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UNIrevista - Vol.

1, n° 3 : (julho de 2006) ISSN 1809-4651

Subgêneros e formatos na perspectiva

do texto promocional

Maria Lília Dias de Castro


Doutora em Letras
mlilia@unisinos.br
UNISINOS , RS

Resumo
O objetivo desta comunicação é refletir sobre um tipo de texto: aquele de caráter promocional veiculado na
televisão. Com base na discussão sobre gênero, subgênero e formato, busca-se situar o texto promocional, de
divulgação de produtos, marcas, serviços e/ou na conscientização social, como um subgênero que assume, na
mídia televisão, diferentes formatos (de acordo com a função a que se propõe). Detalham-se diferentes formatos,
especificando um tipo de formato: o merchandising social, em suas articulações e estratégias no plano do
discurso.

Palavras-chave: subgênero promocional, formato autônomo, formato difuso.

Introdução

Televisão e publicidade sempre andaram juntas, pelo menos no Brasil, que assistiu ao surgimento e ao

predomínio da televisão comercial. Nessa condição, a televisão brasileira sempre precisou sustentar suas
emissões e garantir seu empreendimento e, por isso, a participação publicitária foi decisiva. Firmou-se entre

elas um acordo mútuo que garantiu à televisão o retorno financeiro do empreendimento feito, com a venda

de espaço aos anunciantes, e à publicidade um espaço maior de divulgação e uma ação mais direta junto
aos consumidores.

Nessa espécie de parceria, houve, de início, clareza de limites quanto aos espaços destinados aos

anunciantes, circunscritos aos tradicionais intervalos da programação. Com isso, a televisão pôde voltar-se

para a construção de uma grade que trouxesse aos telespectadores informação, educação e entretenimento,
pilares maiores da televisão brasileira.

Há muito tempo trabalhando com o discurso publicitário, em especial aquele produzido para a televisão,
tenho observado as estratégias empregadas e, nos últimos tempos, uma gradativa “inobservância” de

fronteiras. Determinados formatos publicitários, feitos para televisão, parecem migrar do tradicional espaço

comercial para a própria programação televisual, mostrando por vezes uma quase inexistência de limites

entre esses dois fazeres: não só a publicidade tem ultrapassado o espaço comercial, como a televisão tem

nitidamente incorporado à sua programação o jeito glamoroso, e nitidamente promocional, que sempre foi
marca obstinada da publicidade.

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Subgêneros e formatos na perspectiva do texto promocional
Maria Lília Dias de Castro

Esse cruzamento parece evidenciar uma situação comum à comunicação atual que tem transformado a

comunicação publicitária em técnica de gestão e de organização das relações entre os homens (Delgado,
1997, p.23). Isso equivale a dizer que a mídia, de modo geral, para efetivar o contato mais direto com o
público, vem aprimorando a linguagem e refinando a ação intencionalmente manipuladora.

O objetivo desta comunicação é justamente direcionar o olhar para esse lugar de cruzamentos, essa
confluência de fazeres, cada vez mais presente na televisão comercial, centrando-se no exame das

peculiaridades desse discurso de natureza promocional que vem invadindo a televisão nos dias de hoje.
Mesmo que aparentemente separado da grade de programação, e pelo seu estatuto de função-meio, o

recurso à linguagem publicitária (promocional) é determinante na receita da emissora, contribuindo para o


equilíbrio financeiro da emissora.

Com todo esse poder, a publicidade vem extrapolando limites e desenvolvendo formas e formatos cada vez

mais criativos, audaciosos e sofisticados com o objetivo de interferir nos hábitos de consumo do público. Por
isso também vem-se construindo em um campo fecundo para investigações sobre a eficácia de

determinados processos comunicativos midiáticos centrados na força das linguagens: afinal de contas, como
ela faz para dizer o que diz e agir sobre o consumidor.

Dentro desse quadro, a reflexão está assim construída: (1) uma discussão preliminar sobre o conceito e a

tentativa de uma formulação mais abrangente para o fenômeno da publicidade, tal qual ele hoje se

configura na televisão; (2) uma tentativa de caracterização da ação publicitária como um subgênero que

contamina os espaços televisuais; (3) uma reflexão sobre o formato merchandising social, explicitado em
um dos núcleos da novela América, da Rede Globo.

É um artigo de caráter conceptual-analítico, na medida em que não só procura articular as noções de gênero,

subgênero e formato, como busca reconhecer as regras e estratégias que o formato se impõe dentro da
novela.

Gênero na perspectiva da publicidade

O estudo do gênero, na perspectiva da tradição clássica, sempre se voltou para questões de dispositivos e

regras existentes na base de determinadas construções literárias, passando pela sua organização estrutural,

e até pelas noções de periodização histórica. Para os dias de hoje, e sobretudo para o entendimento do
campo não literário, o objetivo tem sido tanto a percepção dos princípios que norteiam as construções

discursivas (tipo de realidade envolvida, regras), como a determinação das suas funções, sua

intencionalidade, dando condições, através do gênero, para o conhecimento do mundo e a possibilidade de


torná-lo inteligível.

Por isso o entendimento de Bakhtin parece ser adequado para iniciar a discussão, muito embora o foco do
autor russo tenha sido o campo da literatura, e a segmentação do gênero em categorias primárias e

secundárias. Na realidade, o importante do seu conceito é ser uma forma relativamente estável de

linguagem, dentro de uma determinada esfera da atividade humana para garantir a comunicação daquilo
que se propõe a oferecer, o que corresponde ao trabalho de correlação entre língua, ideologias e visões de
mundo.
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O fato de o conceito aplicar-se à atividade humana, em sua ação comunicativa, possibilita a aplicação ao

campo da mídia, pois envolve os condicionamentos da linguagem dentro de um determinado meio, sem
deixar de lado as contingências da realidade social ou as problemáticas da cultura de massa. É uma

perspectiva que acarreta, de um lado, a vinculação com o mundo e a realidade, e, de outro, a consideração
pela situação comunicacional, uma vez que toda esfera da atividade humana tem relação direta com a

utilização da linguagem. “Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a


variedade do discurso em qualquer área do estudo leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a
historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida” (Bakhtin, 1997, p.282).

Convém ressaltar ainda que, sendo inesgotável e naturalmente complexa, a atividade humana possibilita
uma gama variada e diferenciada de produções, o permite entender o gênero não apenas pela sua

amplitude, como também pela consideração de algo que está sempre renascendo e se renovando: “o gênero

sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo” (Bakhtin, 1997, p.106), e nisso
consiste a sua vida.

Assim, pensando nas formulações bakhtinianas e tentando aplicá-las ao campo da mídia, o gênero constitui-

se, dentro de uma determinada situação, como uma estratégia que viabiliza a comunicação do momento e

garante a comunicabilidade futura, manifestada através de uma maneira típica de organizar as idéias e de
empregar recursos de linguagem.

Também situado na perspectiva comunicacional e voltado para a dimensão semântica da mensagem

publicitária, Barthes identifica nesse discurso dois níveis: uma primeira mensagem que, em termos de

linguagem, traduz o real (mensagem da denotação) e uma segunda mensagem que, em publicidade, traduz

a excelência do produto anunciado. A especificidade da mensagem publicitária é justamente essa imbricação


de dois níveis em que o primeiro plano (denotação) não só traduz o real, como serve de significante a um

outro significado. Esse segundo plano (conotação) tem um só e mesmo significado que é mostrar, na

publicidade, a excelência do produto. “A finalidade publicitária é atingida no momento em que se percebe


esse segundo significado.” (Barthes, 1987, p.166).

Ao contrário das mensagens conotadas que normalmente escondem seu verdadeiro sentido, na publicidade

esse valor é imediatamente percebido (Barthes dirá que a particularidade da publicidade é, do ponto de vista

comunicacional, seu caráter “franco”). Isso porque, quando há publicidade, imediatamente se percebe seu

caráter publicitário, seu segundo significado. Como a mensagem conotada não é sub-reptícia, deve-se
investigar então o papel da denotação que, na verdade, serve para naturalizar a conotação: “retira-lhe a sua

finalidade interesseira, a gratuidade da sua afirmação, a rigidez da sua cominação; o convite banal
(comprem) é substituído pelo espetáculo de um mundo onde é natural comprar.” (Barthes, 1987, p.168)

Também Martín-Barbero (1997, p.198) debruça-se sobre a questão do gênero, definindo-o não só como

uma unidade de “análise da cultura de massa”, mas também, na perspectiva da antropologia e da sociologia
da cultura, como um funcionamento das narrativas, um funcionamento diferencial e diferenciador, cultural e

socialmente discriminatório, que atravessa tanto as condições de produção quanto as do consumo. É assim

algo exterior a partir de onde o sentido é produzido e consumido, e capaz de regular a relação do indivíduo
com a sociedade.

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Em se tratando de publicidade, implica o reconhecimento das instâncias de produção e de recepção da

mensagem e, entre elas, a função do mercado como elemento mediador. Há não apenas uma relação
dialética estreita entre a escritura e a leitura, como uma mediação decisiva imposta pelo mercado, de onde

se definem os mecanismos (dispositivos) capazes de orientar e de articular a intencionalidade do seu


produtor.

E é justamente a mediação do mercado que permite o reconhecimento desse discurso não mais com aquelas

características do simples discurso do elogio (epidítico, na concepção aristotélica), mas o discurso


influenciado pelas injunções do consumo.

Essas formulações preliminares associam a publicidade a (1) fenômeno que leva em conta as contingências

da realidade social e da cultura de massa; (2) estratégia de comunicabilidade dentro da mídia, que mobiliza
produtores e receptores em diferentes situações de vida; (3) funcionamento das narrativas que tem
mediação imposta pelo mercado; (4) discurso de natureza denotativa e conotativa.

Daí a tentativa de uma formulação de gênero que possa dar conta de forma mais abrangente do fenômeno
publicitário televisual, o que significa pensar em uma definição que inclui a natureza da produção; o seu

lugar social; a instância comunicativa, relativamente aos atores sociais implicados no processo; o tipo de
mundo que dá a conhecer; o regime de crenças que mobiliza; e a função da emissão.

Assim priorizando as dimensões semiótica e pragmática, o gênero pode ser entendido como um princípio

geral, organizador dos textos, responsável, na dimensão comunicativa, pelo estabelecimento de relações

entre o mundo e o discurso e pela determinação de um regime de crenças, sendo assim definidor de regras
e de estratégias, com a função precípua de garantir a comunicação entre as pessoas.

a) princípio geral

A noção de gênero remete inicialmente a um princípio constitutivo, a uma espécie de nível “arquitextual”,

capaz de assinalar o pertencimento de um texto ao conjunto que o ultrapassa, ou seja, é um fenômeno da


ordem do hipotexto, espécie de definição prototípica, a partir da qual se constroem textos que pertencem a
determinadas categorias. Nessa condição preliminar, é uma instância que tem relação com a idéia de
“domínio da prática social 1 ”, entendida como uma espécie de lugar onde circulam os saberes entre as

pessoas.

A mesma idéia de abstração e de generalidade é compartilhada com outros autores que refletem e teorizam

acerca da comunicação midiática.

Adam, falando do texto jornalístico, situa o gênero no âmbito do princípio geral: corresponde ao “hipotexto e
a seu nó definicional”. Gênero para ele é sempre da ordem do protótipo, enquanto os textos são realizações

desse princípio geral. Naturalmente essas novas realizações vão sempre apresentar uma filiação ao

protótipo, e uma diferença que é responsável pela evolução da própria categoria. (Adam, 1999)

Adam sublinha, então, dois princípios contraditórios sobre os quais os gêneros se configuram:

1
Proposta de Charaudeau formulada no curso “Língua, discurso e comunicação”, ministrado pelo professor em Paris,
Sorbonne Nouvelle, no período de 26/10/05 a 11/01/06.
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princípio de fechamento (repetição, convenção, reprodução), governado por regras;

princípio de abertura (futuro, variação, inovação) que ultrapassa as regras.

A idéia de princípio constitutivo está de certa forma presente na posição de Duarte quando, em perspectiva

semiótica, prioriza, no exame dos gêneros televisuais, os diferentes planos de realidade propostos,
reconhecendo para o gênero um nível de virtualidade, “uma macro-articulação de categorias semânticas

capazes de abrigar um conjunto amplo de produções televisivas que partilham umas poucas categorias
comuns” (Duarte, 2004, p.67). Assim a todo formato televisual (por exemplo, Jornal Nacional)

corresponderia um subgênero (jornalismo) mais amplo que, por sua vez, estaria abrigado na virtualidade
genérica (correspondência real com os fatos da realidade).

- dimensão comunicativa

O princípio geral sobredetermina as condições de produção e de recepção das mensagens, sendo, portanto,

uma condição da dimensão enunciativa que envolve os sujeitos do processo de construção e de


interpretação das emissões.

Trabalhando especificamente com a noção de gênero televisual, Jost reconhece a necessidade de um tipo

de verdade que sustenta o enunciador e que está na base de uma emissão. Gênero assim é uma ferramenta

que permite ao telespectador identificar e interpretar o que ele vê e escuta na televisão. É uma perspectiva

que prioriza a produção, circulação e consumo de sentidos, mostrando a importância do envolvimento de

“produtores que, para serializarem seus produtos e os fazerem circular, devem dotá-los de uma identidade

genérica; difusores que têm interesse em semantizar os objetos para torná-los desejáveis; mediadores que

aceitam ou não reutilizar essas categorias frente ao público; e espectadores para quem certamente a

categorização é uma idéia necessária a sua interpretação” (Jost, 2004, p.32). É uma construção com

determinadas peculiaridades, uma “moeda de troca que regula a circulação dos textos ou dos programas
audiovisuais do mundo midiático” (Jost, 2004, p.27).

Como a base da emissão de televisão é o “processo de atribuição enunciativa que se produz no enunciador”,
Jost centra sua reflexão na idéia da promessa: o enunciador lança a promessa de que um determinado
programa vai-se configurar de uma ou de outra forma, e nisso consiste a noção de gênero.

- relações com o mundo / regime de crenças

O princípio constitutivo é responsável pelo estabelecimento de relações com o mundo, isto é, pela

construção de um tipo de realidade que pode ser (1) de correspondência direta entre o real e o discurso

(meta-realidade), em que o discurso produzido busque, o mais possível, imprimir verdade, permitindo a

construção de um regime de crença da ordem da veracidade dos fatos (por exemplo, o documentário, a

entrevista); (2) de semelhança entre o real e o discurso (supra-realidade), que resulta na construção de um

discurso que parece verdadeiro, dando ao telespectador a noção de semelhança com os fatos do real
(telenovela, minissérie); e (3) de substituição / equivalência entre o real paralelo e o discurso (para-
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realidade), em que se busca construir um discurso paralelo, representando um regime de substituição e/ ou


equivalência com a realidade (é o caso do reality show) (Duarte, 2004).

Nesse sentido, para trabalhar a publicidade é necessário examinar esse princípio constitutivo, sua dimensão
comunicativa, envolvendo a simulação de um tipo de mundo e de um tipo de crença, e suas formas de
manifestação.

Configuração do subgênero promocional

A partir dessa base conceitual, é possível agora tentar entender o movimento publicitário, hoje fortemente
impregnado na televisão, que tem em vista a imposição de sentido dos produtos.

A publicidade tem como traço comum o dar a conhecer a um público determinado produtos e/ou idéias, com

a finalidade, sempre única, de fixar a atenção do receptor (telespectador para a tevê) sobre um determinado
produto, marca ou serviço, ou sobre uma ação social que se propõe a apresentar. Esse traço comum ou

noção abstrata, responsável pela mobilização de produtores (anunciante, agência, publicitário) e de

receptores (público consumidor), em diferentes situações da realidade, está na base de toda a ação de
divulgação de um produto para sua ulterior aquisição.

No fundo é um movimento da ordem da publicização, que consiste na ação de tornar público algum fazer.
Mesmo não dicionarizado, o neologismo publicizar, e com ele publicização (termos hoje praticamente

consagrados na área), tem, na sua constituição, a raiz comum public, à qual se agrega o sufixo izar,

elemento lingüístico que exprime uma relação causal, factitiva, que resulta no entendimento de publicizar
como a ação de tornar público algum fazer.

Fresnault-Deruelle, no tratamento da publicidade, reconhece a existência de um traço da ordem da

“publicitariedade” que, semelhante à literariedade para a literatura, permite a qualquer pessoa, seja

passando na rua, seja lendo um jornal, seja assistindo a um programa televisivo, saber que está diante de

uma peça publicitária. Faz parte do domínio da prática social, e envolve o reconhecimento preliminar, por
parte de qualquer pessoa, desse tipo de discurso que regula a relação entre as pessoas.

Dessa forma, o princípio constitutivo se atualiza sob a forma de um subgênero promocional que assume

duas orientações: divulgação para a venda pontual de algum produto, marca ou serviço; ou veiculação de

ações de caráter social, que possam contribuir para a imagem positiva da emissora e, conseqüentemente,

para fortalecer a sua posição no mercado. O subgênero é da ordem macro-temática e compreende tanto a

posição assumida pelo enunciador e aquela projetada para e enunciatário, como as intencionalidades
buscadas na comunicação.

Nesse processo, existe sempre uma tensão entre o estabelecimento de algo novo e a preocupação com o

igual (permanente). Se a criação nova é meta permanente, a manutenção às regras do mercado é sempre

necessária e, por isso, a afirmação de que a publicidade é uma forma de comunicação que procura

“estabilizar a relação entre redundância e variedade na cultura cotidiana” (Luhmann, 2000, p.74), que tenta

trazer o novo sem abdicar do mesmo. Ela cria uma tensão constante entre aquilo que é inédito, diferente,

novo, e aquilo que dela se espera, o procedimento previsível. Isso ocorre tanto na mediação do

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conhecimento, em que se confrontam dados novos com dados já sabidos, banais; como na mediação

estrutural, em que se busca tensionar previsibilidade – imprevisibilidade na forma de trazer a informação, o


que corresponde ao jogo entre o que dela se espera e o efeito surpresa. No caso de um mesmo produto a

ser anunciado, vai ser buscada uma nova angulação, uma nova maneira de criar ilusão. O consumidor
precisa encontrar no mesmo produto uma outra motivação. Essa necessidade de renovação, de constante

mudança de forma e de objetos, tem o objetivo sempre preciso de fixar a atenção sobre um determinado
produto.

A característica da ação publicitária é operar no limite de duas ordens: uma meta-realidade, uma vez que os

produtos anunciados têm existência concreta e os telespectadores precisam aceitá-los e consumi-los; e uma
supra-realidade, na medida em que a proposição de um produto normalmente é revestida de valor simbólico

para estimular o consumo, e isso é sempre da ordem da fantasia e da imaginação. No fundo, ela se vale da

ficção, da fantasia e, sobretudo, do valor simbólico agregado ao produto para mascarar sua intenção
comercial.

Análise do formato merchandising social

O subgênero promocional se realiza basicamente sob duas ordens de formatos: divulgação de produtos,
marcas, serviços, com vistas à estimulação do consumo junto ao telespectador (peças publicitárias,
merchandising comercial); e difusão de idéias, valores, conceitos, visando primordialmente às mudanças

comportamentais do público (merchandising social, marketing social). No âmbito desta comunicação,

privilegiou-se apenas um: o merchandising social de um dos núcleos da novela América, da Rede Globo. O
objetivo é ver como se constrói o formato, suas regras e estratégias e os efeitos junto ao telespectador.

Merchandising é um formato do subgênero promocional, que tem como peculiaridade a sobreposição: ocorre

dentro de um outro formato, a telenovela. É um discurso sobreposto a outro(s) para a produção de


diferentes efeitos de sentido. Mistura-se assim o mundo da realidade com o mundo da ficção, o que confere

de antemão um caráter híbrido ao formato: tanto significa como peça publicitária (embora não o seja), como

adquire outro sentido quando inserido na narrativa da telenovela. Trata-se claramente de um caso de
heterogeneidade discursiva manifesta e provocada, cuja eficácia repousa sobre a capacidade que o discurso
televisual tem de homogeneizar essas duas textualidades diferentes.

Como a telenovela é um espaço privilegiado de geração de novos estímulos e de consagração de idéias, a


ação do merchandising, comercial ou social, tem um só e mesmo objetivo: captar o telespectador,

justamente no instante em que este está descontraído, desatento e, em conseqüência, mais receptivo. A
ação é sutil, mas incisiva.

Naturalmente como o merchandising envolve anunciante e emissora de televisão, essa relação inicia muito

antes de a novela começar. No caso da Rede Globo, além das chamadas a uma nova novela ou das

constantes matérias em outras mídias, sobretudo a impressa, existe um boletim informativo publicitário (BIP)
que fornece as primeiras informações aos potenciais anunciantes.

Em América, novela recém finalizada, cuja finalidade foi abordar “a vida da classe média e do subúrbio

carioca e o mundo dos rodeios” (BIP, no.507, mar2005), o boletim sinalizou as principais direções que
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poderiam ser aproveitadas pelos eventuais anunciantes para desenvolverem ações de merchandising

integradas à trama. A matéria funciona como um convite ao anunciante externo para integrar, com seu
produto, a trama ficcional, levando em conta os altos índices de aceitação da emissora e da novela, e a forte
penetração da trama ficcional junto ao público.

O discurso do merchandising instala um jogo de mundo que interessa desvendar e, para isso, a perspectiva
semiótica se caracteriza como um caminho adequado para tal investigação. Ela possibilita a verificação das
escolhas estratégicas subjacentes que possibilitaram a colocação de imagens e signos, enfatizando os efeitos
do contexto e do universo que são freqüentes na comunicação.

Na construção deste artigo, que se constitui em recorte de uma pesquisa maior, foi analisado, dentro do
merchandising social, o tema da deficiência visual, explorado em um dos núcleos da trama. O mechandising

social define-se prioritariamente como uma ação de divulgação de um problema de natureza social, em um

universo cujos valores são compartilhados por todos, com vistas basicamente trazer esclarecimentos e a
contribuir para a mudança de comportamento público em relação àquela causa.

Na construção da trama, marcada pelo entrecruzamento de realidade e ficção, dois personagens, Jatobá2 e

Flor3, viveram o cotidiano do deficiente (supra-realidade), desde o convívio diário com a família, os amigos e

a sociedade até sua maneira de assumir e de lidar as limitações que a dificuldade lhes impõe. Cada um, a

seu turno, mostrou comportamentos diferentes: aquele que “tem vida independente” e que, por isso, sabe

buscar seu espaço na sociedade; e aquele que “vive isolado de todos”, que não sai e que “não sabe nada da
vida”.

Mesmo construídos no plano ficcional, seus comportamentos remetem ao mundo da realidade na reflexão

sobre o cotidiano do deficiente, evidenciando o fenômeno de eco que confere aos enunciados uma dinâmica
extra-textual.

Ao lado dos atores ficcionais, a novela recorreu a pessoas do mundo real (meta-realidade) para atuarem na
trama como elas mesmas, com a nítida intenção de conferir mais dramaticidade à trama. A própria autora4,

em entrevista, confirmou que “não há ficção que seja mais forte, mais dramática ou mais surpreendente que
a realidade”.

O entrecruzamento desses dois planos de mundo é uma estratégia que não apenas confere mais força ao

discurso (“a vida real não pára de nos surpreender”), como é responsável pelo efeito de homogeneização

(são duas práticas midiáticas que se ajustam no interior de uma mesma estratégia), capaz de sensibilizar o
telespectador. É sobretudo um fator de implicação que mobiliza o fazer interpretativo do público.

2 Jatobá (Marcos Frota) Deficiente visual. Personagem construído para mostrar que o cego pode ter uma vida
independente, e para ser porta-voz das reivindicações dos deficientes visuais. Antigo apaixonado de Vera, volta a sua vida
disposto a reconquistá-la. Homem sensível, inteligente, irônico e competente. Mora no subúrbio. Pratica esportes e se
prepara para as para-olimpíadas, com a ajuda de seu treinador, Stallone. Perdeu a visão quando já era adulto.
www.globo.com/america
3 Flor (Bruna Marquezine) Filha de Islene, Maria Flor nasceu cega. Como sua mãe não sabe lidar com sua deficiência, ela
a cerca de todos os cuidados, impedindo-a de ir à rua, por exemplo. Por conta disso, Flor vive isolada do mundo, não tem
amigos, não sabe nada da vida. Ela só sai de casa para ir ao médico. Até que ela conhece Jatobá e se torna amiga
também de Farinha. É através de Jatobá que ela conquista sua independência. www.globo.com/america
4 Entrevista de Gloria Perez veiculada no site www.globo.com/america
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A estratégia de cruzamento produziu efeitos muito expressivos como: (1) criação de um site para deficientes

visuais na Globo; (2) projeto de transformação do programa fictício, criado na novela, em realidade; (3)
depoimentos de deficientes, relatando as dificuldades que encontram e as ações de que se valem para

vencer essas barreiras, no site da novela; (4) homenagem à autora e aos atores na Câmara Municipal do Rio,
“pela atuação em prol da cidadania de pessoas portadoras de dificuldades” e na Assembléia Legislativa do

Rio de Janeiro, “pela abordagem dos problemas enfrentados pelos deficientes visuais”; (5) divulgação de
instituições que trabalham para a inserção dos cegos na sociedade; (6) links e telefones úteis; (7) instruções

para pais de deficientes sobre procedimentos de ação; (8) promoção de ações políticas e sociais, junto aos
órgãos públicos, relativas a, entre outras, projeto urbanístico da cidade para facilitar a locomoção dessas
pessoas pelas ruas ou autorização para o livre acesso de cães-guia em ônibus e restaurantes.

São efeitos que mostram o quanto a novela se mobilizou na tentativa de mudar a forma como a sociedade
encara a questão do deficiente visual.

Naturalmente o formato tem outras estratégias que, neste momento, estão sendo objeto de investigação

para serem agregados à pesquisa maior. Falta aprofundar, por exemplo, a discussão sobre as duas

textualidades que se cruzam, investigando, então, os efeitos figurativos modais do texto ficcional sobre a

evocação do fenômeno e mesmo os efeitos figurativos modais da evocação do tema sobre o texto ficcional.
Isso faz parte do momento seguinte do percurso.

Conclusão

O objetivo desta comunicação, dentro do projeto maior da pesquisa, foi inicialmente, tensionar os conceitos

de gênero, subgênero e formato, aplicados à ação publicitária, tentando delimitar conceitos e reconhecer
seus movimentos dentro da televisão.

Dessa forma, foi possível reconhecer que o formato merchandising social, convoca, através do jogo de

imagens/signos, a posição clara do autor e da emissora e exige do enunciatário uma ação responsiva, que
se traduza em mudança comportamental.

A idéia de levar o telespectador a mudar seu comportamento, a ter uma atitude mais responsiva com o
deficiente, deixa evidenciada a correlação entre língua, ideologias e visões de mundo, preconizada por
Bakhtin.

O resultado é um discurso mais consistente sobre o deficiente que naturaliza o efeito conotador, muito caro
à projeção da emissora como uma empresa voltada para os problemas que atingem a população. A escolha

do tema é definida pelo mercado que aponta aquelas questões que estão a merecer um olhar mais atento e
um posicionamento mais responsável e convergente.

Ao se identificar com um projeto social, a emissora garante aceitação na sociedade, ganha audiência e,
naturalmente, assegura seu crescimento econômico.

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De qualquer forma, a grande força da publicidade tem sido a mistura de realidade e ficção. Se, no formato

da peça, já é explorado o universo do imaginário, o mundo de sonhos que o produto agrega e os valores que

representa, a inserção da publicidade no interior de outros programas, sobretudo a telenovela, proporciona


uma superposição ainda maior.

Na novela, por exemplo, em que tudo é construído em cima da fantasia, a fala publicitária se encaixa na
trama sem perder nunca sua relação com o real, tornando o discurso mais recheado de valores não é

apenas alguém que testemunha as vantagens do produto, é determinado personagem que, dentro da trama,
tem uma conduta de vida, expõe seus sentimentos e suas idéias, representa valores e, por isso, confere

outra dimensão de sentido quando faz menção ao produto. Por isso também o cuidado em utilizar
personagens que tenham mais afinidade com o telespectador, uma vez que o tom que eles emprestam ao
personagem ficcional reverte em credibilidade e, com certeza, em lucro para o anunciante.

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UNIrevista - Vol. 1, n° 3 : (julho de 2006)

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