Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Vitor Machado*
Paulo Henrique Napoli**
Resumo
Este artigo tem como objetivo propor um método de ensino na forma de uma
sequência didática, tendo como referência metodológica a Pedagogia Histórico-Crítica,
para auxiliar os professores da Educação Básica, particularmente, da disciplina de
Sociologia, a evitarem relações discriminatórias, transferidas do meio social para o
ambiente escolar, as quais foram aqui chamadas de ‘fenômenos caóticos ressonantes’.
A metodologia foi aplicada em alunos do ensino médio de uma escola pública no
interior de São Paulo, procurando problematizar o processo de estigmatização
exercido pelos alunos nativos da cidade e sofrido por estudantes de origem nordestina,
resultando na melhoria da convivência entre ambos.
Palavras-chave: ensino de sociologia, estigma, fenômeno caótico ressonante,
Pedagogia Histórico-Crítica.
existente entre os alunos, pode ser explicada aprendizagem seja conduzido conforme as
pelo processo de estigmatização social, orientações do método expostas a seguir.
exercido por habitantes nativos da cidade Nossa metodologia fundamentado em
(Nova Granada), sobre sujeitos que para ela Gasparin (2013), é composto por cinco
migraram, provenientes da região nordestina etapas: Prática social (empírico);
do Brasil. Os alunos que frequentam essa problematização; instrumentalização; catarse
escola, são de baixa renda – muitos dos e prática social (concreto). Todo esse
quais beneficiários de projetos sociais caminho deve ser percorrido pelo
governamentais de transferência de renda – profissional da educação, desde a aparição
e que compartilham entre si, os mesmos do ‘fenômeno caótico ressonante’,
espaços sociais de interação. A grande perpassando por sua abstração e culminando
maioria deles divide seu tempo frequentando no seu retorno a prática. Para colocar o
espaços comuns como: as praças do método em prática, o professor deve ter
município, as sorveterias, o ginásio bem claro que o tema a ser trabalhado por
esportivo, o salão paroquial, as igrejas ele, dependerá da identificação dos
protestantes e, principalmente, os locais de ‘fenômenos caóticos ressonantes’ da
trabalho, tendo em vista que muitos desses realidade social empírica vivenciada pelos
jovens já possuem algum tipo de atividade alunos na sala de aula, ou seja, do todo
remunerada. caótico, que significa a maneira como o
Como sabemos, o fenômeno da senso comum interpreta os fenômenos
estigmatização é fruto de construções sociais, o que é realizado por acumulo de
históricas e culturais, que imputa aos informação, sem o arcabouço teórico
diferentes, através da ideologia dominante, suficiente e necessário a qualquer nível de
qualquer tipo de culpa, com a real intenção compreensão.
de excluí-los socialmente. A primeira fase da metodologia do
No entanto, entendemos que a escola trabalho docente consiste em o professor
tem como dever histórico promover observar, empiricamente, o ‘fenômeno
transformações, principalmente, no que caótico ressonante’ presente no espaço
tange a disciplina de sociologia, cujo escolar e selecionar aquele com o qual
deseja trabalhar. Feito isso, ele deve
[…] papel que ela tem a exercer na reorganizar os elementos que provocam
educação básica é contribuir para que o
aluno seja capaz de pensar a realidade do
desordem ao pensamento, como aqueles que
seu mundo por meio do instrumental são apropriados pelo senso comum e
sociológico (Machado, 2012, p. 187). reproduzidos no ambiente escolar
(fenômeno caótico ressonante), de forma a
Quanto ao professor de Sociologia, proporcionar aos alunos um entendimento
de tais elementos por meio do
[...] ele deve também promover, por meio
de uma linguagem clara e objetiva, a
conhecimento historicamente elaborado, o
articulação entre o plano da realidade e os qual deve-se dar através da transmissão do
conceitos ou teorias sociológicas, conteúdo clássico (erudito).
despertando o interesse dos alunos e não Sabemos que o aluno carrega consigo
permitindo que as discussões caminhem pré-noções e pré-conceitos construídos e
para o campo do senso comum (Machado,
2012, p. 187). enraizados dentro do seu cotidiano, os quais
precisam ser problematizados,
Para que o trabalho do professor possa desconstruídos e reconstruídos. Afinal, esse
ser realizado com maior qualidade, a fim de é o papel do professor na relação
promover as transformações desejadas e, no transmissão-assimilação. Da prática social ele
nosso caso, tais transformações referem-se retira seu material empírico de trabalho para
às mudanças nas relações estigmatizadas conseguinte repensá-lo à luz dos clássicos
entre alunos de uma mesma sala de aula, (Saviani, 2009).
sugerimos que o processo de ensino e de
nordestina. O estigma sobre esses últimos Nosso segundo passo foi realizar a
era reforçado por risos e comentários problematização. Iniciamos esta fase com
proferidos pelo grupo de alunos nativos da um debate instigando os alunos a
cidade, pertencentes a famílias de ancestrais explicitarem suas opiniões sobre a migração
estrangeiros. Ao tentar corrigi-los, tivemos a nordestina, porém, lançando dessa vez
imediata ideia de fomentar um debate, (identificado o fenômeno), questionamentos
provocando os educandos no que se refere à iniciais que tinham como objetivo incitar a
imagem que eles tinham do migrante problematização de um fenômeno nunca
nordestino, em relação aos outros habitantes antes pensado pela maioria ali presente.
da cidade. Respostas de todos os tipos Quase nenhum aluno conseguiu elaborar
começaram a surgir, sendo latentes aquelas respostas significativas para justificar o seu
relacionadas à discriminação e à preconceito. Quando os nativos eram
estigmatização. confrontados naquilo que acreditavam como
O tempo todo os alunos lembravam o certo e natural, sentiam-se acuados e sem
fato da maioria dos migrantes exercerem respostas. Buscavam argumentos do senso
atividades consideradas subalternas, como o comum já cristalizados no pensamento
corte da cana-de-açúcar, por exemplo. herdado do meio social.
Associado a isso, muitos estudantes nativos Ao percebermos que os alunos chegaram
apontavam para os alunos nordestinos a certo esgotamento de respostas, passamos
dizendo ironicamente o seguinte: ‘Professor! então para o terceiro passo. Nesse
Esse aqui é baiano. Olha a cara de baiano momento, procuramos mediar o
dele. Feio assim, só poderia ser baiano conhecimento ciência-realidade, trazendo
mesmo’. Tal atitude provocava para dentro da sala de aula o pensamento de
constrangimentos entre os alunos dois autores, Goffman (1988) e Elias (2000),
nordestinos, que foram logo acometidos por que abordam temas como discriminação,
uma visível sensação de inferioridade. Ao preconceito e estigma. Por meio de aula
verificarmos essa problemática existente expositiva, dividida em tópicos e da
entre os alunos da sala, tratamos de buscar elaboração de pequenos resumos, os
logo, ferramentas para aprimorar nosso educandos entraram em contato com tais
trabalho docente. Daí a proposta didática autores, os quais serviram de subsídio
desenvolvida e apresentada aqui. teórico para a conscientização dos alunos, na
Como já dissemos, ao detectarmos no medida em que passaram a compreender as
ambiente escolar a existência da segregação, consequências decorrentes de uma prática
discriminação e uma intensa estigmatização discriminatória impensada. A fim de
dos alunos de origem nordestina, nosso continuar problematizando o tema para
objetivo foi partir da prática social de fato, promover entre os alunos a desconstrução
orientando-nos pela realidade dos alunos, do preconceito contra o nordestino,
para problematizarmos o fenômeno da apresentamos ainda o pensamento de um
estigmatização. Foi aí que tivemos como novo autor – Albuquerque (2011) – para
ideia a aplicação da sequência didática aqui demonstrarmos a forma como se deu,
sugerida, a qual está orientada pela historicamente, o preconceito contra o
Pedagogia Histórico-Crítica, desenvolvido nordestino entre os paulistas, garantindo-
por Saviani (2009) e detalhado por Gasparin lhes que compreendessem os aspectos
(2013). constituintes da construção desse paradigma.
Assim, nosso primeiro passo consistiu Após realizarmos a síntese oral desses
em partirmos do conteúdo a ser ensinado textos, os alunos tiveram a oportunidade de
em sala de aula, que envolvia o tema da entender, com as aulas expositivas (giz e
migração, para discutirmos os fenômenos lousa), somadas aos debates, a mutabilidade
discriminatórios associados a esse termo, das coisas, desfazendo concepções
como é o caso da estigmatização em relação equivocadas a respeito de suas falas iniciais.
aos nordestinos. Com o acúmulo de conhecimento que os
autores dos textos lidos proporcionaram, eles foram utilizados. Nessa terceira fase da
tentamos romper com a lógica cotidiana do metodologia, os recursos pedagógicos
senso comum, de concepções espontâneas, midiáticos também contribuíram como
evidenciadas nas falas dos alunos, gerando instrumentos de aprendizagem na
neles a desnaturalização dessas contradições. significação e assimilação daquilo que já
Apesar da densidade do conteúdo havia sido problematizado. Vídeos
apresentado nos textos estudados, relacionados à estigmatização dos
conseguimos expor toda a ideia e levantar nordestinos foram assistidos, causando
debates a respeito do tema selecionado para inclusive, indignação e comoção entre os
a aplicação do nosso método. Os educandos alunos presentes. Ao analisarem de fora o
perceberam assim, a pertinência do assunto fenômeno da estigmatização, por meio do
e interessaram-se pela aula, pois vídeo eles perceberem a violência imposta ao
encontraram significado entre a teoria sujeito que sofre a discriminação. O
apresentada e a prática existente. Na primeiro vídeo que assistiram foi o
verdade, eles entenderam a importância do documentário Daqui nóis não arreda o pé
assunto e a existência da estigmatização (Santos, 2005), que trata do estigma sofrido
dentro do seu cotidiano e isso ocorreu tanto por duas moradoras de uma pequena
com aqueles que sofriam o estigma, quanto comunidade no interior de Minas Gerais,
com aqueles que o promoviam. onde os moradores antigos não aceitam a
Precisamos considerar também, que a presença delas entre os demais habitantes.
exposição do conteúdo dos textos foi Esse documentário está sugerido no próprio
realizada utilizando-se como instrumento o caderno do aluno, distribuído pela Secretaria
giz e a lousa. Mesmo que métodos como da Educação do Estado de São Paulo e tem
esse sejam encarados por pedagogos como objetivo, justamente, possibilitar ao
construtivistas como ultrapassados, aluno entender melhor os conceitos de
tradicionais ou autoritários, nós estigma e exclusão. Após a exibição do
concordamos com Saviani (2008a), quando documentário, foram realizadas algumas
ele diz que o processo de ensino- discussões em sala de aula sobre o porquê da
aprendizagem é realizável apenas com exclusão, momento este que possibilitou
disciplina para os estudos e automatismos, uma comparação tácita com a realidade dos
ou seja, produzindo-se a repetição de próprios educandos. Continuando com a
conceitos até a incorporação deles. De outro utilização de recurso midiático, exibimos
modo, isto quer dizer que ninguém aprende ainda duas matérias jornalísticas. Uma do
espontaneamente. Da mesma forma que o Fantástico, exibida em 20 de agosto de 2013,
ato de dirigir um automóvel leva a repetição na série Vai Fazer o que? e outra do programa
de movimentos até a sua completa CQC, mostrada em 15 de novembro de
naturalização, a aprendizagem opera da 2010, como reportagem do Documento da
mesma forma, até alcançar sua total Semana, ambas sobre o preconceito contra o
incorporação. nordestino em São Paulo e no Rio de
Deve-se convencer a muita gente que o Janeiro. Durante as exibições, os alunos
estudo é também um trabalho, e muito nordestinos (mas não somente) indignaram-
fatigante, com tirocínio particular próprio,
não só muscular-nervoso, mas intelectual,
se com o nível do preconceito contido nas
é um processo de adaptação, é um hábito falas. Assim como da outra vez, terminado o
adquirido com esforço, aborrecimento e vídeo, suscitamos debates acerca do assunto
mesmo sofrimento (Gramsci, 1968, p. e percebemos que os alunos haviam
139). incorporado os termos trabalhados em sala
de aula como: estigma, preconceito e
Todavia, precisamos também esclarecer
discriminação. Os estudantes já conseguiam
que apesar da aplicação metodológica
estabelecer as conexões entre a teoria e a
principal, nesse momento, ter sido a
prática, chegando ao quarto passo do
utilização da lousa e do giz, não somente
ação prática nessa primeira fase, sem antes Castoriadis, C. (1992). Reflexões sobre o
conduzir o objeto ao nível epistemológico racismo. In C. Castoriadis. O mundo
de formulações teóricas a respeito do fragmentado: as encruzilhadas do labirinto III (pp.
fenômeno. Compreender, significa livrar o 27-41). Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.
educador-pesquisador de falhas na sua
atuação, transpondo à abstração do tema, no CQC. (Editor). (2010). Preconceito contra
intuito de pensar metodologicamente o nordestinos. Documento da Semana. [Programa de
melhor caminho a ser percorrido. A etapa Televisão]. São Paulo: Rede Bandeirantes.
final é a intervenção direta, que deixa para Recuperado em 08 de maio, 2014, de http:
trás o fragmentado mundo empírico, para www.youtube.com/watch?v=arnuzT-2cxU
realizar a concretude do mundo concreto
por meio da organização do pensamento que
é feita pela transmissão do conhecimento
científico e sistematizado. Esta fase é Duarte, N. (2010). O debate contemporâneo
imprescindível à prática docente, que lida das teorias pedagógicas. In L. M. Martins, &
diariamente com diversos fenômenos N. Duarte (Orgs.). Formação de professores:
discriminatórios em sala de aula, sabendo-se limites contemporâneos e alternativas necessárias (p.
que a dimensão social, política, econômica e 33-49). São Paulo, SP: Editora UNESP.
cultural é dela recorrente.
Elias, N. (2000). Os estabelecidos e os outsiders.
Nesse sentido, a pesquisa extrapolou o
Sociologia das relações de poder a partir de uma
campo das ideações para objetificar um
pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar.
plano de intervenção aplicado em sala com
os educandos. A compreensão disso deu-se Fantástico. (Editor). (2013). Preconceito contra
como resultado do desenvolvimento de nordestinos. Série vai fazer o que? [Programa de
métodos e ações interpretativas e Televisão]. Rio de Janeiro: Rede Globo.
preventivas na conduta recorrente da Recuperado em 08 de maio, 2014, de
discriminação entre adolescentes de uma http:www.youtube.com/watch?v=ITQoQO
escola pública. 3q2mk
A disciplina de sociologia,
especificamente, por meio do conteúdo que Gasparin, J. L. (2013). Uma didática para a
lhe é pertinente e através do método por nós Pedagogia Histórico-Crítica. Campinas, SP:
desenvolvido, apresentou aos alunos da Autores Associados.
educação básica, a possibilidade de
questionarem as divergências e contradições Gioppo, C. (1996). Eugenia: a higiene como
causadas pelo estigma e vivenciadas no estratégia de segregação. Educar em Revista,
espaço escolar. 12(1), 167-180.
Portanto, o método proposto neste
artigo, para o ensino de sociologia, poderá Goffman, E. (1988). Estigma. Notas sobre a
contribuir substancialmente, com docentes manipulação da identidade deteriorada (4a ed.).
que não se omitam, em relação a uma prática Rio de Janeiro, RJ: LTC.
pedagógica comprometida com a educação
de qualidade e contra a intolerância daqueles Gramsci, A. (1968). Os intelectuais e a
que são percebidos como diferentes. organização da cultura. Rio de Janeiro, RJ:
Civilização Brasileira.
Referências
Machado, V. (2012). O ensino de sociologia
Albuquerque, D. M. Jr. (2011). Preconceito na educação de nível médio: sugestões à
contra a origem geográfica e de lugar: as fronteiras da prática docente. In E. M. Zanata, A. M. A.
discórdia. São Paulo, SP: Cortez. Caldeira, & R. M. Lepre (Orgs.). Cadernos de
docência na educação básica I (pp. 178-188).
Bauru, SP: Cultura Acadêmica.