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ESTIGMA E DISCRIMINAÇÃO NO AMBIENTE ESCOLAR:


UMA PROPOSTA PARA A CONSTRUÇÃO DA PRÁXIS DOCENTE
NO ENSINO DE SOCIOLOGIA
http://dx.doi.org/10.4025/imagenseduc.v6i2.29911

Vitor Machado*
Paulo Henrique Napoli**

*Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp – Bauru. vitor@fc.unesp.br


** Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. phn_prolink@hotmail.com

Resumo
Este artigo tem como objetivo propor um método de ensino na forma de uma
sequência didática, tendo como referência metodológica a Pedagogia Histórico-Crítica,
para auxiliar os professores da Educação Básica, particularmente, da disciplina de
Sociologia, a evitarem relações discriminatórias, transferidas do meio social para o
ambiente escolar, as quais foram aqui chamadas de ‘fenômenos caóticos ressonantes’.
A metodologia foi aplicada em alunos do ensino médio de uma escola pública no
interior de São Paulo, procurando problematizar o processo de estigmatização
exercido pelos alunos nativos da cidade e sofrido por estudantes de origem nordestina,
resultando na melhoria da convivência entre ambos.
Palavras-chave: ensino de sociologia, estigma, fenômeno caótico ressonante,
Pedagogia Histórico-Crítica.

Abstract: Stigma and discrimination in the school environment: proposal for


the construction of the teaching practice in the sociology of education. This
article aims to propose a method of teaching in the form of a didactic sequence,
having as methodological reference the Historical-Critical Pedagogy, to help teachers
of basic education, particularly the discipline of Sociology, to avoid discriminatory
relations, transferred from the social environment to the school environment, which
are here called ‘resonant chaotic phenomena’. The method was applied to high school
students in a public school in São Paulo, seeking to problematize the stigmatization
process exercised by the native students from the city and undergone by students
from the Northeast, resulting in improved coexistence between them.
Keywords: sociology of education, stigma, resonant chaotic phenomenon, Historical-
Critical Pedagogy.

Introdução temas relacionados à estigmatização e


preconceito, a fim de evitar a existência de uma
Este artigo é resultado de uma pesquisa relação discriminatória entre os alunos,
realizada na Escola Estadual Francisco Marques principalmente estas, quando ocorrem no espaço
Pinto, no município de Nova Granada, interior escolar. Essa sequência didática foi aplicada em
do Estado de São Paulo, localizada na região de três salas de aula, do segundo ano do ensino
São José do Rio Preto, cujo objetivo foi a médio.
produção de uma metodologia de ensino, na A motivação para a criação da metodologia
forma de uma sequência didática, à luz da aqui sugerido é decorrente do fato de termos
Pedagogia Histórico-Crítica, para auxiliar os identificado no espaço escolar o que chamamos
professores da educação básica, particularmente, de ‘fenômeno caótico ressonante’, isto é, um
da disciplina de Sociologia, no trabalho com determinado fenômeno social discriminatório,

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elaborado pelo senso comum e transferido do grande contingente de europeus brancos já


meio social para o interior do ambiente escolar. instalados. Passaram a ser mal remunerados,
No caso da escola pesquisada, o fenômeno discriminados e estigmatizados. Encaixavam-se
caótico ressonante por nós identificado, que em atividades produtivas mais penosas ou de
serviu para os estudos aqui produzidos, foi a pouco interesse da maioria da população, como
estigmatização sofrida por um grupo de alunos a colheita da laranja ou o corte da cana-de-
nordestinos. Percebemos tal fenômeno durante a açúcar, além de se empregarem também como
apresentação de um seminário, solicitado como faxineiros, porteiros, trabalhadores domésticos,
atividade didática da disciplina de Sociologia. No dentre outros. Já os migrantes de Nova Granada
momento da exposição dos trabalhos, notamos são provenientes dos estados do Ceará,
que o grupo de alunos nativos da cidade, Pernambuco, Bahia e Paraíba. Nela
promovia uma certa discriminação, estabeleceram-se nos últimos trinta anos por
supostamente por sua descendência europeia, uma infinidade de razões distintas e trouxeram
sob um outro grupo composto por alunos de consigo além da força de trabalho, elementos
origem nordestina. A segregação tornou-se culturais importantes e presentes na formação de
explícita no momento em que suas genealogias suas identidades sociais. Apesar de apresentarem
estavam sendo reivindicadas. Devido à história uma imensa diversidade, quanto ao estado de
pouco documentada da origem do município, origem, condição socioeconômica e costumes,
envolvendo imigrantes espanhóis que teriam todos os alunos descendentes de migrantes
povoado a cidade e região em busca de trabalho presentes há aula eram tratados como ‘baianos’.
na ferrovia durante as três primeiras décadas do Tal expressão de caráter pejorativo e de
século XX, os alunos descendentes das famílias conteúdo homogeneizador, transformava-os em
tradicionais sentiam-se superiores frente aos massa amorfa, sujeita a todo tipo de
recém-chegados, oriundos dos estados discriminação. Assim, durante o
nordestinos. desenvolvimento do trabalho já anunciado, os
A reprodução do preconceito contra os alunos nordestinos tinham suas identidades
nordestinos, historicamente reproduzido no silenciadas devido a estigmatização promovida
Estado de São Paulo, evidenciou-se claramente pelos descendentes de imigrantes e por aqueles
durante a apresentação dos trabalhos. Podemos nascidos na cidade. No entanto, os nativos,
dizer que tal preconceito é fruto de uma apesar de pertencerem também a mesma classe
construção histórico-social brasileira do retrato social, residirem nos mesmos bairros e
esteriotipado do nordestino, produzido em frequentarem os mesmos espaços sociais que o
contraste com a identidade dos paulistas. grupo estigmatizado, faziam emergir um
Enquanto tudo que se relaciona ao nordeste é sentimento latente de superioridade da
visto como atrasado, rústico e tradicional, em identidade étnica. O trabalho desenvolvido na
São Paulo desenvolveu-se a identidade do sujeito sala de aula revelou ainda a contraposição de um
trabalhador, descendente direto dos bandeirantes grupo em relação ao outro, no sentido de
– exploradores do sertão no período colonial – e estigmatizar e apontar elementos difamatórios
dos imigrantes europeus, que não conhecem o presentes na origem étnica dos estudantes.
ócio. São Paulo representa um estado moderno, Ao pensarmos sobre a função social da
industrial, branco, capitalista, que sustenta o escola como local de transmissão-assimilação da
resto do país, sendo considerado por muitos produção cultural historicamente acumulada pela
paulistas como a locomotiva do Brasil. Somado a humanidade, procuramos discutir neste texto
isto está também o fato de que a maior parte dos quais as causas do processo discriminatório entre
migrantes nordestinos que rumaram em direção os alunos, no âmbito do espaço escolar,
a São Paulo, entre as décadas de 1920 e 1930, a tentando desvendar por que motivo indivíduos
procura de emprego decorrente da crescente da mesma condição social, com perspectivas e
industrialização, eram oriundos do estado da sonhos similares, formam grupos que excluem e
Bahia e de maioria negra. Quando chegaram, estigmatizam outros grupos.
entraram imediatamente em choque com os
resquícios de teorias eugenistas1 e com um
serem os caracteres adquiridos numa geração,
1 O termo ‘eugenia’ foi cunhado na Inglaterra do transmissíveis às gerações seguintes. O termo surgiu
século XIX e teve como fundamento teórico para para se justificar a ideia de melhoria das raças,
explicação das diferenças raciais a Teoria Pangenética, enfatizando-se o fato de que quanto mais pura elas
elaborada por Charles Darwin, a qual sustentava fossem mais forte e melhor seriam (Gioppo, 1996).

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Como resultado das discussões, centrada no passado de um agrupamento


demonstramos a necessidade de uma social.
intervenção dos educadores durante o processo A herança cultural só é sentida e
de ensino, para que os problemas acima determinada na relação com o outro. Por
mencionados, quando existirem, possam ser isso que o fenômeno da etnicidade e,
superados, tornando a convivência entre os
consequentemente, o contato interétnico,
alunos mais agradável no espaço escolar ou fora
dele. tornaram-se objetos de estudos das Ciências
Neste sentido, nossa proposta metodológica Sociais na contemporaneidade. Um dos
de ensino será capaz de contribuir com uma motivos é porque examinar as formas de
prática docente transformadora, que leve em diferenciação social, apenas pelo critério de
conta a transmissão do saber historicamente classe, mostra-se insuficiente para abarcar
elaborado, conduzindo os alunos para a todo o conjunto de elementos provenientes
transformação da realidade e, dessas relações. O outro motivo é que o
consequentemente, para a melhora da mundo globalizado, dito sem fronteiras, ao
convivência entre eles, deteriorada por processos invés de homogeneizar as culturas, pela
discriminatórios. facilidade, velocidade e abrangência dos
Com isso, esperamos romper com uma
visão imediatista do saber espontâneo para o
novos meios de comunicação e transporte,
saber sistematizado, desvendando as acirra o sentimento de afirmação das
representações que encobrem a essência de diferenças regionais frente à invasão cultural,
determinados fenômenos sociais, os quais política, econômica e bélica de outras
ocorrem com o verdadeiro intuito de provocar a nações. A identidade étnica parece explicitar
exclusão. agora, mais do que nunca, seu conjunto de
singularidades, em contraposição ao outro e
O processo da construção da identidade isso decorre também do fato do
social e a questão do estigma enfraquecimento do Estado-Nação, fruto da
modernidade (Poutignat & Streiff-Fenart,
No idioma grego, ethnos fazia referência 1998).
aos povos bárbaros ou aos gregos não Distinguir ‘nação’ de ‘etnia’ não é tarefa
organizados nas Cidades-Estados. Dessa fácil, pois os dois repousam na ideia de um
maneira, referir-se a etnias significava agrupamento de indivíduos, que partilham
estabelecer uma separação entre o ‘nós’ e os mesmos interesses, ideias e
‘eles’, tendo a própria cultura como modelo comportamentos, que abriram mão de
de civilidade. proveitos particulares e submeteram-se a
Nas Ciências Sociais o termo etnia deveres, em troca de direitos conquistados
sofreu modificações e reinterpretações em pela organização coletiva. Entretanto, uma
diversos momentos, mas optamos por nação pode seguir formações estritamente
trabalhar com o conceito elaborado por políticas sem necessariamente obedecer a
Poutignat e Streiff-Fenart (1998), para a critérios étnicos, como é o caso de alguns
realização da nossa análise e o países africanos e outros do leste-europeu.
estabelecimento de relações com o Basta citarmos a emblemática conjuntura da
fenômeno investigado. Segundo esses Iugoslávia após o fim do regime socialista
autores, a etnicidade exprime não somente naquele país. Foi preciso somente de um
as relações objetivas de diferenciação social abalo nas forças políticas que mantinham a
de um povo como crença, cor da pele, unidade do local, para as guerras e embates
língua, localidade geográfica e costumes, mas interétnicos assolarem o antigo Estado,
principalmente, uma crença subjetiva na dividindo todo o território em regiões
comunidade de origem. Para eles, a grande marcadas por essas diferenças étnicas.
disparidade entre a identidade étnica em O contato interétnico consiste, portanto,
relação a outros tipos de identidade, seria no encontro de indivíduos ou grupos de
justamente o fato da primeira encontrar-se diferentes nacionalidades ou culturas. Como
a formação da identidade acontece na

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diferenciação de um grupo ou indivíduo em sociedade. Isso é uma estratégia de interação


relação ao outro, o contato interétnico e sobrevivência social, na qual o sujeito cria
oferece uma infinidade de possibilidades de socialmente representações coletivas, dando
desenvolvimento. sentido ao seu papel num determinado meio.
Segundo Oliveira (1976), podemos Assim, de acordo com os condicionantes da
definir o conceito de identidade como estrutura social posta, um grupo consegue
‘identidade contrastiva’, a qual parece exercer seu papel dominante, estigmatizando
constituir-se na essência da identidade os demais grupos (Oliveira, 1976).
étnica, que é a base na qual esta se define. No que se refere ao estigma, segundo
Isso implica na afirmação do ‘nós’ diante dos Goffman (1988), ele pode ser definido como
‘outros’. Quando uma pessoa ou um grupo o traço de um grupo ou indivíduo –
afirma-se como tal, o faz como meio de perceptível ou não no primeiro momento –
diferenciação, em relação a alguma pessoa que não é característico dentro daquilo
ou grupo com que se defronta. É uma encarado como normal. Quem carrega esse
identidade que não surge isoladamente, mas traço, essa marca, encontrará dificuldades na
se afirma por oposição, negando a interação social com os demais, pois, na
identidade do outro, de forma visão dos ‘normais’ (não estigmatizados), o
etnocentricamente determinada. estigmatizado perdeu qualquer tipo de
Além da relação com o outro, a atributo ou qualidade, sendo aquela marca
identidade constrói-se também, na relação definidora do seu caráter. Lembremos que
dialética entre indivíduo e sociedade. na sociedade ocidental, o que se entende por
Mantendo a pesquisa na área sociológica, ‘normal’, é o homem branco, hétero e bem
entendemos o caráter social determinante sucedido.
nas construções subjetivas do indivíduo.
Submerso nas mais diversas particularidades Por definição, é claro, acreditamos que
alguém com um estigma não seja
das relações sociais, esse sujeito cria completamente humano. Com base nisso,
mecanismos ideológicos de interação, alguns fazemos vários tipos de discriminações,
para se defender, outros para exercer a através das quais efetivamente, e muitas
dominação. Aspectos históricos, sociais, vezes sem pensar reduzimos suas chances
econômicos, culturais e principalmente de vida. Construímos uma teoria do
estigma, uma ideologia para explicar a sua
interétnicos, irão definir o desenvolvimento inferioridade e dar conta do perigo que ela
dessa identidade. Isto significa que existe a representa, racionalizando algumas vezes
possibilidade de se desenvolver uma uma animosidade baseada em outras
identidade étnica negativa dentro do jogo de diferenças, tais como as de classe social
relações dos contatos interétnicos e um (Goffman, 1988, p. 77).
grupo pode reivindicar, a partir do seu
Ao ser desumanizado, o indivíduo ou
imaginário coletivo, uma herança cultural
grupo encontra-se sujeito a qualquer tipo de
para legitimar sua posição de poder perante
violência possível. Seus atributos são
o outro grupo.
desqualificados, sua imagem é corrompida,
Como já mencionamos, a herança
suas ações menosprezadas, seu caráter
cultural pode não condizer, necessariamente,
estereotipado e sua alma profanada. O
com a realidade histórica de fato, mas o uso
indivíduo estigmatizado é tratado com
que se faz dela é mais do que suficiente para
condolência ou ódio. Em ambos os casos,
subordinar e estigmatizar o outro. Não é
ele é menos humano que os demais. Logo,
preciso provar cientificamente o patrimônio
ações discriminatórias passam impunes ou
cultural herdado, basta existir uma
até mesmo são legitimadas pela maioria. Ao
convenção social daqueles que a reconhecem
analisarmos, por exemplo, as
(Poutignat & Streiff-Fenart, 1998).
particularidades de um fenômeno de
Então, podemos dizer que a identidade é
violência envolvendo estupros e genocídios
construída na confrontação direta com o
em guerras, notamos a presença de tal
‘outro’ e na relação dialética entre indivíduo-

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sentimento incutido na cabeça dos merecedores dos mesmos benefícios por


opressores. eles recebidos, ou da mesma participação
A visão estigmatizadora do ‘outro’ abre social, pois são dotados de uma inferioridade
precedentes aos mais variados crimes e intrínseca, que legitimaria assim, o fato de
atrocidades, como no caso do racismo, por serem excluídos e estigmatizados em
exemplo, que surge na totalidade das determinados momentos. Além disso, como
sociedades humanas como um fenômeno os nativos lidam somente com a
quase universal, constituindo-se a partir da representação do fenômeno discriminatório,
exclusão do outro, da total desvalorização entendendo apenas o que se mostra como
dele, culminando na proliferação do ódio direto e imediato, sem as mediações
(Castoriadis, 1992). abstratas, eles culpam também os migrantes
Devemos compreender, no entanto, nordestinos das mazelas sociais do seu
conforme aponta Castoriadis (1992), que cotidiano, acusando-os muitas vezes, de
simplesmente culpar alguém pelo fato de serem violentos e de cometerem a maioria
pertencer a uma ou outra coletividade, sem dos crimes ocorridos no município.
que esse tivesse escolhido fazer parte dela – Desta forma, os alunos, bem como os
pois não somos responsáveis pelo nosso demais habitantes da cidade, referem-se
nascimento nem pela nossa etnia – não é pejorativamente ao grupo estigmatizado
uma característica exclusiva do racismo. O como ‘baianos’. A eles são atribuídos
bairrismo ou o nacionalismo, tomados aqui desqualificações, imoralidades e
como exemplos, instauram uma espécie de incapacidades, elementos formulados
inimigo hereditário, culpando sempre o ideologicamente pelo grupo dominante.
outro por pertencer a uma coletividade da Também são encarados no município como
qual não escolheu fazer parte. violentos, sujos, estranhos, inferiores, por
Nas sociedades em geral, o que garante manifestarem uma ‘cultura atrasada’ –
as bases do imaginário racista são segundo até mesmo comentários de alguns
características físicas, portanto, irreversíveis. docentes da escola onde realizamos nossa
Daí o racismo não querer a conversão do pesquisa.
outro, mas sim a sua morte. É dessa O fato é que a identidade negativa
inconversibilidade que surge a rejeição, imputada ao grupo dos estigmatizados lhes
manifestada por meio do ódio do outro dá um sentimento de inferioridade, que
enquanto outro. somado a discriminação sofrida, pode gerar
Para Castoriadis (1992, p. 35), conflitos violentos durante os contatos com
outros indivíduos.
A partir do momento em que há fixação Para melhor entendermos todo esse
racista, como se sabe, os ‘outros’ não são
apenas excluídos e inferiores; tornam-se,
processo é inevitável fazermos referência a
como indivíduos e como coletividade, obra de Elias (2000), intitulada Os estabelecidos
ponto de suporte de uma segunda e os outsiders. Os dados do nosso trabalho
cristalização imaginária. Cristalização essa assemelham-se muito com o universo das
que os dota de uma série de atributos e, relações sociais da pequena comunidade de
por trás desses atributos, de uma essência
má e perversa, justificando de antemão Winston Parva, apresentado pelo autor, na
tudo o que se propõe infligir a eles. obra citada. Talvez o aspecto mais
semelhante e curioso repouse na prática de
No caso da escola por nós pesquisada relações de poder e no sentimento de
percebemos, então, ações discriminatórias superioridade humana sentida pelos
cometidas contra grupos de alunos advindos dominadores. Isso quer dizer que os
da região nordestina do país. Os sujeitos fenômenos da discriminação e segregação
discriminados são nascidos nessa região, ou entre os alunos, ultrapassam a perspectiva
descendem de uma geração proveniente de classista de dois grupos antagônicos e
lá. Na ideia já estabelecida dos munícipes irreconciliáveis. São agrupamentos sociais da
autóctones, tais sujeitos não são mesma condição socioeconômica e mesmos

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ofícios, porém, a situação é de segregação, sabendo, portanto, distinguir com clareza o


estigmatização, inferiorização e certo do errado. Entretanto, o que eles
discriminação. consideram como certo é justamente as
Com a nossa pesquisa, pudemos normas de identidade ressaltadas por
perceber que os estabelecidos (nativos da Goffman (1988), isto é, padronizações de
cidade) mantêm suas posições dominantes comportamento, tendo como referência um
por meio da ocupação de cargos políticos grupo específico. É comum os habitantes da
importantes dentro da comunidade. Além de cidade salientarem o mal comportamento
residirem com suas famílias no bairro do dos nordestinos e a sua postura violenta. De
município há pelo menos três gerações, eles acordo com eles, os nordestinos seriam
são membros do conselho de bairro, responsáveis pela maioria dos casos que
professores de escolas e creches. Enfim, por envolvem, principalmente, agressões em
mais simples e rotineiros que esses cargos bares, violência doméstica e gravidez na
possam parecer, influenciam diretamente na adolescência. Interessante perceber que
visão do grupo. Por outro lado, os outsiders – situações assim acontecem com frequência,
em analogia a obra de Elias (2000) – mas apenas quando envolve nordestinos ela
chegaram recentemente, são fragmentados e é potencializada e rapidamente divulgada
ainda não estabeleceram contatos sólidos o (Elias, 2000). Neste caso, fica fácil
suficiente para cristalizar práticas e normas percebermos isso, principalmente, entre os
identificatórias entre si. Eles são encarados alunos da escola pesquisada, pois a
como sujeitos despossuídos de virtude, que justificativa que deram para não
não respeitam as normas e ameaçam o poder apresentarem o seminário envolvendo a
político dos estabelecidos. O que está em trajetória de suas famílias, foi a de que não
jogo é exatamente isso, a posição havia nada de positivo na história dos
desconfortante dos estabelecidos frente a ‘baianos’. Muito provavelmente, essa baixa
esse novo cenário social. A chegada de autoestima é resultado da imagem negativa
indivíduos forasteiros criou no imaginário que elaboram de si mesmos, incorporada
do grupo antigo a sensação de ameaça e a após anos de estigmatização, em torno do
resposta imediata foi estigmatizar os novos significado do ser ‘baiano’.
habitantes. Pela pesquisa que realizamos,
Como nos explica Elias (2000), o grupo constatamos ainda que todo esse processo
estigmatizado se sente paralisado diante do de discriminação sofrida pelos nordestinos
ataque, sendo mínimas as chances de reação na cidade transferiu-se para o interior da
em razão da dispersão de seus sujeitos. Para escola, deteriorando a relação entre os
o autor, os estabelecidos possuem normas alunos. Como a proposta de ensino que
grupais (não necessariamente formais) de desenvolvemos poderá ser aplicado para
convivência e identidades sociais já tratar da discriminação social de forma
cristalizadas no seio daquele local. Qualquer generalizada, chamaremos tais
um, mesmo os estabelecidos que infringirem discriminações de ‘fenômenos caóticos
essas normas, estarão sujeitos a receberem ressonantes’.
ofensas públicas, ou até mesmo, de serem Sabendo da recorrência e
excluídos do grupo. O sujeito, todavia, desenvolvimento de um ‘fenômeno caótico
abdica de parte das suas vontades e desejos ressonante’ no espaço escolar, torna-se
individuais, em troca do poder coletivo de obrigação do educador, ao percebê-lo,
pertencer aos membros superiores da desenvolver uma metodologia, no sentido de
sociedade – segundo seu próprio desmobilizar ações segregacionistas,
julgamento. promovidas por alunos no ambiente escolar,
Conforme o que constatamos em nossa aproveitando, obrigatoriamente, o currículo
pesquisa, segundo os nativos da cidade, os oficial da disciplina.
nordestinos são feios, ignorantes, violentos e
possuem uma ‘cultura atrasada’, não

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O ensino de sociologia na educação exemplo, é impedir o educando de formular


básica: uma proposta pedagógica à luz conexões com o todo, limitando a produção
da Pedagogia Histórico-Crítica do conhecimento. Deste modo, é também
interrompido o desenvolvimento da
A partir desse momento, pretendemos consciência de classe dos oprimidos. Aquilo
sugerir uma metodologia levando em que é clássico o é justamente pela
consideração não só a garantia da pertinência e contemporaneidade de suas
apropriação do conteúdo historicamente ideias e não deve ser subtraído da
elaborado, mas também desestigmatizar as sistematização do conhecimento. Portanto,
relações entre os alunos de uma mesma sala em vista disso, o método Materialista
de aula. Histórico-Dialético concebe a abstração dos
Como Saviani (2008a), nosso objetivo fenômenos empíricos, sob a luz do conjunto
também é desenvolver uma proposta epistemológico acumulado.
pedagógica, tendo como matriz Não faz sentido para o método marxista
epistemológica o Materialismo Histórico- – transposto à educação – um pensamento
Dialético, na perspectiva da incorporação de metafísico deslocado da experiência material
conteúdos, no processo transmissão- (ensino tradicional), assim como é
assimilação, dentro do espaço escolar. equivocado um ensino somente voltado à
Mesmo sabendo que as relações prática (construtivismo), sem os
estigmatizadas extrapolam o espaço escolar, pressupostos teóricos suficientes para a
é nele que ela aparece de forma explícita. Por elaboração da síntese do fenômeno
conseguinte, é missão do educador educativo.
problematizar e intervir no transcurso do Conforme Saviani (2008a), isto significa
processo de ensino e da aprendizagem, no que ao colocarmos em prática a Pedagogia
sentido de procurar conscientizar seus Histórico-Crítica, devemos partir da
alunos de que o preconceito e a materialidade dos fenômenos empíricos para
estigmatização são causa de grandes transportamos a prova dos saberes teóricos
injustiças sociais. historicamente elaborados, para depois
Nesta ocasião, procuramos utilizar como retornarmos com esse fenômeno ao
referencial metodológico para o concreto (empírico pensado).
desenvolvimento do trabalho em sala de aula Em outras palavras, o autor quer dizer
a Pedagogia Histórico-Crítica e, com isso, que por dar ênfase à aprendizagem e à
sugerir um caminho e uma nova pedagogia tradicional,, a Pedagogia
possibilidade prática, relativa ao processo de Histórico-Crítica promove a síntese dialética
ensino aprendizagem, capaz de possibilitar o dessas duas instâncias – aprendizagem e
enfrentamento do problema em questão, método – ao partir de um dado fenômeno
trazido como pano de fundo das discussões empírico, como aquele que se manifesta de
até aqui elaboradas. forma imediata, explícita, porém caótica e
Como sabemos, a escola tem o dever difusa nas relações sociais. Em seguida, tal
histórico de promover a socialização do fenômeno é discutido sob a luz do
saber sistematizado na sua forma científica, pensamento de determinados autores que já
compreendendo a superação da visão refletiram sobre ele, retornando a prática
imediatista (Duarte, 2010). Uma educação social do cotidiano, mas agora com novos
que vise superar as contradições existentes elementos elucidativos e científicos (Saviani,
na sociedade burguesa necessita resgatar 2008a).
elementos primordiais do papel histórico da
escola e a relação entre transmissão e A descrição da metodologia de ensino
assimilação na relação educador e educando.
Para Saviani (2008a), desprezar o No caso da escola por nós pesquisada, a
conteúdo acumulado historicamente pela qual já anunciamos na introdução deste
humanidade, como o conteúdo clássico, por texto, a deterioração das relações sociais

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existente entre os alunos, pode ser explicada aprendizagem seja conduzido conforme as
pelo processo de estigmatização social, orientações do método expostas a seguir.
exercido por habitantes nativos da cidade Nossa metodologia fundamentado em
(Nova Granada), sobre sujeitos que para ela Gasparin (2013), é composto por cinco
migraram, provenientes da região nordestina etapas: Prática social (empírico);
do Brasil. Os alunos que frequentam essa problematização; instrumentalização; catarse
escola, são de baixa renda – muitos dos e prática social (concreto). Todo esse
quais beneficiários de projetos sociais caminho deve ser percorrido pelo
governamentais de transferência de renda – profissional da educação, desde a aparição
e que compartilham entre si, os mesmos do ‘fenômeno caótico ressonante’,
espaços sociais de interação. A grande perpassando por sua abstração e culminando
maioria deles divide seu tempo frequentando no seu retorno a prática. Para colocar o
espaços comuns como: as praças do método em prática, o professor deve ter
município, as sorveterias, o ginásio bem claro que o tema a ser trabalhado por
esportivo, o salão paroquial, as igrejas ele, dependerá da identificação dos
protestantes e, principalmente, os locais de ‘fenômenos caóticos ressonantes’ da
trabalho, tendo em vista que muitos desses realidade social empírica vivenciada pelos
jovens já possuem algum tipo de atividade alunos na sala de aula, ou seja, do todo
remunerada. caótico, que significa a maneira como o
Como sabemos, o fenômeno da senso comum interpreta os fenômenos
estigmatização é fruto de construções sociais, o que é realizado por acumulo de
históricas e culturais, que imputa aos informação, sem o arcabouço teórico
diferentes, através da ideologia dominante, suficiente e necessário a qualquer nível de
qualquer tipo de culpa, com a real intenção compreensão.
de excluí-los socialmente. A primeira fase da metodologia do
No entanto, entendemos que a escola trabalho docente consiste em o professor
tem como dever histórico promover observar, empiricamente, o ‘fenômeno
transformações, principalmente, no que caótico ressonante’ presente no espaço
tange a disciplina de sociologia, cujo escolar e selecionar aquele com o qual
deseja trabalhar. Feito isso, ele deve
[…] papel que ela tem a exercer na reorganizar os elementos que provocam
educação básica é contribuir para que o
aluno seja capaz de pensar a realidade do
desordem ao pensamento, como aqueles que
seu mundo por meio do instrumental são apropriados pelo senso comum e
sociológico (Machado, 2012, p. 187). reproduzidos no ambiente escolar
(fenômeno caótico ressonante), de forma a
Quanto ao professor de Sociologia, proporcionar aos alunos um entendimento
de tais elementos por meio do
[...] ele deve também promover, por meio
de uma linguagem clara e objetiva, a
conhecimento historicamente elaborado, o
articulação entre o plano da realidade e os qual deve-se dar através da transmissão do
conceitos ou teorias sociológicas, conteúdo clássico (erudito).
despertando o interesse dos alunos e não Sabemos que o aluno carrega consigo
permitindo que as discussões caminhem pré-noções e pré-conceitos construídos e
para o campo do senso comum (Machado,
2012, p. 187). enraizados dentro do seu cotidiano, os quais
precisam ser problematizados,
Para que o trabalho do professor possa desconstruídos e reconstruídos. Afinal, esse
ser realizado com maior qualidade, a fim de é o papel do professor na relação
promover as transformações desejadas e, no transmissão-assimilação. Da prática social ele
nosso caso, tais transformações referem-se retira seu material empírico de trabalho para
às mudanças nas relações estigmatizadas conseguinte repensá-lo à luz dos clássicos
entre alunos de uma mesma sala de aula, (Saviani, 2009).
sugerimos que o processo de ensino e de

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A segunda fase determina que o momento, ele absorve a síntese da relação


professor problematize o fenômeno caótico entre teoria e prática, senso comum e
ressonante selecionado a ser trabalhado com ciência. Agora, o mundo é desvendado,
os alunos. Problematizá-lo significa coligir o possibilitando ao aluno enxergá-lo além das
todo caótico, conduzindo-o a abstração aparências. Ele adquire um novo olhar e
teórica. Pensá-lo de maneira científica, exige- novas percepções, pois passa a incorporar
se do professor um acúmulo de referências ideias e conceitos que vão além do senso
teóricas na transmissão do conteúdo que comum e da experiência empírica. Nesta
precisa, obrigatoriamente, ser desenvolvido fase, aquele conhecimento que antes era
em sala de aula. Tal procedimento permite negado aos alunos foi assegurado,
ao professor romper de imediato com o constituindo-se como sua segunda natureza,
método tradicional, livresco, que se restringe não podendo ninguém mais retirá-lo ou
ao ato de memorizar os conteúdos suprimi-lo.
estudados (Duarte, 2010). No caso da escola A última fase ocorre quando os alunos
em que nosso método foi e continua sendo retornam ao seu espaço de vivência social.
aplicado, trabalhar o conceito de estigma, o A partir de agora, suas atitudes, olhares,
entendimento do processo migratório no comportamentos e ações tendem a
Brasil e a construção da identidade coletiva distinguirem-se, de forma qualitativa,
dos sujeitos, são exemplos de saberes daquele comportamento social
científicos que retiram do senso comum os anteriormente herdado do senso comum,
fenômenos vivenciados tanto pelo professor, que não aceitava tratar como igual o
quanto pelo aluno, na conquista de um saber diferente e que contribuía,
erudito. significativamente, com a deteriorização das
A metodologia de trabalho alcança a relações pessoais existentes na escola.
terceira fase, concomitante com a segunda.
Essa nova fase é a da instrumentalização, a A aplicação do método: os resultados de
qual se fundamenta nos meios de se alcançar uma nova prática pedagógica
a aprendizagem, revelando o caminho a ser
trilhado para a incorporação dos conteúdos, Nesta parte do texto vamos demonstrar
com seus instrumentos adequados ao como a metodologia de trabalho docente
contexto do aprendizado escolar (Saviani, foi aplicado e os resultados dele decorrente.
2009). Tal instrumentalização ocorre por A necessidade de elaboração de uma
meio das aulas expositivas, exibição de metodologia surgiu ao percebermos um
documentários, participação em vivências processo de segregação entre os alunos
compartilhadas entre outros métodos de durante as aulas de sociologia, no momento
ensino cabíveis à especificidade de cada local de uma atividade por nós sugerida, que
(Gasparin, 2013). Até mesmo a repetição de exigia do aluno uma apresentação oral sobre
conceitos são totalmente aceitáveis, tendo-se a sua origem e os caminhos percorridos por
em vista a absorção daquilo que foi seus antepassados. Essa atividade tinha o
trabalhado. Repetição não denota intuito de desenvolver o tema contido na
necessariamente um conteudismo sem ‘Situação de Aprendizagem 1’, do Caderno
critério ou sem sentido. Significa gerar do Aluno, da disciplina de sociologia
automatismo nos alunos até o momento da (material didático distribuído pela secretaria
nova ideia tornar-se sua segunda natureza. A da educação do estado de São Paulo a todas
interdisciplinaridade também pode colaborar escolas públicas), do segundo ano do Ensino
nessa instrumentalização, na medida em que Médio, que tem como título: A população
os mesmos conceitos vão sendo trabalhados brasileira: diversidade nacional e regional. Neste
insistentemente em diversas disciplinas. momento, aconteceu claramente a divisão
(Saviani, 2008b). entre os grupos que reivindicavam uma
A quarta etapa é o instante em que o ancestralidade europeia e aqueles que se
aluno atinge a catarse (Saviani, 2009). Nesse sentiam inferiorizados devido a sua origem

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nordestina. O estigma sobre esses últimos Nosso segundo passo foi realizar a
era reforçado por risos e comentários problematização. Iniciamos esta fase com
proferidos pelo grupo de alunos nativos da um debate instigando os alunos a
cidade, pertencentes a famílias de ancestrais explicitarem suas opiniões sobre a migração
estrangeiros. Ao tentar corrigi-los, tivemos a nordestina, porém, lançando dessa vez
imediata ideia de fomentar um debate, (identificado o fenômeno), questionamentos
provocando os educandos no que se refere à iniciais que tinham como objetivo incitar a
imagem que eles tinham do migrante problematização de um fenômeno nunca
nordestino, em relação aos outros habitantes antes pensado pela maioria ali presente.
da cidade. Respostas de todos os tipos Quase nenhum aluno conseguiu elaborar
começaram a surgir, sendo latentes aquelas respostas significativas para justificar o seu
relacionadas à discriminação e à preconceito. Quando os nativos eram
estigmatização. confrontados naquilo que acreditavam como
O tempo todo os alunos lembravam o certo e natural, sentiam-se acuados e sem
fato da maioria dos migrantes exercerem respostas. Buscavam argumentos do senso
atividades consideradas subalternas, como o comum já cristalizados no pensamento
corte da cana-de-açúcar, por exemplo. herdado do meio social.
Associado a isso, muitos estudantes nativos Ao percebermos que os alunos chegaram
apontavam para os alunos nordestinos a certo esgotamento de respostas, passamos
dizendo ironicamente o seguinte: ‘Professor! então para o terceiro passo. Nesse
Esse aqui é baiano. Olha a cara de baiano momento, procuramos mediar o
dele. Feio assim, só poderia ser baiano conhecimento ciência-realidade, trazendo
mesmo’. Tal atitude provocava para dentro da sala de aula o pensamento de
constrangimentos entre os alunos dois autores, Goffman (1988) e Elias (2000),
nordestinos, que foram logo acometidos por que abordam temas como discriminação,
uma visível sensação de inferioridade. Ao preconceito e estigma. Por meio de aula
verificarmos essa problemática existente expositiva, dividida em tópicos e da
entre os alunos da sala, tratamos de buscar elaboração de pequenos resumos, os
logo, ferramentas para aprimorar nosso educandos entraram em contato com tais
trabalho docente. Daí a proposta didática autores, os quais serviram de subsídio
desenvolvida e apresentada aqui. teórico para a conscientização dos alunos, na
Como já dissemos, ao detectarmos no medida em que passaram a compreender as
ambiente escolar a existência da segregação, consequências decorrentes de uma prática
discriminação e uma intensa estigmatização discriminatória impensada. A fim de
dos alunos de origem nordestina, nosso continuar problematizando o tema para
objetivo foi partir da prática social de fato, promover entre os alunos a desconstrução
orientando-nos pela realidade dos alunos, do preconceito contra o nordestino,
para problematizarmos o fenômeno da apresentamos ainda o pensamento de um
estigmatização. Foi aí que tivemos como novo autor – Albuquerque (2011) – para
ideia a aplicação da sequência didática aqui demonstrarmos a forma como se deu,
sugerida, a qual está orientada pela historicamente, o preconceito contra o
Pedagogia Histórico-Crítica, desenvolvido nordestino entre os paulistas, garantindo-
por Saviani (2009) e detalhado por Gasparin lhes que compreendessem os aspectos
(2013). constituintes da construção desse paradigma.
Assim, nosso primeiro passo consistiu Após realizarmos a síntese oral desses
em partirmos do conteúdo a ser ensinado textos, os alunos tiveram a oportunidade de
em sala de aula, que envolvia o tema da entender, com as aulas expositivas (giz e
migração, para discutirmos os fenômenos lousa), somadas aos debates, a mutabilidade
discriminatórios associados a esse termo, das coisas, desfazendo concepções
como é o caso da estigmatização em relação equivocadas a respeito de suas falas iniciais.
aos nordestinos. Com o acúmulo de conhecimento que os

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autores dos textos lidos proporcionaram, eles foram utilizados. Nessa terceira fase da
tentamos romper com a lógica cotidiana do metodologia, os recursos pedagógicos
senso comum, de concepções espontâneas, midiáticos também contribuíram como
evidenciadas nas falas dos alunos, gerando instrumentos de aprendizagem na
neles a desnaturalização dessas contradições. significação e assimilação daquilo que já
Apesar da densidade do conteúdo havia sido problematizado. Vídeos
apresentado nos textos estudados, relacionados à estigmatização dos
conseguimos expor toda a ideia e levantar nordestinos foram assistidos, causando
debates a respeito do tema selecionado para inclusive, indignação e comoção entre os
a aplicação do nosso método. Os educandos alunos presentes. Ao analisarem de fora o
perceberam assim, a pertinência do assunto fenômeno da estigmatização, por meio do
e interessaram-se pela aula, pois vídeo eles perceberem a violência imposta ao
encontraram significado entre a teoria sujeito que sofre a discriminação. O
apresentada e a prática existente. Na primeiro vídeo que assistiram foi o
verdade, eles entenderam a importância do documentário Daqui nóis não arreda o pé
assunto e a existência da estigmatização (Santos, 2005), que trata do estigma sofrido
dentro do seu cotidiano e isso ocorreu tanto por duas moradoras de uma pequena
com aqueles que sofriam o estigma, quanto comunidade no interior de Minas Gerais,
com aqueles que o promoviam. onde os moradores antigos não aceitam a
Precisamos considerar também, que a presença delas entre os demais habitantes.
exposição do conteúdo dos textos foi Esse documentário está sugerido no próprio
realizada utilizando-se como instrumento o caderno do aluno, distribuído pela Secretaria
giz e a lousa. Mesmo que métodos como da Educação do Estado de São Paulo e tem
esse sejam encarados por pedagogos como objetivo, justamente, possibilitar ao
construtivistas como ultrapassados, aluno entender melhor os conceitos de
tradicionais ou autoritários, nós estigma e exclusão. Após a exibição do
concordamos com Saviani (2008a), quando documentário, foram realizadas algumas
ele diz que o processo de ensino- discussões em sala de aula sobre o porquê da
aprendizagem é realizável apenas com exclusão, momento este que possibilitou
disciplina para os estudos e automatismos, uma comparação tácita com a realidade dos
ou seja, produzindo-se a repetição de próprios educandos. Continuando com a
conceitos até a incorporação deles. De outro utilização de recurso midiático, exibimos
modo, isto quer dizer que ninguém aprende ainda duas matérias jornalísticas. Uma do
espontaneamente. Da mesma forma que o Fantástico, exibida em 20 de agosto de 2013,
ato de dirigir um automóvel leva a repetição na série Vai Fazer o que? e outra do programa
de movimentos até a sua completa CQC, mostrada em 15 de novembro de
naturalização, a aprendizagem opera da 2010, como reportagem do Documento da
mesma forma, até alcançar sua total Semana, ambas sobre o preconceito contra o
incorporação. nordestino em São Paulo e no Rio de
Deve-se convencer a muita gente que o Janeiro. Durante as exibições, os alunos
estudo é também um trabalho, e muito nordestinos (mas não somente) indignaram-
fatigante, com tirocínio particular próprio,
não só muscular-nervoso, mas intelectual,
se com o nível do preconceito contido nas
é um processo de adaptação, é um hábito falas. Assim como da outra vez, terminado o
adquirido com esforço, aborrecimento e vídeo, suscitamos debates acerca do assunto
mesmo sofrimento (Gramsci, 1968, p. e percebemos que os alunos haviam
139). incorporado os termos trabalhados em sala
de aula como: estigma, preconceito e
Todavia, precisamos também esclarecer
discriminação. Os estudantes já conseguiam
que apesar da aplicação metodológica
estabelecer as conexões entre a teoria e a
principal, nesse momento, ter sido a
prática, chegando ao quarto passo do
utilização da lousa e do giz, não somente

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método sugerido, que é o momento da os alunos incentivava a todos a apresentarem


catarse. seus trabalhos. Alguns alunos trouxeram,
Para finalizar o tema, antes das inclusive, objetos históricos da família, para
apresentações dos próprios alunos, achamos auxiliá-los na exposição de suas falas, o que
interessante exibir também o filme Gonzaga: despertou muito mais a curiosidade e o
de pai pra filho (Silveira, 2012), que serviu para interesse da classe diante das apresentações.
ressaltarmos as particularidades da cultura Terminadas todas as exposições,
nordestina no meio paulista. Muitos dos pais realizamos uma última discussão sobre o
dos alunos possuem afinidade com o músico tema trabalhado, recapitulando tudo que foi
nordestino Luiz Gonzaga, logo este acaba ensinado, assistido e debatido, lançando
fazendo parte do universo simbólico de novamente os questionamentos iniciais
muitos ali, que reconhecem a importância sobre o preconceito contra o nordestino.
dele. Após o filme e já entendido o processo Neste momento, notamos a diferença nas
de desconstrução do preconceito contra o respostas em relação ao início do trabalho,
nordestino, os alunos conseguiram de forma pois era evidente o sentimento de
científica elaborar argumentos durante o solidariedade presente entre os alunos.
período da discussão. Muitas falas
equivocadas desapareceram e as que surgiam Considerações finais
nesse sentido eram imediatamente corrigidas
pelos demais alunos da classe. Somente desvendando a essência dos
Por fim, para concluir nosso método, processos que levam a existência daquilo que
desenvolvemos o quinto e último passo. chamamos ao longo deste trabalho de
Para colocá-lo em prática, sugerimos aos ‘fenômenos caóticos ressonantes’, é que os
alunos uma nova oportunidade para alunos conseguiram livrarem-se das
exporem perante a classe a trajetória de vida armadilhas que antes, os conduziam a
de suas famílias. A sala foi organizada em reprodução do senso comum.
círculo, sendo estabelecido um tempo de Mesmo que na área das ciências
cinco minutos para que cada aluno realizasse humanas, seja difícil (ou impossível)
sua apresentação. Justamente nesse mensurar o trato de temas desse tipo, devido
momento, percebemos o êxito da sequência à subjetividade que o assunto apresenta,
didática por nós elaborada, pois antes de ser principalmente, no que se refere ao tempo
aplicada, quase nenhum aluno mostrou-se que cada indivíduo demanda na
interessado em realizar a apresentação, desconstrução de um conceito já imposto e
devido ao desestímulo que as humilhações arraigado socialmente, o trabalho apresentou
contra os nordestinos provocavam. Dessa resultados muito satisfatórios, em relação à
vez, contrariamente ao que aconteceu, tentativa desastrosa anterior a sua aplicação,
nitidamente, o interesse foi geral. Quase conforme já demonstramos.
todos os alunos apresentaram e os poucos Sabendo do dever histórico da escola em
que se recusaram, justificaram sua atitude, oferecer instrumentos epistemológicos e do
devido à timidez em falar perante toda sala. papel do professor como mediador na
Para estes, em particular, foi dada a relação transmissão-assimilação,
oportunidade de entregaram um trabalho encontramos subsídios necessários para
por escrito sobre o tema da apresentação em superarmos a deterioração das relações
sala. sociais presentes na escola.
Devemos ressaltar ainda, que durante as O caminho percorrido envolveu a tríade:
apresentações, absolutamente, em nenhum investigar, compreender e intervir.
momento foi registrado ou percebido Investigar, dentro do pensamento histórico-
qualquer tipo de piada, chacota ou ofensas dialético, significa localizar empiricamente o
por parte dos ouvintes, durante a exposição fenômeno discriminatório e todas suas
do trabalho dos alunos nordestinos. O contradições e desentendimentos. Equívoco
sentimento de solidariedade produzido entre recorrente na prática docente é tentar uma

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ação prática nessa primeira fase, sem antes Castoriadis, C. (1992). Reflexões sobre o
conduzir o objeto ao nível epistemológico racismo. In C. Castoriadis. O mundo
de formulações teóricas a respeito do fragmentado: as encruzilhadas do labirinto III (pp.
fenômeno. Compreender, significa livrar o 27-41). Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.
educador-pesquisador de falhas na sua
atuação, transpondo à abstração do tema, no CQC. (Editor). (2010). Preconceito contra
intuito de pensar metodologicamente o nordestinos. Documento da Semana. [Programa de
melhor caminho a ser percorrido. A etapa Televisão]. São Paulo: Rede Bandeirantes.
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trás o fragmentado mundo empírico, para www.youtube.com/watch?v=arnuzT-2cxU
realizar a concretude do mundo concreto
por meio da organização do pensamento que
é feita pela transmissão do conhecimento
científico e sistematizado. Esta fase é Duarte, N. (2010). O debate contemporâneo
imprescindível à prática docente, que lida das teorias pedagógicas. In L. M. Martins, &
diariamente com diversos fenômenos N. Duarte (Orgs.). Formação de professores:
discriminatórios em sala de aula, sabendo-se limites contemporâneos e alternativas necessárias (p.
que a dimensão social, política, econômica e 33-49). São Paulo, SP: Editora UNESP.
cultural é dela recorrente.
Elias, N. (2000). Os estabelecidos e os outsiders.
Nesse sentido, a pesquisa extrapolou o
Sociologia das relações de poder a partir de uma
campo das ideações para objetificar um
pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar.
plano de intervenção aplicado em sala com
os educandos. A compreensão disso deu-se Fantástico. (Editor). (2013). Preconceito contra
como resultado do desenvolvimento de nordestinos. Série vai fazer o que? [Programa de
métodos e ações interpretativas e Televisão]. Rio de Janeiro: Rede Globo.
preventivas na conduta recorrente da Recuperado em 08 de maio, 2014, de
discriminação entre adolescentes de uma http:www.youtube.com/watch?v=ITQoQO
escola pública. 3q2mk
A disciplina de sociologia,
especificamente, por meio do conteúdo que Gasparin, J. L. (2013). Uma didática para a
lhe é pertinente e através do método por nós Pedagogia Histórico-Crítica. Campinas, SP:
desenvolvido, apresentou aos alunos da Autores Associados.
educação básica, a possibilidade de
questionarem as divergências e contradições Gioppo, C. (1996). Eugenia: a higiene como
causadas pelo estigma e vivenciadas no estratégia de segregação. Educar em Revista,
espaço escolar. 12(1), 167-180.
Portanto, o método proposto neste
artigo, para o ensino de sociologia, poderá Goffman, E. (1988). Estigma. Notas sobre a
contribuir substancialmente, com docentes manipulação da identidade deteriorada (4a ed.).
que não se omitam, em relação a uma prática Rio de Janeiro, RJ: LTC.
pedagógica comprometida com a educação
de qualidade e contra a intolerância daqueles Gramsci, A. (1968). Os intelectuais e a
que são percebidos como diferentes. organização da cultura. Rio de Janeiro, RJ:
Civilização Brasileira.
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5fzRL4

Recebido em: 23/11/2015


Aceito em: 29/06/2016

Machado, V., & Napoli, P. H. Imagens da Educação, v. 6, n. 2, p. 53-66, 2016.

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