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Editorial

Larissa de Oliveira Neves ¹

A Pitágoras 500 homenageia neste volume o homem de


teatro João das Neves, falecido no ano passado. A organização
do dossiê foi realizada pelas professoras Carina Guimarães e
Natália Batista.
A revista cumpre seu papel de ser um vetor de propagação
das mais recentes pesquisas sobre teatro, no caso sobre teatro
brasileiro, trazendo múltiplos olhares para a vida e a obra de um
grande nome. Destaca-se que o trabalho de João das Neves foge
ao eixo Rio - São Paulo, quando o artista habita o Acre, nos anos
1980, e Minas Gerais, a partir dos anos 1990. Seu trabalho com
o teatro político e como dramaturgo também são basilares para
a nossa história recente.
As organizadoras, ambas pesquisadoras da obra do autor,
apresentam o volume, organizado com afinco e carinho para
saudar o mestre que ambas conheceram. Conforme salienta o
poema que abre a Apresentação: João das Neves permanece.
Permanece nas suas obras, nos seus ensinamentos, na sua arte,
nas pessoas que tiveram o privilégio de conviver com ele; e, ago-
ra, permanece também aqui, na Pitágoras 500.
A sessão aberta traz dois artigos muito distintos, mas
também reveladores da prodigalidade da pesquisa recente em
teatro.
O artigo de Adriano Rabelo esmiúça a linguagem poética
ímpar de Nelson Rodrigues, trazendo exemplos de prosódia que
¹ Professora de teatro brasileiro, dramaturgia e teoria do teatro do Departamento de Artes Cênicas da
Unicamp. E-mail: larissan@unicamp.br.

1
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Editorial

o pesquisador localiza acertadamente como sendo a culminân-


cia de uma busca pela linguagem brasileira na literatura que
vinha acontecendo desde o século XIX. O artigo de Fábio Paz e
André Gomes analisa a obra de Christopher Marlowe, propon-
do uma leitura sobre os elementos fantásticos e sobrenaturais
das tragédias.
Desejamos a todos e todas uma boa leitura!

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APRESENTAÇÃO
João das Neves (1934 – 2018):
cena, ação, sociedade
Por Carina Maria Guimarães Moreira1 e Natália Batista2

AOS QUE ME AMAM em nossas noites de amor


Eu permaneço forjando auroras.
com o azul das montanhas Eu permaneço
no horizonte. em teus sonhos, esperança
Eu permaneço e dores de vida.
no alegre canto dos pássaros Eu permaneço
ao cair da tarde. em tudo o que em nós dois
Eu permaneço pulsa e respira.
no silêncio das pedras Eu permaneço
e terno repouso. na sombra das árvores
Eu permaneço bêbados de sol.
com o bater das asas Eu permaneço
nas manhãs dos galos. no vôo das andorinhas
Eu permaneço em tardes ser.
nos anos luz de estrelas Eu permaneço
que não mais existem. na luz dos vagalumes
Eu permaneço tecendo estrelas.
nas vozes de nossa casa Eu permaneço
manchando as paredes. em teus olhos, teu sorriso
Eu permaneço teu doce silêncio.
1
Professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas e dos Cursos de Graduação (Bacharelado
e Licenciatura) em Teatro da Universidade Federal de São João Del Rei - UFSJ. Doutora (2014) e Mestre
(2009) em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. Atua fundamentalmente nos seguintes temas: teatro político,
direção teatral, análise da cena teatral e cultura afrodescendente. E-mail: carinaguimaraes@ufsj.edu.br.
2
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Mestra em História e Culturas
Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É autora do livro Nos palcos da História:
teatro, política e Liberdade, liberdade (Letra e Voz, 2017). E-mail: nataliabatista@usp.br.
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APRESENTAÇÃO

Eu permaneço
na voz veludo de Ana
amando Titane.
Eu permaneço
em minhas duas Marias
Iris e João.
Eu permaneço
no olhar-ave do amor
Pousando em meus olhos.

João das Neves



O v.9 , n. 2 da revista Pitágoras 500 traz como tema o
dossiê temático “João das Neves (1934 – 2018): cena, ação, so-
ciedade”, que tem por objetivo suscitar a reflexão crítica sobre a
obra deste importante artista brasileiro. Considerado um legíti-
mo “homem de teatro”, é reconhecido em seu campo de atuação
como um “artista completo”, tendo exercido diversas funções
no fazer cênico e deixando importantes contribuições como di-
retor, dramaturgo, escritor, ator, iluminador, cenógrafo e pro-
dutor cultural.
João das Neves foi diretor da sessão de teatro de rua do
Centro Popular de Cultura da UNE e fundador do Grupo Opi-
nião. Ganhou notoriedade por sua produção dramatúrgica –
com destaque para o texto O Último Carro (1964-67) – e, em
trajetória singular, optou por um caminho que poucos artistas
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APRESENTAÇÃO

ousaram trilhar: se deslocar do eixo Rio-São Paulo. Durante os


anos 1980 trabalhou e residiu no estado do Acre, onde fundou o
Grupo Poronga. A partir dos anos 1990 mudou-se para o estado
de Minas Gerais, onde dirigiu trabalhos que se destacaram no
cenário nacional. Ao longo de sua carreira, acumulou vários
prêmios, como o Molière, Bienal Internacional de São Paulo,
APCA, Golfinho de Ouro, Quadrienal de Praga, dentre outros.
O presente dossiê percorreu a trajetória do “homem de te-
atro” e buscou contribuir para a investigação de parte importan-
te de nossa história cultural. Os artigos recebidos abordaram
os múltiplos tempos de seu percurso e contemplaram aspectos
importantes de sua carreira, como a relação com os movimen-
tos artísticos e sociais de que participou e com que se envolveu,
como, por exemplo, o C.P.C. da UNE; sua relação com a cultura
nacional em suas diversas manifestações regionais; além dos as-
pectos estéticos e políticos de sua produção. A proposta central
foi abranger toda e qualquer contribuição presente na trajetória
de João das Neves.
Os artigos selecionados abarcam diferentes olhares, de
pesquisadores que nunca tiveram contato com o diretor aos que
conviveram diariamente em sua residência. Isso interfere no ca-
ráter e no tipo de narrativa construída por cada pesquisador.
Alguns soam como relatos de experiência e proximidade, en-
quanto outros constroem análises mais distanciadas. A propos-
ta de trazer artigos menos convencionais no que se refere à lin-
guagem acadêmica foi ampliar os olhares sobre a obra de João
das Neves, desvelando o olhar de pessoas que conviveram com
ele durante sua trajetória. A coerência de sua trajetória pode ser
percebida tanto na produção acadêmica [mais direcionada a sua
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APRESENTAÇÃO

obra] quanto nos relatos de experiência [mais direcionados a


sua vida cotidiana].
Pelo próprio caráter do dossiê e das pessoas que colabo-
raram com essa publicação fica perceptível uma caraterística la-
tente ao longo da trajetória de Neves: o encontro de gerações.
Foram produzidos artigos por sujeitos contemporâneos ao dire-
tor, professores de diversas universidades públicas e uma nova
geração de pesquisadores que tem se dedicado exclusivamente
a sua obra. Também a formação dos autores é diversa e con-
templa pesquisadores de diversas áreas: crítica teatral, história,
jornalismo e artes cênicas. A multiplicidade de áreas e gerações
permitiu um olhar polifônico para a obra do artista, ora perpas-
sado pela experiência pessoal das pessoas que viveram ao seu
lado, ora construído com acadêmicos que se debruçaram sobre
a obra.
Os artigos foram divididos em três categorias que permi-
tem visualizar as diferentes propostas narrativas contempladas
no dossiê: i). artigos com ênfase na produção do artista por auto-
res que não tiveram vínculo com as obras artísticas analisadas;
ii). artigos híbridos entre a reflexão acadêmica e a participação
dos autores nos processos artísticos que foram analisados; iii).
artigos que expõem uma narrativa mais afetiva e baseada na
experiência cotidiana com o diretor.
No primeiro grupo foram selecionados os artigos “João
das Neves e o Teatro de Rua do Centro Popular de Cultura”
de Roberta Carbone, que analisa o CPC e a atuação de João das
Neves dentro do coletivo. Seu texto permite novos olhares para
o CPC e reitera a sua importância no cenário artístico cultural
brasileiro. A partir da documentação analisada e das narrati-
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APRESENTAÇÃO

vas de Neves e demais integrantes do grupo, a autora procu-


ra compreender e desmistificar as críticas que foram recebidas
pelo coletivo. “Madame Satã: um musical brasileiro”, de Carina
Maria Guimarães Moreira, analisou o espetáculo Madame Satã,
dirigido por João das Neves e Rodrigo Gerônimo. Para com-
preender a obra, a autora investigou a tradição dos musicais
brasileiros do século XX e a utilização da corporeidade de ma-
trizes afrodescendentes. Em sua análise da montagem, aparece-
ram elementos do engajamento teatral como o enfrentamento
ao racismo e a discriminação sexual e de gênero. “Dimensões
políticas e estéticas do trabalho de João das Neves: uma análise
do processo de formação de atores não profissionais em O Últi-
mo Carro”, de Natália Batista; analisa a montagem na década de
1970 a partir da formação de atores não profissionais e os pro-
cedimentos do diretor. Baseando-se na metodologia da história
oral, ela remonta os processos do diretor a partir de uma nar-
rativa polifônica sobre o processo de criação. “João das Neves:
política, engajamento e criação cênica em 1968”, de Kátia Ro-
drigues Paranhos, investiga a montagem que Neves fez no em-
blemático ano de 1968. Trata-se da peça Jornada de um imbecil
até o entendimento, com texto de Plínio Marcos e montagem
do Grupo Opinião. O trabalho permite compreender as relações
estabelecidas entre dois importantes homens de teatro: João das
Neves e Plínio Marcos. Por último, a artigo “Joãos: João das
Neves e seu arquivo” de José Francisco Guelfi Campos, Marta
Eloísa Melgaço Neves e Verona Campos Segantini explora uma
questão pouco analisada quando se pensa na historiografia do
teatro brasileiro: os acervos pessoais e a questão arquivística. O
autores oferecem uma importante discussão sobre o acervo de
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APRESENTAÇÃO

João das Neves, que se encontra na Divisão de Obras Raras e


Coleções Especiais da Biblioteca Universitária da UFMG.
Na segunda categoria foram contemplados os trabalhos
que mesclam a experiência artística e a reflexão acadêmica. No
artigo “João das Neves: cenógrafo e artífice - sobre o cenário de
Maria Lira”, a autora Niuxa Dias Drago explora o espetáculo
Maria Lira, da Cia Ícaros do Vale (Araçuaí/MG), escrito e di-
rigido por João das Neves. Sua análise estabelece diálogo entre
a construção cenográfica, a relação com a cultura do Vale do
Jequitinhonha e o processo de criação. Este trabalho permite
compreender a junção de pressupostos estéticos e políticos a
partir da transposição de elementos da cultura popular para o
palco. “Brincando o Teatro pelas veredas dos João: a montagem
de Primeiras estórias em Campinas”, de Juliana Reis Monteiro
dos Santos, analisa a encenação do espetáculo quando realizado
em Campinas. A partir de diversas narrativas e memórias indi-
viduais, ela investigou a montagem e sinalizou características
contínuas na obra do diretor. No trabalho de Luciana Mitkiewi-
cz de Souza, intitulado “A Arte engajada de João das Neves – o
artista-txai 1 e suas metáforas da coletividade”, ela expõe a for-
ça da coletividade no trabalho do autor, assim como desvenda as
aproximações e dissociações entre a arte engajada e “artivismo”
a partir da perspectiva construída por Neves ao longo de seu
percurso. Em “João das Neves e a ética da alegria”, Suzi Frankl
Sperber analisa as questões contemporâneas localizadas em al-
gumas obras de a partir da perspectiva de uma arte teatral de
resistência. Por se tratar de uma profunda conhecedora da obra
e do próprio artista [de quem foi muito próxima], ela identifica
que suas obras partem de uma ética da alegria, da resiliência e
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APRESENTAÇÃO

da inteligência.
Na terceira categoria foram contemplados artigos que ex-
ploram em menor escala a obra e mais amplamente a convi-
vência cotidiana com João das Neves. Foram incorporados ao
dossiê exatamente porque descortinam aspectos relevantes de
sua obra. São exemplos dessa perspectiva os trabalhos “Conver-
sas de vagalume: imagens de convívio com o poeta encenador”
de Mara Vanessa F. Dutra, que narra a sua experiência com o
diretor a partir de elementos pouco divulgados: a relação com a
cantora e companheira Titane, a vida cotidiana em Lagoa Santa
e a importância de sua biblioteca para o seu processo criativo.
Também o texto de Maria do Perpétuo Socorro Calixto, intitu-
lado “Viagem ao fundo do rio”, trabalha na perspectiva de uma
narrativa descritiva sobre a vida e a obra do diretor, articulando
o seu contexto de falecimento às memórias dos trabalhos em
que participou juntamente com ele.
A proposta de organização desse dossiê surgiu ainda no
ano de 2017, mas a divulgação da chamada para o recebimento
dos artigos teve início alguns meses após a morte de João das
Neves, em 24 de agosto de 2018. A comoção diante de seu fale-
cimento se faz presente nas narrativas e muitos textos partem
exatamente desse detonador. Dois riscos são eminentes quando
se tem como proposta revisitar a obra de um artista que partiu
recentemente: textos escritos a partir do sentimento de perda
ou textos simplesmente laudatórios e de pouca análise crítica.
Diante da importância de Neves para o teatro brasileiro, o desa-
fio foi aceito com seus riscos e possibilidades.
O resultado geral dos artigos recebidos foi a percepção
de que João das Neves, entre suas convicções, procedimentos
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artísticos e metodológicos, se caracteriza por elementos polí-


ticos e estéticos marcantes em sua trajetória. Na rua, no palco
italiano, nos espaços alternativos e na própria vida cotidiana, já
que artista e obra pouco se separavam. Neves sempre instigou
em seus trabalhos um deslocamento de olhar, que perpassava
tanto os trabalhadores da cena quanto o próprio público. Um
olhar que era crítico, mas carregado de leveza, beleza e crença
na construção de um país justo e igualitário. Torcemos para que
esse dossiê seja o início de uma reflexão mais sistematizada de
sua obra e estética.


João das neves e o teatro
de rua do centro popular de
cultura

Resumo >

Pretende-se, neste artigo, focalizar o Teatro de


Rua do Centro Popular de Cultura, a partir de uma
roberta carbone

análise que considere o trabalho e a perspectiva de João


das Neves. A despeito das muitas teorizações sobre a
atuação cepecista, objetiva-se um exame de suas ex-
perimentações práticas, que exponha dados concretos
de algumas atividades teatrais realizadas em espaços
públicos, enfatizando a participação de João das Neves
neste projeto.

Palavras-chave:
Centro Popular de Cultura. Teatro de Rua. Tea-
tro épico-dialético
João das Neves e o Teatro de Rua do Centro
Popular de Cultura

Roberta Carbone1

Entre as frentes de trabalho do núcleo


¹ Doutoranda do Programa
de Pós-Graduação em Artes carioca do Centro Popular de Cultura (CPC)
Cênicas da Escola de Comu-
nicações e Artes da Universi-
da UNE, pretende-se aqui destacar suas ati-
dade de São Paulo, é gradu- vidades relacionadas ao fazer teatral e, mais
ada em Educação Artística
com habilitação plena em especificamente, às experimentações cênicas
Artes Cênicas e mestra pela apresentadas em espaços públicos. A partir de
mesma instituição, com li-
nha de pesquisa em História da apresentação e análise de algumas de suas
do Teatro. E-mail: roberta.
carbone@usp.br.
práticas, procura-se enfatizar a contribuição de
João das Neves, diretor de seu departamento
de Teatro de Rua a partir de 1962, na constru-
ção deste projeto. Mas para falar da participa-
ção de Neves no CPC, há que se passar, ainda
que brevemente, pela história de Os Duendes
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e, principalmente, pelos motivos da ca de conteúdos condizentes com as


extinção do grupo, relacionados à circunstâncias de atuação do grupo,
encenação de A grande estiagem, que, por sua vez, acarretaram inves-
peça de Isaac Gondim Filho. Cons- tigações formais em sentido épico-
tituído por colegas de formação da -dialético. Por isso, as ações de Os
Fundação Brasileira de Teatro em Duendes e as proposições artísticas
1959, o grupo atua, inicialmente, de seu diretor acabaram por desper-
na zona sul do Rio de Janeiro, con- tar o interesse da imprensa carioca
siderada uma região “nobre” da ci- para um trabalho realizado fora do
dade. Decorridos dois anos de sua grande centro. E, segundo Neves:
criação, Os Duendes migram para Um dos críticos disse que aquela montagem
Campo Grande com o intuito de era não só socialmente interessante, mas, além
disso, era política e partidária, um trabalho de
ocupar o Teatro Arthur Azevedo, comunista. Foi até uma crítica elogiosa. Mas
a convite de Maria Clara Machado, bastou isso para que quando chegássemos ao
teatro na semana seguinte, o nosso cenário
diretora do Serviço de Teatro e Di- estivesse destruído e nós proibidos de entrar.
versões do Estado na época. Bairro (NEVES, 2012)

da zona oeste carioca, Campo Gran-


João das Neves incorporou à
de conta até hoje com um grande
montagem de A grande estiagem,
contingente de operários em de-
uma peça sobre a seca nordestina,
corrência da localização, entre ou-
questões infraestruturais relacio-
tras, da siderúrgica brasileira do
nadas à condição de vida do ser-
Grupo Gerdau e das fábricas fran-
tanejo, como o tema da reforma
ceses de pneus Michelin e Valesul.
agrária, evidenciadas cenicamen-
A presença de um público di-
te por meio de narrações e proje-
ferente para os espetáculos do gru-
ções. A crítica a que ele se refere,
po, provindo agora da classe traba-
assinada por Bárbara Heliodora2,
lhadora, ao mesmo tempo em que
avaliou tais incorporações como
contribuía para o processo de po-
“inadequadas” ao texto e conside-
litização de Os Duendes, favorecia
rou ter isso resultado em um espe-
o amadurecimento de seu diretor,
táculo partidário, como comenta
João das Neves, devido ao alto grau
seu diretor. Tais considerações de
de experimentação artística. A dis-
Heliodora, publicadas em sua co-
posição de diálogo com essa “nova”
luna no Jornal do Brasil, tiveram
plateia impunha a abordagem cêni-

2
HELIODORA, Barbara. A Grande Estiagem: Seca em Campo Grande. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 4 set. 1962. Ca-
derno B.

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como consequência a expulsão do


Por causa da expulsão do Teatro Arthur Aze-
grupo do Teatro Arthur Azevedo, vedo, eu fui parar na União Nacional dos Es-
de acordo com o modo como “a re- tudantes. Fui parar lá porque era a única en-
tidade de massa a que nós podíamos recorrer
pressão da administração estadual para que a violência praticada contra nós ti-
chegava cada vez mais próxima aos vesse alguma repercussão. Já existia o Centro
Popular de Cultura da UNE, mas eu não fazia
grupos periféricos” (PARANHOS, parte. E o Vianinha me convidou para parti-
cipar do CPC. (NEVES, 2012).
2010, p. 1). Dando provas da cen-
sura do governo de Carlos Lacerda Os primeiros passos para a
contra ações à esquerda, esse epi- concretização do Centro Popular de
sódio estampa a violenta reação da Cultura se deram na articulação de
direita às tentativas de aproxima- artistas e intelectuais mobilizados
ção da classe trabalhadora e antevê em torno da encenação da peça de
a repressão dos anos imediatamen- Oduvaldo Vianna Filho, A mais-va-
te após o golpe militar de 19643. lia vai acabar, seu Edgar. Dirigida
Essa ação de censura, que por Chico de Assis, as apresenta-
coagiu Os Duendes a encerrarem ções de A mais-valia... no saguão da
suas atividades artístico-militantes Faculdade de Arquitetura do Bra-
em Campo Grande, acabou por de- sil, no Rio de Janeiro, arregimen-
terminar os caminhos futuros de taram estudantes e profissionais de
seu diretor, João das Neves, como várias áreas, que viriam a dar ori-
de alguns outros integrantes do gem ao primeiro núcleo cepecista.
grupo. Assim como Neves, uma Além de Vianna e Chico de Assis,
das atrizes de Os Duendes, Pichin o sociólogo Carlos Estevam Mar-
Plá, também viria a fazer parte do tins foi uma figura importante para
CPC e, posteriormente, do Gru- a constituição desse núcleo, que
po Opinião. Porém, as motivações ainda gerou muitos outros CPCs,
que levaram Neves a estabelecer espalhados pelo Brasil inteiro e di-
um contato efetivo com a equipe vididos por setores de atuação: tea-
cepecistas estão, em um primeiro tro, literatura, música, cinema etc.
momento, mais relacionadas à mi- A fala acima de Neves remete,
litância política do que à perspec- portanto, ao ano de 1962, quando o
tiva de continuidade de uma ação Centro Popular de Cultura já havia
cultural, como sua fala aponta:
3
Segundo Roberto Schwarz: “Cortadas naquela ocasião as pontes entre o movimento cultural e as massas, o governo Cas-
telo Branco não impediu a circulação teórica ou artística do ideário esquerdista que, embora em área restrita, floresceu
extraordinariamente”. (In: Cultura e política 1964-1969. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Paz e Terra, 1978,
p. 62).

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sido encampado pela UNE. E ainda do. No entanto, sua adesão ao CPC
que o diretor não participe da con- é resultado de um processo natural
cepção do CPC, ele mantém, nesse e mesmo esperado, pois tanto a atu-
momento, um estreito diálogo com ação de Os Duendes como o proje-
seus realizadores, como Oduvaldo to cepecista se mostram orientados
Vianna Filho. Diálogo esse que se por uma linha popular e politizada
dá, inclusive, pela proximidade de de teatro, como comenta Neves:
propósitos, relacionados à cons- O CPC trabalhava, de certo modo, exata-
trução de um novo ideário artísti- mente como nós, no teatro de fantoches, vale
dizer, utilizando textos feitos sobre aconteci-
co, cujas experimentações revelam mentos políticos do momento. A partir de al-
uma direção épico-dialética. Nesse guma coisa que ocorria, a gente escrevia uma
espécie de roteiro e íamos para a rua repre-
sentido, um intercâmbio de ideias sentar. Isso me serviu muito como pesquisa
e experiências pode também ser de linguagem: de autor, de ator, de diretor.
Como linguagem de autor, me serviu como
observado entre os anúncios de expansão do tipo de experiência que eu, até
então, estava tendo apenas com crianças, para
peças em cartaz no Diário de no- uma faixa de população muito mais ampla.
tícias (1971, p. 7), que divulga três (NEVES, 1987, p. 13-14)
apresentações, a preços populares,
de Eles não usam black-tie, com O modo de trabalho acima
direção de Vianinha, realizadas descrito caracteriza o Teatro de
pelo CPC no Teatro Arthur Aze- Rua do CPC, que, enquanto forma
vedo durante a ocupação de Os de atuação, esteve presente desde
Duendes, em dezembro de 1961. a sua criação, se tornando ainda
Por isso ainda, a motivação de um departamento distinto do tea-
Neves ao procurar a UNE é, inicial- tro convencional quando João das
mente, a de denúncia, tendo em vis- Neves o assume, depois de sua re-
ta o trabalho já realizado em Campo tirada forçada de Campo Grande.
Grande enquanto um núcleo para- Em documento4 de autoria coletiva
lelo e ao mesmo tempo complemen- e sem data, mas presumivelmente
tar ao projeto cepecista. Como sua redigido em 1963, que apresenta
fala revela, mais do que um novo as produções do CPC nos anos de
lugar de atuação, o diretor procu- 1961 e 1962, lê-se que “A ativida-
ra, por meio da entidade estudantil, de característica desse período é o
tornar pública a violência sofrida teatro de rua” (CENTRO, [s.d.],
pelo grupo e, talvez até, retomar a p. 2). Marcando os dois primeiros
ocupação do Teatro Arthur Azeve- anos da atuação teatral do CPC,

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Produzido pela equipe do CPC do Rio de Janeiro, esse documento não tem título e não foi publicado.

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essa atividade tem uma conotação de gás natural. No início da déca-


política bastante clara, tendo em da de 1960, Link chegou a relatar
vista os objetivos que orientam sua que, se quisesse produzir petró-
representação em espaços não con- leo, a Petrobras deveria investir na
vencionais. E o principal deles é, prospecção em outros países, pelo
negando a concepção de arte pela que foi criticado pela imprensa e
arte, tomá-la como instrumento de acusado pela esquerda de ser um
transformação social. Em entre- sabotador a serviço da multinacio-
vista concedida à pesquisa, Neves nal estadunidense (BOSCO, 2003).
também conta sobre um esque- Para sua representação tea-
te escrito e representado por ele: tral, Neves satiriza a credibilidade
Eu mesmo escrevi um esquete sobre petróleo
das conclusões de Link, que tem
na época em que a Petrobras estava fazendo uma varinha como instrumento de
as primeiras prospecções. Chamaram o Mis-
ter Link aqui no Brasil, para dizer se tinha verificação. E o recurso utilizado
petróleo e ele disse que não tinha em uma parece apontar os aspectos artísti-
porção de lugares. Então tem um textinho em
que ele enfiava uma varinha no chão e dizia: cos desse teatro, em que a comici-
“Aqui não tem petróleo. Isso é uma varinha dade estabelece uma função crítica
de merda!” Foi uma coisa que eu escrevi e nós
fizemos na rua. Íamos a um jardim qualquer, direta, posicionando o espectador
colocávamos a varinha e dizíamos: “Não, aqui
não tem petróleo”. (NEVES, 2014). por meio do riso. Valendo-se dos
“acontecimentos políticos do mo-
O autor se refere acima a Wal- mento”, como se pode observar, a
ter Link, geólogo chefe da Standard imediatidade é uma das caracterís-
Oil5, contratado pelo presidente ticas dessa dramaturgia que, reme-
da Petrobras na época, o general tendo ao teatro de agitação e pro-
Juracy Magalhães, para liderar a paganda, procura expor, em termos
exploração de petróleo no país. E de fácil identificação, e, portanto,
que, contrariando a perspectiva de didáticos, situações que abordem
autossuficiência da produção brasi- assuntos nacionais de urgência,
leira, afirmou a inexistência do re- para se colocar o debate sobre eles.
curso nos locais pesquisados, como Esse trabalho, que tem como
na Bacia de Solimões, reconhecida- premissa ir ao encontro de seu
mente hoje a nossa maior reserva público, o “povo”, identificado

5
Entre 1870 e 1911, a Standard Oil Company foi a maior companhia de produção, transporte e refinamento de petróleo.
Esse monopólio durou até 1911, quando o tribunal supremo dos Estados Unidos decidiu por seu desmantelamento, orde-
nando a criação de 34 empresas menores, mas todas sob o controle das Empresas Rockfeller. No Brasil, ela ficou conhecida
pelo nome de Esso Brasileira de Petróleo. (In: OUR history. ExxonMobil. Disponível em:
<https://corporate.exxonmobil.com/en/company/about-us/history/overview>. Acesso em: 22 dez. 2018.)

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no período à classe trabalhado- fazendo uso da mesma forma, foi


ra, procura representar assuntos escrito para a ocasião dos 25 anos
de interesse dessa camada social, da UNE, em 1963, e se propôs
que é muitas vezes a protagonista apresentar o trabalho do CPC. O
das criações artísticas. Condizen- auto do cassetete, resposta do CPC
te com essa ideia, a “rua” se torna da UNE à violência contra o mo-
o lugar privilegiado de atuação, o vimento pela reforma universitária
que institui o caráter improvisa- na Guanabara, teve sua representa-
cional como uma das marcas des- ção garantida pelo Pacto de Unida-
sas realizações teatrais, como a fala de e Ação7 em comício no Largo
de Neves deixa ver. Logo, surgem da Carioca, já que suas duas primei-
algumas questões relacionadas à ras tentativas foram violentamente
elaboração artística, como sobre reprimidas pela polícia militar, na
a linguagem e tratamento dos te- Cinelândia e na escadaria da Enge-
mas abordados, para o que as res- nharia, no Largo de São Francisco.
postas encontradas pelo CPC são O Auto do tutu tá no fim foi apre-
várias, como a definição de outra sentado em Assembleia do Sindica-
forma bastante utilizada confirma: to dos Metalúrgicos, fixando fatos
Peças escritas em um, dois dias, com mate-
ocorridos com muitos de seus parti-
rial coligido por uma equipe, transformado cipantes. Ainda, uma característica
em peça por outra equipe, ensaiado às vezes
horas antes da apresentação. Os temas políti- importante dessa dramaturgia é o
cos e sociais marcantes sempre mereciam um modo de produção coletivizado, ne-
“auto” que era apresentado em assembleias,
comícios, em show volante. O CPC era qua- gando uma concepção de “obra” ar-
se um jornal. A peça era dividida em cenas e tística enquanto reflexo das marcas
cada cena tinha um ou dois redatores. A peça
no final era revisada por um elemento. Um individuais de determinada autoria.
espetáculo feito da Escadaria do Palácio Tira-
dentes, sobre o bloqueio de Cuba, era ensaia- De acordo com um processo
do na medida em que ia sendo escrito (CEN- em que a tônica era a experimen-
TRO, [s.d.], p. 2).
tação, se buscava sempre recursos
Têm-se ainda notícia de mais novos para esse teatro, pautados
dois autos, referenciados no docu- pelas consequências das práticas
mento anteriormente citado, como realizadas. E assim: “Além dos ‘au-
também no Auto do relatório6, que, tos’ apresentávamos cenas de peças
de teatro, antigos esquetes de circo
6
Também produzido pela equipe do CPC do Rio de Janeiro, como o outro registro mencionado, não há publicação do
Auto do relatório.
7
O Pacto de Unidade e Ação, mais conhecido pela sigla PUA, foi uma organização intersindical brasileira formada por
ferroviários, marítimos e aeroviários e criada em 1961.

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readaptados, canções, poesias com- No esquete apresentado pelo


pondo um repertório vivo, atual, CPC, José da Silva representa o
extraído dos problemas da consci- trabalhador explorado, enquanto o
ência popular, despertando-a, uni- Anjo da Guarda é substituído por
ficando-a, valorizando-a” (CEN- Tio Sam, mas continua a cumprir
TRO, [s.d.], p. 3). E um exemplo a mesma função exploratória, ain-
disso se vê no exposto abaixo: da que de modo mais didaticamente
Dois atores, na porta da Central, iniciavam
referenciado. A presença da dupla
uma discussão. Quando o povo, curioso, jun- Tio Sam e personagens como José
tava em volta, os dois se vestiam de Tio Sam e
operário e começavam a famosa cena da peça da Silva foi uma constante nas pro-
de Augusto Boal, Revolução na América do duções cepecistas, o que se deve a
Sul, extraída de Um dia na vida de Brasilino
(CENTRO, [s.d.], p. 3). certo alinhamento do pensamento
da esquerda à política do Partido
Nessa cena de Revolução na Comunista, que assumia então sua
América do Sul, José da Silva, que posição reformista, explicitada na
foi despedido após uma tentativa so- Declaração de Março8, aprovada
litária de reivindicação de aumento em 1958. De acordo com tal docu-
salarial, se depara com seu Anjo da mento, a luta contra o imperialis-
Guarda. Este, que apesar da roupa mo e o latifúndio seria o propósito
celestial, tem um forte sotaque es- imediato, enquanto a perspectiva
tadunidense, aparece para cobrar a revolucionária passaria a ser for-
José os royalties, ou o pagamento de mulada em longo prazo, quando
taxas que lhe garantem o direito de as condições objetivas já tivessem
usufruir de serviços e produtos pri- sido criadas, como a constituição
vados de origem estrangeira, como e a organização de uma classe tra-
a energia elétrica fornecida pela Li- balhadora urbana. Sendo o PC o
ght São Paulo. Relevando-se, por- grande arregimentador da esquer-
tanto, o Anjo da Guarda do Capital, da do período, com muitos artistas
a cena pretende denunciar o caráter a ele filiados, como João das Neves,
material da subserviência imperia- esse é a teor de grande parte das
lista em nosso cotidiano, como tam- dramaturgias politizadas da década
bém o panfleto de muito sucesso da de 1960. Por outro lado, o tema da
década de 1960, Um dia na vida de luta de classes também se vê recor-
Brasilino, de Guilherme Martins. rentemente representado nessas

8
In: Acervo da Fundação de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais Dinarco Reis. Disponível em: <https://fdinarco-
reis.org.br/fdr/2012/07/19/a-declaracao-de-marco>. Acesso em: 20 dez. 2018.

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produções, que a despeito das es- tre outras. Ainda que distantes de
tratégias políticas do PC, não dei- um sentido revolucionário, iniciati-
xam de refletir sobre as nossas con- vas como essa apontavam para uma
tradições sociais mais profundas. transformação com vistas a uma
É também impossível não no- maior justiça social no país, ao mes-
tar, na concepção do esquete cita- mo tempo em que tornavam as mo-
do, certa similaridade com o Tea- bilizações populares mais expressi-
tro Invisível, de Augusto Boal, que: vas. Ao lado das recorrentes greves
Consiste na representação de uma cena em
operárias, as Ligas Camponesas
um ambiente que não seja teatro, e diante de ressurgiam com força de inter-
pessoas que não sejam espectadores. O lu-
gar pode ser um restaurante, uma fila, uma venção política9 , enquanto o mo-
rua, um mercado, um trem etc. As pessoas vimento estudantil, principalmen-
que assistem à cena serão as pessoas que aí se
encontrem acidentalmente. Durante todo o te por meio da UNE, radicalizava
“espetáculo”, essas pessoas não devem sequer suas propostas de ação. Nesse con-
desconfiar de que se trata de um espetáculo,
pois se assim fosse, imediatamente se trans- texto, a cultura se tornou um meio
formariam em espectadores (1977, p. 55).
privilegiado de ação, no sentido do
questionamento de sua expressão
Para além das próprias pe-
oficial, burguesa, e da valorização
ças, é evidente a troca de ideias e
de manifestações e hábitos nacio-
práticas teatrais entre os artistas
nais e populares, tanto no que se
politizados do período, como se
refere aos temas quanto às formas.
pode observar na relação entre Os
O Teatro de Arena foi um dos
Duendes e o CPC. E sobre esse as-
marcos dessa guinada à esquerda
pecto, há ainda que se considerar
do teatro, bem como seus artistas,
as razões históricas que permiti-
entre eles Augusto Boal, Chico de
ram essa semelhança de propósi-
Assis, Gianfrancesco Guarnieri e
tos nas mais diferentes regiões do
Oduvaldo Vianna Filho. Augusto
país. O Brasil se agitava política e
Boal, portanto, fez parte da cons-
economicamente, a exemplo das
trução do novo ideário teatral de
Reformas de Base propostas pelo
que se falou, ainda que tenha ape-
presidente João Goulart, que pre-
nas colaborado com alguns traba-
viam mudanças estruturais ligadas
lhos dos CPCs, mas não chegado a
à terra, à educação, à moradia, en-
9
As primeiras Ligas Camponesas haviam surgido em 1945-46, formadas pelo Partido Comunista Brasileiro, e quando o
Partido foi posto na ilegalidade, elas também foram atingidas. Em 1955 foi criada, no Engenho Galiléia, em Pernambuco,
a “Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco”, mais tarde “Liga Camponesa da Galiléia”, que alavan-
cou o seu ressurgimento (JULIÃO, Francisco. Que são as Ligas Camponesas? Cadernos do povo brasileiro, vol. 1. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1962).

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compor a equipe cepecista oficial. existem muitas coisas” (BRECHT,


Por isso, as raízes de seu Teatro 1990, p. 165) – afirma uma postu-
Invisível podem ser identificadas ra anti-ilusionista de teatro, condi-
no esquete acima, tendo em vis- cionada ainda por sua apresentação
ta um modo de trabalho que pre- fora do palco tradicional. Atitude
tendia aproximar o teatro do povo essa que remete mais uma vez a
e refleti-lo artisticamente, o que Bertolt Brecht que, escancarando
foi depois reelaborado pelo cria- os procedimentos de teatralização
dor Teatro do Oprimido, de acordo ao invés de escondê-los, pretende
com seus objetivos relacionados à que o “[...] público se dê conta do
eliminação da ideia de espectador. caráter construído das figuras e,
Ainda sobre Revolução na por extensão, do caráter construí-
América do Sul, uma versão com- do da realidade que elas imitam e
pleta da peça foi dirigida por João interpretam” (SCHWARZ, 1999, p.
das Neves no Centro Popular de 114). Mas essa operação é, no caso,
Cultura. E, segundo divulgado por não só relacionada a um pensa-
Henrique Oscar (1962, p. 2), ela se- mento artístico, como determinada
ria apresentada “[...] todas as noites, também pelas possibilidades mate-
durante trinta dias, cada vez numa riais de realização da peça, já que ela
praça pública, rua ou sindicato da foi encenada em cima do caminhão,
zona norte [...]”. Em conversa sobre ou da chamada Carreta do CPC.
a pesquisa, o diretor faz o seguin- A disposição de ir à busca
te comentário sobre a montagem: de outro público – popular – e de
Tudo era feito com os atores, figurado pelos
se investir em uma estrutura que
atores. Brasília, que tinha aqueles arcos, os abarcasse a mobilidade de suas pro-
atores que faziam com o corpo. Era tudo as-
sim, com elementos de rua mesmo. Panos que duções levou à criação da Carreta
se transformavam em outras coisas (NEVES, do CPC, como ficou conhecido o
2014).
caminhão projetado pelo arquiteto
A concepção de encenação da Milton Feferman. E tendo em vista
peça, que usava o corpo dos atores a delimitação de um espaço espe-
para construir ficcionalmente os cífico para as apresentações, a car-
espaços cênicos sugeridos pelo tex- reta permitiu um esforço maior de
to e tomava um mesmo objeto para elaboração dos trabalhos teatrais,
a representação de tantas outras dada a viabilidade de apresentação
possibilidades – conforme a ideia de peças inteiras, o que ainda so-
brechtiana de que “Em uma coisa licitou uma proposta estética para

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os espetáculos, tal como expressa diferentes ou, como ele próprio co-
Neves. De acordo, portanto, com a menta, empreender uma nova “pes-
proposta de um teatro de agitação quisa de linguagem”, no sentido do
e propaganda e do encontro com exercício de apropriação, pelo te-
seu primeiro e principal destinatá- atro, de temas de interesse coleti-
rio, o povo, se conclui que a carreta vo e de sua potencialização crítica.
representou um projeto bastante Acredita-se, portanto, que a
significativo para o Centro Popu- análise da atuação de João das Ne-
lar de Cultura, mesmo que pouco ves no CPC e de seu pensamen-
se tenha até hoje falado sobre isso. to em relação a esse trabalho, que
Assim, a adesão de João Ne- evidenciam a prática concreta dos
ves ao CPC mostra-se determinan- artistas e intelectuais envolvidos,
te para fomentar o seu Teatro de ofereça a possibilidade de uma ava-
Rua, que, inclusive, acaba ganhan- liação histórica mais condizente
do o status de departamento e ex- com o que foi esse projeto. O que
pandindo suas atividades: “A partir se faz de extrema importância, da-
de determinado momento, passei dos os recorrentes equívocos de
a dirigir o Teatro de Rua. A car- interpretação do CPC, que tendem
reta ficou comigo. Quer dizer, não a falsear a verdade dos fatos. Nes-
só a carreta como todos os even- se sentido, um dos mal-entendidos
tos de rua. Os shows, os esquetes, apontados por Neves em algumas
tudo o que se fazia na rua” (BAR- pesquisas sobre o tema diz respeito
CELLOS, 1994, p. 262). E sua ex- à leitura de um documento de dis-
periência com Os Duendes, como cussão interna, o Anteprojeto do
se procurou destacar, parece ser um Manifesto do CPC, escrito por Car-
dos motivos que o levou a assumir los Estevam Martins, como se fosse
essa função, dada a proximidade uma cartilha cepecista. Alguns es-
das duas experiências em relação tudos, que enfatizam o aspecto te-
à produção de uma dramaturgia órico, como o de Marivlena Chauí
para tratar de assuntos de urgên- (1984) partem desse pressuposto e
cia nacional e à tentativa de aproxi- acabam por criar uma imagem di-
mação de um público popular. Mas minuída do que o CPC realmente
sua participação no Centro Popu- foi. Isso sem contar o posiciona-
lar de Cultura levou a consequên- mento de alguns de seus próprios
cias mais radicais a ação do grupo, integrantes frente a esse debate,
permitindo-lhe investigar formas que ao reavaliarem sua participa-

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ção no CPC, tendem a rebaixá-lo10, perspectiva de análise do CPC. E, ao


como também comenta Neves: contrário, sua fala enfatiza a multi-
Todo mundo costuma renegar a experiência
plicidade de vozes que compunham
do CPC da UNE. Dizem que era sectário. o Centro Popular de Cultura, com
Eu digo sempre: era sim! E daí? Foi um mo-
mento maravilhoso da arte nesse país, tinha convicções políticas, partidárias11 e
uma comunicabilidade brutal com o públi- propostas de ações distintas, sendo
co, e nunca foi meramente doutrinário. Pelo
contrário, era um constante embate de ideias, esse o tom do projeto. Outro pon-
posições, situações de trabalho. Algo muito to importante de destaque para ele
fértil. No CPC tinha gente de tudo quanto
era jeito. Misturava comunistas com cató- é o caráter processual e, por isso,
licos, e até com reacionários arrependidos.
Tudo era motivo de discussões que varavam inacabado do trabalho: “[...] é um
a madrugada. Aquele texto famoso do Carlos projeto que foi abortado. Por isso
Estevam, a carta de princípios do CPC, tra-
tado pelos comentadores como uma cartilha, não se pode dizer é assim e ia ser
não passava de um documento interno e ge- sempre assim. Não, era um proje-
rava entre nós muitíssimas divergências. Isso
é absolutamente negligenciado pela história. to em construção” (NEVES, 2014).
Eu mesmo fui contra, e junto comigo estavam
todos que formaram depois o Grupo Opinião. Tomando a análise como método
O que mais me desagrada é ver todo esse pes- e negando afirmações incontestá-
soal que passou pelo CPC agir como se a arte
que fizeram depois tivesse surgido por gera- veis, o CPC se configurava como
ção espontânea. Simplesmente não é verdade. um “projeto em construção”, ela-
Eles ajudaram a reforçar o estigma, a tendên-
cia a recusar tudo aquilo. Mas nós fomos for- borado a partir da aprendizagem
mados por aquelas experiências. Fazer pensar
as pessoas é muito bom. E não dói, não dá dor de seus envolvidos, mas que foi
de cabeça. (NEVES apud CARVALHO, 2014, prematura e forçosamente inter-
p. 158)
rompido em decorrência do golpe-
Como se observa acima, João -militar de 1964. Dessa forma, ao
das Neves rebate a ideia de um pro- se examinar a concretude de suas
jeto uníssono que se aclimatou na realizações, conclui-se que, abor-
fala dos que tomam o documento dando os problemas decorrentes de
elaborado por Estevam como única seu momento histórico de acordo

10
Um exemplo disso encontra-se em Cultura posta em questão – Vanguarda e subdesenvolvimento, de Ferreira Gullar,
livro publicado em 2006 pela editora José Olympio, que reúne ensaios escritos durante a militância no CPC, como o “Cul-
tura popular”, e ainda textos posteriores, em que o autor reavalia suas posições. Gullar não só registra sua reflexão acerca
da experiência cepecista no momento mesmo de sua atuação, mas também suas reconsiderações sobre temas discutidos
anteriormente, onde põe em questão o entendimento de arte engajada expresso nos anos que antecederam o golpe militar.
E, apesar de se reconhecer a importância histórica desses documentos, acredita-se que em muitos momentos a posição do
autor contribua para uma avaliação negativa do CPC.
11
João das Neves ainda cita que: “Todas as correntes de esquerda que circulavam na União Nacional dos Estudantes, pelo
movimento estudantil em geral, estavam dentro do CPC também” (In: BARCELOS, Jalusa. CPC – Uma história de paixão
e consciência. São Paulo: Nova Fronteira, 1994, p. 261). E pode-se acrescentar que, além dos muitos estudantes que não
faziam parte de nenhuma organização política e de outras organizações com pouca influência no movimento estudantil,
duas frentes tinham forte adesão na UNE, com poder de disputa de sua liderança: o PC e a AP – Ação Popular – que tem
sua origem na JUC – Juventude Universitária Católica – em 1962.

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com uma leitura materialista, suas


propostas teatrais inovavam a cena
com exercícios formais de grande
experimentação, o que se procurou
destacar a partir de alguns exem-
plos. Isso acarretava um pensa-
mento sobre o fazer artístico que
se estabelecia com base nas pró-
prias experiências desses artistas
em contato direto com um público
popular, as quais representaram a
constituição e o avanço do teatro
épico-dialético no Brasil, condizen-
te, como nenhum outro até hoje,
com a significação de seus termos.

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referências

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Nova Fronteira, 1994.

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BRECHT, Bertolt. Os Horácios e os Curiácios. Teatro Completo v. 6. Rio de Ja-


neiro, Paz e Terra, 1990.

CARVALHO, Sérgio. Ópera dos Vivos – Estudo teatral em 4 atos da Companhia


do Latão. São Paulo: Outras Expressões, 2014.

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CHAUÍ. Marilena. Seminário II. In: Seminários – O nacional e o popular na


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Carbone. São Paulo, 24 fev. 2014.

______. Entrevista com o teatrólogo João das Neves concedida a Roberta Carbo-
ne. São Paulo, 22 nov. 2012.

______. Ciclo de palestras sobre o teatro brasileiro. Rio de Janeiro: Minc/Inacen,


1987.
OSCAR, Henrique. Teatro. Diário de notícias, Rio de Janeiro, 9 fev. 1962. Se-
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PARANHOS, Kátia Rodrigues. Homens e mulheres do subúrbio: Uma viagem


de trem com João das Neves. In: Anais do Seminário Internacional Fazendo
Gênero 9 – Diásporas, Diversidades, Deslocamentos: Florianópolis/SC, UFSC,
ago. 2010. Disponível em: <http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/
anais/1278196989_ARQUIVO_KatiaRodriguesParanhos-FazendoGenero9.

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pdf>. Acesso em: 15 dez. 2018.

SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras,


1999.

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Abstract

The article intends to focus in the Street Theater of the Popular Center of Culture, in an
perspective that analyses that work in an João das Neves’ point of view. In spite of many
theories about the performance of the members of CPC, an exame of its praticals experi-
ments exposes strongs facts of some theatral activities in publics places, laying emphasys
on the participation of João das Neves.

Keywords

Popular Center of Culture. Street Theater. Epic Dialectical Theater.

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Carina maria guimarães moreira

Madame Satã: um musical


brasileiro

Resumo >

A partir da tradição dos musicais brasileiros que


despontaram na segunda metade do Século XIX, e
dos musicais políticos, que entre as décadas de 1960
e 1970 fomentaram e diversificaram a linguagem te-
atral, o presente artigo traça uma análise de Madame
Satã, um espetáculo musical que utiliza como fonte a
musicalidade e corporeidade de matrizes afrodescen-
dentes. O espetáculo que estreou em 2015 foi dirigido
por João das Neves e Rodrigo Gerônimo e realizado
pelo Grupo dos Dez, um grupo formado por elenco
majoritariamente negro.

Palavras-chave:
João das Neves. Teatro Musical. Teatro Político.
Madame Satã: um musical brasileiro

Carina Maria Guimarães Moreira1

Começo com uma pergunta: que tipo de momento para


¹ Professora do Programa colocar a questão da cultura popular negra? Esses momentos
de Pós-Graduação em Ar- são sempre conjunturais. Eles têm sua especificidade histórica;
tes Cênicas e dos Cursos de e embora sempre exibam semelhanças e continuidades com
Graduação (Bacharelado e outros momentos, eles nunca são o mesmo momento. E a
Licenciatura) em Teatro da combinação do que é semelhante com o que é diferente define
Universidade Federal de São não somente a especificidade do momento, mas também a es-
João Del Rei - UFSJ. Doutora pecificidade da questão e, portanto, as estratégias das políticas
(2014) e Mestre (2009) em culturais com as quais tentamos intervir na cultura popular,
Artes Cênicas pelo Progra- bem como a forma e o estilo da teoria e crítica cultural que
ma de Pós-Graduação em precisam acompanhar essa combinação.
Artes Cênicas da Universi- (HALL, 2006, p. 147)
dade Federal do Estado do
Rio de Janeiro - UNIRIO. O país real, esse é bom,
Atua fundamentalmente nos revela os melhores instintos;
seguintes temas: teatro polí- mas o país oficial,
tico, direção teatral, análise esse é caricato e burlesco
da cena teatral e cultura afro- (ASSIS, 1861, [s/p.])
descendente. E-mail: carina-
guimaraes@ufsj.edu.br.

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Madame Satã é um espetácu- atro como meio para fomentar o


lo musical que estreou no ano de debate e a participação política em
2015, uma produção do Grupo dos prol de uma transformação social.
Dez de Belo Horizonte/MG, com Martha Abreu (2017) em seu
direção de João das Neves e Ro- livro Da senzala ao palco nos dá as
drigo Jerônimo. O espetáculo com primeiras pistas para seguir esse fio
elenco formado em sua maioria de meada, demonstrando as formas
por integrantes negros, se anuncia variadas como artistas negros en-
como uma narrativa sobre “a luta tram no campo de disputa cultural
de invisíveis” destacando a forma e política, trazendo suas músicas e
“musical brasileiro” como seu prin- danças que vieram das senzalas e
cipal foco de pesquisa e apresen- como tais manifestações vão sendo
tando um musical que utiliza como incorporadas nas festas dos senho-
fonte a musicalidade e corporei- res, festas populares e espetáculos
dade de matrizes afrodescenden- musicais. A autora aponta para uma
tes. Nos permitindo elaborar uma cadeia formada na qual artistas
reflexão tanto acerca da tradição negros no Brasil e nas Américas:
dos musicais brasileiros que des- Faziam parte de um contexto mais amplo
pontam a partir da segunda meta- de disputas e conflitos, no qual estavam em
jogo ao mesmo tempo, como um tripé, a
de do Século XIX, trazendo não só ação e o reconhecimento dos músicos ne-
canções e danças afrodescendentes gros, e suas canções, na nação republicana
que se construía no Brasil, após a abolição
para o seio dos espetáculos musi- da escravidão; os prognósticos de intelec-
tuais sobre as possibilidades futuras de uma
cais, mas questões relacionadas à nação formada, como gostavam de dizer,
forma como os negros eram vistos pela “contribuição” de negros e mestiços; e
o crescimento da indústria cultural ligada à
na sociedade brasileira; como tam- música nos teatros, nas partituras e nos mo-
bém com os musicais políticos, que dernos fonógrafos. (ABREU, 2017, p. 99)

entre as décadas de 1960 e 1970,


fomentaram e diversificaram a lin- A presença da música e dança
guagem teatral, ressaltando nas negra no teatro musicado alcançam
bases de sua formação propostas de grande amplitude, ainda na segun-
renovação tanto no quesito forma- da metade do século XIX e início
-conteúdo quanto na preocupação do século XX, sendo gêneros pro-
em dar acesso a um tipo de público duzidos, em ambientes urbanos, ar-
popular, ampliando o debate teatral tísticos e comerciais. Esse “gosto”
no campo cultural e consequente- pela cultura negra africana e afro-
mente trazendo a proposta do te- -americana fazia parte de um movi-
mento internacional, que dialogava

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com as vanguardas artísticas pari- no mercado cultural para a inser-


sienses e europeias, de identifica- ção de artistas negros e sua arte e
ção com o que há de mais moderno, consequentemente um movimento
sendo os quadros que continham de valorização de sua cultura, por
dança e música apresentados nos outro lado carregava a visão atri-
repertórios de diversas Compa- buída pela sociedade que frequen-
nhias de Teatro de Revista. Nesse tava esses teatros, ou seja, repleta
contexto, no ano de 1926, surge a de estereótipos e de inferiorização
Companhia Negra de Revistas, que da população negra. Observação
apresenta em seu primeiro trabalho que fica evidente na crítica do Jor-
a peça Tudo Preto2 de autoria de nal do Brasil de 1º de agosto de
De Chocolat, compositor que antes 1926 atribuída à peça Tudo Preto.
de propor a criação da Companhia
Certo o numeroso público que afluiu ao tea-
esteve em vários países europeus, tro cuidava de divertir-se com o ridículo e o
inclusive na França se apresentan- grotesco de tão estranho elenco, mas depressa
se convenceu que ia assistir a um espetácu-
do em cabarés. A peça Tudo Preto lo interessante, pela maneira correta por que
levantou questões polêmicas e ca- ia ele se desenrolando. Com alguns ditos de
espírito da compérage, números de canto
ras às discussões acerca da mestiça- e dança bem executados e marcados, e até
mesmo revelação de pendores artísticos que
gem, de influência racial, racismo e deixavam a melhor das impressões. (GOMES,
formação da identidade Brasileira, 2004, p. 295)
assuntos abordados na época por
intelectuais como Gilberto Frei- Esses sentidos variados nos
re eram colocadas e discutidas no mostram o quanto podemos “pen-
palco (GOMES, 2004, p. 288). É sar as características da arte e da
certo, como Abreu (2017) enfatiza, sociedade em conjunto, não como
e agora não apenas nos referindo à aspectos que devem ser relaciona-
Companhia Negra de Revistas, mas dos, mas como processos que têm
aos espetáculo e números represen- diferentes maneiras de se materia-
tados desde o período pós-abolição, lizar, na sociedade e na arte” (CE-
que a presença do negro no cres- VASCO, 2003, p. 64). Assim, a luta
cente mercado cultural possuía por deixar de pertencer à parcela
sentidos variados, no qual obras marginalizada da sociedade se tra-
carregadas de riso e humor, se por va no plano social como no cultural,
um lado traziam uma abertura mostrando o quanto essa luta ainda

2
Para o assunto: GOMES, Tiago de Melo. Um espelho no palco: identidades sociais e massificação da cultura no teatro de
revista dos anos 1920. Editora Unicamp, 2004.

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presente nos tempos de agora, é to- em seu trabalho grande influência


mada por diversos atores e possui do amigo e mestre João das Neves,
pertinência desde sempre. Por esse artista que, em sua história pessoal,
ângulo, Madame Satã ao propor a carrega muito da história de nosso
produção com um elenco de maioria teatro político. Neste contexto, aqui
negra, e a utilização de musicalida- nos interessa olhar na trajetória de
de e corporeidade afrodescenden- João das Neves seu percurso pelo
tes nos trazem, no século XXI uma CPC da UNE e Grupo Opinião,
reivindicação pertinente, de emba- para refletir sobre os musicais po-
te direto, na tentativa de mudança líticos das décadas de 1960 e 1970,
do paradigma, no qual a visão do que trouxeram muitas experiências
negro se apresenta de forma este- formais em suas propostas aos pal-
reotipada e inferiorizada no palco. cos da época e princípios políticos
A forma musical proposta no que extrapolavam o espaço da cena.
espetáculo compreende, por meio Apesar de possuir pouco tem-
da utilização da musicalidade e cor- po de existência, o CPC da UNE é
poreidade afrodescendente, uma uma experiência contundente para
estratégia de valorização cultural e pensar o nosso teatro político. Po-
proporciona ao espetáculo um tipo demos retomar sua formação no fi-
de narrativa potencialmente políti- nal do ano de 1961 a partir da mon-
ca. Apresenta personagens margi- tagem do espetáculo A mais valia
nalizados como agentes históricos, vai acabar seu Edgar de Oduvaldo
nos trazendo a narrativa a partir Viana Filho (Vianinha) e direção de
de suas óticas. Nessa configuração, Chico de Assis. Os dois artistas ha-
que podemos chamar de política, viam recentemente se desligado do
despontam as figuras de João das Teatro de Arena devido a escolhas
Neves e Rodrigo Jerônimo como di- políticas, estando os artistas dis-
retores. Rodrigo Jerônimo no con- postos a seguir em uma experiência
texto da cena teatral produzida atu- política mais contundente em rela-
almente em Belo Horizonte, pode ção àquela desenvolvida pelo Tea-
ser considerado como uma das pes- tro de Arena, procurando a partir
soas que se sobressaem no campo do teatro um contato mais efeti-
da luta e reivindicação das questões vo com as lutas que se travavam
ligadas ao racismo. É um artista no campo social. Lembrando que
que sem dúvidas desponta em uma esse momento histórico foi marca-
área muito pertinente e que possui do pela mobilização popular, sob o

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governo de João Goulart, “vivia-se entre as lideranças e as bases universitárias.


(GARCIA, 2004, p. 106)
a euforia nacionalista da luta pelas
Assim, embora com uma vida
reformas de base, principalmente
curta de um pouco mais de dois
pela reforma agrária, e contra todos
anos, o CPC da UNE trabalhou com
os vestígios do imperialismo norte-
experiências teatrais contundentes
-americano, eleito judas em dia de
do ponto de vista do teatro político,
malhação.” (GARCIA, 2004, p. 101).
mas que também trouxe para o tea-
O CPC da UNE em um pri-
tro produzido no Brasil a experiên-
meiro momento se formou em
cia de novas formas e temas de in-
torno da produção teatral, porém
teresse do país. A produção teatral
logo expande sua atuação cultural
dividia-se em produção para palco
para o campo do cinema, música,
e para rua, esta última de suma im-
arquitetura, artes plásticas, alfa-
portância para a militância cultural,
betização de adultos e literatura.
desenvolveu-se depois e enfrentou
Algo que nos chama atenção na
sérios desafios, mostrando na épo-
organização dos CPC da UNE foi
ca a grande distância a ser percor-
o nível de organização do mesmo,
rida entre o teatro de militância e
que para além de se organizar em
o público alvo propriamente dito.
uma atmosfera que trazia o debate
João das Neves participou dessa
cultural e político à contramão da
experiência histórica e sua frente
lógica mercadológica e subservien-
de trabalho estava diretamente li-
te à classe dominante, propunha a
gada ao núcleo de trabalho na rua:
multiplicação de centros por outras
regiões e estados do país, num pla- Nosso trabalho era muito direto em cima
no de expansão político-cultural: do acontecimento, como uma reportagem
crítica das coisas que estavam acontecendo.
Privilegiávamos as formas teatrais populares
Mas, o aspecto, mais relevante do CPC foi a mais diretas porque nosso teatro era feito nas
multiplicação da experiencia que tinha no co- ruas, praças, sacadas de faculdades, nos su-
letivo da UNE o seu foco de irradiação. Dali búrbios, nas roças, ou em caminhão volante
se produziram as peças, as músicas e os carta- para montagens mais ambiciosas; fazíamos
zes que eram distribuídos para os outros Cen- teatro em qualquer lugar. Usávamos a forma
tros, que rapidamente foram se multiplicando de representar dos palhaços, dos bobos, o rei-
pela Guanabara, pelo Rio de Janeiro e pelos zado, bumba-meu boi, a commedia dell’arte,
outros Estados. O apoio à formação de novos o mamulengo, etc. Os fatos aconteciam, ime-
CPCs era dado por um Departamento de Re- diatamente estabelecíamos um roteiro crítico
lações Externas e a difusão de material fica- e íamos pra rua. Existia todo um processo de
va a cargo da Prodac, empresa distribuidora elaboração: escrevíamos, montávamos e ía-
subsidiária do CPC, que levava os livros e os mos pra rua representar. As montagens eram
discos da Guanabara para o resto do país. A muito rápidas, tipo teatro de guerrilha, no
divulgação do CPC também se fazia por meio sentido de transmitir nossa mensagem. O que
das UNE-volantes, excursões por todas as ca- havia de interessante nisso era a captação de
pitais dos outros Estados, organizadas pela uma comunicabilidade rápida e ampla. (NE-
entidade com o objetivo de ampliar o contato VES apud GARCIA, 2004, p. 105)

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Em abril de 1964, com a ins- o teatro se coloca não apenas como


tauração do Golpe Militar essa ex- uma arte burguesa, que se apre-
periência sofre um corte abrupto, senta nos palcos dos edifícios tea-
o Teatro da UNE é incendiado por trais, mas vai atrás do público mais
civis, que comemoravam o golpe popular, procura dialogar com as
recém sofrido pelo país, em uma questões de seu tempo, caracterís-
onda reacionária e nacionalista que ticas essas, que com certeza encon-
acometeu os dias seguidos ao golpe, tramos até os dias de hoje impres-
no qual grupos atacaram algumas sas no trabalho de João das Neves.
instituições progressistas, sendo o No campo do teatro profis-
caso da sede da UNE e o teatro do sional, os primeiros anos que se-
CPC um dos exemplos drásticos guiram o golpe não foram sentidas
dessa história (MORAES, 2000, p. grandes mudanças3, portanto, dis-
159-170). A partir de então o CPC solvida a experiência do CPC, esses
entra na clandestinidade e um gran- artistas se voltam novamente para
de corte que se estabelece nessa ex- o eixo Rio-São Paulo de produção
periência, foi exatamente aquele de teatral. Um espetáculo, que signifi-
contato direto com o povo. Das ex- ca de certa forma a continuidade do
periências que propunham um tipo debate iniciado no CPC, foi o musi-
de produção cultural que almejava cal Opinião com texto do Vianinha,
não só a renovação estética, mas a Armando Costa e Paulo Pontes,
transformação social e para tal bus- dirigido por Augusto Boal que se
cou o diálogo direto com os sindi- compunha da colagem de histórias
catos, comunidades, operários, com curtas e canções populares. Essa
as reivindicações do campo unidas associação entre a música popular
às ligas camponesas, etc., dessa for- brasileira e teatro criará uma vasta
ma, vimos esses artistas que com- seara de experimentação no campo
punham o CPC obrigados a fazer do teatro político entre as décadas
um recuo estratégico. Nesse perí- de 1960 e 1970. Segundo Fernan-
odo de atuação do CPC da UNE, do Marques (2014) esse período foi
nos chama atenção a experiência um dos mais férteis de produção do
empenhada em pensar a integração teatro musical no Brasil, retoman-
do teatro com a sociedade de uma do uma tradição fortemente disse-
forma mais ampla. Nesse sentido, minada nas últimas décadas do sé-

3
Para o assunto ler: MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor,
1985.

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culo XIX e início do XX . A partir dessa categoria). (MARQUES, 2014, p. 14)


do Show Opinião forma-se o Gru- Entendemos que o espetácu-
po Opinião e João das Neves par- lo Madame Satã pode ser enten-
ticipa dele desde sua formação em dido como texto épico de matriz
1964 até 1984, atuando em várias brechtiana. Encontramos na obra,
funções e sobressaindo-se na de para além da presença de “fortes
diretor, com destaque para A Saí- elementos narrativos” uma contun-
da, Onde Fica a Saída?, encenada dente ênfase política, desde a esco-
no ano de 1967 com texto de Ar- lha temática da peça, que usando
mando Costa (1933-1984), Antônio da figura lendária de Madame Satã,
Carlos Fontoura (1939) e Ferrei- coloca no palco e narra histórias de
ra Gullar (1930); O Último Carro um povo por muitos vistos como
(1976) e Mural Mulher (1979), com marginais, como é o caso das pros-
texto e direção de João das Neves. titutas, travestis, malandros e po-
Partindo da análise dos mu- pulação carcerária, que de um ima-
sicais das décadas de 1960 e 1970, ginário do início do século vinte,
Marques (2014) sugere uma clas- muito nos fala do que vivemos hoje,
sificação que aqui nos valemos, bem como uma afinação com o con-
para pensar em possíveis filiações texto e as reivindicações políticas
do espetáculo Madame Satã com contemporâneas, como as questões
as práticas do teatro político de- relacionadas ao racismo e o precon-
senvolvido durante esse período. ceito sexual e de gênero, tão caras
às pautas de reivindicações políticas
São elas: o texto-colagem, em forma de show e sociais atuais, ou seja, como per-
ou de recital, como Opinião ou Liberdade, li-
berdade (de Millôr Fernandes e Flávio Ran- cebido, nos musicais políticos das
gel, com estreia em 1965), elaborado à base de
canções, narrativas e cenas curtas; o texto dire- décadas de 1960 e 1970, para com-
tamente inspirado em fontes populares, como preender a obra é preciso se ater
a farsa de ambientação nordestina Se correr o
bicho pega ou o dramas Dr. Getúlio, que ba- ao momento histórico aos aconte-
seia a sua estrutura nos enredos das escolas cimentos , uma vez que a obra, de
de samba; o texto épico de matriz brechtiana
(inspirado não só em Bertolt Brecht, mas tam- certa forma, reage ao seu momen-
bém em Erwin Piscator e em fontes brasilei-
ras), com fortes elementos narrativos, caso de to e às pautas que estão em voga.
Arena conta Zumbi e Arena conta Tiraden- A encenação começa na rua,
tes, (este de 1967) ambos de Boal e Guarnieri.
Por fim, temos o texto inspirado na forma da em um ambiente descontraído sur-
comédia musical (inclusive na importante va- gem figuras trajadas com roupas
riante norte-americana), de que são exemplos
os dramas Gota d’água e as comédias Ópera que trazem um imaginário de um
do malandro, de Chico Buarque (1978), e
O rei de Ramos (escolhemos a peça de Dias Rio de Janeiro do início do século
Gomes, ao lado de Gota d’água, para análise XX – homens com ternos brancos,

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chapéus panamás, sapatos branco também como distanciamento ou


e preto e mulheres vestidas como o estranhamento. Louis Althusser
meretrizes – forma-se uma roda (2007) nos traz ainda outra defini-
samba, e as mulheres passeiam pelo ção – o deslocamento –, entenden-
público se oferecendo para progra- do esses mecanismos como diversas
mas sexuais. As músicas tocadas reformas empreendidas na técnica
corroboram com essa ambientação, teatral de Brecht, como uma revo-
são sambas, porém esses nos reme- lução da prática teatral, que se deu
tem à pontos cantados4 de malan- por deslocamentos no conjunto da
dros e pomba-giras da umbanda. encenação em diferentes acepções
Tal conjugação de elementos nos da relação público/cena, atores/
traz ao mesmo tempo, esse imagi- público, teatro/história. “O resul-
nário de um Rio de Janeiro anti- tado de todos esses deslocamentos
go, e uma forte ênfase na cultura produz uma nova relação entre o
afrodescendente, representada nas espetáculo e o público. É uma re-
figuras do chamado “povo de rua” lação deslocada. Brecht exprimiu
da umbanda. Nesse ponto, a música esse efeito de deslocamento como
se destaca não só como um elemen- efeito-V, no próprio público, como
to de composição da cena, mas um o fim da identificação” (ALTHUS-
elemento emancipado da cena, que SER, 2007, p. 60). Em Notas sobre
paralelamente e transversalmen- “Mahagonny” (1967) Brecht nos fala
te à encenação nos coloca um uni- dessa questão em relação à música.
verso sociocultural, de um tempo
A incursão dos métodos do teatro épico na
longínquo, mas que muito também ópera conduz, principalmente, a uma separa-
se reconhece do tempo presente. ção radical dos elementos deste gênero. É este
sem dúvida um meio bastante simples para
Brecht desenvolve diversos se pôr um fim à gigantesca luta por uma su-
mecanismos que trabalham no sen- premacia a que se entregam o texto, a música
e a representação (e diante da qual nós nos
tido de trazer uma autonomia aos perguntamos sempre qual elemento serve de
pretexto para outro – a música pretexto para
elementos teatrais, tais mecanis- o espetáculo ou o espetáculo pretexto para a
mos são aqueles que trabalham para música, etc.). Enquanto a expressão “obra de
arte total” significar uma mistura homogê-
ocasionar à cena o que denominou nea de elementos diversos, estes elementos
como Efeito-V (Verfremdungse- estarão degradados de uma mesma manei-
ra. Cada um deles tendo a função de dar a
ffek) que chamamos aqui no Brasil deixa para os outros. Tal processo de fusão

4
A princípio podemos descrever os pontos cantados como versos musicados, acompanhados do som de tambores. O som
desses cantos, tanto na Umbanda como no Jongo, são festivos e aliados à danças. Porém esses pontos não trabalham apenas
na perspectiva de divertimento pela música, seus versos, juntamente com o ritmo dos tambores e das danças encerram
uma tradição: a do poder mágico da palavra trazida pelos povos bantos para o Brasil (MOREIRA, 2008).

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engloba também o espectador; ele também Assim a relação moderna,


é integrado no conjunto e representa um ele-
mento passivo da obra de arte total. É preciso que inclui a figura do diretor/ence-
combater esse gênero de operação mágica. E nador traz na relação texto e cena
renunciar ao que se apresente como uma ten-
tativa de hipnose, que provoque fatalmente contradições em relação à subordi-
êxtases condenáveis. Embotando o espírito.
(BRECHT, 1967, p. 60) nação do texto a cena ou vice-ver-
sa, e a partir dessa observação Dort
Bernard Dort (2013) no ar- nos oferece a noção de emancipa-
tigo A representação emancipada, ção. Tal noção se opõe àquela de
nos elucida a noção de emancipa- unidade da cena, desenvolvida por
ção que aqui nos valemos. Segundo Richard Wagner na Gesamtkuns-
o autor, para adentrarmos na noção twerk. “Esta seria o produto de uma
de emancipação é preciso entender união das artes agindo comumente
a relação texto-cena e os movimen- sobre um público comum: a tría-
tos históricos envolvidos desde a de poesia, música e mímica à qual
formação do teatro moderno no fi- se reúne a arquitetura e a pintura
nal do século XIX e o advento da (BABLET apud DORT, 2013, p.
figura do diretor/encenador. Dife- 48). Dort ainda nos chama atenção
rente do então diretor de palco, o que tal concepção mais tarde é ra-
diretor/encenador moderno trazia dicalizada por Gordon Craig. “Para
para a encenação seu trabalho de ele, o teatro não pode ser a arte su-
autoria junto ao texto dramático, prema que resulta da ação conjunta
colocava em cena sua concepção de várias artes, pois dessa maneira
da obra. Um texto exemplar para ele estaria estreitamente subordi-
se pensar essa relação texto e cena nado a elas. A obra de arte pode
vem de Raymond Williams (2010), subordinar apenas de um único ar-
no ensaio a gaivota no qual o autor tista” [no caso o diretor] (DORT,
faz uma análise do texto homôni- 2013, p. 48). Desta maneira, segun-
mo de Anton Tchekhov a partir do do Dort, o século XX é marcado
caderno de direção de Stanislavski. por uma verdadeira batalha por um
Compreendemos o quanto, as ações “teatro unificado”, em que texto e
propostas a cena por Stanislavski cena possam ser entendidos em um
reescrevem em outro texto para- profundo entrelaçamento, e con-
lelo ao de Tchekhov. Tal relação, sequentemente todos os elemen-
nos mostra a tensão entre texto tos da encenação subordinados.
e cena nesse momento de moder- A aposta de Brecht, é exata-
nização do teatro na figura de um mente contrária a essa acima des-
diretor de grande vulto na época.

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crita, ele acredita na autonomia das sonagens na rua é baleada por um


“artes irmãs”, e usa dessa autono- motoqueiro, que já havia passado
mia como crítica dentro da própria outras vezes na cena demonstrando
obra, sendo assim, os elementos incômodo com sua presença naque-
da cena ao invés de trabalharem le ambiente. Essa cena está diluída
em consonância entre si, traba- entre tantas outras, paralelamente
lham em uma espécie de colabora- à reclamação do motoqueiro há o
ção, hora podendo mesmo se colo- passeio das meninas pelas calçadas,
car em rivalidade, tais mecanismos a Cafetina que chama atenção a que
trabalharam sempre no sentido de elas se concentrem no trabalho, a
buscar no espectador a aprecia- roda de samba conduzida pelos ma-
ção crítica da obra. Portanto, dizer landros-músicos. Todas essas cenas
que a música em Madame Satã se são construídas em interação com
emancipa, trabalha diretamente o público, o que confere a elas certo
com as noções de autonomia e es- ar de um “cotidiano de rua”, como
tranhamento em Brecht. As músi- se estivéssemos em uma rua boê-
cas em Madame Satã compõem por mia no tempo presente. Sendo as-
si só uma forte narrativa dentro do sim, a cena de disparos da arma de
contexto da peça. Nessa narrati- fogo, para os espectadores se torna
va a sonoridade e letra dos cantos um pouco tensa, até porque por se
ora nos coloca como espectadores configurar uma cena de muito re-
do prostíbulo do início século XX alismo, que acontece na rua, onde
– com boleros cantados em caste- infelizmente é possível presenciar
lhano; ora como participantes de no plano do real tal acontecimento,
uma roda de samba; ora narra ou muitos dos espectadores realmente
comenta uma situação colocada em acham que aconteceu o crime, e nes-
cena, com a presença de matrizes se momento de tensão em que so-
de nossa música negra, mostran- mos convidados a adentrar o teatro,
do como o elemento musical se co- chamados pela cafetina, como se es-
loca não apenas como um recurso tivéssemos adentrando os antigos
cênico, mas como um elemento de bordéis da década de 20 na Lapa.
forte contraponto no total da obra. O público ao entrar para se
A cena de Madame Satã que sentar em seu lugar já encontra
começa na rua, termina de forma uma cena acontecendo, uma cena
trágica, a personagem Primorosa, musical na qual as prostitutas can-
uma travesti que está entre as per- tam espalhadas pelo palco, como se

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estivessem se olhando no espelho, do Sapê da Casa de Caboclo”, nar-


à frente no canto esquerdo uma pe- ram trechos da vida de João Fran-
quena mesa com os músicos/ma- cisco dos Santos, mais conhecido
landros e seus instrumentos. Essa como Madame Satã. Nessa narra-
será a configuração espacial usada, tiva a personagem Madame Satã
as cenas tomam o palco e o acompa- é construída como um grande de-
nhamento musical ao canto esquer- fensor das prostitutas, é represen-
do do palco. Em meio à música uma tada de três formas e por três ato-
interrupção, Primorosa, a travesti res diferentes: uma personagem é
que foi “morta” na primeira cena representada como um capoeirista,
que aconteceu na rua toma o pal- uma segunda como um malandro e
co e chamando atenção à cena que por fim de “mulata do Balacochê”,
o público acabou de presenciar na quando aparece travestida. Como já
rua e comenta: “É isso mesmo, né? mencionado, há no tratamento mu-
Uma pessoa morre com três tiros sical e nas letras das músicas canta-
na frente de todo mundo e ninguém das uma forte referência às entida-
faz nada?” (FARIA; JERÔNIMO, des que são chamadas de “povo de
2015, p. 99-140). Em seguida traz rua”, tal referência também se torna
dados reais e atuais de sua condição visível na figura da “mulata do Ba-
social em sua fala. “Aqui no Brasil lacochê”. Sua vestimenta, uma saia
e em várias partes do mundo a tra- rodada vermelha, com uma tiara
vesti não tem direito a seu nome com chifres e o peito desnudo muito
social, o mercado de trabalho não lembram as imagens de entidades
aceita as diferenças e o pior: Esta- pomba giras, além da movimenta-
tisticamente uma travesti vive, em ção corporal da dança apresentada.
média, 36 anos” (FARIA; JERÔNI- As entidades do povo de rua
MO, 2015, p. 99-140). Esta é uma na umbanda curiosamente também
primeira quebra, que reforça o dis- são chamadas de entidades de es-
positivo, no qual uma ambienta- querda. Essa denominação é dada
ção do início do século XX discute pelo tipo de trabalho que elas re-
questões de nosso tempo presente. presentam e desempenham, ou seja,
A narrativa do espetáculo se- são entidades que transitam por lo-
gue, essa é construída a partir de cais e desejos humanos que podem
quadros musicais, que ao mesmo ser considerados como obscuros.
tempo que ilustram a vida diária Ao povo de rua, os frequentadores
das mulheres do prostíbulo “Casa dos terreiros podem levar seus pe-

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didos ligados à vida financeira, ao não ser de forma quase folclórica.


amor, ao sexo, à proteção do cor- Nesse sentido a umbanda se sobres-
po, enfim, os pedidos mais afeitos sai como uma religião que cultua os
à vida mundana. São entidades que subalternos, junto ao povo de rua
podem beber e fumar muito e mui- encontramos o culto ao preto ve-
tas vezes associadas à figura cristã lho – geralmente ligados ao povo
do diabo, mas também à malandros, escravizado –, aos caboclos – esses
prostitutas e ao povo cigano. Essa cobrindo uma vasta gama de figu-
é uma característica no mínimo pe- ras como índios, boiadeiros, baianos
culiar, são figuras que representam e marinheiros, para ficar nas enti-
aqueles que não seguem regras, no dades que podemos dizer, repre-
caso das entidades femininas que sentam o povo (MOREIRA, 2008).
possuem o poder sobre seu corpo e Nesse sentido, buscamos
afeitas aos prazeres da carne, carac- como acepção de grupo subalterno,
terísticas muito peculiares, e pouco aqueles a que Gramsci denominou
comuns no âmbito religioso e sa- como marginais da história, ou seja,
grado. Ressaltamos aqui as carac- grupo desagregados politicamente
terísticas afrodescendentes presen- e, portanto, culturalmente margi-
tes na umbanda, como uma chave nais. Na obra de Gramsci, não há
de análise para o espetáculo, enten- uma acepção clara para subalter-
dendo que tais figuras da umban- nos, embora se possam definir al-
da como malandros e pomba giras, guns aspectos, como tratar-se de
ganham lugar de respeito e admi- grupos que se encontram em uma
ração dentro do culto. Tais figuras posição de subjugação nas relações
que pertencem à grupos subalter- de poder social. Segundo Gramsci
nos – e aqui falando não apenas das (2002, p. 135), “A história dos gru-
entidades da umbanda, mas da ca- pos sociais subalternos é necessa-
mada social que elas representam – riamente desagregada e episódica”
geralmente são consideradas mar- e “Os grupos subalternos sofrem
ginais, são desprezadas por grande sempre a iniciativa dos grupos do-
parte da sociedade, e em consonân- minantes, mesmo quando se rebe-
cia com a peça teatral, trazem suas lam e insurgem”. Essa reflexão de
histórias e sua dignidade, tornan- Gramsci está ligada à um questio-
do visível uma camada, que tanto namento do intelectual sobre a vi-
socialmente quanto esteticamente tória do fascismo na Itália, segundo
não pertence aos cânones oficiais, a o autor os “comunistas não conhe-

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ciam a estrutura sócio econômica as suas paixões por exemplo tor-


e a história da Itália”(LIGUORI, nam-se assuntos sociais, e também
2013, p. 88) e sendo assim, propu- os seus destinos. A posição do indi-
nha que seria necessário à histo- víduo na sociedade deixa de ser um
riografia levar em conta a história ‘fato natural’ e coloca-se no centro
das classes subalternos, levando-se do interesse” (BRECHT, 1999, p.
em conta as condições das massas, 15). Desta maneira, a história de um
dos marginalizados pela história, menino, filho de uma família de 18
da classe operária. Tal operação irmãos, do interior de Pernambuco
possuía como fim a politização e é narrada trazendo traços e histó-
organização de tais classes, uma rias sociais conhecidas por esse Bra-
operação de tomada de consciên- sil afora, como o parente preto que
cia histórica e possibilidade de ação é quase da família, as questões liga-
política. A acepção de subalternos, das à posse e propriedade de terras,
torna-se chave em uma análise que a família grande, com muitas bocas
propõe o entendimento dos proces- para alimentar e a trágica “troca”
sos culturais e artísticos em arti- que sua mãe faz dele por uma égua.
culação com os processos sociais e
MADAME SATÃ: (...)Pai meu cruzou de
econômicos, assim aqui, a visão de sangue, suando na construção de uma vida,
Gramsci corrobora, na medida que, assim sei que tem tantos outros. Era irmão
preto da gente branca de lá. Esse parente
ao mesmo tempo que contempla a de cor serve para ser parente quando tinha
noção de divisão de classes, amplia que ser, também, escravo liberto quando
que explorado. (...) Lá pelos lados de Glo-
a acepção clássica marxista operá- ria do Goitá, na encruzilhada pernambucana
entre Feira Nova, Lagoa do Itenga e Chã de
rio/burguesia, nos trazendo a pos- Alegria, é tudo o mesmo preço. Desgraçada
sibilidade de articulação de dados coisa essa de vida é a primeira vez de morte.
Cá doía tanto. Sou João, filho de Firminia. A
estruturais, culturais e ideológicos. bem dizer, no preto e branco da vida, a mi-
A história da vida de Mada- nha serventia. Dividir, desgraçadamente com
mais dezessete, essa miséria de vida. Lá na-
me Satã é narrada de forma que a quelas bandas, cruzada de sangue não tinha
serventia. Meu pai era quase que da família,
história particular se torna uma diziam. Desgraçada hora foi sua morte em
história coletiva, ou seja, podemos minha vida. A gente era os parentes pretos,
era quase que da família. Daí, não tendo mais
compreendê-la como a vida de tan- laço de sangue, não tinha também mais ser-
tos outros brasileiros que viveram ventia. Enxotaram essa parte preta da família.
Lá, tinha outra parte da família. Sou o João,
e vivem como ele em condição mar- que com o resto de família, fomos para casa
da minha vó. Essa casa, desgraçadamente, já
ginal, pensando com Brecht: “O in- não existia. Por modo de explicar e de não
divíduo permanece indivíduo, mas ter mais que confundir, os senhores das
redondezas acharam uma terra vistosa,
transforma-se em fenômeno social, coisa bonita. Daí, enxotaram minha avó,
roubaram tudo que ela tinha. Essa coisa é

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prática comum em todo lugar do Brasil. (...) vesti Primorosa como personagens
Peso menos que uma besta. Minha mãe
negocia minha vida por uma égua. Mas de destaque, as duas negras e que
para ser carinhoso, João, filho de Firmi- representam diversas questões em
na, tem a sua serventia, mas uma besta tem
mais serventia. Sou João, Filho de Firmi- relação ao gênero, à sexualidade
nia, não ajudo tanto quando minha permu-
ta. Para não haver confusão, sou João, o que e a visão social preconceituosa a
foi trocado por uma vistosa eguinha. (FA- que estão sujeitas, por suas condi-
RIA; JERÔNIMO, 2015, [s/p.], grifo meu)
ções sociais, sexuais e à cor da pele.
Da mesma forma quando é A peça e o trabalho do Grupo
narrada sua passagem pela prisão dos Dez se configuram como um
nos remete à população carcerária teatro político, quando trazem ao
e às torturas passadas nas mãos de palco questões que dialogam dire-
policiais, às questões que envolvem tamente com reivindicações de gru-
a militarização da polícia e os res- pos em nosso presente histórico.
quícios de nossa história que pas- Assim, do encontro da experiência
sou há pouco por uma ditadura de João das Neves e a formação de
militar. É trazido ao palco a visão um grupo com as características do
reacionária que as pessoas costu- Grupo dos Dez é possível perceber,
mam ter da população carcerária e a contundência da prática do tea-
dos marginalizados, a ideia de que tro político produzido nas décadas
“ladrão bom é ladrão morto” e tan- de 1960 e 1970, porém com certa
tos outros preconceitos, que sabe- mudança temática e de abordagem,
mos circundam a vida de periféricos sendo o trabalho construído pelo
como o preconceito a nordestinos, Grupo dos Dez visivelmente um
negros, favelados e a reclamação trabalho que busca na formação de
quanto a programas sociais como um grupo de integrantes negros
o bolsa família, etc. Assim, como já para falar das questões sociais que
foi dito, pela história de Madame dizem respeito ao que passam em
Satã, no início do século XX fala- suas vidas, desenvolvendo segundo
-se das questões sociais de hoje, ou o pesquisador Marcos Alexandre
melhor de sempre. Essas questões “uma estética negra” sendo eviden-
são abordadas principalmente pelo ciado em Madame Satã, para além
viés da luta do povo negro, pelo fim da musicalidade e corporeidade, na
do preconceito racial, que se tor- “autoria”, “ponto de vista” e “lin-
na preconceito social, e pelo viés guagem” (ALEXANDRE, 2017, p.
da homofobia, trazendo as figuras 73). O autor ao tratar do trabalho
do próprio Madame Satã e da tra- do Grupo dos Dez nos chama aten-

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ção em como certas reivindicações na pujança do movimento negro


ligadas à relação da representação que exige o reconhecimento cada
estereotipada e superficial do ne- vez maior de seu papel de protago-
gro no palco até a primeira década nista na construção de uma socie-
de 2000 ainda passavam desperce- dade mais justa; Vive na dignidade
bidas, e como historicamente, cada de movimentos que lutam contra a
vez mais, necessitam de revisão e discriminação de gêneros, seja ela
mesmo de combate. Além do Grupo qual for” (NEVES, 2017, [s/p.]).
dos Dez, Alexandre (2017) analisa Demonstra ainda, suas convicções
outros grupos e trabalhos, todos ali- no trabalho coletivo, quando o
nhados com uma “estética negra”, quando o constrói junto a um gru-
o que demonstra que o trabalho do po jovem, trazendo seu lastro de
grupo não representa algo isolado, longa duração na história do teatro
mas pelo contrário, se liga a uma político brasileiro, mas permitindo-
rede de novos elencos e grupos que -se afetar pelas reivindicações das
surgem nos últimos anos, trazendo novas gerações. Um caso exemplar
a questão de raça e classe aos palcos. diz respeito à personagem Primo-
O diálogo de Madame Satã rosa, inicialmente interpretada por
com as reivindicações políticas atu- Rodrigo Gerônimo. Rodrigo conta
ais, ligadas às questões que envol- que, ao se deparar com um mani-
vem o racismo e as discussões acer- festo contra o trans fake, que rei-
ca de gênero e sexualidade, se alinha vindicava a representatividade das
às pautas que começam ser encam- travestis nos palcos e publicidades,
padas por uma parcela progressista sensibilizou-se pela causa, uma vez
no campo político, mas ainda ne- que esbarrava nos mesmos princí-
cessitam de muito enfrentamento. pios por ele defendido em relação
Nesse sentido, João das Neves, um à questão racial (ATHIÊ, 2017,
homem da esquerda, que sempre se [s/p.]). Sendo assim, decidiram
colocou de forma sensível às ques- que Rodrigo não mais interpretaria
tões humanas e sociais, se alinha à Primorosa e sim uma atriz trans.
vanguarda, às reivindicações pro- Tais escolhas estéticas e políticas,
gressistas atuais, apontando com como já comentado, abrem espaço
sua sensibilidade aos possíveis ca- ainda para rica e futura discussão,
minhos para o pensamento cultural porém, não podemos negar que es-
da esquerda. Nas palavras de João tão em voga, e precisam ser enfren-
das Neves: “Madame Satã vive. Vive tadas, uma vez que dizem muito so-

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bre as bases culturais de nosso país. bre a visão do Brasil oficial, aquele
A peça parece terminar com que pertence à parcela dos privile-
uma oração, de súplica por amor, giados, das “pessoas de bem”, que
pronunciada na voz de Primorosa, destilam preconceitos e se recusam
um misto de Pai Nosso, que no tom a enxergar o Brasil real, o povo, o
da reza mostra a perseguição e o subalterno, a grande maioria de
ódio social que se criou aos grupos pessoas que formam nossa nação e
marginalizados de nossa socieda- da importância de se levar em con-
de. Porém, quando as luzes se apa- ta esse Brasil real para que possa-
gam e o público começa a aplaudir, mos plasmar um Brasil verdadeiro.
ouvimos o som de uma moto, que
adentra o palco do teatro e assisti-
mos novamente à cena de morte da
personagem Primorosa que acon-
tecera na rua, no início do espetá-
culo. Fechando com essa cena, nos
deixa grande reflexão, daquilo que
acontece no nosso cotidiano e que
é representado no palco, estetiza a
realidade e traz a realidade ao nos-
so deleite estético. Tal mecanismo
realiza no palco um diálogo direto
com a luta social que está sendo ali
mostrada, e não nos deixa sair com a
sensação de um final feliz, ou ao me-
nos esperançoso após a prece. Este
momento, possibilita a reflexão so-
bre assuntos que há muito tempo
são “jogados para debaixo do tape-
te”, na discussão que engloba quem
são os marginalizados em nossa
sociedade, como são enxergados e
tratados. E finalizando com Ariano
Suassuna e sua reflexão a partir de
Machado de Assis, Madame Satã no
mostra que precisamos refletir so-

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Abstract

From the tradition of Brazilian musicals that emerged in the second half of the 19th cen-
tury, and of political musicals, which, between the 60s and 70s, fostered and diversified
theatrical language, this article outlines an analysis of Madame Satã, a musical spectacle
that uses the musicality and corporeality of African-descent matrices as its source. The
show premiered in 2015 and it was directed by João das Neves and Rodrigo Gerônimo
and performed by the Grupo dos Dez, a group made up of mostly black cast.

Keywords

João das Neves. Musical Theater. Political Theater

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Dimensões políticas e es-
téticas do trabalho de João
das Neves: uma análise do
processo de formação de ato-
res não profissionais em O
Último Carro (1976-1978)

Resumo >

Este artigo abordará o processo de direção de


João das Neves no que tange a formação de atores não
profissionais. O foco de análise será “O Último Carro”,
Natália Batista

peça de grande projeção nos anos 1970. Participaram


dela diversos sujeitos oriundos das classes populares
e sem experiência em atuação. Investigou-se como o
trabalho foi conduzido a partir de pressupostos políti-
cos e estéticos encontrados ao longo da obra do dire-
tor.

Palavras-chave:
João das Neves. O Último Carro. Direção.
Dimensões políticas e estéticas do trabalho
de João das Neves: uma análise do processo
de formação de atores não profissionais em
O Último Carro (1976-1978)

Natália Batista (USP)1

O Último Carro2 estreou no Rio de Ja-


¹ Doutora em História So-
cial pela Universidade de neiro em março de 1976, com texto e direção
São Paulo (USP). Mestra em
História e Culturas Políticas
de João das Neves. Foi o espetáculo de maior
pela Universidade Federal relevância do Grupo Opinião nos anos 1970 e
de Minas Gerais (UFMG).
É autora do livro Nos palcos alcançou grande projeção nas duas cidades que
da História: teatro, política e esteve em cartaz: Rio de Janeiro e São Paulo.
Liberdade, liberdade (Letra e
Voz, 2017). E-mail: natalia- Obteve reconhecimento da crítica e do públi-
batista@usp.br.
co, recebendo mais de vinte premiações, in-
cluindo o Mambembe, o Molière, o prêmio
Bienal de São Paulo e o Quadrienal de Praga.
A peça foi escrita entre 1964 e 1967, mas
só foi encenada na década seguinte. O texto re-
trata a situação de sujeitos com vidas precárias

2
Esse artigo retoma argumentos da tese Uma peça-processo: cultura na dita-
dura militar e os impasses em torno do popular em O Último Carro (1964-
1978)” com previsão de defesa para agosto de 2019, no Departamento de
História da Universidade de São Paulo.
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e que cotidianamente se deslocam conformismo, marginalismo” (NA-


pela cidade utilizando o trem como POLITANO, 2017, p.187). Ao fi-
meio de transporte. No programa nal da peça, o trem efetivamente se
da peça, escrito por João das Ne- choca, mas os passageiros do últi-
ves, ele sintetiza: O Último Carro é mo carro, já desvencilhados do res-
um trabalho que retoma em 76 um tante e guiados pelos trabalhado-
fio perdido há algum tempo. “[...] res, conseguem sobreviver e mudar
É um texto que o povo brasileiro o curso de suas histórias individu-
é agente e paciente, autor e intér- ais. O elemento condutor da narra-
prete de si mesmo. Seu universo tiva é o trem, que corre desgover-
é o dos subúrbios cariocas, onde nado, alheio aos sonhos e projetos
vivem mais de 65% da população de seus usuários. Quando os passa-
útil do Rio de Janeiro.” (NEVES, geiros descobrem que ele está sem
1976, p.5). Todos os personagens maquinista, alguns operários pro-
são socialmente marginalizados, põem que todos se desloquem para
tais como operários, mendigos, o último vagão, na tentativa de se
prostitutas, bêbados, camponeses, salvarem. Mas nem todos acatam
assaltantes. Não existem prota- a sugestão, preferindo seguir um
gonistas ou personagens centrais. beato que acreditava que a hora da
O elemento condutor da nar- morte havia chegado e não havia al-
rativa é o trem, que corre desgover- ternativas. De acordo com Marcos
nado, alheio aos sonhos e projetos Napolitano, “a partir deste mote,
de seus usuários. Quando os passa- a peça encenava as várias alterna-
geiros descobrem que ele está sem tivas diante das quais se encontra
maquinista, alguns operários pro- o povo brasileiro: irracionalismo,
põem que todos se desloquem para conformismo, marginalismo” (NA-
o último vagão, na tentativa de se POLITANO, 2017, p.187). Ao fi-
salvarem. Mas nem todos acatam nal da peça, o trem efetivamente se
a sugestão, preferindo seguir um choca, mas os passageiros do último
beato que acreditava que a hora da carro, já desvencilhados do restan-
morte havia chegado e não havia al- te e guiados pelos trabalhadores,
ternativas. De acordo com Marcos conseguem sobreviver e mudar o
Napolitano, “a partir deste mote, curso de suas histórias individuais.
a peça encenava as várias alterna- É importante observar que a
tivas diante das quais se encontra classe média não estava presente
o povo brasileiro: irracionalismo, no texto. Isso o diferencia em mui-

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to de outras montagens do Grupo co das classes pobres e seu pro-


Opinião realizadas no contexto em cesso de formação partiram de
que João das Neves escreveu a peça, perspectivas estéticas e políticas
como em Opinião e Liberdade, Li- desenvolvidas pelo autor ao lon-
berdade. Diante da ausência da go de sua trajetória como artista.
classe média no texto a encenação João das Neves nasceu na ci-
também foi construída com outra dade do Rio de Janeiro, em 1934.
perspectiva, que acabou por con- Durante a sua trajetória profissio-
templar atores não profissionais. nal exerceu diversas funções do
Nesse artigo será analisado o campo teatral: direção, dramatur-
processo de formação desses atores gia, cenografia, iluminação, atu-
nas duas cidades em que a peça este- ação e produção. Formou-se ator
ve em cartaz. A montagem mesclou e diretor ainda na década de 50,
atores profissionais e amadores se- pela Fundação Brasileira de Teatro
lecionados em testes realizados no (FBT). No início dos anos 1960,
Rio de Janeiro e em São Paulo. Fer- vinculou-se ao recém-fundado CPC
nando Ramos, por exemplo, que (Centro Popular de Cultura) e foi
interpreta o protagonista Pixo- responsável pela sessão de Teatro
te no filme Pixote, a Lei do Mais de Rua. Foi um dos fundadores do
Fraco (1980), de Hector Babenco, Grupo Opinião, no Rio, e do Grupo
foi uma das descobertas artísticas Poronga, no Acre. Nos anos 1990
dos testes para a composição do mudou-se para a região metropo-
elenco de O Último Carro em São litana de Belo Horizonte, onde fi-
Paulo. Nesse sentido, não dialo- xou residência. Nos últimos anos
gavam apenas atores e não atores, dirigiu montagens que tratam de
mas também classes sociais distin- temas políticos e sociais, principal-
tas. Diversos atores, como o pró- mente relacionados à identidade
prio Fernando Ramos, pertenciam negra. Faleceu em 2018, enquanto
a camadas economicamente mais finalizava um livro de memórias so-
pobres, enquanto outros vinham bre a trajetória do Grupo Opinião.
de classes sociais mais abastadas. Em artigo sobre a infância de
A hipótese desse artigo é que João das Neves, escrito em parceria
João das Neves desenvolveu dis- com Miriam Hermeto, constatamos
tintos métodos na formação dos que muitas de suas experiências na
atores que integraram a monta- tenra idade foram fundamentais para
gem. A opção de escolher um elen- o artista adulto que ele se tornou.

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do”: a trajetória política e artística


Um menino que se descobriu amante da arte,
da cultura popular e do povo. E que nos con- de João das Neves ocorreram du-
tou: “de alguma maneira a minha formação rante os anos de 2013-2018. Nele,
teatral vem dessas coisas, né?”. Seria imprová-
vel que suas reminiscências de infância – as- buscou-se construir uma História
sentadas em um vivido distante, mas vívido de Vida do artista, analisando os
– não traduzissem o sujeito que fez de seu
trabalho um amalgama de dramas humanos e entrecruzamentos de sua traje-
questões sociais, estéticas e políticas. (BATIS-
TA; HERMETO, 2016, p. 121) tória artística e política ao longo
da carreira. Foram realizadas de-
Em alguma medida, sua traje- zesseis entrevistas e pelo menos
tória foi permeada pela busca de um duas são utilizadas nesse artigo.
trabalho que unisse engajamento Já as entrevistas com os inte-
e refinamento estético, na medida grantes da montagem se deram no
que ele acreditava que um trabalho contexto da pesquisa de doutora-
de conteúdo revolucionário deveria mento da autora, durante os anos
ter também uma forma revolucio- de 2016 e 2018. Foram realizadas
nária.. No caso de O Último Car- dezenove entrevistas com atores e
ro não bastava apenas abrir espaço equipe técnica, que ocorreram nas
para que as classes populares aden- cidades de Belo Horizonte, São
trassem no mundo do teatro e re- Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e
presentassem a veracidade através Brasília. Entrevistou-se outros in-
apenas de seus corpos, foi preciso tegrantes para construir uma po-
também formá-las artisticamente lifonia de vozes sobre o mesmo
para que depois tivessem subsídios evento e facilitar a compreensão do
de continuar na carreira e interpre- processo de criação e a formação
tar outros papéis. A relação com a de atores desenvolvidos na peça.
cultura popular e a crença de que o Tentou-se, a partir das fontes
povo poderia interpretar a si mes- produzidas por meio da metodolo-
mo possibilitou essa aproximação. gia da história oral, “registrar, atra-
O processo de formação dos vés de narrativas induzidas e esti-
atores foi identificado através de muladas, testemunhos, versões e
entrevistas orais realizadas com interpretações sobre a História em
o diretor, a partir de sua História suas múltiplas dimensões: factuais,
de Vida, e de entrevistas temáticas temporais, espaciais, conflituosas,
realizadas com os atores que par- consensuais” (DELGADO, 2006,
ticiparam da montagem. Os depoi- p. 15). As entrevistas permitiram
mentos do diretor para o projeto novos olhares sobre o processo de
Um homem de teatro “enduenda-

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criação e a formação dos não ato- rados na transição de 1960 para


res, a partir do momento em que 1970. Da primeira versão do texto
foram perceptíveis as impressões e à montagem, o Brasil havia muda-
memórias deixadas pela experiên- do consideravelmente. Em 1964,
cia na vida de todos os envolvidos. quando João das Neves começou a
De acordo com Gwyn Prins, escrita, existia um desencanto com
“a força da história oral é força de o recém-instaurado golpe civil-mi-
qualquer história metodologica- litar, mas também uma incerteza
mente competente. Vem da exten- quanto a sua duração e continuida-
são e da inteligência com que mui- de enquanto regime ditatorial. Ha-
tos tipos de fonte são aproveitados via uma imprevisibilidade que per-
para operar em harmonia” (2011, p. mitia alguma modificação do curso
1996). No caso específico do teatro, da história, ainda que improvável.
ela permite uma série de apropria- Já no contexto da monta-
ções que a documentação escrita gem, a ditadura estava em vigor há
não consegue atingir. Como des- doze anos e começava a dar lentos
cortinar um processo de formação e ambíguos sinais de abertura po-
de atores não profissionais atra- lítica para determinados setores.
vés de um programa de espetácu- Naquele momento, o autor havia
lo? Diversas nuances do processo se desvinculado do PCB (Partido
criativo não são descritas nos ma- Comunista Brasileiro), por ter uma
teriais de divulgação de uma peça, posição contrária à interpretação
mas mantém na memória dos que do partido com relação à Primave-
participaram reminiscências que ra de Praga. “Eu saí do Partido Co-
podem ajudar a compreender o ato munista quando houve a Primavera
teatral. Em alguma medida, a prin- de Praga. E o partido achava que
cipal função da história oral foi per- deveria apoiar aquilo. Eu achava
mitir a articulação do passado com aquilo absolutamente [pausa] é...
o presente, compreendendo as im- enfim, uma indecência.”(NEVES,
pressões sobre os eventos a partir 2012). Nesse período, o PCB perdeu
de interpretações de sujeitos que muitos quadros diante da proposta
estiveram vinculados à montagem. de oposição institucional à ditadura
Adentrar nos meandros da e não a um enfrentamento através
encenação de O Último Carro é das armas, bem como por sua de-
compreender como o tempo e a fesa de Stalin e do Partido Comu-
estética da peça foram reconfigu- nista da União Soviética (PCUS).

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A militância de João das Ne- personagem pra mim na peça. A


ves, enquanto membro do Partido, peça escrita por ele, né? Mas ele es-
havia arrefecido e talvez isso tenha tava trabalhando com a criação e fui
fomentado o olhar para novos su- improvisando...”(VASCONCELOS,
jeitos e outras interpretações para 2017). Vasconcelos foi inserido na
além da defesa do frentismo cultu- peça com um personagem criado
ral. Talvez isso permita explicar por ele mesmo: um vendedor de
porque um dos pontos mais desta- modinhas populares. De acordo
cados na montagem se referia ao com a narrativa, o fato dos atores
elenco grandioso e à potência vi- estarem em cena o tempo inteiro
sual deste aglomerado de sujeitos. permitiu que eles tivessem liber-
A expressão cênica da peça se dava dade de criação. O seu persona-
mais por atuações coletivas que por gem criou falas que posteriormen-
individualizadas. De acordo com a te foram inseridas por Neves na
ficha técnica publicada no progra- encenação. Sobre a experiência
ma do espetáculo, a peça contava de trabalhar com um elenco mis-
com trinta e seis atores em cena, to, ele faz a seguinte observação:
que se dividiam em diversos per-
A maneira como os atores trabalhavam, a
sonagens. Conviviam atores pro- condução do João das Neves, a maneira dele
fissionais e amadores, englobando dirigir, o elenco que ele escolheu, a mistura
que ele criou ali de novos atores com atores
idosos, adultos, adolescentes e duas veteranos, né? Estava eu começando ali com
crianças. Para unificar este elen- o Ivan Cândido, um ator já consagrado, né?
A Ilva Niño, o próprio João. E um monte de
co foram necessários laboratórios garotos ali, né, também personagens que ele
retirou da própria noite do Rio de Janeiro.
e ensaios coletivos e individuais. Como o Cachimbo, que era uma figura tra-
Anselmo Vasconcelos era um dicional da noite do Rio de Janeiro, e foi lá fa-
zer o espetáculo também. (VASCONCELOS,
dos atores sem experiência prévia 2017)
que trabalhou na montagem cario-
ca. Na entrevista concedida à autora A experiência de trabalhar
explicou que a informação do teste com um elenco misto apareceu em
para a montagem começou a circu- diversas narrativas sobre a peça.
lar no meio artístico cultural em Os atores mais jovens que foram
que ele transitava. “Fui fazer o teste entrevistados relembram esse pro-
e o João me percebeu. Eu acho que cesso como formativo de suas car-
ele foi uma das primeiras pessoas a reiras. Além do aprendizado com
me perceber assim, entendeu? Ele os atores mais experientes, am-
me percebeu e não havia nenhum pliou-se a possibilidade de trabalho
com atores sem experiência, como

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o próprio Cachimbo, um idoso e fi- cias, né? E é gostoso porque é uma maneira,
não tem nada a ver com O Último Carro, mas
gura emblemática da noite carioca é uma maneira, assim, de eu estar sempre em
que pertencia às classes populares. contato com gente jovem. (NEVES, 2013)

A escolha do elenco não pare- Em sua visão, o seu traba-


ce ter sido muito influenciada pela lho seria passar experiências, mas
experiência profissional dos atores, não formar atores, talvez porque o
e sim por uma experiência associa- termo contemporaneamente este-
da a um saber individual, fruto da ja muito associado à dimensão da
própria vivência em sociedade. Para escola e sua formação tradicional.
Thompson, a noção de experiência Ele acrescentou ainda que este pro-
se faz importante na medida em que cesso não estava associado somente
descortina um conhecimento além com a peça analisada, e que o seu
das estruturas formais de saber. É interesse em ter contato com pes-
a própria vivência que fomenta um soas mais jovens permaneceu após
determinado saber. A experiência a montagem. De fato, a formação
é lida como “uma categoria que, de jovens atores é uma característi-
por mais imperfeita que seja, é in- ca perceptível ao longo de sua tra-
dispensável ao historiador, já que jetória. Porém, é importante escla-
compreende a resposta mental e recer que a entrevista foi realizada
emocional, seja de um indivíduo ou quando o diretor estava próximo
de um grupo social, a muitos acon- de completar 80 anos e naquele
tecimentos inter-relacionados ou a momento este interesse possa lhe
muitas repetições do mesmo tipo parecer muito mais óbvio do que
de acontecimento.”(THOMPSON, quando tinha 50 anos de idade.
1981, p. 5). Percebeu-se que essa Uma das estratégias para tra-
perspectiva foi muito valorizada na balhar com este elenco diversifica-
escolha do elenco e nos processos de do foi realização de “laboratórios”,
formação conduzidos pelo diretor. nos quais o diretor acompanhava
Quando perguntado a João os atores para que observassem o
das Neves sobre a formação dos cotidiano do trem e das periferias
atores ocorrida no processo de cariocas. No caso do Rio de Janei-
montagem de “O Último Carro”, ro, a experiência se fez importante
ele atribui um peso negativo para porque os atores eram majoritaria-
a palavra “formação” e justifica: mente de classe média e precisavam
Formar, não, mas trabalhar com atores jovens conhecer minimamente a realidade
que não estão formados. Formar propriamen- que iriam interpretar. Em São Pau-
te, não, mas passar pra eles algumas experiên-

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lo, onde a maioria já era usuária do atenção dos transeuntes, por exem-
trem, a experiência serviu mais para plo, significava que não estavam
a construção de seus personagens. sendo capazes de construir uma
Antes da estreia da peça a im- personagem que não fosse caricata.
prensa já noticiava esses “eventos” A incorporação de atores das
e a reação do público, que variava classes populares foi uma das estra-
entre a não compreensão e o es- tégias para evitar uma atuação ca-
tranhamento. De acordo com a re- ricata das personagens referentes a
portagem de Jacinto de Thormes, essa camada social. No Rio de Janei-
alguns transeuntes reconheceram ro em menor número, mas em São
Ilva Niño, que era atriz da TV Paulo correspondia a parte majo-
Globo, mas não entendiam o que ritária do elenco. Cachimbo foi um
se passava. Ele avalia que “o dire- desses. Integrou a montagem cario-
tor ficou satisfeito e os passageiros ca porque o diretor identificava em
desconfiados com aquela viagem sua imagem a de um camponês que
de loucos” (THORMES,1976). Léa havia visto circulando pelos trens
Maria também divulgou em sua co- das centrais no contexto de escrita
luna Pano de boca um texto sobre da peça. Em entrevista concedida
o trabalho realizado com os atores ao jornal Última Hora, Cachimbo
no trem. “Foram todos até Campo falou sobre a sua participação e o
Grande gozando das delícias de se momento em que recebeu o convite
viajar na Central e se comportando do diretor, que havia lhe garantido
como beatos, marginais, virgens, que ele não disputaria o papel com
etc, personagens da peça que é diri- ninguém e já estava selecionado.
gida pelo próprio” (MARIA,1976).
Ele me chamou pra ler o texto do Último Car-
A escolha de viajar até Campo ro, dizendo que tinha um papel pra mim. No
Grande possivelmente ocorreu começo, pedi a ele para desistir da ideia, que
já haviam tentado me transformar em ator.
para que a equipe vivenciasse as Mas a tentativa era sempre uma frustração.
quatorzes estações que inspiraram Afinal ele me convenceu. Eram duzentas pes-
soas disputando uns trinta papéis na peça:
a construção dramatúrgica da peça. confesso que não esperava nada. Mas João
disse que eu ficasse calmo, que eu não esta-
Os atores partiam para os labora- va disputando com ninguém. Quando os en-
tórios de rua com seus respectivos saios começaram, o David Pinheiro assistente
de direção do João, me deu a maior força, tra-
personagens e além de observar seu balhou comigo horas pra ver se eu conseguia
entorno tinham a oportunidade de colocar a minha voz, que sempre foi pra den-
tro. Até que veio o espetáculo para a censura
testar a construção a impacto de sua e eu me saí muito bem. No dia do espetáculo
para a classe estava todo mundo lá pra me ver.
construção cênica. Se chamassem a Era uma torcida só e no meio do meu texto
houve aplausos e tudo. Era a primeira vez que

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eu me sentia emocionado em cena. Quase co- sobre a necessidade de trabalhar


meço a chorar e estrago tudo. Mas João esta-
va do meu lado e, sentindo o que estava para com atores não profissionais e ex-
acontecer, ficou insistindo para que eu conti- plicou a proposta de tipos físicos
nuasse. Esse foi meu teste de fogo. Depois, os
aplausos aconteceram mais duas vezes em dia por uma questão estética e política.
normal e eu consegui ir adiante. Agora estou
estudando teatro, fazendo interpretação e en-
cenação com um grupo comandado por João João das Neves: Não são ‘tipos’. São atores po-
das Neves. (TEATRO…, 1976, p. 2) pulares. São pessoas do povo. Eu tenho atores
profissionais, mas na medida que eu acho que
o ator profissional pode ser identificado como
Alguns aspectos chamam a um homem do povo brasileiro, eu coloco em
cena, entendeu? [...] Eu acho mais fácil pegar
atenção em sua narrativa: o receio o elemento bruto e fazer. Eu acho que dá um
de enfrentar o público e a relação frescor a representação muito maior. A se-
gunda coisa é que eu acho que é hora de se
estabelecida com o diretor e equipe. promover o povo brasileiro ao teatro. Eu acho
Supõe-se que o convite foi aceito que o povo brasileiro tem que fazer teatro.
Eu acho que pode fazer. Eu acho que se tem
porque havia confiança na condu- que realmente abrir a possibilidade. Ampliar
a possibilidade de trabalho, e não diminuir.
ção do trabalho e a crença de que Eu não acho que estou tirando o mercado de
ele não seria exposto a uma atuação ninguém. Muito pelo contrário, eu estou am-
pliando o mercado de trabalho. Eu estou, de
que o deixasse constrangido diante repente, abrindo a cabeça das pessoas, na mi-
do público. Ele descreve a emoção nha opinião. Por que eles podem fazer. [...] O
fundamental é a minha visão de trabalho. Eu
de ver a classe artística vibrando acho que as pessoas tem que ser as pessoas.
Na medida em que essas pessoas são as pesso-
com a sua atuação e torcendo pelo as e tem talento, então eu posso aproveitá-las.
seu desempenho. Talvez os artistas Entrevistadora: Então se for uma peça de ve-
lho, seriam velhos...
engajados visualizassem nele a re- João das Neves: Eu acho que se tiver um ve-
alização – ainda que uma exceção - lho de sessenta anos para fazer um papel de
sessenta anos, não tem que botar um rapaz
de um teatro feito para e pelo povo. de quinze. Nem um homem de trinta. Colo-
que-se um velho de sessenta. Essa é a minha
Cachimbo foi um dos poucos opinião. É. Eu acho também que se há tipos
atores convidados a integrar tam- populares que podem fazer a peça, que que-
rem fazer teatro, não há por que não fazer
bém a montagem na cidade de São com eles. Deve-se fazer exatamente com eles.
Paulo. Talvez Neves tenha gosta- Acho que se tem um ator negro para fazer
o papel de um negro, não se deve pegar um
do tanto de sua atuação que, nos branco e pintar de preto. (NEVES, 1977)
testes realizados na capital paulis-
ta fez a opção de selecionar atores Três elementos chamam a
através dos “tipos físicos”, o que atenção no excerto: i. a justificati-
gerou grande resistência por par- va estética e ética para a inserção
te da classe artística. Em entrevis- do povo; ii. o argumento da am-
ta concedida a Cláudia Alencar e pliação do mercado de trabalho
Maria Lúcia Pereira em 03 de no- com a formação de novos atores; e
vembro de 1977, o diretor falou iii. a defesa de que o povo possa in-
terpretar a si mesmo, em qualquer

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situação. classes populares. Portanto, foi per-


No que tange aos aspectos es- ceptível a presença de negros e mes-
téticos e éticos o autor explica que tiços, o que ainda hoje é uma exce-
ele não procurou tipos, mas que ção no teatro brasileiro. Presume-se
quem tinha os corpos pretendidos que também esse elemento deveria
para a montagem eram as pessoas causar estranhamento no público,
do povo, os atores populares. Ato- acostumado a elencos majoritaria-
res profissionais poderiam inclusive mente brancos, mesmo em peças
ser inseridos, desde que pudessem de temática popular, como Gota
ser identificados como “homens e D’água ou Eles não usam black-tie.
mulheres do povo”. Ainda sobre os O segundo elemento desta-
aspectos estéticos, das Neves tam- cado do fragmento de entrevista é
bém cita o “frescor” do ator que não a afirmação de João das Neves de
construiu um gestual nas escolas que não tirou o trabalho dos ato-
de teatro. Seria mais interessante res profissionais. Ao contrário, am-
formar novos atores do que traba- pliou o acesso ao mercado a partir
lhar com atores que tinham certos do momento em que pessoas talen-
trejeitos e vícios de atuação. Em al- tosas, ainda que pertencentes às
guma medida, havia uma preocupa- classes populares, puderam se inse-
ção com uma interpretação que não rir no mundo teatral, antes nega-
criasse uma imagem estereotipada do pela estrutura social brasileira.
do que seria o povo. Isso poderia Por fim, destaca-se que, já à
ser resolvido, em parte, se os atores época, o diretor defende um teatro
pertencessem à mesma classe que que se aproprie das características
iriam interpretar. Com relação aos físicas dos personagens, evitando
aspectos éticos, o autor deixa clara que atores negros ou velhos se-
a necessidade de incorporar o povo jam interpretados por brancos ou
brasileiro ao fazer teatral. Arte que jovens. Essa posição gera um es-
por sua própria especificidade tende tranhamento temporal, já que foi
a afastar pessoas pobres das casas apenas nos últimos anos que este
de espetáculo enquanto público, e debate começou a aparecer mais
principalmente enquanto atores. O insistentemente no meio teatral,
Último Carro é uma das primeiras principalmente pela utilização de
manifestações artísticas, inseridas blackface ou artistas brancos in-
dentro da lógica de mercado, que terpretando personagens negros
contou com atores oriundos das históricos. É interessante observar

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que o debate sobre representativi- apenas na transposição de lingua-


dade já estava colocado em sua obra, gem, como também no método.
ainda que possuísse deslocamen- Durante os ensaios e depois
tos do conceito contemporâneo. que a peça entrou em cartaz o dire-
Em uma das entrevistas re- tor propôs uma espécie de laborató-
alizadas com João das Neves, ele rio de interpretação, onde o grupo
descreveu pelo menos duas estra- se reunia para estudar teóricos tea-
tégias utilizadas para trabalhar trais e investigar possibilidades de
com os atores e não atores duran- ampliação do fazer teatral. É pro-
te o processo de montagem. Um vável que cada elenco reagiu à pro-
aquecimento adaptado ao espaço posta de uma maneira diferenciada.
e ao processo de criação e as visi- O elenco do Rio de Janeiro foi com-
tas aos trens e periferias da cidade. posto por pessoas de classe média e
sem outros trabalhos, o que possibi-
Eu pra aquecer os atores, sabe o que eu fa-
zia? [risos] Na bienal de São Paulo, o nosso litou dedicação integral. Já em São
camarim, que era um camarim coletivo, ele Paulo é possível que alguns atores
tinha junto um negócio enorme. Um espaço
enorme ao lado do palco. Sabe o que a gente tenham encontrado dificuldade de
fazia pra aquecer antes do espetáculo? Adivi- conciliar estudos teatrais e outras
nha. Fazíamos uma linha de passe, jogávamos
futebol antes do espetáculo pra aquecer todo atividades laborais. João das Neves
mundo. Todo mundo jogando futebol, mu-
lheres e homens. [Risos] Aí o pessoal ficava faz outra leitura sobre o processo.
aquecido, aí entrava pro O Último Carro, né?
Porque... Por que isso? As pessoas que via- Durante um ano e meio nós fizemos isso no
jaram nesses trens, nesses vagões, a maioria Rio de Janeiro. E a mesma coisa aconteceu em
operário da construção civil, lavadeiras, em- São Paulo. Propusemos e todo mundo topou
pregada doméstica, que tinham trabalhado porque era muito... Poxa! Era uma oportuni-
muito o dia inteiro. (NEVES, 2013) dade maravilhosa. Você ver atores mais expe-
rientes misturados com gente que não tinha
Com o exercício diário o di- experiência, misturado com um diretor que
estava na moda e com grande sucesso. E tra-
retor trabalhou com duas pers- balhar aquilo pra manter, pra manter a peça
sempre íntegra, né? (NEVES, 2013)
pectivas no mesmo processo. Uma
aproximação com o universo dos Em sua visão, a proposta teve
atores oriundos das classes popu- adesão de ambos os elencos. A ex-
lares e uma tentativa de alcançar periência que ele descreveu como
o estado de estafa física dos usu- “maravilhosa” teve aceitação prin-
ários do trem. É uma estratégia cipalmente pela mistura entre su-
bastante singular, adotando pro- jeitos de diferentes formações e
cessos cênicos que fizessem senti- classes e a presença de um diretor
do aos atores recém chegados ao reconhecido no meio artístico cul-
meio. Isso aponta um cuidado não tural. Nas entrevistas realizadas

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com os atores da montagem paulis- tos e a própria condição de pobres


ta foi perguntado sobre o processo em um país em desenvolvimento.
de criação. Por se tratar de pergun- Ainda professor de teatro,
tas menos diretivas, cada ator se- Jorge Julião recordou-se principal-
lecionou os elementos que fizeram mente dos aspectos teóricos. “Usa-
mais sentido para a sua experiência. mos Stanislavski, o Ator e Método
Amilton Ferreira, por exem- que é um livro que uso até hoje pra
plo, que atualmente trabalha como dar aula. Ó, coisas do João! Eu sem-
produtor cultural e animador de pre cito o João nas minhas aulas,
festas infantis, tinha na época de- também. Nós tínhamos todo um
zessete anos e lembra-se da agili- trabalho de fazer um histórico do
dade com que a peça foi montada. personagem, uma vida por trás, pra
“Foi bem rápido! Foi bem corrido, entender porque que eles estavam
né? Bem corrido, porque eu acho ali.” (JULIÃO, 2017). Se Nanaia de
que a gente tinha um tempo pra Simas entendia que a verdade era
estrear, não é”? (FERREIRA, alcançada principalmente pela pre-
2017). Ele lembrou-se de poucos sença de não atores, Julião amplia o
elementos, mas a questão do tem- processo para uma construção tam-
po foi marcante em sua narrativa. bém teórica. O diretor acreditava
Nanaia de Simas, por sua vez, na potência da experiência do povo,
teve como eixo a vivacidade da ex- mas também não abriu mão de fun-
periência. “O processo do João é damentar sua atuação e formar os
muito intenso, muito intenso... e era atores para além da vivência. Po-
um espetáculo muito vivo, era aqui- de-se afirmar que João das Neves
lo que você estava vivendo, tanto partiu de um material popular e o
que ele queria não atores, porque inseriu dentro de uma perspectiva
ele queria uma verdade. E o pes- global da arte teatral. Não havia só
soal trazia, já, uma realidade, uma o interesse focado na montagem,
carga, né? Então, era uma coisa de visto que o processo continuou
vivência mesmo” (SIMAS, 2017). depois da estreia, mas também no
Ela atribui uma busca de verdade processo de formação dos futuros
na montagem e entende que ela foi artistas. De acordo com o relato de
trazida principalmente pelos não Julião, trabalharam-se também as-
atores. A “carga” que ela mencio- pectos individuais de criação, onde
na possivelmente tem relação com cada ator construía o histórico de
as dificuldades materiais dos sujei- seu personagem e lhe atribuía ca-

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racterísticas físicas e subjetivas que mento político e não a uma carac-


seriam transferidas para a cena no terística de direção. O trecho indi-
processo de construção corporal e ca que a relação com os não atores
facial. Ambos são processos elabo- foi possível também por essas ca-
rados e mostram que não parecia racterísticas da direção, seja como
existir um desprezo com relação a método ou como princípio ético.
capacidade dos atores em formação. O pesquisador de teatro
Opinião similar é a de Edu- Edélcio Mostaço, que trabalhou na
ardo Zá, que atuou na peça quando produção e posteriormente como
tinha 33 anos. Ele havia trabalhado ator da peça, entendeu o trabalho
em peças no Teatro Casarão, grupo de atuação mais por uma perspec-
que também tinha tendências polí- tiva artística e menos por princí-
ticas. Entende-se que a sua posição é pios éticos, diante da complexidade
marcada por esta experiência ante- da construção individual dos ato-
rior e uma reflexão política bastan- res. É um depoimento interessan-
te diferenciada, se comparada com te na medida em que aponta para
a dos outros atores entrevistados. um rebuscado trabalho de atuação
alcançado por atores sem experi-
Eu aprendi muita coisa com o João das Neves.
Ele foi muito... ele era muito professoral, di- ências anteriores no campo teatral.
dático. Era calmo também, não era um cara
explosivo, um diretor assim que “ahh ahha Ali você tinha ações quase milimétricas, pro-
aah!” [esbravejando]. Ele tinha todo um pi- fundamente ensaiadas e profundamente de-
que de tratamento, tinha um respeito pela senvolvidas que era todos esses momentos
pessoa, pelo fato dele ser um cara meio comu- nos quais eles não tinham diálogo e necessi-
nistão, assim, com uma visão social. Então, tavam manter a veracidade do personagem,
ele respeitava. O sujeito não sabia fazer, mas não perder a concentração em momento al-
ele procurava ensinar, indicava como é que... gum, porque o contato com o público era as-
tudo na base da calma, da tranquilidade, né? sim muito próximo. Então as pessoas estavam
[...] Eu nunca vi o João nervosinho, nunca vi! muito expostas de modo que não é fácil o que
Durante oito meses, nove meses, né, que a o ator é. Ficar uma pessoa aqui olhando pra
gente ficou junto, eu nunca vi. (ZÁ, 2017) você o tempo inteiro, vai te incomodar. En-
tão foi muito impactante e forte o processo da
Ele atribuiu a João das Ne- produção, da montagem do espetáculo. Teve
todo o treinamento necessário para levar os
ves um comportamento tranqui- atores a chegar a esse nível de desempenho,
então é claro que tudo isso impactava a pla-
lo e didático, capaz de conduzir os teia, porque a plateia estava diante do real
atores ao caminho desejado. Em mais intenso, mais chocante. (MOSTAÇO,
2018)
sua perspectiva, existia um respei-
to pelos sujeitos devido ao fato de Ele avaliou que esse proces-
Neves ser “meio comunistão”. Vale so contribuiu para o efeito final da
observar que o comportamento peça, que acabou operando com ti-
ético é associado ao seu posiciona- pos físicos que trouxeram o realis-

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mo para a montagem, mas que ti-


nham também um treinamento que
não se sustentou apenas na apa-
rência de “povo”. Os depoimentos
apresentados demonstram que o
processo de criação e a direção de
atores em formação foram conduzi-
dos a partir de princípios políticos
e estéticos. Ao mesmo tempo em
que o diretor entendia que os ato-
res das classes populares produzi-
riam um efeito estético singular, ele
também apontava para a necessida-
de de inserir o povo brasileiro no
teatro. Ainda que ele, no presente,
recusasse o termo “formador”, foi
essa a função que ele exerceu para
a maioria dos atores que concede-
ram entrevista para essa pesquisa.
Essa inserção de atores das
classes populares e o trabalho de
formação artística operado por
João das Neves, faz da peça um
exemplo de como pessoas sem es-
tudo formal podem acessar outros
lugares através de um processo de
inclusão que possibilite outras ex-
periências e aprendizados. Talvez
ela aponte caminhos para o im-
passe visto, ao menos desde 1958,
em Eles não usam black-tie: como
inserir o povo em cena? A res-
posta de O Último Carro é clara:
o povo só estará em cena quando
ele puder representar a si mesmo.

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Abstract

This article will address João das Neves’s process of direction regarding the formation of
non-professional actors. The focus of the analysis will be “The Last Car”, a theater play
which was very successful in the 1970s. Several people from the popular classes with no
experience in acting participated in it. The article aims to identify how the work was con-
ducted based on political and aesthetic assumptions found throughout the director’s work.

Keywords

João das Neves. The Last Car. Direction.

Pitágoras 500, Campinas, SP, v. 9, n.2, [17], p. 47 - 64, jul. - dez. 2019 64
João das Neves: política,
engajamento e criação cê-
nica em 1968
Kátia Rodrigues Paranhos

Resumo >

Por vezes condenada como escapista, outras


vezes incensada como ferramenta de libertação re-
volucionária, a arte, de modo geral, continua sendo
um tema candente tanto na academia como fora dela.
Este trabalho aborda as múltiplas faces de João das
Neves, diretor de Jornada de um imbecil até o enten-
dimento, de Plínio Marcos, espetáculo apresentado
pelo Grupo Opinião em 1968. O eixo de análise aqui
proposto consiste, de certa forma, em tentar ilumi-
nar diferentes maneiras de se fazer teatro no Brasil,
no caso, pelas bordas. Afinal, o diretor, recentemen-
te falecido, se notabilizou pelo engajamento político
ou “legítimo”, como lembra Eric Hobsbawm nou-
tro contexto, dando vazão à capacidade de lançar
ideias e desafios, em plena ditadura militar, propon-
do então indagações que ecoam até os dias de hoje.

Palavras-chave:
João das Neves. Engajamento. Dramaturgia.
João das Neves: política, engajamento e
criação cênica em 19681

Kátia Rodrigues Paranhos2

O autor, tradutor, ator, diretor e ilumina-


2
Doutora em História Social
pela Universidade Estadu- dor João das Neves, nascido no Rio de Janei-
al de Campinas (Unicamp).
Professora do Instituto de
ro em 1935, participou de importantes grupos
História e do Programa de de teatro, como o do Centro Popular de Cul-
Pós-graduação em História
da Universidade Federal de tura (CPC) da União Nacional dos Estudan-
Uberlândia/UFU. Bolsista tes (UNE), o CPC-UNE/Setor Teatro (RJ), o
produtividade em pesqui-
sa do CNPq e do Programa Opinião (RJ) e o Poronga (AC). Sua entrada no
Pesquisador Mineiro, da Fa-
pemig. Autora, entre outros
CPC ocorreu na montagem da peça A gran-
livros, de História, teatro e de estiagem (1958), de Isaac Gondim Filho.
política. São Paulo: Boitem-
po, 2012 e Cena, dramatur- O grupo de João das Neves, denominado Os
gia e arquitetura: instalações, Duendes (1959/1963), foi expulso do Teatro
encenações e espaços sociais.
Rio de Janeiro: 7Letras, 2014. Arthur Azevedo e acusado de comunista pelo
E-mail: akparanhos@uol.
com.br.
governo de Carlos Lacerda. Logo, a inclusão

1
Este trabalho contou com o apoio financeiro do Conselho Nacional de De-
senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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do diretor no CPC se deu à medi- rua, no entanto, utilizava e ence-


da que a repressão da administra- nava textos baseados nos aconte-
ção estadual chegava cada vez mais cimentos políticos do momento;
perto dos grupos periféricos. Nesse os integrantes escreviam roteiros
episódio, o grupo encontrou solida- e iam para a rua representar. Essa
riedade no CPC, cuja ideia principal atividade serviu muito a João das
era difundir os valores nacionais e Neves como pesquisa de linguagem
acontecimentos políticos daquele de autor, de ator e diretor, uma vez
momento por meio de representa- que, como autor, por exemplo, ti-
ções cênicas que eram levadas aos nha experiência apenas com tex-
mais variados espaços e públicos. tos para crianças. Paulatinamente,
Assim, em 1963, João das Ne- adquiriu agilidade de tomar um
ves encontrou abrigo no CPC/UNE: tema e transformá-lo rapidamen-
te em um esquete, o que se tornou
A partir de determinado momento, passei a
dirigir o teatro de rua do CPC. A carreta ficou uma das características marcantes
comigo. Quer dizer, não só a carreta como de sua produção textual: a rustici-
todos os eventos de rua. Os shows, os esque-
tes, tudo o que se fazia na rua. Aliás, esse é dade, o imediatismo simples e ao
um trabalho do qual muito me orgulho. Por- mesmo tempo sofisticado do tea-
que se ouve muito determinado tipo de crí-
tica dizendo que o teatro de rua do CPC era tro de rua e a agilidade em escrever
maniqueísta, simplista etc... Ora, nós sempre
tivemos clareza de que aquele teatro tinha a um texto sobre determinado tema.
sua especificidade. O teatro de rua não é um A esse respeito, afirma o diretor:
teatro em que você possa ter nuances psicoló-
gicas, ter meias medidas. Ele tem uma estética [...] o nosso trabalho era muito direto, em
própria, que não é nem inferior nem superior cima do acontecimento, como uma reporta-
a outro tipo de estética, mas ele tem a sua, es- gem crítica das coisas que estavam aconte-
pecífica, que aliás o CPC desenvolveu larga- cendo. Privilegiávamos as formas teatrais po-
mente. De qualquer forma, com o passar do pulares mais diretas porque o nosso teatro era
tempo, nós também reavaliamos essa questão feito nas ruas, praças, sacadas de faculdades,
do teatro de agitação e propaganda, do tea- nos subúrbios, nas roças, ou em caminhão
tro de rua, e começamos a pensar em outras volante para as montagens mais ambiciosas;
possibilidades teatrais a serem exploradas. In- fazíamos teatro em qualquer lugar. Usávamos
clusive a nossa inclusão enquanto artistas no a forma de representar dos palhaços, dos bo-
próprio mercado de trabalho, com um teatro bos, o reizado, bumba-meu-boi, a commedia
de esquerda (NEVES apud BARCELLOS, dell’arte, o mamulengo etc. Os fatos acon-
1994, p. 262). teciam, imediatamente estabelecíamos um
roteiro crítico e íamos pra rua. Existia todo
De certa maneira, pode-se um processo de elaboração: escrevíamos,
montávamos e íamos pra rua representar. As
afirmar que o CPC trabalhava com montagens eram muito rápidas, tipo teatro
de guerrilha, no sentido de transmitir nos-
Os Duendes, no Teatro Artur Aze- sa mensagem. (NEVES apud MICHALSKI,
vedo, com teatro de fantoches e de 1980, p. 43)3

3
Sobre a trajetória de João das Neves, ver NEVES, 1987a e 2017.

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Grupo Opinião: teatro e política Opinião seu epicentro nos primei-


Imediatamente após o golpe ros anos após o golpe militar. Para
militar de 1964, um grupo de ar- João das Neves, que dirigiu o Opi-
tistas ligados ao CPC (posto na ile- nião por dezesseis anos, o trabalho
galidade), reuniu-se com o intuito
[...] era fundamentalmente político e, assim
de criar um foco de resistência e de pesquisar formas nos interessava – e interessa
protesto àquela situação. Foi então – muito. [...] A busca em arte não é apenas es-
tética – ela é estética e ética ao mesmo tempo.
produzido o show musical “Opi- Eu coloco no que faço tudo o que eu sou, tudo
nião”, com Zé Kéti, João do Vale e o que penso do mundo, tudo o que imagino
da possibilidade de transformar o mundo, de
Nara Leão (depois substituída por transformar as pessoas. Acredito na possibili-
dade da arte para transformar. (NEVES, 1987,
Maria Bethânia), cabendo a dire- p. 20-21)
ção a Augusto Boal. O espetáculo,
apresentado no Rio de Janeiro em É importante salientar que
11 de dezembro de 1964, no Teatro o grupo focaliza suas ações no te-
Super Shopping Center, marcou o atro de protesto, de resistência, e
nascimento do grupo, batizado com também se caracteriza por ser um
o nome da peça, bem como o do pró- centro de estudos e de difusão da
prio teatro, que viria a se chamar dramaturgia nacional e popular.
Opinião. Os integrantes do núcleo Afinado com essas propostas artís-
permanente eram Oduvaldo Vianna ticas e ideológicas, o diretor privi-
Filho (o Vianninha), Paulo Pontes, legia a montagem de textos, tanto
Armando Costa, João das Neves, nacionais quanto estrangeiros, que
Ferreira Gullar, Thereza Aragão, sirvam de enfoque para a situação
Denoy de Oliveira e Pichin Plá. política do Brasil nos anos da dita-
Desde a sua fundação o grupo dura militar, tais como: A saída, onde
privilegia a arte popular, abrindo fica a saída? (em 1967), de Arman-
espaço para shows com composito- do Costa, Antônio Carlos Fontoura
res das escolas de samba cariocas, e Ferreira Gullar; Jornada de um
não apenas influindo na mudança imbecil até o entendimento (1968),
de gosto do público, mas também, de Plínio Marcos; Antígona (1969),
por intermédio dessa mescla de es- de Sófocles, numa tradução de Fer-
paços, facilitando a disseminação reira Gullar; A ponte sobre o pân-
da cultura periférica aos centros de tano (1971), de Aldomar Conrado,
divulgação. Assembleias, reuniões e O último carro (1976), O quintal
e demais manifestações de protes- (1978), Mural mulher (1979) e Café
to da categoria teatral faziam do da manhã (1980) de João das Neves.4
Sem dúvida alguma, o teatro

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político constitui tema de destaque modificada, quer dizer, a segunda parte, onde
a peça sai do enfoque naturalista da realidade
na obra de João das Neves. Basta e parte para o realismo fantástico, era rejeita-
destacar um dos seus mais impor- da pelo grupo.
[...] fiquei querendo montar a peça, mas não
tantes trabalhos, O último carro ou tinha recursos nem possibilidades. E, além
disso, porque a censura não permitiria. (NE-
As 14 estações, metáfora do Brasil VES, 1984, p. 57)
em um trem desgovernado, mon-
tado pelo Grupo Opinião em 1976. No início de 1968, em meio
A peça foi concebida e escrita entre às divergências pessoais, o gru-
1961 e 1962 e 1964-1965 sendo re- po, já sem Oduvaldo Vianna Fi-
feita em 1967 por ocasião do 1º Se- lho, Paulo Pontes e Ferreira Gullar
minário Carioca de Dramaturgia, como sócios, produziu Jornada de
da qual foi vencedora. O enredo foi um imbecil até o entendimento,
urdido em meio às viagens de trem de Plínio Marcos, direção de João
que o autor fazia quando dirigia o das Neves e Dr. Getúlio, sua vida
Teatro Arthur Azevedo, em Cam- e sua glória, de Dias Gomes e Fer-
po Grande, Rio de Janeiro. Todos reira Gullar, direção de José Rena-
os seus personagens, segundo ele, to. A estreia de Jornada ocorreu no
foram seus companheiros nas via- Teatro Opinião, no Rio de Janeiro,
gens diárias de trem pela Central no dia 13 de junho de 1968 e se es-
do Brasil. No texto a ação se dá qua- tendeu até agosto do mesmo ano.
se inteiramente nos vagões de um No elenco, entre outros, Ari Fon-
trem, onde, numa simples viagem toura, Milton Gonçalves, Denoy
pelos subúrbios cariocas, mendigos, de Oliveira, Jorge Cândido e José
operários e personagens comuns Wilker5. João das Neves enfatiza:
do cotidiano revelam, entre uma
Plínio Marcos abandona aquele teatro-foto-
parada e outra, seus dramas parti- grafia para buscar novos rumos. Ele nos sur-
culares. Entretanto, de acordo com preende com um texto de mais pura inven-
ção, um roteiro para um espetáculo. A peça é
João das Neves, não existia consen- intencionalmente esquemática, dado margem
ao diretor de recriação. A direção e os atores
so na montagem naquele momento: trabalharam juntos na discussão social de
cada um dos personagens e como resultado
[...] não foi endossada, pois o grupo tinha a chegamos a uma imensa improvisação.
visão como um todo de que ela precisaria ser [...]

4
Em O quintal, concebida em 1978 e encenada em 1981 em Londrina/PR, João das Neves apresenta como enredo a inva-
são do prédio da UNE pelos militares, no dia 1º de abril de 1964, e as consequências dessa ação para os oito personagens
que lá se encontravam. Ver NEVES in: ESCOBAR et al, 1978, p. 111-122.
5
Ficha técnica Rio de Janeiro. Direção geral: João das Neves. Cenografia e figurinos: Carlos Vergara. Direção musical e
orquestração: Geni Marcondes e Pichin Plá. Músicas: Denoy de Oliveira. Letras das canções: Ferreira Gullar. Elenco/Per-
sonagem: Ary Fontoura/Mandrião; Denoy de Oliveira/Popô; Jorge Cândido/Bilico; José Wilker/Manduca; Milton Gonçal-
ves/Teco; Teca Calazans/Totoca. Produção: Grupo Opinião. Arranjos: Pichin Plá.

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Plínio Marcos dá um giro de 180º, lança-se a um plano para acabar com Pilico,
um novo caminho, sem temer os erros a que
esse caminho possa conduzi-lo... É possível porque eles descobrem que o con-
que, além do diálogo enxuto, da exata medida corrente estaria tentando trazer os
entre tensão e desafogo, da aguda capacida-
de de observação, muito pouco reste do Plí- outros pedintes para seu lado. No
nio Marcos que o público se habituou a ver e
aplaudir... Seu trabalho pressupõe riqueza de meio dessa disputa, os empregados
colorido, alegria violenta, enorme capacidade Manduca, Popô e Totoca analisam
de improvisação dos atores, características só
encontradas no descaramento interpretativo as vantagens que vão ganhar ao se
dos palhaços de circo ou na vigorosa comme- aliar a cada um desses dois lados.
dia dell’arte italiana”. (NEVES, 1968, p. 15-
16) Numa das primeiras resenhas
sobre a peça, em julho de 1968, no
Pela via humorística, a peça jornal Clarín destacam-se tanto o
critica a exploração no trabalho, texto de Plínio Marcos, no que se
formas de controle, opressão e alie- refere ao formato da farsa, da te-
nação religiosa entre um grupo de mática do circo e da televisão, da
seis personagens que vivem de es- linguagem popular, como a direção
molas. Caricaturesca, o tom de co- segura de João das Neves. Por si-
média da peça remete às origens nal, assinala-se que Plínio forne-
circenses do autor e a commedia ceu tão somente um “guia básico”
dell’arte.6 O enredo central focaliza ao grupo, deixando aos atores e
as articulações e malandragens de ao encenador total independên-
seis vagabundos – Mandrião, Teco, cia, liberdade e discussão de to-
Manduca, Popô, Pilico e Totoca dos os detalhes da representação.
– que sobrevivem pedindo dinhei- A resenha, sem autoria, eviden-
ro nas ruas e becos de uma cidade cia ainda que para João das Neves,
grande. Apenas Mandrião e Pilico Plínio abandona o “teatro-docu-
têm chapéus para pedir esmolas, mento, tipo depoimento e busca
sendo que o primeiro com a ajuda novos rumos.” (PLÍNIO..., 1968).
do Teco, uma espécie de secretário, Em setembro de 1969, Jor-
contrata – ou praticamente escra- nada de um imbecil até o enten-
viza – os demais pedintes, respal- dimento ganha o palco do Tea-
dados por uma falsa crença criada tro Maria Della Costa7, em São
por um deles. No decorrer da nar- Paulo. O crítico Sábato Magal-
rativa, Mandrião e Teco armam
6
Com duas versões anteriores, Os fantoches (1960) e Chapéu sobre paralelepípedo para alguém chutar (1965), o texto tem
sua versão definitiva em 1968. A primeira encenação de Os fantoches ocorreu no Teatro de Câmara de Santos, em Santos,
em 1960, e recebeu duras críticas, no jornal A Tribuna, na coluna teatral de Patrícia Galvão, a Pagu. Em 1962, foi reence-
nada em São Paulo, no Teatro de Arena, sem repercussão, e ensaiada em 1965, quando a censura vetou a apresentação. Ver
CONTIERO, 2007 e VIEIRA, 1994.

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di, no calor do momento, anotou: alidade, pois ensina os caminhos da desalie-


nação.
O autor, que denuncia com violência as ma- Teatro didático e teatro popular são classifica-
zelas sociais, cede lugar aqui ao moralista que ções que se ajustam perfeitamente ao espetá-
procura corrigir os erros dos costumes sem culo em cena, [...].
perder a mira, mas caçoando também dos [...] Jornada de um imbecil - tem todas as in-
próprios recursos teatrais. O diálogo mantém tenções (as melhores, para nós, que defende-
sempre a objetividade e a virulência do autor mos um teatro antiburguês, um teatro didá-
de Dois perdidos numa noite suja e Navalha tico e popular) de servir na hora urgente que
na carne, e ao mesmo tempo adquire a quase estamos vivendo (e morrendo) mostrando as
amenidade de quem prefere não agredir, mas chagas das estruturas sociais [...] fazendo [...]
aliciar pelo riso. No conjunto, Jornada situa- da ironia e da risada as armas contundentes
-se em nível inferior aos melhores textos de da verdade desmistificada e resolvida.
Plínio, com a vantagem de provar que ele não Resolvida como resultado de um jogo didá-
é um dramaturgo esgotado num estilo e tem tico organizado pelo autor a partir de um
talento e versatilidade para experimentar ou- esquema muito simples em que se coloca o
tras formas. problema muito complicado das relações do
O diretor João das Neves compreendeu muito capital e do trabalho, mundo de contradições
bem o problema que lhe é proposto pela peça que Plínio configura entre patrões e emprega-
e deu a melhor solução possível. O espetácu- dos, exploradores e explorados, algozes e ví-
lo passa-se num circo, à maneira do Auto da timas, tudo isso simbolicamente representa-
compadecida de Ariano Suassuna e aí o feitio do por personagens que o público reconhece
de farsa ganha um relevo natural e uma lin- com facilidade [...].
guagem muito adequada. [...] A linguagem simples, dita, maliciosa [...] não
Se o elenco fosse mais experiente, o resultado haverá espectador que não “sinta” na carne
falaria mais de perto ao público. [...] Denoy essa navalha, fazendo sangrar a verdade das
de Oliveira [...] mostra maior comunicabili- situações e das idéias [...].
dade, seguido por Alberico Bruno e Henrique [...] o espetáculo é todo destinado ao povo
Amoedo. Sua música, embora interessante, dos bairros urbanos, operários, trabalhadores
não se integra totalmente no espetáculo, para humildes e analfabetos ou gente do campo
ser a comédia musical pretendida pela ence- [...]. O fato de estar sendo apresentado num
nação. (MAGALDI, 2014, p. 97)8 teatro freqüentado só pelos burgueses, apenas
significa que falta organizar uma estrutura fi-
nanceira que permita fazer teatro popular no
No mesmo período, João lugar certo e que a Jornada de um imbecil
Apolinário analisa Jornada de tem de sair dos palcos para saltar dentro dos
circos e percorrer o mundo dos Brasis com
maneira bem especial, a come- sua mensagem exemplar sobre (como diz um
personagem bacana da farsa) a “dialética irre-
çar do título da sua crítica: “Essa versível da história”.
jornada de um imbecil é espe- Didático e popular, tudo isso, também, foi
resolvido pela direção do espetáculo, a cargo
táculo certo no teatro errado”: de João das Neves, que soube criar a farsa em
cada gesto, marcação, movimento, num ritmo
[...] este espetáculo que o Grupo Opinião está musical ininterrupto, próximo da commedia
apresentando no Teatro Maria Della Costa dell’arte, com alguns momentos de lumino-
prova a sua coerência e o seu desejo de en- técnica interessante na significação da atitude
sinar a verdade, mostrando as regras do jogo ou da palavra.
entre o capital e o trabalho. É uma denúncia Cada um, ou no conjunto, os atores realizam
que não se limita a testemunhar a nossa re-

7
Depois da montagem de Antígona, em 1969, o Grupo Opinião, afogado em dívidas, dissolve-se. João das Neves, o único
que não aceita tal decisão, decide continuar sozinho e parte em busca de novos parceiros. O teatro inclusive será alugado,
em alguns momentos, para jovens iniciantes e o próprio diretor passa a comandar espetáculos fora do eixo Rio-São Paulo.
Ver NEVES, 1984, p. 55-59 e KÜHNER e ROCHA, 2001.
8
Ficha técnica São Paulo. Direção geral: João das Neves. Cenografia e figurinos: Carlos Vergara. Direção musical e orques-
tração: Geni Marcondes e Pichin Plá. Músicas: Denoy de Oliveira. Letras das canções: Ferreira Gullar. Elenco/Personagem:
Alberico Bruno/Mandrião; Denoy de Oliveira/Popô; Jorge Cândido/Bilico; José Fernandes/Manduca; Henrique Amoedo/

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um trabalho de grande sinceridade e convic- que fez com que a peça desse “um pulo”, se
ção [...]. Gostei de todos [...]. As letras das descobrisse a si mesma.
canções de Ferreira Gullar e as músicas de Dentro daquela escrita mais ou menos esque-
Denoy de Oliveira [...] servem Jornada de um mática, a peça ganhou dimensão teatral com
imbecil com a mesma simplicidade que a di- a encenação através do trabalho dos atores,
reção pôs em tudo quanto se vê e se admira do meu trabalho e do trabalho do Verga-
no palco do Teatro Maria Della Costa (APO- ra. Quem lia a peça, ficava com a impressão
LINÁRIO apud VASCONCELOS, 2013, p. de que o texto não tinha valor. Mas, levada
110-113). à cena, através dessa encenação [...] ela ad-
quiriu outra dimensão. Adquiriu, em suma,
a sua verdadeira dimensão teatral. A dimen-
Aliás, é interessante perceber são, evidentemente, estava na peça. O proble-
como a dramaturgia de Plínio Mar- ma era descobri-la. E foi o que acho que nós
fizemos. (NEVES, 1987, p. 18-19)
cos está muito próxima da obra de
João das Neves: ambas percorrem No entanto, em O teatro sob
da existência miserável dos sujeitos pressão, também da década de
despossuídos que habitam o mundo 1980, Yan Michalski observa que
do trabalho à cidade moderna, lugar o “ ‘maldito’ Plínio Marcos, pouco
dos sonhos e pesadelos, da industria- acrescentou ao seu acervo anterior
lização moderna, do desemprego e através da sua Jornada de um im-
da pobreza.9 Tempo depois, no final becil até o entendimento, montada
dos anos 1980, o diretor (re)avalia pelo Opinião [...]” (MICHALSKI,
os sentidos simbólicos de Jornada: 1985, p. 37). Edélcio Mostaço, na
[...] esta peça, para mim, foi um marco fun- reedição do seu livro Teatro e po-
damental; porque é uma peça escrita em cima lítica, Arena, Oficina e Opinião, em
da perna. Não é uma peça acabada; [...] no
espetáculo, aproveitei tudo o que acumulara 2016, vai na mesma direção: “to-
como experiência: do circo, que aprendera na
infância; do teatro de rua; do CPC. Enfim, jo- mando o picadeiro de circo e suas
guei tudo em cima dessa peça; e misturei. Era personagens como espaço cênico
uma loucura, porque eu misturava todos os
gêneros. – afastando-se das criaturas margi-
Peguei o Vergara, que era um artista plástico nalizadas que tão apropriadamen-
e, juntos, bolamos um cenário muito interes-
sante. Nós trabalhávamos em arena e, nela, o te enfocara em seus textos iniciais
chão é fundamental. Então, enchemos o chão
com espuma de níveis diferentes, de modo – Plínio tenta aqui tornar didáti-
que a movimentação dos atores era determi- co o processo capitalista da mais-
nada não só por uma marcação básica, mas
também pelas reações que o chão dava a eles. -valia, empregando a linguagem
O chão impulsionava os atores e, a cada dia, das ruas, tão sua conhecida. O re-
os colocava surpreendentemente em situa-
ções novas. Era uma coisa muito interessante, sultado, todavia, é apenas sofrível”

9
Os “tipos” plinianos subvertem até certo tipo de teatro engajado em voga nos anos de 1960 e 1970, pois não veiculam, em
regra, uma mensagem otimista ou positiva quanto à possibilidade de se ter alguma esperança de mudança social. O que
importa é subsistir, seja como for: sem solidariedade de classe, sem confiança no próximo. Seus personagens se debatem
num mundo que não oferece vislumbre de redenção; estão envolvidos em situações mesquinhas e sórdidas, em que a luta
pela sobrevivência e pelo dinheiro não tem dignidade; via de regra, enveredam para a marginalidade mais violenta a fim
de atingir seus objetivos. Ver PARANHOS, 2012a e 2012b.

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(MOSTAÇO, 2016, p. 132-133). na maioria das vezes, para o campo


De toda maneira, indepen- político. Cabe realçar, a atuação dos
dente de qualquer situação, João dramaturgos Jorge Andrade, Gian-
das Neves chama a atenção para o francesco Guarnieri, Augusto Boal,
fato de que o texto teatral é, an- Dias Gomes, Ferreira Gullar, Odu-
tes de mais nada, uma “obra de valdo Vianna Filho, Plínio Marcos,
arte” que suscita “inúmeras emo- Carlos Queiroz Telles. Merecem
ções, frequentemente contraditó- também registro produções teatrais
rias”. Nesse sentido, o romance e que traziam consigo a insatisfação
o conto são obras completas, aca- com a ordem existente, como as
badas, quando se oferecem à leitu- do Teatro Universitário (TUCA/
ra. No texto dramatúrgico, ao con- PUC-SP, TUSP/USP, TEMA/Te-
trário, a leitura é apenas o início atro Mackenzie) e dos grupos Tea-
de um processo que só se fechará tro Jovem (RJ), Teatro Carioca de
com a encenação do espetáculo: Arte (RJ), Dzi Croquettes (RJ), As-
drúbal Trouxe o Trombone (RJ),
[...] as idéias expressas por um romancista ou
contista não poderão ser alteradas pela inter- Teatro de Arena de Porto Alegre/
pretação do leitor. A forma acabada ali está. TAPA (RS), Oi Nóis Aqui Traveiz
Por onde quer que caminhe a minha imagi-
nação, ela estará realizando um caminho úni- (RS), Cena Aberta (PA), Teatro
co e solitário. O ponto de referência de cada Experimental de Arte/TEA (PE),
leitor será sempre o próprio romance ou o
conto. Já no teatro, no texto teatral, melhor Grita (CE), Imbuaça (SE), Socieda-
dizendo, aquelas idéias poderão ser profun-
damente afetadas pela interpretação que se de Teatro dos Novos (BA), Teatro
faça delas. Isto porque o texto teatral necessita Livre da Bahia (BA), Teatro Uni-
sempre de mediadores entre o mero leitor e o
espectador. Estes mediadores são os intérpre- versitário Galpão (GO). No início
tes: atores, diretores, cenógrafos, figurinistas, da década de 1980, novas compa-
iluminadores, enfim, os realizadores do es-
petáculo teatral, que, partindo do texto, irão nhias despontavam no cenário ain-
se apresentar, em uma das inúmeras formas
finais possíveis aos prováveis espectadores. da governado pelos militares, como
(NEVES, 1997, p. 12-13) o Tá na Rua (RJ) e o Galpão (MG).10
Os anos 1960, em particular,
Arte, militância e criação cultural
trariam novos e ricos rumos para o
Apesar da censura e da dita-
teatro, desde o Living Theater, seus
dura militar, o teatro brasileiro, de
rituais e hapennings, às teorias do
uma maneira geral, nos anos 1960
polaco Jerzy Grotowsky, autor de
e 1970, continuava dando sinais de
uma corrente mais despojada, dan-
uma produção crescente e voltada,
10
Sobre outras linguagens teatrais ver: PACHECO in: MELLO (org.).,1986, p. 95-105; FERNANDES, 2000; PARANHOS
in: CARREIRA e LIMA (orgs.)., 2009, p. 93-117 e VAZ, 2011.

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do larga importância à expressão co. Espetáculos como Cemitério de automó-


veis (1968) ou, mais radicalmente, O balcão
do corpo cênico, o chamado “tea- (1969), encenados por Vítor Garcia, e Os Lu-
tro pobre”, passando pelos angry síadas (1972) inauguram novas possibilida-
des espaciais de diálogo com o espectador”.
young men da Inglaterra até Peter (HENRIQUE, 2006, p. 70- 71)11
Brook e sua peculiar noção de espa-
ço teatral e da nova relação palco/ Arte e política se misturam e
público. Esses movimentos, obser- se contaminam, negociando conti-
vados em parte pelo mundo ociden- nuamente a resistência e a gestão
tal, correspondiam aos anseios de daquilo que é em relação ao que
criadores, artistas e público jovem pode vir a ser, pondo em tensão o
que não se reconheciam mais no te- que está “dentro” e o que está “fora”
atro tradicional, questionando-o e do sistema instituído. João das Ne-
buscando outras e mais desafiantes ves, por meio da literatura dramá-
alternativas – transformando, ami- tica, funde diferentes expressões,
úde, o teatro num laboratório, per- imagens, metáforas, alegorias e ou-
meável às diferentes experiências tros elementos que, em conjunto,
e fusões com elementos cênicos de compõem um cenário significati-
outras culturas. Nesse sentido, po- vo de articulações de um modo de
demos afirmar que se evidenciava o pensar e agir, uma visão do mundo.
aparecimento de novos públicos, no- A chamada “tomada de posição”,
vas temáticas, novas linguagens e a seja ela qual for, é exatamente o
dinamização de canais não conven- que procura exprimir a noção de
cionais de comunicação que trans- “engajamento” ou do artista como
grediam as normas do sistema. Se- figura que intervém criticamente
gundo Marília Gomes Henrique: na esfera pública, trazendo consigo
não só a transgressão da ordem, e
[...] a busca de uma nova prática artística do a crítica do existente, mas também
teatro político dos anos de 1960, especial-
mente aquela comprometida com o desenvol- a crítica do modo de sua inserção
vimento de imagens que contribuíssem para no modo de produção capitalista,
a revelação da realidade social, constitui um
passo importante para a consolidação de no- e, portanto, a crítica da forma e do
vas poéticas, que se diferenciavam da forma conteúdo de sua própria atividade.
tradicional em que era produzido e realizado
o espetáculo. [...] Nesta época, a encenação Engajamento “político” ou “legíti-
deixa de ser um apêndice do texto e passa a
incorporar, apesar das características e pro- mo” como lembra Eric Hobsbawm
postas de cada grupo, o ponto de vista do (1998, p. 146), noutro contexto,
encenador. A partir de então, as encenações
exploram de diferentes modos o espaço cêni- “pode servir para contrabalançar a

11
Sobre ambiente criativo ao longo dos anos 1960, nas artes de um modo geral, ver também: MOSTAÇO, 2016, p. 131-150.

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tendência crescente de olhar para feria, fundou o Grupo Poronga:


dentro”, no caso, “o auto-isola-
Convidaram-me para dar um curso, eu fiquei
mento da academia” (1988, p. 154) lá durante um mês [...], acabei me identifican-
apontando, por assim dizer, para do com um grupo de pessoas de lá [...].
[...] fizemos alguns espetáculos, e eu pude
além dos circuitos tradicionais. desenvolver uma série de coisas que tinha
Essa tomada de posição é vontade de fazer no Rio de Janeiro e não po-
dia. Com o Poronga nós pudemos colocar em
exatamente o que aproxima, entre prática algumas idéias, tendo aquela realida-
de que nos cercava como base para nossas
outras coisas, trajetórias tão dife- pesquisas e nosso trabalho. A partir de então,
renciadas como a de Plínio Mar- acho que nunca mais trabalhei em um palco
convencional, em um espaço de palco italia-
cos e de João das Neves. Esse re- no. Nosso teatro era um teatro de arena. Mas
sultado reitera a noção de que as mesmo o espaço de arena era um motivo de
discussão. Meus trabalhos no Teatro Opinião
formas e produções culturais se foram sempre trabalhos que, entre outras coi-
sas, discutiam o espaço cênico. A nossa arena
criam e se recriam na trama das nunca funcionou basicamente como arena,
relações sociais, da produção e re- com as pessoas em volta: eu sempre fiz inven-
ções de espaço, sempre discuti a linguagem
produção de toda a sociedade e de desse espaço de arena que tínhamos e isso
suas partes constitutivas. Afinal, gerou alguns espetáculos bastante intrigantes.
(NEVES apud GARCIA, 2002, p. 159-160)

[...] as histórias nunca ocorrem no vácuo, é


claro. Nós nos engajamos no tempo e no es- Na década de 1990, João das
paço, dentro de uma sociedade em específico Neves fixou residência em Belo Ho-
e de uma cultura maior. Os contextos de cria-
ção e recepção são tanto materiais, públicos e rizonte e continuou desenvolvendo
econômicos quanto culturais, pessoais e esté- inúmeros projetos artísticos. Cir-
ticos. (HUTCHEON, 2011, p. 54)12
culou pelo país por diferentes espa-
Em 1984 — após passagens ços teatrais. Em 2015, o diretor e
por Salvador (com a criação do sua trajetória foram tema de uma
Opinião-Núcleo 2 – 1972/1975)13 grande exposição realizada no Itaú
e pela Alemanha (1978/1980) Cultural, em São Paulo. Com cura-
e a dissolução do Opinião em doria do próprio João das Neves e
198014 —, João das Neves se mu- de sua mulher, a cantora Titane, a
dou para Rio Branco onde, com Ocupação João das Neves dividiu-
atores amadores vindos da peri- -se em quatro eixos que percorre-
12
Sobre o tema do engajamento, ver SCHWARZ, 1999, p. 172-177 e PARANHOS, 2012.
13
“Realizamos em Salvador um trabalho que parecia um pouco com o que a gente tinha feito no Opinião e tentava parecer-
-se um pouco com o que fazíamos no CPC. Procurávamos abranger todas as áreas da atividade cultural, e não apenas o
teatro. [...] Levamos a Salvador os melhores profissionais de teatro infantil de então para discutir o teatro infantil, para
fazer oficinas [...]. Fazíamos, também, festivais de música. Enfim, era uma atividade muito grande” . (NEVES, 1987, p. 24)
14
Apesar das montagens de Mural mulher, em 1979, e Café da manhã, em 1980, e também dos protestos e manifestos,
com centenas de assinaturas, o teatro seria vendido. Os jornais chegaram a registrar a importância do Grupo “que foi um
encontro de cabeças pensantes, uma ideologia, um movimento de vanguarda e de resistência”. Na ocasião, João das Neves
declarou: “o Opinião é coisa que não se vende”. (KÜHNER e ROCHA, 2001, p. 194)

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ram os seus 60 anos dedicados à 1977, p. 7). Fecham-se as cortinas.


arte, e ajudaram a compreender a
sua carreira de artista engajado e
militante: Anos de chumbo, Luga-
res, Identidades e Festa. Escreveu
ainda peças e concebeu persona-
gens que iluminaram questões e
dilemas vivenciados por indíge-
nas, negros, mulheres, sertanejos,
prostitutas e representantes do
movimento LGBT, em obras como
Tributo a Chico Mendes (1989),
Primeiras estórias (1992), Pedro
Páramo (2001), Besouro cordão
de ouro (2006), Galanga — Chi-
co Rei (2010), As polacas (2010),
A santinha e os congadeiros, Aos
nossos filhos (2015), Madame Satã
(2015) e Bonecas quebradas (2016)
— esta última focada na questão
do feminicídio na América Latina.
João das Neves morreu em
decorrência de uma metástase ós-
sea, na sua casa, em Belo Horizon-
te, aos 84 anos, no dia 24 de agosto
de 2018, cercado do carinho da sua
mulher e de seus amigos.15 Com a
palavra, Plínio Marcos: “Que Deus
guarde esse nosso João e que as ge-
rações futuras saibam de seu valor
como homem. Como dramaturgo,
sem dúvida, ele fica.” (MARCOS,
15
Em outubro de 2018, no programa “Leituras Públicas”, do ciclo Dramaturgias da Opinião do Teatro da USP, foi feita
uma homenagem a João das Neves. “Jornada de um imbecil até o entendimento” e “O último carro” estavam no cardápio
cultural das apresentações dos textos dramatúrgicos abertas ao público. Em novembro, “Jornada” foi encenada no Centro
Cultural São Paulo, no Espaço Cênico Ademar Guerra, sob a direção de Helio Cícero. Na ocasião ocorreu o lançamento do
documentário “Jornada de um imbecil, 50 anos de entendimento”. O filme também marca a última entrevista concedida
pelo diretor João das Neves.

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Abstract

Sometimes condemned as escapist, other times praised as a tool for revolutionary libe-
ration, art generally remains a hot topic within academia as well as elsewhere. This text
addresses the multiple faces of João das Neves, director of Jornada de um imbecil até o
entendimento, by Plínio Marcos, performed by Grupo Opinião in 1968. The analysis we
propose here tries to illuminate different ways of making theater in Brazil, in this case,
from the edges inward. Indeed, the late director became known for his political or “legi-
timate” engagement, as Eric Hobsbawm puts it in a different context, raising ideas and
challenges under the Brazilian military dictatorship, issues that have lost nothing of their
contemporary relevance.

Keywords

João das Neves. Engagement. Dramaturgy.

Pitágoras 500, Campinas, SP, v. 9, n.2, [17], p. 65 - 79, jul. - dez. 2019 79
“Joãos”: João das Neves e
seu arquivo
José Francisco Guelfi Campos
Marta Eloísa Melgaço Neves
Verona Campos Segantini

Resumo >

O artigo pretende discutir, partindo do ponto de


vista da arquivística, os desafios da abordagem do ar-
quivo de João das Neves, sob guarda da Biblioteca Uni-
versitária da Universidade Federal de Minas Gerais,
sondando as circunstâncias que orientaram o processo
de acumulação documental, para então vislumbrar seu
potencial para a compreensão da trajetória do artista.

Palavras-chave:
Arquivos pessoais. Grupo Opinião. Teatro.
“Joãos”: João das Neves e seu arquivo

José Francisco Guelfi Campos1


Marta Eloísa Melgaço Neves2
Verona Campos Segantini3

Nascido no Rio de Janeiro, em 31 de de-


1
Professor da Escola de Ci-
ência da Informação da Uni- zembro de 1934, João Pereira das Neves Filho
versidade Federal de Minas
Gerais. Doutor em História
traçou uma trajetória profissional de relevo,
Social pela Universidade de atestada pelos diversos prêmios que recebeu ao
São Paulo. E-mail: jfgcam-
pos@eci.ufmg.br. longo da carreira, entre os quais mais de um
2
Professora da Escola de Ci- Molière, que sem dúvidas o credencia não ape-
ência da Informação da Uni-
versidade Federal de Minas nas como um “grande nome” do teatro brasilei-
Gerais. Mestre em Ciência
da Informação pela Uni-
ro, mas também como um “artista completo”.
versidade Federal de Minas Polivalente, desempenhou diversas funções no
Gerais. E-mail: nevesmarta@
hotmail.com. campo das artes cênicas: atuou, dirigiu e pro-
3
Professora da Escola de duziu peças e shows, criou cenários, agrupou
Belas Artes da Universida-
de Federal de Minas Gerais. pessoas e articulou movimentos que se espraia-
Doutora em Educação pela
Universidade Federal de Mi-
ram para além dos palcos. Da Fundação Brasi-
nas Gerais. E-mail: verona-
segantini@yahoo.com.br.
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leira de Teatro, onde iniciou a for- da ao acervo da Divisão de Obras


mação de ator e diretor em meados Raras e Coleções Especiais da Bi-
da década de 1950, aos projetos blioteca Universitária da UFMG.
que desenvolveu a partir dos anos Desde então, o arquivo, de
1990, quando fixou residência no inegável relevância para pesquisas
estado de Minas Gerais, esteve li- a respeito da biografia do “homem
gado ao Centro Popular de Cultura de teatro”, da história do teatro
da União Nacional dos Estudantes, brasileiro e de questões próprias
dirigiu o Grupo Opinião, passou dos mais variados campos do co-
temporada na Alemanha (experi- nhecimento, vem servindo também
mentando o teatro radiofônico), como objeto de experiências didá-
deslocou-se para o Acre, onde arti- ticas conduzidas por professores da
culou a formação do Grupo Poron- Escola de Ciência da Informação e
ga, engajou-se em questões ligadas da Escola de Belas Artes da UFMG
ao meio-ambiente e intensificou no âmbito de disciplinas optativas
seu interesse pelas comunidades que visam a incrementar a forma-
indígenas e pelas manifestações ção dos alunos do curso de gra-
da cultura popular (ENCICLO- duação em Arquivologia e promo-
PÉDIA..., 2019; BATISTA, 2014). ver amplo acesso aos documentos.
Falecido em 24 de agosto de Neste artigo, procuramos ex-
2018, nos últimos tempos João das plorar – sem a pretensão de esgotá-
Neves dividiu seu tempo entre a -lo – o potencial do arquivo de João
direção teatral, projetos de edição das Neves, com base em resultados
de livros e a seleção de itens de seu parciais obtidos nas experiências
acervo, vislumbrando a possibilida- em andamento. Para tanto, discuti-
de de doá-lo a uma instituição de mos a natureza e a constituição dos
custódia do patrimônio documen- chamados arquivos pessoais, bem
tal. Com recursos obtidos junto ao como o lugar instável que ocupam
Programa Rumos Itaú Cultural, no bojo da teoria arquivística, apre-
seus documentos receberam tra- sentamos panoramicamente o acer-
tamento inicial, foram higieniza- vo, no que tange aos seus aspectos
dos, acondicionados e digitaliza- formais, para então sondar, à luz dos
dos. Em 2017, uma parcela de seu documentos que o compõem, os de-
arquivo foi adquirida por meio de safios que se impõem na abordagem
doação pela Universidade Fede- do arquivo de um homem que impri-
ral de Minas Gerais e incorpora- miu, de forma sui generis, sua mar-

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ca na cultura e nas artes brasileiras. na medida em que tais documentos se des-


tinavam a permanecer na custódia des-
se órgão ou funcionário. (MULLER; FEI-
Arquivos pessoais TH; FRUIN, 1973, p. 13, grifos nossos)

A história dos arquivos se [conjuntos de] documentos que fizeram parte


de uma transação oficial e que foram preser-
confunde com o advento da escri- vados para referência oficial. (...) tanto os que
ta: em tabletes de argila, os sumé- foram especialmente produzidos em função
de uma transação oficial quanto aqueles nela
rios registravam a movimentação incluídos. (...) o conceito de arquivo deve ser
de pessoas, o pagamento de tribu- estendido às coleções formadas por organiza-
ções ou pessoas privadas, no gozo de suas ca-
tos, a entrada e saída de rebanhos e pacidades oficiais ou corporativas. (JENKIN-
SON, 1937, p. 4-5, tradução e grifos nossos)
mercadorias, com o claro propósito
de controlar a gestão de seus negó- Contudo, a noção de que os
cios frente a falibilidade da memó- subprodutos das atividades cotidia-
ria (BARRAZA LESCANO, 1996, nas, das malhas de relacionamento
p. 11-16). No dizer de Joël Candau social e familiar, e dos diferentes
(2012, p. 108), a escrita possibili- papéis sociais desempenhados pe-
tou o estoque de informações “cujo los indivíduos ao longo da vida po-
caráter fixo pode fornecer refe- dem ser considerados “documentos
renciais coletivos de maneira bem de arquivo” constitui reivindicação
mais eficaz que a transmissão oral”. relativamente recente no campo da
A condição instrumental (e oficial) Arquivologia, ainda que os chama-
dos documentos, ligada ao impera- dos arquivos pessoais venham des-
tivo da necessidade de fazer cons- pertando, desde há muito, o interes-
tar, controlar e administrar, esteve, se de historiadores e estudiosos das
desde o nascedouro, imbricada no mais diversas áreas do saber, como
conceito de arquivo4, definido nos sinalizaram Phillipe Artières e Do-
primeiros manuais da área5 como minique Kalifa (2002). Com efeito,
(...) conjunto de documentos escritos, de-
as desconfianças em torno da con-
senhos e material impresso, recebidos ou dição “arquivística” dos conjuntos
produzidos por determinado órgão admi-
nistrativo ou por um de seus funcionários, de documentos acumulados por
4
Como notou Aleida Assmann (2011, p. 367), a raiz etimológica do termo “arquivo” – do grego, arché – admite diferentes
significados, entre os quais “início”, “origem”, “autoridade”, “repartição pública”, “escritório público”, dos quais Jacques Der-
rida (2001, p. 11) derivou a suposta ambiguidade dos arquivos, contida na ligação entre “começo” e “comando”, o princípio
da natureza ou da história em concorrência com o princípio da lei.
5
Convém chamar a atenção para a relevância do Manual de arranjo e descrição de arquivos, popularmente conhecido
como “manual dos holandeses”, de Muller, Feith e Fruin, e do manual de Hilary Jenkinson, originalmente publicados em
1898 e 1922, como marcos da estruturação da Arquivologia como campo de conhecimento. Em que pese às críticas atual-
mente propaladas a estas obras e seus autores (LANE; HILL, 2011), havendo quem (ingenuamente) denuncie seu caráter
“positivista”, vale frisar que nelas se encontram conceitos e definições que, para além de terem fundamentado o desenvol-
vimento do pensamento arquivístico, renovam sua pertinência na atualidade.

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pessoas derivam de suas peculiari- de compreendê-los como impérios


dades, de seus contornos fluidos e da subjetividade, vale lembrar que
não raro indefinidos. Se é bem ver- os arquivos não surgem por capri-
dade que os indivíduos acumulam cho ou vaidade, pelo contrário, sua
documentos porque estes materia- formação atende a um movimento
lizam fatos, servindo-lhes de prova, necessário, progressivo, natural e
e são, via de regra, dispositivos ne- orgânico (BELLOTTO, 2002, p.
cessários para viabilizar atividades 21), embora não necessariamente
rotineiras e mediar a relação entre linear e isento de influências cir-
as pessoas, as instituições e o Esta- cunstanciais. Tampouco os docu-
do, também é certo que boa parte mentos são produzidos na expec-
daquilo que se encontra em um ar- tativa de que, num futuro remoto,
quivo pessoal não deriva de fatos ju- sirvam aos interesses dos pesqui-
ridicamente relevantes: registram sadores especializados. No dizer de
ações corriqueiras, pensamentos, Blanca Rodríguez Bravo (2002, p.
posicionamentos políticos, dão cor- 143, tradução nossa), “o documen-
po aos laços afetivos, familiares e to de arquivo nasce para dar vida
sociais (CAMPOS, 2014, p. 43-45). à razão de sua origem”, e a sua ra-
Os arquivos pessoais, de fato, zão de ser é justamente materiali-
podem inebriar aqueles que deles zar fatos, eventos e incidentes, no
se aproximam. Fascinam, enredam, sentido de viabilizar ações e de ser-
enfeitiçam, como alertou Angela vir-lhes de prova ou testemunho.
de Castro Gomes (1998). Iludem, No entanto, não é incomum,
fazendo acreditar que constituem dentre as diversas metáforas e re-
canais diretos de acesso à memória presentações aplicadas aos arquivos
dos indivíduos (ESCOBEDO, 2006) de pessoas, encontrar quem prefira
ou que são capazes de oferecer uma enxergá-los como “narrativas de si”
imagem cuidadosamente arquite- (McKEMMISH, 2013), “albergues
tada de quem os acumulou (HEY- de uma memória dotada de singu-
MANN, 2012). Mas reconhecê-los laridade” (ESCOBEDO, 2006) ou
como arquivos, no sentido estrito “repositórios de conhecimento re-
do termo, implica revisitar algu- alocado” (ASSMANN, 2011). Mar-
mas lições da teoria arquivística garet Hedstrom (2016) e Ulpiano
que nunca saem de moda, a despei- Toledo Bezerra de Meneses (1999)
to do surgimento de discursos su- trataram de explorar, de forma par-
postamente mais sedutores. Antes ticularmente sugestiva, as intrinca-

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das relações que podem ser traça- Como sublinhou Ana Maria
das entre documentos, arquivos e Camargo (2015), em ensaio dos
memória; contudo, convém evocar mais provocativos, os arquivos não
a conclusão a que chegou a arqui- são dotados de vida própria, nem
vista canadense Laura Millar: os da força necessária para promover
arquivos, bem como os documentos determinada versão dos fatos. Ma-
que os compõem, não armazenam téria inerte, os arquivos não falam
a memória de seus criadores, mas por si sós. A garantia de sua capa-
funcionam como gatilhos que acio- cidade especular, atributo congê-
nam processos de rememoração nito que os caracteriza e os distin-
(MILLAR, 2006), isto é, oferecem gue das coleções,6 avalizando seu
acesso à matéria-prima da memó- uso em situações e para finalidades
ria, garantindo a possibilidade de muito distintas daquelas que presi-
construí-la e moldá-la segundo as diram sua acumulação, repousa jus-
circunstâncias do presente (MEN- tamente na manutenção do elo en-
NE-HARITZ, 2001, p. 59-61). tre os documentos e as atividades
Antes de dar vazão às di- de que se originaram (CAMARGO,
versas possibilidades de interpre- 2009a, p. 36). Nisto reside a especi-
tação que podem ser extraídas a ficidade dos arquivos – sua condi-
partir da leitura dos documen- ção probatória – e também da dis-
tos, convém ter sempre em men- ciplina que se dedica a estudá-los,
te o fato de que o arquivo não a Arquivologia, definida por Ange-
constitui um fim em si mesmo: lika Menne-Haritz (1998) como “a
ciência dos contextos e relações”.
Se os arquivos não fossem meios, não lo-
grariam possuir a capacidade de refletir as
diferentes atividades de que participam. Su- Caminhos e descaminhos: a
por que todo arquivo, porque pessoal, tem
uma dimensão autobiográfica, eivada de formação do arquivo
distorções e conscientemente produzida, Se os arquivos não falam por
é ignorar a condição probatória que ema-
na das atividades ménagères. O contrário si sós e também não são capazes de
é verdadeiro: se o arquivo pessoal fosse ati-
vidade finalística, empenhada na constru- oferecer uma via direta de acesso à
ção de determinada imagem, deixaria de memória de seus titulares, é certo
ser arquivo. (CAMARGO, 2009a, p. 36)
que oferecem a possibilidade de ob-
6
Eivados de organicidade, “os arquivos refletem a estrutura, funções e atividades da entidade acumuladora em suas rela-
ções internas e externas” (CAMARGO; BELLOTTO, 2012, p. 65). Já as coleções se definem pelo agrupamento artificial
de documentos de origens diversas, geralmente sob a égide da afinidade temática. Não atendem, portanto, aos princípios
norteadores da teoria e da prática arquivísticas (proveniência, organicidade, unicidade, indivisibilidade e cumulatividade).
Sobre os princípios arquivísticos e a caracterização dos conjuntos documentais, recomenda-se ver Heredia Herrera (2015)
e Bellotto (2002).

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ter respostas às perguntas que lhes processo de formalização da doação


são formuladas. Segundo Menne- do acervo, pudemos ouvir o próprio
-Haritz (2001, p. 61, tradução nos- João das Neves falar a respeito do
sa), “os arquivos não devem ser processo de formação de seu ar-
lidos, eles devem ser compreendi- quivo, em entrevista ainda inédita,
dos”. Esta compreensão, que passa concedida pelo artista em sua re-
necessariamente pelo entendimen- sidência, na cidade de Lagoa San-
to da relação entre os documen- ta (MG), em 25 de junho de 2018.7
tos e seus contextos originários, Há pouco falamos a respeito
pode muitas vezes ser construída do movimento progressivo que, se-
também no patamar das informa- gundo a teoria arquivística, carac-
ções não verbais, na relação das teriza a acumulação de documentos
partes (séries documentais) com o e a formação dos arquivos, seja no
todo (arquivo), na disposição ori- âmbito das instituições, seja no es-
ginal ou “primitiva” dos documen- copo do cotidiano da vida privada.
tos (MENNE-HARITZ, 1992). Embora seja genuíno supor que
Tão importante quanto co- João das Neves tivesse consciência
nhecer as razões primeiras que da importância de sua obra e da rele-
determinam a produção dos do- vância de seu papel social, suas pala-
cumentos é buscar compreender vras reforçam a noção de que a acu-
as motivações, circunstâncias e os mulação documental atende a um
sentidos da acumulação documen- fluxo natural e orgânico. Além dis-
tal, bem como identificar as even- so, sinalizam a fronteira tênue entre
tuais transferências de propriedade o individual e o coletivo, manifesta-
e custódia, as intervenções técni- da a todo momento em seu acervo:
cas realizadas ao longo do tempo,
[...] eu não sou um arquivista sistemático [...]
as dispersões e as ocorrências que Quando nós formamos o Grupo Opinião, a
podem ter resultado em perda ou gente tinha um sentimento de guardar as coi-
sas porque era normal que nós guardássemos
mutilação de parcelas do arquivo. os recortes de jornais, as peças que nos envia-
Para além das sondagens e vam, não sei que lá, uma coisa mais ou me-
nos… cotidiano normal, sem nenhuma siste-
hipóteses levantadas ao longo de matização, nada disso. (NEVES, 2018)
três semestres de trabalho com
os documentos e com as listagens Com efeito, uma das primei-
preliminares que acompanharam o ras dúvidas surgidas no trabalho
com o arquivo teve justamente a
7
Parte do encontro foi registrado pela TV UFMG (ver referências). A íntegra da entrevista, totalizando 75 minutos, vem
sendo transcrita e, por ora, permanece inédita.

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ver com a representatividade do de não perder aquilo ali, não perder aquela
história e preservar tudo o que estava ali, in-
conjunto documental em relação dependente da importância do documento,
à trajetória do indivíduo. Em que da significação ou não [...] se aquilo se dissol-
vesse, aquilo ia o quê? No máximo nós íamos
medida seria o arquivo capaz de jogar fora metade das coisas, a outra metade
ia para cada um de nós, se espalhar, e se per-
refletir a vida de João das Neves, deria aquilo. (NEVES, 2018)
tendo em vista o extenso volume
de documentos que, num primeiro Já em 2004, o interesse sobre
momento, pareciam mais retratar o acervo do Grupo Opinião ganhou
as atividades do Grupo Opinião e as páginas dos jornais, em matéria
de outros grupos teatrais que parti- publicada em O Globo por ocasião
cipou? Aos poucos, a questão foi se do aniversário de 70 anos de João
desdobrando em outras: faz sentido das Neves e de sua mudança para a
pretender dissociar as trajetórias cidade de Lagoa Santa (MG), onde
de João das Neves e dos grupos por se estabeleceu após residir por cer-
ele fundados e dirigidos? Afinal, o ca de dez anos em Belo Horizonte.
que seria o arquivo de João e o ar- Na reportagem, o conjunto de foto-
quivo do Opinião? Seria possível grafias, recortes de jornal, cartazes
(ou até mesmo desejável) delimitar e gravações de espetáculos e sho-
onde um acaba e o outro começa? ws recebeu o status de “tesouro”
Embora fizesse questão de guardado na residência do artista,
ressaltar o sentido verdadeiramen- “material precioso para um livro”
te coletivo do Grupo Opinião, no (OLIVEIRA, 2004).
que tange à criação artística e tam- Os documentos atualmente
bém no que diz respeito às atribui- sob custódia da Biblioteca Univer-
ções de cunho administrativo, João sitária da UFMG não representam,
reconhece que, mesmo sem talento contudo, a totalidade do arquivo de
inato de gestor, teve de assumir a João das Neves. Com o falecimen-
posição de administrador dos negó- to do titular, a aquisição de outras
cios do grupo, sobretudo depois das parcelas de seu arquivo agora de-
cisões ocasionadas por desentendi- pende de tratativas e negociações
mentos entre seus integrantes. Ao com os familiares. Mesmo que ou-
assumir as dívidas do Grupo, le- tros documentos sejam incorpora-
vou de “brinde” também o arquivo: dos ao fundo, por meio de doação,
não se poderá falar em um arqui-
[...] eu tomei a decisão de não acabar com o vo “completo”: a totalidade dos ar-
Grupo [...] eu vou assumir as dívidas do Gru-
po e quero ficar com o acervo, tudo que está quivos é sempre inatingível, haja
aqui vai ser meu. [...] eu sentia a necessidade
vista que passam, inevitavelmente,

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pelo crivo de seus titulares, que não e exposição),8 parecem ter deter-
raro avaliam os documentos ainda minado a decisão de doar os docu-
em vida, excluindo periodicamente mentos para uma instituição capaz
aquilo que não mais lhes convém, de acolhê-los, tratá-los e promo-
seja porque os documentos perde- ver o acesso irrestrito ao arquivo.
ram a funcionalidade original ou o
Então chegou um ponto que eu disse não, não
potencial de reutilização, seja por dá pra guardar tudo. O que que eu vou fazer
outras razões às vezes insondáveis. agora? Eu vou jogar fora? Quer dizer, eu vou
doar para uma instituição [...] ver o que é re-
Outras intervenções, no sentido de levante nisso, o que não é relevante, afinal de
seleção dos documentos também contas é tanto papel que não é relevante [...]
me assustou o grande interesse da UFMG em
podem ser realizadas pela família e torno do arquivo. Eu não tenho ainda noção
da dimensão que esse arquivo possa ter quan-
até mesmo pela instituição de cus- do vocês começam a falar dele [...] Quinze
tódia, de modo a atender aos inte- pessoas na minha casa por causa desse arqui-
vo? Meu Deus do céu, deve haver algum equí-
resses que qualificam sua linha te- voco aí! (NEVES, 2018)
mática ou esfera de especialização.
O arquivo de João das Neves esteve O arquivo de João das Neves e
também sujeito a situações fortui- os vários “Joãos”: sondagens e
tas que resultaram em perdas irre- desafios
paráveis: Vasto e multifacetado, o arqui-
vo de João das Neves – ou, melhor, a
[...] esse arquivo, eu perdi parte dele. [...] parcela dele que atualmente se en-
numa dessas tempestades das águas de mar-
ço no Rio de Janeiro [...] meu telhado tinha contra na Biblioteca Universitária
muitas telhas quebradas [...] a laje se encheu da UFMG – é composto de docu-
de água, né, a água não costuma ficar para-
da, procura sempre um lugar por onde sair, mentos que registram suas ativida-
e achou, né? E achou em cima de onde? [...]
Da minha biblioteca. Eu tive perdas também des profissionais no campo das artes
da minha biblioteca, perdi mesmo, e parte do cênicas no período que se estende
arquivo que tava ali também foi embora. (NE-
VES, 2018) da década de 1960 aos anos 1990.
Destacam-se, no conjunto,
O aumento progressivo do documentos de gênero textual (isto
volume do conjunto documental, é, aqueles que utilizam a palavra es-
mais a escassez de espaço para man- crita na comunicação de seu conte-
tê-lo em casa e também certa no- údo), produzidos em suporte papel,
ção acerca de sua utilidade pública embora note-se também, em me-
(vale recordar que parte do acervo nor volume, documentos de gênero
já havia sido objeto de digitalização
8
Parte do acervo foi exposta na Ocupação João das Neves, que ficou em cartaz de 27 de setembro a 8 de novembro de 2015
na sede do Instituto Itaú Cultural, em São Paulo (SP).

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iconográfico, sonoro e audiovisual Museologia, alunos da Escola de


em suportes magnéticos e ópticos, Ciência da Informação e técnicos
além de troféus, medalhas e outros da Biblioteca Universitária, tem
distintivos que representam os prê- como uma de suas perspectivas do-
mios e honrarias recebidos ao longo tar o arquivo de instrumento des-
da carreira. Na primeira remessa, critivo elaborado em consonância
o artista doou à universidade cer- com a teoria arquivística, capaz de
ca de 8 mil itens documentais,9 os informar aos usuários as relações
quais se encontram higienizados e contextuais entre as séries docu-
acondicionados em caixas e outros mentais e, consequentemente, o
invólucros adequados ao formato e potencial informativo acerca das
à natureza dos diferentes suportes. funções, atividades e dos eventos
Atualmente, o arquivo vem que presidiram a sua acumulação.
passando por conferência, toman- Em que pese ao conhecimen-
do-se por base a listagem prelimi- to ainda incipiente acerca do con-
nar preparada por uma equipe co- junto documental e da ordenação
ordenada pelo titular a pedido da a que foi submetido quando de sua
Procuradoria Jurídica da UFMG preparação para a aquisição, o tra-
como parte das exigências para a balho direto com os documentos ao
conclusão do processo de doação. longo dos últimos três semestres
Embora não se destine a descre- letivos (iniciativa a ser continua-
ver os documentos em todos os da em 2019 e nos anos seguintes,
seus aspectos formais e contextu- tanto no âmbito de disciplinas op-
ais, esta listagem vem sendo utili- tativas quanto no escopo de pro-
zada como instrumento norteador jetos de pesquisa e de extensão)
do acesso ao arquivo, dividido ini- permite vislumbrar, mesmo que de
cialmente em três séries documen- forma embrionária, o potencial do
tais. No entanto, cumpre ressaltar arquivo para a compreensão da tra-
que não se trata de instrumento de jetória de João das Neves, de seus
pesquisa definitivo. O trabalho de modos de pensar e agir, bem como
revisão, que vem envolvendo dois para pesquisas em outros campos
professores do curso de Arquivo- do saber, não necessariamente cen-
logia, uma professora do curso de tradas na biografia do teatrólogo.

9
Convém frisar que a extensão exata do arquivo, no que diz respeito ao número de unidades documentais, tende a se
alterar, dado que o processo de conferência tem revelado a existência de itens que não foram identificados na listagem
preliminar ou que estavam identificados coletivamente, carecendo de desmembramento.

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A série 1, composta por foto- ves e dos grupos em que atuou.10


grafias, contém, para além de re- Na série 3 estão representa-
portagens fotográficas de ensaios e das as atividades de gestão, no que
encenações de diferentes espetácu- tange à administração de pessoas,
los, retratos de sua estada na Ale- recursos financeiros e espaços te-
manha, entre 1978 e 1979, período atrais, por meio de documentos
em que lá estudou e trabalhou com como contratos de trabalho, reci-
bolsa oferecida pela Westdeuts- bos, orçamentos, alvarás de fun-
cher Rundfunk. Destacam-se os cionamento e certificados emitidos
registros fotográficos de produ- pelo serviço de censura. Nesta mes-
ções teatrais do Grupo Opinião, ma série se encontram documentos
do Poronga e de outros projetos relativos à organização de seminá-
em diferentes cidades. Sobressaem rios (uma constante na trajetória
também imagens que registram de João das Neves), documentos li-
sua atuação em Rio Branco (Acre, gados à criação artística, como pe-
1986 a 1992), bem como o seu tra- ças de teatro, notas e comentários
balho junto aos Grupos de Conga- redigidos ao longo da preparação
do e à Festa do Rosário em Oliveira e do ensaio de espetáculos, além de
(Minas Gerais, a partir de 1992). apontamentos e reflexões de cará-
A série 2 é composta por re- ter teórico e especulativo a respeito
cortes de jornal reunidos, em sua da fundamentação de sua prática e
maioria, por agências de clipping, de suas concepções de dramaturgia.
testemunhando, por meio de anún- Como em todo arquivo, la-
cios e resenhas, o acompanhamen- cunas e silêncios permeiam o con-
to da divulgação dos espetáculos junto documental. Neste sentido,
e as críticas veiculadas na impren- convém notar a ausência de docu-
sa periódica. A expressividade do mentos ligados à prolífica produção
conjunto documental pode ser bibliográfica do titular, bem como
explicada tanto pela importância o reduzido volume de correspon-
dos jornais diários na articulação dência presente na remessa doada
dos diferentes aspectos da vida à UFMG, o que pode se explicar,
social (político, econômico e cul- entre outras hipóteses, pela suposi-
tural) quanto pela intensa capaci- ção de que João das Neves ainda os
dade de trabalho de João das Ne- utilizasse como subsídios para os

Segundo João das Neves relatou em entrevista, o Grupo Opinião chegava a realizar até nove apresentações por semana
10

(NEVES, 2018).

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projetos que vinha desenvolvendo. como ator, autor, diretor e gestor


Para além da força probatória - são capazes de revelar o repertó-
em relação às atividades que motiva- rio que mobilizou para conformar
ram sua produção e acumulação, os seu pensamento e fundamentar a
documentos podem ser empregados sua dramaturgia, além de apontar
na construção e compreensão de di- como sua produção artística é in-
ferentes facetas de João das Neves, terdependente da prática política.
aspectos ou momentos de sua pro- São estes alguns aspectos de
dução artística e de sua complexa João das Neves que podem ser vis-
trajetória, em que pese à ausência lumbrados a partir do contato com
de registros acerca de sua intimi- os documentos que acumulou. No
dade e de suas relações familiares. entanto, os arquivos não são capa-
O entrelaçamento dos per- zes de corresponder de forma dire-
cursos do teatrólogo e do Grupo ta aos interesses e questionamen-
Opinião dá a tônica das percep- tos de quem deles se aproxima, de
ções que vêm sendo tecidas a res- modo que tantos outros ângulos
peito da constituição do arquivo. poderão vir à tona segundo dife-
Ainda que não estejam destacados, rentes perspectivas de observação.
mas dispersos entre as três sé- Se a redação dos documentos,
ries documentais, é interessante na esfera das ações administrativas
notar que os registros relaciona- oficiais, obedece aos ditames do di-
dos à atividade do Opinião justi- reito, do notariado ou das rotinas
ficam a urgência manifestada por burocráticas que imprimem deter-
João das Neves em preservá-los. minadas marcas características do
Vale sublinhar que os deslo- contexto de produção, permitindo
camentos marcam sua trajetória, o reconhecer, mesmo em documen-
que se traduz na formação do ar- tos isolados, “o ato que lhes deu ori-
quivo. Embora a seleção e a guarda gem, o agente responsável por tal
dos documentos tenham sido im- ato e o procedimento então conven-
pulsionadas pelo desejo de preser- cionado para cumpri-lo” (CAMAR-
var o arquivo do Grupo Opinião, é GO, 2009b, p. 428), no que tange
certo que o conjunto documental aos documentos geralmente encon-
foi sendo acrescido a partir da con- trados nos arquivos de pessoas nem
tinuidade das experiências profis- sempre é assim: autoria, título que
sionais. Os documentos - subpro- remeta ao conteúdo do documento,
dutos das atividades que exerceu data, local, entre outros elementos,

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podem simplesmente estar ausentes. senclever, Arnolt Bronnen e Hans


O que, por um lado, pode Johst e à luz da sociologia de Fritz
mesmo dificultar a identificação Sternberg, confluindo para a sínte-
das circunstâncias de produção do se de uma determinada concepção
documento, por outro, não chega a de dramaturgia. Não se conhecem
obscurecer seu contexto de acumu- o título, nem o autor, tampouco
lação. Estamos diante de um dile- a data em que o texto foi escrito.
ma que, por mais difícil que seja sua Também não estão dadas as con-
solução (do ponto de vista da ar- dições ou circunstâncias sob as
quivística), não impede ao usuário quais o documento foi produzido,
lançar mão destes documentos (ou lido, apropriado. O estilo de escrita,
fragmentos de documentos) como formal, muito próximo do acadê-
fontes para a pesquisa. O arquivo mico, oferece pistas que se desdo-
de João das Neves não escapa a esta bram em hipóteses sobre a origem
realidade. Nele, como em qualquer do documento: teria sido prepara-
outro arquivo pessoal, também es- do para uma palestra? Seria tradu-
tão presentes documentos eivados ção de um ensaio ou de um artigo?
de aspectos fragmentários. De toda Apontamentos de leitura, reflexões
forma, neles se reconhecem as mar- esparsas de um João estudioso?
cas de sua proveniência, isto é, as De uma forma ou de outra, o
razões pelas quais foram acumu- que se sabe, com segurança, é que foi
lados, o que possibilita atribuir- acumulado por João das Neves, na
-lhes significados em potencial e esteira de suas atividades rotineiras,
até mesmo sondar o lugar que ocu- na forja de seu ofício. A leitura do
pam no bojo das atividades rotinei- conteúdo do documento em função
ras do indivíduo que os preservou. do conhecimento da trajetória do
Caso exemplar é o de um item homem que o acumulou sinaliza, de
incompleto11 que compõe a série 3. maneira particularmente sugestiva,
Em 14 páginas datilografadas (fal- as opções com que João das Neves
ta a primeira), articula-se uma dis- fundamentou sua arte. A condição
cussão acerca da relevância da obra instrumental deste documento se
de Bertold Brecht, a partir da con- ilumina: a partir daí, vão se desdo-
traposição a trabalhos de escritores brando as possibilidades de encon-
expressionistas como Walter Ha- trar, no labirinto de seu arquivo,

11
Universidade Federal de Minas Gerais, Biblioteca Universitária, Divisão de Obras Raras e Coleções Especiais, Arquivo
de João das Neves, série 3, caixa 19/23, pasta 44.

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não apenas um, mas vários “Joãos”.

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caixa 19/23, pasta 44.

Pitágoras 500, Campinas, SP, 9. , n.2, [17], p. 80 - 97, jul. - dez. 2019 96
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Abstract

This paper discusses, from the perspective of Archival Science, the challenges of the ap-
proach to João das Neves’ archives, under custody of the Federal University of Minas
Gerais, prospecting the circumstances of the recordkeeping and finally shedding light
over its informational potential for understanding the artist’s journey.

Keywords

Personal archives. Grupo Opinião. Theater.

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João das Neves: cenógrafo
e artífice - sobre o cená-
rio de Maria Lira

Resumo >

Este artigo relata o processo de concepção do ce-


nário do espetáculo Maria Lira, da Cia Ícaros do Vale
Niuxa Dias Drago

(Araçuaí/MG), escrito e dirigido por João das Neves.


João também concebeu o cenário, que se inspira na sé-
rie “bichos do sertão”, da artesã Maria Lira Marques,
personagem título do espetáculo dedicado à cultura
popular do Vale do Jequitinhonha. O cenário é analisa-
do à luz das reflexões de Richard Sennet em O Artífice
(2009).

Palavras-chave:
Cenografia. Companhia de Teatro Ícaros do
Vale. Maria Lira.
João das Neves: cenógrafo e artífice - sobre
o cenário de Maria Lira

Niuxa Dias Drago1

“Em seus patamares mais elevados a técnica deixa de ser uma


¹ Arquiteta e urbanista, com atividade mecânica, as pessoas são capazes de sentir plenamen-
pós-graduação em artes cê- te e pensar profundamente o que estão fazendo, quando o fa-
nicas. Atriz formada pela zem bem”
Escola Martins Pena. Pro- (SENNETT, 2009, p.30)
fessora do Departamento de
História e Teoria da Arqui- “Na argila, a artista mergulha todo o seu ser através da mão,
tetura na FAU/UFRJ e pes- até fundir-se com ela. A boneca e a bonequeira nascem juntas,
quisadora colaboradora do em núpcias que se prolongam pela história transcorrida entre a
Laboratório de Estudos do argila fria e a argila ignescente.”
Espaço Teatral e Memória (BRANDÃO, [s.d], p.26)
Urbana da UNIRIO. Auto-
ra de “A cenografia de Santa
Rosa - espaço e moderni-
dade” (Riobooks, 2014). E-
-mail: niuxadrago@gmail.
com.
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O Lugar – Mulheres e arte popular nicípio de Araçuaí.2 A mulher, so-


no Vale do Jequitinhonha zinha com os filhos, era – e ainda
A região do Médio Jequiti- é – responsável pela casa, lavouras,
nhonha, onde se encontra o muni- criação e produção de artefatos ce-
cípio de Araçuaí, tem sua ocupação râmicos, inicialmente utilitários.3
por tropeiros e sertanistas datada Por uma série de fatores, que
do final do século XVIII e início do vão da chegada de vasilhames de
XIX, com o esgotamento das mi- plástico ao incentivo institucional
nas do Alto Jequitinhonha (região ao artesanato, as antigas moringas
de Diamantina). A sobrevivência d’água foram se tornando bonecas,
na região nunca foi muito fácil, mas como atestam as peças em que a
a ocupação das terras possibilitava, cabeça das moringas em forma de
quando as famílias não eram gran- mulher, antes retiráveis, tornaram-
des, uma lavoura de subsistência. -se fixas, inicialmente com aber-
Eram também comuns a exploração tura na parte posterior compro-
de pedras preciosas e criações de vando ainda uma função utilitária
gado, especialmente por ocupantes que, aos poucos, foi desaparecendo.
vindos do sertão baiano (RIBEIRO Carlos Leite Brandão, ao apresen-
apud MASCELANI, 2008, p. 34- tar Dona Isabel, a mais reconhe-
36). Não obstante, o motivo pelo cida dessas pioneiras criadoras de
qual a região é chamada de “terra bonecas, descreve poeticamente o
de viúvas de marido vivo”, ou seja, processo de autonomização da arte:
a ausência da população masculina
Esses utensílios – cansados de serem apenas
durante grande parte do ano, ini- úteis e postos no esquecimento tão logo es-
cia-se ainda no século XIX, pois era gotada sua serventia (...) – reivindicam, na
imaginação material do artesão, alças meta-
comum, nas épocas de seca, que os morfoseadas em mãos de mulher apoiadas na
homens procurassem ocupação em cintura e que sugerem o corpo de uma bone-
ca, o redondo de um rosto de olhos abertos
outras regiões. Essa migração sa- ou rasgados, e as feições híbridas do índio,
do branco, do negro e do mestiço. Essa é a
zonal intensifica-se no século XX e, genealogia das peças de Dona Isabel, a mais
principalmente, após a desativação antiga e talvez mais famosa escultora do Vale;
a primeira a compreender que o artista não
da ferrovia Bahia-Minas, que tinha esculpe o que quer, mas o que “a coisa” quer,
seu ponto final exatamente no mu- especialmente quando essa “coisa” é o barro.

2
Os três principais núcleos habitados do município – Araçuaí (sede), Alfredo Graça e Engenheiro Schnoor (popularmente
conhecido como “Xinô”) são os remanescentes das três estações da Bahia-Minas no município, o que demonstra a grande
importância da ferrovia na ocupação da região.
3
Lélia Coelho Frota relata, em publicação da FUNARTE de 1984 que, até aquele momento, era incomum encontrar nas
feiras da região objetos cerâmicos não utilitários, e que estes se limitavam a pequenos animais como galos, boizinhos e
outras peças relacionadas à tradição natalina do presépio. (Ver MASCELANI, 2008, p.74)

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(BRANDÃO, [s.d.], p. 25) ferentes linguagens artísticas, em que a cria-


tividade e autoria individual ocupam lugar
central (...).
O momento determinante Além das autorias singulares, um outro crité-
para que o Médio Jequitinhonha rio fundamental da demarcação desse campo
é o enquadramento de seus partícipes numa
se tornasse um grande celeiro de dada estrutura social. A arte dita popular –
artesãs inicia-se com a atuação da praticada por aqueles identificados como
gente do povo, qualificativo que, em geral,
Codevale4 e outras instituições que, indica mais do que a origem socioeconômi-
ca de um grupo – remete a um conjunto de
a partir da década de 1970, estimu- valores que identifica um modo de ser nativo.
lam o associativismo em algumas De criar e transformar a partir do que se tem
em torno, de iluminar os valores da naciona-
regiões onde já havia, nas feiras, lidade, de sintetizar aspectos do pensamento
objetos cerâmicos característicos. coletivo. (p.21)

É o sucesso do associativismo que O cooperativismo e a atuação


leva o artesanato a ser uma ativi- da mulher são as características
dade econômica determinante na mais determinantes da arte popular
vida de muitas famílias do Vale. do Vale do Jequitinhonha, consoli-
Esse é um dado importante para se dando-se como esteios econômicos
compreender a vida de Maria Lira das comunidades, definitivamente,
Marques, a existência de muitos a partir da década de 1990. São tam-
grupos artísticos e associações em bém os temas centrais em torno dos
cidades como Araçuaí e o espetá- quais se desenvolve a dramaturgia
culo concebido por João das Neves. e o cenário do espetáculo no qual
Angela Mascelani (2008), ao João das Neves busca traduzir po-
caracterizar a arte popular brasilei- eticamente a região e sua cultura.
ra, aponta como prioridade esse viés
cooperativo: ao mesmo tempo em O Espetáculo
que destaca inventividades indivi- O processo de montagem do
duais, a arte popular é fruto de uma espetáculo inicia-se em julho de
comunidade, e sua importância e en- 2007, com a realização de uma ofi-
canto jaz nessa capacidade de desta- cina para seleção de elenco em Ara-
car o único no conjunto, e fortalecer çuaí, dirigida por João das Neves,
o conjunto a partir do individual: já que a Companhia contava então
A arte popular circunscreve um campo de com apenas cinco integrantes. Na
produção que estabelece conexões com di- concepção do diretor, eram neces-

4
Coordenação do Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha, criada pelo Estado de Minas em 1965. O programa de
Artesanato da Codevale funcionou de 1970 a 1990 e foi responsável não só por incentivar a formação de associações de ar-
tesãos, mas pela compra de grande parte da produção, levada para os grandes centros urbanos, com a consequente criação
das redes que possibilitam o reconhecimento e consumo das obras cerâmicas da região. (Ver MASCELANI, 2008, p.76)

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sários mais integrantes para repre- via ser flanqueada por 4 postes de
sentar a importância de Lira para a eucalipto onde estariam hasteados
associação comunitária, exemplifi- estandartes, e ter ao fundo outros
cada, principalmente, pela fundação tantos estandartes – todos ilustra-
do Coral Trovadores do Vale.5 Ini- dos com desenhos de Maria Lira – e
ciou-se também um processo de se- tudo seria iluminado por 25 refleto-
leção de músicos, dada esta impor- res distribuídos em 3 torres (Fig. 1).
tante relação de Lira com a cultura
musical da região. Além da seleção
do elenco6, durante esta primeira
estada em Araçuaí, toda previsão
da produção do espetáculo foi rea-
valiada a partir da ideia de “teatro
NA rua” que, segundo João das Ne-
ves, deveria utilizar todos os recur-
sos técnicos possíveis, em período
noturno, transportando o máximo
Fig. 1 - João das Neves. Projeto de cenário para Maria
da poesia da caixa cênica para o es- Lira. Foto do acervo da autora.
paço público, sem abandonar a di-
nâmica de interação público-plateia Como o orçamento disponí-
que caracteriza o espetáculo de rua. vel não permitia a realização das
Inicialmente, João desenhou plataformas,7 principalmente em
um espaço formado por uma pla- virtude do transporte, já que a tur-
taforma quadrada central de 8m nê previa deslocamentos de muitos
x 8m e 80 cm de altura, à qual se quilômetros em estradas precárias,
ligavam, por pontes, 5 plataformas João das Neves abriu mão do pro-
circulares de 1,5m de raio e 60 cm jeto inicial, adaptando o dispositi-
de altura. A plataforma central de- vo a um desenho no piso. Sua ima-

5
Além de pesquisadora do repertório popular gravado e divulgado pelo Coral Trovadores do Vale, Maria Lira é uma das
primeiras integrantes do Coral, fundado em 1970 pelo Frei Franciscano Francisco van der Poel (o Frei Chico). Lira gravou
canções em dupla com Frei Chico, além de participar de shows e programas musicais a seu lado.
6
O elenco inicial do espetáculo foi composto por 5 homens - Luciano Silveira (diretor da Companhia e coautor do texto
do espetáculo), Anderson Costa Santos, Jailson Mendes Silva, Alberto Pereira dos Santos e Eslane Luis dos Santos – e 8
mulheres – Lenita Luiz dos Santos (desempenhando o papel de Lira), Ângela Gomes Freire (atriz convidada do Grupo
de Teatro Vozes, de Araçuaí), Lorenza Vieira Rodrigues, Cleidilane Ferreira dos Santos, Walkíria da Conceição Araújo,
Vaniza Silva Pinheiro e as atrizes convidadas Niuxa Drago e Anna Maria Esteves – além dos músicos Denner Peter (violão)
e Ademir Ferreira (percussão).
7
O espetáculo foi aprovado no Fundo Nacional de Cultura do Estado de Minas Gerais no ano de 2007 e recebeu patrocínio
da AVON, através da CRIA! Cultura.

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ginação criadora e o mergulho na senho das plataformas, João man-


cultura e personagens locais, então, teve, para que não se perdesse a
levaram-no a lançar mão dos tra- ideia de um palco, os postes com os
dicionais tapetes de Corpus Christi estandartes, e uma pequena plata-
como referência à religiosidade po- forma de 2m x 2m com 40 cm de
pular implícita na arte do Jequiti- altura, que poderia ser transporta-
nhonha. “(...) a religiosidade popu- da no ônibus da turnê, e ocuparia
lar que sempre se traduz em festa. o fundo da área cênica, abrigando
Porque é na festa da religião que se a narradora. Estes elementos tri-
vivenciam as alegrias capazes de dimensionais, junto à iluminação
exorcizar as dores e tristezas do dia cênica, criavam uma caixa imagi-
a dia.” (NEVES, 2013, p.15). Os es- nária, e eram imprescindíveis para
paços seriam, então, criados a par- caracterizar o seu “teatro NA rua”,
tir de desenhos no piso, feitos com não só porque transportavam para
terra vermelha e serragem tingi- a rua a poesia do palco, mas por-
da. Os desenhos de Lira, antes no que o contraponto entre a narração
fundo do palco, estariam no chão. e o coro, o individual e o coletivo,
A serragem, material de trabalho o palco e a arena, precisavam des-
de outra importante artesã e con- tes elementos para se expressar.
tadora de histórias da cidade, Dona Durante sua segunda estada
Zefa, formaria o tapete sobre o qual em Araçuaí, em agosto e setembro
Lira, e a própria Zefa, representa- de 2007, João das Neves realizou
da num dos quadros do espetácu- uma vasta pesquisa de campo com
lo, contariam suas histórias através a equipe de concepção, formada
da obra de João das Neves. Sobre o pelo figurinista Rodrigo Cohen e
aconchegante colchão formado pela o iluminador Euler Souza, que já o
serragem, impossível não lembrar acompanhavam em diversos traba-
das palavras de Carlos Brandão: lhos. João visitou diversos artesãos
da região, entrevistou Lira Marques
(...) o pó a que Zefa convida a nos misturar-
mos é, mais do que o pó da madeira, o pó das quase diariamente, e sentava-se
histórias que ela fabula sem cessar, seja quan- cedo à beira do rio para ver as pou-
do talha, seja quando conversa conosco, a pre-
texto de sua arte. (...). Com Zefa compreende- cas lavadeiras que ainda quaravam
-se como a arte de esculpir e talhar se articula sua roupa sobre as pedras. Dessas
com a de relatar estórias, como a oralidade e
as lembranças andam de braços dados com as conversas, foi escrevendo, a quatro
fábricas da mão e da imaginação. ([s.d.], p.31)
mãos com Luciano Silveira, o texto
Ao transpor para o piso o de- do espetáculo, entremeado de can-

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tos de trabalho, quase todos reco- diversos “textos documentários”,


lhidos pelos corais da cidade. Gran- onde utilizou vários dos recur-
de parte das cenas do espetáculo sos repetidos aqui: recolhimento
baseavam-se nas ações cotidianas de depoimentos, aproximação en-
de trabalho, inspiradas não só pe- tre ator e público para “conversas”
los cantos e pelas histórias de Lira, que expunham dramas cotidianos,
mas provavelmente pelas peças de uso de bonecos ou outras técnicas
artesanato da região, nas quais do teatro popular, ou seja, elemen-
comumente estão representadas tos que se imiscuíam na cena épica
mulheres em afazeres domésticos. para formar uma linguagem que se
tornou uma marca de seu trabalho.
Maneiras de ser e viver nas quais são privile-
giados os pontos de vista femininos, o papel Muitas vezes, como em Caderno de
social da mulher no trabalho diário, na fa- Acontecimentos, encenada no Acre
mília, nas ocupações mais imediatas ligadas
à sobrevivência, que incluem o preparo dos em 1987, “cada cena (...) represen-
alimentos no fogo à lenha, a limpeza da casa, ta um momento substancial em si,
a criação de animais e o conhecimento sobre
remédios e ervas curativas. (MASCELANI, (...) combinando variados aspectos
2008, p.43)
do mesmo tema central” (MAR-
No texto da peça, uma bio- QUES, 2016, p. 66), tema este que
grafia narrada pela própria Lira a se destaca num quadro mítico ou
partir de fragmentos cotidianos de poético, que alinhava toda a peça.
sua vida, há espaço também para Em Caderno de Acontecimentos
outros personagens do Vale: a ar- este quadro central é o mito Caxi-
tesã e amiga Zefa - contando seus nawá do roubo do fogo. Já em Ma-
causos fantásticos de quando mi- ria Lira, João das Neves retoma um
grou para a região depois de ter en- poema de autoria própria, inspira-
contrado com Lampião no Sergipe do nas lavadeiras de Pernambuco,
-, Frei Chico - o holandês que co- adaptando-o. No poema da lavadei-
locou tambores na missa e formou ra Maria, a mulher rebela-se con-
um coral para cantar as músicas tra a sujeição diária sumindo no
recolhidas entre as lavadeiras -, e rio, tornando-se água, tornando-
os pais de Lira: Seu Tarcísio, sapa- -se lenda, numa possível referência
teiro, violeiro e beberrão, e Dona ao conto de Guimarães Rosa que
Odília, lavando e passando roupas, João havia encenado em Primeiras
noite adentro, no ferro de carvão. Histórias, em 1992. Aparece, aqui,
Ao longo de sua trajetória mais uma característica recorrente
artística, João das Neves compôs em sua obra: o universo feminino,

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especialmente doloroso, mas tam-


bém sagrado, na cultura brasileira.
Para Kátia Paranhos (2012,
p. 138), a forma de fundir “diferen-
tes expressões, imagens, metáfo-
ras, alegorias e outros elementos
que, em conjunto, compõem um
cenário significativo de articula-
ções de um modo de pensar e agir” Fig. 3 - Cena do espetáculo Maria Lira (Itira, 2007). Foto:
Vilmar Oliveira.
possibilitou a João das Neves não
só criar um modo autoral de con- Enquanto assimilava este es-
ceber o teatro, mas uma forma de paço, João visitou, com sua equipe,
ver o mundo. Para Maria do So- a localidade de Santana do Araçuaí,
corro Marques (2016), pesquisa- no município vizinho de Ponto dos
dora da obra do dramaturgo e di- Volantes. Nesta ocasião, Rodrigo
retor, é preciso entender sua obra Cohen concebeu os figurinos, inspi-
[...] para além do diálogo com algumas cate-
rados nas bonecas de Dona Isabel,
gorias do teatro épico, como inclusão de nar- que foram confeccionados por cos-
rador, fragmentação narrativa e especialmen-
te no que tange ao efeito de distanciamento, tureiras de Araçuaí em tecido leve
tanto do ator como do público. Os textos de tingido de tons terra com apliques
João das Neves, não somente espetáculos,
mas também documentários, relacionam-se de flores e pétalas brancas (Fig. 2
com um espaço vivenciado por ele e pelas
personagens por ele construídas. (p. 22)
e 3)8. Para Carlos Brandão, as bo-
necas de Dona Isabel representam
o sonho de ser das mulheres do
Vale, com belos vestidos, pentea-
dos e joias que a vida lhes negou:
[Dona Isabel] enreda a vida com esmero,
como se a tecesse em linho, em rendas, em
cambraias, em penteados impecáveis e nas
unhas de suas bonecas cuidadosamente pin-
tadas e alisadas com sabugo de milho. A vida
que ela copia, sua mímeses, é a dos homens
e mulheres tais como gostariam de ser (...).
Fig. 2 - Dona Isabel Mendes. Noiva. Foto: Vilmar Oliveira.
(BRANDÃO, [s.d.], p. 25)

8
Os figurinos foram costurados pelas costureiras Gilza, Fátima e Odília e receberam apliques preparados pela Cooperativa
Dedo de Gente, que também confeccionou os objetos de cena e os acessórios de cabelo e brincos.

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Para Mascelani, séc. XVIII, havia se implantado o


primeiro núcleo de casas da região,
Talvez a imagem da “boneca” como signo em-
blemático da arte feita no vale do Jequitinho- exatamente no encontro dos rios
nha esteja demarcando, por meio da ênfase Araçuaí e Jequitinhonha. Foi a par-
no feminino, uma outra diferença mais pro-
funda, de ordem cultural e também econômi- tir dali que, expulsas pelo padre, as
ca, pois essa escolha se dá ao mesmo tempo prostitutas do povoado subiram o
que a mulher oleira [torna-se] importante
provedora. (2008, p. 77) rio e fundaram Araçuaí, em 1817.
Em frente à igrejinha de Itira foi,
No campo entre a visão po- então, construído, pela primeira
ética de Brandão e a análise so- vez, o cenário de Maria Lira (Fig. 4).
cioeconômica de Mascelani, João
das Neves constrói o espetáculo,
mostrando como a batalha coti-
diana pela sobrevivência e as poé-
ticas individuais podem construir,
dialeticamente, um universo onde
se permita ao homem conviver
com o sonho e engendrar a arte.
A terceira estadia de João das
Neves em Araçuaí durou de me-
ados de novembro ao final de de- Fig. 4 - Confecção do cenário para Maria Lira na
zembro de 2007. Neste período fo- localidades de Itira (2007). Em primeiro plano, o diretor
João das Neves. Foto: Neilton Lima. Acervo da autora.
ram confeccionados os figurinos,
concebida a luz, e decidido o local O espetáculo se iniciava na are-
da estreia.9 A Companhia havia su- na central, onde os atores, cobertos
gerido o átrio da Igreja de N. S. do com panos, como montes amorfos
Rosário, na parte baixa da cidade, de terra, ouviam uma menina che-
núcleo histórico junto à curva do gar e perguntar por Lira. O elenco
rio. Mas João das Neves, em home- então se levantava e cantava a pri-
nagem à origem da cidade e às mu- meira canção, uma chegança com-
lheres fundadoras, decidiu realizar posta para o espetáculo por Luciano
a estreia no pequeno povoado de Silveira, em posição hierática, como
Itira (antes chamado Barra do Pon- uma roda de bonecos de argila, em
tal), distante 19 Km da sede. Lá, no referência direta às bonecas do Vale
9
Após a estreia, em 07/12/2007, o espetáculo circulou pelos municípios de Araçuaí, Ponto dos Volantes, distrito de San-
tana do Araçuaí (onde foi assistido por Dona Isabel), Itinga, Coronel Murta, Virgem da Lapa, Felisburgo, Capelinha, Me-
dina, Jequitinhonha, Itaobim, Belo Horizonte e São Paulo. Maria Lira Marques esteve presente em todas as apresentações.

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do Jequitinhonha. A menina era en- pular e a roda de danças) e um foco


tão vestida como o resto do elen- (o tablado), bem como uma caixa
co, e transformada em Maria Lira, imaginária, desenhada pela luz e
narradora de sua própria história. pelos postes nas quatro arestas.
A partir desse prólogo bem Havia ainda os círculos menores,
popular, a peça encontrava seu engolfados pela plateia, onde ocor-
moto na cena épica, “uma sequên- riam cenas simultâneas - momento
cia de eventos ou incidentes narra- em que todos os pequenos círculos
dos sem restrições artificiais quan- iluminados eram ocupados por um
to ao tempo, lugar ou relevância”, ou dois atores em diálogo direto
segundo John Willett. (1967, p. com o público que o circundava. O
217). A própria Maria Lira apre- espetáculo, desta forma, pendulava
sentava pessoas importantes em continuamente entre a caixa ima-
sua trajetória de vida, narrava ginária com foco no tablado, a are-
lembranças do cotidiano, subia ao na, e esse “espaço explodido”. Esse
tablado para apresentar os dese- espalhamento da cena acontecia
nhos do cenário. A narrativa épica em momentos em que a comuni-
episódica adapta-se com perfeição dade de Araçuaí era representada:
ao espetáculo no espaço público, as lavadeiras cantando e trabalhan-
porque, como observa Benjamim, do, mulheres varrendo suas casas
ou passando roupa, e a presença
Se o cinema impôs o princípio de que o es-
pectador pode entrar a qualquer momento de Frei Chico multiplicado em 5
na sala, de que para isso devem ser evitados bonecos, arrebanhando pessoas e
os antecedentes muito complicados e de que
cada parte, além de seu valor para o todo, recolhendo canções para o Coral
precisa ter um valor próprio, episódico, esse Trovadores do Vale. Todas essas
princípio tornou-se absolutamente necessá-
rio para o rádio, cujo público liga e desliga pequenas cenas possibilitavam que
a cada momento, arbitrariamente, seus alto-
-falantes. O teatro épico faz o mesmo com o o elenco se transformasse de coro
palco. Por princípio, esse teatro não conhece em indivíduo, transpondo para o
espectadores retardatários. (1984, p. 83)
espetáculo não apenas as dinâmi-
As partes narradas eram en- cas do teatro épico, mas a rique-
tremeadas por canções e danças, za que fundamenta a arte popular.
que aconteciam no círculo central,
e chamavam mais diretamente a O Artífice e o Cenário – os quatro
participação do público. O espaço elementos e a “consciência
tinha ali um centro (o círculo de- material”
senhado materializava a arena po- Tratando-se de espetáculo

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apresentado em largos e praças, a timento dos sons na parede mais


concepção cenográfica instaurava o próxima, e mensurar o espaço, que
espaço teatral e o espaço cênico.10 não poderia ser pisado até o mo-
Para documentar a vida de uma ar- mento da apresentação. (Fig. 5 e 6).
tesã e de uma região do sertão mi-
neiro, João das Neves quis que esse
espaço fosse, a cada apresentação,
construído pelo coletivo de atores
com terra e serragem. A cada en-
cenação, o ato de refazer o cenário
proporcionava aos atores da com-
panhia experimentar o papel do ar-
tífice (Lira, Zefa ou Isabel, temas do
espetáculo), e a “consciência mate-
rial” que nos leva a refletir sobre a
transformação das coisas no mun-
Fig. 5 e 6 - O elenco trabalha na construção de Maria Lira,
do, segundo Richard Sennet (2009). no Pateo do Colégio, São Paulo (2008). Fotos: Neilton
O processo de construção do Lima. Acervo da autora.

cenário iniciou-se com a pintura A partir do desenho dos li-


dos estandartes (únicos elementos, mites com cal, seguia-se a cober-
além do tablado, que eram reutili- tura de toda a área de atuação com
zados) e repetia-se a cada espetá- terra vermelha. Eram então cava-
culo com a recolha e tingimento dos 4 buracos e levantados os mas-
das serragens, e a construção de tros com os estandartes. Seis sacos
todo o espaço a partir do caminhão de serragem eram usados em to-
de terra e dos quatro mastros de das as apresentações, tingidos de
eucalipto doados por cada cida- marrom e amarelo. Inicialmente,
de onde o espetáculo acontecia. A grandes moldes vazados em papel
criação do espaço era obra coleti- kraft foram usados para reprodu-
va do elenco, e também uma forma zir os bichos de Lira em serragem
de preparação para o espetáculo, no piso. Mas a umidade da terra e
já que era o momento de sentir os da serragem tingida danificou os
cheiros e a umidade, sentir o reba- moldes logo às primeiras apresen-

10
Patrice Pavis, em seu Dicionário de Teatro (1999), classifica o “espaço teatral” como aquele que determina a relação entre
cena e plateia, ou seja, o espaço do evento, e o “espaço cênico” como a criação poética que busca materializar o tema e o
significado da obra.

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tações e os desenhos passaram a


ser feitos “no olho” pelos integran-
tes do elenco, sob supervisão cri-
teriosa de João e da própria Lira.
Nos interstícios entre a área
de atuação principal e os peque-
nos círculos, o público se sentava
em esteiras de palha. O cenário se
completava com o tablado da “nar-
radora”, no eixo, em posição “fron-
tal”, que era ladeado pelos músicos,
e uma mesa no círculo menor que
se ligava à área central no eixo do
cenário. Esta mesa representava a
casa de Lira, e era o lugar cênico Fig. 7 - Cenário de Maria Lira adaptado para o interior do
que abrigava sua mãe e remetia à Centro Cultural Luz da Lua (Araçuaí, 2009). Foto: Vilmar
Oliveira.
sua infância (visível na figura 7).
Em cada um dos quatro outros cír-
culos menores, objetos de traba-
lho: bacias com água e panos para
lavar, ferros de carvão, vassouras.
Em cada um dos círculos também,
um dos 5 fantoches representando
Frei Chico, que eram manipulados
em cenas simultâneas, chamando
os habitantes da cidade para com-
parecer à missa para cantar, tocar e
dançar. Os fantoches, confecciona-
dos por Joana Lyra, eram uma refe-
rência ao palhacinho que o frei leva
pendurado a sua batina franciscana:
[...] o palhacinho de calças listradas e sorri-
so perene, a lembrar a religiosidade popular
em festa (...) [e também] lembrança da casa
Fig. 8 - Cenário do espetáculo Maria Lira, em fase de
materna, onde atrás corria um rio, O Reno.
acabamento, no Pateo do Colégio (São Paulo, 2008). Foto:
O Araçuaí, o Jequitinhonha, o São Francisco,
Neilton Lima.
todos os rios do Brasil misturam-se às memó-
rias de sua infância. (NEVES, 2013, p.16)

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Desta forma, o cenário tradu- mundo a realidade transformada


zia a dramaturgia de narrativa en- pelas mãos das mulheres do Jequi-
tremeada tanto de cenas musicais tinhonha e dos artífices do teatro.
em coro na arena central, quanto A presença dos elementos ter-
de cenas simultâneas de tom mais ra e água, que enchia as bacias ma-
dramático, porém abertas à intera- nipuladas pelas lavadeiras em cena,
ção com o público, porque em es- deveria ser complementada pelo
cala mais íntima. O piso desenhava fogo do carvão em brasa dos ferros
essas dimensões, entre o épico e o de engomar, mas percebeu-se que
intimista, e representava também não seria possível mantê-lo vivo até
o trabalho e os dramas individuais o momento em que os ferros entra-
que, recolhidos ao centro, nas cenas vam em cena. Manteve-se, no en-
de conjunto, celebravam a força das tanto, a ideia, porque a presença dos
ações político-comunitárias de Lira quatro elementos é o princípio fun-
e Frei Chico. Ao mesmo tempo, os damental da criação em cerâmica, e
quatro mastros, que também reme- representa, ao mesmo tempo, a cos-
tiam à Festa do Rosário, desenha- mologia do homem ligado à terra.
vam um cubo imaginário, ao fundo
Colocando a argila em contato com o ar e o
do qual o tablado determinava um fogo, esse sopro altera as suas substâncias e
foco central onde a própria Lira, confere-lhe um acréscimo de ser em que se
equilibram o úmido e o seco, o quente e o
feita narradora, contava momen- frio: a pretensão do equilíbrio total dá a cada
tos cotidianos de sua vida, chaman- obra de arte feita pelo artesão do Vale a com-
posição almejada da pedra filosofal. (BRAN-
do a cena à configuração frontal. DÃO, [s.d.], p.37)
Três torres de andaimes da-
vam suporte à iluminação, quase A citação e presença dos ele-
toda em tom âmbar. Desligados os mentos no cenário liga-se a uma
postes de iluminação pública (tare- cosmologia primitiva, quando o
fa árdua e burocrática, mas da qual homem estava muito mais sujei-
João das Neves não abria mão), o to às forças da natureza, e a uma
que resultava era um ambiente ar- vida mais empírica. Para os pré-
rebatador. O elenco, em conjunto, -socráticos, o ar, a água, ou o fogo,
construíra um lugar mágico, em eram os princípios formadores de
que a luz, a umidade e o cheiro da todos os seres e coisas. Os elemen-
terra e da serragem mergulhavam tos são também o símbolo da liga-
a plateia no universo da artesã. Ce- ção do artesão a estes materiais e
nografia e figurino devolviam ao aos ciclos da vida na terra, como
quando Lira Marques explica que

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o barro não deve ser colhido na da perícia artesanal” (ibidem, p. 20).


lua cheia, pois tende a rachar na O demiurgo criador na filosofia pla-
hora da cura (POEL, [s.d.], p. 78). tônica já está distante do artesão,
Essa ligação direta com o que primeiro recebeu essa denomi-
ambiente e a natureza a sua volta nação, nos tempos de Homero (ibi-
é uma das determinantes da arte dem, p.33). O cenário de Maria Lira,
popular. O artesão escolhe e co- mais artesanato que arquitetura,
lhe o barro do chão, o prepara e perde sua forma no decorrer do es-
acompanha todo o processo de petáculo. Os bichos se desmancham
sua transformação para tornar-se durante a celebração que rende ho-
obra. “As correspondências e diá- menagem ao artesão demiurgo, ao
logos entre o macro e o microcos- artífice em sua interminável tarefa
mo, entre o ventre da terra e o for- de fazer da matéria criação. A for-
mato da lua fazem do universo um ma é passageira como o espetáculo,
imenso teatro onde os seres con- e João das Neves convida seu elen-
versam uns com os outros, intera- co a participar de sua confecção,
gem e se fecundam.” (ibidem, p.78) de seu gozo e de sua transforma-
“Antigos materialistas como ção novamente em terra informe.
Heráclito e Parmênides”, diz Sen- Além da realização mate-
nettt (2009, p. 40) “acreditavam rial de uma dramaturgia, a ceno-
que toda habilidade física é uma in- grafia de Maria Lira convocava à
findável recombinação, uma inces- aproximação com a matéria, ao es-
sante metamorfose dos quatro ele- petáculo desta metamorfose. De-
mentos básicos da natureza: fogo, monstrava que o esforço da cons-
água, terra e ar”. Tudo que se cons- trução material, quando a mente
trói pelo trabalho do homem, tende conversa com a mão, não alie-
a retornar a esses estados primais na, antes estimula, como com-
e, por essa espécie de “decrepitude” prova a arte do Jequitinhonha.
incontornável do mundo material,
O trabalhador na argila lentamente se adap-
os antigos consideravam o traba- tou às mudanças técnicas, à opressão políti-
lho artesanal menos nobre que o ca que o tornava invisível e ao confronto dos
atributos humanos. É claro que poderia tra-
intelectual. Logo, “a civilização oci- tar a argila simplesmente como um material
dental caracteriza-se por uma ar- necessário para cozinhar e construir casas,
mas isso não bastaria ao artífice. Curioso das
raigada dificuldade de estabelecer coisas em si mesmas, ele ou ela quer entender
como são capazes de gerar valores religiosos,
ligações entre a cabeça e a mão, de sociais ou políticos. (SENNET, op.cit., p.65)
reconhecer e estimular o impulso

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Discordando de Hannah é que se extrai a ética que faz de


Arendt, que separa o homo faber, Maria Lira Marques não só uma
juiz de seu próprio trabalho, em produtora de peças de elevado valor
busca dos “porquês”, do animal la- estético e político, mas uma líder co-
borens, trabalhador braçal que só munitária, que se entende guardiã
entende o trabalho como fim em si da cultura popular do Vale do Je-
mesmo, Sennett afirma que o ani- quitinhonha. Este mesmo “engaja-
mal humano é sempre animal labo- mento” e esta mesma “consciência”
rens, “é capaz de pensar, e discutir estão na base da concepção do ce-
mentalmente com seu material” nário de João das Neves, que envol-
e “aprender sobre si mesmo atra- ve toda a equipe (e a si próprio) na
vés das coisas que faz”, no que ele metamorfose da terra e da madeira,
chama de “consciência material”. para transformá-las em espaço para
Para ele, “O artífice representa o teatro. O cenógrafo, assim como
uma condição humana especial, o ator, são também artífices, segun-
a do engajamento” (2009, p. 30). do a definição de Sennett (2009).
Da mesma proposição, cor- Nesta concepção cenográfica, am-
roboram Brandão e Mascelani, ao bos os artífices se encontram: tema
investigar a arte do Jequitinhonha: e veículo do espetáculo Maria Lira.
A relação entre artesania e
O onirismo do escultor do Jequitinhonha
é ativo e caudaloso. Ele só devaneia dian- política, base histórica de toda re-
te das possibilidades de trabalho oferecidas sistência ao sistema industrial ca-
pela matéria: uma matéria que sonha para
ele próprio poder sonhar, que quer ser para pitalista, reaparece neste trabalho,
ele próprio passar a ser. Ambos são “simpá- metamorfoseada pela arte popular.
ticos”, ambos comungam as mesmas dores,
o mesmo pathos. Quanto mais o ceramista Aqui, o artesão domina não ape-
entra na natureza íntima da matéria, em suas
profundidades cada vez mais secretas, mais nas o ciclo produtivo da peça, da
ele penetra na natureza íntima de si mesmo. extração do barro à venda da obra,
(BRANDÃO, s/d, p.37)
mas o ciclo inteiro da natureza de
Há algo de fecundante na própria repetição seus elementos. E o compartilha
artesanal, que nunca é da mesma natureza da
indústria, pois pressupõe um fazer e refazer com sua comunidade, contando e
dinâmicos por parte dos artesãos. Há algo da
cultura que se transforma e se elabora, permi- ensinando. Para Sennet, “as capa-
tindo a abertura para o aparecimento de no- cidades do nosso corpo para mol-
vas possibilidades imagéticas, para mudanças
no olhar, na maneira de ver, que convergem dar as coisas materiais são as mes-
no estabelecimento de novos paradigmas. mas a que recorremos nas relações
(MASCELANI, 2008, p.88)
sociais. (...) a habilidade artesanal
Desta “consciência material” mostra em ação o traço contínuo

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entre o orgânico e o social.” (2009,


p. 323). João das Neves estava cien-
te desta relação, e a obra que de-
senvolveu no Vale guarda relações
profundas com o teatro a que sem-
pre dedicou sua carreira. No Rio,
no Acre ou no Jequitinhonha, arte
e política são uma só coisa em sua
obra. Mão e cabeça em diálogo.
Eu amo os artesãos do Vale porque eles são
absolutamente imersos na sua realidade, são
grandes artistas. Não tiveram formação aca-
dêmica nenhuma, alguns deles são semianal-
fabetos, mas são grandes artistas porque estão
inseridos na realidade. Portanto, são artistas
marxistas (...). (NEVES, apud MARQUES,
2008, p. 211)

Sennett conta que escreveu


O Artífice inspirado por uma fra-
se do Coriolano de Shakespeare:
“Sou o meu próprio Criador”. O
homem, criador do “teatro do mun-
do”, é por suposto o criador de si
mesmo e de sua relação com o ou-
tro e com o mundo. João das Ne-
ves celebra esse poder de criação,
que não deveria jamais nos escapar.

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referências

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. A alquimia do Jequitinhonha. In: Vale: Vozes


e Visões – a arte universal do Jequitinhonha (catálogo da exposição). Belo Hori-
zonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, [s.d.]. p. 20-39.

MARQUES, Maria do Perpétuo Socorro Calixto. Teatro de João das Neves: Opi-
nião na Amazônia. Uberlândia: EDUFU, 2016.

MASCELANI, Angela. Caminhos da Arte Popular: o Vale do Jequitinhonha. Rio


de Janeiro: Museu Casa do Pontal, 2008.

NEVES, João das. O caminho não existia. In: POEL, Francisco van der (Frei Chi-
co). Dicionário da Religiosidade Popular: cultura e religião no Brasil. Curitiba:
Nossa Cultura, 2013. p. 15-16.

PARANHOS, Kátia Rodrigues. Pelas Bordas: História e Teatro na Obra de João


das Neves. In: PARANHOS, Kátia (org.). História, Teatro e Política. São Paulo:
Boitempo, 2012. p.135-156.

POEL, Francisco van der (Frei Chico). Maria Lira Marques Borges, artista do
Vale. In: Vale: Vozes e Visões – a arte universal do Jequitinhonha (catálogo da
exposição). Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais,
[s.d.]. p. 76-79.

SENNETT, Richard. O Artífice. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro:


Record, 2009.

WILLETT, John. O Teatro de Berthold Brecht visto de oito aspectos. Tradução


de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Ed, 1967.

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Abstract

This paper describes the conception process of Maria Lira scenery (Ícaros do Vale Thea-
tre Company, Araçuaí/MG), written and directed by João das Neves. João also conceived
the sets, inspired by the series “bichos do sertão” (backwoods creatures), by the artisan
Maria Lira Marques, title character of the play dedicated to the popular culture of the
Jequitinhonha Valley. The scenery is analysed in the light of Richard Sennet’s The Crafts-
man (2009).

Keywords

Set Design. Ícaros do Vale Theatre Company. Maria Lira.

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Juliana Reis Monteiro dos Santos

Brincando o Teatro pelas


veredas dos João: a monta-
gem de Primeiras estórias
em Campinas

Resumo >

O artigo aborda a montagem do espetáculo Pri-


meiras estórias em Campinas, com direção e adaptação
de João das Neves da obra homônima de João Gui-
marães Rosa, sob a perspectiva da atuação. Abarca as
relações entre elenco e diretor na criação da peça e
dimensiona alguns aspectos do diálogo entre ator e es-
paço, dada a interdependência de ambos na encenação.

Palavras-chave:
Primeiras estórias em Campinas. Atuação e dra-
maturgia espacial. Pedagogia teatral.
Brincando o Teatro pelas veredas dos João: a
montagem de Primeiras estórias em Campinas

Juliana Reis Monteiro dos Santos1

Talvez muito do que foi dito aqui devesse


¹ Doutora em Artes da Cena
(UNICAMP). Docente na estar em roda de conversa à sombra de um pe-
Universidade Federal de São
João del Rei. E-mail: jrms@
quizeiro lá da Lagoa Santa, ao som de insetos
ufsj.edu.br. raros, violas e alguns latidos, goles de cachaça
e um bom café coado na hora. Ou pudesse virar
“flores de arco-íris em exercício teatral como se
o teatro ‘acabasse de nascer’.” (NEVES, 1996, p.
10). Fato é que, “aquilo na noite de nosso teatri-
nho foi de Oh!” (ROSA, 1988, p. 38). E os acon-
tecimentos se deram mais ou menos assim...
Em 1994, dois anos após a montagem
de Primeiras estórias em Minas Gerais, João
das Neves era apresentado aos alunos da séti-
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ma turma do Curso de Artes Cê- a montagem estreou em novem-


nicas da Universidade Estadual bro daquele ano, cumprindo tem-
de Campinas (UNICAMP) pelos poradas de um mês em 1995 e em
professores Luís Otávio Burnier 1996, além de apresentações no II
(então chefe do Departamento) e Festival Internacional de Teatro
Suzi Frankl Sperber (do Institu- (FIT) de Belo Horizonte também
to de Estudos da Linguagem da em 1996, na mesma Lagoa do Nado
universidade, especialista na obra que acolhera a peça em 1992 e com
de João Guimarães Rosa). A pro- a participação de alguns atores da
posta era que o diretor realizasse primeira versão em cenas como Ir-
a encenação ali no ano seguinte2. mãos Dagobé. Ao todo, o grupo re-
Naquela época, além da for- alizou 36 sessões do espetáculo, em
mação de atores e do estímulo à cartaz de sexta a domingo (incluin-
criação de grupos3, o último ano do as vésperas do ano novo), com a
da graduação era dedicado à mon- participação de uma média de 300
tagem de um espetáculo como en- pessoas por apresentação. Aconte-
cerramento do curso, sob a direção cimento descrito por Jotabê Medei-
de um dos professores-artistas do ros (1996, p. 46) como “um dos mais
próprio departamento e/ou sob espantosos fenômenos teatrais re-
a direção de um artista de fora. centes do teatro brasileiro”. Tudo
Após o convite ser aceito, nos- regido sob a perspectiva de João
sa travessia começava rumo a ou- de “o teatro como sentido de brin-
tras margens do teatro que, como cadeira e de experiência humana”,
diria Simone Evaristo (2019), foi como recorda Daves Otani (2019).
realizada em três etapas interde-
pendentes que abordarei adiante: Brincando o João, das Neves
a primeira, relacionada ao diálogo Sobre os modos de abordar
entre diretor e atores; a segunda, um trabalho, João das Neves (2017)
ligada à imersão dos envolvidos no foi categórico ao afirmar que não
universo roseano; a terceira, quan- dá para ter um: “é sempre assim
do a encenação em si foi tratada. que eu vou fazer”. Cada texto, cada
Iniciada em março de 1995, novo projeto é um universo distinto
2
Além da autora, dos 20 atores que participaram da montagem em 1995, 11 foram consultados com o intuito de serem en-
trevistados para este artigo e 05 concederam entrevistas: Carol Badra (atriz e figurinista), Simone Evaristo (atriz e docente
no SENAC, na área de Arte e Cultura - curso Técnico em Teatro) , Verônica Mello (atriz, palhaça e arte-educadora), Daves
Otani (ator e professor na Escola Superior de Artes Célia Helena), Poena Vianna (atriz, idealizadora do projeto Anaïs).
3
Por ali passaram e/ou foram fomentados grupos, como: Fora do Sério, Razões Inversas, Boa Companhia, Cia Teatro
Balagan, Os fofos encenam....

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que precisa ser percebido como tal; divertir-se não só abarca sedução e o
inclusive pelo fato de que são suas encantamento como, no caso de das
particularidades que determinarão Neves, nos remete às brincadeiras
a forma como deverá ser tratado. e manifestações da cultura popular
Ao mesmo tempo, traços de sua com as quais o encenador manteve
poética, visão de mundo, concep- contato e participou ao longo de sua
ção de teatro e, por conseguinte, de vida e encontrou “elementos para o
sua ética podem ser reconhecidos desenvolvimento formal de seu te-
em meio à diversidade de sua obra. atro” (HENRIQUE, 2006, p. 83).
Em publicação recente de Em Primeiras estórias, lida-
um de seus textos infantis, Brin- mos com um “labirinto narrativo”
cando o Teatro (NEVES, 2015, p. (ZANOTTO, 1996), dada a diversi-
11-12), alguns destes traços trans- dade de assuntos, situações e subgê-
parecem na apresentação que o neros trazidos por Guimarães Rosa.
dramaturgo faz desta arte: uma As estórias do autor passeiam “pelo
brincadeira “meio mágica”, que co- que o ser humano é capaz de inven-
meça com a reunião de uma tur- tar, de ser, de se expor, enfim..., de
ma interessada em dialogar e que ser inventado também” (NEVES,
irá – de atores a espectadores – 2017), passando da simplicidade
“brincar vendo e ver brincando”. às discussões filosóficas, com mu-
Neste pequeno trecho, o ence- danças contínuas de tom a cada
nador não só passeia pelas origens conto que, sob o viés da encenação,
gregas do Teatro, como reitera o recebeu enfoque teatral distinto4.
que já havia apontado em A análise E se é de experiência e brin-
do texto teatral (1997), bem como cadeira que estamos falando, an-
em séries de palestras, aulas e entre- tes de qualquer análise das carac-
vistas que deu: seu apreço e crença terísticas citadas acima, João nos
no coletivo e em um fazer coletivo conduziu por práticas de atuação
(feito pelo, para e com a coletivida- para que pudéssemos nos (re)co-
de); no jogo e na inventividade que nhecer mútua e artisticamente.
lhe são próprias; na existência de Acima de tudo e antes de
algo a ser contado e no prazer que qualquer conceituação, João falava
deve permeá-la. Vale lembrar que o de cena, da cena, sob o viés da “fa-

4
Além de Veredas da salvação, que fechava o espetáculo e foi adaptada de Grande Sertão: Veredas, também fizeram parte
do espetáculo os seguintes contos de Primeiras estórias: A terceira margem do rio, Famigerado, Sorôco, sua mãe, sua filha,
As margens da alegria, A menina de lá, Nenhum, nenhuma, O espelho, Os irmãos Dagobé, Luas de Mel e Substância.

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zeção”, do trabalho sobre a lingua- cabelos longos para realizar o nar-


gem teatral em si, “pois só a pesqui- rador em Espelho, cuja trama reto-
sa incessante da linguagem teatral, ma a busca existencial de um ho-
só a liberação da sua ‘Pirlimpsiqui- mem maduro ou a fricção causada
ce’, poderão fazer com que o teatro pela ocupação do espetáculo numa
volte a ser a nossa língua.” (NE- área de preservação ambiental, não
VES, 1996, p. 10). Tendo estabe- destinada a apresentações teatrais
lecido, logo no começo, um laço de – o Parque Ecológico Monsenhor
confiança conosco e propiciado um Emílio José Salim, com projeto pai-
ambiente descontraído, muitas das sagístico de Burle Marx –, ao redor
nossas escolhas, dúvidas e dificul- e dentro de um casarão tombado do
dades foram compartilhadas, como século XVIII, a 4km de Campinas.
pontuam os atores entrevistados. Refletindo sobre esta fase
Ao final das apresentações, do trabalho, além dos elementos
ou mesmo de um simples exercí- apontados acima, é possível perce-
cio, em convite à nossa imagina- ber um trânsito claro entre prepa-
ção e a um “olhar a cena de fora”, ração do elenco e encenação, além
nos reuníamos para refletir sobre do fato de que, já aí, fomos intro-
o acontecimento5: Quais nossas duzidos a aspectos fundamentais
impressões? O que funcionava ou da montagem, sobretudo no que
o que poderia tomar outro rumo? diz respeito às técnicas de impro-
Quais possíveis desdobramentos visação e à linguagem dos conta-
para alguns pequenos movimen- dores de história as quais solicitam
tos de encontro entre dois atores: do ator qualidades de atenção e de
caberiam numa cena como a do percepção, abertura tanto ao im-
balcão de Romeu e Julieta? Como previsível quanto para uma relação
tornar essa ou aquela proposta mais direta com a plateia, o uso de
mais forte poética e cenicamente? gestos e fala para evocar aconte-
Questões que, hoje, torna- cimentos, o passeio por um ou vá-
ram-se mais facilmente reconhe- rios personagens e a retomada de
cíveis. Se tomarmos como base al- um relato inicial (PAVIS, 1996).
gumas escolhas do diretor para a Não à toa uma improvisação
montagem, podemos mencionar ter sido um dos primeiros exercí-
sua opção por uma atriz jovem e de cios dado por João à turma que foi

5
Prática que se manteve ao longo de toda a temporada do Primeiras estórias, com feedbacks sobre timing de cena, sobre o
que havia sido percebido como positivo e que poderia ser atentado no espetáculo do dia seguinte, dentre outras.

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dividida em dois ou três grupos para ro restrito de pessoas, com apenas


realizá-lo. No centro da sala, das um ou três atores, pode-se dizer
Neves colocou uma cadeira e dis- que esta se encontrava no meio
se algo como: “O grupo que quiser, da curva dramatúrgica do espetá-
pode começar. Vocês têm que usar culo. Dali, seguiríamos juntos por
a cadeira, mas não poderão usar mais três cenas até o final da peça.
fala.”. E só! Percebemos depois que Irmãos Dagobé chegava a du-
a própria situação posta e a escuta rar uma hora, uma hora e meia a
dos atores para ela é que conduzi- depender da quantidade de apre-
riam o acontecimento e abririam, sentações que aconteceriam d’ Es-
para a plateia, possibilidades de lei- pelho ou Nenhum, nenhuma6, ca-
tura sobre o assunto jogado pelo bendo aos atores que já estavam
grupo; do mesmo modo, era possí- no velório sustentar a atmosfe-
vel perceber os momentos em que ra da cena que seguia um rotei-
o jogo se tornava desinteressante. ro, com texto e acontecimentos
Frente a proposta, minha sen- definidos e que, ao mesmo tempo,
sação foi de estar diante de um abis- permitia e exigia que o ator im-
mo, de uma incógnita. No entanto, provisasse e criasse com esses ele-
começávamos a ser forjados para li- mentos ao longo de sua duração.
dar, por exemplo, com a situação do Nos primeiros meses de tra-
velório em Irmãos Dagobé, “a mais balho, foi mantida a mesma rotina
longa gag da história do teatro no da graduação, com encontros di-
Brasil, não menos engraçada por ários de quatro horas cada, de se-
causa disso”, em crítica de Mar- gunda a sexta-feira. Além dos en-
cello Castilho Avelar (1996, p. 3). saios com João, tivemos aulas com
Essa foi uma das primeiras outros colaboradores, como Verô-
cenas que levantamos do espetácu- nica Fabrini, responsável pela pre-
lo. Na estrutura da encenação, cuja paração corporal dos atores; Rufo
dinâmica alternou cenas que reu- Herrera, diretor musical da peça; e
niam todos os atores e plateia num o músico Ivan Vilela, que assinou
mesmo lugar e cenas que aconte- a assistência de direção musical do
ciam concomitantemente em espa- espetáculo e conduziu um traba-
ços distintos e/ou para um núme- lho de musicalização, percepção e

6
Espelho e Nenhum, nenhuma eram assistidas por vinte pessoas e um casal, respectivamente, mediante sorteio prévio de
senhas à plateia. A primeira, com duração de 30 minutos, era repetida duas ou três vezes por espetáculo e a segunda, com
duração de 20 minutos, era repetida de 3 a 4 vezes por noite.

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improvisação sonora com o elenco. do ator com a ideia de figura, de-


Muito do material levantado signando “um tipo de personagem
no período, ainda que sem uma co- sem que seja precisado de que tra-
nexão explícita com o espetáculo, ços particulares essa personagem
seria levado à cena posteriormente, se compõe.” (PAVIS, 1996, p. 167).
como as sequências de movimen- Este também foi um perío-
tos individuais que, em processo do em que outros parceiros foram
de síntese, transformaram-se nos agregados na produção do espetá-
gestos de esconjuro da população culo e que, naturalmente, passamos
ao Dagobé morto, “o grande pior” a assumir outras tarefas e funções
(ROSA, 1988, p. 27), durante o ve- além da atuação, a saber: a assis-
lório já citado, ou mesmo os per- tência de direção (cada conto con-
sonagens que foram construídos e tou com um assistente diferente)
povoaram cenas como Sorôco, sua e a organização em equipes res-
mãe e sua filha ou Luas de mel. ponsáveis por figurinos, materiais
Para estas cenas especifica- de cena, divulgação, levantamen-
mente, a composição dos persona- to de equipe de contrarregras, etc.
gens se deu por processo de imita- Concomitantemente, ini-
ção de alguém que pudéssemos, de ciávamos o encontro com Rosa,
preferência, observar mais de uma na companhia de Suzi Sperber.
vez. No dia em que deveríamos
apresentá-los, os personagens fo- Brincando o João, Guimarães
ram entrevistados um a um, tendo Rosa
sua história de vida elaborada na- Pequenos ritos compuseram
quele momento: nome, idade, lo- nossa travessia. Evaristo (2019)
cal de nascimento, profissão, gosto recorda que nosso encontro com
pessoal. Se aqui João se valeu de um Primeiras estórias, ainda no de-
trabalho de gênese de personagem, partamento, foi marcado pela che-
auxiliando sua caracterização, em gada dos livros encomendados
outras cenas, como A menina de lá, para a turma. Sentamos em roda e
a referência foram os cantadores de a instrução dada por João foi a de
cordel – declamadores que tinham que cada um abrisse a obra alea-
que ganhar a atenção da plateia em toriamente e compartilhasse com
meio ao burburinho de onde se apre- os demais um pequeno trecho da-
sentavam para contarem suas his- quele universo. Era, o que chama-
tórias –, numa aproximação maior rei, nossa passagem ao território

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das palavras que, sob a óptica de ção de convidados como: a própria


Paulo Rónai ([s.d.], p. 7) em intro- Suzi, Cacá Carvalho, Paulo Dan-
dução aos contos de Rosa, diz ser tas, Ulysses Cruz, Carlos Brandão,
composto de “vastos espaços de- Renata Palottini e Rufo Herrera.
sertos (...) povoados pelo devaneio Como apontei anteriormen-
da imaginação”, além de bichos e te, no processo de criação de João,
plantas, costumes e hábitos. Para as análises vêm sempre depois de
das Neves (2016), seu interesse ao um período de imersão dos ato-
incursionar pela obra do autor mi- res no universo abordado. Nesse
neiro era a busca por um olhar po- modo de aproximação, existem al-
ético sobre a vida e o ser humano. gumas particularidades, como o
E é a poesia um dos canais para que João entende por intérprete,
acessar a teatralidade contida em sua visão sobre o ofício do ator e
Rosa: é texto para ser dito e ouvi- alguns elementos de aprendizagem
do, conforme experiências de Sper- dessa função, bem como as vias que
ber (2011) com a literatura rosea- encontra de expressão da palavra.
na, uma vez que poesia é partitura a Para o encenador, os intér-
ser tocada. Analogamente, das Ne- pretes são todos os que fazem par-
ves diria o mesmo sobre o diálogo te da realização de um espetáculo,
no teatro, cerne da ação e do que há entre atores, diretor, cenógrafo, fi-
de essencial em cada personagem. gurinista e demais envolvidos. E na
Revisitando a ideia de partitura: presença de um texto como ponto
de partida, eles farão a mediação
Um bom diálogo é cheio de significados, de
combinações sonoras, de emoções e inten- entre este e o espectador, criando
ções ocultas, de imagens verbais. (...) Diálo- sobre o “já criado”. Vale chamar a
go é também partitura, no próprio sentido
musical do termo, com diferentes andamen- atenção ao que João destaca logo
tos, acentuações rítmicas, crescendos e dimi- em seguida a este pensamento: o
nuendos, clímax, etc... (NEVES, 1997, p. 85)
fato de que “não há aí nenhuma li-
Era preciso, então, aprender mitação à atividade criadora, ne-
a ouvi-lo e nos impregnar deste nhuma subserviência ao autor, pelo
universo. Tivemos encontros re- contrário. Há, sim, uma soma de
gulares com Sperber e organiza- esforços de artistas que consciente-
mos dois ciclos de palestras sobre a mente sabem ser a obra teatral um
obra de Guimarães Rosa e de adap- ato de criação coletiva para a cole-
tações desta para teatro, cinema, tividade.” (NEVES, 1997, p. 15-17).
televisão e ópera, com a participa- Ainda sob a perspectiva de

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que o trabalho de cada intérprete guintes etapas: com uso de bastões,


se some e enriqueça o trabalho dos traduzi-los por meio de ritmos. Em
demais, as imersões proporcionam seguida, a linguagem utilizada foi
ao ator liberdade de experimenta- a corporal, quando sequenciamos
ção, uma vez que antecedem o pon- ações e movimentos para, depois,
to de vista (em projeção) do dire- abordá-los melodicamente. Na se-
tor sobre a encenação. Ao mesmo quência, como uma instalação, de-
tempo, permitem ao diretor atuali- veríamos destinar um local ao con-
zar a própria concepção sobre uma to, considerando o ponto de vista
obra, uma vez que o aproximam do espectador. Foram feitas cenas
“do olhar de quem se defronta pela em cima de árvores, dentro de bura-
primeira vez com o texto.” (Ibidem, cos, nas proximidades do barracão
p. 23). Longe de qualquer ideia de das Cênicas e em outros espaços
hierarquia, João reitera ser este um na universidade. Por fim, deverí-
modo de preservação das especifici- amos reunir e sintetizar todas as
dades de “cada perspectiva” (Idem). possibilidades levantadas, entre-
Segundo Evaristo (2019), meando-as pelas frases do conto.
a imersão foi o que permitiu que, Chego, aqui, ao que João nos
mais tarde, a palavra viesse natu- ofertou sobre o ofício do ator no
ralmente e desse suporte ao imagi- programa do espetáculo e que pude
nário revelado e expresso nas cenas vivenciar com ele, como parte de
do espetáculo. Assim, até a chegada meu processo de formação: “assim
da adaptação feita por das Neves, como o escritor se sabe ‘feiticeiro
seguimos com exercícios de cria- da palavra’, o ator seu demiurgo,
ção e improvisação, fazendo uso do pois com ela estabelece a ponte en-
pensamento e das palavras de Rosa; tre o ser humano e os deuses tem de
ora quebrando sua lógica, para caminhar sem cessar pelas veredas
reencontrá-la mais tarde. Igual- dos vários sertões: dos gestos, sons,
mente, os personagens que havía- movimentos. Para re-ligar o espa-
mos criado passaram a dizer Rosa. ço teatral.” (NEVES, 1996, p. 10).
Um dos exercícios de compo- Aqui, também estabeleço parceria
sição que fizemos com esse intuito explícita com a proposta da ence-
foi a transposição dos contos para nação que deu contorno distinto a
outros formatos. Divididos em pe- cada conto e foi permeada por trilha
quenos grupos, cada grupo abor- original composta por Rufo Herre-
dou um conto, de acordo com as se- ra e executada ao vivo pelo elenco,

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com instrumentos convencionais e do em som e movimento, em espa-


outros confeccionados com mate- ço alvo, com o chão forrado de tule
riais de ferro velho, como enxadas, branco. Um coro de homens ento-
tubos e canos. Companheiro de das ava sopros de garrafa e o tilintar
Neves em O último carro, pesqui- de alguns metais, perpassados pelo
sador de música contemporânea e som agudo e quase ininterrupto das
autor da ópera popular Balada para vozes femininas em onomatopeias.
Matraga, baseada em A hora e a Eles imóveis, atentos, encostados
vez de Augusto Matraga de Rosa, nas paredes. Elas, com olhos semi-
Herrera trouxe ainda o canto e as cerrados, trançavam o espaço em
onomatopeias para o espetáculo. meio a pausas e suspensão, em ato
Para citar algumas dessas in- dançado vigoroso, trabalhando a
terseções e contornos de cena, A quebra do polvilho. Referência ex-
menina de lá, de caráter popular plícita à dança-teatro alemã de Pina
como Luas de mel, trazia um gru- Bausch, trazida por João quando de
po de músicos (com viola, triângu- sua fala sobre as possibilidades es-
lo, violão, zabumba e acordeon) e téticas desta cena, a movimentação
“cantadores cegos”, apresentando marcava o encontro calmo e volup-
as personagens da estória em ves- tuoso de Sionésio e Maria Exita,
tes coloridas de chitão e truques narrado, ao final, em tom calmo por
de cena, como o choro feito de fi- uma das atrizes, ao som do farfa-
tas coloridas de papel laminado, lhar das saias das outras mulheres:
presas aos olhos dos atores por
Sionésio e Maria Exita – a meios-olhos, pe-
aros vazados; ou o arco-íris, brin- rante o refulgir, o todo branco. Acontecia o
cado como uma enorme biruta não-fato, o não-tempo, um em-silêncio em
sua imaginação. Só o um-e-outra, um em-si-
rolando no ar, ao som da narrati- -juntos, o viver em ponto sem parar, coração-
va cantada em versos de cordel, mente: pensamento, pensamor. Alvor. Avan-
çam, parados, dentro da luz, como se fosse
como dito na introdução da cena: no dia de Todos os Pássaros. (ROSA, 1988, p.
142)
Vou contar agora um caso
Que é desses de arrepiar
Caso é que se contado, não é de se acreditar. E assim, chegamos ao Par-
Embora verdade vera que, em meados de agosto, com
Veramente verdadeira,
Só se encontre por inteiro na boca de um can- as cenas parcialmente levantadas,
tador. (NEVES, 1995, p. 21) após um período de negociações
E já perto do desfecho da com a administração do local: o
peça, o enigma de Substância teci- parque nunca havia recebido tea-
tro – embora acolhesse apresenta-

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ções musicais –, ainda numa época Brincando o Primeiras estórias


em que Campinas tinha pouca fa- De antemão, sabíamos que
miliaridade com a cena experimen- o espetáculo seria realizado em
tal, como comenta Carol Badra e espaço aberto, ainda que não
estava sob o risco de ser fechado soubéssemos onde, nem como.
em função da especulação imobili- Em nossa formação na UNI-
ária7. Ali, começamos a fomentar CAMP, a relação entre atuação e
mais uma perspectiva de coletivi- espaço e/ou encenação e espaço foi
dade, como frisou Otani (2019): um elemento sempre presente, tra-
tado de forma intensa e prática, ain-
Se eu crio uma relação comunitária de pen-
samento sobre teatro eu já estou num outro da que sem um olhar reflexivo para
espaço sempre. Porque tem o espaço do tea- ele; o que só aconteceria em experi-
tro como espaço de metáfora, de convivência
e como construção alternativa de modos de ências posteriores, ganhando vultos
convivência. Então, o teatro não é só um ou- bem mais explícitos em termos das
tro espaço na medida em que é um lugar para
a cena; ele é um outro espaço na sociedade, possíveis conotações deste diálo-
um espaço de exceção, um espaço, uma zona
de resistência, zona de criação de outros tipos go. Vale pontuar que os questiona-
de relações. Acho que isso também estava na mentos sobre a função do espaço da
concepção do João das Neves. O teatro como
lugar de resistência, lugar de imaginação. cena já estavam “presentes no dis-
curso e no leque de procedimentos
Ocupamos o parque com a na formação d’ O Pessoal do Vic-
produção do espetáculo. Vivíamos tor” (OTANI, 2019), grupo oriun-
ali em torno de 8 a 12 horas diá- do da Escola de Arte Dramática
rias até o final da temporada, pro- (EAD) de São Paulo que colaborou
movendo atos para a preservação com a configuração e implantação
do local que culminaram com o das Artes Cênicas na UNICAMP,
segundo ciclo de palestras sobre a além de se estruturarem de forma
obra de Guimarães Rosa, seguida palpável em decorrência das carac-
de ensaios abertos e, depois, com a terísticas do barracão que abriga as
temporada do espetáculo e o afluxo salas de aula do curso: todas mo-
de pessoas até lá. Assim, nossa roti- duláveis e multiuso (são salas de
na e dedicação permitiu ao trabalho aula, ensaio e apresentações), per-
revelar seu caráter de resistência. mitindo ao ator desenvolver habi-
lidades e modos distintos de agir.

7
Durante nossa graduação, chegamos a acompanhar as últimas edições do FIT Campinas. Mesmo o movimento de gru-
pos de teatro da cidade, sobretudo aqueles com sede em Barão Geraldo, começaria apenas na virada de 1997 para 1998,
quando novas mostras e festivais foram fomentados, como as primeiras edições do Feverestival, ainda de dimensões locais.

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Assim, muitos dos exercí- E como relembram Otani e Badra


cios realizados durante a gradu- (2019), a formação do ator referen-
ação vinham impregnados dessas te a isso também se completará na
questões: cenas assistidas de fren- medida em que os espaços forem
te pela plateia que se dispunha em ocupados e vivenciados por ele.
arquibancadas em espaço retan- Na proposta de encenação de
gular; cenas feitas sobre tablados das Neves, o espaço foi elemento
móveis, distribuídos em semicír- fundamental. Tanto por ser o lu-
culo a céu aberto, no gramado em gar usado pelo espetáculo, quanto
frente ao barracão, com o público por revelar suas camadas e incluir
acomodado na inclinação do ter- a plateia no universo de Guimarães
reno; cenas feitas em procissão, Rosa; por ser parceiro de jogo e, ao
dentro de um círculo com a plateia mesmo tempo, acontecimento. O
ao seu redor no Observatório do cenário se distanciava da paisagem
campus universitário; cenas vistas urbana, possibilitando a percepção
de cima em disposição quadrangu- de outros tempos: tinha o grilo, a
lar e/ou na baixada do terreno à árvore, os passarinhos que dialo-
beira do lago da Educação Física.8 gavam com a gente, construindo
Para Primeiras estórias, Ve- uma trilha; o vento e a temperatu-
rônica Fabrini, responsável pela ra sentidos pelo espectador (BA-
preparação corporal da turma, ex- DRA; EVARISTO, 2019) ou mes-
plicitou estas dinâmicas em seus mo a experiência da passagem de
encontros conosco, direcionando um tipo de luz para outro, pois a
nossa atenção para os desdobra- peça começava no início do entar-
mentos do diálogo do ator com o decer e acabava com o dia já escuro.
espaço da cena e para as possíveis O interesse de João em explo-
relações palco-plateia. Assim, as- rar outras possibilidades para as
pectos da atuação como modula- trocas entre palco e plateia se deve a
ção de energia e graus de projeção uma percepção sua da saturação da
de voz e gestualidade ou mesmo linguagem, desde sua atuação junto
de atenção para o ponto de vista ao Teatro Opinião, convertendo-se
do espectador – de onde ele assis- em pesquisa continuada sobre dra-
te à cena - foram verticalizados. maturgia espacial, como pontuou

8
Respectivamente, refiro-me a: Nossa cidade, de Thorton Wilder, direção de Reinaldo Santiago; Electra III, adaptação e
direção de Márcio Tadeu das tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes; Os cegos, de Michel de Ghelderode, direção de
Maria Thaís e Otelo, de William Shakespeare, direção de Verônica Fabrini.

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Marília Gomes Henrique (2006). petáculo pedia do espectador uma


Não só o texto deveria dizer algo, outra lógica de relação com o acon-
como o espaço e os meios da plateia tecimento, assim como permitia
se relacionar com ele também, in- que ele montasse seu próprio ro-
cidindo em dinâmicas de ritualiza- teiro e tivesse liberdade de ir e vir.
ção, revitalização e redimensiona- Com esta proposta, João am-
mento dos espaços escolhidos para plia a compreensão de cenário,
alguns de seus espetáculos, como o visto por ele não só como a cons-
Primeiras estórias, que ocuparam trução do ambiente físico onde se
áreas urbanas. O espaço foi o pres- situa a ação dramática, mas dizen-
suposto “para burilar o som e a fú- do “respeito ao universo da peça.
ria” na montagem de O último car- Informações contidas na peça so-
ro, assim como para trazer à cena o bre época, local, hora, clima, rela-
“[...] labirinto narrativo de abissal ções econômicas, políticas, religio-
riqueza, aparentemente inextricá- sas, sociais.” (NEVES, 1997, p. 82).
vel e irredutível à lógica do palco” Acompanhando todo o ciclo
da obra de Rosa, como pontuou que fez parte da montagem – de
Ilka Marinho Zanotto sobre a mon- palestras, ensaios abertos e tem-
tagem em Campinas (1996, p. 46). porada –, Alda Maria Quadros
Conceitualmente, a confi- do Couto analisa o espetáculo,
guração espacial da peça seguiu a chamando a atenção exatamen-
estrutura de um livro de contos, te para as características apon-
quando “você pode ler a primeira tadas acima em função da peça
história e depois a última. Pode ler se passar no Parque Ecológico:
hoje e só retomar daí uma semana.”
A poesia, o lirismo, as emoções, sobretudo a
(NEVES, 1996, p. 15). Ou seja, as alegria de alguns dos melhores momentos do
cenas aconteciam em espaços dis- espetáculo, são uma seríssima lição de apren-
dizado dessa necessária convivência entre o
tintos do parque (à beira do lago, passado e o futuro. Se cada pessoa pode se re-
no terreiro sob árvores na entrada conhecer e reencontrar sua história familiar
e comunitária nas escadarias, nas salas, nas
da tulha, na própria tulha em sua varandas, nos porões, nos jardins da antiga
fazenda, legitima-se o lugar como um espaço
parte superior e inferior, em fren- de busca, reencontro e reafirmação de uma
te e dentro, nos porões do casa- identidade que a população não quer mais
perder. (COUTO, 1996, p. 3)
rão e num jardim com vegetação
mais cerrada), sendo várias cenas A ideia de pertencimento rea-
apresentadas concomitantemen- parece na fala de outra atriz do espe-
te. Assumido neste formato, o es- táculo – Poena Vianna. Segundo ela:

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A relação do ator com o espectador se apro- lá que a criação das cenas se efeti-
ximou à uma experiência de um set de gra-
vação, mas ‘em modo continuo’. A sensação vou. Elas “estavam levantadas, mas
do ‘agora’ se fez mais forte. O ator se rela- ao chegar ao parque foram com-
cionava com o espaço real que incluía, além
de variedades arquitetônicas, a natureza em pletamente modificadas, mudando
si, uma verdadeira imersão... (...) Lembro de
sua vivência com os índios [referindo-se ao também o que eu imaginava que
João] e de como me senti mais próxima des- seria o espetáculo.” Narradora em
ses nossos antepassados que convivem com a
natureza, trabalhando com imenso respeito a Espelho, ela comenta a interferên-
ela. (VIANNA, 2019) cia direta do espaço em sua atua-
ção e também na revelação do pró-
O espaço também ajudou a prio conto para si e para a plateia:
revelar as metáforas expressas por
Rosa. Se ao longo do livro o au- A busca interior do personagem, busca de sa-
ber quem era...[eu a] vivenciei muito de per-
tor interioriza sertões e ao mesmo to dentro da criação, naquele espaço que eu
tempo reapresenta o indivíduo ao ficava trancada horas, passando, repassando,
transpassando essa cena. O espaço e o espe-
coletivo e o faz transitar entre os lho, o objeto cênico colocado no espaço, fo-
ram essenciais para a criação. E a relação dos
espaços urbano e rural, o parque espectadores também... Os espelhos faziam a
explicitava tais fluxos. Em Fami- plateia ser multiplicada em onda9. O espaço
trazia uma memória antiga, de passado, de
gerado, por exemplo, que aconte- coisa interna. Pelo reflexo, ele [o espectador]
cia em frente ao casarão, aos pés de era carregado de volta para aquele lugar do
personagem, da pesquisa de quem ele era.
sua escadaria, tendo como cenário (...) Para mim foi muito marcante a criação
mesmo, (d)a possibilidade de fazer esse mo-
sua fachada e um tabuleiro gigan- nólogo, que àquela época não me sentia capaz
te de xadrez, na análise de Verô- de fazer (...) e o João foi uma pessoa muito
firme e apoiador e a assistente de direção foi
nica Mello (2019), era explorada muito forte nesse processo de entendimento
o tempo todo a relação dentro fora [dessa] possibilidade. Aquele lugar me deixa-
va com muito medo e isso foi para a cena no
e o jogo de poder entre o homem sentido positivo. Aquele espaço estava muito
na forma como eu fazia; por ser um espaço
da cidade e o homem do sertão: o meio opressor, muito pequeno, com uma me-
doutor que vem de dentro resol- mória que gritava muito para quem entrava
ali a primeira, a segunda, a terceira vez....
ver a questão posta pelo jagunço aquela memória vinha à tona, era vivenciada
de fora. Conversa cujas tensões se de novo. (MELLO, 2019)

materializavam no jogo de xadrez Brincando os entretempos, afinal


assumido por ambos, com as peças Um pouco antes da estreia
ora pressionando um, ora outro. da peça, João nos deu um presente:
A atriz ainda comenta que a levou-nos para dentro de um dos
ida para o parque mudou tudo. Foi
9
Os espelhos ficavam paralelos, um de frente ao outro, encostados nas paredes laterais do porão e a plateia era colocada
no centro do espaço, entre eles, em duas fileiras de cadeiras, uma de costas para a outra, de tal modo que enxergava seu
reflexo multiplicado infinitamente.

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corredores do casarão e, no escuro, nos permitiu exercitar outras fun-


ouvimos Titane10 cantar à capela, ções dentro do teatro, como a de
pontuando o encerramento de um produtores, além de nos possibi-
ciclo e iniciando a próxima etapa litar acompanhar um processo de
da jornada. Se no começo não sa- formação de plateia ao propor não
bíamos como viabilizar muita coisa só os ensaios abertos, como os de-
(o falecimento precoce de Burnier bates e as palestras, e a compre-
pegou a todos de surpresa), aos ender o espectador como alguém
poucos, como numa exata sessão de que “não vai lá só para ver, mas
improviso musical, quando o som como alguém que constrói jun-
de um instrumento se encaixa ao to.” (OTANI, 2019), reforçando
som do próximo, como se o conjun- o caráter formador de das Neves.
to se conhecesse de outras épocas e Como traço da poética do
distâncias, o trabalho foi-se concre- encenador, alguns dos recursos
tizando. Seu espírito agregador nos utilizados pela encenação e dra-
colocou diante de uma rede de co- maturgia levantados por Marília
laboradores e nos fez criar outras Henrique (2006, p. 84) também
tantas redes, nos ensinando a fazer puderam ser verificados ali, como:
laços – outro significado contido “a ausência de protagonistas, o ca-
na palavra brincar. Buscamos par- ráter descontínuo das cenas, a in-
cerias com escolas de Campinas e tervenção de coro e poemas, (...) re-
região via Secretaria de Educação, cursos narrativos extra-literários
com centros culturais da cidade e como projeção de imagens, sonori-
entidades como o SESC, realiza- zação” e as já citadas “diversidade
mos eventos para criar a imagem espacial [e] novas possibilidades
do cartaz da peça através de con- de relação público-espetáculo.”.
curso, com a participação livre de No plano da atuação, estas
interessados, e arrecadamos fun- dinâmicas de trocas, bem como a
dos para a montagem, fosse por transposição da literatura para a
meio de rifas, do “passar o chapéu” cena nos fez exercitar a linguagem
ou da venda de cartazes, camisetas por meio de espaços, gestos, sons
com sua estampa e programas da e movimentos. O enfoque dado a
peça ao final de suas apresentações. cada um dos contos/cenas – ora
Nesse sentido, o projeto de narrados, cantados ou dançados
montagem de Primeiras estórias –, pontuados, como nos contos de
10
Cantora, diretora musical, esposa e coordenadora do acervo de João das Neves.

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Rosa, por uma expressão diver-


tida e cômica ou por um caráter
lírico, realista ou dramático, im-
plicaram no reconhecimento e no
jogo com distintas possibilidades
expressivas. Aprendíamos na lida
a audácia necessária para navegar.

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referências

AVELAR, Marcello Castilho. A apoteose do espaço. Estado de Minas. Belo Ho-


rizonte, 28 jun. 1996. Espetáculo, p. 3. Acervo da autora.

BADRA, Carol. Atriz na montagem de Primeiras estórias em Campinas. Entre-


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Abstract

The article discusses the stage production of Primeiras estórias, directed and adapted by
João das Neves from João Guimarães Rosa´s homonimous ouvre, from the point of view
of acting. It covers the relations between cast and director and spans some aspects of the
dialogue between actor and space, due to the interdependence of the staging with both.

Keywords

Primeiras estórias in Campinas. Acting and spatial dramaturgy. Theatrical pedagogy.

Resumen

El artículo aborda el montaje del Primeras estórias en Campinas: dirección y adaptación


de João das Neves para obra homónima de João Guimarães Rosa, bajo la perspectiva de
la actuación. Abarca las relaciones entre reparto y dirección y dimensiona aspectos del
diálogo actuación y espacio, dada su interdependencia en escenificación.

Palabras clave

Primeras estorias en Campinas. Actuación y dramaturgia espacial. Pedagogía teatral.

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A Arte engajada de João das
Neves – o artista-txai e
suas metáforas da coleti-
vidade

Resumo >
Luciana Mitkiewicz

A partir de textos, vídeos e de duas entrevistas


– com João das Neves e com Ileana Diéguez – este
trabalho traz um panorama das características mar-
cantes nas encenações do artista, das quais participei
como atriz e como atriz idealizadora, produtora e/ou
coautora, e uma reflexão sobre pontos de ressonância
e dissonância entre a chamada arte engajada, tal como
ele a entendia e praticava, e o que hoje chamamos arti-
vismo.

Palavras-chave:
João das Neves. Arte engajada. Artivismo.
A Arte engajada de João das Neves – o artis-
ta-txai1 e suas metáforas da coletividade

Luciana Mitkiewicz2

Apresentação dos porquês


2
Doutora em Artes da Cena
pela Unicamp e mestre em Conheci João das Neves na IV Mostra de
Teatro pela Unirio, é funda-
dora da Bonecas Quebradas
Diálogos Dramáticos de Limeira, em 2001, como
Teatro, no Rio de Janeiro. É membro do júri do Festival de que eu participa-
atriz, pesquisadora, profes-
sora e produtora teatral. E- va. Sabia que dali a poucos dias nos reencontra-
-mail: mitkiewicz.luciana@ ríamos para uma reunião na Unicamp, aprovei-
gmail.com.
tando o ensejo da sua viagem ao interior de São
Paulo. Era uma lenda viva do Teatro. O conhecia
do texto O Último Carro; da antológica mon-
tagem de Primeiras Estórias, no Parque Ecoló-
gico de Campinas, e do movimento de teatro de
resistência política das décadas de 1960 e 1970.
Não sabia muito mais do que isto, à época.

1
Txai: tratamento usado pelo povo Kaxinawá para designar todos aqueles
que lhes são próximos, seja por parentesco, pelas relações com os membros
da mesma nação ou pela amizade. Literalmente, significa “minha outra me-
tade” (projeto de Yuraiá – o rio do nosso corpo).
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Fui conhecendo, aos poucos, carac- poderíamos chamar de arte engaja-


terísticas que marcaram sua traje- da, em confrontação com práticas
tória artística no Teatro Brasileiro, artivistas, as quais rompem com
como a realização de trabalhos em marcos teatrais ao proclamarem-
espaços públicos da cidade, ressig- -se ações ativistas que, por meio
nificando-os, assim como, também, de dispositivos poéticos, atuam na
as obras que neles tinham lugar. Ou realidade imediata buscando al-
seu gosto pela metáfora como forma gum tipo de solução aqui e agora.
de aprofundar a percepção sobre as Motiva-me a escrever mi-
coisas do mundo, alargando a nossa nha grande admiração pelo poeta,
capacidade imaginativa de transver dramaturgo e encenador, que co-
a realidade – opus alquímico de que nheci de perto em trabalhos como:
sua imaginação dialética e, conse- Cassandra, As Polacas – Flores
quentemente, sua arte sabiam tanto. do Lodo e Bonecas Quebradas,
Foi retomando esse contato na leitura dramatizada de Yuriá
anos mais tarde, em outras monta- – o rio do nosso corpo e como es-
gens e na convivência no tempo, que pectadora de Besouro Cordão de
o vi reinventar-se inúmeras vezes, Ouro, Galanga Chico Rei, Zum-
espírito inquieto e solidário, pro- bi e Aos nossos filhos, peças que
fundo conhecedor dos problemas ele dirigiu nos últimos anos – to-
da realidade brasileira porque dis- das, ligadas a questões caras aos
posto a sentir de perto, em convívio movimentos negro e LGBTQI.
estreito, nossas muitas injustiças Inspira-me o desejo de ho-
sociais. Este artigo se propõe, pois, menageá-lo, sem perder de vista
a compartilhar com o leitor carac- questões que me são hoje de extre-
terísticas apreendidas por meio do ma importância. Escrevo também
contato próximo com o artista, o por saudades do meu amigo, com
qual tive o privilégio de estabelecer amor e dedicação; com alegria. E,
durante mais de 15 anos, bem como, assim, o reencontro e o aprecio.
busca refletir sobre uma questão E aprendo com ele uma vez mais.
que lhe foi tão cara durante toda a
sua trajetória artística: o papel da
arte. O que pode e para que serve a
arte frente a questões urgentes de
nossa sociedade? Ou seja, visa em-
preender uma reflexão sobre o que

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Cassandra, um processo criativo “Começou a dirigir” com o proces-


de aporte colaborativo: o coleti- so de prospecção e de acumulação
vo como protagonista e a capaci- de materiais de criação bem avan-
dade de transver o mundo çado, após uma série de encontros,
debates, improvisações e leituras.
O teatro é exatamente isso: perceber o
mundo e saber tirar daquela percepção o seu
modo de ver aquilo e de mostrar aquilo. En- O João é um grande observador. [...] Então,
tão, quem quer fazer teatro tem que ter isso, às vezes, ele até demora a intervir. [...] Só que,
eu acho. Um profundo respeito pelo outro, quando ele intervém, ele vai no ponto e, en-
né? E saber ver. Ver e tentar compreender. tão, aquilo ali munda. [...] É tudo muito dinâ-
(NEVES, 2015a)3. mico. [...] primeiro, porque ele quer arrancar
daquele elenco o melhor que aquele elenco
pode dar. Então, ele se adapta ao elenco e não
No início da montagem de o contrário. [...] Ele considera o ator uma fon-
te de vida e de conhecimento. Então, ele não
Cassandra, adaptação para o tea- vai querer massacrar aquele cara e adaptar ele
tro do romance de Christa Wolf aos “desejos do João das Neves”. (TITANE,
2015)4.
feita por João das Neves, nenhu-
ma cena da peça era sequer im- João havia dirigido uma série
provisada, muito menos marcada. de trabalhos em espaços não con-
O processo iniciava-se pelas bor- vencionais, ou seja, espaços públi-
das, pela familiarização de todos cos, de cidades como Belo Horizon-
com o tema da peça, com o mito te e Campinas, tais como, Parque
de Cassandra – uma abordagem Ecológico de Campinas, sob ameaça
via mythos, na qual João revelou- de fechamento pela prefeitura, em
-se mestre não apenas neste, mas 1995, cenário de Primeiras Estó-
também em outros trabalhos que rias; um túnel entre Belo Horizonte
faríamos juntos alguns anos depois. e Sabará, Minas Gerais, local de de-
A diferença entre uma abor- sova de corpos e espaço cênico para
dagem via logos ou via mythos Pedro Páramo, em 2001; Parque da
fundamenta processos criativos de Pedreira do Chapadão, em Campi-
maneira inteiramente diversa. A se- nas, o lugar teatral de Cassandra,
gunda é utilizada em processos de minha montagem de formatura, em
aporte colaborativo, independen- 2002, evocando a voracidade ex-
temente do fato de apoiarem-se ou trativista também presente na imi-
não em um texto pré-existente. João nente invasão do Iraque, algo que
trabalhou conosco desta maneira. a outra Guerra, a de Tróia, tema
3
Transcrição de parte do depoimento registrado em vídeo de João das Neves para a Ocupação João das Neves, realizada
pelo Itaú Cultural, São Paulo, em 2015.
4
Transcrição de parte do depoimento registrado em vídeo de Titane para a Ocupação João das Neves, realizada pelo Itaú
Cultural, São Paulo, em 2015.

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da nossa peça, tão bem espelhava. metáfora para as mentiras que le-
Em Cassandra, percebi tam- vam a outros tantos massacres, os
bém seu gosto pelas metáforas e quais devem-se fundamentalmente
pela utilização de um diacronismo a objetivos econômicos. Mas não
potente para pôr em perspectiva apenas em Cassandra utilizou-se
fatos atuais, dos quais talvez não de metáforas poderosas para abor-
tenhamos dimensão exata pela pro- dar questões sociais prementes. O
ximidade no tempo e no espaço. Último Carro é exemplo clássi-
Fácil percebê-lo já nas três opções co dessa estratégia artística. Nele,
oferecidas para a montagem de for- um trem desgovernado é metá-
matura: Os Bandoleiros, de Schiller fora perfeita do desgoverno mili-
– cuja frase “a lei não deu ao mun- tar que tomou o poder em 1964.
do nenhum homem de grandeza, Do grego meta (“passagem
mas a liberdade incuba e faz nas- sobre”, ou “ida de um lugar a ou-
cer colossos e extremados” resume tro”) e phorein (“mover” ou “carre-
bem seu desejo por tratar, no tea- gar”), a metáfora tem a capacidade
tro, das injustiças sociais afiança- de nos transportar de um ponto a
das pela lei – Cassandra, de Christa outro, permitindo-nos atravessar
Wolf, em face das espúrias moti- fronteiras que, de outro modo, es-
vações para as mais diversas guer- tariam fechadas para nós, afirma
ras, e Pedro Páramo, um memen- Campbell (2001). Fronteiras tem-
to mori a opressores e oprimidos. porais e espaciais. A reflexão per-
Percebi que as metáforas de manente sobre o lugar teatral, o
João têm um propósito fundamen- espaço cênico a abrigar, com vistas
tal: nos transportar ao passado a objetivos específicos a cada mon-
para fundar utopias; não nostal- tagem, ator e público, era outra ca-
gias ou quimeras. Ao contrário, nos racterística marcante do trabalho
fazem ver aquilo que ainda não é. de João das Neves. Para O Último
“Plantar no espectador sementes” Carro, colocou a plateia no centro
era seu objetivo, como explicita- do espaço e fez os vagões de trem
do no texto do programa de Um envolverem os espectadores. A me-
Homem é um Homem, de B. Bre- táfora se completava espacialmen-
cht, dirigida por ele em 1974. Em te: não só os que se balançavam nos
Cassandra de João das Neves, as trens suburbanos lotados seriam
pretensas motivações que conduzi- atingidos pelo desgoverno em cur-
ram à guerra de Tróia servem de so, mas toda a população. Em Cas-

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sandra, após a experiência de Pri- presentes, pois, algumas caracterís-


meiras Estórias e de Pedro Páramo, ticas-chave de sua arte – dinâmica,
a sanha extrativista, presente nas sempre original e, por isso mesmo,
guerras imperialistas e neoimperia- arriscada de se nomear, sob pena
listas, materializava-se nas escava- de não se perceber com acuidade
ções das paredes rochosas de uma aquilo que se desloca com a agili-
Pedreira. Um cenário perfeito para dade e a eficiência de uma metá-
a grandiosidade do tema da peça e fora e ao sabor da caminhada do
para muitas outras ressonâncias, artista pelo Brasil e pelo mundo.
próprias da metáfora espacializada.
Também em Cassandra, de
João das Neves, o diálogo entre cul-
turas e entre tradição e tecnologia,
além da mistura de formas – o coro
grego e a capoeira, repente, teatro
de bonecos e vídeo projeção – na
qual o encenador era pródigo, pu-
nha em diálogo diferentes tempos Fig. 1 - Espetáculo Cassandra. Campinas, Parque da
Pedreira do Chapadão, 2002. Atores: Talitha Hansted,
e espaços, radicalizando o alastra- João Maria, Nicole Pschetz, Luciana Mitkiewicz e Martha
mento da metáfora pela articulação Dias. Foto: autor desconhecido.

entre os tantos e diversos elemen-


O reencontro em Polacas – Flores do
tos cênicos. Outra característica Lodo: teatro como ponte para se pensar a
notável é que, na montagem com sociedade e o humano
a turma de formandos, ao contrá- O teatro de João das Neves se abre para as
rio do romance de Wolf, não havia múltiplas vozes que formam a cultura brasi-
leira. [...] Para João, a riqueza são os outros.
protagonistas. A personagem prin- (ZANOTTO, 2015b, s/p.)5
cipal da trama foi interpretada por Deslocando-se geograficamente – tendo o
cinco atores, que, em determinado próprio corpo como local de experimentação
–, traz à luz as vivências de índios do Acre, de
momento da peça, falavam em coro, trabalhadores dos trens suburbanos, de mu-
como nas tragédias gregas. Desco- lheres ofendidas em textos reivindicatórios
[...], de torturados à morte nos porões da di-
bria ali outra faceta de seu traba- tadura militar, de negros de Minas Gerais, de
lho: o coletivo como protagonista. gentes do Vale do Jequitinhonha… (ZANOT-
TO, 2015a, p. 18)
Neste primeiro trabalho que
fiz com João das Neves, estavam

5
Trecho retirado do site da Ocupação João das Neves, realizada pelo Itaú Cultural, São Paulo, em 2015. Disponível em:
<https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/joao-das-neves/alteridade/>. Acesso em: 24 jan. 2019.

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Nos reencontramos pouco tagens de sua “trilogia de teatro


mais de dois anos depois, em 2005, negro”6. Talvez motivado por essa
para a leitura dramática de seu tex- fase de profunda conexão com a
to Yuraiá - o rio do nosso corpo, cultura de matriz afro-brasileira,
escrito nos anos em que viveu no tenha escolhido abordar os prová-
Acre. E novamente, em 2011, para veis laços de solidariedade – de-
a escrita e montagem da peça As pois confirmados por historiado-
Polacas – Flores do Lodo, produção res – entre as polacas e as escravas
para a qual o convidei como drama- recém libertas que habitavam a
turgo e diretor, fosse pelo desejo de mesma região. Sua imaginação
ser novamente dirigida por ele, ou viu isso, antes de lê-lo nos livros.
porque, ao me aprofundar sobre o Mais uma vez, a coletividade
tema do tráfico de escravas brancas era a protagonista do espetáculo.
para as Américas, especificamente, Aqui também, João valia-se de uma
para o Rio de Janeiro, me defron- profunda escuta e de suas visões para
tei com a multiplicidade de temas trabalhar com questões de grupos
que a história apresentava: as mo- do qual não fazia parte. O “outro”
ças pobres dos shtetls do Leste Eu- em seu teatro não era ação mental,
ropeu, ludibriadas com promessas abstração, análise, mas experiência,
de casamento e traficadas como conhecimento direto, troca e apren-
escravas sexuais para o Brasil; o dizado; inserção e participação ati-
encontro de culturas na região da va em cena, tendo em vista o cará-
antiga Praça Onze, berço do samba ter colaborativo de seu trabalho.
e da boemia carioca; a vida degra- Sob convite meu, João atuou
dada nos prostíbulos da área por- como autor e/ou diretor em um
tuária, na chamada Zona do Man- espetáculo de temática feminina
gue; os laços de solidariedade entre e feminista. E essa sua participa-
mulheres para o enfrentamento da ção em terrenos diversos, os quais
brutalidade de uma cultura ma- não eram o seu, digamos, “local de
chista e da violência dos cafetões, fala”, ora tão em voga, me ensina
entre tantos outros. E pensei: só o que há pessoas que, pela trajetória
João para dar conta dessa mistura artística marcada pela permeância
toda e de uma história tão terrível! a tantas questões que as engran-
Falo de 2011, época em que decem não apenas como artistas,
João das Neves se dedicava às mon- mas, sobretudo, como seres hu-
6
Composta por Besouro, Cordão de Ouro, Galanga, Chico Rei, e Zumbi.

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manos, podem, de fato, colocar-se Bonecas Quebradas – a


em terrenos distintos tantas quan- necessidade de tratamento
tas sejam as vozes que as convi- artístico dos documentos e a
dem a participar, a compartilhar. pergunta que não quer calar:
para que serve a arte?
Bonecas Quebradas, terceiro
e último trabalho que fiz com João
das Neves, tinha como tema, após
Fig. 2 - Estreia As Polacas – Flores do Lodo. Rio de viagem de residência artística ao
Janeiro, CCBB, 2011. Atrizes com o autor e diretor, João México, os feminicídios em Ciudad
das Neves: Ivone Hoffmann, Lígia Tourinho, Marina
Elias, Luciana Mitkiewicz, Carla Soares e Iléa Ferraz. Juarez e, evidentemente, suas
Foto: André Scucatto.
ressonâncias com as mais diversas
No texto do programa de As formas de violência de gênero no
Polacas – Flores do Lodo, escreveu: Brasil.
Contemplado no Rumos
“Se você olhar através dos vidros de uma ja-
nela, verá o mundo lá fora. Mas se colocar um Itaú Cultural 2014-2015, o
papel prateado na mesma, verá apenas o seu espetáculo foi construído a partir
rosto”. São palavras de um rabino, pronun-
ciadas a centenas de quilômetros do Brasil de experimentações práticas e
e há tempos atrás. Mas que ilustram bem as de textos enviados por João para
propostas deste espetáculo. Mostrar que a
violência e a intolerância que nos cercam diu- pontuar as diversas facetas que a
turnamente não nasceram hoje. O Rio de Ja-
neiro sempre colocou um papel prateado em terrível história dos assassinatos de
sua vidraça. [...] Mas ao retirarmos o papel mulheres em Juarez descortinava.
prateado surge uma outra cidade, não me-
nos verdadeira. [...] Um Rio de Janeiro que se Buscando as motivações mais
habituou a fechar os olhos para a violência e profundas para a violência contra
discriminações de toda a espécie contra a sua
população pobre. [...] Mas um Rio em que, a mulher latino-americana, as
por isso mesmo, a população pobre de todos
os matizes e crenças religiosas soube criar la- encontrávamos em uma guerra
ços de solidariedade capazes de conduzi-lo contra o feminino como extensão
à redenção de seus males. Este espetáculo é
uma homenagem a este Rio. [...] Que, com do domínio territorial empreendido
o olhar aberto para o passado, compreende pelo sistema patriarcal capitalista,
o presente para construir o futuro. (NEVES,
2011, s/p.) o qual, desde remotos tempos,
explora e subjuga populações
inteiras.
A dramaturgia da peça
foi escrita a dez mãos7 e teve
encenação de Verônica Fabrini,
7
Isa Kopelman, João das Neves, Lígia Tourinho, Luciana Mitkiewicz e Verônica Fabrini.

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diretora convidada. Com propostas


textuais no formato de oratórios
gregos, João tratou os documentos
que lhe foram apresentados,
sobretudo, naquele um mês de
residência artística, de maneira a
abarcar tantos ângulos quanto se
nos apresentavam as informações
colhidas em reportagens, imagens,
Fig. 3 - Bonecas Quebradas. Rio de Janeiro, SESC
Copacabana, 2016. Atrizes: Lígia Tourinho, Iléa Ferraz e
vídeos e livros. Buscou aproximar Luciana Mitkiewicz. Foto: Américo Jr.
os fatos descobertos em território
mexicano da tragédia de Sófocles Essas foram as formas que
(no texto Antígonas), por exemplo, encontrou para dar um tratamento
apresentando a brutalidade de poético aos muitos documentos,
uma “guerra suja e surda” e a luta com vistas à realização de uma obra
das mães das vítimas de Juarez de arte – sempre seu objetivo final.
em sua confrontação do poder As propostas textuais de João das
instituído para, entre outras coisas, Neves para o espetáculo buscavam
dar sepultura digna a suas filhas; sempre essa consubstanciação
presentificou a ausência destas por da forma artística; nunca uma
meio das lembranças marcadas documentação direta ou uma
nos corpos de suas mães (em As manipulação dos documentos
Mãos) – mãos vazias, mas repletas apenas no nível da edição – estudo,
de memórias; trouxe à cena as seleção, corte, ordenação. Ao
principais informações sobre o contrário, primavam por um diálogo
mais emblemático dos casos, o com outros tempos e espaços,
Campo Algodonero (em Campo reflexões profundas, recorrências
de Algodão I e II); e propôs uma a locais específicos da trama dos
reflexão sobre os vários casos de acontecimentos para encontrar ali
violência contra mulheres pobres outras chaves de leitura, outros
latino-americanas por meio de uma elementos evocativos, conotações,
simples consulta ao dicionário (em metáforas potentes para dar
O que é um deserto?). conta da exposição dos fatos e,
ao mesmo tempo, transcendê-los.
A necessidade de transcendência
poética foi sempre o cerne de

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sua arte, algo confrontado com tal como o da Ileana, você se vê obrigado a se
confrontar com a ideia dela e, ao mesmo tem-
o imperativo documental deste po, co-participar não só dessa ideia, mas de
trabalho, que, muitas vezes, acabava uma criação artística que estava dentro desse
olho do furacão. Então, isso foi muito desafia-
mostrando-se cru, raso, frente à dor, né? (NEVES, 2018, p. 281-282).
necessidade de se abarcar as muitas
camadas e contradições do tema. Esse questionamento tam-
A necessidade de criarmos bém me abalou muito, ainda mais
sobre bases documentais foi por se tratar de um desafio gran-
colocada pela consultora teórica de também a um artista tão ex-
do processo, Ileana Diéguez, sendo periente e compromissado, como
de fato vivenciada na prática, fosse João das Neves, na luta contra as
pela impossibilidade concreta de diversas desumanidades que nos
representar violência de tal nível, afligem como sociedade huma-
fosse pela confrontação ética com na. Era outubro de 2017, quan-
o tema, que nos impedia qualquer do fui à Lagoa Santa entrevistá-
tentativa de ficcionalização. A todo -lo para minha tese de doutorado
o momento, Ileana nos colocava (DE SOUZA, 2018). Nessa ocasião,
uma questão central: para que João deu o seguinte depoimento:
serve a arte? Pergunta que calou É preciso que a metáfora exista, é preciso que
fundo em todos nós, obrigando- exista acima dos fatos reais a Arte, porque é
ela que vai fazer você transcender, percebe?
nos a repensar velhas e arraigadas Por mais simples a cena, não simples no sen-
formas de fazer teatro. tido da coisa rasa, mas simples no sentido de
mostrar que na simplicidade está a profun-
didade das coisas, né? Tem um poema do
Então, para que é que serve esse negócio? Era Drummond, muito bonito e muito simples,
a pergunta que estava sempre na cabeça da em que ele fala o que estava acontecendo em
gente, né? Não vai ter nenhuma outra con- Itabira, que era a cidade dele, que é a capa-
sequência? Tem consequência? Obra de arte cidade destruidora das mineradoras. Esse
tem alguma função além de ter uma função poema foi escrito há anos e que cabe perfei-
estética? A Ileana era muito descrente em re- tamente à tragédia de Mariana e a outras tan-
lação a isso [...]. E esse questionamento que tas tragédias das barragens. E esse poema do
estava dentro dela e que passou para nós foi Drummond não fala dessa coisa, [...] mas ele
muito útil, porque também nós nos questio- transcende à sua época, ao seu tempo, a essa
namos muito. No meu caso, por exemplo, eu situação, por ser uma obra de arte. (NEVES,
não tenho vinte anos, nem trinta, eu tenho 2018, p. 282)
oitenta. Então, chegar a essa altura da minha A Ileana não via a obra de Arte como uni-
vida, tendo feito teatro o tempo inteiro, tendo camente uma obra de Arte, ela via qualquer
feito desde muito jovem a opção pelo teatro, atividade artística como instrumento de ati-
não pelo teatro em si, mas pelo que o teatro vismo. Isso é errado. Isso é raso, porque não
podia significar de elemento modificador da deixa nada para as pessoas, só deixa para as
sociedade [...]. Então, quando, de repente, pessoas que estão convencidas daquilo, que
você chega aos oitenta anos e encontra um sabem das coisas, digamos assim. (NEVES,
questionamento tão bem embasado e tão bru- 2018, s/p)8

8
Trecho de entrevista não publicado.

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É de tal força sua colocação, 2015b)10, “a arte como panfleto”, ou


que não pude incluí-la no meu tra- seja, a arte “útil”, entendida como
balho por não ter, na época, uma re- ato, manifesto político, e não como
flexão à altura por parte de Ileana parte imprescindível de um projeto
Diéguez, tendo-a conseguido so- maior de transformação da socie-
mente às vésperas da entrega da tese dade, só tem sentido pontualmente,
à banca, em julho de 2018. Por isso, em situações excepcionais, para a
aproveito o ensejo desta publicação denúncia de injustiças, por exem-
para compartilhar com o leitor al- plo. A arte, para ele, tem um papel
gumas reflexões pertinentes sobre muito maior, ao buscar responder
o sentido da arte, não para “voltar “às necessidades de comunicação
a instaurar a velha disputa entre entre os seres humanos em níveis
Adorno e Benjamin, da arte pela mais profundos que a relação coti-
arte ou da arte comprometida” (DI- diana” (NEVES, s/d, p. 1). Estru-
ÉGUEZ, 2018)9, mas para pensá-la turada no exercício de alteridade e
seja como potência e/ou instru- no pensamento dialético, sua arte
mento, segundo os enfoques da cha- sempre buscou, numa perspectiva
mada “arte engajada” e do que hoje histórica, dar a ver o que se repete
se conhece sob o termo “artivismo”. e o que se transforma pelo desen-
João das Neves, desde o início volvimento de contradições sociais,
de sua carreira profissional, se per- o nascedouro de forças de trans-
guntou sobre a possibilidade que formação da realidade e seu de-
o teatro tem de contribuir para a senvolvimento ao longo do tempo.
transformação do homem. Suas re- Para Diéguez (2018), contu-
flexões sobre a necessidade de avan- do, a chamada “arte ativista”, ou
ços no campo estético da chamada artivismo, vai além dos objetivos e
“arte engajada” dos anos 1960 des- marcos referenciais da “arte com-
tacam-se no panorama artístico da prometida” (com questões sociais),
época, fugindo à tradição dramática ou “arte militante”, basicamente
e ao chamado “teatro panfletário”, porque busca, de alguma maneira,
ao inspirar-se pioneiramente, no soluções possíveis no campo da re-
Brasil, nas formas do teatro épico alidade imediata. Pondo o real no
de B. Brecht. Para João (NEVES, centro da performance, configura-

9
Entrevista realizada por Skype, em jul. 2018.
10
Transcrição de parte do depoimento registrado em vídeo de João das Neves para a Ocupação João das Neves, realizada
pelo Itaú Cultural, São Paulo, em 2015.

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-se como ato político-artístico, dis- blicos, fora do âmbito do teatro e na


tinguindo-se da chamada “arte en- interface da performance e das ar-
gajada”, na terminologia dos anos tes visuais, porque, para a teórica,
de 1960 e 1970, não por ser “pan- o espaço do teatro pressupõe uma
fleto”, afirma ela, mas por não bus- estrutura mais fechada às ações ar-
car transcender à realidade imedia- tivistas, as quais, quando existem,
ta como projeto de transformação buscam sempre transformá-lo “em
apenas no plano das consciências. algo mais do que a arte teatral”, ou
seja, em algo mais do que uma peça
Tudo o que implica trabalhar com a ficção im-
plica [...] entrar em outras dimensões do real, de teatro para falar sobre algo. O
porque o poético é outra construção, outra artivismo no espaço teatral estaria,
realidade. [...] E os problemas do real imedia-
to são distintos dos problemas que se constro- para Diéguez, naqueles momentos
em no âmbito da arte. A arte sempre vai tratar em que “a realidade entra em cena
de transcender o plano do real imediato para
construir outros planos de realidade, que é o para ser transformada de algu-
plano poético, não? Mas o que faz o artivismo
é trabalhar com essas ferramentas, próprias ma maneira” (DIÉGUEZ, 2018).
do poético, [...] para produzir algo mais, que
tenha a ver com uma possibilidade de uma Creio que é aí que opera o artivismo, quando
colaboração imediata, com uma solução. (DI- aquilo que você faz produz uma ligeira trans-
ÉGUEZ, 2018). formação àquele que sofre diretamente. E não
com aquele que se solidariza com o que so-
fre. [...] Por outro lado, o que se conhece em
termos dos problemas da vida e da morte de
Neste sentido, é “arte útil”, um outro país é insuficiente sempre. Então,
como nomeia Bruguera (2011) ao fazer com que a arte sirva como um marco
para poder falar dessas coisas já confunde um
reivindicar uma arte para além dos pouco essas fronteiras claras que definem em
marcos artísticos vigentes. Uma que momento as obras deixam de ser somente
obras comprometidas para passar a uma ação
arte capaz de “substituir” mani- mais ativista. [...] Me pergunto se produzir
uma ação sobre o que não se quer ver, hoje em
festações públicas ao valer-se de dia, não seria considerada uma ação artivista,
dispositivos artísticos que abram dada as questões da arte. Comprometer-se em
dizer “utilizo-me de minha produção artística
uma possibilidade de fala coletiva e intelectual para falar de coisas de que nin-
e não, ao contrário, uma arte cal- guém quer saber e coloco meu corpo nisso” é
uma maneira, decididamente, de tomar uma
cada em uma fala poética proferi- postura artivista. (DIÉGUEZ, 2018).
da por um artista que, pensando
sobre os problemas da realidade, E essa necessidade de com-
traz o coletivo como elemento ar- prometer-se corporalmente não
tístico para dentro de suas obras. está restrita, ressalta, somente ao
Os vários exemplos dados caso do ator no espaço da cena,
por Ileana Diéguez em entrevista mas também diz respeito ao artis-
por Skype dizem respeito a mani- ta que empreende, por exemplo,
festações artísticas em espaços pú- uma viagem para pesquisa de cam-

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po para compreensão, por meio da -pensa os acontecimentos atuais” e


experiência, de determinado es- se fundamenta em um processo de
tado de coisas. Essas são também desconstrução de ações hegemôni-
situações em que o corpo está im- cas também no campo da arte, es-
plicado de uma maneira direta em tudando a realidade e participando
uma realidade ou grupo específicos. dela de modo crítico, o que torna,
por vezes, bastante tênue, ou mes-
Conclusão mo inexistente, a linha que divide
Arte engajada e arte ativista arte e ativismo. O trabalho de João
são como zonas. Difícil dizer quan- das Neves com diversos grupos e
do uma obra é artivista ou não. De movimentos sociais é exemplo cla-
qualquer maneira, alguns pontos, ro de um comprometimento ativo
tais como, o engajamento corporal, do artista nas mais diversas lu-
a experiência concreta do artista na tas e reivindicações, para as quais
realidade em que tece a sua arte, o buscava contribuir através da arte.
trabalho direto com as pessoas im- Em segundo lugar, porque,
plicadas em determinado estado como afirma Rolnik (2011, p. 133),
de coisas, a utilização de procedi- “o caráter político específico des-
mentos poéticos não para fins de te tipo de prática11 reside naquilo
ficcionalização, mas para a poten- que pode suscitar nas pessoas que
cialização de atos comunicacionais, são por ele afetadas”, sublinhando
são algumas das pistas apontadas que o dito caráter político não se
por Diéguez (2018, s/p.) na defesa reduz a uma leitura da dimensão
de uma “arte que seja mais do que macropolítica da realidade, como
a arte” em termos de, arrisco di- fazem certas práticas artísticas,
zer, utilidade no momento presen- as quais se convertem em “meros
te. Sob certos aspectos, há muitos panfletos” e seus artistas, em “de-
pontos de encontro, mas também signer gráficos e/ou publicitários
de divergência entre as concepções do ativismo” (ROLNIK, 2011, p.
de arte que João e Ileana defendem. 133). É no sensível, ou seja, no cor-
Encontram-se na medida em po “como principal bússola para
que uma montagem teatral pode o exercício da produção cogniti-
ser pensada, como afirma Noventa va” (ROLNIK, 2011, p. 132-133),
(2018, p. 12), como “um organis- pois, que a eterna cisão entre mi-
mo vivo, que incorpora-respira- cro e macropolítica, entre artista e
11
Referindo-se à prática artística (que reivindica um status de ação política).

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militante, ou entre artista e ativis- meça onde acaba o teatro”, afirma


ta, desaparece, na visão da autora. Diéguez (2018); onde não mais se
A questão do “panfleto”, que propõe a criação de obras, mas de
tanto incomodava João das Neves, novos meios e locais de fala. João das
não vem, penso eu, da realização Neves criou obras de teatro. Mas o
de atos públicos no espaço de ma- fez movido por vivências profundas
nifestações político-artísticas. Ima- da realidade de seu tempo. A arte
gino-o assistindo a “Siluetazo”12 engajada de João das Neves, neste
ou ao ato “Lavar la bandera”13, ou sentido, opõe-se ao artivismo ao
a tantas outras ações artivistas ci- inserir-se nos marcos referenciais
tadas por Ileana Diéguez em nossa da arte teatral em contraste com
entrevista, profundamente tocado esse tipo de ação mais pontual no
pela eficácia dos meios artísticos tempo, própria do ato performáti-
forjados no seio de uma ação polí- co e da manifestação pública. Não
tica incisiva na realidade imediata. obstante, suas obras afirmam o ca-
Imagino-o trabalhando a partir da ráter político que lhes é intrínseco
experiência de visionamento dessas a partir da aceitação e da elabora-
ações para o processamento de dis- ção das muitas forças do presente
positivos potentes de criação. Não no próprio corpo do artista, esti-
o vejo mal apreciador dessas tantas mulando sua potência de invenção.
tentativas de dar um sentido maior Entendo a insatisfação de
à arte. Ao contrário, vejo muito João não para com atos artivistas
mais reticências e resistências, in- em si, mas com interdições que re-
terdições ou aderência apaixonada duzem a força de uma pergunta,
nos que proclamam que, se a arte tal como “o que pode a arte?”, ao
não visar a uma ação concreta na considerar apenas o momento pre-
realidade imediata, não tem sentido sente, questionando somente “para
hoje. Ao contrário, acho que tem. que ela serve”; perspectiva própria
Nessas horas, me vem à lembrança do panfleto, ou seja, de uma ne-
uma frase de João – logo ele, artista cessidade reivindicatória imediata,
militante: “a arte deve transcender”. imprescindível pontualmente, mas
O artivismo no teatro “co- não sua finalidade última, pelo me-
12
Obra de Rodolfo Aguerreberry, Guillermo Kexel e Julio Flores, em plena ditadura argentina (1983), dado por Ileana
Diéguez como um contundente exemplo de práticas artivistas.
13
Performance de arte pública, realizada por artistas do Colectivo Sociedad Civil, em 2000, às sextas-feiras, na Plaza Mayor
da capital do Peru. Tal ação foi de tal modo impactante que passou a ser incorporada e reproduzida pela população de
Lima, contribuindo para a derrocada do regime ditatorial de Alberto Fujimori. A ação consistia em lavar a bandeira do
país, uma clara metáfora da necessidade de se fazer uma faxina política no Estado peruano.

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nos, na visão do artista. Afinal, se


nos perguntarmos “o que pode a
arte?”, nos daremos conta de que
ela pode, inclusive, atuar no espaço
imediato dos problemas da realida-
de, mas também operar paciente-
mente uma mudança profunda de
consciências, agindo aqui e agora
e, também, no tempo, sem interdi-
ções ou fechamentos, em liberdade
e no respeito aos que emprestam
seu corpo e sua sensibilidade para
tratar de assuntos nos quais muitas
vezes não se deseja sequer tocar.
Hoje, não coincidentemente,
se faz mais uma vez atual o poema
de Carlos Drummond de Andrade,
Lira Itabirana, de 1984, citado por
João das Neves, em face da mais re-
cente tragédia de rompimento de
barragens em Minas Gerais – desta
vez, em Brumadinho. Estarrecida e
atravessada pelas imagens da lama
engolindo a vida local e pela trans-
visão do poeta, a qual foi, à época da
tragédia, amplamente expostas nas
mídias sociais como manifesto cole-
tivo de repulsa à sanha extrativista
da Vale S.A., fico com a pergunta “o
que pode a arte?”, certa de que nela
está a resposta àquela outra questão.

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www.itaucultural.org.br/ocupacao/joao-das-neves/engajado/>. Acesso em: 24
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______. Apêndice G – Entrevista com João das Neves. Entrevistado por Luciana
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matéria: a imaginação colaborativa no processo de criação dos espetáculos Banho
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______. Relação com Núcleos Comunitários e Escolas. [s.d.]. Disponível em:


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DE SOUZA, Luciana Mitkiewicz. Habitar a imagem e provocar a matéria: a ima-


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necas Quebradas. 2018. 440f. Tese (Doutorado em Artes). Instituto de Artes,
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DÍEGUEZ, Ileana. Entrevista concedida à Luciana Mitkiewicz. Via Skype (Cua-


jimalpa, México – Campinas, Brasil), 28 de jul. 2018.

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NOVENTA, Diogo. Sobre o trabalho da Estudo de Cena. Entrevistado por Co-


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ZANOTTO, Ilka. A crítica de teatro Ilka Zanotto tece um mapa da trajetória de


João das Neves no tempo e no espaço do teatro nacional. In: ITAÚ CULTURAL
(Org.). Ocupação João das Neves. São Paulo: Itaú Cultural, 2015a, p. 11-21.

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Abstract

From texts, videos and two interviews - with João das Neves and Ileana Diéguez - this
article presents a series of highlights of the artist’s works, in which I participated as an
actor, idealizer, producer and/or co-author, as well as a reflection on points of resonance
and dissonance between the so-called engaged art, as he understood and practiced, and
what we now call artivism.

Keywords

João das Neves. Engaged art. Artivism.

Resumen

A partir de textos, videos y dos entrevistas – una con João das Neves y otra con Ileana Di-
éguez – este trabajo hace un recorrido de características notables en las obras del artista,
de las cuales he participado como actriz, idealizadora, productora y/o coautora, y una re-
flexión sobre los puntos de resonancia y disonancia entre el llamado arte comprometido,
tal como él lo entendía y practicaba, y lo que hoy llamamos artivismo.

Palabras clave

João das Neves. Arte comprometido. Artivismo.

Pitágoras 500, Campinas, SP, v. 9, n.2, [17], p. 135 - 152, jul. - dez. 2019 152
João das Neves e a ética da
alegria

Resumo >
Suzi Frankl Sperber

Retomando a importância do dramaturgo, dire-


tor e ator João das Neves no Grupo Opinião e sua pro-
posta estética. Observando O último carro e aspectos
brechtianos na obra, assim como a tensão, curvas e
saltos na sua encenação.

Palavras-chave:
João das Neves. Grupo Opinião. “O último car-
ro”. Brecht. Gestus. Trickster.
João das Neves e a ética da alegria

Suzi Frankl Sperber1

Meu trabalho teatral é impuro, impregnado da fumaça, da su-


1
Professora titular e pro- jeira, da lama das ruas, da poeira dos sertões ou dos esqueletos
fessora colaboradora da calcinados das árvores das nossas florestas. Por outro lado, sou
Universidade Estadual de avesso à instrumentalização da arte. Tudo isso para reafirmar
Campinas, trabalha com que me recuso a fazer do teatro uma documentação mera e
duas linhas de pesquisa no simples da realidade, mas ao mesmo tempo não quero ver meu
momento: oralidade e a fun- teatro alienado dessa mesma realidade. (NEVES apud MES-
ção de dramaturgista. Email: QUITA, 1999, p. 23)
sperbersuzi@hotmail.com.

João das Neves, dramaturgo, diretor, en-


cenador, ator, participou como diretor de tea-
tro de rua do Centro Popular de Cultura (CPC,
1962-1964). O CPC foi um projeto ligado à
UNE (União Nacional dos Estudantes) que uti-
lizou o teatro e outras manifestações artísticas
como instrumento de conscientização política.
doi: 10.20396/pita.v9i2.8656035

A ideia era levar informação para linearidade e uniformidade do dra-


uma maioria em princípio analfa- ma, fundamentadas em determina-
beta, desinformada e excluída, so- da compreensão da Poética, de Aris-
bre a situação política, econômica e tóteles, elaborada inicialmente por
social do país, no início da década Lodovico Castelvetro (La poetica
de 60 do século passado, com o in- di Aristotele vulgarizzata, 1570),
tuito de articular reformas de base na Itália, e mais tarde seguida por
e um processo de transformações alguns dramaturgos na França e
brasileiras. O objetivo principal era Inglaterra. A catarse perde seu es-
contribuir para a redução da desi- paço na concepção teatral épica.
gualdade social existente no Brasil. Não cabe envolver o espectador em
Num primeiro momento, o teatro uma manta emocional de identidade
de rua do CPC utilizou, como for- com a personagem principal e fazê-
ma de manifestação teatral, o que se -lo sentir o drama como algo real,
conheceu como agitprop (um acrô- mas sim despertá-lo como um ser
nimo derivado das palavras Agita- social. Segundo Brecht, a catarse
ção e Propaganda). Para o Golpe torna o homem passivo em relação
Militar de 1964, o CPC represen- ao mundo e o ideal é transformá-
tava uma agressão à ordem públi- -lo em alguém capaz de enxergar
ca (que pretendia a manutenção e que os valores que regem o mun-
mesmo o aumento da desigualdade do podem e devem ser modificados.
social, favorecendo a classe média Como a ação do CPC foi repri-
alta, empresários, banqueiros), por mida, João e outros artistas do anti-
isto o CPC foi extinto com vio- go CPC fundaram o grupo Opinião,
lência pelos órgãos de repressão. que se serviu da forma do show,
João das Neves considerou apresentando, todas as segundas-
que o agitprop simplificava os pro- -feiras à noite, cantores e compo-
blemas sociais – e passou a apro- sitores da resistência brasileira.
fundar as questões tratadas em O Grupo Opinião se estru-
suas encenações, tratadas com mais turou como veículo de resistência
complexidade. Para tal aproveitou no teatro, nas artes plásticas e na
o conceito de teatro épico, de Bre- música popular. A palavra, no tea-
cht. O teatro épico consiste em uma tro, tornou-se fundamental. A his-
forma de composição teatral que tória do Grupo Opinião está regis-
polemiza com as unidades de ação, trada, por exemplo, em verbete da
espaço e tempo e com as teorias de Enciclopédia Itaú Cultural. Como

Pitágoras 500, Campinas, SP, v. 9, n.2, [17], p. 153 - 169, jul. - dez. 2019 155
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reuniu um grupo bastante grande O CPC formulara algumas


de artistas, entre diretores, atores, perguntas cujas respostas orienta-
músicos, cantores, poetas, artistas riam a produção artística dos seus
plásticos, o nome de João das Ne- participantes: como o artista pode
ves foi como que esquecido durante expressar seu engajamento? Atra-
bastante tempo. Quando o Grupo vés de que conteúdos e meios? Que
Opinião perdeu seu espaço, teria tipo de identidade deveria assumir
sido esperável que houvesse uma o artista num contexto subdesen-
mobilização para preservar – ou volvido? As respostas de João das
criar – um espaço que garantisse a Neves foram – e o foram até o fim
continuidade de uma produção tão de sua vida – marcadas por uma
importante. Não foi o que aconte- postura ética. A expressão desta
ceu. João das Neves não arrefeceu postura ética deveria ser sempre
no seu entusiasmo pelo teatro, pela procurada, visto não se tratar ape-
criação, mudou-se para o Acre no nas de uma lição aprendida a ser
começo da década de 80, criou, veiculada, mas de uma luta legíti-
ali, um grupo de teatro e prosse- ma de cidadão que respeita e valo-
guiu criando. Sempre ligado a seu riza seu próximo, que luta contra
tempo social, político e econômi- a desigualdade social, o arbítrio e
co, Neves não estava interessado todo tipo de injustiça e de violên-
em fazer “documentação mera e cia – e contra a mentira! Em outras
simples da realidade”, e ao mesmo palavras, a ideia não era instruir
tempo não queria ver seu “teatro o espectador, conduzi-lo pela mão
alienado dessa mesma realidade. para uma compreensão determina-
” Daí que, mais do que defender da (nem pretendia divulgar teorias
reflexões teóricas de intelectuais marxista-leninistas), mas pintar
de esquerda, João das Neves bus- ações, seus conflitos e contradições,
cava expressar suas inquietações. cuja dialética por si poderia levar a
Diante da conjuntura de cer- uma percepção nova, que pudesse
ceamento da expressão, tanto João conduzir a uma consciência trans-
das Neves, como outros artistas en- formada. Hoje em dia não é preciso
gajados recorreram às estratégias ter conhecimento das teorias mar-
metafóricas e alusivas para não se- xista-leninistas para saber da mais-
rem presos e ao mesmo tempo para -valia, da exploração da mão de obra,
poderem passar os seus recados para das injustiças sociais e econômicas,
os receptores das diferentes artes. de gênero, de etnia. O espectador

Pitágoras 500, Campinas, SP, v. 9, n.2, [17], p. 153 - 169, jul. - dez. 2019 156
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receberia impressões, informações, a rua como palco, quebram, obvia-


imagens, eventuais emoções que mente, com a 4ª parede, como era
poderiam levá-lo a se empenhar, o desiderato brechtiano. Das Neves
no processo de recepção, porque conhecia a proposta do teatro épico
aquilo que ele teria à sua frente o de Bertolt Brecht, e um tipo de re-
obrigaria a um trabalho de síntese. presentação conhecida como Ges-
Precisariam ser escolhidos tus. O Gestus correspondia a um
temas relevantes para o delinea- conjunto de gestos que revelavam
mento da história com H maiúscu- a situação histórica das atitudes
lo. Os temas abordados brotariam humanas, focando o aspecto social
desta preocupação. Daí que ao lon- para comentar e criticar o status
go de sua existência, das Neves op- quo. É o que nos esclarece Brecht:
tou por focalizar os lumpen, os ope-
A dicção e o ‘gesto’ precisam ser cuidadosa-
rários, as mulheres, os oprimidos mente selecionados, e, além disso, devem ter
em geral. Ainda que depois de ter amplitude. Visto que o interesse do especta-
dor é canalizado exclusivamente para o com-
produzido Mural Mulher (1979) e portamento das personagens, o Gestus destas
Café da manhã (1980) João quase deve ser, falando em termos puramente esté-
ticos, significativo e típico. (BRECHT, 1978,
que se tivesse arrependido destas p. 39)
obras, considerando-as burguesas,
é relevante observar que a mulher Brecht (apud SILVA, 2013, p.
burguesa apresentada é oprimida, 14) “delimita como Gestus social,
prisioneira das concepções do esta- o gesto que, construído na lingua-
blishment sobre o papel da mulher gem cênica, permite conclusões
na família e sociedade. Neste sen- sobre as circunstâncias político so-
tido, a mulher, mesmo a burguesa, ciais”. Daí que Deolindo, em O úl-
é apresentada como oprimida e se timo carro, assume alguns Gestus.
encaixa na preocupação de apre- Ele pensa-propõe greve para forçar
sentar situações de injustiça social. as autoridades a fornecer melhores
Do ponto de vista da estrutu- condições de transporte coletivo, a
ra e forma, desde o começo João das partir da consciência do abuso da
Neves fez “um teatro que se inspi- estruturação da cidade, que reser-
rou na estrutura descontínua dos va para os operários – pobres – os
folguedos populares”, tais como o locais de moradia mais afastados e
bumba-meu-boi, o reisado, o ma- os meios de transporte piores. De-
mulengo, os palhaços e a commedia pois busca salvação para o maior
dell’arte. Tais folguedos, que têm número possível dos passageiros

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do trem desgovernado; procuran- reunidas em um espetáculo. Todos


do preservar a vida destes, pen- são capazes de apreender a injusti-
sando num coletivo e não em si. ça, o absurdo nas relações econô-
A hipótese e o desiderato bre- micas e sociais iníquas, tendo um
chtiano básicos foram apresentar potencial para participar de ações
a injustiça social para combatê-la transformadoras – de cada um, e
– apresentar a injustiça em geral dos grupos pequenos e grandes.
para que cada espectador a per- Segundo Iná Camargo Costa
cebesse com clareza para, por seu (2005), o teatro épico brechtiano,
lado, combatê-la também. (A ques- entendido a partir da “tradição in-
tão da injustiça norteou o pensa- telectual alemã” corresponde à di-
mento marxista, mas também o da mensão da vida cotidiana, pública,
Igreja Católica. Quando veio o Papa à esfera política, dos negócios, das
João Paulo II, seu bordão foi “justi- guerras (que, no Brasil, poderiam
ça social”!) Para isto, Brecht elegia corresponder às lutas empreendi-
um problema, um conflito, uma so- das pelas classes trabalhadoras, a
lução. Assim é em O círculo de giz saber a ascensão do proletariado
de Augsburg (conto) e O círculo de à cena histórica.). Segundo o que
giz caucasiano (peça teatral). João vemos, por exemplo em O último
das Neves, em suas peças e encena- carro, as cenas isoladas, articuladas
ções, elege problemas e conflitos, apenas espacialmente (as ações di-
mas não apresenta soluções. Seu zem respeito às reações diante de
teatro não é de doutrinação, repi- um trem sem maquinista, um trem
to, nem obrigatoriamente de cons- desembestado), correspondem à di-
cientização. É um teatro de inda- mensão da vida cotidiana daquele
gações, confrontos, perplexidades, momento histórico. A peça repre-
desassossegos. Para tanto ele parte sentava o Brasil enquanto trem
de alguns pressupostos: todos os desgovernado, à busca de um vagão
seres humanos têm um potencial que pudesse abrigar – para salvar -
importante a ser primeiro desco- um conjunto de pessoas de uma co-
berto, no sentido literal, e depois munidade de trabalhadores. Se, na
estimulado a fim de ser desenvolvi- peça, os ladrões morrem, também
do. Todos os seres humanos, graças uma criança morre, e Deolindo.
ao seu potencial intelectual – cog- João pareceria ter aprendi-
nitivo – são capazes de apreender do as lições de Brecht e teria par-
um teatro feito de cenas esparsas, tido deste aprendizado para se di-

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rigir para a coletividade. O que Brecht e o teatro popular brasilei-


vale é o coletivo. Brecht questio- ro. Brecht ainda encena em palco
na a noção de heroísmo, como italiano. Das Neves opta pela pre-
aprendemos com o poema Per- sença do espectador no espetácu-
guntas de um trabalhador que lê: lo, o que, num primeiro momento,
quando da encenação de O último
[...]
César bateu os gauleses. carro, foi revolucionária, e pas-
Não levava sequer um cozinheiro? sou a comparecer em boa parte
Filipe da Espanha chorou, das encenações de João das Neves.
quando sua Armada naufragou. A ação cênica, não uniforme,
Ninguém mais chorou?
em princípio desperta a atividade
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele? do espectador, obrigando-o a to-
Cada página uma vitória. mar decisões. A cena proporciona
Quem cozinhava o banquete? (BRECHT,
1935, [s/p.]) conhecimentos, trabalha com ar-
gumentos diferentes, contrapostos.
Também não há heróis nas N’O último carro há conjuntos de
peças de João das Neves. E, de reações diferentes diante da pers-
novo, não há lições de moral, nem pectiva de que todos morrerão, por-
soluções, propriamente. Resta, que haverá um inevitável acidente.
para o espectador, reunir os para- Por um lado, há um beato que pro-
doxos, os desafios e tirar suas con- põe que todos rezem e entreguem
clusões. A arte dramática mostra suas almas a Deus. Por outro lado,
o povo em sua ambiguidade, nos há facínoras que caçoam dos traba-
seus conflitos: ambiguidade e con- lhadores e de suas consciências de
flitos fazem parte de sua miséria. devotados trabalhadores incapazes
A política aí se representa como a relação en-
de se ver como aprisionados pelas
tre a cena e a sala, significação do corpo do circunstâncias do mundo do traba-
ator, jogos de proximidade ou da distância.
(RANCIÈRE, 2010, p. 24) lho, de suas moradias distantes dos
locais de trabalho e da automática
O importante é ser deste nível, do recorte do
sensível, do comum da comunidade, das for- perda de muito tempo no percurso
mas de sua visibilidade e de sua disposição de casa ao local de trabalho. Para
que se coloca a questão da relação estética/
política. (RANCIÈRE, 2010, p. 24) estes, a solução é roubar. E como
“nada têm a perder”, se jogam do
Noves fora, a proposta de te- trem em movimento, em verdade
atro de João das Neves correspon- em altíssima velocidade – esperan-
de a um híbrido entre as ideias de do contar com a sorte de sobrevi-

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ver. Há quem tenha apenas medo, e quinista. Mas as 14 Estações tam-


se encolhe diante da ideia da morte bém se referem à Via Crucis, às 14
inevitável e próxima. Há quem de- estações pelas quais passa Cristo na
cida que é preciso agir. A primeira sua ida para a crucificação, até seu
ação a ser empreendida é acionar o sepultamento. O paralelismo pode-
breque de emergência – que não fun- rá ser feito entre Jesus e o povo sub-
ciona. Então resta uma única solu- metido ao jugo dos poderosos. Não
ção: separar o último carro da com- entre Jesus e um herói, ou santo.
posição, salvando-se, assim, aqueles O sepultamento correspon-
que estiverem neste último vagão. de, na peça, a um coro que canta
Para isto é necessária a ajuda de um incelenças, também chamadas de
grupo de apoio, capaz de martelar Cantigas de Guarda, ou Cantigas
com muita força para conseguir o de Sentinela ou Benditos de defun-
desligamento entre as duas partes. tos, forma de expressão musical
Não há heróis na peça. Deo- típica de localidades do Ceará, do
lindo, o operário que tem a ideia sal- Sertão Nordestino, de cidades do
vadora, ajuda um jovem a carregar Vale do Paraíba e, ainda em escala
a namorada-noiva que esperneia maior, em outras regiões do Brasil.
porque se havia deixado convencer É um canto de louvor ao defunto
pelo beato e – num certo momento, – que é arrimo de família – e arri-
ela acha preferível morrer a viver mo da riqueza do Brasil e da rique-
– punindo-se pelo pecado do sexo za dos ricos e poderosos do Brasil.
fora de casamento. Na confusão que Mas nem aí o defunto é individu-
se arma, Deolindo acaba sendo en- alizado, nesta medida heroicizado.
volvido em um conflito e não con-
Trata-se de um coletivo:
segue ir para o último carro. Uma Trabalhador como poucos
criança – inocente – que poderia ser Como poucos
Deolindo, moço Deolindo era o seu nome,
salva para servir de elemento lacri- HILARIO, JOSÉ DE SOUZA, ISALTINO,
mogêneo da salvação, é atirada para PEDRO, MOÇO.
Ele tinha defeitos, moço. O senhor não tem?
fora do vagão e morre. Os ladrões Ele era tão diverso do senhor, moço, e, no en-
tanto, igual.
morrem ao se jogar do comboio. Ele ia para o trabalho de trem. E o senhor,
A peça chamou-se O último moço, me permita,
carro – ou as 14 Estações. As esta-
ções são aquelas por onde passa o
trem, sem parar, visto que está de-
sembestado, sem freios e sem ma-

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como viaja? andamento das consciências. Mas


De ônibus, carro, avião? Seu trem tem rumo?
Aonde o conduz? cada cena existe por si mesma e o
À estação mais próxima? O senhor, moço, me desenvolvimento se dá aos saltos
perdoe.
Qual é a estação mais próxima? - facit saltus2 . Afinal, é o ser so-
A mesma de ontem? A mesma de ontem?
A MESMA de ontem? cial que determina o pensamento.
A MESMA DE ONTEM? (NEVES, 1964, Sempre há aspectos do tea-
[s/p.])
tro épico na obra de João das Ne-
Como no teatro épico, o ho- ves. Mas é diferente de Brecht: não
mem, nas peças de João das Neves, é mostrado um ser (personagem),
mesmo nas encenações mais recen- capaz de ação nobre, como a em-
tes, é objeto de investigação. Ele se pregada de O círculo de giz de Au-
transforma. É o caso da jovem grá- gsburg, que salva a criança porque
vida de O último carro, que oscila este é seu instinto e tais são seus
entre a alegria com relação à vida ímpetos. Ou como a mãe, de Mãe
contida em seu corpo, depois se coragem, que afinal aprende a lição
culpa e prefere morrer, em seguida e se posiciona contra os poderosos.
descobre a alegria do amor, a alegria Nas peças brechtianas, cada valor
da vida e prefere buscar a salvação. representa um conjunto de força,
Sua transformação, assim como as competência, lucidez. Em João das
sensações transmitidas na peça, a Neves, tomando como exemplo O
força de cada cena, podem levar a último carro, é mostrado o abuso
uma tomada de consciência por par- para com os operários e frequenta-
te dos espectadores. Há um todo, ao dores do trem da Central do Bra-
final, que contrapõe vida e morte, sil. O que se vê é injusto, mas não
trabalhando a tensão em relação ao é fácil perceber o abuso, a injusti-

2
Vale a pena apresentar a maneira como Brecht define, em tópicos, “Dialética e estranhamento”, título da enunciação que
segue:
“1 Estranhamento como compreensão (compreender - não compreender - compreender), negação da negação.
2 Amontoamento das incompreensões, até que a compreensão apareça (transposição da quantidade em qualidade).
3 O particular no geral ([apresentar] o processo em sua especificidade, unicidade, daí: tipicidade).
4 Momento do desenvolvimento (a passagem de certos sentimentos em outros sentimentos de natureza contrária; crítica
e sensibilidade [Einfühlung] reunidos).
5 Contradição ([o oposto de] para este homem: em tais circunstâncias, tais serão as consequências da ação!)
6 Um compreendido a partir do outro (a cena, semanticamente independente, é redescoberta em um sentido parcialmente
diferente na sua justaposição e relação com outras cenas).
7 O salto (saltus naturae) corresponde a um desenvolvimento épico por saltos.
8 Unicidade dos contrários (o oposto é buscado no único, mãe e filho - em mãe - exteriormente semelhantes, lutam um
contra o outro por causa do salário).
9 Praticabilidade do conhecimento (unidade de teoria e prática).”
(In: BRECHT, Bertolt. Gesammelte Werke 15. Schriften zum Theater1. Neue Technik der Schauspielkunst etwa 1935-1941.
Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1967, p. 360-1. Trad. do trecho citado por Suzi Frankl Sperber.)

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ça, porque a história brasileira é de que apresentar só a realidade do-


dominação extrema, escravização cumentada. No documento existe
(em alguns casos, ainda hoje, no uma estrutura e personagens cujos
séc. XXI, em 2019), desqualificação conflitos partem do documento,
dos oprimidos para melhor coloni- desnudando suas contradições.
zá-los. O teatro de João das Neves Não importa que a cena seja
apresenta a dificuldade de formu- picotada de cenas aparentemente
lar conceitos justos em meio à pe- esparsas. Não importa que a su-
netração de ideias preconceituosas cessão, nas peças, seja descontínua,
advindas da religião, do machismo, visto que o todo, mesmo constan-
dos poderes injustos e autoritários, do de partes independentes, pode
limitadores da ação humana em so- e deve comparar-se de imediato
ciedade. A fim de encontrar uma so- com os fatos correspondentes à
lução, usa como recurso o que se vê realidade. Não importa que as pe-
na literatura de cordel, na cultura ças de João das Neves tendam a
popular e mesmo no que lemos na ser inorgânicas. Diz, Bürger, que o
obra de Ariano Suassuna: as peças
[...] surgimento de um tipo não orgânico de
e as encenações se abrem para as obra de arte” mostrou, respectivamente, que:
múltiplas vozes que formam a cul- 1 - “o efeito social de uma obra não pode ser
simplesmente medido nela própria; que o
tura brasileira. O artista se embebe efeito é decisivamente co-determinado pela
de uma pluralidade de identidades instituição dentro da qual a obra ‘funciona’”.
2 – “Onde a obra não é mais concebida como
para contar as tradições, as lutas e totalidade orgânica, o motivo político indivi-
dual deixa igualmente de estar subordinado
as alegrias de tantos brasileiros, se- ao domínio do todo da obra, podendo, assim,
jam do asfalto, sejam da floresta ou atuar como motivo isolado.” (BÜRGER, 2008,
p. 177-178)
do sertão. Em fases mais próximas,
João fez o que ele chamou de teatro
O valor principal é a vida.
documentário, valendo-se de pes-
Este valor é parceiro da ale-
quisas para, a partir delas, montar
gria e de certo humor. Repercu-
espetáculos. (cf. João das Neves em
te os valores dos folguedos po-
MESQUITA, 1999, p. 22) É certo
pulares, frequentados por figuras
que o próprio dramaturgo disse – e
que ecoam as ações do trickster.
registramos acima – que se recusa-
O andamento das peças ca-
va “a fazer do teatro uma documen-
minha em busca de dignidade, uma
tação mera e simples da realidade”.
dignidade alcançada pela beleza.
Contradição? Não, visto que o te-
Porque tal dignidade, para ser con-
atro documentário quer mais do
seguida, depende fortemente de os

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espectadores se embeberem na be- de si, mas como outro a ser res-


leza das cenas, das falas, da música, peitado, os espetáculos de João das
do espaço estranhado destas revo- Neves levam a reconhecer o outro
lucionárias espacialidades cênicas, como diferente, mas companheiro,
que levaram João a ser um mestre a valorizar o outro. Isto aconteceu
na dramaturgia da cena em espaços nos temas escolhidos para encena-
não teatrais – não convencionais. É ções. Na maneira como foram sen-
uma dramaturgia do espaço. Nes- do encaminhadas as encenações. Na
tes espaços, renovados e diferentes estrutura das peças. Consequen-
a cada espetáculo, o espectador se temente, os espetáculos sugerem
vê levado a não ver apenas a cena, o irmanamento aos espectadores.
isto é a peça teatral, visto que não O encantamento decorrente leva a
se trata nem de palco italiano, nem algo especial: produz a alegria de
de arena. Importam as palavras, um congraçamento no e com o cole-
sim, mas inseridas em um contex- tivo. É esta experiência da coletivi-
to que acaba sendo mágico. A cena dade o segredo do resultado do tea-
foi descentrada e o espectador foi tro lúcido de João das Neves. Como
quer centrado, quer espalhado em no teatro de rua, a força do coletivo
andanças que o levam a confrontar- apodera cada um e todos os envol-
-se com seus vizinhos de trajetórias vidos. Esta força, esta unidade re-
nos espaços cênicos. A beleza que conquistada leva pelo menos à ale-
envolve as cenas, as personagens e gria, que é a prova dos nove de uma
os espectadores, conseguidos pe- forma de comunhão e da utopia.
los jogos de música, som, o meio João, que se qualifica como
circundante, a poesia das palavras, “marginal brasileiro” propõe:
tende a levá-los a se verem, a des- FESTEJAR A VIDA
cobrirem que seu vizinho sorri ou O AMOR, A LUTA, AS DORES
CANTAR, DANÇAR. SER. (MARGINAL…,
se aflige como ele. Sem ter enun- [s.d.], [s/p.])
ciado o conceito de perspectivismo
formulado por Viveiros de Castro, É esta dignidade o fermento
ou, sem ter feito referência à frase para uma nova consciência, para
de Arthur Rimbaud “Je est un au- transformações, para a luta contra
tre”, que muito serviu para os es- iniquidades sociais, políticas e econô-
tudos indigenistas, a estratégia de micas. E também, para que não haja
ver-se no outro, de reconhecer o dúvidas, é a expressão de uma ética.
outro não como reflexo especular Eis minha homenagem a João

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das Neves, que não pode e não deve João das Neves reconhece que
parar aí, porque, se estivesse vivo, seres humanos e mundo não são
ele estaria afetado pelas circunstân- imutáveis. Ou não estão condena-
cias políticas – que sempre compro- dos à imutabilidade. Não é novo,
metem ou atuam sobre economia, mas é algo fundamental em tempo
cultura, educação - e a população - e de mentiras. Porque as mentiras
ele ocuparia o seu lugar de intelec- congelam, imobilizam tudo – de
tual e artista instigante e instigador. mentira e com mentira. As perso-
O momento exige que se re- nagens de Das Neves se transfor-
flita mais sobre quais foram as es- mam. Ou tem condições de trans-
tratégias de estruturação de suas formação. Daí a estrutura quer
peças que indiciam tomadas de dramatúrgica, quer da encenação
consciência e a apresentação de necessitarem de tensão, de cur-
caminhos possíveis em tempos de vas e saltos. E daí reconhecer que
mentiras e violências contra os ci- transformações são possíveis a par-
dadãos, como o foi o golpe de 1964 tir do reconhecimento de pontos
(ocorrido em 01 de abril, mas que de partida, de reconhecimento das
foi mentido que tivesse ocorrido circunstâncias reais e, pois, sem-
em 31 de março – por motivos ób- pre com a afirmação da memória.
vios), como foram os tempos de di- Sem a memória, o povo e o público
tadura. Só me interessam o teatro e perdem o referencial de quem são,
as respostas de João das Neves para apaga-se a ideia do outro, é gerado
as circunstâncias em suas peças. o vazio do presente e o apagamento
Pego um esquema contrapon- do futuro. Passando pela negação
tístico entre a forma dramática clás- do passado. Joan-Carles Mèlich, em
sica e a forma épica de teatro (tabela 1): “Memoria y esperanza”, escreveu:
Tabela 1
Forma dramática de teatro Forma épica de teatro
O homem é imutável. O homem se transforma e transforma.
Tensão construída em relação ao desenlace da
Tensão em relação ao andamento.
peça.
Uma cena existe em função da seguinte. Cada cena existe por si mesma.
Os acontecimentos decorrem linearmente. Decorrem em curvas.
Natureza não dá saltos - Natura non facit saltus. Natureza dá saltos - Facit saltus.
O mundo tal como é. O mundo tal como se transforma.
O homem como deve ser. O que é imperativo que ele faça.
Seus impulsos. Seus motivos.
O pensamento determina o ser. O ser social determina o pensamento.
(VERBETE “Teatro…, 2019, [s/p.])

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Uma cultura amnésica é uma cultura que instaurando um judiciário como


conduz inevitavelmente a uma profunda crise
de identidade e de alteridade, porque na am- sistema de governo, praticamen-
nésia não somente nos esquecemos de quem te obliterando o congresso, mani-
somos, mas também dos outros. Sem o outro
não há passado, nem presente, nem futuro. pulando as leis, discriminando a
Sem o outro não há tempo. Por isso o outro é
o tempo que nos remete a um passado de que torto e a direito, com uma injus-
não se pode esquecer e a um futuro que, toda- tiça institucionalizada, encoberta
via, não existe, mas que algum dia ‘nascerá’.3
(MÈLICH, 1999, p. 11) por um véu de pseudo legalidade.

No presente momento, no O que é verdadeiramente o colonizado im-


porta pouco ao colonizador. Longe de querer
presente ano de 2018, convivemos apreender o colonizado na sua realidade, pre-
com algo que não é novo, mas foi ocupa-se em submetê-lo a essa indispensável
transformação. (MEMMI, 1977, p. 77)
altamente incrementado: a menti-
ra, a falsificação de dados, o enga- Que corresponde à de-
no. A mentira é estratégia de do- sumanização e ao seu subse-
minação. É ancestral. Fomos, aqui quente apagamento identitário.
no Brasil, maciçamente inundados Tais noções expostas por
de fake news4, ou robots, ou bots no Memmi não são ideológicas. São
ano de 2018. O tipo de dominação éticas. Como fundamentalmente
acionado tanto no passado, como éticas foram sempre as posições de
no presente é explicitado por Al- João das Neves. Verdade e menti-
bert Memmi (1977, p. 77): “assim ra, justiça e injustiça vem sendo
como a burguesia propõe uma ima- apresentadas como questões ide-
gem do proletário, a existência do ológicas. Só o são quando mani-
colonizador reclama e impõe uma puladas, tergiversadas, como vem
imagem do colonizado”. A situa- sucedendo no presente. Ou antes,
ção é a de colonizar a todos, salvo são desqualificadas posições e rei-
os que estão sendo alçados a um vindicações éticas dizendo que são
poder absoluto, na medida em que ideológicas. Mas as violências, as
tal poder manipula o judiciário, mentiras, as desqualificações arbi-

3
“Una cultura amnésica es una cultura que conduce inevitablemente a una profunda crisis de identidad y de alteridad,
porque en la amnesia no solamente nos olvidamos de quiénes somos, sino también de los otros. Sin el otro no hay ni pasa-
do, ni presente, ni futuro. Sin el otro no hay tiempo. Por eso el otro es el tiempo que nos remite a un pasado que no puede
olvidarse y a un futuro que todavia no existe, pero que algún dia “nacerá”.”
4
“Notícias falsas (fake news) são uma forma de imprensa marrom que consiste na distribuição deliberada de desinforma-
ção ou boatos via jornal impresso, televisão, rádio, ou ainda online, como nas mídias sociais. Este tipo de notícia é escrito
e publicado com a intenção de enganar, a fim de se obter ganhos financeiros ou políticos, muitas vezes com manchetes
sensacionalistas, exageradas ou evidentemente falsas para chamar a atenção. ” Aliás, manchetes ou “fotos”, manipuladas
conforme os interesses e que, como “fotos”, se apresentam como registro da realidade – falsa, mentirosa, tergiversada.”
(VERBETE “Notícias…, 2019, [s/p.])

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trárias se vestem de indulgência e se de gente que buscava e busca o


de ‘branco’, como se fossem cân- enriquecimento ilícito – e aqueles
didas e legítimas. A ilegitimidade que também o queriam, abusando
grita ser legítima! João das Neves da boa fé das pessoas, como já está
encontraria uma forma de ação, um na figura do beato de O último car-
discurso, congregaria opiniões para ro, que prenuncia os evangélicos de
denunciar a impostura. Como o fez hoje. Os tricksters criados por João
em suas peças e encenações. A de- das Neves encontram na esperteza,
núncia de mentiras, manipulações, mobilidade, vivacidade pelo menos
abusos que redundam na domina- uma forma de denunciar as invejas
ção mais cabal, a serviço de inte- e raivas da classe média ao ver po-
resses pessoais – porque são pes- bre – ou ‘desqualificados’, como é
soais, envolvendo o mais alto nível vista a população de norte, nordes-
de corrupção, fingindo que o empo- te e extremo oeste do país, ou os
brecimento da população teria sido operários que se revoltam e lutam,
causado apenas pela corrupção a ou tantos mais – hoje entrando na
varejo de um grupo, o que é uma universidade, que foi o bunker da
mentira, ocultando a corrupção classe média, que garantiria salá-
por atacado e em altíssimos níveis rios melhores, mas também reco-
dos que tergiversam, mentem, abu- nhecimento e prestígio, pelo menos
sam – é a contraparte necessária, no passado. Tais tricksters, tais
indispensável para a recuperação como os concebe a autora deste
da dignidade dos cidadãos. A bus- texto, ainda seriam puros no senti-
ca da dignidade, acompanhada pela do de não terem sido afetados pela
alegria legítima – dentro do possí- ideologização “religiosa” de direita,
vel – é, foi, continuará sendo veicu- capaz de deturpar até mesmo o po-
lada pela obra de João das Neves. der de resistência dos explorados e
O seu olhar desnudava os ofendidos... Esta é a tarefa que fica
privilégios da elite econômica (a para nós, público do autor, diretor,
propriedade, o bem viver abusi- ator João das Neves: reinventar
vos) sublinhando as injustiças e as uma ética da alegria, capaz de resi-
violências das condições precárias liência, de inteligência, de clareza e
impostas aos trabalhadores, como de força para fazer frente ao mundo
vemos em O último carro, por às avessas que é hoje a nossa terra.
exemplo. Desnudava as mentiras
propostas, impostas por uma clas-

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referências

BRECHT, Bertold. Estudos Sobre Teatro. Tradução Fiama Pais Brandão. Rio de
Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1978.

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tps://www.teatronaescola.com/index.php/biblioteca/downloads-gratuitos/
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Abstract

Resuming the importance of the playwrighter, director and actor João das Neves to the
Grupo Opinião (Opinião Group) and its aesthetic proposal. Observing The Last Car (O
último carro) and Brechtian aspects in the work, as well as the tension, curves and jumps
in its staging.

Keywords

João das Neves. Grupo Opinião (Opinião Group). “O último carro” (“The Last Car”).
Brecht. Gestus. trickster.

Pitágoras 500, Campinas, SP, v. 9, n.2, [17], p. 153 - 169, jul. - dez. 2019 169
Conversas de vagalume: ima-
gens de convívio com o po-
eta encenador

Resumo >
Mara Vanessa Dutra

Memórias de momentos de convivência com o


poeta, dramaturgo e encenador João das Neves.

Palavras-chave:
Arte. Arte em cena. Teatro e cidadania. João das
Neves.
Conversas de vagalume: imagens de convívio
com o poeta encenador

Mara Vanessa Dutra1

Aprendi o nome de João das Neves quan-


¹ Doutora em Cultura e
Sociedade pelo Programa do O Último Carro revelou-se como uma gui-
Multidisciplinar Cultura e
Sociedade da Universidade
nada no teatro brasileiro, uma montagem ou-
Federal da Bahia, na linha sada em todos os sentidos. Eu, na época uma
Cultura e Arte. E-mail: ma-
ravaness@gmail.com. adolescente que fazia teatro, que amava teatro,
me apaixonei por tudo que li e ouvi – embo-
ra nunca tenha conseguido assistir à peça.
Anos depois, voltando de um tempo de es-
tudos na Europa, para onde fui buscar um res-
piro após ter sofrido perseguições e desilusões
pesadas com o trabalho de campo que realizava
junto aos Nambikwara, chego a Belo Horizonte
e ouço minha amiga Titane, cantora e militante
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dos caminhos da arte, falar de uma sua filha Maria João. Uma ternura.
montagem que tinha vindo do Acre Foi um período no qual nos
e sido encenada no Parque Muni- aproximamos muito. Ele estava
cipal, chamada Tributo a Chico mergulhado em seu trabalho de
Mendes. Ela estava extasiada com pesquisa junto aos Huni Kuin (Ka-
a força poética daquela montagem e xinawá), do qual resultou o belo
falava com brilho nos olhos do tra- texto Yuraiá, o Rio do Nosso Cor-
balho de João das Neves, que havia po. Um texto que não foi encenado,
formado o grupo Poronga com ato- embora tenhamos feito, ao longo
res e não atores acreanos e que fazia dos últimos anos, muitas tentativas
um teatro vindo da floresta, ocu- de captação de recursos para isso.
pando espaços não convencionais. Lembro que quando li o texto pela
Por coincidência, eu estava primeira vez, comentei: isso pare-
voltando para o Brasil para ir tra- ce cinema! Como você vai colocar
balhar com a Aliança dos Povos isso em cena? Ele riu, e disse: deixa
da Floresta através da Comissão comigo... é teatro. Ele queria fazer
Pró-Índio do Acre. Em Rio Bran- uma encenação incluindo indígena
co, escutei o burburinho sobre o Huni Kuin, construindo um kupi-
novo trabalho de João das Neves, xawa (casa indígena) e sem cobrar
Caderno de Acontecimentos. Esse entrada. Foram iniciadas algu-
sim, consegui assistir e ficou gra- mas parcerias nesse sentido, mas a
vado na memória. Uma lindeza. obra não conseguiu ser encenada.
Reviravoltas da vida e, vol- Novo intervalo, eu em traba-
tando de um trabalho de campo lho de campo e quando volto a Belo
no Juruá, eu fui passar uns meses Horizonte, Titane e João tinham co-
em Rio Branco, na casa de Claris- meçado a aliança, o casamento que
se Baptista e Socorro Calixto, e os abrigou até o final. Tivemos um
quem estava lá? João das Neves, momento ímpar na Bolívia, onde eu
também passando uma tempo- morava na época e para onde con-
rada. Era uma casa gostosa, com seguimos levar um show de Tita-
uma varanda nos fundos voltada ne; João era o diretor de cena do
para um quintal onde as manguei- espetáculo e cuidava de tudo. Fo-
ras reinavam. Nessa varanda, lem- ram muitas dores de cabeça, tanto
bro de João fazendo um por um as reais, por causa da altitude, como
uma série de boizinhos enfeitados, as metafóricas, por problemas das
para o aniversário de um ano de mais distintas ordens, mas tudo

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funcionou e terminamos brindan- de nós ganhou um nome; João tinha


do a esse mergulho em Nuestra orgulho do nome que passou a car-
America, latinidade na veia, nos- regar como um segredo precioso.
sa cara indígena soando na voz de E nossas vidas continuaram
Titane para o estádio lotado: “Ju- se esbarrando. João e Titane tive-
ana Azurduy, flor del Alto Perú...” ram sua filha Maria Íris poucos
Em outro momento, João me meses depois da chegada de meu
convidou para participar com ele primeiro filho. Eles foram morar
de uma oficina oferecida pela Casa em Lagoa Santa e a gente sempre
del Teatro de América Latina, de sonhando de um dia morarmos to-
Cuba, a se realizar entre os indíge- dos juntos, ou lado a lado. Isso se
nas Guarani da região de Misiones, concretizou em 2015, quando cria-
na Argentina. Foi uma experiência mos a comunidade Alegria 10, na
maravilhosa, quatro dias de oficina qual moravam João, Titane e Maria
conduzidas por João, com atores de Íris; eu e meus dois filhos; e Rodri-
distintas partes da América Latina go Cohen, cenógrafo e figurinista.
e com a participação de indígenas Nossas casas na comunidade
Guarani. João trabalhou a partir Alegria 10 eram um espaço cons-
dos mitos guaranis, narrados por tante de criação. Ali acompanhei
eles. Foi feito todo um trabalho de a escrita da dramaturgia de Bone-
criação a partir da respiração, do cas Quebradas, texto sobre o femi-
corpo, sem palavras. Ao final, quan- nicídio no México, que João criou
do todos apresentaram suas “célu- de maneira belíssima, com textos
las cênicas” e estavam reunidos no curtos que falavam do corpo, de-
grande pátio, começa a nos chegar pois dos campos de algodão onde
uma voz que soa como um lamento, os pedaços dos corpos eram en-
um mantra, um canto ritual – e lá do contrados... escolheu um tom alta-
mato saiu um profeta Guarani, ca- mente poético para falar de crimes
minhando em direção à Terra Sem duríssimos e trouxe como inspira-
Males. Naquele momento, o grande ção Antígona, que quer sepultar
João das Neves sintetizou tudo que o irmão morto e para isso enfren-
havíamos ouvido naqueles dias de ta o poder do tirano. A cada parte
convívio com os Guarani, encenan- do texto escrito, João lia para nós
do a chegada de um profeta à aldeia. – puro deleite. Depois ele ia cui-
Para finalizar a oficina, os indígenas dar das flores do jardim, limpar o
fizeram um lindo ritual e cada um quintal dos cocôs dos cachorros,

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dar comida para as galinhas, cami- que ele criava e recriava, a cada dia.
nhar, tocar piano (ah, os momentos Morando na Bahia, encontro
em que ele sentava ao piano e to- rastros de João. A diretora e profes-
cava, tocava, com toda alma...), ler, sora de teatro Maria Eugênia Milet
cozinhar... Uma vez por semana ele me fala dele com carinho e admi-
fazia almoço para o coletivo, um ração, lembrando o período em que
macarrão sempre com duas opções o ICBA, Instituto Cultural Brasil-
de molho, deliciosas. E toda noite, -Alemanha, transformou-se no lo-
lá estávamos nós, tomando nos- cal por excelência da resistência, da
so vinho e as sopas maravilhosas, criatividade e da trincheira dos ar-
todas criadas por ele. Nas noites tistas e das artes naqueles anos de
fresquinhas ou frias de Minas, era chumbo da década de 70, sob a ges-
um ritual precioso. Ali ficávamos, tão de Roland Schaffner2, que cita
entre a sopa, o vinho e o queijo, esse período e a parceria do ICBA
olhando o quintal e conversando. com João das Neves em seu livro Me-
Ah, os livros do João! Sua moráveis Paixões Transculturais.
biblioteca é um caso à parte. Ele Sobre o que significou aquele perí-
sempre estava lendo alguma coisa odo e o reduto do ICBA, esse texto
e tinha algo para me apresentar, do blog Anos 70 Bahia é revelador:
alguma preciosidade da literatura,
O Instituto Cultural Brasil-Alemanha (ICBA,
que buscava com precisão entre as hoje Instituto Goethe) era um reduto de pura
prateleiras onde os livros convi- arte, uma referência na cultura da Bahia em
pleno período da ditadura. Localizado em
viam com artesanato de várias par- ponto estratégico no Corredor da Vitória, fir-
tes do Brasil e do Mundo, em arran- mou-se nos anos 70 como território livre da
dança, teatro, música, cinema. O bar fervilha-
jos que agradavam imediatamente va de gente interessante. Dirigido com brilho
e coração por Roland Schaffner, o ICBA era a
os olhos e aqueciam o coração de casa do Intercena, da Banda do Companheiro
quem fosse com ele em busca de um Mágico, da Jornada de Cinema, do Sexteto do
Beco e do Baiafro de Djalma Correia, aglu-
determinado texto, autor, fragmen- tinando as tribos e gerando acontecimentos
to. Naquele período, lembro muito participativos com total liberdade de expres-
são. Não havia censura nesse espaço: por ser
de João, pelas manhãs, sentado em território com status estrangeiro, dava certa
segurança. A Jornada de Cinema, liderada
seu quartinho de escrita, que fica- por Guido Araújo, começou no ICBA. Tam-
va no fundo do quintal, dialogan- bém foram criadas em seu território as coo-
perativas artísticas, núcleo de vídeo, quadri-
do com Emily Dickinson. O artista nhos, formação de ator e música eletrônica.
mergulhado em seu cotidiano, todo (2016, s/p.)

feito poesia. E rodeado de beleza,


2
SCHAFFNER, Roland. Memoráveis paixões transculturais. Salvador: Edufba, 2011

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O último livro escrito por briolava no palco feito um moleque.


João (e ainda no prelo) foi o relato Foi também naquele ano de
sobre o Grupo Opinião – um rela- 2015 que se realizou a Ocupação
to vivo, intenso, humano e cora- João das Neves no Itaú Cultural.
joso, necessário para a história do Participar, mesmo que tangencial-
teatro brasileiro. João dizia: sou o mente, da montagem daquela ex-
único sobrevivente, tenho que con- posição me permitiu um mergulho
tar essa história. E como contou! profundo na obra humana, vasta,
Ali ele narra seu tempo na Bahia, riquíssima, desse diretor, drama-
do qual carregou, pelo resto da turgo, encenador, poeta. Desse
vida, os conselhos de Mãe Meni- menino cantante e brincante. Des-
ninha e as oferendas para Oxóssi. se guerreiro que nunca arredou o
No rico período do Alegria pé da luta. Desse homem simples
10, em Lagoa Santa, muitas ou- que criava beleza e harmonia por
tras coisas aconteceram. João re- onde passava, cuidando de flores
alizou várias edições da Casa dos e bichos. Desse artista refinado,
Pequizeiros, quando ele recebia descobrindo sempre novos mun-
um artista na laje de sua casa en- dos. Desse menino alegre com cada
tre os pés de pequi, transformada aniversário, quando ele era quem
em espaço cênico, para uma noite nos presenteava: um desenho, um
de música, poesia, literatura, vi- livro, um poema... Um homem de
nhos e queijos. Noitadas inesque- teatro, como sempre se definiu, que
cíveis. Receber um convite do João nunca se permitiu parar de ino-
para uma Casa dos Pequizeiros era var e pesquisar e avançar nas lin-
sempre uma honra e uma certeza guagens cênicas, para quem a arte
de momentos de pura arte e beleza. era a própria vida. Uma daquelas
A última coisa que assisti no pessoas que faz da vida uma arte
espaço da Casa dos Pequizeiros, em e que vive da arte de uma forma
2017, foi um ensaio de Lazarillo profundamente honesta, radical-
de Tormes, texto escrito por ele, mente livre e totalmente cidadã.
e último espetáculo em que atuou João permanece; sua arte, sua
como ator. Aquele ensaio, feito para luta, seu olhar maravilhado e des-
nos dar o gostinho de assistir ao cobridor para com as coisas peque-
que estava sendo criado, foi uma nas e simples, para com os artistas
explosão de energia e vitalidade. do Vale do Jequitinhonha (encenou
João tinha 83 anos e saltava e ca- Maria Lira e escreveu Ulisses), para

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com os Huni Kuin, com os quais


selou amizade para toda vida. Per-
manece a necessidade de artistas
como ele, que conseguem enxer-
gar este país, que trabalham com
rigor e sem afetação, com ousadia
e coragem, que acolhem atores e
não atores no mesmo desafio, que
transforma as Primeiras Histórias,
de Guimarães Rosa em uma expe-
riência sensorial, rica e distribuída
no chão do Parque Lagoa do Nado,
que, aos 82 anos de idade, acampa
por dias e dias na Funarte para ga-
rantir a continuidade do Ministério
da Cultura... Permanece o amigo, o
artista, o inspirador de tanta gente.
Que continuará inspirando. Como
ele mesmo disse: “Eu permane-
ço/ na luz dos vagalumes/ tecen-
do estrelas” (NEVES, 2018, s/p.).

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referências

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<http://anos70ba.blogspot.com/2016/06/icba-territorio-livre-da-arte.html>.
Acesso em: 29 jan. 2019.

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www.facebook.com/1033548796685043/photos/aos-que-me-amameu-
-permane%C3%A7ocom-o-azul-das-montanhas-no-horizonteeu-permane%C3
%A7ono-a/2065005496872696/ >. Acesso em:29 jan. 2019.

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Abstract

Memories of moments of coexistence with the poet, playwright and director João das
Neves.

Keywords

Art. Art on stage. Theater and citizenship. João das Neves.

Pitágoras 500, Campinas, SP, v. 9, n.2, [17], p. 170 - 178, jul. - dez. 2019 178
Maria do Perpétuo Socorro Calixto

Viagem ao fundo do rio

Resumo >

Esse texto nasce mais de um sentimento, que


veio durante e após o falecimento de João das Neves,
do que de uma análise acadêmica de seus trabalhos.
Sentimento esse que aciona uma memória emotiva da
experiência de ter trabalhado com ele e de ter sido
uma das pessoas chamadas para compor o grupo que
permaneceu em sua casa, em Lagoa Santa (MG/BR),
durante os dias de sua despedida. Essa memória, le-
vou-me a buscar alguns contextos acreanos de leitura
e experiência, alguns dos quais o autor se valeu para a
marques

escritura de textos, como Yuraiá - o rio de nosso corpo


(1992).

Palavras-chave:
Teatro. Memória. Paixão. Morte. Experiência.
Viagem ao fundo do rio

Maria do Perpétuo Socorro Calixto Marques1

Aos que te amam, João.


¹ Professora no Curso de Ar-
tes Cênicas da Universidade
Federal de Uberlândia. Pes- Comecei, muito jovem, a trabalhar com o
quisa o trabalho de João das diretor João das Neves, assim como outros que
Neves desde que fez parte
do Grupo Poronga, em Rio estão presentes nesta coletânea. Porém, em um
Branco-Acre (1988-1992). lugar muito longe dos territórios onde o teatro
Autora dos livros A cidade
encena a floresta (2005), no ganha maior visibilidade, como a cidade natal
qual há um capítulo sobre
Tributo a Chico Mendes de João das Neves, Rio de Janeiro, São Paulo ou
(1988), documentário de até Belo Horizonte, onde ele ficou até o fim de
João das Neves, e João das
Neves: Opinião na Amazô- sua jornada. É para esses polos que vão os espe-
nia (2016). Bolsista Capes táculos que dão certo nos grupos de teatro, pois
(Pós-doc) no período de
agosto de 2015 a janeiro de neles, certamente, o espaço da apresentação es-
2016. E-mail: mcalixtomar-
ques@uol.com.br tará lotado, especialmente em São Paulo. Nada
de novidade até aí. Embora saibamos que, de
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sua mega população, um trisco de dele, com suas famílias, ficava feliz
percentual lota um pequeno teatro. em ver seus parentes e queridos
Em Rio Branco, João das Ne- conhecidos ou amigos migrarem
ves era o ‘João’, diretor convidado para a cidade. Ali, pelo menos, po-
que chegou à cidade para minis- diam estudar e entrar em um fila
trar oficinas de teatro e logo após de atendimento de saúde. Inclusive
voltaria ao Rio de Janeiro. Não casar no civil, no papel ‘passado’,
voltou. Ficou, apaixonou-se pela novidade, inclusive para meus pais.
cidade, pelo seu povo e lá teve sua Se Rio Branco, capital, não era
primeira filha – Maria João - e fácil para quem nela morava ou fi-
“adotou” muitos outros filhos que xava residência, viver nos seringais,
começaram a fazer teatro com ele. hoje, quase inexistentes, era bem
Rio Branco não é uma cida- pior. Longe da capital, eram luga-
de fácil; além de distante, e exata- res ermos aonde se chegava apenas
mente pela distância geográfica, de barco. As viagens demoravam
alguns artistas e, indiretamente, dias, pois o transporte não se ser-
pessoas comuns, se fazem resisten- via de estradas e os rios sempre de-
tes ao estrangeiro. Nas décadas de sembocavam nos dois afluentes do
1970 e 1980, essa resistência dava- Amazonas: o Purus e o Juruá. Logo
-se, ou porque sentiam medo e in- era comum pessoas que moravam
segurança diante do aumento de- no vale do Purus não conhecerem
senfreado da violência gerada pela as que moravam no vale do Juruá
ocupação das terras devolutas nas e seus moradores serem identifica-
periferias dos centros urbanos, re- dos pelo nome do rio ao qual esta-
sultado da expulsão de milhares vam perto. Logo, nascer no Juruá,
de famílias dos seringais acreanos no Moa, no Purus, no rio Breu etc.,
desde 1960, ou porque essa mi- eram nossas bússolas geográficas3.
gração diminuía os espaços de vi- E João das Neves mergulhou nessa
vência na cidade. Ou tudo junto.2 referência, ao escolher o rio Acre
De resto, a população, em sua para que fossem jogadas parte de
maioria, não sentia negativamen- suas cinzas. Foi um filho do rio Jor-
te os impactos desse processo mi- dão, ou Yuraiá, para os índios Ca-
gratório, pois ela própria, agente xinauás, quando escreveu, ao longo
2
Para mais informações, o leitor pode consultar: CALIXTO, Maria do Perpétuo Socorro. A Cidade encena a Floresta. Rio
Branco: EDUFAC, 2005.
3
Expressões utilizadas por Leandro Tocantins em O rio comanda a vida. In: SILVA, Laélia Rodrigues da Silva. Procura-se
uma Pátria: a literatura no Acre (1900-1990). Porto Alegre: PUC-RS, 1996.

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de dois anos, sua peça Yuraiá - o


rio do nosso corpo (1992), texto O rio comanda a
que analisei ainda em minha dis- vida

sertação de mestrado e que volta, Os acreanos são filhos


do rio, nunca da terra
com mais propriedade, creio eu, em ou da cidade. Daí
João das Neves: Opinião na Amazô- expressões como:
nasci no Juruá, casei
nia (2016). Mesmo que ele não te- no Purus, vim do Alto-
nha gostado da capa do livro: uma Acre, morei no Moa,
sou filho do Abunã.
foto de quando ele ganhou o prê-
(Leandro Tocantins. O
mio Molière, por seu belo espetá- rio comanda a vida.)
culo O Último Carro (1976), João
gostou do livro. Não me disse, mas Voltemos a um dos filhos dos
disse a Titane e a Ylka Zanotto.4 Se rios: antes isolados na floresta, se-
não tivesse gostado também me di- ringueiros e índios passaram a ser
ria. Ele era assim, franco, “na lata”. afrontados por pecuaristas, desde
Mas a foto da contra capa ameni- os anos de 1960 (assim como João
zou a situação, pois as duas desem- das Neves foi afrontado ainda no
bocam no mesmo rio: a trajetória grupo Os Duendes, na cidade de
desse homem simples, espetacular Campos/Rio de Janeiro, quando
e exigente com atores ou quaisquer dirigia o teatro daquela cidade).
pessoas que se envolvessem com a Como resultado, ou foram parar
arte teatral, pois que não fez teatro nas cidades ou criaram resistência
como colônia de férias, mas como para enfrentar o desenvolvimento e
profissão de fé e de fogo, quase sem- a expansão projetados pelo gover-
pre sem dinheiro. Como os serin- no federal para povoar a Amazô-
gueiros que defendem suas terras nia. O Acre era a última fronteira
nas florestas estão em seus luga- a ser ocupada. E para ocupar, era
res de escolhas, não pelo exotismo necessário desocupar. Iniciada, a
de morar na floresta e, no caso de desocupação gerou resistência por
João, homem de teatro, mas pela parte da classe artística, empolgan-
necessidade e pelo pertencimen- do e instigando artistas de inúme-
to à sua terra, aos seus rios e a sua ras áreas. O teatro, por suas carac-
arte. Tudo respectivamente, leitor. terísticas efêmeras, liderava ações
emergenciais e era utilizado pelos

4
A primeira, esposa de João das Neves. A segunda, crítica de teatro e autora do prefácio do mesmo livro.

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padres vinculados à linha da Teolo- se sempre assistido por artistas de


gia da Libertação. Nascia, em nossa outras áreas e por ex-seringueiros
margem, um teatro forte, de mili- ou, ainda, por seringueiros, mora-
tância, a luz de um teatro agit-prop, dores da mata, como costumávamos
sobre o qual me debruço em A cida- nomear os que viviam na floresta.
de encena a floresta (2005); na ou- Moradores da mata que não tinham
tra margem, longe de rio Branco, acesso à leitura e ao ensino formal.
João das Neves entrou para o CPC Logo, dadas às devidas proporções,
- Centro popular de Cultura - da estava configurado um público se-
Une e posteriormente, fundou, com melhante quando da formação da
vários artistas de igual importân- península ibérica: público simples,
cia, o Grupo Opinião (1964). Duas ouvintes das sagradas escrituras e
margens de um mesmo rio – o te- leitores da floresta. A grande maio-
atro de militância – desaguavam, ria de espectadores não sabia ler e
se faziam frondosos diante das si- o que conheciam chegava através
tuações adversas já conhecidas - das narrativas bíblicas, como cons-
pelo menos pelos pesquisadores tatado quando entrei no processo
de teatro – e um dia se encontra- de letramento e leitura apresenta-
ram na mesma foz: o encontro de do por Darnton (1986), em especial
João das Neves com jovens acrea- no capítulo sobre quais materiais
nos. Afinal, a arte, como as águas, impressos os camponeses liam, e
é sempre resistente e caudalosa. por Chartier (1990) que destaca al-
Pronto, estava montado o ce- guns gêneros lidos ou ‘ouvidos’ em
nário para um teatro documentário seu livro A história cultural: entre
e de agitação e propaganda, tam- práticas e representações: versões
bém utilizado, naqueles tempos, na abreviadas e histórias da bíblia, ca-
periferia de São Paulo e em outros tecismos, recolhas de cânticos (a
lugares mais distantes como a ex- música era também uma manifesta-
tinta União Soviética. Sobre esse ção comum), livros de orações, bre-
assunto e sua relação direta com a viários paroquiais, obras de devoção
arte e vida de João das Neves, falo e piedade; coleção de livros de cor-
com mais verticalidade no livro del. No nosso caso, a literatura de
A cidade encena a floresta (2005). cordel construiu um espaço de lei-
No entanto, o livro não é dedica- tura até hoje lembrado por pessoas
do somente a ele, evidentemente. que aprenderam a ler nos seringais.
Aquele teatro era feito e qua- Como esse texto é feito de

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quadros - quadros de minha me- ouvintes também eram. Falei para


mória -, faço aqui um aparte para o João das Neves, ainda por volta de
mostrar a foto de meu clã fami- 1993. Ele me disse, sorrindo: “Diga
liar publicado em alguns trabalhos para sua mãe que fica para a pró-
acadêmicos, para mostrar parte do xima…”. Mamãe, volta aqui, nesse
contexto sócio cultural das famí- artigo, registrada em uma foto de
lias que moravam em seringais na uma escola multisseriada, no se-
Amazônia, não para falar de mim, ringal Boa Esperança, na cidade de
mas para apontar um raro registro Tarauacá, onde nasceu e por onde
de uma escola, isolada na floresta João das Neves passou para subir
do vale do Juruá, e na qual os pro- o rio e chegar na aldeia Kaxinauá.
cessos de leitura se davam via lite-
ratura de cordel. E para registrar o
comentário de minha mãe, quando
leu a peça Yuraiá - o rio do nosso
corpo: “Esse homem esqueceu de
colocar o que havia de melhor na
personagem Pedro Biló....ele enfei-
tiçava os índios, seringueiros e todos
ficavam assim óh!” (MARQUES, Fig. 1 - Local da foto: Seringal Boa Esperança - Escola
1989), mostrava com seu corpo en- Cel. Júlio Roque (Rio Tarauacá) - Ano 1950. Alunos
identificados: Primeira fila à direita: Lindalva Calixto
velhecido como esses grupos eram Marques (13anos), Anizia Calixto (15anos), Maria José
Santos (12anos), Raimunda Calixto (17anos). (Minhas
rendidos por um dos grandes res- tias, pelo lado materno); Segunda fila (da direita para
ponsáveis pelas correrias5 nos se- esquerda): Francisca Mourão, Raimundo Nonato Mourão
Marques (tios, pelo lado paterno), Aglair, Francisca
ringais. Minha mãe queria o realis- Mourão da Costa (tia Franci, pelo lado paterno), “Dica”,
mo fantástico na cena, apresentada Nazaré Viana.6 Arquivo: Pessoal (Foto que faz parte do
acervo da família Mourão Marques)
no texto Yuraiá, na passagem em
que os índios usam a ayahuasca. Retomando. Posso dizer que
Assim, como minha mãe era fasci- esse era o perfil do leitor para o
nada pelo realismo fantástico, cuja qual o melodrama se dirigia, gê-
recepção poderia levá-los ao qua- nero popular e corrente nos sécu-
dro do melodrama, outros leitores/ los XVIII e XIX. E, mesmo sem

5
Correria: Termo utilizado na região significando matança organizada dos grupos indígenas pelos seringalistas. In: SILVA,
Laélia Rodrigues da Silva. Procura-se uma Pátria: a literatura no Acre (1900-1990). Porto Alegre: PUC-RS, 1996.
6
Foto publicada na dissertação de Mestrado de Valéria Barbosa Ferreira Silveira. Universo oral do seringueiro acreano no
início do século XX: Discurso e Memória. 2011. Dissertação (Mestrado em Letras- Linguagem e Identidade) - Universida-
de Federal do Acre. Orientadora: Maria do Perpétuo Socorro Calixto Marques.

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trabalhar com o efeito patético, observava em seu entorno e não era


uma vez que o teatro de João das somente vinculado a mecanismos
Neves prevê o efeito de distancia- de atuação e composição vislum-
mento (Brecht, 2005), a configu- brados por Bertolt Brecht (1898-
ração do público para o qual suas 1956), ou autores vinculados a uma
peças foram apresentadas asseme- teoria marxista, as quais sustenta-
lhava-se ao público do melodra- vam sua produção nesse universo.
ma, quando este surgiu em meados O carimbo do teatro político
do século XVIII, ainda na França. de resistência, realizado nas déca-
Não sei se alguém já fez essa das posteriores ao Ato Institucional
relação: estudar o melodrama para nº 5, após o golpe de 1964 - quando
associar o perfil do público ao do ele, João, também estava no prédio
teatro político realizado no Acre, da UNE, quando este foi invadido
ao qual as peças eram, inicialmen- pelos militares -, foi dado pela crí-
te, dirigidas. Essa associação veio tica, por ele mesmo, mas que em al-
depois de anos de pesquisa, quan- gumas leituras que fiz de suas peças,
do somei o contexto histórico que a exemplo de O Quintal, coloca-se
subsidiava o surgimento dos con- em debate o lado maniqueísta das
tos de fada e o que abrangia a his- peças documentários. Em sua peça
tória da leitura da França oitocen- O Quintal, João das Neves regis-
tista. Para essa relação, foram feitos trou vários pontos de vista, dentre
alguns movimentos de leitura, des- eles sua posição representada pelas
de os apresentados por Darnton, personagens Clara e Luiz e pelo
especialmente seu célebre livro O fim trágico dos operários. Posição
grande massacre dos gatos (1986), que não é maniqueísta, tão pró-
bem como temas sobre o conteúdo, pria de momentos assim. Ao con-
a forma e o material do livro de Mi- trário, ao longo da peça, inserida
khail Bakhtin, Estética da Criação no livro quem é o povo brasileiro,
Verbal (1997) e A história cultural, João questiona o movimento e seu
de Chartier (1990) e, claro, o estu- próprio teatro. Ao final, faz a opção
do de Jean-Marie Thomasseau, O pelo povo. Coloco aqui um recorte
melodrama clássico (1800-1823). de análise feita sobre O Quintal, no
Esses caminhos sustentam intuito de registro sobre o homem
minha hipótese de que o teatro de João das Neves, para além de seus
João das Neves nascia de um proces- documentários, alguns encomen-
so de criação que ele, sensivelmente, dados, que tantas vezes analisa-

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do o fizeram ser contextualizado to outro momento do diretor. Vi


como diretor de militância política: mais uma vez João conseguir este
trabalho com o ator muitos anos
Aqui, nós podemos dizer que essa interrupção
que imobiliza os acontecimentos daquele dia depois, na montagem de Primeiras
1º, faz com que o próprio autor tome uma po- Estórias (2005-2006), texto espe-
sição quanto ao seu papel de dramaturgo. Não
que não tenha tomado antes, mas é aqui em tacular que resultou da adaptação
O Quintal que vislumbramos essa tomada de dos contos de Guimarães Rosa,
posição quanto às ações que nortearão o seu
fazer teatral. É como se ali, naquele quintal de mas que chegou aos atores somen-
meninos sinceros, o acontecimento, suspen-
so na peça, amadurecesse a ideia do homem te um mês antes da estreia, quan-
político de fazer de seu teatro um encontro, do toda a turma, alunos formandos
na acepção do termo, com o povo. Se na peça
ele conta como foi e reconta, desdiz o dito e da Unicamp, conseguira construir
não termina, interrompe a sequência e abre a seus personagens sem ter acessa-
cena para perguntas, para reflexões, para ele,
a resposta será dada no percurso de um teatro do as falas que dariam durante o
de militância onde o seu partido será o povo.
E faz teatro nos quintais do Brasil. Vai até o espetáculo. Em conversa com uma
povo para contar suas histórias. Faz de índios amiga, atriz de Primeiras Estórias,
no Acre, gente do Vale do Jequitinhonha, ne-
gros das Minas Gerais, mulheres, trabalhado- fiquei sabendo que a personagem
res que viajam nos trens urbanos, narradores que ela criara naquele ano de traba-
e atores. (MARQUES, 2016, p. 41-42)
lho, era constantemente comprada
Não estou dizendo que o te- para outros espetáculos. Dona Fia
atro de João das Neves não tenha se chamava. Saiu do campo de cria-
sido feito dentro de um contexto ção de João das Neves e da atriz Si-
que o levou ao teatro documentá- mone Evaristo e ganhou o mundo
rio. Quero deixar registrado é que como uma personagem universal.
esse teatro, mesmo escrito de for- Na oportunidade de acom-
ma rápida e rudimentar, foi realiza- panhar diariamente os ensaios de
do com o mesmo empenho quando Primeiras Estórias na Unicamp, no
ele pensou na encenação e na con- ano de 2005 eu, intuitivamente, fiz
tribuição do ator na interpretação um diário. Nele há anotações repe-
dos papéis. João das Neves dirigia tidas de ações físicas, de análise de
atores e deles não tirava somente texto, de seminários abertos com
a personagem – sim, ele trabalha- pesquisadores da obra de Guima-
va com a ideia de personagem, hoje rães, ensaios com o músico Rufo
discutida pela ideia da presença Herreira, que também observava o
na performance – mas também o andamento da criação para compor
mais difícil: a alma política do ator. as músicas, cujos sons saiam de ins-
Como contraponto, apresen- trumentos de trabalho de campo.

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Bonito de se ver o final. Mas xista e de alguns admiradores o en-


confuso, abstrato, quando do pro- clausurou no método Brecht que,
cesso de criação do texto espeta- por sua vez, nunca disse que tinha
cular, pois ele partiu de uma célula um método. O fato é que na lis-
que, gradativamente, ia se compon- ta de diretores como Stanislavski,
do com os exercícios corpóreo-vo- Brecht, Boal, acrescento o nome de
cais realizados pelos atores. Tudo João das Neves com o cuidado de
muito lento. Bem, destaco esse não o vincular a um diretor a ser
exemplo, porque foi um dos poucos seguido, pois corremos o risco de
que eu acompanhei do início ao fim, apagar sua poética, sua autoria e
como observadora, após os traba- sua vontade de ver o outro em pro-
lhos realizados em Rio Branco com cesso de crescimento. E creio, quan-
a famosa ‘trilogia acreana’: Cader- do leio trabalhos acadêmicos, que
no de Acontecimentos (1987), Tri- esse apagamento se concretizou – o
buto a Chico Mendes (1988) e Yu- meu foi um deles. Vejo que muitos
raiá: o rio do nosso corpo (1992).7 trabalhos sustentam seus proce-

Em outra conversa sobre dimentos sempre em exemplos já
esse assunto de composição atoral, utilizados, mais conhecidos e, es-
uma pesquisadora do trabalho de pecialmente, estrangeiros. Pressão
Stanislavski me disse: “Mas isso é da academia e do vício, creio eu.
Stanislavski!”. Sim, João das Neves Alguns leitores gritam quan-
deixou claro que lia muito sobre do unimos Stanislavski e Brecht.
os trabalhos de diretores, desde os Agora, suponho, alguns deverão
mais clássicos até o de seus con- bradar mais diante da relação que
terrâneos e contemporâneos. E de fiz entre esse público com o melo-
cada um, se valeu do que lhe inte- drama . João das Neves não estava
ressava. Boal foi um deles e, nova- ‘nem aí’ para os reclamos e ditames
mente, digo que João não trabalha- da academia. Leu A cidade encena
va com o teatro do oprimido; podia a floresta e nunca, mas nunca mes-
sim emprestar um jogo aqui e ali, mo, demonstrou, pelo menos para
mas seu olhar estava para o univer- mim, que concordava ou não com o
so da obra e para o trabalho de ator. caminho que eu escolhera. Deixou-
Infelizmente, sua linha mar- -me seguir e me descobrir como

7 As peças que possuo em meu acervo são da época em que integrava o Grupo Poronga. Digitadas, enviei ao João das Ne-
ves e a sua esposa Titane para integrar o acervo da exposição no Itaú Cultural e ao acervo da UFMG. Utilizei-as para fins
acadêmico e com autorização do autor, quando em vida.

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pesquisadora e professora de uma de para os que moravam na flores-


instituição pública, assim como dei- ta. Ele lia os bilhetes que familiares
xava seu ator se descobrir e seguir escreviam, desde os mais esdrúxu-
seu caminho na arte e na vida. E vi- los, cômicos, trágicos, até os inve-
mos isso em seus últimos dias, em rossímeis. Eu, levada pela força e
sua casa, em Lagoa Santa, quando pressão da academia, coloquei-o ao
tive tempo de ouvi-lo: “Titane, ar- lado de Piscator, pois foi ele que,
rume colchões para meus filhos e na história do espetáculo, inseriu a
minhas filhas...”, frase ecoada quan- voz em off em seus documentários.
do cheguei e o encontrei ainda em
sã consciência. A casa, lotada de
pessoas de várias gerações, de vá-
rios lugares. Choro, riso, cachaça,
comida, tambores e música foram
as velas que nos aconchegaram, nos
uniram e nos alimentaram para se-
guir nossos caminhos, se não com
Fig. 2 e 3 - Segundo programa da peça Tributo a Chico
a mesma força, mas pela mesma es- Mendes. Acervo pessoal.
trada: o da cidadania, o da alegria
e compromisso com a coletivida- Passei boa parte de minha
de, seja ela qual for e onde estiver. vida acadêmica lendo os autores
João partiu de braços aber- elegidos como os clássicos e os im-
tos e enfrentou a morte com mais portantes do momento na Acade-
força do que quando enfrentou um mia. Piscator, Brecht e tantos ou-
canhão e nos deixou mais um lega- tros importantes diretores teatrais,
do: não tenhamos medo da morte. além de filósofos como Lucak, como
Sorriu, com sua meninice, minutos para construir um alicerce de uma
após seus últimos suspiros. Sua des- simples leitura de Yuraiá, o rio do
pedida foi em tom de festa, assim nosso corpo (1992), precisava sus-
como quando ele fez ao escrever tentar a obra do João nas dos ou-
o documentário Tributo a Chico tros, para que ela tivesse validade
Mendes (1988), após Chico ter sido acadêmica. Fiz, a meia boca, mas
assassinado. Havia um forró, todos fiz. São importantes, por suposto,
dançavam, após a locução em off, mas há outros e nós, pesquisadores,
com a conhecida voz de Reginaldo precisamos nos livrar das amarras.
Cordeiro, que dava notícias da cida-

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com as histórias do João, pois ele


foi, em persona, o próprio gestus.
Acabo de chegar de Rio Bran-
co (AC), e lá outra amiga – Clarisse
Baptista9 – me mostrou um certi-
ficado bonito de se ver: quando do
evento da morte de 30 anos da morte
de Chico Mendes, João das Neves foi
inserido na lista dos trinta homens
que ajudaram na consolidação das
reservas extrativistas. Lá estava
ele, ao lado de nomes de seringuei-
ros assassinados e antropólogos.

Fig. 4 - Capa original do texto Yuraiá,o rio do nosso


corpo. Arquivo: João das Neves.

Eu permaneço
Nos anos luz de estrelas
Que não mais existem8

(João das Neves, 2014)

Somente no Curso de Artes


Cênicas e com a experiência com
assuntos inerentes à história do
espetáculo, constatei que podia es-
crever e fazer relações que cons-
truí ao longo de minha docência,
creio que decente. Por isso não me Fig. 5 - Foto recente da fachada do Teatro Barracão. Rio
debruçarei sobre temas como te- Branco –Acre. Um dos espaços onde João das Neves tra-
balhou. Acervo pessoal.
atro documentário, teatro épico,
teatro de agit-prop, gestus, músi-
ca gestus e até performance cultu- Um dia após saber sobre a
ral. Ficarei com minhas histórias, homenagem a João, fui ao Teatro
Barracão, espaço cultural recém-
8
Poema não publicado. Acervo da autora.
9
Clarisse Baptista trabalhou com João das Neves desde os 17 anos. Com atriz protagonista, com Lélia Abramo, na monta-
gem de A mãe, de Brecht, passou a realizar alguns trabalhos como assistente de direção A missa do Quilombo e foi através
dela que João das Neves foi para o Acre e, como ele, fundou o Grupo Poronga.

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-reformado pelo governo estadual. forma de escrever. Destaquei que


Ali, durante conversa com o atual minha tarefa e cuidado como pes-
administrador, Ney Ricardo, en- quisadora era justamente desco-
treguei-lhe as cópias que tinha das brir o gênero e a poética de cada
peças de José Marques de Souza, um. Em algum momento escrevi
conhecido como Matias. O material sobre a presença de Boal no Acre
me fora disponibilizado para pes- e cheguei a publicar sobre o assun-
quisa pelo seu filho, Claudio Matias. to em uma revista espanhola, mas
No livro A cidade encena a nunca disse que João das Neves e
floresta, há um capítulo inteiro de- Matias fizeram um teatro boalino.
dicado à análise desse material. Na O que quero dizer com essa
obra, também escrevo sobre João das comparação entre os dois direto-
Neves e seu Tributo a Chico Men- res, constituídos a partir de espa-
des. Para a encenação da peça, João ços e experiências tão diferentes,
contou com o ator amador Matias, é que o encontro foi de respeito e
homem vindo da floresta e um dos admiração mútuos e um alimen-
resistentes à política de ocupação tou o outro para a montagem de
do bairro onde fica o espaço Barra- Tributo a Chico Mendes, na qual
cão. Ney Ricardo pediu para gravar uma cena é dedicada à história de
minha fala e me fez algumas per- um caçador e uma onça. Eu di-
guntas. Quis saber se Matias teria ria que esta cena daria gosto para
trabalhado com o teatro do oprimi- os leitores de Richard Schech-
do, de Augusto Boal, e se nas peças ner (2012), quando ele discute so-
dele havia traços da estética boalina. bre comportamento restaurado.
Novamente, fiquei diante da Por fim, reitero meu objetivo
catalogação de peças e, desta feita, neste texto sobre João das Neves:
de um homem – Matias - que mal os artistas do teatro criam e re-
conhecia o código linguístico es- criam, e nós, como pesquisadores,
crito. Falei que Matias, assim como temos a incumbência de conhecer
João das Neves, tivera contato com as linguagens cênicas, o perfil dos
Augusto Boal, mas um – uma onça espectadores, tanto de movimen-
da floresta, conhecedor das pistas tos passados como dos atuais, para
da mata e sensível ao espaço peri- construir uma boa lupa de análise
férico que estava ocupando, e ou- e não deixar a poética de cada um
tro – famoso, letrado e intelectu- deles ser abafada por uma lingua-
al, tinham construído sua própria gem acadêmica e classificatória,

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colocando-os em um lugar onde sempre foi o teatro, declaradamen-


a saia ou a calça ficam apertadas te político, como os documentários.
e formatadas, não deixando o ar- Registro acima o cartaz porque
tista permanecer, apenas passar. minha memória foi lá longe bus-
car o João das Neves assistindo a
nossos ensaios. No entanto, para
reafirmar, mesmo quando escre-
vi sobre documentários e o teatro
político de João das Neves, busquei
sua poesia. Nesse sentido, apre-
sento abaixo, um extrato de uma
citação sobre Teatro Documen-
tário, tipologia onde muitos colo-
caram o teatro de João das Neves:
O espectador do Teatro Documentário tam-
bém pertence ao universo que está sendo exi-
bido e performado. O Teatro Documentário
está atrelado diretamente à produção da his-
tória oral. Isso é o que confere a atualidade
para esse tipo de teatro. Justamente por isso
é que ele ganha diferentes movimentos es-
Fig. 6 - Cartaz da peça A Lenda do vale da lua. Grupo téticos desde o seu surgimento no início do
Poronga de Teatro. Local de Apresentação: Teatro Plácido século XX até os dias de hoje. Porque a so-
de Castro Rio Branco Acre. Arquivo pessoal. ciedade muda de acordo com o tempo, essas
transformações fazem com que o teatro Do-
A lenda do vale da Lua cumentário ganhe diferentes corpos e quali-
João das Neves dades de encenação ao longo dos anos. [...]
Nessa medida, o Teatro o Documentário será
João das Neves deixou um vasto material de sempre um reflexo do seu tempo, lugar e das
peças voltadas para o público infanto-juvenil. pessoas que o fazem. [...] Logo, o Teatro Do-
Ao lado, um programa feito com papel jornal cumentário também se caracteriza por ser
da peça A lenda do Vale da Lua, montada pelo uma ação humana criativa em relação ao seu
Grupo Poronga, dirigida pelo amazonense tempo, sendo uma inscrição por sua vez ob-
Nonato Tavares e Clarisse Baptista. A peça jetiva e subjetiva de leitura de alguém sobre o
lotou o teatro Plácido de Castro (Rio Branco- seu tempo. (GIORDANO, 2013, p. 12)
-Acre) durante todos os dias de apresentação.

Produção: Clarisse e Socorro Calixto, ou esta


Ora, ao falar de melodrama,
que vos escreve. teatro dos jesuítas, teatro realis-
ta e de todos os ismos que se se-
Nunca escrevi sobre a Lenda guiram na história do espetáculo
do Vale da Lua10, pois minha lupa de teatro, posso me valer dessas
10
Orientei um trabalho de conclusão de Curso sobre a peça. Ver: COELHO, Laíza. No Vale da Lua: nos versos de A
História do Boizinho Estrela, de João das Neves. Relatório de pesquisa, Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia,
2011-2012.

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características para fundamentar também em seu colar, ficamos com


minhas análises, pois são gerais e seu sorriso no seu doce silêncio.
atendem o princípio primeiro da
obra de arte: ela é social. Sendo so-
cial, nada mais natural que se re-
lacione com ela, criando uma esté-
tica verossímil com o que o autor
escolheu fazer, respeitando a cons-
trução de sentidos do espectador.
É assim que vejo o trabalho
de João das Neves: uma arte e vida
compatíveis com o seu modo de ver Fig. 7 - Foto do certificado que homenageia João das
e viver o mundo do teatro, de for- Neves (dezembro de 2018).
Acervo oficial: Titane.
ma militante e poética. Tanto que,
em seu velório, a festa, a prática do
‘beber o morto’, a cremação, cujas
cinzas foram distribuídas pelos lu-
gares que ele escolheu e amou: o
rio Acre, o mar de Copacabana e o
pé de pequizeiro, em Lagoa Santa,
simbolizavam um outro espetáculo
e não um funeral. João levou com
ele um colar Kaxinauá, cujo dese-
nho também está presente nos te-
cidos: há sempre um outro lado das
coisas a ser observado. Relatando
esse momento de despedida, trago
uma das frases presente em seu tex-
to publicado na Revista Palavra: “A
leitura também deve ser pelo aves-
so; positivo e negativo são igual-
mente reveladores; o oposto pode
ser meu igual [...] a morte não é
senão a reafirmação da vida” (NE-
VES, 1999). Observando o direito e
o avesso dos desenhos que estavam

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referências

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Abstract

This text results more from a feeling that arose after João das Neve’s death than from an
academic analysis of his work. A feeling that triggers an emotive memory concerning the
experience of having worked with him and been among the people that integrated the
group that stayed in his house, in Lagoa Santa (MG/BR), during the days that preceded
his passing. This memory made me look for some reading and experience contexts from
Acre, some of which have inspired João das Neve’s texts as, for instance, Yuraiá - the river
of our body (1992).

Keywords

Theatre. Memory. Passion. Death. Experience.

Pitágoras 500, Campinas, SP, v. 9, n.2, [17], p. 179 - 195, jul. - dez. 2019 195
Falando nos palcos como nas
ruas: a prosódia brasilei-
ra no teatro de Nelson Ro-
drigues
Adriano de Paula Rabelo

Resumo >

Do ponto de vista da linguagem, o teatro de


Nelson Rodrigues se realiza como a culminância de
um processo histórico de apropriação da linguagem
brasileira pela literatura. Em vários momentos, hou-
ve tentativas de abrasileiramento da linguagem por
nossos escritores, tendo as elaborações críticas de José
de Alencar e Mário de Andrade marcado essa discus-
são nos contextos do Romantismo e do Modernismo.
Este artigo mostra como o dramaturgo brasileiro, no
contexto da modernização do teatro no Brasil e seus
desdobramentos, promoveu uma revolução na lingua-
gem falada nos palcos, realizando ainda aquela que tal-
vez seja a mais completa recriação plástica da prosódia
brasileira em nossa literatura.
Palavras-chave:
Nelson Rodrigues. Linguagem brasileira. Coti-
diano. Modernismo.
Falando nos palcos como nas ruas: a prosódia
brasileira no teatro de Nelson Rodrigues

Adriano de Paula Rabelo1

Muito incipientemente a partir de Gregó-


¹ Doutor em Literatura Bra-
sileira pela Universidade de rio de Matos em sua poesia satírica, na qual o
São Paulo; tem Pós-doutora-
do em Teoria Literária pela
poeta baiano lançava mão de coloquialismos e
Universidade Estadual de termos chulos correntes na Bahia de seu tempo,
Campinas e em História pela
Universidade de São Paulo. nossa literatura construiu uma verdadeira tra-
Email: aprabelo@hotmail. dição de busca por uma linguagem que expres-
com.
sasse a prosódia brasileira e incluísse, em toda a
sua amplitude, o vocabulário típico do Brasil. Em
dois momentos, houve verdadeiro engajamento
num projeto estético nacionalista que transfor-
mou essa busca de uma identidade linguística
brasileira na literatura em algo fundamental: o
Romantismo, ao longo do século XIX, no con-
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texto posterior à Independência; e va a usar uma ortografia bastante


o Modernismo, especialmente ao peculiar que não teve continuidade,
longo das décadas de 20 e 30 do sé- devemos ser naturalmente brasilei-
culo XX, no contexto da urbaniza- ros em nosso modo de nos exprimir:
ção do país e do deslocamento do
Acho engraçado essa mania de certa gente
eixo econômico para o Sudeste. As que pra ser duma nação carece do dinamismo
figuras de José de Alencar e Mário de qualquer ideia antagônica pra ser nacio-
nal. Bobagem. Não se trata de nacionalismo
de Andrade são fundamentais como reivindicador, minha gente. Isso é ridículo.
escritores que não apenas fizeram Se trata de ser brasileiro e nada mais. E pra
gente ser brasileiro não carece agora de estar
tentativas de abrasileiramento da se revoltando contra Portugal e se afastando
dele. A gente deve ser brasileiro não pra se
linguagem em suas obras literá- diferençar de Portugal porém porque somos
rias como teorizaram sobre isso. brasileiros. Brasileiros sem mais nada. Brasi-
leiros. Sentir, falar, pensar, agir, se exprimir
Num pós-escrito a Iracema, naturalmente. Como brasileiro. (ANDRADE,
replicando uma crítica do portu- 1990, p. 332)

guês Manuel Pinheiro Chagas,


para quem “a gramática é um pa- Nelson Rodrigues, que come-
drão inalterável a que o escritor çou a atuar no jornalismo em mea-
se há de submeter rigorosamen- dos dos anos 1920 e escreveu suas
te” (ALENCAR, 1977, p. 327), primeiras obras teatrais no início
escreve o autor de O Guarani: dos anos 1940, representa o auge
desse emprego natural da lingua-
Acusa-nos o Sr. Pinheiro Chagas a nós escri- gem brasileira na literatura. Em
tores brasileiros do crime de insurreição con-
tra a gramática de nossa língua comum. Em suas peças, contos, romances, crôni-
sua opinião, estamos possuídos da mania de cas, a linguagem prosaica mas fina-
tornar o brasileiro uma língua diferente do
velho português!/ Que a tendência, não para mente elaborada é uma expressão
a formação de uma nova língua, mas para a
transformação profunda do idioma de Por- do prosaísmo inerente à realidade
tugal, existe no Brasil, é fato incontestável. de seus personagens. Tanto que,
(ALENCAR, 1977, p. 329, grifo do autor)
numa análise da peça A Falecida,
Sábato Magaldi (2003, p. 74) tra-
Mário de Andrade, por sua
ta dessa questão: “Fiel ao meio que
vez, propõe que a linguagem brasi-
retrata, Nelson valoriza o absoluto
leira em geral – e a linguagem lite-
coloquialismo do diálogo. Ele não
rária em particular – façam um uso
teme, também, a gíria, e numa in-
natural dos recursos expressivos
crível intuição daquela que per-
correntes no Brasil, sem preocupa-
maneceria (e lá se vão várias déca-
ção com qualquer forma de oposi-
das), nenhuma réplica envelheceu”.
ção a Portugal. Para ele, que chega-

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A linguagem brasileira em locasse em cena a estruturação de


Nelson Rodrigues classes, os preconceitos, os tipos,
Em suas crônicas de jornal, a derrocada da família patriarcal e
Nelson Rodrigues costumava cri- da moral burguesa que se proces-
ticar o campo cultural esquerdista sava no Brasil durante seu tempo
das décadas de 1960 e 70 pela alie- de vida. Muito especialmente a lin-
nação em relação aos problemas guagem brasileira haveria de com-
brasileiros, preocupado que estava por, em seus trabalhos, esse pano
com questões ligadas ao Vietnã, a de fundo para o tratamento das
Cuba ou à China e não dando a de- questões humanas fundamentais.
vida atenção a problemas de luga- Quando se fala que as primei-
res como o Nordeste brasileiro ou ras obras do dramaturgo são marcos
a miséria nas periferias de nossas da modernização do teatro no país,
cidades. Outra vítima de sua crítica é preciso ter em mente que um dos
era o intelectual desconectado da aspectos fundamentais desse pro-
realidade do país, cujo paradigma cesso foi a mudança da forma como
era o sociólogo que desprezava o fu- os personagens falavam em cena.
tebol, fazendo críticas a esse espor- Em 1941, quando estreou A Mulher
te como sendo uma espécie de “ópio sem Pecado, primeira peça de Nel-
do povo”. Na visão de Nelson, era son Rodrigues, os palcos brasileiros
possível fazer toda uma interpre- eram dominados por vaudevilles,
tação do caráter nacional a partir revistas e comédias de costumes de
do comportamento dos jogadores autores nacionais, bem como dra-
brasileiros, o que ele mesmo reali- malhões de autores estrangeiros.
zava em seu trabalho como cronis- As falas nessas peças, pronunciadas
ta esportivo. Além disso, conside- em tom declamatório, marcavam-
rava simplismo tachar como “ópio -se por uma linguagem rebuscada,
do povo” uma atividade que desde pretensamente literária e alheia
seu início no Brasil tem provocado aos usos linguísticos correntes no
tremendo impacto social e cultural. Brasil. Chegava-se ao cúmulo de se
Reafirmando sempre essa preocu- cultivar em nosso teatro a dicção
pação com a realidade brasileira, portuguesa. Em suas memórias, o
era natural que Nelson Rodrigues, dramaturgo trata desse contexto e
mesmo fazendo um teatro cuja es- seu contraste com o que o público
sência estava na exploração de pro- carioca assistiu por ocasião da es-
blemas universais do homem, co- treia de Vestido de Noiva, em 1943:

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pornográfico. Isso, aliado ao enor-


O nosso teatro era ainda Leopoldo Froes. Sim,
ainda usava o colete, as polainas e o sotaque me sucesso de sua coluna de jornal
lisboeta do velho ator. E ninguém perdoaria a intitulada “A vida como ela é...”, em
desfaçatez de uma tragédia sem “linguagem
nobre”. Ao entrar em casa, eu não acredita- que ele escrevia contos cujos per-
va mais em mim mesmo. E me perguntava: sonagens eram tipos populares do
“Como é que fui meter gíria numa tragédia?”.
(RODRIGUES, 1993, p. 167) Rio de Janeiro, fez com que, a par-
tir de 1953 Nelson passasse a es-
Embora já nas primeiras pe- crever peças cuja ação estava muito
ças de Nelson Rodrigues seus per- bem localizada no tempo e no espa-
sonagens falassem num tom colo- ço. E seus personagens, em vez de
quial muito próximo da fala natural arquétipos, passaram a ser figuras
corrente no país, fazendo uso da muito reconhecíveis no cotidiano
prosódia brasileira e de um voca- da então capital do país. Em sua
bulário cotidiano – a ponto de ele maioria, eles vivem em bairros da
haver colocado gíria numa tragédia zona norte do Rio de Janeiro, per-
–, suas primeiras peças ainda não tencem à classe média baixa ou ao
incluíam sistematicamente a vida lumpemproletariado que vaga pela
diária e os tipos suburbanos do zona urbana carioca. Para que fos-
Rio de Janeiro, com seus trejeitos sem compostos com um mínimo de
linguísticos, sua gíria, seus suben- verossimilhança, eles precisavam
tendidos. Classificadas pelo crítico falar uma linguagem compatível
Sábato Magaldi como peças psico- com sua posição social, seu nível
lógicas e míticas, as obras escri- cultural, o lugar onde se localiza-
tas entre 1941 e 1951 se passavam vam na geografia do país e da cida-
fora do tempo histórico e de um de que habitavam, o tempo no qual
lugar geograficamente determiná- lhes tocou viver. Uma passagem de
vel. Ou tempo e lugar eram apre- A Falecida, em que Tuninho discu-
sentados de modo muito vago. De te com seus amigos de sinuca so-
toda forma, tais textos eram mui- bre a final do campeonato de fute-
to elaborados em sua concisão lin- bol no domingo seguinte é muito
guística como expressão mais bem- eloquente quanto a esse aspecto:
-acabada de sua tensão dramática.
TUNINHO – Vou te dizer mais: estou desem-
Várias peças da década de pregado e outros bichos. Quer dizer, na últi-
1940 foram censuradas, e o drama- ma lona. Mas estou tão certo, tão certo, que
vai ser uma barbada daquelas, que te juro,
turgo acabou por adquirir uma re- sob minha palavra de honra, que se eu tivesse
putação de autor sensacionalista e dinheiro, sabes o que eu faria, no domingo,
queres saber?

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OROMAR – Você é bom de bico! dificuldade da internacionalização


(Tuninho está numa verdadeira euforia.)
TUNINHO – Espera, ouve o resto, seu zebu! de seu teatro, embora ele seja um
Eu entrava no Maracanã. Muito bem. Vamos dos grandes dramaturgos do sécu-
dar, de barato, que umas 100 mil pessoas as-
sistam ao jogo. lo XX em todas as literaturas. Há
OROMAR – Cento e cinquenta mil!
PARCEIRO N° 1 – Menos! Menos! uma dificuldade enorme em tra-
PARCEIRO N° 2 – Mais! Mais! duzir essa linguagem para outros
TUNINHO – Seja 150 ou 200 mil pessoas.
Não importa. Até aí morreu o Neves. Pois eu, idiomas com a expressividade que
se tivesse o dinheiro, dinheiro meu, no bolso, ela tem no português brasileiro.
eu, sozinho, apostava com 200 mil pessoas no
Vasco. Havia de esfregar a gaita assim, na cara Nas 17 peças do dramaturgo,
das 200 mil pessoas, desacatando: “Seus cabe-
ças de bagre! Dois de vantagem e sou Vasco!”. percebe-se que o realismo-natura-
Te juro que ia fazer a minha independência, lismo de sua linguagem está estrei-
que ia lavar a égua! (RODRIGUES, 2003, p.
736) tamente ligado ao naturalismo com
que ele retrata a realidade. Segundo
Esse excerto é muito repre- Otto Maria Carpeaux (2010), Émi-
sentativo da forma como o drama- le Zola, um dos escritores que mais
turgo considerava a linguagem um influenciaram Nelson, teria sido, na
elemento essencial na composição literatura ocidental, um precursor
de seus personagens. Nessa con- não somente da abordagem da “vida
versa, que ainda hoje está presente como ela é” na literatura, como
em milhares de botecos brasileiros, também da “linguagem como ela é”:
com poucas variações, está repro-
[...] a liberdade conquistada por ele: a de dizer
duzido o ritmo ágil do diálogo, as tudo, e dizê-lo com franqueza; até um roman-
gírias, coloquialismos, frases feitas cista tão fino como Henry James, o modelo
das vanguardas de hoje, festejou Zola como o
e expressões populares tão presen- libertador que arrancou o gênero às mãos das
damas, dos dois sexos, que escrevem virgini-
tes nas falas do cotidiano, muito bus puerisque, excluindo qualquer experiên-
especialmente no âmbito mascu- cia adulta. (...) Um dos progressos em relação
a Balzac é a adoção da linguagem plebeia,
lino, informal, de nível educacio- autêntica, do povo, na vida cotidiana, essa
nal baixo e classe social desprivi- linguagem que assustou os contemporâneos
e é uma das conquistas mais importantes de
legiada. Sabendo-se que a peça se Zola. (CARPEAUX, 2010, p. 1929-30)
passa no Rio de Janeiro, imagina-
-se inclusive o falar carioca de Tu- A conquista linguística de
ninho e seus amigos, com o ritmo Nelson Rodrigues está para o te-
peculiar e o típico “s” chiado. Essa atro brasileiro como a de Émile
brasilidade da linguagem dos per- Zola está para o romance francês.
sonagens de Nelson Rodrigues Ambos abriram janelas para o in-
tem sido a principal razão para a finito a todos os autores que vie-

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ram depois deles no teatro e no ro- articulista nas mais diversas seções
mance de seus respectivos países. dos periódicos para os quais tra-
balhou, leitor assíduo de folhetins
Falando nos palcos como nas e autor de alguns deles, homem de
ruas televisão e figura conhecida nos
Uma leitura do teatro com- meios populares do Rio de Janeiro
pleto de Nelson Rodrigues com de seu tempo, o próprio métier de
foco no modo como seus persona- Nelson Rodrigues lhe proporcio-
gens se expressam revela uma ri- nou um profundo conhecimento da
quíssima exploração da linguagem linguagem falada no cotidiano do
coloquial brasileira. Toda sorte de país, muito especialmente aquela
coloquialismos, ditos populares, mais informal. É interessante fazer
clichês linguísticos, gírias, frases um levantamento e apresentar uma
feitas, subentendidos, tabuísmos, amostragem dos principais recur-
interjeições, insultos, sotaques, es- sos utilizados por ele desde o início
trangeirismos, desvios, tonalida- da década de 1940, em suas peças.
des compõem as falas de seus per- Todas as passagens citadas se en-
sonagens. Ele chegava a defender contram na edição de 2003 do Tea-
a exploração plástica do “erro” de tro Completo, publicada no Rio de
português, pois, a seu ver, “nunca Janeiro pela editora Nova Aguilar.
se falou tão errado, nem se escre-
veu tão errado. Mas, coisa curio- Orações incompletas com
sa. Talvez por isso mesmo a lín- subentendidos
gua brasileira ganhou plasticidade, Na linguagem coloquial co-
sim, lucramos em música verbal” tidiana é muito comum que, numa
(RODRIGUES, 1996, p. 115). conversação, o falante diga as coisas
A incorporação da expressão pela metade, sendo que o contexto
linguística brasileira pela literatu- deixa bastante claro o sentido com-
ra, aspiração de escritores como pleto da elocução. No entanto, isso
José de Alencar e Mário de Andra- é extremamente raro na literatura,
de, encontrou no autor de O Bei- uma vez que o escritor precisaria
jo no Asfalto um de seus epítomes. alongar-se muito para descrever e
Filho de um jornalista e dono de fixar o contexto que tornaria clara
jornal, tendo trabalhado nas reda- essa expressão pela metade. Nelson
ções desde a adolescência, atuando Rodrigues, no entanto, conseguin-
como repórter de polícia, redator e do afixar o contexto muito conci-

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samente em poucas rubricas, faz incorporar definitivamente a nossa


um uso muito habilidoso dessas su- fala, em todos os quadrantes do país,
pressões, que são muito recorren- transcendendo o âmbito da época e
tes em seu teatro. À peculiaridade dos grupos em que surgiram. Mes-
de ser um dos raros escritores a mo a pequena parte dessas expres-
utilizar tais falas como recurso ex- sões que caducou é perfeitamente
pressivo, junta-se a maneira curio- compreensível ainda hoje, fazendo
sa como ele utiliza a pontuação. parte de uma espécie de memória
Em vez de reticências para indicar linguística do brasileiro comum.
a parte suprimida, ele termina a Aqui está uma amostragem de uma
frase abruptamente com um pon- profusão de gírias ditas pelos per-
to final, o que intensifica o efeito sonagens de Nelson Rodrigues:
de surpresa. Eis alguns exemplos:
- um bucho [pessoa muito feia] (Viúva, po-
rém Honesta, p. 440)
- Meu pai que não se. Ou você não me conhe- - potoca [mentira] (Viúva, porém Honesta, p.
ce? Um sujeito que. (Anti-Nelson Rodrigues, 457)
p. 474)2 - tem bossa [vocação, talento] (Anti-Nelson
- Quando Leleco me chamou, nem me passou Rodrigues, p. 499)
pela cabeça que. Não repare, mas. (Anti-Nel- - bicha [homossexual] (Anti-Nelson Rodri-
son Rodrigues, p. 492) gues, p. 502)
- Polícia é uma gente que. (O Beijo no Asfalto, - um biju [bonita] (A Falecida, p. 738)
p. 955) - trouxa [estúpido] (A Falecida, p. 741)
- bode [problema] (A Falecida, p. 752)
- pinimba [birra] (A Falecida, p. 774)
Gíria - fuleiro [medíocre, reles] (A Falecida, 2003,
Ao recriar literariamente a p. 777)
- craniar [elaborar, tramar] (Perdoa-me por
linguagem coloquial brasileira, o Me Traíres, 2003, p. 785)
- broto [moça, adolescente] (Os Sete Gati-
dramaturgo chegou ao ponto de nhos, 2003, p. 834)
aproveitar, em suas obras, o rico - Isso pra ele é pinto [é facílimo] (Os Sete Ga-
tinhos, 2003, p. 868)
manancial das gírias, mesmo sob - bafafá [desordem, confusão] (Boca de Ouro,
o risco do rápido envelhecimento 2003, p. 885)
- banana [covarde] (Boca de Ouro, p. 903)
e abandono dessas expressões por - gaita [dinheiro] (Boca de Ouro, p. 908)
- tutu [dinheiro] (Bonitinha, mas Ordinária,
parte de nossa comunidade linguís- p. 1026)
tica. Contudo, o sentimento íntimo - surubada [orgia] (Toda Nudez Será Castiga-
da, p. 1054)
que ele possuía das formas de ex- - erva [dinheiro] (Toda Nudez Será Castiga-
pressão brasileiras era tal que mui- da, p. 1055)
- bolha [estúpido] (Toda Nudez Será Castiga-
tas gírias dos anos 1950 e 60 utiliza- da, p. 1073)
- tira [policial] (Toda Nudez Será Castigada,
das em suas peças acabaram por se p. 1095)

2
Todos os exemplos e trechos de peças apresentados no decorrer do artigo foram retirados de: RODRIGUES, Nelson.
Teatro Completo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.

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- cabrão [marido traído] (Toda Nudez Será riquinha, adeusinho, instantinho.


Castigada, p. 1096)
- manja [entende] (Serpente, p. 1120) Essa exuberância do dimi-
nutivo chega a se refletir nos tí-
Diminutivos tulos das peças, como em Os Sete
Característica marcante do Gatinhos e Otto Lara Resende ou
português brasileiro é o uso fre- Bonitinha, mas Ordinária, e tam-
quente de diminutivos. Nas falas dos bém nos nomes de muitos persona-
personagens de Nelson Rodrigues, gens: D. Senhorinha, Oswaldinho,
eles são abundantes, não se limi- Serginho, D. Aninha, Caveirinha,
tando à derivações de substantivos. Mariazinha Bexiga, Euzebinho,
Adjetivos, advérbios e numerais Totinha, Tuninho, Selminha, Zezi-
também vão para o diminutivo. Na nho, Glorinha, Candinha, Detinha,
maioria das vezes há uma relação Olegarinha, D. Marianinha, Clari-
de afetividade com a coisa, a qua- nha. Essa galeria de nomes já é, em
lidade ou o processo expresso no si, toda uma sociologia do Brasil.
diminutivo. Outras vezes a relação Tanto que, numa discussão com
é de desprezo. E outras vezes ainda o marido sobre o filho problemá-
ele exprime simplesmente tamanho tico, Tereza, em Anti-Nelson Ro-
reduzido. Um levantamento feito drigues, acusa-o: “Você diz Oswal-
nas 17 peças do dramaturgo, reve- do, nunca Oswaldinho. Não faz a
lou o emprego de aproximadamente seu filho a graça de um diminuti-
200 diminutivos por seus persona- vo.” (RODRIGUES, 2003, p. 475).
gens. Uma rápida amostragem re-
vela a variedade e os diferentes pe- Superlativos
sos semânticos de tais diminutivos: Outra derivação muito co-
Tudinho, nadinha, gracinha, mum, contando-se a várias dezenas
arzinho, pertinho, todinha, unzinho, no teatro de Nelson Rodrigues, é o
bijuquinha, gurizinho, forcinha, superlativo, em especial o sintéti-
peitinhos, pouquinho, coitadinha, co. Numa obra em que as paixões
oraçãozinha, horinha, tiquinho, se apresentam em ebulição, em
quentinho, covinha, juntinho, bo- que personagens paroxísticos se
binho, ensopadinho, sentadinha, mostram em situações-limite, uma
recentinha, papinha, mulatinha, abundante superlativação nas falas
buchinho, obrigadinha, costinhas, é uma expressão apropriada de seus
sorrisinho, vigaristazinha, roman- abismos. Outra rápida amostragem
cezinho, alteraçõezinhas, fresqui- revela como o dramaturgo não ti-
nho, xicrinhas, lagoinha, ceguinho,

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nha medo de fazer largo uso do ad- pronomes retos são utilizados para
jetivo num tempo em que a litera- complementar o sentido de verbos,
tura dita “sofisticada” o abominava: pronomes objetivos indiretos são
Falsíssima, divertidíssima, utilizados em lugar de pronomes
bravíssimos, chatérrimo, sabidíssi- diretos, verbos não concordam com
ma, rapidíssima, treinadíssimo, ho- sujeitos, proliferam-se reduções,
nestíssima, viuvíssima, bestíssimo, corruptelas, redundâncias. Exata-
engomadíssimo, esganiçadíssimo, mente como na fala cotidiana e in-
Maria Santíssima, excitadíssimo, formal inclusive dos mais cultiva-
grosseiríssimo, castíssimo, exalta- dos. Sua adequação no contexto em
díssimo, esquisitíssimo, intrigadíssi- que são utilizados é tamanha que
mo, fabulosíssimo, indecentérrimo. quase nem são percebidos numa
leitura corrente ou em representa-
Desvio expressivo da gramática ções das peças. Algumas vezes che-
normativa gam a criar efeitos cômicos. Apare-
Seja como forma de acolhi- cendo algumas dezenas de vezes no
mento da linguagem das ruas em conjunto das peças, aqui estão al-
seu teatro, seja como um elemen- guns exemplos mais significativos:
to de composição de personagens
- Quedê? (Anti-Nelson Rodrigues, Álbum de
socialmente desprivilegiados em Família, Boca de Ouro e O Beijo no Asfalto,
situação de informalidade, é mui- pp. 478, 545, 890, 945)
- O doutorzinho pode ser bão. (Anti-Nelson
to comum que Nelson Rodrigues Rodrigues, p. 494)
reproduza, nas falas de suas pe- - Me arresponsabilizo. (Álbum de Família, p.
527)
ças, desvios da gramática normati- - Tu me paga. (...) Tu é ruim. (Álbum de Fa-
mília, p. 557)
va bastante correntes no Brasil. A - Precisa que eu lhe acompanhe? (Anjo Ne-
expressividade dessas formas em gro, p. 575)
- Lhe levo alguma coisa, madame? (Senhora
sua dramaturgia é mais uma con- dos Afogados, p. 714)
firmação do axioma linguístico de - Té logo! (A Falecida, p. 753)
- Deixa ele! (Os Sete Gatinhos, p. 838)
que cada situação particular requer - ...eu nunca “sub” quem foi minha mãe.
(Boca de Ouro, p. 904)
uma adequação do discurso. Nas - A falecida morreu. (Boca de Ouro, p. 904)
situações em que tais desvios da - Então, meus para-choques! (Boca de Ouro,
p. 930)
norma padrão se apresentam, ditos - Nunca vi home tão macho. (A Serpente, p.
por quem são ditos, eles são perfei- 1121)

tamente adequados. Brasileiramen-


te, em muitas ocasiões frases são Interjeições
iniciadas com pronomes oblíquos, Personagens como os de Nel-
son Rodrigues, que costumam agir

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e reagir por impulso, movidos por de 1940 a 60, termos dessa língua
paixões e emoções extremas, natu- também se apresentam nas falas
ralmente proferem muitas inter- dos personagens do dramaturgo.
jeições. A maioria delas são mui- Algumas vezes tais palavras são
to típicas da linguagem informal. modas linguísticas de época, ou-
Algumas se tornaram pouco usu- tras vezes são forma de distancia-
ais hoje em dia, como revelam al- mento social, como se vê abaixo:
guns itens da amostragem abaixo:
- Darling! Darling! (Valsa N°. 6, p. 418)
- Speaker (um dos personagens de Álbum de
- Cáspite! (Viúva, porém Honesta, pp. 404, família)
435, 436, 437, 438, 457, 458 e 464) - Good-bye (Álbum de Família, p. 522), bye-
- Batata! (Viúva, porém Honesta, pp. 436 e -bye (A Falecida, p. 736)
448) - mise-en-scène (Álbum de Família, p. 532)
- Carambolas! (Viúva, porém Honesta e A Fa- - doublée (Álbum de Família, p. 545)
lecida, pp. 439, 459 e 743) - Au revoir (Viúva, porém Honesta, p. 462)
- Ora, pipocas! (Viúva, porém Honesta e A - boutade (Boca de Ouro, p. 912)
Falecida, pp. 440 e 775), Ora veja! (Viúva, - Flash (O Beijo no Asfalto, p. 951)
porém Honesta e A Falecida, pp. 450 e 744), - rendez-vous (Toda Nudez será castigada, p.
Ora essa! (Álbum de Família e Perdoa-me por 1057)
Me Traíres, pp. 567 e 813), Ora, que pinoia!
(Senhora dos Afogados e Perdoa-me por Me
Traíres, pp. 715 e 795), Ora, bolas! (A Faleci-
da, p. 743), Ora viva! [ao encontrar alguém] Sotaques
(Perdoa-me por Me Traíres, p. 803), Ora, vá! No teatro de Nelson Rodri-
(Boca de Ouro e Bonitinha, mas Ordinária,
pp. 893 e 1036) gues, há a presença de alguns per-
- Ih! (Doroteia, p. 627), Oh! (Doroteia e A Fa- sonagens estrangeiros, quase sem-
lecida, pp. 628 e 744), Ah! (Boca de Ouro),
Chi! (A Falecida, 736), Oba! (A Falecida, p. pre parte do mundo da prostituição
738), Uai! (A Falecida, p. 740), Ué! (A Fale-
cida, p. 742), ...hem? (A Serpente, p. 1120), ou com ele relacionado, que falam
Puxa! (Perdoa-me por Me Traíres, p. 783) português com sotaque. Em geral
- Francamente! [reprovação] (Boca de Ouro,
p. 906) eles apresentam problemas de con-
cordância de masculino e feminino
Palavras e expressões do inglês e e de flexão de verbos, além de pro-
do francês nunciarem o “r” gutural à maneira
Sendo a cultura brasilei- francesa. Como as peças se pas-
ra das classes médias e alta muito sam no Rio de Janeiro, muitas de-
permeável a influências estrangei- las retratando as classes populares,
ras, a linguagem do cotidiano tem imagina-se que seus personagens
assimilado palavras estrangeiras, falam a variante carioca do portu-
muito especialmente aquelas ad- guês brasileiro, marcada pelo “s”
vindas do inglês. Porém, como a chiado. Ao menos em um momento,
influência francesa ainda era re- o dramaturgo reproduz, na escri-
lativamente presente nas décadas ta, uma palavra pronunciada dessa

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maneira. Eis alguns momentos em gues, p. 481)


- Negra ordinária, preta! (Anjo Negro, p. 583)
que os sotaques se fazem presentes: - bestalhona (Perdoa-me por Me Traíres, p.
796)
- O esparadrapo na testa foi algum acidente - Cachorra! (Os Sete Gatinhos, p. 839)
com seu senhorra? (Viúva, porém Honesta, p. - Boca de Ouro era um cachorro! Nunca foi
436) homem! (Boca de Ouro, p. 902)
- Eu jura! (Viúva, porém Honesta, p. 441) - Rua! Rua! Suas galinhas! (Boca de Ouro, p.
- Querro muito respeito na minha casa. Bar- 915)
rulho lá forra. (Senhora dos Afogados, p. 715) - Você é uma piranha! (Bonitinha, mas Ordi-
- Eu não obriga ninguém... No meu casa tudo nária, p. 1016)
espontâneo... (Perdoa-me por Me Traíres, p. - Sua vaca! (Bonitinha, mas Ordinária, p.
785) 1041)
- Eu ser ferido do guerra, do guerra do Kaiser,
no Primeiro Grande Guerra! (Os Sete Gati-
nhos, p. 866) Indignação
- Vassssssco! (A Falecida, p. 779) Seja como reação a um insul-
to, seja como expressão de sua irri-
Insultos tabilidade, a manifestação de indig-
Num teatro que encena tantos nação dos personagens de Nelson
conflitos de alta intensidade entre Rodrigues também contém o vo-
as pessoas, é natural que elas se in- cabulário do cotidiano brasileiro:
sultem de maneira acerba. Muitos
vitupérios correntes nas falas das - Mulher da zona, vírgula! (Os Sete Gatinhos,
p. 834)
peças de Nelson Rodrigues reme- - Eu acabo perdendo a porcaria desse cinema.
tem a seu naturalismo, enfatizando (Os Sete Gatinhos, p. 843)

a animalização de seus persona-


gens. Além de as rubricas indica- Tabuísmos ditos ou insinuados
rem frequentemente seus “uivos”, Nelson Rodrigues sempre
“mugidos”, “berros”, a equiparação utilizou termos chulos em suas pe-
com animais enfatiza seu rebaixa- ças de forma muito cuidadosa. Ele
mento e sua desumanização. Ao tra- chegou mesmo a escrever uma crô-
zer para o palco formas de injuriar nica intitulada “A doença infantil
muito correntes no Brasil, o dra- do palavrão” (RODRIGUES, 1995,
maturgo expõe cristalinamente os p. 31-33) em que critica o uso ex-
nossos mais sórdidos preconceitos, cessivo e apelativo de termos vul-
como se vê na amostragem abaixo: gares no teatro do final dos anos
1960. Em seu caso, eles são utili-
- Entra, seu zebu! (Viúva, porém Honesta, p. zados estritamente como recurso
433)
- Você é um cavalo. (Anti-Nelson Rodrigues, expressivo, quando a ação dramá-
p. 474) tica os justifica. Ainda que con-
- Sou canalha, seu veado. (Anti-Nelson Ro-
drigues, p. 485) siderasse todas as palavras como
- Meu prezado chifrudo (Anti-Nelson Rodri-
rigorosamente lindas, sendo nós

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os responsáveis por corrompê-las, Confusão


apenas em suas últimas peças ele Em alguns momentos, os
admitiu empregar tabuísmos, como personagens se mostram confusos,
se vê na amostra abaixo, que abran- sem saber como se expressar:
ge grande parte do volume desses
- Acho um apelido tão não sei como! (Os Sete
termos e expressões em seu teatro: Gatinhos, p. 830)
- Sabe que teu marido ficou tão! (O Beijo no
- o rabo [a região glútea] (Anti-Nelson Ro- Asfalto, p. 947)
drigues, p. 485)
- O filho de uma grandessíssima que fez o que
fez com Maninha. (Os Sete Gatinhos, p. 864) Formas de tratamento
- Sou um ex-contínuo. E você um filho da
puta! Seu filho da puta! (Bonitinha, mas Or- O modo como os personagens
dinária, p. 1009) de Nelson Rodrigues se tratam é
- Você pensa que toda noiva é cabaço. (Boni-
tinha, mas Ordinária, p. 1024) bastante revelador da qualidade de
- Que merda! (Toda Nudez Será Castigada, p. suas relações ou mesmo do siste-
1069)
- Vai-te pra puta que te pariu! (A Serpente, ma de moralidade em que se mo-
p. 1112)
- trepar [fazer sexo] (A Serpente, p. 1120) vimentam. Marido e mulher, por
exemplo, quase sempre se tratam
Expressões de pudor por “meu filho”, “minha filha” ( em
Num mundo tão marcado A Mulher sem Pecado na páginas
pelo confronto dos impulsos sexu- 305; em Vestido de Noiva, nas pá-
ais dos personagens com um código ginas 359, 379 e 387; em Anti-Nel-
moral muito estrito, complemen- son Rodrigues na página 483). O
tado por uma vigilância social de prosaísmo e o tom paternal/mater-
uns sobre os outros, naturalmen- nal dessa forma de tratamento são
te a linguagem refletirá um senti- a própria expressão do fim do amor
mento de pudor diante da expres- entre o casal. O falso paralítico de
são de algo embaraçoso. É o que A Mulher sem Pecado, Olegário,
se pronuncia (ou que não se pro- tem consciência disso a ponto de
nuncia) nas seguintes passagens: verbalizá-lo: “Acho graça dessa ma-
nia que você tem de me chamar de
- Estou te achando meio assim. (Anjo Negro, “meu filho”! (...) Interessante isso.
p. 604)
- Quem tem criança, sabe como é! (A Faleci- Você não quis ter filhos, e quando
da, p. 734) acaba cisma de ser maternal comi-
- Coragem para ir a um lugar assim, assim...
(Os Sete Gatinhos, p. 830) go! (...) Você deu para me chamar de
- O beijo é uma coisa que. (Bonitinha, mas
Ordinária, p. 1030) “meu filho” depois que eu fiquei as-
sim. Foi, sim!” (p. 305). Por fim, um
pequeno levantamento de outras

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maneiras de tratamento comuns - Pões a mão no fogo? (Viúva, porém Hones-


ta, p. 443)
nas obras de Nelson Rodrigues: - figurinha difícil da Bala Ruth (Viúva, porém
Honesta, p. 446)
- A palavra “mulher” em sentido pejorativo: - Sossega o periquito! (Viúva, porém Hones-
“Oh! Isso é termo? “Mulher”? (Vestido de ta, p. 458)
Noiva, p. 375) - um simples pé-rapado, um borra-botas (Vi-
- Linguagem infantilizada: “Está com dodói, úva, porém Honesta, p. 461)
coração? Diz pro vovô, diz?” (...) Coração, - Não entendo esse bicho de sete cabeças.
nenhum professor te fez uma festinha? (...) (Anti-Nelson Rodrigues, p. 492)
“Vem cá, meu bibelô!” (Viúva, porém Hones- - não dou mais no couro (Anti-Nelson Rodri-
ta, p. 448, 453 e 463) gues, p. 515)
- Aproximação e familiaridade: “titio” (Per- - Eu sou burra que dói! (A Falecida, p. 735)
doa-me por Me Traíres, p. 818), “meu chapa” - Caixão mixa! (A Falecida, p. 738)
(Boca de Ouro, p. 882), “Vamos entrar, batu- - pode ser o raio que o parta (A Falecida, p.
ta!” (Boca de Ouro, p. 916), “Esse danado sabe 741)
que eu gosto dele!” (Boca de Ouro, p. 919) - no dia de são Nunca (A Falecida, p. 753)
- Distanciamento ou repreensão: “Oh animal, - fazer a barba e o bigode [fazer tudo] (A Fa-
aquele!” (Boca de Ouro, p. 901) lecida, p. 755)
- ficar com cara de tacho, besta (A Falecida,
p. 757)
- deixa de conversa mole (A Falecida, p. 758)
Frases feitas e expressões - descascando a lenha [desancando] (A Fale-
coloquiais cida, p. 762)
- nunca, na vida, vi mais gordo (A Falecida,
Há tal abundância de frases p. 763)
feitas e expressões coloquiais no - Podre de rico! (...) Erva ali é mato! (A Fale-
cida, p. 766)
teatro de Nelson Rodrigues que, - Quero ser mico de circo. (A Falecida, p. 776)
- Está na hora da onça beber água! (A Faleci-
pelos limites deste texto, a amos- da, p. 778)
tragem abaixo possui dimensões - dar para trás [não fazer o combinado] (Per-
doa-me por Me Traíres, p. 787)
mínimas. Trata-se de toda uma - Você vai ter a santíssima paciência (Perdoa-
profusão de termos, expressões e -me por Me Traíres, p. 795)
- Dobre a língua. (Perdoa-me por Me Traíres,
ditos característicos da linguagem p. 796)
- Deve estar subindo pelas paredes. (Perdoa-
falada que até o advento e afirma- -me por Me Traíres, p. 798)
ção da estética modernista não se - tomar um beiço [não receber uma dívida]
(Boca de Ouro, p. 882)
viam escritos, nem mesmo em pe- - fechar o paletó [morrer] (Boca de Ouro, p.
ças teatrais, gênero em que os per- 883)
- Sei troços do arco-da-velha (Boca de Ouro,
sonagens dialogam entre si. Nas p. 886)
- aquilo não é flor que se cheire (Boca de
obras do dramaturgo, a recriação Ouro, p. 887)
estética da linguagem brasileira - Vira e mexe, me espinafrava. (Boca de Ouro,
p. 889)
foi até seu limite máximo. É o que - Que folga! E ora veja! (Boca de Ouro, p. 917)
se evidencia em falas como estas: - comi o pão que o diabo amassou (Boca de
Ouro, p. 933)
- você está comendo gambá errado (Boca de
- E tira o cavalo da chuva! (Valsa N°. 6, p. 417) Ouro, p. 935)
- O otorrino parece não ter nada com o peixe. - O cara não dá uma dentro! (O Beijo no As-
(Viúva, porém Honesta, p. 437) falto, p. 975)
- Oh, você tirou o meu rebolado! (Viúva, po- - Escracha, que eu já estou de saco cheio! (O
rém Honesta, p. 441) Beijo no Asfalto, p. 976)

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- a maior barbada (O Beijo no Asfalto, p. 982) que pratica aborto] (Perdoa-me por Me Tra-
- É de lascar! (Bonitinha, mas Ordinária, p. íres, p. 794)
995)
- um puxa-saco (Bonitinha, mas Ordinária, p.
997) Frases surpreendentes
- não apita [não tem vez de opinar ou decidir]
(Bonitinha, mas Ordinária, p. 1001) Nelson Rodrigues era um
- no peito [num ímpeto, sem pensar] (Boniti- grande frasista, de modo que os
nha, mas Ordinária, p. 1002)
- e fizeram miséria [fizeram de tudo] (Boniti- aforismos espalhados por suas
nha, mas Ordinária, p. 1004)
- faz isso com o pé nas costas (Bonitinha, mas obras circulam hoje por antologias
Ordinária, p. 1042) e alguns deles são repetidos no co-
- E eu fui para cucuia! (Toda Nudez Será Cas-
tigada, p. 1053) tidiano brasileiro como se fossem
- a senhora me recebe com quatro pedras provérbios populares. Muitas vezes
(Toda Nudez Será Castigada, p. 1076)
- Isso aqui não é a casa da mãe Joana! (Toda ele colocou frases de impacto na
Nudez Será Castigada, p. 1087)
boca de seus personagens. O efeito
é quase sempre de estranhamento
Comparações ou metáforas diante de uma sentença insólita,
esdrúxulas ou surpreendentes sensacionalista, bem-humorada.
Como parte de sua explo- Elas proliferam em seu teatro e aqui
ração do grotesco, Nelson Rodri- se apresenta uma pequena amostra:
gues frequentemente faz compa-
rações ou se utiliza de metáforas - Só acredito em mulher honesta com úlcera.
(Viúva, porém Honesta, p. 454)
muito surpreendentes, capazes de - Bobo é aquele que ama sem esparadrapo.
deixar o leitor/espectador de suas (Viúva, porém Honesta, p. 469)
- O sexo é uma selva de epiléticos. (Anti-Nel-
peças perplexo ou de arrancar-lhe son Rodrigues, p. 495)
o riso. Note-se que essa propensão - Só os imbecis têm medo do ridículo. (Anti-
-Nelson Rodrigues, p. 508)
a comparações e metáforas extra- - Teu hálito é bom demais para uma mulher
honesta. (Doroteia, p. 636)
vagantes também é muito comum - Espinha em mulher é bom sinal! Não acredi-
na linguagem do cotidiano. Eis to em mulher de pele boa. (Doroteia, p. 644)
- O verdadeiro defloramento é o primeiro
alguns exemplos em suas peças: beijo na boca. (Perdoa-me por Me Traíres, p.
809)
- Ele deu arrancos antes de morrer, como um - A adúltera é mais pura porque está salva do
cachorro atropelado. (Vestido de Noiva, p. desejo que apodrecia nela. (Perdoa-me por
360) Me Traíres, p. 812)
- Essa cidade tem uma imaginação de balde - Amar é ser fiel a quem nos trai. (Perdoa-me
de ginecologista. (Viúva, porém Honesta, p. por Me Traíres, p. 813)
453) - Eu sou o cínico da família. E os cínicos en-
- mais sujo do que pau de galinheiro (Anti- xergam o óbvio. (Toda Nudez Será Castigada,
-Nelson Rodrigues, p. 485; O Beijo no Asfal- p. 1055)
to, p. 945)
- Sou uma múmia, com todos os achaques das
múmias. (Anti-Nelson Rodrigues, p. 506) Imagens poéticas
- És meiga como uma prostituta! (Anjo Ne- O naturalismo do dramatur-
gro, p. 622)
- fazedor de anjos [médico ou outra pessoa go costuma ser temperado, aqui

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e ali, pela evocação de imagens - diz isso, apenas uma palavra basta: “Cabrão”.
Só, nada mais! (Toda Nudez Será Castigada,
poéticas que contrastam com o p. 1096)
prosaísmo das situações e da lin-
guagem geralmente expostos em Esse levantamento dos prin-
seu teatro. Elas costumam surgir cipais recursos linguísticos utiliza-
como pérolas na lama da degra- dos por Nelson Rodrigues em suas
dação humana exposta por ele: peças, a fim de recriar em cena a
realidade brasileira “como ela é”,
- Meus gritos batiam nas paredes como pássa-
ros cegos. (Valsa N°. 6, p. 400) revela a extensão e a profundida-
- Chovia, sim... E quando chove em cima das de da revolução promovida por ele
igrejas, os anjos escorrem pelas paredes...
(Valsa N°. 6, p. 406) no teatro brasileiro. Mesmo a lite-
- Num enterro sempre sobra uma flor. (Anjo
Negro, p. 590) ratura brasileira em sentido mais
- Ah, se visses os ventos ajoelhados diante da amplo, embora tenha superado
ilha! (Senhora dos Afogados, p. 697)
- Então fica no ar um grito em flor. (Senhora todos os resquícios do preciosis-
dos Afogados, p. 706) mo parnasiano do início do século
XX e tenha se utilizado majorita-
Metalinguagem riamente de uma linguagem mar-
Por fim, em muitas ocasi- cada por uma simplicidade ela-
ões os personagens de Nelson Ro- borada, só muito raramente têm
drigues demonstram uma clara assimilado a linguagem do cotidia-
consciência da linguagem que fa- no na extensão e na profundidade
lam, a ponto de fazerem observa- realizada por Nelson Rodrigues.
ções de natureza metalinguística. Hoje, passadas quase quatro
Isso ocorre algumas dezenas de décadas da morte dramaturgo, seus
vezes em sua dramaturgia, e aqui personagens continuam a falar com
se apresentam alguns exemplos: todo o frescor da linguagem brasi-
- Esculhambação é a palavra mais feia da lín-
leira atual. Mesmo quando muda-
gua. (Anti-Nelson Rodrigues, p. 478) rem extensivamente os coloquia-
- E você quase não fala. Tudo sai de você aos
bocadinhos como titica de cabra. Fala, rapaz! lismos, as gírias, as frases feitas, os
(Bonitinha, mas Ordinária, p. 1009) tabuísmos, estrangeirismos e cor-
- Mas não fala bonito! (...) Eu não gosto de
homem que fala bonito! (Bonitinha, mas Or- ruptelas que frequentam a nossa
dinária, p. 1021) expressão, a linguagem recriada es-
- Esse nome, não! Não diz essa palavra! Essa
palavra, não! Posso ser vagabunda, ordinária, teticamente pelo escritor brasileiro
tudo o que você quiser. (Bonitinha, mas Or-
dinária, p. 1024) permanecerá vívida em suas peças.
- Essas expressões! (Bonitinha, mas Ordiná- A língua que se desgasta é a que fa-
ria, p. 1024)
- Não fala assim que dá azar! (Toda Nudez lamos aqui, fora da literatura, em
Será Castigada, p. 1055)

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nosso cotidiano. Não falamos mais


como os personagens de Machado
de Assis, mas a linguagem utiliza-
da por eles permanece fulgurante e
muito expressiva em suas histórias.
Nenhum de nós, cidadãos urbanos
do Brasil – nem seguramente um
habitante das zonas sertanejas de
Minas Gerais de hoje –, fala como
os personagens de Guimarães
Rosa, mas quanta virtude linguís-
tica segue presente em suas obras.
Este é o destino da linguagem fala-
da nas peças de Nelson Rodrigues.

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referências

ALENCAR, José de. Romances Ilustrados de José de Alencar: O Guarani, Irace-


ma, Ubirajara - Volume 1. Rio de Janeiro: José Olympio/Brasília: Instituto Nacio-
nal do Livro, 1977.

ANDRADE, Mário de. Esboço para a Gramatiquinha da Fala Brasileira. In: PIN-
TO, Edith Pimentel (Org.). A Gramatiquinha de Mário de Andrade: Texto e Con-
texto. São Paulo: Duas Cidades, 1990.

CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental - Volume III. Brasília:


Edições do Senado Federal, 2010.

MAGALDI, Sábato. A peça que a vida prega. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro
Completo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.

RODRIGUES, Nelson. Teatro Completo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.

______. A Menina sem Estrela: Memórias. São Paulo: Companhia das Letras,
1993.

______. O Remador de Ben-Hur: Confissões Culturais. São Paulo: Companhia


das Letras, 1996.

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Abstract

Regarding language, Nelson Rodrigues’ theatre is the culmination of a historic process


related to assimilating Brazilian language in literature. All along the centuries, there have
been attempts to “Brazilianize” the literary expression. The criticism of José de Alencar
and Mário de Andrade are important landmarks that came up in the contexts of Roman-
ticism and Modernism. This article shows how Rodrigues, involved in the modernization
of theatre in Brazil, made a true linguistic revolution onstage and accomplished the most
complete plastic recreation of Brazilian prosody in literature.

Keywords

Nelson Rodrigues. Brazilian language. Daily life. Modernism.

Pitágoras 500, Campinas, SP, v. 9, n.2, [17], p. 196 - 214, jul. - dez. 2019 214
Representações renascen-
tistas e góticas na tragé-
dia moderna: uma análise de
A História Trágica do Dou-
tor Fausto, de Christopher
Marlowe

Resumo >

Christopher Marlowe escreveu A História Trá-


gica do Doutor Fausto para o teatro renascentista
André Luis Gomes

inglês, utilizando-se de noções próprias da tragédia


Fábio Ramos Paz

moderna, além de adicionar elementos sobrenaturais


à sua obra. A presença de componentes fantásticos na
peça de Marlowe representa aflições da sociedade re-
nascentista, sendo algo capaz de suscitar o medo em
seus apreciadores, um sentimento intrínseco ao Góti-
co.

Palavras-chave:
Renascimento. Tragédia. Gótico.
Representações renascentistas e góticas na
tragédia moderna: uma análise de A História
Trágica do Doutor Fausto, de Christopher
Marlowe

Fábio Ramos Paz1


André Luis Gomes2

Introdução: O renascimento inglês em


¹ Mestrando em Literatu-
ra pelo Programa de Pós- meio a elementos góticos
-graduação em Literatura
(Póslit) da Universidade de
O movimento denominado “Renascimen-
Brasília (UnB). Graduado to” surgiu na Itália do século XIV. A partir
em Letras - Inglês e Litera-
turas de Língua Inglesa pela do momento em que o ser humano começou
Universidade Católica de a explorar melhor o mundo ao seu redor (SI-
Brasília (UCB). Email: fabio-
ramospaz@gmail.com. CHEL, 1977), as ideias teocentristas da Idade
Professor Associado do
Média passaram a dar espaço ao pensamen-
2

Departamento de Teoria Li-


terária e Literaturas (TEL). to “humanista”, no qual o homem olha para
Credenciado no Programa
de Pós-Graduação em Li- si com o auxílio de maiores reflexões acerca
teratura (PósLIT) e PRO- da natureza e dos elementos que a compõem
FARTES - UnB. Doutor em
Literatura pela FFLCH- USP. (CADEMARTORI, 1997). Com isso, é per-
Pós-doutorado na Universi-
tè Rennes 2. Autor do livro
ceptível que o Renascimento foi o momento
Clarice em Cena: as relações
entre Clarice Lispector e o
Teatro. Email: andrelg.unb@
gmail.com.
doi: 10.20396/pita.v9i2.8654542

em que o homem utilizou sua cri- juntamente ao livre arbítrio, eram


ticidade e explorou a consciência contra os valores bíblicos (NAS-
do próprio eu (SICHEL, 1977). CIMENTO, 2006). A partir das
Na Inglaterra, a chegada do ideias de Lutero surgiu uma nova
Renascimento ocorreu no século vertente do Cristianismo, o Protes-
XVI e coincidiu com o advento da tantismo, estendido à Inglaterra ao
Reforma Protestante iniciada na ser adotado pelo rei Henrique VIII.
Alemanha. Em território inglês, a A contextualização do renas-
necessidade do pensamento huma- cimento inglês é importante para
nista era mais forte do que uma nova situar historicamente (e cultural-
visão das artes (GREENBLATT; mente) o momento em que Chris-
LOGAN, 2006, p. 488). O desenvol- topher Marlowe apresentou A His-
vimento do intelecto humano e do tória Trágica do Doutor Fausto ao
olhar sobre o próprio “Eu” era algo público, algo que ocorreu ao longo
apreciado e discutido entre os de- do reino de Elizabeth I e tornou-
fensores dos ideais renascentistas. -se um marco do teatro elisabetano.
Ao mesmo tempo em que a Além de ser importante para
Inglaterra aceitava o humanismo uma melhor compreensão do tea-
renascentista, ela passou por mu- tro renascentista, Doutor Fausto
danças provenientes da Reforma é referência nos estudos da lite-
Protestante iniciada por Martinho ratura Gótica por apresentar ele-
Lutero (1483-1546). Ao opor-se mentos característicos do horror,
ao pagamento de indulgências de- como demônios e pactos satanistas.
mandadas pela Igreja Católica e à A exploração de tais componentes
necessidade de intermediação da está além da simples suscitação do
palavra de Deus por algo/alguém medo, uma vez que cada um desses
que não fosse a Bíblia (VÉDRINE, mecanismos possui uma represen-
1971), Lutero iniciou um processo tação de cunho social, político ou
de reforma que propunha o fim de psicológico dentro de cada obra.
tais preceitos impostos pelo Cris- Neste trabalho, mostraremos como
tianismo e a liberdade de pensa- a obra de Christopher Marlowe
mento dos fiéis (sem a necessidade está associada aos acontecimentos
de controle do Clero). Em Servo da Inglaterra do século XVI e, ain-
Arbítrio (1525) Lutero discute da assim, relaciona-se ao fantásti-
acerca dos humanismos pregados co e propõe ao Gótico uma obra-
pelo Renascimento e como eles, -chave nos estudos do grotesco.

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1. A História Trágica do por seus atos (MARLOWE, 2006).


Doutor Fausto, de Christopher Ao escrever Doutor Fausto
Marlowe: adaptação e a busca do para o teatro inglês, Marlowe não
conhecimento criou a imagem de Fausto, mas
No século XVI, Christopher adaptou uma estória já conheci-
Marlowe (1564-1593) escreveu a da do folclore alemão à peça tea-
peça A História Trágica do Dou- tral, adicionando alguns elemen-
tor Fausto para os palcos do teatro tos, mas mantendo a essência do
elisabetano. Em sua obra, o autor Doutor (VILLA, 2006). A ideia da
expõe a estória de um homem cha- existência de um homem chamado
mado Fausto, um médico com sede Jorge Fausto na Alemanha con-
de conhecimento, mas que não con- temporânea de Lutero fez com que
segue as informações que necessita o protestante desenvolvesse uma
através dos livros dispostos ao al- certa “obsessão” pela história: ao
cance humano. Com isso, ele recor- condenar as práticas de Fausto e
re à necromancia e invoca a presen- utilizá-las como pretexto educati-
ça do demônio Mefistófeles, o qual vo aos fiéis do século XVI, Lutero
o acompanhará por vinte e quatro impulsionou a estória de Fausto a
anos em suas ações e o auxiliará na diferentes níveis, tornando-a mais
busca pelo conhecimento tão dese- popular (WATT, 1996). Com isso,
jado. Mesmo que o acordo pareça é possível identificar a forma como
atrativo, ele tem uma complicação: as histórias acerca de Jorge Faus-
após os vinte e quatro anos, Fausto to e a narrativa de Marlowe con-
terá a sua alma tomada pelo Dia- tribuíram para a educação cristã.
bo. Ao aceitar os termos de troca, Além do seu viés educacional,
Fausto vive durante esse tempo a obra de Marlowe representa as
adquirindo todo o conhecimento preocupações da sociedade renas-
que deseja e até mesmo aprontan- centista através da exploração de
do “travessuras” junto aos pode- temas como religião, ocultismo e
res de Mefistófeles, mas também expansão territorial, sendo todas
passa por diversos momentos de elas conectadas à busca de conheci-
arrependimento ao pensar em sua mento. Tais elementos são, também,
traição perante o Deus cristão. Ao explorados pelo horror literário. O
fim, Fausto é levado ao inferno Gótico é mutável e relaciona-se ao
pelo Diabo, e pronuncia suas últi- contexto histórico de suas obras
mas palavras de arrependimento através de elementos repulsivos.

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Esse tipo de texto possui o medo MEFISTÓFELES: Sou um servo do grande


Lúcifer
como objeto-chave e é encontrado Não te posso seguir sem que
até mesmo no teatro elisabetano, el’ permita,
Nem devemos fazer mais do
como poderá ser analisado a seguir. que ordene.
FAUSTO: Mas não foi ele quem te
mandou vir cá?
1.1. DOUTRO FAUSTO: MEFISTÓFELES: Não. Por minha vontade
vim apenas (MARLOWE, 2006, p. 53).
liberdade e arrependimento
Na obra de Marlowe, há
A liberdade de Mefistófeles
diversas referências às preocupações
ao visitar Fausto sem a permissão
renascentistas do século XVI. O
de Lúcifer, mas ainda assim deixar
Coro diz “Indulgência e aplauso
claro que é apenas um servo,
vos pedimos” (MARLOWE, 2006,
faz com que a obra exponha as
p. 35), e aqui é possível identificar
discussões da Reforma entre
conexões entre a obra e a Reforma
Martinho Lutero e Erasmo de
Protestante de Lutero, uma vez
Roterdã. Até mesmo o livre
que ele lutava contra o pagamento
arbítrio de Fausto é questionado,
de indulgências à Igreja Católica
quando Wagner, criado do Doutor,
(VÉDRINE, 1971).
defende a liberdade de seu mestre
Lutero não era a favor da
perante as práticas ocultas. “Pois
noção de que o homem é um ser
não é ele um corpus naturale? E um
dotado de livre arbítrio. Em Livre
corpus naturale não é um mobile?”
Arbítrio, Erasmo de Roterdã (1466-
(MARLOWE, 2006, p.48).
1536) expõe e defende a vontade
Há também referências
humana de realizar suas próprias
“diretas” aos ensinamentos da
vontades (NASCIMENTO, 2006).
Igreja Anglicana ao longo da obra
Em Doutor Fausto, Marlowe
de Marlowe. O autor deixa claro
mostra a junção do livre arbítrio à
o afastamento de Fausto da nova
total obediência ao divino (temas
vertente religiosa logo no início
fortes nos Renascimentos Alemão e
da peça. “Só me rumina a mente
Inglês), mas sem a figura do Deus
em nigromancia3 […] Confundi
cristão e, sim, com a imagem de um
os pastores da nova igreja, E fiz
demônio:
de Wertenberg os mais sagazes”
(MARLOWE, 2006, p. 42).
Para realizar a conjuração de

3
Necromancia

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demônios, Fausto realiza um ritual contemporaneidade, assim como


necromântico. A necromancia na Inglaterra renascentista, está
consiste na ideia de que humanos conectada a uma escolha do ser
conseguem conhecimento do humano por um conhecimento
mundo espiritual através de humanamente inacessível. O
conversas com espíritos dos pacto de Fausto é referência para
mortos, sendo necromante a pessoa o Gótico não apenas por seu viés
que consegue informações acerca sobrenatural, mas por mostrar
do futuro através de feitiçaria até onde vai a curiosidade do ser
(MORRISON, 1873). Como ação humano perante o estranho e o
da ironia, Fausto até mesmo diz que grotesco.
“livros de necromancia são divinos” A relação que Fausto
(MARLOWE, 2006, p. 39) logo apresenta com Mefistófeles
após afirmar como o pecado leva à e Lúcifer é, de certa forma,
morte eterna. Tal contraponto pode retomada no teatro brasileiro em
ser visto como uma das diversas Macário, de Álvares de Azevedo
vezes em que o humano expressa (1988). Fausto é visto como um
dúvidas em relação aos seus desejos personagem questionador, dotado
e à condenação divina. de perguntas não apenas sobre o
A ideia de que é possível que pode acometer o sobrenatural,
invocar demônios por meio de mas também a sua vida terrena.
rituais é bastante explorada pelo Na obra de Azevedo, Macário, um
Gótico literário. A conversa com estudante na casa dos vinte anos
os mortos na literatura sofreu de idade, encontra Satã em uma
alterações desde a escrita de Doutor estalagem e inicia suas reflexões
Fausto e tornou-se popular no sobre a vida, a poesia, o amor e o
horror contemporâneo através da sexo. Assim como Fausto, Macário
inserção do “tabuleiro Ouija4” nas aproveita a presença do demônio
narrativas. Em O Exorcista, William para ser guiado a diferentes
Peter Blatty (2013) apresenta a caminhos de pensamento e obter
estória de uma garota de 12 anos respostas que não conseguiria sem
chamada Regan, que é possuída por o auxílio sobrenatural. A procura
um demônio após ter experiências de Macário por Satã é até mesmo
com a tábua Ouija. A forma como expressa a partir de referência à
a necromancia é representada na obra de Marlowe: “O diabo! Uma
4
Objeto conhecido por ser utilizado para a comunicação com espíritos (MELTON, 2008).

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boa fortuna! Há dez anos que eu Segundo Borges (2015, p. 9), “o


ando para encontrar esse patife! arrependimento define-se como uma
Desta vez agarrei-o pela cauda! emoção negativa, sentida quando
A maior desgraça deste mundo consideramos (de forma realista
é ser Fausto sem Mefistófeles” ou não) que a nossa situação atual
(AZEVEDO, 1988, p. 15). poderia ser melhor, se tivéssemos
Além de Mefistófeles, outros optado por uma decisão diferente”
demônios aparecem ao longo da (BORGES, 2015, p. 9). Fausto
peça de Marlowe, e na Cena V é passa por constantes momentos
perceptível como o pecado e suas de dúvidas e eventualmente sente
consequências eram presentes na arrependimento ao pensar em
Inglaterra renascentista. Lúcifer sua condenação ao Inferno. Ao
mostra a Fausto os Sete Pecados fim da peça, ao ser levado por
Mortais e entretém o Doutor com Lúcifer após os vinte e quatro anos
a magia. “Fausto, nós viemos do de conhecimento ininterrupto,
Inferno trazer-te um divertimento. Fausto diz “Fecha-te, Inferno!
Senta-te, que vais ver aparecer os Lúcifer, não venhas!/ Eu queimo os
Sete Pecados Mortais tais quais livros… ah… ah!... Mefistófeles!...”
são” (MARLOWE, 2006, p. 75). (MARLOWE, 2006, p. 120).
Aqui, cada pecado é representado A má-resolução e a
por um demônio diferente5. impossibilidade de solução de
De forma mais atenuada, conflitos são características
também aparecem, ao longo da facilmente encontradas no Gótico
obra de Marlowe, o Anjo Bom e (BRUHM, 2002). No horror,
o Anjo Mau. Eles representam a a narrativa está direcionada à
confusão mental vivenciada por catástrofe, o que dá aos textos
Fausto perante suas práticas para o uma perspectiva trágica até as
alcance do conhecimento desejado. suas linhas finais. Em Doutor
O homem renascentista passava Fausto, as opiniões conflitantes
por constantes reflexões acerca do dos anjos Bom e Mau dão à obra
“certo” e do “errado”, e o pecado o enfrentamento interno dotado
sempre obteve destaque nos estudos de futuro arrependimento, como
cristãos, junto ao arrependimento. acontece, principalmente, em obras
5
Esse recurso foi também utilizado por Raphael Montes no romance O Vilarejo (2015), em que cada pecado além de estar
relacionado a um demônio também tem seu nome exposto. Na obra de Montes, Belzebu, Leviathan, Lúcifer, Asmodeus,
Belphegor, Mammon e Satan representam, respectivamente, a gula, a inveja, a soberba, a luxúria, a preguiça, a ganância e
a ira.

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do Gótico contemporâneo. Em O arrependimento: ele tem medo de


Iluminado, de Stephen King (2014), seu futuro e pensa bastante no que
o personagem Jack Torrance é fez no passado para que chegasse a
frequentemente atormentado tal situação (a condenação), sendo
por “fantasmas” mentais que que todos os seus questionamentos
possuem opiniões divergentes são regidos pela oposição Céu/
e o confundem nas tomadas de Inferno. O arrependimento é uma
decisões acerca do que fazer com emoção capaz de ligar o emocional
sua família enquanto estão no hotel ao cognitivo, enquanto junta as
Overlook. Assim como ocorre com noções de passado, presente e futuro
Fausto, Jack Torrance recorre às em ações específicas (LANDMAN,
decisões que rumam a danação, o 2014).
que resulta em um fim similar ao Mesmo com momentos
do médico necromante: enquanto cômicos, A História Trágica
esse último é arrastado ao fogo de Doutor Fausto apresenta o
do inferno, Torrance é queimado arrependimento através do viés
pelo fogo da caldeira presente no trágico, explorando-o como uma
Overlook. Os anjos Bom e Mau emoção negativa:
sofreram alterações ao longo dos
[...] na experiência cômica do arrependimen-
anos na forma como são mostrados, to a má fortuna, os erros, as falhas, e as trans-
mas, ainda assim, continuam gressões são resolvidas no fim [...] A partir
da perspectiva trágica, arrependimentos são
representando uma importante irremediáveis por serem imprevisíveis, inevi-
característica da literatura de táveis, e catastróficos6 (LANDMAN, 2014, p.
246, tradução nossa7).
horror: a tormenta (ECKFORD;
HARPER; SMITH, 2008). O arrependimento de Faus-
De acordo com Daniela to é completamente catastrófico
Borges (2015), o arrependimento é e o leva ao pior castigo imagina-
instaurado tanto por culpa de ações do pela sociedade cristã (a conde-
passadas ou daquelas que visam nação ao inferno), sendo algo que,
consequências futuras. Em Fausto, por estar inserido em um contexto
é clara a forma como o Doutor está trágico, não seria passivo de mu-
em um grande confronto interno dança em direção à boa fortuna.
por sentir as duas formas de Levando em consideração que o
6
“[…] for the comic experience of regret is one in which misfortune, mistakes, shortcomings, and transgressions are
assumed to come out all right in the end. […] From within the tragic perspective, regrets are irremediable as they are un-
foreseeable, inevitable, and catastrophic”.
7
Neste trabalho, todas as traduções do inglês para o português e do espanhol para o português são de nossa autoria.

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Gótico (principalmente sua ver- Do que a magia alcança, tenta o máximo!


(MARLOWE, 2006, p. 51)
tente contemporânea) é dotado
de elementos passíveis de análise
Ao pensar que, no Gótico, os
psicológica (BRUHM, 2002), o ar-
demônios são representações de
rependimento é um tema comum
ansiedades sociais, então é possí-
nos textos do horror, geralmente
vel conectar a invocação de Mefis-
representado por fantasmas co-
tófeles às preocupações do homem
nectados a figuras do passado dos
renascentista inglês. A procura
personagens. Na verdade, o Góti-
pelo conhecimento era assunto re-
co está completamente conectado
corrente no Renascimento, prin-
às preocupações e consequências
cipalmente em meio a uma socie-
das ações de grupos sociais onde
dade que estava passando pelas
os textos são escritos, incluindo o
questões religiosas da Reforma.
arrependimento e a culpa. “O Gó-
tico sempre foi um barómetro das O fato da obra ser difundida em um período
ansiedades afligindo uma certa cul- no qual apologias eram feitas a um pensa-
mento individualista nascente, possivelmente
tura em um momento particular da fez com que a permanência da crítica impin-
gida pela Instituição religiosa à história de
história” (BRUHM, 2002, p. 260)8. Fausto – a de que por desejar o conhecimento
limitado ele havia pactuado com o demônio
–, se transformasse na perspectiva de que Sa-
1.2. O oculto em Doutor Fausto tanás era “amigo íntimo” de todos os homens
No Renascimento, práticas que manifestavam o desejo de desenvolver
seu intelecto e o livre pensamento (NERY,
ocultistas estavam conectadas ao 2012, p. 58).
poder que as pessoas davam ao
imaginário humano, essas que viam 2. Marlowe e a tragédia moderna
o mundo como um espaço dota- De acordo com Aristóteles
do de poderes ocultos (RIFFARD, (2016), as ações da tragédia deve-
1996). Ao invocar Mefistófeles, riam representar acontecimentos
Fausto traz à obra um demônio, e de um período de vinte e quatro
o demoníaco está completamen- horas ou da duração total do espe-
te conectado às representações táculo. Na tragédia moderna, tal
realizadas pela literatura gótica: ideia é posta de lado, já que então
as peças têm maior flexibilidade
Começa, Fausto, os teus encantamentos, quanto ao tempo e espaço represen-
E vê se diabos vêm ao teu apelo,
Que oblações lhes fizeste e oraste. tados (WILLIAMS, 2002). Em A
[…] História Trágica do Doutor Faus-

8
“The gothic has always been a barometer of the anxieties plaguing a certain culture at a particular moment in history”.

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to, Marlowe apresenta uma peça lhança Aristotélica.


que apresenta acontecimentos que Na tragédia, tanto na mo-
terminam após vinte e quatro anos, derna quanto na clássica, há ênfase
além de todos eles ocorrerem em sobre o mal. Ao longo de Doutor
diversas localidades (casa de Faus- Fausto, Marlowe expõe o mal tan-
to, bosque, Vaticano), e não apenas to nas ações “cômicas” de Fausto
em uma região. (as brincadeiras do doutor no Vati-
É possível perceber que a cano, por exemplo) quanto na pró-
obra de Marlowe é trágica não ape- pria figura de Lúcifer como inimi-
nas por ter tal palavra em seu títu- go do Deus cristão. Como afirma
lo, mas por seguir noções próprias Raymond Williams (2002), o mal
do teatro trágico moderno. Goethe “é usual na tragédia, em muitas
(1749-1832), que em 1808 publi- formas específicas e variadas: vin-
cou sua versão de Fausto, acredita- gança, ambição, orgulho, frieza, lu-
va que “a dialética trágica mostra- xúria, inveja, desobediência ou re-
-se no próprio homem” (SZONDI, beldia” (p. 85). Fausto é conhecido
2004, p. 49). Assim, não seriam ne- por sua ambição, sua constante ne-
cessárias cenas carregadas de mor- cessidade de ter mais conhecimen-
tes para que a obra fosse considera- to que o humanamente alcançável,
da trágica. Aqui, a tragicidade está e isso o leva a rebelar-se perante os
na mente do herói trágico, e não preceitos religiosos e a desobede-
necessariamente nos acontecimen- cer aos mandamentos cristãos.
tos físicos. Além disso, muitas das O mal é elemento presente
concepções de Goethe acerca do nos textos góticos, e sua relação
trágico estão intimamente conec- com Doutor Fausto é clara, mas
tadas às suas experiências pessoais, não está limitada à simples exposi-
logo, uma ponte entre realidade e ção da maldade. A fixação de Faus-
ficção é realizada em suas obras, o to pelo “conhecimento proibido” e
que pode até mesmo ser inferido pela necromancia podem ser ana-
acerca de Marlowe. De acordo com lisados pelo horror contemporâ-
Villa (2006), muitos acreditavam neo junto a preceitos freudianos. A
que Marlowe estava envolvido com luta dos impulsos do inconsciente
práticas ocultistas, o que é forte- contra a racionalidade conscien-
mente explorado em sua tragédia, te é observada nos vilões góticos
e isso o aproxima tanto da tragici- (BRUHM, 2002), uma ideia que
dade de Goethe como à verossimi- contribui para uma breve análise de

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Fausto. A maldade do doutor está putação e fortuna, como Édipo e Tiestes ou


outros insignes representantes de famílias
mais associada a impulsos pela bus- ilustres (ARISTÓTELES, 2016, p. 102).
ca do conhecimento do que pela cer-
teza de que o caminho traçado não De acordo com Aristóteles
é recomendável. Ao longo da obra, (2016), “‘peripécia’ é a mutação dos
é possível identificar os momentos sucessos ao contrário” (p. 100). A
de arrependimento de Fausto como peripécia de Fausto é materializa-
uma volta à racionalidade, mas que da com a chegada de Lúcifer para
são facilmente sobrepostos pelo levá-lo ao inferno, e é possível in-
inconsciente, o que resulta no mal terpretar os constantes momen-
exercido pelo personagem. tos de arrependimento do doutor
Além do foco na maldade, como prelúdios à tragédia, à con-
Doutor Fausto possui outras co- denação, sendo esta total conse-
nexões ao drama aristotélico. De quência de sua ambição sem medi-
acordo com Aristóteles (2016), a das. “A desmesura de sua fantasia
tragédia em sua melhor forma tra- acaba o consumindo e a sagacida-
balharia com homens nem bons de- de do mundo desmorona-se em
mais ou maus ao extremo, mas os confusão”11 (BRAVO, 2006, p. 40).
que se encontram “no meio”, pas- O trágico de A História Trá-
sando por infortúnios consequentes gica do Doutor Fausto, ao situar-se
de algum erro. “A trágica metabolé9 em meio ao Renascimento inglês,
é causada por uma harmatia10” (HI- representa as preocupações daquele
RATA, 2008, p. 86). Fausto é jus- período, e a exploração das tensões
tamente o homem “intermediário” contemporâneas é característica
descrito por Aristóteles: o mal que do trágico moderno (WILLIAMS,
cai sobre o doutor é consequência 2002, p. 69). Além disso, ao traba-
de um erro, um pacto sem conse- lhar com a tragédia, Marlowe segue
quências a terceiros, o que o leva à a ideia de que a morte é fato “irre-
danação. parável” e necessário (WILLIAMS,
2002, p. 81). Fausto, ao ser leva-
Resta, portanto, a situação intermediária. É a do ao inferno por Lúcifer, tenta
do homem que não se distingue muito pela
virtude e pela justiça; se cai no infortúnio, tal clamar pelo Deus cristão e expor
acontece, não porque seja vil e malvado, mas seu arrependimento, mas ainda as-
por força de algum erro; e esse homem há de
ser algum daqueles que gozam de grande re- sim é “derrotado” pela impossibi-
9
Mudança.
10
Erro.
11
“La desmesura de su fantasía acaba por consumirlo y la sagacidad del mundo se desmorona en confusión”.

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lidade de fugir do próprio destino. medo no personagem, o que é típi-


Aqui, a morte de Fausto é co do Gótico. Aqui, a morte não é
tanto física (infere-se que a ida ao mais um rito de passagem há muito
inferno seja um movimento pós- questionado, mas a certeza de que
-morte) quanto simbólica, sendo haverá relações com uma ameaça
esta última a representação de “se- maléfica, o que dá a um objeto já
paração, ausência, exílio, sacrifí- conhecido seu status Uncanny. O
cio, castigo, modificação” (LIMA, estranho é comum no Gótico (ca-
2001), Fausto morre ao separar- sas “banais” que se tornam assom-
-se das leis cristãs, ao sacrificar sua bradas, animais dóceis que assu-
alma pelo conhecimento desmedi- mem personalidades selvagens), e a
do e ao ser castigado por Lúcifer12. partir de uma nova visão da morte
Em The Uncanny13, Freud ele se insere na peça de Marlowe.
(1919) apresenta análises essen-
ciais para melhor interpretação de 3. O medo gótico em Doutor
textos góticos a partir do estudo do Fausto
grotesco. Na obra, o autor diz que Em A História Trágica do
o ser humano sente aversão peran- Doutor Fausto, é clara a forma
te o desconhecido, o estranho, e é como elementos característicos
possível dizer que esse movimento da literatura de horror são explo-
é realizado em todo o texto de Dou- rados. No romance gótico14, como
tor Fausto. De acordo com Freud, afirma Botting (2002), é comum a
a morte é uma ideia em constante presença de demônios para a repre-
posição de estranhamento (1919), sentação de preocupações humanas
e o uncanny representa algo que maiores, como feito por Marlowe.
sempre esteve presente, mas que foi Na verdade, elementos como de-
“repaginado” de forma a tornar-se mônios e fantasmas estão conecta-
desconhecido. A morte sempre ha- dos a ansiedades sociais, e o Góti-
via sido apresentada a Fausto, afinal, co junta a ficção à reflexão perante
ele sabia que seu pacto terminaria e temas sérios. Em Doutor Fausto, a
ele teria que dar a própria alma a exposição das aflições do homem
Satanás, mas a forma como a morte renascentista torna-se conectada
teve sua imagem alterada provocou ao sobrenatural literário, realizan-
12
Aqui, a noção de “castigo” pode ser discutida, uma vez que Fausto estava ciente de seu destino ao realizar o pacto.
13
“O estranho”.
14
O Gótico também está presente em textos que vieram antes da primeira obra “oficialmente” considerada gótica: O Cas-
telo de Otranto (1764), de Horace Walpole.

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do a junção entre a ficção e a histó- salões de magia negra, e isso pode


ria inglesa. até mesmo contribuir para a fácil
Não apenas a inserção de identificação da ação dos três níveis
demônios na narrativa, mas tam- do medo defendidos por King.
bém a figura de Fausto é própria O gênero Gótico trabalha
do gênero Gótico. Assim como em com o medo, “uma emoção básica,
Frankenstein Mary Shelley (2017) não só no sujeito, mas em diferen-
utilizou a figura do cientista Vic- tes formas da vida, aproximando-se
tor Frankenstein, e Robert Louis de uma reação biológica comum15“
Stevenson (2015) apresentou Dr. (SANTOS, 2003, p. 49). De acordo
Jekyll em O Médico e o Monstro, com Dozier Jr (1999), o medo é a
Marlowe inseriu o “erudito” em sua mais antiga emoção humana (tam-
obra, sendo a figura do homem das bém encontrada nos animais), sen-
ciências algo recorrente na litera- do que ela não está limitada ao re-
tura de horror. King (2013) defen- ceio à dor física, mas também está
de que “a ficção de terror não tem relacionada ao ato de evitar a injú-
necessariamente de ser não cientí- ria mental.
fica” (p.33), e afirma que diversas Stephen King (2013) diz que a
obras literárias realizam a junção literatura de horror utiliza três ele-
do Gótico à ciência. mentos na narrativa para despertar
Quanto ao local em que Faus- o medo no leitor: o Terror, o Hor-
to realiza suas ações, já é perceptível ror e a Repulsa. O primeiro é pro-
a noção de espacialidade proposta vocado pelas entrelinhas da obra,
pelo Gótico contemporâneo. Como ou seja, pela ideia de que há algo
definido por Botting (1996), o am- que o/a autor/a não está deixando
biente “estereotipado” das estórias claro, causando suspense. O Hor-
góticas adaptaram-se a contextos ror, por outro lado, é a certeza de
mais realistas. Os encantamentos que há algo errado, mas conectado
de Fausto, as aparições de Mefis- à materialidade do acontecimento,
tófeles e as ações das personagens como a presença de barulhos desco-
ocorrem em locais “comuns”, como nhecidos ou de monstros. Por fim,
em um bosque ou em uma casa. a Repulsa é a exploração de atroci-
Marlowe, mesmo que no século dades e a exposição de momentos
XVI, não limitou as “estórias de de- com injúrias físicas, como a descri-
mônios” a velhas criptas e obscuros ção de fraturas expostas e de atos
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Grifo da autora.

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sanguinários. Em Doutor Fausto, forma de Repulsa na obra, Fausto


já que a trama acontece em locais corta o próprio braço para que o
mais “reais”, é facilitada a identi- “contrato” entre ele e o demoníaco
ficação de elementos anormais. O seja firmado: “Meu braço corto e
criado de Fausto, Wagner, ao falar com meu próprio sangue/ Prome-
da futura morte de seu mestre, cau- to a alma ao grande Lúcifer […]
sa suspense e incertezas no leitor/ Vê gotejar o sangue do meu braço”
público, uma vez que os apreciado- (MARLOWE, 2006, p. 65). A con-
res da obra ainda podem possuir templação da injúria física compõe
dúvidas sobre o fim do médico: a Repulsa, e dessa forma Marlowe
reforça o desconforto do público/
Creio, julga o meu mestre morrer em breve,
Porque tudo me deu, que possuía. leitor perante o horrendo.
Porém, se a morte assim ’stivesse perto, Em Doutor Fausto, é per-
Não estaria a comer, julgo, a rir,
E a beber co’ os amigos, como agora, ceptível a presença do medo não
Pois com tal glutonice a ceia atacam, apenas em sua análise através dos
Como Wagner não viu em toda a vida. (MAR-
LOWE, 2006, p. 105) preceitos do Gótico, mas também
nas reflexões da personagem Faus-
Já o “horror” em Doutor Faus- to. O estado do medo leva os seres
to é identificado em todas as cenas humanos a cometerem diversas
com Mefistófeles, uma vez que ele atrocidades (crimes e guerras, por
representa a criatura maléfica e, exemplo), e está sempre relacio-
além disso, causa estranhamento nado a algo (KRISHNAMURTI,
material em um ambiente comum, 1995), como um objeto ao qual ele
como no bosque em que o demônio está direcionado. Dentro da obra
é invocado. Fausto inclusive diz a de Marlowe, o medo de Fausto está
Mefistófeles “que horrendo está de- conectado ao arrependimento e re-
mais para me servir” (MARLOWE, ceio de ir ao Inferno, justamente o
2006, p.52), o que até mesmo pode que ocorre ao final da peça.
ser uma conexão entre o Horror e
a Repulsa, já que esta última é deri- 4. Considerações finais
vada do desconforto perante cenas Escrita no Renascimento in-
grotescas, e a imagem “macabra” glês, A História Trágica do Doutor
do demônio pode ser objeto do sen- Fausto possui elementos da tragé-
timento de repugnância, ainda que dia moderna, e isso a torna passível
mortes violentas e mutilações não de análise pelos estudos teatrais,
sejam descritas. Como mais uma opondo-se em diversos pontos à

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tragédia clássica e apresentando fendidos por King para que o medo


ideias que a torna referência na seja suscitado no Gótico.
quebra de várias noções aristotéli- É perceptível como a peça
cas. Mesmo assim, Doutor Fausto renascentista de Marlowe está co-
possui conexões à Poética, de Aris- nectada aos preceitos da literatura
tóteles, uma vez que as noções de gótica, e isso torna a obra passível
hamartia e peripécia podem ser fa- de análise não apenas pelos estu-
cilmente encontradas na peça. No dos do teatro elisabetano e dos ide-
texto de Marlowe, o herói trágico ais teatrais do Renascimento, mas
assume as novas características da também pelas pesquisas focadas em
tragédia contemporânea e não tem literatura gótica, expondo como o
seu sofrimento exposto em injúrias medo e os elementos sobrenaturais
físicas, mas em constantes confli- estão presentes em obras anteriores
tos psicológicos. O enfrentamento ao século XVIII. Com isso, é possí-
entre o bem e o mau na mente de vel aumentar não apenas a linha do
Fausto e a forma como ele está ca- tempo abarcada pelos estudos gó-
minhando para o inevitável (a mor- ticos, mas também as possibilida-
te) reforça como a obra pode ser des de interpretação do trabalho de
considerada referência nos estudos Marlowe.
teatrais modernos, tanto por sua
poeticidade e representações como
pela quebra com a Poética clássica.
Em A História Trágica do
Doutor Fausto, Marlowe insere
as ansiedades da sociedade renas-
centista em um texto facilmente
reconhecido como “literatura de
horror”. A invocação do demônio
Mefistófeles e o incessante desejo
por conhecimento de Fausto são
formas de representar o homem re-
nascentista através do teatro elisa-
betano. Além disso, o pavor é ins-
taurado no leitor/público a partir
da exploração do Terror, do Horror
e da Repulsa, níveis narrativos de-

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Abstract

Christopher Marlowe wrote The Tragical Histpry of Doctor Faustus for the English Re-
naissance theatre using the own notions of the modern tragedy, besides adding superna-
tural elements to his work. The presence of fantastic features on Marlowe’s play represents
afflictions of the Renaissance society, something that is capable of arousing fear on its
fonds, a feeling intrinsic to the Gothic.

Keywords

Renaissance. Tragedy. Gothic.

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