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CERQUEIRA, F.V. Música e Vida Pastoril na Grécia antiga: o contexto ático segundo
evidências arqueológicas, iconográficas e literárias. Revista do Museu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, 18: 199-210, 2008.
Resumo: Este estudo visa a interpretar, por meio do cotejamento entre os registros
literários, visuais e materiais, as características e sentido da presença da atividade musical
na vida pastoril da Grécia antiga e, em particular, do ambiente cultural e social ático.
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políticos e incapazes de serem sociáveis” (Burford situações específicas em que a música do aulós se
1993:10. Cf. Aristófanes Vespas 1120-1537; Os faz presente nesta atividade (Cerqueira 2007),
Acarnenses 33-39; As Nuvens 43-52, 372. acompanhando a colheita e o pisoteio das uvas;
Aristóteles Política 1328b, 1329a e 1330a. as cenas que relacionam a música com a vida do
Teofrasto Os caracteres 4.7-8, 4.11-2, 4.16). pastor fazem tão-somente alusão à sua presença
O autor, de forma convincente, interpreta neste contexto social, não a retratando no curso
que há uma relação entre o fato de as fontes da atividade econômica pastoril.
históricas e iconográficas do período clássico Para superarmos esse quase silêncio ateniense
esconderem o rural e a constituição, sobre o tipo de música praticada no campo no
contemporaneamente, da hegemonia ateniense período clássico, precisamos recorrer à compara-
sobre o Egeu, conquistada nos anos que se seguiram ção, considerando que Atenas não constitui um
às Guerras Pérsicas. Essa Atenas dominante e fenômeno isolado nos costumes da vida rural e
cosmopolita, que exercia uma preponderância na cultura musical grega antiga. Mesmo possuin-
internacional do ponto de vista sócio-político, do suas especificidades, a Atenas clássica compar-
econômico, ideológico e cultural, não queria ser vista tilha aspectos em comum com outras regiões e
como uma pólis rural. Assim, preferiam vincular a até mesmo outros períodos do mundo grego
imagem da cidade às atividades que transcorriam no antigo. Precisamos ter em mente que, quando
espaço urbano, sobretudo a política. falamos de campo, lidamos com o que se chama
Todavia, apesar deste preconceito e desdém em história de longue durée. Na vida rural, as
pelo mundo rural, revelado pelos atores sociais mudanças são mais lentas e as continuidades
que produziram a maior parte dos testemunhos mais longevas (Cerqueira 2007).
remanescentes desta sociedade – testemunhos Desse modo, buscaremos recorrer a referên-
escritos ou visuais –, a vida rural desempenhava cias de outras regiões e de outras épocas, bem
um papel de extrema relevância na vida ática, como à diversidade de registros textuais, materi-
sobretudo no aspecto econômico e demográfico, ais e visuais, para explicar e compensar as poucas
como demonstram as evidências arqueológicas, evidências que a iconografia ática nos fornece
nada obstante a pujança do artesanato urbano, sobre a música na vida rural. Nesse panorama
representado inclusive pela cerâmica, portadora mais amplo, visitando inclusive o imaginário
dessa imagética que oculta o universo rural. mitológico, encontramos testemunhos altamente
Dessa forma, para conseguirmos reconstituir as sugestivos e, em certos casos, irrefutáveis, sobre o
práticas musicais da vida campesina, precisamos uso da música no acompanhamento das lides
romper a barreira do silêncio imposta ao agro-pastoris.
campesinato, que não usufruía de veículos Como colocado acima, as evidências
literários para expressar a representação que iconográficas da cultura musical na esfera rural
fazia de si mesmo. concentram-se nas temáticas da viticultura e
Quanto aos seis vasos incorporados ao pastoreio. As cenas de vindima e pisoteio de uva
nosso catálogo de estudo das representações de foram analisadas em artigo de nossa autoria,
cenas musicais de vida diária na cerâmica ática, recentemente publicado: “O uso da música no
há que se ressaltar que somente dois retratam trabalho rural na Antigüidade clássica: o caso do
cenas humanas (Fig. 2, Fig. 2.1. Cerqueira 2001: aulós na vindima” (Cerqueira 2007: 243-257).
cat. 525, 525.1), o restante apresentando alusões Dedicamo-nos, aqui, de forma a complementar o
mitológicas a práticas cotidianas rurais. Os estudo da música na esfera rural, a aprofundar a
registros iconográficos da cultura musical no análise sobre a presença da música na vida pastoril.
ambiente rural, na pintura vascular ática,
concentram-se em duas atividades econômicas: a
agricultura, especificamente a viticultura, e o Música e Pastoreio
pastoreio. É interessante, aqui, lembrar algumas
particularidades: as cenas com vindima, restritas A vida pastoril aparece de forma extrema-
à técnica de figuras negras (séc. VI), retratam as mente discreta na iconografia ática, sendo quase
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completamente oclusa do repertório dos afirmar que a iconografia ática, quando retrata-
pintores de figuras vermelhas. Conforme os va o mundo rural, inspirava-se principalmente
dados levantados por Chevitarese, referentes aos nos temas ligados ao vinho. Isso, porém, não
vasos áticos de figuras vermelhas, para um total justifica a oclusão do universo pastoril, sobretu-
de 103 inventariados com cenas rurais, apenas três do se considerarmos sua valorização simbólica
registram cenas de pastoreio, contra 16 cenas de nas narrativas míticas referentes à educação dos
pisoteio de uvas e 62 cenas de caça. (Chevitarese heróis na lýra, narrativas nas quais a reclusão
2001:198, tabela 26.) Isso mostra o desinteresse entre os pastores e o aprendizado da lýra
dos artistas em associar seus produtos ao aparecem como uma espécie de ritual de passa-
universo rudimentar dos pastores, pois isso gem desses heróis. Esse desinteresse pelo pastor
poderia dificultar inclusive a venda de seus vasos, deve-se ligar à visão negativa que se passava entre
voltada ao mercado urbano. os citadinos sobre o tipo rural, caracterizado,
A conseqüência dessa visão preconceituosa como identifica Chevitarese, como grosseiro,
dos citadinos atenienses, relativamente à vida da ignorante, desprovido de refinamento social e
khorá ática, reverbera modernamente no pouco avesso à política, devendo ser visto mais como
interesse entre os historiadores modernos em escravo do que como cidadão. (Chevitarese
estudar a iconografia do pastor. Nesse sentido, 2000:1. Cf. Aristófanes Vespas 1120-1537; Os
as pesquisas de M.C. Amouretti (1979) e A.L. Acarnenses 33-39; As Nuvens 43-52, 372.
Chevitarese (2000) adquirem muita importância. Aristóteles Política 1328b, 1329a e 1330a.
Em sua investigação sobre a iconografia do Teofrasto Os caracteres 4.7-8, 4.11-2, 4.16).
pastor, Amouretti identifica séries iconográficas No fundo mítico, verifica-se a importância
bastante dispersas no tempo e no espaço. Para o que a música devia ocupar na representação do
período abrangido em nosso estudo, marcado pela pastor: por exemplo, Páris e Ânfion, salvos de
cerâmica ática de figuras negras e vermelhas (da seu desígnio maldito e educados por pastores,
metade do séc. VI à virada do séc. V para o IV), escondendo-se nas montanhas, como jovens
encontra três focos de produção iconográfica no pastores, e lá tocando lýra. Efetivamente, no séc.
Mediterrâneo: trata-se de pequenas estátuas de ex- V elabora-se um tipo iconográfico do jovem
voto, muitas delas de bronze, encontradas em pastor músico (Amouretti 1979:158-159). Essa
santuários ligados a Pã ou a Hermes kriophóros, pequena série iconográfica mistura representa-
localizados na Arcádia (no Monte Liceu), em Creta ções mitológicas e humanas.
(como em Kato Symi) e na Beócia. Em nenhum Os mitos respeitantes ao período de cresci-
desses santuários, as imagens votivas do pastor estão mento e educação de Páris, escondido nas
associadas a algum instrumento musical, não montanhas e tocando lýra, encontram ressonân-
obstante a tipificação desses, na literatura, como cia na imagética ática, sobretudo nas representa-
um atributo pastoril. A s yrinx
¬ aparece como ções do julgamento de Páris: é comum a imagem
atributo iconográfico do pastor somente em do herói troiano, adolescente, sentado sobre um
estátuas produzidas pelos ateliês do norte, entre a rochedo, tocando lýra, rodeado por animais,
metade do séc. IV e o séc. II a.C. Em Anfípolis, enquanto Hermes interrompe seu sossego
encontram-se muitas estátuas do jovem pastor, com pastoril, trazendo-lhe Hera, Atena e Afrodite,
boné frígio, syrinx,
¬ cajado, às vezes um cachorro ou para que o rapaz decida qual delas é a mais bela.
uma ovelha. (Amouretti 1979:156-157) Um bom exemplo encontra-se sobre uma hydría
No que tange à cerâmica ática, o desinteresse de figuras vermelhas, do Museu Britânico,
dos pintores é mais acentuado ainda entre datada do terceiro quartel do quinto século (Fig.
aqueles da técnica de figuras negras, pois não se 1. Cerqueira 2001: cat. 526): Páris, vestindo um
encontra um único exemplo de pastor no manto rústico, descansa sentado sobre uma base
período arcaico, apesar do grande número de rochosa, ao lado da qual se vê uma ovelha.
mitos, concernentes, sobretudo à juventude de Outro vaso (Fig. 1.1. Cerqueira 2001: cat.
heróis recolhidos e educados por pastores 526.1) apresenta uma variação: em situação
(Édipo, Ânfion, Páris). A princípio, pode-se semelhante, o mesmo está rodeado por cabras.
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Documentação iconográfica
Tema 1: O jovem pastor músico 67, fig. à p. 163. Chevitarese 2000, ficha
9; 2001: cat. nº 71. Boardman ARFV 1
180. Cerqueira 2001: cat. 525.
Personagem mitológico – lýra: Comparanda: Figura 2.2. Ânfora. Figuras
vermelhas. Sem atribuição. Berlim,
Figura 1 Hydría. Figuras vermelhas. Pintor da Antikesammlung, F 4052. Século V.
Oinochóe de Yale. (ARV² 503/20) Descrição: Jovem pastor, vestindo túnica e
Londres, Museu Britânico, E 178. Em pilos, sentado sobre uma rocha, toca aulós
torno de 470. Descrição: Julgamento de diante de um sátiro. Bib.: Amouretti 1979:
Páris. Páris, vestindo clâmide, tocando 167, esp. 167. Cerqueira 2001: cat. 525.1.
lýra, sentado sobre base rochosa, ao lado
da qual está uma ovelha. Aproximam-se
Tema 2: Sátiro (Fauno) tocando monaulós
dele Hera, Atena e Afrodite.
Bibliografia: Boardman ARFV 2 34
Figura 3 Escultura em mármore. Paris, Museu do
Cerqueira 2001:cat. 526.
Louvre, Antiga Coleção Borghese, MR
Comparanda: Figura 1.1 Kýlix. Figuras
187 (Ma 594). Obra romana do período
vermelhas. Makron. Assinada pelo oleiro
imperial (séc. I – II d.C.), inspirada em
Hieron. (ARV² 459/4) Berlim,
peça que pode ter sido concebida no
Antikesammlung, F 2291. 490-80.
começo do século III a.C., no estilo da
Descrição: Páris, sentado sobre uma
escola dos três grandes mestres do séc. IV
superfície rochosa, envolvido por cabras,
a.C., Praxíteles, Scopas e Lysippos.
tocando lýra. Bib.: Amouretti 1979:158,
167. Boardman ARFV 1 310. Cerqueira
2001: cat. 526.1. Figura 1.2 Hydría. Tema 3: Pã, em relação amorosa, ensinando a s yrinx
¬
Figuras vermelhas. Pintor da Oinochoé a um jovem pastor
de Yale. (ARV2 503/20) Londres, Museu
Britânico, E 178. Segundo quartel do séc. Figura 4 Grupo escultórico em mármore. Pã e
V. Descrição: Julgamento de Páris: sentado Dafni. Museo Archeologico Nazionale di
sobre rochedo, com cabra aos seus pés, Napoli, Colezione Farnese, inv. 6329.
enquanto toca lýra, recebe as deusas. Bib.: Bibliografia: Caro, Stefano. Il Gabinetto
CVA Museu Britânico 5 (Grã Bretanha 7) Segreto del Museo Archeologico Nazionale di
III I c, pr. 81.3. Cerqueira 2001: cat. 526.2. Napoli. Guida rapida. Nápoles:
Soprintendenza Archeologica di Napoli e
Caserna, 2000, p. 10
Personagem humano - aulós:
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CERQUEIRA, F.V. Music and Pastoral Life in Ancient Greece: The Attic context
according to the archaeological, iconographical and literary evidences. Revista do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 18: 199-210, 2008.
Referências bibliográficas
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