Você está na página 1de 12

REVISÃO | REVIEW 1187

Ivan Illich: da expropriação à


desmedicalização da saúde
Ivan Illich: from expropriation to demedicalization of health

Livia Penna Tabet1, Valney Claudino Sampaio Martins2, Ana Caroline Leoncio Romano3, Natan
Monsores de Sá4, Volnei Garrafa5

RESUMO Ivan Illich foi um crítico radical da sociedade industrial, cujas ideias influenciaram
a propagação de um movimento contra os cuidados da saúde pela medicina na década de 1970.
Em sua obra, a medicina, é vista como empresa médica cuja função é ameaçar a saúde, através
da colonização médica da vida, que aliena os meios de tratamento; e do monopólio profissio-
nal, que impede a partilha do conhecimento científico. O presente artigo tem como objetivo
apresentar aspectos da vida e obra de Ivan Illich, com ênfase em seu livro ‘A expropriação da
saúde: nêmesis da medicina’ (1975), e também de sua segunda crítica social à saúde, com a
introdução de novos conceitos em sua obra, em 1985.

PALAVRAS-CHAVE Relações médico-paciente. Medicalização. Saúde pública.

ABSTRACT Ivan Illich was a radical critic of the industrial society, whose ideas influenced the
propagation of a movement against health care, by medicine in the 1970s. In his work, Medicine
1 Universidade
is seen as a medical company, whose function is to threaten health, through the medical coloniza-
de Brasília
(UnB), Programa de Pós- tion of life, that alienates the means of treatment; and professional monopoly, which prevents
Graduação em Bioética the sharing of scientific knowledge. This article aims to present aspects of Ivan Illich´ s life and
– Brasília (DF), Brasil.
liviapenna@gmail.com work, with emphasis on his book ‘The expropriation of health: Medical Nemesis’ (1975), and also
2 Universidade
his second social critique to health, with the introduction of new concepts in his work, in 1985.
de Brasília
(UnB), Programa de Pós-
Graduação em Bioética KEYWORDS Physician-patient relations. Medicalization. Public health.
– Brasília (DF), Brasil.
valney@sarah.br

3 Universidade de Brasília
(UnB), Programa de Pós-
Graduação em Bioética
– Brasília (DF), Brasil.
anacleoncior@gmail.com

4 Universidade de Brasília
(UnB), Programa de Pós-
Graduação em Bioética
– Brasília (DF), Brasil.
natan.monsores@gmail.com

5 Universidade de Brasília
(UnB), Programa de Pós-
Graduação em Bioética
– Brasília (DF), Brasil.
garrafavolnei@gmail.com

DOI: 10.1590/0103-1104201711516 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1187-1198, OUT-DEZ 2017

RSD115.indb 1187 15/01/2018 12:40:53


1188 TABET, L. P.; MARTINS, V. C. S.; ROMANO, A. C. L.; SÁ, N. M.; GARRAFA, V.

Introdução Torna-se importante, também, uma revisão


da segunda crítica social de Ivan Illich (ILLICH,
Segundo a mitologia grega, Nêmesis figurava 1992), voltada para a iatrogênese do corpo e às
a vingança divina, ‘a inevitável’. Nêmesis re- práticas a ele relacionadas, da obsessão pela
presenta a força encarregada de abater toda saúde, por meio de atividades físicas, dietas,
desmesura, como o excesso de felicidade de cirurgias etc.; com o consumismo e a busca por
um mortal ou o orgulho dos reis. O termo um corpo sadio tornando-se o maior agente
também é utilizado para designar ‘algo/ patógeno para a saúde (NOGUEIRA, 2003). Por fim,
alguém que exige ou inflige retaliação’; ou, são levantadas algumas considerações relacio-
por extensão de sentido, um ‘rival ou adver- nadas ao processo de medicalização e desmedi-
sário temível’ (GASPARETTO JUNIOR, C2006-2017). calização da saúde.
Na primeira metade dos anos 1970, Illich
lançava a crítica mais contundente empreen-
dida contra a medicina da época, logo no pri- Resumo da biografia
meiro parágrafo de seu ‘Nêmesis da medicina’
(ILLICH, 1975A), no qual se referia à medicina ins- Ivan Illich nasceu em 1926 (Viena, Áustria).
titucionalizada como grande ameaça à saúde. De ascendência judia, foi obrigado a aban-
Segundo o autor, a ampla industrialização da donar a Áustria aos cinco anos, refugiando-
saúde e a medicalização da vida na sociedade -se na Itália. Em 1941, foi expulso da escola
moderna, fizeram com que surgissem diver- em virtude de leis antissemitas que o atin-
sas formas de iatrogêneses ou danos à saúde, giam. Cursou teologia e filosofia em Roma,
com resultantes perdas da capacidade de au- e, posteriormente, histologia e cristalografia
tonomia das pessoas perante as enfermidades, em Florença. Obteve o título de Doutor em
as dores e o envelhecimento. Anos depois, em história pela Universidade de Salzburgo.
uma segunda crítica social à saúde, Ivan Illich Em 1951, foi ordenado sacerdote, e exerceu
relata o surgimento de uma nova iatrogênese, a função de vigário em Nova Iorque, entre
a do corpo (ILLICH, 1992). 1951 e 1956. Em 1961, fundou, no México,
Para melhor entendimento da obra de o Centro Intercultural de Documentação
Ivan Illich, faz-se necessária a revisão dos (Cidoc), que se transformou em um espaço
seus pontos principais, incluindo os concei- importante para as discussões a respeito do
tos de iatrogênese – iatros (médico) e genesis Terceiro Mundo e da América Latina. Suas
(origem). Uma doença iatrogênica é aquela opiniões sobre a desburocratização da igreja
que não existia antes do tratamento médico e a desescolarização da sociedade fizeram do
aplicado, ou seja, é provocada pela ação da Cidoc um lugar de críticas e controvérsias
medicina. O autor divide a iatrogênese em religiosas, o que levou Ivan Illich a abando-
categorias: 1. Clínica, causada pelos cuida- nar o sacerdócio em 1969. Nos anos 1970,
dos de saúde (o ato médico e sua técnica); 2. Illich publicou inúmeras obras abordando
Social, que retrata a medicalização da vida temas relacionados ao sistema educacio-
e seu efeito social; 3. Cultural/Estrutural, nal, ao consumo de energia/transportes e
que abrange o uso ilimitado da medicina à medicina. Em 1976, pelos conflitos com o
e a perda do potencial cultural das pessoas Vaticano, o Cidoc foi fechado (GAJARDO, 2010).
para lidar de forma autônoma com a doença, Foi considerado o pai da ‘educação sem
a dor e a morte. Em conjunto, os três níveis escola’, condenando o sistema escolar. Ao
de iatrogênese comprometem a autonomia escrever o livro ‘A expropriação da saúde:
dos indivíduos, que se tornam dependentes Nêmesis da medicina’, Illich começou a
do saber de especialistas para o cuidado de abordar problemas políticos e institucio-
sua saúde. nais relacionados à medicina (GAJARDO, 2010).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1187-1198, OUT-DEZ 2017

RSD115.indb 1188 15/01/2018 12:40:53


Ivan Illich: da expropriação à desmedicalização da saúde 1189

Foi diagnosticado com câncer de mandíbula desapareceram, independentemente da


no início dos anos 1990 e, fiel às suas ideias ação médica, tendo como explicação para o
a respeito da medicina moderna, recusou o fato, a melhoria das condições de habitação
tratamento administrado por médicos, vindo e nutrição da população. Nos países pobres,
a falecer na Alemanha, em 2002. a diarreia e as infecções das vias respirató-
Ivan Illich se encontrava em um contexto rias superiores são mais frequentes, duram
histórico particular, o dos anos 1960, caracte- mais tempo e resultam em mortalidade mais
rizado pela crítica à ordem capitalista e suas elevada quando a alimentação é insuficien-
instituições sociais. Dono de uma personali- te, independentemente do grau de cuida-
dade complexa, era extremamente inteligente, dos médicos disponíveis (SCRIMSHAW; TAYLOR;
trabalhador incansável, poliglota, cosmopolita; GORDON, 1968 APUD ILLICH, 1975B, P. 14).
professava ideias que suscitavam controvérsias Logo, torna-se fundamental a análise dos de-
e o faziam uma das figuras mais emblemáticas terminantes do estado de saúde global de uma
da época. O próprio Illich provocava polêmica população, tais como a alimentação, as condi-
através de sua personalidade, seu estilo, seus ções de habitação e de trabalho, o meio social e
métodos de trabalho e do radicalismo de suas cultural, ou seja, o modo de vida das pessoas. A
ideias (GAJARDO, 2010). má nutrição moderna é capaz de causar sérios
danos à sociedade. No entanto, paradoxalmen-
te, a ciência dietética não para de progredir.
O ato médico e a Adicionalmente, ⅓ da humanidade sobrevive
iatrogênese clínica em nível de subalimentação, enquanto mais
e mais indivíduos absorvem, nos alimentos,
Com a expansão industrial da medicina re- agentes tóxicos e mutagênicos.
lacionada às grandes doenças no mundo oci- A segunda determinante do estado de
dental, a qualidade de vida foi diretamente saúde global é o saneamento: técnicas sani-
ligada ao aumento da produção de saúde. tárias como o tratamento das águas, a fossa
Ivan Illich via a empresa médica como um séptica e, o uso de sabão possuem mais
perigo para a saúde, em uma concepção con- impacto global do que técnicas sanitárias que
trária ao mito criado em torno dela mesma. exigem a intervenção de especialistas. Illich,
Os sistemas médicos caros não aumentavam com seu pensamento radical, interroga:
a esperança de vida, assim como os atos
médicos para reduzir a morbidade global, Por que preocupar-se em tornar menos mor-
resultando em uma nova fonte de doença – a tífero o meio ambiente, já que os médicos es-
iatrogênica. Então, as medidas para neutrali- tão equipados industrialmente para salvar as
zar a iatrogênese tinham um efeito parado- vidas humanas? (ILLICH, 1975B, P. 150).
xal, onde a profissão que provoca a doença se
encarregava exclusivamente do seu controle O autor faz uma comparação entre o trata-
(ILLICH, 1975A). mento de doenças infecciosas e não infeccio-
Segundo Ivan Illich (1975B), a primeira sas, deixando clara a eficácia do tratamento
ilusão difundida pela empresa médica estava médico na cura das primeiras, mas, ainda
relacionada à história das doenças, carac- assim, interrogando se o tratamento das
terizando como um erro o fato de se atri- doenças infecciosas não seria mais eficaz se
buir somente à eficácia dos procedimentos houvesse a desprofissionalização somada à
médicos as mudanças nas taxas de mortali- incorporação da higiene à cultura popular.
dade globais. Como exemplo, o autor citou O recrudescimento de doenças antes con-
a tuberculose, a cólera, a disenteria e o tifo, troladas continua a ser frequente, e pode
que conheceram seus ápices e, em seguida, ser consequência do desenvolvimento dos

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1187-1198, OUT-DEZ 2017

RSD115.indb 1189 15/01/2018 12:40:53


1190 TABET, L. P.; MARTINS, V. C. S.; ROMANO, A. C. L.; SÁ, N. M.; GARRAFA, V.

transportes, das redes de energia, da urbani- Para Laguardia et al. (2016), alguns pro-
zação e da evolução de vetores resistentes, e blemas atuais relacionados à qualidade em
tal fato independe da eficácia do tratamento saúde envolvem: a angústia frente à incer-
médico (ILLICH, 1975B). teza acerca da conduta médica mais ade-
A iatrogênese clínica abrange toda a imen- quada, os relatos enviesados de achados de
sidão de efeitos secundários, porém diretos, pesquisa nas revistas médicas, a pressão dos
da terapêutica médica instituída: os efeitos pacientes por mais exames e tratamentos, o
nocivos dos medicamentos, incluindo a sua pagamento por serviços (consultas e prescri-
inocuidade e eficácia; o uso abusivo; o uso as- ções), o marketing da indústria farmacêutica
sociado a outras drogas; ou a contaminação/ e de equipamentos, e a falta de compreensão
validade dos mesmos. As agressões cirúrgi- do significado das estatísticas de saúde e de
cas, e as doenças não iatrogênicas (fruto da risco, entre outros eventos.
mania pela descoberta de novas anomalias), Reconhecendo a magnitude do problema
levam a falsos diagnósticos, muitas vezes re- da segurança do paciente em nível global,
alizados através de erros no laboratório de a Organização Mundial da Saúde (WHO,
análises, ignorância do médico ou algum mal 2009) estabeleceu a Aliança Mundial para a
entendido com o paciente, podendo gerar Segurança do Paciente, onde na qual a qua-
angústia, exclusão social e sintomas funcio- lidade em saúde foi definida como o grau
nais, entre outros (ILLICH, 1975B). em que os serviços prestados diminuíam a
Para exemplificar os efeitos nocivos dos probabilidade de resultados desfavoráveis
medicamentos, Pande e Amarante (2017) (eventos adversos) e aumentavam a de re-
citam a iatrogenia psicofarmacológica para sultados favoráveis, de acordo com o conhe-
os transtornos mentais. Segundo os autores, cimento científico corrente. Estima-se que
apesar do aumento significativo de substân- 10% dos pacientes internados em hospitais
cias supostamente capazes de combater os sofram eventos adversos evitáveis.
chamados transtornos mentais, o número Além dos danos e prejuízos causados aos
de pessoas com diagnósticos desta nature- pacientes e às suas famílias, os eventos ad-
za tem aumentado. Tal paradoxo é conse- versos constituem um encargo financeiro
quência do próprio efeito iatrogênico dos considerável para os sistemas de saúde. No
medicamentos. continente europeu, estudos revelaram que
Illich fez a distinção entre o médico artesão um em cada dez pacientes internados são
e o médico técnico, no que se refere aos danos vítimas de eventos adversos em decorrência
infligidos pelos médicos. O médico artesão dos cuidados de saúde recebidos, e 50 a 60%
era aquele que exercia suas habilidades em destes eventos são classificados como evitá-
indivíduos que conhecia pessoalmente, e veis (KOHN; CORRIGAN; DONALDSON, 2000; WHO, 2009).
suas falhas eram vistas como abuso de con- Estima-se que 1 milhão de eventos adver-
fiança e falta de moral. Já o médico técnico, sos evitáveis ocorram anualmente nos Estados
atual, aplica regras científicas a categorias Unidos (EUA), contribuindo para a morte de
de pacientes, e suas falhas são racionaliza- 98 mil pessoas. Eventos adversos cirúrgicos e
das como ocasionais, de equipamentos ou de aqueles relacionados ao uso de drogas corres-
seus operadores, adquirindo um novo status, pondem às categorias mais frequentes (WHO,
o anônimo. As responsabilidades foram 2009). A bioética até hoje não tinha visto, em sua
transferidas do campo ético para o problema verdadeira dimensão, o erro na medicina como
técnico. Logo, “a negligência se transforma um problema que afeta a integridade e vida dos
em erro humano aleatório, a insensibilidade pacientes; na qual se põe em jogo um princípio
em desinteresse científico, e a incompetência fundamental da ética médica: a não maleficên-
em falta de equipamento” (ILLICH, 1975B, P. 27). cia (MAGLIO, 2011).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1187-1198, OUT-DEZ 2017

RSD115.indb 1190 15/01/2018 12:40:53


Ivan Illich: da expropriação à desmedicalização da saúde 1191

Hoje, a qualidade do cuidado em saúde está cuidado em saúde; o aprimoramento da co-


diretamente correlacionada ao volume de municação médico-paciente e a distribuição
procedimentos realizados, com consequente justa dos recursos à saúde, promovendo um
sobreutilização de procedimentos (overuse), cuidado mais seguro e eficaz (CASSEL; GUEST, 2012).
que faz com que haja maior chance de pro-
vocar dano ao paciente do que benefícios. Já
a subutilização de procedimentos (underuse) Iatrogênese social:
está relacionada à ausência de prestação de medicalização da saúde
cuidados de saúde, quando estes poderiam
produzir benefícios para o paciente. Por fim, A iatrogênese social ocorre com a desarmo-
a utilização inadequada (misuse) refere-se nia entre o indivíduo e o seu meio social/
àqueles problemas preveníveis associados ao físico, que tende a se organizar sem ele e
cuidado de saúde, e relaciona-se à segurança contra ele, com consequente perda da sua
do paciente (TRAVASSOS; CALDAS, 2013). autonomia. É o efeito social não desejado e
A literatura vem adotando uma subdi- danoso da medicina, mais do que o de sua
visão que discrimina a sobreutilização de ação técnica direta. O controle da população
procedimentos, sejam eles diagnósticos pelo sistema médico retira progressivamen-
(overdiagnosis) quando são feitos diagnósti- te do cidadão o domínio da salubridade no
cos de condições que nunca causarão sinto- trabalho e o lazer, a alimentação e o repouso,
mas ou danos ao longo da vida do paciente; ou a política e o meio (ILLICH, 1975A).
terapêuticos (overtreatment) que resultam O termo medicalização surgiu no final da
de tratamentos feitos de acordo com bases década de 1960 para referir – se à crescente
científicas sólidas e as preferências do pa- apropriação dos modos de vida do homem
ciente, mas que não irão ajudá-lo na sua con- pela medicina. Os estudos nessa área se
dição clínica. Sendo assim, o overdiagnosis e direcionaram para a análise e intervenção
o overtreatment expõem o paciente a condu- política da medicina no corpo social, por
tas que são pouco ou nada eficazes, além de meio do estabelecimento de normas morais
possibilitarem danos e gastos substanciais de conduta, prescrição e proscrição de com-
(LAGUARDIA ET AL., 2016). portamentos, tornando os indivíduos de-
A campanha ‘Choosing Wisely’, con- pendentes do saber produzido pelos agentes
duzida pela Fundação norte-americana educativo-terapêuticos (GAUDENZI; ORTEGA, 2012).
American Board of Internal Medicine, é uma Para Illich (1975B), o volume global da medi-
iniciativa recente, que busca mudar a prática calização reduz o nível de saúde. A medicaliza-
médica ao atribuir a especialistas (equipe ção do orçamento é indicadora de iatrogênese
multidisciplinar) a tarefa de apontar entre social, pois reflete a relação do bem-estar com
cinco e dez condutas médicas correntes não o nível de saúde nacional bruta, e a ilusão de
apoiadas pelas evidências científicas, que que o grau de cuidados é representado pelas
não estão livres de danos ou não são necessá- curvas de distribuição dos produtos da institui-
rias e, portanto, não deveriam ser adotadas. ção médico-farmacêutica. Tal mercantilização
Seu intuito primário é melhorar a qualidade faz com que o consumo de seus produtos seja
da assistência, embasada em evidências, para praticamente obrigatório. Outra problemática
aumentar os benefícios e reduzir os malefí- mostrada pelo autor se refere ao aumento das
cios à saúde (LAGUARDIA ET AL., 2016). prescrições medicamentosas e despesas farma-
A iniciativa ‘Choosing Wisely’ engloba as cêuticas. As consultas médicas que acabam sem
responsabilidades profissionais dos médicos, uma prescrição farmacêutica praticamente de-
que incluem o compromisso com a melho- sapareceram, o que leva ao superconsumo de
ria da formação acadêmica, da qualidade do medicamentos.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1187-1198, OUT-DEZ 2017

RSD115.indb 1191 15/01/2018 12:40:53


1192 TABET, L. P.; MARTINS, V. C. S.; ROMANO, A. C. L.; SÁ, N. M.; GARRAFA, V.

Com a medicina curativa, surge outra


vertente: a prevenção da doença, através do As dimensões da
check-up. Para o autor, a extensão do controle contraprodutividade
profissional a cuidados dispensados a pessoas
em perfeita saúde é uma nova manifesta-
institucional
ção da medicalização da vida, quando não é
preciso estar doente para transformar-se em Para Ivan Illich (1975B), a medicalização da
paciente, submetido à instituição médica para vida é apenas um aspecto da dominação que
o bem de sua saúde futura (ILLICH, 1975B). o desenvolvimento industrial exerce sobre
Já a medicalização dos grandes rituais a sociedade. Durante um século, acreditou-
também faz parte de um sintoma grave da -se que o nível de vida e a extensão do bem-
iatrogênese social, na qual uma percentagem -estar dependiam do acesso aos produtos
crescente de recursos públicos é destinada ao industriais. As pessoas são condicionadas a
desenvolvimento de técnicas com o objetivo obter as coisas e não a fazê-las: o aprender
de prolongar a vida dos que estão à beira da é programado; o habitar, urbanizado; os
morte. A fascinação pelos avanços médicos, deslocamentos, motorizados; e as comuni-
as técnicas da medicina terminal e a morte cações, canalizadas. Todos querem ser edu-
controlada pelo médico, são sintomas visíveis cados, transportados, cuidados ou guiados,
da iatrogênese social, segundo Illich (1975A). o que difere de aprenderem, deslocarem-
A compreensão de tal fato está associada à -se, curarem e encontrarem seu próprio
necessidade humana da vivência do milagre, caminho. Curar suas próprias feridas e
cujo efeito emociona pessoas e dá a segurança mazelas não é mais compreendido como ati-
abstrata de que a ciência faz progressos dos vidade do doente, e se torna cada vez mais
quais elas também poderão beneficiar-se um um ato daquele que se encarrega do pacien-
dia, tornando a cura um monopólio de orga- te. Quando este outro surge e cobra seus
nizações ou de máquinas (ILLICH, 1975A). serviços, a cura passa de dom a mercadoria.
Ao catalogar os portadores de anorma- A medicalização da vida aparece, portanto
lidades, a medicina os coloca sob o contro- como parte integrante de sua institucionali-
le de sua linguagem e de seus costumes. A zação industrial (ILLICH, 1975B).
definição da anormalidade muda de uma Uma contraprodutividade constitui-se
cultura para outra, através da qual cada ci- quando uma instituição produz mais barrei-
vilização cria as suas próprias doenças, e um ras à realização de seu objetivo do que facili-
mesmo sintoma pode excluir da sociedade dades, o que determina uma duplicação dos
um homem, seja executando-o, exilando-o, esforços. Nos EUA, o conglomerado de saúde
abandonando-o, encarcerando-o, hospitali- – incluindo médicos, hospitais, indústria far-
zando-o; ou pode acolhê-lo, cercando-o de macêutica e um leque de outras instituições
respeito, donativos e subvenções (VALABREGA, – é o mais importante setor econômico ime-
1970 APUD ILLICH, 1975B, P. 57). diatamente depois da indústria de guerra.
Com o desenvolvimento do setor terapêu- Quando a medicina se torna tão importante,
tico da economia, um número crescente de as pessoas são envolvidas em seus rituais, do
pessoas se descobre como ‘anormal’ em relação nascimento à morte (ILLICH, 1975B).
a alguma norma desejável, e, portanto, como Essa perda de autonomia é, ainda, refor-
paciente que pode ser submetido a uma tera- çada pela política da saúde, que coloca os
pêutica. Os resultados disto são uma sociedade cuidados médicos antes de outras opções de
mórbida, que exige medicalização universal e cuidado, que poderiam permitir maior au-
uma instituição médica que atesta morbidade tonomia individual. Nos países de mercado
universal (ILLICH, 1975B). livre, a produção de medicamentos e de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1187-1198, OUT-DEZ 2017

RSD115.indb 1192 15/01/2018 12:40:54


Ivan Illich: da expropriação à desmedicalização da saúde 1193

serviços médicos enriquece os produtores; mesmo tempo em que se constitui enquanto


a medicina é cara e, muitas vezes ruim; a um dever, também é uma virtude, um princí-
distribuição de medicamentos e o acesso aos pio, um valor (SILVA, 2010).
serviços médicos se fazem de maneira desi- Uma série de paradoxos acompanha a
gual e arbitrária (ILLICH, 1975B). história recente da medicina. Por exemplo,
Quando são analisados os obstáculos que espera-se que os sucessos da medicina sejam
dificultam a utilização do cálculo custo-be- acompanhados por um aumento no grau de
nefício no setor da saúde, os gastos com cui- satisfação dos profissionais que escolhem
dados médicos são aleatórios e dificilmente essa careira. No entanto, estudos mostram
previsíveis; a maioria dos consumidores não que um número crescente desses profissio-
os deseja, não está consciente de precisar nais está mais desiludido e insatisfeito. Um
deles e não sabe previamente quanto lhes segundo paradoxo está ligado aos benefícios
custarão, tendo que confiar na palavra do derivados da prática médica, que pode-
profissional. A mercadoria vendida não é riam reduzir os medos e as ansiedades das
comerciável nem pode ser devolvida, a pu- pessoas, mas, ao contrário, as tornam mais
blicidade dos resultados é praticamente ine- preocupadas com uma série de riscos atrela-
xistente e as comparações de qualidade são dos ao seu estilo de vida, em um processo de
desencorajadas. Uma vez feita a escolha, é procura obsessiva por um estado de perfeita
difícil mudar de opinião, pois o tratamento saúde (healthism). Outro paradoxo está asso-
já está em curso (ILLICH, 1975B). A intervenção ciado ao fato de que a eficácia e os sucessos
médica se tornou a maior forma de tratamen- da medicina moderna teriam que ser acom-
to à saúde. Depressão, infecções, disfunções panhados pelo desaparecimento das outras
e outras doenças iatrogênicas causam mais formas de medicina (alternativa). Contudo,
sofrimento do que todos os acidentes ocorri- observa-se um aumento impressionante
dos na indústria e no trânsito (ILLICH, 2003). das medicinas não convencionais em todo o
Na coletânea ‘Corpus Hippocraticum’ mundo ocidental (BUB, 2005).
atribuída a Hipócrates, é sabido o princí- Devem ser considerados o respeito os
pio de não lesar ou danificar as pessoas, de valores subjetivos do paciente, a promoção
forma geral; e, de modo particular, os enfer- de sua autonomia e a tutela das diversidades
mos. O modelo de cuidado baseado na tradi- culturais. Os médicos e o paciente, mesmo
ção hipocrática assume postura paternalista pertencendo à mesma cultura, interpretam a
com relação ao paciente, e, em nome da be- relação saúde-doença de formas diferentes;
neficência, não considera a vontade deste. e além dos aspectos culturais, é necessário
O processo de tomada de decisão baseia-se enfatizar que eles (médicos e pacientes) não
em uma relação de dominação (médico) e se colocam no mesmo plano: trata-se de uma
de submissão (paciente). Beneficência sig- relação assimétrica, na qual o médico detém
nifica fazer o bem. No entanto, na ética, não um corpo de conhecimentos que geralmente
é suficiente fazer o bem, é preciso também exclui o paciente (BUB, 2005).
preocupar-se com o outro e, compartilhar
do seu sofrimento, o que introduz a noção
de benevolência, termo que evoca o cuidado Iatrogênese cultural/
fraterno. A beneficência não seria caritativa, estrutural: a colonização
mas obrigatória, com exigências maiores ou
menores, tornando-se uma das exigências
médica
das profissões de saúde; significa aplicar
os recursos da medicina para curar, aliviar A humanidade é a única espécie viva cujos
os sofrimentos, melhorar o bem-estar; ao membros têm consciência de serem frágeis,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1187-1198, OUT-DEZ 2017

RSD115.indb 1193 15/01/2018 12:40:54


1194 TABET, L. P.; MARTINS, V. C. S.; ROMANO, A. C. L.; SÁ, N. M.; GARRAFA, V.

enfermos, sujeitos à dor, à angústia, ao so- experiência pessoal, enfrentada de maneira


frimento e à morte. A consciência da dor faz autônoma, e não mecânica e constrangedo-
parte da adaptação autocrítica ao meio. A ra; experiência cotidiana e comum, pessoal
cultura, na saúde, não é um simples comple- e social, e não artificial e individualista. O
xo de modelos de comportamento concretos, sofrimento pode evocar o dever, a separação,
tais como costumes, usos, tradições, hábitos; a oração, a lamentação, a piedade, a raiva.
e sim um conjunto de mecanismos, proje- A cultura estimula a capacidade individual
tos, planos, regras e instruções. Ao orientar para continuar a viver com a presença ou a
o comportamento, a cultura determina a ameaça da dor. No entanto, atualmente a dor
saúde, e é somente construindo uma cultura faz nascer um processo em bola de neve: o
que o homem encontra sua saúde. Para Ivan indivíduo aprende a ser consumidor de anes-
Illich, este poder gerador de saúde, inerente tesias e se lança à procura de tratamentos
a toda cultura tradicional, é ameaçado pelo que provocam insensibilidade, inconsciência
desenvolvimento da medicina contemporâ- e apatia (ILLICH, 1975B).
nea (ILLICH, 1975B). O caráter individual, os hábitos adqui-
Segundo Illich (1975B), a instituição médica ridos e as circunstâncias determinam o
é uma empresa profissional, que tem como sentido dado pelo homem às sensações
matriz a ideia de que o bem-estar exige a corporais, assim como a intensidade de seu
eliminação da dor, a correção de todas as sofrimento. Onde o sofrimento é visto como
anomalias, o desaparecimento das doenças e o enfrentamento de uma provação, a dor é
a luta contra a morte. O ritual médico e seu respeitada enquanto experiência íntima e
mito transformaram a dor, a enfermidade e a incomunicável (ILLICH, 1975B). A cultura é uma
morte em uma sequência de obstáculos que forma particular de saúde, e o ato de sofrer
ameaçam o bem-estar e obrigam o indivíduo é modelado pela sociedade. Por exemplo: os
a recorrer incessantemente a consumos pro- soldados que sofreram mutilações em campo
duzidos e monopolizados pela instituição de batalha terminam a sua carreira militar de
médica. O homem, organismo fraco, torna- maneira relativamente feliz, recusando inje-
-se um mecanismo vulnerável submetido a ções de morfina, diferentemente de quando
constante reparação. A instituição assume a mesma mutilação ocorre em uma sala de
a gestão da fragilidade e, ao mesmo tempo, cirurgia (ILLICH, 2003). Com a medicalização
restringe, mutila e paralisa a possibilidade de de uma cultura, as determinantes sociais do
interpretação e de reação autônoma do indi- sofrimento agem em sentido oposto: em um
víduo em confronto com a precariedade da meio medicalizado, a dor perturba e des-
vida. A fidelidade e o servilismo crescente à norteia a vítima, sem que ela tenha outros
terapêutica afetam, também, o estado de es- recursos senão entregar-se ao tratamento. A
pírito coletivo e promovem uma, consequen- profissão médica decide quais são as dores
te regressão estrutural do nível de saúde, o autênticas e quais as imaginadas ou simula-
que é chamado de iatrogênese estrutural. das (WOLFF; WOLFF, 1970 APUD ILLICH, 1975B, P. 106).
Ao colonizar uma cultura tradicional, a A formação dos médicos os leva a voltarem
civilização moderna transforma a experi- a sua atenção aos aspectos da dor que podem
ência da dor, tornando-as sinais de alarme, ser experimentalmente estudados e manu-
que apelam para uma intervenção exterior, seados por um agente exterior, e seu condi-
a fim de interrompê-las. Se, por um lado, a cionamento pelo controle farmacológico e
medicina engaja-se na redução do sofrimen- clínico do paciente, reduzindo o ato médico
to, por outro, aumenta a dependência por ela a uma intervenção mecânica (SOULAIRAC; CAHN,
própria. A dor, quando assumida como res- 1967 APUD ILLICH, 1975B, P. 111). Os pacientes apren-
ponsabilidade da vida do homem, torna-se dem a conceber sua própria dor como fato

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1187-1198, OUT-DEZ 2017

RSD115.indb 1194 15/01/2018 12:40:54


Ivan Illich: da expropriação à desmedicalização da saúde 1195

clínico objetivo, que pode ser submetido a de seu querer viver individual. Tal imagem
um tratamento padronizado (ILLICH, 1975B). da morte leva a um controle social, no qual
A noção de intervenção biomédica no a sociedade torna-se responsável pela sua
indivíduo ou no seu meio ambiente era to- prevenção, e o tratamento médico, eficaz
talmente estranha aos debates políticos em ou não, é assimilado como um dever. Sendo
1790, quando as doenças mais conhecidas assim, toda morte que sobrevém na ausência
pela medicina eram a peste e a varíola. No de tratamento médico é suscetível de inte-
período seguinte ao Congresso de Viena ressar à justiça.
(1814-1815), os hospitais se multiplicaram, os A segunda crítica social à saúde é a iatro-
estudantes afluíram às escolas de medicina, gênese do corpo. Em 1985, na Universidade
e a descrição das doenças foi se tornando Estadual da Pensilvânia, Ivan Illich dizia:
precisa (ILLICH, 1975B). As afecções se tornam
doenças objetivas, distintas e definidas cli- Há doze anos, escrevi a Nêmesis da medicina.
nicamente, categorizadas e classificadas O livro começava com a afirmação: a medi-
para os hospitais, arquivos e orçamentos. O cina institucionalizada transformou-se numa
recurso à estatística (cada vez mais ampla) grande ameaça à saúde. Ouvindo isto hoje, eu
para a formulação do diagnóstico e a de- responderia: e daí? O maior agente patógeno
terminação da terapêutica, mostrava que de hoje, acho eu, é a busca de um corpo sadio.
as doenças, por estarem presentes no meio (ILLICH, 1992, P. 24).
ambiente, podiam atacar os homens e os in-
fectar (ILLICH, 1975B). A partir de então, Illich denomina um
Com o interesse do médico deslocando-se novo modelo de iatrogênese, a do corpo, que
do doente para a doença, o hospital se tornou exalta e promove a produção de um corpo
um museu da doença, lugar para estudo sadio em uma busca patogênica. Assim, o
e comparação dos casos. Nas primeiras autor desloca o foco dos médicos para as
décadas do século XIX, a atitude médica em grandes indústrias, os meios de comunica-
face do hospital atravessou uma nova etapa, ção e outros agentes terapêuticos (ILLICH, 1992).
na qual o hospital tornou-se estabelecimen- Segundo Nogueira (2003), o novo traba-
to educativo, laboratório de experimentação lho de Illich é uma segunda crítica social à
dos tratamentos e lugar de cura. Durante saúde, e utiliza o termo ‘higiomania’ – ou a
todo o século XIX, a patologia consistiu na mania com sua própria condição de saúde
classificação das anomalias anatômicas, e, corporal – para descrever o estilo de vida al-
posteriormente seguiram a definição e a tamente tecnificado da contemporaneidade
catalogação da patologia das funções (GRMEK, (NOGUEIRA, 2001 APUD NOGUEIRA, 2003). Baseia-se na
1964 APUD ILLICH, 1975B, P. 125). A doença foi levada idolatria do corpo e de sua saúde, alimentado
do paciente e tornou-se a matéria-prima de pela mídia, pelas academias de cultura física
uma empresa institucional, interpretada de e pela indústria da dieta.
acordo com um jogo de regras abstratas, em A saúde passa a ter duas vias: ainda se
uma linguagem que ele não entendia (ILLICH, mantém pelo domínio dos profissionais,
1975B). mas também se dá pelo acesso à cultura do
Illich (1975B), também faz uma análise da corpo, cada vez mais influente. A importân-
imagem da morte, que, assim como a doença, cia da medicina institucionalizada dentro da
é modelada pelas estruturas institucionais, saúde diminui à medida que as medicinas
pelos mitos profundamente enraizados, pela alternativas, as concepções ambientalistas,
textura social. A imagem que uma sociedade as correntes diversas da autoajuda, as modas
cria da morte reflete o grau de independên- dietéticas e as diversas práticas de corpo
cia de seus membros, de sua autonomia e passam a influenciar mais o leigo no que diz

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1187-1198, OUT-DEZ 2017

RSD115.indb 1195 15/01/2018 12:40:54


1196 TABET, L. P.; MARTINS, V. C. S.; ROMANO, A. C. L.; SÁ, N. M.; GARRAFA, V.

respeito à saúde (ILLICH, 1992 APUD NOGUEIRA, 2003). formas de corresponsabilidade solidária,
Logo, a desmedicalização da saúde também como é o caso da Estratégia Saúde da Família
se dá em um processo iatrogênico. Ao invés (ESF) que cria a possibilidade da realização
do ganho de autonomia do sujeito no manejo de uma atenção à saúde desmedicalizante, e
consciente dos meios para garantir sua permite uma maior expressão de pequenos
saúde, ele institui uma pseudoautonomia movimentos em prol do resgate da auto-
iatrogênica. A mídia toma um papel proe- nomia e, da valorização das microculturas
minente, pois se torna veículo de difusão locais, conduzindo o paciente a assumir in-
para as mais variadas formas de cuidado do dividualmente a responsabilidade por sua
corpo; e os gastos com programas integrais saúde, além da reduzir o peso financeiro na
de cuidado com a saúde passam a crescer assistência à saúde (CASTIEL, 2004 APUD GAUDENZI;
mais rapidamente do que os gastos com a ORTEGA, 2012, P. 246).
medicina (NOGUEIRA, 2003).

Conclusões
A medicalização e a
desmedicalização da saúde A capacidade de sentir e perceber o próprio
corpo passa por dimensões como aceitação
O termo medicalização, exposto anterior- pessoal, autoestima, julgamento crítico e,
mente, indica algo que ‘se tornou médico’, cultura, entre tantas outras variáveis con-
com a influência da medicina em campos dicionantes. Sentir-se saudável ou doente
que, até então, não lhe pertenciam. Logo, o transcende uma terminologia médica ou um
raio de ação da medicina foi ampliado, extra- atestado de saúde. Os contextos histórico,
polando o campo tradicional de ação direta social e econômico no qual os indivíduos
sobre as moléstias, transformando aspectos estão inseridos interferem decisivamente no
próprios da vida em patologias, diminuindo modo de lidar com o processo saúde-doença.
o espectro do que é considerado normal ou Assim como Illich (1975B) bem descreveu,
aceitável. é possível ser paciente desde a vida pré-
Neste contexto, o processo de desmedi- -uterina, enquanto gametas manipulados em
calização é de extrema relevância, pois se clínicas de fertilização, até pós-morte em um
relaciona com a busca, tanto da autonomia processo de doação de órgão, por exemplo.
como do respeito às diferenças, condições Entretanto, o indivíduo, enquanto ser bio-
fragilizadas pelo processo de medicalização. -psicos-social e espiritual, que merece ser
Um exemplo de movimento social com vistas percebido de modo holístico e complexo
à desmedicalização é o caso de mulheres, no neste intervalo de tempo, exige esforço
Brasil, que lutam por terem partos normais descomunal para não ser um mero instru-
em casa, livres da medicalização desneces- mento manipulado pelos diversos operado-
sária do processo de parturição. Trata-se de res, sob as pressões social e midiática que
uma luta contra o excesso de intervenção o impulsionam na busca da vida perfeita, e
médica sobre um processo que consideram pelo máximo de tempo possível, evitando o
‘próprios da vida’ (GAUDENZI; ORTEGA, 2012). terrível fim, pelo preço que for necessário.
Apesar de os movimentos, por parte dos Em vários momentos ao longo da sua vida,
sujeitos medicalizados, não serem quan- o indivíduo submete-se a cuidados e técni-
titativamente expressivos no Brasil, há o cas variadas com a expectativa de uma cura
incentivo do Ministério da Saúde a políti- e um alívio, que nem sempre são alcançados.
cas que se baseiam em uma visão ampliada Illich é um personagem que instiga a refle-
de saúde, que valorizam a autonomia e as xão e incentiva a busca pela autonomia e a

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1187-1198, OUT-DEZ 2017

RSD115.indb 1196 15/01/2018 12:40:54


Ivan Illich: da expropriação à desmedicalização da saúde 1197

descolonialidade do poder e do saber em um planejamento, concepção, análise e elabo-


cenário repleto de protagonistas dominadores, ração do texto, revisão crítica do conteúdo e
que se intitulam detentores do tão desejável versão final do manuscrito. Natan Monsores
elixir ou bálsamo que as pessoas tanto buscam. de Sá e Volnei Garrafa: revisão crítica do
conteúdo e aprovação da versão final do
manuscrito.
Colaboradores Trabalho desenvolvido na Universidade
de Brasília, apresentado para conclusão da
Livia Penna Tabet, Ana Caroline Leoncio disciplina Fundamentos em Saúde Pública. s
e Valney Claudino Sampaio Martins:

Referências

BUB, M. B. Camargo. Ética e prática profissional em Journal of Medical Ethics, Londres, v. 1, n. 2, p. 78-80,
saúde. Texto & Contexto, Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 1975a.
65-74, 2005.
______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina.
CASSEL, C. K.; GUEST, J. A. Choosing wisely. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b.
Helping physicians and patients make smart deci-
sions about their care. JAMA, Chicago, v. 307, n. 17, p. ______. In the mirror of the past, lectures and adresses,
1801-1802, maio 2012. Disponível em: <doi:10.1001/ 1978-1990. Nova Iorque: Marion Boyars, 1992.
jama.2012.476>. Acesso em: 2 jan. 2017.
______. Medical Nemesis. Journal of Epidemiology and
GAJARDO, M. Ivan Illich. Recife: Fundação José Community Health, [S. l.], v. 57, n. 2, p. 919-922, 2003.
Nabuco; Massangana, 2010.
KOHN, L. T.; CORRIGAN, J. M.; DONALDSON, M.
GASPARETTO JUNIOR, A. Nêmesis. c2006-2017. S. To Err is Human: Building a Safer Health System.
Disponível em: <http://www.infoescola.com/mitolo- Washington, DC: National Academy Press; 2000.
gia-grega/nemesis>. Acesso em: 7 jun. 2016.
LAGUARDIA, J. et al. Qualidade do cuidado em saúde
GAUDENZI, P.; ORTEGA, F. The statute of medicaliza- e a iniciativa Choosing Wisely. Revista Eletrônica de
tion and the interpretations of Ivan Illich and Michel Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, Rio de
Foucault as conceptual tools for studying demedicali- Janeiro, v. 10, n. 1, p. 1-6, 2016.
zation. Interface, Botucatu, v. 16, n. 40, p. 21-34, 2012.
MAGLIO, I. Error y medicina a la defensiva: ética
ILLICH, I. Clinical damage, medical monopoly, the ex- médica y la seguridad del paciente. Revista Bioética,
propriation of health: Three dimensions of iatrogenic. Brasília, DF, v. 19, n. 2, p. 359-65, 2011.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1187-1198, OUT-DEZ 2017

RSD115.indb 1197 15/01/2018 12:40:54


1198 TABET, L. P.; MARTINS, V. C. S.; ROMANO, A. C. L.; SÁ, N. M.; GARRAFA, V.

NOGUEIRA, R. P. A segunda crítica social da Saúde de AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA.


Ivan Illich. Interface, Botucatu, v. 7, n. 12, p. 185-190, fev. Assistência Segura: uma reflexão teórica aplicada
2003. à prática. Brasília, DF: Anvisa, 2013. cap. 2. p. 19-27.
Disponível em: <https://www20.anvisa.gov.br/segu-
PANDE, M. N. R.; AMARANTE, P. D. C. Sobre a epide- rancadopaciente/images/documentos/livros/Livro1-
mia de doenças mentais e a iatrogenia psicofarmacoló- Assistencia_Segura.pdf >. Acesso em: 7 jun. 2016.
gica. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 41, n. 115, 2017.
No prelo. WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO).
Segundo desafio global para segurança do paciente: ci-
SCRIMSHAW, N. S.; TAYLOR, C. E.; GORDON, J. E. rurgias seguras salvam vidas. Rio de Janeiro: Ministério
Interactions of nutrition and infection. In: ILLICH, I. A da Saúde, 2009. Disponível em: <http://bvsms.saude.
expropriação da saúde: nêmesis da Medicina. 3. ed. Rio gov.br/bvs/publicacoes/seguranca_paciente_cirurgia_
de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. salva_manual.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2016.

SILVA, H. B. Beneficência e paternalismo médico.


Recebido para publicação em janeiro de 2017
Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. Versão final em outubro de 2017
Conflito de interesses: inexistente
10, supl. 2, p. 419-425, 2010.
Suporte financeiro: não houve

TRAVASSOS, C.; CALDAS, B. A qualidade do cuidado


e a segurança do paciente: histórico e conceitos. In:

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1187-1198, OUT-DEZ 2017

RSD115.indb 1198 15/01/2018 12:40:54

Você também pode gostar