Você está bem, rapaz?
 Sim, senhor  respondeu balbuciando Virgílio.
 Precisamos conversar.
 Eu sei. Tem que ser agora?
 Vamos tomar um chá, inspetor  interveio a mulher.
 Chá? Agora?
 É claro respondeu puxando o sobrinho em direção ao
edifício.
A Vítor só restou a possibilidade de segui-los
obedientemente.
***
 Podemos conversar, senhora Durval?  perguntou
Vítor formalmente.
Virginia acabara de servir o chá. O sobrinho começou a
narrar o que acontecera.
 O agente Campos chamou-me pelo telefone. Não me
lembro a que horas. O segurança poderá lhe dar tudo exato,
ele toma nota de tudo. Pois bem, Campos entregou-me um
filme com número de ordem, como de praxe, e como era
bem tarde presumi que fosse algo importante. Fiz as cópias
depois de ter revelado o filme, é claro. Entreguei a ele por
volta de duas horas. me lembro porque dei uma olhada no
relógio do laboratório. Até aí, nada de estranho ou diferente
da rotina. Entreguei o serviço e voltei para o laboratório.
Poucos minutos depois Campos me procurou pessoalmente,
o que me deixou surpreso. Não dei importância ao fato
inicialmente, mas quando o agente me pediu que
reproduzisse o negativo, fiquei realmente curioso, se é que
posso chamar de curiosidade o que senti a partir daquele
momento.
 Ele esperou?  perguntou Vítor.
 Não, senhor. Disse que estava muito cansado. Queria
que eu levasse o negativo reproduzido à sua casa de manhã,
ou seja, assim que largasse o trabalho. E foi o que fiz.
Depois disso começou essa loucura. Passei na casa de
Campos por volta das seis e meia, bati na porta diversas
vezes, dei a volta pelo terreno e continuei insistindo. Devia
ter ido embora, mas não fui. Insisti até resolver virar a
maçaneta da porta da frente, e a danada se abriu para minha
infelicidade, O senhor Campos tinha sido baleado e o tapete
estava todo cheio de sangue. Fiquei apavorado, como
continuo apavorado. Não entendi absolutamente nada.
Pensei em voltar imediatamente para o departamento e
devolver o negativo que estava em meu poder.
 Por que não voltou e desapareceu?
 Mas eu voltei.
 Você voltou?  perguntou Vítor surpreendido.
 Voltei, inspetor. Fui direto para o laboratório. Lá pelas
sete entrei no setor e me dirigi para o laboratório. Não havia
segurança e fiquei mais nervoso ainda. Deve ter sido a troca
de guardas, não sei. Tavares, o chefe do laboratório, não
chegara ainda, bem. Ele não estava lá. Podia ter ido a outra
sala do departamento de fotografia. aquilo é enorme. Pois
bem, quando entrei no arquivo, o agente Gonçalves revirava
freneticamente as ordens de serviço e os respectivos
negativos. Levei um susto incrível e resolvi voltar. Não é
permitido a ninguém fora do departamento mexer nos
arquivos. Tem que haver requisição, o senhor sabe essas
coisas. O senhor Gonçalves não percebeu minha presença,
mas quando dei meia-volta, apavorado e sem conseguir
pensar direito, esbarrei num cinzeiro perto da porta. Foi o
suficiente para que me visse e chamasse por mim.
Inicialmente com a voz calma, depois, como me afastei
rapidamente, com a voz, irritada ordenou que voltasse.
 O que você não fez!  emendou o inspetor.
 Exatamente. Pensei que iam me segurar na portaria e
nada aconteceu. A partir desse momento procurei sumir do
mapa. Acho que isso e tudo.
 Então Gonçalves está metido nisso. Quem diria 
exclamou o inspetor.  O mosaico começa a ficar
compreensível.
 O senhor acha que Gonçalves assassinou Campos? 
perguntou Virgílio.
 Eu não acho nada. Alguém o viu no departamento
fotográfico?
 Não. Entrei e saí em pouco tempo. Ninguém me viu.
Eu disse, o segurança não estava. Campos não disse nada
além de pedir que reproduzisse os negativos?  insistiu
Vítor.
 Não. Acho que não, quer dizer, desculpou-se por estar
me incomodando outra vez. Essas coisas.
 Pense bem, Virgílio  continuou Vítor mudando o tom
de voz e recebendo um olhar de repreensão de Virginia
Durval. O inspetor ficou sem graça e pediu educadamente
que fizesse um esforço.
 Ele me falou de um negócio sobre segurança da
investigação. E... Ah! Agora me lembro, disse que aquela
investigação era... Ele disse que era muito confidencial e
depois brincou afirmando que nem Sherlock Holmes seria
mais esperto que ele naquele caso. Alguma coisa assim.
Tive a sensação, inspetor, de que apenas Campos sabia o
que fazia. Não sei, foi uma sensação estranha. Só fui dar
importância a isso depois da morte e quando comecei a
pensar sobre tudo no motel em que me escondi.
 Como Benedito o pegou?
 Resolvi voltar para casa. E antes passei no quarto do
porteiro. Ao sair de lá com o senhor Pereira, o porteiro, os
dois sujeitos me agarraram.
 E as reproduções, Virgílio?
 Deixei no motel. No buraco do bidê. No banheiro.
Devem estar lá.
 Está bem. Se você se lembrar de mais alguma coisa
telefone para o meu celular – Vítor esticou o cartão para o
rapaz.  Certo?
 O senhor vai pegar as reproduções?
 Exato. E tenho que apertar nosso amigo Benedito.
 Acha que já estou em segurança?  perguntou Virgílio.
 Vou deixar um detetive neste andar. Um rapaz bem
discreto, Virginia  sorriu Vítor.
 Imagino que não seja o King Kong, inspetor  replicou
a tia de Virgílio.
 Você verá, Virginia.

9
Quem sabe, sabe

De volta do motel, com os negativos no bolso do paletó,


às quase três da madrugada, o inspetor Vítor tratou de rever
calmamente cada passo da investigação. Perguntas
importantes ainda não tinham sido respondidas. E Vítor
tinha se determinado a ir até o fim.
Perguntas como: O que Campos fizera no apartamento
fantasma? Quais eram os objetivo de Gonçalves? Seria
Gonçalves um bode expiatório de outras maquinações?
Como dissera Virginia estaria ele, o inspetor, sendo usado
pelo diretor da Receita Federal? Será que o estavam
levando a descobrir o assassino de Campos para desfazer
alguma ligação política inconveniente?
O Inspetor João Vítor começou a descobrir que cada vez
mais desconfiava de todo mundo. ―Ele certamente  pensou
Vítor  era inocente‖.
Benedito não dissera nada. Tinha reclamado porque
exigia um advogado. E que ninguém o forçaria a confessar
um crime que não cometera. O suspeito, inocente ou
culpado. conhecia tanto os pequenos e grandes macetes da
polícia quanto os da PF.
O cansaço deixara João Vítor mais do que irritado com a
relutância de Benedito em abrir o jogo.
 Está bem  concluiu o inspetor.  Eu não tenho pressa.
Você vai ficar mais uns dias. Depois o juiz resolve sua
situação; para quem esta em condicional imagino que em
pouco tempo voltará à agradável penitenciária.
 Pouco me importa voltar para lá, inspetor. Apenas
quero um advogado.
 Advogado? Você está brincando, Benedito? Vá
estudar a lei e examine sua situação.
 Fazem parte dos meus direitos, as...
 Se você disser quem é o mandante no caso Campos,
posso dar uma cobertura para você. Isto aqui não é a polícia
estadual, não se esqueça.
 Para mim é tudo a mesma merda. Me esqueça,
inspetor. Da minha boca você não ouvirá um ―ai‖. Fim de
papo.
O detetive Raimundo observava o inspetor.
 Vá descansar, inspetor. Durma um pouco. Amanhã
estará com a cabeça mais tranqüila. Esse cara vai falar, não
é?
 Assim que puder avise o juiz. Suspeita de homicídio,
porte de arma, resistência à ordem de prisão. Faz o cardápio
dele. Certo?
 Certo  concordou o detetive.
 Vou seguir o seu conselho. Até amanhã.
***
 Eu não tive mais noticias dos rapazes, senhor Torres.
 Não se atrapalhe, Gonçalves. A PF está metida nesse
negócio e não sei qual a posição do seu diretor, Júlio
Pontes. E preciso agir rápido e não deixar nada para trás. Se
esse rapaz do laboratório viu você, das duas uma, ou você
some ou ele some. Entendeu?
 Mas... São quase quatro horas da manhá.
 Não me interessa que horas são!
 Vou fazer o melhor possível, senhor Torres. Acredito
que os rapazes já tenham resolvido o problema.
 Venha à minha casa amanhã. Quero esses negativos.
 Sim, senhor.
 Boa-noite, Gonçalves.
***
 Alô. Estevão Dourado?
 São quatro horas da manhã. Quem está falando?
 Inspetor Vítor da PF.
 O senhor deve estar maluco para me ligar a uma hora
destas!
 Preste atenção. Preciso saber tudo sobre Antônio
Gonçalves. E possível que já tenhamos encontrado o
assassino de Campos. Através de quem Gonçalves entrou na
Receita Federal? Ele é contratado ou concursado? Há
quanto tempo trabalha, lá? As recomendações do agente.
Preciso disso o mais cedo possível. Boa-noite.
 Alô! Inspetor.
Assim que desligou o telefone, Vítor, que se metera na
central telefônica junto com Raimundo, aguardou os
movimentos do diretor da receita.
Para conseguir isso Vítor tivera que acordar Júlio Pontes
e pedir que interviesse junto à administração da companhia
telefônica. O homem relutara, mas acabou cedendo. E lá
estava o inspetor arriscando sua sorte.
Estevão Dourado levantou-se da cama.
Não acreditara no que tinha acabado de ouvir. Antônio
Gonçalves. Ficou repetindo o nome para si mesmo como a
procurar um indício do que significava. Afinal, em que se
metera Campos?
Foi em vão a tentativa de Vítor.
Nenhum telefonema foi dado pelo diretor da Receita. E
as suspeitas do inspetor sobre ele tiveram que ficar em
suspenso. Ou o sujeito era esperto demais, ou sua ligação
com o possível assassino não existia. O inspetor não pregou
o olho. Passou o resto da madrugada na central. Voltou com
o detetive Raimundo para o escritório, tomou um banho e
pouco depois das oito da manhã entrava no deparlamento de
pessoal da Receita Federal, levando consigo a pasta com os
negócios do senador. Fez uma lista com os nomes de
pessoas importantes e com cargos de chefia no projeto de
reflorestamento.
O que encontrou foi valioso.
Antônio Gonçalves, segundo a ficha, entrara no
Departamento da Receita há um ano e dois meses. Quinze
dias depois da primeira remessa ilegal feita pelo senador
através da Colômbia! E mais: tinha sido especialmente
recomendado pelo vice-presidente do projeto: Eduardo
Torres! O conhecido homem de finanças com trânsito em
todas áreas políticas e respeitado no congresso.
Do departamento de pessoal Vítor dirigiu-se à portaria e
procurou saber a hora de entrada de Gonçalves na manhã do
dia em que morrera Campos. Foi tiro e queda. Virgílio não
estava mentindo, definitivamente. Gonçalves se metera
numa boa enrascada.
 Às sete e dez, inspetor  confirmou o segurança da
portaria.
 Saiu novamente? insistiu Vítor.
 Dez minutos depois afirmou o segurança.
O inspetor respirou fundo. Enfim. começava a deslindar
o mistério. Juntou todas suas provas. argumentos e
esperanças.
O superintendente da Polícia Federal ia ficar pasmo.
***
O delegado Júlio Pontes aguardava com certa ansiedade
a chegada do inspetor.
 E então? Dourado acabou de falar comigo, cheio de
indignação porque o acordou no meio da noite. Me disse
que você enlouqueceu. Qual é o problema, Vítor?
 Posso me sentar, senhor? Não dormi ....
 Sente-se e vá falando.
 O agente da Receita federal Antônio Gonçalves é
suspeito de mandante do homicídio de Miguel Campos. A
vítima descobriu as tramas de sonegação do senador
Henrique Portela. O suspeito infiltrou-se no departamento
com essa finalidade: interceptar a ação de Campos e usar o
resultado da investigação. Para matar Campos usou dois
sujeitos, um deles, Antônio Benedito, atualmente preso nas
dependências da superintendência; o outro, não identificado
ainda, já era. E, fecho de ouro, Gonçalves liga-se a Eduardo
Torres. Todos da mesma panela. Portela, Gonçalves e
Torres. Evidente que Torres, vice-presidente, deseja agarrar
o seu senador pelo pé e colocar alguém de mais confiança
no lugar. Todos estão ligados através do projeto milionário
de reflorestamento na Colômbia. Do qual, como já disse,
Torres é o vice-presidente e testa-de-ferro das mais diversas
empresas, desde botões até ferramentas especializadas. O
senhor o conhece?
O delegado colocou a mão no queixo e continuou
calado. O inspetor calou-se, levantou-se da cadeira em
direção à janela.
 O negócio é esse aí. Está acabado, precisa de alguns
retoques. Mas não deverá mudar de direção, senhor.
 Torres liga-se à uma quadrilha internacional, Vítor.
Acho difícil que você chegue até ele. Quanto a Gonçalves e
seus rapazes... Sua rede pegará esses peixes?
 A verdade é que Torres pode alegar desonestidade do
senador. O que não deixa de ser verdade. Mas a operação
bem elaborada acabou transbordando. Eu deixei rolar a
notícia de que Benedito foi preso. Isso vai esquentar o
negócio.
 E o senador Portela?  perguntou Júlio Pontes.
 Deve estar dando cambalhotas no gabinete.
 Muito bem, Vítor. Qual é o material?
O inspetor começou a tirar da pasta que Estevão
Dourado lhe trouxera o filme que comprometia o senador,
as fotocópias dos documentos, a lista com nomes e
finalmente uma cópia da ficha de Gonçalves na Receita
Federal. Enquanto passava os papéis. continuou relatando
todos os detalhes do que descobrira. A história de Virgílio,
o original do filme em mãos de Gonçalves, as saídas e
entradas do agente no laboratório, e o precioso testemunho
de Virgílio.
 O rapaz está protegido?  perguntou o diretor.
 Sim, senhor.
 Arranque uma confissão de Benedito. Suborne-o se for
necessário. Jogue a culpa para cima do cúmplice que
morreu para pegarmos os homens de Torres.
 Tem outra coisa, senhor?
 O que é?
 Estevão Dourado
 Ele está metido nisso? Você está brincando...
 Não sei, senhor. Precisamos checá-lo. Peça as
informações sobre Antônio Gonçalves. Foi o que fiz na
madrugada esperando que a bola rolasse e até agora nada.
Veja o que consegue.
 Acha que o pessoal do Departamento do Pessoal deles
não vai falar?
 Com o Estevão Dourado sobre a minha visita?
 Exato.
 Duvido. Eu os ameacei seriamente de prisão!  disse
sorrindo o inspetor.
 Certo. Espere um pouco, Vítor. Vou ligar para a
Receita.
Vítor continuou de pé ao lado da janela. A manhã clara e
tranqüila deixou-o deprimido. A boca com um gosto
amargo e com o corpo doído, incomodava-o menos do que
uma espécie de desconfiança em tudo aquilo que via.
Voltou a pensar nas palavras de Virginia e pressentiu que
ela tinha razão. Algo dizia que o inspetor estava sendo
manipulado, mesmo contra a própria vontade. Uma
sensação profunda de ausência tomou conta do inspetor.
Uma frase de espanto do delegado acordou-o.
 Você tem certeza disso?  perguntou Júlio.
Vítor virou-se agitado.
 Meu Deus  balbuciou o delegado.
 O que foi?  perguntou Vítor.
Júlio Pontes fez um sinal com a mão para que
silenciasse.
 Está bem, Estevão. Obrigado  disse desligando.
O inspetor interrogou com os olhos o atônito Júlio
Pontes.
 Vítor, sente-se para não cair!
 O que foi? Fale logo  pediu com a voz rouca o
inspetor.
 Gonçalves foi encontrado morto há quinze minutos!
 O quê?
 Exatamente isso. Morto com dois tiros na cabeça. Lá
se foi o seu suspeito.
 Quer maior prova do que essa, senhor?
O delegado da PF abaixou a cabeça e emudeceu.
10
E o fim?

“Pensar, jamais!”
Essa era a ordem de idéias que o secretário do senador
Portela enfiara na cabeça. Desde a esclarecedora conversa
com o político, o rapaz descobrira que, no seu caso, o
melhor a fazer era cumprir ordens e pronto. Sentia-se mais
seguro e sossegado dessa maneira.
 Está tudo certo, Jaime?  perguntou o político.
 Sim, senhor. Todo o dinheiro já foi depositado no
Banco Nacional de Bogotá. Já dei um fim àqueles
documentos, senador.
 Perfeito. Alguma novidade?
 Chegou essa carta em mãos para o senhor.
 Deixe ver.
Um belo envelope azul-claro com o nome de Eduardo
Torres surgiu perante os olhos do político. Henrique Portela
procurou manter a serenidade. Afinal, não tinha o que
temer.
“Caro Henrique:
Devido a fatos inesperados e desagradáveis, comunico-
lhe, com pesar, que não poderei apoiá-lo em sua campanha
de reeleição. O que não significa deva desistir. Acredito
que possa procurar novos incentivadores de sua brilhante
carreira política. Você diverge de nossa orientação atual.
Não se preocupe, isso é natural das mudanças na política.
Soube que teve alguns problemas com a Receita Federal.
Pessoalmente posso assegurar-lhe de que não se preocupe.
Os negativos que o comprometeriam estão em meu poder, e,
caso tudo siga o curso normal, jamais serão utilizados. Não
vejo necessidade de que reponha quaisquer quantias em
Bogotá. Você sabe que não precisa nos temer. Isso tudo é
uma questão de princípios. Desejo-lhe boa sorte. E não
hesite em recorrer a mim.
Cordialmente,
Eduardo
***
O inspetor João Vítor escondeu-se num hotel durante o
dia inteiro em que soube da morte de Gonçalves. Vítor
queria dormir. Dormir muito e descansar. Esquecer por
muitas horas aquele círculo fatal.
Na manhã do dia seguinte foi ao encontro do delegado
Pontes.
Júlio Pontes recebeu-o com certa alegria inusitada.
 Onde você se meteu?
 Fui dormir, senhor.
 O que é isso? Abandonou o caso Campos?
 O senhor está brincando comigo?
 Vá em frente, Vítor.
 Gostaria que o senhor não transferisse os documentos
que lhe entreguei para a Receita Federal. Se o fizer, será
realmente o fim da investigação. Ainda tenho uns últimos
cartuchos e quero usá-los.
 Hum... Enquanto for necessário, a pasta que me
entregou não sairá deste gabinete. Fique tranqüilo.
Vítor deixou a sala do diretor da FP e foi direto ao
encontro de Rodolfo.
 Sumido inspetor! Eis que surge...  sorriu o colega.
 É um prazer conhecê-lo pessoalmente, Rodolfo.
 Raimundo me contou da prisão que efetuaram. Era o
tal sujeito do apartamento?
 É sobre isso que quero lhe falar. Você me disse que o
local está nas mãos de um Juiz da Fazenda Pública. Sabe
quem é?
 Espere um momento. Em que dia lhe dei essa
informação?
 Foi dois ou três dias atrás. Acho que três dias.
 Três! Está aqui. Inspetor Vítor... Vejamos.
Tim tirou o bloco de anotações e esperou pacientemente.
 Juiz Torrente, inspetor. É esse o homem.
 Muito bem. Quero saber se esse juiz tem alguma
relação profissional ou de amizade com Estevão Dourado e
Eduardo Torres. Você consegue isso para mim?
 Altas esferas, inspetor  comentou Rodolfo.  Está
querendo ser promovido?
 E mais possível que me rebaixem  resmungou Vítor.
 Certo. Vou ver o que posso arranjar.
***
 Agora, Benedito!
Vítor voltou para sua sala e mandou chamar o suspeito
mandado do falecido Gonçalves.
Qual não foi a surpresa do inspetor ao ser informado de
que Benetti já estava na penitenciária estadual desde a
manhã anterior.
 Quem fez isso?  perguntou irritado Vítor.
 Foram ordens do Juiz Ricardo Trevos da Execuções
Criminais.
O inspetor Branco que lhe passara a notícia ficou
assustado com a reação de João Vítor. O inspetor deu um
soco na mesa com tal força que derrubou a lâmpada
fluorescente. E começou a xingar toda a superintendência.
 Esse sujeito não podia sair daqui! De maneira alguma!
 Mas ele está na penitenciária, Vítor. E se você ir lá e...
 Até logo. Branco. Se Rodolfo telefonar, diga que não
demoro.
O inspetor Vítor sabia perfeitamente o que poderia
acontecer com Benedito na prisão. Uma noite era mais do
que suficiente para acabarem com sua última tábua de
salvação de chegar até Torres ou fosse quem fosse...
Ele demorou mais de uma hora para chegar até a prisão
estadual e apesar do distintivo quase teve que ficar na porta.
Finalmente o diretor resolveu recebê-lo. E foi mais outra
hora de espera.
 Me desculpe, inspetor  disse o homem.
 Estamos atolados de serviço. Sinto muito, O que
deseja?
 Preciso interrogar Antônio Benedito. Esse é o
problema. Ele estava na superintendência da PF e foi
removido por ordem judicial. Como pode acontecer uma
coisa dessas. São mais de onze horas da manhã! Estou
querendo falar com ele há quase duas horas. Afinal,
ninguém entende que estou a serviço?
 Quanto à ordem do juiz não tenho o que declarar. Mas
peço desculpas pela demora.
 Está bem. Agora preciso falar com Benedito!
 Certo. Vá para o terceiro andar e espere na 12. E a sala
de interrogação. Precisa de ajuda para apertá-lo?
 Não. Até logo.
Benedito demorou tanto a aparecer que o inspetor
resolveu ligar para Rodolfo e saber dele as novidades.
 Pode ir tomando nota, inspetor. Tenho muita coisa
para o senhor. Sabe aquele apartamento? Pois bem, vai a
leilão judicial semana que vem. Ordem do Juiz Torrente.
 A leilão? Então posso desistir de saber quem utilizava
o maldito apartamento.
 Bem, que vai ser difícil, isso pode ter certeza.
 E as outras novidades, são desse tipo?
 Não sei. Depende do que o senhor quer saber. O Juiz
Torrente é amigo íntimo de Estevão Dourado. E mais:
Eduardo Torres é casado com a sobrinha do juiz. Tomou
nota? Agora, não consegui nada sobre Estevão e Torres.
Não sei se os dois se conhecem. Mas o juiz é uma amizade
comum entre os dois. O senhor sabe, inspetor, nesse meio
todos se conhecem de ouvir falar. Bem, é isso.
 Transfira para o diretor, Rodolfo  pediu Vítor.
O inspetor repetiu as informações de Rodolfo e
continuou:
 Você está vendo? As coisas estão nesse pé!
 E Benedito, inspetor? Aperte o homem! Você precisa
desse sujeito.
 Estou na prisão estadual. Um juiz da execução
criminal o mandou para cá. Não agüento mais ficar
esperando. Ë quase meio-dia e não chego ao Benedito.
 Deixe que eu falo com o diretor. Isso é um absurdo!
 Agora não adianta mais. O que tinha que ser feito já
foi feito. Gostaria de saber sua opinião sobre as informações
de Rodolfo. O que diz?
 Sem Benedito? Nada feito, não lhe darei o meu apoio.
Com Benedito? Vá em frente!
 Sim, senhor.
Assim que o inspetor Vítor desligou seu telefone celular,
um homem da penitenciária veio avisá-lo de que o diretor
queria vê-lo.
 Mas, e o Benedito?
 Não sei, inspetor. Essas são as minhas ordens.
 Hum...  resmungou furioso Vítor.
O diretor foi direto ao assunto.
 Uma coisa terrível, inspetor. Vou abrir um inquérito
imediatamente!
 Já sei. Benedito simplesmente desapareceu, fugiu.
Imagino que esteja na Suíça fazendo esportes de inverno.
 Não brinque, inspetor. Benedito foi encontrado
esfaqueado em sua cela, há quinze minutos atrás. Quer ver o
corpo?
 Espero que o senhor tire bom proveito desse inquérito.
Bom-dia!
 O senhor está tratando com um superior. Controle-se.
Sabe quantos presidiários são assassinados nas prisões por
ano?
O inspetor da PF virou as costas sem dar atenção ao
homem que continuou vomitando estatísticas. Bateu a porta
com tal violência que os guardas da segurança vieram
correndo com a arma em punho.
Vítor passou por eles e resmungou:
 Acho que o diretor está passando mal.
Na verdade, quem se encontrava prestes a entrar num
acesso incontrolável de raiva era João Vítor.
 Sem Benedito, nada feito. Sem Benedito... Essa é
demais.
***
Os documentos foram devolvidos à Receita Federal.
Estevão Dourado recebeu um relatório do próprio Júlio
Pontes. O que o diretor da PF disse a Dourado não chegou
aos ouvidos do inspetor. . Aliás, Vítor não queria nem de
longe saber de nada que se referisse a Miguel Campos e
companhia.
O tempo foi passando. Uma semana, duas, três e um mês
depois, numa sossegada noite de inverno, o inspetor
deparou com uma deslumbrante página de jornal...
Primeiro, numa bela fotografia apareciam, em frente do
Senado, importantes figuras do mundo político e financeiro.
O eminente lobista Eduardo Torres anunciava sorrindo seu
apoio à candidatura de Estevão Dourado ao Senado Federal.
Dourado concorreria por um partido de oposição pelo
estado de São Paulo. No meio dos dois, sorrindo, o
simpático Juiz Torrente.
Segundo, numa pequena nota, o senador Portela
preparava-se para viajar ao Amazonas, onde iria tratar de
assuntos referentes a um projeto de reflorestamento. Portela,
segundo o jornal, pensava em abandonar a política
temporariamente e se dedicar aos negócios.
O inspetor Vítor engoliu em seco e jogou o jornal em
cima do sofá.
Imediatamente a elegante senhora Durval lhe veio à
lembrança.
Resolveu visitá-la.
***
 Inspetor Vítor! Que surpresa agradável! E então,
chegou ao fim de seu caso?
 O caso não precisou de mim para chegar ao fim.
 Que pessimismo, Vítor! Não deve duvidar de sua
capacidade como brilhante inspetor que é. E não desanime.
Afinal, todos acabamos sendo usados. Eu não lhe disse que
estavam chupando seu cérebro?
 Foi por isso que vim até aqui. Precisava conversar com
alguém. Estou me sentindo terrivelmente só nesta droga de
cidade. E lhe mostrar um negócio  disse Vítor referindo-se
a uma notícia de jornal. O inspetor havia guardado um
recorte do que lera.
 Entre, Vítor.
 E o Virgílio, como vai?
 Resolveu ir para São Paulo. Vai tentar a fotografia por
lá. Acho melhor para ele.
 E... São Paulo é São Paulo, certo?
 E o senhor?
 Eu? Bem... continuo trabalhando. Talvez pensando em
voltar para Belo Horizonte. Acho que não consegui adaptar-
me a Brasília.
 Esta cidade é muito difícil. Você tem razão. Aliás...
O telefone tocou e a elegante senhora Durval foi atender.
Vítor procurou pelos recortes no bolso do paletó.
 Mas... Hoje à noite? Quem? Ah! Não me diga. Está
bem, eu aceito.
O inspetor devolveu os recortes ao paletó e esperou.
 Vítor. sinto muito. Tenho que sair. O que você queria
me mostrar?
 Ah! Não é nada. Posso vê-la amanhã?
 Você me desculpe ter que sair assim de repente. Sabe
o que é? O Juiz Torrente me convidou para jantar, um velho
amigo. Mas amanhã espero você, está bem assim?
 Juiz quem?
 Aldo Torrente. Você o conhece?
 Não. Não conheço esse juiz.
O inspetor levantou-se e fez um enorme esforço para
controlar-se. Seu sorriso saiu com uma lágrima talvez.
 Peço desculpas, Vítor. Sinceramente.
João Vítor despediu-se da mulher e no corredor todo o
frio de Brasília pareceu querer arrebentar as janelas e varrer
a cidade.
 Boa-noite, inspetor Vítor  disse Virgínia Durval
enquanto ele ia se afastando lentamente em direção ao
elevador.
 Boa-noite  resmungou com uma voz inaudível o
inspetor.
A seguir: O ALBATROS NEGRO
Um navio cargueiro usado para o transporte de
entorpecentes

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