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Comunicação e Espaço Público, Ano XI, nº 1 e 2, 2008

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Pele, cinema e fotografia1 Arbus, adaptation.

Resumé: Le film Fur (traduit comme Peau


au Brésil, 2006) fait un portrait imaginaire
Susana M. Dobal
de la photographe Diane Arbus, basé, en
partie, sur une biographie publiée. Il
suscite des questions sur l’adaptation et la
Resumo: O filme Fur (Pele,2006) faz um
création suggérées par la façon dont l’idée
retrato imaginário da fotógrafa Diane
de peau est utilisée selon différents sens:
Arbus baseado em parte em biografia
manteau de fourrure, la peau de l’amant, la
publicada. Ele suscita questões sobre
peau des objets, du mur, être dans la peau
adaptação e criação, visíveis na maneira
de l’Autre. Le film révèle aussi la
como o termo pele multiplica-se: o casaco
coïncidence de procès psychologiques
de pele, a pele do amante, a pele dos
présents dans le cinéma et dans la
objetos, da parede, estar na pele do outro.
photographie qui, dans une direction
O filme também revela coincidência de
inverse à celle normalement acceptée par
processos psicológicos presentes no
une adaptation, suggèrent un retour au
cinema e na fotografia que, em percurso
photos de Diane Arbus pour qu’on puisse
inverso ao normalmente aceito para uma
voir plus clairement en elles ce qui,
adaptação, sugerem um retorno às fotos de
d’abord, semblait être énigmatique.
Diane Arbus para vermos com mais
clareza nelas o que antes parecia
Mots-clés: photographie, cinéma, Diane
enigmático.
Arbus, adaptation.
Palavras-chave: fotografia, cinema, Diane
Arbus, adaptação.

Abstract: The film Fur ( translated as Skin


in Brazil, 2006) makes an imaginary O filme Fur (Pele, 2006)2, de
portrait of the photographer Diane Arbus
Steven Shainberg, traz à tona um tema
based in part on a published biography. It
raises questions related to adaptation and pouco tratado na relação do cinema com
creation, suggested in the way the words
outras artes, que são as suas afinidades ou
skin and fur are multiplied in different
meanings: fur coat, the lover’s skin, the diferenças no que diz respeito à fotografia.
skin of the objects, of the wall, to be on the
O filme parte da biografia da fotógrafa
Other’s skin. The film reveals as well the
coincidence of psychological processes Diane Arbus, escrita por Patricia
present both in cinema and photography.
Bosworth, co-produtora da obra
In an inverse direction normally associated
to adaptations, they lead to a return to (BOSWORTH, 2005). No entanto, o
Diane Arbus’s pictures in order to see
subtítulo anuncia, trata-se de um “retrato
clearly in them what seemed enigmatic
before. imaginário de Diane Arbus”, o que
significa que houve plena liberdade em
Keywords: photography, cinema, Diane
relação à obra original. Apesar disso, não
1
Uma primeira versão desse texto foi apresentada
no XI Encontro Internacional da SOCINE, na PUC- se trata de uma adaptação arbitrária. Por
RJ em outubro de 2007. Ele foi complementado em
2
pesquisa durante pós-doutorado realizado com o O filme será mencionado nesse artigo sob o título
apoio da Capes, em 2008. original, Fur.

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meio de caminhos tortuosos, Fur revela em outro meio artístico. Além disso, o
tanto os desafios colocados pela adaptação original passa a ser entendido como uma
de uma obra escrita, como processos obra aberta, passível de ser interpretada
psicológicos que aliam o cinema à pelo roteirista, pelo cineasta, pelos atores,
fotografia. O ponto de ligação é o motivo pelas imposições do momento histórico. O
dominante proposto pelo título: ele fala do essencial de uma obra torna-se, portanto,
sentido do tato, a princípio inacessível algo móvel, indefinido, que ao ser
tanto ao cinema quanto à fotografia, transposto depende, porém, da coerência
porém, nesse caso, a representação gira em interna para obter alguma repercussão,
torno, justamente, dessa impossibilidade. prova da expressividade da obra, garantia
Alem disso, em processo inverso ao da do seu re-acontecimento.
adaptação que parte de uma fonte, o filme Ao falar sobre a tradução literária,
vira matriz, sugere um retorno às Walter Benjamin já destacava o risco de se
fotografias de Diane Arbus para se ver considerar apenas elementos irrelevantes
nelas o que antes parecia dissimulado. na transposição de uma obra para outra
Há muito a idéia de fidelidade língua, o que impõe um árduo desafio ao
deixou de ser dominante nas discussões tradutor: « (…) aquilo que está numa obra
sobre a adaptação de obras literárias para o literária, para além do que é comunicado (e
cinema. Os argumentos determinantes para mesmo o mau tradutor admite que isso é o
isso centram-se principalmente na essencial), não será isto aquilo que se
especificidade da linguagem reconhece em geral como o inefável, o
cinematográfica em relação ao original misterioso, o « poético » ? Aquilo que o
escrito, e nas leituras diversas que cada tradutor só pode restituir ao tornar-se, ele
obra propõe e cada época impõe.3 mesmo, um poeta ? »4 Embora
Descartar acontecimentos, personagens, predominem situações novas no filme, há
recursos literários diversos torna-se, assim, acontecimentos da biografia de Diane
questão obrigatória para que a linguagem Arbus que são reapresentadados em Fur. O
cinematográfica seja plenamente desafio ao qual o filme se propõe, no
aproveitada e a obra volte a ser expressiva entanto, é encontrar as motivações de
3 Diane Arbus para realizar a sua obra
Sobre esse posicionamento, ver, por exemplo,
Ismail Xavier, “Do texto ao filme: a trama, a cena e
a construção do olhar no cinema” in Tânia
4
Pellegrini [et al.], Literatura, cinema e televisão. Walter Benjamin, «A tarefa-renúncia do
São Paulo, Editora Senac, Instituto Itaú Cultural, tradutor » in Werner Heidermann (org.). Clássicos
2003 e José Carlos Avellar, O chão da palavra: da teoria da tradução. Vol. 1 – Antologia Bilingüe
cinema e literatura no Brasil. Rio de Janeiro, Alemão/Português. Florianópolis: NUT,2001. p.
Rocco, 2007. 189-191.

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fotográfica. Onde estaria o tal inefável, o interpretar uma obra, tais argumentos em
misterioso - expressão ela mesma tão favor do cinema ainda são recorrentes.
corrente nas palavras deixadas pela Eles podem demonstrar ainda a
fotógrafa5 - nas suas imagens necessidade de se afirmar a especificidade
aparentemente tão explícitas de freaks do cinema e sua legitimidade como forma
diversos ou de personagens comuns de arte. Noël Carroll destaca o fato de que
tornados estranhos pela câmera ? Como o as teorias da especificidade formaram-se
cinema pode contribuir para tornar em momentos em que determinado meio
explícitos os mecanismos que permitiram artístico precisava se afirmar perante outras
tal obra fotográfica? Essas são as questões tradições mais antigas (CARROLL, 1996).
a serem tratadas a seguir. Dessa forma, confundiu-se muitas vezes
No debate sobre a adaptação, não características históricas de um meio
falta a análise dos recursos especificamente artístico com a sua essência. Melhor
cinematográficos em contraponto à obra exemplo disso pode ser verificado no
literária. Apesar de já ter sido repetido à debate sobre a fotografia, cuja essência
exaustão que o cinema tem autonomia para estaria no registro de algo em frente à
câmera, levando, assim, à equivocada
5
O livro Revelations abre com a seguinte citação de constatação de que o « naturalmente »
Diane Arbus: “And the revelation was a little like
what saints receive on mountains – a further chapter fotográfico seria a representação do real,
in the history of mystery...” (“E a revelação foi um
ou um suposto realismo. Vigorou,
pouco como o que os santos recebem nas
montanhas – mais um capítulo na história do portanto, na fotografia, a tradição
mistério...” (ARBUS e SUSSMAN, 2003, p.1 )).
Patricia Bosworth comenta a importância que a documental, apoiada pela teoria que a
idéia de mito - entendido como um sonho coletivo,
uma espécie de pré-consciência vivida socialmente justificava – fosse ela defendida por Andre
- esteve sempre presente na obra de Diane Arbus,
particularmente a partir da influência de um de seus Bazin, Roland Barthes ou Susan Sontag.6
professores, Algernon Black (BOSWORTH, 2005,
Por outro lado, no cinema, a defesa de uma
p. 29). O interesse pelos mitos pode ser confirmado
também por diversos livros na biblioteca de Diane suposta vocação para o realismo,7 sugerida
Arbus (ARBUS and SUSSMAN, 2003, p. 51-52).
Tal fato pode ser comprovado ainda pelo projeto de pela necessidade de um real a ser
registrar rituais americanos conforme descrito por
Diane Arbus e reproduzido em Revelations. Arbus
via nesses rituais algo além da mera banalidade.
6
Após descrever os rituais a serem registrados - Particularmente nas seguintes obras desses
jogos, reuniões de escola, de clubes, competições, autores: BAZIN, Andre. "Ontologia da imagem
festas diversas - ela conclui: “These are our fotográfica" in XAVIER, Ismail (org.). A
symptons and our monuments. I want simply to experiência do cinema. Rio de Janeiro,
save them, for what is ceremonious and curious and Graal/Embrafilme, 1983. SONTAG, Susan. Sobre a
commonplace will be legendary” (“Esses são fotografia. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.
nossos sintomas e nossos monumentos. Quero BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de
apenas salvá-los pois o que é cerimonioso e curioso Janeiro, Nova Fronteira, 2000.
7
e comum será lendário.”) (ARBUS and Ver BAZIN, Andre. O Cinema : Ensaios. São
SUSSMAN,2003, p. 41). Paulo, Brasiliense, 1991.

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registrado pela câmera, produziu um documentary photography has been


paradoxo, pois a ênfase foi deslocada para thought to rest, for they deal with private
a tendência que prevaleceu na produção rather than social realities, with
cinematográfica, que foi a ficção. Carroll psychological rather than historical fact,
argumenta que, em vez da essência, as with the prototypical and mythic rather
teorias da especificidade defendem than the typical and temporal. Her
características da representação photographs record the outward signs of
historicamente legitimadas. inner mysteries”.9 Para situar esse
No caso da fotografia, a vocação momento da fotografia, Rouillé contrapõe-
para o realismo foi bem questionada por se à Barthes e seus seguidores, que se
André Rouillé, que traça um cuidadoso basearam na teoria do índice e que
histórico das diversas abordagens do consideraram a fotografia essencialmente
suposto realismo fotográfico (ROUILLÉ, como representativa. Os pressupostos
2005). Para o autor, a obra de Diane Arbus dessa concepção seriam que a fotografia é
situa-se em um momento de crise da transparente, o mundo pré-existe à sua
concepção da fotografia enquanto representacão e pode ser captado pela sua
documento, antecipada por Robert Frank mera aparência material. As mediações
nos anos 50, com reverberações posteriores entre as coisas e a imagem teriam sido,
na fotografia dos norte-americanos Diane dessa forma, negligenciadas (ROUILLÉ,
Arbus, Lee Friedlander, William Klein ou 2005, 173).
o francês Raymond Depardon.8 Na Podem-se considerar tais
retrospectiva da obra de Diane Arbus, mediações como elementos próprios da
exposta no MOMA em 1972, John linguagem fotográfica, mas elas também
Szarkowski escreve texto de apresentação podem ser deduzidas do diálogo entre
em que comenta a particularidade de diferentes manifestações artísticas. Para
Arbus: “Diane Arbus’s pictures challenge Carroll, citado acima, diferentes meios têm
the basic assumptions on which most em comum algumas características que são

8
A consciência de um novo momento na história da
9
fotografia documental já existia no momento “As fotografias de Diane Arbus desafiam a
mesmo de realização da obra de Arbus. Em 1967, concepção básica sobre a qual a maior parte da
John Szarkowski, responsável pelo Departamento fotografia documental tem se apoiado, pois elas
de Fotografia do Museu de Arte Moderna de Nova lidam com realidades particulares e não sociais,
Iorque, prepara a hoje célebre exposição New com o fato psicológico e não com o fato histórico,
Documents onde se propunha a falar de uma nova com o prototípico e o mítico e não com o típico e o
vocação da fotografia longe do humanismo temporal. As fotografias dela registram os sinais
benevolente da geração anterior. Três fotógrafos externos de mistérios internos”. Citado em nota por
foram expostos: Garry Winogrand, Lee Friedlander Sandra Philips, “The question of belief” in ARBUS
e Diane Arbus (BOSWORTH, 2005, 239 a 241). and SUSSMAN, 2003, p. 330.

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apropriadas e transformadas em novos uma corpulenta Rollei Flex, tornada ainda


meios artísticos. A partir do momento em mais presente pelo acréscimo de um
que aceitamos tal diálogo, a realidade bojudo flash conectado à câmera. Esse
passa a ser o produto do que a linguagem objeto desengonçado aparece geralmente
permite perceber, e não algo que jaz pendurado no pescoço de Diane Arbus,
imóvel a ser apreendido, por exemplo, pela mas é também cuidadosamente enquadrado
câmera fotográfica, tal qual na concepção ao ser deixado em cima da mesa ou
da fotografia enquanto documento. O recuperado de dentro do armário.10 Ele é
cinema e a fotografia, assim como outras apenas uma aparição paralela a tantas
manifestações artísticas (a literatura e a outras, como o olho de alguns personagens
pintura, por exemplo, em diálogo mais espiando pelo buraco da fechadura, o olhar
próximo e claras referências em outra pelo binóculo, a câmera inverossimelmente
épocas) traduziram, portanto, espiando Diane Arbus/Nicole Kidman de
sensibilidades temporais, emprestando um dentro dos furinhos do interfone. O filme
do outro não só temas, mas também parece querer nos divertir com essa
estratégias. narrativa paralela que narra menos uma
Não seria difícil apontar a diferença história do que o prazer de espiar. Espiar o
entre o cinema e a fotografia : a quê ? O próprio espiar, a câmera
característica mais evidente é o registro do fotográfica, o desejo que ela viabiliza e que
movimento, congelado em um caso ou revela menos o seu objeto do que a procura
prolongado no tempo, no outro. Interessa por ele.
aqui, no entanto, identificar afinidades, O instinto escopofílico manifesto
afinal, foram elas que sugeriram a na insistência em representar a visão
transposição da prática da fotografia para desdobra-se de duas formas durante o
esse filme. As afinidades começam pelo filme, que vêm reafirmar a sua presença
fato de ambos utilizarem uma câmera, um norteadora na estrutura de Fur. Em
aparato tecnológico que, longe de primeiro lugar, o instinto aparece com o
significar a ausência da intervenção
humana, pode sugerir, ao contrário, a 10
Na biografia de Diane Arbus, ela é lembrada por
amigos como um personagem sempre carregando
presença demasiadamente humana por trás
pesados equipamentos que corresponderiam tanto a
da máquina. É o que veremos em um filme sua idéia de que o ato de fotografar deveria ser algo
difícil, penoso, quanto a uma maneira de se
que trata insistentemente do corpo, dos proteger por trás de todo o aparato (BOSWORTH,
2005, p. 219, 241, 255 e 290). No filme, essa
pêlos, da pele, e que, ao mesmo tempo, presença que pontua a biografia da fotógrafa foi
traduzida em closes da câmera fotográfica para
insiste em enquadrar em primeiro plano torná-la igualmente aparente.

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seu oposto, o exibicionismo, num processo corpo, ou um objeto, um casaco de pele,


que Freud apontou como a característica por exemplo.
ambivalente do instinto, ou seja, o fato de A escolha pelo tema « pele »
ele não se apresentar de forma pura, mas responde a um duplo propósito no filme :
como ondas oscilando entre uma posição por um lado, era o artigo principal com o
mais passiva, a do prazer escopofílico, e qual a família de Diane Arbus mantinha os
uma posição mais ativa, o exibicionismo negócios, antes de abrirem uma grande loja
(FREUD,1915). No filme, a fotógrafa vai de departamentos ; por outro lado, o tema é
até a varanda da sua casa e começa a se amplamente explorado no filme como
despir na frente das janelas dos vizinhos, fetiche, e portanto, como forma de
cuja presença a câmera faz questão de simbolizar os processos psicológicos da
apontar. Em outra cena, o mecanismo sedução e do desejo. Apesar do ramo de
inverte-se : além dos inúmeros negócio dos seus pais, e de ter começado a
enquadramentos da câmera fotográfica, carreira como assistente do seu marido,
binóculos e olhos na fechadura, Lionel, Allan Arbus, fotógrafo de moda, Diane
amante da fotógrafa, leva Diane Arbus Arbus sempre foi avessa ao mundo da
para ver um casal despido dançando, ao moda, como comprovam tanto
que ela responde com maravilhamento. Em depoimentos seus relatados na sua
segundo lugar, a presença do fetiche vem biografia como as suas fotos posteriores a
reafirmar o desejo como força motora por esse período inicial. A moda, no entanto,
detrás do olhar fotográfico. Segundo a subjaz de alguma forma nas suas fotos :
explicação freudiana, o fetiche é o produto voyeurismo, exibicionismo, pose,
da renegação da castração feminina, forma encenação, fetiches são temas presentes
encontrada para simbolizar o falo ausente, tanto na fotografia de moda em geral,
perversão que difunde a libido rumo ao como nas fotos de Diane Arbus e no filme
gozo não mais centrado na genitalidade de Shainberg. A carga erótica do casaco de
(FREUD, 1927). A criança descobriria o
uma menina perceberia o seu corpo como falta e
desejo da mãe pelo pai, quebrando assim a não o corpo masculino como excesso? O
mecanismo do fetiche, no entanto, parece aceitável
sua unidade com a figura materna. A por dois motivos. O primeiro, por ser um atributo
aparentemente atuante sobretudo na sexualidade
angústia dessa incompletude é suprida com
masculina, onde a ansiedade da castração parece
um substituto imaginário, que dissimula a mais justificável; o segundo, porque, como defende
Maria Rita Kehl ( 1988), o falo ausente não
falta.11 Ele pode ser uma outra parte do corresponde apenas ao pai, mas à angústia humana
pela incompletude que nos deixará para sempre à
mercê da insaciável nostalgia pelo absoluto, pelo
11
Bastante incômoda essa lógica que parece guiada resgate da unidade perdida com a consciência de
sobretudo para o olhar masculino, afinal, por que nós mesmos.

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pele é evidente : apelo ao tato pela sua por quem Diane Arbus se apaixona no
maciez, apelo ao desejo pela sugestão do filme, sofre de hipertricose, rara doença
instinto animal, dos instintos mais que faz com que nasçam pêlos no corpo
próximos do corpo. O casaco de pele tem todo. Ele é como os freaks que Arbus
ainda dupla conotação de poder e de fotografou ao longo da vida, pessoas com
sadismo. Essas componentes do desejo, já alguma anormalidade genética, ou ex-
exploradas em filme anterior do mesmo atores, ex-atletas, travestis, sósias de
diretor, A Secretária (2002), reaparecem pessoas famosas, que se apresentavam em
no filme, como atitude sugerida pelo ato shows de curiosidades, como os que
fotográfico, seja pelas inúmeras fotos de aconteciam no Hubert’s Freak Museum.
freaks penduradas na casa de Lionel, que Na biografia de Arbus escrita por
nos colocam na posição de espectadores do Bosworth, é algumas vezes deixado em
sofrimento alheio,12 seja pela postura de aberto qual o tipo de relação que Arbus
Lionel, sempre disposto a dar ordens a uma tinha com alguns dos freaks que
passiva fotógrafa, seja ainda pela imagem fotografou, um dos quais negociou as fotos
do mesmo Lionel, de quem Arbus raspa os em troca de que ela passasse uma noite na
pelos do corpo deixando-o coberto de casa dele. Negócio que Arbus aceitou, e
marcas de corte de gilete.13 nunca comentou. O filme, produzido pela
Assim como nas pulsões que se biógrafa e inspirado no seu livro, aproveita
manifestam de forma ambivalente, o pêlo, a deixa, e a leva ao extremo para tentar
no filme, é ao mesmo tempo motivo de trazer à tona « o que pode ter sido a
atração e de repulsa. Lionel, personagem experiência interior de Arbus no seu
extraordinário caminho », como é
12
Sabemos, pela biografia escrita por Bosworth,
que Diane Arbus adquiriu uma coleção dessas fotos anunciado no letreiro do início do filme.
quando acabou o Hubert’s Freak Museum, local de
Mas essa experiência interior não é só de
espetáculo realizado por freaks que Arbus gostava
de freqüentar e onde fotografou diversos Arbus. Como a câmara que passeia pelo
personagens que se apresentavam no local
(BOSWORTH, 2005, p. 166-7 e 239). Arbus tinha encanamento que liga os apartamentos dos
também uma parede onde colecionava fotos
diversas, suas, de outros fotógrafos ou tiradas de amantes no prédio, o desejo pode passar da
jornais e revistas, em que vêem-se freaks, um
esqueleto, uma prostituta, um corpo nu, uma cena pessoa e atravessar os objetos, inclusive a
de enforcamento, uma de incêndio entre outros
câmera.
(ARBUS and SUSSMAN, 2003, p.12-13 e 213).
Na parede, Arbus parecia encenar o universo que Para Christian Metz, interessado
procurava.
13
A conotação sádica das fotos de Diane Arbus foi em apontar como mecanismos psicológicos
comentada por Susan Sontag, para quem a obra de
Arbus era uma forma de lidar com a sua vida estavam inerentes ao aparato fílmico, o
poupada de sofrimentos, uma maneira de infringir a
dor para poder senti-la (SONTAG, 1989). cinema e o fetiche estão fortemente

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relacionados. O autor diferencia o cinema uma música intrigante vindo do


do teatro pelo fato de o referente estar apartamento de Lionel passa pelo sistema
ausente no primeiro. O sadismo implícito de ventilação do prédio e chega aos
em todo voyeurismo, ele diz, torna-se mais ouvidos atentos da fotógrafa. Em sentido
explícito no cinema, onde não há o ator, contrário, mais adiante, os gemidos do
com seu consentimento implícito, e sim casal de fotógrafos fazem o percurso
apenas um reflexo que faz com que o inverso e chegam aos ouvidos ansiosos de
cinema seja « um encontro perdido entre o Lionel. O apartamento deste é um deleite
voyeur e o exibicionista » ( METZ, 1993, para os olhos, uma miríade de objetos,
p.88), um voyeurismo não autorizado que cores em tons quentes, tecidos de estampa
se instala no espaço anônimo do escurinho e textura diversas, parede descascando para
do cinema, não autorizado e, ao mesmo tornar ainda mais presente a sua qualidade
tempo, socialmente aceito. Metz chama a de forro, apelo ao tato exposto em
atenção para o fato de as tentativas de iluminação branda para que em vez de
desficcionalizar o espetáculo serem mais repulsa, essas paredes tragam aconchego.
avançadas no teatro do que no cinema, As cenas em que os corpos de Diane Arbus
onde a ficção estaria mais à vontade com a e Lionel estão mais próximos, na piscina e
ausência do referente. Como no na praia, têm a cenografia cuidadosamente
mecanismo inerente ao fetichismo, o preparada em azul e branco. E quando os
espectador aceita colocar de lado uma falta corpos finalmente se tocam, Lionel veste
para contentar-se com substitutos, direta ou uma lânguido roupão vermelho. Toda uma
indiretamente relacionados à satisfação do articulada variedade de sensações foi
prazer erógeno. O cinema funciona, preparada para que o espectador esteja na
portanto, em torno da falta dissimulada. Os sala escura com os mesmos olhos
sentidos mobilizados pelo cinema, a visão estatelados de Diane Arbus olhando o casal
e a audição, e as pulsões correspondentes nu dançando : « It’s terrific ! », ela diria. E
que ele atende, a pulsão escópica e a no entanto, tudo é apenas uma encenação
pulsão invocante (pulsão de ouvir), da falta, que culmina com a representação
baseiam-se no distanciamento do corpo e deliberada daquilo que ao mesmo tempo a
seu objeto, diferente do tato e do olfato. dissimula e a viabiliza.
Em Fur, esses substitutos do corpo Para Metz, a relação entre o fetiche
ausente, chamarizes no jogo da sedução, e o cinema culmina na percepção do
são amplamente explorados aproveitando- próprio aparato fílmico como fetiche : « o
se os recursos cinematográficos. O som de fetiche é o cinema no seu estado físico »

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(METZ, 1993, p. 103). Para ele, os resolvem revelá-los. Os filmes deveriam


fetichistas do cinema são os que se ser dos retratos que ela estaria fazendo de
maravilham com o que a máquina Lionel, motivo de tantas ausências. A cena
consegue fazer, mas ele não isenta os da decisão de revelar os filmes é
teóricos do cinema ao fazer a ressalva de intercalada com a chegada de Diane ao
que o equipamento não é apenas físico, apartamento de Lionel, decidida a
está também no texto do filme. As finalmente fotografá-lo. Lionel pede-lhe
tergiversações em torno do fazer que depile todo o seu corpo; enquanto isso,
cinematográfico retêm-se, dessa forma, no no apartamento embaixo, Allan, o marido
fetichismo do significante. A própria fotógrafo, revela os filmes e depois amplia
câmera pode induzir o espectador a isso. as fotos. O casal de amantes no andar de
Para Metz, os enquadramentos estranhos cima termina na cama; Allan, supreso, está
têm como função lembrar o espectador do entre inúmeras fotos, mas nela há apenas
jogo no qual ele está imerso, ao apontarem espaço vazio, escadas, o puxador da porta
para o mecanismo e não para a cena do apartamento de Allan, aposentos
(METZ, 1993). Em Fur, isto é feito desertos. O retrato nunca havia sido tirado,
insistentemente, seja pelos em vez dele, havia apenas o espaço sem
enquadramentos da câmera fotográfica de nada. Lionel, condenado por uma doença
Diane Arbus, seja pelos diversos pontos de no pulmão, confessa que tem plano de se
vista inusitados da câmera, como os que já suicidar ; Diane resolve finalmente fazer o
foram comentados e que equivalem, por seu retrato, sem pelos, rosto triste e frontal,
exemplo, à cena em que o casal se diverte em foto em preto e branco. Na cena
na cama e a câmera espia de dentro do seguinte os dois estão na praia ; eles
armário, emoldurando o enquadramento entram no mar mas sabem que Lionel não
com casacos de pele. Somos levados, voltaria. Quando finalmente Diane Arbus
assim, a interromper a fluidez da ficção faz um retrato no filme, é quando ela perde
para ver o jogo do aparato fílmico, jogo o personagem que ama. Antes havia ele,
que, segundo propõe essa ficção, mas não havia fotos e os corpos não se
assemelha-se ao jogo do aparato tocavam ; depois, com o amor consumado,
fotográfico; pelo menos o de quando o há o retrato, mas não há mais o seu dono.
aparato estava nas mãos de Diane Arbus. Lionel deixa um álbum para Diane, todo
Quando, em Fur, a família se cansa legendado com o espaço das fotos em
das ausências de Diane Arbus, filhas e branco, apenas as cantoneiras e a promessa
marido pegam diversos rolos de filme e de uma obra. A ausência característica do

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cinema e da fotografia está ela também participavam de espetáculos (há também


consumada num retrato da sua fatalidade : tipos tornados excêntricos fotografados na
um desejar que move a câmera em busca sua temerosa normalidade), tudo conspira
do inapreensível. Mas o que tudo isso pode para o registro do pacto teatral. Essa não é
ter a ver com as fotos de Diane Arbus, a tradição, por exemplo, de Henri Cartier-
aparentemente tão claras, tão evidentes, tão Bresson, na França, ou de José Medeiros,
simples na sua composição tendo sempre o no Brasil, entre tantos outros que tanto
personagem centralizado e de frente, marcaram a identidade da fotografia a
consentindo, dando-se à fotógrafa, em toda ponto de se confundir com a sua própria
a sua misteriosa evidência ? natureza. Como o fotógrafo Richard
Metz falava do pacto no teatro e no Avedon, seu grande amigo e a respeito de
show de striptease : alguém concorda em quem se pode falar em recíproca
se expor, e outro se deleita em olhar influência, Arbus traz da fotografia de
(METZ, 1993). O cinema e a fotografia se moda o gosto pela pose, mas em vez de se
caracterizam pelo desencontro entre o contentar com a máscara, ela registra a
voyeur e o exibicionista, já que ambos anormalidade no banal e a normalidade no
nunca estariam no mesmo espaço físico. excêntrico. Os freaks não são mostrados
Talvez, porém, não seja tão importante em atuação, no palco, mas em suas casas.
enfatizar a presença física, talvez esse O homem gigante, de quem Arbus ficou
enfoque seja apenas uma reminiscência da amiga e fotografou diversas vezes, só foi
necessidade de se afirmar a especificidade finalmente registrado de maneira
do cinema, como disse Noël Carroll, em satisfatória para a fotógrafa quando ela o
texto comentado anteriormente. Mesmo retratou na casa dos pais, ao lado deles,
sendo um desencontro, a encenação se deu, dois adultos de estatura normal. Era
e ela pode ser o mais importante. A obra de preciso sempre deslocar o ator do
Arbus insere-se sem sombra de dúvida na espetáculo : a bailarina de circo, fora dele,
tradição da fotografia documental (ainda com a capa voando ; os travestis nos
que, como comenta Rouillé, esteja situada camarins ; a nudez pública dos campos de
em um momento de crise da fotografia nudismo ; a debutante muitas décadas
enquanto documento (ROUILLÉ, 2005)), depois ; o fotógrafo preparando o menino
mas ela baseia-se na encenação : um corpo para a foto da primeira comunhão. O que
posa, outro assiste. A posição sempre todos eles têm em comum é o fato de haver
frontal, o flash também de frente, os algum deslocamento que evidencie a
personagens que na maioria das vezes

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disparidade entre o personagem e o seu p.58). A explosão desse obtuso nas


papel, o jogo de encenações. fotografias de Diane Arbus vem
Há aqui um diálogo com Barthes, demonstrar a dificuldade do pensamento
não o d’A Câmara Clara, preso demais a teórico de pensar também a fotografia não
uma compreensão da fotografia arraigada apenas em torno do seu referente. O âmago
na idéia da representação de um referente, dessa noção de obutso, está ainda, no
mas ao conceito do obtuso defendido por entanto, na compreensão dos mecanismos
ele principalmente na linguagem fílmica. O da linguagem no que diz respeito a
obtuso estaria em oposição ao óbvio, ou processos de significação. Embora Metz
seja, ao que pode ser decifrado pela relação fosse inicialmente movido por
com um referente ou pela cultura. Sem elo preocupação semelhante, sua posterior
com o significado, o obtuso seria um ponto perspectiva psicológica para os
intermediário que marca a passagem da mecanismos fílmicos sugere caminhos para
linguagem à significação, algo que que a fotografia seja vista como uma
pareceria limitado para a razão analítica reencenação dos mesmos mecanismos. O
pois estaria próximo do jogo de palavra, do filme de Shainberg traz à tona a
carnavalesco alheio a categorias morais ou possibilidade de aproximar cinema e
estéticas (BARTHES, 1982, p.46). Para fotografia para lermos na última estratégias
Barthes, haveria no sentido obtuso uma menos exploradas, porém não menos
afinidade com o erotismo, seria o contrário presente.
do belo, e para além da oposição, seria o Apesar da aparente naturalidade das
limite, o mal-estar, e talvez mesmo o fotos de Diane Arbus, algo sempre mostra
sadismo (BARTHES, 1982, p.53). Como a pose, a naturalidade é apenas da
descrever o que não representa nada? encenação de cada um. Se resta alguma
Barthes pergunta (BARTHES, 1982, p.55). dúvida sobre a força do tema de Arbus ser
Isso que seria um significante sem também esse jogo de encenação, o pacto
significado está presente não no nível da entre o fotógrafo e o fotografado que
linguagem mas da interlocução, um ruído rompe com significações habituais, basta
que interrompe a narrativa para verticalizá- determo-nos nas fotos dela de lugares
la. Porém, preso demais a uma diversos. São imagens bem pouco
determinada noção da fotografia, Barthes divulgadas, sem o impacto dos seus
só entrevia a possibilidade do sentido retratos, mas que ajudam a elucidá-los. São
obtuso no cinema, onde ele seria o próprio espaços vazios, como as fotografias
ato fundador do fílmico (BARTHES, 1982, ampliadas por Allan no filme, mas estão

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longe de ser apenas isso. Elas estão por acaso a fotógrafa anota uma citação em
carregadas de significação, pois são um dos seus cadernos: “ ‘A footprint is
geralmente espaços cênicos : paisagem made by a shoe but it is not the shoe itself’
sombria de pedras sobre rodas na from the Wisdom of Lao Tse”.17 O tema da
Disneylândia, castelo à meia luz com cisne pegada, do vestígio que não é a coisa em
também na Disney, caverna do trem si, parece ser legítimo, ele persegue Diane
fantasma com esqueletos e assombrações, Arbus, como naqueles casos em que o
uma sala sem ninguém com uma árvore de fotógrafo muda de situações e está sempre
natal.14 Assim como os personagens vendo o mesmo. E se por detrás dessas
retratados pela fotógrafa, fora do contexto encenações procurarmos pelo jogo do
do espetáculo, esses lugares desertos desejo, ele não faltará em outras fotos :
revelam apenas a estranheza de uma casal entrelaçado e nu, na cama18 – Arbus
identidade encenada. fotografou também orgias sexuais
Embora tenha tido menos (BOSWORTH, 2005, p. 256, 263, 291);
divulagação, esse não era um tema dominatrix e seu cliente, provavelmente a
irrelevante para Diane Arbus. Na caixa de inspiração para uma cena do filme ;
dez imagens, um portfolio de edição estrangulador atacando a sua vítima no
limitada que começou a preparar em 1969 museu de cera.19 Estamos no universo do
e que deveria sintetizar sua obra, entre seus filme de Steven Shainberg : exibicionismo,
habituais personagens Arbus colocou a voyeurismo, sadismo povoam o filme e a
fotografia da sala vazia com a árvore de obra da fotógrafa. A evidência de
natal.15 No conjunto da sua obra, juntam-se encenações, seja de personagens ou de
às imagens de locais vazios outras fotos de locais, causa um distúrbio na adesão ao
encenações mais explícitas : plano geral do referente pois damo-nos conta do processo
público em um teatro na rua 42 em NY, de representação presente seja nas fotos,
beijo do casal no filme « Baby Doll »,
nuvens em uma tela de um drive-in.16 Não Kiss from ‘Baby Doll’, N.Y.C. 1956, p.29; Clouds
on a screen on a drive-in, N.J. 1960, p. 3
17
“Uma pegada é feita por um sapato, mas não é a
coisa em si” do Livro da Sabedoria ede Lao Tse no
14
Segue a referência dessas fotos no livro de Caderno nº1, 1959” (ARBUS e SUSSMAN, 2003,
ARBUS e SUSSMAN (2003) Rocks on wheels, p. 86).
18
Disneyland, Cal. 1962, p. 248-249; A castle in Couple under a paper lantern, N.Y.C. 1966 e
Disneyland, Cal. 1962, p. 288-289; The House of Couple in bed, N.Y.C. 1966 in ARBUS e
Horrors, Coney Island, N.Y., 1961, p. 110; Xmas SUSSMAN, p. 112 e 62-63.
19
tree in a living room, Levittown, L.I.1963, p. 92-93. ARBUS e SUSSMAN, 2003: Dominatrix
15
PHILIPS, Sandra.”The question of belief” in embracing her client, N.Y.C. 1970, p. 108;
ARBUS e SUSSMAN, 2003, p. 50 a 67. p.66. Dominatrix with a kneeling client, N.Y.C. 1970 p.
16
Todas as fotos em ARBUS e SUSSMAN: 42nd 66 e Wax museum strangler, Coney Island, N.Y.
Street movie theater audience, N.Y.C. 1958, p. 27; 1960 p. 28.

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seja no ato de ver realizado pelo não está mais diante de nós, há apenas o
espectador. seu reflexo mas ele é suficente para
Pode-se fazer a ressalva de que a lembrar todo o jogo de sedução implícito
maior parte das fotos de Arbus são pessoas naqueles retratos fotográficos. Se Metz
normais, sentadas no banco do Central procurava no cinema o reflexo de
Park ou da Washington Square. No mecanismos psicológicos, o filme Fur
entanto, a fotógrafa procura jogá-las no trouxe à tona a maneira como esses
palco. Surpreende como essas pessoas se mesmos mecanismos podem funcionar
deram tão inteiramente num encontro tanto no cinema como na fotografia.
fortuito, no meio da praça. Elas não estão A adaptação de uma obra literária
envolvidas em suas próprias atividades, para uma obra cinematográfica revelou,
não fazem parte de composições fugazes nesse caso, a sucessão de vazios, como se
captadas em um momento decisivo. Parece dois espelhos colocados frente a frente
haver sempre um encontro, elas se refletissem apenas um espaço oco
colocam de frente para a fotógrafa, e nos inúmeras vezes. Em uma das imagens, está
olham lá do palco. Norman Mailer subiu o vazio do personagem ausente no retrato
um joelho no braço da poltrona e deixou-se fotográfico, onde ele deixou apenas o seu
fotografar de pernas escancaradas.20 rastro/reflexo; na outra, o vazio implícito
Depois se surpreendeu, e fez o famoso no cinema, por causa da mesma defasagem
comentário de que colocar a máquina nas entre o mostrar-se e o ver comentada por
mãos de Diane Arbus era como dar uma Metz ; em outra ainda, vê-se a obra
granada para uma criança. Inúmeros literária (biográfica) ausente no filme, a
depoimentos falam da capacidade de Diane encenação dessa ausência. Todas essas
Arbus de dar atenção às pessoas com quem faltas deixam rastros, substitutos, desvios
conversava, qualidade que lhe dava certo que são ao mesmo tempo isca. Diane
21
magnetismo . O personagem fotografado Arbus veste o casaco feito com o pêlo de

20
Ao que o fotógrafo Walker Evans comentaria, ao
ver a foto: “You actually get a sense of what it’s questions, questions you couldn’t resist answering
like to be Norman” (“Você realmente tem uma because they were question you’d been secretly
idéia de como é ser Norman” ) (BOSWORTH, asking yourself.” (“E eu entendi porque ela era tão
2005, p. 227). boa fotógrafa. Ela era tão desconcertante – tinha
21
Entre diversas referências a essa característica de aquela estranha habilidade de se relacionar com as
Diane Arbus na sua biografia, destaco o pessoas que fotografava. Ela tinha um jeito maroto
depoimento do fotógrafo Bevan Davies: “And I – aberta e interessada em você. Fazia questões
realized why she was such a great photographer. perspicazes que você não tinha como resistir de
She was so disarming – she had this uncanny ability responder porque eram perguntas que você vinha
to relate to her subjects. She was very girlish – secretamente fazendo a si mesmo”). (BOSWORTH,
open, and interested in you. She asked very sharp 2005, p. 274).

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Lionel. Ele não existe mais, e ela veste a se passe a ver algo mais nas suas fotos: o
pelo dele. eventual erotismo, o jogo entre o voyeur e
Em mais um jogo de opostos o exibicionista, a encenação dos
explorado no fime, a pele atrai, enquanto o mecanismos da visão que não foram
excesso de pêlo, como no caso de Lionel, inventados no filme a partir do nada. Há
deixa os pais de Diane estatelados quando ainda todos aqueles cenários vazios e fotos
ela traz o amigo para a casa deles. O menos tradicionais do modelo geralmente
casaco de pele, ao contrário, é um forte divulgado da obra de Diane Arbus (cenas
apelo ao contato, que no cinema jamais se de filmes, salas de cinema, cenas eróticas
realiza. O animal dono do pêlo não existe em oposição aos seus conhecidos closes
mais e o casaco em si, é apenas uma frontais) divulgados mais recentemente
promessa que adia prazeres. Tudo chama (ARBUS e SUSSMAN, 2003) e que, em
ao toque, mas a imagem é etérea, raios de princípio, pareceriam não fazer sentido
luz projetados que nos despertam, sem com o resto da sua obra, talvez o motivo
jamais saciar. A adaptação é apenas mais pelo qual essas fotos demoraram tanto a
uma variação desse mecanismo. Ela serem expostas.23 Esses elementos já
carrega a lembrança de um original agora estavam presentes nas fotos comumente
ausente. O rastro, porém, pode ser associadas ao estilo de Arbus enquanto
revelador: ele atrai revelando um pouco olhávamos para elas admirados com seus
mais do que víamos antes.
O filme, por mais distante que obra de Arbus, mas seriam igualmente limitadas.
Preferi refletir sobre a relação entre a fotografia e o
esteja da biografia de Diane Arbus (um dos cinema e como uma adaptação pode ser reveladora
dos seus meandros. Tal abordagem se justifica pelo
motivos pelo qual foi mal visto por boa fato de que, por causa da sua associação mais
duradoura com a idéia de realismo, a importância
parte da crítica jornalística),22 permite que da fotografia enquanto estratégia de representação
não recebeu o mesmo espaço crítico que teve o
cinema (autores como Philippe Dubois, Jean-Marie
22
DARGIS, 2006. DENBY, 2006. DE TACCA, Schaeffer, Rosalind Krauss, Arlindo Machado,
2007. Concordo com parte da crítica feita ao filme, André Rouillé e Boris Kossoy pensaram a
em geral, duramente atacado. Mas os argumentos fotografia com esse enfoque, porém não centrado
são principalmente em torno da grandeza da obra de em mecanismos psicológicos. São, no entanto,
Diane Arbus e da sua redução ao aspecto puramente autores que apontaram para uma virada na
fetichista. Considero, no entanto, que um filme não percepção da fotografia contemporânea.). A
esgota toda a abordagem possível de uma obra, e a convivência do cinema e da fotografia nesse filme
escolha pelo fetiche, como esse artigo procura demonstra um diálogo que vai muito além da mera
demonstrar, por mais limitadora que seja é frutífera citação de um meio em outro, sugerindo um valor
para revelar aspectos da obra de Diane Arbus. especial para uma adaptação.
23
Obviamente a abordagem desse artigo tampouco O livro de 2003 acompanhou mostra itinerante
esgota a sua obra, pois não foi o propósito aqui, por que ocorreu entre 2003 e 2006, mostrou uma
exemplo, situá-la dentro da história da fotografia ou retrospectiva da obra de Diane Arbus e contou com
mesmo dentro do momento cultural em que foi a participação da fotógrafa Doon Arbus, filha de
realizada. Tais abordagens são com certeza também Diane, na realização da mostra e do projeto
possíveis e enriquecedoras para a compreensão da editorial.

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personagens estranhos. Como a construção de significado; por outro lado, a


personagem da fotógrafa que no filme se obra de uma fotógrafa, cujas fotos
veste na pele do amante, não seria essa a poderiam parecer antes opacas e
fidelidade máxima, transgredir-se para desconectadas, adquire súbita coerência:
enxergar com os olhos do outro ? O revelam-se elos subterrâneos entre
cinema deixa de ser só cinema, aproxima- situações aparentemente tão díspares. Não
se da fotografia, para podermos ver onde só o cinema, como bem viu Christian
os dois meios se encontram. Como Metz, seria o produto de uma profusão de
resultado, a obra fotográfica desvenda-se, simbolismos, ideologias, representações.24
ainda que seja apenas para mostrar o O mutismo da fotografia nunca impediu o
mecanismo da visão. Se agora voltarmos diálogo com outras manifestações
até mesmo aos personagens de Diane artísticas.25 Esse diálogo frutífero pode ter
Arbus podemos ver menos a sua eventualmente aquela mesma capacidade
estranheza do que um pacto: como rara a um bom retrato: fazer falar o
narcisos, eles se entregaram à busca pelo fotografado. No caso dessa adaptação, o
próprio reflexo. Diane Arbus detinha a cinema faz falar a fotografia para que se
fórmula capaz de mostrá-los a si mesmos. veja que, como o obtuso de Barthes, o jogo
Como comentado anteriormente, são de encenações registrado por Diane Arbus
inúmeros os relatos colecionados na sua interrompe o fluxo que nos levava a ver
biografia que falam da capacidade dela de apenas freaks - os hereditariamente freaks
fazer com que as pessoas falassem de si e 24
"Le cinéma, comme les autres langages riches,
se deixassem levar, baixassem a guarda. est au contraire largement ouvert à tous les
symbolismes, à toutes les représentations
Um deles comenta que « travou os collectives, à toutes les idéologies, à l'action des
diverses esthétiques, au jeu infini des influences et
dentes », conhecia o jogo de Arbus : o filiations entre les différents arts et les différentes
écoles, à toutes les initiatives individuelles des
retrato ficou ruim e não foi utilizado pela
cinéastes("renouvellements"), etc. Aussi est-il
revista (BOSWORTH, 2005, p. 260-261). impossible de traiter l'ensemble des films comme
s'ils étaient les divers messages d'un seul code." (O
Esse diálogo obliterado corresponderia a cinema, com as outras linguagens ricas, está ao
contrário largamente aberto a todos os
uma adaptação fracassada. Nela só há simbolismos, a todas as representações coletivas, a
todas as ideologias, à ação de diversas estéticas, ao
desencontro, não há epifania. Como a que jogo infinito das influênicas e filiações entre artes
diferentes e escolas diferentes, a todas as iniciativas
se vê em Fur.
individuais dos cineastas (“renovações”), etc. É
A revelação encenada no filme também impossível tratar o conjunto dos filmes
como se fossem as diversas mensagens de um só
ocorre em duplo sentido: a compreensão da código.”(METZ, 1977, p.26).
25
Ver, por exemplo, artigo em que o crítico de
fotografia libera-se do referente para cinema Alain Bergala demonstra com primor as
afinidades entre as fotos de Weegee e o film noir
revelar mecanismos mais profundos de (BERGALA, 1997).

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ou os involuntariamente estranhos. Nessa Bibliografia


narrativa interrompida, somos nós mesmos
os flagrados em nossos mecanismos de ARBUS, Doon e SUSSMAN, Elisabeth
(eds.) Diane Arbus: Revelations. New
criaturas desejantes não apenas diante de
York, Random House. 2003.
um visor da câmera, mas também diante da
AVELLAR, José Carlos. O chão da
tela do cinema. Seria esse o elemento
palavra: cinema e literatura no Brasil. Rio
mítico de que falam tantos textos sobre de Janeiro, Rocco, 2007.
Diane Arbus? Um âmago difuso na
BARTHES, Roland. L'Obvie et L'Obtus.
banalidade da vida cotidiana e que aponta Roland Barthes. Paris, Editions du Seuil,
1982. (Barthes, Roland. O óbvio e o
para um ponto em comum guiando nossas
obtuso. Nova Fronteira, 1990.)
lendas, mitos, textos, imagens, criações
BENJAMIN. Walter. «A tarefa-renúncia
diversas. Ou, como diria a própria Arbus
do tradutor » in Werner Heidermann
em um trabalho escolar sobre Platão, “I see (org.). Clássicos da teoria da tradução.
Vol. 1 – Antologia Bilingüe
the divineness in ordinary things”.26 Caso
Alemão/Português. Florianópolis:
positivo, se esse for realmente o elemento NUT,2001. p. 189-191.
mítico, o mais revolucionário teria sido
BERGALA, Alain. « Weegee and Film
usar a fotografia para captar algo que lhe Noir » in Weegee’s World. Boston:
Bulfinch Press Book; NY: ICP, 1997.
pareceu tão maravilhoso e que estava nos
fatos em frente à câmera, mas BOSWORTH, Patricia. Diane Arbus, a
biography. London, Vintage, 2005 [1985].
principalmente na versão deles costurada
foto após foto. Mas para pensar que a CARROLL, Noël. Theorizing the Movie
Image. Cambridge, Cambridge University
fotografia era capaz de captar isso era
Press, 1996.
necessário não mais concebê-la apenas em
DARGIS, Manohla. “A visual chronicler
relação a um referente puro e simples, e
of humanity's underbelly, draped in a pelt
sim como uma construção que em vez de of perversity”. The New York Times, Nov
10, 2006.
apenas registrar o referente, torna visível a
movies2.nytimes.com/2006/11/10/mo
sua reaparição. vies/10fur.html (acessado em
21.11.2008)

DE TACCA, Fernando. « Sob a pele de


quem ? »
fotosite.terra.com.br/novo_futuro/ler_c
oluna.php?id=355(acessado em
21.11.2008)

DENBY, David. « Prettier pictures ». The


26
“Eu vejo a divindade em coisas comuns” New Yorker, Nov. 13, 2006.
(ARBUS e SUSSMAN, 2003, p. 70).

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353

www.newyorker.com/archive/2006/11/13/
061113crci_cinema?currentPage=1
(acessado em 21.11.2008)

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