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Acabar com a estabilidade no

serviço público: solução ou


problema?
Marcelo Marchesini, Alketa Peci e Gabriela Lotta 06 de Março de
2020

Propostas de reforma administrativa são recorrentes em governos


de vários espectros ideológicos, particularmente quando enfrentam
crises econômicas e sociais. Diante de cenários complexos, é fácil
recorrer ao senso comum e a respostas simplórias, apontando o
setor público como um todo como “causa” da crise.

Há meses, o governo federal brasileiro declara que irá apresentar


uma proposta de reforma administrativa que corte carreiras,
permita demissões e reduza salários de entrada de servidores
públicos. Na ausência de estudos que sustentem os diagnósticos e
as estratégias propostas, torna-se difícil promover um debate
qualificado sobre a gestão de pessoas em governos, as motivações
e problemas relativos aos processos envolvidos e as consequências
possíveis de sua alteração.

Uma retórica ambiciosa de reforma administrativa por vezes parte


do pressuposto simplório de que o setor público é uma massa
amorfa e homogênea de cargos, salários, carreiras e organizações,
tendendo a perder de vista a diversidade humana e organizacional
que caracteriza a burocracia pública. Logo, estratégias do tipo “one
size fits all” — que pretendem dar uma única solução a todos os
problemas — podem prevalecer e, como pesquisas demonstram no
mundo todo, tendem a falhar na sua implementação ou não geram
os resultados esperados.

Há atualmente várias dimensões que estão na mesa do governo


como objeto da reforma — como mudança salarial, introdução de
sistemas de avaliação de desempenho, alterações nas carreiras,
entre outras. Entretanto, aqui discutimos apenas um aspecto, por
considerarmos um dos mais relevantes e de maior impacto: as
mudanças relativas à estabilidade do servidor após seu período de
estágio probatório.

Afinal, por que existe a estabilidade no serviço público? O que a


justifica?

A solução de longo prazo para a qualificação do serviço público


passa por um diagnóstico baseado em evidências dos reais
problemas. As soluções não são simplistas nem mágicas

A estabilidade é uma característica das burocracias modernas,


porque protege servidores públicos de pressões políticas no
exercício da sua atividade, resguarda-os de demissões arbitrárias
por interesse político e inibe o sequestro da máquina pública por
motivos clientelistas e eleitorais. Ao analisar a construção das
burocracias no mundo moderno, o sociólogo Max Weber coloca a
existência de uma burocracia estável, isonômica e impessoal como
uma das condições para a existência da democracia. Um fiscal do
trabalho, da fazenda ou ambiental, por exemplo, deve observar
regras e procedimentos no exercício da sua função e não pode
facilitar ou dificultar a aprovação de um determinado processo em
função da pressão de sua chefia.

As pressões políticas abrem margem para corrupção e


favorecimento de determinados grupos. É exatamente essa
denúncia que surge, nos últimos meses, em órgãos como a Receita
Federal e na área ambiental.

Enquanto declarações do ministro da economia parecem propor


uma maior separação entre política e administração, ao sugerir a
proibição da filiação política dos servidores públicos, o eventual fim
da estabilidade abre caminho para aparelhamento e uso político da
máquina pública (lembrando que, no Brasil, o número de cargos de
confiança no setor público ainda é bastante expressivo, mesmo em
comparação com países da região, como o Chile).

Proibir a filiação partidária não restringe ninguém de manifestar


preferências e agir de forma antiética, ao passo em que retirar a
estabilidade, que é uma proteção formal à atividade profissional,
amplia o espaço para favorecimentos e perseguições. Ainda,
devemos a órgãos com funcionários autônomos e estáveis, como
Polícia Federal, Tribunais de Contas, Controladorias e Ministérios
Públicos, a descoberta de redes de corrupção sistêmica.

Como está colocado, o debate omite essa escolha fundamental: a


sociedade está disposta a um maior espaço para influências
políticas no serviço público em troca da possibilidade de demitir
servidores?

Aqueles que propõem o fim da estabilidade justificam que em


alguns países avançados o servidor público não tem estabilidade
garantida na lei. É verdade, mas vale lembrar que a estabilidade
também não existe em boa parte dos países menos desenvolvidos e
mais corruptos do mundo. Normas profissionais, éticas, uma forte
cultura democrática e consensos políticos em torno de políticas
prioritárias, independentemente do espectro partidário, tornam
muito rara a demissão dos servidores públicos no primeiro conjunto
de países. Mas seria esse o caso do Brasil?

O fim da estabilidade também não garante maior flexibilidade no


setor público — essa sim uma dimensão que precisa avançar, por
exemplo, em áreas como compras públicas, contratações e
procedimentos rotineiros.

Apesar de a gestão Bolsonaro ser marcada por propostas simplistas


e sem base em evidências para problemas públicos complexos, há
espaço e necessidade para se debater pontos de melhoria na
gestão de servidores públicos. Como, por exemplo, discutir
estratégias para superar a rigidez imposta pelo número excessivo
de quase 300 carreiras que existem apenas no setor público federal
e que dificultam a alocação dos servidores de acordo com a
necessidade real de gestão.

Pode-se questionar, inclusive, se faz sentido a estabilidade para


determinadas carreiras e funções, mas não se deve considerar que
acabar com a estabilidade é uma medida benéfica em todos os
casos. Há uma grande diversidade do serviço público e não é
razoável que os mesmos processos se apliquem a uma especialista
em políticas públicas e a um técnico-administrativo, a uma delegada
da Polícia Federal e a um diplomata, por exemplo.

Há ainda vários outros desafios a serem enfrentados. Como tornar o


estágio probatório mais efetivo? Como regulamentar e implementar
avaliações de desempenho que façam sentido para as diferentes
atividades públicas e que sejam vinculadas a incentivos e punições
adequados? Aliás, o que impede que esses instrumentos, que já
existem na lei, funcionem na prática?
A qualificação da gestão pública exige um intenso trabalho de
natureza incremental, com menos visibilidade midiática e apelo
político do que o anúncio de uma grande reforma. A solução de
longo prazo para a qualificação do serviço público passa por um
diagnóstico baseado em evidências dos reais problemas. As
soluções não são simplistas nem mágicas. Elas passam pela
identificação, difusão e premiação de melhores práticas, de
treinamentos, pelo uso de dados para tomada de decisão, pela
implementação adequada de mecanismos de participação e
coprodução de serviços públicos, e, principalmente, pelo
reconhecimento da centralidade da gestão pública para as políticas
de desenvolvimento e inclusão social.

Marcelo Marchesini é professor e coordenador do Programa


Avançado e do Master em gestão pública do Insper, e doutor em
administração pública.

Alketa Peci é professora da Ebape-FGV (Escola Brasileira de


Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas),
com pós-doutorado na London School of Economics and Political
Science.

Gabriela Lotta é professora de administração pública e governo da


FGV (Fundação Getulio Vargas), coordenadora do Núcleo de
Estudos da Burocracia e pesquisadora do CEM (Centro de Estudos
da Metrópole).

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