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Práticas de Cuidado Na Saúde Pública Brasileira: Cartografando Fronteiras e Controvérsias Entre Tradições Orientais e Tradições Brasileiras em Saúde
Práticas de Cuidado Na Saúde Pública Brasileira: Cartografando Fronteiras e Controvérsias Entre Tradições Orientais e Tradições Brasileiras em Saúde
1 Maria Aparecida dos Santos é graduada em Psicologia, Mestre em Psicologia Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutoranda em Psicologia da Universidade Federal
Fluminense – RJ-Brasil (2012-2016), é pesquisadora técnica da Fiocruz desde 2012 e atua e
pesquisa as práticas naturais de saúde há trinta anos. Email: mariasantosiris2@gmail.com
2 Márcia Moraes é Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal Fluminense-RJ-Brasil, Coordenadora do Grupo de Pesquisa
‘PesquisarCom’ do CNPq e orientadora da Maria Aparecida dos Santos. Email:
mazamoraes@gmail.com
3 Mariana Martins da Costa Quinteiro é graduada em Biologia, Mestre Especialista em
Etnobotânica, Doutora em Etnobotânica e atualmente faz pós-doutoramento na Universidade
Rural do Estado do Rio de Janeiro – Brasil. Email: marianaquinteiro@gmail.com
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Este artigo cartografa uma rede, rastreando pistas de fronteiras e controvérsias 4 deixadas
pelas atividades de atores e destaca um recorte curioso/espantoso que vem acontecendo
no campo da saúde pública brasileira e que nos faz pensar em condições desafiantes.
Recentemente, produziu-se a entrada no Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS)5 das
Práticas Integrativas e Complementares (PICs), referidas a um grupo de novas terapias
que nos últimos vinte anos vêm sendo introduzidas na cultura urbana dos países latino-
americanos, sendo terapias derivadas de sistemas médicos complexos tradicionais que
têm sua própria racionalidade - seus próprios saberes e paradigmas - como a medicina
tradicional chinesa, a medicina ayurvédica, ou ainda a homeopatia (LUZ, 2005: 5). Tal
acontecimento se fez no intuito de dar uma resposta a demanda da Organização Mundial
de Saúde (OMS)6, no documento Estrategia de la OMS sobre medicina tradicional
2002-2005, de fortalecer o cuidado em saúde com saberes naturais, culturais e
tradicionais, mais próximos a sabedoria de cada povo, referenciadas como
[...] práticas, enfoques, conhecimentos e crenças sanitárias diversas
que incorporam medicinas baseadas em plantas, animais e/ou
minerais, terapias espirituais, técnicas manuais e exercícios aplicados
de forma individual ou em combinação para manter o bem-estar, além
de tratar, diagnosticar e prevenir as enfermidades (OMS, 2002: 7).
8 Sobre o assunto ‘cartografar controvérsias’ nos apoiamos nos escritos de Latour (2012),
Pereira (2010) e Venturini (2010).
9 Bruno Latour (2001) esclarece que, ator é tudo que age, deixa traço, produz efeito no mundo,
podendo se referir a pessoas, instituições, coisas, animais, objetos, máquinas. Ator não se refere
apenas aos humanos, mas também aos não humanos. Por esse motivo sugere o termo actante:
“[...] uma vez que, em inglês, a palavra actor (ator) se limita a humanos, utilizamos muitas
vezes actant , termo tomado à semiótica para incluir não- humanos na definição” (Latour, 2001:
346).
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mediante a nova proposta de integrar saberes mais populares aos cuidados em saúde
oficial.
Tal entrelaçamento acontece com os seguintes fios: das pesquisas acadêmicas nacionais;
das ‘visitas’ feitas por pesquisadores a erveiros da floresta; das construções de políticas
públicas sobre saúde, ervas e erveiros; da captura do conhecimento popular pela
indústria química e farmacêutica; dos controles de instituições ‘protetoras’ dos
‘desprotegidos’ humanos e não humanos, dos vivos e não vivos e muito mais. Sem
dúvida, uma extensa rede10 de relações e interesses se dá na criação de uma realidade
local, no caso, a saúde pública brasileira.
A saber, incrementando a caixa de ferramental metodológico que possibilita identificar e
cartografar esta rede, contamos com a participação dos estudos do Grupo de Pesquisas
‘PesquisarCom’11 coordenado pela professora Márcia Moraes, da Universidade Federal
Fluminense, o qual dialoga com autores da TAR, considerados [por alguns] como pós-
latourianos, tais como Annemarie Mol, Isabele Stengers, Vinciane Despret, John Law,
John Urry, Danna Haraway e outros que participam da idéia de pesquisar na ação, na
fronteira existente entre a prática e aquilo que se estabelece momentaneamente, como
no fluxo magmático. E olhar para o ‘como’ são transladados conhecimentos ao ponto de
algumas ideias ficarem evidentes e naturalizadas e outras invisibilizadas, esquecidas ou
atuadas à margem.
Apesar de muito já se ter escrito sobre as PICs no Brasil12, esta controversa questão
precisa ser analisada para que, usando uma metáfora latouriana, se abra a caixa-preta13
(Latour, 2000).
10 Rede para Latour (1997), está relacionada a fluxos, circulações e alianças, devendo ser
compreendida como lógica de conexões e agenciamentos.
11 O Grupo de Pesquisa “PesquisarCom”, primeiramente proposto pela Professora Márcia
Moraes da Universidade Federal Fluminense (UFF), da cidade de Niterói (RJ), Brasil, estuda o
caráter performativo das práticas nas fronteiras entre e ver e o não ver no caso dos deficientes
visuais (Moraes, 2010) e, entre o que conta e o que não conta como realidade no caso das
pesquisas em saúde, construídas a partir de certas práticas. Visa com isto, intervir em tais
fronteiras, movê-las, problematizá-las, repensá-las e fazer ploriferar novas versões de mundo.
12 Therezinha Madel Luz criou em 1991, no Instituto de Medicina Social da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro, o Grupo de Pesquisa do CNPq ‘Racionalidades Médicas’,
promovendo estudos sobre paradigmas, saberes e sistemas complexos tradicionais de saúde que
possuem sua própria racionalidade tais como: medicina chinesa, homeopatia, medicina
ayurvédica, entre outros. Desde então, foram inúmeros artigos indexados, livros, dissertações
de mestrado e teses de doutorado, elaborados sobre esta temática. Contato:
http://racionalidadesmedicas.pro.br/
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entre a saúde considerada como oficial e o quê, de certo lugar, diz-se alternativo – ou,
como na nomenclatura atual, integrativo e complementar.
Como nos encontramos para escrever este artigo.
Em um dado momento, no doutoramento cursado por uma de nós, houve um encontro
com Mariana15, uma Etnobotânica16 começando o seu pós-doutorado em Biologia
interessada em continuar seus estudos sobre como os erveiros poderiam passar seus
ensinamentos adiante, uma vez que tais ensinamentos, transladados tradicionalmente na
família, estavam se perdendo.
Quando terminara seu doutorado, havia percebido que quando os filhos e sobrinhos dos
erveiros da Mata Atlântica seguiam os estudos formais, logo que acessavam a escola
formal, descredenciavam o saber popular e familiar sobre cuidados em saúde. Uma vez
que a cientificidade, descritas nos livros e cobrada nas provas escolares, indicava que
fora da visão biomédica o que existia era ignorância.
Ao mesmo tempo, Mariana e a doutoranda pesquisavam as terapias naturais e sua
implementação no serviço público de saúde. Isso fazia as autoras se interrogarem : por
quanto tempo o ensino formal vai continuar (des)informando os jovens quanto ao que
vale e ao que não vale como verdade em saúde? Quem decide e ao decidir, colonializa?
A quem se obedece quando se decide o que conta e o que não conta como saber
responsável, autorizável? Será possível transladar saberes culturais dos erveiros antes de
se extinguirem?
Aquelas dúvidas acessavam outras: por que, as terapias orientais estavam tão
fortemente nas policlínicas do SUS e não os saberes, por exemplo, dos erveiros da Mata
Atlântica ou da Mata Amazônica? Neste momento, Mariana se lembrou que no ultimo
congresso sobre as PICs que havia comparecido, o seu trabalho era o único que versava
sobre a prática nacional do cuidado em saúde; o restante todo era sobre as terapias
orientais de saúde.
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Dias mais tarde, em uma conversa com a doutoranda, realizada via skype , Mariana
estava angustiada com sua pesquisa de pós-doutoramento, pois, para falar com os
erveiros do alto da Mata Atlântica, teria que passar por tantos protocolos de ‘proteção’ à
19 Nas linhas que se seguem o texto estará escrito, em boa parte, na primeira pessoa do
singular justamente porque a história será narrada a partir do percurso de uma das autoras
deste trabalho.
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A grande controvérsia que aquece neste caso aparece quando se pergunta: Qual é a base
do diagnóstico que está sendo discutido e postulado? Qual é a ontologia e racionalidade
médica que faz o diagnóstico da acupuntura: biomédica ou energética? Se, o diagnóstico
parte de cosmovisão totalmente diferentes, a biomedicina não possui aptidão para fazer
diagnóstico da Medicina Tradicional Chinesa (MTC) a não ser que o médico se torne
especialista na MTC. E, para fazer isto, seguindo a tradição do conhecimento ontológico
destes saberes [o Tao], o médico precisa antes de tudo, se despir dos conceitos que
embasam a biomedicina, para então pensar de outro jeito, por outras versões de saúde.
Notadamente é algo muito difícil e angustiante para o profissional que parte para este
desafio de atravessar uma fronteira e rumar para o desconhecido. Deste modo, não há
como não reconhecer uma grande controvérsia nestas justificativas e lutas judiciais de
mais de dez anos.
No ano de 2012, outra luta jurídica foi travada entre os conselhos de medicina e de
farmácia e o resultado foi:
[...] Em primeiro lugar, não existe lei determinando que a acupuntura é
um ato privativo do médico. Em segundo, o Código Brasileiro de
Ocupação prevê a figura do médico acupunturista, ou seja, a medicina
também pode exercer a atividade. Em terceiro, o Ministério da Saúde,
por meio da Portaria 971/06, que trata da Política Nacional de Práticas
Integrativas e Complementares do SUS, inclui a acupuntura, SEM
restrição profissional. E por fim, é preciso esclarecer que a recente
decisão do TRF (1ª Região) não abrange os termos da Resolução nº
516/09, do CFF, que define os aspectos técnicos do exercício da
acupuntura na Medicina Tradicional Chinesa como especialidade do
farmacêutico, disse Walter Jorge João, Presidente do CFF. (Conselhos
profissionais da saúde recorrem ao Ato Médico. Consultado a
24/09/2014. http://www.fenafar.org.br/portal/emprego-e-trabalho/66-
emprego-e-trabalho/1477-conselhos-de-farmacia-e-fisioterapia-vao-
recorrer-de-decisao-que-da-aos-medicos-exclusividade-no-exercicio-da-
acupuntura.html ).
e manutenção da saúde sem artificialidade? Se, esta tomada para si das terapias naturais
por profissionais formados academicamente não seria uma forma de excluir os
terapeutas não acadêmicos? A quem interessava esta organização das terapias naturais
em compartimentos acadêmicos?
Considerações finais
Dando final a estas histórias por nós contadas, percebemos que as respostas às nossas
questões colocadas neste texto não são tão obvias, mas apontam para linhas que
formam esta rede de saúde. As pessoas estão aos poucos retornando aos cuidados mais
naturais de saúde, uma vez que a medicalização com seus efeitos colaterais não tem
trazido saúde e sim muita dependência a medicamentos que nutrem doenças crônicas,
ou seja, o mal estar difuso continua (Luz, 2005). Não é incomum ver a população
buscando se cuidar mais naturalmente, ou mesmo melhorar seu contato com a natureza,
respirar, meditar, receber uma benzedura, uma energização com impostação das mãos e
buscar os terapeutas naturais e acupunturistas.
No serviço público de saúde as PICs ainda dependem de quem está na gestão. Se for um
adepto à idéia de práticas complementares à biomedicina ou se for um adepto ao Ato
Médico. Isso irá dizer o que pode e o que não pode ser feito dentro da policlínica na sua
gestão ou mesmo terá poder de desfazer serviços que antes eram oferecidos à
população. Sendo assim, o campo da saúde no Brasil, com suas diferentes versões de
cuidado e saude, é uma tensão permanente, desde a década de 1970 até os dias atuais.
No entanto, esta tensão mostra que a rede é performada por vários atores e entre eles
estão os erveiros, os mateiros, as parteiras, os acupunturistas, médicos e não médicos
todos enredados nas políticas públicas de saúde que entremeiam a realidade e a fazem
existir.
As controvérsias não são um mero aborrecimento a evitar, e sim aquilo que permite ao
social estabelecer-se. Os fluxos, conexões e agenciamentos são bem mais complexos do
que conseguimos mostrar. Porém, a partir destas evidências da agregação do social em
torno das PICs, das práticas orientais e das práticas brasileiras de saúde formando redes
e realidades como políticas ontológicas, pudemos mostrar como são momentâneos,
interrompidos, embaraçados, confusos, desviados pelas incertezas e espantos, assim
como o material do magma mencionado no início do texto.
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Assim, o que nos interessou neste texto foi mostrar que é controversa a integração e
complementaridade presentes no nome que se dá oficialmente às práticas de saúde que
passaram a integrar o Sistema Único de Saúde no Brasil. O que se faz presente neste
campo é o embate, a controvérsia por versões de cuidado e de saúde que ora se
articulam ora se sobrepõem, ora uma faz calar a outra. São realidades ainda em disputa.
Há que ser sublinhado que não há universalidade que não tenha sido tecida em algum
local, ou seja, nas palavras de Latour (2012), o global é necessariamente local. Um
local que foi transladado para muitos outros locais, deixando na sombra as suas
condições de produção. E mais do que isso, via de regra, este global, escrito com a
sintaxe da colonização, não cessa de alterizar e exotizar o que lhe é estranho e exterior.
É pois necessário habitar a controvérsia que aí se instala, é necessário entrar no jogo da
política ontológica para redesenhar, de forma mais democrática, o que conta como
saúde e cuidado no Brasi.
Referências
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