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Livia Penna Tabet1, Valney Claudino Sampaio Martins2, Ana Caroline Leoncio Romano3, Natan
Monsores de Sá4, Volnei Garrafa5
RESUMO Ivan Illich foi um crítico radical da sociedade industrial, cujas ideias influenciaram
a propagação de um movimento contra os cuidados da saúde pela medicina na década de 1970.
Em sua obra, a medicina, é vista como empresa médica cuja função é ameaçar a saúde, através
da colonização médica da vida, que aliena os meios de tratamento; e do monopólio profissio-
nal, que impede a partilha do conhecimento científico. O presente artigo tem como objetivo
apresentar aspectos da vida e obra de Ivan Illich, com ênfase em seu livro ‘A expropriação da
saúde: nêmesis da medicina’ (1975), e também de sua segunda crítica social à saúde, com a
introdução de novos conceitos em sua obra, em 1985.
ABSTRACT Ivan Illich was a radical critic of the industrial society, whose ideas influenced the
propagation of a movement against health care, by medicine in the 1970s. In his work, Medicine
1 Universidade
is seen as a medical company, whose function is to threaten health, through the medical coloniza-
de Brasília
(UnB), Programa de Pós- tion of life, that alienates the means of treatment; and professional monopoly, which prevents
Graduação em Bioética the sharing of scientific knowledge. This article aims to present aspects of Ivan Illich´ s life and
– Brasília (DF), Brasil.
liviapenna@gmail.com work, with emphasis on his book ‘The expropriation of health: Medical Nemesis’ (1975), and also
2 Universidade
his second social critique to health, with the introduction of new concepts in his work, in 1985.
de Brasília
(UnB), Programa de Pós-
Graduação em Bioética KEYWORDS Physician-patient relations. Medicalization. Public health.
– Brasília (DF), Brasil.
valney@sarah.br
3 Universidade de Brasília
(UnB), Programa de Pós-
Graduação em Bioética
– Brasília (DF), Brasil.
anacleoncior@gmail.com
4 Universidade de Brasília
(UnB), Programa de Pós-
Graduação em Bioética
– Brasília (DF), Brasil.
natan.monsores@gmail.com
5 Universidade de Brasília
(UnB), Programa de Pós-
Graduação em Bioética
– Brasília (DF), Brasil.
garrafavolnei@gmail.com
DOI: 10.1590/0103-1104201711516 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1187-1198, OUT-DEZ 2017
transportes, das redes de energia, da urbani- Para Laguardia et al. (2016), alguns pro-
zação e da evolução de vetores resistentes, e blemas atuais relacionados à qualidade em
tal fato independe da eficácia do tratamento saúde envolvem: a angústia frente à incer-
médico (ILLICH, 1975B). teza acerca da conduta médica mais ade-
A iatrogênese clínica abrange toda a imen- quada, os relatos enviesados de achados de
sidão de efeitos secundários, porém diretos, pesquisa nas revistas médicas, a pressão dos
da terapêutica médica instituída: os efeitos pacientes por mais exames e tratamentos, o
nocivos dos medicamentos, incluindo a sua pagamento por serviços (consultas e prescri-
inocuidade e eficácia; o uso abusivo; o uso as- ções), o marketing da indústria farmacêutica
sociado a outras drogas; ou a contaminação/ e de equipamentos, e a falta de compreensão
validade dos mesmos. As agressões cirúrgi- do significado das estatísticas de saúde e de
cas, e as doenças não iatrogênicas (fruto da risco, entre outros eventos.
mania pela descoberta de novas anomalias), Reconhecendo a magnitude do problema
levam a falsos diagnósticos, muitas vezes re- da segurança do paciente em nível global,
alizados através de erros no laboratório de a Organização Mundial da Saúde (WHO,
análises, ignorância do médico ou algum mal 2009) estabeleceu a Aliança Mundial para a
entendido com o paciente, podendo gerar Segurança do Paciente, onde na qual a qua-
angústia, exclusão social e sintomas funcio- lidade em saúde foi definida como o grau
nais, entre outros (ILLICH, 1975B). em que os serviços prestados diminuíam a
Para exemplificar os efeitos nocivos dos probabilidade de resultados desfavoráveis
medicamentos, Pande e Amarante (2017) (eventos adversos) e aumentavam a de re-
citam a iatrogenia psicofarmacológica para sultados favoráveis, de acordo com o conhe-
os transtornos mentais. Segundo os autores, cimento científico corrente. Estima-se que
apesar do aumento significativo de substân- 10% dos pacientes internados em hospitais
cias supostamente capazes de combater os sofram eventos adversos evitáveis.
chamados transtornos mentais, o número Além dos danos e prejuízos causados aos
de pessoas com diagnósticos desta nature- pacientes e às suas famílias, os eventos ad-
za tem aumentado. Tal paradoxo é conse- versos constituem um encargo financeiro
quência do próprio efeito iatrogênico dos considerável para os sistemas de saúde. No
medicamentos. continente europeu, estudos revelaram que
Illich fez a distinção entre o médico artesão um em cada dez pacientes internados são
e o médico técnico, no que se refere aos danos vítimas de eventos adversos em decorrência
infligidos pelos médicos. O médico artesão dos cuidados de saúde recebidos, e 50 a 60%
era aquele que exercia suas habilidades em destes eventos são classificados como evitá-
indivíduos que conhecia pessoalmente, e veis (KOHN; CORRIGAN; DONALDSON, 2000; WHO, 2009).
suas falhas eram vistas como abuso de con- Estima-se que 1 milhão de eventos adver-
fiança e falta de moral. Já o médico técnico, sos evitáveis ocorram anualmente nos Estados
atual, aplica regras científicas a categorias Unidos (EUA), contribuindo para a morte de
de pacientes, e suas falhas são racionaliza- 98 mil pessoas. Eventos adversos cirúrgicos e
das como ocasionais, de equipamentos ou de aqueles relacionados ao uso de drogas corres-
seus operadores, adquirindo um novo status, pondem às categorias mais frequentes (WHO,
o anônimo. As responsabilidades foram 2009). A bioética até hoje não tinha visto, em sua
transferidas do campo ético para o problema verdadeira dimensão, o erro na medicina como
técnico. Logo, “a negligência se transforma um problema que afeta a integridade e vida dos
em erro humano aleatório, a insensibilidade pacientes; na qual se põe em jogo um princípio
em desinteresse científico, e a incompetência fundamental da ética médica: a não maleficên-
em falta de equipamento” (ILLICH, 1975B, P. 27). cia (MAGLIO, 2011).
clínico objetivo, que pode ser submetido a de seu querer viver individual. Tal imagem
um tratamento padronizado (ILLICH, 1975B). da morte leva a um controle social, no qual
A noção de intervenção biomédica no a sociedade torna-se responsável pela sua
indivíduo ou no seu meio ambiente era to- prevenção, e o tratamento médico, eficaz
talmente estranha aos debates políticos em ou não, é assimilado como um dever. Sendo
1790, quando as doenças mais conhecidas assim, toda morte que sobrevém na ausência
pela medicina eram a peste e a varíola. No de tratamento médico é suscetível de inte-
período seguinte ao Congresso de Viena ressar à justiça.
(1814-1815), os hospitais se multiplicaram, os A segunda crítica social à saúde é a iatro-
estudantes afluíram às escolas de medicina, gênese do corpo. Em 1985, na Universidade
e a descrição das doenças foi se tornando Estadual da Pensilvânia, Ivan Illich dizia:
precisa (ILLICH, 1975B). As afecções se tornam
doenças objetivas, distintas e definidas cli- Há doze anos, escrevi a Nêmesis da medicina.
nicamente, categorizadas e classificadas O livro começava com a afirmação: a medi-
para os hospitais, arquivos e orçamentos. O cina institucionalizada transformou-se numa
recurso à estatística (cada vez mais ampla) grande ameaça à saúde. Ouvindo isto hoje, eu
para a formulação do diagnóstico e a de- responderia: e daí? O maior agente patógeno
terminação da terapêutica, mostrava que de hoje, acho eu, é a busca de um corpo sadio.
as doenças, por estarem presentes no meio (ILLICH, 1992, P. 24).
ambiente, podiam atacar os homens e os in-
fectar (ILLICH, 1975B). A partir de então, Illich denomina um
Com o interesse do médico deslocando-se novo modelo de iatrogênese, a do corpo, que
do doente para a doença, o hospital se tornou exalta e promove a produção de um corpo
um museu da doença, lugar para estudo sadio em uma busca patogênica. Assim, o
e comparação dos casos. Nas primeiras autor desloca o foco dos médicos para as
décadas do século XIX, a atitude médica em grandes indústrias, os meios de comunica-
face do hospital atravessou uma nova etapa, ção e outros agentes terapêuticos (ILLICH, 1992).
na qual o hospital tornou-se estabelecimen- Segundo Nogueira (2003), o novo traba-
to educativo, laboratório de experimentação lho de Illich é uma segunda crítica social à
dos tratamentos e lugar de cura. Durante saúde, e utiliza o termo ‘higiomania’ – ou a
todo o século XIX, a patologia consistiu na mania com sua própria condição de saúde
classificação das anomalias anatômicas, e, corporal – para descrever o estilo de vida al-
posteriormente seguiram a definição e a tamente tecnificado da contemporaneidade
catalogação da patologia das funções (GRMEK, (NOGUEIRA, 2001 APUD NOGUEIRA, 2003). Baseia-se na
1964 APUD ILLICH, 1975B, P. 125). A doença foi levada idolatria do corpo e de sua saúde, alimentado
do paciente e tornou-se a matéria-prima de pela mídia, pelas academias de cultura física
uma empresa institucional, interpretada de e pela indústria da dieta.
acordo com um jogo de regras abstratas, em A saúde passa a ter duas vias: ainda se
uma linguagem que ele não entendia (ILLICH, mantém pelo domínio dos profissionais,
1975B). mas também se dá pelo acesso à cultura do
Illich (1975B), também faz uma análise da corpo, cada vez mais influente. A importân-
imagem da morte, que, assim como a doença, cia da medicina institucionalizada dentro da
é modelada pelas estruturas institucionais, saúde diminui à medida que as medicinas
pelos mitos profundamente enraizados, pela alternativas, as concepções ambientalistas,
textura social. A imagem que uma sociedade as correntes diversas da autoajuda, as modas
cria da morte reflete o grau de independên- dietéticas e as diversas práticas de corpo
cia de seus membros, de sua autonomia e passam a influenciar mais o leigo no que diz
respeito à saúde (ILLICH, 1992 APUD NOGUEIRA, 2003). formas de corresponsabilidade solidária,
Logo, a desmedicalização da saúde também como é o caso da Estratégia Saúde da Família
se dá em um processo iatrogênico. Ao invés (ESF) que cria a possibilidade da realização
do ganho de autonomia do sujeito no manejo de uma atenção à saúde desmedicalizante, e
consciente dos meios para garantir sua permite uma maior expressão de pequenos
saúde, ele institui uma pseudoautonomia movimentos em prol do resgate da auto-
iatrogênica. A mídia toma um papel proe- nomia e, da valorização das microculturas
minente, pois se torna veículo de difusão locais, conduzindo o paciente a assumir in-
para as mais variadas formas de cuidado do dividualmente a responsabilidade por sua
corpo; e os gastos com programas integrais saúde, além da reduzir o peso financeiro na
de cuidado com a saúde passam a crescer assistência à saúde (CASTIEL, 2004 APUD GAUDENZI;
mais rapidamente do que os gastos com a ORTEGA, 2012, P. 246).
medicina (NOGUEIRA, 2003).
Conclusões
A medicalização e a
desmedicalização da saúde A capacidade de sentir e perceber o próprio
corpo passa por dimensões como aceitação
O termo medicalização, exposto anterior- pessoal, autoestima, julgamento crítico e,
mente, indica algo que ‘se tornou médico’, cultura, entre tantas outras variáveis con-
com a influência da medicina em campos dicionantes. Sentir-se saudável ou doente
que, até então, não lhe pertenciam. Logo, o transcende uma terminologia médica ou um
raio de ação da medicina foi ampliado, extra- atestado de saúde. Os contextos histórico,
polando o campo tradicional de ação direta social e econômico no qual os indivíduos
sobre as moléstias, transformando aspectos estão inseridos interferem decisivamente no
próprios da vida em patologias, diminuindo modo de lidar com o processo saúde-doença.
o espectro do que é considerado normal ou Assim como Illich (1975B) bem descreveu,
aceitável. é possível ser paciente desde a vida pré-
Neste contexto, o processo de desmedi- -uterina, enquanto gametas manipulados em
calização é de extrema relevância, pois se clínicas de fertilização, até pós-morte em um
relaciona com a busca, tanto da autonomia processo de doação de órgão, por exemplo.
como do respeito às diferenças, condições Entretanto, o indivíduo, enquanto ser bio-
fragilizadas pelo processo de medicalização. -psicos-social e espiritual, que merece ser
Um exemplo de movimento social com vistas percebido de modo holístico e complexo
à desmedicalização é o caso de mulheres, no neste intervalo de tempo, exige esforço
Brasil, que lutam por terem partos normais descomunal para não ser um mero instru-
em casa, livres da medicalização desneces- mento manipulado pelos diversos operado-
sária do processo de parturição. Trata-se de res, sob as pressões social e midiática que
uma luta contra o excesso de intervenção o impulsionam na busca da vida perfeita, e
médica sobre um processo que consideram pelo máximo de tempo possível, evitando o
‘próprios da vida’ (GAUDENZI; ORTEGA, 2012). terrível fim, pelo preço que for necessário.
Apesar de os movimentos, por parte dos Em vários momentos ao longo da sua vida,
sujeitos medicalizados, não serem quan- o indivíduo submete-se a cuidados e técni-
titativamente expressivos no Brasil, há o cas variadas com a expectativa de uma cura
incentivo do Ministério da Saúde a políti- e um alívio, que nem sempre são alcançados.
cas que se baseiam em uma visão ampliada Illich é um personagem que instiga a refle-
de saúde, que valorizam a autonomia e as xão e incentiva a busca pela autonomia e a
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