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Editorial
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Editorial
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APRESENTAÇÃO
João das Neves (1934 – 2018):
cena, ação, sociedade
Por Carina Maria Guimarães Moreira1 e Natália Batista2
APRESENTAÇÃO
Eu permaneço
na voz veludo de Ana
amando Titane.
Eu permaneço
em minhas duas Marias
Iris e João.
Eu permaneço
no olhar-ave do amor
Pousando em meus olhos.
O v.9 , n. 2 da revista Pitágoras 500 traz como tema o
dossiê temático “João das Neves (1934 – 2018): cena, ação, so-
ciedade”, que tem por objetivo suscitar a reflexão crítica sobre a
obra deste importante artista brasileiro. Considerado um legíti-
mo “homem de teatro”, é reconhecido em seu campo de atuação
como um “artista completo”, tendo exercido diversas funções
no fazer cênico e deixando importantes contribuições como di-
retor, dramaturgo, escritor, ator, iluminador, cenógrafo e pro-
dutor cultural.
João das Neves foi diretor da sessão de teatro de rua do
Centro Popular de Cultura da UNE e fundador do Grupo Opi-
nião. Ganhou notoriedade por sua produção dramatúrgica –
com destaque para o texto O Último Carro (1964-67) – e, em
trajetória singular, optou por um caminho que poucos artistas
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APRESENTAÇÃO
APRESENTAÇÃO
APRESENTAÇÃO
APRESENTAÇÃO
APRESENTAÇÃO
da inteligência.
Na terceira categoria foram contemplados artigos que ex-
ploram em menor escala a obra e mais amplamente a convi-
vência cotidiana com João das Neves. Foram incorporados ao
dossiê exatamente porque descortinam aspectos relevantes de
sua obra. São exemplos dessa perspectiva os trabalhos “Conver-
sas de vagalume: imagens de convívio com o poeta encenador”
de Mara Vanessa F. Dutra, que narra a sua experiência com o
diretor a partir de elementos pouco divulgados: a relação com a
cantora e companheira Titane, a vida cotidiana em Lagoa Santa
e a importância de sua biblioteca para o seu processo criativo.
Também o texto de Maria do Perpétuo Socorro Calixto, intitu-
lado “Viagem ao fundo do rio”, trabalha na perspectiva de uma
narrativa descritiva sobre a vida e a obra do diretor, articulando
o seu contexto de falecimento às memórias dos trabalhos em
que participou juntamente com ele.
A proposta de organização desse dossiê surgiu ainda no
ano de 2017, mas a divulgação da chamada para o recebimento
dos artigos teve início alguns meses após a morte de João das
Neves, em 24 de agosto de 2018. A comoção diante de seu fale-
cimento se faz presente nas narrativas e muitos textos partem
exatamente desse detonador. Dois riscos são eminentes quando
se tem como proposta revisitar a obra de um artista que partiu
recentemente: textos escritos a partir do sentimento de perda
ou textos simplesmente laudatórios e de pouca análise crítica.
Diante da importância de Neves para o teatro brasileiro, o desa-
fio foi aceito com seus riscos e possibilidades.
O resultado geral dos artigos recebidos foi a percepção
de que João das Neves, entre suas convicções, procedimentos
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APRESENTAÇÃO
João das neves e o teatro
de rua do centro popular de
cultura
Resumo >
Palavras-chave:
Centro Popular de Cultura. Teatro de Rua. Tea-
tro épico-dialético
João das Neves e o Teatro de Rua do Centro
Popular de Cultura
Roberta Carbone1
2
HELIODORA, Barbara. A Grande Estiagem: Seca em Campo Grande. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 4 set. 1962. Ca-
derno B.
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sido encampado pela UNE. E ainda do. No entanto, sua adesão ao CPC
que o diretor não participe da con- é resultado de um processo natural
cepção do CPC, ele mantém, nesse e mesmo esperado, pois tanto a atu-
momento, um estreito diálogo com ação de Os Duendes como o proje-
seus realizadores, como Oduvaldo to cepecista se mostram orientados
Vianna Filho. Diálogo esse que se por uma linha popular e politizada
dá, inclusive, pela proximidade de de teatro, como comenta Neves:
propósitos, relacionados à cons- O CPC trabalhava, de certo modo, exata-
trução de um novo ideário artísti- mente como nós, no teatro de fantoches, vale
dizer, utilizando textos feitos sobre aconteci-
co, cujas experimentações revelam mentos políticos do momento. A partir de al-
uma direção épico-dialética. Nesse guma coisa que ocorria, a gente escrevia uma
espécie de roteiro e íamos para a rua repre-
sentido, um intercâmbio de ideias sentar. Isso me serviu muito como pesquisa
e experiências pode também ser de linguagem: de autor, de ator, de diretor.
Como linguagem de autor, me serviu como
observado entre os anúncios de expansão do tipo de experiência que eu, até
então, estava tendo apenas com crianças, para
peças em cartaz no Diário de no- uma faixa de população muito mais ampla.
tícias (1971, p. 7), que divulga três (NEVES, 1987, p. 13-14)
apresentações, a preços populares,
de Eles não usam black-tie, com O modo de trabalho acima
direção de Vianinha, realizadas descrito caracteriza o Teatro de
pelo CPC no Teatro Arthur Aze- Rua do CPC, que, enquanto forma
vedo durante a ocupação de Os de atuação, esteve presente desde
Duendes, em dezembro de 1961. a sua criação, se tornando ainda
Por isso ainda, a motivação de um departamento distinto do tea-
Neves ao procurar a UNE é, inicial- tro convencional quando João das
mente, a de denúncia, tendo em vis- Neves o assume, depois de sua re-
ta o trabalho já realizado em Campo tirada forçada de Campo Grande.
Grande enquanto um núcleo para- Em documento4 de autoria coletiva
lelo e ao mesmo tempo complemen- e sem data, mas presumivelmente
tar ao projeto cepecista. Como sua redigido em 1963, que apresenta
fala revela, mais do que um novo as produções do CPC nos anos de
lugar de atuação, o diretor procu- 1961 e 1962, lê-se que “A ativida-
ra, por meio da entidade estudantil, de característica desse período é o
tornar pública a violência sofrida teatro de rua” (CENTRO, [s.d.],
pelo grupo e, talvez até, retomar a p. 2). Marcando os dois primeiros
ocupação do Teatro Arthur Azeve- anos da atuação teatral do CPC,
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Produzido pela equipe do CPC do Rio de Janeiro, esse documento não tem título e não foi publicado.
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Entre 1870 e 1911, a Standard Oil Company foi a maior companhia de produção, transporte e refinamento de petróleo.
Esse monopólio durou até 1911, quando o tribunal supremo dos Estados Unidos decidiu por seu desmantelamento, orde-
nando a criação de 34 empresas menores, mas todas sob o controle das Empresas Rockfeller. No Brasil, ela ficou conhecida
pelo nome de Esso Brasileira de Petróleo. (In: OUR history. ExxonMobil. Disponível em:
<https://corporate.exxonmobil.com/en/company/about-us/history/overview>. Acesso em: 22 dez. 2018.)
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In: Acervo da Fundação de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais Dinarco Reis. Disponível em: <https://fdinarco-
reis.org.br/fdr/2012/07/19/a-declaracao-de-marco>. Acesso em: 20 dez. 2018.
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produções, que a despeito das es- tre outras. Ainda que distantes de
tratégias políticas do PC, não dei- um sentido revolucionário, iniciati-
xam de refletir sobre as nossas con- vas como essa apontavam para uma
tradições sociais mais profundas. transformação com vistas a uma
É também impossível não no- maior justiça social no país, ao mes-
tar, na concepção do esquete cita- mo tempo em que tornavam as mo-
do, certa similaridade com o Tea- bilizações populares mais expressi-
tro Invisível, de Augusto Boal, que: vas. Ao lado das recorrentes greves
Consiste na representação de uma cena em
operárias, as Ligas Camponesas
um ambiente que não seja teatro, e diante de ressurgiam com força de inter-
pessoas que não sejam espectadores. O lu-
gar pode ser um restaurante, uma fila, uma venção política9 , enquanto o mo-
rua, um mercado, um trem etc. As pessoas vimento estudantil, principalmen-
que assistem à cena serão as pessoas que aí se
encontrem acidentalmente. Durante todo o te por meio da UNE, radicalizava
“espetáculo”, essas pessoas não devem sequer suas propostas de ação. Nesse con-
desconfiar de que se trata de um espetáculo,
pois se assim fosse, imediatamente se trans- texto, a cultura se tornou um meio
formariam em espectadores (1977, p. 55).
privilegiado de ação, no sentido do
questionamento de sua expressão
Para além das próprias pe-
oficial, burguesa, e da valorização
ças, é evidente a troca de ideias e
de manifestações e hábitos nacio-
práticas teatrais entre os artistas
nais e populares, tanto no que se
politizados do período, como se
refere aos temas quanto às formas.
pode observar na relação entre Os
O Teatro de Arena foi um dos
Duendes e o CPC. E sobre esse as-
marcos dessa guinada à esquerda
pecto, há ainda que se considerar
do teatro, bem como seus artistas,
as razões históricas que permiti-
entre eles Augusto Boal, Chico de
ram essa semelhança de propósi-
Assis, Gianfrancesco Guarnieri e
tos nas mais diferentes regiões do
Oduvaldo Vianna Filho. Augusto
país. O Brasil se agitava política e
Boal, portanto, fez parte da cons-
economicamente, a exemplo das
trução do novo ideário teatral de
Reformas de Base propostas pelo
que se falou, ainda que tenha ape-
presidente João Goulart, que pre-
nas colaborado com alguns traba-
viam mudanças estruturais ligadas
lhos dos CPCs, mas não chegado a
à terra, à educação, à moradia, en-
9
As primeiras Ligas Camponesas haviam surgido em 1945-46, formadas pelo Partido Comunista Brasileiro, e quando o
Partido foi posto na ilegalidade, elas também foram atingidas. Em 1955 foi criada, no Engenho Galiléia, em Pernambuco,
a “Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco”, mais tarde “Liga Camponesa da Galiléia”, que alavan-
cou o seu ressurgimento (JULIÃO, Francisco. Que são as Ligas Camponesas? Cadernos do povo brasileiro, vol. 1. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1962).
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os espetáculos, tal como expressa diferentes ou, como ele próprio co-
Neves. De acordo, portanto, com a menta, empreender uma nova “pes-
proposta de um teatro de agitação quisa de linguagem”, no sentido do
e propaganda e do encontro com exercício de apropriação, pelo te-
seu primeiro e principal destinatá- atro, de temas de interesse coleti-
rio, o povo, se conclui que a carreta vo e de sua potencialização crítica.
representou um projeto bastante Acredita-se, portanto, que a
significativo para o Centro Popu- análise da atuação de João das Ne-
lar de Cultura, mesmo que pouco ves no CPC e de seu pensamen-
se tenha até hoje falado sobre isso. to em relação a esse trabalho, que
Assim, a adesão de João Ne- evidenciam a prática concreta dos
ves ao CPC mostra-se determinan- artistas e intelectuais envolvidos,
te para fomentar o seu Teatro de ofereça a possibilidade de uma ava-
Rua, que, inclusive, acaba ganhan- liação histórica mais condizente
do o status de departamento e ex- com o que foi esse projeto. O que
pandindo suas atividades: “A partir se faz de extrema importância, da-
de determinado momento, passei dos os recorrentes equívocos de
a dirigir o Teatro de Rua. A car- interpretação do CPC, que tendem
reta ficou comigo. Quer dizer, não a falsear a verdade dos fatos. Nes-
só a carreta como todos os even- se sentido, um dos mal-entendidos
tos de rua. Os shows, os esquetes, apontados por Neves em algumas
tudo o que se fazia na rua” (BAR- pesquisas sobre o tema diz respeito
CELLOS, 1994, p. 262). E sua ex- à leitura de um documento de dis-
periência com Os Duendes, como cussão interna, o Anteprojeto do
se procurou destacar, parece ser um Manifesto do CPC, escrito por Car-
dos motivos que o levou a assumir los Estevam Martins, como se fosse
essa função, dada a proximidade uma cartilha cepecista. Alguns es-
das duas experiências em relação tudos, que enfatizam o aspecto te-
à produção de uma dramaturgia órico, como o de Marivlena Chauí
para tratar de assuntos de urgên- (1984) partem desse pressuposto e
cia nacional e à tentativa de aproxi- acabam por criar uma imagem di-
mação de um público popular. Mas minuída do que o CPC realmente
sua participação no Centro Popu- foi. Isso sem contar o posiciona-
lar de Cultura levou a consequên- mento de alguns de seus próprios
cias mais radicais a ação do grupo, integrantes frente a esse debate,
permitindo-lhe investigar formas que ao reavaliarem sua participa-
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Um exemplo disso encontra-se em Cultura posta em questão – Vanguarda e subdesenvolvimento, de Ferreira Gullar,
livro publicado em 2006 pela editora José Olympio, que reúne ensaios escritos durante a militância no CPC, como o “Cul-
tura popular”, e ainda textos posteriores, em que o autor reavalia suas posições. Gullar não só registra sua reflexão acerca
da experiência cepecista no momento mesmo de sua atuação, mas também suas reconsiderações sobre temas discutidos
anteriormente, onde põe em questão o entendimento de arte engajada expresso nos anos que antecederam o golpe militar.
E, apesar de se reconhecer a importância histórica desses documentos, acredita-se que em muitos momentos a posição do
autor contribua para uma avaliação negativa do CPC.
11
João das Neves ainda cita que: “Todas as correntes de esquerda que circulavam na União Nacional dos Estudantes, pelo
movimento estudantil em geral, estavam dentro do CPC também” (In: BARCELOS, Jalusa. CPC – Uma história de paixão
e consciência. São Paulo: Nova Fronteira, 1994, p. 261). E pode-se acrescentar que, além dos muitos estudantes que não
faziam parte de nenhuma organização política e de outras organizações com pouca influência no movimento estudantil,
duas frentes tinham forte adesão na UNE, com poder de disputa de sua liderança: o PC e a AP – Ação Popular – que tem
sua origem na JUC – Juventude Universitária Católica – em 1962.
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referências
NEVES, João. Entrevista com o teatrólogo João das Neves concedida a Roberta
Carbone. São Paulo, 24 fev. 2014.
______. Entrevista com o teatrólogo João das Neves concedida a Roberta Carbo-
ne. São Paulo, 22 nov. 2012.
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Abstract
The article intends to focus in the Street Theater of the Popular Center of Culture, in an
perspective that analyses that work in an João das Neves’ point of view. In spite of many
theories about the performance of the members of CPC, an exame of its praticals experi-
ments exposes strongs facts of some theatral activities in publics places, laying emphasys
on the participation of João das Neves.
Keywords
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Carina maria guimarães moreira
Resumo >
Palavras-chave:
João das Neves. Teatro Musical. Teatro Político.
Madame Satã: um musical brasileiro
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Para o assunto: GOMES, Tiago de Melo. Um espelho no palco: identidades sociais e massificação da cultura no teatro de
revista dos anos 1920. Editora Unicamp, 2004.
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3
Para o assunto ler: MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor,
1985.
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4
A princípio podemos descrever os pontos cantados como versos musicados, acompanhados do som de tambores. O som
desses cantos, tanto na Umbanda como no Jongo, são festivos e aliados à danças. Porém esses pontos não trabalham apenas
na perspectiva de divertimento pela música, seus versos, juntamente com o ritmo dos tambores e das danças encerram
uma tradição: a do poder mágico da palavra trazida pelos povos bantos para o Brasil (MOREIRA, 2008).
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prática comum em todo lugar do Brasil. (...) vesti Primorosa como personagens
Peso menos que uma besta. Minha mãe
negocia minha vida por uma égua. Mas de destaque, as duas negras e que
para ser carinhoso, João, filho de Firmi- representam diversas questões em
na, tem a sua serventia, mas uma besta tem
mais serventia. Sou João, Filho de Firmi- relação ao gênero, à sexualidade
nia, não ajudo tanto quando minha permu-
ta. Para não haver confusão, sou João, o que e a visão social preconceituosa a
foi trocado por uma vistosa eguinha. (FA- que estão sujeitas, por suas condi-
RIA; JERÔNIMO, 2015, [s/p.], grifo meu)
ções sociais, sexuais e à cor da pele.
Da mesma forma quando é A peça e o trabalho do Grupo
narrada sua passagem pela prisão dos Dez se configuram como um
nos remete à população carcerária teatro político, quando trazem ao
e às torturas passadas nas mãos de palco questões que dialogam dire-
policiais, às questões que envolvem tamente com reivindicações de gru-
a militarização da polícia e os res- pos em nosso presente histórico.
quícios de nossa história que pas- Assim, do encontro da experiência
sou há pouco por uma ditadura de João das Neves e a formação de
militar. É trazido ao palco a visão um grupo com as características do
reacionária que as pessoas costu- Grupo dos Dez é possível perceber,
mam ter da população carcerária e a contundência da prática do tea-
dos marginalizados, a ideia de que tro político produzido nas décadas
“ladrão bom é ladrão morto” e tan- de 1960 e 1970, porém com certa
tos outros preconceitos, que sabe- mudança temática e de abordagem,
mos circundam a vida de periféricos sendo o trabalho construído pelo
como o preconceito a nordestinos, Grupo dos Dez visivelmente um
negros, favelados e a reclamação trabalho que busca na formação de
quanto a programas sociais como um grupo de integrantes negros
o bolsa família, etc. Assim, como já para falar das questões sociais que
foi dito, pela história de Madame dizem respeito ao que passam em
Satã, no início do século XX fala- suas vidas, desenvolvendo segundo
-se das questões sociais de hoje, ou o pesquisador Marcos Alexandre
melhor de sempre. Essas questões “uma estética negra” sendo eviden-
são abordadas principalmente pelo ciado em Madame Satã, para além
viés da luta do povo negro, pelo fim da musicalidade e corporeidade, na
do preconceito racial, que se tor- “autoria”, “ponto de vista” e “lin-
na preconceito social, e pelo viés guagem” (ALEXANDRE, 2017, p.
da homofobia, trazendo as figuras 73). O autor ao tratar do trabalho
do próprio Madame Satã e da tra- do Grupo dos Dez nos chama aten-
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bre as bases culturais de nosso país. bre a visão do Brasil oficial, aquele
A peça parece terminar com que pertence à parcela dos privile-
uma oração, de súplica por amor, giados, das “pessoas de bem”, que
pronunciada na voz de Primorosa, destilam preconceitos e se recusam
um misto de Pai Nosso, que no tom a enxergar o Brasil real, o povo, o
da reza mostra a perseguição e o subalterno, a grande maioria de
ódio social que se criou aos grupos pessoas que formam nossa nação e
marginalizados de nossa socieda- da importância de se levar em con-
de. Porém, quando as luzes se apa- ta esse Brasil real para que possa-
gam e o público começa a aplaudir, mos plasmar um Brasil verdadeiro.
ouvimos o som de uma moto, que
adentra o palco do teatro e assisti-
mos novamente à cena de morte da
personagem Primorosa que acon-
tecera na rua, no início do espetá-
culo. Fechando com essa cena, nos
deixa grande reflexão, daquilo que
acontece no nosso cotidiano e que
é representado no palco, estetiza a
realidade e traz a realidade ao nos-
so deleite estético. Tal mecanismo
realiza no palco um diálogo direto
com a luta social que está sendo ali
mostrada, e não nos deixa sair com a
sensação de um final feliz, ou ao me-
nos esperançoso após a prece. Este
momento, possibilita a reflexão so-
bre assuntos que há muito tempo
são “jogados para debaixo do tape-
te”, na discussão que engloba quem
são os marginalizados em nossa
sociedade, como são enxergados e
tratados. E finalizando com Ariano
Suassuna e sua reflexão a partir de
Machado de Assis, Madame Satã no
mostra que precisamos refletir so-
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referências
CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições: sobre estudos culturais. São Paulo: Boitem-
po, 2003.
FARIA, Marcos Fábio de; JERÔNIMO, Rodrigo. Madame Satã. In: BENEVENU-
TO, Assis; ALEXANDRE, Marcos; SOUZA, Vinícius. Coleção Teatro Contempo-
râneo: Teatro Negro. Belo Horizonte: Editora Javali, 2018.
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doi: 10.20396/pita.v9i2.8656034
MARQUES, Fernando. Com o século nos olhos: teatro musical e político no Bra-
sil dos anos 1960 e 1970. São Paulo: Perspectiva, 2014.
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Abstract
From the tradition of Brazilian musicals that emerged in the second half of the 19th cen-
tury, and of political musicals, which, between the 60s and 70s, fostered and diversified
theatrical language, this article outlines an analysis of Madame Satã, a musical spectacle
that uses the musicality and corporeality of African-descent matrices as its source. The
show premiered in 2015 and it was directed by João das Neves and Rodrigo Gerônimo
and performed by the Grupo dos Dez, a group made up of mostly black cast.
Keywords
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Dimensões políticas e es-
téticas do trabalho de João
das Neves: uma análise do
processo de formação de ato-
res não profissionais em O
Último Carro (1976-1978)
Resumo >
Palavras-chave:
João das Neves. O Último Carro. Direção.
Dimensões políticas e estéticas do trabalho
de João das Neves: uma análise do processo
de formação de atores não profissionais em
O Último Carro (1976-1978)
2
Esse artigo retoma argumentos da tese Uma peça-processo: cultura na dita-
dura militar e os impasses em torno do popular em O Último Carro (1964-
1978)” com previsão de defesa para agosto de 2019, no Departamento de
História da Universidade de São Paulo.
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o próprio Cachimbo, um idoso e fi- cias, né? E é gostoso porque é uma maneira,
não tem nada a ver com O Último Carro, mas
gura emblemática da noite carioca é uma maneira, assim, de eu estar sempre em
que pertencia às classes populares. contato com gente jovem. (NEVES, 2013)
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lo, onde a maioria já era usuária do atenção dos transeuntes, por exem-
trem, a experiência serviu mais para plo, significava que não estavam
a construção de seus personagens. sendo capazes de construir uma
Antes da estreia da peça a im- personagem que não fosse caricata.
prensa já noticiava esses “eventos” A incorporação de atores das
e a reação do público, que variava classes populares foi uma das estra-
entre a não compreensão e o es- tégias para evitar uma atuação ca-
tranhamento. De acordo com a re- ricata das personagens referentes a
portagem de Jacinto de Thormes, essa camada social. No Rio de Janei-
alguns transeuntes reconheceram ro em menor número, mas em São
Ilva Niño, que era atriz da TV Paulo correspondia a parte majo-
Globo, mas não entendiam o que ritária do elenco. Cachimbo foi um
se passava. Ele avalia que “o dire- desses. Integrou a montagem cario-
tor ficou satisfeito e os passageiros ca porque o diretor identificava em
desconfiados com aquela viagem sua imagem a de um camponês que
de loucos” (THORMES,1976). Léa havia visto circulando pelos trens
Maria também divulgou em sua co- das centrais no contexto de escrita
luna Pano de boca um texto sobre da peça. Em entrevista concedida
o trabalho realizado com os atores ao jornal Última Hora, Cachimbo
no trem. “Foram todos até Campo falou sobre a sua participação e o
Grande gozando das delícias de se momento em que recebeu o convite
viajar na Central e se comportando do diretor, que havia lhe garantido
como beatos, marginais, virgens, que ele não disputaria o papel com
etc, personagens da peça que é diri- ninguém e já estava selecionado.
gida pelo próprio” (MARIA,1976).
Ele me chamou pra ler o texto do Último Car-
A escolha de viajar até Campo ro, dizendo que tinha um papel pra mim. No
Grande possivelmente ocorreu começo, pedi a ele para desistir da ideia, que
já haviam tentado me transformar em ator.
para que a equipe vivenciasse as Mas a tentativa era sempre uma frustração.
quatorzes estações que inspiraram Afinal ele me convenceu. Eram duzentas pes-
soas disputando uns trinta papéis na peça:
a construção dramatúrgica da peça. confesso que não esperava nada. Mas João
disse que eu ficasse calmo, que eu não esta-
Os atores partiam para os labora- va disputando com ninguém. Quando os en-
tórios de rua com seus respectivos saios começaram, o David Pinheiro assistente
de direção do João, me deu a maior força, tra-
personagens e além de observar seu balhou comigo horas pra ver se eu conseguia
entorno tinham a oportunidade de colocar a minha voz, que sempre foi pra den-
tro. Até que veio o espetáculo para a censura
testar a construção a impacto de sua e eu me saí muito bem. No dia do espetáculo
para a classe estava todo mundo lá pra me ver.
construção cênica. Se chamassem a Era uma torcida só e no meio do meu texto
houve aplausos e tudo. Era a primeira vez que
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Abstract
This article will address João das Neves’s process of direction regarding the formation of
non-professional actors. The focus of the analysis will be “The Last Car”, a theater play
which was very successful in the 1970s. Several people from the popular classes with no
experience in acting participated in it. The article aims to identify how the work was con-
ducted based on political and aesthetic assumptions found throughout the director’s work.
Keywords
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João das Neves: política,
engajamento e criação cê-
nica em 1968
Kátia Rodrigues Paranhos
Resumo >
Palavras-chave:
João das Neves. Engajamento. Dramaturgia.
João das Neves: política, engajamento e
criação cênica em 19681
1
Este trabalho contou com o apoio financeiro do Conselho Nacional de De-
senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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3
Sobre a trajetória de João das Neves, ver NEVES, 1987a e 2017.
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político constitui tema de destaque modificada, quer dizer, a segunda parte, onde
a peça sai do enfoque naturalista da realidade
na obra de João das Neves. Basta e parte para o realismo fantástico, era rejeita-
destacar um dos seus mais impor- da pelo grupo.
[...] fiquei querendo montar a peça, mas não
tantes trabalhos, O último carro ou tinha recursos nem possibilidades. E, além
disso, porque a censura não permitiria. (NE-
As 14 estações, metáfora do Brasil VES, 1984, p. 57)
em um trem desgovernado, mon-
tado pelo Grupo Opinião em 1976. No início de 1968, em meio
A peça foi concebida e escrita entre às divergências pessoais, o gru-
1961 e 1962 e 1964-1965 sendo re- po, já sem Oduvaldo Vianna Fi-
feita em 1967 por ocasião do 1º Se- lho, Paulo Pontes e Ferreira Gullar
minário Carioca de Dramaturgia, como sócios, produziu Jornada de
da qual foi vencedora. O enredo foi um imbecil até o entendimento,
urdido em meio às viagens de trem de Plínio Marcos, direção de João
que o autor fazia quando dirigia o das Neves e Dr. Getúlio, sua vida
Teatro Arthur Azevedo, em Cam- e sua glória, de Dias Gomes e Fer-
po Grande, Rio de Janeiro. Todos reira Gullar, direção de José Rena-
os seus personagens, segundo ele, to. A estreia de Jornada ocorreu no
foram seus companheiros nas via- Teatro Opinião, no Rio de Janeiro,
gens diárias de trem pela Central no dia 13 de junho de 1968 e se es-
do Brasil. No texto a ação se dá qua- tendeu até agosto do mesmo ano.
se inteiramente nos vagões de um No elenco, entre outros, Ari Fon-
trem, onde, numa simples viagem toura, Milton Gonçalves, Denoy
pelos subúrbios cariocas, mendigos, de Oliveira, Jorge Cândido e José
operários e personagens comuns Wilker5. João das Neves enfatiza:
do cotidiano revelam, entre uma
Plínio Marcos abandona aquele teatro-foto-
parada e outra, seus dramas parti- grafia para buscar novos rumos. Ele nos sur-
culares. Entretanto, de acordo com preende com um texto de mais pura inven-
ção, um roteiro para um espetáculo. A peça é
João das Neves, não existia consen- intencionalmente esquemática, dado margem
ao diretor de recriação. A direção e os atores
so na montagem naquele momento: trabalharam juntos na discussão social de
cada um dos personagens e como resultado
[...] não foi endossada, pois o grupo tinha a chegamos a uma imensa improvisação.
visão como um todo de que ela precisaria ser [...]
4
Em O quintal, concebida em 1978 e encenada em 1981 em Londrina/PR, João das Neves apresenta como enredo a inva-
são do prédio da UNE pelos militares, no dia 1º de abril de 1964, e as consequências dessa ação para os oito personagens
que lá se encontravam. Ver NEVES in: ESCOBAR et al, 1978, p. 111-122.
5
Ficha técnica Rio de Janeiro. Direção geral: João das Neves. Cenografia e figurinos: Carlos Vergara. Direção musical e
orquestração: Geni Marcondes e Pichin Plá. Músicas: Denoy de Oliveira. Letras das canções: Ferreira Gullar. Elenco/Per-
sonagem: Ary Fontoura/Mandrião; Denoy de Oliveira/Popô; Jorge Cândido/Bilico; José Wilker/Manduca; Milton Gonçal-
ves/Teco; Teca Calazans/Totoca. Produção: Grupo Opinião. Arranjos: Pichin Plá.
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Plínio Marcos dá um giro de 180º, lança-se a um plano para acabar com Pilico,
um novo caminho, sem temer os erros a que
esse caminho possa conduzi-lo... É possível porque eles descobrem que o con-
que, além do diálogo enxuto, da exata medida corrente estaria tentando trazer os
entre tensão e desafogo, da aguda capacida-
de de observação, muito pouco reste do Plí- outros pedintes para seu lado. No
nio Marcos que o público se habituou a ver e
aplaudir... Seu trabalho pressupõe riqueza de meio dessa disputa, os empregados
colorido, alegria violenta, enorme capacidade Manduca, Popô e Totoca analisam
de improvisação dos atores, características só
encontradas no descaramento interpretativo as vantagens que vão ganhar ao se
dos palhaços de circo ou na vigorosa comme- aliar a cada um desses dois lados.
dia dell’arte italiana”. (NEVES, 1968, p. 15-
16) Numa das primeiras resenhas
sobre a peça, em julho de 1968, no
Pela via humorística, a peça jornal Clarín destacam-se tanto o
critica a exploração no trabalho, texto de Plínio Marcos, no que se
formas de controle, opressão e alie- refere ao formato da farsa, da te-
nação religiosa entre um grupo de mática do circo e da televisão, da
seis personagens que vivem de es- linguagem popular, como a direção
molas. Caricaturesca, o tom de co- segura de João das Neves. Por si-
média da peça remete às origens nal, assinala-se que Plínio forne-
circenses do autor e a commedia ceu tão somente um “guia básico”
dell’arte.6 O enredo central focaliza ao grupo, deixando aos atores e
as articulações e malandragens de ao encenador total independên-
seis vagabundos – Mandrião, Teco, cia, liberdade e discussão de to-
Manduca, Popô, Pilico e Totoca dos os detalhes da representação.
– que sobrevivem pedindo dinhei- A resenha, sem autoria, eviden-
ro nas ruas e becos de uma cidade cia ainda que para João das Neves,
grande. Apenas Mandrião e Pilico Plínio abandona o “teatro-docu-
têm chapéus para pedir esmolas, mento, tipo depoimento e busca
sendo que o primeiro com a ajuda novos rumos.” (PLÍNIO..., 1968).
do Teco, uma espécie de secretário, Em setembro de 1969, Jor-
contrata – ou praticamente escra- nada de um imbecil até o enten-
viza – os demais pedintes, respal- dimento ganha o palco do Tea-
dados por uma falsa crença criada tro Maria Della Costa7, em São
por um deles. No decorrer da nar- Paulo. O crítico Sábato Magal-
rativa, Mandrião e Teco armam
6
Com duas versões anteriores, Os fantoches (1960) e Chapéu sobre paralelepípedo para alguém chutar (1965), o texto tem
sua versão definitiva em 1968. A primeira encenação de Os fantoches ocorreu no Teatro de Câmara de Santos, em Santos,
em 1960, e recebeu duras críticas, no jornal A Tribuna, na coluna teatral de Patrícia Galvão, a Pagu. Em 1962, foi reence-
nada em São Paulo, no Teatro de Arena, sem repercussão, e ensaiada em 1965, quando a censura vetou a apresentação. Ver
CONTIERO, 2007 e VIEIRA, 1994.
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7
Depois da montagem de Antígona, em 1969, o Grupo Opinião, afogado em dívidas, dissolve-se. João das Neves, o único
que não aceita tal decisão, decide continuar sozinho e parte em busca de novos parceiros. O teatro inclusive será alugado,
em alguns momentos, para jovens iniciantes e o próprio diretor passa a comandar espetáculos fora do eixo Rio-São Paulo.
Ver NEVES, 1984, p. 55-59 e KÜHNER e ROCHA, 2001.
8
Ficha técnica São Paulo. Direção geral: João das Neves. Cenografia e figurinos: Carlos Vergara. Direção musical e orques-
tração: Geni Marcondes e Pichin Plá. Músicas: Denoy de Oliveira. Letras das canções: Ferreira Gullar. Elenco/Personagem:
Alberico Bruno/Mandrião; Denoy de Oliveira/Popô; Jorge Cândido/Bilico; José Fernandes/Manduca; Henrique Amoedo/
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um trabalho de grande sinceridade e convic- que fez com que a peça desse “um pulo”, se
ção [...]. Gostei de todos [...]. As letras das descobrisse a si mesma.
canções de Ferreira Gullar e as músicas de Dentro daquela escrita mais ou menos esque-
Denoy de Oliveira [...] servem Jornada de um mática, a peça ganhou dimensão teatral com
imbecil com a mesma simplicidade que a di- a encenação através do trabalho dos atores,
reção pôs em tudo quanto se vê e se admira do meu trabalho e do trabalho do Verga-
no palco do Teatro Maria Della Costa (APO- ra. Quem lia a peça, ficava com a impressão
LINÁRIO apud VASCONCELOS, 2013, p. de que o texto não tinha valor. Mas, levada
110-113). à cena, através dessa encenação [...] ela ad-
quiriu outra dimensão. Adquiriu, em suma,
a sua verdadeira dimensão teatral. A dimen-
Aliás, é interessante perceber são, evidentemente, estava na peça. O proble-
como a dramaturgia de Plínio Mar- ma era descobri-la. E foi o que acho que nós
fizemos. (NEVES, 1987, p. 18-19)
cos está muito próxima da obra de
João das Neves: ambas percorrem No entanto, em O teatro sob
da existência miserável dos sujeitos pressão, também da década de
despossuídos que habitam o mundo 1980, Yan Michalski observa que
do trabalho à cidade moderna, lugar o “ ‘maldito’ Plínio Marcos, pouco
dos sonhos e pesadelos, da industria- acrescentou ao seu acervo anterior
lização moderna, do desemprego e através da sua Jornada de um im-
da pobreza.9 Tempo depois, no final becil até o entendimento, montada
dos anos 1980, o diretor (re)avalia pelo Opinião [...]” (MICHALSKI,
os sentidos simbólicos de Jornada: 1985, p. 37). Edélcio Mostaço, na
[...] esta peça, para mim, foi um marco fun- reedição do seu livro Teatro e po-
damental; porque é uma peça escrita em cima lítica, Arena, Oficina e Opinião, em
da perna. Não é uma peça acabada; [...] no
espetáculo, aproveitei tudo o que acumulara 2016, vai na mesma direção: “to-
como experiência: do circo, que aprendera na
infância; do teatro de rua; do CPC. Enfim, jo- mando o picadeiro de circo e suas
guei tudo em cima dessa peça; e misturei. Era personagens como espaço cênico
uma loucura, porque eu misturava todos os
gêneros. – afastando-se das criaturas margi-
Peguei o Vergara, que era um artista plástico nalizadas que tão apropriadamen-
e, juntos, bolamos um cenário muito interes-
sante. Nós trabalhávamos em arena e, nela, o te enfocara em seus textos iniciais
chão é fundamental. Então, enchemos o chão
com espuma de níveis diferentes, de modo – Plínio tenta aqui tornar didáti-
que a movimentação dos atores era determi- co o processo capitalista da mais-
nada não só por uma marcação básica, mas
também pelas reações que o chão dava a eles. -valia, empregando a linguagem
O chão impulsionava os atores e, a cada dia, das ruas, tão sua conhecida. O re-
os colocava surpreendentemente em situa-
ções novas. Era uma coisa muito interessante, sultado, todavia, é apenas sofrível”
9
Os “tipos” plinianos subvertem até certo tipo de teatro engajado em voga nos anos de 1960 e 1970, pois não veiculam, em
regra, uma mensagem otimista ou positiva quanto à possibilidade de se ter alguma esperança de mudança social. O que
importa é subsistir, seja como for: sem solidariedade de classe, sem confiança no próximo. Seus personagens se debatem
num mundo que não oferece vislumbre de redenção; estão envolvidos em situações mesquinhas e sórdidas, em que a luta
pela sobrevivência e pelo dinheiro não tem dignidade; via de regra, enveredam para a marginalidade mais violenta a fim
de atingir seus objetivos. Ver PARANHOS, 2012a e 2012b.
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11
Sobre ambiente criativo ao longo dos anos 1960, nas artes de um modo geral, ver também: MOSTAÇO, 2016, p. 131-150.
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engajamento no Brasil pós-1964. In: AVELAR, Alexandre de Sá e SCMIDT, Beni-
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São Paulo: Letra e Voz, 2012b, p. 169-188
PLÍNIO MARCOS ABORDA LA FARSA. Clarín, 27 jul 1968. [s. p.]. Disponí-
vel em <http://www.pliniomarcos.com/teatro/jornada.htm#>. Acesso em: 3 jan.
2019.
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Abstract
Sometimes condemned as escapist, other times praised as a tool for revolutionary libe-
ration, art generally remains a hot topic within academia as well as elsewhere. This text
addresses the multiple faces of João das Neves, director of Jornada de um imbecil até o
entendimento, by Plínio Marcos, performed by Grupo Opinião in 1968. The analysis we
propose here tries to illuminate different ways of making theater in Brazil, in this case,
from the edges inward. Indeed, the late director became known for his political or “legi-
timate” engagement, as Eric Hobsbawm puts it in a different context, raising ideas and
challenges under the Brazilian military dictatorship, issues that have lost nothing of their
contemporary relevance.
Keywords
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“Joãos”: João das Neves e
seu arquivo
José Francisco Guelfi Campos
Marta Eloísa Melgaço Neves
Verona Campos Segantini
Resumo >
Palavras-chave:
Arquivos pessoais. Grupo Opinião. Teatro.
“Joãos”: João das Neves e seu arquivo
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das relações que podem ser traça- Como sublinhou Ana Maria
das entre documentos, arquivos e Camargo (2015), em ensaio dos
memória; contudo, convém evocar mais provocativos, os arquivos não
a conclusão a que chegou a arqui- são dotados de vida própria, nem
vista canadense Laura Millar: os da força necessária para promover
arquivos, bem como os documentos determinada versão dos fatos. Ma-
que os compõem, não armazenam téria inerte, os arquivos não falam
a memória de seus criadores, mas por si sós. A garantia de sua capa-
funcionam como gatilhos que acio- cidade especular, atributo congê-
nam processos de rememoração nito que os caracteriza e os distin-
(MILLAR, 2006), isto é, oferecem gue das coleções,6 avalizando seu
acesso à matéria-prima da memó- uso em situações e para finalidades
ria, garantindo a possibilidade de muito distintas daquelas que presi-
construí-la e moldá-la segundo as diram sua acumulação, repousa jus-
circunstâncias do presente (MEN- tamente na manutenção do elo en-
NE-HARITZ, 2001, p. 59-61). tre os documentos e as atividades
Antes de dar vazão às di- de que se originaram (CAMARGO,
versas possibilidades de interpre- 2009a, p. 36). Nisto reside a especi-
tação que podem ser extraídas a ficidade dos arquivos – sua condi-
partir da leitura dos documen- ção probatória – e também da dis-
tos, convém ter sempre em men- ciplina que se dedica a estudá-los,
te o fato de que o arquivo não a Arquivologia, definida por Ange-
constitui um fim em si mesmo: lika Menne-Haritz (1998) como “a
ciência dos contextos e relações”.
Se os arquivos não fossem meios, não lo-
grariam possuir a capacidade de refletir as
diferentes atividades de que participam. Su- Caminhos e descaminhos: a
por que todo arquivo, porque pessoal, tem
uma dimensão autobiográfica, eivada de formação do arquivo
distorções e conscientemente produzida, Se os arquivos não falam por
é ignorar a condição probatória que ema-
na das atividades ménagères. O contrário si sós e também não são capazes de
é verdadeiro: se o arquivo pessoal fosse ati-
vidade finalística, empenhada na constru- oferecer uma via direta de acesso à
ção de determinada imagem, deixaria de memória de seus titulares, é certo
ser arquivo. (CAMARGO, 2009a, p. 36)
que oferecem a possibilidade de ob-
6
Eivados de organicidade, “os arquivos refletem a estrutura, funções e atividades da entidade acumuladora em suas rela-
ções internas e externas” (CAMARGO; BELLOTTO, 2012, p. 65). Já as coleções se definem pelo agrupamento artificial
de documentos de origens diversas, geralmente sob a égide da afinidade temática. Não atendem, portanto, aos princípios
norteadores da teoria e da prática arquivísticas (proveniência, organicidade, unicidade, indivisibilidade e cumulatividade).
Sobre os princípios arquivísticos e a caracterização dos conjuntos documentais, recomenda-se ver Heredia Herrera (2015)
e Bellotto (2002).
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ver com a representatividade do de não perder aquilo ali, não perder aquela
história e preservar tudo o que estava ali, in-
conjunto documental em relação dependente da importância do documento,
à trajetória do indivíduo. Em que da significação ou não [...] se aquilo se dissol-
vesse, aquilo ia o quê? No máximo nós íamos
medida seria o arquivo capaz de jogar fora metade das coisas, a outra metade
ia para cada um de nós, se espalhar, e se per-
refletir a vida de João das Neves, deria aquilo. (NEVES, 2018)
tendo em vista o extenso volume
de documentos que, num primeiro Já em 2004, o interesse sobre
momento, pareciam mais retratar o acervo do Grupo Opinião ganhou
as atividades do Grupo Opinião e as páginas dos jornais, em matéria
de outros grupos teatrais que parti- publicada em O Globo por ocasião
cipou? Aos poucos, a questão foi se do aniversário de 70 anos de João
desdobrando em outras: faz sentido das Neves e de sua mudança para a
pretender dissociar as trajetórias cidade de Lagoa Santa (MG), onde
de João das Neves e dos grupos por se estabeleceu após residir por cer-
ele fundados e dirigidos? Afinal, o ca de dez anos em Belo Horizonte.
que seria o arquivo de João e o ar- Na reportagem, o conjunto de foto-
quivo do Opinião? Seria possível grafias, recortes de jornal, cartazes
(ou até mesmo desejável) delimitar e gravações de espetáculos e sho-
onde um acaba e o outro começa? ws recebeu o status de “tesouro”
Embora fizesse questão de guardado na residência do artista,
ressaltar o sentido verdadeiramen- “material precioso para um livro”
te coletivo do Grupo Opinião, no (OLIVEIRA, 2004).
que tange à criação artística e tam- Os documentos atualmente
bém no que diz respeito às atribui- sob custódia da Biblioteca Univer-
ções de cunho administrativo, João sitária da UFMG não representam,
reconhece que, mesmo sem talento contudo, a totalidade do arquivo de
inato de gestor, teve de assumir a João das Neves. Com o falecimen-
posição de administrador dos negó- to do titular, a aquisição de outras
cios do grupo, sobretudo depois das parcelas de seu arquivo agora de-
cisões ocasionadas por desentendi- pende de tratativas e negociações
mentos entre seus integrantes. Ao com os familiares. Mesmo que ou-
assumir as dívidas do Grupo, le- tros documentos sejam incorpora-
vou de “brinde” também o arquivo: dos ao fundo, por meio de doação,
não se poderá falar em um arqui-
[...] eu tomei a decisão de não acabar com o vo “completo”: a totalidade dos ar-
Grupo [...] eu vou assumir as dívidas do Gru-
po e quero ficar com o acervo, tudo que está quivos é sempre inatingível, haja
aqui vai ser meu. [...] eu sentia a necessidade
vista que passam, inevitavelmente,
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pelo crivo de seus titulares, que não e exposição),8 parecem ter deter-
raro avaliam os documentos ainda minado a decisão de doar os docu-
em vida, excluindo periodicamente mentos para uma instituição capaz
aquilo que não mais lhes convém, de acolhê-los, tratá-los e promo-
seja porque os documentos perde- ver o acesso irrestrito ao arquivo.
ram a funcionalidade original ou o
Então chegou um ponto que eu disse não, não
potencial de reutilização, seja por dá pra guardar tudo. O que que eu vou fazer
outras razões às vezes insondáveis. agora? Eu vou jogar fora? Quer dizer, eu vou
doar para uma instituição [...] ver o que é re-
Outras intervenções, no sentido de levante nisso, o que não é relevante, afinal de
seleção dos documentos também contas é tanto papel que não é relevante [...]
me assustou o grande interesse da UFMG em
podem ser realizadas pela família e torno do arquivo. Eu não tenho ainda noção
da dimensão que esse arquivo possa ter quan-
até mesmo pela instituição de cus- do vocês começam a falar dele [...] Quinze
tódia, de modo a atender aos inte- pessoas na minha casa por causa desse arqui-
vo? Meu Deus do céu, deve haver algum equí-
resses que qualificam sua linha te- voco aí! (NEVES, 2018)
mática ou esfera de especialização.
O arquivo de João das Neves esteve O arquivo de João das Neves e
também sujeito a situações fortui- os vários “Joãos”: sondagens e
tas que resultaram em perdas irre- desafios
paráveis: Vasto e multifacetado, o arqui-
vo de João das Neves – ou, melhor, a
[...] esse arquivo, eu perdi parte dele. [...] parcela dele que atualmente se en-
numa dessas tempestades das águas de mar-
ço no Rio de Janeiro [...] meu telhado tinha contra na Biblioteca Universitária
muitas telhas quebradas [...] a laje se encheu da UFMG – é composto de docu-
de água, né, a água não costuma ficar para-
da, procura sempre um lugar por onde sair, mentos que registram suas ativida-
e achou, né? E achou em cima de onde? [...]
Da minha biblioteca. Eu tive perdas também des profissionais no campo das artes
da minha biblioteca, perdi mesmo, e parte do cênicas no período que se estende
arquivo que tava ali também foi embora. (NE-
VES, 2018) da década de 1960 aos anos 1990.
Destacam-se, no conjunto,
O aumento progressivo do documentos de gênero textual (isto
volume do conjunto documental, é, aqueles que utilizam a palavra es-
mais a escassez de espaço para man- crita na comunicação de seu conte-
tê-lo em casa e também certa no- údo), produzidos em suporte papel,
ção acerca de sua utilidade pública embora note-se também, em me-
(vale recordar que parte do acervo nor volume, documentos de gênero
já havia sido objeto de digitalização
8
Parte do acervo foi exposta na Ocupação João das Neves, que ficou em cartaz de 27 de setembro a 8 de novembro de 2015
na sede do Instituto Itaú Cultural, em São Paulo (SP).
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9
Convém frisar que a extensão exata do arquivo, no que diz respeito ao número de unidades documentais, tende a se
alterar, dado que o processo de conferência tem revelado a existência de itens que não foram identificados na listagem
preliminar ou que estavam identificados coletivamente, carecendo de desmembramento.
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Segundo João das Neves relatou em entrevista, o Grupo Opinião chegava a realizar até nove apresentações por semana
10
(NEVES, 2018).
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11
Universidade Federal de Minas Gerais, Biblioteca Universitária, Divisão de Obras Raras e Coleções Especiais, Arquivo
de João das Neves, série 3, caixa 19/23, pasta 44.
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referências
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uma abordagem interdisciplinar. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa,
2015. p. 11-13.
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LANE, Victoria; HILL, Jennie. What do we come from? What are we? Where are
we going? Situating the archive and archivists. In: HILL, Jennie (ed.). The future
of archives and recordkeeping: a reader. London: Facet, 2011. p. 3-22.
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from the Second Stockholm Conference on Archival Science and the Concept of
Record. Stockholm: Riksarkivet, 1998. p. 11-24.
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Abstract
This paper discusses, from the perspective of Archival Science, the challenges of the ap-
proach to João das Neves’ archives, under custody of the Federal University of Minas
Gerais, prospecting the circumstances of the recordkeeping and finally shedding light
over its informational potential for understanding the artist’s journey.
Keywords
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João das Neves: cenógrafo
e artífice - sobre o cená-
rio de Maria Lira
Resumo >
Palavras-chave:
Cenografia. Companhia de Teatro Ícaros do
Vale. Maria Lira.
João das Neves: cenógrafo e artífice - sobre
o cenário de Maria Lira
2
Os três principais núcleos habitados do município – Araçuaí (sede), Alfredo Graça e Engenheiro Schnoor (popularmente
conhecido como “Xinô”) são os remanescentes das três estações da Bahia-Minas no município, o que demonstra a grande
importância da ferrovia na ocupação da região.
3
Lélia Coelho Frota relata, em publicação da FUNARTE de 1984 que, até aquele momento, era incomum encontrar nas
feiras da região objetos cerâmicos não utilitários, e que estes se limitavam a pequenos animais como galos, boizinhos e
outras peças relacionadas à tradição natalina do presépio. (Ver MASCELANI, 2008, p.74)
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4
Coordenação do Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha, criada pelo Estado de Minas em 1965. O programa de
Artesanato da Codevale funcionou de 1970 a 1990 e foi responsável não só por incentivar a formação de associações de ar-
tesãos, mas pela compra de grande parte da produção, levada para os grandes centros urbanos, com a consequente criação
das redes que possibilitam o reconhecimento e consumo das obras cerâmicas da região. (Ver MASCELANI, 2008, p.76)
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sários mais integrantes para repre- via ser flanqueada por 4 postes de
sentar a importância de Lira para a eucalipto onde estariam hasteados
associação comunitária, exemplifi- estandartes, e ter ao fundo outros
cada, principalmente, pela fundação tantos estandartes – todos ilustra-
do Coral Trovadores do Vale.5 Ini- dos com desenhos de Maria Lira – e
ciou-se também um processo de se- tudo seria iluminado por 25 refleto-
leção de músicos, dada esta impor- res distribuídos em 3 torres (Fig. 1).
tante relação de Lira com a cultura
musical da região. Além da seleção
do elenco6, durante esta primeira
estada em Araçuaí, toda previsão
da produção do espetáculo foi rea-
valiada a partir da ideia de “teatro
NA rua” que, segundo João das Ne-
ves, deveria utilizar todos os recur-
sos técnicos possíveis, em período
noturno, transportando o máximo
Fig. 1 - João das Neves. Projeto de cenário para Maria
da poesia da caixa cênica para o es- Lira. Foto do acervo da autora.
paço público, sem abandonar a di-
nâmica de interação público-plateia Como o orçamento disponí-
que caracteriza o espetáculo de rua. vel não permitia a realização das
Inicialmente, João desenhou plataformas,7 principalmente em
um espaço formado por uma pla- virtude do transporte, já que a tur-
taforma quadrada central de 8m nê previa deslocamentos de muitos
x 8m e 80 cm de altura, à qual se quilômetros em estradas precárias,
ligavam, por pontes, 5 plataformas João das Neves abriu mão do pro-
circulares de 1,5m de raio e 60 cm jeto inicial, adaptando o dispositi-
de altura. A plataforma central de- vo a um desenho no piso. Sua ima-
5
Além de pesquisadora do repertório popular gravado e divulgado pelo Coral Trovadores do Vale, Maria Lira é uma das
primeiras integrantes do Coral, fundado em 1970 pelo Frei Franciscano Francisco van der Poel (o Frei Chico). Lira gravou
canções em dupla com Frei Chico, além de participar de shows e programas musicais a seu lado.
6
O elenco inicial do espetáculo foi composto por 5 homens - Luciano Silveira (diretor da Companhia e coautor do texto
do espetáculo), Anderson Costa Santos, Jailson Mendes Silva, Alberto Pereira dos Santos e Eslane Luis dos Santos – e 8
mulheres – Lenita Luiz dos Santos (desempenhando o papel de Lira), Ângela Gomes Freire (atriz convidada do Grupo
de Teatro Vozes, de Araçuaí), Lorenza Vieira Rodrigues, Cleidilane Ferreira dos Santos, Walkíria da Conceição Araújo,
Vaniza Silva Pinheiro e as atrizes convidadas Niuxa Drago e Anna Maria Esteves – além dos músicos Denner Peter (violão)
e Ademir Ferreira (percussão).
7
O espetáculo foi aprovado no Fundo Nacional de Cultura do Estado de Minas Gerais no ano de 2007 e recebeu patrocínio
da AVON, através da CRIA! Cultura.
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8
Os figurinos foram costurados pelas costureiras Gilza, Fátima e Odília e receberam apliques preparados pela Cooperativa
Dedo de Gente, que também confeccionou os objetos de cena e os acessórios de cabelo e brincos.
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10
Patrice Pavis, em seu Dicionário de Teatro (1999), classifica o “espaço teatral” como aquele que determina a relação entre
cena e plateia, ou seja, o espaço do evento, e o “espaço cênico” como a criação poética que busca materializar o tema e o
significado da obra.
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referências
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POEL, Francisco van der (Frei Chico). Maria Lira Marques Borges, artista do
Vale. In: Vale: Vozes e Visões – a arte universal do Jequitinhonha (catálogo da
exposição). Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais,
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Abstract
This paper describes the conception process of Maria Lira scenery (Ícaros do Vale Thea-
tre Company, Araçuaí/MG), written and directed by João das Neves. João also conceived
the sets, inspired by the series “bichos do sertão” (backwoods creatures), by the artisan
Maria Lira Marques, title character of the play dedicated to the popular culture of the
Jequitinhonha Valley. The scenery is analysed in the light of Richard Sennet’s The Crafts-
man (2009).
Keywords
Pitágoras 500, Campinas, SP, v. 9, n.2, [17], p. 98 - 115, jul. - dez. 2019 115
Juliana Reis Monteiro dos Santos
Resumo >
Palavras-chave:
Primeiras estórias em Campinas. Atuação e dra-
maturgia espacial. Pedagogia teatral.
Brincando o Teatro pelas veredas dos João: a
montagem de Primeiras estórias em Campinas
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que precisa ser percebido como tal; divertir-se não só abarca sedução e o
inclusive pelo fato de que são suas encantamento como, no caso de das
particularidades que determinarão Neves, nos remete às brincadeiras
a forma como deverá ser tratado. e manifestações da cultura popular
Ao mesmo tempo, traços de sua com as quais o encenador manteve
poética, visão de mundo, concep- contato e participou ao longo de sua
ção de teatro e, por conseguinte, de vida e encontrou “elementos para o
sua ética podem ser reconhecidos desenvolvimento formal de seu te-
em meio à diversidade de sua obra. atro” (HENRIQUE, 2006, p. 83).
Em publicação recente de Em Primeiras estórias, lida-
um de seus textos infantis, Brin- mos com um “labirinto narrativo”
cando o Teatro (NEVES, 2015, p. (ZANOTTO, 1996), dada a diversi-
11-12), alguns destes traços trans- dade de assuntos, situações e subgê-
parecem na apresentação que o neros trazidos por Guimarães Rosa.
dramaturgo faz desta arte: uma As estórias do autor passeiam “pelo
brincadeira “meio mágica”, que co- que o ser humano é capaz de inven-
meça com a reunião de uma tur- tar, de ser, de se expor, enfim..., de
ma interessada em dialogar e que ser inventado também” (NEVES,
irá – de atores a espectadores – 2017), passando da simplicidade
“brincar vendo e ver brincando”. às discussões filosóficas, com mu-
Neste pequeno trecho, o ence- danças contínuas de tom a cada
nador não só passeia pelas origens conto que, sob o viés da encenação,
gregas do Teatro, como reitera o recebeu enfoque teatral distinto4.
que já havia apontado em A análise E se é de experiência e brin-
do texto teatral (1997), bem como cadeira que estamos falando, an-
em séries de palestras, aulas e entre- tes de qualquer análise das carac-
vistas que deu: seu apreço e crença terísticas citadas acima, João nos
no coletivo e em um fazer coletivo conduziu por práticas de atuação
(feito pelo, para e com a coletivida- para que pudéssemos nos (re)co-
de); no jogo e na inventividade que nhecer mútua e artisticamente.
lhe são próprias; na existência de Acima de tudo e antes de
algo a ser contado e no prazer que qualquer conceituação, João falava
deve permeá-la. Vale lembrar que o de cena, da cena, sob o viés da “fa-
4
Além de Veredas da salvação, que fechava o espetáculo e foi adaptada de Grande Sertão: Veredas, também fizeram parte
do espetáculo os seguintes contos de Primeiras estórias: A terceira margem do rio, Famigerado, Sorôco, sua mãe, sua filha,
As margens da alegria, A menina de lá, Nenhum, nenhuma, O espelho, Os irmãos Dagobé, Luas de Mel e Substância.
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Prática que se manteve ao longo de toda a temporada do Primeiras estórias, com feedbacks sobre timing de cena, sobre o
que havia sido percebido como positivo e que poderia ser atentado no espetáculo do dia seguinte, dentre outras.
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6
Espelho e Nenhum, nenhuma eram assistidas por vinte pessoas e um casal, respectivamente, mediante sorteio prévio de
senhas à plateia. A primeira, com duração de 30 minutos, era repetida duas ou três vezes por espetáculo e a segunda, com
duração de 20 minutos, era repetida de 3 a 4 vezes por noite.
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7
Durante nossa graduação, chegamos a acompanhar as últimas edições do FIT Campinas. Mesmo o movimento de gru-
pos de teatro da cidade, sobretudo aqueles com sede em Barão Geraldo, começaria apenas na virada de 1997 para 1998,
quando novas mostras e festivais foram fomentados, como as primeiras edições do Feverestival, ainda de dimensões locais.
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Respectivamente, refiro-me a: Nossa cidade, de Thorton Wilder, direção de Reinaldo Santiago; Electra III, adaptação e
direção de Márcio Tadeu das tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes; Os cegos, de Michel de Ghelderode, direção de
Maria Thaís e Otelo, de William Shakespeare, direção de Verônica Fabrini.
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A relação do ator com o espectador se apro- lá que a criação das cenas se efeti-
ximou à uma experiência de um set de gra-
vação, mas ‘em modo continuo’. A sensação vou. Elas “estavam levantadas, mas
do ‘agora’ se fez mais forte. O ator se rela- ao chegar ao parque foram com-
cionava com o espaço real que incluía, além
de variedades arquitetônicas, a natureza em pletamente modificadas, mudando
si, uma verdadeira imersão... (...) Lembro de
sua vivência com os índios [referindo-se ao também o que eu imaginava que
João] e de como me senti mais próxima des- seria o espetáculo.” Narradora em
ses nossos antepassados que convivem com a
natureza, trabalhando com imenso respeito a Espelho, ela comenta a interferên-
ela. (VIANNA, 2019) cia direta do espaço em sua atua-
ção e também na revelação do pró-
O espaço também ajudou a prio conto para si e para a plateia:
revelar as metáforas expressas por
Rosa. Se ao longo do livro o au- A busca interior do personagem, busca de sa-
ber quem era...[eu a] vivenciei muito de per-
tor interioriza sertões e ao mesmo to dentro da criação, naquele espaço que eu
tempo reapresenta o indivíduo ao ficava trancada horas, passando, repassando,
transpassando essa cena. O espaço e o espe-
coletivo e o faz transitar entre os lho, o objeto cênico colocado no espaço, fo-
ram essenciais para a criação. E a relação dos
espaços urbano e rural, o parque espectadores também... Os espelhos faziam a
explicitava tais fluxos. Em Fami- plateia ser multiplicada em onda9. O espaço
trazia uma memória antiga, de passado, de
gerado, por exemplo, que aconte- coisa interna. Pelo reflexo, ele [o espectador]
cia em frente ao casarão, aos pés de era carregado de volta para aquele lugar do
personagem, da pesquisa de quem ele era.
sua escadaria, tendo como cenário (...) Para mim foi muito marcante a criação
mesmo, (d)a possibilidade de fazer esse mo-
sua fachada e um tabuleiro gigan- nólogo, que àquela época não me sentia capaz
te de xadrez, na análise de Verô- de fazer (...) e o João foi uma pessoa muito
firme e apoiador e a assistente de direção foi
nica Mello (2019), era explorada muito forte nesse processo de entendimento
o tempo todo a relação dentro fora [dessa] possibilidade. Aquele lugar me deixa-
va com muito medo e isso foi para a cena no
e o jogo de poder entre o homem sentido positivo. Aquele espaço estava muito
na forma como eu fazia; por ser um espaço
da cidade e o homem do sertão: o meio opressor, muito pequeno, com uma me-
doutor que vem de dentro resol- mória que gritava muito para quem entrava
ali a primeira, a segunda, a terceira vez....
ver a questão posta pelo jagunço aquela memória vinha à tona, era vivenciada
de fora. Conversa cujas tensões se de novo. (MELLO, 2019)
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referências
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Paulo. São Paulo, 01 jan. 1996. Caderno 2, D10, p. 46. Acervo da autora.
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ves. 1995. 30f. Texto teatral não publicado. Acervo da autora.
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RÓNAI, Paulo. Os vastos espaços. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias.
[s. l.]: Ed. Nova Fronteira, [s.d.]. Disponível em: <http://static.recantodasletras.
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ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
160p.
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Abstract
The article discusses the stage production of Primeiras estórias, directed and adapted by
João das Neves from João Guimarães Rosa´s homonimous ouvre, from the point of view
of acting. It covers the relations between cast and director and spans some aspects of the
dialogue between actor and space, due to the interdependence of the staging with both.
Keywords
Resumen
Palabras clave
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A Arte engajada de João das
Neves – o artista-txai e
suas metáforas da coleti-
vidade
Resumo >
Luciana Mitkiewicz
Palavras-chave:
João das Neves. Arte engajada. Artivismo.
A Arte engajada de João das Neves – o artis-
ta-txai1 e suas metáforas da coletividade
Luciana Mitkiewicz2
1
Txai: tratamento usado pelo povo Kaxinawá para designar todos aqueles
que lhes são próximos, seja por parentesco, pelas relações com os membros
da mesma nação ou pela amizade. Literalmente, significa “minha outra me-
tade” (projeto de Yuraiá – o rio do nosso corpo).
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da nossa peça, tão bem espelhava. metáfora para as mentiras que le-
Em Cassandra, percebi tam- vam a outros tantos massacres, os
bém seu gosto pelas metáforas e quais devem-se fundamentalmente
pela utilização de um diacronismo a objetivos econômicos. Mas não
potente para pôr em perspectiva apenas em Cassandra utilizou-se
fatos atuais, dos quais talvez não de metáforas poderosas para abor-
tenhamos dimensão exata pela pro- dar questões sociais prementes. O
ximidade no tempo e no espaço. Último Carro é exemplo clássi-
Fácil percebê-lo já nas três opções co dessa estratégia artística. Nele,
oferecidas para a montagem de for- um trem desgovernado é metá-
matura: Os Bandoleiros, de Schiller fora perfeita do desgoverno mili-
– cuja frase “a lei não deu ao mun- tar que tomou o poder em 1964.
do nenhum homem de grandeza, Do grego meta (“passagem
mas a liberdade incuba e faz nas- sobre”, ou “ida de um lugar a ou-
cer colossos e extremados” resume tro”) e phorein (“mover” ou “carre-
bem seu desejo por tratar, no tea- gar”), a metáfora tem a capacidade
tro, das injustiças sociais afiança- de nos transportar de um ponto a
das pela lei – Cassandra, de Christa outro, permitindo-nos atravessar
Wolf, em face das espúrias moti- fronteiras que, de outro modo, es-
vações para as mais diversas guer- tariam fechadas para nós, afirma
ras, e Pedro Páramo, um memen- Campbell (2001). Fronteiras tem-
to mori a opressores e oprimidos. porais e espaciais. A reflexão per-
Percebi que as metáforas de manente sobre o lugar teatral, o
João têm um propósito fundamen- espaço cênico a abrigar, com vistas
tal: nos transportar ao passado a objetivos específicos a cada mon-
para fundar utopias; não nostal- tagem, ator e público, era outra ca-
gias ou quimeras. Ao contrário, nos racterística marcante do trabalho
fazem ver aquilo que ainda não é. de João das Neves. Para O Último
“Plantar no espectador sementes” Carro, colocou a plateia no centro
era seu objetivo, como explicita- do espaço e fez os vagões de trem
do no texto do programa de Um envolverem os espectadores. A me-
Homem é um Homem, de B. Bre- táfora se completava espacialmen-
cht, dirigida por ele em 1974. Em te: não só os que se balançavam nos
Cassandra de João das Neves, as trens suburbanos lotados seriam
pretensas motivações que conduzi- atingidos pelo desgoverno em cur-
ram à guerra de Tróia servem de so, mas toda a população. Em Cas-
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5
Trecho retirado do site da Ocupação João das Neves, realizada pelo Itaú Cultural, São Paulo, em 2015. Disponível em:
<https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/joao-das-neves/alteridade/>. Acesso em: 24 jan. 2019.
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sua arte, algo confrontado com tal como o da Ileana, você se vê obrigado a se
confrontar com a ideia dela e, ao mesmo tem-
o imperativo documental deste po, co-participar não só dessa ideia, mas de
trabalho, que, muitas vezes, acabava uma criação artística que estava dentro desse
olho do furacão. Então, isso foi muito desafia-
mostrando-se cru, raso, frente à dor, né? (NEVES, 2018, p. 281-282).
necessidade de se abarcar as muitas
camadas e contradições do tema. Esse questionamento tam-
A necessidade de criarmos bém me abalou muito, ainda mais
sobre bases documentais foi por se tratar de um desafio gran-
colocada pela consultora teórica de também a um artista tão ex-
do processo, Ileana Diéguez, sendo periente e compromissado, como
de fato vivenciada na prática, fosse João das Neves, na luta contra as
pela impossibilidade concreta de diversas desumanidades que nos
representar violência de tal nível, afligem como sociedade huma-
fosse pela confrontação ética com na. Era outubro de 2017, quan-
o tema, que nos impedia qualquer do fui à Lagoa Santa entrevistá-
tentativa de ficcionalização. A todo -lo para minha tese de doutorado
o momento, Ileana nos colocava (DE SOUZA, 2018). Nessa ocasião,
uma questão central: para que João deu o seguinte depoimento:
serve a arte? Pergunta que calou É preciso que a metáfora exista, é preciso que
fundo em todos nós, obrigando- exista acima dos fatos reais a Arte, porque é
ela que vai fazer você transcender, percebe?
nos a repensar velhas e arraigadas Por mais simples a cena, não simples no sen-
formas de fazer teatro. tido da coisa rasa, mas simples no sentido de
mostrar que na simplicidade está a profun-
didade das coisas, né? Tem um poema do
Então, para que é que serve esse negócio? Era Drummond, muito bonito e muito simples,
a pergunta que estava sempre na cabeça da em que ele fala o que estava acontecendo em
gente, né? Não vai ter nenhuma outra con- Itabira, que era a cidade dele, que é a capa-
sequência? Tem consequência? Obra de arte cidade destruidora das mineradoras. Esse
tem alguma função além de ter uma função poema foi escrito há anos e que cabe perfei-
estética? A Ileana era muito descrente em re- tamente à tragédia de Mariana e a outras tan-
lação a isso [...]. E esse questionamento que tas tragédias das barragens. E esse poema do
estava dentro dela e que passou para nós foi Drummond não fala dessa coisa, [...] mas ele
muito útil, porque também nós nos questio- transcende à sua época, ao seu tempo, a essa
namos muito. No meu caso, por exemplo, eu situação, por ser uma obra de arte. (NEVES,
não tenho vinte anos, nem trinta, eu tenho 2018, p. 282)
oitenta. Então, chegar a essa altura da minha A Ileana não via a obra de Arte como uni-
vida, tendo feito teatro o tempo inteiro, tendo camente uma obra de Arte, ela via qualquer
feito desde muito jovem a opção pelo teatro, atividade artística como instrumento de ati-
não pelo teatro em si, mas pelo que o teatro vismo. Isso é errado. Isso é raso, porque não
podia significar de elemento modificador da deixa nada para as pessoas, só deixa para as
sociedade [...]. Então, quando, de repente, pessoas que estão convencidas daquilo, que
você chega aos oitenta anos e encontra um sabem das coisas, digamos assim. (NEVES,
questionamento tão bem embasado e tão bru- 2018, s/p)8
8
Trecho de entrevista não publicado.
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9
Entrevista realizada por Skype, em jul. 2018.
10
Transcrição de parte do depoimento registrado em vídeo de João das Neves para a Ocupação João das Neves, realizada
pelo Itaú Cultural, São Paulo, em 2015.
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referências
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pação João das Neves. Itaú Cultural, São Paulo, 2015a. Teaser. Disponível em:
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Mitkiewicz. In: DE SOUZA, Luciana Mitkiewicz. Habitar a imagem e provocar a
matéria: a imaginação colaborativa no processo de criação dos espetáculos Banho
& Tosa e Bonecas Quebradas. 2018. 440f. Tese (Doutorado em Artes). Instituto
de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 27 ago. 2018.
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______. Identidades. In: Itaú Cultural, Ocupação João das Neves, Aba Alterida-
de, 2015b. Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/ocupacao/joao-das-
-neves/alteridade/>. Acesso em: 24 jan. 2019.
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Abstract
From texts, videos and two interviews - with João das Neves and Ileana Diéguez - this
article presents a series of highlights of the artist’s works, in which I participated as an
actor, idealizer, producer and/or co-author, as well as a reflection on points of resonance
and dissonance between the so-called engaged art, as he understood and practiced, and
what we now call artivism.
Keywords
Resumen
A partir de textos, videos y dos entrevistas – una con João das Neves y otra con Ileana Di-
éguez – este trabajo hace un recorrido de características notables en las obras del artista,
de las cuales he participado como actriz, idealizadora, productora y/o coautora, y una re-
flexión sobre los puntos de resonancia y disonancia entre el llamado arte comprometido,
tal como él lo entendía y practicaba, y lo que hoy llamamos artivismo.
Palabras clave
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João das Neves e a ética da
alegria
Resumo >
Suzi Frankl Sperber
Palavras-chave:
João das Neves. Grupo Opinião. “O último car-
ro”. Brecht. Gestus. Trickster.
João das Neves e a ética da alegria
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2
Vale a pena apresentar a maneira como Brecht define, em tópicos, “Dialética e estranhamento”, título da enunciação que
segue:
“1 Estranhamento como compreensão (compreender - não compreender - compreender), negação da negação.
2 Amontoamento das incompreensões, até que a compreensão apareça (transposição da quantidade em qualidade).
3 O particular no geral ([apresentar] o processo em sua especificidade, unicidade, daí: tipicidade).
4 Momento do desenvolvimento (a passagem de certos sentimentos em outros sentimentos de natureza contrária; crítica
e sensibilidade [Einfühlung] reunidos).
5 Contradição ([o oposto de] para este homem: em tais circunstâncias, tais serão as consequências da ação!)
6 Um compreendido a partir do outro (a cena, semanticamente independente, é redescoberta em um sentido parcialmente
diferente na sua justaposição e relação com outras cenas).
7 O salto (saltus naturae) corresponde a um desenvolvimento épico por saltos.
8 Unicidade dos contrários (o oposto é buscado no único, mãe e filho - em mãe - exteriormente semelhantes, lutam um
contra o outro por causa do salário).
9 Praticabilidade do conhecimento (unidade de teoria e prática).”
(In: BRECHT, Bertolt. Gesammelte Werke 15. Schriften zum Theater1. Neue Technik der Schauspielkunst etwa 1935-1941.
Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1967, p. 360-1. Trad. do trecho citado por Suzi Frankl Sperber.)
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das Neves, que não pode e não deve João das Neves reconhece que
parar aí, porque, se estivesse vivo, seres humanos e mundo não são
ele estaria afetado pelas circunstân- imutáveis. Ou não estão condena-
cias políticas – que sempre compro- dos à imutabilidade. Não é novo,
metem ou atuam sobre economia, mas é algo fundamental em tempo
cultura, educação - e a população - e de mentiras. Porque as mentiras
ele ocuparia o seu lugar de intelec- congelam, imobilizam tudo – de
tual e artista instigante e instigador. mentira e com mentira. As perso-
O momento exige que se re- nagens de Das Neves se transfor-
flita mais sobre quais foram as es- mam. Ou tem condições de trans-
tratégias de estruturação de suas formação. Daí a estrutura quer
peças que indiciam tomadas de dramatúrgica, quer da encenação
consciência e a apresentação de necessitarem de tensão, de cur-
caminhos possíveis em tempos de vas e saltos. E daí reconhecer que
mentiras e violências contra os ci- transformações são possíveis a par-
dadãos, como o foi o golpe de 1964 tir do reconhecimento de pontos
(ocorrido em 01 de abril, mas que de partida, de reconhecimento das
foi mentido que tivesse ocorrido circunstâncias reais e, pois, sem-
em 31 de março – por motivos ób- pre com a afirmação da memória.
vios), como foram os tempos de di- Sem a memória, o povo e o público
tadura. Só me interessam o teatro e perdem o referencial de quem são,
as respostas de João das Neves para apaga-se a ideia do outro, é gerado
as circunstâncias em suas peças. o vazio do presente e o apagamento
Pego um esquema contrapon- do futuro. Passando pela negação
tístico entre a forma dramática clás- do passado. Joan-Carles Mèlich, em
sica e a forma épica de teatro (tabela 1): “Memoria y esperanza”, escreveu:
Tabela 1
Forma dramática de teatro Forma épica de teatro
O homem é imutável. O homem se transforma e transforma.
Tensão construída em relação ao desenlace da
Tensão em relação ao andamento.
peça.
Uma cena existe em função da seguinte. Cada cena existe por si mesma.
Os acontecimentos decorrem linearmente. Decorrem em curvas.
Natureza não dá saltos - Natura non facit saltus. Natureza dá saltos - Facit saltus.
O mundo tal como é. O mundo tal como se transforma.
O homem como deve ser. O que é imperativo que ele faça.
Seus impulsos. Seus motivos.
O pensamento determina o ser. O ser social determina o pensamento.
(VERBETE “Teatro…, 2019, [s/p.])
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3
“Una cultura amnésica es una cultura que conduce inevitablemente a una profunda crisis de identidad y de alteridad,
porque en la amnesia no solamente nos olvidamos de quiénes somos, sino también de los otros. Sin el otro no hay ni pasa-
do, ni presente, ni futuro. Sin el otro no hay tiempo. Por eso el otro es el tiempo que nos remite a un pasado que no puede
olvidarse y a un futuro que todavia no existe, pero que algún dia “nacerá”.”
4
“Notícias falsas (fake news) são uma forma de imprensa marrom que consiste na distribuição deliberada de desinforma-
ção ou boatos via jornal impresso, televisão, rádio, ou ainda online, como nas mídias sociais. Este tipo de notícia é escrito
e publicado com a intenção de enganar, a fim de se obter ganhos financeiros ou políticos, muitas vezes com manchetes
sensacionalistas, exageradas ou evidentemente falsas para chamar a atenção. ” Aliás, manchetes ou “fotos”, manipuladas
conforme os interesses e que, como “fotos”, se apresentam como registro da realidade – falsa, mentirosa, tergiversada.”
(VERBETE “Notícias…, 2019, [s/p.])
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referências
BRECHT, Bertold. Estudos Sobre Teatro. Tradução Fiama Pais Brandão. Rio de
Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1978.
BRECHT, Bertold. 100 Poesias de Bertold Brecht. 1935. Disponível em: <ht-
tps://www.teatronaescola.com/index.php/biblioteca/downloads-gratuitos/
item/118-100-poesias-de-bertold-brecht file:///C:/Users/User/Downloads/Ber-
toltZBrechtZ-Z100ZPoesias.pdf>. Acesso em: 28 dez. 2018.
MESQUITA, Cláudia. João das Neves: o documento como matéria teatral. Re-
vista Vintém, São Paulo, SP, v. 3, p. 22-24, 1999.
SILVA, Carlos Alberto. Gestos e gestus. In: Simpósio da International Brecht So-
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ciety SIBS, 14, 2013, Porto Alegre. Anais das Comunicações. Vol.1. Porto Alegre:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2013.
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Abstract
Resuming the importance of the playwrighter, director and actor João das Neves to the
Grupo Opinião (Opinião Group) and its aesthetic proposal. Observing The Last Car (O
último carro) and Brechtian aspects in the work, as well as the tension, curves and jumps
in its staging.
Keywords
João das Neves. Grupo Opinião (Opinião Group). “O último carro” (“The Last Car”).
Brecht. Gestus. trickster.
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Conversas de vagalume: ima-
gens de convívio com o po-
eta encenador
Resumo >
Mara Vanessa Dutra
Palavras-chave:
Arte. Arte em cena. Teatro e cidadania. João das
Neves.
Conversas de vagalume: imagens de convívio
com o poeta encenador
dos caminhos da arte, falar de uma sua filha Maria João. Uma ternura.
montagem que tinha vindo do Acre Foi um período no qual nos
e sido encenada no Parque Muni- aproximamos muito. Ele estava
cipal, chamada Tributo a Chico mergulhado em seu trabalho de
Mendes. Ela estava extasiada com pesquisa junto aos Huni Kuin (Ka-
a força poética daquela montagem e xinawá), do qual resultou o belo
falava com brilho nos olhos do tra- texto Yuraiá, o Rio do Nosso Cor-
balho de João das Neves, que havia po. Um texto que não foi encenado,
formado o grupo Poronga com ato- embora tenhamos feito, ao longo
res e não atores acreanos e que fazia dos últimos anos, muitas tentativas
um teatro vindo da floresta, ocu- de captação de recursos para isso.
pando espaços não convencionais. Lembro que quando li o texto pela
Por coincidência, eu estava primeira vez, comentei: isso pare-
voltando para o Brasil para ir tra- ce cinema! Como você vai colocar
balhar com a Aliança dos Povos isso em cena? Ele riu, e disse: deixa
da Floresta através da Comissão comigo... é teatro. Ele queria fazer
Pró-Índio do Acre. Em Rio Bran- uma encenação incluindo indígena
co, escutei o burburinho sobre o Huni Kuin, construindo um kupi-
novo trabalho de João das Neves, xawa (casa indígena) e sem cobrar
Caderno de Acontecimentos. Esse entrada. Foram iniciadas algu-
sim, consegui assistir e ficou gra- mas parcerias nesse sentido, mas a
vado na memória. Uma lindeza. obra não conseguiu ser encenada.
Reviravoltas da vida e, vol- Novo intervalo, eu em traba-
tando de um trabalho de campo lho de campo e quando volto a Belo
no Juruá, eu fui passar uns meses Horizonte, Titane e João tinham co-
em Rio Branco, na casa de Claris- meçado a aliança, o casamento que
se Baptista e Socorro Calixto, e os abrigou até o final. Tivemos um
quem estava lá? João das Neves, momento ímpar na Bolívia, onde eu
também passando uma tempo- morava na época e para onde con-
rada. Era uma casa gostosa, com seguimos levar um show de Tita-
uma varanda nos fundos voltada ne; João era o diretor de cena do
para um quintal onde as manguei- espetáculo e cuidava de tudo. Fo-
ras reinavam. Nessa varanda, lem- ram muitas dores de cabeça, tanto
bro de João fazendo um por um as reais, por causa da altitude, como
uma série de boizinhos enfeitados, as metafóricas, por problemas das
para o aniversário de um ano de mais distintas ordens, mas tudo
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dar comida para as galinhas, cami- que ele criava e recriava, a cada dia.
nhar, tocar piano (ah, os momentos Morando na Bahia, encontro
em que ele sentava ao piano e to- rastros de João. A diretora e profes-
cava, tocava, com toda alma...), ler, sora de teatro Maria Eugênia Milet
cozinhar... Uma vez por semana ele me fala dele com carinho e admi-
fazia almoço para o coletivo, um ração, lembrando o período em que
macarrão sempre com duas opções o ICBA, Instituto Cultural Brasil-
de molho, deliciosas. E toda noite, -Alemanha, transformou-se no lo-
lá estávamos nós, tomando nos- cal por excelência da resistência, da
so vinho e as sopas maravilhosas, criatividade e da trincheira dos ar-
todas criadas por ele. Nas noites tistas e das artes naqueles anos de
fresquinhas ou frias de Minas, era chumbo da década de 70, sob a ges-
um ritual precioso. Ali ficávamos, tão de Roland Schaffner2, que cita
entre a sopa, o vinho e o queijo, esse período e a parceria do ICBA
olhando o quintal e conversando. com João das Neves em seu livro Me-
Ah, os livros do João! Sua moráveis Paixões Transculturais.
biblioteca é um caso à parte. Ele Sobre o que significou aquele perí-
sempre estava lendo alguma coisa odo e o reduto do ICBA, esse texto
e tinha algo para me apresentar, do blog Anos 70 Bahia é revelador:
alguma preciosidade da literatura,
O Instituto Cultural Brasil-Alemanha (ICBA,
que buscava com precisão entre as hoje Instituto Goethe) era um reduto de pura
prateleiras onde os livros convi- arte, uma referência na cultura da Bahia em
pleno período da ditadura. Localizado em
viam com artesanato de várias par- ponto estratégico no Corredor da Vitória, fir-
tes do Brasil e do Mundo, em arran- mou-se nos anos 70 como território livre da
dança, teatro, música, cinema. O bar fervilha-
jos que agradavam imediatamente va de gente interessante. Dirigido com brilho
e coração por Roland Schaffner, o ICBA era a
os olhos e aqueciam o coração de casa do Intercena, da Banda do Companheiro
quem fosse com ele em busca de um Mágico, da Jornada de Cinema, do Sexteto do
Beco e do Baiafro de Djalma Correia, aglu-
determinado texto, autor, fragmen- tinando as tribos e gerando acontecimentos
to. Naquele período, lembro muito participativos com total liberdade de expres-
são. Não havia censura nesse espaço: por ser
de João, pelas manhãs, sentado em território com status estrangeiro, dava certa
segurança. A Jornada de Cinema, liderada
seu quartinho de escrita, que fica- por Guido Araújo, começou no ICBA. Tam-
va no fundo do quintal, dialogan- bém foram criadas em seu território as coo-
perativas artísticas, núcleo de vídeo, quadri-
do com Emily Dickinson. O artista nhos, formação de ator e música eletrônica.
mergulhado em seu cotidiano, todo (2016, s/p.)
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referências
ICBA, território livre da arte. Anos 70 Bahia, 18 jun. 2016. Disponível em:
<http://anos70ba.blogspot.com/2016/06/icba-territorio-livre-da-arte.html>.
Acesso em: 29 jan. 2019.
NEVES, João das. Aos que me amam. 2018. Disponível em: <https://
www.facebook.com/1033548796685043/photos/aos-que-me-amameu-
-permane%C3%A7ocom-o-azul-das-montanhas-no-horizonteeu-permane%C3
%A7ono-a/2065005496872696/ >. Acesso em:29 jan. 2019.
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Abstract
Memories of moments of coexistence with the poet, playwright and director João das
Neves.
Keywords
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Maria do Perpétuo Socorro Calixto
Resumo >
Palavras-chave:
Teatro. Memória. Paixão. Morte. Experiência.
Viagem ao fundo do rio
sua mega população, um trisco de dele, com suas famílias, ficava feliz
percentual lota um pequeno teatro. em ver seus parentes e queridos
Em Rio Branco, João das Ne- conhecidos ou amigos migrarem
ves era o ‘João’, diretor convidado para a cidade. Ali, pelo menos, po-
que chegou à cidade para minis- diam estudar e entrar em um fila
trar oficinas de teatro e logo após de atendimento de saúde. Inclusive
voltaria ao Rio de Janeiro. Não casar no civil, no papel ‘passado’,
voltou. Ficou, apaixonou-se pela novidade, inclusive para meus pais.
cidade, pelo seu povo e lá teve sua Se Rio Branco, capital, não era
primeira filha – Maria João - e fácil para quem nela morava ou fi-
“adotou” muitos outros filhos que xava residência, viver nos seringais,
começaram a fazer teatro com ele. hoje, quase inexistentes, era bem
Rio Branco não é uma cida- pior. Longe da capital, eram luga-
de fácil; além de distante, e exata- res ermos aonde se chegava apenas
mente pela distância geográfica, de barco. As viagens demoravam
alguns artistas e, indiretamente, dias, pois o transporte não se ser-
pessoas comuns, se fazem resisten- via de estradas e os rios sempre de-
tes ao estrangeiro. Nas décadas de sembocavam nos dois afluentes do
1970 e 1980, essa resistência dava- Amazonas: o Purus e o Juruá. Logo
-se, ou porque sentiam medo e in- era comum pessoas que moravam
segurança diante do aumento de- no vale do Purus não conhecerem
senfreado da violência gerada pela as que moravam no vale do Juruá
ocupação das terras devolutas nas e seus moradores serem identifica-
periferias dos centros urbanos, re- dos pelo nome do rio ao qual esta-
sultado da expulsão de milhares vam perto. Logo, nascer no Juruá,
de famílias dos seringais acreanos no Moa, no Purus, no rio Breu etc.,
desde 1960, ou porque essa mi- eram nossas bússolas geográficas3.
gração diminuía os espaços de vi- E João das Neves mergulhou nessa
vência na cidade. Ou tudo junto.2 referência, ao escolher o rio Acre
De resto, a população, em sua para que fossem jogadas parte de
maioria, não sentia negativamen- suas cinzas. Foi um filho do rio Jor-
te os impactos desse processo mi- dão, ou Yuraiá, para os índios Ca-
gratório, pois ela própria, agente xinauás, quando escreveu, ao longo
2
Para mais informações, o leitor pode consultar: CALIXTO, Maria do Perpétuo Socorro. A Cidade encena a Floresta. Rio
Branco: EDUFAC, 2005.
3
Expressões utilizadas por Leandro Tocantins em O rio comanda a vida. In: SILVA, Laélia Rodrigues da Silva. Procura-se
uma Pátria: a literatura no Acre (1900-1990). Porto Alegre: PUC-RS, 1996.
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4
A primeira, esposa de João das Neves. A segunda, crítica de teatro e autora do prefácio do mesmo livro.
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5
Correria: Termo utilizado na região significando matança organizada dos grupos indígenas pelos seringalistas. In: SILVA,
Laélia Rodrigues da Silva. Procura-se uma Pátria: a literatura no Acre (1900-1990). Porto Alegre: PUC-RS, 1996.
6
Foto publicada na dissertação de Mestrado de Valéria Barbosa Ferreira Silveira. Universo oral do seringueiro acreano no
início do século XX: Discurso e Memória. 2011. Dissertação (Mestrado em Letras- Linguagem e Identidade) - Universida-
de Federal do Acre. Orientadora: Maria do Perpétuo Socorro Calixto Marques.
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7 As peças que possuo em meu acervo são da época em que integrava o Grupo Poronga. Digitadas, enviei ao João das Ne-
ves e a sua esposa Titane para integrar o acervo da exposição no Itaú Cultural e ao acervo da UFMG. Utilizei-as para fins
acadêmico e com autorização do autor, quando em vida.
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Eu permaneço
Nos anos luz de estrelas
Que não mais existem8
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referências
BRECHT, Bertold. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
MARQUES, Maria do Perpétuo Socorro Calixto. Teatro de João das Neves: Opi-
nião na Amazônia. 1. ed. Uberlândia: Edufu, 2016.
NEVES, João das Neves. Um palco chamado floresta. Revista Palavra, Belo Ho-
rizonte, Ano 01, n. 05, p. 74-76, ago. 1999.
______. Yuraiá, o rio de nosso corpo. Rio Branco-Acre, 1992. Não publicado.
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Abstract
This text results more from a feeling that arose after João das Neve’s death than from an
academic analysis of his work. A feeling that triggers an emotive memory concerning the
experience of having worked with him and been among the people that integrated the
group that stayed in his house, in Lagoa Santa (MG/BR), during the days that preceded
his passing. This memory made me look for some reading and experience contexts from
Acre, some of which have inspired João das Neve’s texts as, for instance, Yuraiá - the river
of our body (1992).
Keywords
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Falando nos palcos como nas
ruas: a prosódia brasilei-
ra no teatro de Nelson Ro-
drigues
Adriano de Paula Rabelo
Resumo >
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ram depois deles no teatro e no ro- articulista nas mais diversas seções
mance de seus respectivos países. dos periódicos para os quais tra-
balhou, leitor assíduo de folhetins
Falando nos palcos como nas e autor de alguns deles, homem de
ruas televisão e figura conhecida nos
Uma leitura do teatro com- meios populares do Rio de Janeiro
pleto de Nelson Rodrigues com de seu tempo, o próprio métier de
foco no modo como seus persona- Nelson Rodrigues lhe proporcio-
gens se expressam revela uma ri- nou um profundo conhecimento da
quíssima exploração da linguagem linguagem falada no cotidiano do
coloquial brasileira. Toda sorte de país, muito especialmente aquela
coloquialismos, ditos populares, mais informal. É interessante fazer
clichês linguísticos, gírias, frases um levantamento e apresentar uma
feitas, subentendidos, tabuísmos, amostragem dos principais recur-
interjeições, insultos, sotaques, es- sos utilizados por ele desde o início
trangeirismos, desvios, tonalida- da década de 1940, em suas peças.
des compõem as falas de seus per- Todas as passagens citadas se en-
sonagens. Ele chegava a defender contram na edição de 2003 do Tea-
a exploração plástica do “erro” de tro Completo, publicada no Rio de
português, pois, a seu ver, “nunca Janeiro pela editora Nova Aguilar.
se falou tão errado, nem se escre-
veu tão errado. Mas, coisa curio- Orações incompletas com
sa. Talvez por isso mesmo a lín- subentendidos
gua brasileira ganhou plasticidade, Na linguagem coloquial co-
sim, lucramos em música verbal” tidiana é muito comum que, numa
(RODRIGUES, 1996, p. 115). conversação, o falante diga as coisas
A incorporação da expressão pela metade, sendo que o contexto
linguística brasileira pela literatu- deixa bastante claro o sentido com-
ra, aspiração de escritores como pleto da elocução. No entanto, isso
José de Alencar e Mário de Andra- é extremamente raro na literatura,
de, encontrou no autor de O Bei- uma vez que o escritor precisaria
jo no Asfalto um de seus epítomes. alongar-se muito para descrever e
Filho de um jornalista e dono de fixar o contexto que tornaria clara
jornal, tendo trabalhado nas reda- essa expressão pela metade. Nelson
ções desde a adolescência, atuando Rodrigues, no entanto, conseguin-
como repórter de polícia, redator e do afixar o contexto muito conci-
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Todos os exemplos e trechos de peças apresentados no decorrer do artigo foram retirados de: RODRIGUES, Nelson.
Teatro Completo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.
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nha medo de fazer largo uso do ad- pronomes retos são utilizados para
jetivo num tempo em que a litera- complementar o sentido de verbos,
tura dita “sofisticada” o abominava: pronomes objetivos indiretos são
Falsíssima, divertidíssima, utilizados em lugar de pronomes
bravíssimos, chatérrimo, sabidíssi- diretos, verbos não concordam com
ma, rapidíssima, treinadíssimo, ho- sujeitos, proliferam-se reduções,
nestíssima, viuvíssima, bestíssimo, corruptelas, redundâncias. Exata-
engomadíssimo, esganiçadíssimo, mente como na fala cotidiana e in-
Maria Santíssima, excitadíssimo, formal inclusive dos mais cultiva-
grosseiríssimo, castíssimo, exalta- dos. Sua adequação no contexto em
díssimo, esquisitíssimo, intrigadíssi- que são utilizados é tamanha que
mo, fabulosíssimo, indecentérrimo. quase nem são percebidos numa
leitura corrente ou em representa-
Desvio expressivo da gramática ções das peças. Algumas vezes che-
normativa gam a criar efeitos cômicos. Apare-
Seja como forma de acolhi- cendo algumas dezenas de vezes no
mento da linguagem das ruas em conjunto das peças, aqui estão al-
seu teatro, seja como um elemen- guns exemplos mais significativos:
to de composição de personagens
- Quedê? (Anti-Nelson Rodrigues, Álbum de
socialmente desprivilegiados em Família, Boca de Ouro e O Beijo no Asfalto,
situação de informalidade, é mui- pp. 478, 545, 890, 945)
- O doutorzinho pode ser bão. (Anti-Nelson
to comum que Nelson Rodrigues Rodrigues, p. 494)
reproduza, nas falas de suas pe- - Me arresponsabilizo. (Álbum de Família, p.
527)
ças, desvios da gramática normati- - Tu me paga. (...) Tu é ruim. (Álbum de Fa-
mília, p. 557)
va bastante correntes no Brasil. A - Precisa que eu lhe acompanhe? (Anjo Ne-
expressividade dessas formas em gro, p. 575)
- Lhe levo alguma coisa, madame? (Senhora
sua dramaturgia é mais uma con- dos Afogados, p. 714)
firmação do axioma linguístico de - Té logo! (A Falecida, p. 753)
- Deixa ele! (Os Sete Gatinhos, p. 838)
que cada situação particular requer - ...eu nunca “sub” quem foi minha mãe.
(Boca de Ouro, p. 904)
uma adequação do discurso. Nas - A falecida morreu. (Boca de Ouro, p. 904)
situações em que tais desvios da - Então, meus para-choques! (Boca de Ouro,
p. 930)
norma padrão se apresentam, ditos - Nunca vi home tão macho. (A Serpente, p.
por quem são ditos, eles são perfei- 1121)
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e reagir por impulso, movidos por de 1940 a 60, termos dessa língua
paixões e emoções extremas, natu- também se apresentam nas falas
ralmente proferem muitas inter- dos personagens do dramaturgo.
jeições. A maioria delas são mui- Algumas vezes tais palavras são
to típicas da linguagem informal. modas linguísticas de época, ou-
Algumas se tornaram pouco usu- tras vezes são forma de distancia-
ais hoje em dia, como revelam al- mento social, como se vê abaixo:
guns itens da amostragem abaixo:
- Darling! Darling! (Valsa N°. 6, p. 418)
- Speaker (um dos personagens de Álbum de
- Cáspite! (Viúva, porém Honesta, pp. 404, família)
435, 436, 437, 438, 457, 458 e 464) - Good-bye (Álbum de Família, p. 522), bye-
- Batata! (Viúva, porém Honesta, pp. 436 e -bye (A Falecida, p. 736)
448) - mise-en-scène (Álbum de Família, p. 532)
- Carambolas! (Viúva, porém Honesta e A Fa- - doublée (Álbum de Família, p. 545)
lecida, pp. 439, 459 e 743) - Au revoir (Viúva, porém Honesta, p. 462)
- Ora, pipocas! (Viúva, porém Honesta e A - boutade (Boca de Ouro, p. 912)
Falecida, pp. 440 e 775), Ora veja! (Viúva, - Flash (O Beijo no Asfalto, p. 951)
porém Honesta e A Falecida, pp. 450 e 744), - rendez-vous (Toda Nudez será castigada, p.
Ora essa! (Álbum de Família e Perdoa-me por 1057)
Me Traíres, pp. 567 e 813), Ora, que pinoia!
(Senhora dos Afogados e Perdoa-me por Me
Traíres, pp. 715 e 795), Ora, bolas! (A Faleci-
da, p. 743), Ora viva! [ao encontrar alguém] Sotaques
(Perdoa-me por Me Traíres, p. 803), Ora, vá! No teatro de Nelson Rodri-
(Boca de Ouro e Bonitinha, mas Ordinária,
pp. 893 e 1036) gues, há a presença de alguns per-
- Ih! (Doroteia, p. 627), Oh! (Doroteia e A Fa- sonagens estrangeiros, quase sem-
lecida, pp. 628 e 744), Ah! (Boca de Ouro),
Chi! (A Falecida, 736), Oba! (A Falecida, p. pre parte do mundo da prostituição
738), Uai! (A Falecida, p. 740), Ué! (A Fale-
cida, p. 742), ...hem? (A Serpente, p. 1120), ou com ele relacionado, que falam
Puxa! (Perdoa-me por Me Traíres, p. 783) português com sotaque. Em geral
- Francamente! [reprovação] (Boca de Ouro,
p. 906) eles apresentam problemas de con-
cordância de masculino e feminino
Palavras e expressões do inglês e e de flexão de verbos, além de pro-
do francês nunciarem o “r” gutural à maneira
Sendo a cultura brasilei- francesa. Como as peças se pas-
ra das classes médias e alta muito sam no Rio de Janeiro, muitas de-
permeável a influências estrangei- las retratando as classes populares,
ras, a linguagem do cotidiano tem imagina-se que seus personagens
assimilado palavras estrangeiras, falam a variante carioca do portu-
muito especialmente aquelas ad- guês brasileiro, marcada pelo “s”
vindas do inglês. Porém, como a chiado. Ao menos em um momento,
influência francesa ainda era re- o dramaturgo reproduz, na escri-
lativamente presente nas décadas ta, uma palavra pronunciada dessa
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- a maior barbada (O Beijo no Asfalto, p. 982) que pratica aborto] (Perdoa-me por Me Tra-
- É de lascar! (Bonitinha, mas Ordinária, p. íres, p. 794)
995)
- um puxa-saco (Bonitinha, mas Ordinária, p.
997) Frases surpreendentes
- não apita [não tem vez de opinar ou decidir]
(Bonitinha, mas Ordinária, p. 1001) Nelson Rodrigues era um
- no peito [num ímpeto, sem pensar] (Boniti- grande frasista, de modo que os
nha, mas Ordinária, p. 1002)
- e fizeram miséria [fizeram de tudo] (Boniti- aforismos espalhados por suas
nha, mas Ordinária, p. 1004)
- faz isso com o pé nas costas (Bonitinha, mas obras circulam hoje por antologias
Ordinária, p. 1042) e alguns deles são repetidos no co-
- E eu fui para cucuia! (Toda Nudez Será Cas-
tigada, p. 1053) tidiano brasileiro como se fossem
- a senhora me recebe com quatro pedras provérbios populares. Muitas vezes
(Toda Nudez Será Castigada, p. 1076)
- Isso aqui não é a casa da mãe Joana! (Toda ele colocou frases de impacto na
Nudez Será Castigada, p. 1087)
boca de seus personagens. O efeito
é quase sempre de estranhamento
Comparações ou metáforas diante de uma sentença insólita,
esdrúxulas ou surpreendentes sensacionalista, bem-humorada.
Como parte de sua explo- Elas proliferam em seu teatro e aqui
ração do grotesco, Nelson Rodri- se apresenta uma pequena amostra:
gues frequentemente faz compa-
rações ou se utiliza de metáforas - Só acredito em mulher honesta com úlcera.
(Viúva, porém Honesta, p. 454)
muito surpreendentes, capazes de - Bobo é aquele que ama sem esparadrapo.
deixar o leitor/espectador de suas (Viúva, porém Honesta, p. 469)
- O sexo é uma selva de epiléticos. (Anti-Nel-
peças perplexo ou de arrancar-lhe son Rodrigues, p. 495)
o riso. Note-se que essa propensão - Só os imbecis têm medo do ridículo. (Anti-
-Nelson Rodrigues, p. 508)
a comparações e metáforas extra- - Teu hálito é bom demais para uma mulher
honesta. (Doroteia, p. 636)
vagantes também é muito comum - Espinha em mulher é bom sinal! Não acredi-
na linguagem do cotidiano. Eis to em mulher de pele boa. (Doroteia, p. 644)
- O verdadeiro defloramento é o primeiro
alguns exemplos em suas peças: beijo na boca. (Perdoa-me por Me Traíres, p.
809)
- Ele deu arrancos antes de morrer, como um - A adúltera é mais pura porque está salva do
cachorro atropelado. (Vestido de Noiva, p. desejo que apodrecia nela. (Perdoa-me por
360) Me Traíres, p. 812)
- Essa cidade tem uma imaginação de balde - Amar é ser fiel a quem nos trai. (Perdoa-me
de ginecologista. (Viúva, porém Honesta, p. por Me Traíres, p. 813)
453) - Eu sou o cínico da família. E os cínicos en-
- mais sujo do que pau de galinheiro (Anti- xergam o óbvio. (Toda Nudez Será Castigada,
-Nelson Rodrigues, p. 485; O Beijo no Asfal- p. 1055)
to, p. 945)
- Sou uma múmia, com todos os achaques das
múmias. (Anti-Nelson Rodrigues, p. 506) Imagens poéticas
- És meiga como uma prostituta! (Anjo Ne- O naturalismo do dramatur-
gro, p. 622)
- fazedor de anjos [médico ou outra pessoa go costuma ser temperado, aqui
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e ali, pela evocação de imagens - diz isso, apenas uma palavra basta: “Cabrão”.
Só, nada mais! (Toda Nudez Será Castigada,
poéticas que contrastam com o p. 1096)
prosaísmo das situações e da lin-
guagem geralmente expostos em Esse levantamento dos prin-
seu teatro. Elas costumam surgir cipais recursos linguísticos utiliza-
como pérolas na lama da degra- dos por Nelson Rodrigues em suas
dação humana exposta por ele: peças, a fim de recriar em cena a
realidade brasileira “como ela é”,
- Meus gritos batiam nas paredes como pássa-
ros cegos. (Valsa N°. 6, p. 400) revela a extensão e a profundida-
- Chovia, sim... E quando chove em cima das de da revolução promovida por ele
igrejas, os anjos escorrem pelas paredes...
(Valsa N°. 6, p. 406) no teatro brasileiro. Mesmo a lite-
- Num enterro sempre sobra uma flor. (Anjo
Negro, p. 590) ratura brasileira em sentido mais
- Ah, se visses os ventos ajoelhados diante da amplo, embora tenha superado
ilha! (Senhora dos Afogados, p. 697)
- Então fica no ar um grito em flor. (Senhora todos os resquícios do preciosis-
dos Afogados, p. 706) mo parnasiano do início do século
XX e tenha se utilizado majorita-
Metalinguagem riamente de uma linguagem mar-
Por fim, em muitas ocasi- cada por uma simplicidade ela-
ões os personagens de Nelson Ro- borada, só muito raramente têm
drigues demonstram uma clara assimilado a linguagem do cotidia-
consciência da linguagem que fa- no na extensão e na profundidade
lam, a ponto de fazerem observa- realizada por Nelson Rodrigues.
ções de natureza metalinguística. Hoje, passadas quase quatro
Isso ocorre algumas dezenas de décadas da morte dramaturgo, seus
vezes em sua dramaturgia, e aqui personagens continuam a falar com
se apresentam alguns exemplos: todo o frescor da linguagem brasi-
- Esculhambação é a palavra mais feia da lín-
leira atual. Mesmo quando muda-
gua. (Anti-Nelson Rodrigues, p. 478) rem extensivamente os coloquia-
- E você quase não fala. Tudo sai de você aos
bocadinhos como titica de cabra. Fala, rapaz! lismos, as gírias, as frases feitas, os
(Bonitinha, mas Ordinária, p. 1009) tabuísmos, estrangeirismos e cor-
- Mas não fala bonito! (...) Eu não gosto de
homem que fala bonito! (Bonitinha, mas Or- ruptelas que frequentam a nossa
dinária, p. 1021) expressão, a linguagem recriada es-
- Esse nome, não! Não diz essa palavra! Essa
palavra, não! Posso ser vagabunda, ordinária, teticamente pelo escritor brasileiro
tudo o que você quiser. (Bonitinha, mas Or-
dinária, p. 1024) permanecerá vívida em suas peças.
- Essas expressões! (Bonitinha, mas Ordiná- A língua que se desgasta é a que fa-
ria, p. 1024)
- Não fala assim que dá azar! (Toda Nudez lamos aqui, fora da literatura, em
Será Castigada, p. 1055)
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Abstract
Keywords
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Representações renascen-
tistas e góticas na tragé-
dia moderna: uma análise de
A História Trágica do Dou-
tor Fausto, de Christopher
Marlowe
Resumo >
Palavras-chave:
Renascimento. Tragédia. Gótico.
Representações renascentistas e góticas na
tragédia moderna: uma análise de A História
Trágica do Doutor Fausto, de Christopher
Marlowe
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Necromancia
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“The gothic has always been a barometer of the anxieties plaguing a certain culture at a particular moment in history”.
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Abstract
Christopher Marlowe wrote The Tragical Histpry of Doctor Faustus for the English Re-
naissance theatre using the own notions of the modern tragedy, besides adding superna-
tural elements to his work. The presence of fantastic features on Marlowe’s play represents
afflictions of the Renaissance society, something that is capable of arousing fear on its
fonds, a feeling intrinsic to the Gothic.
Keywords
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