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A primeira propõe
dois princípios a serem usados na interpretação da
intervenção do Estado na economia: o pragmatismo
e a razão pública. As intervenções estatais devem JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
ter base em dados reais e pretender alcançar José Vicente Santos de Mendonça
objetivos possíveis (pragmatismo). Além disso,
JOSÉ VICENTE
MENDONÇA
SANTOS DE
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ISBN 978-85-450-0416-5
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e da publicação específica, conforme a licença legal prevista no artigo
46, III da Lei nº 9.610/1998.
DIREITO CONSTITUCIONAL
ECONÔMICO
A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ECONOMIA
À LUZ DA RAZÃO PÚBLICA E DO PRAGMATISMO
José Vicente Santos de Mendonça
Daniel Sarmento
Prefácio
DIREITO CONSTITUCIONAL
ECONÔMICO
A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ECONOMIA
À LUZ DA RAZÃO PÚBLICA E DO PRAGMATISMO
Belo Horizonte
2018
© 2014 Editora Fórum Ltda.
2018 2ª edição
É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletrônico,
inclusive por processos xerográficos, sem autorização expressa do Editor.
Conselho Editorial
421 p.
ISBN 978-85-450-0416-5
1. Direito econômico. 2. Direito constitucional econômico. 3. Direito administrativo.
I. Sarmento, Daniel. II. Título.
CDD: 341.378
CDU: 34:33(81)
MENDONÇA, José Vicente Santos de. Direito constitucional econômico: a intervenção do Estado
na economia à luz da razão pública e do pragmatismo. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018. 421 p.
ISBN 978-85-450-0416-5.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a meus pais e à minha avó. Agradeço a Paulo Galvão. Agradeço a troca
de ideias com Gustavo Amaral e Christiano Taveira. Agradeço a Fernando Barbalho,
Raquel do Nascimento, Joaquim Rohr, Rodrigo Botelho, Karen, Bruno Morisson
(grande amigo), Cláudia e Paula, que ajudaram, deferindo ou substituindo férias na
PGE, para a elaboração do livro. Agradeço a Carlos Edison pela ajuda em questões
administrativas junto à UERJ. Agradeço a Noel Strüchiner. Agradeço ao amigo César
Campos. Com Henrique Bastos Rocha discuti aspectos do capítulo 1 da segunda parte.
Ana Terra forneceu informações úteis sobre o Comitê Olímpico Brasileiro, utilizadas
no capítulo 3 da segunda parte. Joana Tavares enviou cópia de versão de sua tese de
doutorado na Universidade de Castilla-LaMancha que foi bastante útil no capítulo 1,
item 1.4, da primeira parte. Carlos Ari Sundfeld alertou para aspecto do Anteprojeto
de Lei destinado a substituir o Decreto-Lei nº 200/67. Daniel Sarmento, no exame de
qualificação da tese de doutorado que deu origem ao livro, fez observações a respeito
do conteúdo do capítulo sobre fomento público e sugeriu a leitura de Chantal Mouffe.
Alexandre Aragão fez observações quanto ao conteúdo do texto. Cláudio Pereira de
Souza é coautor de artigo que representa o embrião de muitas das ideias desenvolvidas
no capítulo 2 da primeira parte e no capítulo 1 da segunda parte. José Marcos, Felipe
Besada e Carina forneceram apoio na pesquisa. Renata Marinho efetuou revisão do
texto e do conteúdo filosófico da primeira parte. Siddharta Legale reviu os originais do
livro. Agradeço, ainda, à comunidade da Faculdade de Direito da UERJ.
Os covardes sempre se lamentam e choram.
Os fracos acham que hoje tudo se acaba.
Na verdade é exatamente o contrário: é hoje que tudo começa.
(GUTIÉRREZ, Pedro Juan. Trilogia suja de Havana.
Salve-se quem puder)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................................17
1 Tema do livro..............................................................................................................................17
2 Plano de trabalho........................................................................................................................18
PRIMEIRA PARTE
BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL
AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO.................................................................23
1.1 Introdução: por que estudar o pragmatismo jurídico?.........................................................23
1.2 O pragmatismo na Filosofia: um conto de três cidadãos. Algumas
questões clássicas........................................................................................................................26
1.2.1 A matriz pragmatista: antifundacionalismo, consequencialismo e contextualismo........31
1.2.2 Críticas e contracríticas: a decadência do pragmatismo filosófico clássico........................32
1.2.3 O neopragmatismo filosófico: entre a autenticidade e a reinvenção. A explosão
contemporânea da abordagem pragmatista...........................................................................36
1.2.4 A utilidade do pragmatismo filosófico para o debate sobre o pragmatismo
jurídico: a visão de Richard Posner, Thomas Grey e David Luban....................................39
1.2.5 Sobre o uso das expressões “argumento prático”, “argumento pragmático” e
“argumento consequencialista”................................................................................................43
1.3 O pragmatismo como teoria e metateoria do Direito............................................................45
1.3.1 O “pragmatismo jurídico cotidiano” de Posner: definição e características......................47
1.3.2 Ataque e contra-ataque: o pragmatismo jurídico de Posner em questão...........................56
1.3.3 Outros pragmatismos jurídicos: as versões de Michael Sullivan, Stephen Breyer
e Jules Coleman...........................................................................................................................66
1.4 O pragmatismo na argumentação jurídica.............................................................................72
1.4.1 Os argumentos consequencialistas em Neil MacCormick: consequências como
implicações lógicas e dever de universalização.....................................................................73
1.4.2 Aulis Aarnio e os argumentos reais: as etapas da justificação consequencialista.............76
1.4.3 Luigi Mengoni e as regras metodológicas e substantivas da argumentação
consequencialista........................................................................................................................77
1.5 Contraponto: usos e desusos do pragmatismo à brasileira. Um projeto de lei
pragmatista..................................................................................................................................80
1.6 “Fazendo coisas com consequências”: uma proposta de “princípio” do
pragmatismo útil ao Direito Constitucional Econômico......................................................93
1.7 Conclusão parcial: o pragmatismo constitucionalmente adequado, ou: por um
consequencialismo não inconsequente..................................................................................103
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE
CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA – EM BUSCA DA RECIPROCIDADE E
DO RESPEITO....................................................................................................................................105
2.1 Introdução: a aproximação entre o Direito Econômico e a Filosofia Política..................105
2.2 Democracia, democracias: o ideal da democracia deliberativa.........................................106
2.2.1 Origem do termo “democracia deliberativa” e características do conceito em
Joshua Cohen.............................................................................................................................107
2.2.2 A noção de democracia deliberativa em Amy Gutman e Dennis Thompson:
características e definição........................................................................................................109
2.2.3 O que a democracia deliberativa não é. Vantagens e críticas ao conceito........................111
2.2.4 Uma defesa (singela) do ideal de democracia deliberativa................................................113
2.3 Origens da razão pública. Kant e o uso público da razão. Aspectos gerais do
pensamento de John Rawls.....................................................................................................115
2.3.1 A razão pública em Rawls: natureza jurídica, abrangência, conteúdo, exemplo,
objetivos e definição.................................................................................................................119
2.3.2 Pensando com Rawls contra Rawls: duas questões prejudiciais à proposta
deste livro..................................................................................................................................122
2.4 Uma proposta de razão pública constitucional útil ao Direito Constitucional
Econômico.................................................................................................................................124
2.4.1 O que uma razão pública não é .............................................................................................125
2.4.2 O que nossa proposta de razão pública é: características, natureza jurídica,
sede constitucional e uma noção de razão pública útil ao Direito Constitucional
Econômico.................................................................................................................................127
2.5 A razão pública é útil? Sincera? Possível? Críticas à razão pública..................................130
2.6 Algumas respostas às críticas.................................................................................................137
2.7 Limites da razão pública.........................................................................................................140
2.8 Um requisito de coerência: a compatibilidade entre pragmatismo e razão
pública pela via dos acordos teóricos incompletos ............................................................142
2.9 Conclusão parcial: consensos estáveis, opiniões razoáveis................................................144
SEGUNDA PARTE
APLICAÇÕES
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE
TRAUMAS E TABUS........................................................................................................................149
1.1 Introdução: os primeiros passos de uma polêmica sem fim..............................................149
1.2 Intervenções diretas monopolística e concorrencial: uma visão institucional................151
1.2.1 A origem histórica das estatais. As primeiras estatais brasileiras.....................................154
1.2.2 Para que são criadas estatais? As duas finalidades para a criação de estatais.
As duas (ou três) espécies de estatais. A ênfase na atividade da empresa.......................155
1.2.4 Constituição de estatais: semelhança formal e dessemelhança material. A questão
da criação das subsidiárias: uma decisão pragmaticamente correta do STF ..................164
1.2.5 As possíveis formas societárias das estatais ........................................................................172
1.2.6 Objeto social das estatais. Conflito de interesse nas estatais: diretrizes para
desdramatizar a colisão entre o interesse de lucro do acionista privado e o
interesse público. Inovações da Lei das Estatais. Podem as estatais ingressar no
Novo Mercado Bovespa?.........................................................................................................174
1.2.7 Regime jurídico das estatais: privado, mas com exceções finalísticas de Direito
Público. Os bens das estatais: três problemas contemporâneos........................................184
1.2.7.1 Estatais com poder de polícia: por que não?........................................................................191
1.2.8 Licitações nas estatais: o critério da concorrencialidade da atividade (e porque
os outros critérios não são bons)............................................................................................196
1.2.9 Algumas questões trazidas pela Lei das Estatais sobre licitações e contratações
destas entidades........................................................................................................................201
1.2.10 Regime de pessoal das estatais: questões clássicas. A captação de clientela...................208
1.2.11 O controle das estatais: entre a democracia e a ineficiência. O conhecimento
convencional a respeito do tema. Quatro standards para o controle dos Tribunais
de Contas sobre as estatais .....................................................................................................210
1.2.12 Estatais e princípios constitucionais da Administração: a incidência da legalidade,
da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência..................................219
1.2.13 A extinção das estatais: estatais não podem falir — e talvez isso não seja tão grave.....221
1.3 A intervenção concorrencial: limites e possibilidades pragmático-democráticas..........224
1.3.1 Os limites do interesse público e da proporcionalidade.....................................................224
1.3.2 A subsidiariedade da intervenção do Estado na economia ..............................................225
1.3.2.1 Incidências e origem histórica da subsidiariedade .............................................................225
1.3.2.2 Quatro fundamentos para a subsidiariedade. A suposta fonte formal da
subsidiariedade ........................................................................................................................228
1.3.2.3 O que é a subsidiariedade: uma diretriz política, não um princípio constitucional.
Críticas à subsidiariedade: razão pública e pragmatismo. A lição do Texto
Constitucional em vigor. O Direito Comparado .................................................................230
1.3.2.4 Resposta às críticas...................................................................................................................242
1.3.2.5 Alguns aspectos técnicos a respeito do art. 173 da Constituição.......................................250
1.4 A interpretação constitucionalmente adequada para a criação e a abrangência
dos monopólios públicos.........................................................................................................253
1.4.1 Origem da palavra monopólio. As diversas espécies de monopólio. A base
constitucional do monopólio público....................................................................................253
1.4.2 As lições da ADI nº 3.273-9/DF e da ADPF nº 46. A diferença entre monopólios
públicos e serviços públicos ...................................................................................................255
1.4.3 Como criar e interpretar monopólios públicos sem o uso de metafísica ideológica........... 261
1.5 O neointervencionismo estatal como solução (não constitucionalmente imposta)
de compromisso........................................................................................................................265
1.6 Conclusão parcial: longe da metafísica ideológica, rumo ao (neo)intervencionismo
democrático da eficiência........................................................................................................268
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS – PRAGMATISMO E
RAZÃO PÚBLICA COMO NOVÍSSIMOS LIMITES AO EXERCÍCIO DO
PODER DE POLÍCIA.......................................................................................................................269
2.1 Introdução ................................................................................................................................269
2.2 Poder de polícia: revisão doutrinária....................................................................................271
2.2.1 Origem e sentidos da expressão “poder de polícia”. Base legal e constitucional.
Em defesa de um “poder de polícia” que ousa dizer o nome............................................271
2.2.2 Distinções com outras funções administrativas: o que o poder de polícia não é.............277
2.2.3 Características e classificação do poder de polícia .............................................................285
2.3 Limites clássicos ao exercício da polícia administrativa: elementos do ato
administrativo, devido processo e legalidade......................................................................290
2.4 Novos limites: dignidade humana, proporcionalidade e preservação do conteúdo
essencial dos direitos fundamentais. A superação da teoria das limitações e
sacrifícios de direitos................................................................................................................293
2.5 Novíssimos limites: pragmatismo e razão pública..............................................................301
2.6 Conclusão parcial: limites dos limites...................................................................................304
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO,
EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA........................................................................................307
3.1 Introdução.................................................................................................................................307
3.2 O que é o fomento público: revisão da literatura................................................................309
3.2.1 Distinção entre fomento público e demais funções administrativas. Há fomento
entre órgãos públicos? Existe um fomento regulador?.......................................................312
3.2.2 Definição de fomento público. O problema da intercambialidade das técnicas.............321
3.2.3 Características do fomento público. O fomento é unilateral e possui pretensão
de temporariedade...................................................................................................................323
3.2.4 Os meios de atuação do fomento público ............................................................................331
3.2.5 Instrumentos do fomento público..........................................................................................335
3.3 O risco do fomento é o risco da intervenção desmedida: a paralisia. Outros riscos:
violação à concorrência, administrativização do espaço privado, violação à
legalidade e ineficiência econômica.......................................................................................337
3.4 Fomento público é discricionário ou vinculado? Fomento público pode
ser revogado?............................................................................................................................342
3.5 Critérios para o fomento constitucionalmente adequado. A legalidade e o
fomento público........................................................................................................................347
3.5.1 Critérios formais de concessão do fomento: transparência/procedimentalização,
competitividade e objetividade..............................................................................................348
3.5.2 Critérios materiais de concessão do fomento: não lucratividade, eficiência
pragmática do gasto, razão pública.......................................................................................350
3.5.3 Critérios de formulação do fomento........................................................................................355
3.6 Conclusão parcial: em busca do meio-termo de ouro.........................................................357
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO – PROBLEMAS, INSTRUMENTOS E SUGESTÕES...............359
4.1 Introdução: os problemas da regulação pública..................................................................359
4.2 Reduzindo os problemas de informação..............................................................................360
4.2.1 Centralização da informação..................................................................................................360
4.2.2 Assumir a dispersão da informação......................................................................................361
4.3 Buscando a adesão dos regulados..........................................................................................363
4.3.1 Audiências e consultas públicas. Uma possível taxonomia...............................................363
4.3.2 Economia comportamental: empurrõezinhos e simplificação...........................................366
4.3.3 Análise de Impacto Regulatório.............................................................................................370
4.4 Outros problemas da regulação. Um paradoxo da regulação...........................................374
4.5 A Nova Governança e a regulação pragmatista-experimental..........................................377
4.6 Conclusão parcial: o futuro da regulação e a regulação do futuro ..................................378
CONCLUSÃO GERAL.........................................................................................................................379
Síntese objetiva..........................................................................................................................379
I - Quanto ao pragmatismo.....................................................................................................379
II - Quanto à razão pública......................................................................................................382
III - Quanto à intervenção direta............................................................................................384
IV - Quanto ao poder de polícia.............................................................................................387
V - Quanto ao fomento público..............................................................................................388
VI - Quanto à regulação pública.............................................................................................389
Encerramento............................................................................................................................390
POSFÁCIO.............................................................................................................................................391
REFERÊNCIAS......................................................................................................................................393
PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO
Daniel Sarmento
Professor de Direito Constitucional da UERJ.
NOTA DA SEGUNDA EDIÇÃO
1 Tema do livro
O propósito deste livro é simples: não ser a doutrina jurídica do fim da história.
É incorporar o conflituoso, o maleável, o dúctil, o humanamente complexo à voz da
doutrina de Direito Constitucional Econômico, para que esta nem sequer tenha a tentação
de acreditar em pontos de partida (que na verdade são pontos de chegada) e para que
se abra ao óbvio: nossa Constituição é compromissória, a história não acabou, doutrina
jurídica não é catequese ideológica, interpretação constitucional não é fossilização de
pontos de vista.
O tema a ser aqui tratado é a interpretação constitucional. Uma interpretação
focada em determinados assuntos e dispositivos constitucionais, a saber, a interpretação
da Constituição Econômica e a interpretação de temas afetos ao Direito Constitucional
Econômico.
Nosso intuito não é analisar a interpretação constitucional sob moldes tradicio-
nais. É, na verdade, desenvolver outra proposta teórica, sempre com os pés fincados
na realidade e no Direito positivo brasileiro. Na teoria e na Filosofia estrangeiras do
Direito, encontraremos elementos e inspiração para propor dois novos “princípios”
de interpretação.1
Tais “princípios” são o pragmatismo e a razão pública.
O pragmatismo a que vamos nos referir é proposta teórica nossa, derivada tanto
do pragmatismo filosófico quanto das diversas teorias do pragmatismo jurídico. Ao
falar em “princípio” do pragmatismo jurídico, ressaltamos uma de suas principais
características: a incidência por intermédio de standards.
Também a razão pública a que nos referimos, se derivada da obra de um dos maio-
res teóricos da filosofia política do século XX — John Rawls —, recebe adaptações para
que se adeque à interpretação de questões do nosso Direito Constitucional Econômico.
O campo de incidência da razão pública é a interpretação do Direito Constitucional
Econômico feita por juízes, em especial da Corte Constitucional; por autoridades ad-
ministrativas; e, ainda, a interpretação feita pela doutrina jurídica.
Embora uma discussão filosófica profunda talvez não conseguisse reconciliar os
pressupostos filosóficos mais profundos do pragmatismo e da razão pública, optamos
1
Utilizaremos o termo “princípio” entre aspas, pois não estamos usando a palavra em sentido metodologicamente
rigoroso.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
18 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
por visão mais simples, que apela à sua possível concordância no nível da incidência
prática.
Assim, a ideia a ser desenvolvida neste livro é a de que é possível e proveitoso
reler os institutos tradicionais do Direito Constitucional Econômico à luz da razão pública e do
pragmatismo, buscando construir interpretações constitucionais que sejam, ao mesmo tempo,
úteis, práticas e abertas à plurivocidade de visões de mundo presentes numa democracia con-
temporânea como a brasileira.
2 Plano de trabalho
Este livro é dividido em duas partes: uma teórica e outra prática. Cada capítulo
pode ser lido de modo autônomo.2 3 Ele foi escrito em linguagem direta, e, ao apresentar
ideias complexas, optou-se pela técnica da enumeração. Ao final de cada trecho, há um
resumo das ideias principais. As notas de rodapé, além de referências bibliográficas,
acrescentam informações.
A primeira parte se subdivide em dois capítulos. O primeiro é dedicado ao prag-
matismo; o segundo, à razão pública. No primeiro capítulo, após analisarmos algumas
teorias acerca do pragmatismo filosófico e jurídico, apresentamos nossa proposta para
o “princípio”.
No segundo capítulo, após estudarmos as polêmicas associadas à ideia de razão
pública, trazemos o conceito do “princípio” que poderá ser usado na interpretação do
Direito Constitucional Econômico brasileiro.
A segunda parte é dividida em quatro capítulos.
O capítulo 1 da segunda parte é dedicado à intervenção direta do Estado na eco-
nomia, seja sob monopólio, seja em competição com empresas privadas. Sua primeira
metade analisa as principais polêmicas relacionadas às estatais. A segunda metade
estuda os monopólios públicos e o princípio da intervenção subsidiária do Estado na
economia.
O tema do capítulo 2 da segunda parte é o poder de polícia. Sua primeira porção
volta-se a aspectos conceituais. Apenas para citar um dos assuntos, defenderemos que a
expressão “poder de polícia” não é tão irrecuperável quanto dizem. A segunda metade
trata dos limites ao exercício do poder de polícia. De especial interesse é a defesa que
faremos da incompatibilidade entre a assunção de proposta teórica baseada na teoria
dos princípios — como muitos autores de Direito Público dizem que fazem — e a alega-
ção de que existem restrições e conformações de direitos, afirmação clássica no Direito
Administrativo. A parte final do capítulo apresenta a razão pública e o pragmatismo
como os dois novíssimos limites ao exercício do poder de polícia.
2
Versão resumida do capítulo 3 da segunda parte apareceu em: MENDONÇA. Uma teoria do fomento público:
critérios em prol de um fomento público democrático, eficiente e não paternalista. Revista dos Tribunais, p. 80-
140. Algumas das propostas teóricas que concluem o capítulo 2 da primeira parte constam de José Vicente
Santos de Mendonça (Uma proposta de “princípio do pragmatismo jurídico” útil à interpretação de casos
envolvendo o Direito do Petróleo. In: ARAGÃO (Coord.). Direito do petróleo e de outras fontes de energia, p. 165-
200). A discussão a respeito da possibilidade de estatais exercerem poder de polícia, que consta do capítulo 1 da
segunda parte, apareceu antes em: MENDONÇA. Estatais com poder de polícia: por que não?. Revista de Direito
Administrativo, p. 97-118. Para a segunda edição do livro, todos os capítulos foram revistos e atualizados.
3
O livro corresponde, com alterações e atualizações, à tese de doutorado em Direito Público defendida na
Faculdade de Direito da UERJ no dia 30 de março de 2010, diante de banca composta pelos Professores Paulo
Galvão (orientador), Floriano de Azevedo Marques Neto, Cláudio Pereira de Souza Neto, Daniel Sarmento e
Alexandre Santos de Aragão.
INTRODUÇÃO 19
BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO
PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO
DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
4
A questão adquire particular importância em relação à atividade dos juízes, porque, em relação aos legisladores
e aos administradores públicos, sempre se entendeu que devessem atuar com os olhares próximos às
consequências de suas ações.
5
“Não seria melhor, então, que nossos juízes fossem pragmatistas inconscientes? Não seria melhor, não apenas
ao reassegurar ao público que os magistrados estão atuando juridicamente da forma como este entende que
devam fazê-lo, ou seja, aplicando normas pré-existentes de um modo ‘objetivo’, mas, também, ao inocular
os juízes contra uma possível embriaguez advinda da percepção de poder?” (POSNER. Legal Pragmatism.
Metaphilosophy, p. 155, grifos no original).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
24 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
6
Uma discussão preliminar, ainda a ser travada na doutrina jurídica brasileira, é saber se teorias da interpretação
importam na prática. Em nota de rodapé deste capítulo, cita-se artigo de Daniel Farber, que, estudando a prática
americana, levanta dúvidas quanto ao ponto. Seria — em tese — possível realizar o estudo no Brasil, mas há
uma dificuldade, que é identificar a quais teorias da interpretação os juízes brasileiros se filiam. Suspeita-se
de que, aqui, ao contrário dos EUA, não há uma demarcação tão clara entre adjudicadores anti-formalistas e
formalistas (ou, para os efeitos deste capítulo, pragmatistas e não pragmatistas).
7
Recentemente, na doutrina brasileira, tem aparecido uma série de artigos e estudos monográficos acerca do tema,
no que se poderia chamar, talvez com algum exagero, de “virada pragmatista” da teoria jurídica. Entretanto,
uma coisa são as ondas da academia; outra, não de todo distante daquela, é verdade, é a aceitação consistente da
ideia por parte da jurisprudência. De toda forma, ainda se está muito distante da produção teórica dos Estados
Unidos, locus por excelência do pragmatismo, seja filosófico ou jurídico. Dentre as contribuições mais recentes,
v., por ex., a de Gustavo Binenbojm, que identifica, no mesmo sentido deste livro, uma “virada pragmática” em
curso no direito administrativo brasileiro (BINENBOJM. Poder de Polícia, Ordenação, Regulação: transformações
político-jurídicas, econômicas e institucionais do Direito Administrativo ordenador, p. 37 e ss). Cf., ainda, o
estudo de Leonardo Coelho Ribeiro, O Direito Administrativo como “Caixa de Ferramentas”.
8
SOUZA NETO. Verticalização, cláusula de barreira e pluralismo político: uma crítica consequencialista à
decisão do STF na ADIN 3685. Interesse Público – IP.
9
POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 155. Posner defende que um juiz exercitará com mais
comedimento seu poder discricionário quando possuir clareza de que o está fazendo, ao invés de se sentir
como mera correia de transmissão de decisões tomadas em outras instâncias (como o Legislativo), sem
maiores responsabilidades pelas consequências daí advindas. Em certa medida, o “intérprete consciente de
suas circunstâncias”, aquele que se autocritica e se autoconhece, preconizado por Luís Roberto Barroso, é um
operador do Direito que deverá possuir, também, consciência e conhecimento de suas técnicas argumentativas
e interpretativas, e não apenas de sua postura ideológica e de suas frustrações (BARROSO. Fundamentos
teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro. In: VIEIRA. Temas de direito constitucional, p. 6).
10
Exemplo disso são as diversas referências feitas por Nelson Jobim, quando Ministro do STF, à importância das
consequências. Em discurso de posse como presidente do TSE, mencionou o seguinte: “Discutir-se-á o voto
obrigatório. Não se vai discutir a partir da concepção acadêmica de ser bom ou mau. Discutir-se-á, isto sim, de
acordo com o que temos e o que podemos fazer. Nada mais. É a conveniência da solução, porque o compromisso
é com a consequência” (JOBIM. Discurso de posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Revista Diálogo
Jurídico, grifos nossos). No mesmo discurso, Jobim chegou a indicar sua técnica para o uso das consequências:
ele as considerava como critério de desempate na decisão.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
25
cujo pano de fundo era a tomada de posição em relação às consequências das decisões
judiciais.11 12 Até a grande mídia já se apercebeu do fenômeno.13
Para além da oportunidade do tema, resta sublinhar sua conveniência num país
que, politicamente amadurecido, começa a arrumar tempo para discutir alguns dos
grandes assuntos da agenda internacional relativos à interpretação da Constituição:
ativismo,14 democracia,15 capacidade institucional.16
11
Segue resumo da discussão havida no dia 22 de abril de 2009 no plenário do STF. Destacamos, em itálico, os
trechos das falas dos Ministros mais afetos à nossa exposição. O Estado do Paraná aprovou uma lei, em 1999,
que incluiu os notários no sistema previdenciário oficial. Tal lei veio a ser declarada inconstitucional em 2006.
Discutiam-se, no STF, os efeitos da decisão para os notários aposentados entre 1999 e 2006. Na mesma sessão
da Suprema Corte, discutia-se, também, o ponto exato para a cessação da produção de efeitos de outra lei, de
2002, igualmente já declarada inconstitucional pelo STF, em 2005, que estendia o foro privilegiado a autoridades
durante o período em que o processo estivesse em julgamento. No primeiro caso, o da aposentadoria dos notários,
Joaquim Barbosa defendeu a plena retroatividade da declaração de inconstitucionalidade. O Ministro alegou
que seus colegas “deveriam se inteirar das consequências da decisão”, com ênfase em “quem seriam os beneficiários”
(no caso, os notários). “Eu acho um absurdo”, afirmou. Já no caso do foro privilegiado, Joaquim Barbosa não
chegou a votar, mas alegou que haveria “consequências graves” caso o Supremo votasse pela retroatividade, já
que inúmeros julgamentos seriam anulados. Foi aqui que Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa começaram a se
acusar de julgar por classes. Gilmar Mendes acusou o Ministro Joaquim Barbosa de dar parâmetro ideológico ao
julgamento dos notários, que, afinal, haviam contribuído para o sistema previdenciário como todos os demais
servidores. “Eu sou atento às consequências das minhas decisões, só isso”, redarguiu Barbosa. Todas as falas foram
obtidas no sítio do STF na internet (<http://www.stf.jus.br>). Acesso em: 02 maio 2009.
12
Em março de 2012, outra polêmica, em tons pragmatistas, ocupou a ordem do dia no Supremo. O STF, após
detectar falha na sistemática legislativa de edição de Medidas Provisórias, declarou inconstitucional a Medida
Provisória que havia criado o Instituto Chico Mendes. Alertado, pelo Advogado Geral da União, de que a
consequência de tal decisão seria a invalidação de mais de quinhentas outras Medidas Provisórias, o Supremo
acabou voltando atrás.
13
Merval Pereira, colunista do jornal O Globo, em coluna do dia 24 de abril de 2009, intitulada “Embate Político”,
a propósito da referida discussão entre os dois Ministros do Supremo, anotou o que segue (grifos nossos): “Mas
o bate-boca entre os dois Ministros revelou também um debate doutrinário latente, quando Gilmar Mendes
acusou Joaquim Barbosa de fazer ‘populismo judicial’, argumentando que ‘esse negócio de classe não cola’. Ao
que Joaquim Barbosa retrucou que levava em conta ‘as consequências’ de suas decisões. Gilmar Mendes estava
se referindo aos ataques que tem sofrido devido às últimas decisões do Supremo, como a de que o acusado
só ficará preso depois de acabarem todos os recursos legais. Mas revelava que também no Supremo há um debate
entre os ‘consequencialistas’, que interpretam a lei, atentos ao resultado da decisão, contra os ‘formalistas’, que se atêm
à letra da lei. Esse debate doutrinário é sério, e ocorre em vários lugares do mundo” (Clipping – Seleção de Notícias.
Disponível em: <http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2009/4/24/embate-politico>. Acesso
em: 02 maio 2009). Apenas uma consideração nossa, em tom crítico à reflexão de Merval Pereira: é discutível se
há, de fato, um debate, estruturado nesses termos, entre consequencialistas e formalistas no Supremo brasileiro.
A hipótese mais plausível é a de que todos os ministros sejam, em momentos diferentes, consequencialistas ou
formalistas. Não parece haver uma coerência interna a respeito das teorias da decisão judicial adotadas por cada
ministro.
14
Cf. BARROSO. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Atualidades Jurídicas – Revista
Eletrônica do Conselho Federal da OAB; CAMPOS. Dimensões do Ativismo Judicial do STF.
15
As relações entre a atuação do Poder Judiciário e o princípio democrático, na atuação cotidiana e no exercício da
jurisdição constitucional, vêm sendo tratadas em larga escala na produção bibliográfica dos últimos anos. Numa
lista não exaustiva, cf.: SOUZA NETO et al. (Coord.). Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no
direito constitucional; MAUÉS (Org.). Constituição e democracia; BINENBOJM. Uma teoria do direito administrativo:
direitos fundamentais, democracia e constitucionalização; SOUZA NETO. Teoria constitucional e democracia
deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação
democrática. BARROSO. Razão Sem Voto. De nossa autoria, seja-nos concedido mencionar MENDONÇA.
Ulisses e o superego: novas críticas à legitimidade democrática do controle judicial de constitucionalidade das
leis. Revista de Direito do Estado. O tema da democracia — em especial o da democracia deliberativa — será
estudado no próximo capítulo do livro.
16
CYRINO. Direito constitucional regulatório: elementos para uma interpretação institucionalmente adequada da
Constituição econômica brasileira (a dissertação foi publicada pela editora Renovar em 2010 com o mesmo
título). ARGUELHES. Deuses pragmáticos, mortais formalistas: a justificação consequencialista de decisões
judiciais, especialmente item 4.1 - A ‘virada institucional’ no debate sobre interpretação jurídica, f. 177-183.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
26 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
É dentro desse contexto que se inicia, então, um debate em prol de uma atuação
que se quer mais controlada. Acenderam-se os “refletores coloridos do pragmatismo”17
sobre a prática jurídica. Pretende-se, então, direcionar tal luz provocativa até algumas
zonas escuras do Direito Constitucional Econômico, na esperança de que não haja
cômodo subaproveitado nessa “casa” que é o Ordenamento.
anotações, dois artigos, hoje clássicos, vieram a lume.23 Mas não foi por esses artigos,
nem por Charles Peirce, que o pragmatismo se tornou conhecido: foi William James
quem, muito tempo depois, a partir de uma conferência na Universidade de Berkeley,
na Califórnia, popularizou e difundiu o termo, as ideias e o amigo.24
Popularizou, mas não respeitou integralmente a fonte. O pragmatismo de Peirce,
um lógico, era mais modesto e árido do que a versão de William James. Tratava-se, em
essência, de uma teoria da significação; uma proposta a respeito do que podem significar
os conceitos linguísticos em relação às coisas do mundo. Seus limites terminavam mui-
tíssimo antes das derivações políticas e sociais a que chegou William James, e, principal-
mente, John Dewey, terceiro autor da santíssima trindade dos pragmatistas clássicos.
Peirce propunha uma Filosofia da Ciência reformulada pelo pragmatismo. O
significado de um conceito equivaleria às consequências de uma deliberada negação
ou afirmação daquele termo.25 Existiriam três graus de clareza conceitual. O primeiro
grau seria o da capacidade de se utilizar a palavra adequada (por exemplo, o uso de
“elétrico”, e não o de “sonoro”, para descrever o fenômeno envolvido com colocar um
dedo na tomada). O segundo seria a capacidade de fornecer uma definição, verbal
ou escrita. O terceiro grau requereria a compreensão de seu significado pragmático.
“Se alguém é capaz de definir, de modo acurado, todos os fenômenos experimentais
concebíveis que decorreriam da afirmativa ou da negação de um conceito, esse alguém
possuirá uma completa definição do conceito, e não há absolutamente mais nada nele”.26
Usando exemplo do próprio Peirce, o que significamos quando falamos que uma
substância é dura é que ela será capaz de riscar vidros, resistir a ser entortada etc. A
soma de tais efeitos práticos é o conceito de “dureza”. Não há uma essência abstrata:
“dureza” é o conjunto de todos os efeitos práticos das coisas duras.27
William James apropriou-se28 daquilo que chamou de “princípio de Peirce, o
princípio do pragmatismo” e, a partir de algo que era uma regra metodológica relativa
“palavra feia o suficiente para mantê-la livre de sequestradores” [PEIRCE, Charles Sanders. Pragmatism and
Pragmaticism. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected Writings, p. 166]. Outra observação: a
expressão “pragmatismo” é de origem kantiana. Na Introdução à Metafísica dos Costumes, Kant distingue entre
pragmático e prático. Este se refere às leis morais apriorísticas, enquanto “pragmático” diz respeito às normas
da arte e da técnica que são baseadas na experiência. Charles Peirce fez, assim, opção terminológica consciente.
Para essa explicação, consultamos Peirce, “The Development of American Pragmatism” [In: THAYER (Org.).
Pragmatism: the Classical Writings, p. 23-24].
23
PEIRCE. The Fixation of Belief. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected Writings, p. 107-126;
PEIRCE. How to Make our Ideas Clear. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected Writings, p.
127-150.
24
Cf. Menand (The Metaphysical Club: a Story of Ideas in America, cap. 9 - The Metaphysical Club e cap. 13 -
Pragmatisms). À época em que proferiu sua palestra, enquanto William James era Professor de Harvard e
uma celebridade acadêmica internacional, Peirce estava, quase literalmente, na sarjeta: embora filho de um
prestigioso Professor de Harvard, foi demitido de seu cargo na Universidade Johns Hopkins por causa de um
escândalo conjugal; também havia sido demitido de uma entidade federal de pesquisa científica (a U.S. Coastal
Survey). Vivia obscuramente, em 1898, data da conferência de William James, na Pensilvânia, numa enorme
casa aos pedaços, depois de anos ao relento pelas ruas de Nova Iorque.
25
PEIRCE. A Definition of Pragmatism. In: MENARD (Org.). Pragmatism: a Reader, p. 56.
26
PEIRCE. Pragmatism and Pragmaticism. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected Writings, p. 162.
27
MENAND. An Introduction to Pragmatism. In: MENAND (Org.). Pragmatism: a Reader, p. xiv.
28
O mais famoso biógrafo de William James, Ralph Barton Berry, ele próprio importante filósofo norte-americano,
acreditava que o que hoje chamamos de pragmatismo é, na verdade, o resultado da incompreensão de James em
relação à obra de Peirce. Em suas palavras, “é uma interessante questão essa de saber se é possível ‘derivar’ de
um filósofo ideias que ele nunca teve; ou se é possível que alguém possa razoavelmente duvidar da paternidade
de um filho que, conforme vai ficando mais velho, torna-se progressivamente mais dessemelhante em relação
a seu pai. Talvez seja correto, e o mais justo para todas as partes envolvidas, dizer que o movimento moderno
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
28 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
conhecido como pragmatismo é, em grande parte, o resultado da incompreensão de James em relação a Peirce”
(BERRY. The Thought and Character of William James, p. 281).
29
JAMES. Philosophical Conceptions and Practical Results. University Chronicle, p. 291.
30
Em rigor, William James não está propondo apenas, como observa Bertrand Russel, um teste da verdade; para
James, isto é o próprio significado da verdade (RUSSEL. The Philosophy of William James. In: GOODMAN.
(Ed.). Pragmatism: Critical Concepts in Philosophy, p. 199).
31
“É impressionante ver como muitas disputas filosóficas desaparecem na insignificância no momento em que
você as submete a esse teste simples de traçar uma consequência concreta. Não pode haver diferença naquilo que
não faz nenhuma diferença — nenhuma diferença numa verdade abstrata que não se expresse numa diferença
num fato concreto e, assim, numa conduta relacionada com aquele fato, conduta imposta a alguém, de alguma
forma, em algum lugar, em algum momento. Todo o propósito da filosofia devia ser, então, descobrir qual
diferença faria, para você ou para mim, em certo momento de nossas vidas, se essa ou aquela fórmula genérica
fosse verdadeira” [JAMES. What Pragmatism Means. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected
Writings, p. 293].
32
“Um pragmatista vira suas costas, de modo resoluto e de uma vez por todas, a uma série de hábitos inveterados
caros aos filósofos profissionais. Ele abandona a abstração e a insuficiência, as soluções verbais, as péssimas
razões a priori, os princípios imutáveis, os sistemas fechados, as pretensas Origens, os supostos Absolutos. Ele
vai em direção à concretude e à adequação; aos fatos, à ação e ao poder. [...] [O pragmatismo] Significa o ar
livre e as possibilidades da natureza, contra o dogma, a artificialidade, e a pretensão de finalidade na verdade”
[JAMES. What Pragmatism Means. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected Writings, p. 293, grifos
no original].
33
JAMES. Philosophical Conceptions and Practical Results. University Chronicle, p. 307, grifos no original.
34
“Suas aspirações [do pragmatismo] não se detinham no esclarecimento dos conceitos; tal coisa era importante
apenas como meio para potencializar a ação. E é precisamente este confessado ideal o ponto de partida de uma
imagem distorcida do pragmatismo que, ainda hoje, circula no mercado mais superficial das ideias, no qual,
com bastante frequência, faz-se com que o pragmatismo pareça um pensamento chato e banal, que glorifica
o rendimento prático das concepções humanas, entendido este em termos de interesse individual imediato,
e despreza as formas mais elevadas de realização intelectual, as quais se supõem desvinculadas de qualquer
demanda prática. Os que, alguma vez, aproximaram-se das obras de James, Peirce ou Dewey, ou, inclusive,
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
29
Charles Peirce, William James, John Dewey. Apesar das diferenças entre o pen-
samento de cada um, há consenso de que, com eles, foram estabelecidas as bases do
pragmatismo filosófico.
Pode-se dizer que, a partir do percurso teórico representado pela tríade, o prag-
matismo passou de um método lógico para uma teoria ética, chegando a se tornar uma
teoria social.
Existem algumas questões clássicas envolvendo o pragmatismo filosófico que este
capítulo não poderia pretender esgotar. Se não esgota, ao menos apresenta: existe, em
termos técnicos, uma “filosofia pragmatista”?39 Quantos pragmatismos existem: um,
apenas de suas biografias, sabem até que ponto as conotações desta descrição são imerecidas” (FAERNA.
Introducción a la teoría pragmatista del conocimiento, p. 2, grifos no original).
35
DEWEY. The Need for a Recovery of Philosophy. In: SIDORSKY (Ed.). John Dewey: the Essential Writings, p. 71.
36
MENAND. An Introduction to Pragmatism. In: MENAND (Org.). Pragmatism: a Reader, p. xxiv.
37
DEWEY. Truth and Consequences. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected Writings, p. 346.
38
POGREBINSCHI. Pragmatismo: teoria social e política, p. 34-35. De próprio Dewey, acerca do tema, consultar
“The Need for a Recovery in Philosophy” (In: MENAND. Pragmatism: a Reader, p. 219-232): “A filosofia se
recupera quando ela deixa de ser um instrumento para lidar com os problemas dos filósofos e se transforma
num método, cultivado por filósofos, para lidar com os problemas dos homens”.
39
Ángel Faerna estabelece três critérios com base nos quais um pensamento pode ser tido como constituinte
de uma escola filosófica: (i) suas fontes históricas, (ii) seu conteúdo doutrinário e (iii) seu prolongamento
no pensamento posterior. Em todos esses requisitos, o pragmatismo filosófico é problemático. Suas raízes
históricas são confusas. A crer em James, o pragmatismo possuiria antecedentes tão distintos quanto Sócrates,
Aristóteles, Kant, Stuart Mill, Francis Bacon, Spinoza, Locke, Hume. Em segundo lugar, o conteúdo doutrinário
não é menos confuso: as teorias de Peirce, James e Dewey — para ficar apenas nesses três — diferem em
importantes pontos. Finalmente, a herança do pragmatismo não seguiu os moldes filosóficos tradicionais. Ela
é sentida não apenas na Filosofia, mas, também, na literatura, no Direito, na psicologia, na teoria da educação
etc. O que ficou não foi um corpo teórico mais ou menos consistente — como, digamos, a “filosofia platônica”
ou a epistemologia kantiana —; antes, foram algumas ideias seminais, que, originadas dos clássicos, vieram
a ser disseminadas no mundo contemporâneo, até o ponto em que não se poderiam mais reconduzir a uma
unidade original. Assim, conclui Faerna, o pragmatismo não pode ser tido, ao menos em termos rigorosos,
como uma “escola” ou um corpus teórico. No entanto, e aqui uma observação interessante do autor espanhol, o
pragmatismo filosófico deve ser visto a partir de lentes pragmáticas, isto é, a partir de seus efeitos discerníveis
no pensamento e na cultura posterior (FAERNA. Introducción a la teoría pragmatista del conocimiento, p. 3-6). Em
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
30 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
treze, tantos quantos sejam os autores que resolvam escrever sobre o tema?40 Em que
medida o pragmatismo é algo inovador na tradição filosófica, ou representa tão somen-
te, como William James queria, um novo nome para velhas formas de pensamento?41
O pragmatismo é uma “filosofia” da realidade, da ação, da experimentação. Filha
de um tempo e de um lugar — o século XIX nos Estados Unidos —, reagindo a um ini-
migo demarcado: o realismo e o racionalismo hegemônicos na academia anglo-saxã do
final daquele século, talvez seja a Filosofia mais adaptativa à modernidade.42 Há quem
nele veja ecos do ceticismo de Hume e do positivismo, mas também do marxismo e do
darwinismo. Seu propósito, se é que assim se pode falar de uma Filosofia tão multifária,
é o de resgatar o valor da experiência: num mundo cindido em dualismos anódinos —
objetos mentais versus mundo extramental, teoria versus prática, cultura humanística
versus cultura científica —, o pragmatismo quer depurar nossa compreensão de con-
ceitos viciadamente abstratos. Como há continuidade, e não separação, entre teoria e
prática, depurar nossos conceitos de muitas das noções vagas que muitas correntes
filosóficas fizeram correr em nossa consciência cotidiana — e isso por intermédio de
um apelo a que olhemos para as consequências concretas da adoção desta ou daquela
proposição — é, ao mesmo tempo, contribuir para que o pensamento possa ser mais
eficaz, e a conduta, mais inteligente.43
nossa opinião, seguindo Faerna, não existe uma “filosofia pragmatista” — mas claramente existe uma atitude
filosófica pragmática. Também é possível falar, não num cânone pragmatista, mas, ecoando Wittgenstein, numa
família de pensadores pragmatistas, compartilhando interesses, posturas, atitudes.
40
Mais um assunto inevitável nos livros que tratam do pragmatismo filosófico. O primeiro autor a defender
a existência não de um, mas de vários pragmatismos — precisamente treze —, foi Arthur Oncken Lovejoy,
num artigo chamado “The Thirteen Pragmatisms” (1908). Lá, ele sustentava que, deixando de lado algumas
observações laterais dos diversos autores, existiriam, à época, treze pragmatismos, todos independentes entre
si. Ainda, dizia que o pragmatismo era mais reconhecido por sua originalidade e inventividade do que por sua
capacidade de autoanálise, e que, por isso, às vezes se criticava um pragmatismo por todos, ou por vários outros;
far-se-ia mister, então, diferenciá-los um a um, o que ele ora se propunha a fazer [LOVEJOY. The Thirteen
Pragmatisms. In: GOODMAN (Ed.). Pragmatism: Critical Concepts in Philosophy, p. 159-174]. Há, ainda, quem
defenda que o pragmatismo é um único pensamento — mas um único pensamento multifário. Nesse sentido,
Matthew Festenstein (Pragmatism & Political Theory: from Dewey to Rorty, p. 3 et seq.). O pragmatismo filosófico
é diversificado desde suas origens; nem os propósitos nem os tons de seus fundadores foram os mesmos. Peirce
queria, essencialmente, reformar a Filosofia da Ciência; seu tom admite passagens como: “A verdade É ASSIM,
quer você ou eu ou qualquer outra pessoa acredite nisso ou não”. Já James pretendia abrir espaço para as crenças
religiosas numa era que se mostrava pouco afeita a isso. Sua máxima pragmática é menos técnica e “lógica” (no
rigor da palavra). Finalmente, as aspirações de Dewey circulam em torno a uma epistemologia reconstruída,
na qual o conhecimento constitui ou altera seus objetos. Três preocupações diferentes. Três pragmatismos? [V.
HAACK. Preface. HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected Writings, p. 9-12].
41
Com o lançamento de seu livro, em 1907, William James esperava inaugurar algo “próximo à reforma
protestante”. Apesar disso, et pour cause, ele se preocupou com a estratégia de apresentação: para não soar
muito revolucionário, e, daí, possivelmente, perder adesões, James, a partir do subtítulo, tratou de desarmar
ânimos. Pragmatism – A New Name for Some Old Ways of Thinking. A julgar pelo extenso número de antecessores
que William James cita para sua filosofia, esse seria de fato o caso. Existem os que pensam de modo contrário.
A singularidade do pragmatismo filosófico não estaria em seu conteúdo doutrinário — até porque bastante
variado —, mas na propositura de um método, não de um método qualquer, mas de um método “com atitude”
(mais uma vez, nas palavras de William James).
42
E, talvez, até mesmo à pós-modernidade, como não cansam de demonstrar uma série de pensadores pós-
modernos, em especial americanos, que recorrem ao antifundacionalismo do pragmatismo clássico (v. adiante
no texto principal) quando buscam raízes nativas para seu pensamento.
43
FAERNA. Introducción a la teoría pragmatista del conocimiento, p. 6-9.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
31
44
POGREBINSCHI. Pragmatismo: teoria social e política, p. 24, 62.
45
Observe-se que a “matriz pragmatista” da professora Thamy deve ser tida pelo que é: a proposta de uma autora
para um agregado explicativo de características centrais do pensamento dos três principais autores do pragmatismo
filosófico clássico. A matriz pragmatista não é, de forma alguma, “o” pragmatismo, seja filosófico ou jurídico. O
direito brasileiro vem se apropriando, nos últimos tempos, com variados graus de propriedade, da proposta da
professora Thamy (inclusive este livro). Mas é importante acercar-se com precisão da expressão.
46
BRINT; WEAVER. Introduction. BRINT; WEAVER (Org.). Pragmatism in Law and Society, p. 1.
47
Há passagens na obra de Charles Peirce que podem apontar para um pragmatismo metafísico. Sua pretensão
seria a de fundar uma Metafísica baseada na ciência. Assim, por exemplo, quando compara seu pragmatismo
ao positivismo de Comte, Peirce, citado por Susan Haack, afirma que, “ao invés de simplesmente criticar a
Metafísica, o pragmatismo extrai dela uma essência preciosa”. Em outros trechos, Peirce considera a Metafísica
como a “Paris do intelecto: excitante, porém perigosa”, e sustenta que “quase todas as proposições da metafísica
ontológica são bobagens”. Mas, uma vez que essas bobagens sejam neutralizadas, pode começar o trabalho
dessa nova Metafísica, uma “Metafísica científica” (HAACK. Introduction. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old
& New: Selected Writings, p. 16, 20).
48
ETCHEVERRY. O fundacionismo clássico revisitado na epistemologia contemporânea, p. 34-35. O fundacionismo
surge, classicamente, como tentativa de resposta ao trilema de Agripa, segundo o qual só existiriam três soluções
para uma cadeia de argumentos: ou se termina numa suposição arbitrária; ou se retorna ao ponto de partida,
perfazendo, assim, movimento circular; ou se regressa infinita e eternamente. O fundacionismo responde ao
desafio pressupondo uma base, formada por uma crença fundamental justificada de modo independente, não
inferencial, a partir da qual as demais crenças serão justificadas.
49
ARISTOPHANES. The Clouds. Ainda, Alfonso Morales (Renascent Pragmatism: Studies in Law and Social
Science, p. xiv): “O pragmatismo afasta a pura e simples criação de conceitos em favor do desenvolvimento de
ferramentas capazes de auxiliar na compreensão do mundo que observamos e das regras que o produzem”.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
32 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
mundo. Teorias são instrumentos da experiência viva, não brinquedos nas mãos de
intelectuais.50
Quanto ao (ii) consequencialismo, acerca do qual vamos dedicar todo um item
a seguir, basta dizer, nesse momento, que se trata de característica do pragmatismo
filosófico que prioriza as consequências do ato, teoria ou conceito. Há muita discussão
teórica acerca das proximidades e distanciamentos do consequencialismo — que mui-
tas vezes é usado como sinônimo tout court de pragmatismo — em relação ao método
filosófico de Peirce e Cia. Por agora, recordemos a máxima pragmática: o significado
e a verdade de teorias e conceitos devem ser buscados por intermédio de uma análise
da diferença que fazem para a realidade. Ou seja, por um processo mental de adianta-
mento e avaliação de suas consequências. Donde nada mais natural do que apresentar
o consequencialismo como uma das características centrais, talvez a mais conhecida,
do pragmatismo filosófico.
O (iii) contextualismo não causa grandes dúvidas. É o destaque do contexto — so-
cial, político, histórico, cultural — na investigação filosófica e científica. Um pragmatista
filosófico não crê em abstrações atemporais, se não por seu antifundacionalismo, então
porque elas costumam se inserir num plano a-histórico, acima do tempo, do lugar e das
circunstâncias pessoais e culturais.
É porque o método pragmatista preza a diferença prática que as teorias possam
fazer — e só é possível perscrutar uma diferença prática a partir de um contexto real —
que o contextualismo assume importância como traço do pragmatismo. “O pragmatismo
é sempre contextual, o que significa que nunca examina nada de maneira isolada, mas
sim dentro de contextos que irão determinar seu sentido e seu valor”.51
Eis que a matriz pragmatista se completa: se não existem fundações que justi-
fiquem ou validem conceitos ou teorias, deve-se apreciá-las a partir de suas consequ-
ências, as quais só adquirem sentido dentro do contexto no qual estão inseridas. Os
deuses estão mortos; é hora de se preocupar com as consequências concretas de nossos
conceitos, juízos e ações, praticados por nós em nosso único mundo.
50
O antifundacionalismo não se confunde, embora seja próximo, com outra característica do pragmatismo
filosófico, a saber, o funcionalismo, a ideia de que as crenças são instrumentos para a ação. Segundo o
funcionalismo pragmatista, não agimos porque temos ideias, mas temos ideias porque devemos agir, e agimos
para alcançar determinados fins. A esse respeito, v. MENAND. The Metaphysical Club: a Story of Ideas in
America, p. 364.
51
DICKSTEIN. Introduction. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new Essays on Social Thought,
Law, and Culture, p. 8.
52
“Embora o pragmatismo e o modernismo frequentemente divirjam, e os primeiros pragmatistas tivessem
opiniões reticentes sobre Arte Moderna, o momento do pragmatismo foi, também, o momento do Cubismo
de Picasso e de Braque, da Teoria da Relatividade de Einstein, e de uma nova geração de literatura moderna”
(MENAND. An Introduction to Pragmatism. In: MENAND (Org.). Pragmatism: a Reader, p. 4).
53
V. MENAND. The Metaphysical Club: a Story of Ideas in America, p. 371 et seq. Fez tanto sucesso que é possível
dividir a filosofia americana em antes e depois do pragmatismo. Diversos autores relevantes dos Estados
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
33
Unidos pré-pragmatismo (como Thoureau, Emerson e Benjamin Franklin) teriam ficado esquecidos em função
do surgimento da “onda pragmática”. Cf. GOODMAN, American Philosophy before Pragmatism.
54
DICKSTEIN. Introduction. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new Essays on Social Thought,
Law, and Culture, p. 1.
55
GHIRALDELLI JÚNIOR. O que é o pragmatismo?, p. 23.
56
PIERCE WELLS. Why Pragmatism works for me. Boston College Law School – Legal Studies Research Paper Series,
p. 347-348.
57
Estamos, aqui, usando a expressão “desencantamento” no sentido técnico que ela passou a ter a partir de sua
utilização, como conceito-chave para o entendimento da sociedade moderna, por Weber. O “desencantamento
do mundo”, adaptação de Entzauberung der Welt — literalmente: a “desmagificação do mundo” —, é o processo,
ocorrido na sociedade moderna, por intermédio do qual a racionalidade técnica expulsou representações
mágicas tradicionais (Cf. PIERUCCI. O Desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber).
58
Em artigos como “Conscience and Compulsion”, “The Future of Pacifism”, “What America Will Fight For”,
“Conscription of Thought”, publicados originalmente na revista The New Republic, John Dewey defendeu
pragmaticamente a Primeira Guerra, além de criticar aquilo que via como excessos dos pacifistas.
59
O trecho original, em inglês: “On pragmatic principles we cannot reject any hypothesis if consequences useful
to life flow from it. Universal conceptions, as things to take account of, may be as real for pragmatism as
particular sensations are. They have indeed no meaning and no reality if they have no use. But if they have any
use they have that amount of meaning. And the meaning will be true if the use squares well with life’s other
uses”. Em nossa tradução: “De acordo com os princípios pragmáticos, não podemos rejeitar nenhuma hipótese
se dela decorrerem consequências úteis para a vida. Conceitos universais, enquanto algo a ser considerado,
podem ser tão reais para o pragmatismo como as sensações particulares o são. De fato, se não têm utilidade, não
têm significado nem realidade. Mas, se possuem algum uso, possuem aquela exata quantidade de significado.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
34 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
O ex-aluno de Dewey viveu pouco — morreu com trinta e dois anos —, mas seu
padrão de críticas ao pragmatismo fez pressentir as críticas subsequentes, e se somou
a algumas anteriores.61
Os tempos também mudaram: cada vez menos, o otimismo associado ao prag-
matismo tinha espaço, numa realidade devastada por duas guerras mundiais e uma
depressão econômica. Marxistas, como Theodor Adorno, viam-no como mera justifi-
cação do status quo; conservadores desconfiavam da crítica pragmática em relação aos
valores tradicionais.
E o significado será verdadeiro se o uso funcionar bem com os outros usos da vida”. Vê-se que William James
não concede carta branca ao pragmatismo para qualquer uso, mas busca não descartar, de modo a priori, as
verdades universais: pretende nelas descobrir significado a partir de suas utilidades, se é que possuem (JAMES.
Pragmatism, p. 105).
60
BOURNE. War and the intellectuals: collected essays (1915-1919), p. 53-64.
61
Um dos mais famosos ataques ao pragmatismo filosófico veio com Bertrand Russel, que, em dois artigos
(“Pragmatism” de 1909 e “The Philosophy of William James” de 1910), sustentou o caráter dogmático da nova
filosofia — se não existem verdades em si mesmas nem mesmo na tábua de multiplicação (3 x 3 = 9), mas,
apenas, a partir de suas consequências, resta a dúvida sobre se o pragmatismo é menos dogmático do que os
sistemas que pretendia substituir —, e cunhou frases fortes contra o movimento: “Se o pragmatismo triunfar,
então encouraçados e metralhadoras serão os árbitros finais da verdade metafísica”. Outra crítica de Russel
deriva do que ele percebia como identificação vulgar entre verdade e utilidade na filosofia de James: “Ora”,
argumentava, “como qualquer um percebe, há verdades que não são úteis, assim como existem proposições
úteis que não são verdadeiras” (RUSSEL. Pragmatism. In: GOODMAN (Ed.). Pragmatism: Critical Concepts in
Philosophy, v. 1, p. 175-195). Ainda, republicado na mesma coletânea, do mesmo autor, “The Philosophy of
William James”, p. 198-201.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
35
62
Para uma defesa da ligação do pragmatismo com a integridade moral, partindo, sobretudo, das obras de Dewey,
v. ROSENBAUM. Recovering Integrity: moral thought in american pragmatism. O autor reconhece as diferenças
de tratamento, pelos pragmatistas, das questões morais típicas levantadas pelas correntes tradicionais da
filosofia, mas sustenta que, também para eles, a moral seria questão relevante: “A ética de Dewey, assim como
toda a tradição de pensamento pragmática acerca de valor, traz todo um novo foco não apenas às questões
morais, mas também às demais questões da filosofia tradicional. Moralidade, sociedade, ciência e religião,
na sua dimensão filosófica, tornam-se inseparáveis da humanidade, que simbioticamente as empodera. A
perspectiva pragmática, ao invés de nos diminuir como humanos, torna-nos mais nobres, lembrando que nossa
responsabilidade, como criaturas inteligentes e dotadas de propósito, são mais profundas e mais extensas do
que a filosofia tradicional dá conta” [p. X da Introdução].
63
A respeito de propostas de mudanças sociais trazidas por autores pragmatistas, cf. DIELEMAN; RONDEL;
VOPARIL (eds.). Pragmatism and Justice; WESTBROOK. Democratic Hope: pragmatism and the politics of hope;
SHALIN. Pragmatism and Democracy: studies in history, social theory and progressive politics.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
36 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
contrapor, com licença poética, um lema do pragmatismo filosófico que fosse assim:
“seja pragmático, crie um novo possível”.
Além disso, o pragmatismo filosófico não é uma glorificação da ação pela ação,
como faz crer a crítica (iii). John Dewey defende seu papel intermediário. É claro que a
filosofia pragmatista tem a ver com a ação, mas, apenas, como degrau para uma fina-
lidade, qual seja, o significado dos conceitos (ou das teorias ou da verdade). Em suas
palavras:
É comum dizer do pragmatismo que ele faz da ação a finalidade da vida. Diz-se, ainda, que
ele subordina o pensamento e a atuação racional a finalidades particulares de interesse e
de proveito. É verdade que a teoria, de acordo com a concepção de Peirce, implica essen-
cialmente uma relação com a ação, com a conduta humana. Mas o papel da ação é o de um
intermediário. Para que se possa atribuir um significado aos conceitos, deve-se ser capaz de
aplicá-los à existência. E é por intermédio da ação que esta aplicação se torna possível. A
modificação da existência que resulta dessa aplicação é o verdadeiro significado dos conceitos.
O pragmatismo, assim, está longe de ser a glorificação da ação pela ação que é tida como a
característica peculiar da vida norte-americana.64
À parte qualquer defesa que se possa fazer, há quem diga que os pragmatistas
clássicos não conseguiram estar à altura do volume das críticas. Outros dizem que o
fim do interesse no assunto decorreu da necessidade acadêmica por novidades: quando
um autor trata de um assunto novo, ele se diferencia de seus antecessores e contempo-
râneos e, com isso, ganha prestígio.65 Fato é que o pragmatismo filosófico, de um ápice
acentuado, sumiu de cena por alguns bons anos.
64
DEWEY. The Development of American Pragmatism. In: THAYER (Org.). Pragmatism: the Classical Writings, p. 25.
65
MORALES. Foreword. In: MORALES (Org.). Renascent Pragmatism: Studies in Law and Social Science, p. xvii.
66
RORTY. Philosophy and the Mirror of Nature.
67
RORTY The Pragmatist Progress. In: COLLINI (Org.). Interpretation and Overinterpretation, p. 93. A acusação
de que Peirce buscava uma associação com o número três em tudo, numa espécie de “triadomania”, é
contemporânea à vida do lógico, merecendo resposta do autor. O prefácio ao manuscrito The Quest for the Quest –
An Inquiry into the Sucess of Inquiry chama-se “Author’s Response to the anticipated suspicion that he attaches
a superstitious or fanciful importance to the number THREE, and forces Divisions to a Procrustean Bed of
THRICOTOMY”, e, nele, Peirce apresenta, de forma algo jocosa, três argumentos contrários a essa afirmação: 1.
Ele teria usado diversas outras divisões (de vinte e nove divisões em sua obra, apenas cinco seriam tricotomias);
2. O problema das classificações científicas seria extremamente complexo; 3. Dever-se-ia entender que há
diferença entre o raciocínio matemático e outros tipos de raciocínio, de modo que uma numeração repetida não
significaria muita coisa. Mais sobre o tema, v. SPINKS. Peirce and Triadomania: a walk in the Semiotic Wilderness.
68
BORRADORI. A filosofia americana: conversações com Quine, Davidson, Putnam, Nozick, Danto, Rorty, Cavell,
Macintyre e Kuhn, p. 149.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
37
Ressurgiu não com um suspiro, mas com uma explosão. Rorty defendia um
rompimento com a então predominante tradição analítica da Filosofia norte-americana
mainstream, a “Filosofia dos filósofos”, a Filosofia acadêmico-profissional que ganhou
projeção, segundo ele, por uma rejeição ideológica às filosofias materiais, associadas
ao nazismo.69
Contra essa Filosofia anódina, melhor seria resgatar uma filosofia com “f” mi-
núsculo, uma disciplina dentre outras, sem maiores pretensões a um acesso exclusivo
a alguma Verdade; uma filosofia que fosse uma espécie de crítica cultural, sem medo
do tom literário, e que servisse, apenas, para comparar as diversas visões de mundo.70
“O que os pragmatistas estão a dizer é que a maior esperança para a filosofia é não
fazer Filosofia. Pensam que pensar sobre a Verdade não ajuda a dizer algo verdadeiro,
nem pensar sobre o Bem ajuda a agir bem, nem pensar sobre a Racionalidade ajuda a
ser racional”.71 Nessa “cultura pós-filosófica”, não se busca a Verdade, nem a Filosofia
é algo de especial. É, apenas, um estudo comparativo das diversas narrativas criadas
pelo homem: literatura, ciência (“um gênero de literatura”), Ética.72 Outros temas do-
minantes em sua produção acadêmica centram-se em reflexões acerca do pluralismo,
da solidariedade e da ironia, entendida, esta, não como humor ácido, mas como uma
espécie de desencanto transgressivo, que impulsiona o intelectual em direção a uma
“utopia liberal” que não surge da história nem da natureza humana, mas que é cons-
truída pelos próprios indivíduos.73
O “neopragmatismo” de Rorty — o pensamento ficou assim conhecido —, tal
como descrito, assemelha-se, bem vistas as coisas, a certas propostas teóricas pós-
modernas, descrentes das chamadas grandes narrativas, “desconstrutivas”, críticas.74
O que isso tem a ver com o pragmatismo de Peirce, James e Dewey?
Salvo com o de Peirce, muita coisa, afirma Rorty. Quase nada, afirmam outros.
Explica-se.
Os propósitos de Peirce sempre foram científicos. Ele destacava a importância da
atitude científica. Acreditava ser possível chegar a uma verdade, provisória que fosse,
graças ao consenso da comunidade de investigadores. A grande proposta de Charles
Peirce era a reforma da Filosofia da Ciência pela introdução da máxima pragmática.
69
BORRADORI. A filosofia americana: conversações com Quine, Davidson, Putnam, Nozick, Danto, Rorty, Cavell,
Macintyre e Kuhn, p. 151.
70
“A fortiori, tal cultura não conteria ninguém chamado ‘o Filósofo’, que pudesse explicar como e porque é que
certas áreas da cultura gozariam de uma relação especial com a realidade. Tal cultura conteria, sem dúvida,
especialistas em ver como as coisas são compatíveis. Mas seriam pessoas que não teriam ‘problemas’ para
resolver, nem nenhum ‘método’ especial para aplicar, não estariam submetidas a normas particulares, não
teriam uma auto-imagem coletiva enquanto uma profissão. [...] Seriam intelectuais para todas as tarefas, que
estariam prontos a oferecer um ponto de vista sobre quase tudo, na esperança de o tornar compatível com tudo
o mais” (RORTY. Consequências do pragmatismo, p. 41).
71
RORTY. Consequências do pragmatismo, p. 15.
72
RORTY. Consequências do pragmatismo, p. 42.
73
RORTY. Contingency, Irony, and Solidarity. Neste livro, Rorty cria a figura do “irônico liberal” (ou “ironista
liberal”, como aparece em algumas traduções), que é o sujeito que reconhece a contingência de todas as suas
crenças, mas, mesmo assim, acredita na existência de um mal extremo na existência humana — a crueldade e
a humilhação —, e aposta em seu desaparecimento. Há nessa figura, ainda, um terceiro valor: a solidariedade,
não apenas como ajuda humanitária, mas como evitação da humilhação. Desenvolver em Gabriel Bello Reguera
(Rorty y el Pragmatismo. Doxa – Cuadernos de Filosofía del Derecho).
74
Essa é uma das diferenças entre o pragmatismo clássico e o pragmatismo de Rorty e contemporâneos. Se o
primeiro é associado às ideias de transformação social, sobretudo em Dewey e James, o novo pragmatismo
se associa às ideias deliberadamente multifárias do pós-modernismo. Sobre a passagem do progressismo ao
pós-modernismo na filosofia pragmática, v. HOLLINGER & DEPEW (eds.), Pragmatism: From Progressivism to
Postmodernism. Ainda, cf., MALACHOWSKI. The New Pragmatism, p. 8 e ss.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
38 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Isso nada tem a ver com o programa filosófico de Rorty, para quem a ciência é apenas
mais um discurso, e as preocupações com método e estrutura de argumentos devem
ser deixadas para trás conforme as pessoas forem se dando conta de que “conhecer
nossos desejos é conhecer o critério da verdade”.75
Há outros pontos de discordância entre o pragmatismo clássico e o neopragma-
tismo de Rorty. No primeiro pragmatismo, ainda que o conceito de verdade não possa
ser dado a priori, ele pode ser buscado com a projeção das consequências. Para Rorty,
a ideia de procura da verdade deve ser, simplesmente, descartada.76 Em outro ponto,
a ênfase do pragmatismo clássico no conceito de experiência — o conjunto de crenças
presentes na sociedade e a forma como elas se relacionam com as instituições e práticas
sociais — é substituída, em Rorty, pela preocupação com o conceito de linguagem, numa
demonstração de que nem o filósofo que pretendeu substituir a Filosofia Analítica passou
incólume pela “virada linguística”. Quando comparado às três características da matriz
pragmatista — o antifundacionalismo, o consequencialismo e o contextualismo —,
o neopragmatismo de Rorty só se identifica claramente com a primeira.77
Independentemente de o neopragmatismo ser ou não um velho nome para novas
ideias,78 ou uma antropofagia das crenças do antigo pragmatismo filosófico,79 fato é que
a reinterpretação idiossincrática de temas de James e Dewey, por Rorty, fez renascer
o pragmatismo. Pensando no que gerou — o ressurgimento do tema e a atualização
de seus conteúdos —, esse neopragmatismo filosófico é, sim, pragmático.80 Fiel ou não
às suas supostas origens, fato é que o neopragmatismo filosófico reabilitou o debate
pragmatista.
Reabilitado e repaginado, o pragmatismo explodiu, e, como costuma acontecer,
as partículas mais distantes acabam mantendo, apenas, leve semelhança com a matéria
original. Hoje temos o eco-pragmatismo,81 o pragmatismo feminista,82 além de estudos
acerca das ligações entre a literatura, a retórica e o pragmatismo,83 entre uma série de
outras possíveis ligações interdisciplinares que, se ainda não existem, serão imagina-
das por gerações e gerações de teóricos. Há quem fale até mesmo na existência de um
neoneopragmatismo, o qual seria professado pelos discípulos de Rorty.84
Nestes tempos pós-modernos, em que tudo se recicla, o pragmatismo filosó-
fico, antigo ou novo, deixou suas origens acadêmicas como teoria do significado ou
como teoria da verdade e passou a designar uma atitude geral em relação ao mundo.
75
RORTY. Essays on Heidegger and Others: Philosophical Papers, p. 31.
76
“Não que a verdade não exista, pois isso seria uma afirmação paradoxal, e, até mesmo, tola; o que Rorty diz
é que a questão da ‘natureza da verdade’ é dispensável” (GHIRALDELLI JÚNIOR. Uma nova agenda para a
filosofia. In: RORTY. Pragmatismo e política, p. 8).
77
POGREBINSCHI. Será o neopragmatismo pragmatista?: interpretando Richard Rorty. Novos Estudos CEBRAP,
p. 125-138.
78
POGREBINSCHI. Pragmatismo: teoria social e política, p. 183.
79
RAPOZO, Joana Tavares da Silva. El pragmatismo y el consecuencialismo jurídico: estudo de las teorías en el âmbito
conceptual, normativo e interpretativo del derecho, f. 26.
80
POGREBINSCHI. Será o neopragmatismo pragmatista?: interpretando Richard Rorty. Novos Estudos CEBRAP,
p. 138.
81
FARBER. Eco-pragmatism: Making Sensible Environmental Decisions in an Uncertain World. Ainda, MINTZ.
Some Thoughts on the Merits of Pragmatism as a Guide to Environmental Protection. Boston College
Environmental Affairs.
82
SEIGFRIED. Pragmatism and Feminism: Reweaving the Social Fabric.
83
POIRIER. Reading Pragmatically. In: MENAND (Org.). Pragmatism: a Reader, p. 437-455.
84
HAACK. Introduction: Pragmatism, Old and New. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected
Writings, p. 51.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
39
Muitíssimo mais geral do que a ideia inicial de ser apenas um método. O pragmatismo,
hoje, é uma orientação de espírito, aplicada à pesquisa ou à vida, em que se prefere a
ação e se rejeitam dogmas.
85
ARGUELHES; LEAL. Pragmatismo como (meta) teoria normativa da decisão judicial: caracterização, estratégias
e implicações, p. 7. Conferir, ainda, o verbete “Pragmatismo”, escrito por José Eisenberg, no Dicionário de filosofia
do direito coordenado por Vicente Barreto: “O pragmatismo jurídico é uma escola da Teoria do Direito que nasceu
nos EUA no início do século XX e que tem naquele país seus maiores expoentes. Sua principal característica é o
esforço de aplicar a tradição filosófica do pragmatismo ao problema da interpretação jurídica” (BARRETO. Dicionário de
filosofia do direito, p. 656, grifos nossos).
86
POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 149.
87
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, p. 41.
88
Exemplo disso é trazido pelo próprio Posner no livro The Problems of Jurisprudence (p. 179-184), quando,
partindo de pressuposições do pragmatismo filosófico, argumenta em prol de uma maior admissibilidade, no
Direito norte-americano, de confissões involuntárias extraídas, por exemplo, a partir da inoculação de “soros
da verdade” e de falsas promessas de punições brandas.
89
POSNER. The Problematics of Legal and Moral Theory, p. 227.
90
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, p. 42.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
40 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
ainda que alguns magistrados, quando lhes seja conveniente, não hesitem em apelar a
esse argumento convencional.91
O pragmatismo que realmente serve ao Direito, na visão de Posner, não é a
Filosofia acadêmica, nova ou antiga, mas um pragmatismo cotidiano. Uma disposição
de espírito “direto à ação”, com pouca paciência para teorias. Não que o pragmatismo
filosófico seja incompatível com tal postura; é compatível, mas independente. As dife-
renças são institucionais. O pragmatismo filosófico é um discurso acadêmico, técnico,
expresso numa linguagem abstrusa, enquanto o pragmatismo cotidiano é, simplesmente,
uma postura prática de “resolvedor de problemas”. Numa contraposição ilustrativa,
Posner diz que o pragmatista filosófico é o sujeito que explica que o senso comum é
um bom método para solucionar problemas, enquanto o pragmatista cotidiano é quem
vai lá e os resolve.92
Thomas Grey concorda em parte com Posner. Sustenta que o pragmatismo
jurídico pode ser defendido sem que se precise sequer conhecer o pragmatismo filosó-
fico, novo ou antigo. Após indicar os pontos em comum aos dois pragmatismos — o
contextualismo e o instrumentalismo —, explica que tais pontos representam coisas
parcialmente diferentes para cada pragmatismo. O contextualismo filosófico até pode
ser absorvido pelo ecletismo autoconsciente do mundo do Direito, que se serve de
teorias com o propósito claro de produzir convencimento.
Em certa medida, diz Grey, o Direito aplicado, o Direito em ação, não deixa
de ser contextualista e antifundacionalista, pois incorpora uma completa ausência
de fundamentos últimos: respeitados certos limites institucionais e práticos (prazos,
endereçamento, estilo de linguagem, apelo a precedentes etc.), não defende um ideal
último, mas apenas o interesse do cliente ou a correção da sentença, fazendo uso de
todos os instrumentos possíveis. O instrumentalismo da filosofia é uma crítica ao es-
capismo percebido nos temas clássicos — “quem somos”, “de onde viemos” —, em
91
Usamos aqui o termo “convencional” na acepção cunhada pelo sociólogo americano Charles Tilly. No livro
Why? – What Happens When People Give Reasons... and Why, o Professor de Princeton propôs quatro categorias de
razões de que utilizamos para justificar nossas condutas. São elas as convenções, as histórias, os códigos e os relatos
técnicos. Relatos técnicos são descrições minuciosas, frias, tendencialmente objetivas, acerca de acontecimentos
do mundo. Um parecer técnico, um laudo acerca de um acidente aéreo. Já os códigos são razões baseadas em
categorias, procedimentos, regras. Os argumentos jurídicos comumente são códigos, mas também o são os
códigos dos rituais cívicos ou religiosos, as maneiras pelas quais se torna inteligível uma canção etc. Histórias
são relatos altamente pessoais e simplificados, carregados nas tintas dramáticas, que pretendem justificar ações
individuais. Por fim, convenções são razões que, desprovidas de conteúdo técnico, são aceitas muito mais
por uma questão de adequação do que de relação lógico-causal, e que costumam ser expressas em fórmulas
estereotipadas (“Deixe de ser bobo, menino”). Além de traçar as categorias de razões, Tilly defende que cada
um dos tipos de razões tenha seu propósito específico: quando um casal está em crise, e o marido conta uma
história (“Desde que arrumei meu novo emprego, tenho tido menos tempo para nós [...]”), expressa seu
desejo de reconciliação e de conservação do vínculo, ao passo que, ao recorrer a uma convenção (“A culpa
é minha, não sua”), está marcando uma posição de isolamento e de aceitação de uma eventual separação. O
autor sustenta que o conflito entre as categorias de razões e suas diferentes finalidades é endêmico ao mundo
jurídico: as demandas judiciais surgem em histórias, mas se resolvem em códigos — os quais, aptos a responder
à imparcialidade exigida pelo Ordenamento Jurídico, são, todavia, incapazes de “curar” as personalíssimas
feridas deixadas pelas lesões. Voltando ao tema do livro: razões como “apenas apliquei a lei aos fatos”, inseridas
no discurso jurídico, são convenções, razões estereotipadas que apelam ao encerramento do diálogo a partir de
uma suposta adequação baseada na figura institucional do magistrado. Fogem completamente à razão-padrão
do mundo do Direito — o código —, e, quase sempre, prestam-se a encerrar, de modo indevido e autoritário,
um discurso para o qual não se encontra, ou não se quer encontrar, uma razão baseada num código imparcial.
Cf. TILLY. Why?: What Happens When People Give Reasons... and Why.
92
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, p. 50-52.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
41
93
GREY. Freestanding Legal Pragmatism. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new Essays on Social
Thought, Law, and Culture, p. 254-274.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
42 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
94
David Luban fala que o sentido especial da pena (desestimular a prática do crime por outras pessoas) seria
juridicamente pragmatista por excelência — olha para frente, importando-se com as consequências do ato.
Já o sentido especial, de retribuir o mal causado, só poderia ser entendido com alguma percepção filosófica
profunda, porque, ao se imaginar que uma pessoa “merece” uma punição, isso só pode ocorrer à conta de sua
dignidade humana, e, ainda, com o propósito de reafirmar a dignidade da pessoa ofendida. V. LUBAN. What’s
Pragmatic about Legal Pragmatism. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new Essays on Social
Thought, Law, and Culture, p. 292.
95
Seria difícil justificar a vedação da autoincriminação em termos puramente pragmáticos. Ao contrário: mostrar-
se-ia útil (ao menos, dentro de conceito de utilidade que signifique “máxima eficiência persecutória”) se se
pudesse usar prova produzida pelo indivíduo contra ele mesmo. A vedação só se justificaria com base em
noções filosóficas acerca da dignidade humana. V. LUBAN. What’s Pragmatic about Legal Pragmatism. In:
DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new Essays on Social Thought, Law, and Culture, p. 292.
96
LUBAN. What’s Pragmatic about Legal Pragmatism. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new
Essays on Social Thought, Law, and Culture, p. 275-303, passim.
97
Por ex., como se faz em Thamy Pogrebinschi (A normatividade dos fatos, as consequências políticas das decisões
judiciais e o pragmatismo do Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito Administrativo, p. 181-193). Reitere-
se, entretanto, que a matriz pragmatista é uma aproximação teórica em relação ao pensamento de três autores
do pragmatismo filosófico clássico (Peirce, James e Dewey), cada um com especificidades em suas reflexões.
Assim, aplicar a matriz pragmatista em relação a institutos jurídicos e decisões judiciais é fazer indicar uma
transmigração de área (da filosofia para o direito) a partir de uma simplificação heurística (a própria “matriz
pragmatista”). Transitar de área e operar simplificações não se faz sem riscos e ruídos pelo caminho.
98
O juiz Oliver Wendell Holmes Jr., além de integrar, como se viu, o Clube Metafísico, também foi um dos
precursores do pragmatismo jurídico. Ou seja: ao menos em termos históricos, não há como negar algum grau
de conexão entre pragmatismo filosófico e pragmatismo jurídico. V. ALBERSTEIN. Pragmatism and Law: form
philosophy to dispute resolution (especialmente capítulo 1.3, “Progressive History”).
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
43
muitas vezes, retóricos, por que seria necessária uma depuração metódica a partir de
um saber estranho como a Filosofia aplicada (razão prática) ou a teoria da argumenta-
ção? Milhares de desembargadores puderam viver até hoje com seus “onde a lei não
distingue, não cabe ao intérprete distinguir” e seus “a lei é clara”. Não é por isso que
se vai excluir a Filosofia do Direito dos currículos.99
A questão é compreender que o pragmatismo jurídico só tem a ganhar se sua
defesa se fizer precedida de uma introdução ao pragmatismo filosófico. E isso vale
mesmo quando se aceita que são dois pragmatismos diferentes. Um filho é diferente
de um pai, mas, para entendê-lo a fundo, é interessante analisar a história da família.
Indício da utilidade, e, mesmo, da conveniência do estudo do pragmatismo
filosófico no debate sobre o pragmatismo jurídico é que, em muitas obras a respeito
deste, aquele está presente, nem que seja para provar que é inútil, ou não tão útil (é uma
autonegação, algo metalinguística, da importância da teoria filosófica do pragmatismo).
Ora, por que investir tanta energia na comprovação de que uma coisa não é útil?
Por que não gastar esse tempo, em vez de afirmar que o filho não é o pai — coisa com
a qual todos estamos de acordo —, para descobrir em que pontos o filho parece com
o pai, e em que medida essa carga genética pode significar algo de bom ou de ruim
para o mundo?
99
A respeito da utilidade da apreensão de conceitos filosóficos pelos juízes e demais operadores institucionais do
Direito, v. DWORKIN. Must our Judges be Philosophers?: can they be Philosophers?.
100
ÁVILA. Argumentação jurídica e a imunidade tributária do livro eletrônico. Diálogo Jurídico. Na classificação
de Ávila proposta neste famoso artigo, os argumentos “práticos”, que se dividem quanto ao conteúdo e quanto
ao resultado, são “não institucionais”, ou seja, “decorrentes apenas do sentimento de justiça que a própria
interpretação eventualmente evoca” (p. 7). Em outro trecho (p. 18), ele esclarece que “Os argumentos não
institucionais não fazem referência aos modos institucionais de existência do Direito. Eles fazem apelo a qualquer
outro elemento que não o próprio ordenamento jurídico. São argumentos meramente práticos que dependem de um
julgamento, feito pelo próprio intérprete, sob pontos de vista econômicos, políticos e/ou éticos. As consequências danosas
de determinada interpretação e a necessidade de atentar para os planos de governo enquadram-se aqui” (grifos
nossos). Nesse trecho, a explicação do uso do termo dá a entender que o argumento prático confunde-se com o
argumento consequencialista, o que não é o caso, como deixaremos claro ao longo do livro.
101
Noel Struchiner apud ARGUELHES. Argumentos consequencialistas e Estado de direito: subsídios para uma
compatibilização, p. 4, nota de rodapé n. 8.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
44 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
102
“A concreta garantia de direito fundamental surge como dependente dos meios financeiros estatais disponíveis.
A ‘impossibilidade econômica’ apresenta-se como limite — necessário — da garantia (prestacional) dos direitos
fundamentais” (BÖCKENFÖRDE. Escritos sobre derechos fundamentales, p. 65). A expressão “reserva do possível”,
de ascendência germânica, significa o limite financeiro ao custeio público dos direitos a prestações. Hoje em
dia, o tratamento científico da reserva do possível, e de suas implicações jurídicas e orçamentárias, centralizado
no debate acerca da sindicabilidade dos direitos prestacionais, é praticamente infindável. Apenas alguns
exemplos: GOUVÊA. O controle judicial das omissões administrativas: novas perspectivas de implementação dos
direitos prestacionais, passim (para a reserva do possível, p. 19-21); BARCELLOS. A eficácia jurídica dos princípios
constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana; SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais;
CAPITANT. Les effets juridiques des droits fondamentaux en Allemagne; GALDINO. Introdução à teoria dos custos
dos direitos: direitos não nascem em árvores; GIMÉNEZ. La exigibilidad de los derechos sociales; TORRES. O direito
ao mínimo existencial; HOLMES; SUNSTEIN. The Cost of Rights: why our Liberties Depend on Taxes; TAVEIRA.
Interpretação e eficácia dos direitos fundamentais: a responsabilidade do Estado na garantia dos direitos sociais.
103
É o caso de Chaïm Perelman. Sua definição para “argumento pragmático” faz com que este se confunda com
o argumento consequencialista: “Chamo de argumento pragmático um argumento das conseqüências que avalia
um ato, um acontecimento, uma regra ou qualquer outra coisa, consoante suas conseqüências favoráveis
ou desfavoráveis; transfere-se assim todo o valor destas, ou parte dele, para o que é considerado causa ou
obstáculo” (PERELMAN. Retóricas, p. 11, grifos no original). Não concordamos com o autor porque tal definição
corresponde a apenas uma das características do pragmatismo, que é o consequencialismo. A definição de
argumento pragmático é algo além, pois incorpora todos os elementos característicos da “matriz pragmatista”.
104
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 90. Mengoni afirma que, na Alemanha, usa-se
“argumentação orientada às consequências” (folgenorientierte Argumentation) em substituição a “argumento
consequencialista” (consequentialist argument), opção norte-americana. Afirma, ainda, que, embora “argumento
pragmático” seja gênero do qual “argumento consequencialista” é uma das espécies, na maioria das vezes
utiliza-se, de modo indistinto, um pelo outro.
105
Comentando acerca de Paul Feyerabend, Virgílio Afonso da Silva anotou o seguinte (com o itálico do original
e o sublinhado adicionado): “A leitura do trabalho de Feyerabend é extremamente recomendável, provocante
e instigante, principalmente como forma de desmistificar um pouco o papel da metodologia no progresso da
ciência. Apesar de seus exageros — como dizer que não há diferença alguma entre mitos e teorias científicas —,
suas provocações servem, pelo menos, para evitar que o apego ao método sirva de escudo para que não sejam
discutidos problemas de conteúdo” (SILVA. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: SILVA
(Org.). Interpretação constitucional, p. 139, nota de rodapé n. 79). A mencionada obra de Feyerabend é seu clássico:
Contra o método (São Paulo: UNESP, 2007).
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
45
é um equívoco e deve ser evitado,106 porque a confusão é deletéria não apenas à higi-
dez dos conceitos, mas à prática. Outra é usar vários nomes para se referir a idênticas
realidades — não é o ideal, mas essa criatividade doutrinária não causa problemas se
a referência vier contextualizada. Outra, afinal, é usar nome idêntico para realidades
muito próximas: talvez não corresponda a nenhuma utopia de precisão científica, mas,
novamente, não se vai justificar nenhuma cruzada em prol da pureza conceitual se o
custo da transição for alto, ou se o resultado prático for desprezível.
É o caso de se aplicar a máxima pragmática à questão: que diferença vai fazer,
ao mundo da aplicação do Direito, se as expressões “argumento pragmático” e “argu-
mento consequencialista” forem diferenciadas? Provavelmente, muito pouca. Assim,
registramos a polêmica conceitual, mas optamos pelo uso fungível das duas expressões.
Portanto, neste livro, “argumento pragmático” e “argumento consequencialista”
são sinônimos.107 108
106
Nesse sentido, ÁVILA. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed., passim.
107
Não utilizaremos a expressão “argumento prático” por considerá-la suficientemente distinta das realidades
conotadas pelas expressões “argumento pragmático” e “argumento consequencialista”.
108
A fungibilidade entre as expressões, e seus antecessores mais abrangentes – “pragmatismo” e “conse
quencialismo” —, parece ter sido abraçada pela prática. Desde a primeira edição deste livro, nota-se que as
obras jurídicas brasileiras a respeito do tema usam os dois termos de modo aproximado, se não idêntico. Como
se disse, embora não haja nenhum primor de precisão técnica nesse uso, também não há maiores problemas.
109
Mesmo na advocacia preventiva, o raciocínio é o mesmo. Trata-se de adequar práticas, de modo a evitar
consequências negativas havidas por parte das autoridades controladoras.
110
O tema da pretensão de correção é complexo para ser tratado aqui de modo suficiente. Basta dizer que ele se
baseia na ideia de que o discurso jurídico seria um caso especial do discurso prático geral, diferenciando-se
desse por algumas características (a importância do precedente e da norma jurídica). Assim como o discurso
prático possui uma pretensão de correção moral, que decorre de certos pressupostos advindos da comunicação
entre as pessoas — quando estabelecemos um diálogo, a comunicação só se torna possível porque há uma
pressuposição de que estejamos falando a verdade —, também isso valeria para o discurso prático em geral (que
é comunicação, só que de regras de agir) e, naturalmente, para o discurso jurídico, como caso especial deste.
O juiz pode até não fazer justiça no caso concreto, mas, segundo essa teoria, deve sempre pretender fazê-la. A
relação entre Direito e moral, tema essencial da Filosofia do Direito, deixa de ser uma relação binária (“existe”
ou “não existe”) e passa a ser um elemento condicional (é objetivo a ser alcançado). Sobre pretensão de correção,
consultar Robert Alexy (La tesis del caso especial. Isegoría). Ainda, na doutrina brasileira, v. DUARTE. Teoria
do discurso e correção normativa do direito: aproximação à metodologia discursiva do direito. Sobre o debate da
relação entre Direito e moral, v. VÁZQUEZ (Org.). Derecho y moral: ensayos sobre un debate contemporáneo.
111
Nesse sentido, trecho de voto do Ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal, no Recurso
Extraordinário nº 111.787, publicado no Diário de Justiça 13 set. 1991 (RTJ, 136/1292): “Ao examinar a lide, o
magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva formação humanística. Somente após,
cabe recorrer à dogmática para, encontrado o indispensável apoio, formalizá-la”. Em idêntico sentido, ver
trecho de seu voto no RE nº 140.265-2, julgado em 20.10.1992, DJ, 28 maio 1993. Conferir, ainda, a opinião do
chanceler James Kent: “Eu vejo para onde a justiça e o bom senso estão e, então, sento e procuro as autoridades
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
46 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
até esgotar meus livros; de vez em quando, surpreendo-me embaraçado por uma regra técnica, mas, quase
sempre, encontro princípios que se adaptam à minha visão daquele caso [...]” (KENT, James. An Unpublished
Letter of Chancellor James Kent. The Green Bag, p. 210 apud SCALIA; GARNER. Making your Case: the art of
Persuading Judges, p. 27). Comparar também com trecho de artigo do juiz Richard Posner, um dos maiores
defensores do pragmatismo jurídico como teoria da adjudicação, no qual relata a forma como decide os casos
que tem diante de si: “O modo como me aproximo de um caso como juiz [...] é, em primeiro lugar, perguntar a
mim mesmo o que seria um resultado razoável, de bom senso, tal como um leigo acharia e, havendo respondido
a essa questão, perguntar se tal resultado está claramente proibido pelo texto da Constituição ou das leis, pela
jurisprudência majoritária, ou por outra restrição atuante sobre a discricionariedade judicial” (POSNER. Tap
Dancing. The New Republic Online).
112
“O pragmatismo é a teoria operacional implícita da maioria dos bons advogados” (GREY. Hear the other Side:
Wallace Stevens and Pragmatist Legal Theory. Southern California Law Review, p. 1590).
113
Talvez, hoje, mais do que nunca, ao menos no que diz respeito à advocacia. Embora os dados se refiram
aos EUA, há considerável massa de estudos que aponta que, a partir de uma série de fatores relacionados à
realidade profissional da advocacia — o número crescente de advogados, a cultura de que quem traz o cliente
é que vai receber a maior parte dos honorários, a maior instabilidade na relação entre cliente e advogados,
havendo sempre concorrência entre todos os escritórios —, os advogados cada vez menos sejam capazes de
negar pedidos ou sugestões de seus contratantes. Desse modo, tornam-se pragmatistas-instrumentalistas não
apenas porque vão fazer seja o que for que o Direito exija para perseguir os interesses de seus representados,
mas porque vão fazer tudo o que for necessário para concretizar esses mesmos interesses, incluindo manipular a
lei e todos os argumentos possíveis, só parando diante de ilegalidades ou inconstitucionalidades óbvias (sendo
que até essas noções podem ser generosamente estendidas). A noção de advogado devotado aos interesses do
cliente, mas também ao bem comum, capaz de rejeitar pretensões absurdas, é, cada vez mais, substituída pela
do advogado “engenheiro radical de argumentos jurídicos”, que vai fazer tudo o que for necessário para ganhar
a causa — até porque, se não o fizer, outro o fará. Mais sobre o tema v. KISCHER, Robert K. Legal Advice as
Moral Perspective. Georgetown Journal of Legal Ethics, p. 223 et seq. Ler, ainda, Brian Z. Tamanaha (Law as a Means
to an end: Threat to the Rule of Law, p. 133-155. cap. 8 - Instrumentalism in the Legal Profession).
114
POSNER. The Problematics of Legal and Moral Theory, p. 240.
115
SMITH. The Pursuit of Pragmatism. Yale Law Journal. Frank Cross, com algum exagero, reputa-a “talvez a mais
controversa de todas as teorias de interpretação de textos legislativos” (The Theory and Practice of Statutory
Interpretation, p. 102).
116
ATIYAH. Pragmatism and Theory in English Law, p. 5.
117
FARBER. Legal Pragmatism and the Constitution. Minnesota Law Review.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
47
pontos de vista”,118 quiçá a noção de que “uma teoria satisfatória da adjudicação para
advogados deve torná-los capazes de prever o que as cortes farão”,119 ou “o reconheci-
mento de que a devoção à teoria pode ser tão danosa e infrutífera quanto a devoção ao
formalismo tradicional”,120 ou, quem sabe, “uma extensão do ceticismo, baseada, em
última instância, no sofismo grego”.121
Muitas outras definições ainda poderiam ser enfileiradas.122
118
HANTZIS. Legal Innovation Within the wider Intellectual Tradition: the Pragmatism of Oliver Wendell Holmes.
Northwestern University Law Review, p. 595.
119
LEITER. Rethinking Legal Realism: Toward a Naturalized Jurisprudence. Virginia Law Review, p. 285-286.
120
WEAVER. The ‘Democracy of Self-Devotion’: Oliver Wendell Holmes, Jr., and Pragmatism. In: MORALES
(Org.). Renascent Pragmatism: studies in Law and Social Science, p. 3-30.
121
LEAF. Pragmatic Legal Norms. In: MORALES (Org.). Renascent Pragmatism: Studies in Law and Social Science,
p. 73.
122
Para uma lista, v. HAACK. On Legal Pragmatism: Where Does ‘The Path of the Law’ lead us?. American Journal
of Jurisprudence.
123
GASCÓN ABELLÁN; GARCÍA FIGUEROA. La argumentación en el derecho, p. 49 et seq.; ATIENZA. Teorias
da argumentação jurídica: Perelman, Toulmin, MacCormick, Alexy e outros; ALEXY. Teoria da argumentação
jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica; FERREIRA. Uma introdução à teoria da
argumentação jurídica de Robert Alexy; MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory.
124
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 24-56.
125
POSNER. The Problems of Jurisprudence, p. 73-74. Mesmo depois, Posner continuou defendendo que não existe
qualquer diferença significativa entre a argumentação jurídica e a argumentação prática em geral: “[...] Não há
nenhum procedimento analítico específico que diferencie a argumentação jurídica da argumentação prática em
geral. Os juízes conhecem algumas coisas que os leigos desconhecem; usam um vocabulário específico; possuem
certas sensibilidades apuradas, por exemplo, em relação aos valores do Estado de Direito. A educação jurídica
não é uma fraude, embora possa ser encurtada. E a prática jurídica é, também, um processo de socialização
numa cultura profissional específica. Mas não há diferença intrínseca ou fundamental entre como um juiz trata
uma questão jurídica e como um homem de negócios trata uma questão de administração ou de marketing”
(POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 73).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
48 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
126
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 49 et seq.
127
POSNER. The Problematics of Legal and Moral Theory, p. 227.
128
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 64. Posner destaca que “todas as variáveis relevantes”
não significa “todas as variáveis possíveis”. Há consequências que, por razões práticas — as limitações de
disponibilidade de informação relativas aos juízes — ou jurídicas — a separação de poderes e a especialização
de funções públicas — não devem ser consideradas pelos juízes. V. POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy,
p. 151.
129
HOLMES, Oliver Wendell. The Common Law, p. 1 apud POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 64.
130
ÁVILA. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed.
131
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 65-71.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
49
A maioria dos casos envolvendo leis e contratos pode ser resolvida com base no
sentido imediato dos textos. Essas seriam, também, decisões pragmatistas. Com isso,
vê-se o óbvio: existem decisões pragmatistas fáceis e difíceis. Nem todas precisam ser
dilemas complicados. O julgador pragmatista deve se aproximar do Direito legislado e
dos precedentes com olhos no valor social da expectativa por eles criados, já que são os
principais materiais aos quais a sociedade recorre quando precisa saber o que é o Direito.
Devem ser as principais fontes da decisão judicial. O pragmatismo jurídico aproxima-se
de modo respeitoso — embora não acrítico — da lei e do precedente. São utilizáveis
não por seu valor a priori, mas por sua importância como produtores de expectativas.
O formalismo jurídico pode ser estratégia pragmática. Decide-se conforme as
regras postas, de maneira pretensamente cega, mas porque isso é estratégia pensada
para produzir os melhores resultados em relação ao Ordenamento Jurídico como um
todo: incrementar a confiança no Direito, na previsibilidade das normas, na figura
institucional do Judiciário. Posner reconhece a virtude da generalidade, da previsibili-
dade e da imparcialidade do formalismo jurídico, mas prefere utilizá-las na condição
de estratégia pragmática.134
Bom exemplo desta ideia de Posner, vindo da realidade brasileira, é a construção,
pela jurisprudência dos tribunais superiores, de uma série de requisitos formais que
dificultam a admissão dos recursos extraordinários em sentido amplo (RE e RESP).
132
Em diversas ocasiões, Richard Posner afirma que a adoção do pragmatismo ou do formalismo depende das
tradições e das características de cada sistema jurídico nacional ou regional. Diz mesmo que, tivessem os EUA
estruturas e instituições similares às europeias (ou às nossas — no que nos importa), provavelmente teriam
um sistema jurídico formalista, não tão propício ao pragmatismo. De qualquer modo, ele acredita que, com
os maiores contatos entre os sistemas jurídicos, a globalização e a internet, há uma natural tendência a que os
sistemas se aproximem, com o pragmatismo jurídico deixando de ser fenômeno essencialmente anglo-saxão
(POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 147-159).
133
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 61.
134
POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 151. Posner acredita que a adoção do formalismo como
estratégia pragmática, embora possível, não seja comum na Suprema Corte dos Estados Unidos, por conta da
tradição da Common Law e da própria força do órgão. Os incentivos em favor do formalismo seriam mínimos:
a Corte seria chamada a resolver muitos problemas para os quais a Constituição americana não ofereceria
virtualmente nenhum auxílio e não existiria qualquer pressão advinda do risco de ter seu pronunciamento
revertido por cortes superiores. O órgão seria bastante livre para ser diretamente pragmatista (POSNER. Law,
Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 64). É importante levantar o ponto sobre se o nosso STF também não seria,
por essas próprias razões, instância propícia para a adoção do pragmatismo vis-à-vis o formalismo (v. discussão
à frente).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
50 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Diante de um problema prático — a litigância parafrênica, que faz com que STF e STJ
tornem-se terceiras instâncias, e não cortes constitucionais ou de uniformização135 —,
estes tribunais começaram a inventar (o termo é esse) uma série de requisitos ultra-
formais, que vão desde a questão constitucional ter sido expressamente debatida, com
citação de dispositivos normativos, nos tribunais inferiores,136 até coisas como a qua-
lidade da fotocópia, com o evidente propósito de diminuírem o número de recursos a
serem julgados.137
Este aspecto da teoria posneriana é importante porque significa, numa primeira
análise, sua própria negação. Ora, como ser formalista e pragmatista ao mesmo tempo?
A saída para isso está na compreensão do nível do discurso ao qual se está referindo.
Pode-se ser formalista por razões pragmáticas. Adota-se o formalismo como teoria nor-
mativa da decisão — é o formalismo que vai decidir como devemos diretamente decidir
os casos —, porque, antes, adotou-se o pragmatismo como metateoria jurídica (como
teoria que indica como devemos escolher uma teoria normativa da decisão).138 Sobre
essa questão, há debate nos Estados Unidos, e muitos autores defendem o formalismo
dentro dessa perspectiva pragmática.139
135
Segundo dados obtidos no sítio do STF na internet (<http://www.stf.jus.br>), só em 2016 foram julgados 16.504
recursos extraordinários. Somando-se a isso os 79.560 agravos de instrumento, que, em regra, são tirados de
decisões denegatórias de seguimento desses mesmos recursos extraordinários por parte dos tribunais locais
(Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais), fica fácil compreender a preocupação de onze Ministros
com o volume de demandas a serem apreciadas e julgadas.
136
Enunciado nº 287 da Súmula da Jurisprudência Consolidada do STF: “É inadmissível o recurso extraordinário
quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”. Ainda, Enunciado nº 356: “O ponto
omisso da decisão sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios não pode ser objeto de recurso
extraordinário por faltar o requisito do prequestionamento”. O novo CPC, sensível à exigência — inventada —
dos tribunais superiores quanto ao prequestionamento, adotou, em seu art. 1.025, a tese do prequestionamento
virtual ou ficto, pela qual se considera prequestionado o ponto após a oposição de embargos de declaração,
mesmo quando estes sejam rejeitados ou não providos. É, até onde se sabe, o primeiro dispositivo legal no
direito brasileiro — e ainda assim indireto — que fala sobre prequestionamento.
137
Sobre tais requisitos, ver, por todos, Rodolfo de Camargo Mancuso (Recurso Extraordinário e Recurso Especial).
Posteriormente, o próprio legislador brasileiro encampou a ideia, ao criar, por exemplo, a repercussão especial
para a admissibilidade de RE. O exemplo de Posner, embora parecido, parte de uma preocupação pragmática
mais consistente (ainda que a preocupação brasileira — não ser soterrado por volume inadministrável de
causas insignificantes, tomando tempo de julgamento das demandas importantes — seja, também, louvável):
o autor menciona que as cortes federais americanas criam uma série de requisitos formais (“às vezes bastante
arbitrários”, palavras dele) com a finalidade de evitar intervenções prematuras do Judiciário nos assuntos da
nação. “Nada é mais antipragmático para uma corte do que declarar que um programa é inconstitucional ou
ilegal antes que ele tenha tido a chance de entrar em prática e provar seu valor (ou sua falta de) de modo
empírico, ao invés de por especulação” (Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 151).
138
“A distinção é importante porque não existe conexão necessária entre teoria e metateoria. Mesmo se o
pragmatismo for a melhor teoria, pode não ser a melhor metateoria; e, mesmo se o pragmatismo for a melhor
metateoria, pode não ser a melhor teoria” (WANG, Philip. Pragmatism and Consequentialism. Columbia
University – Law School, p. 4). Ainda: “Essencialmente, o pragmatismo é uma metateoria. [...] Ele é sofisticado
o suficiente para indicar qualquer teoria normativa — desde que essa teoria normativa produza as melhores
consequências possíveis” (p. 5). “No entanto, não é inteiramente acurado afirmar que o pragmatismo é, apenas,
uma metateoria. Na doutrina, o pragmatismo é comumente indicado como uma teoria normativa”. Em outro
momento, Wang, contraditoriamente, afirma que o pragmatismo é sempre uma teoria normativa, pois, mesmo
quando se está sendo textualista por razões pragmáticas, no fundo está-se adotando o pragmatismo (p. 6). Em
nossa opinião, não há predominância de nenhum aspecto. O pragmatismo pode ser tanto uma coisa quanto
outra. A respeito da estratégia das “decisões de segunda ordem” — decisões sobre qual é o melhor critério a ser
adotado na hora de decidir —, tanto no Direito quanto na vida prática em geral, desenvolver em Cass Sunstein
e Edna Ullman-Margarit (Second order-decisions. University of Chicago Law School, Public Law and Legal Theory).
139
Ainda voltaremos ao assunto. Alguns artigos e livros que defendem tal perspectiva, na doutrina nacional
e estrangeira: ARGUELHES; LEAL. Pragmatismo como (meta) teoria normativa da decisão judicial:
caracterização, estratégias e implicações, p. 1-49; SUNSTEIN. Must Formalism be Defended Empirically?.
University of Chicago, John M. Olin Law & Economics; SUNSTEIN; VERMEULE. Interpretation and Institutions.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
51
Para além desse foco nas consequências razoáveis da decisão, as quais podem
incluir seus efeitos sistêmicos — o que, por sua vez, pode comandar a adoção do for-
malismo como teoria normativa da decisão —, o pragmatismo jurídico, na proposta de
Richard Posner, possui seis características. Ele é (i) eclético, (ii) instrumental, (iii) contextual,
(iv) antiformalista, (v) empírico, e (vi) usa da retórica. Vamos analisar cada um dos pontos.
O pragmatismo jurídico é (i) eclético. Não possui preocupação com ideologias,140
consistência teórica ou harmonias abstratas — está pronto para aceitar sem trauma
contribuições dos mais diversos saberes. Substitui-se a pergunta “é teoricamente com-
patível?” por “funciona na prática?”.
Ecletismo não significa anti-intelectualismo ou rejeição a qualquer teoria. A rejei-
ção dá-se apenas em relação a teorias baseadas em abstrações a respeito de indivíduos
e instituições. Aí se inclui a maior parte das teorias constitucionais e legais de base
filosófica e, de quebra, outra parte das teorias políticas que hoje influem na formulação
e na aplicação do Direito. Mas há influxos positivos a serem obtidos de áreas como a
Estatística, a Economia, a Sociologia experimental, a Psicologia.141 142 “Em síntese, a ob-
jeção do pragmatista não é à ideia de ‘teoria’, mas se dirige contra a má teoria, a teoria
inútil, a outorga do título honorífico de ‘teoria’ à retórica formalista”.143
O ecletismo vale, também, quanto à incorporação de ideias, conceitos, fragmentos
teóricos, princípios, argumentos, de modo que se forme aquilo que Aulis Aarnio chamou
de “teia argumentativa”, um aglomerado de topoi, não absolutamente coerente entre si,
mas que, em conjunto, é capaz de provocar um estado de convencimento racional (em
um juiz ou em uma autoridade administrativa, quando usados por um advogado; no
público, quando utilizados pelo Judiciário ou pela Administração).144
O pragmatismo de Posner é (ii) instrumental. A teoria é instrumento para um fim,
a saber, a distribuição de bens ou a recomposição de estados operada por intermédio do
Direito. Também o Direito é meio para diversos fins. A proposição não é revolucionária;
University of Chicago Public Law Research Paper; VERMEULE. Judging under Uncertainty: an Institutional Theory
of Legal Interpretation. SCHAUER. Playing by the Rules: a Philosophical Examination of Rule-based Decision-
making in Law and in Life. Para uma visão crítica do discurso das capacidades institucionais no Brasil, cf.
ARGUELHES; LEAL. O argumento das “capacidades institucionais”: entre a banalidade, a redundância e o
absurdo. Revista Direito, Estado e Sociedade.
140
“O pragmatismo jurídico não possui um conteúdo ideológico em si mesmo. Apoia-se na teoria dos jogos, na
Ciência Política e em outras ciências sociais, mais do que em determinadas preferências ideológicas” (POSNER.
Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 84. Há quem critique a teoria por uma suposta proximidade ao
capitalismo liberal. Não só contra o pragmatismo jurídico, não só contra o pragmatismo jurídico de Posner: essa
crítica também é comum em relação às éticas consequencialistas e utilitaristas em geral. V. SAPHIRO. The Flight
from Reality in the Human Sciences, p. 100-151, especialmente p. 149-151 - “Ideological Implications of Posner’s
View”.
141
Sendo Posner um norte-americano, vale observar que a referência à psicologia trata da psicologia de base
experimental, e não da psicologia à maneira europeia, “discursiva”.
142
Com razão, o destaque de José Eisenberg: “A eficácia argumentativa desta reconstrução do contexto depende,
portanto e necessariamente, dos recursos conceituais e metodológicos das Ciências Sociais: cabe sempre ao
operador do Direito, sob a ótica do pragmatismo jurídico, realizar o importante trabalho de descrever o contexto
a partir de uma pesquisa empiricamente orientada, para decifrar com conceitos aplicáveis à realidade social os
seus determinantes e seus fatos verificáveis” (Para que serve o pragmatismo jurídico. In: FILOSOFIA e teoria do
direito).
143
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 80.
144
Em rigor, a defesa da ideia de razoabilidade como aceitabilidade racional, trazida por Aarnio, é mais demandante
do que o sentido descrito. Em nosso favor, diga-se que, dentre as várias teorias da razoabilidade, a de Aarnio é
uma das que mais se aproxima da razoabilidade em sentido loose, “solto”, defendida por Posner. Desenvolver
em Aulis Aarnio (Lo racional como razoable: um tratado sobre la justificación jurídica).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
52 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
diversas teorias jurídicas, antigas e novas, insistem para que se evite a reificação.145
Aqui, estamos em terreno consensual. Dificilmente alguém sustentaria, hoje, que o
Direito deve se fechar em si mesmo, de modo inflexível e “desoxigenado” em relação
às finalidades que lhe subjazem.
A próxima característica, apesar da negativa de Posner quanto à descendência de
sua versão do pragmatismo jurídico em relação ao pragmatismo filosófico, é compar-
tilhada entre ambos: os dois são (iii) contextuais. A teoria e seus resultados fundam-se
numa dependência do contexto em que estão inseridos. A decisão pragmaticamente
correta de hoje pode não ser a de amanhã — e a diferença pode estar no contexto. Aliás,
o contextualismo não deixa de se basear, também, num antifundacionalismo. É por não
existirem lugares estáticos — pontos de partida ou de chegada, opiniões definitivas —
que a teoria pode se basear no contexto, elemento essencialmente modificável.
O pragmatismo de Richard Posner é (iv) antiformalista. É sua característica mais
destacada. Em rigor, é complexo até definir o que é o “formalismo”.146 Longe de digres-
sões, defina-se formalismo como uma disposição firme de basear decisões em normas
escritas e/ou precedentes. Pois bem, se o formalismo é isso, então o pragmatismo jurídico
de Posner é antiformalista, na medida em que não parte do pressuposto de que normas
escritas ou precedentes devam ser observados por si mesmos, mas apenas quando sua
observância vá produzir os melhores efeitos (casuísticos e sistêmicos). O julgador prag-
matista pode e deve ignorar o precedente — ou adaptar a norma escrita à incidência via
plasticidade das interpretações — se isso produzir os melhores resultados.147
145
BARBER; FLEMING Constitutional Interpretation: the Basic Questions, p. 186. Como prova do tradicionalismo da
proposta, basta ver que, já em 1935, Felix Cohen defendia uma ciência jurídica livre do “nonsense transcendental”
reificador de conceitos vazios e promotor de discussões etéreas. A doutrina deveria se dedicar à discussão
de casos e à realidade comportamental, econômica e psicológica da administração da justiça (Transcendental
Nonsense and the Functional Approach. Columbia Law Review, p. 809-849). Nesse ponto, aliás, o pragmatismo
faz jus à afirmação de Rorty (e de outros) de que, mercê de sua ampla difusão, haver-se-ia tornado banal. Ver
RORTY. The Banality of Pragmatism and the Poetry of Justice. In: BRINT; WEAVER (Org.). Pragmatism in Law
and Society, p. 89-97. Por outro lado, talvez sua “banalidade” só signifique, realmente, sua vagueza. Assim,
CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 104.
146
SCHAUER. Formalism. Yale Law Journal, p. 509 et seq. Para uma apresentação do tema na doutrina brasileira,
ver o verbete “formalismo”, escrito por Noel Struchiner (In: BARRETO (Org.). Dicionário de filosofia do direito, p.
363-366).
147
Há outro sentido no qual o pragmatismo de Posner é antiformalista. É que tal pragmatismo não é um
complemento ao positivismo jurídico de Hart. Este defendia, com base na experiência do Direito inglês, que, em
casos fáceis, incluídos dentro da zona de certeza positiva da linguagem jurídica, a aplicação seria meramente
subsuntiva: o juiz, pura e simplesmente, aplicaria o que está escrito. Já nos casos difíceis, inseridos dentro da
área cinzenta de certeza da linguagem, o juiz haveria que agir como se legislador fosse, formulando norma e
a aplicando ao caso. Por isso, muitos poderiam imaginar que o pragmatismo jurídico de Posner servisse para
complementar, na parte em que o juiz é livre, o positivismo de Hart. Só que Posner não pensa como Hart. Não
acredita que os juízes, ordinariamente, coloquem seus chapéus de legisladores nos momentos de incerteza, e
recoloquem suas capas de juízes nas horas de certeza da linguagem. A explicação soa-lhe artificial (sem contar
o inconveniente de falar que as autoridades judiciárias deveriam agir como legisladores, quando técnicas e
condições de atuação são completamente distintas), sendo certo que ele busca com sua teoria pragmática da
adjudicação uma proposta útil porque realista. Além disso, não existiriam lacunas no Direito porque este não é
uma coisa, é uma atividade: a atividade diária dos juízes e demais autoridades públicas. Aplicar e criar o Direito
são momentos simultâneos e essencialmente indistintos. Sem falar que há muitas outras zonas de incerteza para
o Direito além da linguagem; e as zonas de certeza não são, de fato, assim tão certas. Muito embora seja sensato
aderir, em casos em que as consequências não são absurdas ou catastróficas, ao significado puro e simples das
normas, como meio de preservar expectativas e de manter a linguagem legal como forma de comunicação
jurídica, isso se dá — diz Posner — por razões pragmáticas. A teoria de Posner quer que sempre os juízes ajam
de modo pragmático. Suas propostas não são complementares, sequer compatíveis, com o positivismo hartiano
(POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 80-82). Para a visão de Hart, v. STRUCHINER. Direito e
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
53
linguagem: uma análise da textura aberta da linguagem e sua aplicação ao direito. Ainda, o capítulo clássico em
Hart (O conceito de direito, p. 137-168).
148
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 80. A vindicação de decisões judiciais mais restritas é
desenvolvida em Cass Sunstein (One Case at a Time: Judicial Minimalism on the Supreme Court).
149
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 75.
150
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 74. Exemplo do tratamento expressamente rejeitado por
Posner vem com o livro de Ronald Dworkin Life’s Dominion de 2003.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
54 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
151
“É a arte de se defender argumentando em situações nas quais a demonstração não é possível, o que a obriga
a passar por ‘noções comuns’, que não são opiniões vulgares, mas aquilo que cada um pode encontrar por seu
bom senso, em domínios nos quais nada seria menos científico do que exigir respostas científicas” (REBOUL.
Introdução à retórica, p. 27).
152
SCALIA; GARNER. Making your Case: the art of Persuading Judges, p. 26 et seq.
153
“Questões jurídicas difíceis tendem a não possuir respostas ‘certas’ no sentido que Platão aprovaria. Em vez
disso, elas possuem respostas melhores ou piores — e muitas vezes não é claro qual é qual. Essas incertezas
chegam a seu apogeu em certos casos nos quais os juízes enfrentam o desconhecido em cima de um abismo
para o qual não possuem nenhum dos materiais necessários para a travessia. Nesses casos, diante dessas
descontinuidades, um insight revelador, expressado de modo aforístico, mesmo refletindo uma verdade parcial —
talvez seja, apenas, um tiro no escuro —, pode desempenhar adequadamente um papel no desenvolvimento do
Direito. Talvez seja a melhor coisa que se possa fazer” (POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 83).
154
O realismo jurídico é o designativo de duas linhas de pensamento — uma americana e outra advinda da Europa
do Norte, especialmente da Escandinávia — que advogavam a quintessencial indeterminação do Direito e,
a partir daí, a ideia de que o Direito se constituiria nas decisões judiciais e nas atividades administrativas
em concreto. O realismo ainda defendia o instrumentalismo e a interdisciplinaridade. Alguns, dentro dessa
linha de pensamento, afirmavam que as autoridades decidiriam antes os casos — a partir de seu senso interior
de Justiça ou, segundo alguns, com base em sua intuição ou instinto (numa tradução livre para guts) — e,
posteriormente, buscariam razões jurídicas de apoio. Cita-se Jerome Frank como havendo afirmado que a
decisão judicial poderia ser determinada pelo que o juiz comeu no café da manhã. Como representativo da
corrente europeia do realismo, numa vertente lógica, ver o clássico de Alf Ross (Direito e justiça). Ainda, num
interessante estudo dos conceitos fundamentais da linguagem jurídica — “direito subjetivo”, “obrigação”,
“dever” etc. —, caracterizando-os como originários da linguagem da magia e essencialmente vazios,
desempenhando função emotiva (conclamar para a ação), ver Karl Olivecrona (Lenguaje jurídico y realidade). Na
vertente norte-americana, há quem diga que o primeiro realista jurídico foi o juiz Oliver Wendell Holmes —
mais uma vez, a proximidade entre realismo e pragmatismo jurídico é clara, porque tantos outros tratam
Holmes como pragmatista jurídico seminal —, enquanto outros veem na sociologia jurídica de Pound traços
do realismo. Mais recentemente, Karl Llewellyn e Felix Cohen são nomes de destaque. V. POSNER; HOLMES
(Ed.). The Essential Holmes: Selections from Letters, Speeches, Judicial Opinions and Other Writings of Oliver
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
55
155
Mas, segundo Posner, não é o caso. Duas seriam as diferenças. Enquanto estes
movimentos possuiriam nítida afiliação política — o realismo, ao New Deal; os critical
legal studies, à esquerda —, o pragmatismo não teria valência política. Além disso, tanto
o realismo quanto o movimento crítico seriam “fracos em análise de políticas públi-
cas”: além de sua política de base, não teriam nada a oferecer em troca ao formalismo.
Já o pragmatismo posneriano, próximo à Economia, à Teoria dos Jogos, à Sociologia
aplicada, não dependeria de crenças irrefletidas, mas seria capaz de analisar políticas
públicas e, de modo propositivo, incorporar o melhor que todas essas ciências sociais
aplicadas pudessem oferecer.156
Pode-se acrescentar, ainda, terceira distinção, já não mais por conta de Posner.
Enquanto, para o realismo, há de se ser sempre cético em relação às normas e ao Direito
institucional, o pragmatismo não é tão rigoroso e admite que se possa recorrer a normas,
precedentes, e ao raciocínio silogístico que os acompanha, desde que isso seja feito por
razões pragmáticas.157
Recentemente, ao tratar do tema, Posner, apesar de manter suas críticas ao rea
lismo clássico, sustenta que o Judiciário americano necessita de um “realismo com
profundidade”, um que supere as insuficiências da teoria realista clássica e que seja
mais do que a “mera substituição do formalismo pelas crenças e emoções individuais
do julgador”.158 A profundidade exigida por Posner equivale ao uso das ferramentas
empíricas à disposição do julgador, que sejam capazes de tornar a decisão em algo a
mais que um palpite.
Parece, portanto, que Posner aceita, atualmente, a alcunha de realista, desde
que observadas as condições para que esse realismo não incorra em um decisionismo
pessoal casuístico: a) considerar os efeitos sistêmicos da decisão e b) se basear em as-
pectos empíricos, e não ideológicos e/ou morais. Em essência, realismo jurídico com
profundidade, para Posner, equivaleria à sua versão de pragmatismo.159 O pragmatismo
Wendel Holmes, Jr.; POUND. An Introduction to the Philosophy of Law; LLEWELLYN. Jurisprudence: Realism in
Theory and Practice; COHEN. Transcendental Nonsense and the Functional Approach. Columbia Law Review,
p. 809-849; LEITER. Naturalizing Jurisprudence: Essays on American Legal Realism and Naturalism in Legal
Philosophy. Boa apresentação está em Michael Steven Green (Legal Realism as Theory of Law. William and Mary
Law Review). Na literatura nacional, v. FONTES. Aspectos do realismo jurídico. Justiça & Cidadania.
155
O movimento dos critical legal studies seria, segundo alguns, uma derivação do realismo jurídico de base
mais política. Com ele, compartilharia a ideia de que normas e precedentes não determinariam o Direito. Ao
contrário do realismo, no entanto, os estudos críticos acreditariam que o Direito seria, na verdade, política (Law
is politics) e que, de modo geral, prestar-se-ia a ser instrumentalizado pelas classes dominantes com o propósito
da manutenção do status quo. Sendo assim, nada impediria — de fato, haveria muitos estímulos — que fosse
tomado por operadores politicamente conscientes em prol da mudança social. Diferentemente do realismo
jurídico, os critical legal studies adquiriram certa projeção na doutrina brasileira dos anos sessenta e setenta,
embora, hoje, já não possuam tanta força nem nos EUA nem no Brasil. Por todos, Mark Kelman (A Guide to
Critical Legal Studies). No Brasil, resumindo o histórico do movimento, mas adotando tom crítico — imaginar
que o Direito se iguala à política acabaria negando efetividade ao Direito —, ver a primeira parte da obra de
Paulo Ricardo Schier (SCHIER. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica).
156
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 84.
157
RAPOZO. El pragmatismo y el consecuencialismo jurídico: estudo de las teorías en el âmbito conceptual, normativo
e interpretativo del derecho, f. 32 et seq.
158
“O Judiciário precisa de melhores ferramentas para decidir casos. Ele precisa de um retorno ao realismo jurídico,
mas, dessa vez, um realismo com profundidade, um realismo fundado em métodos analíticos e empíricos
modernos, um realismo que vá além de um palpite” (POSNER. Reflections on Judging, p. 353).
159
Posner não abandonou, contudo, a caracterização de pragmático: “Eu sou um juiz pragmático e anos antes de
começar a me preocupar com a galopante complexidade (principalmente tecnológica) dos casos que as cortes
federais têm que julgar, eu notei a afinidade entre pragmatismo jurídico e ciência (...). Mas eu não preciso
restringir o realismo jurídico ao pragmatismo para defender meu ponto” (POSNER. Reflections on Judging, p. 5).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
56 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
jurídico de Posner, teoria simples, chã,160 cujo objetivo é secundar uma prática jurídica
que funcione, pode ser resumido como uma diretriz para que as autoridades decisórias
não se preocupem apenas com as consequências imediatas de suas decisões — mas, de
toda forma, preocupem-se com consequências.
É uma teoria da adjudicação que não nega o Estado de Direito, mas é resoluta-
mente antiformalista e considera não haver nada significativamente diferente na forma
como um juiz resolve uma questão jurídica do modo como um homem de negócios
soluciona um problema de administração.
Na preferência por decisões menos abrangentes quando do início da consolidação
de tendências, assim como na opção por não decidir quando isso signifique a invalidação
prematura de ações públicas, a teoria jurídica pragmatista mostra-se simpática à retó-
rica e antipática à Filosofia e à Teoria Moral. Acredita, por fim, que, em casos difíceis,
as autoridades decisórias nada podem fazer além de chegar a resultados razoáveis (os
quais não são o mesmo que resultados demonstrativamente corretos sob crivo lógico).
160
Posner, referindo-se a Holmes, faz a seguinte analogia: um burro de carga é um animal de serviço. Tem paciência
e charme, mas lhe falta magnificência. Um leão, por outro lado, é um animal magnífico, mas perigoso. O Direito
deve tentar, a todo custo, ser um burro, jamais um leão, afinal é um serviço, não uma arte ou uma ciência. É
dizer: para Posner, como operadores do Direito, devemos tentar ao máximo ser deliberadamente “sem graça”,
mundanos (POSNER. Reflections on Judging, p. 354).
161
O pragmatismo jurídico de Posner, ao justificar práticas conservadoras, não seria suficientemente pragmático,
tal como o entenderia, digamos, John Dewey. V. SULLIVAN; SOLOVE. Can Pragmatism be Radical?: Richard
Posner and Legal Pragmatism. Yale Law Journal. Algumas linhas merecem ser ditas a esse respeito. A teoria de
Posner prefere deixar que a sociedade experimente antes de tomar partido (judicial) a respeito das questões.
“Um dos valores do pragmatismo é seu reconhecimento de que existem áreas do discurso em que a falta de
finalidades comuns obsta a resolução racional; e, aqui, o conselho pragmático ao sistema jurídico é para que
fique em silêncio, preserve caminhos de mudança, não agite desnecessariamente as águas políticas”. Sob tal
perspectiva, o pragmatismo jurídico de Posner é pouco ativista — justamente o contrário da tônica principal
das críticas — e, de certa forma, política e socialmente conservador. Nem sempre, contudo, não intervir
corresponde a manter as coisas como estão. A sociedade pode estar mudando, e a intervenção judicial servir de
veículo ao conservadorismo econômico ou social (por exemplo, a Suprema Corte americana contemporânea ao
New Deal era economicamente conservadora e judicialmente ativista). De toda forma, embora seja verdade que
o pragmatismo filosófico, em especial com Dewey, seja progressista, não é por isso que o pragmatismo jurídico
precisará ser. Para a citação que transcrevemos, v. POSNER. What has Pragmatism to Offer Law?. In: BRINT;
WEAVER (Org.). Pragmatism in Law and Society, p. 42.
162
A proposta estimularia a pobreza intelectual por reduzir as decisões judiciais e administrativas ao critério
“daquilo que é melhor naquele caso”. Uma espécie de eterno juízo de equidade, sem que as autoridades
precisassem sequer conhecer dogmática jurídica, precedentes e normas. É crítica injusta. O pragmatismo
jurídico não é um decisionismo desarvorado. É preciso conhecer a doutrina, os precedentes e a legislação para
saber como utilizá-los pragmaticamente. De resto, ao estimular a interdisciplinaridade, o julgador pragmatista
será obrigado a estudar muitas outras disciplinas além daquelas a que estaria acostumado. Nesse sentido,
então, o pragmatismo estimularia — e não empobreceria — a intelectualidade dos aplicadores do Direito. V.
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 94-95.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
57
suficiente respeito aos direitos fundamentais, que viriam a ser trunfos diante de conside-
rações utilitaristas; (iii) o pragmatismo de Posner seria incompleto, porque mandaria
decidir da melhor forma possível, sem indicar nenhum critério do que isso viria a ser;
(iv) o pragmatismo jurídico, considerando as características do processo judicial e a
competência institucional do Judiciário, seria pouco prático, já que o caminho mais fácil
e barato para a produção dos pretendidos melhores resultados decisórios seria o for-
malismo; (v) o pragmatismo estimularia negativamente o Legislativo quanto à qualidade das
leis que este viria a produzir; e, finalmente, (vi) visões instrumentalistas do Direito —
da qual o pragmatismo jurídico é exemplo — propiciariam a corrosão da ideia de bem
comum, acarretando consequências negativas para a noção de Estado de Direito (redução
da natureza vinculante das normas jurídicas, facilitação da captura das autoridades
decisórias, intensificação e perenização da litigiosidade na sociedade).
Após apresentar as críticas, indicaremos algumas das possíveis respostas, não
com o intuito de defender a teoria (não é o caso, como ficará claro na parte final do
capítulo), mas para ser abrangente.
Principiemos com a crítica mais comum, dirigida ao pragmatismo jurídico como
um todo, e não apenas à versão de Posner: (i) o pragmatismo jurídico concederia amplís-
sima discricionariedade ao Judiciário — e, de resto, às autoridades julgadoras em geral —,
o que seria ilegítimo, tanto no aspecto técnico-constitucional (violaria a ideia de pre-
visibilidade ínsita ao Estado de Direito) quanto no filosófico-político (é a crítica aos
juízes-legisladores e à ideia-força da separação das funções estatais).
Nesse sentido, Walter Kennedy comenta que o pragmatismo jurídico “é, em certa
medida, anárquico e desprovido de standards ou princípios, quando o Direito requer
um razoável grau de uniformidade, estabilidade e certeza”.163 O próprio Richard Posner
registra o medo, por parte de alguns, de que o pragmatismo leve à anomia: a ameaça
de que juízes pragmáticos “desconsiderem os precedentes, a interpretação direta, a
doutrina estabelecida, e outros obstáculos formalistas, tal como os juízes alemães fize-
ram na época de Hitler”.164 Variações dessa crítica falam do desapreço do pragmatismo
jurídico pelo precedente e/ou pelas leis.165 Se não há barreiras claras ao exercício do
poder, poder-se-ia chegar a um estado de ideologização extrema ou de exercício com
base na simples má-fé. Ter-se-ia, então, uma ditadura dos juízes, tornados ditadores
por seu “pragmatismo jurídico”.
Há algumas maneiras de se defender a teoria. Pode-se alegar, por exemplo,
que o pragmatismo jurídico não é teoria de incidência permanente, e que se destina,
diretamente ao menos,166 apenas aos hard cases.167 Seria, então, mais modesta do que,
163
KENNEDY. Pragmatism as a Philosophy of Law. Marquette Law Review, p. 72-73.
164
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 94.
165
“O pragmatismo nega que as pessoas tenham quaisquer direitos; adota o ponto de vista de que elas nunca
terão direito àquilo que seria pior para a comunidade apenas porque alguma legislação assim estabeleceu, ou
porque uma longa fileira de juízes assim decidiu que outras pessoas tenham tal direito” (DWORKIN. O império
do direito, p. 186).
166
Já que se teria o pragmatismo jurídico como teoria da adjudicação de fundo mesmo quando se adotasse o
formalismo.
167
Em diversos momentos, é o que dá a entender o próprio Richard Posner. Quando, por exemplo, conceitua
seu pragmatismo jurídico tendo por base especialmente as decisões pragmáticas aplicadas aos casos difíceis;
quando menciona que o pragmatismo não é sempre nem em todo lugar a melhor estratégia de adjudicação;
quando denota o valor social da expectativa criada pelas leis e pelo precedente; quando escreve: “Pode o juiz
desafiar a valoração legislativa das consequências? [...] Minha resposta é que apenas em casos extremos o juiz estará
autorizado a abandonar o julgamento legislativo. Porque a circunstância de os juízes abrirem uma guerrilha contra
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
58 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
por exemplo, a proposta de Ronald Dworkin — que pretende fazer uma leitura da
Constituição americana com base em princípios morais168 e cujo resultado pode ser a
ampliação dos poderes dos juízes.169 170 171
Além disso, Posner sugere que o pragmatismo jurídico, por ser transparente,
poderia até reduzir a discricionariedade, ou, pelo menos, fazer com que fosse exercida
de modo cauteloso. Segundo ele, quando os juízes não se sentem elos de transmissão de
decisões tomadas por outrem (no caso, o Legislativo), tendem a ser mais cautelosos.172
Haver-se-ia, afinal, de concordar com Braxton Caven: “Existem apenas duas espécies
de juízes: [...] aqueles que são assumidamente orientados pelos resultados, e aqueles
os legisladores e as cortes superiores é desestabilizadora e, em geral, uma má coisa, embora não seja sempre algo
pior do que a alternativa” (POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 71, grifos nossos; o segundo itálico
está no texto original). Em outro livro, fica ainda mais claro: “Um ponto relacionado é que o interesse social na
certeza da obrigação jurídica requer que o juiz se mantenha bastante próximo ao texto da lei e ao precedente
judicial na maioria dos casos, agindo, na maior parte do tempo, pelo menos, como um formalista” (POSNER.
The Problematics of Legal and Moral Theory, p. 209).
168
CALSAMIGLIA. Ensaio sobre Dworkin.
169
CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 115.
170
Para uma visão geral da teoria do Direito como integridade e da ideia de leitura moral da Constituição, ver
introdução de Ronald Dworkin (Freedom’s Law: the Moral Reading of the American Constitution, p. 1-38).
Há discussão a respeito da não afiliação de Dworkin ao pragmatismo jurídico, em que pese sua crítica ao
movimento. Quem crê nisso parte de uma definição alargada de pragmatismo ou de pragmatismo jurídico.
É o que faz, por exemplo, Thomas Grey, ao entender como pragmatistas duas linhas teóricas, a “teoria dos
interesses” (tradução aproximada de policy jurisprudence) e a moderna teoria dos direitos. Ambas ultrapassam
o texto legal na defesa de seus respectivos objetivos. No caso da primeira (a “teoria dos interesses”), em prol
de conveniências administrativas, utilidade social, eficiência etc., sendo seu mais destacado exemplo a própria
teoria de Richard Posner. A outra (a moderna teoria dos direitos) supera o texto legal em favor da defesa
e da promoção de direitos morais, como seria o caso da proposta de Dworkin. Ao lado desse pragmatismo
estaria o formalismo, acreditando na virtude da fidelidade à norma jurídica: o Direito deveria ser um conjunto
de regras e de princípios objetivos capazes de controlar as decisões daqueles que pretendem ser seus servos
fiéis. V. GREY. Judicial Review and Pragmatism. Stanford Public Law and Legal Theory Working Series, p. 5 et
seq.). Cf. também a opinião de Margaret Jane Radin, para quem o juiz Hércules, de Dworkin, aquela entidade
contrafática que ele imagina como o ideal de julgador (inatingível, mas que serve como princípio regulador
da prática judicial), dotado de tempo e de conhecimento suficientes para integrar todos os princípios morais
atinentes às hipóteses concretas e chegar sempre à resposta correta, mesmo e especialmente em casos difíceis,
é um pragmatista, já que está comprometido com a construção de sentido por intermédio de eventos concretos
(adequação e coerência institucional), ao invés de apelar a um ideal abstrato de verdade ou de justiça (The
pragmatist and the feminist. In: BRINT; WEAVER (Org.). Pragmatism in Law and Society, p. 146 et seq. Já Richard
Rorty acredita que não seja necessário alargar muito o sentido de “pragmatista” para acomodar, juntos, Dworkin
e Posner, dada a banalidade que assola o pragmatismo (The Banality of Pragmatism and the Poetry of Justice.
In: BRINT; WEAVER (Org.). Pragmatism in Law and Society, p. 90). Ver, por outro lado, a opinião de Thamy
Pogrebinschi, para quem Dworkin definitivamente não é um pragmatista jurídico, sendo determinante para tal
afastamento o papel da Moral e da História em sua teoria. Enquanto, na concepção de Direito como integridade
de Dworkin, seus famosos princípios são o elo de conexão entre o Direito e a Moral, tida como elemento central
da adjudicação, o pragmatismo preocupa-se antes de tudo com a Política (entendida em sentido amplo). Além
disso, a teoria de Dworkin seria atenta e reverente aos precedentes (o juiz Hércules é entidade que olha para trás
ao propor algo novo); mesmo a ideia de interpretação do Direito como redação de um capítulo numa novela
seriada (chain novel) é noção sensível ao precedente e à história das decisões (trata-se, afinal, de um novo capítulo
dentro de um mesmo seriado), enquanto o pragmatismo é, por definição, proposta que olha para o futuro e, no
máximo, vê a adesão ao passado como estratégia de preservação de expectativas (POGREBINSCHI. Dworkin
e o Pragmatismo Jurídico. In: FILOSOFIA e teoria do direito). Esta discussão está sugerida em Diego Werneck
Arguelhes e Fernando Leal (Pragmatismo como (meta) teoria normativa da decisão judicial: caracterização,
estratégias e implicações, p. 4, nota de rodapé n. 9). Especificamente sobre o debate entre Posner e Dworkin, v.
ARRUDA. Juízes & casos difíceis: o pragmatismo de Richard Posner e a crítica de Ronald Dworkin.
171
Contrastar com a ideia de que também a teoria de Dworkin só se aplicaria a casos especiais. Na maioria das
vezes, o juiz não precisaria ingressar em grandes justificações teóricas. O julgador “não precisará procurar mais
em nossos argumentos interpretativos do que nos textos legais ou nos casos relacionados diretamente com a
hipótese em questão” (DWORKIN. Justice in Robes, p. 54).
172
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 96. Ainda, POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 155.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
59
que também são orientados pelos resultados, mas ou disso não sabem ou, por variadas
razões, declinam admiti-lo”.173
Se não há muitas alternativas à circunstância de que os juízes vão exercer seu
poder discricionário, não é verdade, na opinião de Posner, que o pragmatismo deixe-os
livres. Há uma série de restrições materiais, psicológicas e institucionais. A doutrina e o
precedente criam um valor social de expectativas que deve ser reconhecido pelo julgador
pragmatista. E o contato direto com diversos assuntos com os quais o juiz formalista
não possui tanta intimidade — como a Economia — faria com que o pragmatista, su-
postamente um perigoso agente discricionário, protegesse mais e melhor, por exemplo,
os direitos de propriedade, do que o formalista (que, às vezes, mercê de seu amor por
fórmulas rituais, acabaria permitindo com que se concretizassem prejuízos).174 Quanto
à pretensa contaminação dos pragmatistas com o poder, a verdade é que as pessoas
conscientes acabariam abusando menos dele.
No pragmatismo, não haveria insubmissão aos precedentes. Haveria é seu uso
pragmático. Na grande maioria das vezes, considerando o valor social da expectativa, o
pragmatista ater-se-ia ao precedente. Não pelos próprios precedentes — fique claro —
mas pela previsibilidade, pela estabilidade e pela segurança jurídica que possam
conferir.175
Questão mais complexa é saber se haverá desrespeito ao Direito legislado. Ao
considerá-lo, para todos os efeitos, mais um topoi junto a outros — a doutrina, os pre-
cedentes, os dados empíricos —, parece que Posner faz pouco caso das leis. Essa é uma
das acusações lançadas, entre tantas, por Dworkin.176 Entretanto, e se o Direito legislado,
em alguma medida, quiser o exercício dessa faculdade pragmática pelos juízes? Não
seria inusitado imaginar tal situação perante o Direito norte-americano, quiçá diante
do Direito brasileiro (ao menos em certa medida, com base no princípio da eficiência,
art. 37, caput, da Constituição da República).177 178 Além disso, o Direito legislado não
173
CRAVEN JR. Paean to Pragmatism. North Carolina Law Review, p. 977.
174
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 95-96.
175
Em homenagem ao contraditório, vejam-se, no entanto, alguns comentários críticos de Dworkin sobre a proposta
de Posner para o uso estratégico dos precedentes. Depois de afirmar que se trata de algo implausível, Dworkin
alega que “o pragmatismo só pode ser resgatado como uma boa explicação de nossa imagem transversal da
decisão judicial por meio de um mecanismo procustiano que parece extremamente inadequado. Só pode ser
resgatado se não tomarmos as opiniões judiciais em seu sentido literal; precisamos tratar todos os juízes que
se preocupam com leis e precedentes problemáticos como se praticassem uma forma imotivada de impostura.
Devemos vê-los como se inventassem novas regras para o futuro de acordo com suas próprias convicções
sobre o que é melhor para a sociedade como um todo, livres de quaisquer pretensos direitos que decorreriam
da coerência com a jurisprudência, mas apresentando-as, por razões desconhecidas, sob a falsa aparência
de regras extraídas do passado” (DWORKIN. O império do direito, p. 194). Nas páginas seguintes, Dworkin
defende a coerência judicial por si mesma, não por qualquer valor instrumental, como derivação do princípio
da integridade, entendido este como o dever de tratamento de todos os indivíduos, por parte do Estado, como
agentes morais dignos de igual respeito e de consideração, o que inclui tratá-los conforme a um conjunto único
e coerente de princípios, e não consoante o que entende como opiniões circunstanciais dos juízes.
176
DWORKIN. O império do direito, passim. Na doutrina brasileira, fazendo coro às críticas de Dworkin, v. DA
COSTA FELIPE. O Pragmatismo antiteórico de Richard A. Posner e as respostas da teoria moral para a decisão judicial.
Dissertação.
177
Para uma análise sobre o princípio constitucional da eficiência administrativa como veículo formal para a
operação com raciocínios pragmatistas no Direito brasileiro, seja concedida a referência a MENDONÇA;
FLEMMING. O argumento consequencialista e sua relação com o princípio da eficiência.
178
No entanto, leia-se, ainda uma vez, a crítica de Dworkin: “É uma tentativa ousada de unir o pragmatismo
e o convencionalismo. Faz do pragmatismo o conteúdo de uma vasta e abrangente convenção segundo a
qual os juízes devem decidir seus casos de maneira pragmática. Uma vez que, na melhor das hipóteses, o
convencionalismo não é uma concepção de Direito mais poderosa do que o pragmatismo, esse casamento
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
60 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
dificilmente melhoraria a situação deste último. De qualquer modo, porém, esse casamento é uma farsa”.
O autor norte-americano explica os motivos da farsa: “Não é verdade que norte-americanos e ingleses, por
exemplo, concordaram tacitamente em delegar o poder legislativo aos juízes dessa maneira. [...] Já vimos
que, assim, fica por explicar um traço dominante da prática judicial — a atitude que os juízes assumem com
relação às leis e aos precedentes nos casos difíceis [...]. Não existe, sem dúvida, uma convenção que permita aos
juízes adaptar seus pontos de vista sobre os direitos das partes a razões puramente estratégicas. Pelo contrário,
como observamos no começo deste livro, a maioria das pessoas pensa que os juízes que agem desse modo são
usurpadores” (DWORKIN. O império do direito, p. 196).
179
A respeito do tema, conferir, CROSS; LINDQQUIST. Measuring Judicial Activism.
180
DWORKIN. Levando os direitos a sério, p. VII-VIII. Ainda, CALSAMIGLIA. Ensaio sobre Dworkin. In: A TESE dos
direitos.
181
No mesmo sentido, na doutrina brasileira, v. a crítica de Jane Reis, para quem considerações pragmáticas a
respeito de metas coletivas jamais deveriam se sobrepor a direitos fundamentais, sob pena de distorção do
conteúdo mínimo do Estado de Direito. Cf. REIS. As garantias constitucionais entre utilidade e substância: uma
crítica ao uso de argumentos pragmatistas em desfavor dos direitos fundamentais. In: Direitos Fundamentais e
Justiça.
182
Para Dworkin, os princípios, em sentido amplo, dividem-se em princípios em sentido estrito — que dão
origens a direitos — e policies (traduzido como “políticas” ou “diretrizes políticas”) — com o significado lato de
interesses públicos, conveniências administrativas, medidas executivas etc. Os argumentos de princípio sempre
preferem aos argumentos de política. Vale dizer que as conveniências públicas não suplantam as exigências de
justiça, moralidade ou equidade nas quais se radicam os direitos. É nessa primazia dos argumentos de princípio
que reside seu antiutilitarismo (DWORKIN. Levando os direitos a sério, p. 128 et seq.). Também SOUZA NETO.
Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade prática, p. 225-228.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
61
o maior contato com a realidade concreta e a assunção, às claras, das bases pragmatis-
tas, fariam com que o juiz posneriano decidisse melhor e de forma mais responsável
do que o formalista.183
Outra crítica importante diz que o pragmatismo de Posner seria (iii) incompleto,
porque sugeriria decidir da melhor forma possível, mas sem indicar critério a respei-
to do que isso viria a ser. Dworkin afirma que esse pragmatismo só se sustenta com
base numa Teoria Moral substantiva, precisamente o que ele é incapaz de fornecer,
sendo, então, incoerente.184 Adrian Vermeule, também por essa razão, critica Posner
como propositor de um “consequencialismo atrofiado”.185 Posner recomendaria fazer
sempre o que funciona, mas se esqueceria de estabelecer um critério para identificar
o que é que funciona.186 Martin Stone chega a chamar o pragmatismo posneriano de
“ecletismo vazio”.187
Ilya Somin resume a essência da crítica:
A principal dificuldade com o pragmatismo de Posner é que, apesar da insistência na impor-
tância de se tomar decisões baseadas em “fatos e consequências”, ele não indica nenhuma
forma de se decidir quais fatos e consequências são desejáveis, e quais não são. Sem uma
resposta a essa questão, o pragmatismo não pode servir como uma guia de decisão, muito
menos como um guia superior a teorias alternativas.188
O pragmatismo de Posner, continua Ilya, seria muito amplo e muito restrito. Muito
amplo, por não indicar o que o juiz deve excluir de suas considerações.189 Deve-se levar
em consideração os efeitos sistêmicos; texto e precedentes devem ser tratados como o
mais importante material para a decisão. Não exclui sequer seu principal rival, o for-
malismo. “Depois de corretamente criticar a confiança exclusiva em ‘abstratas teorias
políticas e morais’, Posner oferece-nos uma teoria que é frequentemente mais vaga e
abstrata do que as que atacava”.190 “Razoabilidade” não é critério melhor do que “jus-
tiça” ou “equidade”. Muito restrito, por não oferecer nenhum critério seguro sobre o
que fazer. O que leva a uma situação contraditória. “Esse é o dilema do pragmatismo:
sem uma teoria moral extrínseca, não possui poder de guia. Uma vez que tal teoria seja
formulada, é ela, e não o pragmatismo, que se transforma no guia para o processo de
tomada de decisão”.191
Na verdade, pode-se defender a proposta de Posner entendendo-a como humilde.
Ele acredita que, se os juízes agirem pragmaticamente em relação ao que eles acham
melhor, os resultados para a sociedade serão, na média, melhores.192 Decerto, não indica
183
V. CHIASSONI. La Giurisprudenza Civile: metodi d’interpretazione e tecniche argomentative, p. 620.
184
DWORKIN. Justice in Robes, p. 59.
185
VERMEULE. Judging under Uncertainty: an Institutional Theory of Legal Interpretation, p. 84.
186
DWORKIN. Justice in Robes, p. 24, 64-65.
187
STONE. Four Qualms about Legal Pragmatism. In: HUBBS; LIND (eds.). Pragmatism, Law and Language.
188
SOMIN. Richard Posner’s Democratic Pragmatism. George Mason Law & Economics, p. 3.
189
SOMIN. Richard Posner’s Democratic Pragmatism. George Mason Law & Economics, p. 5. Também Richard
Epstein: “Existem tantos graus de liberdade no modo pragmatista de pensar que, ao aceitar tudo, acaba não
significando nada” (EPSTEIN. The Perils of Posnerian Pragmatism. University of Chicago Law Review, p. 639-650).
190
SOMIN. Richard Posner’s Democratic Pragmatism. George Mason Law & Economics, p. 8.
191
SOMIN. Richard Posner’s Democratic Pragmatism. George Mason Law & Economics, p. 7.
192
CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 122. Daí, inclusive, a sugestão de Posner em favor da
adoção de um Judiciário diversificado, com ideias e opiniões heterogêneas. “Tal Judiciário é mais representativo
e suas decisões irão obter, portanto, maior aceitação numa sociedade diversificada do que as que adviriam de
um mandarinato” (POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, p. 120).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
62 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
nenhum guia do que é razoável. Razoável é o que as circunstâncias, o estudo dos dados,
a sensibilidade trazida pela experiência, o input das diversas ciências experimentais, a
análise pragmática da doutrina e dos precedentes, a consideração dos efeitos sistêmicos
das possíveis decisões disserem que é.
A teoria do pragmatismo jurídico de Posner seria pouco prática (iv): os melhores,
mais rápidos e menos custosos resultados decisórios seriam obtidos, na maioria das
vezes, por intermédio de análises formalistas. Pensemos no Judiciário. Juízes não seriam,
em termos de competência institucional, as melhores pessoas para formular políticas
públicas ou tomar decisões na linha all things considered. Não estariam, por exemplo,
acostumados a apreciar materiais não jurídicos.193 Há, para isso, uma série de motivos.
O fato de não serem eleitos torná-los-ia sociologicamente distantes dos jurisdicionados,
e a vitaliciedade afastá-los-ia ainda mais de qualquer responsabilidade em relação ao
resultado de suas decisões. Existiriam as constrições relativas ao processo legal. O juiz
deve julgar com o que consta dos autos, não pode ouvir todos os interessados etc. (ao
contrário do Poder Executivo e, especificamente, das agências reguladoras, que, segundo
alguns, seriam as mais propícias a adotar uma teoria pragmatista da interpretação).194
Em favor do pragmatismo jurídico, seja de Posner ou de qualquer outro, pode-se
dizer, como faz Frank Cross, que “o pragmatismo do pragmatismo é, em essência, uma
questão consequencialista que requer investigação empírica. O pragmatismo pode ser, de
fato, pouco pragmático, mas isso só pode ser descoberto por intermédio de testes”.195 196
Analisando as consequências do pragmatismo à la Posner, alguns falam que
(v) ele produziria incentivos negativos em relação à qualidade das leis. Se as leis são apenas
mais um elemento a ser considerado no julgamento de um caso, o Poder Legislativo
não precisaria se preocupar em elaborar leis completas ou consistentes, porque, de
todo modo, seriam de pouca valia, podendo ser ajustadas pelo julgador no momento
193
VERMEULE. Judging under Uncertainty: an Institutional Theory of Legal Interpretation, p. 86 et seq. chap. 4 -
Judicial Capacities: a Case Study.
194
SUNSTEIN; VERMEULE. Interpretation and Institutions. University of Chicago Public Law Research Paper.
195
CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 125. Posner pretende ver comprovação das virtudes
do pragmatismo jurídico no sucesso econômico dos países da Common Law em relação aos da Civil Law.
Naqueles, os juízes agiriam de modo menos amarrado a scripts, ao passo que, por formação e tradição, os juízes
da Civil Law seriam mais formalistas. Em nossa opinião, não é boa prova. O sucesso econômico depende de uma
miríade de fatores, que podem nada ter a ver com o grau de formalismo jurídico dos países. V. POSNER. Law,
Pragmatism and Democracy, p. 95-96.
196
A questão do pragmatismo do pragmatismo jurídico consiste em saber se a teoria é a mais útil ou, ao
menos, comparativamente mais útil do que sua principal rival, o formalismo jurídico. Questão a ela ligada
é, como já mencionamos, saber se as teorias jurídicas — e aqui não importa qual — influenciam na prática da
adjudicação. As respostas a essas perguntas, até aqui, têm sido desanimadoras para os teóricos do Direito,
sugerindo que a influência é menor do que se estima. Veja-se, por exemplo, o estudo de Daniel Farber, que
selecionou quatro decisões julgadas por Richard Posner e Frank Easterbrook, na mesma corte, em ocasiões em
que houve dissenso entre os dois julgadores. Posner é um dos grandes defensores do pragmatismo jurídico.
Easterbrook, por sua vez, além de juiz, é teórico defensor do formalismo como critério de adjudicação. No
entanto, e de modo contrário ao que fariam crer seus posicionamentos teóricos, ambos os juízes, na prática,
souberam transitar, ao sabor de cada caso, por posições que se aproximavam, ora do pragmatismo, ora do
formalismo. Não havia, in concreto, nenhuma consistência em relação às teorias que professavam. V. FARBER.
Do Theories of Statutory Interpretation Matter?: a Case Study. Northwestern University Law Review, p. 1409 et seq.
Estudo mais recente comprovou que o formalismo teórico de Antonin Scalia, juiz da Suprema Corte americana
recentemente falecido, não se projetava em sua prática como justice, que se baseava nos mesmos métodos que
os demais juízes (nesses métodos estavam incluídas técnicas como a análise dos propósitos da lei, de nítido
cunho consequencialista). Cf. MCGOWAN. Do as I do, not as I say: an Empirical Investigation of Justice Scalia’s
Ordinary Meaning Method of Statutory Interpretation. University of San Diego Legal Research Papers.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
63
de sua aplicação.197 Contra essa crítica, sem embargo do fato de que, adotando-se o
pragmatismo ou não, o “ajuste” no caso concreto sempre existiu, vale sublinhar que o
argumento admite reversão: pode ser que o pragmatismo jurídico, ao contrário, encoraje
o exercício legislativo mais qualificado, ao neutralizar o medo, por parte do Legislador,
de que circunstâncias não concebidas no momento da edição de lei venham a produzir
efeitos negativos. A questão é, mais uma vez, empírica. Não é possível afirmar ou negar
nada antes de ver a teoria em ação.
Finalmente, (vi) as visões instrumentalistas do Direito — da qual o pragmatis-
mo jurídico é exemplo — propiciariam a corrosão da ideia de bem comum, com uma série
de consequências negativas para a noção de Estado de Direito (redução da natureza
vinculante das normas jurídicas, facilitação da captura das autoridades decisórias,
intensificação e perenização da litigiosidade na sociedade).
É a crítica de Brian Tamanaha, resumida a seguir.
Em que pese a difusão atual da ideia de instrumentalismo do Direito, nem sempre
foi assim. Há alguns séculos, acreditava-se que o Direito possuísse conteúdo determi-
nado. A fonte do conteúdo não importava: ou era Deus, a natureza, a razão humana,
ou derivações lógicas de princípios legais. Para essa visão não instrumental, o conteúdo
do Direito “existiria”. A criação das leis seria mais uma descoberta do que outra coisa,
e o Direito possuiria autonomia e unidade interna — seria, enfim, um todo coerente.
As leis naturais da tradição católica, o Direito consuetudinário medieval, o Direito da
Common Law em suas origens, tudo representava o não instrumentalismo.198
A partir do Iluminismo, a situação começou a mudar. As normas passaram a
ser vistas como fonte da ordem social, não mais como o próprio ordenamento social, o
que permitiria, em longo prazo, discutir questões como sua eficiência ou sua utilidade.
A revolução instrumentalista deu-se no século XIX, quando, segundo Horwtiz,
falando sobre a experiência norte-americana, “grupos industriais e comerciais forjaram
uma aliança com a profissão jurídica para concretizar seus interesses por intermédio
de uma transformação do sistema jurídico”.199
O século XX assistiu a seu triunfo: o realismo jurídico, o primeiro pragmatismo
jurídico (do juiz Holmes), a visão sociológica do Direito de Roscoe Pound e de Jhering.200
Não só na teoria, mas também, e principalmente, na prática da adjudicação, do que é
exemplo o court-packing plan de Franklin Roosevelt: uma suprema corte que invalidava
leis atributivas de benefícios sociais mudou de opinião quando ameaçada por proposta
de lei que criava novos cargos de juízes no Judiciário federal, a serem indicados
pelo presidente eleito.201 O projeto, mal recebido pelo Congresso, acabou não sendo
aprovado. Alguns contestam a ideia de que teria havido reação de temor por parte da
Suprema Corte — talvez ela já estivesse mudando sua opinião quanto à possibilidade
197
FILIP. Why Learned Hand Would Never Consult Legislative History Today. Harvard Law Review, passim.
198
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 11-12.
199
HORWITZ, Morton. The transformation of American Law, 1780-1860. Cambridge: Harvard University Press, 1977,
p. 1 apud TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 24.
200
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 60-76.
201
Duas semanas e meia após ser reeleito por histórica maioria de votos, Franklin Delano Roosevelt apresentou
projeto de lei que criaria uma vaga adicional para cada juiz do Judiciário federal com mais de setenta anos. A
intenção declarada era a de acelerar o julgamento dos processos. A capacidade de oposição da Suprema Corte
aos projetos de lei advindos do New Deal restaria virtualmente neutralizada porque, embora isso não haja sido
dito em nenhum momento, era óbvio que as indicações caberiam ao presidente eleito, que conseguiria maioria
a partir de seus indicados.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
64 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Nos anos 60, 70 e 80 do mesmo século, novas teorias, como a análise econômica do
Direito,204 os critical legal studies, o movimento Law and Society205 e o próprio pragmatismo
jurídico assentaram o instrumentalismo jurídico como uma espécie de lugar-comum
202
WHITE. Constitutional Change and the New Deal: the Internalist/Externalist Debate.
203
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 80-81.
204
A análise econômica do Direito, conhecida em inglês pelo termo Law and Economics, é movimento que, surgido
em meados do século passado, pressupõe que os indivíduos envolvidos com o Direito ajam como maximizadores
racionais de satisfações. Há duas assertivas básicas, uma descritiva — o Direito funcionaria com o propósito de
aumentar a riqueza, ou seja, as normas e práticas jurídicas pretenderiam facilitar a atribuição de bens, valores e
serviços a quem mais os valorizasse —, outra, prescritiva — o Direito deve funcionar assim. O movimento justifica
tais assunções alegando que poucas pessoas se oporiam a isso, e que as sociedades ocidentais contemporâneas
perceberiam as funções públicas de modo utilitarista, sendo certo que a maximização de riqueza seria forma
de concretizar tal percepção. No mundo atual, com sua pluralidade de fins, maximizar a riqueza seria noção
simples que permitiria acordo quanto a uma única finalidade a ser buscada. O movimento sofre críticas: a ideia
de eficiência não é nem poderia ser o único fim do Direito; há um viés economicamente conservador por detrás
de suas propostas; a teoria não daria devida atenção a questões de justiça distributiva; a análise econômica
do Direito partiria de pressuposições contestáveis e simplificadoras (como a associação do comportamento
humano à de um maximizador racional), chegando a resultados pouco úteis; os cálculos e técnicas exigidos
pela teoria seriam complicados e estariam além da aptidão profissional ordinária de juízes e advogados. Nos
EUA, o movimento adquiriu bastante penetração, em especial na área do antitruste e da responsabilidade civil.
No Brasil, há alguma dificuldade quanto à sua aceitação, e o tom, em geral, é crítico, apesar de sugestões
interessantes quanto a algumas apropriações em certas áreas (como no Direito Processual Civil). Nos últimos
tempos, em nosso país, contudo, o movimento vem ganhando tração. No Direito Concorrencial, como ocorre
nos Estados Unidos, o uso é mais difundido, mas isso por características próprias da área. O grande autor do
Law and Economics é, novamente, Richard Posner, e, por isso, alguns associam o movimento ao pragmatismo
jurídico. Existem, sem dúvidas, proximidades — o uso da economia como técnica decisória de apoio é uma —,
apesar de o pragmatismo jurídico posneriano ser mais uma atitude geral em relação ao Direito do que um
corpo de propostas de conteúdo, como é o caso do Law and Economics. Não há, em todo caso, contradição entre
as ideias: a partir de uma atitude pragmatista, o julgador pode se utilizar de técnicas econômicas, filtradas
por sua apreensão via movimento Law and Economics. Para uma apresentação do movimento, v. POSNER.
Law and Economics in Common-Law, Civil-Law, and Developing Nations. Ratio Juris. Introdução a algumas
técnicas está em COPE et al. Analytical Methods for Lawyers, p. 375-472. Uma discussão dos possíveis usos do
movimento no Processo Civil está em Flávio Galdino (Introdução à análise econômica do Processo Civil (I): os
métodos alternativos de solução de controvérsias. Quaestio Iuris, p. 171-204). Para as relações entre pragmatismo
jurídico e análise econômica do Direito, v. COTTER. Legal Pragmatism and the Law and Economics movement.
Georgetown Law Journal, p. 2071-2141. Analisando o Posner do movimento Law and Economics e o Posner do
pragmatismo jurídico, v. KRECKÉ. Economic Analysis and Legal Pragmatism. International Review of Law and
Economics. Recentemente, na doutrina brasileira, Thiago Cardoso Araújo realizou importante levantamento do
assunto. Cf. ARAÚJO. Análise econômica do direito no Brasil: uma leitura à luz da teoria dos sistemas.
205
Trata-se de movimento teórico de origem norte-americana que, descendendo do realismo jurídico e da
sociologia jurídica de Pound, atualiza o debate sociológico aos dias atuais. As atenções não são propriamente
dogmáticas, mas se voltam a temas como “ordem social”, “controle social”, “mudança jurídica”, “ideologia”,
“profissão legal”. V. TAMANAHA. Law and Society. Saint John’s University School of Law legal Studies Research,
p. 1-25.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
65
206
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 219.
207
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 223.
208
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 242.
209
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 244.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
66 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Nada pode ser feito quanto aos recônditos profundos do intelecto humano. No entanto,
pode-se evitar que o juiz abra mão da natureza vinculante do Direito, tentando descobrir
o que é que ele exige (por mais incerto que seja), trocando tudo isso por uma manipulação
instrumental das normas jurídicas, com o propósito de chegar a uma finalidade específica,
parecido com a forma como um advogado atua.210
210
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 244.
211
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy. Sullivan denomina sua versão de
pragmatismo de “pragmatismo radical”, aludindo a ideias progressistas de Dewey: “Portanto, ao passo em que
o pragmatismo é uma ‘postura’, ele é uma radical, pois é cético e experimental. O temperamento pragmático
é constantemente questionador; ele foca na mudança e na transformação”. Cf. SULLIVAN e SOLOVE. Radical
Pragmatism. In. MALACHOWSKI (ed.). The Cambridge Companion To Pragmatism. pp. 324-344.
212
Comunitarismo é rótulo debaixo do qual é agrupada uma série de autores, principalmente americanos (o debate
surgiu lá no final do século XX), que, à parte preocupações específicas, destacam a importância do aspecto
comunitário numa era em que o discurso dos direitos individuais e, com ele, o próprio individualismo, teria ido
longe demais. Há uma tese descritiva — a sociedade americana contemporânea priorizaria, de modo excessivo,
o indivíduo, em detrimento da esfera pública e da comunidade — e uma tese prescritiva — far-se-ia necessário
priorizar a comunidade. Outros temas e estilos de argumentos sublinham os deveres públicos (em contraposição
aos direitos individuais) e a importância dos direitos positivos prestacionais. Os comunitaristas opõem-se, no
debate acadêmico, aos liberais, entendida a palavra na acepção americana, isto é: teóricos preocupados com a
posição do indivíduo, mas que também não descuidam de interesses redistributivos. A discussão é abstrata,
mas incide concretamente em polêmicas como o aborto, a abertura ao multiculturalismo em colégios públicos,
a universalidade dos direitos humanos, polêmicas nas quais se espera que o comunitarista defenda posição
mais culturalmente relativista, e o liberal, posição universalista. Entre os teóricos comunitaristas, embora
muitos neguem afiliação, destacam-se Michael Walzer, Michael Sandel e Charles Taylor. V. WALZER. Esferas
da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade; SANDEL. Democracy’s Discontent: America in Search of
a Public Philosophy; TAYLOR (Org.). El multiculturalismo y “la política del reconocimiento”. Em português, ver,
por exemplo, SILVA. A crítica comunitarista aos liberais. In: TORRES (Org.). Teoria dos direitos fundamentais,
p. 197-242.
213
Num caso em que se discutia a validade da expulsão de aluno do ensino médio que proferiu discurso irônico
numa campanha eleitoral interna (Fraser versus Bethel School District), a Suprema Corte optou por mantê-lo fora
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
67
não menos, e nisso o pragmatismo poderia ajudar, com sua atenção ao contexto e sua
ênfase nas consequências.214
Contra Dworkin, Sullivan afirma que ele apresentaria “espantalho” do pragmatis-
mo jurídico, que “talvez nenhum filósofo jurídico defenda”. Uma das críticas de Dworkin
ao pragmatismo jurídico refere-se à despreocupação em relação ao passado. À pergunta
“o que é melhor para o futuro?” responder-se-ia sem olhar para trás. Sullivan diz que
não é assim. O pragmatismo aceitaria o precedente, sem, no entanto, ver nele valor
ontológico. Isso não é desprezo pelo passado. Ao contrário. Citando Dewey, Sullivan
sustenta que o parâmetro sobre o que é o melhor no futuro diz respeito a problemas
do presente, que chegaram por intermédio do passado.215
Contra Posner, Sullivan, apesar de concordar com a crítica diante de certa filosofia
estéril, acredita que o juiz errou na dose. Ao rejeitar a Filosofia por inteiro, seu prag-
matismo jurídico acabaria sendo pior do que o espantalho de Dworkin. Sem encontrar
utilidade para a teorização filosófica, o pragmatismo posneriano não se prestaria à crítica
e à reconstrução de práticas insatisfatórias — pilares do pragmatismo à Dewey — e
acabaria servindo à aquiescência ao status quo.216 Haveria, nisso, uma incompreensão
quanto ao papel da teoria na filosofia pragmatista (de Dewey, como sempre).217 Não se
trataria de aprender a teoria e fazê-la incidir na prática, mas de tornar a prática mais
inteligente graças à teoria. “Isso não requer uma razão teórica capaz de determinar seus
objetivos para além das práticas históricas; requer, na verdade, uma abordagem crítica
e reconstrutiva em relação às instituições sociais e às práticas”.218
O pragmatismo de Posner jogaria fora o bebê e a banheira. Termos como “justiça”
e “igualdade” possuiriam curso na linguagem ordinária antes de aparecerem em deba-
tes filosóficos. A proposta do pragmatismo é reconstruir seu significado, priorizando
a experiência. Posner recomenda que sejam colocados de lado. Ora, abandonados à
própria sorte, eles poderiam ser apropriados e destinados a seja qual for o mau uso.219
Quando o pragmatismo de Posner não indica qualquer fim, degrada-se em
pouco mais do que um exercício de eficiência. Já o pragmatismo de Sullivan, na linha
clássica, busca seus fins por intermédio da crítica e da experimentação, testa os fins
do colégio com o argumento de que a liberdade de expressão não superaria o interesse público consistente em
ensinar decoro social aos estudantes. Outro caso, em 1987, Daryll Olesen foi suspenso da escola por usar brinco.
O colégio alegou que fazia parte do protocolo de vestuário proibir a utilização de adereços de gangues, embora
o aluno tivesse mencionado que usava o brinco apenas para expressar sua individualidade. A Suprema Corte,
em Olesen versus Board of Education of School District, manteve a suspensão, afirmando que, na escola, os alunos
deveriam aprender não apenas História e Inglês, mas também como se comportar em sociedade.
214
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 25-26.
215
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 35. Ainda, p. 41: “O pragmatismo pode
ser tudo, menos hostil, por princípio, a estudar as relações entre decisões presentes e passadas. Até porque é
apenas por intermédio de comparações assim que as decisões atuais podem ser melhoradas”.
216
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 53.
217
Em rigor, Sullivan lança essa crítica não só a Posner, mas também aos demais pragmatistas contemporâneos,
que, seguindo Rorty, enxergariam o pragmatismo como um “método raso não teórico” de abordar os aspectos
da vida. O desprendimento entre o pragmatismo e uma valência política transformadora, nos moldes da que
propunha Dewey, esvaziaria e tornaria banais as propostas pragmáticas. Cf. SULLIVAN e SOLOVE. Radical
Pragmatism. In. MALACHOWSKI (ed.). The Cambridge Companion To Pragmatism. pp. 324-344.
218
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 54.
219
SULLIVAN e SOLOVE. Radical Pragmatism. In. MALACHOWSKI (ed.). The Cambridge Companion To
Pragmatism. p. 326. “Se o pragmatismo não serve para nos auxiliar a inferir se nossas finalidades são boas ou
ruins, parece justo dizer que o pragmatista apenas aceita (ou herda) as finalidades postas acriticamente. Isso
reduz a contribuição do pragmatismo apenas a auxiliar a escolha dos meios para se alcançar esses fins”.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
68 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
220
“Longe de mero método que fornece pouca orientação às nossas finalidades normativas, o pragmatismo
permite que travemos debates filosóficos a seu respeito sem o apelo a abstrações vazias. O pragmatismo é um
convite a uma espécie diferente de debate — um debate que o pragmatismo posneriano ignora por completo”
(SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 63).
221
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 63-66.
222
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 98-99.
223
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution.
224
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 5.
225
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 7.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
69
consequências concretas —, Breyer defende que a ênfase deva recair sobre as finali-
dades e consequências. É aí que reside seu pragmatismo jurídico: na importância das
consequências para o julgamento.
A ideia de liberdade ativa entende que a Constituição incorpora alguns propósitos
básicos, expressos em termos gerais. Nas palavras de Breyer:
A compreensão e a ênfase nesses propósitos básicos ajudará o juiz a melhor entender e aplicar
as disposições específicas. Ele [o argumento da liberdade ativa] identifica as consequências
como um importante critério para se medir a fidedignidade de determinada interpretação
a esses propósitos democráticos básicos. Em síntese, o foco nos propósitos busca promover
a liberdade ativa insistindo em interpretações, tanto da Constituição quanto da legislação
infraconstitucional, que sejam consistentes com os desejos dos cidadãos. O foco nas conse-
quências, por sua vez, permite-nos verificar se e em qual extensão tivemos êxito em auxiliar
a produção de resultados que reflitam tais desejos.226
226
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 115.
227
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 85-101.
228
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 66-74.
229
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 43-50.
230
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 58-62.
231
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 75-84.
232
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 102-108.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
70 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
233
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 119-120.
234
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 120.
235
SUNSTEIN. Justice Breyer’s Democratic Pragmatism.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
71
236
COLEMAN. The Practice of Principle: in Defence of a Pragmatist Approach to Legal Theory.
237
Segundo Lund, essa categoria de pragmatismo — derivada de discussões majoritariamente semânticas e
conceituais — pode ser chamada de pragmatismo ortodoxo ou semântico, e se vincula a correntes semelhantes
da filosofia analítica preocupadas com a linguagem, sem, necessariamente, manter relação com o pragmatismo
clássico. Cf. HUBBS. Some Varieties of Pragmatism. In. HUBBS e LIND (eds.). Pragmatism, Law and Language.
238
COLEMAN. The Practice of Principle: in Defence of a Pragmatist Approach to Legal Theory, p. 6.
239
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, p. 42.
240
DWORKIN. Thirty years on. Harvard Law Review.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
72 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Posner. O pragmatismo jurídico, seja como teoria normativa ou como metateoria, está
longe de ser aceito de modo tranquilo ou de significar algo único ou coeso. Ainda assim,
é uma das mais importantes teorias jurídicas contemporâneas.
241
CALVO; VENIER. Racionalidad de las justificaciones consecuencialistas en las decisiones judiciales. Isonomía,
p. 155.
242
Tradicionalmente, a teoria (alguns chamam de “ciência”) da legislação propõe dois enfoques para as constrições
incidentes junto ao processo legislativo: o enfoque minimalista — as constrições seriam, apenas, aquelas
referentes à eficiência dos meios legislativos, sem se ocupar de qualquer análise a respeito de seus fins —,
e o enfoque maximalista, que acreditaria que os critérios da razão prática seriam aplicáveis não apenas aos
meios, mas também às finalidades dos projetos. Sem entrar no mérito da disputa, afirmamos que o propósito de
qualquer legislação é sempre o de produzir um estado de coisas tido como ideal — mesmo quando se trate de
legislação simbólica, a produção do efeito-símbolo é o que se busca —, o que envolve raciocínio pragmático. É
possível ser pragmatista tanto ao se optar por enfoque minimalista quanto maximalista; basta, ao projetar o ato
normativo, fazê-lo com vistas à produção de resultados. Há, ainda, outro sentido no qual se pode encetar estudo
pragmático da legislação, que é quanto à sua efetiva adesão pela sociedade (“a lei vai pegar?”), o que a doutrina
jurídica e os estudos sociológicos chamam de efetividade ou eficácia social da norma. Para o debate sobre os
enfoques da teoria da legislação, v. CÓRDOBA. Racionalidad legislativa: crisis de la ley y nueva ciencia de la
legislación, p. 275-343. Ver ainda, sobre o processo legislativo e seus processos de valoração e avaliação, Ángeles
Galiana Saura (La ley: entre la razón y la experimentación, especialmente cap. III, IV). Interessante proposta
teórica, dando notícia da pouca atenção tradicionalmente devotada à legislação no debate contemporâneo, vem
em Luc J. Wintgens (Legisprudence as a New Theory of Legislation. Ratio Juris). Para a clássica apresentação,
no Brasil, sobre o problema (pragmático) da efetividade das normas constitucionais, v. BARROSO. O direito
constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
73
243
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 130, grifo nosso.
244
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 131-132.
245
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 133.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
74 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
246
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 139.
247
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 149.
248
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 150.
249
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 150, grifo nosso.
250
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review, p. 239-241.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
75
Em primeiro lugar, consequências não são resultados. Quando alguém dispara o ga-
tilho de revólver, pratica ato que tem como resultado o arremesso de projétil no espaço.
Se a arma estava apontada para alguém, esse resultado pode ter uma consequência: João
disparou a arma e, em consequência, Pedro morreu. Aplicando ao mundo jurídico, o
ato é decidir a causa, sentenciando-a. O resultado é a condenação, absolvição, criação,
reconhecimento ou extinção de um direito.
Segunda distinção: consequências causais e consequências remotas (no original, causal
consequences e ulterior outcomes). Partindo do ato consistente na sentença que reconhece
que Carlos deve a Maria, o resultado é o reconhecimento judicial da dívida e a obriga-
ção de pagamento. As consequências causais disso podem ser o desespero de Carlos,
que vai ter de pegar empréstimo de um milhão, e a alegria de Maria. As consequências
remotas daquele ato podem ser o fechamento de uma casa de caridade — para quem
Carlos faria uma grande doação — e o alcoolismo de Maria (que recebeu o dinheiro e
resolveu gastar em bebida).251
MacCormick, até aqui, distinguiu resultados, consequências causais e consequ-
ências remotas. Nenhum desses conceitos serve à argumentação consequencialista. As que
importam são as que chama de “consequências como implicações” ou, simplesmente,
“consequências jurídicas”. São implicações lógicas de determinada decisão. Não se trata
de consequências como probabilidades estatísticas ou como resultados naturalísticos.
Para exemplificar, veja-se trecho do voto do juiz Coleridge, da Suprema Corte
inglesa, no caso Regina versus Dudley & Stephens, em que se discutiu alegação de esta-
do de necessidade em favor de dois marinheiros que, perdidos no mar por oito dias,
mataram e comeram um colega.
Não é necessário apontar o terrível risco de se admitir o pretendido princípio. Quem será o
juiz desse tipo de necessidade? Qual critério se vai adotar para comparar o valor da vida? [...]
É bastante claro que o princípio deixa a critério de quem vai se beneficiar do ato determinar
a necessidade que vai justificar a extirpação deliberada da vida de outra pessoa para salvar
a sua própria [...]. É evidente que tal princípio, uma vez admitido, poderá servir de disfarce
jurídico para paixões desenfreadas e crimes atrozes.252
MacCormick sustenta que o “terrível risco” é um perigo que vai decorrer logica-
mente do princípio, caso venha a ser adotado. “A qualidade alarmante ou inaceitável do
princípio é demonstrada ao se analisar suas implicações lógicas ao se tê-lo como norma
para casos futuros”.253 O que não é certo é se tais casos vão existir, nem se a comunidade
vai mudar seu comportamento a partir das decisões. Tais questões estão abertas apenas
a conjecturas, aliás difíceis de serem formuladas de modo não inconsequente. O ponto
é: se tais casos ocorrerem, haverá disfarce jurídico com base no precedente.
A consequência jurídica, a “consequência como implicação”, a que importa para
o teste consequencialista, está na implicação lógica contida neste “se”, “haverá”, não
na probabilidade — maior ou menor — de que os tais casos venham a ocorrer, e, caso
ocorram, de que efetivamente se venha a utilizar o disfarce.254 “Em síntese, o que chamo
251
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review, p. 246-249.
252
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review, p. 250.
253
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review, p. 251.
254
O mesmo raciocínio vale para a decisão do juiz Marshall em Marbury vs. Madison: a subversão da Constituição,
ao se admitir que leis inconstitucionais possam prevalecer diante dela, é implicação lógica. Não importa ao
argumento consequencialista se tais leis irão existir ou se, ao hipoteticamente decidir por sua validade, elas
passarão, como resultado da decisão, a ser mais comuns.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
76 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
255
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review, p. 254.
256
“Mais do que a previsão de qual conduta a norma provavelmente irá induzir ou desestimular, o que interessa
é responder à pergunta de que tipo de conduta autorizaria ou proibiria a norma estabelecida na decisão; em
outras palavras, os argumentos conseqüencialistas são, em geral, hipotéticos, mas não probabilistas” (ATIENZA.
Teorias da argumentação jurídica: Perelman, Toulmin, MacCormick, Alexy e outros, p. 195).
257
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review, p. 255.
258
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review, p. 257.
259
“Efetivamente, o termo ‘real’ se refere a este aspecto: a interpretação é sopesada à luz de certos fatores que
pertencem à realidade social” (AARNIO. Lo racional como razoable: um tratado sobre la justificación jurídica,
p. 180).
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
77
interpretativas que se analisa e, então, a colocação delas numa ordem de preferência, de modo
a se encontrar a melhor. Depois, a argumentação retorna à análise das interpretações
sendo consideradas: a que será tida como a mais bem justificada é a que produzir a
melhor consequência.
A argumentação consequencialista, sem dúvida elemento relevante da justifica-
ção das decisões, não pode, pelo menos por si só, ser considerada modelo genuíno de
argumentação jurídica. Ela é o último passo do procedimento de justificação. Só pode
entrar quando as leis, trabalhos legislativos preparatórios, decisões dos tribunais etc.
já definiram as possibilidades de interpretação do dispositivo. A interpretação jurídica
só é legítima porque está vinculada a fontes de Direito dotadas de autoridade. Daí que
o argumento consequencialista, em si mesmo, é, tão somente, uma forma de discurso
social. Pode ser útil e necessário, mas não possui valor jurídico. Só o adquire quando
utilizado em conexão com as fontes de Direito, vale dizer, quando operado na condição
de último passo interpretativo, argumento de remate. A interpretação textual, a inter-
pretação histórica, a interpretação finalística, a compreensão do sistema legal, a pesquisa
dos precedentes, a opinião da doutrina, todos esses elementos delimitam um espectro de
interpretações possíveis; os argumentos reais, incidindo ao final da cadeia, especificam
as consequências associadas a cada uma das opções interpretativas, hierarquizam-nas
e indicam qual a decisão mais bem justificada, que será aquela associada às melhores
consequências.260
Aarnio, como MacCormick, coloca a argumentação consequencialista como última
etapa da justificação. Ao contrário daquele, não indica quais as consequências a serem
apreciadas — fala, apenas, que são argumentos “reais”, que pertencem à realidade
prática. Também nada fala acerca dos critérios de avaliação ou de dever de univer-
salização, mas descreve o funcionamento do raciocínio consequencialista: especificar
consequências, hierarquizá-las, voltar e optar por uma linha de interpretação.
260
AARNIO. Lo racional como razoable: um tratado sobre la justificación jurídica, p. 182.
261
MENGONI, Luigi. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi. Milão: Giuffrè Editore, 1996, p. 95. Ainda, CHIASSONI,
Pierluigi. La Giurisprudenza Civile: metodi d’interpretazione e tecniche argomentative. Milão: Giuffrè Editore, 1999,
p. 622-624.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
78 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
262
“Quando dois objetos são similares em tudo, e não somos capazes de identificar a preeminência de um sobre o
outro, observem-se suas consequências. De fato, o objeto do qual segue um bem maior é preferível; se, ao invés,
as consequências são piores, mais desejável é o objeto do qual deriva o mal menor”. ARISTÓTELES. Topici, 117,
a. Bari: 1970, p. 464 apud MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 97.
263
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 97-99.
264
De certa forma, essa crítica reflete-se na crítica de Habermas à técnica da ponderação de interesses: “Para o
Tribunal Constitucional Federal, a Lei Fundamental da República não constitui tanto um sistema de regras
estruturado através de princípios, mas uma ‘ordem concreta de valores’ (semelhante à de Max Scheler ou de
Nicolai Hartmann). [...] Essa interpretação vem ao encontro do discurso da ‘ponderação de valores’, corrente
entre os juristas, o qual, no entanto, é frouxo. Os que pretendem diluir a constituição numa ordem concreta de
valores desconhecem seu caráter jurídico específico; enquanto normas do direito, os direitos fundamentais,
como também as regras morais, são formados segundo o modelo das normas de ação obrigatórias — e não
segundo o modelo dos bens atraentes” (HABERMAS. Direito e democracia: entre facticidade e validade, v. 1, p.
314-315, 318, 320-321).
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
79
265
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 102.
266
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 103.
267
Até porque, segundo Mengoni, a argumentação orientada a consequências não é, em si mesma, procedimento
de justificação jurídica; é, apenas, procedimento heurístico de pesquisa de hipóteses racionalmente fundadas. A
decisão jurídica deve ser propriamente justificada por intermédio de remissões e verificações de compatibilidade
em face da congruência sistemática, da universalização da decisão etc. “Os significados normativos não
podem ser obtidos senão no, e por intermédio do, sistema jurídico, e, portanto, só podem ser explicados
dogmaticamente” (MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 107).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
80 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
268
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 105.
269
MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 129.
270
MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 129-130.
271
MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 131.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
81
272
MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 131.
273
Apenas por amor à completude, nesta nota seguem alguns desses trechos, com os sublinhados do original e
os itálicos acrescentados: “Preocupa-se a Hermenêutica, sobretudo depois que entraram em função de exegese
os dados da Sociologia, com o resultado provável de cada interpretação. Toma-o em alto apreço; orienta-se por ele;
varia tendo em mira, quando o texto admite mais de um modo de o entender e aplicar. Quando possível, evita
uma consequência incompatível com o bem geral; adapta o dispositivo às ideias vitoriosas entre o povo em cujo seio
vigem as expressões de Direito sujeitas a exame. Prefere-se o sentido conducente ao resultado mais favorável, que
melhor corresponda às necessidades da prática, e seja mais humano, benigno, suave” (MAXIMILIANO. Hermenêutica
e aplicação do Direito. 19. ed., p. 135). “A interpretação sociológica atende cada vez mais às conseqüências prováveis de
um modo de entender e aplicar determinado texto; quando possível busca uma conclusão benéfica e compatível com
o bem geral e as ideias modernas de proteção aos fracos, de solidariedade humana. Faça-se justiça, porém de
tal sorte que o mundo prossiga rumo a seus altos destinos” (MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito.
19. ed., p. 137). “O Direito é um meio para atingir os fins colimados pelo homem em atividade; a sua função é
eminentemente social, construtora; logo não mais prevalece o seu papel antigo de entidade cega, indiferente
às ruínas que inconsciente ou conscientemente possa espalhar” (MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do
Direito. 19. ed., p. 138).
274
MORAND. La révolte des faits contre le code; MORAND. La revolte du Droit contre le code: la révision nécessaire des
concepts juridiques.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
82 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
275
SCHUARTZ. Consequencialismo jurídico, racionalidade decisória e malandragem. Revista de Direito
Administrativo.
276
Em 2010, ano em que a tese de doutorado da qual se originou o presente livro foi defendida, o pragmatismo
jurídico ainda se encontrava a meio caminho da popularização acadêmica. Em 2014, ano da publicação da
primeira edição deste livro, pode-se dizer que o uso da expressão “pragmatismo” e “consequencialismo”
aparecia com alguma frequência em dissertações e teses. Também se vê as palavras “pragmatismo” e
“consequencialismo” em artigos dogmáticos — alguns fazendo uso absolutamente fuzzy das noções. No Direito
talvez tenha acontecido o que Peirce identificava na filosofia (v. nota de rodapé n. 21), mas, aqui, ainda não há
proposta para livrar as noções de pragmatismo e de consequencialismo de seus sequestradores. Em 2017, data
da segunda edição, o pragmatismo jurídico já se tornou moda acadêmica. Numa eventual quarta edição, é bem
provável que já se possa identificar — como é comum na história das ideias — um movimento contrário a ele.
Quem viver, verá.
277
POGREBINSCHI. A normatividade dos fatos, as consequências políticas das decisões judiciais e o pragmatismo
do Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito Administrativo, p. 181-193.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
83
por intermédio de lei estadual (Lei nº 7.619/00). O Município foi criado antes da pro-
mulgação da lei complementar federal que, segundo o art. 18, §4º, da Constituição da
República, com a redação da EC nº 15/96, deverá estabelecer o período em que isso
poderá ocorrer.278 Tal lei complementar não existia e não existe até hoje.279
O que fazer? Declarar a inconstitucionalidade da lei criadora do Município sete
anos após sua criação, como pretendia o autor da demanda? Ignorar a existência de uma
Câmara dos Deputados e de um Poder Executivo legitimamente eleitos? Tornar nulas
mais de duas centenas de leis municipais e outros tantos atos de arrecadação de tributos
municipais, estaduais e federais? Anular todos os atos e contratos públicos firmados
no período? Ou fazer vista grossa à lei editada antes da vigência de lei complementar
federal expressamente requerida pela Constituição da República?
O voto do relator mostrou-se favorável à manutenção da lei estadual. “O
Município de Luís Eduardo Magalhães existe, de fato, como ente federativo dotado
de autonomia municipal, a partir de uma decisão política”. Tratar-se-ia de situação
excepcional —excepcionalidade político-institucional — trazida pela atuação da força
normativa dos fatos, no dizer de Jellinek. A ausência de atuação do Congresso, verdadeira
“moléstia institucional”, teria gerado a circunstância que, ali, não poderia ser solucio-
nada com a pura e simples invalidação da figura jurídica do Município.280 “Criado o
Município, passou a existir e agir como ente da federação. Trata-se de um fato. Não se
anulam fatos” (p. 301).
Citando Giorgio Agamben, Eros Grau delineou a relação entre estado de norma-
lidade, norma jurídica e exceção:
A esta Corte, sempre que necessário, incumbe decidir regulando também essas situações de
exceção. Mas esta Corte, ao fazê-lo, não se afasta do ordenamento, eis que aplica a norma à
exceção desaplicando-a, isto é, retirando-a da exceção.281
278
Art. 18. [...] §4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por lei estadual,
dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito,
às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados
e publicados na forma da lei (grifos nossos).
279
O Projeto de Lei Complementar nº 98/2002, originário do Senado e aprovado no Congresso, e que pretendia
regulamentar a Constituição da República no ponto, foi vetado integralmente pela Presidente da República em
novembro de 2013. Atualmente encontra-se em curso o Projeto de Lei do Senado nº 199/2015. Ele foi aprovado
no Senado e encaminhado, em agosto de 2015, à Câmara dos Deputados, onde se encontra parado desde então.
280
“Como o Legislativo omitiu-se, deixando de produzir essa lei complementar, e o ente federativo surgiu,
existindo como tal, a aplicação do preceito para que se declare a inconstitucionalidade do ato legislativo
estadual e a inconstitucionalidade institucional do Município agravará a moléstia do sistema” (Voto do Relator
Eros Grau na ADI nº 2.240-7, p. 298 dos autos do processo judicial).
281
ADI nº 2.240-7, p. 302.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
84 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
282
ADI nº 2.240-7, p. 313, grifos nossos.
283
A afirmação é reiterada na p. 329: “Terá significado especial o princípio da proporcionalidade, especialmente
a proporcionalidade em sentido estrito, como instrumento de aferição da justeza da declaração de
inconstitucionalidade (com efeito da nulidade), tendo em vista o confronto entre os interesses afetados pela
lei inconstitucional e aqueles que seriam eventualmente sacrificados em conseqüência da declaração de
inconstitucionalidade”.
284
ADI nº 2.240-7, p. 322.
285
Rachel Herdy, em artigo específico a respeito do perfil “pragmatista” de Gilmar Mendes, identifica três
circunstâncias que permitiriam enquadrar o Ministro neste rótulo: sua defesa das “sentenças de perfil aditivo”
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
85
no Supremo; o fato de ter sido ele o idealizador do anteprojeto de lei que deu origem à Lei Federal nº 9.868/99;
e, mais importante, sua defesa, em casos e votos, de um “pensamento jurídico do possível”. V. HERDY. Gilmar
Ferreira Mendes e o “pensamento jurídico do possível”: um pragmatista no Supremo Tribunal Federal?
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
86 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
posto que este não cometeria a ingenuidade de, numa inócua declaração de princípios,
expedir mandado para cessar a insurreição.286
286
COSTA. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania, p. 130-137.
287
Defendendo-se das acusações feitas pela imprensa e pelo Congresso, Nelson Hungria disse o seguinte: “Jamais
o Supremo Tribunal desertou a sua função constitucional, que não é, positivamente, a de debelar insurreições
vitoriosas. O que ocorre é que o Brasil, com a implantação da República, entrou no ciclo político da América
Latina, em que as mudanças de regime e a queda dos governos se operam, frequentemente, mediante
pronunciamentos militares, contra os quais não há de opor-se a força do direito. Bem ou mal intencionados,
tais pronunciamentos fazem calar a força das leis e dos ditames jurídicos. Contra o fatalismo histórico dos
pronunciamentos militares não vale o Poder Judiciário, como não vale o Poder Legislativo. Esta é que é a
verdade, que não pode ser obscurecida por aqueles que parecem supor que o Supremo Tribunal, ao invés de um
arsenal de livros de direito, disponha de um arsenal de schrapnels e de torpedos” (COSTA. O Supremo Tribunal
Federal e a construção da cidadania, p. 135).
288
Medida Cautelar da ADI nº 2.435, proposta contra a Lei fluminense nº 3.542/01, julgada em 13 de março de 2002.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
87
Na ADI nº 1.950, em que se questionava lei do Estado de São Paulo que con-
cedia meia-entrada a estudantes dos ensinos fundamental, médio e superior (Lei nº
7.844/92), mais uma vez, Marco Aurélio, em voto vencido, afirmou que havia cortesia
com chapéu alheio:
Não vejo como fixar esse ônus, que acaba sendo suportado, ante a transferência, pela so-
ciedade, tendo em conta a majoração da entrada para aqueles que não gozam do benefício,
mediante uma norma, repito, não razoável, porque nela não se contém a contrapartida, ou
seja, uma compensação — havendo uma desvantagem significativa — da perda por aqueles
que se lançam no mercado, na vida comercial, e precisam fugir à morte civil nessa mesma
vida comercial, que é a falência.
289
STF. Plenário, Rel. Min. Dias Toffoli, RE nº 693.456, pendente de publicação.
290
STF. 2ª turma, Rel. Min. Marco Aurélio, HC nº 73.662/MG. Diário de Justiça, 20 set. 1996.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
88 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
291
STF, Plenário, Rel. Min. Teori Zavascki, HC nº 126.292, Diário de Justiça eletrônico, 31, mar. 2016.
292
Além de não ter sido unânime e ter sido alvo de críticas, a decisão foi objeto de resistência dentro do próprio
Supremo. O Ministro Marco Aurélio, em decisões monocráticas, chegou a relativizar o precedente estabelecido
pelo Supremo em regime de repercussão geral, decidindo de forma oposta ao determinado pelo plenário (v. HC
nºs 138.086, 138.088 e 138.092).
293
Segundo o Ministro, o princípio da presunção de inocência não teria seu núcleo afetado pela possibilidade de
execução anteriormente ao trânsito em julgado: “a presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal,
pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos
constitucionais colidentes. No caso específico da condenação em segundo grau de jurisdição, na medida em que
já houve demonstração segura da responsabilidade penal do réu e finalizou-se a apreciação de fatos e provas,
o princípio da presunção de inocência adquire menor peso ao ser ponderado com o interesse constitucional na
efetividade da lei penal, em prol dos objetivos e bens jurídicos tutelados pelo direito penal (CF/1988, arts. 5º,
caput, e LXXVIII e 144)”.
294
Segue o trecho que nos interessa: “Por fim, apontei três fundamentos pragmáticos que reforçam a opção pela
interpretação adotada, ao demonstrar que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em
2º grau de jurisdição pode contribuir para a melhoria do sistema de justiça criminal. Primeiro, a interpretação
permite tornar o sistema de justiça criminal mais funcional e equilibrado, na medida em que (i) coíbe a abusiva e
infindável interposição de recursos protelatórios, que impedia que condenações proferidas em grau de apelação
produzissem qualquer consequência, conferindo aos recursos aos tribunais superiores efeito suspensivo que
eles não têm por força de lei; bem como (ii) favorece a valorização e a autoridade das instâncias ordinárias, algo
que há muito se perdeu no Brasil, pelo fato de o juiz de primeiro grau e o Tribunal de Justiça terem passado
a funcionar como instâncias de passagem até a apreciação pelos Tribunais Superiores. Segundo, a execução
provisória da condenação penal após a decisão de 2º grau diminui a seletividade do sistema punitivo brasileiro,
tornando-o mais republicano e igualitário, bem como reduz os incentivos à criminalidade de colarinho branco,
decorrente do mínimo risco de cumprimento efetivo da pena. Antes da mudança jurisprudencial, em regra,
apenas as pessoas com mais recursos financeiros, mesmo que condenadas, não cumpriam a pena ou conseguiam
procrastinar a sua execução por mais de 20 anos. Como é intuitivo, essa não era a situação das pessoas que hoje
superlotam as prisões brasileiras (muitas vezes, sem qualquer condenação de primeiro ou segundo graus), que
não têm condições de manter advogado para interpor um recurso atrás do outro. Boa parte desses indivíduos,
aliás, já se encontra presa preventivamente por força do art. 312 do Código de Processo Penal. Terceiro, promove-
se a quebra do paradigma da impunidade do sistema criminal, ao evitar que a necessidade de aguardar o
trânsito em julgado do recurso extraordinário e do recurso especial impeça a aplicação da pena (pela prescrição)
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
89
Questões que envolvem uma interseção entre política e Direito Penal, a exemplo
do caso acima, têm sido arenas onde o pragmatismo ganha destaque. O julgamento
do RE nº 635.659295 (ainda em curso, em função de pedido de vista), cujo objeto é uma
condenação penal em função do consumo de uma quantidade reduzida de maconha,
contou, em um de seus votos já apresentados, com explanação acerca do pragmatismo
jurídico, em que se discorreu, inclusive, sobre os cânones do pragmatismo filosófico.
Aqui, mais uma vez, o voto do Luís Roberto Barroso inseriu o pragmatismo
jurídico como um dos elementos do espectro da atividade de interpretação judicial, ao
lado da proteção aos direitos fundamentais.296 Em seu voto, Barroso afirma que:
Não estando em jogo direitos ou princípios fundamentais, frequentemente será
legítimo e desejável que o intérprete, dentro das possibilidades e limites das normas
constitucionais, construa como solução mais adequada a que produza melhores
consequências para a sociedade.
ou cause enorme distanciamento temporal entre a prática do delito e a punição. Assim, ao evitar que a punição
penal possa ser retardada por anos e mesmo décadas, fortalece-se a tutela dos bens jurídicos resguardados pelo
direito penal, bem como restaura-se a própria confiança da sociedade na Justiça criminal”.
295
STF, RE nº 635.659, Rel. Min. Gilmar Mendes.
296
A íntegra escrita do voto ainda não se encontra disponível em função do pedido de vista. De toda forma, o voto
oral já foi apresentado em sessão televisionada.
297
Cf. ARGUELHES. Argumentos consequencialistas e Estado de direito: subsídios para uma compatibilização, p. 7.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
90 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
298
Veja-se, por exemplo, Fábio Martins Andrade (O argumento pragmático ou consequencialista e a modulação
temporal dos efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal em matéria tributária. Tese.
299
Não apenas no controle concentrado. A jurisprudência do STF aceita o uso dessas técnicas também no controle
incidental. Ver, por exemplo, RE nº 197.917/SP, Rel. Maurício Corrêa, DJ, 07 maio 2004.
300
E poderíamos encontrar em tantas outras decisões do STF, talvez não tão momentosas como as mencionadas no
texto principal. Assim, na ADI nº 1.102, em que se discutia a constitucionalidade das expressões “empresários”
e “autônomos”, da Lei Federal nº 8.212/91, para fins de determinação do custeio da previdência pública,
argumentos como o estímulo ou desestímulo a que o legislador atue em determinado sentido (no voto de Marco
Aurélio) ou o impacto da declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc nas contas públicas (no voto
do relator Maurício Corrêa), de nítida índole pragmatista, podem ser encontrados. Até a gripe suína já contou
como dado da realidade para orientar a modulação dos efeitos de declaração de inconstitucionalidade. Embora
reconhecendo a inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 300, do Espírito Santo, que permitia a contratação
temporária de profissionais da área de saúde, mas sem especificar o motivo da excepcionalidade, o STF,
considerando a epidemia de gripe suína e o risco de a população do Estado ficar sem agentes de saúde durante
aquele período crítico, concedeu prazo de sessenta dias até a cessação dos efeitos da lei, tempo suficiente para
que o ente federativo elaborasse e aprovasse novo projeto de lei que atendesse aos requisitos da Constituição
(Disponível em: <http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2009/08/12/materia.2009-08-12.0747575958/view>.
Acesso em: 15 ago. 2009).
301
Adotando a ideia de Humberto Ávila, segundo a qual os argumentos pragmáticos são não institucionais e devem
aparecer em papel secundário na argumentação jurídica, Ana Paula Ávila escreveu: “Aqui merecem referência
o pragmatismo e o consequencialismo que podem ser detectados na origem de uma série de argumentos que
acabam sendo considerados na interpretação jurídica. Tome-se, por exemplo, a decisão que deixa de atribuir
efeitos ex tunc à declaração de inconstitucionalidade apenas para evitar uma enxurrada de ações individuais, ou a
decisão que atribui o efeito ex tunc apenas porque, do contrário, equivaleria a incentivar o legislador à produção
de normas em desacordo com a Constituição. Ora, não é isso que deve servir de parâmetro para a interpretação
do art. 27 da Lei nº 9.868/00. O reconhecimento da permanência dos efeitos deve decorrer justamente das normas
que, acaso existentes, sustentem essa permanência, e não de um truque de mágica que não se justifique à luz
do ordenamento jurídico” (ÁVILA. A modulação de efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade:
ponderação e regras de argumentação para a interpretação conforme à Constituição do artigo 27 da Lei nº
9.968/99, p. 119-120).
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
91
posição com a qual na verdade não concordamos —, mas como um administrador con-
sequencialista de decisões alheias. É o Direito positivo abraçando o pragmatismo jurídico.
Claro que vai ser sempre possível discordar da constitucionalidade do instituto,302 o
que não impedirá que a suspensão de segurança continue existindo, e mais: como
instituto pragmático.
Há tentativa — capitaneada pelos professores Floriano de Azevedo Marques Neto
e Carlos Ari Sundfeld — de, por meio de lei, obrigar a que decisões judiciais e adminis-
trativas considerem suas possíveis consequências. O Projeto de Lei do Senado nº 349/15
tem como objeto a inclusão de diversas normas na Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro: desde aspectos atinentes ao dever de motivação (ele seria cumprido
indicando-se a necessidade e a adequação da medida, inclusive em face de possíveis
alternativas [art. 20, parágrafo único]303), passando por exigência de constituição de
regimes de transição quando da constituição de novos estados de direito (art. 22304),
e chegando, até, à criação de ação declaratória de validade de ato, contrato, ajuste ou
norma administrativa (art. 24305).
Os contornos pragmáticos do PL são evidentes. O projeto se propõe a evitar
decisões inteiramente fundacionais e abstratas, que por vezes aparecem no ambiente
jurídico brasileiro.306
Em especial, é de se destacar o artigo 20 — o primeiro do projeto. Diz ele, em
seu caput, que “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base
em valores jurídicos abstratos sem medir as consequências práticas da decisão”.
De fato: as intenções do PL são irrepreensíveis. Se concretizado de modo pleno,
trará segurança jurídica. O sucesso, contudo, não é garantido: é plausível conceber,
pela prática judicial e administrativa brasileira atual, que a exigência legal desemboque
302
Assim, por todos, a opinião de Cássio Scarpinella Bueno: “Se o que o mandado de segurança tem de mais caro é
sua predisposição constitucional de surtir efeitos imediatos e favoráveis ao impetrante, seja liminarmente ou a
final, a mera possibilidade da ‘suspensão de segurança’ coloca em dúvida a constitucionalidade do instituto. Em
verdade, tudo aquilo que for criado pelo legislador infraconstitucional para obstaculizar, dificultar ou empecer
a plenitude da eficácia do mandado de segurança agride sua previsão constitucional. Nesse sentido, não há
como admitir a constitucionalidade do instituto, independente de qual seja sua natureza jurídica. É instituto
que busca minimizar efeitos do mandado de segurança? Positiva a resposta, trata-se de figura inconstitucional”
(BUENO. Mandado de segurança, p. 179). Sem pretender ingressar em qualquer polêmica processual, a verdade é
que a opinião do Professor parece-nos partir da constitucionalização de uma maxi-abrangência do conteúdo da
referência constitucional ao mandado de segurança, até o ponto em que “tudo” que “obstaculizar” tal (enorme)
abrangência será inconstitucional. É exemplo de raciocínio equivocado que, aplicado ao Direito Constitucional
Econômico, ainda discutiremos extensamente.
303
Art. 20, par. único. A motivação demonstrará a necessidade e adequação da medida, inclusive em face das
possíveis alternativas.
304
Art. 22. A decisão administrativa, controladora ou judicial que, com base em norma indeterminada, impuser
dever ou condicionamento novo de direito, ou fixar orientação ou interpretação nova, deverá prever um
regime de transição, quando indispensável para que a submissão às exigências se opere de modo proporcional,
equânime e eficiente, e sem prejuízo aos interesses gerais.
305
Art. 24. Quando necessário por razões de segurança jurídica de interesse geral, poderá ser proposta ação
declaratória de validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, com efeitos erga omnes, no
regime da ação civil pública.
306
Para uma defesa do PL, v. SUNDFELD e JURKSAITIS. Uma Lei para dar mais segurança jurídica ao
Direito Público e ao Controle. In: LEAL e MENDONÇA (orgs.). Transformações no Direito Administrativo:
consequencialismo e estratégias regulatórias. Menos especificamente em relação ao PL, mas levantando as
mesmas críticas que o fundamentaram, v. SUNDFELD. Direito Administrativo para os Céticos, passim.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
92 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
307
Essa parece ser a previsão de Fernando Leal, que aponta problemas e sugere possíveis soluções (notadamente
procedimentais) para o PL. Cf. LEAL. V. Inclinações Pragmáticas no Direito Administrativo: nova agenda,
novos problemas. In: LEAL e MENDONÇA (orgs.). Transformações no Direito Administrativo: consequencialismo
e estratégias regulatórias.
308
Escrevemos, em outra oportunidade, acerca desses potenciais cenários decorrentes de eventual aprovação do
Projeto. V. MENDONÇA. Dois Futuros (e meio) para o Projeto do Carlos Ari. In: LEAL e MENDONÇA (orgs.).
Transformações do Direito Administrativo: Consequencialismo e Estratégias.
309
Observe-se que o art. 1.035 do CPC, o qual exige a repercussão geral como requisito para a admissão de recursos
extraordinários, é exemplo de raciocínio consequencialista solicitado pela legislação, mas surgiu, em grande
parte, a partir da prática hiper-restritiva do Supremo em relação à admissão de tais recursos.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
93
310
Pesquisa AMB 2005 – Magistrados brasileiros: caracterização e opiniões. Em 2006, a mesma pesquisa, na
pergunta XXIII, constatou que os magistrados não consideram os efeitos orçamentários de decisões relacionadas
com a área da saúde, o que também denotaria certa rejeição ao pragmatismo aplicado à seara das demandas
judiciais de remédios (no qual aparece como argumento da reserva do possível fática).
311
Colocados diante de três opções, “parâmetros legais”, “consequências econômicas” e “consequências sociais”,
não é de se espantar que os resultados tenham sido esses. Mas quais seriam as respostas preponderantes se
a pergunta dissesse respeito, por exemplo, à “consideração do contexto e das consequências prováveis” no
momento da decisão?
312
Estamos, afinal, falando de uma prática social para a qual são oferecidas sugestões como a seguinte: “Fica bem ao
magistrado aludir às teorias recentes, mostrar conhecê-las, porém só impor em aresto a sua observância quando
deixarem de ser consideradas ultra-adiantadas, semi-revolucionárias; obtiverem o aplauso dos moderados, não
misoneístas, porém prudentes, doutos e sensatos” (MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do direito. 16. ed., p.
160, grifos no original).
313
Não concordamos com a posição de Diego Arguelhes e Fernando Leal, segundo a qual, baseados na doutrina
americana, a principal utilidade do pragmatismo jurídico é na condição de metateoria. Ao menos no Brasil,
ainda há espaço para a implementação de modelos de teorias pragmatistas imediatamente normativos, desde
que “sensíveis” à nossa tradição de operação com o Direito. Cf. ARGUELHES, Diego Werneck; LEAL, Fernando.
Pragmatismo como (meta) teoria normativa da decisão judicial: caracterização, estratégias e implicações, p.
1-49, passim.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
94 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
314
Assim, por exemplo, na Lei dos Juizados Especiais (Lei Federal nº 9.099/95), o art. 6º determina que o juiz deverá
adotar, em cada caso, a decisão que lhe parecer mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às
exigências do bem comum. O julgamento por equidade também é expressamente autorizado ao conciliador
(art. 25). De igual modo, a lei do processo administrativo federal (Lei Federal nº 9.748/99) determina que, nos
processos administrativos, observe-se o critério da “atuação segundo a lei e o Direito”.
315
Em duas situações os argumentos consequencialistas assumem importância na prática jurídica: quando a lei
impõe um juízo de equidade, ou quando duas ou mais decisões são possíveis. V. CALVO; VENIER. Racionalidad
de las justificaciones consecuencialistas en las decisiones judiciales. Isonomía, p. 156. Por outro lado, quando
o texto é claro, deve-se adotar o formalismo, ou, ao menos, não se deve adotar o pragmatismo como teoria
normativa da decisão.
316
MENDONÇA; FLEMMING. O argumento consequencialista e sua relação com o princípio da eficiência.
317
Art. 1º As políticas nacionais para o aproveitamento racional das fontes de energia visarão aos seguintes
objetivos: I - preservar o interesse nacional; II - promover o desenvolvimento, ampliar o mercado de trabalho e
valorizar os recursos energéticos; III - proteger os interesses do consumidor quanto a preço, qualidade e oferta
dos produtos; IV - proteger o meio ambiente e promover a conservação de energia; V - garantir o fornecimento
de derivados de petróleo em todo o território nacional, nos termos do §2º do art. 177 da Constituição Federal;
VI - incrementar, em bases econômicas, a utilização do gás natural; VII - identificar as soluções mais adequadas
para o suprimento de energia elétrica nas diversas regiões do País; VIII - utilizar fontes alternativas de energia,
mediante o aproveitamento econômico dos insumos disponíveis e das tecnologias aplicáveis; IX - promover
a livre concorrência; X - atrair investimentos na produção de energia; XI - ampliar a competitividade do País
no mercado internacional; XII - incrementar, em bases econômicas, sociais e ambientais, a participação dos
biocombustíveis na matriz energética nacional.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
95
Além disso, como terceiro e último passo desse modelo geral de operação,
o resultado indicado pelo “princípio” do pragmatismo deve ser universalizável. Com isso,
pretende-se evitar o casuísmo, a decisão ad hoc, a violação à impessoalidade. Ainda
raciocinando com o Direito do Petróleo, se, por hipótese, a fase de exploração do con-
trato de concessão foi estendida para uma concessionária, em virtude do argumento
prático quanto à inexistência de sondas de exploração no mercado, tal decisão, tomada
naquele caso, deve ser capaz de ser estendida a casos semelhantes. Do contrário, não
teríamos pragmatismo jurídico, mas argumentação prática “pura e dura”, juridicamente
incontrolável e constitucionalmente agressora, numa espécie de reversão do adágio
clássico: cumpram-se os desígnios do mundo, pereça a justiça.
Então, até aqui, temos o modo geral de operação do nosso “princípio”. Primeiro,
fundamenta-se a possibilidade de seu exercício numa atribuição normativa de poder à
autoridade julgadora. Depois, faz-se com que seu uso respeite todas as regras da teoria
da argumentação. Por fim, vê-se se o resultado priorizado pode ser estendido a casos
semelhantes.
Agora, as hipóteses especiais de incidência do “princípio” do pragmatismo ju-
rídico. São três: a proporcionalidade em sentido estrito, as hipóteses de autonegação da norma
e a “doutrina do absurdo”.
Quando da incidência da máxima da proporcionalidade — não vamos entrar em
discussões sobre se se trata de princípio, regra ou outra coisa318 —, o senso comum
brasileiro, tanto doutrinário quanto jurisprudencial, a partir de decisões do Tribunal
Constitucional Federal alemão, estabeleceu que existem três “testes”319 em sua inci-
dência: o da adequação, o da necessidade/exigibilidade e o da proporcionalidade em
sentido estrito.
Ora, a proporcionalidade em sentido estrito, que significa uma análise de custo-
benefício em relação à medida, incorpora raciocínio consequencialista: há de se adiantar
as consequências para que seja possível avaliar, hoje, a constitucionalidade do ato ou
norma. Há quem diga que os dois primeiros testes são, na verdade, derivações do
terceiro. “Os dois primeiros são, apenas, claras e simples aplicações do terceiro. Testes
de adequação e de ‘necessidade’ indicam casos para os quais, com efeito, nenhuma razão
legítima pode ser usada para justificar o que foi feito”.320 Se assim for, o princípio da
proporcionalidade como um todo é, essencialmente, um teste pragmatista, que serve
para analisar as consequências das medidas, legais ou administrativas, tomadas pelo
Estado.
Há outra perspectiva para se ver a relação entre a proporcionalidade e o prag-
matismo: é a dinâmica de funcionamento da máxima. A partir da ascensão da propor-
cionalidade, o controle de constitucionalidade e, de modo geral, as próprias atividades
judiciária e administrativa passaram a operar muito mais numa dinâmica de análise de
trade-offs, pesagem de custos e benefícios, do que numa busca por teorias interpretativas
ou filosofias morais. Isso significa que a proporcionalidade mudou o próprio estilo do
mister judicial e administrativo. Juízes deixaram de ser, em boa parte, teóricos, para se
318
Para isso, ver, por todos, na doutrina brasileira, ÁVILA. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos
princípios jurídicos. 4. ed. Na doutrina estrangeira, PULIDO. El principio de proporcionalidad y los derechos
fundamentales.
319
Há, também aqui, debate sobre a natureza jurídica desses testes. Seriam subprincípios? Regras? Máximas
parciais? Cf. ALEXY. Teoría de los derechos fundamentales, especialmente nota de rodapé n. 84, p. 112.
320
BEATTY. The Ultimate Rule of Law, p. 163.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
96 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
focarem em resultados e consequências, tanto das políticas públicas quanto das próprias
decisões (entendidas, elas também, como políticas públicas). “A proporcionalidade
transforma o controle judicial de constitucionalidade, de exercício interpretativo, no
qual se dá significados às palavras do Texto Constitucional, numa pesquisa factual
bastante focada nos bons e maus efeitos de atos específicos do Estado”.321
Este é o primeiro caso especial do “princípio” do pragmatismo jurídico: sua in-
cidência como proporcionalidade estrita (ou, até, como máxima da proporcionalidade
tout court).
Segundo caso especial de nosso “princípio” é o da autonegação da norma. É quan-
do a aplicação da norma, naquele caso, significa negar a finalidade que lhe subjaz. A
norma se autoanula porque, ao ser aplicada, despromove sua finalidade. “Quando a
forma da norma entra em conflito com seu próprio conteúdo fundamental, diante das
circunstâncias do caso, permite-se que se decida com base em um argumento conse-
quencialista”. Assim, “as consequências devem ser consideradas se, no contexto do
proferimento da decisão, a norma a ser aplicada conduz a um resultado oposto àquele
que busca promover”.322
A ideia da autonegação da norma é pragmática, já que, pensando no pragmatismo
filosófico, se a verdade de uma proposição decorre da utilidade de suas consequên-
cias, então uma norma cujos resultados neguem seu propósito não ultrapassa o teste
pragmatista.323 Como exemplo, citem-se as normas concessivas de gratuidades para
ingresso em equipamentos culturais (o custo da gratuidade seria repassado ao preço
cheio do ingresso, encarecendo-o e, afinal, despromovendo a cultura — ver, sobre isso,
comentário acima),324 ou decisões judiciais que se justificam com base numa finalidade
que acabam, na prática, negando. Seria este, por exemplo, o caso da decisão do STF que
obrigou a verticalização nas eleições brasileiras. A promoção da coerência partidária e
da democracia eleitoral, tomadas como razões para decidir, teriam sido prejudicadas
pela própria decisão, na medida em que partidos menores e ideológicos haveriam de
se coligar com maiores para ter acesso ao fundo eleitoral e ao tempo de propaganda
gratuita, perdendo a chance de, em eleições proporcionais, elegerem candidatos.325
Terceiro caso especial de incidência do “princípio” do pragmatismo jurídico,
talvez o mais comum na doutrina e na jurisprudência, é o da “doutrina do absurdo”
(absurdity doctrine), denominação americana que remete à parêmia segundo a qual “a
interpretação da lei não pode levar a absurdos”.326 Normas jurídicas não podem ser
interpretadas de modo que levem a resultados absurdos, mesmo quando o texto su-
321
BEATTY. The Ultimate Rule of Law, p. 182-183.
322
RAPOZO. El pragmatismo y el consecuencialismo jurídico: estudo de las teorías en el âmbito conceptual, normativo
e interpretativo del derecho, f. 220.
323
“Para o pragmatismo, afinal, uma vez que todas as proposições contêm intrínseca e necessariamente
uma referência ao futuro, sua verdade ou falsidade depende do sucesso ou da derrota de sua finalidade”
(POGREBINSCHI. Pragmatismo: teoria social e política, p. 47).
324
A Lei Federal nº 12.993, de 26 de dezembro de 2013, estabeleceu que a meia-entrada está limitada a quarenta
por cento do total dos ingressos. Resta saber se os valores da meia-entrada e da entrada inteira, após a lei, serão
reajustados até que, por exemplo, o valor da nova meia-entrada corresponda ao valor da antiga entrada inteira,
e a entrada inteira seja duplicada. Nesse cenário, haveria uma despromoção da cultura, pois o cenário antes da
meia-entrada possuía valores totais menores do que aqueles posteriores a ela.
325
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Verticalização, cláusula de barreira e pluralismo político: uma crítica
consequencialista à decisão do STF na ADIN 3685. Interesse Público – IP.
326
GOLD. Absurdity Doctrine, Scrivener’s error and Statutory Interpretation. Unniversity of Cincinnati Law Review.
Nas nossas doutrina e prática jurisprudencial, o uso de tal argumento é difundido. Carlos Maximiliano já
dizia: “O Direito deve ser interpretado inteligentemente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo,
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
97
332
ÁVILA. Argumentação jurídica e imunidade do livro eletrônico. Revista de Direito Tributário. É particularmente
instrutivo o trecho a seguir: “Os argumentos transcendentes ao ordenamento jurídico passam a ser relevantes
na interpretação no momento em que a linguagem e o sistema já não proporcionam uma justificação para
a interpretação. Se o intérprete consegue construir um significado de acordo com argumentos linguísticos e
sistemáticos, não há razão suficiente para o recurso a outros argumentos. Não é noutro sentido que a doutrina
constrói as etapas na argumentação jurídica: só se recorre à próxima etapa se a anterior for insuficiente para a
justificação da interpretação”.
333
ARGUELHES. Argumentos consequencialistas e Estado de direito: subsídios para uma compatibilização, p. 9 et
seq.
334
“Assim, não há qualquer incompatibilidade entre a ideia de obediência como promoção e o caráter ‘deontológico’
da aplicação de normas jurídicas, que a tradição do pensamento jurídico vê como uma exigência do ideal
de Estado de Direito. Ao contrário, muitas vezes o órgão judicante dependerá de uma análise das possíveis
consequências de cada curso decisório para identificar o que a aplicação do Direito exige no caso [...]. Além
disso, em casos de interdependência entre os estados de coisas deonticamente caracterizados por normas distintas,
os argumentos consequencialistas podem funcionar como argumentos sistemáticos (“contextuais”, nos termos
de Ávila), pois tratam da combinação teleológica entre outros princípios e a norma objeto de interpretação”
(ARGUELHES. Argumentos consequencialistas e Estado de direito: subsídios para uma compatibilização, p.
15, 17, grifos no original).
335
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 103. Nossa proposta de “princípio” do pragmatismo
jurídico é compatível com a maioria das versões de positivismo jurídico e, de fato, em muitas delas, pode vir
associado às clássicas “interpretação sistemática” e “interpretação teleológica”.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
99
336
Assim, por exemplo, o STF usou o princípio da juridicidade, de modo expresso, como fundamento para a
edição da Súmula Vinculante nº 13 (vedação ao nepotismo).
337
“Uma abordagem orientada para resultados em relação à interpretação constitucional é consistente com uma
ideia de fidelidade à Constituição se, e apenas se, a Constituição é a fonte dos resultados que o intérprete
pretende fazer valer” (BARBER; FLEMING. Constitutional Interpretation: the Basic Questions, p. 186).
338
Por argumentação contra legem, entendemos, citando Thomas da Rosa Bustamante, “a forma de argumentar
contrária aos significados mínimos que possui um ou mais texto jurídico cuja validade se mantém fora de
dúvida”. V. BUSTAMENTE. Argumentação contra legem: a teoria do discurso e a justificação jurídica nos casos
mais difíceis, p. 182).
339
Dentro de nossa proposta incluem-se tanto as consequências extrajurídicas quanto as consequências
propriamente jurídicas (consolidação ou superação de precedentes, criação de divergência de linha interpretativa
etc.). É claro que há um processo complexo de inter-relação entre elas: v. g., a reação a uma decisão impulsiona
novas decisões contra ou naquele sentido.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
100 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
certa. É preciso cuidado com tal consequência, porque se trata da alegação preferencial
das sociedades empresárias afetadas pela atuação do Estado. Se todas fossem tratadas
como verdadeiras, a atuação do Poder Público na seara econômica seria quase sempre
antipragmática e, portanto, tendencialmente antijurídica. E o cuidado é ainda maior
porque a economia é dinâmica e, muitas vezes, sabe se reequacionar a partir de novo
equilíbrio, que incorpore o novo dado (a lei ou o programa público). Mal comparando,
estar-se-ia profetizando sobre o futuro de um mundo que nunca haveria de existir.
Alguns exemplos tornarão mais claro o que estamos dizendo.
Exemplo simples: a ocorrência de descoberta num bloco petrolífero é plausível;
não é provável nem certa. Se já houve pesquisa suficiente, a descoberta pode se tornar
provável e, em alguns casos, certa.
Exemplo nem tão simples: quando o Ministro Marco Aurélio, em seu voto no
caso do desconto para idosos nas farmácias do Estado do Rio (ADI nº 2.435, ver supra),
afirma que, ou as empresas arcarão com os prejuízos, ou os irão repassar aos preços —
o que causará prejuízo a todos —, é necessário “desempacotar” seu raciocínio em
quatro consequências, a saber: a) as empresas arcarão com o prejuízo, b) este prejuízo
é tal que significará violação à livre iniciativa, c) as empresas repassarão o desconto
dos idosos aos preços de todos os remédios, d) este aumento no preço dos remédios
causará prejuízo a todos.
Dessas consequências, a primeira aparenta ser, de imediato, plausível, embora
improvável. Contudo, uma análise crítica dos dados que acompanharam a causa pode
alterar isso. Segundo informações da Assembleia Legislativa do Estado do Rio, o público-
alvo da lei corresponderia a, apenas, nove por cento da população do Estado.340 Será
que, definitivamente, as empresas não vão arcar com o prejuízo?
A segunda consequência — “o prejuízo violará a livre iniciativa” — é, também
de imediato, provável, considerando-se verdadeira a consequência anterior. Contudo,
será mesmo? Se o público-alvo for tão limitado assim,341 as farmácias podem resolver
absorver o prejuízo e isso nada significar em termos de violação à livre iniciativa.
A terceira consequência, a repercussão econômica do desconto em todos os me-
dicamentos, é, sem dúvida, a mais provável. Ou não? Todas as farmácias aumentariam
seus preços? Não há concorrência entre elas? Algumas aumentariam? Poucas? Quase
nenhuma? Podemos afirmá-lo com base em quê?
A última consequência — o aumento nos preços causará prejuízo aos compra-
dores em geral, indo contra um dos propósitos da lei (tornar o acesso aos fármacos
mais fácil, e não mais difícil) —, numa visão superficial, soa provável, porém, indo
mais a fundo, talvez não seja bem assim. Quem garante que, mesmo havendo repasse
nos preços, considerando a abrangência da lei (apenas nove por cento dos idosos) e
a própria diluição por todos os compradores e por todos os itens, o aumento ainda
assim será economicamente significativo? O aumento pode resultar em alguns poucos
340
Cf. trecho do voto da Ministra Relatora Ellen Gracie: “Quanto aos empresários, caso indeferida a liminar mas
no mérito julgada procedente a ação, terão condições de se ressarcir, pelas regras de mercado, dos prejuízos
que porventura julgarem haver sofrido, levando-se em conta, também, a informação prestada pela Assembleia
Legislativa (fl. 81-100) de que o público alvo da lei questionada corresponde a apenas 9% da população do
Estado do Rio de Janeiro” (ADI nº 2.435, fl. 222-223).
341
Embora também aqui exista um fator complicador. Pode ser que os idosos, por poucos que sejam no Estado
do Rio, correspondam majoritariamente ao público consumidor de remédios, afirmação plausível, para dizer
o mínimo, o que pode significar que o desconto imposto pela lei abranja, digamos, sessenta por cento das
vendas. Não importaria o percentual de idosos no Estado do Rio, mas o percentual de idosos que, no Estado,
consumissem remédios, e o quanto isso significaria em relação às vendas totais das farmácias.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
101
centavos, o que está longe de comprometer qualquer finalidade genérica de acesso aos
medicamentos.
Enfim: o juízo de probabilidade das consequências é o ponto-chave do pragma-
tismo jurídico. É o diferencial entre a argumentação controlada e a retórica ruim.
(v) Ele considera consequências imediatas e futuras, mas não as remotamente futuras.
Há que se encontrar limite lógico-temporal razoável para as consequências a serem
apreciadas. Em tese, as consequências de uma única ação são infinitas. Como escreve
Chaïm Perelman, “nunca seria possível reunir o conjunto das consequências de que
depende a aplicação do argumento pragmático se cada consequência devesse, por sua
vez, ser apreciada consoante suas próprias conseqüências, pois a sequência destas seria
infinita”.342
O “princípio” do pragmatismo jurídico incide a partir de projeção de conse-
quências imediatas e de curto e médio prazo. Se estivermos falando, como costuma
acontecer, de consequências econômicas, projeções baseadas em expectativas superiores
a, digamos, dois anos não se prestam à análise.343
Tal standard vale também para limitar o número de eventos-causa das consequên
cias: a incidência se dá em relação a um deles, ou, quando muito, a um grupo deles,
mas desde que vinculados por uma mesma situação fática de base.
(vi) Ele considera apenas consequências fáticas com razoável base empírica. Esse é o
standard que trata a questão da prova das alegações de fato em que se baseiam as con-
sequências com as quais se vai construir a incidência do “princípio”. Não deixa de ser,
sob outra perspectiva, a questão da probabilidade da ocorrência das consequências.
Se nosso “princípio” do pragmatismo jurídico se basear em qualquer alegação,
será, apenas, mais um artifício da má retórica. Tudo que se alega deve ser provado, se
não de modo cabal (as consequências prováveis não podem ser assim comprovadas),
ao menos de forma indiciária. Ainda mais, tal standard requer que se analise critica-
mente os dados empíricos trazidos como prova. A alegação deve ser apreciada em seu
conteúdo — se é consistente ou não —, e, ainda, com base na confiabilidade técnica da
fonte originadora. Uma situação é a empresa trazer relatório que ela própria elaborou;
outra é uma entidade internacional produzir nota técnica que não necessariamente foi
pensada para servir de prova num processo.
(vii) Ele desconsidera consequências fundacionais. Esse standard é tributário do
pragmatismo filosófico, debilitando a tese de que os pragmatismos têm pouca coisa em
comum. Há nele, ainda, certa proximidade com um dos conteúdos da razão pública,
tema do próximo capítulo.
As consequências a serem construídas e, então, ponderadas, devem ser conse-
quências que não se baseiem em crenças fundacionais, isto é, advindas de profissões
de fé insubmissas a críticas. Para o pragmatismo, tudo pode ser analisado e criticado;
nada é sagrado.
No Direito Constitucional Econômico, há duas espécies de fundacionalismos co-
muns. A hiperconstitucionalização da livre iniciativa e sua irmã gêmea, a hiperconstitu-
cionalização de objetivos constitucionais de índole social. Essas “verdades” fundadoras
costumam perpassar uma série de propostas interpretativas na área, mas devem, sob
bases pragmatistas, ser rechaçadas. Elas reificam interpretações maximalistas (em ter-
mos de abrangência e de conteúdo) do princípio da livre iniciativa ou dos dispositivos
342
PERELMAN. Retóricas, p. 17.
343
Esse dado é, como se deve imaginar, especulativo. O elemento temporal varia caso a caso.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
102 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Considera apenas
consequências:
(iii) materialmente
(i) incide ao
(ii) incide reconduzíveis
final: serve
dentro da à Constituição (vii) descon- (viii) prio-
como teste
extensão dos Federal; (iv) certas sidera con- riza conse-
Standards de descarte
significados e prováveis; (v) sequências quências
ou reforço de
possíveis do imediatas e futuras; fundacionais contextuais
possibilidades
texto e (vi) fáticas,
argumentativas
com razoável
base empírica de
verificação
344
E atualmente há, inclusive, uma busca cada dia mais crescente pela aproximação com a Ciência Política e com
a Economia Comportamental (sobre este ponto, v. capítulo 4 da segunda parte deste livro). Sobre os aspectos
gerais dessas aproximações, v. MENDONÇA. A verdadeira mudança de paradigmas do Direito Administrativo:
do estilo tradicional ao novo estilo. Revista de Direito Administrativo.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
106 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
345
V. Lei nº 12.529/2011.
346
Sobre o tema da dignidade da pessoa humana, v,, por todos, SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana:
conteúdo, trajetórias e metodologia. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
107
347
“A democracia deliberativa é um ideal complexo com uma grande variedade de formulações, mas, seja qual
forma adote, ela irá se referir ao ideal da razão pública, à exigência de que decisões públicas legítimas sejam
aquelas ‘que todos possam aceitar’ ou, ao menos, ‘não possam razoavelmente rejeitar’” (BOHMAN. The Coming
of age of Deliberative Democracy. The Journal of Political Philosophy, p. 401-402).
348
Ou seja: o conceito de democracia deliberativa inclui, necessariamente, o apelo ao uso de razões públicas,
mas estas podem ser utilizadas em democracias não deliberativas, até como saudáveis espaços de deliberação
pública nela incrustados.
349
Há diversas tensões internas ao próprio grupo de autores defensores da democracia deliberativa. Numa
lista não exaustiva, temos alguns pontos de conflito nos seguintes assuntos: (i) tensões entre uma visão de
democracia deliberativa mais como ideal procedimental — quer dizer, que não se pronuncie a respeito de
questões de conteúdo, mas que, respeitadas certas condições, permita democraticamente que se chegue
a qualquer resultado — e a necessidade da existência de parâmetros independentes de racionalidade e de
julgamento, circunstância que remete a visões substantivas de democracia deliberativa; (ii) tensões entre
propostas de democracia deliberativa mais próximas à liberdade ou à equidade; (iii) tensões entre a necessidade
de se observar o pluralismo e exigências de tratamento imparcial dos cidadãos; (iv) tensões entre o ideal do
pluralismo e suas reais condições de existência nas sociedades contemporâneas. Cf. BOHMAN; REHG (Ed.).
Deliberative Democracy: Essays on Reason and Politics, p. xxviii.
350
O que não é de se estranhar, dada a proficuidade do debate a respeito do tema. Segundo Amy Gutman e Dennis
Thompson, nenhum assunto nos últimos vinte anos foi mais discutido, na teoria política, do que a democracia
deliberativa. V. GUTMAN; THOMPSON, Dennis. Why Deliberative Democracy?, p. vii.
351
Para as diversas matizes das teorias da democracia deliberativa, ver, por exemplo, BOHMAN. The Coming
of age of Deliberative Democracy. The Journal of Political Philosophy; FREEMAN. Deliberative Democracy: a
Sympathetic Comment. Philosophy and Public Affairs; CHAMBERS. Deliberative Democracy Theory. Annual
Review of Political Science.
352
COHEN. Philosophy, Politics, Democracy: Selected Essays, p. 16-37.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
108 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
artigo de Cass Sunstein (“Interest Groups in American Public Law”),353 o qual, por sua
vez, citava Joseph Bessette, cujo texto Cohen não havia lido.354
Etimologias à parte, fato é que o conceito permanece influente. Fala-se, mesmo,
numa “virada deliberativa” na teoria da democracia a partir dos anos noventa.355 Uma
democracia deliberativa seria, grosso modo, uma associação cujos negócios são gover-
nados por intermédio da deliberação pública356 de seus membros.
Cohen, no artigo, elabora duas propostas de conteúdo para a democracia delibe-
rativa. Num primeiro momento, apresenta sua concepção formal de democracia deliberativa,
e, a partir dela, propõe o que chama de processo deliberativo ideal, sugestão de modelo
para a constituição de instituições deliberativas. Como veremos ao longo do capítulo,
algumas das características da “concepção formal” de democracia deliberativa e do
“processo deliberativo ideal” aparecerão na definição de razão pública, o que mostra
o quão próximas algumas concepções teóricas estão umas das outras.
A concepção formal de democracia deliberativa possui cinco características: (i) é as-
sociação independente cujos membros esperam que exista por tempo indefinido; (ii)
seus membros compartilham o compromisso de coordenar suas atividades dentro de
instituições que tornem a deliberação possível e de acordo com normas às quais cheguem
como resultado da própria deliberação; (iii) é associação pluralista de membros com
preferências, opiniões e ideais diversos a respeito de como devem conduzir suas vidas
e que, ao compartilharem o compromisso de resolver os problemas de escolha coletiva
por intermédio da deliberação, não acreditam que um grupo específico de preferências
seja absoluta e necessariamente obrigatório; (iv) seus membros veem os procedimentos
deliberativos como fonte de legitimidade e, por isso, preferem instituições nas quais as
conexões entre a deliberação e resultados são evidentes, em detrimento de instituições
nas quais tais conexões são menos claras; (v) todos os membros reconhecem-se possui-
dores de capacidades deliberativas, isto é, aptidão para ingressar numa troca pública
de razões e para agir com base em seus resultados.357
Em outras palavras, uma democracia deliberativa é uma associação permanente
de membros que se reconhecem como mutuamente capazes de argumentar e decidir
os rumos coletivos a partir de uma troca de razões, e que escolhem agir por meio de
deliberações públicas, tomadas dentro de instituições que expressem claramente seu
caráter deliberativo, reservando espaço às preferências pessoais.
Joshua Coehn ainda apresenta o processo deliberativo ideal, modelo a ser seguido
por instituições que se queiram deliberativas. Tal processo possui quatro características.
353
SUNSTEIN. Interest groups in American Public Law. Stanford Law Review.
354
Tratava-se do texto “Deliberative Democracy: the Majority Principle in Republican Government”, publicado na
obra organizada de Robert A. Goldwin e William A Schambra (How democratic is the Constitution?). O autor do
termo é, portanto, Joseph Bessette, que, posteriormente, viria a trabalhar novamente com o conceito, de modo
mais elaborado, no livro The Mild Voice of Reason – Deliberative Democracy and American National Government
(Chicago: Chicago University Press, 1997).
355
DRYZEK. Deliberative Democracy and Beyond: Liberals, Critics, Contestations, p. 1-7. “The Deliberative Turn in
Democratic Theory”.
356
“Deliberação” é termo que se refere a processo discursivo específico: um que, de modo sério, imparcial e
ponderado, sopesa razões a favor e contra determinado curso de ação. Pode ser aplicado à análise interior
feita pelo sujeito antes de agir (“eu deliberei e resolvi agir da seguinte forma”). Em contraste, uma “discussão”
não precisa ser cuidadosa ou rigorosamente argumentada (tanto que não se diz “eu discuti o assunto comigo
mesmo”). “Deliberação” é uma espécie qualificada de discussão; “deliberação pública” é a deliberação que se
faz junto aos outros, e não apenas para si mesmo. V. FEARON. Deliberation as discussion. In: ELSTER (Ed.).
Deliberative Democracy, p. 63.
357
COHEN. Philosophy, Politics, Democracy: Selected Essays, p. 21-22.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
109
358
COHEN. Philosophy, Politics, Democracy: Selected Essays, p. 23-25.
359
Especificamente quanto ao ponto — diferenças entre votação posterior à deliberação pública e votação simples —,
James Fearon apresenta seis justificativas em favor da votação posterior à deliberação pública, cinco de índole
consequencialista, e uma sexta, de natureza deontológica. São elas: (i) ao deliberar, os participantes revelam
informações privadas de que eventualmente disponham e que podem ser importantes para o resultado da
votação; (ii) a discussão pode ser meio de se superar problemas decorrentes da racionalidade limitada dos
participantes (bounded rationality) — não é que os participantes não disponham de toda informação pertinente
ao caso; é que ele é muito complexo, e, ao deliberar publicamente, novas ideias, estratégias, saídas etc. podem
aparecer; (iii) a deliberação pode encorajar determinado comportamento desinteressado socialmente útil (o voto
é anônimo, e, ao fazê-lo, o votante pode agir simplesmente em favor de seu autointeresse; a deliberação pública
pode, em certo sentido, estimular os participantes a votarem no interesse coletivo); (iv) a deliberação pública
preliminar pode fazer com que se perceba o resultado da votação como mais legítimo, estimulando a coesão
social do grupo e tornando mais eficiente a concretização do resultado havido pelo voto (estudos psicológicos
mostram que se tende a aceitar mais o resultado de uma votação, qualquer que ele seja, desde que se tenha
podido, antes, deliberar a favor ou contra); (v) a deliberação preliminar pode incrementar certas qualidades
“morais” e intelectuais dos participantes do grupo (por exemplo, eloquência, capacidades retóricas, empatia,
gentileza, criatividade; e “autonomia” [enquanto cidadãos ativos que se autopercebem como influentes no
destino da comunidade na qual se inserem]); (vi) porque a deliberação pública é “a coisa certa a ser feita”,
a partir de bases morais e de autonomia individual, mesmo que não viesse a produzir consequências sociais
e individuais positivas (o que não seria o caso). V. FEARON. Deliberation as discussion. In: ELSTER (Ed.).
Deliberative Democracy, p. 44-68, passim).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
110 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
360
GUTMAN; THOMPSON. Why Deliberative Democracy?, p. 3-7. É claro que nos referimos à democracia deliberativa,
uma forma de governo, mas exemplos da adoção de procedimentos deliberativos podem ser colhidos em
revistas científicas peer-reviewed, de preferência sob duplo anonimato, nas quais a análise dos artigos se faz por
troca imparcial de razões e, eventualmente, reacomodação de pontos de vista.
361
Embora definições negativas (definir algo pelo que ele não é) sejam, em termos conceituais, subótimas (definir é
dizer o que algo é, e não o que ele não é), como acréscimo de informação — tal como proposto no texto — não
parece haver problema.
362
SOARES. Democracia, deliberação e razão pública: recomendações igualitárias para a democracia liberal, f. 10.
363
GUTMAN; THOMPSON. Why Deliberative Democracy?, p. 13-21.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
112 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
o conflito, essa solução é quase sempre imparcial e moralmente correta, desde que todos
tenham aceitado a solução de modo livre e isento de coerção.364
364
NINO. The Constitution of Deliberative Democracy, p. 117. Outro trecho importante na justaposição entre
democracia deliberativa e democracia “majoritária” (na terminologia de Santiago Nino): “Quando o discurso
moral é institucionalizado e substituído, em função de considerações pragmáticas, por um substituto como a
regra da maioria, deve-se examinar se tal substituto ainda garante, mesmo que em menor grau, o requisito da
imparcialidade. Parece claro que uma solução para um conflito apoiada por uma maioria, e não por todos os
envolvidos, pode ser muito parcial. De fato, a simples oposição à minoria pode motivar as ações da maioria.
Desse modo, a democracia como regra da maioria parece ser o mecanismo arquetípico da tomada de decisões
parciais. Se isso é verdade, decisões democráticas poderiam então ser justificadas por razões que nada têm a ver
com sua correção moral” (p. 117-118).
365
TALISSE. Democracy After Liberalism: Pragmatism and Deliberative Politics, p. 113.
366
PRZEWORSKI. Deliberation and Ideological Domination. In: ELSTER (Ed.). Deliberative Democracy, p. 153. Susan
Stokes acredita que a deliberação pública pode chegar a imputar falsas crenças causais, sem falar na capacidade
de influenciar na autopercepção dos cidadãos a respeito de quem realmente são e de quais são suas capacidades.
“Se pseudo-preferências e pseudo-identidades não são fenômenos raros em democracias, então a deliberação,
por vezes, gera resultados normativamente desagradáveis: ela pode permitir que as propostas políticas sejam
direcionadas por interesses especiais que manipulam as noções dos cidadãos comuns a respeito do que eles
querem que o Governo faça; ela pode deslocar as reais preferências dos cidadãos pelas preferências que os
políticos, apoiados pela imprensa, equivocadamente atribuem aos cidadãos; e ela pode instilar nos cidadãos
identidades que eles jamais possuiriam, e que, por nenhuma razão de bom senso, seria de seus interesses”.
A autora faz algumas propostas para evitar tal efeito negativo da deliberação: um regime com mais de dois
partidos políticos significativos (ela está falando dos EUA); a introdução de regime de grande concorrência
entre emissoras de televisão e jornais, o que poderia estimular a discordância e evitar certa “mentalidade de
manada”; o apoio às associações de cidadãos com poucos recursos, para que possam competir, na arena da
deliberação pública, com tais interesses especiais dotados de mais recursos; e, finalmente, uma obrigação de
disclosure em relação às fontes da informação e dos pontos de vista oferecidos ao público (STOKES. Pathologies
of Deliberation. In: ELSTER. (Ed.) Deliberative Democracy, p. 123-139.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
113
na qual as pessoas estão circundadas por outras que pensam da mesma maneira, numa
atitude de reforço mútuo e de conclamação à ação.367
“Ambientes sociais que incluem contatos próximos entre pessoas que sustentam
diferentes perspectivas podem promover uma troca de ideias políticas, mas prova-
velmente não irão instigar o fervor político”. Assim, “as perspectivas de encontros
verdadeiramente deliberativos podem estar aumentando ao passo que as perspectivas
de participação e de ativismo político estão declinando”.368 Haveria uma tensão — em-
piricamente demonstrada — entre a promoção de uma sociedade com cidadãos entu-
siásticos e participativos na esfera política, e a promoção de uma sociedade imbuída
de ideais como a tolerância e o respeito à diversidade de opiniões.
Outras críticas, mais ou menos técnicas,369 poderiam ser coligidas, mas não é nosso
propósito enfatizar o tema da democracia deliberativa propriamente dita.
Vamos resumir os percebidos vícios e virtudes da democracia deliberativa. Ela
é elogiada porque, ao contrário dos modelos democráticos tradicionais — que prezam
barganhas autointeressadas ou ajustes de interesses —, está ocupada em integrar os
cidadãos numa comunidade que leve suas razões a sério, desde que se tratem, decerto,
de razões não exclusivistas. Ao fazê-lo, não aliena nenhuma fração da sociedade, ad-
quire legitimidade, e, quiçá, alguma correção moral (ao tratar todos os cidadãos como
agentes dignos de consideração e de respeito, e não como meros otimizadores racionais
ou agentes envolvidos em barganhas posicionais). Seria o modelo perfeito, caso tais
propostas não fossem percebidas pelos críticos como utópicas, pouco claras, abertas à
manipulação ideológica e/ou neutralizadoras do próprio engajamento político (o qual
requereria antes paixão e partidarismo do que a consideração justa e imparcial de todas
as razões oferecidas no mercado das ideias).
367
Em certo sentido, os dias de hoje, em que muitas pessoas se encontram limitadas a câmaras de eco entre
semelhantes, parecem ilustrar o ponto: o nível de fervor ativista parece haver aumentado. Ver, contudo, a
resposta à crítica, supra.
368
MUTZ. Hearing the Other Side: Deliberative versus Participatory Democracy, p. 3.
369
Por exemplo: Charles Blattberg, ao propor sua própria modalidade teórica de democracia, lança algumas
críticas às propostas de democracia deliberativa. Em primeiro lugar, as constrições aplicáveis à deliberação
pública, excluindo coisas como o uso do humor e da arte, o exagero, a retórica, certas “mentiras úteis”, seriam
contraproducentes à boa utilização da argumentação prática, seara dentro da qual se opera a deliberação
pública. Além disso, haveria um desvio epistemológico nas propostas da democracia deliberativa: tenderiam
a ser mais próximas a opções “liberais”, entendida esta palavra à americana. Ainda, os teóricos da democracia
deliberativa traçariam distinção muito drástica entre a deliberação racional, de um lado, e a barganha/
negociação autointeressada, de outro. Por fim, Blattberg sustenta que os democratas deliberativos encorajariam
uma relação adversarial do indivíduo em relação ao Estado, o que reduziria as chances de reconciliação da
sociedade com o Estado, e isto, em última análise, minaria as probabilidades de que os cidadãos realizassem
qualquer dever cívico para com a comunidade. V. Pratiotic Elaborations: Essays in Practical Philosophy,
especialmente cap. 2 - Patriotic, not Deliberative, Democracy. Ao menos contra uma das críticas — a de que os
teóricos da democracia deliberativa são liberais — pode-se lançar mão de um trecho de livro que digressiona
a respeito do “deliberativismo antiliberal” (TALISSE. Democracy After Liberalism: Pragmatism and Deliberative
Politics, p. 92-95).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
114 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
370
BOHMAN. The Coming of age of Deliberative Democracy. The Journal of Political Philosophy, passim.
371
FISHKIN. Democracy and Deliberation: new Directions for Democratic Reform.
372
Há programas na televisão americana que se propõem a realizar alguns ideais deliberativos. Um deles chamava-
se “By the People”, passou no canal PBS e teve consultoria do próprio James Fishkin (<http://www.pbs.org/
newshour/spc/btp>). Outra utilização concreta de ideias deliberativas: um grupo na Universidade Carnegie
Mellon criou programa de computador, que funciona num ambiente virtual na internet, chamado PICOLA
(Public Informed Citizen Online Assembly). O programa pode ser descarregado no seguinte endereço: <http://
caae.phil.cmu.edu/picola/index.html>. Informações a respeito desse tipo de iniciativa costumam aparecer no
site do Centro para a Democracia Deliberativa da Universidade de Stanford (<http://cdd.stanford.edu/>). No
início de março de 2010, o site do Centro anunciava a primeira “pesquisa deliberativa de opinião” realizada
na América Latina, que ocorreu na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e envolveu discussões sobre
critérios de promoção de servidores públicos e formas de se obter maior produtividade no serviço público.
Os resultados podem ser encontrados em <http://cdd.stanford.edu/polls/brazil/2009/results-apresentacao.pdf>.
Todos os sites acessados em 03 mar. 2010. Em 2017, todos os sites continuavam ativos, ainda que o PICOLA haja
migrado para uma plataforma comercial.
373
GASTIL; LEVINE. The Deliberative Democracy Handbook: Strategies for Effective Civic Engagement in the 21st
Century. Na coletânea, há um artigo de especial interesse para os brasileiros; Vera Schattan, Barbara Pozzoni e
Mariana Montoya analisam o Conselho Municipal de Saúde da cidade de São Paulo, seus métodos de trabalho
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
115
e os desafios à inclusão de todos no processo de formulação de decisões a respeito de políticas públicas para a
área.
374
Há usos anteriores, mas o sentido é diferente. Em língua inglesa, o termo public reason aparece pela primeira
vez com Thomas Hobbes, no capítulo trinta e sete do Leviatã, quando o autor afirma que a crença na ocorrência
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
116 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Kant pretendeu responder à pergunta sobre o que era o Iluminismo, lançada um ano
antes pelo reverendo Johann Friedrich Zöllner. Na famosa frase inicial do texto, Kant
anotou que o Iluminismo é a emergência do homem de sua autoimposta imaturidade.
Com dificuldade, a iluminação acabaria vindo se ao homem se fornecesse suficiente
liberdade. Liberdade de um tipo muito especial: a liberdade para usar a razão, de modo
público, em todos os assuntos.
Kant diferencia o uso público da razão, que deve sempre ser livre, do uso privado,
que pode ser restringido. “Por uso público da razão entendo o uso que alguém, como
estudioso, possa dela fazer diante de todo o mundo”. Já o uso privado ocorre, a partir de
uma função ou cargo, no endereçamento a uma audiência restrita. Assim, nos exemplos
de Kant, seria desastroso se um oficial do Exército questionasse, em serviço, a utilidade
da ordem de seu superior. Todavia, como estudioso, ele não poderia ter restringida sua
liberdade de indicar os erros no militarismo ou de expô-los ao público, para que este
fizesse seu próprio julgamento. O cidadão não pode recusar-se a pagar tributos, mas
deve possuir total liberdade de criticá-los. O clérigo, no exercício da função clerical,
deve instruir os fiéis na doutrina de sua igreja, porém, como estudioso que escreve
ao mundo, deve gozar de liberdade irrestrita para usar suas capacidades racionais.375
Uso público e uso privado da razão distinguem-se pela autonomia. O uso priva-
do tem amplitude restringida por algum tipo de autoridade (o oficial, pelas regras do
militarismo; a comunidade eclesiástica, pelas normas da religião); o uso público alcança
o mundo como um todo. Para os nossos propósitos, interessa destacar que, já em Kant,
de forma embrionária, o uso público da razão pressupõe a possibilidade de os argumen-
tos chegarem a todo o mundo, sendo publicizáveis (ainda que não necessariamente
públicos) e inteligíveis para uma audiência coercível apenas pelo próprio argumento.376
de milagres é questão “em relação à qual [...] não cabe ao homem fazer uso de sua própria razão privada ou de
sua consciência, mas da razão pública, isto é, da razão do tenente supremo de Deus na Terra, o soberano; e, de
fato, nós o tornamos soberano se lhe demos poder para fazer tudo o que for necessário para nossa paz e para
nossa defesa. Um homem privado sempre possui a liberdade, porque o pensamento é livre, de acreditar ou não,
em seu coração, que tais e tais atos derivaram de milagres. Mas, quando se trata da confissão de tal fé, a razão
privada deve se submeter à razão pública, o que quer dizer: à do tenente de Deus” (HOBBES. Leviatã).
Outro uso remoto é o de Milton, na obra Paraíso perdido, colocando o termo na boca de Satã. Este, contemplando
o Paraíso, que logo será perdido pelo homem graças a seus estratagemas, afirma, num solilóquio, que seu
coração derrete diante da inocência de Adão e Eva. Mas ele está compelido a essa vingança — vingança que,
em outras circunstâncias, abominaria. Compelido “apenas pela razão pública”, ou seja, “honra e império
aumentados pela vingança ao conquistar esse novo mundo” (MILTON. Paraíso perdido, Canto IV, p. 380-394).
Avançando na genealogia da expressão, Jean-Jacques Rousseau, em seu Discurso sobre a Economia Política,
utiliza-a duas vezes no início do livro: ao afirmar que os pais de família devem ouvir a voz da natureza, mas não
os magistrados, que devem ouvir, apenas e tão somente, “a razão pública, isto é, o Direito”; e numa elegia ao
Direito, tido como “a voz celestial que dita aos cidadãos os preceitos da razão pública” (ROUSSEAU. Discourse
on Political Economy and the Social Contract, p. 5, 11).
Finalmente, o primeiro discurso de posse de Thomas Jefferson na presidência americana também traz breve
referência ao termo, quando informa que uma de suas metas seria “a difusão da informação [sobre seu governo]
e o julgamento de todos os abusos no tribunal da razão pública” (JEFFERSON. First Innaugural Speech).
Nas utilizações mencionadas, razão pública significa então, respectivamente, razão do soberano (Hobbes),
ânsia por honra e poder (Milton), Direito (Rousseau), ou alguma espécie de percepção coletiva dos cidadãos
(Jefferson).
375
KANT. An Answer to the Question: What is Enlightement?.
376
O’NEILL. Constructions of Reason: Explorations of Kant’s Practical Philosophy, p. 35, grifo nosso: “O uso público
da razão [...] é, em primeiro lugar, o que poderia chegar ao mundo como um todo, caso se lhe desse a devida
publicidade. Uma vez que ‘o mundo como um todo’ não aceita uma autoridade externa comum, a única autoridade que
a comunicação pode assumir deve ser interna à própria comunicação. [...] O que é falado ou escrito não pode valer
como uso público da razão meramente porque foi falado, impresso ou mostrado ao mundo. A comunicação tem
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
117
Por seminal que tenha sido Kant, a verdade é que o termo só ganhou projeção
graças à obra de John Rawls. A expressão aparece no livro O liberalismo político, de
1993, como resultado de duas conferências oferecidas na Universidade da Califórnia
em 1990.377 Posteriormente, no livro O direito dos povos, Rawls reapresentou a ideia com
algumas modificações.378
A intenção, aqui, não é a de aprofundar as propostas deste autor para a organiza-
ção da sociedade, mas, tão somente, apresentar aspectos de sua teoria que contribuam
para o esclarecimento da noção de razão pública. Observamos que a teoria de Rawls
sobre a razão pública, embora a mais famosa, não é a única379 e não é aceita sem con-
testações (ver item abaixo).
Rawls parte de premissa fática: considerando a existência de instituições livres
na sociedade, não se pode esperar ampla concordância em questões fundamentais de
moralidade e de religião.380 Diversas etnias, grupos, minorias, credos, embatem-se pela
palavra final a respeito de como as pessoas devem levar suas vidas e de como os bens
sociais devem ser obtidos e distribuídos. Trata-se do que ele chama de fato do pluralismo.381
O fato do pluralismo é constituído pela existência, na sociedade, de uma série de
doutrinas abrangentes razoáveis. Tais doutrinas abrangentes são as concepções religiosas,
filosóficas e morais que as pessoas seguem em suas vidas. São exercícios de razão teó-
rica — escolhem valores e concepções abstratas de Bem — e de razão prática: além de
indicar valores, tais doutrinas estabelecem os modos como os conflitos entre eles serão
concretamente resolvidos.
São abrangentes porque não se limitam a determinado aspecto da vida — o religio-
so ou o econômico, por exemplo —, mas se espraiam por diversos setores da existência.
Assim, o feminismo ou o marxismo, exemplos de doutrinas abrangentes, partem de
pressuposições (até) antropológicas e chegam a sugestões de práticas concretas em
áreas como a Economia, a literatura, o comportamento.
São razoáveis porque se baseiam em determinado pré-requisito a respeito do
indivíduo: tratam-no como intrinsecamente digno de consideração e de respeito. O
nacional-socialismo, apesar de ser exercício de razão teórica e prática abrangente —
houve até uma arte nazista —, não é razoável, porque não considera as pessoas como
igualmente dignas de consideração e de respeito. Nesses casos, fica apenas a tarefa de
de cumprir alguns standards suficientes de racionalidade para que possa ser inteligível a audiências que não
compartilham nenhuma autoridade comum (exceto a da própria razão)”.
377
RAWLS, John. A idéia de razão pública (Conferência VI). In: RAWLS. O liberalismo político, p. 261-306. Há
vestígios do conteúdo da “razão pública” na ideia de “publicidade”, tal como desenvolvida no livro Uma teoria
da justiça. A esse respeito, v. LARMORE. Public Reason. In: FREEMAN (Ed.). The Cambridge Companion to Rawls,
p. 369-380.
378
RAWLS. O direito dos povos.
379
Para recenseamento das teorias contemporâneas da razão pública, consultar Gerald F. Gaus (Contemporary
Theories of Liberalism: Public Reason as a Post-Enlightement Project).
380
“A cultura política de uma sociedade democrática é sempre marcada pela diversidade de doutrinas religiosas,
filosóficas e morais conflitantes e irreconciliáveis. Algumas são perfeitamente razoáveis, e essa diversidade de
doutrinas razoáveis, o liberalismo político a vê como resultado inevitável, em longo prazo, do exercício das
faculdades da razão humana em instituições básicas livres e duradouras” (RAWLS. O liberalismo político, p. 45).
Tal diversidade decorre das dificuldades impostas pelo que Rawls chama de “os fardos da razão” (e, depois,
“fardos do julgamento”): as complexidades dos dados da realidade, a necessidade de se considerar em conjunto
diferentes espécies de análises, a variedade de experiências de vida na sociedade moderna. V. RAWLS. Collected
Papers, p. 475 et seq.
381
Ver definição em Catherine Audard (Glossário. In: RAWLS. Justiça e democracia, p. 376).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
118 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
conter tais doutrinas não razoáveis, “como se contém uma guerra ou uma doença”,
para que não subvertam os princípios da justiça política.382
Do fato do pluralismo, constituído pela coexistência das várias doutrinas abran-
gentes razoáveis, chega-se à singela conclusão de que todas não podem estar inteira-
mente certas ao mesmo tempo,383 o que, excluída a hipótese da força para a garantia de
um vencedor,384 vai impor a necessidade de um consenso entre as múltiplas visões de
mundo. Esse consenso não significa ceticismo ou desânimo (mais sobre isso a seguir),
senão o reconhecimento de que um juízo definitivo a respeito da verdade das doutrinas
abrangentes é impossível na prática.385
Tal consenso articula-se por intermédio de apelo aos pontos políticos em comum
entre as diversas doutrinas abrangentes razoáveis. Rawls chama-o, justamente por isso,
de consenso sobreposto.
O consenso é político, não filosófico ou religioso: sublinha os aspectos políticos —
e apenas eles — que poderiam ser aceitos por todas as doutrinas. Cada doutrina abran-
gente terá suas próprias razões, morais, religiosas ou filosóficas, para aceitar o consenso,
o qual, no entanto, continua tendo como objeto apenas e tão somente uma concepção
política de justiça. O consenso é, ainda, estável, porque, mesmo que determinada dou-
trina abrangente esteja ganhando adeptos e tornando-se dominante, seus defensores
continuarão vinculados ao consenso e não deixarão de apoiá-lo para se aproveitar da
força relativa de sua própria mundivisão.
Em termos de abrangência, o consenso sobreposto incluirá alguns princípios
procedimentais básicos da democracia (igualdade formal, contraditório, transparência,
generalidade e irretroatividade das leis, separação entre Estado e religião), além de
alguns direitos substantivos, tais como liberdade de consciência e igualdade de opor-
tunidades. Retiram-se da agenda política constitucional as questões que geram mais
divergências, já que elas poderiam solapar as bases profundas da cooperação social.386
Resumindo os conteúdos da teoria de Rawls até aqui expostos: a) considerando
a pluralidade irreconciliável de concepções de Bem atualmente existentes na sociedade,
b) e levando-se em conta que as diversas doutrinas abrangentes razoáveis não podem
ser simultaneamente verdadeiras, mas que, c) afastada a opção de impor mundivisões
à força — o que seria incompatível com a noção de pessoas igualmente dignas de
consideração e respeito —, só resta a necessidade prática do acordo, este será d) um
acordo sobreposto entre todas as doutrinas abrangentes razoáveis, as quais terão suas
próprias razões para aderir a ele. O acordo será e) estável — as doutrinas abrangentes
não poderão abandoná-lo caso se mostrem predominantes na sociedade — e seu f)
conteúdo consistirá apenas de aspectos políticos, e não filosóficos ou religiosos, tais
como g) regras democráticas e constitucionais básicas e alguns direitos fundamentais
mais importantes.
382
RAWLS. O liberalismo político, p. 108. Em algumas passagens, Rawls fala em “fato do pluralismo razoável” para
se referir à diversidade de doutrinas abrangentes razoáveis existentes numa sociedade contemporânea.
383
RAWLS. O liberalismo político, p. 104.
384
“[...] Os cidadãos, em sua condição de livres e iguais, têm uma participação igual no poder coletivo político
e coercitivo da sociedade, e todos estão igualmente à mercê do juízo. Não há razão, portanto, para qualquer
cidadão ou associação de cidadãos ter o direito de empregar o poder coercitivo do Estado para decidir
fundamentos constitucionais ou questões básicas de justiça segundo as diretrizes da doutrina abrangente desse
cidadão ou associação de cidadãos” (RAWLS. O liberalismo político, p. 106).
385
RAWLS. O liberalismo político, p. 107.
386
RAWLS. O liberalismo político, p. 179-219.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
119
387
Como diz o próprio Rawls, “os cidadãos percebem que não podem chegar a um acordo, ou mesmo aproximar-
se da compreensão mútua, com base nas suas doutrinas abrangentes irreconciliáveis. Em vista disso, precisam
considerar que tipo de razões podem oferecer razoavelmente um ao outro quando estão em jogo perguntas políticas
fundamentais”. Tais razões são, precisamente, as razões fornecidas por um ideal de razão pública (RAWLS. O
direito dos povos, p. 174, grifo nosso).
388
RAWLS. O liberalismo político, p. 262. Acreditar que as exigências da razão pública são deveres jurídicos é
postura que viola a liberdade de expressão (Direito dos povos, p. 179).
389
RAWLS. O liberalismo político, p. 264-265; RAWLS. O direito dos povos, p. 177.
390
O oposto da razão pública é a razão não pública. Em Rawls, não existe razão privada. O que existe é razão
religiosa (argumentos usados por uma doutrina abrangente religiosa) e razão secular (argumentos de uma
doutrina abrangente não religiosa), ambas razões não públicas. Vale destacar, ainda, que só há uma única razão
pública, mas muitas e variadas razões não públicas. Ao longo da tese, usaremos “razões públicas” para se
referir, metonimicamente, às razões capazes de ultrapassar o filtro da razão pública.
391
RAWLS. O liberalismo político, p. 263.
392
RAWLS. O liberalismo político, p. 277.
393
RAWLS. O liberalismo político, p. 264.
394
RAWLS. O direito dos povos, p. 189.
395
HABERMAS. Reconciliation Through the Public use of Reason: Remarks on John Rawls’s Political Liberalism.
The Journal of Philosophy, p. 129. Em rigor, Rawls afirma que o sentido de dizer que a razão pública é política
abrange três conteúdos: que se aplica apenas à estrutura básica da sociedade; que é neutra; que é elaborada em
termos de ideias políticas fundamentais implícitas na cultura pública de uma sociedade democrática (RAWLS.
O liberalismo político, p. 273).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
120 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
396
RAWLS. O direito dos povos, p. 196.
397
RAWLS. O direito dos povos, p. 181.
398
RAWLS. O liberalismo político, p. 274.
399
RAWLS. O liberalismo político, p. 287.
400
RAWLS. O liberalismo político, p. 305.
401
RAWLS. O liberalismo político, p. 297-298.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
121
402
Embora o ideal da razão pública não aspire simplesmente a uma aceitação dos argumentos contrários. A ideia
é a de encontrar um denominador comum que, compatível com as doutrinas abrangentes, possa ser por elas
defendido — claro que essa defesa vai se dar com base nos argumentos internos a cada doutrina — e por elas
assumido como próprio. Charles Larmore explica: “Honramos a razão pública quando estabelecemos nossas
razões em concordância com as razões dos outros, esposando um ponto de vista comum para estabelecer os
termos e condições de nossa vida política. A concepção de justiça com base na qual vivemos é, assim, uma
concepção que adotamos não pelas diferentes razões que cada um possa encontrar, não apenas pelas razões que
calharam de compartilharmos, mas, ao contrário, pelas razões que contam para nós porque podemos afirmá-las
em conjunto” (LARMORE. Public Reason. In: FREEMAN (Ed.). The Cambridge Companion to Rawls, p. 368).
403
Como sugere Kent Greenawalt (Private Consciences and Public Reasons, passim).
404
“O ideal de razão pública exige que não façamos isso nos casos de elementos constitucionais essenciais e
questões de justiça básica. Raramente se chega a uma concordância muito grande, e abandonar a razão pública
sempre que houver desacordo ao equilibrar os valores significa, na verdade, abandoná-la por completo”
(RAWLS. O liberalismo político, p. 291).
405
SOLLUM. Public Legal Reason. Virginia Law Review, p. 1477.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
122 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
406
Rawls ainda discute ponto mais técnico da razão pública: se se deve adotar uma visão exclusiva ou uma visão
inclusiva ao se operar com ela. Na visão exclusiva (melhor seria, na tradução, “visão excludente”), só se pode
argumentar, a respeito de elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica, com razões públicas.
Na visão inclusiva (ou “visão includente”), em certas situações é possível argumentar com razões tiradas de
doutrinas abrangentes junto com razões públicas. Rawls defende a visão inclusiva porque acredita que ela
estimula mais os cidadãos a usarem a razão pública, além de ser mais flexível e adaptativa a diferentes condições
políticas e sociais. Exemplifica seu argumento mencionando o debate norte-americano sobre a abolição da
escravidão, em que abolicionistas defendiam seu ponto de vista a partir de razões religiosas. “Nessa situação”,
escreve Rawls, “a razão não pública de certas igrejas cristãs apoiava as conclusões claras da razão pública”. De
qualquer forma, Rawls acredita que seja até possível que as visões não se excluam; assim, em situações normais,
prevaleceria a visão excludente e, em situações excepcionais, poder-se-ia apelar a razões não públicas em favor
de conclusões indicadas pela razão pública. “[...] Os limites apropriados da razão pública variam, dependendo
das condições históricas e sociais. [...] O principal é que os cidadãos precisam ser motivados a respeitar o ideal
em si, no presente, quando as circunstâncias o permitem, mas muitas vezes podemos ser forçados a considerar
uma perspectiva mais ampla” (O liberalismo político, p. 298-303). Sobre o tema, com base na própria discussão
exemplificada por Rawls, v. RICHARDS. Public Reason and Abolitionist Dissent. Chicago-Kent Law Review, p.
787-842.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
123
devem formular suas leis ou agentes executivos sobre como devem administrar. Para
o bem e para o mal, a doutrina jurídica típica, também no Brasil, funciona segundo a
lógica do parecer.407 Não seria lógico vindicar a incidência da razão pública quando os juízes
fossem julgar, e, ao escrever artigo cuja proposta é orientá-los em seus atos decisórios, imaginar
que se possa utilizar razões não públicas.
Mesmo acreditando que a linha distintiva entre teoria decisória normativa, de um
lado, e teoria e metateoria do Direito, de outro, é cinzenta, sustentamos que, quando a
doutrina pretende fornecer subsídios decisórios às autoridades, é de se aplicar a razão
pública.408 Nem se argumente com o texto de Rawls: a inferência é lógica.
A segunda questão também nasce a partir do texto de Rawls. Diz respeito à
abrangência da razão pública. Rawls afirma que ela só se aplica às questões básicas de
justiça e aos elementos constitucionais essenciais. Afirma que não se destina a temas
como leis tributárias, normas ambientais, regras de propriedade. É conceito restrito aos
“grandes” temas. Por que, então, haveria de se aplicar a assuntos tão prosaicos como a
constituição de monopólios públicos ou a atuação das sociedades de economia mista?
Por duas razões. A começar, pela opinião do próprio Rawls. Sim, a verdade é que,
embora ele haja afirmado que a razão pública só se aplica aos elementos constitucio-
nais essenciais e às questões básicas de justiça, não fechou posição quanto ao assunto.
No trecho em que fala sobre a restrição, também observa o seguinte: “Mesmo assim,
admito que, em geral, é extremamente desejável resolver questões políticas invocando
os valores da razão pública”.409 Vê-se que há um argumento geral a favor da incidência
da razão pública.
Além disso, ainda em Rawls, os motivos para a restrição de abrangência não
são muito convincentes. Ele apenas anota que, “se não respeitarmos aqui os limites da
razão pública, não será necessário respeitá-los em parte alguma”.410 Charles Larmore
conclui que, ao escrever isso, Rawls sugere que as restrições podem eventualmente ser
levantadas.411
Em suma: se há uma preferência em favor da incidência da razão pública em todas as
questões públicas, e se a justificativa para a restrição é, apenas, um recorte epistemológico em
prol de sua funcionalidade, então, na hipótese em que a questão seja importante, e desde que a
razão pública possa operar a contento, não se aplicará a restrição.
O segundo motivo é mais direto: a discussão sobre a intervenção do Estado na eco-
nomia é, em rigor, discussão sobre a interpretação jurídica do princípio da livre iniciativa. E a
livre iniciativa é elemento constitucional essencial — como direito fundamental — e
toca questões de justiça básica. Assim, nada mais natural do que, à sua interpretação
decisória,412 aplicar o critério da razão pública. Estar-se-ia tratando da interpretação
407
FRAGALE FILHO, Roberto; VERONESE, Alexandre. A pesquisa em Direito: diagnóstico e perspectivas. Revista
Brasileira de Pós-Graduação, v. 1, n. 2, p. 53-70, 2004. NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito
no Brasil. Novos Estudos CEBRAP, p. 145-154, jul. 2003.
408
SOLLUM. Public Legal Reason. Virginia Law Review, p. 1480.
409
RAWLS. O liberalismo político, p. 264.
410
RAWLS. O liberalismo político, p. 264.
411
LARMORE. Public Reason. In: FREEMAN (Ed.). The Cambridge Companion to Rawls, p. 381.
412
Há quem observe que Rawls não diferencia dois momentos nos quais a razão pública não incidiria e incidiria,
respectivamente: os momentos do “debate” e da “decisão”. Rawls trataria tudo de modo único, mas seria
conveniente distinguir entre o debate público, que deve ser aberto, e não pode ser limitado sequer pelo
critério da razão pública — os participantes do debate, inclusive agentes públicos, devem poder se utilizar
de argumentos particulares tirados de doutrinas abrangentes razoáveis —, e o momento da decisão, na qual
os sujeitos da razão pública, aí sim, só poderiam se valer de argumentos com ela compatíveis. Os benefícios
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
124 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
de uma discussão irrestrita seriam muitos: as partes poderiam conhecer melhor as posições umas das outras;
ilimitado, o debate poderia fazer com que se mudasse de opinião de modo mais eficiente, ou, ao menos, que se
visse a opinião contrária de modo mais profundo ou nuançado. V. LARMORE. Public Reason. In: FREEMAN
(Ed.). The Cambridge Companion to Rawls, p. 382-393. Ainda, Jeremy Waldron (Religious Contributions in Public
Deliberation. San Diego Law Review, p. 817-848).
413
O argumento de Rawls a respeito da razão pública apresenta certa dificuldade para diferenciar uma discussão
sobre um elemento constitucional essencial/questão básica de justiça (em que se aplicaria a exigência da
razão pública) e uma discussão sobre sua aplicação (em que, via leitura literal de Rawls — com a qual não
concordamos, tanto que não a defendemos no corpo do texto — a razão pública não seria aplicável). Pensemos
no exemplo do aborto. Se o debate do aborto é uma das questões constitucionais essenciais/questão básica de
justiça (é assim que Rawls a discute), por que não o seriam os debates da pesquisa a respeito da implantação de
tecido fetal e dos contratos de barriga de aluguel? E mesmo que a pesquisa com fetos não seja, ela mesma, um
elemento constitucional essencial/questão básica de justiça, sua discussão pode envolver argumentos tirados
de elementos constitucionais essenciais, tais como a adequação constitucional do aborto. Essa discussão,
então, poderia incluir todo tipo de razões não públicas, exceto quando envolvesse o aborto, já que, então, só se
poderiam usar razões públicas? A distinção parece artificial. V. GREENAWALT. On Public Reason. Chicago-Kent
Law Review, p. 685-688. “Difficult lines of distinction”.
414
OTTER. Judicial Review in an Age of Moral Pluralism, p. 130.
415
A referência no Brasil sobre o tema, operando na interseção entre Filosofia Política e Direito Constitucional, é
a obra de Cláudio Pereira de Souza Neto (Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel
do Direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática). Prova da popularização
do assunto é a presença do tema “razão pública” num curso de Direito Constitucional como o de Luís Roberto
Barroso, que, pelas virtudes que tenha, ainda é um manual — uma obra de divulgação. V. BARROSO. Curso de
direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 71.
416
Exemplo de menção à razão pública na jurisprudência recente do STF vem em trecho de voto do próprio Luís
Roberto Barroso (v. nota de rodapé anterior) nos embargos infringentes da Ação Penal nº 470 (“Mensalão”). Diz
ele: “Fontes diversas divulgam o sentimento difuso de que qualquer agravamento das penas é bem-vindo e de
que a imputação de quadrilha, em particular, teria caráter exemplar e simbólico. É compreensível a indignação
contra a histórica impunidade das classes dirigentes no Brasil. Mas o discurso jurídico não se confunde com o
discurso político. E o dia em que o fizer, perderá sua autonomia e autoridade. O STF é um espaço da razão pública,
e não das paixões inflamadas. Antes de ser exemplar e simbólica, a Justiça precisa ser justa, sob pena de não poder
ser nem um bom exemplo nem um bom símbolo” (grifos nossos). Mais recentemente, o mesmo Luís Roberto
Barroso voltou a mencionar o argumento em seu voto-vista no HC nº 124.306, em que se discutia o aborto. Veja-
se trecho, com nosso destaque: “Deixe-se bem claro: a reprovação moral do aborto por grupos religiosos ou por
quem quer que seja é perfeitamente legítima. Todos têm direito de se expressar e de defender dogmas, valores
e convicções. O que refoge à razão pública é a possibilidade de um dos lados, em um tema eticamente controvertido,
criminalizar a posição do outro. Em temas moralmente divisivos, o papel adequado do Estado não é tomar partido
e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam sua escolha de forma autônoma. O Estado precisa estar
do lado de quem deseja ter o filho. O Estado precisa estar do lado de quem não deseja — geralmente porque
não pode — ter o filho. Em suma: por ter o dever de estar dos dois lados, o Estado não pode escolher um”.
417
Em seu voto como relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186 — em que
discutiam as cotas étnico-raciais da Universidade de Brasília —, Ricardo Lewandowski cita os dois princípios
da justiça de Rawls para concluir a favor da medida. A referência consta do trecho inicial de João Feres Júnior e
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
125
Vamos continuar tal caminho, focando nossa proposta numa incidência da razão
pública sobre o Direito Constitucional Econômico, e baseando-a no texto da Constituição
da República de 1988.
Luiz Augusto Campos (Liberalismo igualitário e ação Afirmativa: da teoria moral à política pública. Revista de
Sociologia e Política).
418
OTTER. Judicial Review in an Age of Moral Pluralism, p. 141.
419
Outra exigência para que uma razão seja pública é a acessibilidade, ou, se se preferir, a clareza. Os cidadãos
comuns devem ser capazes de compreender as razões utilizadas para a interpretação da constituição. Razões
esotéricas ou ultratécnicas, entendidas somente por pouquíssimas pessoas, não são razões públicas. Isso se
conecta à ideia de incontrovérsia científica porque, por vezes, teses científicas polêmicas disfarçam-se sob
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
126 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
(ii) Uma razão muito próxima ao conteúdo de uma determinada concepção de Bem ou
de uma específica visão compreensiva e, no extremo, uma razão que (iii) está profundamente
enraizada numa ideologia política não são razões públicas. Isso porque não são capazes de
ultrapassar um filtro de reciprocidade. Elas valem para quem nelas acredita, mas não é
razoável que se espere que todos os integrantes de uma comunidade política, com seus
backgrounds, gostos, preferências, formação cultural, experiências de vida etc., estejam
obrigados a com elas concordarem.
Além do critério da submissão dos argumentos à posição de argumentos de um
tribunal constitucional, sugestão de Rawls, outro teste interessante para detectar razões
não públicas é o que segue.
Imagine que você, na qualidade de juiz, está sozinho num quarto com um réu.
Precisa explicar-lhe os resultados do julgamento que vai aprisioná-lo pelos próximos
dez anos. Quais razões seriam aceitáveis? Dizer que o réu se permite práticas bárbaras,
que extrai prazer do vício, que é um ser moralmente inferior, que é uma aberração, que
você sabe o que é melhor para a vida dele? Tais argumentos seriam inaceitáveis. Basta
se colocar no papel de réu para entendê-lo.
Pensemos em termos de Direito Constitucional Econômico e com base nas razões
não públicas que habitam seu debate. Quem discorda que o Estado deve, por suposta
imposição constitucional, abdicar da prestação de certos serviços ou do desempenho de
algumas atividades econômicas, não deve ser tido como ultrapassado e sequer ter suas
razões consideradas. E não apenas por respeito à dignidade ou à autonomia das pessoas,
mas até — e aqui, por curioso que soe, a justificação de um argumento característico da
democracia deliberativa se aproxima de certas formas democráticas não deliberativas —
por estratégia.420 É que a maioria de hoje pode vir a ser a minoria de amanhã.
Quem hoje defende, como imposições constitucionais, pautas de intervenção mí-
nima do Estado na economia deve estar aberto a aceitar, amanhã, a defesa de propostas
de intervenção substancial, também como supostas exigências extraídas da Constituição
de 1988.421 Uma espécie de viagem redonda — os dois extremos se tocam e não se sai
do lugar — das razões não públicas.
linguagem complexa para, gozando do prestígio que o status de ciência lhes traria, esconder seu conteúdo
controverso. V. OTTER. Judicial Review in an Age of Moral Pluralism, p. 160.
420
Há outro motivo “estratégico”, por assim dizer, para o uso de razões públicas junto às cortes constitucionais e,
de modo geral, na interpretação constitucional: é que, ao relegar certas razões com as quais não se concorde ao
status de não razões, estimula-se o conflito por vias não ordinárias. O ideal de pacificação social é, então, mais
um motivo para o uso de razões públicas.
421
Como são comuns em algumas obras do chamado “constitucionalismo social”, da Constituição dirigente, ou em
visões mais extremadas da eficácia jurídica dos direitos sociais. A respeito da incompatibilidade entre esse tipo
de uso de razão não pública, extraído da área não universalizável de uma determinada doutrina abrangente, de
cunho social, e as propostas democrático-deliberativas, é ler o trecho de Cláudio Pereira Neto: “Para a ‘teoria
cooperativa de democracia deliberativa’, aqui defendida, não é possível estabelecer para as gerações futuras
um projeto social determinado. Isso corresponderia a petrificar uma doutrina abrangente em detrimento das
demais doutrinas que, com igual legitimidade, habitam as sociedades contemporâneas; significaria negar a
possibilidade de as demais doutrinas abrangentes razoáveis verem realizadas não só no presente, mas também
no futuro, o seu projeto social, com sérios prejuízos para a cooperação democrática em contextos de pluralismo”
(Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para
a cooperação na deliberação democrática, p. 268).
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
127
422
LLOYD. Relativizing Rawls. Chicago-Kent Law Review, p.719.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
128 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
423
Até porque uma razão racionalmente inacessível talvez sequer se possa afirmar como uma razão propriamente
dita. Nesse sentido, Eric Macgilvray: “Dizer que aceitamos uma razão como pública não quer dizer que a
percebemos como incontroversa, ou que acreditamos que ela forneça bases decisivas para a ação, mas, apenas,
que reconhecemos sua autoridade enquanto razão. Isso significa, dentre outras coisas, que a razão em questão
não apela a valores que não são comumente aceitos como tais; que ela não apela a uma autoridade epistêmica
que não é usualmente reconhecida — tal como um texto sagrado, uma experiência de revelação, ou um insight
esotérico metafísico; e que ela não apela a premissas empíricas que são extremamente alienígenas para o nosso
estado atual de entendimento” (MACGILVARY. Reconstructing Public Reason, p. 172, grifos no original).
424
A respeito da distinção entre razões acessíveis e razões públicas, ver Kent Greenawalt (Private Consciences and
Public Reasons, p. 6). É óbvio que estamos pressupondo participantes com plena capacidade deliberativa, ou
seja, dois adultos normais.
425
SOUZA NETO. Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das
condições para a cooperação na deliberação democrática, passim.
426
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. O dilema constitucional contemporâneo entre o neoconstitucionalismo
econômico e o constitucionalismo democrático. In: COUTINHO; LIMA (Org.). Diálogos constitucionais: direito,
neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos, p. 119-131.
427
HAYEK. The Road to Serfdom, p. 80-88 (“Toda legislação ou política pública visando diretamente a um ideal
substantivo de Justiça distributiva leva à destruição do Estado de Direito”, p. 88); HAYEK. The Constitution of
Liberty, especialmente cap. 14, 15.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
129
428
V. SEJERSTED. Democracy and Rule of Law: Some Historical Experiences of Contradictions in the Striving for
Good Government. In: ELSTER; SLAGSTAD (Ed.). Constitutionalism and Democracy: Studies in Rationality and
Social Change, p. 141 et seq.
429
LARMORE. Patterns of Moral Complexity, p. 62.
430
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] V - o pluralismo político.
431
Há diversos outros dispositivos normativos constitucionais, para além do art. 1º, V, que institucionalizam o caráter
pluralista do Estado Democrático de Direito brasileiro. Numa lista não exaustiva: liberdade de pensamento (art.
5º, IV), liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI), liberdade sindical (art. 8º), liberdade de criação de
partidos políticos (art. 17). Outra possível base constitucional para a razão pública seria o princípio republicano
(art. 1º da CRFB/88), entendido não apenas como vedação da apropriação privada da coisa pública, mas como
dever de imparcialidade. Defendendo a fundamentação constitucional da razão pública também no princípio
republicano, v. MENDONÇA; SOUZA NETO. Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação do
princípio constitucional da livre iniciativa. In: SARMENTO; SOUZA NETO (Org.). A constitucionalização do
direito. Para o dever de imparcialidade, cf. ÁVILA. O princípio da impessoalidade da Administração Pública: para
uma Administração imparcial, p. 107 et seq.
432
BULOS. Constituição Federal anotada, p. 87; SILVA. Comentário contextual à Constituição, p. 39-40.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
130 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Por tudo o que foi visto até aqui, é possível apresentar uma definição nos seguintes
termos: uma razão pública constitucional útil ao Direito Econômico é uma razão prática que, sem
apelar a premissas empíricas ou filosóficas contestáveis, trata igualmente todos os participantes
de um debate público a respeito da Constituição Econômica com respeito e consideração. Ela serve
paraafastar, por inconstitucionais (contrários ao art. 1º, V, da Constituição da República), argu-
mentos que, ao interpretar a Constituição Econômica, façam-no em bases empíricas controversas,
ou segundo preconcepções filosóficas abstrusas, ou, ainda, adotando posições excessivamente
ideológicas ou muito próximas a concepções particulares de Bem.
433
Claro que outras críticas, além das que sistematizamos aqui, são sempre possíveis. Há críticas até dentro da
linha kantiana. Habermas prefere falar num “uso público da razão” por se preocupar mais com exposição do
pensamento no espaço público de modo a submetê-lo a contra-argumentos e adesões, ao invés de remeter a
critérios substantivos de democracia, cujo efeito indesejado, segundo Habermas, é promover mais a estabilidade
do que a autonomia política (HABERMAS. Reconciliação por meio do uso público da razão. In: HABERMAS. A
inclusão do outro: estudos de teoria política, p. 65 et seq.).
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
131
se manter neutro, deixando que as populações dos territórios decidissem, talvez até
em prol da estabilidade social. Lincoln, ao contrário, acreditava que o Estado federal
devesse tomar partido contra a escravidão, que considerava um mal moral.434
Ou seja: as constrições da razão pública, por vezes, levariam a uma tibieza na
ação do Estado, o que, no limite, poderia significar uma omissão imoral.
(ii) A razão pública seria impossível, porque os julgadores nunca conseguiriam
deixar de decidir questões morais complexas sem se apoiar em convicções morais
controversas.
Um dos grandes enunciadores dessa crítica é Ronald Dworkin. Num artigo
chamado “Rawls and the Law”, incluído na coletânea Justice in Robes, Dworkin critica
alguns pontos da teoria política rawlsiana, e um deles é a razão pública. Dworkin começa
a crítica resumindo a proposta de Rawls (que considera “difícil de definir e de defender”).
Só se podem usar razões que todos os membros razoáveis de uma comunidade possam
razoavelmente adotar; as justificações devem se basear nos valores políticos comuns
da comunidade, e não em doutrinas morais ou filosóficas abrangentes. Mas Dworkin
não consegue ver o que a doutrina da reciprocidade exclui: “Se acredito que uma
posição moral controversa está claramente correta, por exemplo, a de que as pessoas
são responsáveis por suas vidas e devem assumir financeiramente seus erros, como
não acreditar que as outras pessoas, e a minha comunidade, possam razoavelmente
aceitá-la, sendo ou não provável que isso venha a acontecer?”435
Dworkin ainda vê (como Michael Sandel) dificuldades na diferenciação entre valo-
res políticos e convicções morais abrangentes. Ele acredita que a própria base teórica de
Rawls — a ideia de Justiça como equidade — dependa de uma série de pressuposições
morais controversas, como a que haveria, por exemplo, no princípio da diferença, que
pode chegar a privilegiar o não esforço pessoal dos menos favorecidos na sociedade,
subscrevendo, então, a tese polêmica da irrelevância moral do esforço (se a introdução de
benefícios num dado sistema social só pode ser feita em prol dos menos favorecidos —
essa é a essência do princípio da diferença —, e isso acabar beneficiando os preguiçosos,
a proposta de Rawls é indiferente a isso). “A proposta de Rawls é certamente contro-
versa em nossa comunidade, e algumas pessoas podem rejeitá-la em favor de uma
teoria da justiça distributiva que dependa mais da responsabilidade pessoal”.436 Mas
a impossibilidade da razão pública é mais bem ilustrada, segundo Dworkin, a partir
dos próprios exemplos de Rawls.
De fato: na controvérsia do aborto, citada por Rawls em diversas ocasiões como
hipótese em que a Suprema Corte americana só deveria fazer uso de razões públicas,437
ao retirar a questão sobre se o feto possui direitos próprios, incluindo o direito à vida,
do debate constitucional — tratar-se-ia de discussão calcada em razões não públicas —,
Dworkin levanta dúvidas sobre a possibilidade de isso acontecer. Ele acredita que a visão
de que o feto não possui direitos e interesses é produto de uma doutrina abrangente
434
SANDEL. Democracy’s Discontent: America in Search of a Public Philosophy, p. 21-23.
435
DWORKIN. Justice in Robes, p. 252.
436
DWORKIN. Justice in Robes, p. 253.
437
É importante destacar que, no Brasil, foi apresentado, pelo Professor Luís Roberto Barroso, Memorial numa
discussão judicial no STF sobre o aborto do feto anencefálico — a ADPF nº 54 — em que o argumento da razão
pública é expressamente referido (BARROSO. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54:
demonstração de seu cabimento. Memorial da autora. In: BARROSO. Temas de direito constitucional). Depois, já
como ministro do STF, Luís Roberto Barroso voltou a mencionar o argumento em seu voto no HC nº 124.306 (v.
referência em nota de rodapé acima).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
132 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
como todas as outras, e a Suprema Corte, ao julgar, acaba tendo que efetivamente esco-
lher uma delas. Não haveria, aqui, nenhum meio-termo. Mesmo ao decidir que o aborto
é possível até o terceiro mês de gravidez, resultado da Suprema Corte americana no
caso Roe vs. Wade, até hoje o precedente americano para a questão, os juízes tomaram
partido numa controvérsia moral ao afirmar que o aborto é possível.
Dworkin, essencialmente, não acredita na possibilidade do uso da razão pública.
Ou o argumento exigiria uma trivialidade — juízes não podem defender determinada
interpretação da lei apenas porque a consideram pessoalmente melhor —, ou algo
impossível: extirpar do julgamento o posicionamento moral do juiz. Em suas palavras:
Na discussão da razão pública, Rawls afirma que em nenhuma hipótese os juízes podem fazer
uso de suas convicções morais pessoais. Se isso significa que um juiz não pode argumentar
que uma justificação passada da lei é superior porque ele acha isso, então tal afirmação é
obviamente correta. A biografia intelectual de um juiz não é argumento jurídico. Mas, se isso
significa que um julgador não pode abrir qualquer espaço a opiniões morais controversas em
sua decisão, porque, aí, estaria citando as opiniões morais que ele, mas não outros, consideram
corretas, então a razão pública propõe uma exigência impossível. Em nenhuma concepção
de Direito — positivista ou interpretativista — é possível que os juízes, em comunidades
pluralistas complexas, desempenhem suas responsabilidades institucionais sem se basear
em convicções morais controversas.438
Kent Greenawalt, por sua vez, se não chega a afirmá-la impossível, possui dúvi-
das sobre a utilidade da razão pública, cujo uso seria contraintuitivo, para não falar na
dificuldade de identificar quais questões estariam a ela submetida. “Muitos cidadãos
e legisladores [...] achariam estranho que as referências às fontes de autenticidade para
muitos assuntos políticos estivessem, em algum grau, proibidas a eles em relação a uma
categoria particular de assuntos, nem sempre tão fácil de identificar”.439
De um modo geral, todas as críticas endereçadas às exigências de neutralidade
dos juízes e de intérpretes jurídicos em trabalhos que pressuponham imparcialidade
(como doutrinadores em livros e artigos jurídicos científicos) poderiam se encaixar aqui:
a neutralidade é impossível; não se pode exigir o que jamais se vai conseguir. O que se
poderia exigir, no máximo, seria a transparência — deixar clara a afinidade ideológica
do trabalho ou da decisão —, jamais a neutralidade.
Também se alega que a razão pública (iii) seria genérica demais, deixando de
fornecer bons motivos para que se restringissem razões não públicas. Genérica aqui
não no sentido de vaga, mas como sinônimo para fraca, incapaz de compelir alguém
a algo. Explica-se.
Micah Lott imagina duas situações hipotéticas. Na primeira delas, o Dr. X é cien-
tista especializado em investigar a vida dos grandes símios. Em virtude de pesquisa
inusitada, mas realizada com base em métodos científicos, Dr. X verifica que os chim-
panzés são capazes de raciocinar e de argumentar de modo próximo ao dos humanos;
eles possuem capacidade de formular uma concepção de Bem e de Justiça, daí, tal
como os homens, serem sujeitos de direitos. Os métodos da pesquisa do cientista são
inovadores, e poucas pessoas no mundo são capazes de entendê-los. A comunidade
científica em geral se mostra cética em relação aos seus resultados, que, no entanto,
são objetivamente verdadeiros. O Dr. X estaria numa situação próxima à de Copérnico:
438
DWORKIN. Justice in Robes, p. 254.
439
GREENAWALT. On Public Reason. Chicago-Kent Law Review, p. 687.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
133
O jogo não estaria de todo perdido para a razão pública. A simples consideração do
respeito ao dever cívico imposto pela razão pública, nos dois exemplos, já seria indicativo
440
LOTT. Restraint on Reasons and Reasons for Restraint: a Problem for Rawls’ Ideal of Public Reason. Pacific
Philosophical Quarterly, p. 79.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
134 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
de alguma utilidade para a proposta de Rawls. Em todo caso, a razão pública não seria
capaz de, confrontada com deveres mais urgentes — o que, para os elementos consti-
tucionais essenciais e questões básicas de justiça, seriam quase todas as situações —,
representar alguma constrição mais firme.
(iv) A razão pública seria restritiva demais, deixando de lado argumentos e razões
eventualmente necessários à motivação concreta dos cidadãos para a decisão.
Para entender a crítica, há de se considerar alguns detalhes técnicos da teoria
rawlsiana da razão pública. Num primeiro momento, Rawls defendeu o que chamou
de “visão inclusiva” da razão pública: em certas situações excepcionais, poder-se-ia
defender determinada posição com base em razões não públicas, desde que, a elas,
fossem simultaneamente agregadas razões públicas.
Posteriormente, Rawls passou a defender uma “visão ampla” de razão pública:
em todos os casos — e não apenas nas hipóteses excepcionais da formulação anterior —,
poder-se-ia avançar uma proposição apenas com base em razões não públicas, desde
que, “no tempo devido” (in due course), fossem apresentadas, também, razões públicas.
Há, então, uma nítida flexibilização nos requisitos de observância da argumen-
tação com base na razão pública. Em todos os casos, não só em situações excepcionais,
é possível argumentar com razões não públicas, desde que, depois (e não simultanea-
mente), sejam apresentados argumentos conforme a razão pública em apoio à causa.
Mesmo assim, há autores, como David Reidy, que acreditam que a “visão ampla”
da razão pública ainda não seja ampla o suficiente. Haveria dois problemas: a razão
pública não seria autônoma nem completa.
Para demonstrá-lo, Reidy cita os problemas gerados pela ação afirmativa, pela
clonagem humana, pela regulação da prostituição, da pornografia, da eutanásia. Alguns
cidadãos, afirma ele, conseguirão extrair uma resolução para a ação apenas a partir
da razão pública, mas a maioria, não. Esta maioria terá necessidade de hierarquizar
valores de modo a chegar a alguma conclusão. Ora, a razão pública não forneceria os
meios racionais de se ordenar os valores relevantes ao caso. Os agentes só teriam, via
razão pública, apelo a que decidissem “de modo a que todos os outros se sentissem
respeitados com a decisão” — o que seria pouco. A razão pública seria incompleta e
heterônoma. Para decidir, ela não seria, por si só, capaz de indicar a decisão; haver-se-ia
de apelar a outra ordem de argumentos.
Outra prova da heteronomia e da incompletude da razão pública viria por inter-
médio de alguns problemas representados pelo modo como certas questões preliminares
ou de background não encontrariam resposta apenas por ela. A questão dos direitos
dos animais ou das leis ambientais seriam exemplos. Muitas pessoas considerariam a
razão pública incapaz de guiá-los no ponto, e não exatamente porque não fornecesse
um critério de ordenação de valores, mas à conta da própria qualificação dos animais ou
da relação do homem com a natureza. Animais têm direitos? Podem ser apropriados
pelo homem? A relação homem-meio ambiente é algo pré-político ou decorre de uma
construção social? Para nada disso a razão pública é capaz de fornecer respostas.
A razão pública, mesmo numa “visão ampla” — já que, afinal, em algum mo-
mento da justificação ela vai ter que aparecer —, seria incompleta e heterônoma, e isso
seria provado por esses problemas de ordenação de valores ou de qualificação. Nessas
duas espécies de situações-limite, os cidadãos só poderiam apelar a razões não públi-
cas. David Reidy chega a sugerir a adoção de visão ainda mais ampla de razão pública,
embora reconheça que isso possa comprometer os ideais de autonomia política e de
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
135
legitimidade.441 Sem entrar no mérito dessa proposta, e para o que nos importa, a razão
pública é criticada por ser restritiva em excesso: seria incapaz de guiar a deliberação
pública numa série de casos.
(v) O conceito rawlsiano de razão pública, por fim, seria incoerente, fazendo parte
do mal cuja cura pretenderia ser. A concepção de “pessoa” e de “autonomia” pressu-
postas pelo liberalismo político no qual o conceito se inclui442 faria com que ele, em
vez de flutuar acima de visões controversas, fosse apenas mais uma proposta sectária
como as demais.
Essa crítica é comum entre conservadores americanos, que alegam que a razão
pública esconde uma contradição. Ao se colocar acima da política usual, mas preten-
dendo delimitar o espectro de escolhas políticas possíveis, ela no fundo incorporaria
uma visão controversa — tão sectária quanto as outras — de autonomia individual.443
A razão pública, aqui redefinindo o casamento, ali criando condições com base
nas quais toda discussão séria sobre ensino religioso nas escolas públicas é tida por
ilegal, permitiria a assunção de teses controversas com as quais não necessariamente
concordariam todos os cidadãos razoáveis de uma sociedade pluralista contemporânea.
Segundo tal crítica, o debate entre os defensores da razão pública e seus oposi-
tores seria apresentado, pelos primeiros, como uma luta entre os gregos e os bárbaros:
de um lado, os que tentam ser tolerantes e respeitosos; de outro, os que querem impor
ideais morais sectários.444 Uma derivação dessa crítica alega que a razão pública seria
um argumento trapaceado, já fixando, de antemão, o resultado da deliberação pública:
“A razão pública é uma doutrina elaborada e promovida por Rawls e outros liberais [...]
que quase sempre tem o efeito de fazer com que a posição liberal seja a vencedora em
controvérsias morais”.445 “A obscuridade [de seus limites] e a autoridade com que Rawls
e seguidores subscrevem-na fazem com que sirva de encantamento mágico para uso no
calor do debate — ou na tranquilidade da Academia — para avançar causas partidárias,
ao eliminar a discussão, anular o questionamento e estancar a mente inquisidora”.446
441
REIDY. Rawls’s Wide View of Public Reason: not Wide Enough. Res Publica, passim.
442
O termo liberalismo político, no contexto da discussão americana de filosofia política, relaciona-se a uma
proposta atenta à redistribuição de renda e à igualdade de oportunidades. É nela que se encaixa a filosofia
política de Rawls, cujos princípios de justiça — o princípio da igualdade e o princípio da diferença — podem
ser traduzidos, grosso modo, como uma vindicação da igualdade de oportunidades e da introdução de
restrições à igualdade apenas quando disso resultar benefício aos que estão no sopé da pirâmide social. Tais
princípios deram sustentação teórica, por exemplo, a propostas de ação afirmativa e de tributação progressiva.
Contra o liberalismo aparece o comunitarismo, linha de filosofia política cuja ênfase não está no indivíduo
nem no discurso dos direitos, mas na comunidade, nos deveres da pessoa para com a coletividade, e em
aspectos culturais. E há, ainda, o libertarianismo, antiestatal, contrário a políticas redistributivas públicas. As
três correntes são específicas à realidade americana. O sentido comum do que seja um liberal, no Brasil e na
Europa, está mais próximo ao de libertariano nos EUA. Numa analogia bastante crua, o liberal seria algo como
um social-democrata à francesa, e o libertariano, aquilo que, aqui e na Europa, convencionou-se chamar de
neoliberal.
443
“Quando alguém defende que o valor da autonomia deva ser respeitado, pode ser virtualmente impossível
para ele e para os outros afirmar se ele está se baseando numa doutrina abrangente específica ou no valor
compartilhado da autonomia em nossa cultura. Perspectivas abrangentes liberais não religiosas estão destinadas
a ‘sofrer menos’ por parte de um princípio de autocontenção do que tanto as visões religiosas quanto as não
religiosas não liberais” (GREENAWALT. On Public Reason. Chicago-Kent Law Review, p. 669).
444
“É incrível quão previsíveis e unificadas são as conclusões [dos defensores da razão pública] a respeito de
temas como o aborto, o suicídio assistido, a reforma das campanhas eleitorais e sua relação com a liberdade de
expressão” (WESTMORELAND. The Truth About Public Reason. Law and Philosophy, p. 287).
445
WOLFE; GEORGE. Natural Law and Liberal Public Reason. American Journal of Jurisprudence, p. 31.
446
BERKOWITZ. The Ambiguities of Rawls Influence. Perspective in Politics, p. 124.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
136 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Há muitas outras críticas possíveis. Pode-se alegar, por exemplo, que a razão
pública discrimina injustificadamente os cidadãos de fé, que é pouco democrática,447
ou que estimula a insinceridade no momento da deliberação pública.448
Crítica interessante, dirigida, em rigor, contra todo o projeto democrático-de-
liberativo, não apenas rawlsiano, é a formulada por Chantal Mouffe, filósofa política
belga. Analisemo-la rapidamente.
Mouffe, resgatando conceitos da Filosofia Política de Carl Schmitt, defende uma
“democracia radical” situada num “pluralismo agonístico”:449 uma concepção de de-
mocracia que não renega a ideia de conflito, mas a incorpora como essencial.
Oponentes, ainda que não sejam tidos por inimigos, são adversários, cuja existên-
cia deve ser reconhecida e tolerada (“inimigos” serão considerados apenas os que não
aceitem as regras do jogo democrático). O consenso diz respeito, apenas, às regras do
jogo democrático; o que escapa a ele é o conflito, a existência de posições diferenciadas
na vida social, a possibilidade de escolher entre alternativas reais. “Um processo de-
mocrático saudável exige um entrechoque vibrante de posições políticas e um conflito
aberto de interesses”.450 “Muita ênfase no consenso e a recusa ao confronto leva à apatia
e ao desprezo à participação política”.451
É interessante notar que a crítica de Mouffe, de base teórica, vai ao encontro da
pesquisa empírica de Diana Mutz sobre o desestímulo à participação política provocado
pela democracia deliberativa (ver acima).
Especificamente quanto às ideias de Rawls, Mouffe, em capítulo cujo título já
diz muito — “Rawls: Political Philosophy without Politics” —, argumenta que, apesar
das boas intenções, suas propostas representam um liberalismo político dissociado do
conflito (e da própria Política), que podem reforçar uma tendência, já bastante presente
nos dias de hoje, à transformação de problemas políticos em questões administrativas
e técnicas, “algo na linha do neoconservador Niklas Luhmann, que quer restringir o
campo das decisões democráticas ao remeter mais e mais áreas ao controle de experts
supostamente neutros”.452
Chantal Mouffe acredita que a teoria de Rawls deveria ser reformulada dentro
de um discurso que a articulasse com alguns temas da Filosofia Política clássica e com
a ideia de valorização da tradição cívica republicana.
Seria então possível combinar a defesa do pluralismo e da prioridade do justo, característicos
da democracia moderna, com uma revalorização do político, entendido como participação
coletiva numa esfera pública em que os interesses são confrontados, os conflitos, resolvidos,
as divisões, expostas, as confrontações, encenadas, e, dessa forma — como Maquiavel foi o
primeiro a reconhecer —, a liberdade, garantida.453
447
Para resumo dessas críticas, bem como a defesa da razão pública, v. Ronald C. Den Otter (Judicial Review in an
Age of Moral Pluralism, p. 215-219, 225-227).
448
Para uma apresentação da crítica da insinceridade e uma defesa com base numa adaptação da teoria rawlsiana,
cf. SCHWARTZMAN. The Sincerity of Public Reason. Journal of Political Philosophy.
449
Ver discussão do conceito em Chantal Mouffe (The Democratic Paradox, p. 98-105).
450
MOUFFE. The Return of the Political, p. 4. Citação na p. 6.
451
MOUFFE. The Democratic Paradox, p. 104.
452
MOUFFE. The Democratic Paradox, p. 48.
453
MOUFFE. The Democratic Paradox, p. 57.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
137
454
RAWLS. O liberalismo político, p. 262.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
138 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
votação, mas uma votação precedida da deliberação pública, o que, em sua opinião,
faria toda a diferença.
É ainda importante lembrar que o dever de respeito à razão pública aplica-se a
contextos delimitados: cortes constitucionais, votação, certos foros públicos. A razão
pública não diz respeito a todos os espaços da vida em sociedade, do contrário esta-
ríamos diante, aí sim, de uma exigência de hipercorreção moral. Os cidadãos podem
e devem continuar tendo e professando opiniões tiradas apenas e tão somente de
doutrinas abrangentes razoáveis. Nos jornais, articulistas podem defender pontos de
vista não universalizáveis, assim como advogados continuarão devendo defender os
interesses de clientes de modos não necessariamente universalizáveis — devem se uti-
lizar dos melhores argumentos aptos a produzirem um estado de persuasão racional
da autoridade aos quais eles se dirijam, e que não necessariamente são razões públicas.
Nada muda quanto a isso.
Coisa diferente são os juízes, e, em especial, os juízes constitucionais, respon-
sáveis pela fixação do conteúdo definitivo das disposições constitucionais. Esses, sim,
devem estar comprometidos, em grau máximo, com a razão pública. As autoridades
administrativas, que, se não interpretam diretamente a Constituição, decidem com base
nela muitas questões importantes, também estão submetidas, embora em menor grau,
à constrição da razão pública.
Assim, num exemplo plausível, ao analisar a vedação do consumo de produtos
fumígenos em certos locais, a ANVISA deve fazê-lo com base numa interpretação do
princípio constitucional da defesa e promoção da saúde pública capaz de produzir
uma mínima adesão de todos os interessados e uma mínima estabilidade social no
pós-decisão, e não em visões extremadas de discursos pró-saúde ou pró-livre inicia-
tiva. Nada disso é impossível, ainda que não seja propriamente fácil. Mas estas são as
exigências de uma democracia pluralista contemporânea.
(iii’) A razão pública seria genérica, anódina, incapaz de sobreviver ao entrechoque
com qualquer outro dever extraído da defesa de uma posição fundada exclusivamente
em razões não públicas. Mesmo rawlsianos convictos acabariam aceitando argumentar
apenas com razões não públicas em muitos dos casos aos quais ela seria aplicável. Ela
não seria forte o suficiente para promover, em tais hipóteses, a autocontenção.
Apesar de os dois exemplos que citamos para essa crítica serem interessantes (o
do Dr. X e o da pastora Lopez), ocorre que a importância dada a essa ou àquela posição
moral fundada em razões não públicas não pode ser pressuposta genericamente e, com
base nisso, recusar-se um argumento em prol da autocontenção.
Em outras palavras: nada garante que o Dr. X ou a pastora Lopez aceitem o uso
exclusivo de razões não públicas, ainda que isso seja o mais provável. A importância
que essa ou aquela pessoa dará à razão pública — se “dever cívico” significará uma
constrição mínima, quase desprezível, ou algo mais sério — não pode ser deduzida de
alguns exemplos.
E a questão essencial é: mesmo que o cidadão rawlsiano não consiga apresentar
razões públicas em favor de sua posição, mas, ainda assim, resolva defendê-la no espaço
público, isso só confirma que a razão pública é uma ideia reguladora. Seu efeito já foi
causado, e consistiu na própria hesitação quanto ao fornecimento apenas de razões
não públicas.
Para alguns, isso é só uma hesitação antes de levar a cabo a defesa do jeito inicial.
Para outros, isso pode significar a busca — e o eventual encontro — de razões públicas
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
139
de apoio. Ainda, para outros, as constrições da razão pública podem significar a não
defesa de uma posição que seja baseada apenas em razões não públicas.
Hesitação derivada da consideração a sério do argumento da razão pública,
modulação da intensidade ou do conteúdo dos argumentos iniciais ou busca de razões
públicas, autocontenção: todos esses três efeitos, do menos ao mais intenso, efetivamente
decorrem da razão pública e mostram sua utilidade.
Em suma: a razão pública não é genérica porque não é possível deduzir, de ante-
mão, a resposta pessoal dos agentes deliberativos às suas exigências de autocontenção.
(iv’) Então a razão pública é restritiva demais? No essencial, ela estaria a exigir
que encontremos razões públicas onde efetivamente não as há nem poderia haver?
Nem tanto. Há mais razões verdadeiramente públicas do que faz parecer a
crítica. Não se trata de exigir que os cidadãos se tornem filósofos-reis ou exemplares
particularmente ativos de um ideal de cidadania participativa — basta que se esforcem
para produzir, analisar e aceitar razões universalizáveis e respeitosas do pluralismo.
E, repita-se: caso seja impossível decidir a questão básica de justiça ou a inter-
pretação do elemento constitucional essencial oferecendo uma única razão pública
(simultânea ou posteriormente à apresentação das razões não públicas), a decisão, via
votação, já estará mais qualificada pela deliberação prévia.
Poder-se-ia dizer que, mesmo ali onde a razão pública não conseguiu ser dire-
tamente aplicável, ela conseguiu tendencialmente impor o dever de considerar todos
os participantes da comunidade discursiva como igualmente dignos de respeito e de
consideração.
(v’) A absoluta maioria dos defensores da razão pública são filósofos políticos ou
juristas que se encaixam na seara “liberal” da categorização americana. Por sua origem,
a razão pública é, sim, liberal.
Mas a razão pública, salvo alguns pressupostos fáticos, não assume posições
prévias no debate político. Como escreveu Ronald Otter, a razão pública fornece uma
gramática para lidar com a deliberação pública, a partir da qual diversos resultados
são possíveis. E, é claro, alguns casos fáceis terão resultados previsíveis a partir do uso
do filtro da razão pública. Numa discussão a respeito de se as mulheres devem ter di-
reito ao voto ou não, com base numa suposta incapacidade racional plena, a resposta
conforme a razão pública é óbvia.
Nos casos difíceis, a razão pública, desde que corretamente entendida e operada,
não vai oferecer respostas, mas compor uma gramática para a discussão.455 De qualquer
forma, os conceitos com base nos quais opera a razão pública — autonomia, dignidade,
respeito — são conceitos filosóficos em relação aos quais certamente há muita discussão,
mas são, por assim dizer, conceitos “terrenos”, racionais, em relação aos quais se pode
esperar que haja pelo menos algum início de discussão compreensível entre todas as
pessoas integrantes de uma sociedade contemporânea complexa. Ao contrário, argu-
mentar com base em conceitos como “destinação”, “plano de Deus”, “Direito Natural”,
“alienação de classe” ou “justificação moral da livre iniciativa” é pedir para que não
haja acordo sequer no início do debate.
A diferença entre o “carregamento ideológico” da razão pública e o “carregamento
ideológico” das razões não públicas é precisamente esse: por inevitável que seja, é algo
que se preocupa em favorecer o debate e integrar todos em bases racionais.
455
OTTER. Judicial Review in an Age of Moral Pluralism, p. 210-211.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
140 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
456
Ver BINENBOJM. A nova jurisdição constitucional brasileira: legitimidade democrática e instrumentos de
realização.
457
SCHWARTZMAN. The Completeness of Public Reason. Politics, Philosophy & Economics.
458
FINNIS. On ‘Public Reason’. Oxford Legal Studies Research Paper, p. 1-20.
459
SUNSTEIN. Designing Democracy: what Constitutions do, p. 49-66.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
141
uma contenção que se revelaria equivocada? O argumento pode ser expandido a limites
longínquos. Algumas teses ideológicas extremamente polêmicas podem ser, apenas,
a verdade mais cristalina; o Deus judaico-cristão pode de fato existir e a admissão do
casamento homossexual talvez seja causa de eterna danação.
O que fazer contra esses limites fático-cognitivos? Na verdade, não há muita
coisa a ser feita, senão buscar expandir nosso conhecimento e minimizá-los ao máximo,
sempre sabendo que todo conhecimento — incluindo o conhecimento que vai fornecer
as razões que serão reputadas como públicas ou não públicas — jamais vai deixar de ser
presa de um tempo e de um lugar. Deve-se continuar confiando na ciência majoritária,
“acreditada”, tendencialmente imparcial, exposta às críticas e às autocorreções do méto-
do científico. Entre as opções, é a que melhor cabe ao projeto democrático-deliberativo,
e, dentro dele, ao argumento da razão pública.
O afastamento de posições carregadamente ideológicas carreia, sim, o risco da
evitação de posições que, hoje tidas por ideológicas, amanhã serão tidas como padrão de
normalidade — mas é o preço que se paga à possibilidade da coexistência dos cidadãos
dentro de um pluralismo razoável feito no tempo presente.
De toda sorte, é um preço que vale pagar, até porque o que não falta são alega-
ções a respeito da existência de bases científicas em apoio a posições evidentemente
ideológicas: se aceitarmos o “comunismo científico” apenas porque ele se diz científico,
estaremos alienando o não menos “científico” “liberalismo científico”. E tais visões não
são científicas porque o conceito de ciência que lhes empresta sua “cientificidade” não é
usual tampouco majoritariamente aceito, mas sim, e sobretudo, porque estas são visões
intrinsecamente ideológicas. Em tese, pode haver algum grau de verdade científica no
comunismo ou no liberalismo científicos? Sim, é possível. Mas, como até hoje não sabe-
mos se há, melhor sacrificar tal possibilidade pela realidade da produção de consensos
estáveis e universalizáveis na interpretação de conteúdos constitucionais essenciais.
De mais fácil percepção são os limites psicológicos ao exercício da razão pública.460
Eles se expressam em duas predisposições psicológicas: a) tendemos a acreditar que
nossos melhores argumentos são sempre conformes à razão pública/estamos sempre
predispostos a achar que nossas melhores razões são universalizáveis, na medida em
que nosso padrão de aceitabilidade racional é sempre projetado a partir do nosso self;
b) tendemos a acreditar que as acomodações que nós fizemos (ou as que teremos que
fazer) em nosso argumento original são ou serão sempre maiores do que as da outra
pessoa, o que pode reduzir nossa disposição para modificar nossos argumentos até que
cheguem a uma posição mais próxima à de um ideal de razão pública.
Por essas duas predisposições, a razão pública poderia se tornar apenas mais
uma forma autoenganosa de afirmarmos a superioridade de nossas razões sobre as de
nossos oponentes. Há saída? Felizmente, há. Há de se incorporar e fortalecer um espírito
aberto, capaz de reconhecer o próprio erro e de mudar verdadeiramente de posição.461
460
Sem falar, é claro, numa possível tendência de confirmação entre os autores que defendem a razão pública —
mas isso é possível e comum a qualquer grupo de pessoas com pensamentos semelhantes.
461
“O sucesso da deliberação pública de acordo com um princípio de razão pública depende da habilidade dos
cidadãos em reconhecerem a possibilidade de que sua visão inicial de uma questão política fundamental tenha
estado equivocada ou incompleta”. “Porque muitos de nós estamos propensos a nos conceder o benefício da
dúvida ao ver nossas melhores razões como indubitavelmente públicas quando elas talvez não sejam assim,
pessoas razoáveis podem resistir a essa tendência assumindo que se lhes impõe o ônus da prova de demonstrar
que suas razões cumprem o standard da justificação pública quando pretenderem agir coativamente contra os
outros. Isso requer autorreflexão da parte delas, bem como uma boa vontade em aceitar a possibilidade de
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
142 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
que as razões que apoiam podem não ser tão adequadas quanto pareciam num primeiro momento” (OTTER.
Judicial Review in an Age of Moral Pluralism, p. 157, 148, respectivamente).
462
“A desgraça da ciência jurídica está nas incertezas terminológicas” (ASCARELLI, Tulio apud OLIVEIRA. Por
uma teoria dos princípios: o princípio constitucional da razoabilidade, p. 81).
463
Buscando a reconciliação entre pragmatismo e democracia (e não propriamente com a ideia de razão pública,
mas a noção é próxima), tem se falado em uma “democracia pragmática” como conceito que “não se priva do
diálogo com as análises empíricas”. O desenvolvimento de nova abordagem da democracia proveria alternativa
à dicotomia entre democracia deliberativa e representativa, propiciaria uma abordagem normativa e empírica
à democracia e fortaleceria o conceito de representação política. V. POGREBINSCHI. Democracia pragmática:
pressupostos de uma teoria normativa empiricamente orientada. Dados – Revista de Ciências Sociais, p. 677.
464
V. TRIFIRO. John Rawls’s Justice as Fairness: Anti-foundatinalism, Deliberative Democracy, and
Cosmopolitanism. Institute for International Integration Studies.
465
SILVEIRA. O papel da razão pública na teoria da justiça de Rawls. Filosofia Unisinos, p. 66.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
143
proposições que podem servir como base incontroversa para a ação pública — ideia que
obviamente está afinada com a ênfase pragmática no papel fundamental que desempe-
nham as afirmações prospectivas nos discursos de justificação. [...] Em vez de tratar a razão
pública como uma arena estável da qual podemos nos retirar num esforço para resolver
ou contornar nossos desacordos, devemos, sim, ver o processo de definição do conteúdo
da razão pública e o de resolver nossas diferenças substantivas como aspectos de uma
mesma conversação dinâmica. Essa concepção aberta da justificação política é, de novo,
consistente com os termos da narrativa pragmatista da experiência moderna, de acordo
com a qual estamos (ou deveríamos estar) envolvidos no projeto de desenvolver e aplicar
a inteligência experimental a todos os cidadãos, ainda que sejamos incapazes de dizer algo
muito definitivo a respeito de para onde esse projeto pode nos levar.466
Por outro lado, há quem veja bases fundacionais no liberalismo político de Rawls
e, consequentemente, em sua proposta de razão pública. Michael Sandel é um desses
autores;467 Robert Westmoreland, embora afirmando que o projeto da razão pública é
“decididamente prático”, acredita que ele não é pragmático, já que é “irredutivelmente
moral”.468
O construtivismo ético de origem kantiana que está na base da filosofia política
de Rawls seria capaz de negar o antifundacionalismo, e, assim, o pragmatismo: haveria
um modelo de homem, bem como certas afirmações fundacionais, por trás da razão
pública rawlsiana. Embora tanto o projeto racional-construtivista de Kant e, especial-
mente, de Rawls, quanto o projeto pragmatista jurídico estejam pretendendo reincluir
o discurso prático na metodologia do Direito,469 suas bases e pressuposições filosóficas
seriam irreconciliáveis.
A proposta de um “princípio” do pragmatismo jurídico para a interpretação do
Direito Constitucional Econômico seria algo que, na essência filosófica, mostrar-se-ia
incompatível com a concomitante propositura de um “princípio” da razão pública para
os mesmos fins. Ou o intérprete constitucional é um agente deliberativo autônomo
e racional, na linha kantiana, apto a operar com a razão pública, ou é o “homem em
construção”, antifundacionalista e experimental, capaz de se utilizar de um “princípio”
pragmatista. As duas coisas ao mesmo tempo, jamais.
Em nossa opinião, a resposta à potencial incompatibilidade está na expressão
“essência filosófica”. Pretendemos resolvê-la com base numa proposta de Cass Sunstein:
a dos “acordos [práticos] teorizados de modo incompleto” (incompletely theorized
agreements).470 Basta não pretender que tenha de haver uma compatibilidade teórica na essência
filosófica profunda das duas propostas.
No nível prático, da solução de problemas, por exemplo, por uma corte cons-
titucional, é perfeitamente possível resolver casos com base no adiantamento de
consequências contextuais prováveis, próximas, alegadas sob razoável base empírica,
e, ainda, não fundacionais (no que já começa a aparecer a proximidade com a razão
pública). Ainda, tal análise deve operar com base em razões públicas, universalizáveis,
466
MACGILVARY. Reconstructing Public Reason, p. 176-177.
467
SANDEL. Liberalism and the Limits of Justice, p. 3.
468
WESTMORELAND. The Truth About Public Reason. Law and Philosophy, p. 277.
469
SOUZA NETO. A interpretação constitucional contemporânea entre o Construtivismo e o Pragmatismo. In:
MAIA et al. Perspectivas atuais da filosofia do direito, p. 475-497.
470
Seria possível resolver o dilema por um apelo a um overlapping consensus entre os pontos em comum das
duas proposições teóricas. No entanto, como esse próprio conceito faz parte do ferramental teórico de Rawls,
preferimos apenas consigná-lo nesta nota de rodapé.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
144 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
471
SUNSTEIN. Incompletely Theorized Agreements in Constitutional Law. University of Chicago Public Law
Working.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
145
Em que pese essas diferentes incidências, a razão pública é uma só, ou melhor
dizendo, seu conteúdo básico é um só: é o de um dever de reciprocidade e o de uma
obrigação de levar a sério opiniões discordantes.
Antes de fecharmos o capítulo, uma consideração importante. Muitos podem
refutar o dever imposto pela razão pública informando que não se sentem obrigados a
produzir decisões ou trabalhos conforme a ela se se disserem transparentes. Em outras
palavras: diante de uma impossível exigência de que sejamos neutros, vamos, desde a
primeira linha, afirmar nossas filiações ideológicas, numa espécie de disclosure acadê-
mica, administrativa ou judicial. Uma vez que deixemos claro nossas origens, nossas
crenças — e talvez nossos patrocinadores —, tudo andará bem. É resposta simples,
talvez excessivamente simples, para uma questão complexa, o que é mau sinal. Dizia
Oscar Wilde que a verdade raramente é pura, e nunca é simples.472
Só a transparência não basta. É preciso ser conforme a razão pública, sob pena
de comprometimento da legitimidade do trabalho acadêmico, da decisão judicial, do
exercício do poder de polícia, da ação de fomento.
A proposta de “transparência” em artigos científicos e em decisões judiciais, e
não de atuação conforme a razão pública, pressupõe um realismo jurídico dos mais
cínicos, que pode até ser o cotidiano da advocacia, mas jamais deveria ser adotado
como proposição normativa (ou seja, por mais que o Direito seja isso, ele jamais deveria
ser tido como devendo ser isso): o Direito é um jogo de poder; escolha seus argumentos
entre uma infinidade de possibilidades; lute para persuadir a autoridade julgadora.
Escrever um artigo apenas para fornecer um argumento pró-contribuinte (ou
pró-Fisco ou pró-acusação penal ou pró-intervenção do Estado na economia ou “anti-”
qualquer dessas coisas) é advocacia de tese, não é ciência do Direito. O que não impede
que seja feita nem lhe retira a importância. Mas o problema é, sempre, de legitimidade
e de lugar do argumento. O juiz, o professor em sala de aula, o administrador público
ao interpretar a Constituição devem estar preocupados em operar com base em razões
públicas.473
Ninguém vai virar um homem sem ideologia ou sem crenças por isso; a questão
é apenas a de se ter a coragem de formular a pergunta — “será que as minhas melhores
e mais caras razões são razões que respeitam razões contrárias” — e de se ter a hones-
tidade e a capacidade de se conviver com a eventual resposta — “não, elas não são”.
472
WILDE. The Importance of Being Earnest, p. 126.
473
Cf. MENDONÇA. Brazil’s Case Against Private-Sponsored Events for Judges: a Not-Yet-Perfect Attempt at
Fighting Institutional Corruption. Edmond J. Safra Working.
SEGUNDA PARTE
APLICAÇÕES
CAPÍTULO 1
O debate terminológico a respeito das formas de intervenção do Estado na economia é extenso. Eros Roberto
474
Grau, baseado em Gerson Augusto da Silva, fala, para os monopólios públicos e as empresas estatais, em
intervenção no domínio econômico (e não sobre o domínio econômico, termo reservado ao que chama de
intervenção por indução [fomento] e por direção [atuações estatais mais diretas e incisivas sobre a economia, como o
tabelamento de preço]). Dentro da espécie intervenção no domínio econômico, Eros Grau enxerga duas espécies:
a intervenção por absorção e a intervenção por participação. A intervenção por absorção ocorre quando o Estado
não permite o exercício da atividade pela iniciativa privada — é a hipótese da monopolização da atividade. Já a
intervenção por participação é circunstância em que as empresas públicas e sociedades de economia mista atuam
em concorrência com as empresas privadas não integrantes da Administração (v. GRAU. A Ordem Econômica
na Constituição de 1988, p. 93). Já Geraldo de Camargo Vidigal, apud Elival da Silva Ramos, prefere participação
do Estado no domínio econômico para englobar as atividades monopolizadas, a exploração concorrencial e o
desempenho de serviços públicos de natureza econômica, e ação do Estado no domínio econômico para se referir
à direção econômica geral (VIDIGAL. Teoria geral do direito econômico, p. 93-100). Optamos, ao longo do livro,
pela denominação mais tradicional: intervenção monopolística para os monopólios, e intervenção concorrencial
para aquela operada por intermédio das empresas estatais, em regime de concorrência com as demais empresas
privadas que não façam parte da Administração Pública. Tal denominação aparece, por exemplo, em Diogo de
Figueiredo Moreira Neto (Curso de direito administrativo, p. 475).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
150 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
475
No mesmo sentido, Paulo Ricardo Schier (Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
151
476
Para se ter ideia das polêmicas que cercam o assunto, basta dizer que a primeira delas diz respeito à própria
denominação “empresas estatais” ou, alternativamente, “empresas governamentais”. Há quem rejeite a
expressão e considere-a “categoria estranha à dogmática jurídica”, “expressão com pouca ou quase nenhuma
tradição na doutrina e jurisprudência” (PENTEADO. As sociedades de economia mista e as empresas estatais
perante a Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo, p. 34). Outros acreditam que a referência a
“estatais” refira-se, também, às entidades apenas controladas pelo Poder Público (controle acionário), sem
prévia autorização legal específica, e não apenas às empresas públicas e às sociedades de economia mista (assim,
verbi gratia, DI PIETRO. Direito administrativo, p. 406 e GRAU. Lucratividade e função social nas empresas sob
controle do Estado. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 54-55). A maioria da doutrina,
contudo, entende que “empresas estatais” seja designativo que serve para nomear, de modo indistinto, empresas
públicas e sociedades de economia mista (BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 192). É a
nossa opção. “Estatais” e “empresas estatais” referem-se, tão somente, neste livro, às empresas públicas e às
sociedades de economia mista. Todas as demais são “empresas controladas pelo Estado”. Não adotamos o
termo “empresas governamentais” porque Estado, fenômeno jurídico-administrativo, não se confunde com
Governo, fenômeno político. Ainda no plano terminológico, há outra questão: a semelhança ou distinção entre
os termos “empresas estatais” e “empresas paraestatais”. Alguns autores, e, mais importante, algumas leis,
utilizavam as expressões como sinônimos parciais. Bom exemplo é a Lei nº 8.666/93, que, no art. 17, inciso I,
ao tratar da alienação de imóveis públicos, menciona as entidades paraestatais e, com todas as letras, no art.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
152 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
84, §1º, define entidade paraestatal como, “além das fundações, empresas públicas e sociedades de economia
mista, as demais entidades sob controle, direto ou indireto, do Poder Público”. A confusão está formada: o que
é uma paraestatal? Uma estatal — i.e., uma empresa pública e uma sociedade de economia mista —, e, além
delas, uma fundação, e mais as sociedades empresárias controladas pelo Estado? Em que pese a letra da lei,
não é a melhor inteligência do termo. Atualmente, consolidou-se o entendimento de que as paraestatais são
entidades que se encontram formal e materialmente fora da Administração Pública (não são, portanto, empresas
públicas nem sociedades de economia mista), ainda que recebam verba pública. São as organizações sociais,
as organizações da sociedade civil de interesse público e os serviços sociais autônomos, que, juntos, formam o
chamado Terceiro Setor (FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 200-201). Conclusão: para as finalidades
deste livro, convencionamos que 1. “Estatais” ou “empresas estatais” (mas nunca “empresas governamentais”)
designam empresas públicas e sociedades de economia mista; 2. “Empresas controladas pelo Estado” são as
empresas controladas pelo Poder Público que não se submeteram ao processo formal de criação das estatais;
e 3. “Paraestatais” são as entidades que compõem o Terceiro Setor (“paraestatais”, para o Anteprojeto de Lei
destinado a substituir o Decreto-Lei nº 200/67, é designativo das corporações de fiscalização profissional e das
entidades do Sistema S [ver art. 68, I e II, do Anteprojeto]). A Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016) não as trata
como “estatais”, e a palavra não aparece em seu texto. No entanto, seu regulamento — o Decreto nº 8.945/2016 —
define a expressão. Define “empresa estatal” como a entidade dotada de personalidade jurídica de direito
privado, cuja maioria do capital votante pertença, direta ou indiretamente, à União. São estatais, portanto, as
empresas públicas, as sociedades de economia mista, e suas respectivas subsidiárias (no caso, da União, pois a
lei está se referindo, nesse ponto, à abrangência federal). Nem a Lei das Estatais nem seu regulamento usam o
termo “paraestatal” ou “empresa governamental”.
477
MOREIRA NETO. Monopólios estatais: sobrevivência anacrônica.
478
TÁCITO. O retorno do pêndulo: serviço público e empresa privada. O exemplo brasileiro. In: TÁCITO. Temas
de direito público: estudos e pareceres, p. 721-733. Antes dele, Laubadère, citado por Cotrim Neto, falando da
sociedade de economia mista, dizia que a história de seu emprego é uma alternação sistemática de preferência
e de descrédito (d’engouement et de discrédit) (COTRIM NETO. Teoria da empresa pública de sentido estrito.
Revista de Direito Administrativo, p. 24).
479
É possível atualizar a metáfora de Caio Tácito para os tempos hipercomplexos do presente. Egon Bockman Moreira
compara a intervenção do Estado na economia, nos dias de hoje — ele não está falando apenas de estatais —,
ao Poema Sinfônico, do compositor húngaro György Ligeti. Nessa obra de música clássica contemporânea, Ligeti
dispara, num mesmo instante, cem metrônomos. Com o tempo, eles vão perdendo energia e acabam parando,
mas cada um em seu tempo. As intensidades da intervenção do Estado na economia são múltiplas e funcionam
ao mesmo tempo (com a diferença de que, ao contrário do metrônomo, elas não param por conta própria). Cf.
MOREIRA, Egon Bockman. Passado, presente e futuro da regulação econômica no Brasil. In: Revista Brasileira de
Direito Público da Economia, a. 11, n. 44. out./dez. 2013.
480
SCHIRATO. Novas anotações sobre as empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 209.
481
Pode-se pensar que a relação seja biunívoca: tanto as novas formas de se perceber o que deve ser assumido
pelo Estado como serviço público (ou desempenhado pelo Poder Público como atividade privada de relevante
interesse público ou de segurança nacional) influenciam as funções e finalidades das empresas estatais, quanto
a própria assunção de tais atividades, em especial os serviços públicos, por tais empresas estatais, acaba
modificando a noção de serviço público. Para não ir muito longe, é de se ver que a primeira das muitas crises da
noção de serviço público relacionava-se à debilitação progressiva do elemento orgânico ou subjetivo do serviço
público (serviço público é aquilo que é desempenhado pelo Estado ou por pessoa jurídica de direito público).
Quando, mais do que delegar a execução dos serviços públicos a entes privados por intermédio de contratos
de concessão, o Estado passa a constituir empresas privadas legalmente destinadas à prestação de serviços
públicos, o elemento subjetivo deixa de fazer o sentido de antes. A esse respeito, v. GROTTI. O serviço público e
a Constituição brasileira de 1988, p. 53-54.
482
Quando falamos em “essencialmente” queremos destacar que as empresas estatais, ao desempenhar sua
atividade precípua — intervir concorrencialmente na economia e/ou prestar serviços públicos —, também
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
153
geram efeitos que se podem reconduzir a outras funções estatais, em especial o planejamento e a disciplina.
Nesse sentido, Calixto Salomão Filho, em nota de atualização a livro de Fábio Konder Comparato: “A sociedade
de economia mista, desde que tenha poder suficiente no mercado, torna-se órgão planejador e direcionador do
desenvolvimento setorial. É particularmente importante em mercados desregulamentados, em que a empresa
estatal ou de economia mista exerce verdadeira função de planejamento e regulação setorial ao mesmo tempo
que, sentindo a pressão da concorrência das empresas privadas, tem forte estímulo para a busca de eficiência
econômica” (COMPARATO; SALOMÃO FILHO. O poder de controle na sociedade anônima, p. 137). Falando na
endorregulação, que seria a regulação econômica operada por intermédio da atuação das estatais, v. MOREIRA,
Egon Bockman. Passado, presente e futuro da regulação econômica no Brasil. In: Revista Brasileira de Direito
Público da Economia, a. 11, n. 44. out./dez. 2013.
483
“Na verdade, a empresa pública (lato sensu) não é fruto de uma idealização racional e jurídica da doutrina. Ela
é produto das necessidades políticas e econômicas, e ainda, de outro lado, resultado, pura e simplesmente,
da prática administrativa (em grande parte empírica) relativa ao Estado contemporâneo” (MUKAI. O direito
administrativo e os regimes jurídicos das empresas estatais, p. 155). É por isso, diga-se logo, que as estatais brasileiras
nunca se amoldaram a encaixes doutrinários, ou, quiçá, legais (no que é um desafio para a Lei das Estatais): elas
têm a cara da circunstância econômica que as gerou, e, depois, daquelas que as mantêm vivas.
484
Marie-Louise Pelletier indica três ordens de razões para a privatização: razões financeiras, administrativas e
políticas. Diversos objetivos estão englobados nas razões financeiras: o saneamento das finanças do Estado,
a redução da utilização dos recursos estatais, o alívio das contas públicas. Só em 1995, o montante total de
privatizações no mundo injetou 67,5 milhões de dólares nas economias dos Estados. Mas a autora menciona
as dificuldades de avaliação do valor das estatais, e a circunstância de, em regra, os compradores privados
recusarem-se a assumir dívidas ou débitos trabalhistas como fatores que neutralizariam a desoneração
das contas públicas via privatização. Quanto às razões administrativas, elas também podem ser de diversas
ordens: desejo de atrair investimentos estrangeiros, interesse em conceder liberdade de ação às empresas para
adaptá-las à concorrência. Marie-Louise ainda menciona uma suposta maior eficiência da empresa privada
(em comparação com as estatais) como razão usualmente evocada para justificar a privatização — dado que,
para ela, é equivocado, pois já estaria provado que, “em um ambiente competitivo, as empresas públicas e
privadas possuem rentabilidade comparável”. E há, ainda, razões políticas: um governo liberal, de direita, é
mais inclinado a privatizar do que um de esquerda. Razões ideológicas subjazem às razões políticas, mas seria
perigoso transformar a própria privatização numa ideologia (PELLETIER. L’entreprise Publique de Service Public:
Déclin et Mutation, p. 179-180).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
154 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
pública operada no Brasil dos anos anteriores. Tal movimento ganhou momento nos anos
seguintes, com a revelação de uma série de atos lesivos ao interesse público praticados
a partir de estatais. Em 2017, cogitava-se da privatização de uma série de estatais, tais
como diversas subsidiárias da Eletrobras e a sociedade de economia mista responsável
pelo saneamento no estado do Rio de Janeiro (a CEDAE).
Mas falemos especificamente das empresas públicas e das sociedades de economia
mista. Ao fazê-lo, estamos tratando, também, das intervenções monopolística e concor-
rencial, pois é para exercer o monopólio ou para competir no mercado que foram feitas.
Começamos falando de sua (i) origem histórica e, logo após, analisamos sua (ii) razão
de ser, isto é, os propósitos a que se destinam. Prosseguimos com sua (iii) conceituação e
a análise de como se dá sua (iv) constituição. Estudamos, ainda, as (v) formas societárias
que podem assumir no Direito brasileiro. Depois, é o momento de estudarmos seu (vi)
objeto e o (vii) regime jurídico a que se submetem. Adentramos então no debate sobre
a aplicabilidade da regra da (viii) licitação a suas compras e serviços e nas discussões
sobre seu (ix) regime de pessoal. Uma breve referência às formas de (x) controle de suas
atividades e dispêndios, outra acerca da incidência de alguns (xi) princípios constitu-
cionais à lógica operacional das estatais, e a análise conclui-se com a menção às formas
de sua (xii) extinção.
485
SANTA MARIA. Sociedades de economia mista e empresas públicas, p. 40. Há quem veja a origem das sociedades
de economia mista no Banco de São Jorge, instituição italiana do ano de 1406 (ou 1407). A maioria dos autores,
contudo, acredita que a holandesa Companhia das Índias Orientais, surgida em 1602, representou a primeira
manifestação mais estruturada do fenômeno jurídico-político. Nesse último sentido, Rubens Requião (Curso de
direito comercial, v. 2, p. 4).
486
ZWAHLEN, Henri. Des sociétés commerciales avec participation de l’Etat. Th. Droit Lausanne, 1935 apud SANTA
MARIA. Sociedades de economia mista e empresas públicas, p. 40.
487
O ressurgimento das sociedades de economia mista em solo alemão ocorreu no primeiro pós-guerra, não
por deficiência de capital, mas por interesse estratégico-militar. Cidades da Renânia se uniam a particulares
para a constituição de empresas de produção e distribuição de energia elétrica. Outras cidades constituíram
diferentes sociedades de economia mista, sempre com o propósito de desenvolver atividades-chave e de ganhar
espaço no mercado internacional. “Na Alemanha, pode-se dizer, nasceram as novas sociedades de economia
mista, baseadas todas, ou na necessidade de defender o interesse coletivo, ou na de preservar as fronteiras do
Reich contra os possíveis ataques das nações vizinhas” (VALVERDE. Sociedades anônimas ou companhias
de economia mista. Revista de Direito Administrativo, p. 32). Ver, ainda, Eros Roberto Grau (Considerações a
propósito das sociedades de economia mista. Revista de Direito Público, p. 113-132, especialmente p. 123-126).
488
BORBA. Temas de direito comercial, p. 353-355.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
155
Dos EUA, o modelo da empresa pública — que, à época, era tido como de excepcional
eficiência, algo a ser imitado — foi exportado para a França, a Alemanha, a Turquia.489 490
De lá, correu mundo, espalhando-se por toda a Europa e pela América Latina.
No Brasil, a primeira sociedade de economia mista foi o Banco do Brasil, criado
em 12 de outubro de 1808 por um alvará do príncipe regente Dom João de Bragança.
Nos contornos atuais, a sociedade de economia mista moderna surge com o Instituto de
Resseguros do Brasil, em 1939, a Companhia Siderúrgica Nacional, em 1941, e a Vale do
Rio Doce, em 1942. Para operar monopólios públicos, foram constituídas a Petrobras,
em 1953, e a Eletrobras, em 1961.
Quanto à primeira empresa pública brasileira, há quem diga que teria sido a
Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), cuja criação foi autorizada pela
Lei Federal nº 2.874, de 15 de setembro de 1956, com o propósito de operar a construção
de Brasília.491 Outros falam na Embratur — Empresa Brasileira de Turismo —, hoje au-
tarquia federal vinculada ao Ministério do Turismo, criada em 18 de novembro de 1966.
Seja uma ou outra, a verdade é que várias empresas públicas adquiriram, desde
então, proeminência no panorama econômico e social do país. São exemplos disso a
Caixa Econômica Federal, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos e o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES (criado originalmente
como autarquia).492
As listas e os apanhados históricos já são extensos. O que importa saber é que
houve grande desenvolvimento da atuação empresarial do Estado após as duas guer-
ras mundiais, e que a forma histórica mais antiga é a sociedade de economia mista. A
empresa pública, mais recente, é, por características próprias, mais “interventiva” do
que a economia mista.
1.2.2 Para que são criadas estatais? As duas finalidades para a criação
de estatais. As duas (ou três) espécies de estatais. A ênfase na
atividade da empresa
A razão de ser das estatais — aquilo para o que foram criadas — é simples. Há
duas finalidades. A primeira é a mais imediata: elas surgiram para operar a intervenção
direta do Estado na economia, seja a intervenção concorrencial — a estatal funciona em
conjunto com as empresas privadas não estatais e concorre com elas —, seja a intervenção
monopolística — a estatal opera, com exclusividade, determinada atividade econômica
que, por determinação constitucional (ou legal, como defende este livro), só pode ser
desempenhada pelo Poder Público.
A segunda finalidade, que, na prática, muitas vezes acaba sobressaindo, é a de
escapar das amarras do formalismo que, para o bem e para o mal, incide sobre os entes e
489
SANTA MARIA. Sociedades de economia mista e empresas públicas, p. 153-154.
490
Sobre a experiência das empresas públicas na Turquia, cf. HANSON. Public Enterprise & Economic Development,
especialmente p. 116-128.
491
GILSON. A administração indireta, seu controle financeiro e os tribunais de contas. Revista do Tribunal de
Contas do Distrito Federal, p. 9; MUNIZ. A empresa pública no direito brasileiro, p. 11 (embora defendendo que, tal
como a entendemos hoje, a primeira empresa pública brasileira teria sido a Embratel, ver p. 12). Analisando
a natureza jurídica da Novacap, v. COTRIM NETO. Teoria da empresa pública de sentido estrito. Revista de
Direito Administrativo, p. 33-37.
492
Desenvolver o histórico brasileiro da criação de sociedades de economia mista e de empresas públicas em Pedro
Paulo de Almeida Dutra (Controle de empresas estatais: uma proposta de mudança, p. 31-35).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
156 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
493
MARQUES NETO. As contratações estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO; SOUTO.
Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 577-578.
494
Por exemplo, BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 186-192.
495
Tentativa de salvar a letra da lei poderia investir na leitura de “exercer a atividade econômica” em sentido
amplo, isto é, como gênero de duas espécies: atividade econômica em sentido estrito, e serviços públicos, tal
como o faz Eros Roberto Grau. Entendido assim, pelo menos dessa crítica o Decreto-Lei nº 200/67 estaria livre.
496
Ressaltamos que, hoje, já é admissível — e até legalmente estimulada — a concorrência entre prestadoras de
serviços públicos. V. art. 16 da Lei Federal nº 8.987/95 (“a outorga de concessão ou permissão não terá caráter
de exclusividade, salvo no caso de inviabilidade técnica ou econômica justificada no ato a que se refere o art. 5º
desta lei”). Ainda, ARAGÃO. Direito dos serviços públicos, p. 407-497, cap. IX - Serviços públicos e concorrência.
497
“O itinerário destes entes, posteriormente designados genericamente como empresas estatais, demonstra,
contudo, que a tal ‘fuga para o direito privado’ deveu-se mais à busca de maior eficiência (a libertação dos
‘grilhões do regime de direito público’) do que à necessidade de maior adequação do regime jurídico às
finalidades da atuação estatal. Daí a surgirem desvios e distorções (dentre as quais a prática de um certo
empreguismo na esteira de maior liberdade de contratação de pessoal foi exemplo veemente) foi um passo”
(MARQUES NETO. As contratações estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO; SOUTO.
Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 578).
498
Atualmente, está superada a indicação doutrinária de que as sociedades de economia mista deveriam ser
constituídas preferencialmente para a intervenção direta concorrencial, e as empresas públicas, para a prestação
de serviços públicos. Na prática, o administrador público, secundado pela lei, pode escolher tanto uma quanto
outra para desempenhar quaisquer dos misteres. Para a antiga lição, consultar Alfredo de Almeida Paiva (As
sociedades de economia mista e as empresas públicas como instrumentos jurídicos a serviço do Estado. Revista
de Direito Administrativo, p. 319). Mencionando que “fica a critério do ente criador a forma de que se revestirá a
criatura, uma vez que inexistem regras a respeito”. Cf. MUNIZ. Caminha. A empresa pública no direito brasileiro,
p. 24-25.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
157
499
SCHIRATO. Novas anotações sobre as empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 221 et seq. No mesmo
sentido, pelo menos quanto à existência de terceira espécie de estatal, Marçal Justen Filho: “Rigorosamente, seria
possível (e necessário) reconhecer uma terceira espécie de entidade. Seria aquela composta por sujeitos cuja
função consiste em prestar apoio à Administração Pública. Nesse caso, a entidade não atua no mercado nem
presta serviços fora do âmbito estatal, mas dá suporte a atividades administrativas. Nessa categoria poderiam
ser incluídas as entidades encarregadas de processamento de dados, impressão e planejamento e assim por
diante” (O regime jurídico das empresas estatais e a distinção entre ‘serviço público’ e ‘atividade econômica’.
Revista de Direito do Estado, p. 124).
500
Em rigor, é inteiramente possível — aliás, é o mais comum — a defesa da existência de uma terceira espécie
de finalidade de atuação das empresas estatais, e nada se postular a respeito da existência ou não de poder de
polícia para as estatais em geral.
501
Aludindo a que a classificação entre estatais que atuam na intervenção econômica em sentido estrito, de um
lado, e as que prestam serviço público, de outro, toma por base tipos ideais (na terminologia weberiana), e que
dificilmente encontraremos empresa que desempenhe exclusivamente uma dessas duas atividades, v. GRAU.
Lucratividade e função social nas empresas sob controle do Estado. Revista de Direito Mercantil, Industrial,
Econômico e Financeiro, p. 47.
502
JUSTEN FILHO. O regime jurídico das empresas estatais e a distinção entre ‘serviço público’ e ‘atividade
econômica’. Revista de Direito do Estado, p. 135. A Lei das Estatais, em boa hora, não adota a bipartição, isto é, não
trata de duas espécies de estatais, mas, apenas, das estatais tout court.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
158 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
“recaptura” das estatais pelo Direito Público, com a exigência de licitações e contrata-
ção de agentes por meios idênticos aos das entidades e órgãos públicos.503 As estatais
passaram a ficar com o pior dos dois mundos: sem as “vantagens” do regime público —
o que poderia impactar em sua capacidade de concorrer com as empresas privadas —,
mas com todas as restrições. A Emenda à Constituição nº 19/98, na parte que nos inte-
ressa, modificou a redação dos artigos 22, XXVII, e 173, §1º, e fez com que previssem
um regime licitatório próprio, a ser editado numa lei que, depois de muitos anos, veio
à lume a Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, regulamentada pelo Decreto nº 8.945,
de 27 de dezembro de 2016. A nova lei e seu regulamento ainda operam segundo uma
lógica de recaptura pelo Direito Público, se bem que com espaços de flexibilidade.
Então, os motivos para se criar uma empresa estatal são dois: intervir diretamente
na economia e evitar o formalismo do regime público; cada vez menos o primeiro, cada
vez mais, correta ou incorretamente, o segundo. Pelo segundo motivo é que existem
estatais prestadoras de serviços públicos — o que (ao menos imediatamente) não pre-
vê o Decreto-Lei Federal nº 200/67 —, e, também, segundo alguns, estatais capazes (e
juridicamente legitimadas) de desempenhar atividades administrativas e de exercer o
poder de polícia.
Como é fácil prever, a circunstância de que empresas privadas, mesmo integrando
a Administração, desempenhem atividades intrinsecamente “públicas” vai gerar con-
sequências na forma de ainda mais exceções ao regime privado de sua personalidade
jurídica.
De qualquer forma, nem sempre personalidade privada é garantia, seja de pouco
formalismo, seja da possibilidade de intervenção concorrencial isonômica: muitos
doutrinadores e instâncias de controle, alegando diversos motivos, pretendem impor
diversas restrições de Direito Público às estatais.
1.2.3 Conceituação de estatais: a definição do Decreto-Lei nº 200 e as críticas a ela
lançadas. A definição da Lei das Estatais. Uma conceituação pragmatista de empresa
pública e de sociedade de economia mista
Por tudo o que vimos, fica mais fácil avançar numa conceituação de sociedade de
economia mista e de empresa pública. O Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967,
não é fonte confiável. Embora inconfiável, é fundante. Trata-se de referência legislativa
sobre o que são e como se caracterizam as estatais.
As definições legais são as seguintes:
503
MARQUES NETO. As contratações estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO; SOUTO.
Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 579.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
159
sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou
a entidade da Administração indireta.504 505
504
A redação transcrita no corpo do texto principal é a do Decreto-Lei nº 200/67 após a alteração promovida pelo
Decreto-Lei nº 900, de 29 de setembro de 1969. Na redação original, os trechos onde hoje se lê “para exploração
de atividade econômica” falavam em “para desempenhar atividades de natureza empresarial” (na empresa
pública) e “para o exercício de atividade de natureza mercantil” (na sociedade de economia mista).
505
O art. 77 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro de 1989, em seu parágrafo segundo, adotou as seguintes
definições: “II - empresa pública – a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado com
patrimônio próprio e capital público majoritariamente do Estado, criada por lei para a exploração de atividade
econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência administrativa,
podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito; III - sociedade de economia mista – a
entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, criada por lei para a exploração de atividade
econômica, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria ao
Estado ou a entidade da administração indireta”. Já a Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, em seu art.
144, parágrafo primeiro, refere-se a tais entidades da seguinte forma: “As empresas públicas e sociedades de
economia mista, criadas para a prestação de serviços públicos ou como instrumentos de atuação no domínio
econômico, estão sujeitas às normas de licitação e contratação de pessoal definidas na Constituição da República
e nesta Lei Orgânica”.
506
Interessa acrescentar: aceita-se hoje em dia a constituição de estatais por Estados e Municípios (v. RESP nº 642.324-
SC, DJU, p. 225, 26 out. 2006: “Inexiste óbice a que Estado-membro da Federação autorize, por intermédio de
Lei Estadual, a criação de sociedade de economia mista estadual, uma vez que o inciso XIX, do art. 37 da
Constituição Federal não faz qualquer ressalva à norma geral contida no caput do mesmo artigo, que se refere
expressamente à Administração Pública direta e indireta de quaisquer dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios”). Nem sempre foi assim. Quando vigia a Constituição de 1967/1969,
muitos negavam a possibilidade, alegando que, como a competência para legislar sobre Direito Comercial era
(e é) da União, e como a criação de tais entidades acabaria gerando exceções à legislação comercial em vigor,
a possibilidade inexistiria para Estados e Municípios. Nesse sentido, v. GRAU. Considerações a propósito das
sociedades de economia mista. Revista de Direito Público, p. 113-132. Outra linha de argumentação dizia que,
como Estados e Municípios não possuiriam capacidade para intervir concorrencial ou monopolisticamente na
economia, não poderiam constituir as entidades que se prestam a esse tipo de intervenção, ou, pelo menos, só
as poderiam constituir como prestadoras de serviços públicos (cf. MEDAUAR. Direito administrativo moderno, p.
88). Para alentada digressão, colacionando a posição de diversos autores da época, cf. FIGUEIREDO. Empresas
públicas e sociedades de economia mista, p. 69-80. Atualmente, a aceitação é ampla na doutrina e na prática, desde
que, evidentemente, Estados e Municípios não se prestem a legislar sobre Direito Empresarial. V. RIBEIRO.
Sociedade de economia mista & empresa privada: estrutura e função, p. 109 e ARAUJO. Administração indireta
brasileira, p. 77-78 (porém registrando, com acerto, que a intervenção direta para fins de segurança nacional,
considerando a competência legislativa e administrativa da matéria, ainda continua nas mãos da União). A
doutrina e a prática estrangeiras aceitam a empresa pública estadual ou municipal (na França, há as “enterprises
publiques locales”; na Itália, os “entes públicos econômicos” criados pelos entes públicos territoriais; o Direito
espanhol é exceção). Em Portugal, a figura da empresa pública municipal e intermunicipal foi regulamentada
pela Lei nº 58/98. Sobre este último ponto, v. AMORIM. As empresas públicas no direito português: em especial, as
empresas municipais, passim.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
160 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Há crítica que ataca a expressão “criada por lei” das definições. Tais entidades,
como, aliás, todas as entidades privadas, não são criadas diretamente por lei; sua criação
dá-se a partir do registro público de seus atos constitutivos.507
Outra crítica refere-se ao fato de essas empresas não terem por finalidade ape-
nas a exploração de atividade econômica, pois muitas foram criadas para a prestação
de serviços públicos.508 509 Tal crítica também vale diante da definição de sociedade de
economia mista, que, além disso, não incorpora sua característica mais saliente, a saber,
a associação entre capitais públicos e privados.510
Algumas dessas críticas foram superadas pelo tratamento do tema na Lei das
Estatais. Às definições, e, depois, à análise das críticas.
Empresa pública, em conformidade com o art. 3º da Lei nº 13.303/2016, é a enti-
dade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com criação autorizada por
lei e com patrimônio próprio, cujo capital social é integralmente detido pela União,
pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios.
Já a sociedade de economia mista, de acordo com o art. 4º, caput, é a entidade
dotada de personalidade jurídica de direito privado, com criação autorizada por lei,
sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua
maioria à União, aos Estados, aos Municípios ou a entidade da Administração Indireta.
Veja-se que a Lei das Estatais não prevê que o capital social, ou as ações com di-
reito a voto, estejam apenas nas mãos da União. Ela se refere expressamente, também,
aos entes subnacionais. Também não se limita à Administração Direta: a titularidade do
capital, ou das ações, pode estar com as entidades da Administração Pública Indireta.
Outra precisão técnica da lei: as estatais têm sua criação autorizada por lei. E a indicação
da finalidade destas entidades, que está no art. 1º da Lei nº 13.303/2016, é bem abran-
gente (fala em atividades econômicas, monopólio e serviços públicos).511
Desse modo, boa parte das críticas lançadas às definições das estatais do Decreto-
Lei nº 200/67 foram solucionadas pela Lei das Estatais. No entanto, o Decreto-Lei nº
200/67 não foi revogado, no todo ou em parte, pela Lei das Estatais. As críticas ainda
subsistem, mas em nota quase histórica. Pelo critério da especialidade, e pela cronologia,
507
PINTO JUNIOR. A estrutura da Administração Pública indireta e o relacionamento do Estado com a companhia
controlada. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, p. 50.
508
Ainda outra crítica, derivada da abrangência material das possibilidades de atuação das empresas públicas,
argumenta que, à luz da redação do art. 173 da Constituição da República de 1988 — que só fala em intervenção
direta nos casos de relevante interesse coletivo ou de segurança nacional —, não seria mais possível a criação
de empresas públicas “por força de contingência ou de conveniência administrativa”. A Constituição haveria
restringido as possibilidades de criação de empresas públicas. Nesse sentido, v. Odete Medauar (Direito
administrativo moderno, p. 88). Por outro lado, e aqui tentando salvar a redação do Decreto-Lei, a verdade é que,
como se trata de conceitos jurídicos indeterminados, é plausível a interpretação de “por força de contingência”
como contingência apta a realizar interesse coletivo ou causada por imperativo de segurança nacional. Talvez a
única parte do Decreto-Lei nº 200/69 que não haja sido recepcionada pela Constituição Federal seja o trecho que
fala em “conveniência administrativa”, porque se pode argumentar convincentemente que há, nele, a ideia de
“mero interesse público secundário”.
509
A referência às empresas públicas e às sociedades de economia mista da Lei Orgânica do Município do Rio de
Janeiro (v. nota de rodapé nº 506) não padece desse mal, pois menciona expressamente que as empresas estatais
prestam serviços públicos ou atuam no domínio econômico.
510
BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 187-192.
511
Cf. art. 1º da Lei nº 13.303/2016: Esta Lei dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade
de economia mista e de suas subsidiárias, abrangendo toda e qualquer empresa pública e sociedade de
economia mista da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que explore atividade econômica
de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, ainda que a atividade econômica esteja
sujeita ao regime de monopólio da União, ou seja, de prestação de serviços públicos.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
161
o intérprete deve buscar a definição da Lei das Estatais muito antes da definição do
vetusto Decreto-Lei nº 200/67.
Um bom caminho para resolver os problemas definitórios do Decreto-Lei nº
200/67, ao mesmo tempo doutrinário e, de certa forma, legislativo, é o Anteprojeto de
Lei destinado a revogar o referido decreto, elaborado por um grupo de juristas a pedido
do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.512 Vamos analisar o Anteprojeto
nos próximos parágrafos. Outra solução, essa bem simples, é, preservando o Decreto-
Lei nº 200/67, revogar apenas suas definições sobre estatais.
O anteprojeto, mantendo a distinção tradicional entre Administração Pública
Direta e Indireta (art. 3º), assume, sem medo, a terminologia “empresas estatais” (art.
8º, II) e, já em sua definição, indica claramente que elas podem atuar na exploração de
atividades econômicas ou na prestação de serviços públicos.513 Um dos problemas das
definições do Decreto-Lei nº 200/67 restaria, então, superado.
Ao ingressar na conceituação de empresa pública, o Anteprojeto define-a como
“a empresa estatal cujo capital é integralmente da titularidade de entidade ou entidades
estatais, de Direito Público ou Privado”514 (art. 16) — no que é mais claro e analítico do
que o Decreto-Lei em vigor, o qual fala em titularidade da União.
Como se sabe, e esse é o tom de uma das críticas que apresentamos, as empresas
públicas não precisam ser titularizadas apenas pela pessoa jurídica de Direito Público
chamada União. Podem sê-lo por entidades de sua Administração indireta, por outras
entidades federativas — Estados e Municípios —, e por suas respectivas entidades
indiretas. Como muitas dessas entidades indiretas possuem natureza jurídica de
512
O Ministério do Orçamento, Planejamento e Gestão, em 06 de dezembro de 2007, constituiu, por intermédio da
Portaria nº 426, comissão de juristas, integrada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Floriano Azevedo Marques
Neto, Carlos Ari Sundfeld, Almiro do Couto e Silva, Paulo Modesto, Sérgio de Andréa Ferreira e Maria Coeli
Simões Pires, com o propósito de elaborar Anteprojeto de Lei destinado a substituir o Decreto-Lei nº 200/67. O
trabalho foi concluído em 16 de julho de 2009 e o resultado pode ser consultado no seguinte endereço eletrônico:
<http://www.planejamento.goverbr/secretarias/upload/Arquivos/seges/comissao_jur/arquivos/090729_seges_
Arq_leiOrganica.pdf> (Acesso em: 04 dez. 2009).
513
Art. 15. Empresa estatal é a pessoa jurídica de direito privado, de fins econômicos, controlada direta ou
indiretamente por entidade ou entidades estatais, que executa serviços públicos ou explora atividade econômica
caracterizada pela produção ou comercialização de bens ou pela prestação de serviços em geral.
514
Há discussão a respeito da natureza jurídica da entidade cujo capital fosse titularizado, por exemplo, pela
União e por empresa pública federal. Como a empresa pública federal possui personalidade de direito privado,
ter-se-ia a junção do capital público — da União — com o capital privado da empresa pública federal. Haveria,
então, a associação de capital público e privado, o que seria típico da sociedade de economia mista. Por outro
lado, o capital é, na prática, inteiramente pertencente à Administração Pública federal. Isso não seria típico
de uma empresa pública federal? A favor da natureza de sociedade de economia mista da entidade assim
constituída, v. FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 224: “A fim de compor uma empresa pública é
necessário que os sócios sejam, todos eles, pessoas de Direito Público. Caso uma pessoa de Direito Público e
outra de Direito Privado se reúnam para criar nova empresa, esta não será empresa pública. Caso o controle
pertença a pessoa de Direito Público, ela será uma sociedade de economia mista”. Em sentido aparentemente
contrário, temos dois dados legislativos (ou quase): 1. A redação do art. 16 do Anteprojeto, como vimos,
menciona expressamente que as estatais que vão titularizar a empresa pública podem ser de direito público
ou privado; e 2. O art. 5º do Decreto-Lei nº 900/69 (que modificou o Decreto-Lei nº 200/64), o qual afirma que,
“desde que a maioria do capital votante permaneça de propriedade da União, será admitida, no capital da
empresa pública, a participação de outras pessoas jurídicas de direito público interno bem como de entidades
da Administração indireta da União, dos Estados, Distrito Federal e Municípios” (grifos nossos). Ora, o texto fala
genericamente em entidades da Administração indireta, nas quais se incluem entidades de direito privado. Em
nossa opinião, é preciosismo categorizar uma entidade, cujos titulares sejam a União e uma empresa pública
federal, como uma sociedade de economia mista. Embora formalmente “mista”, trata-se de entidade controlada
inteiramente pela Administração Pública. Trata-se, sem dúvida, de empresa pública. E mais: tratar-se-ia de
empresa pública federal mesmo se seu capital fosse composto por participações da União e de uma sociedade
de economia mista federal (DI PIETRO. Direito administrativo, p. 429-430).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
162 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
direito privado (as próprias empresas públicas, por exemplo), o Anteprojeto incorpora
a ideia, largamente aceita e praticada, segundo a qual as empresas públicas devem ser
titularizadas integralmente por alguma entidade ou grupo de entidades estatais, com
múltiplas combinações a partir daí.515
Aliás, em seu art. 16, §1º, o Anteprojeto afirma que a empresa pública integra a
Administração Pública indireta da pessoa político-administrativa que detenha seu controle — o
que significa, contrario sensu, que podem existir empresas públicas cuja titularidade seja
repartida entre entidades, públicas e privadas, de diversos níveis federativos. Poderia
existir, por exemplo, empresa pública intermunicipal, ou que fosse controlada por
autarquia federal, mas com boa parte de seu capital em mãos de Estado da Federação.
O texto do Decreto-Lei nº 200/67 fala apenas em titularidade da União.516 Na Lei das
Estatais, a empresa pública é sempre controlada por uma Administração Direta (União,
Estado, DF ou Município), mas admite a participação de outras Administrações — sejam
diretas ou indiretas (é o art. 3º, par. único, da Lei nº 13.303/2016).
A seguir, no art. 16, §2º, o Anteprojeto fala que empresas públicas podem adotar
a forma de sociedade unipessoal ou pluripessoal. O Decreto-Lei nº 200/67 menciona
somente que esta espécie de estatal poderá se revestir de “qualquer forma admitida
em Direito”. Trata-se de especificação derivada de dado reconhecido pela doutrina517 e
aplicado na prática: a empresa pública pode adotar qualquer forma admitida em Direito,
inclusive a sociedade unipessoal518 (ver art. 251 da Lei Federal nº 6.404/76).
Ao definir as sociedades de economia mista, o Anteprojeto faz referência àquilo
que Celso Antônio Bandeira de Mello considera ser sua característica principal: a
conjugação de capitais públicos e privados.519 Assim, o art. 17: “sociedade de economia
mista é a empresa estatal de cujo capital participam pessoas físicas ou entidades não
estatais”. O parágrafo único do mesmo artigo, tal como o Decreto-Lei nº 200/67, menciona
que a sociedade de economia mista deve adotar necessariamente a forma de sociedade
anônima.
Contudo, há, no Anteprojeto, diferença importante em relação ao regime do
Decreto-Lei nº 200/67, e, na verdade, também do sistema Lei das Estatais mais regula-
mento. É que, a vingar a proposta legislativa, não será mais necessário, na sociedade
de economia mista, que as ações com direito a voto pertençam, em sua maioria, às
entidades estatais. Bastaria que o controle de fato da companhia pertencesse à entidade
estatal. Também aqui o Anteprojeto vai ao encontro da realidade, na medida em que já
515
O art. 3º, par. único, da Lei das Estatais, parece adotar tal ideia. Leia-se seu texto: “Desde que a maioria do capital
votante permaneça em propriedade da União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município, será admitida,
no capital da empresa pública, a participação de outras pessoas jurídicas de direito público interno, bem como
de entidades da administração indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
516
Uma empresa pública intermunicipal consistiria, para todos os efeitos, numa modalidade de cooperação
interfederativa. A esse respeito, Marçal Justen Filho: “Quando houver vários sócios, será possível reputar que
existe uma modalidade de convênio, utilizada a expressão para indicar uma opção organizacional entre diferentes
sujeitos, voltada à realização de fins de interesse público” (JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 174).
517
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 173.
518
FERREIRA. O direito administrativo das empresas governamentais brasileiras. Revista de Direito Administrativo,
p. 1-33. Exemplo de empresa pública unipessoal é a Caixa Econômica Federal. Antigamente se falava que
a unipessoalidade era exceção à regra da existência de dois ou mais sócios na sociedade empresarial. Hoje,
a partir da Lei Federal nº 12.441/2001, a qual criou a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, as
sociedades unipessoais passaram a ser mais comuns.
519
Contra, entendendo que a característica principal das sociedades de economia mista não é a conjugação de
capitais, mas o regime jurídico especial, derrogatório do Direito Privado, aplicável ao acionista controlador
(GRAU. Considerações a propósito das sociedades de economia mista. Revista de Direito Público, p. 128).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
163
520
SCHWIND. Observações iniciais sobre o anteprojeto de lei que revogará o Decreto-Lei nº 200/67. Informativo
Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, p. 9. Carlos Ari Sundfeld, ao comentar o trecho do Anteprojeto, menciona que
o propósito foi o de modernizar o regime jurídico das estatais, hoje traçado no Decreto-Lei nº 200/67, portanto,
anterior à Lei das S.A. Importante não seria a titularidade de “metade mais um do capital votante”, como no
Decreto, mas sim, o controle estatal estável (Uma lei de normas gerais para a organização administrativa brasileira: o
regime jurídico comum das entidades estatais de direito privado e as empresas estatais. In: MODESTO (Coord.).
Nova organização administração brasileira: estudos sobre a proposta da comissão de especialistas constituída pelo
Governo Federal para reforma da organização administrativa brasileira, p. 64).
521
A possibilidade de o Poder Público assumir o controle da sociedade de economia mista por outras formas
que não o controle majoritário sempre foi uma das críticas clássicas de Hely Lopes Meirelles à definição, para
ele excessivamente restritiva, de sociedade de economia mista no Decreto-Lei nº 200/67 (Direito administrativo
brasileiro, p. 361). Ainda, FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 224.
522
Estamos, nesse ponto, concordando com a lição de Nelson Eizirk, apresentada num debate sobre a Lei das
Estatais realizado no IAB em abril de 2017.
523
Art. 2º da Lei Federal nº 6.404/76: Pode ser objeto da companhia qualquer empresa de fim lucrativo, não
contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes. Ver, ainda, art. 966 do Código Civil de 2002.
524
Assim como se diz da atividade financeira do Estado — que é instrumental, que não é um fim em si mesma —,
também a busca do lucro, pelas estatais, é instrumental. Existe não para “enriquecer” o Estado, mas para gerar
recursos a serem investidos no desempenho de suas atividades próprias. Se a busca de lucro é instrumental em
abstrato, ela o é, ainda mais, se analisada com base no que fazem as estatais: ou intervêm concorrencialmente
na economia, porque a isso foram levadas por circunstância de interesse público ou de segurança nacional — e,
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
164 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
aí, o propósito é mais realizar esse interesse público ou contribuir para a segurança do que gerar recursos
ao Estado —, ou prestam serviços públicos, e, como é natural, a busca é pela concretização dos objetivos
atingíveis por essa prestação (integração nacional, oferecimento de utilidades essenciais à população, satisfação
de direitos fundamentais etc.). Nesse sentido, ARAÚJO. Curso de direito administrativo, p. 197. Por outro lado,
não há vedação, constitucional ou legal, à obtenção de lucro pelas estatais, sejam prestadoras de serviço
público ou intervenientes na economia em exercício concorrencial ou monopolístico. Em rigor, é seu dever
serem eficientes e lucrativas, podendo apenas excepcionalmente atuar de modo deficitário. No caso das que
atuam concorrencialmente, imaginá-las operando sem pretender lucrar significaria, até, violação das regras de
defesa de concorrência. Desenvolver em Eros Roberto Grau (Lucratividade e função social nas empresas sob
controle do Estado. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 35-59, especialmente p. 53
et seq.). Outro tratamento teórico é o que distingue entre o resultado da estatal — que é e deve ser o lucro — e
a causa determinante de sua criação — o interesse público (CRETELLA JÚNIOR. Empresa pública, p. 227). Para o
tratamento alemão do tema, v. Hartmut Maurer (Direito administrativo geral, p. 44-45). Alguns autores usam a
busca pelo lucro para diferenciar a sociedade de economia mista — na qual seria exigida a finalidade lucrativa,
com o fim de remunerar o capital privado ao qual apela (acionistas privados) — da empresa pública, que não
teria, necessariamente, tal finalidade. A diferenciação é promissora, mas pode se tornar confusa quando se
sabe que empresas públicas podem ser acionistas de sociedades de economia mista — então estas empresas
públicas teriam que perseguir o lucro? —, e que, com base no art. 173 da Constituição, que não faz menção
a espécies institucionais, também as sociedades de economia mista estão autorizadas a intervir na economia
em casos (v.g. segurança nacional) em que seria complicado falar em busca do lucro. Para a vindicação de tal
distinção, v. PINTO JUNIOR. Empresa estatal: função econômica e dilemas societários, p. 317. Ainda, SOUTO.
Direito administrativo empresarial, p. 4.
525
“Empresas públicas e sociedades de economia mista, isto é, as ‘empresas estatais’ (designativo genérico que
serve para referi-las indistintamente), apresentam uma impressionante semelhança na disciplina jurídica que se
lhes aplica. Assim, o que interessa, de logo, é apontar o que as dessemelha [...]” (BANDEIRA DE MELLO. Curso
de direito administrativo, p. 192).
526
Ver art. 1.150 do Código Civil: “Art. 1.150. O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro
Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
165
A questão fica menos óbvia a partir da exigência constitucional de lei que au-
torize a criação das estatais (art. 37, XIX, da CRFB/88 — a redação original, antes da
Emenda à Constituição nº 19/98, fala que empresas públicas e sociedades de economia
mista seriam “criadas” pela lei. O trecho era criticado porque se dizia que uma lei seria
incapaz de criar diretamente uma instituição privada, a qual só se constituiria com o
registro de seus atos.527 O constituinte originário haveria repetido o erro do legislador
do Decreto-Lei nº 200/67).528
A autorização legal para a criação das estatais é exigência que decorre do prin-
cípio democrático. Se a Administração Pública vai atuar diretamente na economia, ou
se vai prestar serviços públicos, criando entidade destacada, faz sentido a exigência de
referenciação popular presumida na atuação do Poder Legislativo.
A autorização legal para a criação de estatal consta, de modo expresso, na Lei
das Estatais (art. 2º, par. 1º, da Lei nº 13.303/2016) e em seu regulamento (art. 4º do
Decreto nº 8.945/2016).
Pessoas Jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar
um dos tipos de sociedade empresária”. Para as sociedades de economia mista, em específico, cf. art. 236 da Lei
Federal nº 6.404/76, a Lei das S.A.: “Art. 236. A constituição de companhia de economia mista depende de prévia
autorização legislativa”.
527
A crítica é unânime. Veja-se, por exemplo, Marcelo Andrade Féres (O Estado empresário: reflexões sobre a
eficiência do regime jurídico das sociedades de economia mista na atualidade. Revista de Direito do Estado, p.
275). Por outro lado, deve-se considerar a observação de Eros Grau de que “a sociedade de economia mista é,
pois, criada por lei. Este o elemento primordial a caracterizá-la como sociedade de economia mista: a criação por
lei. Cuida-se aqui, evidentemente, não da criação da sociedade como pessoa jurídica, mas da criação de um modelo
jurídico especial, excepcional em relação ao modelo ortodoxo de sociedade anônima” (GRAU. Lucratividade e
função social nas empresas sob controle do Estado. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro,
p. 38). Sob essa ótica, é possível dizer que os modelos jurídicos da sociedade de economia mista e da empresa
pública são, sim, criados por lei, embora as empresas propriamente ditas tenham sua constituição autorizada
por leis específicas. Aliás, o professor paulista proferiu voto, já como Ministro do Supremo, no RMS nº 24.249,
julgado em 14 de setembro de 2004, defendendo exatamente que o “criado por lei” refere-se à criação do
modelo pela lei. Somou a isso a ideia de que existem diferentes “modelos” de sociedades de economia mista —
a sociedade de economia mista definida pelo Decreto-Lei nº 200/67, outra definida pela Lei das S.A., até a
sociedade de economia mista que era definida pela antiga legislação do Imposto de Renda —, para concluir
que o Hospital Cristo Redentor S.A., apesar de não ter sido “criado por lei”, era uma sociedade de economia
mista para os fins de incidência do art. 37, XVII, da CRFB/88 (proibição da acumulação de cargos). Seu voto
prevaleceu e o acórdão foi assim ementado: “ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO
DE SEGURANÇA. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. CONCEITO. CONCEITOS JURÍDICOS. SERVIDOR
PÚBLICO. ACUMULAÇÃO DE CARGOS. NÃO EXERCÍCIO DO DIREITO DE OPÇÃO NO PRAZO LEGAL.
MÁ-FÉ CONFIGURADA. 1. Para efeitos do disposto no art. 37, XVII, da Constituição são sociedades de economia mista
aquelas — anônimas ou não — sob o controle da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal ou dos Municípios,
independentemente da circunstância de terem sido ‘criadas por lei’. 2. Configura-se a má-fé do servidor que acumula
cargos públicos de forma ilegal quando, embora devidamente notificado para optar por um dos cargos, não
o faz, consubstanciando, sua omissão, disposição de persistir na prática do ilícito. 3. Recurso a que se nega
provimento” (grifos nossos).
528
Quando falamos “menos óbvia”, fique claro ser à luz do atual texto da Constituição da República, que não deixa
dúvidas. O tema, antes da Constituição de 1988, foi objeto de pronunciamentos doutrinários e jurisprudenciais
divergentes, que entendiam que, para os Estados e Municípios, as sociedades de economia mista e as empresas
públicas poderiam se caracterizar pelo controle acionário/titularidade do capital social, embora não tivessem
tido sua criação autorizada por intermédio de lei. Acreditava-se que, como o Decreto-Lei nº 200/67, que exige
lei para a criação (rectius, autorização para criação) das empresas públicas e das sociedades de economia
mista, afirma-se aplicável apenas para a União (em seu art. 5º, caput: “para os fins desta lei”), os demais entes
federativos, dentro de sua autonomia, possuiriam liberdade para a criação de estatais sem respeitar o figurino
federal. Só que o raciocínio nunca foi correto. Para demonstrá-lo, basta pensarmos no caso de uma sociedade
de economia mista (sempre uma sociedade anônima) regida pela Lei das S.A, bastante clara em seu art. 236: “A
constituição de companhia de economia mista depende de prévia autorização legislativa”. Logo, se a sociedade
de economia mista é uma S.A. — e ela sempre o será —, então sua criação, em qualquer nível federativo,
dependerá de autorização legal (FRANCO. Comentário ao acórdão que resolveu o conflito de competência 223
do Rio de Janeiro. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 140-144).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
166 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Caso inexista tal autorização, não se estará tratando de empresa pública, nem de
sociedade de economia mista, mas, tão somente, de empresa sob controle do Estado.529 É
claro que, dessa ilegalidade, não se deve argumentar em favor de uma série de outras,
como se a ausência de lei autorizativa liberasse a empresa controlada pelo Poder Público
do conjunto de restrições de Direito Público, como a obrigação de selecionar pessoal
por concurso público ou o dever de licitar. O “princípio” do pragmatismo jurídico
atua, aqui, inviabilizando resultados práticos que signifiquem, à luz do pensamento
administrativo médio, premiar uma inconstitucionalidade.530
Menos óbvia era a discussão travada a respeito da necessidade, ou não, de lei
autorizativa específica para a constituição das subsidiárias dessas mesmas estatais. O
ponto de partida é o art. 37, XX, da Constituição da República: “Depende de autorização
legislativa, em cada caso, a criação de subsidiárias das entidades mencionadas no inciso
anterior, assim como a participação de qualquer delas em empresa privada”. A partir
daí, formaram-se duas posições. A primeira defendia a necessidade de nova autorização
legislativa a cada subsidiária constituída, a qual restaria contida em lei específica (de
acordo com a referência constitucional “a cada caso”), posição que se aproximaria da
mencionada confirmação democrática da legitimidade da ação do Poder Público, por
condicionar a criação de cada subsidiária a novo debate político.531
A segunda defendia ser suficiente autorização legislativa genérica para a criação de
subsidiárias, autorização essa contida em artigo(s) da lei autorizadora da constituição
da estatal-matriz. Em favor dessa posição, o fato de que a confirmação democrática
já se poderia entender como dada na edição da lei autorizadora da empresa-matriz,
e, principalmente, o tempo da Economia, diferente do tempo do Direito, ainda mais
quando se tratasse de aprovar leis no Congresso Nacional ou nos Legislativos estaduais/
529
Ver decisões do STF publicadas na RDA, 143/118 e 145/170. Na doutrina, por exemplo, ARAUJO. Administração
indireta brasileira, p. 81-82. Antes da Constituição de 1988, admite-se que possam ter sido validamente instituídas
estatais cuja criação não haja sido expressamente autorizada por lei.
530
“Entendemos que — apesar de haverem irrompido defeituosamente no universo jurídico — a circunstância de
se constituírem em realidade fática da qual irrompeu uma cadeia de relações jurídicas pacificamente aceitas
impõe que se as considere assujeitadas a todos os limites e contenções aplicáveis a sociedades de economia
mista ou empresas públicas regularmente constituídas, até que sejam extintas ou sanado o vício de que se
ressentem. Com efeito, seria o maior dos contra-sensos entender que a violação do Direito, ou seja, sua mácula
de origem, deva funcionar como passaporte para que se libertem das sujeições a que estariam submissas se
a ordem jurídica houvesse sido respeitada” (BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 205).
Defendendo que tais “empresas estatais de fato” tenham suas situações consolidadas em virtude do tempo,
e argumentando com o princípio da aparência em prol da estabilização dos negócios jurídicos realizados por
essas estatais, v. JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 178. Raquel Melo Urbano de Carvalho,
apesar de concordar com a ideia de que as restrições de Direito Público devam ser exigidas das estatais de
fato, defende que, “enquanto não sanado o vício (ausência de autorização legislativa específica), esta entidade
não fará jus a quaisquer vantagens a que teria direito se regularmente instituída”. A estatal não teria direito a
qualquer privilégio processual ou material (CARVALHO. Curso de direito administrativo: parte geral, intervenção
do Estado e estrutura da administração, p. 687). Não concordamos com isso. Assim como tornar inteiramente
privada uma estatal de fato seria premiar uma situação inconstitucional, despi-la de todas as prerrogativas
materiais ou processuais seria punir quem não tem nada com isso: o interesse público. Imaginemos uma estatal
de fato que preste serviço relevante ao interesse público já há bastante tempo e que, apenas por não ter havido
autorização legislativa formal em sua constituição, tenha seus bens — afetados à prestação do serviço público —
passíveis de penhora. Não parece razoável.
531
NOGUEIRA. Função da lei na vida dos entes estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 34 et seq.; WALD.
As sociedades de economia mista e a nova lei de sociedades anônimas. Revista de Informação Legislativa, p. 99-
114. Defendendo que “isso equivaleria à delegação da competência legislativa para a órbita administrativa”
e “à renúncia do Legislativo ao exercício de competência reservada a ele constitucional e privativamente”,
v. JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 175-176.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
167
532
“Desta forma, a autorização genérica de criar subsidiárias, expressada na lei fundamental da sociedade de
economia mista matriz, é suficiente para transmitir à sociedade subsidiária a mesma natureza jurídica desta
última, desde que essa subsidiária atue no mesmo campo de atividade econômica da matriz. Esta seria, do
ponto de vista doutrinário, a interpretação mais correta dos dispositivos legais que regulamentam esta matéria.
Pela própria dinâmica do desenvolvimento econômico, não encontra justificativa o fato de ter o Estado que promulgar
leis específicas para a constituição de cada subsidiária” (STUBER. Natureza jurídica da subsidiária de sociedade de
economia mista. Revista de Direito Administrativo, p. 33, grifos nossos).
533
Em posição aparentemente contrária à autorização genérica, mas afirmando que “a expressão constitucional
‘em cada caso’ poderá ser entendida como indicativo apenas de área ou atividade específica a ser contemplada”
(BARROSO. Regime jurídico das empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 90).
534
ADI nº 1.649-1/DF.
535
“Seria inconcebível a compreensão de que o constituinte, ao fazer constar do Texto Constitucional a expressão
em cada caso, tenha tido a intenção de exigir que o Congresso votasse lei específica para a instituição do Conselho
Nacional de Política Energética, outra para a Agência Nacional do Petróleo, uma seguinte para a política
energética nacional, outra mais para as atividades relativas ao monopólio do petróleo, e assim por diante”.
Voto de Maurício Corrêa na ADI 1.649-1/DF (grifos no original).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
168 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
atividade econômica do Estado, a qual seria “excepcional”. “Logo, está lógico o porquê
da exigência de lei específica para autorizar a criação de subsidiária, porque o Estado,
ao criar uma subsidiária, está ocupando um espaço que não é dele, mas da iniciativa
privada, um espaço estranho aos cometimentos estatais”.536
Em que pesem tais observações, na linha da “exceção” que se interpreta “restri-
tivamente”, Ayres Britto concebe que, naquele caso da Petrobras, como todo o “circuito
do petróleo” foi excluído da iniciativa privada — tratar-se-ia de monopólio público —,
a autorização legislativa genérica seria possível.
O Ministro Marco Aurélio, o próximo a votar, estabeleceu distinção. Para autorizar
a criação de sociedade de economia mista, a Constituição da República exigiria lei espe-
cífica; para a constituição de suas subsidiárias, bastaria autorização legal. “Contenta-se o
texto da Carta da República com autorização em cada caso, e não potencializo a utilização
do vocábulo ‘caso’. Devemos percebê-lo de forma genérica [...]”.537 Sepúlveda Pertence
simplesmente afirmou estar convencido de que, autorizada a criação da subsidiária, as
subsubsidiárias não estão mais submetidas à exigência de lei específica.
O acórdão restou assim ementado:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 9.478/97. AUTORIZAÇÃO À
PETROBRÁS PARA CONSTITUIR SUBSIDIÁRIAS. OFENSA AOS ARTIGOS 2º E 37, XIX
E XX, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INEXISTÊNCIA. ALEGAÇÃO IMPROCEDENTE.
1. A Lei nº 9.478/97 não autorizou a instituição de empresa de economia mista, mas sim
a criação de subsidiárias distintas da sociedade-matriz, em consonância com o inciso XX,
e não com o XIX do artigo 37 da Constituição Federal.
2. É dispensável a autorização legislativa para a criação de empresas subsidiárias, desde
que haja previsão para esse fim na própria lei que instituiu a empresa de economia mista
matriz, tendo em vista que a lei criadora é a própria medida autorizadora. Ação direta
de inconstitucionalidade julgada improcedente.
536
Voto de Carlos Ayres Britto na ADI nº 1.649-1/DF.
537
Voto de Marco Aurélio na ADI nº 1.649-1/DF.
538
Contra, afirmando que o STF decidiu “em aberta discrepância” com o preceito constitucional do art. 37, XX, da
Constituição, v. BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 204.
539
“A expressão constitucional ‘em cada caso’ poderá ser entendida como indicativa apenas de área ou atividade
específica a ser contemplada” (TÁCITO. Temas de direito público: estudos e pareceres, p. 684).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
169
540
A única hipótese na qual se poderia argumentar, com alguma persuasividade, em favor de tal exigência seria
no caso de empresa pública ou sociedade de economia mista que exercesse, com exclusividade, a prestação de
serviços públicos.
541
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 176.
542
Há dispositivo interessante no regulamento da Lei das Estatais. É a hipótese em que, na lei que autoriza a criação
da estatal-mãe, há autorização genérica para a constituição de subsidiária cujo objeto social seja a participação
em outras empresas privadas. O grande exemplo, para a hipótese, é a do BNDESPAR, subsidiária do BNDES
cujo objeto social é participar de empresas privadas como instrumento de fomento (sobre fomento público,
v. capítulo deste livro). O art. 2º, par. 2º, do decreto, informa que “a empresa estatal que possuir autorização
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
170 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
legislativa para criar subsidiária e também para participar de outras empresas poderá constituir subsidiária
cujo objeto social seja participar de outras sociedades, inclusive minoritariamente, desde que o estatuto social
autorize expressamente a constituição de subsidiária como empresa de participações e que cada investimento
esteja vinculado ao plano de negócios”. O dispositivo é um necessário espaço de flexibilidade para a atuação
dessa espécie de estatal.
543
BORBA. Direito societário, p. 489-490; DI PIETRO. Direito administrativo, p. 429-430; ZIMMER JÚNIOR. Curso de
direito administrativo, p. 291; MUNIZ. A empresa pública no direito brasileiro, p. 35 (citando o exemplo da Embratel,
originariamente empresa pública cujo capital foi subscrito pela União e por várias sociedades de economia
mista, como a Petrobras e o Banco do Brasil).
544
Já que seu art. 5º tem a seguinte redação: “Art. 5º Desde que a maioria do capital votante permaneça de
propriedade da União, será admitida, no capital da empresa pública, a participação de outras pessoas jurídicas
de direito público interno bem como de entidades da Administração indireta da União, dos Estados, Distrito Federal
e Municípios” (grifos nossos). Ao falar em “entidades da Administração indireta”, sem exceção, abre-se
a possibilidade de que sejam, também, sociedades de economia mista. O texto do Anteprojeto destinado a
revogar o Decreto-Lei nº 200/64 também parece acompanhar o entendimento por nós defendido, ao conceituar
empresa pública como “a empresa estatal cujo capital é integralmente da titularidade de entidade ou entidades
estatais, de direito público ou privado” (grifos nossos).
545
Art. 3º, par. único, da Lei nº 13.303/2016: Desde que a maioria do capital votante permaneça em propriedade da
União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município, será admitida, no capital da empresa pública, a participação de
outras pessoas jurídicas de direito público interno, bem como de entidades da administração indireta da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios. (O destaque foi acrescentado)
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
171
empresa não se constitui como sociedade de economia mista, mas será uma empresa
pública si et in quantum.
Quando existente, a participação do capital privado deve ser “para valer”. Explica-
se. Nos termos do art. 146 da Lei das S.A., os membros do Conselho de Administração de
sociedade anônima serão, sempre, acionistas. No caso de S.A. constituída exclusivamente
com capital público, os integrantes do Conselho de Administração (que são pessoas
físicas) serão, também, acionistas da empresa — acionistas privados. Aparentemente,
estar-se-ia diante de sociedade de economia mista, pois há uma soma de capital público
a capitais privados. Engano. Trata-se de empresa pública, e não apenas porque prati-
camente todo o capital social está nas mãos do Poder Público, mas também porque a
integralização dos valores das ações dos conselheiros é paga com recursos da própria
Administração Pública, que lhes transfere tais ações apenas durante o período em que
exercem a função. Depois, eles são obrigados a restituí-las à Administração.546
Há evento que, segundo alguns, levaria ao surgimento extemporâneo de so-
ciedade de economia mista. É a hipótese de desapropriação do controle de sociedade
anônima.547 Fala-se, inclusive, que o parágrafo único do artigo 236 da Lei das S.A. — que
permite aos acionistas de sociedade cujo controle passou ao Poder Público o pedido
de reembolso de suas ações — seria prova disso.548 Não parece ser. A autorização legal
para a constituição da sociedade de economia mista continua sendo obrigatória. Uma
companhia desapropriada pelo Estado será apenas uma S.A. controlada pelo Estado,
até a autorização legal para a constituição de economia mista (ou de empresa pública,
se a desapropriação envolver a totalidade do capital social).549
546
SCHIRATO. Novas anotações sobre as empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 212.
547
Essa é, aparentemente, a posição do Ministro Eros Grau. Leia-se trecho das discussões no julgamento do RMS
nº 24.249, na fala do Ministro: “Isso é necessário esclarecer. Não em relação às sociedades de economia mista
criadas anteriormente à vigência da Constituição, ou para a hipótese de desapropriação, em que o requisito da lei
existirá na lei que autorizou a desapropriação” (grifos nossos).
548
FÉRES. O Estado empresário: reflexões sobre a eficiência do regime jurídico das sociedades de economia mista
na atualidade. Revista de Direito do Estado, p. 277-278.
549
“[...] as sociedades em que tal participação já existe, à míngua da referida autorização, continuam, como sempre
o foram, a constituir sociedades anônimas de direito privado, que não integram a Administração Pública,
embora possam, por via reflexa, receber orientações específicas emanadas daquela, desde que obedecido o
regime societário comum” (PENTEADO. As sociedades de economia mista e as empresas estatais perante
a Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo, p. 34). Ainda, Marçal Justen Filho (Curso de direito
administrativo, p. 177). Marcelo Féres, citado na nota anterior, menciona o caso da Companhia Paulista
de Estradas de Ferro, que teria se tornado sociedade de economia mista por intermédio de desapropriação
realizada pelo Estado de São Paulo. Muitos autores, no entanto, entendem que, mercê apenas da expropriação, a
Companhia não se tornou sociedade de economia mista. Far-se-ia necessária a autorização legal. Nesse sentido,
o parecer de Moacyr Lobo da Costa: “É incontroverso, assim, que a Companhia Paulista permanece como
sociedade anônima, com natureza de pessoa jurídica de direito privado, subordinada às normas específicas da
lei das sociedades por ações e do seu estatuto social, por inequívoca manifestação de vontade do Estado. Ao
decretar a desapropriação da sociedade anônima, o Estado, se essa fosse a sua intenção, poderia ter declarado
que a desapropriação se destinava a possibilitar, como primeiro passo, a transformação da sociedade anônima
em sociedade de economia mista. Não o fez, porém. Não se conhece, até hoje, qualquer manifestação do Estado
nesse sentido. Assim, o fato de o Estado ter-se tornado acionista majoritário da Companhia Paulista não basta,
por si só, para atribuir a esta a condição de sociedade de economia mista, independentemente de qualquer outra
providência de ordem legal” (COSTA. Sociedade de economia mista e participação do Estado no capital de
sociedade anônima. Revista de Direito Público, p. 139). No mesmo sentido, citando os casos de Grupo Hospitalar
cuja totalidade do capital foi desapropriada pela União, reduzida posteriormente para 51% da totalidade do
capital social integralizado, e que foi tido pelo Tribunal de Contas da União como “empresa paradministrativa”,
espécie de meio-termo entre sociedades de economia mista e empresas inteiramente privadas, faltando-lhes a
autorização legal, cf. FERREIRA. Empresa estatal: conceito e regime jurídico. Revista de Direito Público, p. 277.
É de se registrar, finalmente, a dicção do art. 235, §2º, da Lei das S.A.: “As companhias de que participarem,
majoritária ou minoritariamente, as sociedades de economia mista, estão sujeitas ao disposto nesta Lei, sem as
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
172 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
exceções previstas neste Capítulo”. Ou seja: a participação, mesmo majoritária, de uma sociedade de economia
em outra companhia não torna esta última uma sociedade de economia mista — precisamente porque faltaria
a autorização legal. No Anteprojeto destinado a revogar o Decreto-Lei nº 200/67, o art. 83 pretende mudar a
redação do art. 235, §2º, da Lei das S.A. para, ao que parece — o propósito é mencionado no relatório preliminar
à proposta legislativa —, tornar as sociedades controladas majoritariamente por sociedades de economia mista,
elas também, sociedades de economia mista (a redação proposta só excluiria as companhias cuja participação
das sociedades de economia mista fosse minoritária das regras excepcionais do capítulo legal). A mudança
pretendida é, no entanto, contrária à doutrina e à jurisprudência majoritárias a respeito do tema.
550
“Temos sustentando que a sociedade de economia mista não é uma sociedade anônima: é uma forma especial de
sociedade por ações”. Sérgio de Andréa Ferreira defende tal posição com base em que o acionista controlador,
ao contrário de na sociedade anônima “comum”, pode orientar sua atividade em prol do interesse público
que motivou sua criação (art. 238 da Lei das S.A.); na economia mista, há obrigatoriedade de Conselho de
Administração, com a garantia de a minoria escolher no mínimo um conselheiro (art. 239 da mesma lei); os
deveres e responsabilidades dos administradores da economia mista são os mesmos daqueles da companhia
aberta (art. 239, parágrafo único, idem); o funcionamento do Conselho Fiscal tem que ser permanente (art. 240).
Além dessas discrepâncias, a grande diferença seria a responsabilidade subsidiária e ilimitada da pessoa jurídica
de direito público que autorizou a instituição da economia mista em relação a esta — ou seja, a impossibilidade
de falência, prevista no art. 242 da Lei nº 6.404/76 —, o que contrastaria com a noção de sociedade anônima,
prevista no art. 1º do mesmo diploma legal, a qual limita a responsabilidade dos acionistas ao preço de emissão
das ações subscritas ou adquiridas (FERREIRA. Empresa estatal: conceito e regime jurídico. Revista de Direito
Público, p. 273-274).
551
Decreto nº 8.945/2016: Art. 11 A empresa pública adotará, preferencialmente, a forma de sociedade anônima,
que será obrigatória para as suas subsidiárias.
552
Nesse caso, a lei que autorizar a constituição da empresa pública deverá estabelecer toda uma série de regras
sobre sua organização e funcionamento, afinal, não estará apenas autorizando a criação de uma entidade,
mas inovando em um modelo de organização institucional. Caso omissa, concordamos com Marçal Justen
Filho em que a melhor opção seria adotar o modelo da sociedade por ações (JUSTEN FILHO. Curso de direito
administrativo, p. 174). A preferência, como se vê, foi adotada pelo decreto nº 8.945/2016.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
173
553
Ao contrário das sociedades de economia mista, que, como sociedades anônimas, sempre serão empresárias
(ver art. 2º, §1º, da Lei das S.A.: “Qualquer que seja o objeto, a companhia é mercantil e se rege pelas leis e
usos do comércio”; também, art. 982, parágrafo único, do Código Civil de 2002: “Independentemente de seu
objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa”). Contra, entendendo que,
como existe para explorar atividade econômica privada, a empresa pública só pode adotar formas empresárias
(MUNIZ. Caminha. A empresa pública no direito brasileiro, p. 44).
554
BORBA. Direito societário, p. 490.
555
“Não obstante, temos de concordar com Caminha Muniz, para quem existe nítida tendência, no Brasil, de
se organizar empresa pública em forma de sociedade anônima; nem poderia ser de outro modo, eis que —
conforme Dimock, citado por Muniz — esta espécie de sociedade foi a mais eficiente até hoje encontrada, para
a participação dos homens ou dos governos em uma atividade colateral, distinta daquelas a que precipuamente
se devotam” (COTRIM NETO. Teoria da empresa pública de sentido estrito. Revista de Direito Administrativo,
p. 41). A referência de Cotrim Neto a Alvaro Caminha Muniz pode ser desenvolvida em: MUNIZ A empresa
pública no direito brasileiro, p. 44-45. É interessante observar que a forma societária de sociedade anônima parece
se adaptar com facilidade à dominação racional-burocrática (para se falar com Weber), et pour cause, ser muito
propícia à constituição de uma entidade estatal. É nesse sentido a interessante observação de Fábio Konder
Comparato: “[...] Parece a todos evidente que a forma de dominação burocrática adapta-se perfeitamente à
estrutura de funcionamento de uma sociedade anônima, quer pela possibilidade de acolhimento de número
ilimitado de sócios (sabendo-se que a burocracia somente medra em grandes coletividades), quer pela
característica de governo estatutário, quer pela possibilidade de organização do poder de forma institucional,
com a nítida separação entre administradores e administrados” (Prólogo. In: COMPARATO; SALOMÃO
FILHO. O poder de controle na sociedade anônima, p. XVI-XVII).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
174 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
atualmente existente, e, no caso das federais, podem, inclusive, adotar formas societárias
especiais, criadas apenas para aquele caso (ou, no mínimo, naquele momento).
556
Ver caput do art. 237 da Lei das S.A.: “A companhia de economia mista somente poderá explorar os
empreendimentos ou exercer as atividades previstas na lei que autorizou a sua constituição”.
557
FÉRES. O Estado empresário: reflexões sobre a eficiência do regime jurídico das sociedades de economia mista
na atualidade. Revista de Direito do Estado, p. 279.
558
“O princípio da especialidade significa que, se a lei definiu expressamente a finalidade da entidade, só em
objetivos que nela se enquadrem poderá utilizar seu patrimônio, recursos, pessoal e serviços: trata-se de
traço comum a todas as entidades da Administração indireta, decorrente do próprio princípio da legalidade
estrita (restritividade), a que se sujeita a Administração (‘só fazer o que a lei determina ou expressamente permite’)”
(ARAUJO. Administração indireta brasileira, p. 90, grifos no original).
559
PINTO JUNIOR. O novo mercado da BOVESPA e o compromisso da sociedade de economia mista com práticas
de boa governança corporativa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 55; DI PIETRO.
Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e
outras formas, p. 52.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
175
Pode violar a noção de legalidade ou, por exemplo, a ideia de segurança jurídica. Mas
há um contraponto: a exigência de especificação do objeto deve ser interpretada com
bom senso, de modo a que não prejudique o propósito concorrencial das estatais.
Deve-se entender o objeto social especificado na lei que autorizou a constituição da
empresa numa abrangência razoável, para evitar que todo tipo de atividade empresarial
não detalhada taxativamente na lei seja ilegal. Pensando de modo pragmático, a conse
quência de tal postura seria uma estatal empresarialmente manietada pela exigência de
autorização legal a cada passo. Uma coisa é exigir que o objeto social esteja autorizado
por lei; outra, é pretender que haja exaurimento de todas as atividades empresariais,
abrangidas no objeto, possíveis de serem desempenhadas pela estatal — essa opção é
contrária ao propósito de isonomia concorrencial entre as empresas da Administração e
as demais empresas privadas. Note-se, por fim, que tal abrangência razoável do objeto
social não é o mesmo que autorizações setoriais genéricas (“empresa para atuar no setor
petrolífero”). Estas não são, em princípio, aceitáveis.560
Ainda a propósito do objeto das estatais, abre-se parêntese para discutir um dos
temas mais importantes, ainda hoje não resolvido, a respeito das sociedades de econo-
mia mista. É o conflito latente de interesses entre o Poder Público, na condição de acionista, e
os acionistas privados.561 O assunto é tão clássico que o principal divulgador doutrinário
da ideia de empresa pública, Bilac Pinto, proferiu conferência em 1952, na Fundação
Getulio Vargas (depois transformada no artigo jurídico mais famoso sobre o tema das
estatais), alegando que o mundo estava no limiar da eclosão da empresa pública como
tipo de estatal preferencial, uma vez que o conflito entre o interesse público e o inte-
resse privado nas sociedades de economia mista não podia, senão excepcionalmente,
conduzir a bons resultados.562 A projeção de Bilac Pinto não se concretizou563 — talvez o
interesse público e o privado não sejam assim tão contrapostos —, na medida em que as
sociedades de economia mista continuam relevantes, mas o diagnóstico tem seu valor.
De fato, há uma tensão latente entre os dois interesses. O agente privado pode
sempre suspeitar de que a retórica grandiloquente do Direito Público, com seus apelos
ao “interesse público”, esconda filiações políticas564 e/ou populistas e/ou demagógicas.
O Poder Público também pode se municiar de preconceitos e suspeitar que o interesse
privado se mova em direções estritamente argentárias.565
560
V. JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 175.
561
Esse conflito possui raízes na configuração histórica das sociedades anônimas, surgidas durante o período
mercantilista como junção entre os interesses da burguesia mercantil, do Estado e do público investidor (atraído
pela chancela estatal às companhias). Desenvolver em Fábio Konder Comparato e, Calixto Salomão Filho (O
poder de controle na sociedade anônima, p. 35-37).
562
“Ora, em uma empresa de economia mista, os fins visados pelo Estado e pelos particulares são diametralmente
opostos; eles se excluem reciprocamente. O capitalista particular não tem em vista senão seu interesse pessoal;
ele quer lucros elevados que lhe assegurarão bons dividendos e procura fixar o preço de venda mais alto que a
concorrência permita, se ela existir. O Estado, ao contrário, intervém com a intenção de salvaguardar o interesse
geral, seja o dos consumidores ou o dos utentes; ele se esforça, então, para manter o preço de venda em níveis
baixos” (BILAC PINTO. O declínio das sociedades de economia mista e o advento das modernas empresas
públicas. Revista de Direito Administrativo, p. 261).
563
Há quem diga que ela nunca foi válida, nem na época em que Bilac Pinto proferiu sua conferência. Apesar disso,
reconhece-se valor à palestra e ao artigo resultante como introdutores da figura doutrinária da empresa pública.
Nesse sentido, Cotrim Neto (Teoria da empresa pública de sentido estrito. Revista de Direito Administrativo,
p. 23).
564
No “mau sentido” da expressão: política menor, movida por interesses pessoais e/ou estritamente partidários.
565
No texto principal, mencionamos o conflito de extremos patológicos. Mas o conflito se dá também em situações
menos anômalas: o interesse do Poder Público na execução do objeto de interesse público é permanente; o
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
176 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
A Lei das S.A., em seu art. 238, é o substrato legal desse caráter bifronte dos ob-
jetivos da sociedade de economia mista. Fala que o controlador da economia mista tem
os deveres e responsabilidades do controlador em geral — tais como previstos nos arts.
116 e 117 da mesma lei —, mas pode orientar as atividades da companhia de modo a
atender ao interesse público que justificou sua criação. Em todas as outras sociedades
anônimas, o controlador que perseguir outro interesse, distinto daquele dos acionistas
individuais, é responsável perante todos. Na economia mista, o controlador, que é
sempre o Poder Público,566 pode se voltar à realização do interesse público primário —
mas exclusivamente ao interesse público primário, é bom enfatizar —, em lugar da
realização dos interesses dos acionistas individuais, sem ser punido. Se tudo ficasse
por essa afirmação de platitudes, a questão estaria resolvida, embora a resposta fosse
bem pouco útil. Só que não é assim.
Mario Engler, na parte que destacamos, é claro quanto à dificuldade em se pre-
cisar o que é a conduta admissível do Poder Público na condição de controlador da
economia mista:
No caso da sociedade de economia mista, a flexibilização do poder de controle constitui a
pedra de toque das relações societárias, na medida em que o dogma da preservação dos
interesses da companhia (e por consequência lógica também dos acionistas minoritários)
admite mitigação. Todavia, nem sempre é fácil identificar com precisão as hipóteses concretas de
“desvio lícito” do controlador, assim entendida a possibilidade de sacrificar os interesses imediatos da
companhia em prol de outros interesses mediatos da coletividade social.567
interesse dos minoritários, relacionado à rentabilidade das ações a partir de suas cotações, é, por definição,
flutuante. Nesse sentido, Caio Tácito (Temas de direito público: estudos e pareceres, v. 1, p. 696). É também nesse
sentido que se deve entender o trecho de Maria Carla Pereira Ribeiro transcrito a seguir: “Como resultado da
conciliação do inconciliável, ou a tendência será a fuga do capital particular, quando o lucro não se confirmar,
ou a centralização do ente público participante na rentabilidade e lucratividade do empreendimento, o que
refugiria à aceitação lógica do investimento público” (RIBEIRO. Sociedade de economia mista & empresa privada:
estrutura e função, p. 95-96).
566
Observe-se que, na sociedade de economia mista, o controlador, que é o Poder Público, não pode deixar de
efetivamente exercer seu poder de controle em nenhum momento. Trata-se de um dever-poder administrativo.
Enquanto a companhia permanecer na qualidade de sociedade de economia mista — até sua extinção nessa
condição —, o Estado, em sentido amplo, deve controlar os rumos da vida empresarial da sociedade. Não é
possível, por exemplo, que o Estado deixe de exercer temporariamente seu poder de mando, nem que o fracione
e ceda alguma parcela aos acionistas privados.
567
PINTO JUNIOR. O novo mercado da BOVESPA e o compromisso da sociedade de economia mista com práticas
de boa governança corporativa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 57.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
177
568
“Não se deve confundir o objeto com os fins da empresa. O primeiro, por ditame constitucional e definição legal,
é a exploração da atividade econômica sob qualquer das suas modalidades: comercial, industrial, bancária etc”.
[...] “Os fins são os inerentes a qualquer atividade estatal: a consecução do bem comum, a satisfação do interesse
coletivo. Na atividade privada a empresa tem por alvo a obtenção de lucro, ao passo que a entidade estatal tem
em mira o interesse público, ainda que na exploração da atividade econômica obtenha lucro, e é natural que o
procure, pelo menos para cobrir os gastos com suas necessidades básicas” (MUNIZ. A empresa pública no direito
brasileiro, p. 59, grifos no original).
569
GRAU. Lucratividade e função social nas empresas sob controle do Estado. Revista de Direito Mercantil, Industrial,
Econômico e Financeiro, p. 55.
570
Adilson Abreu Dallari defende que a inclusão de capítulo próprio para as sociedades de economia mista na Lei
das S.A. destina-se a defender os interesses dos sócios minoritários (Acordo de acionistas: empresa estadual
concessionária de serviço público federal: manutenção da qualidade de acionista controlador. Revista Trimestral
de Direito Público, p. 101).
571
“Não se pode esquecer que a decisão privada de participar do capital de sociedade de economia mista leva em
conta algumas peculiaridades da sua atuação. É sabido que a companhia sob controle estatal também pode
desfrutar de vantagens estratégicas em relação às empresas particulares, a saber: oportunidades diferenciadas
de negócios (normalmente derivadas da qualidade de acionista controlador público), atuação em ambiente
regulado com demanda assegurada ou de monopólio natural, acesso a linhas de crédito especiais que dependam
de garantia prestada pelo ente controlador (instituições financeiras multilaterais), peso político para interferir
no processo político ou regulatório em assuntos que interessam diretamente à companhia. O efeito positivo
decorrente dessas situações serve para compensar o receio da adoção de políticas empresariais motivadas pelo
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
178 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
interesse público, que possam sacrificar o objetivo de maximização de lucros” (PINTO JUNIOR. Regulação
econômica e empresas estatais. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, p. 147).
572
Segue a íntegra do dispositivo normativo: “Art. 238. A pessoa jurídica que controla a companhia de economia
mista tem os deveres e responsabilidades do acionista controlador (arts. 116 e 117), mas poderá orientar as
atividades da companhia de modo a atender ao interesse público que justificou a sua criação”.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
179
moderação e bom senso, porque o simples fato de haver um controlador público não
significa autorização para expropriação dos acionistas privados.573 574
Em síntese: o objeto das estatais, e, de modo específico, o das sociedades de
economia mista, que é o exercício de atividades econômicas propriamente ditas e/ou
a prestação de serviços públicos, não se confunde com seu fim, que é a satisfação do
interesse público. No conflito entre os interesses do acionista controlador da economia
mista e os demais, há de se reconhecer que a hipótese resolve-se, de um lado, com a
aceitação, por parte dos acionistas privados, de que participam de um empreendimento
integrante da Administração Pública, com todos os seus ônus e bônus, e, por parte do
Poder Público, com a consciência de que o “desvio lícito de controle” até os objetivos
de interesse público deve estar devidamente justificado e não significar sacrifício insu-
portável, expropriação disfarçada ou conduta antieconômica.575 Até porque — e esse é
um dado que deve ficar claro na cabeça dos administradores da economia mista — ela
lhes acenou com o propósito de lucro à época da captação de recursos.576
573
“Os sócios públicos, controlando as sociedades, podem ser tentados a satisfazer — sem qualquer intuito
lucrativo — necessidades públicas satisfazíveis directamente com a actividade delas. Mas não têm o direito de
cumprir a tentação. Embora majoritários, devem respeitar o modo de ser das sociedades, as suas características
essenciais; não lhes é lícito anularem o escopo que, por definição (legal), é comum a todos os sócios” (ABREU.
Da empresarialidade: as empresas no direito, p. 158).
574
Carlos Ari Sundfeld defende a possibilidade da admissão de “sócio privado estratégico” — sócio minoritário
privado com poderes dos quais decorram condicionamentos ao sócio público. Isso estaria conforme à ideia de,
no interior da sociedade de economia mista, criar um contrapoder à força do Poder Público, semelhante à ideia
de divisão de poderes da teoria política. Carlos Ari ainda defende a possibilidade de acordos de acionistas
nas sociedades de economia mista — no caso, entre o Estado e seu sócio estratégico — sem a necessidade de
prévia autorização legal, por entendê-lo ato de mera gestão exercitável dentro do campo de ação do Poder
Executivo. Claro que, no contexto desse acordo de acionistas, o Poder Público não pode abrir mão de seu poder
de controle. A cessão do poder de controle — que significa, na prática, o fim da sociedade de economia mista —
demandaria, aí sim, prévia autorização legal (SUNDFELD, Carlos Ari. A participação privada nas empresas
estatais. In: SUNDFELD (Org.). Direito administrativo econômico, p. 264-285). Caso interessante envolvendo
os limites do Poder Público, ao pretender invalidar acordo de acionistas celebrado com sócio estratégico, foi
apreciado pelo STJ a respeito da pretensão do Estado do Paraná de declarar a ineficácia de acordo de acionistas
celebrado entre ele, como acionista controlador da Companhia de Saneamento do Paraná (SANEPAR), e a
Dominó Holdings S.A. O Estado, cinco anos após a celebração do acordo, declarou sua ineficácia por decreto do
Governador, sob o argumento de que fora firmado por Secretário de Estado, quando só o Governador teria esse
poder, e porque o acordo implicava, na prática, a transferência do poder de controle do ente público ao parceiro
privado. O tribunal local denegou a segurança impetrada pela empresa contra o ato do Estado (a suspensão da
eficácia do acordo de acionistas via decreto do Governador), mas o STJ reverteu a decisão a favor da Dominó
Holdings. Sem entrar propriamente no mérito, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o Estado deveria ter
concedido oportunidade ao sócio privado de apresentar explicações e de produzir razões favoráveis ao acordo.
Ver acórdão proferido no Recurso Ordinário em MS nº 18.769/PR (2004/0112390-6), Relatora Eliana Calmon,
julgado em 02 de dezembro de 2004, DJ, 21 fev. 2005. Para o comentário à decisão (MUSSI. Acordo de acionistas
na sociedade de economia mista (comentários a acórdão do Superior Tribunal de Justiça). Revista Brasileira de
Direito Público da Economia – RBDE, p. 239-252).
575
Ainda que longo, merece ser transcrito trecho de João Pacheco de Amorim: “Todavia, se nas empresas mistas
não existe como nas empresas privadas uma ‘total coerência entre objecto social e escopo, entendido este como
destinação última dos resultados da gestão’ (contendo-se ‘um e outro estritamente nos limites da lógica do
interesse privado’), não deixam por isso de ser conciliáveis os interesses públicos e privados. Por um lado, a
prossecução do lucro não significa necessariamente e sempre a sua maximização, pelo que pode o interesse público que
presida à atividade desenvolvida pela empresa ser realizado sem o sacrifício do interesse societário dos privados; e por
outro lado, os sócios públicos não podem deixar de se preocupar, por seu turno, com o equilíbrio financeiro da empresa”
(AMORIM. As empresas públicas no direito português: em especial, as empresas municipais, p. 64-65, grifos
nossos).
576
Em termos concretos, lista de sugestões com o propósito de minimizar conflitos entre acionista controlador
e minoritários vem na lição de Mario Engler: (i) definir com clareza a missão pública de cada estatal; (ii)
estabelecer o limite de sacrifício passível de ser imposto à lucratividade da companhia para custeio de políticas
públicas incluídas em seu objeto social; (iii) ser transparente na divulgação dos custos implícitos das políticas
públicas e restringir a arbitrariedade na introdução de mudanças posteriores; (iv) valorizar a estrutura interna
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
180 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
A Lei das Estatais possui algo a dizer a respeito do tema. Seu art. 4º, par. 1º,
informa que a pessoa jurídica que controla a sociedade de economia mista tem os de-
veres e responsabilidades do acionista controlador, na forma da lei das SA. Até aqui,
nenhuma novidade em relação à Lei das SA, que destaca a mesma ideia: o controlador
da economia mista é, antes de tudo, controlador de uma sociedade anônima, possuindo
os direitos e deveres de um.
O legislador de 2016, contudo, sublinhou a persecução do interesse da companhia.
Comparemos os dois artigos, com os nossos destaques:
Art. 238 da Lei das SA (Lei nº 6.404/76): A pessoa jurídica que controla a companhia de
economia mista tem os deveres e responsabilidades do acionista controlador (artigos 116
e 117), mas poderá orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse público
que justificou a sua criação.
Art. 4º, par. 1º, da Lei das Estatais (lei n. 13.303/2016): A pessoa jurídica que con-
trola a sociedade de economia mista tem os deveres e as responsabilidades do
acionista controlador, estabelecidos na Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976,
e deverá exercer o poder de controle no interesse da companhia, respeitado o interesse
público que justificou sua criação.
A Lei das Estatais sequer teria como defini-lo de modo exaustivo. O que faz é traçar
indicativos. Pois bem: de início, o dispositivo ressalva as “razões que motivaram a au-
torização legislativa” que precede a criação da estatal. É que tais razões — claro que na
medida em que estejam presentes no texto da lei autorizativa — indicam, elas próprias,
finalidades que devem pautar a atuação da empresa.
Outra manifestação do interesse público decorre do alinhamento entre os objetivos
da empresa e os objetivos de políticas públicas, no modo como este alinhamento foi
indicado numa carta anual, subscrita pelos membros do Conselho de Administração da
empresa (art. 8º, I, da Lei das Estatais). A carta é um estudo sobre quais são e quanto vai
custar, para aquele ano, a concretização dos objetivos de interesse geral que justifica-
ram a criação da estatal.577 Este seria o interesse público como alinhamento economicamente
sustentável entre o fim empresarial da estatal e as políticas públicas.
Portanto, o quadro estruturado pela Lei das Estatais pode ser assim organizado.
A estatal não pode agir contra o interesse público que justificou sua criação. O foco da
empresa, no entanto, é numa atuação empresarial salutar e funcional (“o controlador
deve exercer o poder de controle no interesse da companhia”). Além de não agir contra
o interesse que justificou sua criação, a empresa pode, desde que isto se justifique econo-
micamente e esteja alinhado com sua lei autorizativa, concretizar propósitos de interesse
geral. A questão é menos jurídica do que contábil, administrativa e empresarial: o que
foge ao plano de negócios não pode ser conforme ao interesse público; o que escapa
à cultura administrativa e gerencial da empresa não pode ser conforme ao interesse
público; o que é ruinoso economicamente não pode ser conforme ao interesse público.578
Já que incursionamos na seara do Direito Empresarial, discutamos tema rela-
cionado ao objeto das estatais, especificamente ao das sociedades de economia mista
abertas. É o seguinte: podem as sociedades de economia mista abertas participar do Novo
Mercado da Bovespa? O Novo Mercado é segmento especial de listagem, na Bolsa de
Valores de São Paulo, onde só são admitidas companhias que adotem práticas avançadas
de Governança Corporativa. O interesse das sociedades de economia mista abertas em
577
Art. 8º As empresas públicas e as sociedades de economia mista deverão observar, no mínimo, os seguintes
requisitos de transparência: I - elaboração de carta anual, subscrita pelos membros do Conselho de
Administração, com a explicitação dos compromissos de consecução de objetivos de políticas públicas pela
empresa pública, pela sociedade de economia mista e por suas subsidiárias, em atendimento ao interesse
coletivo ou ao imperativo de segurança nacional que justificou a autorização para suas respectivas criações, com
definição clara dos recursos a serem empregados para esse fim, bem como dos impactos econômico-financeiros
da consecução desses objetivos, mensuráveis por meio de indicadores objetivos.
578
A história recente do Brasil tem sido fértil em exemplos de supostos casos de abusos de poder de controle
do acionista majoritário de estatais, em detrimento do interesse de minoritários, e, no limite, da própria
companhia. Um dos mais notórios é o da Eletrobras, a qual relatamos aqui sem proferir juízo definitivo de
valor (todas as notícias aqui indicadas são públicas). A União, controladora da empresa, haveria-a forçado a
aderir à Medida Provisória nº 579/2012 (que se tornou a Lei nº 12.783/2013). A circunstância gerou, inclusive,
multa da CVM à União, posteriormente revertida. É que, com vistas à redução da conta de energia cobrada
ao consumidor final, a MP nº 579/2012 adotou algumas medidas, sendo a mais discutível a antecipação da
prorrogação das concessões de geração, transmissão e distribuição de energia anteriores à Lei nº 8.987, de
1995. A União possibilitou às concessionárias a antecipação do término de seus contratos, estendendo-os, sem
licitação, por mais trinta anos. As concessionárias receberiam, em troca, indenização pelos investimentos não
amortizados ou não depreciados. Houve dúvida quanto à correção da indenização, e muita suspeita de redução
de receita futura. Em razão disso, as empresas de energia, especialmente a Eletrobras, perderam bastante valor
de mercado (a Eletrobras perdeu 62% do valor de mercado entre 2011 e 2016). Agradeço ao meu aluno Bruno
Arcanjo pelo resumo do caso.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
182 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
579
No entanto, é de dever que, por vezes, nem sequer ingressar no Novo Mercado, ou em qualquer outro índice
de governança, significa valorização diferenciada. O risco-governo existe para qualquer estatal — e tal risco é
precificado pelo mercado (JULIBONI. Empresas privadas se valorizam quase o dobro das estatais na BOVESPA.
Exame).
580
PINTO JUNIOR. O novo mercado da BOVESPA e o compromisso da sociedade de economia mista com práticas
de boa governança corporativa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 54. Calixto
Salomão Filho, ao reconhecer a importância, e também a insuficiência, de solução contratual, não institucional,
como a do Novo Mercado — trata-se de regulamento criado pela BOVESPA ao qual se adere por intermédio
de contrato —, para o fortalecimento de nosso mercado de capitais, vê nela três bases principais, sendo apenas
uma delas inovadora, e as demais apenas intensificações de tendências já verificadas na própria Lei das S.A.
A primeira base seria a informação completa (os requisitos de informação previstos no regulamento iriam
além das previsões legais); a segunda base, o reforço das garantias patrimoniais dos minoritários no momento
da saída da sociedade, também estaria em linha com a evolução legal; somente a terceira base do Novo
Mercado, chamada de “proteções estruturais”, por modificar a própria conformação interna das sociedades,
seria inovadora: a previsão da existência, apenas, de ações ordinárias (o que encareceria o controle único) e a
resolução de conflitos por intermédio de arbitragem (SALOMÃO FILHO. O novo direito societário, p. 58-60).
581
SALOMÃO FILHO. O novo direito societário, p. 56. Estudo empírico sobre os dados de contabilidade de uma
série de estatais federais vis-à-vis os dados de contabilidade de empresas privadas com ações negociadas no
Novo Mercado entre dezembro de 1999 e dezembro de 2006 identificou qualidade significativamente melhor
nos dados contábeis das empresas do Novo Mercado (ANTUNES et al. Empresas estatais federais e empresas
do Novo Mercado da Bovespa: um estudo comparativo acerca da qualidade da informação contábil utilizando
dados em painel).
582
Até fevereiro de 2014, apenas o Banco do Brasil e a SABESP estão no Novo Mercado da Bovespa. Em 2015, a
Bovespa lançou um programa de governança para estatais, o programa Destaque em Governança de Estatais
(informações em: <http://www.bmfbovespa.com.br/pt_br/listagem/acoes/governanca-de-estatais>. Acesso em:
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
183
23 jul. 2017). As conclusões lançadas quanto à participação de estatais no Novo Mercado são aplicáveis à adesão
ao programa Destaque em Governança de Estatais: as empresas podem participar, e o programa é compatível
com a Lei das Estatais.
583
Na doutrina, por todos, Selma Lemes (Arbitragem na Administração Pública: fundamentos jurídicos e eficiência
econômica). O tema ganhou nova força com a edição da Lei nº 13.129, de 26 de maio de 2015.
584
O grande ponto, cuja resposta continua em aberto, é saber, de modo concreto, quais são os interesses públicos
secundários e primários para o fim de definir a arbitrabilidade objetiva. Alguns contratos públicos têm definido,
em seu corpo, uma lista de matérias que admitem e não admitem arbitragem. É boa medida.
585
“Apesar de o ingresso no Novo Mercado produzir realmente a valorização das participações minoritárias, o
efeito não pode ser creditado ao esvaziamento econômico do lote de ações pertencente ao acionista controlador.
Isso porque o incremento de valor também é fruto da maior transparência, seriedade de gestão e aumento da
liquidez do mercado acionário, que fazem parte dos compromissos assumidos pela companhia e pelo acionista
controlador, sem envolver qualquer renúncia a direitos patrimoniais” (PINTO JUNIOR. O novo mercado da
BOVESPA e o compromisso da sociedade de economia mista com práticas de boa governança corporativa.
Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 60).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
184 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
naturalmente incidirá sobre a estatal toda uma regulação mais estrita, o que é natural,
já que haverá apelo à poupança pública. Diante dessa opção, a ninguém ocorreria
questionar o administrador público sobre a constituição da companhia de capital aberto,
como se estivesse “transigindo com o patrimônio público” apenas porque adotou forma
societária mais exigente. A opção é legítima — e o grau de intensidade da regulação é
consequência natural e igualmente legítima daquela opção.586 Não há ofensa a qualquer
princípio ou regra na hipótese de sociedade de economia mista aberta ingressar no
Novo Mercado. Compartilhar benefícios com os acionistas minoritários é, apenas, uma
das regras do jogo, cuja participação pode ser interessante à Administração Pública. De
igual modo, também não há violação na adesão ao programa Destaque em Governança
de Estatais, da BOVESPA. São estratégias de valorização da empresa.
Certamente não são todas as sociedades de economia mista abertas que se qua-
lificam para ingressar no Novo Mercado, e sequer é verdade que, sempre que uma
economia mista tenha condições de cumprir os requisitos para ingressar na listagem,
o Estado deva inscrevê-la. Tudo vai depender do cálculo de vantagens e desvantagens
do caso. O que se pode afirmar é que, se for o caso de ingressar no Novo Mercado,
inexistirão obstáculos jurídicos.
586
PINTO JUNIOR. O novo mercado da BOVESPA e o compromisso da sociedade de economia mista com práticas
de boa governança corporativa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 59.
587
SILVA. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares, p. 172-174.
588
Essa é, contudo, a opinião da Professora Lúcia Valle Figueiredo, vazada nos seguintes termos: “Não entraremos
nessa peleja, porque todo o objetivo de nosso trabalho é o de chegar à conclusão de que as sociedades de
economia mista e empresas públicas — estas ‘formas híbridas’, para Jean Denis Brédin — não se inserem, quer
na classificação de direito público, quer na de direito privado”. E nas definições dos entes estatais, especialmente
no de empresa pública: “Empresa pública é uma forma de atuação da União, dos Estados e dos Municípios, em
um regime em estreita simbiose entre o público e o privado, quando, a isso, o Estado se encontra expressamente
autorizado por lei, forma, esta, personalizada. Por sua vez, sociedade de economia mista é um cometimento
estatal, personalizado, e associado a capitais particulares, para a consecução de fins públicos, revestindo-se da
forma de sociedade anônima, mas submissa, também, em certos aspectos, ao regime jurídico administrativo”
(Empresas públicas e sociedades de economia mista, p. 31, 38). Falando também em “regime jurídico híbrido”, na
defesa de algo mais próximo da nossa proposta (ZIMMER JÚNIOR. Curso de direito administrativo, p. 286).
Ainda sobre a “natureza híbrida” do regime jurídico das estatais, v. CARVALHO FILHO. Manual de direito
administrativo, p. 470. Na jurisprudência, v. RESP nº 417.794/RS, julgado em 03 de agosto de 2002. Na doutrina
estrangeira, sobre o “caráter híbrido das empresas públicas”, v. PELLETIER. L’entreprise Publique de Service
Public: Déclin et Mutation, p. 142.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
185
589
ESTORNINHO. A fuga para o direito privado: contributo para o estudo da actividade de direito privado da
Administração Pública; SOARES. Direito administrativo, p. 57-58; MAURER. Direito administrativo geral, p. 42-48.
590
GONZÁLEZ-VARAS IBÁÑEZ. El derecho administrativo privado; VÁZQUEZ. Introducción a la doctrina del
‘derecho privado administrativo’. In: AREVALO; MORENO; VARGAS (Org.). Administración instrumental: libro
homenaje a Manuel Francisco Clavero Alevaro, p. 230-239.
591
TÁCITO. Temas de direito público: estudos e pareceres, v. 1, p. 698.
592
“Independentemente de serem exploradoras de atividade econômica ou prestadoras de serviço público, as
empresas públicas e as sociedades de economia mista são pessoas jurídicas de direito privado. Destarte, em
regra, os seus atos submetem-se ao direito comum, o qual é apenas parcialmente derrogado pelo direito público”
(CARVALHO. Curso de direito administrativo: parte geral, intervenção do Estado e estrutura da administração,
p. 678).
593
BARROSO. Regime jurídico das empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 86.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
186 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
é preciso “levar a sério” a natureza empresarial das estatais, em especial quando atuam
concorrencialmente diante das demais empresas privadas.594
Claro que não devemos cair no extremo oposto e fetichizar a submissão ao Direito
Privado, tratando as estatais, especialmente quando prestadoras de serviços públicos,
como empresas privadas quaisquer.595 Não precisamos caminhar numa senda de extre-
mos, onde, de um lado, há uma inevitável atração ao regime de Direito Público — são “es-
tatais” e precisam ser controladas, já que o desvio e o abuso de forma andam ao lado —,
e, de outro, uma fanática defesa do regime de Direito Privado, pois são “empresas” e
só assim podem ser entendidas. Deve existir um caminho do meio. E há.
O regime é o de Direito Privado, mas com exceções de Direito Público que devem
ser interpretadas conforme o propósito da estatal naquela atuação específica. Essa proposi-
ção geral desencadeia uma série de consequências. Todavia, antes de descer a elas,
justificá-la-emos ponto por ponto.
Afirmar que “o regime é o de Direito Privado” não constitui novidade. É o
que afirma a Constituição da República em seu art. 173, §1º, II (“sujeição ao regime
jurídico próprio das empresas privadas”).596 Defender outra coisa seria agir contra a
Constituição.597 Da mesma forma, dizer que, no regime das estatais, existem “exceções
594
SOUZA; SUNDFELD. Licitações nas estatais: levando a natureza empresarial a sério. Revista de Direito
Administrativo, p. 13-30. O próprio STF já se manifestou, em diversas oportunidades, a respeito da
impossibilidade de se admitir a personalidade e o regime jurídico de direito público a entidades públicas que
se prestam a intervir concorrencialmente na economia privada. Um dos casos mais famosos foi o do Banco
Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE), que se afirmava uma autarquia, mas concorria com
os bancos comerciais da região. Nesse sentido, o RE nº 115.062-RS, julgado em 03 de março de 1989 (grifos
nossos): “EMBARGOS A EXECUÇÃO FISCAL MOVIDA PELO BRDE PELO PROCEDIMENTO DA LEI
DAS EXECUÇÕES FISCAIS – OFENSA AO ART. 170 E PARAGRÁFOS DA CONSTITUIÇÃO (EC Nº 1/69).
O BANCO REGIONAL DE DESENVOLVIMENTO DO EXTREMO SUL – BRDE – EMPRESA ESTATAL QUE
EXPLORA ATIVIDADE ECONÔMICA, NÃO PODE VALER-SE DE MECANISMO DE EXECUÇÃO DE DÍVIDAS
DE QUE AS EMPRESAS PRIVADAS SE VEEM EXCLUÍDAS, INDEPENDENTEMENTE DO FATO DE O
BANCO SE AFIRMAR AUTARQUIA. A NORMA DO PARÁGRAFO 2º DO ART. 170 DA CONSTITUIÇÃO DE
1967 (EC Nº 1/69) CONTÉM GARANTIA CIVIL, POR ELA CONCEDIDA A TODAS AS PESSOAS FÍSICAS E
JURÍDICAS NACIONAIS OU ESTRANGEIRAS, QUE AOS ESTADOS NÃO É LÍCITO SEQUER MODIFICAR,
MUITO MENOS, NEGAR E DESCONHECER. RECONHECIDO E PROVIDO”. Ver, ainda, RE nº 115.891 e
Orientação Jurisprudencial Transitória nº 34 da SDI-1 do Tribunal Superior do Trabalho (“O Banco Regional
de Desenvolvimento do Extremo Sul – BRDE é uma entidade autárquica de natureza bancária, e, como tal,
submete-se ao art. 173, §1º, da Constituição Federal de 1988. Desta forma, sendo a natureza das atividades por
ele exercidas similares às de qualquer instituição financeira, seus empregados são bancários, regendo-se pelas
normas especiais a eles referentes, inclusive o art. 224 da CLT”).
595
BANDEIRA DE MELLO. Sociedades mistas, empresas públicas e o regime de Direito Público. Revista Eletrônica
de Direito Administrativo Econômico – REDAE.
596
“O que parece indiscutível, todavia, é que as sociedades de economia mista, no direito brasileiro, são pessoas
jurídicas de direito privado, por disposições expressas da Constituição Federal (art. 173, §1º) e da Lei nº 6.404/76
(Lei das S.A., arts. 2º e 235), sujeitando-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto
às obrigações trabalhistas e tributárias, com derrogações desse regime, mais significativas entre as prestadoras
de serviços públicos” (ARAUJO. Administração indireta brasileira, p. 87-88, grifos no original). Para as empresas
públicas, em comentário de idêntica orientação, v. p. 108, 115.
597
Curiosa é a posição de Toshio Mukai, posição que, na prática, acaba propondo a submissão da maioria das
estatais ao regime de direito público. O autor estabelece distinção entre empresas públicas (em sentido amplo,
englobando empresas públicas propriamente ditas e sociedades de economia mista) e empresas estatais: as
empresas públicas, nesse sentido amplo, seriam as que prestariam serviços públicos industriais ou comerciais;
as empresas estatais seriam as que desempenhariam atividades econômicas simples. Mukai acredita que a
distinção entre serviços públicos industriais ou comerciais e atividades econômicas está em que os primeiros
são aqueles serviços que o Estado exerce por interpostas pessoas, e que, por atenderem a necessidade essencial
ou quase essencial da coletividade, apresentam um interesse público objetivo na sua gestão; já a atividade
econômica seria aquela que o Estado resolve assumir dentro de sua política econômica, observados os
princípios constitucionais da ordem econômica (p. 359). Haveria, assim, distinção ontológica entre as duas
atividades. Para as empresas públicas, prestadoras de serviços públicos industriais ou comerciais, os quais
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
187
seriam, na verdade, nada mais do que serviços públicos, o regime de direito administrativo seria de rigueur —
eventuais personificações de direito privado, havidas pelo legislador, seriam simulações e não poderiam
prevalecer (“Trata-se de uma forma jurídica destituída de valor transcendental, e, por isso, no caso, é o fundo
que deve satisfazer a forma”). As consequências seriam a obrigatoriedade da licitação, o regime estatutário para
os servidores, a admissibilidade da impetração de mandado de segurança em face de suas ações ou omissões,
o controle abrangente dos Tribunais de Contas etc. Já as empresas estatais, que desempenhariam atividades
econômicas simples, só estariam submetidas ao direito público em suas atividades organizacionais internas;
todos os demais aspectos seriam regidos pelo direito privado. Há duas formas de se entender a posição de
Toshio Mukai: uma, que a torna relativamente inovadora, porém insustentável; outra, que a reduz ao consenso
doutrinário. O ponto chave de sua tese é a distinção entre serviços públicos comerciais ou industriais — vamos
chamá-los de “serviços públicos econômicos” — e atividades econômicas simples. Para a maioria da doutrina,
como se sabe, a atividade econômica é gênero de duas espécies: serviços públicos e atividade econômica em
sentido estrito (v., por todos, GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 103; a tese foi, inclusive,
adotada pela Lei das Estatais). Desse modo, é possível identificar dois sentidos para “atividade econômica”,
um sentido amplo, abrangente da ideia de serviços públicos e da atividade econômica estrita, e esta última. Os
artigos da Constituição que se referem à atividade econômica passam a ser lidos a partir de sua identificação
com o sentido amplo ou estrito: o art. 173 e seu parágrafo primeiro remetem ao sentido estrito; o art. 174 refere-
se ao sentido amplo, assim como o art. 170 (GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 105, 109). O
problema da posição de Toshio Mukai está na vaguidade da conceituação “essencialística”, por assim dizer,
da distinção entre serviço público econômico e atividade econômica. Dizer que uma atividade é essencial ou
quase essencial à coletividade, havendo um interesse público objetivo em sua gestão, não permite a criação de
critério seguro para a diferenciação em relação às atividades econômicas propriamente ditas, já que, até por
determinação constitucional, para que o Estado possa exercer estas haverá que existir um “relevante interesse
coletivo” (art. 173, caput, CRFB/88). Será que o exercício de uma atividade “quase essencial” à coletividade
não é menos importante do que o exercício de um mister de “relevante interesse coletivo”? Esse embaralhado
de substantivos abstratos seria menos deletério se não pelas consequências claramente contra Constitutionem
subjacentes à proposta: afirmar que o regime da grande maioria das estatais é de direito público, quando a
Constituição afirma o contrário. É mais simples ficar com a noção sedimentada pelo conhecimento convencional:
se a empresa está prestando serviço público, entendido este a partir de definição complexa e composta de
uma série de índices identitários (índice subjetivo, índice formal, índice material), aplica-se de modo intenso o
regime de direito público; se a atividade é econômica, o regime de direito privado deve preponderar. De resto,
é verdadeira a afirmação de Marçal Justen Filho segundo a qual “aquilo que os franceses tratam como serviço
público industrial e comercial usualmente se configura, em face do Direito brasileiro, como atividade econômica
em sentido restrito”. Parece-nos que a tese de Toshio Mukai acaba invertendo a polaridade do regime jurídico
básico das estatais: deixa de ser o regime de direito privado e passa a ser o de direito público. Cf. MUKAI. O
direito administrativo e os regimes jurídicos das empresas estatais, p. 155-224, 258, 269, 358-359; JUSTEN FILHO. O
regime jurídico das empresas estatais e a distinção entre ‘serviço público’ e ‘atividade econômica’. Revista de
Direito do Estado, p. 121, grifos no original.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
188 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
598
Por exemplo, em Eros Roberto Grau (A Ordem Econômica na Constituição de 1988, passim). Contra, afirmando que,
“em parte, a linha traçada por Grau precisa ser refutada”, porque, ainda quando se trata de serviço público, a
estrutura da companhia mista continua sendo privada, e, mesmo na prática de atividade econômica em sentido
próprio, a criação, orientação e direção das estatais permanecem condicionadas à legislação de direito público,
v. RIBEIRO. Sociedade de economia mista & empresa privada: estrutura e função, p. 129. Parece haver confusão,
por parte da autora, entre as regras atinentes à estrutura e à função das estatais. Estruturalmente sempre
serão criaturas de direito privado, mas, em termos funcionais, os controles de direito público serão maiores
ou menores conforme a finalidade que estejam exercendo. Em sentido próximo ao que acabamos de defender,
GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 122. Além disso, afirmar que, mesmo quando intervindo na
economia em sentido próprio, as estatais continuarão genericamente vinculadas à legislação de direito público,
é apostar numa generalidade para debilitar uma proposição específica inteiramente sustentável. É evidente
que as estatais, mesmo quando intervêm diretamente na economia, continuarão, por exemplo, integrando a
estrutura da Administração Pública indireta; continuarão “empresas estatais”; no entanto, o importante é que,
aí, seu regime jurídico preponderante será de direito privado.
599
Cf. ementa da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 83, julgada em 24 de abril de 1991: “Administração
indireta do Estado-membro: disciplina de suas relações de trabalho (CF, art. 173, §1º): competência federal, já
quando se cuide de sociedades de economia mista e empresas públicas, sejam elas dedicadas a exploração de atividade
econômica ou a prestação de serviço público —, já quando se trate de autarquia, destinada, no entanto, a exploração
de atividade econômica: inconstitucionalidade, portanto, de disposição transitória de Constituição Estadual,
que lhes impõe prestações de natureza salarial” (grifos nossos). Ainda, a famosa decisão que submeteu
a execução em face da ECT ao regime dos precatórios, por entendê-la uma empresa pública prestadora de
serviços públicos tout court. O destaque na ementa do RE nº 229.696, julgado em 19 de dezembro de 2002, foi
acrescentado: “RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS
E TELÉGRAFOS. IMPENHORABILIDADE DE SEUS BENS, RENDAS E SERVIÇOS. RECEPÇÃO DO ARTIGO
12 DO DECRETO-LEI Nº 509/69. EXECUÇÃO. OBSERVÂNCIA DO REGIME DE PRECATÓRIO. APLICAÇÃO
DO ARTIGO 100 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. À empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, pessoa jurídica
equiparada à Fazenda Pública, é aplicável o privilégio da impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços. Recepção do
artigo 12 do Decreto-Lei nº 509/69 e não-incidência da restrição contida no artigo 173, §1º, da Constituição Federal, que
submete a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica ao regime
próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias. 2. Empresa pública que não exerce
atividade econômica e presta serviço público da competência da União Federal e por ela mantido. Execução. Observância
ao regime de precatório, sob pena de vulneração do disposto no artigo 100 da Constituição Federal. Recurso
extraordinário conhecido e provido”. A referência à distinção entre estatais prestadoras de serviços públicos e
exercentes de atividades econômicas também está presente em outro acórdão do STF envolvendo os Correios,
no qual se reconheceu a imunidade tributária recíproca em prol de suas atividades. É ler a ementa do RE
nº 354.897, julgado em 17 de agosto de 2004: “CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. EMPRESA BRASILEIRA
DE CORREIOS E TELÉGRAFOS: IMUNIDADE TRIBUTÁRIA RECÍPROCA: C.F., art. 150, VI, ‘a’. EMPRESA
PÚBLICA QUE EXERCE ATIVIDADE ECONÔMICA E EMPRESA PÚBLICA PRESTADORA DE SERVIÇO
PÚBLICO: DISTINÇÃO. I. - As empresas públicas prestadoras de serviço público distinguem-se das que exercem
atividade econômica. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos é prestadora de serviço público de prestação
obrigatória e exclusiva do Estado, motivo por que está abrangida pela imunidade tributária recíproca: C.F., art.
150, VI, ‘a’. II. - RE conhecido e provido” (grifos nossos).
600
A Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeronáutica (Infraero), empresa pública federal encarregada da
gestão de aeroportos, tanto presta serviços públicos relacionados à movimentação de passageiros, aeronaves
e cargas, quanto desempenha atividade econômica em sentido estrito nos aeroshoppings. Aliás, segundo consta,
a renda obtida com os centros comerciais vem superando aquela obtida com a prestação dos serviços públicos
(JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 183). O tema insere-se num debate amplo a respeito do
uso das potencialidades econômicas agregadas à prestação de serviços públicos. Marçal Justen Filho acredita
que isso se aplique, em especial, às estatais que prestem serviços públicos, já que a liberdade de empresa
traria oportunidades de ampliação das atividades empresariais. No caso das estatais que atuam no exercício
de atividades econômicas em sentido estrito, a possibilidade de que venham a prestar serviços públicos já
seria mais complicada, tendo em vista o regime público que caracteriza a prestação destes. Pois bem: essas
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
189
das restrições de Direito Público deve ser graduada de acordo com a atividade exercida,
e não conforme a uma categorização doutrinária formal, prévia e imutável. Há casos
em que não será operacionalmente possível aplicar diferentes facetas de dois regimes
jurídicos distintos a uma mesma empresa. Propomos, então, na inviabilidade da solução
ótima, que valha o regime jurídico associado à atividade predominante.601
Ainda estamos em linhas gerais, mas já começamos a divisar uma lógica de inter-
pretação. O regime jurídico é o de Direito Privado, com exceções constitucionais, cuja
incidência, maior ou menor, indo até seu quase afastamento, dependerá da atividade
que a estatal estiver exercendo: serviço público, atividade de apoio à Administração
Pública, serviço público prestado em concorrência, atividade privada propriamente dita.
Sempre que possível, as restrições de Direito Público deverão estar em harmonia
com a finalidade da atividade prestada, o que poderá levar a uma pluralidade de “as-
pectos” de regimes jurídicos distintos sendo aplicados dentro de uma mesma empresa.
Embora variadas consequências decorram dessa multiplicidade finalística de regi-
mes jurídicos, uma das mais evidentes é o tratamento dos bens das estatais. Tratar-se-ia
estatais prestadoras de serviços públicos teriam o dever jurídico de, havendo a possibilidade do exercício de
atividades econômicas privadas conexas à prestação do serviço público, viessem a fazê-lo, tirando proveito da
economia de escopo. Haveriam que aproveitar todas as oportunidades empresariais geradas pela prestação
do serviço público, em especial com a finalidade de reduzir tarifas. Caso não o fizessem, estariam violando o
princípio da indisponibilidade do interesse público pela perda da oportunidade de obter benefícios econômicos
e transferi-los aos usuários de seus serviços (via redução de tarifas). O Poder Público não teria a liberdade de
escolher desempenhar, ou não, a atividade econômica conexa à prestação do serviço público, sob o argumento
da discricionariedade. Assim, por exemplo, ao prestar o serviço público de transporte (transporte público),
a Administração Pública não poderia deixar de obter renda com eventuais áreas ociosas nos terminais. Um
possível fundamento legal para tal dever jurídico seria o art. 11 da Lei Federal nº 8.987/95 (“No atendimento
às peculiaridades de cada serviço público, poderá o poder concedente prever, em favor da concessionária,
no edital de licitação, a possibilidade de outras fontes provenientes de receitas alternativas, complementares,
acessórias ou de projetos associados, com ou sem exclusividade, com vistas a favorecer a modicidade das tarifas
[...]”). Pois bem: concordamos com a proposta do Professor Marçal, embora reconheçamos que oportunidades
empresariais são circunstâncias tendencialmente instáveis, fugazes e polêmicas, sendo perigoso pretender
fundar um dever jurídico (e daí uma responsabilização jurídica) em sua perda. O que parecia uma oportunidade
empresarial pode se revelar uma ilusão. E certamente ninguém pretende impor à Administração Pública a
obrigação de assumir riscos elevados. Daí nossa revisão da proposta: há, sim, um dever jurídico de aproveitar
oportunidades empresariais conexas à prestação de serviços públicos, desde que a oportunidade empresarial
possua risco baixo ou inexistente. Ou seja: só há dever jurídico em sentido estrito de se aproveitar oportunidades
empresariais sólidas. Isso porque o outro lado da história também merece destaque: se muitos serviços públicos
podem acabar sendo subsidiados pelos lucros da atividade privada, o que é ótimo, vale lembrar que esses
mesmos serviços públicos podem ter a continuidade ou a adequação de sua prestação comprometidas por
prejuízos advindos de atividades econômicas que lhe sejam conexas. Em sentido próximo ao de Marçal — mas
tratando da atividade econômica direta do Estado, e não da prestação de serviços públicos, e subvidindo-a
em atividade de assistência existencial do Estado (transporte de pessoas, tratamento de resíduos sólidos) e
atividade privada do Estado com propósito estrito de lucro, e admitindo a legitimidade da utilização periférica
da atividade de assistência existencial para a realização de lucro (como resultado do princípio da eficiência
econômica), v. STOBER. Direito administrativo económico geral: fundamentos e princípios. In: STOBER. Direito
constitucional económico geral: fundamentos e princípios, direito constitucional económico, p. 225-229.
601
A diferenciação de tratamento, a partir dos distintos regimes jurídicos, conforme o tipo de atividade exercida,
foi uma das propostas analisadas — mas rejeitada, porque tida por impraticável — no julgamento do Recurso
Extraordinário da ECT (já mencionado). Registre-se que a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, empresa
pública federal, é exemplo de estatal que simultaneamente presta serviço público (o serviço de carta selada) e
desempenha atividades privadas (a venda de cartões de Natal ou o serviço de courrier, em concorrência com
outras empresas [Fedex, Chronopost etc.]). Entretanto, em nossa opinião, com alguma boa vontade, seria
possível diferençar as atividades e os regimes jurídicos. Por exemplo, seriam penhoráveis os bens da ECT
vinculados diretamente ao Sedex, não os relacionados às cartas seladas. É algo a se pensar e, mais ainda, a se
tentar concretizar (ver proposta no corpo do texto). Do contrário, ainda no exemplo da impenhorabilidade dos
bens da ECT, esta se vai incrustar como uma eterna vantagem competitiva em favor do courrier dos Correios e
em desfavor de todos os demais serviços privados que são seus concorrentes.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
190 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
de uma incidência direta do raciocínio havido para o regime jurídico: se os bens estão
afetados à prestação de algum serviço público ou ao exercício de alguma atividade de apoio à
Administração Pública,602 são bens impenhoráveis. Se não, são bens penhoráveis.603 604 Essa é
a regra de ouro, que, não obstante, é desafiada por uma série de problemas. A eles.
Em primeiro lugar, nem sempre é operacionalmente possível, numa estatal que
preste serviços públicos e atue de modo concorrencial na iniciativa privada, separar
com clareza os bens vinculados a cada uma das atividades. Foi também por isso que o
STF decidiu pela impenhorabilidade de todos os bens da ECT. Será que os caminhões
transportadores de cargas não são os mesmos que levam as cartas seladas? Como se-
parar bens em duas categorias, considerando que podem estar integrados dentro de
um único fluxo de produção? Uma solução seria impor à estatal, por via legislativa
ou judicial, uma separação relativa dos fluxos produtivos. Por mais que isso acarrete
alguma diminuição na eficiência econômica, é a solução second best à opção de tratar
todos os bens como públicos ou privados — o que é ainda mais artificial.
Segundo problema, próximo ao primeiro, é que a conexão entre as atividades de
serviço público e economia estrita gera relação de interdependência entre elas — até
por isso que se cogita de um dever jurídico de aproveitamento de oportunidades.605
Então, mais do que inseparáveis na prática, por conta do compartilhamento de bens
para finalidades distintas, as atividades tornam-se inseparáveis na essência: o serviço
público é meio para a intervenção econômica e/ou vice-versa. As atividades dinamizam-
se reciprocamente. Nesse contexto, o que seria exatamente um bem afetado à prestação
do serviço público e um bem não afetado? Todos os bens, em certa medida, podem
602
Para uma análise aprofundada do conceito de afetação pública de bens, v. TRAORÉ. Droit des propriétés publiques,
p. 53-93. Na doutrina brasileira, cf. CRETELLA JÚNIOR. Tratado do domínio público, p. 149-166.
603
O histórico jurisprudencial do Supremo é confuso. Originalmente, no RE nº 222.041-5/RS, o STF entendeu que
os bens da ECT eram penhoráveis: o art. 12 do Decreto-Lei nº 509/59, que estabelecia a impenhorabilidade dos
bens dos Correios, foi tido como incompatível com a Constituição de 1988. Posteriormente, ao decidir o RE nº
220.906/DF, como vimos, o Supremo entendeu que o artigo 12 havia sido, sim, recepcionado, e que os bens da
ECT eram todos impenhoráveis. Depois, e curiosamente, ao decidir pela não incidência do controle do TCU
sobre o Banco do Brasil, o STF, no MS nº 23.627/DF, em voto condutor majoritário de autoria do Ministro Ilmar
Galvão, afirmou genericamente que os bens das empresas estatais eram privados — sem diferenciar, portanto,
as atividades de prestação de serviços públicos e a atuação econômica estrita. Finalmente, no MS nº 25.181/DF,
o STF, superando o entendimento do MS nº 23.627/DF, afirmou o caráter público dos bens das estatais — e o
caso tratava de uma estatal interventiva na economia, o Banco Nordeste do Brasil S.A.
604
Há, ainda, que se considerar o dado legislativo representado por duas referências, no Código Civil de 2002,
a “pessoas jurídicas de direito público com estrutura de direito privado”, a saber, no art. 41, parágrafo único
(“Salvo disposição em contrário, as pessoas jurídicas de direito público, a que se tenha dado estrutura de
direito privado, regem-se, no que couber, quanto ao seu funcionamento, pelas normas deste Código”) e no
art. 99, parágrafo único (“Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes
às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado”). O que seriam tais
entidades? As empresas estatais? Não parece que é o caso, porque, no mínimo quanto ao art. 41, a leitura
integral do artigo se refere a pessoas jurídicas de direito público — coisa que as estatais, definitivamente, não
são. Concordaremos, então, nesse ponto, com a posição de Thiago Marrara, segundo a qual tais referências
legais dizem respeito a fundações e associações públicas; tratar-se-ia, a referência legal, de uma espécie de
“conceito-coringa, que permite ao direito civil acompanhar as transformações do direito público sem dele se
desvencilhar”. As “entidades públicas com estrutura de direito privado” seriam aquelas entidades criadas em
virtude da competência dos entes federativos para legislar sobre Direito Administrativo (MARRARA. Bens
públicos: domínio urbano: infra-estruturas, p. 80-81).
605
Um ponto a se levantar: em que medida o ganho de escopo propiciado pelo exercício da atividade de serviço
público, e que eventualmente irá levar a estatal a exercer, também, a atividade privada, poderá significa
vantagem concorrencial anti-isonômica em favor desta e em detrimento das demais empresas privadas suas
concorrentes?
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
191
estar e não estar afetados.606 Aqui, não basta impor uma separação material de fluxos de
produção: ou se admite o exercício da atividade econômica conexa ao serviço público,
e aí os bens da empresa poderão estar potencialmente servindo às duas atividades, ou
não se admite a simultaneidade de funções das estatais. Para o momento, não temos
ideia de qual poderia ser a saída.
Terceiro problema: o Supremo já admitiu a penhora de bens públicos — na espécie
rendas públicas —, ao menos para a garantia de direitos fundamentais associados ao
conteúdo do mínimo existencial.607 O STJ também já aceitou penhora sobre faturamento
de sociedade de economia mista prestadora de serviço público de abastecimento de
água e saneamento.608 Ou seja: mesmo que ainda tenha utilidade didática afirmar que
os bens das estatais são impenhoráveis ou penhoráveis, conforme estejam ou não afe-
tados à prestação de um serviço público (ou sendo utilizados em ambiente de concor-
rencialidade ou de não concorrencialidade, critério também útil para a controvérsia609),
é mister reconhecer que nem sempre será possível identificar quais são eles, já que ou
poderão estar funcionalmente integrados, ou pode ser impossível separá-los na prática;
ou, ainda, a garantia da impenhorabilidade pode vir a ser superada por uma eventual
importância de outro bem jurídico a ser defendido.610 611
606
No exemplo da Infraero, as escadas rolantes e todas as facilidades dos terminais aeroportuários servem para
que os usuários dos serviços públicos de gestão do transporte aéreo sejam atendidos, e servem igualmente para
que os clientes dos aeroshoppings tenham acesso a seus produtos e serviços.
607
RE nº 436.966 (penhora de renda do INSS) e ADPF nº 45.
608
DJU, p. 248, 26 out. 2006. Na defesa doutrinária da possibilidade de penhora de faturamento de empresas
estatais, já que renda jamais constituiria bem diretamente afetado à satisfação de serviço público, v. FERREIRA
JÚNIOR. Do regime de bens das empresas estatais: alienação, usucapião, penhora e falência. In: SOUTO
(Coord.). Direito administrativo empresarial, p. 82.
609
V., com a análise da jurisprudência do Supremo, FIDALGO, Carolina Barros. O Estado Empresário: das sociedades
estatais às sociedades privads com participação minoritária do estado. São Paulo: Almedina, 2017. p. 266-274.
610
O Anteprojeto destinado a substituir o Decreto-Lei nº 200/67 propõe: “Art. 25. Nas execuções e no cumprimento
de sentenças em face de entidade estatal de direito privado, a penhora deve ser feita na forma do art. 678 do
Código de Processo Civil, vedada a penhora sobre a renda em montante que inviabilize a continuidade das
atividades em execução. Parágrafo único. A penhora não pode atingir os bens insubstituíveis e comprovadamente
indispensáveis à execução material de atividade pública; mas sobre esses bens pode ser instituído usufruto em
favor do exequente, na forma do art. 716 e seguintes do Código de Processo Civil, assegurando‐se à executada
direito ao arrendamento compulsório, cujas condições serão fixadas pelo juiz, fazendo‐se em juízo o depósito
mensal do valor respectivo”.
611
Um quarto problema é a inexistência de cultura de pagamento de precatórios por parte das estatais. Na prática,
o repasse de recursos do ente centralizado às estatais dependentes não ocorre sob a rubrica do pagamento
de precatórios, mas como subvenção orçamentária, recurso não vinculado. Ou seja, “arruma-se” um jeito
de os credores de precatórios ficarem aguardando a boa vontade dos administradores para o pagamento.
Por isso, alguns recomendam que o precatório, mesmo derivado de dívida de estatal prestadora de serviço
público, seja emitido contra a Fazenda Pública à qual ela é vinculada (SOUTO. A polêmica da execução contra
estatais prestadoras de serviços públicos. In: SOUTO (Coord.). Direito administrativo: estudos em homenagem a
Francisco Mauro Dias, p. 499-513.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
192 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
612
Petição inicial na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.310/DF. O texto encontra-se em <http://www.
sinagencias.org.br/conteudo_arquivo/190609_F9F040.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2009.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
193
613
“É proibida pela Lei Fundamental a atribuição a título normal ou não precário do exercício de poderes ou
prerrogativas de autoridade soberana a entidades organizadas sob formas jurídicas típicas do Direito Privado,
tal como se lhes deve considerar negado o exercício normal de actividades nucleares da função administrativa”
(OTERO. Vinculação e liberdade de conformação jurídica do sector empresarial do Estado, p. 240).
614
“Art. 31. Incumbe à concessionária: [...] VI - promover as desapropriações e constituir servidões autorizadas
pelo poder concedente, conforme previsto no edital e no contrato”.
615
“[...] Com o advento da Constituição de 1988, os regimes de cargo e emprego público foram consideravelmente
aproximados. Tal aproximação, em primeiro lugar, decorre da necessidade de concurso público para a
investidura, tanto nos cargos públicos, quanto nos empregos públicos, consoante previsão expressa do inciso
II do artigo 37 da Constituição Federal. Em segundo lugar, referida aproximação decorre da impossibilidade
de exoneração a qualquer tempo e sem motivação de servidores e empregados públicos” (SCHIRATO. Novas
anotações sobre as empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 224-225).
616
SUNDFELD. Empresa estatal pode exercer o poder de polícia. Boletim de Direito Administrativo, p. 102.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
194 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
brasileiras). No entanto, essa época já passou, embora, pelo que se vê, uma teoria do
passado ainda presida uma decisão do presente.
Se o pressuposto de fato que subjaz à decisão do STF sobre a impossibilidade de
empregados públicos exercerem poder de polícia não se sustenta, deve-se concluir que
as estatais, sem nenhuma outra cautela, podem exercer poder de polícia?
De forma alguma. Há dois requisitos, em nossa proposta, que devem ser
respeitados.
O primeiro deles: para evitar qualquer conflito entre interesse público e capital
privado, e de certa forma manter a proximidade institucional com a figura das autar-
quias, na estatal que for exercer poder de polícia só pode existir capital público, jamais privado.
Ou seja: em princípio empresas públicas, e não sociedades de economia mista, podem
exercer poder de polícia. Pode-se, até, admitir as sociedades de economia mista cujos
únicos acionistas privados são os membros do Conselho de Administração, já que,
como vimos, trata-se, na verdade, de empresas públicas nas quais o Estado “empresta”
ações para cumprir formalidade da Lei das S.A. Mas nunca uma economia mista “de
verdade”.617 618 Segundo requisito: as empresas públicas que exercem poder de polícia não
podem intervir concorrencialmente na economia. Só podem ser prestadoras de serviços
públicos. Ou, se atuam nas duas finalidades, nunca poderão se servir do poder de
polícia para apoiar o exercício da atividade econômica em sentido estrito que exerçam.
Do contrário, tratar-se-ia de intervenção concorrencial anti-isonômica, já que nenhuma
outra entidade privada estaria dotada de tal poder.619
617
Este trecho da obra vem sendo citado em algumas decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo para afastar
multas aplicadas pela TRANSERP, sociedade de economia mista do município de Ribeirão Preto que
administra o trânsito (ex., processo nº 1040440-36.2015.8.26.0506). Não se tem notícia da composição societária
da TRANSERP, mas uma coisa é certa: se a TRANSERP possui participação efetiva de capital privado, de fato as
multas não parecem válidas. Não parece adequado que o particular lucre com a aplicação de multas de trânsito;
isso poderia levar a incentivos socialmente perversos. O ponto aqui não é a forma “sociedade de economia
mista” per se, e, sim, o potencial conflito de interesses. Com razão, assim, Rafael Wallbach Schwind, para quem a
primeira cautela na atuação de particulares junto ao poder de polícia é “que a remuneração do particular deverá
ser concebida de tal forma que não crie conflitos objetivos de interesse”. Rafael cita como exemplos do que
estaria afastado pelo critério um sistema de remuneração em que as reprovações em inspeções veiculares gera
dinheiro ao particular, ou radares fotográficos cuja quantidade de infrações é parâmetro para a remuneração
privada. Cf. SCHWIND, Rafael Wallbach. Particulares em colaboração com o exercício do poder de polícia - o
“procedimento de polícia”. In: MEDAUAR, Odete; SCHIRATO, Vitor Rhein. Poder de polícia na atualidade. Belo
Horizonte: Fórum, 2014. p. 153.
618
Rodrigo Pagani de Souza observa, a respeito da proibição de economias mistas exercerem poder de polícia,
que “os casos concretos podem variar muito de perfil, o que desaconselha uma conclusão, a priori, no sentido
de que toda e qualquer sociedade de economia mista, independentemente da sua conformação jurídica, de
suas práticas de governança, do nível e características da participação privada no seu capital, seja incapaz de
desempenhar poderes de polícia com a necessária isenção. Antes, é mais razoável o exame de cada caso, atento
às características da sociedade de economia mista envolvida (verificando-se quem participa de seu capital, qual
era a efetiva destinação dos recursos que arrecada etc.)”. O professor da USP está correto. Nesta segunda edição,
acolhendo a crítica, alteramos a frase: na primeira edição, lia-se “apenas empresas públicas, jamais sociedades de
economia mista, podem exercer poder de polícia”. Nesta, lê-se, como se viu, “em princípio empresas públicas,
e não sociedades de economia mista, podem exercer poder de polícia”. De fato, a análise deve ser feita caso a
caso. Cf. PAGANI DE SOUZA, Rodrigo. Empresas estatais constituídas para o exercício de poder de polícia. In:
MEDAUAR, Odete; SCHIRATO, Vitor Rhein. Poder de polícia na atualidade. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 168.
No mesmo sentido, BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação: transformações político-
jurídicas, econômicas e institucionais do Direito Administrativo Ordenador. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
619
Em sentido próximo ao defendido no texto, v. SCHIRATO. Novas anotações sobre as empresas estatais. Revista
de Direito Administrativo, p. 228. Schirato defende a impossibilidade da atuação concomitante da empresa
pública dotada de poder de polícia como prestadora de serviços e interventora direta na economia; defendemos
que isso só é possível se a intervenção econômica direta não se valha desse poder.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
195
620
Acolhemos aqui a crítica, dentre outros, de Gustavo Binenbojm. BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia,
ordenação, regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do Direito Administrativo
Ordenador. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
621
“Sendo assim, qual a diferença prática entre uma autarquia e uma empresa pública? Como já exaustivamente
afirmado, a única diferença consiste no fato de uma ter personalidade de direito público (autarquia) e a outra
personalidade de direito privado (empresa pública). Todavia, tal diferença é por si só bastante para ipso facto
rejeitarmos a possibilidade de uma empresa estatal exercer atividades da Administração Ordenadora, como
inquestionavelmente aceitamos para as autarquias?” (SCHIRATO. Novas anotações sobre as empresas estatais.
Revista de Direito Administrativo, p. 224).
622
O STF, no ARE nº 662.186 RG, rel. Luiz Fux, reconheceu a repercussão geral de Recurso Extraordinário que
discute a possibilidade de a estatal BHTRANS exercer poder de polícia. Parece oportunidade histórica de se
rever o posicionamento clássico do Supremo. De resto, tal entendimento já parece estar mudando: o Supremo
aceitou que a CODESP, uma sociedade de economia mista, exercesse poder de polícia na condição de autoridade
portuária (AI nº 351.888). Em outra decisão, na Medida Cautelar na Reclamação nº 14.284, em que se discutia
o acesso a documentos de investigação realizada pela CVM e pela BOVESPA, o ministro Marco Aurélio, ao,
monocraticamente, deferir acesso aos documentos, anotou (destaques acrescentados): “Segundo dispõe a alínea
‘d’ do inciso I do artigo 18 da Lei nº 6.385/1976, cabe à Comissão de Valores Mobiliários editar normas gerais
sobre o exercício do poder disciplinar pelas bolsas de valores. A autarquia efetivamente o fez por intermédio
da Instrução Normativa CVM nº 461/2007. Entre os poderes conferidos à entidade privada, encontram-se os de aplicar
penalidades (artigo 49 do referido diploma) e até mesmo implementar medidas cautelares (artigo 64). Em outras palavras,
o poder disciplinar das bolsas de valores decorre de delegação estatal — dependente de lei e também de ato
infralegal —, de maneira que, ao exercê-lo, está em jogo uma potestade pública. A transferência de funções públicas
tipicamente regulatórias, inclusive com poderes de polícia, para entidades privadas é um fenômeno que vem sendo verificado
cada vez com maior frequência. A autorregulação não é um problema quando se trata de associações particulares
em que o ingresso e submissão às regras por ela impostas dependem da aquiescência do participante. Contudo,
a questão ganha complexidade se essas normas se destinam a agentes não associados ou a atividades privadas de interesse
público relevante, caso do mercado de valores mobiliários. Tais delegações se tornam legítimas apenas diante da existência
de parâmetros de controle e supervisão pelo Poder Público, bem como de instrumentos eficazes para assegurá-los”. O fato
é que o ministro Marco Aurélio identificou tal delegação legislativa no caso, considerando-a válida.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
196 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
623
“Art. 125. As licitações para compras, obras e serviços passam a reger-se, na Administração direta e nas
autarquias, pelas normas consubstanciadas neste Título e disposições complementares aprovadas em decreto”.
624
MEIRELLES. Licitação e sociedade de economia mista. Revista de Direito Público, p. 52.
625
Conforme enunciado nº 158 de sua Súmula: “As fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público, as
empresas públicas, sociedades de economia mista e as demais entidades previstas no art. 7º da Lei nº 6.233,
de 14.07.75 (Lei nº 6.525, de 11.04.78), não estão adstritas às regras de licitação para compras, obras e serviços,
previstas expressamente nos arts. 125 a 144 do Decreto-Lei nº 200, de 25.02.67, para os órgãos da Administração
direta e das autarquias, mas devem prestar obediência aos ditames básicos da competição licitatória, sobretudo
no que diz respeito a tratamento isonômico dos eventuais concorrentes, como princípio universal e indesligável
do procedimento ético e jurídico da administração da coisa pública, sem embargo da adoção de normas mais
flexíveis e compatíveis com as peculiaridades de funcionamento e objetivos de cada entidade”.
626
“Art. 86. As sociedades de economia mista, empresas públicas, fundações sob supervisão ministerial e demais
entidades controladas direta ou indiretamente pela União, até que editem regulamentos próprios, devidamente
publicados, com procedimentos seletivos simplificados e observância dos princípios básicos da licitação, ficarão
sujeitas às disposições deste decreto-lei”.
627
“Art. 119. As sociedades de economia mista, empresas e fundações públicas e demais entidades controladas
direta ou indiretamente pela União e pelas entidades referidas no artigo anterior editarão regulamentos
próprios devidamente publicados, ficando sujeitas às disposições desta Lei”.
628
“Art. 1º Esta Lei estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras,
serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios. Parágrafo único. Subordinam-se ao regime desta Lei, além dos órgãos
da Administração direta, os fundos especiais, as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as
sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados,
Distrito Federal e Municípios”.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
197
obras, serviços, compras e alienações. Ou seja: uma lei futura, que trataria do tema global
das estatais, traria, em seu bojo, regras específicas para as licitações destas empresas. A
lei finalmente veio: trata-se da Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, a Lei das Estatais.
Ela foi regulamentada, na União, pelo Decreto nº 8.945, de 27 de dezembro de 2016.
Optamos por manter os próximos parágrafos, com pequenas alterações, a título
de memória histórica dos debates havidos antes da Lei das Estatais. Em seguida, in-
gressaremos em específico na nova lei.
Primeira pergunta da memória histórica: até a existência da Lei das Estatais,
estariam tais entidades submetidas às normas previstas na Lei nº 8.666/93?
Temos dois problemas. O primeiro é saber se as estatais estavam obrigadas a licitar
pelas regras da Lei Geral de Licitações. O segundo é identificar quais os efeitos jurídicos
da referência constitucional a uma lei das estatais, que trataria de suas licitações, e que
não existia até 2016. A referência constitucional autorizaria, desde logo, a existência de
procedimentos licitatórios simplificados, a partir de autorizações legislativas específicas?
As respostas a essas duas questões estavam interligadas.
Muitos autores defendiam a inconstitucionalidade material do parágrafo único
do art. 1º e do art. 119 da Lei nº 8.666/93. O raciocínio possui bases consequencialistas.
Se as estatais devem seguir o regime próprio das empresas privadas, ao menos quando
desempenham a atividade de intervenção concorrencial — e a base para tal premissa
é o art. 173, §1º, da Constituição da República —, pode-se adiantar a consequência de
um tratamento desigual entre elas e as empresas puramente privadas, caso as primeiras
sejam obrigadas a aplicar, sem temperamentos, a Lei Geral de Licitações.629 A provável
consequência, não muito distante no tempo, seria a perda da competitividade das estatais
que atuassem em concorrência com as demais empresas privadas. A solução seria a de
se admitir que as estatais, desde logo, editassem suas normas próprias de licitação, até
que sobreviesse a mencionada Lei das Estatais. Há quem afirme que esse já é o conteúdo
eficacial mínimo do art. 173, §1º: caso contrário — ou seja, caso se pretendesse aplicar a
Lei nº 8.666/93 até que sobreviesse uma Lei Geral das Estatais —, estar-se-ia dando ao
mencionado dispositivo “a qualidade de um NADA JURÍDICO, de uma norma total
e absolutamente ineficaz”.630
Outros eram menos radicais e propunham uma interpretação conforme para
o art. 1º, parágrafo único da Lei nº 8.666/93: “Ainda que se entenda recepcionado o
dispositivo em apreço [art. 1º, parágrafo único], se há de dar a ele uma interpretação
conforme para dele emergir uma aplicação menos rigorosa e vinculante das normas da
Lei nº 8.666/93 às estatais submetidas ao disposto no artigo 173”.631 632
629
DALLARI. Licitações nas empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 84; DI PIETRO. Temas polêmicos
sobre licitações e contratos, p. 25; SCHIRATO. Novas anotações sobre as empresas estatais. Revista de Direito
Administrativo, p. 233; BORBA. Direito societário, p. 483.
630
DALLARI. Licitações nas empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 72. Contra, defendendo que,
enquanto não for sancionada a legislação pertinente, as estatais não poderão, de modo próprio, adotar regra
específica de licitação, cf. GROTTI. Licitações nas estatais em face da Emenda Constitucional 19, de 1998. Revista
Trimestral de Direito Público, p. 24-35.
631
MARQUES NETO. As contratações estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO; SOUTO.
Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 590.
632
O caso clássico sobre a possibilidade, ou não, da edição de regulamentos licitatórios próprios por parte das
estatais é o da Petrobras, que ainda não teve decisão definitiva do STF, mas cujas decisões têm se inclinado por
sua admissibilidade. A hipótese é: a Lei do Petróleo — Lei Federal nº 9.478/99 —, em seu art. 67, afirmou que os
contratos celebrados pela Petrobras seriam precedidos de procedimento licitatório simplificado, a ser definido
em decreto do Presidente da República. Com base em tal permissivo legal, foi editado o Decreto nº 2.745/97,
que aprovou o que estabeleceu o regime licitatório simplificado da Petrobras. O Tribunal de Contas da União,
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
198 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
como dissemos várias vezes, simplificação equivocada. Em muitos casos há, na prá-
tica, uma integração material entre as atividades de prestação de serviços públicos e
desempenho de atividade econômica em sentido estrito, sem falar que, hoje em dia, a
própria prestação dos serviços públicos se faz, preferencialmente, sob o regime da con-
corrência. Além disso, há um problema que decorre dessa distinção, bem observado por
Carlos Ari Sundfeld e por Roberto Pagani Souza: é que ela aproxima demais o regime
das “estatais prestadoras” ao regime da Administração direta, desprezando o próprio
sentido da constituição da entidade sob o regime jurídico privado.636
Da mesma forma, o critério da atividade-meio e da atividade-fim não é o melhor, e isso
por diversas razões. Ele acabou sendo adotado pela Lei das Estatais, no art. 28, par. 3º,
II, então a crítica continua válida. Em primeiro lugar, seu habitat preferencial é o mundo
dos exemplos de manuais, não a realidade. Ele se mostra fácil de ser definido na teoria —
e difícil de ser identificado na prática.637 Uma empresa é um complexo organizacional
em que as partes estão intrinsecamente associadas. O que é atividade-meio de uma
estatal petrolífera? Alugar sondas tem mais a ver com a atividade-fim do que, digamos,
alugar armazéns, mas, e se o armazém se destinar a guardar peças de sondas? De mais
a mais, não seria injusto com seu potencial competitivo se ela tivesse que burocratizar
todas as potenciais aquisições vinculadas às atividades-meio? Será que isso, no final
das contas, não comprometeria sua competitividade?
Às vezes, a contratação de atividade que não tem a ver com a atividade-fim de-
sempenhada pela estatal — no exemplo de Floriano Marques Neto: consultoria para
realizar reorganização administrativa — pode revelar estratégia da empresa e com-
prometer sua capacidade de competir. Digamos que haja premência na reorganização
administrativa; a empresa, de modo tendencialmente anticoncorrencial, teria que licitar
o serviço, que, repita-se, sem dúvida está vinculado a atividade-meio, mas repercute
em toda a estratégia empresarial? Uma empresa, estatal ou não, é um todo produtivo. É
complicado submeter partes de suas atividades, a partir de critério abstrato — “meio”
e “fim” —, a regimes jurídicos aquisitivos distintos, quando se sabe que, muitas vezes,
o diferencial da empresa está no modo como ela organiza suas atividades-meio para
bem desempenhar suas atividades-fim.638
636
SOUZA; SUNDFELD. Licitações nas estatais: levando a natureza empresarial a sério. Revista de Direito
Administrativo, p. 13-30: “Ainda que o diagnóstico do problema fosse correto (sem dúvida, não é indiferente
a atividade exercida pela empresa estatal e o regime jurídico que a disciplina), o remédio foi exagerado: as
empresas estatais prestadoras de serviço público, de acordo com este pensamento, têm um regime por demais
semelhante ao regime comum da Administração Pública, como se não fossem empresas nem precisassem agir
empresarialmente” (p. 21). “O efeito produzido por esta classificação das empresas estatais, que as aparta
em ‘prestadoras de serviço público’ e ‘exploradoras de atividade econômica’, então, é grande: neutraliza-se
a despublicização pretendida com a opção legislativa pelo figurino empresarial. Cai por terra a ideia original
da despublicização (maior agilidade, flexibilidade e comprometimento com resultados) que presidiu a criação
de entidades públicas sob o formato empresarial (notadamente no que tange às empresas classificadas como
prestadoras de serviços públicos)” (p. 22).
637
SOUZA; SUNDFELD. Licitações nas estatais: levando a natureza empresarial a sério. Revista de Direito
Administrativo, p. 23.
638
Além de tudo o que se falou no corpo do texto, há pelo menos um caso em que a lei expressamente dispensa
a licitação em atividades-meio de estatal não exploradora de atividade econômica — o que seria um caso
indubitável de exigência de licitação, ao menos para a teoria clássica. É a hipótese em que a estatal vai concorrer
com outras empresas privadas, não necessariamente estatais, pela outorga de uma concessão ou permissão
de serviço público. Leia-se o art. 32 da Lei Federal nº 9.074: “A empresa estatal que participe, na qualidade de
licitante, de concorrência para concessão e permissão de serviço público, poderá, para compor sua proposta,
colher preços de bens ou serviços fornecidos por terceiros e assinar pré-contratos com dispensa de licitação”.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
200 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Como vai ficar claro a seguir, o dispositivo legal está em perfeita consonância com o critério que adotaremos (a
concorrencialidade da atuação da estatal).
639
“É por isso que defendo que o crivo para se verificar se uma empresa estatal deve ou não observar regras
formais de contratação atinentes ao regime de direito público deve ser a verificação (e suficiente demonstração)
no caso concreto da incompatibilidade entre o procedimento (ou formalidades a ele inerentes) e a finalidade da
contratação alvitrada no âmbito da atividade competitiva por ela exercida” (MARQUES NETO. As contratações
estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO; SOUTO. Direito administrativo: estudos em
homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 588). “Relevante, sobretudo, é a circunstância de serem
empresas — que desenvolvem suas atividades, portanto, de acordo com o modus operandi empresarial — e,
ainda, será a circunstância de disputarem fatias de mercado em pleno regime de competição, de sorte que
não se possa simplesmente enquadrá-las no regime comum de licitação estabelecido para a Administração
Pública não empresarial, qual seja, o da Lei nº 8.666/93” (SOUZA; SUNDFELD. Licitações nas estatais: levando
a natureza empresarial a sério. Revista de Direito Administrativo, p. 25).
640
MARQUES NETO. As contratações estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO; SOUTO.
Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 593-594.
641
Basta ver que, na própria Administração Pública direta, onde nunca houve dúvidas sobre a submissão ao
dever de licitar e às regras gerais da Lei Federal nº 8.666/93, são muitíssimo comuns alegações injustificadas de
urgência para justificar contratações diretas.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
201
1.2.9 Algumas questões trazidas pela Lei das Estatais sobre licitações e
contratações destas entidades.
Em 2017, legem habemus. A Lei nº 13.303/16, a Lei das Estatais, rege, em seu Título
II, as licitações e compras das estatais. Algumas das discussões indicadas no item an-
terior estão, em boa medida, encerradas. Mas outras surgem.
Analisemos, neste item, alguns pontos de seu regime de licitação e de contra-
tos, com a ressalva de que a matéria é nova. A despeito de já haver algumas obras
importantes,643 ainda não há volume na análise doutrinária, e a jurisprudência dos
tribunais e das cortes de contas não teve ocasião de se manifestar.
Em primeiro lugar, é de se notar que a inspiração direta do regime de compras das
estatais é o Regime Diferenciado de Contratações (instituído pela Lei nº 12.462/2011), com
alguns trechos trazidos da Lei nº 8.666/93. A lei adotou, ainda, o critério da atividade-
meio e atividade-fim, em seu art. 28, par. 3º, I, como base para o que se deve licitar, e
que se pode contratar diretamente. O critério, como se viu, não é dos melhores, pois
tudo pode ser “fim” numa empresa bem organizada. Apesar da menção legal, não há
como o legislador identificar, de modo preciso, o que seja a atividade-fim da estatal.
Há, apenas, critérios de identificação. Vejamos.
A lei fala em comercialização, prestação ou execução, (i) de forma direta, de
produtos, serviços ou obras (ii) especificamente relacionados com os objetos sociais das
642
Para as estatais que operam o monopólio público, não há sentido em não licitar, ainda que venham a fazê-lo
por procedimentos simplificados. Nesse sentido, v. CARDOZO. O dever de licitar e os contratos das empresas
estatais que exercem atividade econômica. In: CARDOZO; QUEIROZ; SANTOS. Curso de direito administrativo
econômico, v. 2, p. 802-804.
643
Por todos, veja-se ARAGÃO, Alexandre. Empresas Estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades
de economia mista. São Paulo: Forense, 2017. Ainda, cf. JUSTEN FILHO, Marçal (Org.) Estatuto Jurídico das
Empresas Estatais. São Paulo: editora Revista dos Tribunais. 2017.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
202 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
estatais. Do que se trata? Prestação, comercialização ou execução (i) direta é que se faz em
nome próprio, ainda que com o auxílio de terceiros. Assim, se a estatal vende plasma,
ela não precisa licitar esta venda, por mais que parte da operação (ex. a distribuição,
o marketing) haja sido terceirizada. A BR Distribuidora não precisa licitar a gasolina
que vende na rede de postos Petrobras. O que importa é que a atividade central seja
titularizada pela estatal, e que ela seja o foco de imputação de responsabilidades. É
dizer: não há sinonímia entre as expressões “de forma direta” e as expressões “de forma
unipessoal” ou “de forma exclusiva”. (ii) Especificamente relacionado com o objeto social
da estatal não quer dizer o mesmo que especificamente indicado/listado no objeto social
da estatal. Até porque objetos sociais não são catálogos de compras ou listas exaustivas
de atividades. Se a estatal possui, como objeto social, a geração de energia por meio de
centrais termonucleares (ex. Eletronuclear), está especificamente relacionado a seu objeto
a venda de energia elétrica, mas também a venda de tecnologia não restrita associada
a esse mister, ou a elaboração de projetos com uso civil de tecnologia nuclear. Realizar
interpretação restritiva do art. 28, par. 3º, I, da Lei das Estatais, especialmente quando
a empresa estiver buscando vender algo, pode manietar fontes interessantes de receita.
Outra hipótese em que se contrata diretamente, pela Lei das Estatais, é quan-
do a escolha do parceiro está associada a “oportunidades de negócio definidas e
específicas”.644 A hipótese enquadrar-se-ia conceitualmente na inexigibilidade de lici-
tação — pois não haveria competição possível —, mas é salutar, diante de vacilações
das instâncias de controle, que o legislador deixe clara a possibilidade. Ninguém licita
affectio, ninguém licita oportunidade de negócio. Se empresa chinesa oferece à Petrobras
transferência de expertise em troca da aquisição de ativos e de abertura de mercado (e
a proposta é firme, com responsabilidade assumida em contrato), é plausível cogitar a
contratação direta. Por outro lado, cabe aos administradores de estatais não abusarem
da válvula de escape: se se alegar que tudo é oportunidade específica de negócio, em
breve os tribunais de contas farão com que nada seja.
Falando de Petrobras, um dispositivo chama atenção: o art. 1º, par. 5º, afirma
que a Lei das Estatais é aplicável a empresa pública e sociedade de economia mista que
participem de consórcio como operadora.645 O dispositivo possui duas possibilidades
interpretativas: uma, redundante; outra, possivelmente problemática. Se o dispositivo
quer dizer que, por exemplo, a Petrobras, ainda quando participante de consórcio
petrolífero na condição de operadora, continue tendo que, para suas compras internas,
aplicar a Lei das Estatais, a lei está proclamando uma obviedade. Consorciada ou não,
a empresa não deixa de ser estatal, e, decerto, haverá que aplicar a Lei das Estatais (que,
por sinal, revoga expressamente a base legal para o Regime Licitatório Simplificado da
Petrobras — este deixa de existir646).
Mas a pergunta é: o próprio consórcio estaria obrigado a aplicar a Lei das Estatais?
A resposta parece ser negativa, pois o consórcio, ainda que não possua personalidade
644
Art. 28 da Lei nº 13.303/2016: (...) §3º São as empresas públicas e as sociedades de economia mista dispensadas
da observância dos dispositivos deste Capítulo nas seguintes situações: II – nos casos em que a escolha do
parceiro esteja associada a suas características particulares, vinculada a oportunidades de negócio definidas e
específicas, justificada a inviabilidade de procedimento competitivo.
645
Art. 1º, par. 5º. Submetem-se ao regime previsto nesta Lei a empresa pública e a sociedade de economia mista
que participem de consórcio, conforme disposto no art. 279 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, na
condição de operadora.
646
O art. 98, II, da Lei das Estatais, revoga expressamente os arts. 67 e 68 da Lei nº 9.4478/97, que era a base legal
para o decreto do Regime Licitatório Simplificado da Petrobras.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
203
647
Esta também parece ser a indicação da interpretação histórica da norma. A Lei das Estatais é fruto do Projeto
de Lei do Senado nº 555/2015, que, por sua vez, baseou-se no Projeto de Lei do Senado nº 167/2015. O PLS nº
167/2015, em seu art. 10, §3º, estabelecia originalmente o seguinte: “No caso das empresas estatais de que trata
o §1º do art. 177 da Constituição Federal, o valor estabelecido no inciso do caput deste artigo pode ser alterado
por decreto do Presidente da República”. Trocando em miúdos, o Projeto de Lei permitia que, no caso da
Petrobras, a dispensa por valor fosse alterada por Decreto do Presidente da República. O Projeto foi alterado
por substitutivo, que ampliou a possibilidade, agora, para todas as empresas estatais, mas ainda por meio de
Decreto. Esse substitutivo foi a base do PLS nº 555/2015, que não só manteve a possibilidade para todas as
estatais — e não apenas para a Petrobras —, mas determinou que a alteração pudesse ser feita pelo próprio
Conselho de Administração, e não mais por Decreto.
648
E quando, numa contratação com fornecedores do mercado externo, estes não aceitam a colocação da cláusula
de responsabilidade soliária? A circunstância é comum em certos mercados internacionais. Em princípio, o
administrador da estatal deve esclarecer aos contratantes que se trata de regra obrigatória nos contratos
firmados com a empresa brasileira, mas é plausível cogitar, à la Karl Larenz, numa cláusula geral não escrita de
excepcionalidade diante de tais circunstâncias. O ponto deve estar justificado, e sofrer controle estrito. Não há
problemas em se identificar uma exceção; o problema é que, de ordinário, “a exceção não encontra limites”.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
204 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
O art. 31 da Lei das Estatais estabelece uma série de princípios a reger as lici-
tações e os contratos das estatais.649 Aqui, a reflexão: a lei adotou fórmula clássica de
indicação de princípios. Muito em razão destes princípios, os órgãos de controle se
vêm empoderando, ao ponto de, em alguns casos, tomarem decisões rigorosamente
administrativas em lugar do administrador (como, v.g., em alterações em minutas de
editais, muitas vezes solicitadas pelos tribunais de contas650). Tal controle intenso, em
abrangência e profundidade, tem valido à pena? Alguns, como o professor Carlos Ari
Sundfeld, vêm defendendo uma retração na indicação principiológica.651 Embora análise
rigorosa da eficiência dos controles sobre a Administração Pública ainda seja tema à
procura de autor, é fato que, por mais controle que tenhamos, também tivemos muitos
escândalos. Se ocorreram a despeito ou por causa; ou se os controles teriam evitado
escândalos maiores — é algo que ainda precisamos entender.
É importante lembrar, e já vamos encerrando a digressão, que existe um direito
do administrador ao erro. Controlar-para-responsabilizar é, por vezes, realizar uma en-
genharia reversa de obra pronta, que torna necessária uma sequência de eventos que
era, até se concretizar, apenas possível.
O art. 31, em seu parágrafo quarto, informa que as estatais poderão adotar pro-
cedimento de manifestação de interesse privado para o recebimento de propostas e de
empreendimentos previamente identificados. O chamado PMI, que possui base legisla-
tiva geral no art. 21 da Lei nº 8.987/95, é procedimento administrativo destinado a que
o particular realize estudos (jurídicos, de engenharia, orçamentários etc.) e os transfira
ao Poder Público, para que este possa realizar projetos de relevância pública.652 É, em
linhas gerais, boa ideia, que se deve incorporar sem paranoia da participação privada,
mas, também, sem ingenuidade.
A modalidade preferencial das licitações nas estatais é o pregão (art. 32, IV), a
ser normatizado pelo regulamento interno de cada estatal. Ela também pode adotar,
adaptando-o à sua realidade, o regulamento do pregão federal. O art. 32, V, fala que
uma das diretrizes das licitações e contratos das estatais é a observância de uma política
de integridade. Pergunta-se: é possível exigir a adoção de política de integridade como
critério de habilitação ou de manutenção do contrato? Em princípio, parece-nos que
sim, eis que o comportamento íntegro decorre, desde logo, do princípio da moralidade,
aplicável também às práticas privadas, ainda mais quando diante de contratos ou de
possíveis contratos com a Administração Pública. O que não pode ocorrer, no entanto,
é a manipulação da categoria adoção de política de integridade, de modo a excluir concor-
rentes viáveis ou contratados antipáticos.653 Faz-se mister detalhar, no regulamento da
649
Art. 31. As licitações realizadas e os contratos celebrados por empresas públicas e sociedades de economia
mista destinam-se a assegurar a seleção da proposta mais vantajosa, inclusive no que se refere ao ciclo de
vida do objeto, e a evitar operações em que se caracterize sobrepreço ou superfaturamento, devendo observar
os princípios da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da eficiência, da probidade
administrativa, da economicidade, do desenvolvimento nacional sustentável, da vinculação ao instrumento
convocatório, da obtenção de competitividade e do julgamento objetivo.
650
JORDÃO, Eduardo. A intervenção do TCU sobre editais de licitação não publicados - controlador ou
administrador? In: Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, dezembro de 2014.
651
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos, São Paulo, Malheiros, 2012.
652
SAADI LIMA, Mário Márcio. O Procedimento de Manifestação de Interesse à luz do Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 27.
653
É importante lembrar que a categoria “corrupção” pode ser, ela própria, capturada. Observa André Rosilho
que, “baseado no diagnóstico de que a corrupção — cujo epicentro estaria na liberdade de que supostamente
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
205
estatal, quais são estes critérios de conformidade ética; eles devem ser suficientemente
abertos para permitir uma competição justa; sem falar que este ponto do regulamento
merece análise cuidadosa dos órgãos de controle.
O art. 34 da Lei das Estatais mostra como a compreensão contextual e consequen-
cialista das contratações públicas vem se tornando realidade. Ele afirma que o valor
estimado do contrato será sigiloso, podendo a estatal torná-lo público. Mesmo depois
de adjudicado o contrato, o valor não deve ser publicizado, salvo para os órgãos de
controle (art. 34, par. 3º). O sigilo também se aplica ao particular, que não deve divul-
gar o valor do contrato. O raciocínio da norma é intuitivo: caso o valor estimado do
contrato seja público, as disputas de preço quase que necessariamente tomarão o valor
máximo como alavanca, e as reduções serão menores do que as que poderiam ocorrer
num ambiente em que a expectativa máxima de gastos não fosse tornada pública.
Ainda quando era projeto de lei, havia disposição que tornava público o valor depois
da contratação. Ora, a alavanca estaria ali, funcionando para as próximas contratações
assemelhadas. A alteração veio em boa hora.
Já houve quem se opusesse ao sigilo do valor estimado da contratação, introdu-
zido originalmente no procedimento do RDC. Os argumentos contrários centravam-se
no princípio da publicidade. Em nossa opinião, trata-se de visão algo fundacionalista do
princípio da publicidade, pois, em certos casos, o sigilo não é ocultação antirrepublicana,
mas assimetria estratégica de informações em favor do interesse público.
Inovação da Lei das Estatais, quando comparada à Lei nº 8.666/93, é a circunstância
de que a participação de pessoa física, que integrava diretoria de empresa declarada
inidônea, como diretor de nova empresa, impede a licitação e a contratação desta nova
empresa (art. 38, VIII). A Lei das Estatais, contudo, fala menos do que deveria: em nossa
opinião, a participação da pessoa física em qualquer cargo significativo na nova empresa
já torna a nova empresa incapaz de ser contratada. A explicação para essa interpreta-
ção, que se pode ter como radical, é a seguinte: pela lei, apenas a ocupação do cargo
de diretor (ou cargo assemelhado) traria a incapacidade de contratação. Não é difícil
imaginar que o ex-diretor assumiria, na nova empresa, cargo de assessor, consultor,
ou algo assim. Basta que ele esteja de fato presente na nova empresa para que ela não
possa ser contratada. E, caso sua presença se faça por laranja, a restrição também deve
ser aplicada. Tudo depende, é claro, de prova, mas não podemos ser ingenuamente
restritivos, ainda quando diante de uma “restrição/exceção”.654
gozava a Administração para dirigir os resultados das licitações — deveria ser combatida a qualquer custo, o
Congresso Nacional, capturado, adotou solução bastante curiosa. Valendo-se do discurso, corrente à época, de
crença no Direito e de ampla valorização da importância das regras e princípios jurídicos — incitado, como
visto, inclusive pelo próprio texto constitucional —, buscou anular a capacidade de manobra da Administração
Pública, decidindo de antemão os critérios e procedimentos que conduziriam, pretensamente, à melhor
contratação pública. Entretanto, o que escapou à percepção da comunidade jurídica como um todo — mas não
dos potenciais beneficiados pelas contratações públicas! — foi que as normas jurídicas haviam sido moldadas
de modo a atender não ao interesse do público, mas daqueles que foram capazes de influir no processo
legislativo”. ROSILHO, André Janjácomo. Licitação no Brasil. São Paulo: Malheiros. 2013. Agradeço ao brilhante
mestrando Renato Toledo pela lembrança da referência.
654
Já tivemos oportunidade de nos manifestar mais detalhadamente sobre o tema da “interpretação restritiva das
exceções” em artigo escrito em coautoria. “A questão sobre a correta interpretação ‘restritiva’ das ‘exceções’ é
polêmica. Friedrich Muller, por exemplo, critica a regra interpretativa — que ele considera ‘pseudo-normativa’ —
por duas razões: a primeira é que se trata de um raciocínio circular, já que olha o caso concreto, reputa-o
como ‘exceção’, e, só então, ‘interpreta-o restritivamente’; além disso, porque seu único propósito é ‘deixar
de levar em conta os dados normativos’. Cf. MULLER, Friedrich. Discours de la méthode juridique. Paris: PUF,
1996, p.274. Karl Larenz também não vê o tema com a facilidade com a qual a doutrina brasileira faz o uso do
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
206 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Enfim: na parte de licitações, a Lei das Estatais é um RDC adaptado. É claro que
as soluções poderiam ser mais criativas — por exemplo: já é hora de se abandonar a
cada dia mais anacrônica figura das modalidades de licitação —, mas cada doutrina-
dor teria sua própria lei de cabeceira. Há que se trabalhar com o que se tem. Vamos à
parte da lei que trata dos contratos das estatais. O art. 68 é, potencialmente, o artigo
mais importante da Lei das Estatais. Sua dicção é singela: “Os contratos de que trata
esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas, pelo disposto nesta Lei e pelos preceitos de
direito privado”. O que há nele de tão importante é o que ele não fala: rejeita-se, por
exclusão, o apelo subsidiário tanto à Lei nº 8.666/93 quanto — e até mesmo — ao direito público.
Prefere-se, na interpretação destes contratos, o que neles está escrito, a Lei das Estatais,
e, então, os preceitos do direito privado. Em rigor, a Lei das Estatais vem antes dos
contratos firmados com base nela, mas é plausível que o legislador pretendeu sugerir
que, na dúvida quanto à aplicação dos preceitos da Lei nº 13.303/2016, deva-se buscar
nos próprios contratos a solução. Mas não é só.
A rejeição ao apelo subsidiário à Lei nº 8.666/93, que até aqui venha sendo feito
por todas as leis que pretendiam “comer pelas beiradas” a Lei de Licitações,655 é signi-
ficativo. Ela vai exigir, dos operadores do direito que atuam com estatais, algo próximo
a uma revolução copernicana. Como vão reagir as cortes de contas? Os tribunais? As
controladorias externas? Até aqui, tudo o que se vem fazendo opera segundo a lógica
do direito público. É o “interesse público” quem dita e desdita comportamentos.
Agora, na dúvida, há que se interpretar o contrato à luz do direito privado, a
partir de todas as suas categorias típicas: liberdade de negociação; pacta sunt servanda;
boa fé objetiva para todas as partes; adimplemento substancial. Pode-se até dizer que
algumas dessas categorias nunca foram exclusividade do direito público, mas, antes,
encontravam-se inseridas numa teoria geral dos contratos, e é verdade. Também se pode
afirmar que uma estatal pode operar homólogos funcionais ao “interesse público” (v.g.,
“interesse estratégico”) para se avocar poderes. Também é possível. Mas a mudança
não deve ser diminuída só por isso. A Lei das Estatais é a primeira lei brasileira que trata de
licitações sem apelar subsidiariamente para a Lei nº 8.666/93. Num exemplo, no qual, pela
Lei nº 8.666/93, há limitada liberdade de negociação com o contratado — já que há,
sempre, um espectro de violação às potencialidades da licitação já ocorrida —, com a
nova lei, tal liberdade se mostra alargada (a despeito de uma reserva geral de licitação,
indicada no art. 72656). Há sempre o risco de se proceder, por inércia, desconhecimento
mote. Num primeiro momento, afirma que, em termos gerais, a afirmação de que ‘as disposições excepcionais
hão de se interpretar de modo estrito e que não são suscetíveis de aplicação analógica’ simplesmente não é
correto. O problema já está em saber quando é que se trata de uma ‘disposição excepcional’. As formulações
das proposições jurídicas na lei ou na Constituição de modo algum decidem, desde logo, a esse respeito. Nos
raros casos em que tal regra interpretativa tem seu valor, este é ‘limitado’, não significando que a disposição
excepcional deva ser interpretada ‘tão estritamente quanto possível’, ou que a analogia esteja excluída em todos
os casos. O que importa é, na verdade, saber a razão pela qual o legislador excepcionou as hipóteses”. SOUZA
NETO, Cláudio Pereira; MENDONÇA, José Vicente dos Santos. Fundamentalização e fundamentalismo na
interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In. SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO,
Daniel (Coords.). A constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Lumen Juris: Rio de
Janeiro, 2007, p.724.
655
Assim, por exemplo, veja-se o art. 39 da Lei nº 12.462/2011 — a influente lei do RDC: “Art. 39. Os contratos
administrativos celebrados com base no RDC reger-se-ão pelas normas da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993,
com exceção das regras específicas previstas nesta Lei”.
656
Art. 72. Os contratos regidos por esta Lei somente poderão ser alterados por acordo entre as partes, vedando-se
ajuste que resulte em violação da obrigação de licitar.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
207
657
Sobre a interpretação retrospectiva, leia-se a definição de José Carlos Barbosa Moreira: “Põe-se ênfase nas
semelhanças, corre-se um véu sobre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito destas, a disciplina da
matéria, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verdade mudou. É um tipo de interpretação em que o olhar
do intérprete dirige-se antes ao passado que ao presente, e a imagem que ele capta é menos a representação da
realidade que uma sombra fantasmagórica”. MOREIRA, José Carlos Barbosa, O poder judiciário e a efetividade
da nova Constituição. In: Revista Forense, nº 304, 1988, p. 152. No texto, Barbosa Moreira criticava a interpretação
constitucional realizada pelos ministros do STF logo após a promulgação da constituição de 1988.
658
MENDONÇA, José Vicente Santos de. Direito Administrativo e Inovação: limites e possibilidades. Mimeo.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
208 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
659
A lei também adotou linguagem rígida na possibilidade de revogação da licitação: se, na Lei nº 8.666/93, ela
era possível “por razões de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente comprovado, pertinente
e suficiente para justificar tal conduta” (art. 49, caput, da Lei das Licitações, destaque acrescido), agora, no art. 62,
caput, da nova lei, pode-se revogar a licitação por “razões de interesse público decorrentes de fato superveniente
que constitua óbice manifesto e incontornável”. Quer dizer: para as estatais, revoga-se a licitação por interesse
público quando (i) tal razão é baseada num fato (e não numa opinião ou numa mudança de vontade da empresa);
(ii) este fato sequer dependa de prova: ele é manifesto; (iii) o fato não apenas é pertinente ou suficiente para
justificar a revogação, mas ele é incontornável, o que implica que, na prática, não há outro caminho possível a
não ser revogar a licitação.
660
O argumento é suportado por evidências anedotais, mas não se conhece, até o momento, verificação empírica
da correlação que se alega.
661
Parte da doutrina entendia que, quando o art. 173, parágrafo primeiro, II, da Constituição da República,
fala que as estatais vão se submeter a regime jurídico de direito privado, isso também significaria exceção
à regra do concurso público (art. 37, II, da CRFB/88). Com base nisso, algumas estatais passaram a admitir
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
209
deve ser precedida de aprovação em concurso, não importando se a estatal vai prestar
serviço público ou desempenhar atividade econômica em sentido estrito.662
Em relação às demissões, o tema é mais polêmico. Considerando a forma de ad-
missão, procedimentalizada e tendente à garantia da isonomia, boa parte da doutrina
e da jurisprudência passou a admitir uma garantia contra demissões imotivadas dos
empregados públicos.663 664 É bem verdade que não poder demitir livremente, igualmente
às empresas privadas, pode acrescentar algum dado de não isonomia ao regime das
estatais competitivas. Mas tal dado, funcionalmente idêntico à não isonomia trazida
pela submissão das estatais à admissão de seu pessoal via concurso público, é sacrifício
que se deve admitir em prol da incidência possível dos princípios constitucionais da
Administração Pública (art. 37, caput, da CRFB/88). De qualquer forma, o assunto é
controvertido, e apenas manifestamos nossa opinião, que se associa à ideia da admis-
sibilidade do exercício do poder de polícia pelas estatais.
Também se admite o direito de greve, com as restrições legais a seu exercício
(Lei Federal nº 7.783/89), observando que possíveis aumentos salariais dependeriam
de previsão legal. O art. 37, XVII, da Constituição da República, que veda a acumula-
ção remunerada de cargos, empregos e funções, é diretamente aplicável às estatais. O
teto salarial do art. 37, XI, só é aplicável à empresa estatal dependente dos recursos da
Administração (art. 37, §9º).665
seus empregados sem concurso — coisa com a qual os Tribunais de Contas jamais concordaram. O STF veio a
pacificar seu entendimento, favorável à submissão de todas as estatais ao regime do concurso público, somente
em 23 de abril de 1993, ao julgar o Mandado de Segurança nº 21.322/DF. Só a partir dessa data é que a exigência
passou a realmente valer, porque, para as estatais que admitiram sem concurso entre a data da promulgação
da Constituição e o dia 23 de abril de 1993, concluiu-se que havia um estado de dúvida jurídica razoável, e
as admissões de pessoal foram validadas com base no princípio da segurança jurídica (é o famoso caso das
admissões na Infraero, julgado no MS nº 22.357/DF). Registre-se que há, ainda hoje, quem defenda que, para
as estatais devotadas ao exercício da atividade econômica em sentido estrito, não se deva aplicar a regra do
concurso público diante de certas situações excepcionais, em virtude da regra da igualdade com as demais
empresas privadas. Nesse sentido, trecho de Celso Antônio Bandeira de Mello: “Embora a Constituição não
o diga de maneira expressa e literal, há outras duas ordens de hipóteses de dispensa de concurso — já agora
para empregos — que hão de ser havidas como implicitamente previstas. [...] Outra, finalmente, refere-se às
hipóteses em que empresas estatais exploradoras de atividade econômica — embora também obrigadas, como
regra, ao regime de concurso público para admissão de pessoal — vejam-se na contingência de dispensá-lo
perante situações em que, se não o fizessem, frustrariam a necessidade de uma atuação expedita inerente ao
cumprimento de seus fins e requerida pelas circunstâncias do momento, ou perderiam a possibilidade de
admitir pessoal qualificado que não se interessaria em disputar concursos, por ser de pronto absorvido pela
demanda do mercado” (BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 277, grifos no original).
662
Mesmo assim, é válida a observação crítica de Marcelo Féres: “Isso, no entanto, dificulta a contratação de
trabalhadores pelas empresas estatais. Não apenas os custos do certame, mas também e sobremaneira o
formalismo que o reveste, embaraçam a atuação empresarial do Estado” (FÉRES. O Estado empresário:
reflexões sobre a eficiência do regime jurídico das sociedades de economia mista na atualidade. Revista de Direito
do Estado, p. 288). De qualquer forma, há que se ponderar que o concurso é método de contratação que assegura
a isonomia entre todos os interessados. É um trade-off entre eficiência e republicanismo.
663
“Conclui-se, portanto, que, além de se considerar necessária a motivação do ato demissório de empregado
público de uma paraestatal, entende-se necessário que sejam asseguradas as garantias da ampla defesa e do
contraditório, o que não implica reconhecimento de estabilidade aos servidores celetistas, nem mesmo supressão
da discricionariedade da sociedade de economia mista ou empresa pública quando do ato de dispensa”
(CARVALHO. Curso de direito administrativo: parte geral, intervenção do Estado e estrutura da administração, p.
701).
664
No RE nº 589.998 (com repercussão geral), o Supremo afirmou que, embora o celetista não possua estabilidade,
sua demissão deve ser motivada, em atenção aos princípios da impessoalidade e da isonomia.
665
Para uma análise do conceito de estatal dependente, e de eventuais formas de sua superação, cf. SOUZA;
SUNDFELD. A superação da condição de empresa estatal dependente. In: OSÓRIO; SOUTO. Direito
administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 793-828.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
210 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Questão interessante, e que tem a ver com o regime de pessoal das estatais e
com sua natureza de direito privado, ainda assim submetida às regras das entidades
da Administração Pública, é a da possibilidade de promoção do empregado por cap-
tação de clientela, ou em razão de outra prática que soasse mais heterodoxa, agressiva
ou pró-ativa. Pergunta-se se não haveria violação ao princípio da moralidade. Claro
que resposta mais conclusiva dependeria da análise das circunstâncias do caso, mas,
de modo geral, aceita-se e estimula-se postura mais intensa do empregado da estatal,
com a ocasional bonificação por isso, em função de que estamos tratando de empresa
privada eventualmente em concorrência com outras — e concorrência não se faz sendo
gentil, mas arrojado e criativo, ainda que sempre dentro de padrões éticos e legais.666
Tratar-se-ia, aqui, da incidência de certa perspectiva pragmatista: é o contexto da con-
corrência que legitima tal postura.
666
MARQUES NETO. As contratações estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO; SOUTO.
Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 597: “[...] Não feriria a
ética das relações concorrenciais que a diretoria de um banco estatal promovesse um gerente de agência que
conseguiu trazer para a instituição financeira estatal clientes que eram correntistas do banco privado vizinho”.
Ainda, v. SOUTO; GARCIA. Premiação para empregado de empresa estatal. Revista de Direito Administrativo, p.
177 et seq.
667
“[...] Podermos afirmar que o aspecto do controle das estatais é tido como a maior dificuldade na estruturação
dessas entidades, o ponto crucial” (MEDAUAR. Controle da Administração Pública, p. 75).
668
SUNDFELD. A participação privada nas empresas estatais. In: SUNDFELD. Direito administrativo econômico,
p. 265.
669
Citando a percepção e o exemplo da União Europeia (que realiza uma reforma em seus métodos de controle
de gestão financeira), v. MARQUES NETO. Os grandes desafios do controle da Administração Pública. In:
MODESTO (Coord.). Nova organização administrativa brasileira: estudos sobre a proposta da comissão de
especialistas constituída pelo Governo Federal para reforma da organização administrativa brasileira, p. 196-
197; GARCÍA. Rendición de cuentas y control externo.
670
MARQUES NETO. Os grandes desafios do controle da Administração Pública. In: MODESTO (Coord.). Nova
organização administrativa brasileira: estudos sobre a proposta da comissão de especialistas constituída pelo
Governo Federal para reforma da organização administrativa brasileira, p. 202-203.
671
PELLETIER. L’entreprise Publique de Service Public: Déclin et Mutation, p. 142.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
211
672
E, no artigo anterior, a referência é à compatibilidade entre o controle e o propósito da estatal: “Art. 51. O
controle deve ser compatível com a natureza do órgão ou entidade controlados e com a especificidade da
atividade exercida”.
673
A Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica e a Confederação Nacional dos
Trabalhadores do Ramo Financeiro questiona, em ADI, o art. 17 da Lei das Estatais. Ele proíbe a ocupação
de cargos, no conselho de administração e na diretoria de estatais, por dirigentes de sindicatos e por pessoas
ligadas, nos últimos meses, a partidos políticos ou a campanhas eleitorais. A ADI alega que a lei criminalizou
a militância partidária e sindical, além de haver estabelecido exigências mais rigorosas para as estatais do que
para as empresas privadas (cuja igualdade de tratamento seria exigida pelo art. 173 da Constituição). Nossa
posição é pela constitucionalidade da norma. Cf. MENDONÇA, José Vicente Santos de. Dirigentes de estatais:
o critério ficou rígido demais? Disponível em: <https://jota.info/artigos/dirigentes-de-estatais-o-criterio-ficou-
rigido-demais-20012017>. Acesso em: 25 jul. 2017.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
212 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
representado por ele (vide, por exemplo, o caso da Sanepar); há, afinal, a pressão do
mercado, que desvaloriza atitudes políticas impensadas.674
O controle político também ocorre em outras circunstâncias. Na hipótese do art.
49, X, da Constituição da República, compete ao Congresso, diretamente ou por uma
de suas Casas, fiscalizar e controlar os atos da Administração indireta. Esta fiscalização
é usualmente exercitada com o apoio dos Tribunais de Contas, mesmo que, em rigor,
nada impeça de, em nome do Congresso (ou, se em nome de parlamentar individual,
agindo este na condição de representante designado do Congresso, de sua Casa ou de
Comissão Parlamentar),675 solicitar esclarecimentos às estatais.
O essencial é a ideia de controle republicano. O Congresso só tem a ver com a
vida de empresas privadas porque nelas está investido dinheiro público e porque se
prestam a realizar objetivos de interesse público. Assim, não pode ir além desses limites,
ou pior, pretender se autojustificar retoricamente a partir deles. Nem tudo na vida de
uma estatal é “interesse público”; os detalhes de gestão da empresa são, salvo exceções
gritantes, coisa dela própria, e que mais bem será cuidada sem que ninguém — salvo
seus próprios acionistas; salvo seus próprios mecanismos internos de responsabilização
e controle, nos quais já consta a presença do Governo e, em muitos casos, de pessoas
próximas ao Congresso — intrometa-se.
Hipótese extrema de controle político é a prevista no art. 139, VI, da Constituição
da República, segundo o qual, na vigência do estado de sítio, pode haver intervenção
nas empresas de serviços públicos — pela literalidade do texto, a intervenção só pode-
ria abranger as estatais essencialmente prestadoras de serviços públicos. Claro que o
estado de sítio não suspende a responsabilização dos agentes públicos perpetradores
de abuso,676 o que não deixa de ser um desestímulo às violações.
Em termos processuais, e agora falando do controle jurisdicional, os atos das em-
presas estatais que não digam respeito à sua gestão interna, e que mais propriamente
digam respeito ao controle republicano, admitem ser desafiados por ação popular, ação
civil pública ou mandado de segurança. São, até, comuns os mandados de segurança
impetrados contra atos de estatais relacionados a licitações públicas, o que se aceita na
jurisprudência,677 e, ainda, contra atos relacionados a concursos públicos, caso em que,
apesar de vacilação jurisprudencial,678 não há a menor razão para serem inadmitidos.
674
Observe-se, contudo, que, formalmente, o controle político/supervisão ministerial não dispõe de aparato capaz
de transformar orientações superiores em comandos juridicamente vinculantes. Com razão, Mario Engler: “Os
dirigentes de empresas estatais não devem obediência formal às ordens administrativas externas. Tais comandos
possuem natureza de mera recomendação, salvo quando editados no exercício de competência regulatória
legalmente reconhecida ou transformados em deliberação da assembleia geral de acionistas” (PINTO JUNIOR.
A estrutura da Administração Pública indireta e o relacionamento do Estado com a companhia controlada.
Revista de Direito Público da Economia – RDPE, p. 57).
675
“Do relevo primacial dos ‘pesos e contrapesos’ no paradigma de divisão dos poderes, segue-se que à norma
infraconstitucional — aí incluída, em relação à Federal, a Constituição dos Estados-Membros — não é dado
criar novas interferências de um Poder na órbita de outro que não derive explícita ou implicitamente de regra
ou princípio da Lei Fundamental da República. O poder de fiscalização legislativa da ação administrativa do Poder
Executivo é outorgado aos órgãos coletivos de cada Câmara do Congresso Nacional, no plano federal, e da Assembleia
Legislativa, no dos Estados; nunca, aos seus membros individualmente, salvo, é claro, quando atuem em representação (ou
presentação) de sua Casa ou comissão” (ADI nº 3.046. Plenário. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Julg. 15.04.04. DJ, 28
maio 2004, grifos nossos).
676
BULOS. Constituição Federal anotada, p. 1164-1165.
677
Enunciado nº 333 da Súmula da Jurisprudência Predominante do STJ: “Cabe mandado de segurança contra ato
praticado em licitação promovida por sociedade de economia mista ou empresa pública”.
678
Assim, por exemplo, no RESP nº 65.872/SP, entendeu-se que “o ato de dirigente de sociedade de economia mista,
na gestão dos negócios da empresa, atuando como empregador, não se qualifica como ‘ato de autoridade’, no
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
213
sentido atribuído a essa expressão pela legislação de regência do Mandado de Segurança”. V. ainda o RESP nº
164.443/DF e o RESP nº 278.052/PR. Em sentido contrário, e, em nossa opinião, correto, ver Apelação no MS nº
2003.34.00.036352-8/DF.
679
MS nº 23.627/DF, Rel. Carlos Velloso, julgado em 07 de março de 2003.
680
MS nº 23.875/DF, Rel. Nélson Jobim, julgado em 07 de março de 2003. Os dois mandados de segurança foram
apreciados no mesmo dia e julgados de maneira idêntica.
681
V. MS nº 24.584-1, julgado em 09 de agosto de 2007, que tratou do tema da responsabilização de advogados
públicos pareceristas. O “tom” do voto do Ministro Marco Aurélio, também relator nesse caso, foi bem parecido.
A propósito do tema, seja-nos permitido remeter a José Vicente Santos de Mendonça (A responsabilidade
pessoal do parecerista público em quatro standards”. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
214 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
682
MS nº 25.181/DR, Rel. Marco Aurélio, DJU, 16 jun. 2006.
683
“O fato de serem seus recursos fornecidos pelo Estado importa na obrigação por este, como empresário, de
fiscalizar e controlar devidamente a atividade da empresa, a fim de que ela atinja o objetivo para a qual foi
instituída, embora esta ação fiscalizadora e controladora por parte do Estado deva se processar sem atingir a
flexibilidade operacional que constitui a razão de ser da existência do ente estatal” (MUNIZ. A empresa pública
no direito brasileiro, p. 29, no mesmo sentido, p. 63).
684
MUKAI. O direito administrativo e os regimes jurídicos das empresas estatais, p. 300-301; FÉRES. O Estado empresário:
reflexões sobre a eficiência do regime jurídico das sociedades de economia mista na atualidade. Revista de Direito
do Estado, p. 285.
685
ARAGÃO. Empresas estatais e o controle pelos Tribunais de Contas. Revista de Direito Público da Economia –
RDPE, p. 19. Ricardo Lobo Torres defende controle “genérico e global” das entidades da Administração indireta
com personalidade de direito privado, “com o objetivo precípuo de evitar a ilegalidade da ação das estatais,
mas sem lhes prejudicar o funcionamento segundo os métodos das empresas privadas” (TORRES. Controles da
administração financeira. In: MOREIRA NETO (Coord.). Uma avaliação das tendências contemporâneas do Direito
Administrativo: obra em homenagem a Eduardo García de Enterría, p. 637). Não concordamos com o Professor
Ricardo quanto à extensão do controle ser sempre genérica e global. Conforme veremos, há casos nos quais o
controle pode ser específico.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
215
reconhecesse a incidência do controle dos Tribunais de Contas, mas tratasse de dizer não o “se”,
mas o “como”. E é o que pretendemos fazer, propondo alguns standards.
As ideias centrais aos nossos standards são, de um lado, a preservação da efici-
ência, e, de outro, a preservação da accountability das estatais. Nossas propostas estão
afinadas com as ponderações da doutrina quanto à preocupação com custos excessivos
impostos às estatais em decorrência de um sem-número de controles,686 com a preser-
vação do espaço de liberdade negocial e da liberdade para a assunção de riscos das
empresas, com a preservação da característica de entidade descentralizada,687 com a
manutenção de graus ótimos de empreendedorismo e de ousadia responsável (que se
poderia estimular negativamente com uma responsabilização irrestrita), e, afinal, com
a própria preservação do interesse público, na medida em que estatais supervisionadas
de modo indevido são estatais que não funcionam de acordo com o propósito para o
qual foram criadas.
Queremos, aqui, fazer incidir uma preocupação pragmatista sobre o controle
dos Tribunais de Contas nas estatais. Fazer com que seja um controle preocupado com
o contexto no qual elas funcionam, com as consequências de sua própria atuação,688
despido de qualquer vestígio de pensamento fundacional “pró” ou “contra” quem ou
o que quer que seja.
Última observação: rejeitamos a clivagem “atividades-meio” e “atividades-fim”
das estatais. Ainda que, em muitos casos, o critério tenha se mostrado útil, a verdade é
que uma empresa é sempre um todo organizacional. Às vezes, uma atividade-meio é
a chave para o sucesso da atividade-fim e, em incontáveis hipóteses, não se consegue
delimitar, excetuando-se obviedades, o que é “meio” e o que é “fim”. Dizer que as
Cortes de Contas só podem controlar as atividades-meio, mas não as atividades-fim,
é generalização que peca por ser simples demais — não fornece melhores parâmetros
operacionais — e é, às vezes, equivocada (como vamos defender, parece-nos ser possível,
por exemplo, o controle sobre a assunção de riscos temerários por parte de um banco
estatal, atividade ligada à sua finalidade).
Não que nossos standards forneçam guias imediatos para a ação — são standards,
afinal —, nem que sejam imunes a objeções, mas esperamos que possam ultrapassar ao
menos nossas próprias críticas. Dividimo-los em standards gerais e específicos, conforme
o grau de especificidade em relação à abrangência do objeto controlado.
686
Citando artigo do jornal O Estado de S. Paulo, de 18 de maio de 1986, Odete Medauar transcreve o seguinte:
“Outro problema que contribui para o inchamento das despesas das estatais, criando o que se denominou de
‘gordura administrativa’, é a necessidade que alguns desses órgãos apresentam de criar novos departamentos
para atender aos controles de prestação de contas a diversos organismos diferentes. O técnico da SEPLAN
disse que, em alguns casos, o número de órgãos aos quais uma estatal tem de prestar contas chega a 17, algo
que, segundo ele, deverá também ser repensado, pois contribui para onerar desnecessariamente as empresas”
(Controle da Administração Pública, p. 85).
687
RIBEIRO. Sociedade de economia mista & empresa privada: estrutura e função, p. 144.
688
“Constata-se, com isso, que a atuação do TCU deve levar em conta não somente as consequências da decisão
no plano estritamente jurídico, mas também no plano dos fatos, notadamente as suas repercussões econômicas,
que são juridicizadas no conceito amplo de legalidade através, sobretudo, dos princípios da economicidade e
da eficiência, que, ao terem sido integrados à Constituição, a Lei Maior, passaram a também integrar o conceito
de legalidade-juridicidade” (ARAGÃO. Empresas estatais e o controle pelos Tribunais de Contas. Revista de
Direito Público da Economia – RDPE, p. 33). É importante destacar que este artigo possui todo um item dedicado
à perspectiva consequencialista aplicada à análise do controle dos Tribunais de Contas sobre as estatais (item
4 - A perspectiva consequencialista e os princípios constitucionais aplicáveis, p. 31-33).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
216 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
689
“As estatais prestadoras de serviço público estão sujeitas a regras de direito público próprias do regime especial
de prestação de serviços, diferentemente das exploradoras de atividade econômica, que se sujeitam ao regime
típico de direito privado, com as exceções constitucionalmente previstas” (ALBUQUERQUE. Os Tribunais de
Contas e o controle externo das estatais).
690
É até por essa razão que Maria João Estorninho descrê dos controles internos das estatais: “Parece-me tanto
mais importante afirmar as vinculações e os controlos jurídico-públicos, quanto é certo que, na grande maioria
dos casos, os controlos privados a que essas entidades públicas sob formas privadas estão sujeitas, não passam
de uma ficção” (ESTORNINHO. A fuga para o direito privado: contributo para o estudo da actividade de direito
privado da Administração Pública, p. 329).
691
“O conselho de administração passa a funcionar como locus privilegiado da interlocução entre autoridades
governamentais e gestores sociais, reforçando a justificativa da sua existência obrigatória prevista no artigo 239
da Lei nº 6.404/76. [...] A função orientadora e fiscalizadora exercida pelo conselho de administração substitui,
com vantagem, a supervisão ministerial distante e mal aparelhada, bem como outras formas centralizadas
de controle externo com foco restrito e dissociadas da realidade concreta” (PINTO JUNIOR. A estrutura da
Administração Pública indireta e o relacionamento do Estado com a companhia controlada. Revista de Direito
Público da Economia – RDPE, p. 58).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
217
692
O art. 113, §2º da Lei Federal nº 8.666/93 afirma que os Tribunais de Contas podem solicitar, para exame,
cópia do edital de licitação já publicado até o dia útil imediatamente anterior ao recebimento das propostas,
impondo medidas corretivas, as quais deverão ser acatadas pelo órgão ou entidade proponente da licitação. Há
polêmica sobre a constitucionalidade do dispositivo (há, inclusive, uma ADI em curso, a ADI nº 934, ajuizada
pela Assembleia Legislativa do Estado do Paraná). Alguns estados, com destaque para o Rio, possuem leis
atributivas de poderes aos Tribunais de Contas locais para que apreciem todas as licitações. A posição atual do
STF é a de que é inválida uma norma tal, que, de modo genérico, submete a realização das licitações à apreciação
das Cortes de Contas; mas, inobstante isso, as Cortes poderão, caso a caso, requerer os editais para realizarem
um controle concomitante. Para detalhes, v. WILLEMAN. O controle de licitações e contratos administrativos
pelos Tribunais de Contas. In: SOUTO (Coord.). Direito administrativo: estudos em homenagem a Francisco
Mauro Dias, p. 299-302.
693
“Mandado de Segurança. Sigilo bancário. Sociedade de economia mista exploradora de atividade econômica.
Fiscalização pelo Tribunal de Contas. Fornecimento de informações. Sigilo bancário. Contrato administrativo.
Operações comerciais. 1. Não configura violação de sigilo bancário a intervenção dos Tribunais de Contas
visando aferir a regularidade de contratos administrativos formalizados no âmbito das instituições financeiras
exploradoras de atividade econômica. 2. Em se tratando de sociedades de economia mista ou de empresas públicas
referidas no art. 173 da Constituição Federal, a fiscalização dos Tribunais de Contas não poderá abranger as atividades
econômicas das instituições, ou seja, os atos realizados com vistas ao atingimento de seus objetivos comerciais. 3. Recurso
ordinário parcialmente provido” (Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 17.949/DF. Rel. Min. João
Otávio de Noronha. DJU, 26 set. 2005, grifos nossos).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
218 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
o controle pelos Tribunais de Contas do risco assumido pelos executivos das estatais.
Em nossa opinião, só é ilegal o risco temerário. Então, num primeiro momento, se o
administrador do banco estatal tomou a decisão de assumir risco com base em indica-
dores confiáveis, documentação acreditada, de modo conforme às melhores práticas do
mercado, nada há de ilegal, mesmo quando a situação afinal gere prejuízo a acionistas
e/ou correntistas. Há um direito ao erro na gestão de estatais.694 As Cortes de Contas podem
pretender responsabilizar ex post o administrador que agiu de modo irresponsável, mas
não o executivo arrojado. Quais os limites entre um e outro? O assunto é complicado,
envolve dados de psicologia social, percepção de mercado, e, até, considerações morais
nas quais não pretendemos ingressar.695 Gestão ordinária, instrumentalizada por forma
pública, é controlável. Decisões empresariais estratégicas, em princípio, não. É simples
assim? Nunca é. Uma grande licitação pode estar envolvida na concretização de uma
decisão empresarial estratégica — e, mesmo assim, será controlável. Uma decisão em-
presarial estratégica pode estar contida num ato realizado sob procedimento de Direito
Público: realizar mais concursos públicos para determinado setor da empresa; deixar de
fazer para outro. Mesmo assim, controlável. Outras situações poderiam ser pensadas.696
De qualquer forma, é bom ter em mente que há um dever jurídico de controle
das estatais, que, ainda que deva ser compatibilizado com a necessidade de eficiência,
continua sendo exigência constitucional e republicana. Odete Medauar faz uma pergunta
interessante: “As estatais são incontroláveis? Ou o poder central cria um arcabouço de
controles para simular o intuito de não controlá-las?”.697
Mais importante do que criar controles ou reforçá-los, controles que, por vezes,
desnaturam a característica de entes descentralizados das estatais, é fazer com que
funcionem adequadamente. De modo sensível, sim, à natureza privada das estatais
competitivas, mas também de maneira não capturada e efetiva.
694
Em rigor, a expressão “direito ao erro” não é precisa. Por ela, pretende-se afirmar que os órgãos de controle só
podem controlar a decisão ruinosa pelo processo, pelos fundamentos e pelos métodos adotados no momento
da tomada de decisão, lembrando que há elementos incontroláveis em todo resultado positivo ou negativo. Se
os órgãos de controle agirem procurando um whipping boy a cada resultado ruim, além da manifesta injustiça,
é plausível cogitar da ocorrência do fenômeno da fuga do bom servidor. Além disso, é importante lembrar que,
por vezes, o protocolo atual da decisão “segura” precisa ser mudado, e é justamente a decisão “imprudente”
que vai instaurar um novo — e melhor — protocolo. Acender as fogueiras da Inquisição na Administração
Pública é, virtualmente, matar a inovação. Se isso já é suficientemente ruim na Administração Direta, é ainda
pior em relação a estatais competitivas.
695
Para interessante discussão sobre nosso exemplo, v. SANDEL. Justice: What’s the Right Thing to do?.
696
“Em conclusão, e como já referi anteriormente, estas entidades públicas sob formas jurídico-privadas deveriam
estar (tal como, aliás, na minha opinião, as empresas públicas) sujeitas directamente à fiscalização do Tribunal
de Contas, em especial devido à sua íntima relação com o Estado e à utilização de dinheiros públicos. Parece-me,
no entanto, útil e realista, distinguir o controlo do sector público administrativo e o controlo do sector público
empresarial, procurando criar vários ‘níveis’ de fiscalização, de modo a permitir alguma flexibilidade. Aliás,
parece-me que seria bastante mais eficiente e desejável que a competência do Tribunal de Contas fosse alargada
em termos qualitativos e não quantitativos. Em relação a estas entidades públicas sob formas privadas, entendo
ser indispensável e urgente a existência desse controlo, ainda que seja apenas ‘a posteriori’ e ainda que seja
apenas em termos de legalidade. É também de ponderar a existência de controlos obrigatórios e facultativos,
de modo a permitir uma actuação seletiva por parte do Tribunal de Contas o qual, eventualmente aliviado de
certas tarefas de rotina e menos significativas do ponto de vista financeiro, poderia dedicar-se inteiramente às
questões onde verdadeiramente se ‘jogam’ hoje os dinheiros públicos” (ESTORNINHO. A fuga para o direito
privado: contributo para o estudo da actividade de direito privado da Administração Pública, p. 331-332).
697
MEDAUAR. Controle da Administração Pública, p. 86.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
219
698
BINENBOJM. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização,
passim.
699
“Pode mesmo dizer-se que a relação de subordinação da Administração Pública à lei, sendo em si mesma
absolutamente indiscutível, inclusivamente em relação à actividade administrativa de direito privado, no
entanto, caracteriza-se, hoje em dia, pela inexistência de quaisquer fórmulas rígidas” (ESTORNINHO. A fuga
para o direito privado: contributo para o estudo da actividade de direito privado da Administração Pública,
p. 186).
700
MARQUES NETO. As contratações estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO; SOUTO.
Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 597.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
220 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
701
Assim, por exemplo, caso se verificasse que a população afrodescendente possui mais chances da incidência de
determinada doença, temos dúvidas sobre se um critério de composição de risco que expressamente excluísse
tal parcela de nosso país da abrangência do seguro fosse constitucional. Ela poderia até fazer sentido sob
o ponto de vista econômico-concorrencial, mas estaria contribuindo para a segregação e a não inclusão da
população brasileira. É de se notar que tal obrigação de compatibilidade com a Constituição aplica-se a todas
as empresas, estatais ou não. De qualquer modo, a seara da saúde é ponto tenso entre demandas econômicas e
considerações éticas (algumas das quais que se podem reconstruir como determinações constitucionais). Não
pretendemos explorar o ponto neste livro. De modo geral, é importante conciliar os impulsos pró-eficiência da
chamada economia dos incentivos com exigências derivadas de exigências de uma moralidade crítica. Sobre o
ponto, v. GRANT. Strings Attached: Untangling the Ethics of Incentives.
702
A ênfase vai para o “em princípio”. A economia de mercado, que, segundo alguns, já nos tornou uma sociedade
de mercado, por vezes busca normalizar o moralmente anormal. É preciso, nesses casos, recorrer a considerações
tiradas de uma moralidade crítica em sentido kantiano, ou, no mínimo, possuir clareza em relação aos valores
por detrás das escolhas implicadas nas práticas (SANDEL. What Money can´t Buy: the Moral Limits of Markets).
Exemplo: pode ser bastante comum, no mercado, a espionagem industrial. É aceitável que a Petrobras espione
suas concorrentes? Essa é das perguntas, como diria o ministro Victor Nunes Leal, cuja simples colocação já
prescinde da resposta.
703
“Obrigasse a lei a divulgação da estratégia competitiva, em especial os custos de produção da empresa em
função da titularidade estatal de seu controle, a igualdade com que todos os agentes econômicos devem ser
tratados estaria vulnerada, e, concretamente, ocorreria direta e indevida vantagem à empresa sob controle
privado, concorrente da empresa sob controle estatal, a esta sendo imposto direto e injustificável prejuízo. Os
efeitos da divulgação da estratégia competitiva de empresa sob controle estatal iriam além da perda da sua força competitiva:
significariam prejuízo de seu acionista majoritário, o que, na espécie, contrariaria o interesse público, pois o Estado
não intervém na exploração da atividade econômica para nela haver prejuízo em competição com empresa
sob controle privado, pois esse prejuízo seria, necessariamente, suportado por toda a sociedade” (DUTRA.
Atividade econômica, empresa sob controle estatal e livre concorrência. Revista Ibero-Americana de Direito
Público, p. 196, grifos nossos).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
221
1.2.13 A extinção das estatais: estatais não podem falir — e talvez isso
não seja tão grave
O último ponto é sobre a extinção das estatais. Aqui entramos na polêmica sobre
a possibilidade de que venham a falir. A explicação usualmente apontada pela doutrina
é simples demais. Costuma-se dizer o que se segue.
704
MARQUES NETO. As contratações estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO; SOUTO.
Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 598.
705
A situação não muda se, no exemplo, a Hemobras continuar, como o é, uma empresa pública, já que empresa
pública também persegue o lucro. Apenas elaboramos hipótese em que existirão acionistas privados para tornar
o exemplo mais ilustrativo.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
222 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Num primeiro momento, o art. 212 da Lei das S.A. excluía, de modo expresso, a
possibilidade de que sociedades de economia mista viessem a falir.706 Nada dizia em rela-
ção às empresas públicas (e alguns até afirmavam que isso era uma das diferenças entre
as duas espécies de estatais: as sociedades de economia mista estavam expressamente
afastadas do regime da falência, e as empresas públicas, ao menos formalmente, não).707
Pois bem: muitos alegavam que o art. 212 era inconstitucional, ao contrastá-lo
com o art. 173, §1º, da Constituição da República. Ao estarem afastadas da falência, as
estatais competitivas ganhariam vantagem concorrencial em relação às demais empresas
privadas, o que seria inconstitucional, até diante do texto da Constituição anterior, de
1967/1969.708
Outros faziam a distinção de sempre: as estatais prestadoras de serviços públicos
não poderiam falir, em virtude do princípio da continuidade do serviço público; as
estatais que desempenhassem atividade econômica em sentido estrito poderiam falir.
Eis então que o artigo 242 foi revogado, sem maiores explicações, pelo art. 10 da
Lei Federal nº 10.303/01. Os que defendiam a inconstitucionalidade do art. 242 viram
em sua revogação um atestado de vitória: estávamos certos, tanto que o próprio legis-
lador revogou o artigo.
A (suposta) vitória durou pouco, porque, com a edição da Lei de Falências e
de Recuperação de Empresas — a Lei Federal nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005 —,
voltou-se a afirmar, no art. 2º, I, que a lei (e, portanto, seu regime jurídico) “não se aplica
a empresa pública e sociedade de economia mista”.709
Ou seja, tudo retornou, ao menos formalmente, a como era antes da revogação
do art. 212 da Lei nº 6.404.
Pois bem: estatais podem falir? Em caso negativo, isso violaria o art. 173, §1º,
da Constituição? Há alguma diferença, neste ponto, em relação ao objeto “prestação
de serviços públicos” ou “desempenho de atividade econômica em sentido estrito”?
Em nossa opinião, estatais não podem falir. A justificativa não se encontra, apenas,
no texto da lei.710 Essa conclusão deriva da circunstância de o regime da falência ser inaplicável
706
O texto era o seguinte: “Art. 242. As companhias de economia mista não estão sujeitas a falência, mas os seus
bens são penhoráveis e executáveis, e a pessoa jurídica que a controla responde, subsidiariamente, pelas suas
obrigações”.
707
Lembrando essa circunstância, CARVALHO. Curso de direito administrativo: parte geral, intervenção do Estado
e estrutura da administração, p. 739. Seja como for, havia quem entendesse que as empresas públicas também
estariam afastadas do regime da falência, agora não por causa do art. 212 da Lei das S.A., mas graças a
interpretação simétrica do art. 37, XIX: se precisam de lei autorizativa da criação, também demandariam lei
para autorizar a extinção. Mencionando essa posição, v. GUIMARÃES; TOURINHO. As empresas estatais e a
revogação do artigo 242 da Lei 6.404/76. Revista de Direito Administrativo, p. 190.
708
BORBA. Direito societário, p. 486-487. Além da violação do art. 173 da Constituição da República, há quem fale
numa “flagrante violação das normas de direito societário”, já que as sociedades de economia mista devem
adotar a forma de sociedade anônima, mas acabariam funcionando como sociedade em comandita por ações,
atribuindo ao Estado responsabilidade subsidiária e ilimitada pelos débitos da pessoa jurídica. Com esse
entendimento, Celso Rodrigues Ferreira Júnior (Do regime de bens das empresas estatais: alienação, usucapião,
penhora e falência. In: SOUTO (Coord.). Direito administrativo empresarial, p. 93).
709
Numa nota incidental, a Nova Lei de Falências aumentou o regime de estatais excluídas taxativamente da
falência: se antes eram só as sociedades de economia mista, agora também as empresas públicas o estão. Se isso
serviu algum dia como critério diferenciador entre elas, já não serve mais.
710
Embora esse seja, sem dúvida, um dos mais importantes dados a serem levados em consideração. Leia-se a
afirmação de Fábio Ulhoa Coelho, baseada no texto da lei: “A lei prevê, no art. 2º, a exclusão completa e absoluta
dessas sociedades. Em relação às hipóteses albergadas no inciso I, isso é verdade desde logo. A sociedade de
economia mista e a empresa pública não estão em nenhuma hipótese sujeitas à falência, nem podem pleitear a
recuperação judicial” (Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas: (Lei nº 11.101, de 9-2-2005),
p. 27).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
223
às empresas estatais. O primeiro óbice nem é o mais relevante: as estatais têm sua criação
autorizada por lei, e, em tese, teriam de ter sua extinção também precedida de auto-
rização legal. Considerando que a quebra é um dado do mundo dos fatos que opera
efeitos jurídicos a partir de declaração judicial, poder-se-ia, até, superar tal exigência
(a declaração judicial, que em alguns casos funciona como declaração de vontade do
particular, seria, aqui, excepcionalíssima declaração de vontade do legislador; poder-
se-ia também entender que há permissão excepcional para a extinção via declaração
judicial baseada na regra da isonomia do art. 173, §1º, da Constituição).
O problema não é exatamente esse. Na linha do que é defendido por Marçal Justen
Filho, há a séria questão de que, na falência, nomeia-se credor privado para assumir a
gestão da massa falida. Isso é impensável na falência de uma estatal.711 Alguém ainda
poderia sugerir que se nomeasse gestor público para a massa falida, mas essa solução
não deriva do texto da Nova Lei das Falências. Há, ainda, o problema do vencimento
antecipado das dívidas na falência, que, em tese, ao menos em relação aos bens impe-
nhoráveis — aqueles afetados à prestação de serviços públicos —, violaria o art. 100 da
Constituição da República (regime do precatório), para não falar no argumento-padrão
do eventual comprometimento da continuidade da prestação desses serviços.
Sem dúvida que há um potencial desnivelamento entre empresas privadas e as
estatais competitivas quando se fala que estas não podem falir. Ela opera, por exemplo,
ao criar incentivos para uma atuação mais despreocupada em relação à economicidade,
quase um risco moral (afinal, falir ela não vai). Então, em tese, há, sim, uma situação de
inconstitucionalidade latente nessa imunidade, e em favor das estatais, mas, por outro lado,
não podemos ser tão radicais quanto ao ponto. Em diversos outros aspectos as estatais
saem prejudicadas em relação às empresas privadas simplesmente porque são estatais
e não há outra forma de agir em relação a elas. Exemplos: elas só podem contratar via
concurso público; elas têm de licitar em muitos casos; elas e suas contratantes são fisca-
lizadas pelos Tribunais de Contas, havendo de dispor de meios materiais e de pessoal
para fazer frente a esses custos; alguns de seus atos são desafiáveis via mandado de
segurança, ação popular, ação civil pública. Nada disso é assim em relação às demais
empresas privadas. Estas contratam quem desejarem, pagando o que for; adquirem bens
e serviços, para atividades-meio e atividades-fim, sem processo licitatório; não são em
princípio controladas por ninguém senão por seus órgãos internos.
Então, em nossa opinião, há de se verificar exatamente em que medida uma imu-
nidade contra a falência significa diferencial competitivo tão avassalador pró-estatais, em
contraposição a uma série de obstáculos antiestatais que se aceita em maior ou menor
grau. O ponto é: por mais que se queira, estatais e empresas privadas não são e nunca
serão a mesma espécie de entidade. Não é uma imunidade à falência que vai torná-las
as campeãs do mundo empresarial.
Há alguma diferença entre estatais prestadoras de serviços públicos e estatais
que desempenham atividades econômicas em sentido estrito para efeitos de se admitir
ou não a falência, como alguns sustentam?712
Na medida em que as duas atividades vão se misturando na prática, fica difícil
diferenciar distintos regimes de quebra para as duas espécies de estatais, que, no fundo,
são uma só: são as estatais do século XXI, cada vez mais sofisticadas e insubmissas a
711
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 187.
712
RODRIGUES. Sobre a falência das empresas públicas e sociedades de economia mista, em face da nova Lei de
Falências (Lei 11.101, de 09.02.2005). Revista dos Tribunais, p. 11-32.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
224 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
categorias estanques. O Supremo, no caso da ECT, entendeu que seria impossível dife-
renciar operacionalmente os bens vinculados a uma e outra atividade para a finalidade
de separá-los em penhoráveis e impenhoráveis. Embora sequer concordemos com
essa decisão, os regimes jurídicos dos bens são inteiramente aplicáveis e adequados:
ou um bem é penhorável ou não, e não há maiores dificuldades quanto a isso. No caso
da falência, não. Além do problema da confusão em concreto dos regimes jurídicos, a
própria admissão da falência para as estatais, prestadoras de serviços públicos ou não,
é terrivelmente problemática.
Claro que, de lege ferenda, é desejável que se elabore procedimento falimentar ade-
quado às estatais,713 mas, hoje, a falência não é compatível com a lei que temos, e talvez
sua inadmissão para as estatais não realize — à luz do contexto da competitividade das
estatais, à luz do contexto de que existe uma série de restrições à sua força competitiva —,
em concreto, a inconstitucionalidade que carrega em potência. Além disso, se uma
estatal chega ao ponto em que se discute sua quebra, a verdade é que terá deixado de
ser competitiva há muito tempo.
713
Aliás, é importante pensar, até, num procedimento de falência da administração pública direta. O Estado do
Rio de Janeiro, entre a primeira e a segunda edição deste livro faliu. Mas falta lei para regular o que ainda for
possível de ser regulado.
714
Outro possível limite seria a não atribuição, de modo principal e permanente, de poderes públicos típicos de
autoridade soberana a tais entidades. Ver, por exemplo, João Pacheco Amorim (As empresas públicas no direito
português: em especial, as empresas municipais, p. 103-104). Como já tratamos do assunto quando discutimos se
estatal pode exercer o poder de polícia, não o retomaremos.
715
OTERO. Vinculação e liberdade de conformação jurídica do sector empresarial do Estado, p. 124.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
225
716
“O fim (o interesse público) só justifica os meios (a criação de empresas desta natureza) quando eles sejam
governados pelo princípio da proporcionalidade. O interesse público determina-se aqui como conceito quando
existe uma congruência tal [...] que a afetação de recursos e a programação conducente à criação de uma
empresa desta natureza seja claramente pedida por uma situação que a faça proporcionada e congruente”
(HERNANDEZ. Las empresas municipales de promoción de iniciativas empresariales y de empleo. In:
MORENO (Coord.). Administración instrumental: libro homenaje a Manuel Francisco Clavero Arévalo, p. 1351).
717
VILHENA. O princípio da subsidiariedade no direito comunitário; QUADROS. O princípio da subsidiariedade no
direito comunitário após o tratado da União Européia. Há quem mencione que a subsidiariedade seria, em rigor,
um princípio geral de Direito. Nesse sentido, MARQUES NETO. Limites à abrangência e à intensidade da
regulação estatal. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE, p. 11.
718
SOUZA JÚNIOR. Autonomia municipal e subsidiariedade: competência constitucional do município. Revista de
Direito da Procuradoria Geral do Município de Porto Alegre, p. 15-21.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
226 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
719
DOHERING. Estado Social, Estado de Derecho y orden democrático. In: ABENDROTH; FORSTHOFF;
DOEHRING. El Estado Social, p. 129, 157. Na doutrina brasileira, v. GONÇALVES. Estado, sociedade civil e
princípio da subsidiariedade na era da globalização.
720
Nesses casos, o “princípio” costuma aparecer em conjunto com conceitos como ultima ratio da aplicação
do Direito Penal e “princípio” da insignificância. V. MOREIRA. A subsidiariedade como baliza para a
insignificância. Boletim do Instituto de Ciências Penais. Para uma interseção entre a “subsidiariedade do Direito
Penal” e a subsidiariedade da União Europeia, cf. DONINI. Sussidiarietà penale e sussidiaretà comunitária.
Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, p. 141-183.
721
“No sistema de sociedade aberta e de economia de mercado — que é nosso modelo constitucional — a atividade
econômica pública é complementar da iniciativa privada, dominada pelo princípio da subsidiariedade e
ocupando os espaços vazios dos quais se ausenta a iniciativa privada ou quando esta fracassa” (BARROSO.
Regime jurídico das empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 87). Defendendo o princípio da
subsidiariedade como limite horizontal à intervenção do Estado na economia (o limite vertical, em profundidade,
seria o princípio da proporcionalidade), v. MARQUES NETO. Limites à abrangência e à intensidade da
regulação estatal. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE.
722
“[...] a atividade econômica intereventiva, de parte do Estado, é de cunho excepcional. E, por ser excepcional, a
análise jurídica de sua possibilidade far-se-á com a observância de critérios de interpretação restritiva. [...] Por
isso, em qualquer dos seus papéis — agente normativo, regulador ou produtor —, a intervenção estatal é um
protagonismo contido” (FERRAZ. Intervenção do Estado no domínio econômico geral: anotações. In: BACELLAR
FILHO (Coord.). Direito administrativo contemporâneo: estudos em memória do Professor Manoel de Oliveira
Franco Sobrinho, item 7, grifos no original).
723
MOREIRA NETO. Curso de direito administrativo, p. 88.
724
TORRES. O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo, p. 7-34.
725
Também no âmbito do protestantismo podem ser encontradas ideias relacionadas ao princípio da
subsidiariedade. Menciona-se, em especial, a noção de “esfera soberana”, formulada pelo teólogo calvinista
Abraham Kuyper. No “contexto do Direito Constitucional”, tal noção atua como critério “para identificar
instâncias de, por exemplo, totalitarismo político; quer dizer, interferência dos repositórios de poderes
governamentais nas vidas privadas dos subordinados e controle excessivo por agências governamentais dos
negócios internos de instituições que não o Estado” (VYVER. The Jurisprudential Legacy of Abraham Kuyper
and Leo XIII. Journal of Markets & Morality, p. 211).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
227
Quadragesimo Anno, do Papa Pio XI.726 Na altura de sua publicação, em 1931, a Igreja
Católica estava engajada na crítica à hipertrofia estatal promovida pelo socialismo. É
como alternativa a esse modelo de Estado que a doutrina da Igreja assenta o caráter
supletivo da atuação estatal. Sessenta anos depois, quando o socialismo real já havia
sucumbido na Europa do Leste, o princípio da subsidiariedade voltaria a ser suscita-
do, na Encíclica Centesimus Annus, de João Paulo II. Transpondo os objetivos iniciais,
João Paulo II utiliza o princípio para criticar o Estado de Bem-Estar Social,727 tal como
vigorava na Europa da segunda metade do século XX:
Assistiu-se, nos últimos anos, a um vasto alargamento dessa esfera de intervenção, o que
levou a constituir, de algum modo, um novo tipo de Estado, o “Estado do bem-estar”. Esta
alteração deu-se em alguns Países, para responder de modo mais adequado a muitas ne-
cessidades e carências, dando remédio a formas de pobreza e privação indignas da pessoa
humana. Não faltaram, porém, excessos e abusos que provocaram, especialmente nos anos
mais recentes, fortes críticas ao Estado do bem-estar, qualificado como “Estado assistencial”.
As anomalias e defeitos, no Estado assistencial, derivam de uma inadequada compreensão das
suas próprias tarefas. Também neste âmbito, deve-se respeitar o princípio de subsidiarieda-
de: uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade
de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de
necessidade e ajudá-la a coordenar a sua ação com a das outras componentes sociais, tendo
em vista o bem comum. (§48).
726
Os parágrafos em que a Encíclica define o princípio são: “Verdade é, e a história o demonstra abundantemente,
que, devido à mudança de condições, só as grandes sociedades podem hoje levar a efeito o que antes podiam
até mesmo as pequenas; permanece, contudo, imutável aquele solene princípio da filosofia social: assim
como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e indústria para o
confiar à coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades
menores e inferiores podiam conseguir é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O
fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem absorvê-los” (§79).
“Deixe, pois, a autoridade pública ao cuidado de associações inferiores aqueles negócios de menor importância,
que a absorveriam demasiado; poderá então desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente o que só a ela
compete, porque só ela o pode fazer: dirigir, vigiar, urgir e reprimir, conforme os casos e a necessidade
requeiram. Persuadam-se todos os que governam: quanto mais perfeita ordem hierárquica reinar entre as
várias agremiações, segundo este princípio da função ‘supletiva’ dos poderes públicos, tanto maior influência e
autoridade terão estes, tanto mais feliz e lisonjeiro será o estado da nação” (§80).
727
Cf. SILVA. Princípio da subsidiariedade. In: BARRETO (Org.). Dicionário de filosofia do direito, p. 789-792,
especialmente, p. 790.
728
V. CIMA; SCHUBECK. Self-interest, Love, and Economic Justice: a Dialogue Between Classical Economic
Liberalism and Catholic Social Teaching. Journal of Business Ethics.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
228 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
729
BEABOUT. The Principle of Subsidiarity and Freedom in the Family, Church, Market, and Government.
Journal of Markets & Morality, p. 136. Na doutrina brasileira, cf. Floriano de Azevedo Marques Neto (Limites à
abrangência e à intensidade da regulação estatal. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE,
p. 11-12).
730
TORRES. O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo, p. 71.
731
BARACHO. O princípio da subsidiariedade: conceito e revolução. Revista de Direito Administrativo, p. 22, grifos no
original. A parte entre aspas corresponde à citação da seguinte obra: NOZICK. Anarquia, Estado e utopia, p. 335.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
229
732
CAROZZA. Subsidiarity as a Structural Principle of International Human Rights Law. The American Journal
of International Law, p. 5. Com fundamentos próximos a esse — “não obstante a ausência de uma expressa
norma constitucional afirmando o princípio da subsidiariedade da intervenção econômica e social do Estado,
baseando-se a República Portuguesa no respeito pela dignidade da pessoa humana a Constituição terá de
acolher um princípio de supletividade ou subsidiariedade do Estado [...]” — v. OTERO. Vinculação e liberdade de
conformação jurídica do sector empresarial do Estado, p. 34.
733
MOREIRA NETO. O novo papel do Estado na economia. Revista de Direito Administrativo, p. 12, 13 (o itálico
foi acrescentado; o sublinhado corresponde ao itálico do original). Na doutrina brasileira (ainda que baseada
nas lições do italiano Franco Frattini), para uma defesa da subsidiariedade baseada na “centralidade da pessoa
humana”, v. DI PIETRO. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização,
parceria público-privada e outras formas, p. 17.
734
Por exemplo, entre tantos, Leonardo Vizeu Figueiredo (Lições de direito econômico, p. 44-45).
735
“O que se alvitra, em resumo, é que, ao balizarem-se as fronteiras entre ingerência e não ingerência estatais — o
que constituiu o cerne da subsidiariedade —, o intérprete não se prenda a posições dogmáticas, mas se abra,
ao revés, ao caráter relativo e flexivo do princípio” (TORRES. O princípio da subsidiariedade no direito público
contemporâneo, p. 118).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
230 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
único sentido econômico no qual suas decisões possam ocorrer (menos Estado, menos
disciplina econômica, menos intervenção concorrencial). Ela, finalmente, é a antítese
do pluralismo político, porque veda escolhas políticas legítimas.
E afinal: c) o princípio da subsidiariedade é ideologicamente neutro? Não, ele não
é. Da forma como é apresentado pela doutrina brasileira e, em certa medida, mundial,
ele é representativo de uma ideologia: a econômica liberal. Há quem diga o contrário,
mas a defesa é autoanulada em diversas passagens.736 Não teria como ser diferente. Ele
é tão flexível quanto um argumento ideológico pode ser: só aceita o que está dentro
de seu paradigma de compreensão, e rapidamente transforma opiniões contrárias em
espaços de não Direito.
Analisemos algumas estratégicas críticas lançadas contra quem rejeita a subsi-
diariedade — utilizemos o termo “não subsidiariedade” para identificar tal conjunto
de posições.
De fato: muitos que sustentam que a subsidiariedade econômica é princípio
constitucional, e não diretriz política, operam diversas estratégias, que, quase sempre,
associam a não subsidiariedade a algo que ela não é, ao mesmo tempo que reforçam
algumas de suas características secundárias.
Estratégia um: opor um modelo de princípio “constitucional” da subsidiariedade
a um modelo de Estado totalitário. Bom exemplo é a citação de Baracho que fizemos
há pouco. Ora, lançar razões em favor do pluralismo democrático é argumento a favor
da razão pública, e não a favor da subsidiariedade como “princípio constitucional”,
que é, contraditoriamente, um uso que se presta a reduzir a possibilidade de visões
alternativas a respeito de determinado aspecto da vida em comunidade (o grau de
intervenção do Estado na economia).
Em outras palavras: quem é a favor da existência de um pluralismo razoável de
concepções a respeito do que é uma “vida boa” — ou quem não acredita que esse conceito
sequer possa existir — estará contra, e não a favor, da ideia de princípio constitucional
da subsidiariedade econômica, na medida em que esse “princípio constitucional” reduz
o espectro de possíveis escolhas democráticas.
O raciocínio opera, numa apresentação estereotipada, mas útil à compreensão,
conforme a seguinte lógica: somos democráticos; o mundo contemporâneo é comple-
xo; logo, não pode existir Estado autoritário ou totalitário; portanto, a única escolha
possível, em termos de intervenção do Estado na economia, é a do Estado Subsidiário.
Falso. A oposição não é entre Estado totalitário e Estado Subsidiário, mas entre Estado
totalitário e Estado democrático, sendo que, neste último, a intervenção estatal na economia pode
ser maior ou menor, dentro de limites razoáveis (não pode haver abolição à propriedade
privada ou violação ao núcleo essencial da propriedade).
Segunda estratégia: equivaler a não subsidiariedade à antissubsidiariedade. Não é
porque não se acredita no status constitucional de determinada proposição ideológica a
respeito da vinculação de grau mínimo para a intervenção do Estado na economia que se
está defendendo tese oposta, isto é, que a intervenção esteja constitucionalmente imposta
736
Sem personalizar críticas, basta ver, por exemplo, na obra de Sílvia Faber Torres, que a própria autora que
acredita numa flexibilidade e num desprendimento de posições dogmáticas na incidência do princípio da
subsidiariedade é quem vai afirmar, ideologicamente, que “o ciclo do serviço público terminou” (p. 172), além
de, em diversos momentos, defender os movimentos de reforma do estado etc., circunstâncias que nunca foram
a-históricas ou ideologicamente flexíveis.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
232 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
num grau máximo. Isso seria indefensável, a uma, pelo próprio Texto Constitucional, a
duas, porque se estaria sendo vítima do mesmo mal que se pretende denunciar.
Outro argumento próximo a esse é igualar a não subsidiariedade a um predomí-
nio estatocêntrico de algum interesse público genérico e indefinível. Uma coisa é não
acreditar na imposição constitucional de um grau mínimo de intervenção do Estado
na economia; outra é saber qual é o grau ótimo — em termos de política ordinária,
infraconstitucional — que se vai defender. Os conceitos não são vinculados sob ne-
nhum aspecto. Por exemplo: é perfeitamente possível ser um defensor intransigente
do Estado Mínimo, e, ao mesmo tempo, acreditar que ele não esteja determinado pelo
texto radicalmente compromissório da Constituição de 1988.
É importante mencionar, em favor do caráter não constitucional do princípio da
subsidiariedade econômica, algo a respeito do próprio Texto Constitucional em vigor. A
Constituição da República de 1988 pronuncia-se sobre temas econômicos e, em alguns
casos, assume posições no debate ideológico.737 Mas o texto da Constituição Econômica
em vigor é, na essência, compromissório.738 739 É pleno de “compromissos dilatórios”,740
ocasiões nas quais o constituinte originário não quis ou não conseguiu chegar a um con-
senso a respeito de um tema e remeteu sua resolução concreta ao trabalho de densificação
infraconstitucional das gerações e dos legisladores futuros. Não é um texto liberal: lê-lo
assim é interpretar a Constituição “em tiras”, na expressão de Eros Roberto Grau.741
Algumas referências a dispositivos normativos podem demonstrá-lo. No artigo 1º,
ao lado do valor social da livre iniciativa, está o valor social do trabalho; no artigo 170,
além de mencionar novamente o valor social do trabalho como fundamento da ordem
econômica, afirma-se que esta tem por fim “assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social”, e que isso deverá ser feito observando-se os princípios da
“soberania nacional”, da “propriedade privada”, da “função social da propriedade”,
da “livre concorrência”, da “defesa do consumidor”, da “defesa do meio ambiente”,
da “redução das desigualdades regionais e sociais”; da “busca do pleno emprego”, do
737
Cf. SOUZA. Conflitos ideológicos na constituição econômica. Revista Brasileira de Estudos Políticos; BERCOVICI.
Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988, p. 11 et seq.
738
Há diversas razões para isso, mas uma das mais destacadas, sem falar na própria complexificação do corpo
social, é a extensão do Texto Constitucional e o surgimento de novas proposições ideológicas no mercado
das ideias. Nesse sentido, Raul Machado Horta: “O alargamento da matéria da Constituição, seja no aspecto
técnico como no ideológico, conduz, correlatamente, no quadro do regime democrático, a uma ampliação do
coeficiente de discordância sobre o conteúdo constitucional, com perda do generalizado consenso que envolveu
as Constituições clássicas e não expansivas” (HORTA. A Ordem Econômica na nova Constituição: problemas e
contradições. In: MARTINS (Coord.). A Constituição brasileira 1988: interpretações, p. 389).
739
Nem se alegue que a Constituição de 1988 é socialmente dirigente. Ela certamente indica objetivos estatais
de longo prazo e possui acentuado caráter social, mesmo depois das reformas. Ocorre que, na raiz do uso da
expressão no Brasil, está a tese do Professor José Joaquim Gomes Canotilho, que escrevia sua edição original
de Constituição dirigente e vinculação do legislador com os olhos postos na Constituição portuguesa de 1976,
que, essa sim, constitucionalizava um modelo específico de Estado. A atual Constituição brasileira não é em
nada semelhante a isso. Nesse sentido: “É bem de ver, no entanto, que a Constituição portuguesa de 1976
trazia em si uma ideologia, um projeto específico de poder, de inspiração socialista. Esse jamais foi o caso da
Constituição brasileira de 1988, que, desde a sua origem abrigou um modelo pluralista. Não se pode assim,
a rigor, dar à expressão constituição dirigente o mesmo sentido em Portugal e no Brasil” (BARROSO. Curso de
direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 215).
740
Sobre o conceito de compromisso dilatório, cf. SCHMITT. Teoría de la Constitución, p. 52 et seq.). Sobre o caráter
compromissório da Constituição Federal de 1988, cf. SILVA. Curso de direito constitucional positivo, p. 44-45, 767-
768; SOUZA. A experiência brasileira de Constituição econômica. Revista de Informação Legislativa, p. 21 et seq.;
COMPARATO. A ordem econômica na Constituição brasileira de 1988. Revista de Direito Público, p. 263 et seq.;
BERCOVICI. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988, p. 37 et seq.
741
GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 166.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
233
742
Cf., p. ex., os arts. 21 e 176 da CRFB/88.
743
MENDONÇA; SOUZA NETO. Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação do princípio
constitucional da livre iniciativa. In: SARMENTO; SOUZA NETO (Org.). A constitucionalização do direito,
p. 709-741.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
234 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
744
“Assumindo o princípio da ‘antinomia’, um jurista liberal e tradicional excluiria de seu trabalho interpretativo
os elementos ‘socializantes’. Do mesmo modo, o jurista socialista procederia em face dos elementos liberais.
No entanto, a realidade constitucional incorporou os dois ‘princípios’, anulando a ideia de ‘conflito’ entre os
mesmos” (SOUZA. Primeiras linhas de direito econômico, p. 232).
745
Num pós-escrito a texto em que, sob certas reservas, defendeu o princípio da subsidiariedade, Enrique Rivero
Ysern anotou o seguinte: “O 11 de Setembro de 2001 provocou uma convulsão política, econômica e social
mundial cujo alcance ainda se está por determinar. Como cidadãos do planeta, isso nos exige uma reflexão
pessoal e coletiva. Em relação aos temas tratados em minha intervenção, uma breve reflexão pessoal sobre os
acontecimentos recentes. Assistimos a uma crise do neoliberalismo. O Estado tem de intervir. A desintervenção
está dando lugar, nos Estados Unidos, e creio acertadamente, a uma intervenção estatal. Assistiremos a um novo
protagonismo do Direito Público sobre o Privado” (YSERN. El principio de subsidiariedade. In: MOREIRA
NETO (Coord.). Uma avaliação das tendências contemporâneas do Direito Administrativo: obra em homenagem a
Eduardo García de Enterría, p. 490).
746
Uma das teses centrais da obra de Silvia Faber Torres é a de que o princípio da subsidiariedade, em suas
múltiplas acepções, é, na essência, um princípio moral derivado do Direito Natural.
747
Aliás, quem, numa sociedade contemporânea hipercomplexa e qualificada pelo “fato do pluralismo”, pode
afirmar que a ideologia econômica pró-mercado seja ínsita à natureza humana? Aliás, o que é “natureza
humana”? Quais as bases de aceitação racional de um “Direito Natural”? Por que tantas e tão discordantes
ideologias existentes na sociedade contemporânea haveriam de aceitar a intervenção subsidiária do Estado na
economia como princípio constitucional?
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
235
interação com a força pública da disciplina das atividades econômicas (tese clássica,
defendida, entre nós, dentre outros, por Eros Grau748).749
Quem acredita que não pode existir um “princípio da supremacia necessária do
interesse público sobre o particular” não pode acreditar num “princípio constitucional
da supremacia necessária da atividade econômica do particular sobre a iniciativa pú-
blica”, porque, por idênticas razões, (i) não pode logicamente haver um “princípio da
supremacia”, (ii) melhor seria a defesa de um “melhor interesse econômico”, que, no
mais das vezes, é concretizado pelo desempenho econômico privado, mas que também
pode ser realizado pela atividade empresarial pública, sem que isso seja, obrigatoria-
mente, uma ultima ratio.750
Resta, ainda, analisar o texto do caput do art. 173 da Constituição da República
de 1988. Para quem defende o caráter constitucional do princípio da subsidiariedade
econômica, ele seria a prova definitiva. Não concordamos. Leiamo-lo: “Ressalvados os
casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo
Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou
a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”.
A exploração econômica direta do Estado será permitida quando decorrente
de imperativos de segurança nacional ou de relevante interesse coletivo, um e outro
conceitos definidos e densificados em lei (ainda vamos discutir qual a natureza dessa
lei). A polêmica concentra-se na expressão “relevante interesse coletivo”, já que não é
comum a referência à “segurança nacional”.
Pois bem: “relevante” é o que tem importância, o que sobressai.751 O termo não
possui a mesma valência semântica da expressão “em último caso”. Da mesma forma,
“só será permitida” — com ênfase no “só” — é trecho que deve ser lido em conjugação
com o restante da frase. Reconstruir a norma constitucional do art. 173 em termos im-
parciais significa, simplesmente, interpretá-la em sentido literal: a atuação econômica
direta do Estado está justificada quando existir interesse coletivo suficientemente
importante. Isso não é o mesmo que afirmar um princípio constitucional da subsidia-
riedade da intervenção do Estado na economia, na medida em que o interesse coletivo
importante, que é o guia para a legitimidade constitucional da intervenção direta do
Estado na economia, pode significar uma intervenção não subsidiária.
O Estado não precisa esperar até ser a última opção para intervir concorrencial-
mente; o mercado privado pode estar funcionando de modo satisfatório e, ainda assim,
o Poder Público está autorizado, desde que haja interesse público relevante, assim defi-
nido em lei, a ingressar com suas estatais. O requisito — único, porém suficientemente
748
GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, passim.
749
Admite-se atualmente que até o próprio Governo haja se transformado, em muitas de suas funções, numa
estrutura híbrida de governança entre Poder Público e setor privado. V. KOOIMAN. Governing as Governance. Quer
dizer: se o mercado privado é, em parte, criado pelo Poder Público; e se o Governo, como governança, é uma
ação conjunta de Poder Público e setor privado, como vindicar a preponderância de um sobre o outro? As
realidades são mais complexas do que as lições doutrinárias.
750
Com razão, Themístocles Brandão: “A chamada intervenção do Estado não constitui nenhum procedimento
revolucionário, senão processo normal da vida democrática, desde que sejam respeitados os princípios
fundamentais da Constituição, especialmente os direitos de propriedade, em todas as suas manifestações”
(CAVALCANTI. Princípios gerais de direito público, p. 22).
751
“Relevante: 1. Que tem relevo, que tem importância. 2. Que se salienta, que sobressai. 3. De grande valor ou
interesse. 4. O essencial, o indispensável” (HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa., p. 2422).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
236 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
grave — que a Constituição impõe à intervenção concorrencial é que ela esteja justificada
por um interesse público importante.752
Ao afirmarmos que não existe um princípio constitucional da subsidiariedade da
intervenção econômica estatal — a subsidiariedade é proposição político-ideológica, que
pode ou não ser adotada ao plano infraconstitucional,753 jamais servindo, por exemplo,
como critério para o exercício de controle de constitucionalidade —, também negamos
que haja algum direito subjetivo constitucional, titularizado pelas empresas privadas, a um
ambiente de negócios menos concorrido quando tal concorrência seja feita por empresas estatais.
Mais uma vez, não estamos acompanhados de parte da doutrina brasileira. Claro
que não estamos aqui advogando uma destruição do setor privado via concorrência
de estatais — até porque não haveria interesse público relevante nesta consequên-
cia.754 Simplesmente, defendemos a inexistência de um “direito constitucional à não
concorrência de estatais”, desde que tal intervenção concorrencial do Estado seja cons-
titucionalmente legítima. É de se observar, inclusive, que, em certos casos, o interesse
público relevante é, justamente, opor uma concorrência (via empresas estatais) a um
setor privado estagnado.
O tema da possibilidade constitucional da igualdade de concorrência entre estatais
e empresas privadas já foi tratado pela doutrina e pela jurisprudência estrangeiras, com
destaque para a França. Durante muito tempo, o posicionamento francês era igual ao
brasileiro de hoje: é impossível que haja tal concorrência; trata-se de proteger a iniciativa
privada contra sua usurpação pelas autoridades públicas. O fundamento normativo
para isso era uma lei de março de 1791, conhecida como décret d’Allarde, base para a
liberdade de comércio e de indústria, e que se interpretava como consagrando a exclu-
sividade do exercício das atividades econômicas em benefício das pessoas privadas. No
entanto, dizem Richard Moulin e Pierre Brunet que, “na realidade, esta análise nunca se
justificou pelos termos do texto legal, e se inscrevia dentro da lógica liberal emprestada
a seus autores pelas análises ideológicas de uma parte da doutrina”.755
Lá, como aqui, a intervenção do Estado, tida como anormal, era interpretada
de modo restritivo. Outra base para tal entendimento era a decisão do Conselho de
Estado em Chambre syndicale du commerce en détail de Nevers, havida em 1930, quando
se consignou que “as empresas possuem um caráter comercial que, de regra geral, está
reservado à iniciativa privada”. A iniciativa pública submetia-se a duas condições: a
existência de um interesse público e a insuficiência (ou a ausência) da iniciativa privada,
“este último critério atestando, de fato, a regra da não concorrência entre o setor público
752
“Não é possível deixar de interpretar o sistema da Constituição Federal sobre a matéria em exame em
conformidade com a natureza das atividades econômicas e, assim, com o dinamismo que lhes é inerente e a
possibilidade de aconselhar periódicas mudanças nas formas de sua execução, notadamente quando revelam
intervenção do Estado. O juízo de conveniência, quanto a permanecer o Estado na exploração de certa atividade
econômica, com a utilização da forma da empresa pública ou da sociedade de economia mista, há de concretizar-
se em cada tempo e a vista do relevante interesse coletivo ou de imperativos da segurança nacional” (ADI nº
234. Rel. Min. Néri da Silveira. DJ, 15 set. 1995).
753
É possível cogitar, por exemplo, que haja sido adotado, pelo programa Programa de Parcerias de Investimentos –
PPI, um princípio infraconstitucional da subsidiariedade. O PPI foi criado pela MP nº 727/2016, posteriormente
convertida na Lei nº 13.334, de 13 de setembro de 2016. Seu art. 2º, IV, afirma que é objetivo do PPI “assegurar
a estabilidade e a segurança jurídica, com a garantia da mínima intervenção nos negócios e investimentos” (destaque
acrescentado). Uma subsidiariedade infraconstitucional (como sói acontecer).
754
BANDEIRA DE MELLO. O Estado e a Ordem Econômica. Revista Brasileira de Direito Público, p. 37.
755
MOULIN; BRUNET. Droit public des interventions économiques, p. 25.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
237
e o setor privado”.756 Diversos casos foram julgados com base nessas premissas: a
validade da aquisição de um cinema pela cidade de Millau, porque isso respondia a um
interesse público local que não podia ser atendido pela iniciativa privada; nas mesmas
condições, a compra, por uma cidade, de um hotel-restaurante; a ilegalidade da venda
de perfumes aos particulares pelo serviço de essências das Forças Armadas.
Pouco a pouco, em especial depois da Segunda Guerra, a jurisprudência do
Conselho de Estado foi flexibilizando o cumprimento do segundo requisito, até que, em
31 de maio de 2006, no caso Ordre des avocats au barreau de Paris, o Conselho entendeu
que a ausência ou carência de prestação da atividade pela iniciativa privada deixou de
ser condição incontornável da iniciativa econômica pública.757
Afirmam Jean-Philippe Colson e Pascale Idoux que o caso consagra o deslocamento
[...] em direção a uma regra de livre e igual concorrência [entre empresas estatais e não
estatais], sem, contudo, dispensar as coletividades públicas da obrigação de agir dentro de
suas competências e, sobretudo, justificar suas iniciativas com a existência de uma missão
de serviço público ou de interesse público — suscetível de ter lugar graças a uma carência
da iniciativa privada ou em razão de outras circunstâncias.758
A chave do acórdão está na expressão “o qual pode resultar”, ou, antes, na pa-
lavra “pode”. O propósito de interesse público pode ser exemplificado pela carência da
prestação da atividade pela iniciativa privada — mas não apenas por isso.760 O essencial
é que a atividade esteja justificada por um interesse público, que seu exercício esteja
lastreado dentro das regras de competência e que respeite as regras de igualdade de
concorrência com as demais empresas privadas. “Atualmente, a principal dificuldade
756
COLSON; IDOUX. Droit public économique, p. 119.
757
Outro caso significativo, anterior a esse, foi Territoire de la Polynésie française, julgado em maio de 2005. O
Conselho de Estado, a propósito da criação de uma companhia aérea estatal na Polinésia Francesa, considerou
que o juiz recursal cometeu um erro ao entender que a insuficiência da iniciativa privada era capaz de, por si
só, consistir num interesse público local: os resultados positivos esperados em matéria de desenvolvimento
turístico eram igualmente constitutivos do interesse público. Outra manifestação importante, anterior ao
caso-símbolo que comentaremos no texto principal, é um parecer emitido pelo Conselho de Estado em 08 de
novembro de 2000 (Sté Jean-Louis Bernard Consultants) no qual se entendeu que as pessoas públicas poderiam
se candidatar a delegações de serviços públicos e a mercados públicos na condição de que não adotassem
práticas distintas dos operadores privados. No Brasil, é importante lembrar que existem estatais estaduais que
são concessionárias de serviços públicos federais. Cf. BERNARD. Droit public économique, p. 30, 32.
758
COLSON; IDOUX. Droit public économique, p. 121.
759
COLSON; IDOUX. Droit public économique, p. 121-122.
760
Sébastien Bernard destaca, por sua vez, a palavra “notavelmente”: “A utilização do advérbio ‘notavelmente’
lembra a importância de se levar em conta a ausência de concorrentes privados no momento da determinação
do interesse público local, ao mesmo tempo que, a contrario, sinaliza sua ausência de exclusividade” (BERNARD.
Droit public économique, p. 32).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
238 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
não é mais a legalidade da criação, mas o respeito, pela atividade pública, das regras
que asseguram uma concorrência leal”.761
A posição da doutrina e, em especial, da jurisprudência alemã, difere da francesa
na forma, mas não nas conclusões. Embora, assim como a Constituição francesa, a Lei
Fundamental alemã não incorpore nenhuma concepção econômica de modo taxativo,762
é principalmente na Alemanha que se fala numa “relativa neutralidade” da Constituição
em relação à Ordem Econômica. Existem, é certo, referências constitucionais ao Estado
de Direito e ao Estado Social — o art. 20 define a Alemanha como um “Estado federal
e social”; o art. 28 impõe ao Estado a adoção de um regime constitucional fiel ao go-
verno “republicano, democrático e social baseado no Estado de Direito” —, mas essas
menções a um Rechtsstaat e a um Sozialstaat não são capazes de identificar uma política
econômica no corpo do Texto Constitucional.
Há razões históricas para isso. Autores liberais da Constituição preferiam uma
linguagem mais abrangente. Constituintes mais à esquerda acreditavam que uma agenda
social progressista poderia ser avançada por intermédio da legislação ordinária, a qual
restaria albergada sob a rubrica do Sozialstaat. E tantos outros não viam com bons olhos
o “congelamento” de determinado programa econômico no texto da Constituição.763
A neutralidade é relativa porque os extremos estão constitucionalmente afasta-
dos, pois violam, por ação ou omissão, os direitos fundamentais. “A ‘neutralidade’ da
Constituição econômica não pode ser mal entendida, no sentido de uma não intromissão
na economia ou como liberdade da economia em relação ao Estado. Não é possível
extrair limites precisos. Seriam inconstitucionais uma economia totalmente planificada do
Estado e um total liberalismo econômico”.764
Diversos casos julgados pelo Tribunal Constitucional Federal auxiliaram na
formação dessa cultura da “relativa neutralidade econômica” da Constituição alemã.
Num caso em que se discutia a legitimidade constitucional da criação, no pós-
Segunda Guerra, de um fundo de auxílio às indústrias do ferro e do carvão bancado
por contribuições compulsórias de diversas outras empresas e comerciantes, a Corte
manteve a lei, afirmando que, “embora a presente Ordem Econômica e Social seja
compatível com a Constituição, ela não é a única possível; ela é baseada numa decisão
política formada pela vontade do legislador e pode ser substituída ou superada por
uma visão diferente”.765
No caso da privatização da Volkswagen, julgado em 1961 — depois da Segunda
Guerra, o Governo Federal e o Estado da Baixa Saxônia herdaram a empresa, e, em 1960,
761
MOULIN; BRUNET. Droit public des interventions économiques, p. 29. Contra uma ideia de igualdade de
concorrência entre o Estado e as empresas privadas, e defendendo a posição jurisprudencial clássica (de
Chambre Syndicale), v. CHÉROT. Droit public économique, p. 73 et seq.).
762
Falando sobre a Constituição francesa, Jean-Ives Chérot: “A Constituição é relativamente neutra no que concerne
à organização econômica. Não acharemos na Constituição um programa de política econômica, nem mesmo
constrições substanciais para orientar a escolha entre diferentes políticas econômicas opostas. É principalmente
‘dentro’ da lei, e não na Constituição, onde figuram as bases da organização econômica” (CHÉROT. Droit public
économique, p. 27).
763
KOMMERS. The Constitutional Jurisprudence of the Federal Republic of Germany, p. 242. Afirmando que a
Constituição alemã deixa conscientemente abertas as questões da Constituição Econômica, para, com isso,
deixar espaço à livre discussão, decisão e configuração, v. HESSE. Elementos de direito constitucional da República
Federal da Alemanha, p. 39.
764
STOBER. Direito administrativo económico geral: fundamentos e princípios. In: STOBER. Direito constitucional
económico geral: fundamentos e princípios, direito constitucional económico, p. 54, grifos no original.
765
KOMMERS. The Constitutional Jurisprudence of the Federal Republic of Germany, p. 245. Caso Ajuda de Investimento I,
julgado em 1954.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
239
766
KOMMERS. The Constitutional Jurisprudence of the Federal Republic of Germany, p. 248-250.
767
SCHWABE. Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, p. 159.
768
Tal decisão inaugurou era de ativismo judiciário de índole econômica, a muito apropriadamente chamada Era
Lochner, que só viria a terminar alguns anos depois. A Era Lochner encerrou-se com o caso West Coast Hotel vs.
Parrish, julgado em 1937, que declarou constitucional uma restrição legal à liberdade de contratação em prol
de interesses de proteção da comunidade, da saúde e da segurança de grupos vulneráveis. No caso, a restrição
era o próprio salário mínimo legal, cujas diferenças em relação ao que recebia foram reclamadas pela camareira
Elsie Parrish contra o Hotel West Coast. Para um resumo dos casos, v. HALL. The Oxford Companion to the
Supreme Court of the United States, p. 588-591 (Lochner vs. New York), p. 1082-1083 (West Coast Hotel vs. Parrish).
Breve comentário dos casos na doutrina brasileira está, por exemplo, em Luís Roberto Barroso (Curso de direito
constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 21, 124).
769
Mas ver contra, afirmando que o voto de Holmes em Lochner é, também, uma rejeição da neutralidade e, na
verdade, uma defesa do que hoje se chamaria de pluralismo de grupos de interesse, em Cass Sunstein (Lochn
Lochner’s Legacy. Columbia Law Review, p. 879).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
240 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
ser suficiente para concluirmos o julgamento sobre se leis que as incorporem são contrárias
à Constituição dos Estados Unidos. (grifos nossos)
A partir daí e de tantos outros casos nos quais a Suprema Corte dos EUA foi
tudo, menos política ou economicamente neutra, surgiu um debate nos Estados Unidos
a respeito da possibilidade prática e da conveniência política de uma adjudicação
constitucional baseada em princípios neutros. Em muitos casos, a defesa de uma corte
constitucional baseada em “princípios neutros” escondia a manipulação de argumentos
em favor de uma ou outra tese econômica, social ou política. Herbert Weschler, autor do
artigo mais famoso sobre o assunto,770 concluía-o criticando a decisão Brown vs. Board
of Education (1954) sobre a invalidade da segregação entre brancos e negros em escolas
americanas, porque ela não seria neutra.771
De todo esse percurso pelo Direito Comparado, duas coisas devem ficar claras.
Em primeiro lugar, não advogamos a adoção de princípios neutros ao plano da adjudi-
cação, porque isso seria psicologicamente impossível. Mas afirmar a impossibilidade de
uma neutralidade absoluta não desobriga o intérprete e o aplicador de uma neutralidade
possível, como hoje é opinião pacífica. Simplesmente não há legitimidade constitucional
se juízes e aplicadores do Direito se mostrarem desinteressados em buscar uma neutra-
lidade — ideológica, psicológica — ao momento da aplicação do Direito.
Segundo ponto: a Constituição brasileira, ao contrário da francesa, da americana
e da alemã, não é uma constituição economicamente neutra. Ela afirma direitos sociais,
é vazada numa linguagem social “forte”, e, em vários pontos, assegura o direito de pro-
priedade e a livre iniciativa. Contudo, há um ponto no qual todas elas se aproximam.
É que a Constituição brasileira, ao se caracterizar como radicalmente compromissória,
acaba, na prática, criando o arcabouço de legitimação constitucional para que diversos
modelos de intervenção do Estado na economia se afirmem no plano infraconstitucional.
Ou seja: se a Constituição alemã não fala nada, ou fala muito pouco, e é (tam-
bém) por isso que a doutrina e a jurisprudência identificam uma relativa neutralidade
constitucional, a Constituição brasileira de 1988 fala muito e sobre todas as coisas, e é
por isso que permite muito. O legislador infraconstitucional alemão possui liberdade
de disciplina quanto aos aspectos econômicos não conflitantes com direitos fundamen-
tais porque a Constituição é relativamente avara no tratamento do ponto; o legislador
infraconstitucional brasileiro possui liberdade parecida, mas porque nosso Texto
Constitucional é simultaneamente “social” e “liberal”, a depender de quais dispositivos
normativos se escolha ressaltar.
Há algo que subjaz à noção de que o Estado só pode intervir concorrencialmente
quando houver interesse público e o mercado privado não estiver funcionando a
contento, tese superada na França, mas ainda presente no Brasil: é a ideia de que as
770
WESCHLER. Toward Neutral Principles of Constitutional Law. Harvard Law Review, p. 1 et seq.
771
E logo surgiu artigo defendendo que Brown havia sido julgado com base num princípio neutro — de
antissubordinação. V. POLLACK,. Racial Discrimination and Judicial Integrity: a Reply to Professor Wechsle.
University of Pennsylvania Law Review. Muitos outros textos se seguiram — alguns defendendo que a Suprema
Corte devia aparentar ser neutra, sem o ser de fato (Martin Saphiro); outros afirmando que se deveria abandonar
o propósito da neutralidade porque os juízes constitucionais jamais conseguiriam superar suas pressuposições
de formação, seus traços psicológicos, suas adesões ideológicas, etc.; outros, ainda, retomando, em bases mais
moderadas, os propósitos de neutralidade constitucional. Desenvolver em Martin Shapiro (The Supreme Court
and Constitutional Adjudication: of Politics and Neutral Principles. George Washington Law Review, p. 587 et
seq.); MUELLER; SCHWARTZ. The Principle of Neutral Principles. University of California Law Review, p. 571-
577. Para uma discussão da proposta teórica em língua não inglesa, v. ALONSO GARCÍA. La interpretación de la
Constitución, p. 31-76.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
241
intervenções estatais só podem servir para corrigir falhas do mercado. Essa é uma pro-
posição respeitável, fruto de uma ideologia econômico-liberal, mas que, em absoluto,
foi constitucionalizada sob o texto compromissório da Constituição-cidadã de 1988.772
A Constituição de 1988 não é a Constituição do Estado Mínimo, do Estado
Subsidiário, do Estado Máximo ou do Estado Preponderante: é a do Estado Democrático,
que se tornará mais ou menos interventivo conforme mudem as circunstâncias fáticas
e os propósitos legislativos. Assim, o Estado pode intervir concorrencialmente mesmo
em casos em que a iniciativa privada funcione de modo ótimo, uma vez que “relevante
interesse público” não significa “em último caso”, tampouco “deficiência da iniciativa
privada”.
Como afirma Egon Bockman Moreira, numa citação que vale o longo trecho
transcrito:
Ocorre que a intervenção não pode se dar apenas nesse plano de fascinação pelo mercado.
Isso porque, ao mesmo tempo que o Estado deve atuar para corrigir falhas nas condutas dos agentes
(objetos de ilícitos concorrenciais), ele deve fazê-lo com a finalidade de sanar falhas estruturais
(em setores onde o mercado e a concorrência dificilmente se instalariam) e implementar
políticas econômicas públicas, instalando ab ovo modificações no próprio mercado. Tais políticas não
são ancilares ao modelo mercadológico, mas inclusive podem contrariar o paradigma vislumbrado
pela teorização da concorrência perfeita. [...]
Essa ordem de intervenções promocionais do Estado pode acidentalmente gerar resulta-
dos secundários equivalentes ao modelo de concorrência perfeita. Mas tal pressuposto não
é condição necessária e suficiente para autorizar a interferência estatal. Não é necessário porque o
fundamento de tais ações diz respeito às políticas públicas estabelecidas pelo Estado em função do
interesse público por ele tutelado. Não é suficiente porque há hipóteses em que o Estado pode não
se ver obrigado a construir um mercado concorrencial perfeito, mas a atuar na geração de outros
benefícios sociais (trabalho, renda, saúde, serviços públicos etc.). [...]
O capitalismo misto previsto na Carta Magna implica a liberdade de mercado, temperada
pela repressão a abusos e também pela integração ativa do Estado em áreas em que isso se faça
necessário, a bem do interesse público. [...]
O Direito Administrativo da Economia não é ancilar ao conceito de mercado ideal vislum-
brado pelos modelos teóricos da doutrina econômica liberal. Frente à disciplina jurídica, o
mercado pode (e muitas vezes deve) estar em segundo plano.773 (grifos nossos)
772
Na seara do Direito da Concorrência, o assunto diz respeito a embate entre duas escolas: a Escola de Chicago
(que vê a promoção e a defesa da concorrência como um fim em si mesmo) e a Escola de Harvard (que aceita o
sacrifício da concorrência em prol de um bem maior). Sobre o tema, v. FORGIONI. Os fundamentos do antitruste,
passim.
773
MOREIRA. O direito administrativo da economia e a atividade interventiva do Estado brasileiro. In: OSÓRIO;
SOUTO. Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 856-857, p. 859.
774
MOREIRA. O direito administrativo da economia, a ponderação de interesses e o paradigma da intervenção
sensata. In: CUÉLLAR; MOREIRA. Estudos de direito econômico, p. 53-98.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
242 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
e distribuindo plasma sanguíneo? Quem defenderia, por força de hipotético bom fun-
cionamento do mercado privado de venda desse tipo de substância, associado a um
“princípio constitucional da subsidiariedade econômica”, uma “inconstitucionalidade
institucional”775 da Hemobrás?
Se não há limitação consistente num “princípio constitucional da subsidiarie-
dade”, as únicas limitações constitucionais à intervenção concorrencial pública são
a existência de interesse público, a preservação da máxima da proporcionalidade776 e a
igualdade possível entre estatais e empresas privadas.777
775
A expressão consta de texto de Dinorá Adelaide Musetti Grotti e nele foi utilizada para caracterizar empresas
estatais que, anteriores à Constituição de 1988, hoje em dia não mais atendam aos requisitos do art. 173 da
Constituição da República (Intervenção do Estado na economia. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência
Política, p. 81.
776
A sub-regra da necessidade pode ser fonte da subsidiariedade, como querem alguns, que associam a
subsidiariedade ao favor libertatis? Não acreditamos nisso. Quando se fala numa alternativa menos lesiva
a direitos fundamentais, entre várias opções que produzam resultados semelhantes, o fato é que, uma vez
consolidada a política pública consistente na intervenção direta concorrencial, poucas outras alternativas,
que não a própria intervenção, vão produzir resultados semelhantes. Não concordamos com afirmações do
tipo “o fomento público é alternativa à intervenção direta imposta pela proporcionalidade-necessidade”,
simplesmente porque não são objetos comparáveis: são formas de intervenção distintas e produtoras de
resultados diferentes. O argumento só serve para ser usado no discurso político, e, ainda assim, em sentido
aproximado. Não é, em definitivo, argumento jurídico, muito menos argumento jurídico que possa fundar um
juízo de inconstitucionalidade.
777
Pode-se dizer que “a subsidiariedade é uma falsa questão; a questão é o tamanho certo do Estado”. Essa é uma
obviedade. O problema é que o debate a respeito da subsidiariedade não se faz no terreno das obviedades, mas
no do imaginário dos juristas. Trata-se de disputa por um capital simbólico: aquilo que é “determinado pela
Constituição”.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
243
Brasil, um país histórica e precipuamente interventivo em suas atividades econômicas; no qual o Estado
ainda ocupa uma posição de centralidade.778
A crítica não parece correta. Não há, nem neste livro nem no artigo escrito em
coautoria, uma tese sociológica ou econômica a respeito da presença ou ausência do
Estado na economia. E isso não é sequer o caso: a tese aqui desenvolvida é uma tese
normativa e essencialmente conceitual sobre os limites da interpretação constitucional
acerca da intervenção do estado na economia. Ela independe de o Estado ser ou não
central na economia brasileira (aliás, ele é).
Uma outra crítica, esta interna ao argumento aqui desenvolvido, vem com
Floriano de Azevedo Marques Neto. Em artigo sobre o fomento público, o autor, que
defende a existência de um princípio constitucional da subsidiariedade, anotou o se-
guinte (destaques acrescentados):
Tenho como incontornável que o constituinte, ao eleger a livre iniciativa como funda-
mento da República Federativa do Brasil (artigo 1º, IV, CF) e como fundamento da ordem
econômica (artigo 170, caput, CF), priorizou uma determinada vertente de organização
econômica que, submetida à intervenção estatal sem limites de abrangência ou parâmetros de
incidência, restaria não só desprestigiada, mas sim negada. Veja-se que a valorização do
trabalho humano é dimensão que não exclui a livre iniciativa. Muito ao contrário, com ela
se coaduna. A valorização do trabalho é fundamento a conformar a livre iniciativa (ou, de outro
lado, a impedir que a liberdade seja exercida no sentido de negar a valorização do labor) e não de
afastá-la. Do contrário, teríamos que entender que tal fundamento (a valorização do trabalho) só
seria atingido com a intervenção estatal direta, o que seria uma falácia, como demonstra o modelo
econômico chinês. Mais ainda, teríamos que pressupor que a intervenção estatal derrogatória da
livre iniciativa teria como fim último assegurar mais dignas e valorizadas condições de trabalho,
o que também não é verdade.
O máximo que se pode extrair do fundamento da valorização do trabalho humano é o fato
de que toda a iniciativa econômica, privada e pública, está submetida às formas de inter-
venção estatal promotoras da valorização laboral (normas de proteção do trabalho, regras
limitadoras de jornada, poder de polícia das relações de trabalhistas, fomento à geração
de empregos, proteção do meio ambiente do trabalho e da saúde do trabalhador etc.).779
778
RIBEIRO, Leonardo Coelho. Reformando marcos regulatórios de infraestrutura: primeiras notas ao caso das
ferrovias. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 12, n. 45, jan./mar. 2014. Disponível
em: <http://www.bidforum.com.br/PDI0006.aspx?pdiCntd=110794>. Acesso em: 27 jul. 2017.
779
MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. O fomento como instrumento de intervenção estatal na ordem
econômica. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 8, n. 32, out./dez. 2010.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
244 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
780
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Princípio da subsidiariedade: potencialidades e limites. Interesse Público – IP,
Belo Horizonte, ano 19, n. 102, p. 45-55, mar./abr. 2017. Ainda, v. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas
Estatais. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2017.
781
No mesmo sentido daquele defendido, neste ponto, pelo texto de Alexandre Aragão, veja-se a contribuição de
SCHMIDT, Gustavo da Rocha. O conceito constitucional de serviço público. Revista Brasileira de Direito Público –
RBDP, Belo Horizonte, ano 14, n. 53, abr./jun. 2016.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
245
nas quais o relevante interesse coletivo claramente inexistiria. Assim, por exemplo, na
comercialização de sorvetes.
Pois bem. O primeiro argumento do professor Aragão parece contraditório com o
segundo, ao afirmar que não há direito de a empresa privada não sofrer concorrência da
estatal, e, depois, ao indicar que, nas hipóteses incluídas em zonas de certeza negativa,
pode haver controle judicial. Se a atividade do Estado em nada limita juridicamente a
atividade dos particulares, então ela deveria ser indiferente ao controle judicial. Mas
há ainda outros pontos a merecerem reflexão. A eles.
O argumento central de Alexandre Aragão — de que o princípio da subsidiarie-
dade é critério para o controle de atividades de intervenção estatal incluídas em zonas
de certeza negativa — parece, em alguma medida, redundante e impreciso. É redun-
dante, pois, se fosse para isso, a subsidiariedade não acresceria informação alguma a
outros critérios de controle da atuação pública, como o próprio standard do relevante
interesse público. A inconstitucionalidade de se criar uma Sorvetebrás seria mais bem
justificada não com base em suposto princípio da intervenção subsidiária do Estado
na economia, mas se se dissesse tout court que não há relevante interesse público na
criação da empresa.
Outro aspecto a se ressaltar é a própria naturalização da existência de “zonas
de certezas negativas”. O que é absurdo para um pode ser razoável, ou, ao menos,
tolerável para outro. Tudo a depender do contexto, da história, da justificativa. A in-
tervenção do Estado na economia é fenômeno político, e não, na essência, jurídico. Daí
que o campo de luta deve ser político, e não tribunalício. Afirmada em abstrato, soa de
fato desarrazoada a criação de estatal para vender sorvetes. Mas, e se vender sorvetes
for parte da história da cidade? E se se utilizar da venda de sorvetes como fomento ao
turismo local? A Natex, que já foi estatal — hoje, faz parte da Fundação de Tecnologia
do Acre —, fabrica camisinhas feitas com látex tirado de seringueiras locais. É exemplo
quase caricatural,782 mas indica que não existem tantas zonas de certezas positivas ou
negativas, exigindo-se do intérprete constitucional certo exercício de empatia política.
Existem estatais de chips eletrônicos; a que fabrica armas; as que vendem seguros,
consórcios, leasings; as que são rádio ou jornal; as que operam com processamento
de dados; com a promoção do turismo; com saneamento, energia, armazéns. Água é
bem escasso. Seria constitucionalmente inadmissível que a venda de água, no futuro,
pudesse ser estatizada?783
Nessa mesma linha, vem a proposta de André Cyrino.784 Cyrino, logo após resu-
mir uma das teses deste livro, informa que o fato de a Constituição ser norma jurídica
782
Embora nem tanto. A produção da Natex corresponderia a cerca de 20% das camisinhas distribuídas
gratuitamente no Brasil. Disponível em: <http://www.agencia.ac.gov.br/natex-responde-por-20-da-producao-
de-preservativos-distribuidos-gratuitamente-no-pais>. Acesso em: 27 jul. 2017.
783
Isso não quer dizer que tais ações públicas sejam economicamente recomendáveis. Elas só não estão
constitucionalmente vedadas. Não se acredita, nesta obra, na epistocracia, isto é, na limitação da deliberação
democrática a um grupo de escolhas tidas como intelectualmente superiores (para nosso debate, tais escolhas
assumiriam a forma de economicamente não ruinosas), ou, por vezes, a um grupo de votantes (só poderiam
votar os eleitores mais intelectualmente capacitados). Há um problema (i) epistêmico na epistocracia (não se
sabe se existem escolhas intelectualmente melhores), e (ii) um problema de hierarquia (um grupo se coloca
como intelectualmente superior a outros). Para defesa contemporânea da posição, v. BRENNAN, Jason. Against
Democracy. Prineton: Princeton University Press, 2016. Para crítica, cf. RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia.
São Paulo: Boitempo, 2014.
784
CYRINO, André Rodrigues. Até onde vai o empreendedorismo estatal? Uma análise econômica do art. 173 da
Constituição. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 16, n. 185, jul. 2016.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
246 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
785
Entendida a palavra à europeia.
786
Para uma defesa do pluralismo modelar na economia, v. RODRIK, Dani. Economic Rules: the rights and wrongs of
the dismal science. Nova Iorque: Norton, 2015.
787
Holger Mühlenkamp, realizando meta-análise de centenas de artigos econômicos que estudaram a eficiência de
estatais em comparação à de empresas privadas, indicou que os resultados são largamente diversos, mas que “a
pesquisa não indica que empresas privadas sejam mais eficientes do que estatais que lhes sejam comparáveis”.
Cf. Mühlenkamp, Holger. From state to market revisited: more empirical evidence on the efficiency of public
(and privately-owned) enterprises. In: Annals of Public and Cooperative Economics, dezembro de 2015.
788
André Cyrino sugere que seria naïve supor que o Estado tenha condições de ingressar eficientemente num
mercado competitivo, que exija inovação e presteza. Mas há indicações que permitem temperar a afirmação do
autor. A respeito, v. MAZZUCATO, Mariana. O Estado Empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs.
setor privado. São Paulo: Porfolio, 2014.
789
Além disso, eles estarão sujeitos a outros tipos de pressões, que não necessariamente políticas em sentido “ruim”:
por exemplo, a de ser vistos como “realizando políticas públicas” ou de “construindo um legado para o país”
(pressão essa mais distante da realidade do administrador privado). Há, ainda, pressões reputacionais comuns
a todos os gestores, e que, ao nível individual, poderiam neutralizar pressões políticas (ex., ser reconhecido
como “bom executivo”).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
248 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
fato do empregado de estatal, que André Cyrino intui que leva à acomodação,790 pode
significar contraforça ao “objetivo de curto prazo” do controlador político (ao contrário
do empregado privado propriamente dito, que talvez não se acomode, mas que deverá
aceitar tudo calado: afinal, é aceitar ou rua). E o processo de decisão das estatais não
é, ao que parece, necessariamente mais custoso e lento do que o de empresas privadas
que lhes sejam comparáveis. O critério de diferenciação parece ser mais o tamanho da
organização do que a natureza do regime jurídico: empresas grandes — públicas ou pri-
vadas — desenvolvem burocracias organizacionais e sistemas complexos de controle,
ao passo que empresas pequenas tendem a ser mais expeditas.
Voltemos ao texto. André Cyrino, em conclusão, propõe três standards para orien-
tar a interpretação do art. 173 da Constituição: “quanto menor a vantagem comparativa
do Estado, mais estreito deverá ser o sentido do art. 173; quanto maior o clamor demo-
crático por uma determinada intervenção, mais flexível poderá ser a interpretação das
zonas de incerteza do art. 173; quanto mais essencial for a atividade que se pretende
atribuir à empresa estatal, maiores serão as possibilidades de atuação direta do Estado
na economia”.
Quanto ao primeiro standard, importaria identificar exatamente qual(is) é(são)
essas vantagens do Estado, e sob quais critérios de comparação. O standard poderia car-
rear um ônus argumentativo genérico (quais são as vantagens a que se está referindo?)
e indeterminado (qual é o nível de vantagem apropriado para que o Estado “vença” a
preferência privada e possa, então, atuar diretamente na economia?). Registre-se, ade-
mais, o quão difícil é identificar uma vantagem comparativa do Estado senão quando
ele já está nela atuando.
Quanto ao segundo standard, ele parece de difícil operacionalidade. O “clamor
democrático” pode ser mais bem identificado por meio da eleição de políticos que
promovam leis e regulamentos mais ou menos intervencionistas. Mas, se se pretender
equivaler “clamor democrático” a “apoio popular em favor da aprovação de projeto de
lei” (o que seria forma de apresentar concretamente o standard), o fato é que o standard
se torna praticamente insuperável, pois é plausível supor que nenhuma ou quase
nenhuma lei que autorize a criação de estatal gere comoção. Projetos de lei de apelo
popular são aqueles cujos assuntos são imediatamente compreensíveis (ex. Lei da Ficha
Limpa; Lei dos Crimes Hediondos; 10 Medidas Contra a Corrupção), e não leis que
autorizam a criação de estatais, cujos objetos são, por vezes, complexos (v.g., a PPSA
é estatal federal criada para gerir a parte que a União recebe em óleo nos contratos de
partilha nas áreas do pré-sal).
O terceiro standard parece já estar contido na teoria, que André Cyrino adota,
sobre “zonas de certeza”. Ao falar em “quanto mais essencial”, o standard pressupõe que
o intérprete já haja qualificado a atividade como essencial, não essencial, ou neutra; o
790
Esse ponto merece verificação empírica, mas suspeitamos que o fator decisivo seja mais a cultura da empresa
do que a natureza do empregador. Aliás, a depender do objeto da estatal, podem existir pressões inclusive
contrárias à acomodação na atuação do empregado de estatal vis à vis a atuação de empregado em empresa privada
congênere. Por exemplo: pode-se cogitar que, para alguns empregados da Petrobras, existam componentes
nacionalistas que lhes motivem a atuação (na linha “estou trabalhando pelo meu país”), e que não existiriam se
trabalhassem, por exemplo, na Shell. De fato, os resultados mais recentes da psicologia experimental indicam
que os fatores motivacionais mais influentes no trabalho não são a remuneração nem a estabilidade no emprego,
mas estão associados a fatores como a percepção de propósito na função. Se for esse o caso, acomodar-se ou não
se acomodar não tem a ver (preponderantemente) com ser estável ou receber mais, mas, sim, com identificar
sentido/propósito no trabalho. Cf. ARIELY, Dan. Payoff: the hidden logic that shapes our motivations. Nova Iorque:
Simon & Schuster, 2015.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
249
resultado está contido na premissa (pois o standard vai solicitar que o intérprete atribua
importância àquilo que ele já atribui importância). Além disso, o standard não auxilia
no ponto crítico, que é fornecer critério para definir, justamente, “o que é essencial”.
Este livro contém sugestão: essencial é o que assim seja qualificado por deliberação
democrática legítima.
Afinal, o texto de André Cyrino, se levanta questões importantes a respeito da
vida das estatais, não parece formular parâmetros de interpretação do art. 173 que ul-
trapassem a literalidade do texto constitucional ou, quiçá, o próprio conteúdo-padrão
da subsidiariedade.
Marcelo Zenni Travassos também formula interessante crítica ao artigo em co-
autoria com Cláudio Pereira de Souza Neto, cujas posições são basilares neste presente
capítulo.791 O autor inicia com as críticas que formulamos a “posições que parecem
ter se tornado as mais aceitas pela dogmática constitucionalista e administrativista
brasileira”. Em seguida, traz críticas ao uso que fizemos de categorias da filosofia
política de Rawls. Afirma que, embora seja desejável que uma constituição não trate
de miudezas, o conteúdo da Constituição de 1988 iria além do que poderia ser o “con-
senso sobreposto” de Rawls. Afirma que “o objeto constitucional já pode sim ir além
do consenso sobreposto, configurando documento que contenha opções políticas por
doutrinas abrangentes conforme a deliberação democrática, evidentemente desde que
tais doutrinas abrangentes sejam razoáveis”.
Quais seriam as opções políticas da Constituição de 1988? De acordo com
Marcelo Travassos, uma delas seria a opção pela preponderância da livre iniciativa —
a constituição haveria, portanto, adotado o princípio da subsidiariedade —, e isto
restaria claro a partir de diversos de seus dispositivos. Por exemplo, da leitura do art.
170, par. único; ou do próprio texto do art. 173. E, se não fosse por seu texto, esse teria
passado a ser “o espírito da Lei Maior” em razão das reformas liberalizantes havidas
a partir de seus primeiros anos (por ex., com as emendas 5, 6, 7, 8, 9 e 36; ou, no plano
infraconstitucional, a partir da adoção dos programas de privatização dos anos 90). Em
nota conclusiva, registra:
(...) [M]esmo que se pudesse afirmar que a Constituição de 1988, quando de sua promulgação,
elencava a livre iniciativa tão somente como mais um entre vários princípios de igual peso
em uma Carta de natureza compromissória e politicamente neutra bem como que inexistia
na Carta de 1988 qualquer previsão para o princípio da subsidiariedade, tais afirmações não
poderiam ser reproduzidas para o estágio atual da Lei Maior pós reformas.
791
TRAVASSOS, Marcelo Zenni. O estado subsidiário regulador e de fomento na Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988. In: Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, n. 27 (janeiro-março de 2015).
Acessível em: <http://www.eumed.net/rev/cccss/2015/01/subsidiariedade.html>. Acesso em: 15 jul. 2017. O
texto citado é SOUZA NETO, Cláudio Pereira; MENDONÇA, José Vicente dos Santos. Fundamentalização e
fundamentalismo na interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In. SOUZA NETO, Cláudio
Pereira; SARMENTO, Daniel (Coords.). A constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações
específicas. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2007.
792
“No entanto, é fato que a Constituição de 1998 se pronuncia sobre temas econômicos e assume posições no
debate ideológico”. SOUZA NETO, Cláudio Pereira; MENDONÇA, José Vicente dos Santos. Fundamentalização
e fundamentalismo na interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In. SOUZA NETO, Cláudio
Pereira; SARMENTO, Daniel (Coords.). A constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações
específicas. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2007.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
250 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
por seu caráter compromissório, ela permite várias possibilidades ao plano da con-
cretização infraconstitucional. Mas a questão é que seus intérpretes institucionais, em
especial a Suprema Corte, não estão autorizados a se utilizar de argumentos tirados
de doutrinas não abrangentes em casos duvidosos; devem optar por argumentos que
possam, ao menos tendencialmente, ser objeto de consenso. A constituição de 1998
vai além do consenso sobreposto.793 Mas seus intérpretes não devem ir além dele: da
conexão com as premissas básicas do Estado de Direito e da produção de argumentos
conforme a um uso público da razão.
Em termos de exegese normativa, discorda-se da leitura de Marcelo Travassos
a respeito do texto da constituição. O conteúdo material do art. 173 já foi aqui tratado
(v. acima). Quanto ao art. 170, p. único, permite a reconstrução de norma jurídica que
consagra a liberdade de empresa: é livre a empresa, salvo exceções legais. Daí não se
extrai o princípio de uma intervenção ultima ratio do Estado na economia.
E, afinal, algumas emendas de fato tornaram o texto da constituição mais liberal,
o que não quer dizer que ela haja perdido seu caráter compromissório. Também houve
outras que incluíram, em seu texto, direitos sociais (ex. a emenda 26 incluiu-lhe o direito
à moradia). O fato é que a Constituição de 1988 continua compromissória, inclusive
e especialmente em sua Constituição Econômica. Legislações infraconstitucionais
liberais foram seguidas por leis intervencionistas — inclusive leis que autorizaram a
criação de estatais —, e, atualmente, vê-se o retorno do pêndulo, com a adoção de leis
e regulamentos desinterventivos. Qual vem se mostrando o “espírito da Lei Maior” ao
longo de todo esse tempo? É um espírito de tolerância, que permite o devir histórico.
Ao fim deste item, esperamos haver tratado algumas das mais salientes críticas
a um dos capítulos centrais do livro. Agradecemos aos autores aqui mencionados pela
leitura cuidadosa do nosso texto.
793
Talvez seja o caso de recuperar as noções schmittianas de constituição material e constituição formal ao
momento da interpretação de constituição tão analítica quanto a nossa, sugerindo que as normas materialmente
constitucionais (estrutura básica do estado, direitos fundamentais) possuam certa preponderância exegética
prima facie sobre normas apenas formalmente constitucionais.
794
COMPARATO. Ordem econômica na Constituição brasileira de 1988. Revista de Direito Público, p. 263.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
251
não se possa presumir a partir da própria lei que autoriza a criação da estatal (como
era, aliás, no regime da Constituição anterior).795
A posição não parece a melhor. É possível sustentar a existência de uma auto-
rização implícita na própria lei autorizativa da criação da estatal, em especial a partir
dos dispositivos normativos relacionados ao seu objeto. Afinal, por qual razão se vai
autorizar a constituição de uma sociedade de economia mista para, digamos, prestar
serviços relacionados à indústria do carvão e do aço, se já não se considerou, antes, que
tal atividade configura relevante interesse público?
Talvez seja o caso, apenas para maior segurança jurídica, de, na justificativa do
projeto legislativo, mencionar, com todas as letras, que a hipótese diz respeito a rele-
vante interesse público. Mas não é o caso de se exigir uma lei (que não a de autorização
para a criação da estatal) para cada intervenção, tampouco uma “lei geral definidora de
interesses públicos para fins de intervenção concorrencial”, até porque eles são muitos,
específicos e dinâmicos.
A polêmica foi resolvida pela Lei das Estatais, em seu art. 2º, par. 1º. A lei que
autoriza a constituição da empresa é a mesma que deverá definir, “de forma clara”, o
relevante interesse coletivo ou o imperativo de segurança nacional que a empresa visa
atender.796 A posição adotada pela Lei das Estatais é a mesma que este livro defendeu
e defende.
Ainda sobre a “lei”, há quem defenda que ela deva ser uma lei complementar, e
não uma lei ordinária. É o caso de Celso Antônio Bandeira de Mello, que argumenta o
seguinte: como a intervenção direta concorrencial só pode ser feita por intermédio de
empresas públicas ou de economias mistas, e tais entidades demandam, para sua cria-
ção, autorização por lei ordinária, a referência à “forma da lei” do art. 173 só adquiriria
utilidade quando interpretada de modo a exigir lei complementar.797
É interpretação engenhosa, mas que destoa da técnica legislativa constitucional,
já que, sempre que a Constituição exige lei complementar para o tratamento da matéria,
diz isso de modo expresso. Além disso, acabamos de defender que a lei autorizativa
pode ser a mesma lei “definidora do interesse público em concreto” para o caso. Não
vemos propósito em, mercê de extrair sentido útil de todas as expressões constitucionais,
propor soluções contraintuitivas.
A Lei das Estatais fala apenas em “lei”. Trata-se, ao menos pela indicação do
Estatuto, de lei ordinária. Mas, de resto, o ponto foi superado pela prática: as leis que
autorizam a criação de estatais são leis ordinárias.
Há alguma restrição, de natureza federativa, na “lei” a que se refere o art. 173?
Em nossa opinião, somente para o caso de “imperativo de segurança nacional”, em
que o assunto é de competência legislativa apenas da União (a Constituição atribui
competência privativa à União para legislar sobre defesa nacional: art. 22, XXVIII).798
795
ARAUJO. Administração indireta brasileira, p. 72. Mas v. p. 79, onde o autor, contraditoriamente, afirma que a
expressão “conforme definidos em lei” “faz supor que a própria lei que autoriza a criação da entidade possa
definir que aquele objetivo é imperativo da segurança nacional ou relevante interesse coletivo, e não configurá-los
previamente, como seria de se desejar” (grifos no original). Em defesa da necessidade de duas leis, ver, ainda,
Gastão Alves Toledo (O direito constitucional econômico e sua eficácia, p. 251).
796
Lei nº 13.303/2016. art. 2º, par. 1º, A constituição de empresa pública ou de sociedade de economia mista
dependerá de prévia autorização legal que indique, de forma clara, relevante interesse coletivo ou imperativo
de segurança nacional, nos termos do caput do art. 173 da Constituição Federal.
797
BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 616.
798
GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 282.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
252 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
799
GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 283-284.
800
Concluindo de modo idêntico, ainda que sem enfrentar a questão sobre a qualificação da matéria como
Direito Econômico: “Segundo nosso entendimento, não há qualquer óbice para que Estados, Distrito Federal
e Municípios explorem atividades econômicas nos casos em que necessário para atendimento ao relevante
interesse coletivo, uma vez que o interesse coletivo poderá ter traço regional, típico de ser atendido pelo
ente federativo competente” (SCHIRATO. Novas anotações sobre as empresas estatais. Revista de Direito
Administrativo, p. 221).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
253
801
ARISTÓTELES. A política. A menção ao monopólio está na p. 26 dessa versão.
802
HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 1954.
803
HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 1954.
804
SALOMÃO FILHO. Direito concorrencial: as estruturas, p. 201.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
254 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
805
SUNDFELD. Regime jurídico do setor petrolífero. In: SUNDFELD (Coord.). Direito administrativo econômico,
p. 391.
806
Em relação ao monopólio nuclear, é comum que sobre ele incida o fundamentalismo ambiental, isto é, a
propositura de razões não públicas de caráter ambiental como sugestões de razões para as decisões. Em termos
dogmáticos, tais razões apelam a referências constitucionais ao ambiente e a versões extremadas do princípio da
precaução. A construção da usina termonuclear de Angra 3, em que pese validada pelo Decreto nº 75.870/75 —
recepcionado, como ato jurídico perfeito, pela Constituição de 1988 —, foi objeto de ações judiciais que, até
hoje, não impediram sua construção, mas, à época, cercaram-na de risco. O fundamentalismo ambiental não
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
255
ultrapassa o filtro da razão pública, e é antipragmático: ele é backward-looking. Os problemas ambientais são os
problemas de hoje, ou os que o recorte epistêmico atual projeta. Mas a inovação tecnológica e científica pode
vir a solucioná-los no futuro, ou se pode descobrir que eles não eram afinal problemas tão grandes (ou sequer
problemas). Há que se cogitar que a própria natureza, por algum mecanismo regulador, pode resolvê-los.
Existem, no entanto, legítimas preocupações ambientais e de segurança, algumas tiradas do dado experimental
(ex. Chernobil, Fukushima I). Ignorá-las é, também, ser antipragmático. Para visão crítica do princípio da
precaução, v. SUNSTEIN. Laws of Fear: Beyond the Precautionary Principle. V., ainda, Michelle Taveira Telles
(Meio ambiente, justificação pública e democracia deliberativa: a legitimação democrática das decisões sobre o risco
ambiental.
807
Acerca dos limites da participação privada na geração de energia elétrica a partir de fontes termonucleares,
v. MENDONÇA, José Vicente Santos de. O que pode ser a participação privada na geração de energia elétrica
a partir de usinas termonucleares: um exercício experimental de neointervencionismo público. In: JUSTEN
FILHO, Marçal; SCHWIND, Rafael Wallbach. Parcerias Público-Privadas: reflexões sobre os 10 anos da lei
11.079/2004. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2015.
808
Os outros artigos da Lei do Petróleo impugnados foram os seguintes: o art. 28, incisos I e III; o art. 37, inciso I, 2ª
parte e parágrafo único; o art. 43, II e parágrafo único; o art. 51, parágrafo único; e o art. 60, caput. No essencial,
são dispositivos normativos que atribuem à Agência Nacional do Petróleo (ANP) a possibilidade de extinguir
ou prorrogar o contrato de concessão (neste último caso, mediante a fixação de determinado valor); de indicar
o conteúdo e fixar a duração de um programa exploratório mínimo para a fase de exploração; e de autorizar a
importação ou exportação de petróleo, gás natural e derivados. A impugnação contra tais normas alegava que
elas conferiam poderes e atribuições à ANP que jamais poderiam sair do poder concedente: a União.
809
O tema também foi discutido na ADI nº 3.366, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista contra diversos
dispositivos da Lei do Petróleo. Os processos foram julgados conjuntamente, então vamos tomar por base,
didaticamente, a primeira ADI.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
256 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
§1º A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das ativida-
des previstas nos incisos I a IV deste artigo observadas as condições estabelecidas em lei.
§2º A lei a que se refere o §1º disporá sobre:
I - a garantia do fornecimento dos derivados de petróleo em todo o território nacional;
II - as condições de contratação;
III - a estrutura e atribuições do órgão regulador do monopólio da União;
O que antes era vedado agora se tornou possível: que a União contrate com em-
presas estatais ou privadas a realização das atividades incluídas no monopólio público
constitucional do petróleo. Antes de adentrarmos nos votos da ADI, outro dispositivo
importante de ser transcrito é o artigo 176, com a redação da Emenda à Constituição
nº 6, de 1995. Ele, em princípio, não tem a ver com o monopólio do petróleo e do gás
natural — suas regras são gerais em relação às regras específicas do art. 177 —, mas
essa própria relação de generalidade e especificidade foi um dos pontos discutidos na
decisão. Aos pontos importantes do art. 169:
Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráu-
lica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento,
e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.
§1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se
refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou con-
cessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis
brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá
as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira
ou terras indígenas. (grifos nossos)
Não detalharemos a tramitação da ADI (foi concedida, monocraticamente, liminar antes
da 6ª Rodada de Licitações da ANP, contra a qual se impetrou mandado de segurança,
que foi provido etc.), tampouco as discussões processuais acerca da legitimidade do
Governador do Paraná para propor a demanda (o STF entendeu que havia legitimidade).
Pois bem: o voto do relator, Ayres Britto, entendeu que a Constituição fizera
distinção entre os recursos minerais em sentido genérico — tratados no art. 176 — e
certos recursos minerais, como o petróleo e o gás natural, cuja disciplina encontrava-se
no art. 177. Portanto, ao contrário do art. 176, que garantia ao concessionário o produto
da lavra, o art. 177, mesmo com a redação pós-EC nº 9/95, nada falava a esse respeito,
estando, então, vedada a entrega à concessionária do resultado da exploração petrolí-
fera, que seria propriedade da União. Ayres Britto afirmou que “não se pode confundir
flexibilização [do monopólio público constitucional do petróleo] com erradicação”,810 e
procurou, no voto, decidir conforme a essa percebida não erradicação do monopólio.
O próximo a votar, Marco Aurélio, procedeu a histórico do tema da regulação
do petróleo no Brasil. Defendeu que conceder a propriedade ao explorador seria quase
“retroceder à Idade Média, por praticamente resgatar o modelo do sistema regaliano —
no qual aquele que explora é também o detentor da propriedade”.811 Afirmou que, a
perdurar o modelo de concessão imposto pela Lei do Petróleo, estar-se-ia transferindo
a propriedade do petróleo para as empresas exploradoras por meio de contratos com
prazos longos, de quase três décadas, em troca de ínfimo pagamento de dez por cento
810
Voto de Ayres Britto na ADI nº 3.273-9, p. 134.
811
Voto de Marco Aurélio na ADI nº 3.273-9, p. 166-167.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
257
812
Voto de Marco Aurélio na ADI nº 3.273-9, p. 187. Em outro trecho do voto, afirma: “Entretanto, vincular a
participação das empresas privadas à entrega da propriedade do bem é desconhecer como o mercado
internacional de petróleo opera e operou ao longo desse tempo, é esvaziar totalmente o instituto do monopólio,
tornando-o ausente de qualquer significado, um mero penduricalho constitucional desprovido de substância”
(p. 190).
813
Voto de Marco Aurélio na ADI nº 3.273-9, p. 204-205.
814
Em artigo sobre o tema da interpretação do Direito do Petróleo, anotamos: “No Direito do Petróleo, e aqui
ingressamos terreno polêmico, há espécie de fundacionalismo que é comum, nem por isso menos danoso: o
hiper-nacionalismo. Este fundacionalismo, esta Verdade Fundadora, costuma perpassar uma série de propostas
interpretativas na área, mas deve, ao menos sob bases pragmatistas, ser rechaçado” (MENDONÇA, José Vicente
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
258 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Até aqui, tanto o relator, Ayres Britto, quanto Marco Aurélio votaram pela in-
constitucionalidade da entrega do produto da lavra à concessionária e, assim, pela
inconstitucionalidade do art. 26 da Lei do Petróleo. A divergência vencedora começou
com Eros Grau, o próximo a votar. Seu voto é bem útil à compreensão das características
do monopólio público.
Eros Grau começou criticando a observação de Marco Aurélio quanto ao petróleo
ser bem público especial, de uso comum pela União, e de uso especial pelas conces-
sionárias. Um bem não poderia ser as duas coisas. Além disso, se realmente fosse um
bem público especial, só poderia ser alienado se viesse a ser desafetado, i.e., caso já não
servisse ao interesse público e à soberania. Ou seja: o petróleo, em última análise, seria
inalienável — conclusão inadmissível.815
A parte mais importante de seu voto, e, em rigor, de toda a discussão da ADIN,
é a seguinte: segundo Eros Grau, com base em Fábio Konder Comparato e Pontes de
Miranda, o monopólio é sempre da atividade econômica, e nada tem a ver com o domínio e a
propriedade. E mais: a propriedade é sempre exclusiva, de modo que não faz sentido
falar em “monopólio da propriedade” ou expressões semelhantes. O art. 177 listaria
atividades que são monopólio da União, e não bens.
[...] O monopólio é de atividade, não de propriedade. Isso explica porque a propriedade do
resultado da lavra de jazidas de petróleo, gás natural e de outros hidrocarbonetos fluídos
pode ser atribuída a terceiros pela União, sem qualquer ofensa à reserva do monopólio
contemplada no artigo 177 da Constituição.816
Santos de. O pragmatismo jurídico e a revisão dos prazos dos contratos de concessão petrolífera: limites e
possibilidades do argumento pragmático).
815
Voto de Eros Grau na ADI nº 3.273-9, p. 208-209.
816
Voto de Eros Grau na ADI nº 3.273-9, p. 219, grifos no original.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
259
817
Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=608504>.
818
V. Informativo STF, n. 554, e os Informativos, nºs 392, 409, 510. A França também está passando por discussão
a respeito da liberalização de seus serviços postais para a concorrência, influenciada, principalmente, por
algumas diretrizes comunitárias da União Europeia. Desenvolver em Grégoire Calley (L’exploitation publique des
services postaux).
819
Vitor Schirato defende que, hoje em dia, só existem duas estatais operando verdadeiramente o monopólio
público: as Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e a Eletronuclear (SCHIRATO. Novas anotações sobre as
empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 220).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
260 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
820
V. WATT NETO. Petróleo, gás natural e biocombustíveis: doutrina, jurisprudência e legislação.
821
A própria relevância da distinção entre o que é objeto de monopólio público e o que é atividade privada,
exercida pelo particular por direito próprio, vai diminuindo. Leia-se a opinião de Carlos Ari Sundfeld: “Neste
novo momento diminui a relevância jurídica da distinção entre as atividades da indústria do petróleo objeto
de monopólio e as que escapam desse monopólio. É que em ambos os casos é possível a atuação privada, sob
a regulação federal. A utilidade da distinção permanece apenas, parcialmente, no tocante ao instrumento para
acesso empresarial ao setor. Usa-se uma concessão para outorgar o direito de exploração e produção de petróleo
e gás, que fazem parte do monopólio. Para as demais atividades usa-se a autorização” (SUNDFELD. Regime
jurídico do setor petrolífero. In: SUNDFELD (Coord.). Direito administrativo econômico, p. 391, grifos no original).
822
É curioso como a ideologia, por vezes, influencia intensamente a doutrina. Gastão Alves de Toledo, ao comentar a
“flexibilização” do monopólio do petróleo, afirma que tais reformas constitucionais significariam “a possibilidade
de harmonização da Constituição consigo mesma, ao suprimirem-se algumas distorções e antinomias ideológicas prejudiciais
à funcionalidade do sistema que ela preside”. Ou seja: é como se existisse uma ideologia constitucional “correta”;
ou, no mínimo, o autor supõe que a Constituição brasileira não deveria ser compromissória (TOLEDO. O direito
constitucional econômico e sua eficácia, p. 263).
823
É por isso que tendemos a concordar com Eros Grau quanto a que a “intervenção direta” que se faça sob o
propósito do “imperativo de segurança nacional” (art. 173) ocorra, preferencialmente, sob regime de monopólio
público.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
261
interesse do Estado do que a um interesse público (embora com esse obviamente não
possa ser incompatível).824
E isso é o suficiente para uma visão geral do tema dos monopólios públicos.
Adentremos agora ponto específico, que exemplifica o uso de argumentos doutriná-
rios não politicamente imparciais, incapazes de ultrapassar o teste da razão pública.
Referimo-nos à discussão sobre qual pode ser o veículo formal para a criação de monopólios
públicos. Outra discussão conexa é sobre como se deve interpretar a abrangência material
de um monopólio público (ou, de resto, todas as intervenções do Estado na economia).
824
Situação curiosa é a do jogo e da aposta. O Decreto-Lei nº 204/67, recepcionado pela Constituição de 1988,
definiu a atividade de loteria como serviço público, a ser exercido exclusivamente pela União, insuscetível de
concessão (art. 1º). O jogo de bingo, uma modalidade de loteria, foi tido como atividade lícita pela Lei Federal nº
8.672/93 (Lei Zico). Posteriormente, a Lei Federal nº 9.981/00, regulamentada pelo Decreto nº 3.659, também do
ano de 2000, proibiu o jogo de bingo no país, respeitando, contudo, as autorizações em vigor até a data de sua
expiração. O artigo primeiro do decreto afirma que “a exploração de jogos de bingo, serviço público de competência
da União, será executada, direta ou indiretamente, pela Caixa Econômica Federal em todo o território nacional”.
No julgamento da ADI nº 2.996, em que se discutia a constitucionalidade da disciplina estadual dos bingos
diante do art. 22, XX, da Constituição, Marco Aurélio, a par de usar por algumas vezes a expressão “monopólio”,
colocou em dúvida a natureza jurídica da atividade. Em nossa opinião, loterias e bingos, explorados
exclusivamente pelo Estado, pelo menos intrinsecamente não são serviço público, na medida em que não
atendem a um interesse público geral. Estariam mais próximos à figura de uma atividade econômica em sentido
estrito prestada em regime de monopólio público, porque sua publicização responde a interesse de controle
de uma atividade e a um propósito de geração de recursos ao Estado. Em sentido exatamente contrário —
porque o propósito da publicização é o controle e porque gera rendas ao Estado, o jogo seria serviço público, e
não atividade econômica em sentido estrito —, v. GRAU; FORGIONI. O Estado, a empresa, o contrato, p. 129-138.
Caio Tácito, em parecer, também acredita que loterias sejam serviços públicos, embora note, significativamente,
que “é certo que a loteria instituída pela União ou pelo Estado não tem a natureza ontológica ou essencial de um
serviço público próprio, como prerrogativa inerente à atividade do Estado. Trata-se de uma forma de canalizar
recursos para a receita pública em sentido lato, como processo de financiamento de atividades de assistência
social ou de benemerência pública” (TÁCITO. Loterias estaduais criação e regime jurídico. Revista dos Tribunais,
p.747-753). Seja como for, uma coisa é certa: quem associa o elemento material do conceito de serviço público ao
atendimento a um direito fundamental, posição que nunca foi a nossa, terá muitas dificuldades de sustentar o
caráter de serviço público de um bingo ou de uma raspadinha.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
262 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
era implícita, ou, simplesmente, porque esqueceu — ou como silêncio eloquente825 — não
falou porque pretendeu vedar a prática.
Embora exista um indício formal a favor da tese de que se trata de silêncio
eloquente (o fato de a Constituição de 1969 não listar os monopólios, e a Constituição
de 1988, ao contrário, fornecer lista de atividades),826 a doutrina brasileira majoritária
prefere se utilizar de outros argumentos. Afora os casos em que ela afirma que é assim
porque é assim,827 ou quando fornece argumentos econômicos ou políticos828 — na
linha “o monopólio não é salutar para o desenvolvimento econômico do Brasil”829 —,
a principal razão justificadora da taxatividade da listagem decorre de raciocínio em
quatro passos: (i) a regra é a livre iniciativa, (ii) o monopólio é exceção, (iii) as exceções
devem ser interpretadas restritivamente, (iv) logo, os monopólios públicos devem ser
interpretados de modo restritivo — o que significa, in concreto, negar a possibilida-
de de que sejam criados por meio de lei ordinária; bastariam os casos expressos na
Constituição.830 Novos monopólios, para a maioria da doutrina, só poderiam ser criados
por emenda constitucional.
As razões não públicas pertencentes a uma doutrina abrangente razoável — no
caso, ao liberalismo econômico — atuam nos passos (ii), (iii) e (iv). Pretendem transfor-
mar o que é uma afirmação política, e, daí, contestável, em objeto científico consensual.
Quanto ao passo (ii), não é necessariamente verdade que o monopólio seja exceção, ao
menos no plano concreto (no plano lógico certamente o é), ao regime da livre concor-
rência, na medida em que nunca houve regime de livre iniciativa que prescindisse da
titularidade pública de atividades. É plausível afirmar que, assim como nas cartas o
coringa, se é exceção aos naipes, não o é ao próprio jogo — ele o integra e nele desem-
penha importante papel —, o monopólio público, se é exceção lógica ao regime da livre
concorrência, não o excepciona no plano da realidade jurídica e política, pois nunca
existiu livre concorrência sem algum grau de monopólio público. Não se teria exceção,
mas peça — destoante — integral ao sistema.
825
Sobre silêncio eloquente, cf. Karl Larenz (Metodologia da ciência do direito, p. 525); MENDES. Controle de
constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos, p. 318-319. Na jurisprudência, STF, RE 130.555/SP, Rel. Min.
Moreira Alves, RTJ, 139/965.
826
TÁCITO. Gás: monopólio; concessão. Revista Trimestral de Direito Público – RTDP, p. 54.
827
“Não há, assim, monopólio privado (a exclusividade da atividade está nas mãos do particular) e, ademais, fora
desse elenco não cabe falar em monopólio” (GASPARINI. Direito administrativo, p. 622).
828
Em linha política, criticando a ideologia — “essa doença da política”, que, “como uma endemia tropical e
subdesenvolvida, teima em retardar a modernização”. cf. MOREIRA NETO. Monopólios estatais: sobrevivência
anacrônica.
829
SCHMITT. Execução das atividades relativas ao monopólio do petróleo. Revista da AGU, p. 1.
830
“A intervenção estatal na economia, portanto, quando não estiver a serviço do valor liberdade, é excepcional,
necessariamente decorrente de dispositivos constitucionais expressos, os quais devem ser objeto de
interpretação restritiva, descabendo qualquer aplicação de métodos hermenêuticos analógicos ou que
possam importar ampliação da atuação estatal no domínio econômico” (EIZIRIK. Monopólio estatal da
atividade econômica. Revista de Direito Administrativo, p. 66, grifos no original). Falando do “viés restritivo” da
interpretação que se deve dar à intervenção do Estado na produção econômica e na fiscalização e regulação, v.
Sergio Ferraz (Intervenção do Estado no domínio econômico geral: anotações. In: BACELLAR FILHO (Coord.).
Direito administrativo contemporâneo: estudos em memória do Professor Manoel de Oliveira Franco Sobrinho).
Afirmando expressamente que a “não atribuição de competência ao legislador federal para criar monopólios
públicos” é “exemplo importante de silêncio eloquente na Constituição de 1988”, v. Luís Roberto Barroso
(Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 211).
Defendendo que o rol de atividades sob monopólio estatal encontra-se taxativamente previsto na Constituição,
não cabendo ao legislador ordinário ou ao operador do Direito ampliá-lo, já que “esta [é] a mens legis que
orienta o legislador constituinte brasileiro, a teor de uma exegese sistemática dos arts. 21, 170, 173 e 177, todos
da CRFB” (FIGUEIREDO. Lições de direito econômico, p. 171).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
263
831
Karl Engisch identifica quatro sentidos em que se pode falar de “interpretação restritiva”. No sentido de (i)
“imediata”, “rigorosa”, contrapondo-se a interpretação “afastada”. Ou pode significar (ii) a relação entre o
sentido de determinado preceito e seu domínio de aplicação: a interpretação restritiva é aquela que refere o preceito
a um círculo menor de casos do que a interpretação extensiva. Pode vincular-se a (iii) um conceito material,
como se fala em in dubio pro libertate, equivalendo ao entendimento de que as leis penais são interpretadas de
forma a limitar, tanto quanto possível, o poder punitivo. Por fim, pode partir da (iv) oposição de interpretação
“restritiva” vs. “extensiva”, vinculando os conceitos às ideias de vontade do legislador e vontade da lei. Assim, é
“restritiva” ou “extensiva” a interpretação tanto quanto sejam os processos necessários para adequar o sentido
da disposição à vontade de um ou outro (ENGISCH. Introdução ao pensamento jurídico, p. 188-197).
832
Para se ver como a doutrina jurídica não é unívoca e não há nada “dado” na interpretação, registre-se a posição
isolada de Eros Roberto Grau a respeito do veículo formal para a constituição de monopólios públicos. Segundo
o ex-Ministro do STF, a ausência de referência a lei ordinária na atual Constituição significa que o monopólio público se
pode constituir mesmo sem lei específica para isso (GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 283-285).
833
Não estamos isolados na doutrina brasileira. Embora sem basear a defesa de sua posição na ideia de razão
pública, mas na redação do art. 173 da Constituição da República, leia-se a opinião de Alessandro Walmott
Borges: “A disciplina dos monopólios do art. 177 da Constituição não exclui a definição, por lei, doutros
monopólios — positio unius non est exclusio alterius. O art. 173 fala em exploração direta de atividade econômica
quando imperiosa aos interesses coletivos e à segurança nacional. Configurada qualquer das situações (uma
isoladamente, sem necessidade de apresentação das duas), pode ser instituído monopólio de setor do domínio
econômico. [...] Quando a Constituição, no caput do art. 173, coloca Ressalvados os casos previstos na Constituição,
a exploração direta de atividade econômica [...], está mencionando tanto as hipóteses de exploração em regime
de monopólio como em regime de competição. Lícito, portanto, explorar, quando configurado o interesse
coletivo ou a segurança nacional, nos dois regimes” (BORGES. A Ordem Econômica e financeira da Constituição e
os monopólios: análise das alterações com as reformas de 1995 a 1999, p. 129-130, grifos no original).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
264 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
que com sinal invertido —, as quais, se acolhidas pelos tribunais, resultariam na quebra
da estabilidade do Direito.
Pior é o comprometimento à legitimidade do Ordenamento. Qual a legitimidade
do liberalismo econômico para, diante de Constituição compromissória como a bra-
sileira, constitucionalizar proposições ideológicas? Por que os cidadãos que tiveram
tornadas “inconstitucionais” suas opiniões razoáveis a respeito da intervenção do
Estado na economia haveriam de cooperar nesse Estado?
Por tudo isso, melhor que se admita a possibilidade da criação de monopólios
públicos por lei ordinária. É a saída doutrinária conforme à razão pública, porque não
limita opções de per si, mas permite que as diversas visões de mundo confrontem-se no
campo feito para isso — a política ordinária —, sem inviabilizar, ou, no mínimo, dificultar
a ascendência de visões político-econômicas distintas das atualmente majoritárias.834 835
Os mesmos argumentos e as mesmas respostas são aplicáveis à abrangência material das
atividades sujeitas ao monopólio. Figure-se o caso: determinada lei detalha o conteúdo de
atividade monopolizada pela Constituição. Surge dúvida a respeito de uma atividade.
Não se sabe se está incluída dentro das monopolizadas. Como se aproximar da questão?
Com um preconceito antimonopólio? “Interpretando restritivamente” a “exceção”?
Desde logo aceitando a inclusão da atividade, e de muitas outras, afinal todas são
estratégicas e podem-se reconduzir a alguma ideia de interesse coletivo? Nada disso.
A melhor interpretação constitucional do princípio da livre iniciativa é a que
submete sua abrangência ao critério da razão pública, e, por fazê-lo, considera apenas
argumentos capazes de promover consenso estável entre as diversas doutrinas abran-
gentes. No que isso importa à discussão acerca da abrangência material dos monopólios
públicos, é de se rejeitar visões que incluam ou rejeitem atividades a fórceps. Não há qual-
quer regra de interpretação minimalista ou maximalista da intervenção do Estado na economia.
834
Quanto à liberdade para a criação de monopólios públicos, é possível afirmar que, salvo a discutida questão
sobre sua criação por lei ordinária, a Constituição de 1988 é mais permissiva do que a de 1969. Pois, enquanto
a Carta de 1969 restringe a criação de monopólios estatais aos casos de segurança nacional e, em especial, às
hipóteses em que a iniciativa privada não consegue organizar e desenvolver o setor (“para organizar setor que
não possa ser desenvolvido com eficácia no regime de competição e de liberdade de iniciativa”), a Constituição
de 1988, ao mencionar os parâmetros balizadores da intervenção estatal direta (na qual se inclui o monopólio
público), fala (como a de 1969) em segurança nacional, mas também em “relevante interesse coletivo”. Ora,
“relevante interesse coletivo” é conceito que, por indeterminado que seja, significa mais do que “organizar setor
privado que não consiga fazê-lo por conta própria”. A valer as diretrizes hermenêuticas a que tantos, denotativa
e conotativamente, apelam, poder-se-ia argumentar que, como a Constituição de 1988, vista por esse ponto, é
mais liberal do que a de 1969, dever-se-ia aplicar essa mesma vis expansiva ao raciocínio sobre a admissão de sua
criação por lei ordinária. Aliás, é nesse sentido, embora em tom crítico, que Raul Machado Horta, comentando
sobre os primeiros momentos da Constituição de 1988, aludia. V. HORTA. A Ordem Econômica na nova
Constituição: problemas e contradições. In: MARTINS (Coord.). A Constituição brasileira 1988: interpretações,
p. 391): “Sob a aparente restrição da atividade econômica do Estado, a norma constitucional que assegura ‘a
exploração direta da atividade econômica pelo Estado’ (art. 173), além de justificá-la na ressalva dos ‘casos
previstos nesta Constituição’, que são numerosos, autoriza seu exercício ‘quando necessária aos imperativos da
segurança nacional ou a relevante interesse coletivo’, cujo evidente conteúdo elástico e dilatador — ‘imperativos
da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo’, sempre confiados aos critérios políticos da iniciativa
presidencial e do legislador — poderá igualmente conferir à norma a força da ‘cláusula transformadora’
da Constituição, para tornar a ‘exploração direta da atividade econômica pelo Estado’ no instrumento da
estatização”.
835
Exemplo interessante de monopolização por lei ordinária, em conformidade com um imperativo de segurança
nacional, foi trazido na prova de aula no concurso para a titularidade do professor Daniel Sarmento. Daniel
Sarmento aludiu a uma possível monopolização, por lei ordinária, com vistas a maior controle público, da
produção e distribuição de armas de fogo no Brasil. A propósito: o autor deste livro agradece a seu ilustre
prefaciador as várias citações na referida aula.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
265
A intervenção estatal não deve ser tida como um bem ou mal em si mesma, mas
como uma função destinada a cumprir uma finalidade.836 A intervenção não deve ser
ampliativa ou restritiva, mas proporcional (adequada, não excessiva, justificável) ao
fim a que se destine.
Para concluir o item, uma transcrição de trecho de voto do Ministro Sepúlveda
Pertence, que serve como resumo de boa parte das ideias aqui defendidas.
Não são tipos ideais de princípios e instituições que é lícito supor tenha a Constituição
tido a pretensão de tornar imutáveis, mas sim as decisões políticas fundamentais, fre-
quentemente compromissórias, que se materializaram no seu texto positivo. O resto é
metafísica ideológica.837
836
Eros Roberto Grau, em tom crítico, sustenta que algumas manifestações doutrinárias (“que sequer podem
constituir doutrina, visto como nutridas no emocionalismo político”) veiculam verdadeiro “delírio antiestatal”.
“Aí, de um lado, é imputado caráter conservador à Constituição de 1988, na medida em que expressa a
‘manutenção do estatismo’, ‘desprezo prático pela liberdade’, ‘desinteresse pela eficiência econômica’, e ‘sinaliza
uma inibição xenófoba à internacionalização da economia brasileira’. De outro, a afirmação de que ela é — a
Constituição de 1988 — mais liberal do que a anterior, dado que consagra o predomínio da livre iniciativa; e isso
porque os princípios que a restringem (a livre iniciativa) ‘devem ser interpretados restritivamente!’. Os que assim
deliram, deliberadamente ou porque se deixam levar pelo conhecimento sensível, superficial, enganador, que
não superam pela razão, estão a um passo da proposta de total eliminação do Estado, que, como observa Dalmo
de Abreu Dallari, ‘ou é uma fantasia anarquista, que jamais conseguiu ultrapassar os limites da especulação
teórica, ou então é um ingênuo ou fingido hino de louvor à iniciativa privada, como se esta não quisesse a
participação do Estado como financiador, incentivador, sócio, consumidor ou protetor de direitos e privilégios
econômicos’” (GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 188-189, grifos no original).
837
STF, ADInMC nº 2.024/DF.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
266 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Nos últimos tempos, uma solução para o conflito intervenção estatal versus ale-
gações de desrespeito à livre iniciativa é o que se vem chamando de neointervencionismo
público — solução política, administrativa e infraconstitucional, note-se bem, abrangida
dentro das possibilidades da Constituição Econômica de 1988, mas em hipótese alguma
determinada pelo Texto Constitucional.
Seria posição de compromisso, estratégia intermediária entre a constituição de
estatais, com a subsequente intervenção direta concorrencial (ou até monopolística, a
valer o que sustentamos no item anterior), e a disciplina pública das atividades priva-
das. É possibilidade que se abre ao Poder Público, que dela pode se utilizar conforme
isso se mostre mais eficiente à persecução do interesse público (o que pode significar,
naturalmente, atender ao interesse privado, inclusive ao interesse privado de lucro e
de intervenção mínima do Estado), mas que a ela não está obrigado por nenhum im-
perativo constitucional.
Por neointervencionismo, estamos nos referindo a métodos e técnicas de indução
e de controle soft do comportamento dos agentes econômicos privados, envolvendo,
dentre outras, estratégias como (i) a cooperação entre estatais e empresas privadas
(parcerias societárias), (ii) a detenção de golden shares em empresas privadas (em geral,
depois de privatizadas), (iii) a participação minoritária estratégica em empresas pri-
vadas (“empresas público-privadas”).838 Na definição não se inclui o fomento público,
certamente uma das formas menos invasivas na relação Estado-iniciativa privada,
porque, na essência, as técnicas de fomento não são técnicas interventivas, mas apenas
e tão somente indutivas.
O Estado, na hipótese do neointervencionismo, também não é disciplinador de
atividades privadas. Ele é participante do processo econômico, mas de maneira distinta
do método “clássico” (constituir estatal e concorrer com as empresas privadas/operar
monopólio público). Num capítulo sobre intervenção direta do Estado na economia, o
tema, novo e instigante, não poderia faltar. Só nos desculpamos pela brevidade da aná-
lise: o tratamento doutrinário, apesar de contar com textos inovadores e significativos,839
ainda é escasso. Comentemos algumas das técnicas.
(i) Uma parceria entre uma estatal e uma empresa privada propriamente dita, para
além de constituir prática comum do dia a dia empresarial, pode significar, em alguns
casos, opção estratégica para o Poder Público. O desafio de parcerias dessa natureza é,
de modo ainda mais acentuado do que numa sociedade de economia mista, realizar o
interesse público e garantir lucro, na medida em que a parceira privada, com toda razão,
não precisa admitir externalidade ou condicionante social a seu propósito lucrativo.
Em princípio, parece-nos que as parcerias de estatais com empresas privadas
prestam-se a fomentar setores da economia — leia-se: dinamizar o setor via competição
potencializada. Assim, por exemplo, não caracterizaríamos como neointervencionismo
estatal a participação da Petrobras nos consórcios de concessionárias para a exploração e,
eventualmente, desenvolvimento e produção de petróleo e/ou gás natural. A participa-
ção da economia mista nesses consórcios dá-se como simples método racional-econômico
de divisão dos altos riscos da fase de exploração. O Poder Público, aqui na condição de
838
ARAGÃO. Empresa público-privada. Revista dos Tribunais, p. 33-68.
839
Dentre eles, vejam-se as significativas contribuições de FIDALGO, Carolina Barros. O Estado Empresário: das
sociedades estatais às sociedades privadas com participação minoritária do estado. São Paulo: Almedina, 2017;
e SCHWIND, Rafael Wallbach. O Estado Acionista: empresas estatais e empresas privadas com participação
estatal. São Paulo: Almedina, 2017.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
267
sócio controlador, não faz mais do que sua obrigação como agente econômico racional:
dividir altos riscos que custam muito.
Outra situação seria uma hipotética parceria entre estatal que atuasse no mercado
minerário e empresa privada claudicante, com o propósito de fazer frente ao domínio
de fato representado por outra empresa privada local. Como mais concorrência é, em
geral, algo positivo, a participação da estatal se prestaria a concretizar esse propósito
público sem ferir a busca pelo lucro de sua parceira estritamente privada. Teríamos,
então, neointervencionismo.
(ii) A detenção de golden shares — ações concedentes de direitos especiais a seus
proprietários — foi e é técnica comum de que o Estado se vale para manter algum grau
de controle sutil em empresas privatizadas. Embora certa doutrina não veja com bons
olhos a estratégia,840 denunciando que, por vezes, a propriedade pública das golden shares
faz surgir privatizações formais, mas não materiais,841 fato é que a técnica mostra-se
opção intermédia entre a intervenção concorrencial, que se pode mostrar excessiva, e
a simples disciplina das atividades econômicas, que se pode mostrar flébil.
(iii) A participação minoritária, como sócio estratégico, por exemplo, por inter-
médio de acordo de acionistas, em empresas privadas, na constituição do que alguns
já chamam de empresas público-privadas, é técnica de neointervencionismo estatal. O
Poder Público pode participar de empresas sem que precise de autorização legislativa
específica para tanto — se sequer precisa para constituir subsidiária de estatal (ver
discussão acima), que dirá numa participação minoritária em empresa privada842 —,
tampouco precisa licitar sua participação na empresa, na medida em que a affectio
societatis não é licitável.843 Ainda mais: aqui, o problema não é só de affectio, mas do
próprio interesse público, que se concretiza no propósito de participar da empresa com
vistas a influenciar aquela entidade para a realização de uma determinada atividade econômica
num certo setor e em certo lugar. Ora, ninguém licita propósito estatal.
O neointervencionismo abre inúmeras possibilidades, sem falar nas diversas
indagações jurídicas. Por exemplo: estratégias mais agressivas de neointervencionismo
atraem a fiscalização do Tribunal de Contas às entidades privadas parceiras do Poder
Público, mas até que ponto? Haverá limite temporal para o neointervencionismo?844
Quais os riscos concorrenciais dessas intervenções?845 Como minorá-los?
840
“Seja dissuadindo o investimento directo, seja desencorajando o investimento de carteira, as golden shares — a
existência e o modo como são realmente aproveitadas — empobrecem o desempenho empresarial, traduzindo-
se, por essa via indirecta, num prejuízo para aqueles que visavam justamente avantajar. Impõe-se escapar, tanto
quanto possível, a esta lógica, reduzindo ao máximo o seu âmbito de actuação” (ALBUQUERQUE; PEREIRA.
As “golden shares” no Estado português em empresas privatizadas: limites à sua admissibilidade e exercício, p. 67).
841
“A detenção de acções privilegiadas (golden shares) é susceptível de denunciar fenómenos de privatizações
formais encapotados por aparentes privatizações materiais. No entanto, a circunstância de o conjunto de
poderes que tradicionalmente acompanha a detenção de acções privilegiadas (golden-shares) equivaler aos
poderes de uma minoria de bloqueio não nos permite concluir, de forma decisiva, nesse sentido” (RODRIGUES.
“Golden-shares”: as empresas participadas e os privilégios do Estado enquanto accionista minoritário, p. 430).
842
Desde, é claro, que a participação na empresa privada se alinhe ao plano de negócios da estatal. Nesse sentido,
v. art. 2º, par. 3º, da Lei nº 13.303/2016 (Lei das Estatais).
843
ARAGÃO. Empresa público-privada. Revista dos Tribunais, p. 58-62.
844
Em palestra na USP, no final de dezembro de 2011, o Professor Floriano de Azevedo Marques Neto defendeu a
temporalidade das atuações neointervencionistas. É ideia razoável, desde que não seja vista como necessidade
intrínseca — daí seria mais um argumento tirado de uma razão não pública —, mas como temporariedade
enquanto subsistência dos fundamentos legitimadores da intervenção.
845
Ao tempo da segunda edição deste livro, estratégias equivocadas de neointervencionismo público virtualmente
destruíram o médio e pequeno mercado de proteína animal no país, concentrando-o no grupo JBS, que se
encontra sendo investigação sob suspeita de corrupção.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
268 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
De todo modo, o propósito deste item, afora apresentar o temário, é alertar que
(antes que o assunto se torne estratégia, em tempos pós-crise, da doutrina que vê cons-
titucionalismo econômico como sinônimo de constitucionalismo liberal) não há nada
na Constituição brasileira de 1988 que imponha o neointervencionismo como estratégia
“subsidiária” preferencial: ele vai valer à medida que satisfaça de modo mais inteligente
ao interesse público.
2.1 Introdução
Das atividades do Estado, a única que lida quase que exclusivamente com a
restrição e a conformação de liberdades individuais é o exercício do poder de polícia.846
Natural que desperte atenção: a bibliografia a respeito do controle do poder de polícia
é copiosa.847 No capítulo que se inicia, percorremos questões conceituais acerca do po-
der de polícia, sempre à luz do pragmatismo e da razão pública, mas tais “princípios”
aparecerão em especial na condição de novíssimos critérios de controle do exercício de
tal atividade pública. O eixo condutor do capítulo é a análise dos limites ao exercício
da polícia administrativa.
Podem-se dividir os critérios de controle em duas categorias: quanto à cronologia
e quanto à abrangência do controle.
Há limites clássicos e limites novos ao exercício do poder de polícia.
Por limites clássicos referimo-nos aos elementos848 dos atos administrativos, ao
respeito ao devido processo e à circunstância de o exercício do poder de polícia dever
ser precedido de habilitação legal clara e consistente. O poder de polícia classicamente
846
“Trata-se do tema que mais diretamente se insere na encruzilhada autoridade-liberdade, Estado-indivíduo, que
permeia o direito administrativo e o direito público, revelando-se, pois, muito sensível à índole do Estado e às
características históricas, políticas e econômicas dos países” (MEDAUAR. Poder de polícia. Revista de Direito
Administrativo, p. 89).
847
Na dogmática brasileira recente, recomenda-se, por todos, MEDAUAR; SCHIRATO (Coords.). Poder de polícia na
atualidade. Ainda, BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação: transformações político-jurídicas,
econômicas e institucionais do Direito Administrativo Sancionador. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
848
Há variação, na doutrina, a respeito de como se deve chamar a competência, a forma, a finalidade, o motivo e o
objeto do ato administrativo. Alguns chamam de elementos do ato; outros, de requisitos (por sua vez, divididos
em intrínsecos e extrínsecos); outros, de pressupostos. O debate tem sabor doutrinário. E a polêmica continua ao
momento da própria identificação dos elementos (seja lá como se chamem). Apenas registraremos a existência
da polêmica, mas adotaremos, por sua popularidade, os aspectos do ato administrativo indicados por Hely
Lopes Meirelles. E, por simplicidade, vamos chamá-los de “elementos”. V. MEIRELLES. Direito administrativo
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
270 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
brasileiro, p. 148-152. Para discussão sobre a variedade de nomenclatura existente na matéria, v. OLIVEIRA. Ato
administrativo, p. 73-77.
849
O respeito ao devido processo legal é critério, em princípio, formal. Diz-se em princípio porque é comum a
referência a um devido processo legal de natureza substantiva, expressão de origem americana que possui
índole material, confundindo-se com o juízo de razoabilidade e/ou de proporcionalidade. A respeito do tema,
v. CASTRO. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade; MARTEL. Devido processo
legal substantivo: razão abstrata, função e características de aplicabilidade. Já o respeito à legalidade pode
ser entendido em duas acepções, variando, aí, o qualificativo: quando se fala numa legalidade em sentido
formal, pensa-se num critério insubstancial, isto é, num critério que se presta à aplicação por intermédio de
subsunções simples. Quando se fala numa legalidade em sentido material, refere-se à inclusão, na aplicação ou
na interpretação da lei, de juízos de conteúdo.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
271
850
LIMA. Princípios de direito administrativo, p. 305-306.
851
Odete Medauar traça um histórico da noção: se, na Antiguidade, a palavra “polícia” significava a constituição
do Estado ou da Cidade – isto é, o Ordenamento Político do Estado —, seu uso na Idade Média acompanhou
tal tendência ao menos até o século XI, quando, de seu conteúdo, foi retirado o aspecto referente às relações
internacionais. A autora informa que, já na Idade Média, utilizava-se a noção em sentido próximo ao atual,
e nesse uso medieval estariam os antecedentes da concepção moderna, não nos regulamentos de polícia do
Código Geral da Prússia, de 1794, muitas vezes citados como precursores. V. MEDAUAR. Poder de polícia.
Revista de Direito Administrativo, p. 90. Outra boa análise histórica acerca das origens da polícia está em
Bartolomé A. Fiorini (Poder de policía: teoría jurídica, p. 24-46) (“La policía en la historia”). Para uma revisão da
história do conceito especificamente na história francesa, v. MINET. Droit de la police administrative, p. 8-14.
852
No final da obra, Canto X, estrofe 92, numa parte da apresentação da Máquina do Mundo – o funcionamento do
Universo de acordo com o modelo das esferas de Ptolomeu – feita pela ninfa Tétis a Vasco da Gama, ela lhe fala
(grifos nossos): “Vês Europa Cristã, mais alta e clara / Que as outras em polícia e fortaleza”. O sentido do trecho
é claro: a Europa cristã era superior às outras regiões do mundo em poder (fortaleza) e na qualidade de sua
administração. Há outros dois usos da palavra ao longo do poema (no Canto VI, estrofe 2, e no Canto VII, estrofe
12), mas o sentido relatado no corpo do texto aparece de modo mais evidente na estrofe que transcrevemos.
853
É nesse sentido que aparece na obra de Ernst Freund, Professor da Universidade de Chigaco, Police Power (1905).
Disponível em: <http://ia360608.us.archive.org/1/items/policepowerpubli00freuuoft/policepowerpubli00freuuoft.
pdf>. Acesso em: 10 jan. 2010. No mesmo sentido, em texto mais recente – embora afirmando que “os poderes de
polícia do Estado são assunto considerado morto e sepultado pela maior parte do século XX” —, v. REYNOLDS.
The Evolving Police Power: Some Observations for a New Century. Hastings Constitutional Law Quartely. Caio
Tácito informa-nos que a expressão police power surgiu, nos Estados Unidos, num voto de Marshall havido, em
1827, no caso Brown vs. Maryland (Temas de direito público: estudos e pareceres, v. 1, p. 549). Ainda sobre a expressão
americana, inclusive citando o trecho do voto no qual a expressão aparece pela primeira vez, v. CRETELLA
JÚNIOR. Tratado de direito administrativo: poder de polícia e polícia, p. 4-5.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
272 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Ruy Barbosa e Aurelino Leal —, não adotamos o sentido: “no Brasil, poder de polícia é,
sobretudo, atividade administrativa”.854 O sentido estrito é o sentido próprio: atividade855
do Estado que consiste em limitar o exercício de direitos privados em função do interesse
coletivo. Da frase simples, temos três conteúdos significativos — a atividade é do Estado,
ela limita o exercício de direitos privados e ela se faz em virtude do interesse coletivo.
Apesar de não mais abarcar “toda a atividade administrativa”, como no século
XVIII, seu espectro de abrangência é amplo: há uma polícia dos costumes; uma polícia
sanitária; uma polícia industrial; uma polícia das construções etc. Nos últimos tempos,
contudo, referências a uma polícia administrativa econômica caíram em desuso, nem
tanto por demérito da expressão, mais pela ascensão do termo “regulação” (ver discussão
adiante, ainda neste capítulo, sobre a distinção entre poder de polícia e regulação). Em
rigor, há mesmo impossibilidade lógica na delimitação precisa dos contornos da polícia
administrativa, já que seu objeto será toda atividade humana com possível repercus-
são social e que escape à esfera da intimidade/privacidade.856 É possível imaginar, por
exemplo, uma polícia administrativa da internet — se isso seria bom ou ruim é outra
discussão.857 Na França, país onde, tradicionalmente, o fundamento da polícia era apre-
sentado como a defesa da Ordem Pública, conceito-chave no qual se incluem apenas
a segurança, a saúde e a tranquilidade públicas, a expansão da abrangência policial
levou, inclusive, alguns autores a colocarem o conceito “em crise”858 — coisa que não se
resolve rejeitando a noção, mas lhe expandindo os limites. Mas já retomaremos o ponto.
O Direito Positivo brasileiro possui definição de poder de polícia, contida no
art. 78 do Código Tributário Nacional, cuja listagem de conteúdos é exemplificativa:
Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da Administração Pública que, limitando
ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato,
em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à
disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes
854
MEDAUAR. Poder de polícia. Revista de Direito Administrativo, p. 95. Marcelo Caetano afirma que a expressão
“lei de polícia” não deve confundir: significa, apenas, que a polícia pode ser objeto de atividade legislativa. “Mas
a actividade pela qual o Estado cria as leis de polícia não é, em si, actividade policial, pois esta tem natureza
administrativa e aquela caráter legislativo” (Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 270). Eliezer
Martins investe contra a denominação “poder de polícia” (veremos que isso é comum entre os que escrevem
sobre o assunto), com base na amplitude significativa da expressão: “Trata-se de designativo manifestamente
infeliz. A expressão engloba, portanto, sob um único nome, coisas radicalmente distintas, submetidas a regimes
de inconciliável diversidade: leis e atos administrativos”. Ora, essa crítica aplicar-se-ia a qualquer termo
abrangente. Por exemplo: Justiça designa tanto um aparato institucional quanto a qualidade dos atos justos.
Seria a designação Justiça “manifestamente infeliz”? De resto, a verdade é que ninguém nunca se confundiu
quanto a qual polícia se esteja referindo: em primeiro lugar, porque o uso de polícia no sentido de edição de leis
é raro no Brasil; em segundo, porque, nos casos em que é utilizado, ou o sentido é deduzido pelo contexto ou
se usa o termo lei de polícia, que também não deixa dúvida acerca de sobre o que se está tratando (MARTINS.
Polícia administrativa econômica. In: CARDOZO; QUEIROZ; SANTOS. Curso de direito administrativo econômico,
v. 2, p. 345).
855
“Atividade” ou “função”, e não instituição ou grupo de funcionários públicos (CHAPUS. Droit administratif
général, t. I, p. 697).
856
“A polícia intervém nas actividades individuais susceptíveis de fazer perigar interesses gerais. Só aquilo que
constitua perigo susceptível de projectar-se na vida pública interessa à Polícia, e não o que afecte interesses
privados ou a intimidade das existências pessoais” (CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo,
p. 270-271, grifos no original).
857
Falando de uma “polícia bromatológica” (higiene dos alimentos) e de uma “polícia genética”, v. PESTANA.
Direito administrativo brasileiro, p. 507.
858
LINOTTE. L’unité fondamentale de l’action administrative ou l’inexistence de la police administrative en
tant que catégorie juridique autonome. In: LINOTTE (Org.). La police administrative: existe-t-elle?, p. 10-28,
especialmente p. 10-19.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
273
859
“Não existe hoje em dia uma ‘noção’ autônoma e suficiente de ‘poder de polícia’; não existe porque essa função
se distribuiu amplamente dentro de toda uma atividade estatal. A coação estatal atual ou virtual aplicada por
algum de seus órgãos sobre os particulares para a consecução de determinados objetivos de bem comum ou
de ordem pública segue sendo uma realidade no mundo jurídico, porém não é que exista uma parte dessa
coação, uma parte desses órgãos e uma parte desses objetos que se encadeiem entre si diferenciando-se do
resto da ação estatal e institucionalizando-se no mencionado ‘poder de polícia’” (GORDILLO. Tratado de derecho
administrativo, t. II, p. V, p. 13-14).
860
Outros autores, sem necessariamente aceitarem as conclusões de Gordillo quanto à não utilização da expressão,
também mencionam a dificuldade de se precisar um “poder de polícia” diferenciado da atuação executiva
geral. Assim, Bartolomé A. Fiorini (Poder de policía: teoría jurídica, p. 9-10).
861
GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ. Curso de derecho administrativo II, p. 104-106. A crítica vem desde a
doutrina germânica e tornou-se comum em setores das doutrinas espanhola, italiana e argentina.
862
“Daí o perigo da contaminação semântica que implica utilizar o conceito de polícia para englobar o que não
é mais do que um conjunto inorgânico de atividades administrativas de limitação; um conceito que gera uma
tendência a supor a existência de potestades interventoras onde não existem, que legitima a criação de poderes
implícitos ou ‘naturais’ onde não podem existir ou, quando menos, que propicia interpretações expansivas e
ampliadoras das potestades criadas pela lei, em prejuízo da liberdade” (SANTAMARÍA PASTOR. Principios de
derecho administrativo general II, p. 250). É verdade que, em usos doutrinários remotos, como no de Otto Mayer, o
poder de polícia estava, sim, associado a um dever geral, imposto aos administrados, de respeitar a boa ordem
social – coisa que é incompatível com o Estado de Direito, ao menos na forma como entendido hoje, em que
corretamente se postula que só existem, para os administrados, deveres legais.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
274 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
863
PIRES. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade.
864
Santi Romano trata do tema no Livro IV de seus Princípios de direito administrativo italiano, sob a rubrica “Teoria
das Limitações Administrativas à atividade privada”. Apesar da referência da Professora Odete a essa obra do
autor italiano (em seu artigo Poder de polícia, já citado), parece-nos que Santi Romano não elaborou, aqui, pro-
posta substitutiva da expressão “polícia”, tanto assim que, nos subitens do capítulo, e ao longo do texto, utiliza-
se largamente da palavra (o subitem 2 se chama “Polícia de Segurança”, o 3, “Polícia Sanitária”, o 4, “Polícia dos
Costumes”, o 5, “Polícia Rural” etc.) (ROMANO. Principii di diritto administrativo italiano, p. 243 et seq.).
865
CASSAGNE. Derecho administrativo, v. 2, p. 319-325.
866
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 243-290.
867
SUNDFELD. Direito administrativo ordenador.
868
“Esta polivalência significativa do conceito de polícia possui causas históricas que é preciso resenhar, e não
por simples gosto pela erudição: no Direito, as palavras e seus significados possuem habitualmente uma
função prática capital; são veículos de expressão, mas também são armas, ou, quando menos, instrumentos
desenhados ou utilizados com notórias finalidades pragmáticas” (SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho
administrativo general II, p. 245).
869
CARVALHO FILHO. Manual de direito administrativo, p. 70.
870
“Não parece adequado alterar o título de noções jurídicas consolidadas, mesmo que seu conteúdo sofra
evolução. A mudança dificulta a pesquisa nas obras e dificulta a pesquisa jurisprudencial. E também impede a
percepção clara da linha evolutiva da figura” (MEDAUAR. Poder de polícia. Revista de Direito Administrativo, p.
93). No mesmo sentido, ARAGÃO. Curso de Direito Administrativo, p. 185/186.
871
Na primeira edição desta obra, a palavra adotada era “conservador”, em vez de “imobilista” (como aparece
nesta segunda edição). Acolhemos, aqui, a crítica de Estêvão Gomes Correia dos Santos a respeito do uso
impreciso da palavra “conservador”. Recomenda-se, ademais, a leitura de sua interessante dissertação. V.
CORREIA DOS SANTOS, Estêvão Gomes. Em defesa do poder de polícia: uma proposta de superação das críticas
e dos modelos alternativos ao poder de polícia no direito administrativo contemporâneo. 2016. Dissertação
(Mestrado em Direito) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
872
Ao contrário de certa crítica à utilização da expressão, que, sem favor, faz parte do mal cuja cura pretende ser:
ao denunciar a ideologia das construções tradicionais, ingressa numa crítica ideológica de sinal invertido.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
275
873
Sempre vai ser possível insistir que, mesmo fazendo as ressalvas, o uso da expressão continuará dando azo a um
não sei o quê de autoritarismo. Alguns trechos de Luis Manuel Fonseca Pires caminham nesse sentido, verbis:
“Não basta dizer que o Estado contemporâneo encontra-se sob um arquétipo democrático e juridicamente
axiológico de bens caros à sociedade [...], pois persiste a influência, diante de casos de difícil interpretação e aplicação
do direito, de um atavismo que externa a origem e o evolver arbitrário deste instituto. [...] fatos históricos aliados ao
antigo instituto ‘poder de polícia’, os quais sugestionam, equivocadamente, a interpretação do direito – normalmente,
em prejuízo do administrado porque dissonante da ordem jurídica estabelecida na Carta Magna”. Se for esse
o caso – coisa em que não acreditamos —, será a primeira vez que o elemento histórico da interpretação, que,
entre nós, possui reduzida importância, vai prevalecer contra as advertências uníssonas da doutrina. E não se
trata do uso do elemento histórico: tratar-se-ia de completo mau uso dele. É uma força inédita para algo que
se define como a “influência de um atavismo”. Mas, para sermos honestos, o autor, em outro momento, traz o
que considera exemplos da influência: (i) os artigos doutrinários e precedentes judiciais que entendem que a
autoexecutoriedade é ínsita à função da administração ordenadora; (ii) a ênfase no exercício da força física ao
se circunscrever a finalidade do poder de polícia; (iii) a preocupação excessiva com a coação, o que conduz “a
uma maior legitimidade do uso da força pública na interpretação e aplicação do direito”; (iv) a confusão entre
o instituto do poder de polícia e a ideia de sanção administrativa; (v) o não desenvolvimento, ao menos com
a magnitude que deveria ter, do estudo sobre os limites do poder de polícia, já que o pressuposto é a ação
coativa da Administração Pública. Continuamos discordando. Ponto por ponto: (i) não há relação biunívoca
entre defesa de uma interpretação restritiva da autoexecutoriedade e defesa da superação da ideia de poder de
polícia, o que seria o caso se houvesse relação entre os conceitos. Odete Medauar e José dos Santos Carvalho
Filho defendem a interpretação restritiva da executoriedade – aliás, tal posição parece ser majoritária —, e, ao
mesmo tempo, defendem a validade do conceito tradicional de polícia. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, que,
nas últimas edições de seu manual, vinha defendendo a superação da ideia de polícia, sustenta a interpretação
ampla de executoriedade (executoriedade como regra, e não apenas nos casos previstos em lei ou em situações
de urgência). (ii) Obras mais recentes não trazem tal ênfase no aspecto da força física como finalidade do poder
de polícia. Ao contrário, são cautelosas ao afirmar que se trata de uma possibilidade, mas não da essência
do instituto. (iii) Também não há mais preocupação excessiva com a coação: na apresentação mais atual do
instituto, a ênfase é nas potencialidades de compatibilização de direitos e no controle ao exercício da função
administrativa de polícia. Na obra de Raquel Urbano, por exemplo, são gastas duas páginas na questão
conceitual, e pelo menos cinco no tratamento dos limites à polícia. Detalhe: a autora é das que defendem a
denominação tradicional. (iv) Não se confunde poder de polícia com sanção. O tratamento doutrinário
contemporâneo é claro quanto à distinção entre o poder de polícia – competência ou poder administrativo – e
a sanção de polícia, fase do “ciclo de polícia”. Registre-se que, inclusive, a referência a um ciclo de polícia é
cada vez mais comum em livros e manuais, seja dos que defendem a polícia, seja dos que pretendem superá-la,
o que só incrementa a diferenciação. (v) Por fim, não se vê, de modo algum, desenvolvimento doutrinário ou
jurisprudencial subótimo do tema dos limites ao poder de polícia. Ao contrário: para o assunto, esse é o grande
tema, seja com qual denominação for. Em suma: para nós, a questão da troca da denominação é, no fundo,
uma simples questão de estilo, que se pretende mais importante do que de fato é. Para as citações da nota, v. o
excelente PIRES. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade, p. 16 (primeiro trecho), p. 153-155 (segundo
momento).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
276 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
de Polícia do século XVIII? Para se exorcizar o risco de eventual abuso de poder que,
de qualquer jeito, já seria detectado?
Quanto à difusão da polícia por todas as outras atividades da Administração
Pública, tornando o termo indistinto, a verdade é que não houve negação da noção,
senão modificação e expansão de conteúdo. Continua existindo uma atividade de li-
mitação ou condicionamento do exercício de direitos, assim como reconhece o próprio
Gordillo.874 De mais a mais, se o poder estatal é uno, coisa de que ninguém duvida,
fala-se em “poder de polícia” apenas como simples agregação de atividades com perfil
homogêneo, “o que facilita sua consideração, estudo e regulação normativa adequada”.875
Em muitos casos, pode até ser difícil separar a atividade de polícia da de prestação de
serviços públicos (mais a esse respeito, adiante), mas isso só demonstra que as ativi-
dades do Estado são multifacetadas e que não admitem inteira tradução em conceitos
linguísticos ou em categorias doutrinárias formais. Assim, por exemplo, o oferecimento
público de serviço de interesse coletivo pela via da delegação contratual pode envolver
a imposição de restrições a direitos e contar com certos benefícios, prometidos pelo
Poder Público ao particular que resolver executá-los. Estamos tratando de serviço pú-
blico, do exercício de polícia administrativa ou de ato de fomento público? E, se não for
possível a caracterização precisa da operação dentro de uma dessas categorias, isso será
motivo para rejeitá-las in totum? Respondemos: não, não será. Formular uma categoria
doutrinária é exercício de simplificação para a compreensão; é a transcrição de uma
realidade necessariamente multiforme com base em elementos da linguagem que jamais
captarão sua essência inteira. A doutrina nunca vai capturar inteiramente a realidade e,
se ela for julgada com base nisso, estará sempre aquém das expectativas. O que se lhe
pode exigir é a proposta de categorias compreensíveis e realistas, coisa que, em nossa
opinião, a fórmula-tipo do “poder de polícia” continua sendo: uma noção de séculos
que sobreviveu (e ousamos dizer que sobreviverá) a tantos quantos julgam superá-la.
Ou seja: a noção de “poder de polícia” ultrapassa as críticas.876 Se se buscar meios
de torná-la aberta aos controles democráticos da teoria moderna, seu passado, por pior
que seja, será purgado.877 Seu risco virtual é compensado por sua utilidade atual.
874
Basta reler parte do trecho citado em nota de rodapé anterior, aqui repetido para maior clareza: “A coação estatal
atual ou virtual aplicada por algum de seus órgãos sobre os particulares para a consecução de determinados
objetivos de bem comum ou de ordem pública segue sendo uma realidade no mundo jurídico [...]” (GORDILLO.
Tratado de derecho administrativo, t. II, p. V, p. 13-14).
875
MEDAUAR. Poder de polícia. Revista de Direito Administrativo, p. 94.
876
É curiosa a opinião de Farlei Martins e Alexandra Campos, para quem a tese de Gordillo não é aceita, na
doutrina e na jurisprudência brasileira, ou por “receio de alguns autores em empreender uma análise crítica
da noção jurídica”, ou porque o termo “poder de polícia” consta da Constituição e das leis. Não acreditamos
nisso. Em primeiro lugar, não há motivos para se temer qualquer análise crítica. Se assim fosse, não se estaria
questionando a ideia de supremacia do interesse público, muitíssimo mais fundacional do que a de poder de
polícia. Além disso, em certas circunstâncias, é até mais difícil defender um conceito tradicional do que aderir à
posição que, com ou sem razão, coloca-se como inovadora. Se alguém tivesse de temer algo, seria quem defende
o “ultrapassado” poder de polícia, e não os que o atacam. Em terceiro lugar, o tema é tratado pela doutrina
brasileira, ainda que não necessariamente fazendo-se referência à posição de Agustín Gordillo (o que não é
grave, já que a ideia de superação do poder de polícia tem sua fonte original na Alemanha, e reflexos na Itália
e na Espanha). Numa rememoração rápida, tratam do assunto, entre outros, muitos dos quais até citados por
Farlei e Alexandra, os seguintes autores: Odete Medauar (rejeita a posição), Celso Antônio Bandeira de Mello
(concorda com Gordillo), José dos Santos Carvalho Filho (rejeita o abandono da noção), Lúcia Valle (concorda e
até mudou o título do capítulo sobre poder de polícia em seu manual), Raquel Urbano de Carvalho (menciona
a posição, mas a rejeita), Carlos Ari Sundfeld (aceita, ainda que em seus termos), Luis Manuel Fonseca Pires
(concorda e baseou um livro na concordância), Alexandre Santos de Aragão (menciona). É incorreto afirmar
que “a unanimidade da doutrina brasileira dispensa qualquer esforço metodológico de superação da noção”.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
277
877
Dito isso, já podemos avançar o assunto. Da conceituação, saber o que a polícia é,
passamos às distinções apontadas pela doutrina: identificar o que o poder de polícia não é.
O que é verdadeiro é que a doutrina brasileira, em sua maioria, rejeita a tese da superação, cada autor com seus
argumentos. O esforço metodológico existe; o que não há é, em muitos casos, a concordância em relação à tese
de Gordillo. Além disso, é importante não supervalorizar a referência constitucional e legal a poder de polícia,
já que o que não faltam são posicionamentos doutrinários que interpretam referências legislativas de modo
“superador do texto legal”. Ou seja: a doutrina brasileira está ciente do debate e, em boa parte, rejeita a ideia de
superação da noção. É injusto chamá-la de medrosa ou de literalista. Quanto à jurisprudência, vale o mesmo:
se a tese não “pegou” na doutrina – pelo menos com a força com que se esperava —, provavelmente também
não vai ser incorporada tão intensamente pelos tribunais (CAMPOS; OLIVEIRA. Poder de polícia: anotações à
margem de Agustín Gordillo. In: OLIVEIRA. Direito administrativo Brasil-Argentina: estudos em homenagem a
Agustín Gordillo, p. 176-177).
877
Nesse sentido, Cosculluela Montaner e Mariano Benítez: “Não se vê a vantagem que possa ter denominar polícia
como poder de ordenação e controle, uma vez que a polícia em um Estado constitucional e democrático perdeu
sua força expansiva, como título habilitante autônomo, e conecta-se totalmente à defesa do status libertatis que
o mesmo consagra” (BENÍTEZ; MONTANER. Derecho público económico, p. 212).
878
“E cá estamos em pleno domínio da polícia administrativa. Num domínio onde as duas ideias predominantes
são a prevenção e o perigo. Evitar que os perigos se convertam em danos – eis o campo onde se desenvolve o modo
de agir administrativamente que se chama Polícia” (CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo,
p. 268).
879
Talvez seja o caso de se abandonar o critério. É o que faz René Chapus, que diz que elas podem ter caráter tanto
preventivo quanto repressivo, e que isso é ponto de identidade entre as duas polícias. Leia-se o trecho: “Enfim, tanto
uma quanto outra polícia podem assumir tanto um caráter preventivo quanto repressivo. Sem dúvida, a polícia
administrativa tende a prevenir os problemas de ordem pública. Mas [...] ela também pode ser suscitada para
pôr fim a problemas: ao dispersar uma manifestação, ao fazer desaparecer uma situação perigosa ou insalubre
ou ao suprimir uma causa de problema à tranquilidade pública. Sem dúvida, também, a polícia judiciária é
geralmente repressiva. Ela costuma ser posta em ação depois do golpe, em consequência da ocorrência efetiva
de certos fatos. Mas, como se verá, ela também pode ser exercida para prevenir uma ocorrência” (CHAPUS.
Droit administratif général, t. I, p. 736-737). Na doutrina brasileira, crítico desse critério, v. FURTADO. Curso de
direito administrativo, p. 660.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
278 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
880
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 466.
881
BINENBOJM. Poder de Polícia, Ordenação, Regulação, p. 72.
882
Art. 114, §5º: “Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de
bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil”.
883
Apesar disso, há livros cuja promessa do título não se cumpre em seu interior. Por exemplo, o livro “Constituição
e poder de polícia” é inteiramente devotado a uma análise crítica da política de segurança pública do Estado do
Rio de Janeiro nos anos oitenta (PINHEIRO. Constituição e poder de polícia). Há outros que cumprem o prometido:
A polícia no Estado de direito, do Professor português António Francisco de Sousa, trata tanto do poder de polícia
quanto dos aspectos mais tipicamente associados à corporação policial propriamente dita (uso de arma de fogo,
interrogatório policial etc.). A respeito do poder de polícia do policial militar, ver, especificamente, Alexandre
Henriques da Costa (Os limites do poder de polícia do policial militar). Ainda, Cláudio Pereira de Souza Neto (A
segurança pública na Constituição Federal de 1988: conceituação constitucionalmente adequada, competências
federativas e órgãos de execução das políticas. Revista de Direito do Estado, p. 19-73).
884
CHAPUS. Droit administratif général, t. I, p. 700.
885
ARAGÃO. Direito dos serviços públicos, p. 144 et seq.
886
“Mas repare-se no contraste que formam: os serviços de utilidade pública actuam fazendo prestações que
beneficiam os indivíduos, melhorando a qualidade de vida; enquanto a polícia é um sistema de restrições que
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
279
limita a liberdade individual” (CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 267, grifos no
original).
887
Assim, Eliezer Pereira Martins: “Caracterizar o poder de polícia, portanto, como positivo ou negativo depende
apenas do ângulo através do qual se encara a questão. De um lado, o poder de polícia tem, na quase totalidade
dos casos, um sentido negativo, porém sentido de abstenção (non facere). [...] De outro lado, no condicionamento
do uso da propriedade imobiliária nos termos do art. 5º, XXIII, c/c art. 182, §4º, da CF, temos exemplo típico de
atuação de polícia administrativa consistente num facere” (Polícia administrativa econômica. In: CARDOZO;
QUEIROZ; SANTOS. Curso de direito administrativo econômico, v. 2, p. 349). No mesmo sentido, citando, como
exemplo de imposição de deveres de fazer dentro do poder de polícia a construção de saídas de emergência (na
polícia das construções) e a adoção de providências que impeçam a deterioração de alimentos perecíveis (na
polícia sanitária), v. JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 464.
888
“Os exemplos apresentados pelo Professor Justen Filho devem ser entendidos como condições ao exercício
de atividades ou de direitos, e não como a imposição de obrigação de fazer, pura e simplesmente. Se alguém
decide construir prédio, somente poderá fazê-lo se forem observadas as normas técnicas de segurança. Se
alguém decide comercializar alimentos, deve observar as normas sanitárias relativas à conservação e à higiene
dos produtos” (FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 669.) Na verdade, Lucas Rocha até defende
a possibilidade de que o exercício do poder de polícia implique a imposição de obrigações de fazer, mas
apenas quando se utilize de técnicas de informação, sendo o administrado obrigado a prestar informações
sobre si ou sobre sua atividade para a Administração Pública; aqui, Lucas Rocha Furtado está se utilizando
da tripartição das técnicas de polícia administrativa, proposta por Santamaría Pastor, que fala em técnicas de
condicionamento, técnicas ablatórias e técnicas de informação (SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho
administrativo general II, p. 253-281).
889
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 467-468.
890
FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 646.
891
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 468.
892
Há uma quarta razão pela qual as atividades podem se misturar: são as hipóteses, comuns, nas quais a prestação
de um serviço público é, por assim dizer, o exaurimento do exercício da atividade de polícia. Isso ocorre quando
o consentimento público se materializa na emissão de um documento. Por exemplo: a atividade de polícia
que é o consentimento quanto à prática da direção veicular por uma pessoa – a licença para dirigir, espécie de
ato vinculado de polícia – exaure-se numa prestação de serviço público, que é o ato da expedição da carteira
de habilitação. Seja como for, a hipótese não é das mais desafiadoras, porque há, claramente, uma atividade
(polícia) que predomina sobre outra (serviço público).
893
VENANCIO FILHO. A intervenção do Estado no domínio econômico: o Direito Público Econômico no Brasil, p. 83.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
280 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Seria mais abrangente por dois motivos: em primeiro lugar, porque o poder de
polícia não incidiria sobre os serviços públicos, delegados ou não, cuja titularidade é
sempre pública (como se sabe, apenas seu exercício é objeto de delegação contratual).
É que a doutrina sempre afirmou que o poder de polícia incide, apenas, sobre ativida-
des privadas, ainda que tais atividades possam ser desenvolvidas por estatais.894 Já a
regulação pública não teria tal restrição: incidiria também sobre os serviços públicos
delegados.895
Segundo motivo: o poder de polícia acabaria se resumindo a técnicas de infor-
mação, de condicionamento do exercício de direitos (autorização, licença) e de ablação
(restrição, total ou parcial, de direitos).896 A regulação incluiria as técnicas de polícia,
mas também outras, como técnicas de composição de conflitos. Além disso, dentro do
conceito de regulação estariam abrangidas capacidades normativas e capacidades quase
judicantes. A polícia administrativa significaria menos: no sentido estrito, significaria,
apenas e tão somente, limitar direitos privados.897 898
894
Corroborando o entendimento tradicional, de que o poder de polícia não incidiria sobre atividades de
titularidade estatal, v. SUNDFELD. Fundamentos de Direito Público, p. 76-77; ARAGÃO. Agências Reguladoras, p.
37-38; MEDAUAR. Poder de Polícia. Revista de Direito Administrativo, n. 199, p. 95. Parecendo questioná-lo, v.
BINENBOJM. Poder de Polícia, Ordenação, Regulação, p. 74-75.
895
“‘Regulação’, por sua vez, parece que assume sentido mais amplo do que se deu à administração ordenadora
e ao poder de polícia. A doutrina de Direito Econômico faz uso desse termo para tratar da mecânica estatal
de ordenação das atividades econômicas em geral, incluindo, portanto, os serviços públicos e as atividades
econômicas em sentido estrito” (MENDES. Reforma do Estado e agências reguladoras: estabelecendo os
parâmetros de discussão. In: SUNDFELD (Coord.). Direito administrativo econômico, p. 116).
896
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 253-281.
897
A discussão adquiriu relevância quando se tratou de saber qual era a natureza jurídica das “taxas regulatórias”,
instituídas pelas leis criadoras das agências reguladoras. Se a atividade das agências fosse exercício de poder
de polícia, as taxas seriam taxas de polícia, e, portanto, espécie tributária, submetidas a todo o estrito regime
constitucional e principiológico aplicável aos tributos. Se a atividade das agências reguladoras fosse outra
coisa que não poder de polícia, as ditas taxas seriam enquadradas noutra categoria conceitual, de índole não
tributária: seriam preços públicos, ou seja, retribuições contratuais, devidas em razão do exercício de dever de
fiscalização (que não seria “de polícia”). É com base nisso que o Professor Alexandre Aragão entende que a
natureza das “taxas regulatórias” poderia ser ou de taxa propriamente dita, ou de uma retribuição contratual,
ou, ainda, de uma contribuição de intervenção no domínio econômico (nesse caso, a natureza jurídica só valeria
para as agências federais, porque só a União pode instituir CIDE). As retribuições contratuais seriam os valores
cobrados por agências reguladoras cuja atividade incidisse sobre serviços públicos delegados (já que o poder
de polícia não poderia incidir sobre atividades privadas). As taxas propriamente ditas seriam aquelas cobradas
por agências reguladoras cuja atividade incidisse na atividade privada em sentido estrito (por exemplo, a taxa
da Anvisa). Finalmente, as CIDES seriam as “taxas regulatórias” que, cobradas sobre a regulação de atividades
privadas, revertessem para o fomento e a promoção do setor regulado (ARAGÃO. Agências reguladoras e a
evolução do direito administrativo econômico, p. 332-333). Ainda, SOUTO. Desestatização: privatização, concessões,
terceirizações e regulação, p. 461. Por outro lado, há autores que defendem a natureza tributária para todas
as “taxas regulatórias”, porque as agências reguladoras seriam autarquias, entes de direito público, e, assim,
jamais poderiam cobrar preços públicos pelo exercício de suas atribuições legais. Com tal posicionamento,
Marçal Justen Filho (O direito das agências reguladoras independentes, p. 478). Ainda, CAL. As agências reguladoras
no direito brasileiro, p. 128. A jurisprudência, de modo geral, vem entendendo que as “taxas regulatórias” são
tributos, e não preços públicos.
898
Marcos Juruena relaciona os institutos da seguinte forma: a regulação atuaria dentro da polícia administrativa, e
não o contrário, como sustenta a maioria da doutrina. A “regulação de polícia” – o termo é do autor – teria como
propósito assegurar que “bens e serviços de interesse geral” oferecessem duas coisas: “segurança” e “preços
não abusivos”. Para fazer isso, o agente regulador colaboraria na formulação da política setorial, e controlaria
produto, fornecedor, bens de produção e preços. Exemplo típico de regulação de polícia: a atividade da Anvisa
junto aos medicamentos. Não concordamos com tal opinião. Ou as atividades mencionadas por Marcos Juruena
se enquadram na noção de polícia (por exemplo, sanitária), ou fazem parte dos deveres jurídicos gerais de
defesa da concorrência (evitar preços abusivos), ou escapam para a noção tradicional de regulação (auxiliar na
formulação de políticas públicas) (SOUTO. Direito administrativo regulatório, p. 76-77).
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
281
Em nossa opinião, parece que, também aqui, o subtexto disso é uma rejeição ao
poder de polícia por seus vícios de origem e de idade. No entanto, poucas coisas estão
definitivamente perdidas na vida, e isso também vale para a vida do Direito; é possível
superar vícios de nascença e remoçar conceitos.
Basta dizer: entenda-se por polícia administrativa uma função pública também
incidente sobre serviços públicos delegados e cujo exercício prático também incorpore
técnicas consensuais de composição de conflitos. Afinal, todas essas afirmações são
construções doutrinárias. Se não são mais adaptativas, se incorporam “anomalias” e
se exigem repostas ad hoc para que continuem existindo, talvez seja hora de trocá-las.899
Desse modo, um novo entendimento do poder de polícia poderia fazê-lo apli-
cável aos serviços públicos e aberto a técnicas mais consensuais. Quanto a esse último
ponto, já há até quem o admita desde agora. Aqui, abre-se rápida digressão a respeito
da consensualidade e poder de polícia.
A discussão sobre a admissibilidade de técnicas consensuais no exercício do
poder de polícia é intensa. Para alguns, haveria um dever constitucional da adoção de
técnicas consensuais — como se houvesse um “princípio da consensualidade” inscrito
em nossa Constituição. Boa parte dos autores, no entanto, ao tratar da consensualidade,
fazem-no ligando-a à proporcionalidade-necessidade, em especial quando da aplicação
de sanções: o Estado teria dever de optar por soluções menos gravosas ao particular,
o que frequentemente recairia na obrigação da adoção de soluções negociadas entre
Poder Público e administrado. Já outros acreditam que o exercício do poder de polícia
é incompatível com acordos de vontade: a fonte da imposição de obrigações deve ser,
sempre, e de modo direto, a lei.
Em nossa opinião, há de se descartar a ideia de um “princípio constitucional da
consensualidade”, trivialização tanto da noção de princípio constitucional quanto da
noção de consensualidade. Além disso, tal princípio seria inútil: ele seria, no máximo,
uma manifestação de incompreensão acerca do dever de proporcionalidade. O ponto é,
precisamente, a incidência do dever de proporcionalidade. E o problema no argumento
destes autores é que ele, interessadamente, só analisa a situação à luz das “medidas
menos gravosas ao particular”, mas se esquece da segunda parte da formulação da
“regra” da necessidade (ou subprincípio, ou postulado normativo aplicativo, ou máxi-
ma, seja lá como se queira chamá-lo): deve-se adotar as medidas menos compressivas
de direitos fundamentais do particular, na medida em que garantam, com intensidade
semelhante, a realização do objetivo.
Não foram poucas as vezes em que se vindicou adoção de medida administra-
tiva “menos restritiva a direito fundamental do indivíduo” sem que se levasse a sério
a eficiência da obtenção do propósito ao qual aquela medida se propunha, o que não
deixa de ser curioso, no mínimo porque a eficiência também é princípio constitucional
(art. 37, caput, CRFB/88). Não existe nada próximo a um “dever constitucional genérico
de suavidade no trato com o particular”. O dever de proporcionalidade-necessidade
é uma exigência de minoração de efeitos lesivos diante de alternativas que resultem em
efeitos próximos.
A partir daí muitas das propostas de “consensualização” e de “flexibilização”
caem por terra porque, (i) ou não servirão para a obtenção de resultados próximos
às soluções de força ou (ii) porque não há metodologia capaz de demonstrar que os
899
KHUN. A estrutura das revoluções científicas.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
282 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
resultados preferidos realizarão o objetivo de modo parecido (tudo o que há são afir-
mações que expressam muita confiança).
Por outro lado, e como contraponto a grande parte do que se falou, em nossa
opinião há, sim, espaço para a adoção de técnicas consensuais de polícia. Não vemos
nenhuma contradição entre tais técnicas e a polícia administrativa. E a explicação é
simples: o exercício do poder de polícia, como qualquer limitação de direitos, far-se-á
conforme a máxima da proporcionalidade, a qual inclui a ideia de necessidade, ideia
que, por sua vez, pode, entre outras alternativas, eventualmente sugerir a adoção de
uma solução consensual como meio menos restritivo dos direitos fundamentais dos
particulares afetados pela medida em consideração.900
Retome-se o argumento central do texto. Pois bem: as características normativas
tradicionalmente associadas à regulação e que, no início de sua introdução no Brasil,
geraram debate sobre sua legitimidade constitucional, também podem ser identificadas
ao poder de polícia — afinal, sempre se falou de um poder de polícia em sentido am-
plo. Assim, caso se construa noção de poder de polícia capaz de incidir sobre serviços
públicos delegados, aberto a novas técnicas901 e includente de funções normativas, é a
regulação econômica quem acabará sendo absorvida pelo poder de polícia, e não o contrário.902
Mas, claro, sempre vai restar o preconceito. Ainda está para nascer quem recupere
a dignidade da noção de poder de polícia, defendendo-a não apenas de seus críticos,
mas também, e principalmente, dos prosélitos de conceitos que lhe sejam próximos.903
900
Defendendo a ideia de que há um princípio constitucional da consensualidade, v. PESSÔA. Os paradigmas
jurídicos e as relações entre política e direito. Revista de Direito Administrativo, p. 115-131. Sobre o tema em geral, v.
MOREIRA NETO. Novos institutos consensuais da ação administrativa. Revista de Direito Administrativo, p. 129-
156; ARAGÃO. A consensualidade no direito administrativo: acordos regulatórios e contratos administrativos.
Revista de Direito do Estado, p. 155-174; OLIVEIRA; SCHWANKA. A administração consensual como a nova
face da Administração Pública no séc. XXI: fundamentos dogmáticos, formas de expressão e instrumentos de
ação. In: ANAIS DO CONGRESSO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E ENSINO DE DIREITO – CONPEDI.
Para o uso do argumento da proporcionalidade no Direito Econômico, entre tantos, v. ARAGÃO. O princípio
da proporcionalidade no Direito Econômico. Revista de Direito Administrativo, p. 199-230; MARQUES NETO.
Limites à abrangência e à intensidade da regulação estatal. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico –
REDAE. Para o princípio da proporcionalidade em geral, v. SILVA. O proporcional e o razoável. Revista dos
Tribunais, p. 23-50. Contra a ideia de que se possa falar da consensualidade junto ao poder de polícia (“A fonte
que legitima a intervenção estatal na ordenação das atividades privadas, impondo limitações administrativas,
vedações, condicionamentos ou sanções etc., decorre sempre e necessariamente de lei, e nunca de contrato ou
de outro acordo de vontade”), v. FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 650.
901
Quando falamos em novas técnicas, não queremos nos referir, apenas, à adoção de critérios mais consensuais
e flexíveis no momento da aplicação das sanções de polícia. Técnicas de controle e de conformação dos setores
econômicos incidentes sobre a entrada e a saída do exercício da atividade ou sobre zonas de distribuição do
mercado, eventuais limites de preço, imposição de deveres de compartilhamento de infraestrutura etc., tudo
aquilo que Gaspar Ariño Ortiz chamou, para diferenciar da polícia administrativa (para ele, sinônimo de
“regulação externa”), de “regulação interna” poderia ser incluído nesse ampliado conceito de poder de polícia.
Regulações interna e externa virariam, então, uma única coisa: o novo poder de polícia (ORTIZ. Principios de
derecho público económico, p. 302-303).
902
“As agências reguladoras foram concebidas para o exercício precípuo do poder de polícia. O condicionamento
de liberdades e da propriedade ao interesse da coletividade está na raiz da ideia de agência reguladora”. “Não
seria despropositada a afirmação de que uma agência reguladora nada mais é que um plexo personalizado
de poderes de polícia, organicamente instrumentalizado para um setor específico do exercício das liberdades
ou gozo da propriedade” (MARTINS. Polícia administrativa econômica. In: CARDOZO; QUEIROZ; SANTOS.
Curso de direito administrativo econômico, p. 363, 364).
903
Para Gustavo Binenbojm, “não parece haver identidade total entre as duas noções, como se poder de polícia
houvesse se metamorfoseado e vertido na regulação econômica”. Para o autor, “a regulação da economia
envolve um arsenal amplo de estratégias de interferência no comportamento dos agentes econômicos para
alcançar seus objetivos. Aos mecanismos próprios do poder de polícia combinam-se, em variados arranjos,
medidas de fomento econômico e social, participações societárias minoritárias em empresas privadas,
consórcios empresariais público-privados, ou mesmo a atuação direta de empesas estatais, orientados para a
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
283
Até que esse dia chegue, ficaremos presos ao conhecimento convencional: polícia ad-
ministrativa econômica não é regulação jurídica da economia.904
Por fim, poder de polícia não é relação de sujeição geral. Aqui, falamos da distinção
entre sujeição geral e sujeição especial. A relação de sujeição geral dos administrados
em relação à Administração, cuja forma de incidência se dá pelo poder de polícia, é a
possibilidade, a que todos os administrados se sujeitam pelo fato de fazerem parte de
comunidade politicamente organizada, de terem o exercício de seus direitos restringido
e, no limite, suprimido. A nomenclatura “relação de sujeição” é das poucas que, até
agora, sobreviveu relativamente incólume aos novos tempos do Direito Administrativo,
o que não deixa de ser curioso, porque não seria muito difícil alguém sugerir que
“sujeição” é palavra autoritária e pouco adequada ao Estado Democrático de Direito.
Tirante a digressão, a sujeição geral é a razão pela qual a loja de laticínios pode
ser interditada ou a feira livre precisa de autorização. A sujeição geral está presente
tanto nas atividades privadas comuns quanto nas que se convencionou chamar de
atividades privadas autorizadas ou regulamentadas: atividades privadas, exercidas
pelo particular por direito próprio e em seu nome, terreno da iniciativa privada, mas
cujo exercício depende de prévia autorização pública, nos termos do art. 170, parágrafo
único, da Constituição da República.905 A razão para a autorização é seu objeto, tido
como de interesse público: são os bancos, as seguradoras, as empresas de capitalização,
as lojas de armas ou de fogos, as farmácias etc. Nos casos de atividade privada autori-
zada, espera-se que o particular tolere uma maior interferência estatal no controle de
sua atividade. Mas, tanto na atividade privada comum como na autorizada, a razão da
intervenção do Estado é a sujeição geral, e seu modo, o poder de polícia.
Já a sujeição especial é a que decorre de um estado particularíssimo do admi-
nistrado, que o excepciona dos outros administrados e o liga de modo individual à
Administração Pública: em geral, um contrato administrativo ou um vínculo esta-
tutário.906 É evidente que, também na sujeição especial, o administrado deverá ter
respeitados seus direitos fundamentais. Assim como, na sujeição geral, o particular
autorizado sofre a incidência de um poder de polícia mais intenso, mas, ainda assim,
respeitoso de seus direitos também na sujeição especial a Administração Pública — já
aqui, não mais tecnicamente por força de um poder de polícia, por poderes específicos
consecução de fins regulatórios específicos” (BINENBOJM. Poder de Polícia, Ordenação, Regulação, p. 75-76). O
equívoco do autor, neste ponto, não é propor um conceito de poder de polícia subinclusivo, mas um conceito de
regulação excessivamente abrangente – capaz de avançar indevidamente sobre institutos que, embora possam
(e, em alguns casos, devam) perseguir finalidades regulatórias, com regulação não se confundem (veja-se,
por exemplo, a crítica que fazemos à tentativa de se construir um conceito de fomento regulador, no próximo
capítulo).
904
Mas, se for inevitável o abandono da denominação “poder de polícia”, nossa sugestão vai para disciplina das
atividades econômicas, em vez de “polícia” (por causa do suposto ar autoritário) ou “limitação” (às vezes, a
atividade administrativa não limita, no sentido técnico de “restrição”, mas impõe um fazer ao administrado).
Há também a vantagem de que a expressão “atividades econômicas” engloba as noções de serviços públicos
e de atividade privada em sentido estrito, tal como entende a maioria da doutrina de Direito Econômico (por
exemplo, GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, passim). “Administração Ordenadora” é boa
proposta, mas foca no aspecto institucional – “Administração” – quando a ideia é entender para controlar, e
melhor executar, a atividade.
905
Art. 170, parágrafo único: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica,
independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei” (grifos nossos). As
atividades privadas autorizadas são, precisamente, os “casos previstos em lei” nos quais se exige a prévia
autorização.
906
Mas também, por exemplo, o usuário de uma biblioteca pública ou um aluno de um colégio público, ambos
sujeitos às regras específicas de funcionamento dos locais, que, muitas vezes, são verdadeiros miniestatutos.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
284 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
907
Além de serem sustentadas pela maior parte da literatura, tais restrições foram acolhidas pelo STJ e pelo STF
(e.g., ADIn nº 1.717 e ADIn nº 2.310). O assunto será, em oportunidade próxima, reapreciado pelo Supremo
Tribunal no julgamento do RE nº 633.782, cuja repercussão geral já foi reconhecida pela Corte (“Tema 532 –
Aplicação de multa de trânsito por sociedade de economia mista”). Sobre o tema, conferir o que dissemos no
capítulo anterior desta obra.
908
Não nos negamos a reconhecer o papel de ordenação econômica e social exercido por corporações privadas e
organismos transnacionais, em um mundo progressivamente globalizado, multipolarizado, desterritorializado
e complexo. Contudo, não cremos ser adequado que fenômenos como a autorregulação privada ou o softlaw
transnacional possam ser juridicamente tratados como se manifestações do poder de polícia fossem.
909
CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 271.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
285
910
MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, p. 134.
911
“A multiplicidade proteiforme das actividades individuais perigosas não permite que as leis prevejam todas
as oportunidades em que as autoridades policiais hajam de actuar e os modos pelos quais devam fazê-lo.
Nasce daí o caráter normalmente discricionário dos poderes de polícia” (CAETANO. Princípios fundamentais do
direito administrativo, p. 272, grifos no original). Afirmando que a atividade de polícia é “predominantemente
discricionária”, v. ARAÚJO. Curso de direito administrativo, p. 992.
912
“A rigor, se nos dermos ao trabalho de examinar as situações em que o Estado exerce a atividade de polícia,
verificaremos que a quase totalidade delas se insere no âmbito vinculado da atuação administrativa” (FURTADO. Curso
de direito administrativo, p. 653, grifos nossos).
913
Seria hipoteticamente possível elaborar um levantamento empírico que, para certos atos, em certo período,
em certa localidade, identificasse a predominância de atos de polícia mais vinculados ou mais discricionários.
A pesquisa, no entanto, seria metodologicamente bastante complexa (qual a métrica correta para a escala de
vinculação?) e dificilmente produziria conhecimento socialmente útil.
914
Cf. ALEXY. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica, p.
254, grifos no original: “É possível à justificação dogmática adotar, ao menos provisoriamente, itens que foram
previamente examinados e aceitos. Isso reduz o encargo do processo justificativo, a ponto de, na ausência
de alguns motivos especiais, novo exame ser desnecessário. Podemos ser isentos de discutir de novo toda a
questão de valor em cada caso. Essa função redutora de encargo não só é indispensável para o trabalho do tribunal
que ocorra sob limites de tempo, mas também de importância para a discussão jurídica científica. Também
nessa esfera – como em todas as esferas – é impossível discutir tudo de novo em todos os casos”. A função de
descarga da dogmática jurídica é, muito simplesmente, aquela graças à qual, segundo Atienza, “não se precisa
discutir tudo a cada vez” (ATIENZA. As Razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. Ainda, ver ÁVILA.
Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 56-57.
915
Embora se possa aceitar o uso com base numa espécie de metonímia jurídica.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
286 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
916
CAMPOS; OLIVEIRA. Poder de polícia: anotações à margem de Agustín Gordillo. In: OLIVEIRA. Direito
administrativo Brasil-Argentina: estudos em homenagem a Agustín Gordillo, p. 165.
917
GUEDES. A presunção de veracidade e o Estado Democrático de Direito: uma reavaliação que se impõe. In:
ARAGÃO; MARQUES NETO. Direito administrativo e seus novos paradigmas, p. 241-266, passim.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
287
Tal presunção (como peso no argumento) deve, no entanto, ser qualificada pela
experiência. A presunção de validade e de veracidade do ato administrativo não pode
ser tomada como afirmação fundacionalista, alheia ao contexto, e, assim, antipragmática.
A presunção de validade e de veracidade dos atos administrativos é, também e especialmente,
dado fático construído experimentalmente a partir da confiabilidade da instituição que promove
o ato, da confiança e da qualidade técnica das pessoas que normalmente o executam, e da forma
como ele vem sendo praticado. É dizer: a presunção de validade e de veracidade é muito
mais algo que se conquista do que algo que se deduza da qualidade pública do ato.
A verdade é que o atributo não é característico, apenas, dos atos de polícia, mas
dos atos administrativos em geral. Logo, a característica perde força: ela não diferencia
o poder de polícia; ela só comprova a circunstância, até recentemente inobjetada, de
que o poder de polícia se trata de atuação pública.
Também se fala que o poder de polícia (iii) é, eventualmente, autoexecutório. Isso
significa que há atos de polícia que podem ser praticados independentemente da anu-
ência prévia de outros poderes918 (significativamente, do Judiciário).919 Mas há outros
cuja prática deve passar pelo crivo do Judiciário (uma multa fiscal só pode ser cobrada
em juízo).
Na vida privada, são raros os atos autoexecutórios: poucos são os que já viram
a hipótese de retenção de bagagem de hóspede (art. 1.467 c/c 1.470 do Código Civil),
embora a legítima defesa da posse exista para além do texto legal (art. 1.210, §1º, Código
Civil). Claro que os atos de polícia, mesmo os autoexecutórios, não estarão insubmissos
à apreciação, nesse caso posterior, do Judiciário. A questão não é aceitar que atos de
polícia possam ser autoexecutórios (eles podem ser, e isso é óbvio), tampouco encon-
trar motivo para tanto (a segurança e a organização da sociedade são explicações bem
cotadas;920 quem duvidar que vá sugerir que o Corpo de Bombeiros tenha de solicitar
uma injunção judicial antes de apagar um incêndio).
O problema está em delimitar parâmetros operacionais e compatíveis com o
Estado de Direito com base nos quais a autoexecutoriedade possa ser exercida.921 Embora
exista controvérsia a respeito da adoção de teoria “extensiva” (a executoriedade seria a
regra dos atos administrativos) ou “restritiva” (executoriedade só em casos urgentes ou
em hipóteses previstas em lei), acreditamos que se deva inclinar pela última, que não
é, em rigor, “restritiva” (ou só o é em comparação com a outra teoria), mas, é, simples-
mente, a única que leva a sério os direitos fundamentais dos particulares.
As hipóteses legais de autoexecutoriedade de polícia costumam envolver au-
torizações normativas para apreensão de produtos, destruição de ruínas, construções
irregulares, medidas sanitárias e de controle de doenças. Nos casos em que não há lei
918
É claro que estamos falando de “outros poderes” em prol da simplicidade do texto, já que todas as funções
estatais – e não, tecnicamente, “poderes”, já que o poder estatal é uno – praticam atos administrativos.
919
“A auto-executoriedade, ou seja, a faculdade de Administração decidir e executar diretamente sua decisão por
seus próprios meios, sem intervenção do Judiciário, é outro atributo do poder de polícia” (MEIRELLES. Direito
administrativo brasileiro, p. 134-135, grifos no original).
920
BORGES. Supremacia do interesse público: desconstrução ou reconstrução? Revista de Direito do Estado, p.
137-153.
921
Boa criterização continua sendo, na doutrina brasileira, a de Celso Antônio Bandeira de Mello: “a) Quando a
lei expressamente autorizar; b) quando a adoção da medida for urgente para a defesa do interesse público e
não comportar as delongas naturais do pronunciamento judicial sem sacrifício ou risco para a coletividade; c)
quando inexistir outra via de direito capaz de assegurar a satisfação do interesse público que a Administração
está obrigada a defender em cumprimento à medida de polícia” (BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito
administrativo, p. 829).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
288 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
922
BOMFIM; FIDALGO. Releitura da auto-executoriedade como prerrogativa da Administração Pública. In:
ARAGÃO; MARQUES NETO. Direito administrativo e seus novos paradigmas, p. 267-309, passim.
923
Ver, à frente, análise sobre a essencial incompatibilidade entre ponderação e núcleo essencial. Como veremos,
afirmar que algo “deve ser ponderado” e que tal ponderação “deve respeitar o núcleo essencial dos direitos” é,
na melhor das hipóteses, supérfluo.
924
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 459, grifos nossos.
925
Por todos, v. SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional, passim.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
289
ensino superior.926 O que não significa proibir o Estado de prestá-lo; sem dúvida, é
importante utilidade que o Poder Público pode colocar à disposição de seus cidadãos
na qualidade de serviço público. O Estado brasileiro, inclusive, historicamente presta o
serviço. É ponto pacífico entre as muitas ideologias: ninguém terá seu valor intrínseco
de homem violado se não possuir uma graduação universitária, um mestrado, um
doutorado. No entanto, tal violação é consensualmente clara ao se deparar com um
homem adulto incapaz de ler, escrever, realizar operações matemáticas. Trata-se de ser
humano incapaz de se inserir significativamente na sociedade e de partilhar das muitas
experiências compartidas pela comunicação.
Ou seja: o conceito de direitos fundamentais é menos abrangente do que uma
longa série de propósitos legítimos que podem ser (e foram) validamente perseguidos
pelo Estado, na qualidade, por exemplo, de serviços públicos. Se o Estado brasileiro
resolver assumir a prestação da atividade de fornecimento de conexão com a internet,
transformando-o em serviço público, muitos não o considerarão, pelo menos no presente
momento, conteúdo com vinculação direta com a dignidade humana.927 Repita-se: o
conceito de direitos fundamentais é subinclusivo em relação à multitude de atividades estatais.
Muitas realizam diretamente a dignidade humana; outras importantíssimas atividades,
não. Não serão inconstitucionais por isso.
O que vale para o serviço público vale para o poder de polícia, ainda mais diante
da integração material das atividades. No mesmo exemplo, o ensino público superior
não significa a realização de direito fundamental. Portanto, a atividade de polícia ad-
ministrativa incidente na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) não realiza direito fundamental, na medida em que o próprio serviço
público também não o faz. Será inconstitucional por isso?
Em sentido forte, a ideia de que a polícia contemporânea foi instrumentalizada à
realização dos direitos fundamentais é inaceitável porque restringe a atuação adminis-
trativa à “realização direta da dignidade humana” que é a essência do conceito de direito
fundamental. Tal restrição é antidemocrática. Ela limita indevidamente o espectro de
escolhas legislativas. Não há nada de inválido, por inconstitucional, se a população do
Estado do Rio de Janeiro constituiu a UERJ como uma instituição autárquica de ensino
público superior. Amanhã pode achar que a escolha não foi a melhor, revogando a lei,
porém isso pertence antes ao jogo democrático do que às categorias da doutrina.
É dizer: se se entende que a frase “o poder de polícia foi instrumentalizado à
realização dos direitos fundamentais” quer dizer “o poder de polícia só pode atuar para
a promoção dos direitos fundamentais”, ela ingressará em contradição com a ideia de
que “o poder de polícia existe para a realização da democracia”, na medida em que
existem diversas atividades públicas democraticamente referendadas que não promo-
vem direitos fundamentais.
Em sentido fraco, a ideia de “instrumentalizado à realização de direitos fun-
damentais” pode ser lida como uma “necessidade de conformação aos direitos fun-
damentais”. Esse é o sentido democraticamente possível. “Conformação” significa
“ser conforme”, “não violar”, circunstância, aliás, óbvia, já que nenhum exercício de
926
SOUZA NETO. Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das
condições para a cooperação na deliberação democrática.
927
Defendendo que, já hoje, o acesso à internet é direito humano, v. a excelente obra digital de Bárbara Nascimento
(O direito humano de acesso à internet: fundamentos, conteúdo e exigibilidade, 2014). O autor deste livro elaborou
o prefácio da obra.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
290 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
Embora a crítica que fizemos à ideia de ser “meio para a realização” seja também
aqui aplicável — o exercício do poder de polícia não deve ser entendido apenas como
instrumento de realização da democracia, mas como competência que se realiza em conformidade
com a democracia —, no essencial concordamos com o jurista. E avançamos na proposta:
boa forma de operacionalizar essa conformidade democrática é submetê-la ao limite
da razão pública. A conferir.
O assunto final desta incursão doutrinária é a classificação do poder de polícia. O
assunto é de origem francesa. Fala-se numa polícia geral e numa polícia especial. A polícia
geral seria aquela cujo objeto se voltasse ao conteúdo tradicional da Ordem Pública, na
acepção francesa: segurança, tranquilidade, saúde. Já na abrangência da polícia especial
estariam as demais: polícia industrial, econômica, das profissões etc.
Há um importante “porém” nessa classificação: no Brasil, ela não serve para nada.
A ser verdadeira a lição de Ricardo Guastini segundo a qual as distinções só se justifi-
cam pela sua utilidade,929 a classificação, no Brasil, perde sua razão de ser. Na França,
o exercício da polícia geral pode ser feito por regulamentos autônomos, já o da polícia
especial, não.930 No Brasil, não há essa diferenciação: ou se acredita nos regulamentos
autônomos, e aí eles são aceitos para o exercício da polícia como um todo, ou não se
aceitam, e aí não será uma diferenciação pelo conteúdo que os tornará admissíveis.931
Passemos ao assunto dos limites clássicos ao exercício do poder de polícia.
928
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 461.
929
GUASTINI. Distinguendo: estudios de teoría y metateoría del derecho.
930
Constituição Francesa de 1958, art. 34 c/c art. 37.
931
Os regulamentos autônomos constituem atos normativos editados pela Administração com base diretamente
na Constituição, isto é, sem intermediação legal. A propósito, v. BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito
administrativo, p. 824-826 e CYRINO. O poder regulamentar autônomo do Presidente da República.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
291
932
Marçal diz que a polícia administrativa é um conjunto de competências (p. 459).
933
CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 276. “Não está no âmbito das suas atribuições,
por exemplo, ordenar a execução de um contrato ou fazer pagar uma dívida” (p. 277). No mesmo sentido: “O
exercício do poder de polícia deve ser submetido aos limites que decorrem da Constituição Federal e das leis.
A missão da polícia é a de proteger a ordem pública, na medida em que se fala de polícia de segurança. Logo,
a polícia não poderá colocar a força de que dispõe à disposição da proteção de interesses exclusivamente privados” (LIMA.
Princípios de direito administrativo, p. 319, grifos nossos).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
292 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
934
“É, sobretudo, em relação aos atos de polícia, por sua natureza discricionária, que o controle da legalidade
do fim objetivado na ação administrativa adquire relevo especial. Ele corresponde à eliminação dos processos
maliciosos e sub-reptícios (e, por isso mesmo, socialmente mais nocivos) de arbítrio administrativo acobertado
pelo aparente respeito à lei” (TÁCITO. Temas de direito público: estudos e pareceres, v. 1, p. 531).
935
Os motivos são tão importantes para o controle dos atos de polícia que, na França, há certas condutas privadas
que carreiam uma tradicionalíssima presunção (relativa) de ausência de motivo de polícia em favor do particular: são
as manifestações exteriores tradicionais de religiosidade (procissões, comboios fúnebres etc.). Presume-se que
tais condutas não ameaçam a tranquilidade pública. Se o Estado pretender limitá-las, deve não apenas motivar
tal propósito, mas fazê-lo de modo bastante justificado. V. a decisão do Conselho de Estado em Abbé Didier,
julgado em 1º de maio de 1914. Cf. GAUDEMET. Droit administratif, p. 313. De qualquer modo, nossa afirmação
no curso do texto pode ser excepcionada uma única razão: a urgência. Nesse sentido, MINET. Droit de la police
administrative, p. 233-234.
936
A doutrina discute se a desapropriação e as demais limitações à propriedade poderiam ser enquadradas dentro
do poder de polícia. A maioria dos autores, topograficamente, coloca o assunto à parte, embora alguns deem a
entender que a desapropriação é o exercício extremo de uma polícia da propriedade.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
293
937
“As decisões individuais de polícia devem ser precedidas de um procedimento contraditório, que permite a seus
destinatários apresentar suas observações e fazer valer seus direitos” (MINET. Droit de la police administrative,
p. 234).
938
“De todas as atividades desenvolvidas pelo Estado, a de polícia é a que mais requer a observância da legalidade
administrativa” (FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 657).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
294 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
939
A respeito da submissão geral do Direito Administrativo ao regime dos direitos fundamentais, v. SANTOS
NETO. O impacto dos direitos humanos fundamentais no direito administrativo. Especificamente sobre a submissão
do poder de polícia aos direitos fundamentais e aos limites mais “modernos”, além dos manuais, que hoje
em dia já se referem ao assunto —, ver, por exemplo, FREEMAN. Direito fundamental à boa Administração
Pública e o reexame dos institutos da autorização de serviço público, da convalidação e do ‘poder de polícia
administrativa’. In: ARAGÃO; MARQUES NETO. Direito administrativo e seus novos paradigmas, especialmente p.
326-332; FREITAS. Direito fundamental à boa administração, p. 114-125; MORGADO. Direito à boa administração:
recíproca dependência entre direitos fundamentais, organização e procedimento. Revista de Direito da
Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, p. 68 et seq.
940
Conséil d’État statuant au contentieux, nº 136.727, 27 de outubro de 1995. Da decisão, alguns trechos merecem
destaque: “Considerando que cabe à autoridade investida de poder de polícia municipal tomar todas as medidas
para prevenir um atentado à ordem pública; que o respeito à dignidade da pessoa humana é um dos componentes da
ordem pública; que a autoridade investida de poder de polícia municipal pode, mesmo na ausência de circunstâncias
locais particulares, interditar uma atração que atente contra o respeito à dignidade da pessoa humana [...]; Considerando
que, por seu próprio objeto, uma tal atração atenta contra a dignidade da pessoa humana; [...] Considerando que o
respeito ao princípio da liberdade de trabalho e ao da liberdade de comércio e de indústria não é obstáculo
a que a autoridade investida de poder de polícia municipal interdite uma atividade, mesmo lícita, se uma tal
medida é a única capaz de prevenir ou fazer cessar um atentado contra a ordem pública” (tradução nossa, grifos
nossos). Disponível em: <http://www.legifrance.gouverfr/affichJuriAdmin.do?oldAction=rechJuriAdmin&idTe
xte=CETATEXT000007877723>. Acesso em: 6 jan. 2010. A mesma decisão foi tomada para o caso Ville d’Aix-en-
Provence, que trata de idêntica hipótese (o prefeito desta outra cidade interditou a atração local de arremesso de
anões alguns meses depois do prefeito de Morsang-sur-Orge). No Brasil, ver o comentário ao caso de Joaquim
Barbosa Gomes (O poder de polícia e o princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência francesa.
ADV Advocacia Dinâmica – Seleções Jurídicas, p. 17 et seq.).
941
Embora tenha havido referência à dignidade humana em leis e decisões judiciais francesas anteriores. O
legislador francês, em lei de 30 de setembro de 1986 sobre liberdade de comunicação, limitou-a “na medida
requerida [...] ao respeito à pessoa humana”. No Código Civil francês, lei de 1994, introduziu, no art. 16,
dispositivo segundo o qual “a lei assegura a primazia da pessoa, proibindo-se qualquer atentado a ela e garantido
o respeito do ser humano desde o começo de sua vida”. O Conselho Constitucional, também em 1994, com base
na primeira frase do preâmbulo da Constituição francesa de 1946, considerou que “a salvaguarda da dignidade
da pessoa humana contra toda forma de sevícia e de degradação é um princípio de valor constitucional”. O
próprio Conselho de Estado fez uso da expressão em dois casos anteriores: ao falar sobre controle de salários
(Ministre des affaires sociales et de l’emploi c. Syndicat CGT de la Societé Griffine-Maréchal, julgado em 11 de julho de
1990), destacou a importância de “preservar a dignidade da pessoa” e disse que “os princípios deontológicos
fundamentais relativos ao respeito à pessoa humana que se impõem ao médico em suas relações com seus
pacientes não cessam com a morte destes” (Millhaud, julgado em 2 de julho de 1993). Long, Weil et al. concluem
que “a afirmação do ‘respeito à dignidade da pessoa humana’ pelos julgados Commune de Morsang-sur-Orge e
Ville d’Aix-en-Provence constitui prolongamento de soluções bem estabelecidas no Direito Positivo” (BRAIBANT
et al. Les grands arrêts de la jurisprudence administrative, p. 733).
942
O assunto é polêmico, porque reflete, segundo Maurice Hauriou, relutância da doutrina francesa em estender
a abrangência do poder de polícia para além da “ordem material e exterior” (suas palavras). Mesmo assim,
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
295
autores como René Chapus afirmam que a moralidade pública seria o quarto componente do conceito de
Ordem Pública (ao lado da segurança, da saúde e da tranquilidade). Há mesmo alguns julgados do Conselho
de Estado que, na opinião de alguns, indicam decisões tomadas com base nesse critério (por ex., em Société “Les
Films Lutetia”, julgado em 1959, o Conselho entendeu que a projeção de um filme pode ser proibida “à razão de
seu caráter imoral e de circunstâncias locais”) (CHAPUS, René. Droit administratif général, t. I, p. 707-711, item
II – L’orde public en tant que bon ordre moral). Retomaremos o assunto quando falarmos do critério da razão
pública.
943
Destaque-se que o anão foi litisconsorte da casa de espetáculos na impugnação da decisão do prefeito, alegando
que a municipalidade o privou da possibilidade de receber remuneração digna. Alegou, ainda, que a atividade
era segura (ele usava roupa especial e capacete). Na doutrina, de modo crítico à conclusão do Conselho de
Estado, v. JEROIN. La dignité de la personne humaine: ou la difficile insertion d’une règle morale dans le droit
positif. Revue du Droit Public; MOUTOUH. La dignité de l’homme et droit. Revue du Droit Public, p. 159 et seq.
944
No Direito Constitucional, viceja debate quanto à existência de uma dimensão heterônoma do princípio da
dignidade humana (valores comunitários, associados à preservação de “padrões civilizatórios”, que seriam
capazes de limitar escolhas individuais). Defendendo a existência de tal dimensão, v. BARROSO. A Dignidade da
Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo. Em sentido oposto, cf. SARMENTO. Dignidade da Pessoa
Humana: conteúdo, trajetórias e metodologia.
945
BARCELLOS. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana.
Ainda, SARMENTO. Dignidade da Pessoa Humana: conteúdo, trajetórias e metodologia.
946
V. crítica em HOERSTER. En defensa del positivismo juridico.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
296 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
947
“O que devemos, entretanto, assinalar é que, na ideia de garantia de um direito vai implícita a possibilidade de
limitação desse direito ou do respectivo exercício” (LIMA. Princípios de direito administrativo, p. 304).
948
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 461.
949
LIMA. O princípio da proporcionalidade e o abuso de poder no exercício do poder de polícia administrativa.
Revista dos Tribunais, p. 123-127, passim.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
297
950
“Mormente no caso da utilização de meios coativos, que, bem por isso, interferem energicamente com a
liberdade individual, é preciso que a Administração se comporte com extrema cautela, nunca se servindo de
meios mais enérgicos que os necessários à obtenção do resultado pretendido por lei, sob pena de vício jurídico que
acarretará responsabilidade da Administração” (BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 830,
grifos no original). Celso Antônio ainda menciona dois modos de excesso: mais intenso ou mais abrangente do
que deveria ser. Mais intenso: o uso de violência para dissolver reunião não autorizada, porém pacífica. Mais
abrangente: a apreensão de toda a edição de um jornal, quando seria possível obstar sua circulação numa região
específica para proteger o bem jurídico defendido.
951
“[...] Proporcional à gravidade da possível perturbação – por exemplo: em locais de grande afluxo de pessoas
são impostas restrições mais amplas que em locais sem nenhum afluxo de pessoas” (MEDAUAR. Direito
administrativo moderno, p. 339).
952
“Nenhuma restrição à liberdade individual deverá exceder jamais a medida absolutamente necessária à
preservação da ordem e da segurança públicas” (LIMA. Princípios de direito administrativo, p. 307).
953
“O princípio da proporcionalidade deriva, de certo modo, do poder de coerção de que dispõe a Administração
ao praticar atos de polícia. Realmente, não se pode conceber que a coerção seja utilizada indevidamente pelos
agentes administrativos, o que ocorreria, por exemplo, se usada onde não houvesse necessidade” (CARVALHO
FILHO. Manual de direito administrativo, p. 83).
954
“O requisito da proporcionalidade no exercício da polícia administrativa impõe que a atuação da Administração
fique restrita aos atos indispensáveis à eficácia da fiscalização e do condicionamento voltado aos interesses
da sociedade” (CARVALHO. Curso de direito administrativo: parte geral, intervenção do Estado e estrutura da
administração, p. 331). Logo após, a autora cita Celso Antônio (no trecho que citamos) e Rogério Silva, ambos
analisando a proporcionalidade sob a ótica da proporcionalidade-necessidade.
955
“[...] O que nos vale à configuração da regra da proporcionalidade dos meios aos fins no exercício da atividade de
polícia administrativa. Com efeito, a autoridade não deve ir além do necessário à satisfação do interesse público,
não utilizar meios violentos, vexatórios, ilegais, exagerados, pois o objetivo da polícia administrativa não deve
ser a eliminação dos direitos individuais, mas assegurar seu exercício, conformando-o com as exigências do
bem-estar e tranquilidade social” (ARAÚJO. Curso de direito administrativo, p. 999, grifos no original).
956
“Nesse sentido, a fim de que o exercício do poder de polícia do Estado seja legítimo, é necessário, além de lei
específica, que a restrição ao exercício das liberdades privadas possa ser justificada em face dos ganhos para a sociedade”
(FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 656).
957
“O emprego imediato de meios extremos contra ameaças hipotéticas ou mal desenhadas constitui abuso
de autoridade. Tem de existir proporcionalidade entre os males a evitar e os meios a empregar para a sua
prevenção” (CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 278). Em sentido próximo, Ruy Cirne
Lima (Princípios de direito administrativo, p. 321).
958
Em certo sentido, Marçal Justen Filho é exceção, já que menciona dois dos três elementos e substitui o terceiro
por uma compatibilidade geral com o Ordenamento, verbis: “Isso significa que qualquer limitação, prevista em
lei ou em ato administrativo, somente será válida se a) adequada, b) necessária e c) compatível com os valores
consagrados na Constituição e nas leis. Adequação significa um vínculo de causalidade lógica entre a providência
limitativa adotada e o fim concreto que a justifica. A necessidade impõe a adoção da providência de menor
potencial de restritividade possível dentre as diversas que se revelarem como adequadas. A compatibilidade
com a Constituição impede a consagração de providências restritivas que suprimam ou ofendam valores ou
direitos fundamentais, consagrados como intangíveis” (JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p.
461). Maria Sylvia também menciona a “proporcionalidade dos meios aos fins” como sendo uma espécie de
proporcionalidade-necessidade e uma proporcionalidade em sentido estrito (DI PIETRO. Direito administrativo,
p. 113).
959
OLIVEIRA. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro, p. 414-513.
960
CHAPUS. Droit administratif général, t. I, p. 699; GAUDEMET. Droit administratif, p. 314.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
298 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
961
Pierre-Laurent Frier e Jacques Petit elaboram procedimento analítico sobre como a proporcionalidade incide
como limite à polícia que soa parecido com a proposta de ponderação de Alexy, minus o dado cognitivo presente
na mais recente fórmula da ponderação deste. Falam que, de um lado, deve-se colocar a intensidade das ameaças
à Ordem Pública e, do outro, a importância das liberdades afetadas pela polícia e o grau de oferecimento de ameaça
à Ordem que elas importam em concreto (FRIER; PETIT. Précis de droit administratif, p. 263).
962
RAMÍREZ-ESCUDERO. El control de proporcionalidad de la actividad administrativa, p. 484-575; MINET. Droit de la
police administrative, p. 249-253.
963
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 252.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
299
964
Por todos, ver Jane Reis Gonçalves Pereira (Interpretação constitucional e direitos fundamentais, p. 174-182).
965
“Em verdade, a doutrina não apresenta um método específico para determinar esses limites; sua percepção
é considerada quase intuitiva e está relacionada com a evidência desses limites para o senso comum”
(BARCELLOS. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, p. 61).
966
“O que importa assinalar, no entanto, é que as limitações administrativas à liberdade e à propriedade, por serem
simples conformação do Direito, não geram qualquer direito à indenização, ao contrário do sacrifício do direito
que consiste na ação autorizada do Estado para diretamente combalir o próprio direito do administrado (como
ocorre com a desapropriação, a servidão e o tombamento) [...]” (PIRES. Limitações administrativas à liberdade e à
propriedade, p. 319).
967
Em alguma medida, e como vimos na resposta às críticas lançadas à tese central do capítulo anterior, as críticas
aqui realizadas também podem ser direcionadas à teoria das zonas de certeza positiva e negativa dos conceitos
jurídicos. A certeza e a determinação são resultado da interpretação, e não seus pré-condicionamentos.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
300 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
968
Podemos utilizar, de modo figurado, as lições de Alexandre de Aragão em seu livro sobre serviços públicos,
que adota conceitos e percepções teóricas tributárias da teoria dos direitos fundamentais e da teoria dos
princípios, mas que, aparentemente, acredita num núcleo essencial absoluto, tanto que adota e menciona a
distinção entre limitações e violações de direitos. Ao tratar das atividades privadas autorizadas, informa que,
em tais casos, o Estado poderá impor obrigações de fazer aos particulares autorizatários de modo mais intenso
ao que poderia nas atividades privadas propriamente ditas – mas o limite a tal imposição é “o núcleo essencial
da livre-iniciativa”. Contudo, não delimita o que isso significaria; afirma, apenas, que “há um mínimo daquele
direito subjetivo de iniciativa privada que deverá sempre ser resguardado”. E dá, como exemplos de imposição
de obrigações de fazer que violassem o “núcleo essencial da livre-iniciativa”, uma empresa privada de plano
de saúde que fosse obrigada a tratar pessoas que não fossem seus clientes, uma universidade privada que
fosse obrigada a custear percentagem mínima de bolsistas, cinemas obrigados a realizar sessões públicas ou
à divulgação de filmes de interesse público; empresa de telecomunicação obrigada a fornecer gratuitamente
serviço à parcela mais pobre da população; banco obrigado a oferecer linhas de microcrédito. Não concordamos
que esses sejam, em todos os casos e circunstâncias, bons exemplos de intervenções públicas desproporcionais
e, por conseguinte, violadoras do núcleo essencial – sempre relativo – da livre-iniciativa. As circunstâncias
podem variar, os direitos em jogo podem assumir importâncias distintas, a capacidade econômica da empresa
pode comportar uma intervenção pública muito bem justificada etc. Pensando em cinema, se se entende que
a obrigação da exibição de filmes é inconstitucional, como justificar a exibição de curtas-metragens nacionais?
Pensando nas instituições financeiras, o que dizer quanto às propostas de instituição de seguro popular,
elaboradas, padronizadas e eventualmente impostas pela SUSEP? Será que violaria o núcleo essencial da livre
iniciativa se um dos maiores grupos de universidades privadas do país, o grupo Kroton, fosse obrigado pelo
Poder Público, caso já não contasse com um programa de bolsas (o que é o caso), a oferecer um por cento de
suas vagas a pessoas carentes? Não existem respostas fáceis a essas perguntas, ou seja, não existem respostas
prontas, tudo é relativo, e o guia de tudo é a máxima da proporcionalidade (ARAGÃO. Direito dos serviços
públicos, p. 202 et seq., os exemplos estão nas p. 209-210).
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
301
969
SUNDFELD. Condicionamentos e sacrifícios de direitos: distinções. Revista Trimestral de Direito Público – RTDP,
p. 81.
970
As ideias dos últimos parágrafos são inspiradas em Virgílio Afonso Silva (O conteúdo essencial dos direitos
fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. Revista de Direito do Estado, p. 23-51, passim; e Direitos
fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, passim). Sobre núcleo essencial dos direitos fundamentais,
v. GAVARA DE CARA. Derechos fundamentales y desarrollo legislativo: la garantía del contenido esencial de los
derechos fundamentales en la Ley Fundamental de Bonn; LOPES. A garantia do conteúdo essencial dos direitos
fundamentais. Revista de Informação Legislativa.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
302 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
971
Embora, sob certas circunstâncias, a questão possa se reconduzir à promoção do turismo. Exemplo: na cidade
de Varginha, em Minas Gerais, seria pelo menos defensável a construção de tal instalação.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
303
972
BINENBOJM. Poder de Polícia, Ordenação, Regulação, p. 52-68, p. 153-242.
973
HAURIOU. Précis de droit administratif et de droit public, p. 549.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
304 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
dos acórdãos não foi a análise de conteúdo das obras, mas o grave comprometimento
à ordem pública causado por sua exibição.974
Ora bem: o critério da razão pública é, de certo modo, complementar à lição de
Hauriou. Em princípio, a polícia administrativa não deve se ocupar de considerações subjeti-
vas, íntimas, ideológicas ou morais. Não há razão de interesse público que, num primeiro
momento, justifique uma atuação de polícia “moral”.
Contudo, podem existir manifestações que, à luz das circunstâncias concretas,
exijam algum grau de cerceamento do exercício de direitos individuais em prol de
um interesse público qualificado por considerações de conteúdo. Nesses casos, a polícia
administrativa só poderá funcionar se suas razões para a ação forem razões públicas. Na ex-
cepcionalidade de ser necessário atuar junto a um controle material, a Administração
Ordenadora só poderá se legitimar pelo apelo a argumentos neutros, universalizáveis,
capazes de serem aceitos por toda a sociedade.
Exemplo: parece-nos possível o confisco de livros e propaganda nazista ou fas-
cista, porque, para além da previsão legal, as razões do antinazismo e do antifascismo
são conforme a razão pública.975 O mesmo raciocínio serve para legitimar a repressão
administrativa a manifestações hiperchauvinistas, apologistas do totalitarismo e da
violência. Poder de polícia não é apenas licença para construção e repressão a barulho.
A atividade é mais do que isso: é ordenar a vida em sociedade, nos limites em que
isso seja possível, sem pretender direcioná-la, mas mantendo, sempre, espaço para a
afluência de comportamentos e mundivisões diversas.
Por tal motivo, a razão pública é o critério de controle que melhor sintetiza a re-
lação entre polícia e democracia. Se o Estado só atua com base em razões públicas, é um
Estado Democrático de Direito do século XXI; se o Estado, ao muito excepcionalmente
ingressar no mérito das atividades sociais, apenas restringe as que forem radicalmente
antidemocráticas, e isso com base em razões públicas e postas a público, é um Estado
Democrático de Direito do século XXI que se preocupa em continuar sendo um.
974
BRAIBANT et al. Les grands arrêts de la jurisprudence administrative, p. 735. Por esse argumento, tais decisões
seriam pragmatistas.
975
Por outro lado, não parece ser possível restringir o lançamento de edições críticas, devidamente contextualizadas
e comentadas, destas obras, em especial quando sua venda se direcione ao público de pesquisadores.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
305
De forma alguma. Ele é útil como todo princípio regulador, ele serve como todo
ideal: como guia (incompleto e sujeito a críticas) do caminho a seguir, como ponte entre
o que já temos e o que desejamos construir.
CAPÍTULO 3
3.1 Introdução
Como poucas atividades incluídas na expressão intervenção976 do Estado sobre
a economia, o fomento público arrisca-se a caminhar sobre o fio de uma navalha cujos
extremos são o excesso e a falta. Ou, continuando nas expressões literárias, é atividade
que arrisca tornar-se o que já se falou da psicanálise: o mal cuja cura pretende ser.
Existem dois grandes problemas circundando o fomento público: (i) os
critérios de sua concessão e (ii) sua intensidade e duração.977 O fomento pode ser
976
Eros Roberto Grau discute, em certo ponto de A Ordem Econômica, se o designativo para referir-se às atividades
estatais de influência sobre a economia deveria ser intervenção ou atuação. De um lado, toda atuação do
Estado na economia é, de certa forma, interventiva, e, como se trata de atuação do Estado numa área que não
é sua — o mercado —, acabaria por assumir contornos propriamente interventivos. Por outro lado, no caso da
prestação ou da regulação dos serviços públicos, área em que a titularidade é sempre estatal (art. 175, CRFB), o
termo intervenção não seria justificável — melhor seria atuação. Registrada a polêmica, optamos pela utilização
intercambiável das expressões, a uma porque a distinção é de reduzido potencial explicativo, a duas, porque
o uso fungível já é comum em nossa doutrina, e, pensando em termos pragmáticos — sendo quase um campo
de prova de nossa tese —, não se deve pretender modificar usos consagrados quando os benefícios explicativos
são pequenos. Seja como for, no caso do fomento público, ter-se-ia precisamente uma intervenção, e não uma
atuação, já que o Poder Público está tentando influir, pelo convite, no mercado. Cf. GRAU. A Ordem Econômica
na Constituição de 1988, p. 93 et seq. Em sentido contrário àquele que foi aqui defendido, mas por razões distintas,
v. MOREIRA NETO. Direito regulatório, p. 129, grifos no original: “As intervenções estatais [...] podem ser
classificadas em quatro tipos quanto a seu conteúdo: a regulatória, a concorrencial, a monopolista e a sancionatória,
não considerada como modalidade de intervenção o fomento público, que não tem natureza impositiva”.
977
Outra questão importante circunda o fomento: a (ausência de) transparência. Por seu aspecto difuso, deixaremos
de tratá-la, neste capítulo, até porque, em certos casos, a simples adoção de critério — algum critério — já
supriria o percebido déficit. Em 1989, sobre a recém-aprovada constituição, o então deputado federal José Serra
lamentou a realidade jurídico-orçamentária do período anterior e auspiciava um futuro que, traçado no Texto
Constitucional, talvez nunca tenha existido: “Paralelamente, a Constituição obriga a que o orçamento fiscal
seja acompanhado de um demonstrativo dos efeitos das isenções, anistias, subsídios e benefícios tributários e
creditícios sobre as receitas e despesas. São itens que representam ‘gastos’ cujo conhecimento, hoje, só é menos obscuro
do que a forma como são decididos. Sua reiterada explicitação representará um largo passo no sentido de uma
avaliação qualitativa e quantitativa mais adequada da alocação dos recursos públicos” (SERRA. A Constituição
e o gasto público. Planejamento e Políticas Públicas, p. 94, grifos nossos).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
308 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
978
“A esfera econômica é definida por um processo de produção e distribuição de riqueza e renda, a política, pela
produção e distribuição de poder. Estas duas esferas são interdependentes. Da mesma forma que, quando as
empresas exercem poder de monopólio, elas estão incluindo, no mercado, um elemento de poder, quando
o Estado assume o papel de distribuidor de renda, através das transferências que realiza, a distribuição de
renda passa a ter um caráter eminentemente político. Neste momento, a res publica entra em jogo, e evitar que
ela seja apropriada de forma privada torna-se um problema político fundamental das sociedades civilizadas”
(BRESSER-PEREIRA. Cidadania e res publica: a emergência dos direitos republicanos. Revista de Filosofia Política –
Nova Série, p. 138).
979
BARROSO. O Estado que nunca foi. In: MOREIRA NETO. Direito regulatório, p. 7-8.
980
Não entraremos na discussão teórica e filosófica do paternalismo. Para detalhes sobre a relação entre um
paternalismo jurídico-constitucional e os limites à ação do Estado, cf. JORGE. Paternalismo jurídico na Constituição
de 1988: a autonomia individual contra o autoritarismo estatal. Ainda, na literatura jurídica recente, TRAVASSOS,
Marcelo Zenni. A legitimação jurídico-moral da regulação estatal à luz de uma premissa liberal-republicana:
autonomia privada, igualdade e autonomia pública: estudo de caso sobre os argumentos paternalistas. Rio de
Janeiro: Renovar, 2015.
981
Talvez esse seja o caso do cinema, em que apenas as indústrias norte-americana e indiana, à conta de
particularidades sociais, culturais e econômicas, sobrevivem sem fomento público (outros falam que as
indústrias da Nigéria e da Coreia do Sul também seriam autossustentáveis). Todas as outras indústrias
cinematográficas, incluindo as europeias, existem de modo indissociável de órgãos e entidades de fomento e
promoção do mercado, sendo que, em alguns casos, a própria atividade cinematográfica é considerada serviço
público em sentido estrito. Não é o caso do Direito brasileiro, em que a atividade cinematográfica é exercida em
livre iniciativa. De nossa parte, acreditamos que o cinema é atividade privada, de óbvia relevância cultural —
mas atividade privada mesmo assim. Para análise dos aspectos mercadológicos da indústria cinematográfica,
cf. MELEIRO (Org.). Cinema no mundo: indústria, política e mercado.
982
Por outro lado, se a atividade é ontologicamente deficitária, mas existem suficientes razões de interesse público
para que subsista, melhor seria transformá-la, desde logo, em serviço público. Assim, fazendo referência à nota
anterior, em nossa opinião, não há nada que impeça, ao menos tendo em vista a Constituição da República, que
se proceda a uma publicatio, quer dizer, a uma transformação do regime da prestação das diversas atividades
envolvidas com a cinematografia, do atual regime de livre iniciativa para o regime de serviço público, seja
prestado de modo exclusivo, seja prestado de modo não exclusivo e concorrencial. É, no entanto, uma ideia
bastante extrema.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
309
983
Para a expressão, ver GIANNETTI. Vícios privados, benefícios públicos?: a ética na riqueza das nações.
984
HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 1367. Outros dicionários apresentam definições parecidas.
Assim, fomentar, para o Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, corresponde a “excitar, desenvolver, estimular
o crescimento; incitar; favorecer” (São Paulo: Globo, p. 367).
985
Cf. dicionário online do Projeto Arquimedes, da Universidade de Harvard. Disponível em: <http://archimedes.
fas.harvard.edu/cgi-bin/dict?name=ls&lang=la&word=fomentum&filter=CUTF8>. Acesso em: 05 jan. 2008.
986
Não estamos tratando do fomento mercantil, conhecido como factoring, atividade por meio da qual uma
empresa se torna cessionária dos créditos comerciais de outra, mediante condições especiais para o pagamento
antecipado desses créditos, assumindo, a empresa cessionária, o risco pela insolvência dos clientes da cedente
(MARTINS. Contratos e obrigações comerciais, p. 123). Esta é a modalidade mais comum de fomento privado —
embora nada impeça, e seja também comum, que empresas privadas, não integrantes da Administração
Pública, despendam recursos e esforços para o desenvolvimento de atividades, exercidas por outras entidades
ou indivíduos, tidas por socialmente relevantes. Nesse caso, teríamos um fomento privado não mercantil, o
qual também não é objeto do capítulo.
987
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, a Petróleo Brasileiro S.A. e a Caixa Econômica Federal
S.A. são, em volume de recursos, as maiores entidades fomentadoras da Administração Federal e do país.
988
Ainda que não se pretenda esgotar, por impossível detalhamento, quais seriam essas atividades, não se deve
deixar passar, sem qualificações, referências a um genérico “interesse público”. E, dentro desse esforço de
concretização, vem a calhar a indicação histórica, feita por Santamaría Pastor, aos setores que, depois da primeira
terça parte do século XX, foram objeto de fomento. “De um lado, o incremento da produção industrial e agrária,
dirigidos genericamente à criação de riqueza e de emprego, para fazer frente ao trabalho de reconstrução dos
danos ocasionados pelas guerras civis e pela Segunda Guerra. De outro, a manutenção de empresas e setores
econômicos de importância estratégica ou de forte impacto social, porém situados numa fase de declive ou de
produtividade baixa ou nula. [...] Por último, o estímulo das atividades culturais e de prestação de serviços
sociais, ambas também caracterizadas por sua escassa rentabilidade empresarial”. Já a partir da segunda metade
do século XX, o autor afirma que a atividade pública de promoção acabou por estender à imensa maioria dos
setores econômicos e a boa parte dos setores da cultura e da ação social. Teria havido uma “generalização das
medidas de fomento”, já que valeria a hipótese teórica segundo a qual tudo o que não é obviamente danoso
pode ser considerado, de alguma forma, como de interesse público, sendo, portanto, passível de ser fomentado
(SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 343-344).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
310 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
989 990
O fomento público é o resultado de uma ponderação, entendida em sentido
amplo, entre os impulsos planejadores do Estado e a proteção ao espaço privado de
atuação empreendedora. O resultado é uma técnica de atuação em que o Poder Público
indica, sugere ou recomenda — oferecendo, para isso, algum tipo de estímulo palpável,
até porque estaríamos no terreno do não Direito se todo seu conteúdo se resumisse a
sugestões991 — determinada atuação ao particular, sem, contudo, torná-la obrigatória.
989
Não ignoramos a polêmica sobre a denominação fomento. Afirma-se que a palavra fomento associar-se-ia a
uma forma de atuação do Poder Público — a persuasão —, a qual não estaria presente em todas as atuações
fomentadoras. A opção pela palavra fomento indicaria escolha implícita por uma das definições para o instituto:
a que destaca a importância da persuasividade como elemento central da atuação. Alguns autores propõem,
então, “atividade administrativa dispensadora de ajudas e recompensas”, ou “ajudas públicas”. Tais autores
possuem razão em suas críticas, e, de fato, as denominações alternativas são melhores do que o tradicional
fomento. Ficaremos com fomento pela consagração do termo e facilidade na comunicação da ideia. V. MARTINEZ
LOPEZ-MUÑIZ. La actividad administrativa dispensadora de ayudas y recompensas: una alternativa
conceptual al fomento en la teoría de los modos de acción de la Administración pública. In: GÓMEZ-FERRER
MORANT (Org.). Libro homenage al profesor José Luis Villar Palasí, p. 751-768. Ainda, cf. RIVA. Ayudas públicas:
incidencia de la intervención estatal en el funcionamiento del mercado, 2004, p. 118-120; ORTEGA. Derecho
administrativo económico, p. 168.
990
O Direito Positivo brasileiro adotou expressamente a noção de fomento público. Basta procurar no texto da
Constituição de 1988. No art. 23, inciso VIII, afirma-se que é competência administrativa comum dos três entes
federativos — União, Estados e Municípios — fomentar a produção agropecuária. É modalidade de fomento
que se faz, em sua maior parte, por meio da concessão de linhas especiais de crédito em bancos públicos e
pela constituição de fundos estatais, raramente por subvenções diretas — mais usuais depois de intempéries
da natureza —, mas que admite meios incomuns, como o fomento psicológico. No art. 43, §2º, incisos II e III,
fala-se que a União, sob o propósito de reduzir as desigualdades regionais, instituirá juros favorecidos para o
financiamento de “atividades prioritárias” e, ainda, estabelecerá benefícios fiscais a pessoas físicas e jurídicas.
É exemplo de fomento público, por meios creditícios e fiscais, agindo pelo filtro de um critério regional (as
discriminações fiscais com propósito fomentador de regiões são permitidas pelo art. 151, I, parte final, da
Constituição). Ainda no mesmo artigo, o §3º informa que a União “incentivará a recuperação de terras áridas”
e que ajudará pequenos e médios proprietários rurais afetados pela seca a construírem fontes de água e de
pequena irrigação. Não menciona a forma, mas não é difícil concluir que os meios econômicos e creditícios
assumirão destaque. Já no capítulo das finanças públicas, nova menção: o art. 165, §2º, ao estatuir o conteúdo da
Lei de Diretrizes Orçamentárias, afirma que ela deverá conter a “política de aplicação das agências financeiras
oficiais de fomento”. Trata-se de incluir na LDO critérios gerais, diretrizes e prioridades de empréstimo e
de subvenção dos bancos públicos e das demais entidades financeiras públicas atuantes na área. Os setores
da cultura e do esporte também merecem destaque: o art. 216, §3º, da Constituição da República, impõe a
criação de incentivos para a produção e o conhecimento de bens e de valores culturais por meio de lei. É o
fundamento constitucional imediato para todas as leis — nacionais, federais, estaduais, municipais e distritais
— de proteção e incentivo à cultura. O §6º do mesmo artigo faculta aos Estados e Municípios a vinculação da
receita tributária a fundos de incentivo à cultura. O art. 217, ao falar de esporte, mostra-se explícito desde o
caput: “É dever do Estado fomentar práticas esportivas formais e não formais [...]”. Na parte dedicada à ciência
e à tecnologia, a Constituição não é menos expressa: afirma que o Estado apoiará a formação de mão de obra
nas áreas de ciência, pesquisa e tecnologia, concedendo, aos que a elas se dedicarem, condições especiais de
trabalho (art. 218, §3º). Tal dispositivo é fundamento constitucional para o fomento científico e tecnológico
(bolsas do CNPq, por exemplo), e, também, para a constituição de centros tecnológicos, empresas de pesquisa
e universidades públicas. O art. 218, §4º, é focado, em sua primeira parte, no fomento público: diz que a lei
incentivará empresas que invistam em pesquisa e criação de tecnologia adequada ao país. O artigo ainda faculta
a Estados e Municípios a criação de fundos de apoio ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica por meio da
vinculação de seus orçamentos. Outros dispositivos constitucionais (o art. 179 da Constituição da República,
ao estabelecer tratamento privilegiado às pequenas e microempresas, é exemplo de fomento jurídico) e legais
(a definição de subvenção no art. 12, §3º, da Lei Federal nº 4.320/64; a Lei Federal nº 13.019/14, que denominou
“termo de fomento” ao instrumento jurídico por meio do qual o Poder Público transfere recursos financeiros
a entidades do terceiro setor) poderiam ser citados. Não é nossa intenção, no entanto, elaborar um catálogo
legislativo. Bastam tais referências para identificar, com segurança, a presença do instituto em nosso Direito
Positivo.
991
Afirmam Stephen Holmes e Cass Sunstein, em livro famoso — The Cost of Rights —, que direitos “possuem
dentes”, ao passo que direitos “morais” não os possuem. Holmes e Sunstein referem-se a algo que, em nossa
tradição, reconduzir-se-ia ao conceito de direito subjetivo. A ideia é simples. Como explica Flávio Galdino, “à
figura metafórica dos ‘dentes’ corresponde a possibilidade de utilização dos remédios jurídicos previstos no
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
311
ordenamento, isto é, os meios de acionar o ente estatal para que garanta os direitos previamente reconhecidos
pelo Direito. Há, assim, uma ligação indissociável entre o direito subjetivo e o remédio jurídico previsto para
sua garantia e efetivação”. Se se entende que o Direito é mais do que um padrão geral de avaliação e crítica do
grau de racionalidade intersubjetiva, torna-se necessário que o Direito seja, também, mais que um catálogo de
intenções, ainda que nem toda a juridicidade restrinja-se a um padrão estrito de “possibilidade de vindicação
judicial” (SUNSTEIN; HOLMES. The Cost of Rights, p. 17; GALDINO. O custo dos direitos. In: TORRES (Org.).
A legitimação dos direitos humanos, p. 187. Para a discussão da possibilidade da existência dos “direitos morais”,
e em favor de tentativa de harmonização entre as diversas utilizações do termo, v. NINO. Sobre los derechos
morales. Doxa – Cuadernos de Filosofía del Derecho. Há polêmica em relação à admissão do fomento honorífico
e do fomento psicológico como modalidades de fomento público, justamente porque seu conteúdo limita-se a
sugestões de ação.
992
A bibliografia estrangeira deste capítulo é, essencialmente, espanhola, à conta de ter sido naquele país que o
conceito surgiu — Baena del Alcázar considera-o uma das “escassas originalidades” do Direito Administrativo
espanhol — e onde mais se desenvolveu. Basta dizer que, até hoje, há um Ministério do Fomento, além de, a
partir de 2003, existir uma Lei Geral de Subvenções (Lei nº 38/2003) (BAENA DEL ALCÁZAR. Sobre el concepto
del fomento. Revista de Administración Pública, p. 50.
993
JORDANA DE POZAS. Ensayo de una teoría general del fomento en el derecho administrativo. In: JORDANA
DE POZAS. Estudios de administración local y general: homenaje al profesor Jordana de Pozas, p. 46. O artigo é
considerado essencial no estudo do Direito Administrativo porque foi o primeiro a propor uma tripartição
das funções administrativas em serviço público, polícia e fomento. Antes disso, só se reconhecia, na Europa
continental, uma atividade administrativa de limitação ou de ordenação, e uma atividade de prestação de
serviços de interesse público. Cf., para esse comentário, RIVA. La figura del fomento: necesidad de encarar
una revisión conceptual. In: COMADIRA. et al. Servicio público, policía y fomento: jornadas organizadas por la
Universidad Austral, p. 413. É interessante a observação de Ricardo Rivero Ortega, afirmando que, à época em
que Jordana de Pozas elaborou seu tratamento seminal do fomento, o apogeu do fomento já havia passado,
graças à ascensão da figura do serviço público (ORTEGA. Derecho administrativo económico, p. 168).
994
Em idêntico sentido, José María Gimenu Feliú: “A ideia do fomento do desenvolvimento econômico, ademais,
expressa uma posição intermediária entre uma atitude inibicionista do Estado, em que seus poderes aparecem
reduzidos ao máximo, e aquela outra em que, com maior ou menor intensidade, atua de forma direta, com
seus próprios meios” (GIMENO FELIÚ. Legalidad, transparencia, control y discrecionalidad en las medidas de
fomento del desarrollo económico (ayudas y subvenciones). Revista de Administración Pública, p. 154.
995
No Brasil, costuma-se estudar o Direito Premial como tema do Direito Penal, em especial quando se fala em
delação premiada (instrumento que, desde a primeira edição desse livro, vem sendo cada dia mais utilizado). Só
que a designação é mais ampla. Na Espanha, por exemplo, Derecho Premial é o relacionado à concessão de títulos
de nobreza. Estamos utilizando o termo aqui numa acepção lata (Direito Premial como sinônimo de Direito
que opera não por estímulos negativos, mas positivos). Cf. BENEVIDES FILHO. A sanção premial no direito.
Partindo de perspectiva ainda mais ampla — a da existência de uma função promocional para o Direito —,
cf.: BOBBIO. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito.
996
“Ao contrário, a ação administrativa de fomento costuma-se examinar de passagem, sem reparar em sua
singularidade nem se deter na caracterização e no estudo dos atos em que se concretiza” (JORDANA DE
POZAS. Ensayo de una teoría general del fomento en el derecho administrativo. In: JORDANA DE POZAS.
Estudios de administración local y general: homenaje al profesor Jordana de Pozas, p. 42-43. Mariano Baena del
Alcázar chama-a de “desprezada matéria administrativa” (BAENA DEL ALCÁZAR. Sobre el concepto del
fomento. Revista de Administración Pública, p. 45). Nos últimos anos, nota-se incremento nas monografias
dedicadas ao assunto, mas a afirmação continua verdadeira.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
312 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
997
FERNÁNDEZ FARRERES. La actividad de fomento en el reglamento de obras, actividades y servicios de las
entidades locales de Cataluña de 13 de junio de 1995 (régimen jurídico de las subvenciones y de la acción
concertada), p. 309-326.
998
Ignácio de la Riva, ainda que destacando recentes avanços na matéria (em especial a legislação espanhola e a
regulação da União Europeia), aponta cinco grandes dificuldades para a submissão da atividade do fomento
público ao Direito. Para o autor, (i) o primeiro problema está em que a problemática jurídica do fomento escapa
ao binômio autoridade-liberdade, típico do Direito Público — é um problema de favorecimento, para cujo
tratamento as ferramentas publicísticas não foram desenhadas; (ii) no fomento, a separação entre o jurídico e
o metajurídico não é tão clara — sobressaem aspectos não jurídicos (políticos, econômicos) que nem sempre
conseguem tradução jurídica; (iii) como decorrência do item anterior, há grande espaço de discricionariedade no
exercício do fomento, e, como se sabe, a discricionariedade ficou, por muito tempo, longe de qualquer controle
jurídico; (iv) há dificuldades metodológicas: no fomento congregam-se diversos ramos do Direito (orçamentário,
constitucional, administrativo etc.); finalmente, (v) como decorrência das muitas e variadas técnicas de fomento,
há uma completa dispersão conceitual, fruto de parcial ausência de sistematização pelos Ordenamentos Jurídicos
(RIVA. La figura del fomento: necesidad de encarar una revisión conceptual. In: COMADIRA, Julio R. et al.
Servicio público, policía y fomento: jornadas organizadas por la Universidad Austral, p. 415).
999
BAENA DEL ALCÁZAR. Sobre el concepto del fomento. Revista de Administración Pública, p. 45.
1000
Exceção é Aurélio Guaita, defensor de que, quando a polícia cuida da moralidade, da salubridade e da segurança,
realiza, na verdade, atividade de fomento. Cf. GUAITA. La administración de fomento. Revista Trimestral Las
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
313
Parece-nos que continua possível manter a forma como Jordana de Pozas diferen-
cia fomento de polícia administrativa, desde que com o acréscimo relativo aos momentos
Ciencias, p. 878. Outro autor que defende, ainda hoje, a existência de um poder de polícia da prosperidade,
incluindo, então, fomento dentro de poder de polícia, é Daniel Edgardo Maljar (Intervención del Estado en la
prestación de servicios públicos, p. 263-301).
1001
JORDANA DE POZAS. Ensayo de una teoría general del fomento en el derecho administrativo. In: JORDANA
DE POZAS. Estudios de administración local y general: homenaje al profesor Jordana de Pozas, p. 46.
1002
MELLO. O fomento da Administração Pública, p. 42-43.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
314 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1003
O que foi percebido pela autora da obra citada, quando menciona que, “ao menos formalmente”, inexiste
supremacia. O que se argumenta, aqui, é que só interessa o que não é formal, isto é, o plano real, de modo a que
as distinções sejam pragmaticamente operativas.
1004
É, no entanto, discutível se o patrocínio empresarial, quando realizado por estatais, configura verdadeiro fomento
público, já que há inegável interesse do patrocinador na divulgação da marca.
1005
Há outras possíveis distinções, como a executoriedade (a polícia pode ser autoexecutória), ao caráter “negativo”
da polícia e “positivo” do fomento e à “unilateralidade” da polícia e à possível “bilateralidade” do fomento
(MELLO. O fomento da Administração Pública, p. 42-46).
1006
É a opinião de Diez, citado por Maljar: “A diferença fundamental está em que o serviço público implica uma
prestação obrigatória a cargo do Estado, quer a realize direta ou indiretamente, constituindo, consequentemente,
uma obrigação de fazer. Ao revés, o fomento não é de caráter obrigatório para o Estado, mas a sua realização
traz sempre consigo uma obrigação de dar”. Mais à frente, o autor parece concordar com a distinção de Jordana
de Pozas (MALJAR. Intervención del Estado en la prestación de servicios públicos, p. 283). Cf., na doutrina brasileira:
ARAGÃO. Direito dos serviços públicos, p. 174-176.
1007
Afirmando que o subsídio é o punctum saliens da atividade de fomento, v. BAENA DEL ALCÁZAR. Sobre el
concepto del fomento. Revista de Administración Pública, p. 74.
1008
Uma das principais características do fomento público, afirmada unanimemente pela doutrina, é a
heterogeneidade de meios por quais se expressa. Não consideramos essa uma característica essencial do
fomento pela boa razão de que, no Direito Constitucional, praticamente qualquer instituto pode vir a contar
com a característica de uma expressão por uma “pluralidade de meios”, reflexo da sociedade multifária e
pluralista desses tempos pós-modernos.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
315
1009
Com exemplo próximo, cf. MELLO. O fomento da Administração Pública, p. 91.
1010
JORDANA DE POZAS. Ensayo de una teoría general del fomento en el derecho administrativo. In: JORDANA
DE POZAS. Estudios de administración local y general: homenaje al profesor Jordana de Pozas, p. 46.
1011
ARAGÃO. Direito dos serviços públicos, p.176.
1012
GARRIDO FALLA. Tratado de derecho administrativo. 10. ed., v. 2, p. 301, grifos nossos: “O fomento é a atividade
administrativa que se propõe a satisfazer indiretamente certas necessidades consideradas de caráter público,
protegendo ou promovendo, sem empregar a coação, as atividades dos particulares ou de outros entes públicos
que diretamente as satisfaçam”. A Lei Geral de Subvenções da Espanha (Lei nº 38/2003) adotou a tese, conforme
se vê na transcrição parcial de seu artigo primeiro: “Entende-se por subvenção, para os efeitos desta lei, toda
disposição, em dinheiro, realizada por quaisquer dos sujeitos contemplados no art. 3º desta lei, em favor de
pessoas públicas ou privadas, e que cumpra os seguintes requisitos: [...]” (grifos nossos). Confrontar, no entanto,
com o art. 2.2 da mesma lei.
1013
MELLO. O fomento da Administração Pública, p. 32.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
316 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1014
JORDANA DE POZAS. Ensayo de una teoría general del fomento en el derecho administrativo. In: JORDANA
DE POZAS. Estudios de administración local y general: homenaje al profesor Jordana de Pozas, p. 49, grifos nossos:
“A ação consistente em proteger, estimular, auxiliar ou fomentar as atividades particulares mediante as quais
se satisfazem necessidades ou conveniências de caráter geral possui, em nosso idioma, segundo tradição
administrativa de mais de um século, o nome de Fomento”.
1015
ATAÍDE. Elementos para um curso de direito administrativo da economia, p. 110-111. No mesmo sentido, a partir
do Direito Alemão: “Não são subvenções as destinações financeiras dentro do âmbito estatal, por exemplo, dos
Estados aos Municípios [...]” (MAURER. Direito administrativo geral, grifos nossos).
1016
Terceira posição, menos comum, afirma que o fomento seria possível desde que se resguardasse, para o ente
fomentado, o caráter de terceiro. Assim, não seria possível um fomento público no qual, entre fomentador e
fomentado, ambos integrantes da Administração Pública, existissem vínculos hierárquicos ou relações de
dependência. Contudo, se o fomentado, integrante da Administração Pública, pudesse ser legitimamente tido
como terceiro em relação ao sujeito ativo da relação — por exemplo, uma entidade pública de outro nível
federativo, ou, se no mesmo nível, bastante distanciada da entidade fomentadora —, aí estaríamos diante
de possível fomento público em sentido próprio, e não de simples transferência orçamentária (CORTÉS.
Aproximación al concepto de subvención y su adecuación en la Ley 3/1987, de 2 de Julio, de financiación de
partidos políticos. Cuadernos Constitucionales de la Cátedra Furió Ceriol, p. 223-224.
1017
“Apesar do exposto, devo confessar que a ideia de que a própria Administração Pública, em qualquer de suas
formas, possa ser sujeito passivo de uma relação subvencional parece-me, à primeira vista, um contrassenso.
Todo ente público tende naturalmente à consecução do interesse público, razão pela qual não parece necessário
o emprego de atividade administrativa alguma por parte de outra pessoa pública para estimulá-lo nessa direção.
[...] É verdade que em determinadas ocasiões a entidade atuante necessita do suporte econômico de outra esfera
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
317
pública para poder levar a cabo satisfatoriamente suas funções específicas, ou se dê também o caso de que entes
mais hierarquizados deleguem algumas das tarefas de sua competência para outros inferiores, dotando-os dos
recursos necessários para que possam desempenhá-las. Porém, nenhuma dessas situações necessita da técnica
das ajudas públicas para ser explicada adequadamente, senão que bastaria falar, em tais casos, de transferências
patrimoniais entre entes públicos, sem mais” (RIVA. Ayudas públicas: incidencia de la intervención estatal en el
funcionamiento del mercado, p. 150-151).
1018
RIVA. Ayudas públicas: incidencia de la intervención estatal en el funcionamiento del mercado, p. 153.
1019
Questão diferente é a da participação de pessoas jurídicas de direito privado, não integrantes da Administração
Pública, na gestão do fomento público. Nada impede que entidade privada exerça alguma atividade material de
dispensamento de ajudas públicas. Como afirma Sesma Sanchez, o particular será mero gestor dos fundos, ao
passo que o outorgante continuará sendo o Poder Público. Alguma dúvida persiste em relação à extensão possível
da atividade do agente privado nessa gestão do fomento. Nesse caso, costuma-se resolver o ponto apelando,
como acabamos de fazer, à fórmula-tipo das “atividades materiais”. O problema está no detalhamento dessas
atividades: o que é atividade material? Em princípio, nossa posição é a de que os critérios concessivos de tal
fomento público gerido por entidades privadas devem utilizar dados rigorosamente vinculados; deve-se tratar
de fomento acessível a todos os interessados que preencham alguns pré-requisitos de simples conferência. Seria
inconstitucional, por antirrepublicano, que entidade privada possuísse poderes discricionários propriamente
concessivos de dinheiro público (SESMA SANCHEZ. Las subvenciones públicas, p. 316).
1020
E nos casos em que o Poder Público aporta capital em favor de concessionária de serviço público? Estaríamos
diante de fomento público? Não temos posição fechada a respeito do caso. Há duas formas de encarar
o problema. Ou se entende que a atividade fomentada é, em última análise, pública, e apenas o exercício é
privado, e, portanto, não seria fomento público (a não ser que se admita que o fomento público possa ser
dado a entidades públicas, a qual não é nossa posição); ou se entende que o importante é que o fomento seja
para o exercício, afinal privado, da atividade, sendo desinfluente sua titularidade — e aí estaríamos diante de
fomento. Em qualquer hipótese, é possível a defesa da aplicação, por analogia, das normas do fomento público
a esse auxílio do Estado ao concessionário (RIVA. Ayudas públicas: incidencia de la intervención estatal en el
funcionamiento del mercado, p. 127-128).
1021
DI PIETRO. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria
público-privada e outras formas, p. 180.
1022
Na primeira versão deste texto — a que correspondia ao texto da tese de doutorado — escrevemos o seguinte:
Analisadas as atribuições da Ancine, não se consegue encaixá-las dentro de um padrão de exercício de atos
de regulação, ao menos na acepção tradicional do termo (poderes quase legislativos, quase jurisdicionais e
executivos). Vejamos a lista de poderes típicos de uma agência reguladora, tal como apresentada por Floriano
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
318 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
de Azevedo Marques Neto: (i) poder normativo, (ii) poder de outorga, (iii) poder de fiscalização, (iv) poder
sancionatório, (v) poder de conciliação, (vi) poder de recomendação. A Ancine não possui poder de outorga
porque o mercado audiovisual não é serviço público, é atividade privada. Avancemos. Seus poderes de
fiscalização e de sanção existem, todavia, apreciados de forma isolada, não são capazes de distingui-la do sem-
número de autarquias “não agencificadas” que também os possuem. Não parece que exista poder de conciliação
a ser exercitado pela Ancine dentro de seu mercado. O poder de recomendação existe: é a autarquia quem coleta
dados do mercado e municia o Ministério da Cultura, que, com base neles, formula políticas setoriais e compõe
o percentual de filmes brasileiros que terão de ser exibidos a cada ano (a chamada “cota de tela”). Resta-nos
o mais polêmico de todos os poderes das agências: o poder normativo. A Ancine não o exerce. É claro que
sempre restará espaço para um ou outro exercício residual de regulamentação de caráter mais “autônomo”,
mas o legítimo poder normativo escapa ao cotidiano da autarquia. Conclusão: a Agência Nacional do Cinema é
agência de fomento. Importante lembrar que não há mal nisso. Nesse sentido, Regina Silvia Pacheco: “Entre as
agências criadas, o caso da Ancine é bastante peculiar. Definida como ‘órgão de fomento, regulação e fiscalização
da indústria cinematográfica e videofonográfica’, suas atribuições parecem caracterizar atividade de fomento mais do
que regulação. Não se justifica, portanto, o formato de agência reguladora” (PACHECO. Regulação no Brasil:
desenho das agências e formas de controle. Revista de Administração Pública, p. 529-530, grifos nossos). Ainda,
Paulo Modesto: “Esses dados de diferenciação estão aos poucos perdendo significação, pois é visível hoje a
perda de referenciais mínimos na criação de agências reguladoras. Estão sendo criadas, com a denominação de
agências reguladoras, autarquias que não regulam atividades econômicas nem agentes delegados do Estado, mas que são
ocupadas com o fomento de setores culturais ou atividades livres à iniciativa privada e, quando muito, são titulares de
restritos poderes de ‘polícia administrativa’, com evidente prejuízo para a clareza dogmática do instituto. Exemplos
dessa ‘perversão’ do conceito de ‘agência reguladora’: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, criada pela
Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, e a Agência Nacional do Cinema – Ancine, criada pela recentíssima Medida
Provisória nº 2.219, de 04 de setembro de 2001” (MODESTO. Agências executivas: a organização administrativa
entre o casuísmo e a padronização. Revista Diálogo Jurídico, p. 8. Disponível em: <http://www.direitopublico.
com.br>. Acesso em: 10 jan. 2008. Para a lista dos poderes das agências reguladoras, v. MARQUES NETO.
Agências reguladoras: instrumentos de fortalecimento do Estado, p. 26.
Pois bem: após a leitura da obra de Vinícius Portela Martins — a qual tivemos o prazer de prefaciar — e de
reflexão a respeito da Lei nº 12.485/2011, vê-se que há competências normativas distribuídas à Ancine. Mudamos
de ideia a respeito do item (i) na enumeração acima. Provavelmente, a Ancine já se tornou agência reguladora
(MARTINS. Coleção de direito administrativo positivo: leis especiais comentadas: volume 25, MP 2.28-1/2001 e Lei
12.485/2011.
1023
DAHL. Por uma política de informações. Portal ANCINE.
1024
BEZERRA. Adicional de renda estimula produção independente. Revista de Cinema On-Line.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
319
No livro Direito administrativo regulatório, item 4.2, cujo título é eloquente — “Fomento
como instrumento de regulação” —, depois de mencionar que, em função da livre
iniciativa, o setor econômico previsto no planejamento econômico do Estado deve ser
fomentado pelo Poder Público, anota que essa atividade de fomento não poderia criar
preferências fora do contexto do planejamento. O essencial, contudo, vem a seguir:
O fomento representa uma das principais técnicas de intervenção regulatória, pois influi no
mercado com vistas à opção pelo empresário no sentido dos setores incentivados; há, pois,
uma tendência a incentivar investimentos privados em determinados setores contemplados
pelas políticas públicas, sendo essa atribuição de benefícios uma regulação executiva, normal-
mente implementada pelas agências oficiais de fomento, influenciando, assim, a eficiência
na alocação de recursos.1025
Mais à frente, o autor afirma que a definição de critérios para o fomento com
vistas ao desenvolvimento regional ou setorial é feita por “agências reguladoras” como
a ADA e a Adene, no primeiro caso, e pela Ancine, no segundo.
Não concordamos com a existência do fomento regulador. Fomento regulador
nada mais é do que fomento tout court. Os objetivos de “desobstruir gargalos econômi-
cos” e de “opção do empresário pelos setores incentivados” já estão presentes na ideia
de fomento. O fomento atua de modo a sugerir que o mercado ande nesse e naquele
caminho e desenvolva essa e aquela atividade, e isso pode significar tanto auxiliar uma
ação privada socialmente relevante — alguns falam em fomento social1026 — quanto
apoiar agente econômico para que atue, de modo fortalecido, em direção a uma con-
corrência menos imperfeita.
Se não fosse esse motivo, por assim dizer ontológico-estrutural (relaciona-se com
a natureza da função de fomento), haveria, novamente, a questão de introduzir nova
qualificação, junto a conceito tradicional, sem ganhos práticos. Eis um segredo de poli-
chinelo: a doutrina e a prática administrativa brasileiras, por vezes, reciclam conceitos
e apresentam novidades datadas de décadas. Por fim, não cremos que as agências de
fomento regional que foram criadas, ADA e ADENE, em substituição à SUDAM e à
SUDENE, e que até já foram extintas, retornando-se ao modelo de Superintendências,
possam, algum dia, ter sido agências reguladoras.1027
A distinção entre fomento e regulação econômica e social — pressupondo, como
faz a doutrina majoritária, que polícia e regulação sejam coisas distintas (v. capítulo 2
da segunda parte, supra) — é simples. É claro que se pode afirmar que a intervenção
1025
SOUTO. Direito administrativo regulatório, p. 99.
1026
MOREIRA NETO. Curso de direito administrativo, p. 532 et seq.
1027
No mesmo sentido, Alexandre Santos de Aragão: “Mesmo o Legislador já utilizou a nomenclatura ‘agência’
para órgãos ou entidades díspares, a exemplo da Agência Espacial Brasileira (Lei nº 8.854/97), da Agência
de Desenvolvimento da Amazônia – ADA (arts. 11 a 20, MP nº 2.145/01) e da Agência de Desenvolvimento
do Nordeste – ADENE (arts. 31 a 40, MP nº 2.145/01”. Na mesma página, em nota de rodapé, com destaque
nosso: “Note-se que estas agências não possuem competências regulatórias e, malgrado a nomeação dos
seus dirigentes estar submetida à autorização do Senado da República, eles não possuem garantias contra
a exoneração ad nutum. Ou seja, são ‘agências’ que não são reguladoras nem independentes” (ARAGÃO. Agências
reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico, p. 297). Alexandre Mazza acredita na existência de
três espécies para o gênero “agência” no Brasil: agências de polícia, de serviço e de fomento. A ADA e a Adene,
quando existiam, e a Ancine, hoje, seriam exemplos da última espécie. A taxonomia é parcialmente adequada:
ADA, Adene e Ancine foram ou são “agências” (os diplomas normativos assim as chamam, e contra isso não
há argumentos doutrinários) e exercem ou exerceram a atividade de fomento. Só que nunca foram reguladoras
(MAZZA. O poder normativo das agências reguladoras. Revista IOB).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
320 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
regulatória pode-se dar por meio do fomento,1028 até porque o conceito de regulação
é amplo. Mas temos, na regulação, um caso em que o todo é maior do que a soma de
suas partes.
Regulação é criar a norma, fiscalizá-la, aplicá-la, compor controvérsias, induzir
comportamentos. Nem por isso ela seria mistura simples de polícia, fomento, poder
normativo, funções executivas. Ela é tudo isso, em alguns casos partindo de visões dife-
renciadas das noções clássicas (como no caso da polícia, em que não se estaria tratando
da noção oitocentista), dentro de um todo coordenado, gerando novas perspectivas e
possibilidades práticas de atuação. O fomento existe na condição de técnica da regula-
ção1029 (ainda que não deixe, por isso, de ser fomento), mas ele e a regulação são coisas
diferentes. Todo fomento é regulador, mas nem toda regulação se faz por intermédio do fomento.
Há íntima relação entre planejamento e fomento.1030 Dir-se-ia que o planejamento
estatal é o antecedente do fomento. Só se vai fomentar atividade ou setor se isso fizer
sentido dentro de programação prévia — e essa programação é o planejamento.
A proximidade é tanta que, por vezes, planos de desenvolvimento econômico e
social são chamados de planos de fomento. É claro que a execução do plano de desen-
volvimento, elaborado pelo Poder Público com, espera-se, participação da sociedade,
inclui atividades públicas e privadas. A relação planejamento-fomento só faz sentido
quando não se tratar de atividade pública ou de atividade privada desenvolvida pelo
Estado, porque, nesses dois casos, o fomento, como vimos, é inaplicável: fomento público
é conceito que se restringe à atividade econômica, em sentido estrito, desenvolvida por
entes particulares sem vínculos com a Administração Pública.
Desnecessário dizer, mas o planejamento, para o setor público, é determinante, e,
para o setor privado, é, apenas, indicativo (art. 174, caput, CRFB/88). A doutrina elaborou
tripartição entre os planos de desenvolvimento econômico e social: existiriam planos
(i) indicativos, (ii) incitativos, e (iii) imperativos.1031 A primeira espécie seriam aqueles
em que o Poder Público tão somente sinaliza em determinada direção, sem impor
compromisso ao mercado. Os planos imperativos, sem lugar no setor privado, seriam
norma jurídica em sentido forte, vinculando a atuação dos destinatários. Já os incitativos
ficariam num meio-termo: seriam aqueles em que a Administração não apenas sugeri-
ria rumo ou finalidade, mas buscaria ativamente o engajamento da iniciativa privada.
“Nestes planos há não apenas indicação, como também, e, muitas vezes, promessas
com várias medidas, quer por meio de incentivos, ou por qualquer outra forma para
1028
E nem por isso ele vira fomento regulador: continua tão fomento quanto antes. Na verdade, a grande questão
quanto ao fomento regulador é de autonomia conceitual. Aguardamos exemplo de fomento que não signifique
regulação, seja do mercado ou da vida social. Dizendo de outra forma, todo fomento é regulador — excelente
motivo para que optemos pela denominação tradicional, mais simples e consagrada.
1029
Sob essa perspectiva, concordamos com o título do capítulo de Marcos Juruena.
1030
Em referência ao caso espanhol, mas em lição aplicável ao Brasil: “Convém colocar toda ênfase possível afirmando
como, em algumas matérias concretas, a técnica da planificação se assume como técnica central e determinante da ação
ulterior das distintas Administrações Públicas; inclusive com os subsequentes efeitos jurídicos para os administrados,
fenômeno que, em alguns campos concretos, apresenta-se como um significado indubitável do que importa destacar:
assim ocorre, por exemplo, no que se refere à ação do Ministério do Fomento, em relação ao qual são constantes,
em nosso Direito Positivo, as alusões aos planos de obras, planos florestais, planos hidrográficos, planos de
ensino etc” (MARTÍN-RETORTILLO. Antecedentes del concepto de plan y referencia a la legislación del
fomento del siglo XIX. Revista de Administración Pública, p. 42-43, grifos nossos. Ainda: MARTÍN-RETORTILLO
BAQUER. Presupuestos politicos y fundamentación constitucional de la planificación administrativa. Revista de
Administración Pública.
1031
DEVOLVÉ; LAUBADÈRE. Droit public économique, p. 429-440.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
321
que a iniciativa colabore”.1032 Ora, os planos incitativos são, portanto, o próprio desenho
das ações administrativas de fomento público. Assim, a relação entre planejamento e
fomento é análoga à que pode existir entre a programação de uma atividade global e
(parte) de sua execução.
1032
FIGUEIREDO. O devido processo legal e a responsabilidade do Estado por dano decorrente do planejamento.
Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, p. 191.
1033
A base legal para a “cota de tela” é o art. 55 da Medida Provisória nº 2.228-1, de 06 de setembro de 2001,
regulamentada anualmente por decreto do Presidente da República, que estabelece o número de dias de
exibição de filmes brasileiros a partir de dados do mercado coletados pela Ancine (para o ano de 2008, Decreto
nº 6.325/2008). Esse seria um dos indícios do caráter “regulador” da Ancine. Cf. o caput do artigo: “Art. 55. Por
um prazo de vinte anos, contados a partir de 05 de setembro de 2001, as empresas proprietárias, locatárias
ou arrendatárias de salas, espaços ou locais de exibição pública comercial exibirão obras cinematográficas
brasileiras de longa metragem, por um número de dias fixado, anualmente, por decreto, ouvidas as entidades
representativas dos produtores, distribuidores e exibidores. §1º A exibição de obras cinematográficas brasileiras
far-se-á proporcionalmente, no semestre, podendo o exibidor antecipar a programação do semestre seguinte”.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
322 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1034
Outro exemplo, qualificado tanto por ser citado por Garrido Falla quanto por nossa experiência: há casos
em que a administração de trânsito confere congratulações a motoristas, como forma de estímulo ao bom
comportamento ao volante. É exemplo da adoção de técnica persuasiva para a obtenção de finalidades que, de
outra sorte, seriam obtidas com o uso de técnicas coercitivas (fiscalização, cassação de carteiras de habilitação
etc.). O Departamento de Trânsito do Estado do Rio de Janeiro, a partir de 2007, passou a enviar certificados
para condutores com mais de sessenta anos cujo prontuário não registrasse multa de trânsito. Os resultados
teriam sido positivos (GARRIDO FALLA; PALOMAR OLMEDA; LOSADA GONZÁLEZ. Tratado de derecho
administrativo. 12. ed., p. 378.
1035
Essa é uma das críticas de Baena de Alcázar ao texto de Jordana de Pozas, creditando a autoria da ideia a Ernesta
Cuenta (BAENA DEL ALCÁZAR. Sobre el concepto del fomento. Revista de Administración Pública; cf., ainda,
Lorenzo Martín-Retortillo Baquer [para quem a ideia surge com Villar Palasí em “Las técnicas administrativas
de fomento y de apoio al precio político” (Revista de Administración Pública, p. 11-121)]: “Para estimular a atuação
dos particulares em setores que apresentam importância para o interesse público, a Administração pode lançar
mão de procedimentos diversos que podem ser substituídos entre si, já que qualquer um deles pode conseguir,
com maior ou menor ajuste, o efeito pretendido pela Administração” (MARTÍN-RETORTILLO BAQUER. De la
“gestión interesada” a las “cláusulas de interesamiento”. Revista de Administración Pública, p. 70).
1036
RIVA. Ayudas públicas: incidencia de la intervención estatal en el funcionamiento del mercado, p. 122-123.
A definição de Martinez Lopez-Muñiz é a seguinte: “[É] a outorga direta ou indireta de bens ou direitos a
determinados administrados — privados ou públicos —, com caráter não devolutivo e por motivo de certas
atividades que lhes são próprias, já realizadas ou ainda por realizar, ficando, neste último caso, afetados à sua
realização” (La actividad administrativa dispensadora de ayudas y recompensas: una alternativa conceptual
al fomento en la teoría de los modos de acción de la Administración pública. In: GÓMEZ-FERRER MORANT
(Org.). Libro homenage al profesor José Luis Villar Palasí). Não concordamos com a definição de Martinez Lopez-
Muñiz apenas na parte que inclui o fomento intrapúblico.
1037
Fomento público não se confunde com atividade assistencial pública. Embora esta também signifique
dispensamento público de verbas, e, nos casos mais recentes, inclua a exigência da comprovação do
preenchimento de requisitos por parte do beneficiário — os chamados condicionantes sociais: manter os filhos
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
323
clara. Da mesma forma, seja por um ou outro conceito, já sabemos que fomento não se
confunde com nenhuma das demais atividades administrativas do Estado.
Depois de diferenciá-lo e conceituá-lo, destaquemos suas características.
na escola ou sua caderneta de vacinação em dia, por exemplo —, tal ajuda ocorre não com o propósito de
desenvolver atividade econômica (ou, em rigor, qualquer atividade), mas possui como único pressuposto a
necessidade existencial de seus beneficiários. Não há, como no fomento, unidade de propósitos em direção à
realização de atividade de interesse público. O que existe é, de um lado, alguém cujas necessidades básicas não
se encontram supridas, em estado de vulnerabilidade social, e, de outro, o Estado, que, por razões humanitárias,
fornece alguma prestação social — cesta básica, medicamentos — aos necessitados. Se entendermos que
fomento é o dispensamento de qualquer tipo de auxílio aos indivíduos, ou apenas o dispensamento afetado
de bens e direitos a determinados particulares, com vistas a que realizem atividade de interesse público, as
atividades respectivamente incluídas ou excluídas variarão bastante. Nossa posição, como a da maioria da
doutrina, é favorável a um conceito restrito, em prol de sua inteligibilidade e operacionalidade. Já Diogo de
Figueiredo Moreira Neto, ao tratar de fomento público em seu Curso, inclui, no conteúdo da atividade, situações
como o auxílio aos índios, às pessoas idosas e à constituição de família — logo se vê que este autor é partidário
de conceituação superabrangente do termo. Para a observação de que fomento público, conforme se entenda
que é o dispensamento afetado ou não afetado de bens e de direitos, gerará consequências jurídicas distintas,
v. FERNÁNDEZ FARRERES. La subvención: concepto y régimen jurídico, p. 266 e MOREIRA NETO. Curso de
direito administrativo, p. 522 et seq.
1038
Trata-se, naturalmente, de destaque doutrinário dentre muitos outros possíveis. Assim, por exemplo, Gaspar
Ariño Ortiz vê quatro grandes características para o fomento: a) o fato de ser uma atividade administrativa,
uma forma de ação da Administração e um título de intervenção na economia; b) com um aspecto negativo: sem
utilizar a coação nem criar serviços públicos; c) com um conteúdo positivo: o Estado “oferece” um favorecimento
ao particular; e d) com um caráter teleológico: o fomento caracteriza-se pela busca de uma finalidade. Ora, tanto
a caracterização aqui apresentada quanto a de Ariño Ortiz são válidas e, na parte em que não se complementam,
destacam aspectos distintos de uma mesma atividade (a que adotamos, por exemplo, detalha certos aspectos do
funcionamento do fomento) (ORTIZ. Principios de derecho público económico, p. 345.
1039
BARRAS. Los principios generales de la intervención pública: la regulación, la policía, el fomento y el servicio
público. In: SERVICIO público, policía y fomento: jornadas organizadas por la Universidad Austral, p. 52.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
324 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1040
O assunto é complexo. A doutrina alemã, por exemplo, formulou e sustentou, durante muito tempo, a Teoria
dos Dois Graus para explicar o status das relações jurídicas nascidas a partir de um empréstimo em condições
facilitadas (exemplo de fomento público). Haveria um primeiro grau — jurídico-público — do ato administrativo
que decidiria se o empréstimo deveria ou não ser concedido, no qual incidiria a supremacia, e um segundo
grau — jurídico-privado — que seria o contrato privado de empréstimo, no qual a supremacia inexistiria. Tal
teoria, nos últimos tempos, vem sofrendo críticas, centradas na imprecisão prática da distinção entre os dois
graus e na artificialidade que haveria na cisão de uma relação uniforme em dois momentos. Assim, a doutrina
germânica moderna prefere qualificar os empréstimos do Poder Público em condições facilitadas como uma
“relação de um só grau”, seja defendendo que são atos ou contratos administrativos, seja afirmando que são
contratos privados. Da Teoria dos Dois Graus, só se defende sua incidência, hoje, nos casos de fiança pública —
também espécie de fomento —, oportunidade na qual a Administração coloca-se como fiadora de um negócio
interprivados. Ora, essa teoria seria exata reflexão daquilo que afirmamos como sendo a posição de muitos
autores, isto é, de que a Administração Pública, no convite, encontra-se em posição de igualdade, entretanto, ao
tê-lo aceito pelo particular, retorna a seu status privilegiado. Seria, mas não é. A diferença está nos momentos
em que se centra a análise: enquanto a Teoria dos Dois Graus enfatiza a autorização para o empréstimo e a sua
materialização (que se daria por um contrato ou por um ato administrativo), nossa análise partiu do momento
anterior, em que há o convite para o fomento e sua eventual aceitação pelo particular. Sobre a Teoria dos Dois
Graus e sua superação, v. MAURER. Direito administrativo geral, p. 510-511.
1041
MELLO. O fomento da Administração Pública, p. 30: “De fato, o particular é livre para aderir ou não aos propósitos
do Estado, mas, a partir do momento em que manifesta sua vontade de assumir a posição de agente fomentado,
obriga-se a atender a todas as condições impostas pelo Estado, ficando inteiramente vinculado aos fins públicos
pretendidos, pois são eles os responsáveis pelos privilégios e vantagens que lhe foram outorgados”.
1042
MOREIRA NETO. Curso de direito administrativo, p. 524.
1043
“A definição do Código Civil, com que abrimos este capítulo, encerra todos os elementos deste negócio jurídico,
a saber: (i) Contrato. Ante a divergência de conceito como ato de aquisição de propriedade ou como contrato,
predomina esta última caracterização, à vista do acordo de vontades. (ii) Liberalidade. É fator essencial e específico
do seu conteúdo” (PEREIRA. Instituições de direito civil, v. 3, p. 247, grifos nossos).
1044
VILLAR PALASÍ. Las técnicas administrativas de fomento y de apoio al precio político. Revista de Administración
Pública, p. 20. Ver, ainda, ORTIZ. Principios de derecho público económico, p. 359.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
325
1045
NIEVES BORREGO. Estudio sistematico y consideración jurídico-administrativa de la subvención. Revista de
Administración Pública, p. 28.
1046
NIEVES BORREGO. Estudio sistematico y consideración jurídico-administrativa de la subvención. Revista de
Administración Pública, p. 70-71.
1047
No mesmo sentido, FERNÁNDEZ FARRERES. La subvención: concepto y régimen jurídico, p. 340; RIVA. Ayudas
públicas: incidencia de la intervención estatal en el funcionamiento del mercado, p. 131-32.
1048
“A seletividade diferencia a ajuda de uma medida geral de política econômica, fiscal ou social do Estado, a qual
se dirige a todas as empresas do Estado de forma objetiva, repercute sobre vários setores, aplica-se por igual em
todo o Estado e trata de favorecer o conjunto da economia” (SAGGESE. El derecho comunitario de las ayudas de
Estado y su articulación con el derecho español de las subvenciones y las ayudas a las actividades económicas.
In: FERNÁNDEZ FARRERES (Org.). El régimen jurídico de las subvenciones: derecho español y comunitario, p.
191-221. Complementar em ESTOA PÉREZ, Abel. El control de las ayudas de Estado, especialmente cap. II - La
definición de ayuda de Estado, p. 39 et seq., item 3 - Selectividad de una medida
1049
RIVA. Ayudas públicas: incidencia de la intervención estatal en el funcionamiento del mercado, p. 160-162.
1050
Estamos falando, aqui, de benefícios concedidos exclusivamente em função da condição do beneficiário, e
que se desvinculam de qualquer atividade que este possa realizar. Pelo raciocínio, qualifica-se como fomento
público o Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos — o Fundo Partidário —, cuja maior
parte dos recursos vem da União, destinado a que partidos políticos, pessoas jurídicas de natureza privada,
possam desempenhar melhor sua atividade institucional, a qual possui óbvio interesse público. Em sentido
contrário, CORTÉS. Aproximación al concepto de subvención y su adecuación en la Ley 3/1987, de 2 de Julio, de
financiación de partidos políticos. Cuadernos Constitucionales de la Cátedra Furió Ceriol, p. 222.
1051
V. art. 203 da Constituição da República e Lei Federal nº 10.741, de 1º de outubro de 2003.
1052
V. art. 7º, II, da Constituição da República, e Lei Federal nº 7.998, de 11 de janeiro de 1990.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
326 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1053
Vamos seguir, nesse ponto, com alterações, a apresentação de Ignacio de la Riva (Ayudas públicas: incidencia de
la intervención estatal en el funcionamiento del mercado, p. 172-181).
1054
NIEVES BORREGO. Estudio sistematico y consideración jurídico-administrativa de la subvención. Revista de
Administración Pública, p. 28.
1055
NIEVES BORREGO. Estudio sistematico y consideración jurídico-administrativa de la subvención. Revista de
Administración Pública, p. 28-30, 45-46.
1056
VILLAR PALASÍ. Las técnicas administrativas de fomento y de apoio al precio político. Revista de Administración
Pública, p. 90: “Em todo caso, a subvenção aparece outorgada conforme a condição de cumprimento pela
entidade subvencionada. Daí a terminologia inglesa de conditional grant. Este condicionamento se traduz, não
em um modo aposto à subvenção, como sustentou MATTI, mas em uma efetiva condição resolutiva”.
1057
FERNÁNDEZ FARRERES. La subvención: concepto y régimen jurídico, p. 258-260; p. 266.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
327
1058
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 357-358.
1059
Sobre o conceito de obrigação jurídica, cf. lição de Eros Roberto Grau: “Neste sentido, estrito, a obrigação
consubstancia um vínculo em razão do qual uma pessoa (devedor) deve à outra (credor) o cumprimento de uma
certa prestação. A obrigação consubstancia um direito relativo, na medida em que o crédito que dela decorre
apenas pode ser exigido, pela pessoa ou pluralidade de pessoas dele titular, contra a pessoa ou pluralidade
de pessoas na situação de devedor. Aí a distinção fundamental entre obrigação e direito real: este pode ser
exigido erga omnes. De outra parte, diz-se também constituir, a obrigação, um direito pessoal, conquanto que,
descumprido o dever de prestação, a sua execução forçada ou providência que a substitua só é exigível por
iniciativa do credor; de toda sorte, é certo que o devedor tem, perante o credor, um dever sancionado pelo
Direito”. V. GRAU. A outorga onerosa do Plano Diretor de São Paulo: ônus, não obrigação. Revista de Direito da
Procuradoria Geral do Município de Fortaleza e também GRAU. Direito, conceitos e normas jurídicas, p. 116.
1060
“Não se pode dizer propriamente que o particular-beneficiário da subvenção assuma uma obrigação jurídica
stricto sensu diante da Administração outorgante, muito menos que a atividade que se deva desempenhar
seja uma contraprestação em favor, também, da Administração outorgante, já que com isso se esquece que
a subvenção, ainda que concedida com finalidade de interesse público, beneficia diretamente o particular,
ao qual, em ‘troca’ [...] deve executar uma determinada atividade, e a própria atividade que desempenha —
mesmo devendo acomodar-se ao interesse público concretizado nos objetivos e condições que a Administração
determinou no ato de outorga — redunda também diretamente em seu benefício” (FERNÁNDEZ FARRERES.
La subvención: concepto y régimen jurídico, p. 399).
1061
Ver especialmente o item C do cap. 4 - Sobre a distinção ônus, modo e obrigação acerca dos efeitos da qualificação
jurídica do caráter afetado da subvenção como ônus jurídico que assume o beneficiário da qual depende a plena
eficácia [exigibilidade] do ato de subvenção (In: FERNÁNDEZ FARRERES. La subvención: concepto y régimen
jurídico, p. 417 et seq.).
1062
“Define-se o ônus, assim, como o instrumento através do qual o ordenamento jurídico impõe ao sujeito um
determinado comportamento, que deverá ser adotado se não pretender arcar com consequências que lhe serão
prejudiciais. Ou como um comportamento que o sujeito deve adotar para alcançar uma determinada vantagem,
que consiste na aquisição ou na conservação de um direito” (GRAU. A outorga onerosa do Plano Diretor de
São Paulo: ônus, não obrigação. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Município de Fortaleza). Ainda, GRAU.
Direito, conceitos e normas jurídicas, p. 118-119.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
328 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1063
RIVA. Ayudas públicas: incidencia de la intervención estatal en el funcionamiento del mercado, p. 176. No
mesmo sentido, German Fernandes Farreres: “Parece que não [é uma obrigação], dada a inexistência de um
direito subjetivo da Administração outorgante tendente a exigir coativamente, a proceder à execução forçada
da atividade pela qual se outorga a subvenção” (FERNÁNDEZ FARRERES. La subvención: concepto y régimen
jurídico, p. 420). É claro que existe relação obrigacional concreta entre fomentador e fomentado, mas não,
em sentido técnico, obrigação jurídica, precisamente porque não há credor delimitado que possa exigir o
cumprimento do acordado. No mesmo sentido, v. RIVA. Ayudas públicas: incidencia de la intervención estatal
en el funcionamiento del mercado, p. 177, nota de rodapé n. 77.
1064
“O dever jurídico consubstancia precisamente uma vinculação ou limitação imposta à vontade de quem por
ele alcançado. [...] Aspecto fundamental a aproximar a sujeição do dever — porque comum à essência de
ambos — é o referido à circunstância de que tanto um quanto o outro são impostos em razão da tutela de
interesses alheios ao dos sujeitos por eles alcançados” (GRAU. A outorga onerosa do Plano Diretor de São
Paulo: ônus, não obrigação. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Município de Fortaleza. Ainda, GRAU.
Direito, conceitos e normas jurídicas, p. 115. Em sentido contrário, Fernandez Farreres, para quem o dever jurídico
genérico seria qualificação que não faria nascer relação jurídica alguma (o que não seria o caso), e demandaria
concretização por ato administrativo particular, tornando-se, então, obrigação, e carreando a crítica já lançada
a essa categorização (FERNÁNDEZ FARRERES. La subvención: concepto y régimen jurídico, p. 420).
1065
Descontando-se, é claro, o efeito compelidor que a imposição de penalidades pelo descumprimento dos deveres
jurídicos possa ter sobre o agente fomentado.
1066
“Em alguns casos, com efeito, estes deveres operam em direções genéricas, de modo que os gravados por eles não
tenham, frente a si, um sujeito determinado que seja titular de um direito subjetivo propriamente tal a lhes exigir
o comportamento em que o dever consiste, senão, apenas, um poder destinado a atuar como garantia do efetivo
cumprimento do dever” (GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ. Curso de derecho administrativo II, p. 31).
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
329
1067
“A Administração poderá modificar e, inclusive, eliminar, no futuro, essa subvenção, porém as relações jurídicas
já nascidas de modo algum poderão ser afetadas e ter cessados seus efeitos, só esgotados quando o particular
tiver cumprido ou descumprido a carga jurídica com a qual se outorgara a subvenção”; e “A precariedade,
assim como disse Albi, não existe nem nas situações em que a discricionariedade é patente, de modo que a
subvenção, a outorga aceita da subvenção, constitui um efetivo e autêntico direito subjetivo do subvencionado”
(FERNÁNDEZ FARRERES. La subvención: concepto y régimen jurídico, p. 446-447).
1068
Criticando a suposta maior garantia ao administrado que traria a qualificação do fomento como relação
contratual, FERNÁNDEZ FARRERES. La subvención: concepto y régimen jurídico, p. 396-397).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
330 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
empresarial. Claro que há situações e situações. Apesar de muita crítica política, fato é
que nenhuma Administração Pública pode deixar que uma crise financeira se instaure,
e, para isso, podem existir circunstâncias que solicitem aporte público de capital em
favor de instituições privadas. Mas esses aportes são excepcionalíssimos, devem ser
reembolsados e só se justificam por limitados períodos de tempo.
O mesmo raciocínio vale para o fomento: salvo exceções, se a atividade empre-
sarial é economicamente insustentável, ela deve antes falir do que viver para sempre
graças a aparelhos. Num país cuja experiência histórica do fomento não é das melhores,
salientar que o fomento não se propõe a ser eterno chega a ser posicionamento recon-
duzível ao princípio da moralidade. A defesa da transitoriedade do fomento público,
contudo, não é lançada de nenhum ponto de partida ideológico, mas da constatação —
singela — do que ele é e de para o que serve: é apoio público a atividade privada. Se
a atividade é privada, ela não é pública. Resultado da sequência de afirmações acacia-
nas: esse apoio deve ser temporalmente limitado, do contrário, a atividade deixará de
ser privada, e se tornará algum hibridismo constitucionalmente inaceitável. Por isso,
inexistindo dado temporal previamente fixado, a necessidade do fomento deve ser
periodicamente checada.
Com razão, José Roberto Dromi (na doutrina nacional, Célia Cunha Mello1069):
As medidas de estímulo, a nosso juízo, devem revestir-se de um caráter transitório, na
dinâmica da política econômica que a Administração instrumentaliza. Em princípio, todas
as medidas de fomento ou estímulo, a nosso juízo, devem possuir um caráter transitório, já
que consideramos que um protecionismo indefinido não é nem teórica nem praticamente
aconselhável. Agora bem, assim como há medidas conjunturais que se aplicam de modo
transitório e com duração pré-estabelecida, há outras, pelo contrário, que permanecem
ininterruptamente e às quais acedem aqueles que reúnem certos requisitos. Tais medidas
perseguem “fins estáveis”, referentes à estrutura econômica, por exemplo, os diferentes
regimes de promoção industrial, mineral, florestal, agrária etc.1070
1069
MELLO. O fomento da Administração Pública, p. 38, 56.
1070
DROMI. Derecho administrativo económico, t. II, p. 152-153.
1071
“Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas
de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela
simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação
ou redução destas por meio de lei”.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
331
1072
Em prefácio ao livro de Vinícius Portela Martins, escrevemos: “Em contextos de mercantilização da arte,
de sociedade do consumo e de comodificação de quase todas as searas da vida, o Estado ainda possui papel
importante. É irônico: o Estado caminha num tenso, mas vital, fio da navalha entre ser a única instituição
capaz de empoderar expressões e discursos contramajoritários, e ser a maior e mais bem constituída ameaça
a eles. O consumidor de arte é, antes disso, um sujeito da arte, e, portanto, um cidadão da arte: se não se permite
a experimentação — e a experimentação só se permite quando se abre espaço ao erro, e, portanto, ao não
lucro e ao prejuízo —, a arte se reduz a analgesia pós-trabalho. Vira música de repetição. [...] Arte é mais que
o enfileiramento de produtos culturais para reforço de marca. Há nela um papel errático, experimental, que
simplesmente escapa à racionalidade empresarial. É por isso que o Poder Público é essencial — e é por isso que
vale a pena correr o risco do dirigismo, se o prêmio é a possibilidade da diferença artística” (MENDONÇA, José
Vicente Santos de. Apresentanção. In: MARTINS, Vinícus Alves Portela. Coleção de direito administrativo positivo:
leis especiais comentadas: volume 25, MP 2.28-1/2001 e Lei 12.485/2011. São Paulo, 2014, grifos no original).
1073
JORDANA DE POZAS. Ensayo de una teoría general del fomento en el derecho administrativo. In: JORDANA
DE POZAS. Estudios de administración local y general: homenaje al profesor Jordana de Pozas, p. 50 et seq. Essa
primeira classificação tem por base a forma de atuação sobre a vontade dos sujeitos fomentados. Observação
importante de Jordana de Pozas é a de que a escolha dos meios por que se vai realizar o fomento não é assunto
jurídico, mas de experiência, ligada à psicologia coletiva, às circunstâncias do momento etc. Enfim: a escolha
dos meios é uma questão que, como afirma Daniel Maljar, “cabe à política” (MALJAR. Intervención del Estado en
la prestación de servicios públicos, p. 284).
1074
“É impossível admitir esta classificação. Quando se tem em conta que não é tanto a finalidade perseguida
quanto o caráter formal (coativo ou persuasivo) da medida empregada o que determina sua qualificação
jurídica, é evidente que os chamados meios negativos não são, em sentido estrito, medidas de fomento. A
justificação da medida não pode se confundir com sua natureza jurídica” (GARRIDO FALLA. Tratado de derecho
administrativo. 10. ed., v. 2, p. 260.
1075
Mas, a respeito da tributação como fomento, ver o que se fala abaixo.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
332 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1076
No mesmo sentido, MELLO, Cunha. O fomento da Administração Pública, p. 89-90.
1077
Segundo Jordana de Pozas, essa classificação é a que é feita segundo o tipo de vantagens que são outorgadas.
1078
DROMI. Derecho administrativo económico, t. II, p. 153.
1079
“Ainda que estes reconhecimentos costumem vir acompanhados de alguma dotação econômica, dada a
crescente associação entre valor e importância econômica” (ORTEGA. Derecho administrativo económico, p. 169.
Ainda, ver GARRIDO FALLA; PALOMAR OLMEDA; LOSADA GONZÁLEZ. Tratado de derecho administrativo,
v. 2, p. 382: “De resto, a eficácia do meio empregado varia conforme a psicologia dos administrados; nossos
antepassados estavam dispostos a fazer os maiores sacrifícios para assegurar a perpetuidade do nome e da
estirpe, porém, hoje, buscam-se benefícios mais imediatos”.
1080
É até possível que algumas empresas busquem titulações e certificações, públicas ou privadas, tais como
“empresa amiga da criança”, como estratégia de marketing social. No entanto, não é a certificação que as leva a
agir daquela forma, mas possíveis vantagens empresariais. Logo, o Poder Público não fomentou uma atitude
empresarial, apenas demonstrou apreço por um comportamento, que foi assumido pela empresa com base em
outros fundamentos (que não especificamente a obtenção da certificação, objeto do “agir” público). Com algum
cinismo trágico, pode-se afirmar, até, que a empresa não ficou amiga das crianças nem pelas crianças nem
pelo título público, mas, diretamente, pelo lucro. O potencial do fomento honorífico continua, assim, residual.
Citando essa hipótese como exemplo de fomento honorífico, v. GARRIDO FALLA; PALOMAR OLMEDA;
LOSADA GONZÁLEZ. Tratado de derecho administrativo, v. 2, p. 385.
1081
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 349.
1082
Outro exemplo, esse próximo à realidade brasileira: a União, via Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento, lançou, em 2008, campanha publicitária — “Ele ajuda a humanidade há séculos. E você nunca
desconfiou que ele é um super-herói?” — destinada a promover o consumo de café.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
333
trazidas pela Lei das Organizações Sociais e a Lei das OSCIPs) — tudo o que significar
a atribuição legal de status diferenciado, sem a entrega de valores ou a realização de
operações financeiras, é meio jurídico de fomento público.1083 1084
Santamaría Pastor critica: não são “jurídicos”, mas econômicos; estão ultrapas-
sados; a maioria dessas medidas não persegue autênticos fins de auxílio à iniciativa
privada.1085 A primeira crítica é procedente: os estudiosos do Direito possuem certo fe-
tichismo com a palavra “jurídico”. Sem entrar em qualquer marxismo vulgar, afirme-se
que tudo nesse ponto é econômico, seja a atribuição direta de verba a empresa, seja a
cessão de bens públicos (o primeiro caso dispensa explicações; no segundo, há deso-
neração na planilha de custos). Por que numa hipótese o meio de fomento é “jurídico”
e na outra é econômico, se a finalidade — econômica — é idêntica?
Poder-se-ia falar, então, em meios de fomento direta e indiretamente econômicos,
sendo certo, entretanto, que não se diminuiu a imprecisão nem se incrementou a rele-
vância da classificação. Quanto a estarem ultrapassados, não se aplica ao Brasil, país em
que, mais e mais, imagina-se que a criação de externalidades econômicas juridicamente
bem-intencionadas seja solução para diversos males. Quanto a não perseguirem fins de
auxílio a atividades privadas de interesse público, não concordamos totalmente com
o comentário. Em alguns casos — como na cessão de servidores às Organizações da
Sociedade Civil de Interesse Público —, o caráter de “fomento a atividades privadas
de interesse público” é, até, destacado. A análise é caso a caso.
Os meios b) econômicos de fomento são os mais comuns e importantes.1086
Significam aporte imediato de recursos, e não, como no caso dos meios jurídicos, a
colocação do fomentado em posição jurídica que lhe faça auferir proveito.1087 As clas-
sificações não param: há meios econômicos (i) reais — a colocação de bens públicos à
1083
“É um conjunto de atuações que supõem a consagração, pelo Ordenamento, de uma situação mais favorável
para determinadas pessoas” (DROMI. Derecho administrativo económico, t. II, p. 155). “São meios jurídicos aqueles
que se caracterizam pela outorga de uma situação de privilégio, a qual determina que o sujeito fomentado se
beneficie da utilização de meios jurídicos excepcionais”; e “[...] Consiste ora em que a Administração utilize
seus poderes exorbitantes em benefício dos titulares da atividade (privilégio), ora na concessão direta a estes
de dispensas frente a leis e regulamentações administrativas de caráter proibitivo” (GARRIDO FALLA;
PALOMAR OLMEDA; LOSADA GONZÁLEZ. Tratado de derecho administrativo, v. 2, p. 383, 396). Em certo
sentido amplo de fomento público, semelhante ao utilizado por Diogo de Figueiredo Moreira Neto, e que,
relembre-se, não adotamos aqui, podem-se incluir as medidas de ação afirmativa — com o intento de dar
condições de possibilidade para que grupos sociais excluídos ingressem em universidades públicas e ocupem
postos de trabalho — dentro das medidas de fomento público social.
1084
Garrido Falla et al comentam, com razão, que grande parte desses exemplos clássicos não poderiam ser
tidos propriamente como fomento, na medida em que utilizariam meios coercitivos. Hipótese mais íntegra
de fomento jurídico seria, então, a liberação do gabarito de construção de prédios em região de cidade, com
o propósito de estimular seu desenvolvimento comercial ou industrial. V. GARRIDO FALLA; PALOMAR
OLMEDA; LOSADA GONZÁLEZ. Tratado de derecho administrativo, v. 2, p. 396. Por sua vez, Gaspar Ariño
Ortiz observa, também com razão, que essas vantagens, características do fomento jurídico, possuem caráter
excepcionalíssimo, na medida em que, em princípio, caminhariam em sentido contrário ao dos princípios
constitucionais da legalidade e da igualdade diante da lei. Daí que tais vantagens devem decorrer de expressa
previsão legal (ver nosso item sobre os critérios do fomento público) e estar justificadas (ORTIZ. Principios de
derecho público económico, p. 347).
1085
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 350-351.
1086
E isso talvez porque, “em nossa época, o principal estímulo (ideia essencial do conceito de fomento) é, sem
dúvida, o lucro” (DROMI. Derecho administrativo económico, t. II, p. 155).
1087
Ou, na definição de Jordana de Pozas, “são todos aqueles que, de um modo direto, determinam a percepção
de uma quantia ou a dispensa de um pagamento obrigatório” (JORDANA DE POZAS. Ensayo de una teoría
general del fomento en el derecho administrativo. In: JORDANA DE POZAS. Estudios de administración local y
general: homenaje al profesor Jordana de Pozas, p. 53).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
334 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
disposição do sujeito fomentado1088 (há, aqui, certa confusão com os meios jurídicos, o
que demonstra, na linha de Santamaría Pastor, a artificialidade dessas classificações) —;
(ii) fiscais (imunidades, isenções, regimes especiais de pagamento tributário); (iii)
creditícios, ou seja, as linhas privilegiadas de crédito (prazos maiores, juros menores,
não exigência de garantias) ou o fornecimento de meios para sua obtenção (por exem-
plo, o aval público para a obtenção de crédito no mercado financeiro); e, por fim, (iv)
econômicos propriamente ditos, resumidos à importantíssima figura da subvenção:
“atribuição patrimonial, a fundo perdido, de uma Administração Pública em favor de
um particular, afetando, inicialmente, a prestação, o desenvolvimento de uma atividade
do subvencionado”.1089 1090 1091
Ora: nada contra classificações, desde que úteis. A teoria jurídica não pode se
limitar a ser discurso legislativo indireto, digressões sobre naturezas jurídicas, coletânea
de classificações. Não nos parece que a classificação dos meios econômicos de fomento
signifique algo mais que seu valor-face de declaração de conteúdos. Sua utilidade é
residual.
Por outro lado, a introdução dos meios reais dentro do fomento é criticável.
A outorga de uso de bens públicos, dentro de contrato de concessão, nada mais é do
que uma das formas de retorno ao concessionário. A autorização ou a permissão do
1088
A respeito do ponto, veja-se GARCIA, Flávio Amaral. A utilização dos bens públicos como instrumento de
fomento e o processo de contratação com terceiros. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte,
ano 16, n. 182, p. 21-26, fev. 2017.
1089
FERNÁNDEZ FARRERES. La subvención: concepto y régimen jurídico, passim. Ver definição, ainda, da Lei
Geral de Subvenções da Espanha (Lei nº 38/2003): “Art. 1º Entende-se por subvenção, para os efeitos desta
lei, toda disposição, em dinheiro, realizada por quaisquer dos sujeitos contemplados no art. 3º desta lei, a
favor de pessoas públicas ou privadas, e que cumpra os seguintes requisitos: a) Que a entrega se realize sem
contraprestação direta dos beneficiários; b) Que a entrega esteja sujeita ao cumprimento de um determinado
objetivo, à execução de um projeto, à realização de uma atividade, à adoção de um comportamento singular,
já realizados ou por realizar, ou à ocorrência de uma situação, devendo o beneficiário cumprir as obrigações
materiais e formais estabelecidas; c) Que o projeto, a ação, conduta ou situação financiada tenha por objeto o
fomento de uma atividade de utilidade pública ou interesse social ou de promoção de uma finalidade pública”
1090
Existem outras classificações. A que se apresentou é a mais usual, tributada a Jordana de Pozas. Há outras,
mais ou menos úteis. Santamaría Pastor, por exemplo, apresenta classificação dos meios de fomento baseada
nas técnicas de aporte de capital. As transferências de capital podem ser diretas ou indiretas. Pela transferência
direta, conceitualmente a mais simples, ente público entrega recursos monetários destinados a financiar
atividade considerada de interesse público (a realização de filme), ou a compensar uma perda de arrecadação
(intempérie natural provoca a destruição parcial de cultivo), ou, ainda, a proporcionar ao beneficiário uma
renda pessoal que lhe permita levar a cabo determinada atividade (uma bolsa de estudos). Já a transferência
indireta de capital é mais variada; sua tipificação apresenta problemas “quase insolúveis”, afirma Santamaría
Pastor. Só se pode dizer que se trata da assunção, por órgãos ou entidades públicas, da realização de inversões
econômicas destinadas a melhorar o desempenho de determinadas empresas privadas. Campanhas publicitárias
de promoção do consumo de certos produtos; estabelecimento de sistemas de garantia de compras ou de níveis
de preços; a realização, pelo Poder Público, de atividades de pesquisa e de desenvolvimento tecnológico, o
que vai reduzir o gasto empresarial; a criação ou o financiamento público de fóruns comerciais, que diminuem
o custo de exibição de produtos (passarelas, feiras etc.) — tudo isso, numa lista não exaustiva, é exemplo de
transferência indireta. Santamaría Pastor ainda afirma que, de ambas as modalidades, as transferências indiretas
são as mais problemáticas, carecendo de regime legal unitário; costumam não estar previstas em norma jurídica
alguma, realizando-se comumentemente como medida da Administração Pública (negociada com o setor
econômico), baseada numa autorização orçamentária específica. Com seu uso cada vez mais comum, o ideal é
que haja formalização normativa crescente (Principios de derecho administrativo general II, p. 353-355).
1091
A doutrina nacional acompanha os critérios utilizados pelos autores espanhóis clássicos, que espelham a
criteriologia adotada por Jordana de Pozas. Veja-se, por todos, José Cretella Júnior: “Os incentivos podem ser
de natureza não fiscal, como ocorre nos casos de doações de áreas a empresas para exploração de atividades
econômicas — industriais, comerciais, de exportação e importação — ou de natureza fiscal, como as isenções de
tributos a empresas em pleno funcionamento, quando se trate de atividade que interesse à região ou ao país”
(CRETELLA JÚNIOR. Comentários à Constituição brasileira de 1988, p. 4047).
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
335
uso privado de bens públicos, por sua vez, é antes ordenação (do espaço público) ou
aquiescência com interesses privados do que meio autônomo de promoção de ativi-
dades.1092 Há, naturalmente, cessões de bens que são, de fato, meios de fomento. No
exemplo das OSCIPs, fornecer sala à entidade é forma de auxiliá-la em suas funções.
Mas daí a afirmar, por exemplo, que autorização precária de uso público, no interior
de colégio público, permitindo a instalação de pequena lanchonete, é atividade típica
de fomento, vai longa distância.
É também criticável a inclusão das medidas fiscais dentro das medidas adminis-
trativas de fomento. A razão é técnica: são medidas de política econômica, estabelecidas
diretamente por meio de lei, salvo no caso dos tributos que admitem alteração de alí-
quota por meio de ato administrativo.1093 Vale a ressalva, no entanto, de que a doutrina
brasileira, em sua maioria, ao falar de fomento, inclui, tradicionalmente, os benefícios
fiscais dentro da categoria.1094 Nesse ponto, somos minoritários.
A despeito, então, da duvidosa utilidade da classificação, defendemos, aqui, que
os meios do fomento público são, usualmente, os creditícios e os econômicos propria-
mente ditos (leia-se: a subvenção), e que os meios reais podem, por exceção, ser tidos
como tais. Já os meios fiscais não se enquadram como meios técnicos de fomento (são
política econômica). À parte disso, acreditamos que os meios honoríficos são de baixa
eficiência, e que a divisão entre meios jurídicos e econômicos é artificial; melhor seria
divisão entre meios direta e indiretamente econômicos.
1092
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 352.
1093
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 352. Outras razões: a) são regidas pelo
Direito Tributário, ao passo que o fomento é matéria de Direito Administrativo; b) o fomento público é ação que
auxilia indivíduo, empresa ou grupo de empresas, enquanto os benefícios fiscais são genéricos; c) um benefício
fiscal não transfere ao beneficiado nenhum bem, ao contrário das medidas típicas de fomento (pensemos no
exemplo arquetípico do fomento: a subvenção). Para posição intermediária, a favor de que se analise a estrutura
de cada benefício fiscal antes de se incluí-lo ou não no fomento, v. RIVA. Ayudas públicas: incidencia de la
intervención estatal en el funcionamiento del mercado, p. 135-142.
1094
Ver, por exemplo, Odair. Tramontin (Incentivos públicos a empresas privadas e guerra fiscal).
1095
VILLAR PALASÍ. Las técnicas administrativas de fomento y de apoio al precio político. Revista de Administración
Pública, p. 69: “A subvenção não se pactua. Solicita-se e é outorgada pela Administração”.
1096
Garrido Falla et al defendem que os casos em que o Poder Público, num contrato de concessão de serviço
público, acresce determinado valor ao que foi estabelecido como tarifa do concessionário, como contrapartida,
assim, ao limite tarifário fixado pelo poder concedente, tratar-se-iam de hipóteses de subvenções contratuais
(na medida em que seriam subvenções cuja concessão se deu por procedimento contratual). V. GARRIDO
FALLA; PALOMAR OLMEDA; LOSADA GONZÁLEZ. Tratado de derecho administrativo, v. 2, p. 391. No nosso
Direito Positivo, poder-se-ia pensar, como exemplo para o caso, na concessão patrocinada da Lei das Parcerias
Público-Privadas (art. 2º, §1º, Lei Federal nº 11.079/2004), “em que o concessionário remunera-se não apenas
pela cobrança de tarifas do usuário, mas, também, pelos pagamentos realizados pela Administração Pública”
(PRADO; RIBEIRO. Comentários à Lei de PPP: Parceira Público-Privada: fundamentos econômico-jurídicos,
p. 83). O “patrocínio” público seria, então, espécie de subvenção cuja concessão se deu por meio de contrato.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
336 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1097
Nesses casos, o ato administrativo funciona como ato-condição, quer dizer, como condição para que o beneficiário
da ajuda pública adquira o status de agente fomentado, na qualidade de bolsista, beneficiário da linha de crédito
etc. V. GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ. Curso de derecho administrativo II, p. 34.
1098
Até porque, “ainda que o fomento signifique ampliar a esfera do particular, também pode ter uma eficácia
indiretamente limitadora das condutas dos particulares competidores daquele favorecido pela ajuda” (ORTIZ.
Principios de derecho público económico, p. 349). Nesse caso, de intervenção em ambiente competitivo, muito
embora desorganizar a competição seja risco a se a evitar (ver item neste capítulo), é de se perguntar se o
fomento amplia a esfera de direitos de determinado agente econômico sob o risco de restringir a de outros
(concorrentes). Vale, então, a regra de que, “na dúvida, age-se em prol do fomento”, ou a regra de que “o
fomento é exceção à livre iniciativa, e, como as exceções são interpretadas de modo restritivo, na dúvida, não se
concede/amplia/permite o fomento”? A enunciação dessas “regras” já dá medida de sua artificialidade.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
337
1099
Na medida em que, naturalmente, àquele fomento, em específico, sejam aplicáveis regras exegéticas relativas a
ajustes, isto é, na medida em que aquele fomento seja mais ou menos “contratualizado”.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
338 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1100
“Como a prática das subvenções desenvolve-se à margem do Direito, o grande problema é que, à sua sombra,
floresce a fraude e a corrupção. Por um lado, por detrás de cada subvenção surgem alguns espertos que se
colocam na posição adequada e são subvencionados. São os ‘caça-prêmios’, que utilizam a subvenção como
veículo de enriquecimento, à custa do bolso dos contribuintes, e de modo contrário à justiça e à eficiência. [...]
Por outro lado, ao abrigo da discricionariedade em sua outorga, surge a permanente tentação de vincular a
subvenção ao favor político. As subvenções geram, assim, um novo caciquismo, praticado com dinheiro público.
Já não se compra o voto com o centavo, como antigamente, mas [...] com a promessa de reindustrialização detrás
da qual tudo cabe, ou com a manutenção de produções puramente subvencionadas”. V. ORTIZ. Principios de
derecho público económico, p. 370. A respeito do tema da corrupção em geral, v., AVRITZER et al. (Org.). Corrupção:
ensaios e críticas. Vale dizer que sempre existiram vozes que propõem a completa extinção dessa atuação do
Estado, sugestão, a nosso ver, equivocada; o que se impõe é propor critérios possíveis para sua “juridicização”,
mas não sua extinção.
1101
A política brasileira de reserva de mercado para bens de informática, introduzida pela Lei Federal nº 7.232/84
(a chamada Política Nacional de Informática; a lei foi revogada pela Lei nº 8.248/91, mas a reserva de mercado
durou os oito anos originalmente previstos, expirando em outubro de 1992), exemplifica o ponto: os antigos
computadores brasileiros, quando não cópias piratas de sistemas estrangeiros, estavam abaixo de seus similares
internacionais. O fim da reserva de mercado implicou o acesso de mais brasileiros aos produtos tecnológicos e
incrementou a qualidade dos bens. Ou seja: uma posição de fomento público, na modalidade fomento jurídico
(atribuição de monopólio temporário), que redundou, por seu tempo ou intensidade, numa situação de perda
de qualidade. V. PEDERSEN. The use of Historical Lessons in Studies of Economic Development. In: NORDIC
POLITICAL SCIENCE ASSOCIATION – NOPSA CONFERENCE, 14., especialmente p. 14-17. Outro exemplo
é a indústria automotora brasileira, que, antes da liberação comercial dos anos noventa, teve seus produtos
considerados, pelo então presidente da República, não carros, mas carroças.
1102
Indicando a possibilidade do fracionamento do pagamento das subvenções contra a justificação, por parte
do beneficiário, do cumprimento da atividade, v. GARRIDO FALLA; PALOMAR OLMEDA; LOSADA
GONZÁLEZ. Tratado de derecho administrativo, v. 2, p. 394.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
339
1103
Do contrário, poder-se-ia averiguar não a eficiência do particular no exercício da atividade, mas o desempenho
global da atividade fomentada — o que poderia mascarar um particular “acomodado” com seu status de
beneficiário. Exemplo do que vindicamos é a exigência, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal,
órgão vinculado ao Ministério da Educação, de relatórios periódicos, demonstrando a produtividade acadêmica
de seus bolsistas, como condição para a continuidade da ajuda.
1104
Ver, por todos, ESTOA PÉREZ. El control de las ayudas de Estado.
1105
Art. 92 do Tratado de Roma – 1. Salvo disposição em contrário do presente Tratado, são incompatíveis com
o mercado comum, na medida em que afetem as trocas comerciais entre os Estados-membros, os auxílios
concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam,
que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções.
1106
Posição moderada, vinda de autor que ninguém poderá acusar de antiliberalismo econômico, é a expressada
por Gaspar Ariño Ortiz: “[...] em certas ocasiões não bastará a figura do Estado regulador, e será necessária a
oferta, não intrusiva da liberdade nem distorcedora da competência, de incentivos econômicos para corrigir
as falhas do mercado, os desequilíbrios sociais e regionais” (Principios de derecho público económico, p. 372). Este
mesmo autor, pouco antes, apresenta quatro razões para a necessária persistência das ações de fomento: (i)
alguns bens fomentados são, no fundo, públicos ou semi-públicos, como a pesquisa industrial; (ii) a ocorrência
de externalidades como o meio ambiente; (iii) a assimetria informacional e a restrição de crédito que sofrem as
pequenas e médias empresas no mercado financeiro; (iv) a pobreza.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
340 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1107
Seria o caso de se exigir, inclusive, que o ato público de fomento tendencialmente limitador da livre concorrência
seja previamente autorizado pelo CADE, a teor do art. 88, §2º da Lei Federal nº 12.529/2011.
1108
ORTIZ. Principios de derecho público económico, p. 371.
1109
O condicionamento pode referir-se não só a aspectos gerais da vida social — cultura, economia —, mas também
a orientações político-eleitorais. Sobre os problemas constitucionais do Estado social, Ernst Forsthoff anotou que
“o indivíduo orienta-se relativamente pouco por princípios ou ideologias; não é primordialmente conservador
ou liberal ou socialista, senão agricultor, importador, pensionista, proprietário de imóveis”, assim, “é uma das
características do Estado Social que o eleitor, quando vai às urnas, oriente-se primeiramente em função de sua
existência individual concreta e vote em consequência” (FORSTHOFF. Problemas constitucionales del Estado
Social. In: ABENDROTH; DOEHRINGFORSTHOFF. El Estado Social, p. 55).
1110
Tanto que também há risco de que patrocínio privado implique direcionamento das liberdades artística ou
empresarial do empreendimento fomentado. Comentando sobre o tema, o diretor de teatro Amir Haddad
observa: “Empresário não é dirigismo? É. Qual empresário já quis colocar dinheiro num projeto do Tá na Rua?
Isso não é dirigismo? Se sopra para o seu lado está tudo bem, mas se deixa de soprar é dirigismo?” (DUARTE.
Lorca por Amir. Prestes a estrear ‘Bodas de Sangue’, diretor fala de Rouanet e dirigismos. O Globo.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
341
1111
FISS. A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública.
1112
O Supremo Tribunal espanhol, em decisão antiga (sentença de 07 de novembro de 1984), entendeu que
violava o princípio da isonomia uma regra, contida em resolução administrativa, que distribuía oitocentos
milhões de pesetas às centrais sindicais “em proporção à sua representatividade”. Algum tempo depois, a
sentença constitucional nº 20, de 14 de fevereiro de 1985, declarou inconstitucional a própria referência, na Lei
Orçamentária Anual, a uma distribuição desses fundos de acordo com a representatividade dos sindicatos.
Em nossa opinião, não há nada de errado, em princípio, em distribuir verbas segundo tais critérios práticos;
o problema pode estar no grau concreto de restritividade implicado pelo critério, e na eventual ausência
de “válvulas de escape”, isto é, da distribuição de verbas para entidades que não se encaixam nos limites
apresentados. Um bom exemplo de criterização objetiva e razoável — e, assim, constitucionalmente adequada —
é a atual repartição do fundo partidário, em que determinado percentual vai para os partidos mais bem votados,
e o restante é dividido, de forma isonômica, entre todos os partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral
(FERNÁNDEZ FARRERES,. De nuevo sobre la subvención y su regimén jurídico en el derecho español. Revista
de Administración Pública, p. 39-75, passim).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
342 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1113
FIORINI. La discricionariedad en la Administración Pública, p. 46-47. V., ainda, KRELL. Discricionariedade
administrativa, conceitos jurídicos indeterminados e controle judicial. Revista ESMAFE – Escola de Magistratura
Federal da 5ª Região, p. 184-185: “Entretanto, vale frisar, já nesse ponto, que a vinculação dos agentes
administrativos aos termos empregados pela lei apresenta uma variação meramente gradual. Por isso, o ato
administrativo ‘vinculado’ não possui uma natureza diferente do ato ‘discricionário’, sendo a diferença no grau
de liberdade de decisão concedida pelo legislador quantitativa, mas não qualitativa” (grifos no original).
1114
Há quem afirme, a nosso ver sem razão, que a força normativa dos princípios jurídicos (costuma-se citar, dentro
da lógica desse discurso, o princípio da moralidade, o da juridicidade, o da eficiência etc.) teria causado o
desaparecimento dos atos discricionários. Só haveria atos administrativos vinculados, mas vinculados, agora,
a uma legalidade entendida em sentido amplo. Afora aspectos técnicos — a linguagem jurídica simplesmente
não comporta tal grau de predeterminação fática — e práticos bastante evidentes, resta claro o potencial
antidemocrático e judicialesco da opinião.
1115
“Quase”, porém nunca absoluto, na medida em que a discricionariedade “significa uma condição de liberdade,
mas não de liberdade ilimitada”. “Só vai se exercer com base na atribuição legal, explícita ou implícita, desse
poder específico a determinados órgãos ou autoridades. Por outro lado, o poder discricionário sujeita-se não só
às normas específicas para cada situação, mas a uma rede de princípios que asseguram a congruência da deci-
são ao fim de interesse geral e impedem seu uso abusivo” (MEDAUAR. Direito administrativo moderno, p. 110).
1116
Há discussão doutrinária sobre a existência de ato administrativo completamente vinculado. No plano teórico,
e na vida prática, mas em casos incomuns, talvez o assunto faça sentido, até porque pode existir alguma
margem de manobra mesmo para o cumprimento de deveres extraídos de atos administrativos vinculados (cf.
MARTINS JUNIOR. A discricionariedade administrativa à luz do princípio da eficiência. Revista dos Tribunais).
Contudo, para o cotidiano usual, existem atos que, para todos os efeitos, são “inteiramente” vinculados, sem
que a afirmação signifique a adoção de nenhum ingênuo positivismo legalista na linha “o juiz é a boca da
lei”. Exemplo: cumpridos os requisitos de idade e de tempo de contribuição, o servidor público possui direito
subjetivo à aposentadoria. O ato de aposentadoria é, então, para todos os efeitos práticos, “inteiramente”
vinculado.
1117
Tradicionalmente, a doutrina administrativista brasileira defendeu que as licenças eram exemplo de ato
administrativo vinculado. Entretanto, não basta que o ato em análise seja nomeado, pela doutrina ou por
uma eventual legislação, como “licença” para que se transforme em exemplo de ato vinculado. Faz-se mister
a inexistência, na legislação que o institui, de termos linguísticos concessivos de poderes discricionários à
Administração Pública (“poderá”, “concederá conforme critérios de conveniência e oportunidade” etc.).
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
343
Exemplo desta última posição vem, no Brasil, com Marcos Juruena, para quem
“o setor e/ou a atividade previstos no plano [...] deveriam ser fomentados à iniciativa
privada por meio de atividade vinculada, sem a atribuição de privilégios, preferências,
favores e proteções fora de contexto associado ao planejamento [...]”.1118
Na doutrina estrangeira, afirmando que, em superação a um passado em que os
atos administrativos que viabilizavam as medidas de fomento público eram entendidos
como discricionários, Gaspar Ariño Ortiz defende que, “hoje, a doutrina assinala que
se trata de atos vinculados”.1119
Não é difícil entender o motivo pelo qual tais autores adotam a posição. Basta
reler o item anterior. Fomento público, no Brasil e em muitas partes do mundo, quase
sempre significou, junto à ocupação de cargos em comissão, o lugar por excelência
do patrimonialismo. Afirmá-lo como “vinculado” é pretender contribuir, a partir da
dogmática, para um uso tendencialmente mais aprimorado.
Boa parte da doutrina acredita que a atividade de fomento é discricionária. Assim,
por exemplo, Garrido Falla, Alberto Olmeda e Herminio Losada defendem tal caráter
discricionário, mesmo afirmando que, na outorga de muitas subvenções, aparecem
elementos vinculados. Desse modo, “a determinação do grau de discricionariedade está
determinado e concretizado na convocatória pública da correspondente subvenção”.1120
Fala-se, ainda, e como exemplo do poder discricionário do Estado, do “poder discricio-
nário de iniciativa”, no qual se inclui a possibilidade de o Poder Público adotar medidas
assistenciais e de fomento.1121
Nosso posicionamento é simples: o fomento público, se não pode ser considerado dis-
cricionário ou vinculado de modo estanque, está mais próximo da discricionariedade do que da
vinculação.1122 1123 Podem existir hipóteses nas quais a ajuda pública restará vinculada, ou
por uma norma legal específica, ou pelos termos do edital ou do contrato. Além disso,
1118
SOUTO. Direito administrativo regulatório, p. 99, grifos nossos. Em outra obra, o mesmo autor afirma que o
fomento é “atividade vinculada, não cabendo a atribuição de privilégios, preferências, favores e proteções,
sem que amparados por um contexto maior, voltado para o bem-estar de toda a coletividade; daí serem
indissociáveis o fomento do planejamento, sob pena de quebra do princípio da igualdade” (SOUTO. Aspectos
jurídicos do planejamento econômico, p. 54). Aparentemente concordando com o caráter vinculado do fomento, v.
Célia Cunha Mello (O fomento da Administração Pública, p. 85).
1119
ORTIZ. Principios de derecho público económico, p. 350. O destaque foi acrescentado.
1120
GARRIDO FALLA; PALOMAR OLMEDA; LOSADA GONZÁLEZ. Tratado de derecho administrativo. 12. ed., v.
2, p. 391.
1121
MEDAUAR. Direito administrativo moderno, p. 111. Ainda, MOREIRA NETO. Curso de direito administrativo, p.
525, grifos no original: “Finalmente, observe-se que, para o desempenho das funções administrativas de execução
do fomento público, inexistem privatividade, exclusividade, reserva legislativa ou administrativa, que inibam os
entes políticos de empregá-las ampla e intensamente [...]”.
1122
Decerto que não defendemos a insubmissão do fomento a qualquer controle público, muito menos entendemos
discricionariedade como sinônimo de “espaço de arbítrio”. Como disse o Tribunal Supremo Espanhol, “sua
[da ajuda pública] outorga como ato discricionário exige a necessária observância de um condicionamento
que elimina essa qualidade em sua concepção como atuação de pura disponibilidade” (v. FERNÁNDEZ
FARRERES. De nuevo sobre la subvención y su regimén jurídico en el derecho español. Revista de Administración
Pública, p. 50). Só afirmamos que, no comum da formulação e da execução de ajudas públicas, há mais espaço
para escolhas públicas, desde que razoáveis, proporcionais e legítimas, do que em muitas outras atividades
administrativas.
1123
“Ainda que, em algum caso de arbitrariedade clamorosa, produziu-se a anulação de um ato de concessão (ou
de denegação) por um tribunal, o normal é que os juízes renunciem a revisar, em seu fundamento material,
a adjudicação de uma subvenção, pois, de fato — dizem —, ‘é à Administração que cabe determinar, em
função das necessidades da economia nacional, as medidas que devem ser adotadas para conceder ajudas,
subvenções e créditos’ (assim, STS de 28 de maio de 1985). Desta forma, nas subvenções existe uma margem de
‘discricionariedade técnica’, e neste campo o controle judicial é muito limitado” (ORTIZ. Principios de derecho
público económico, p. 368).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
344 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1124
“Esta é a eficácia mínima dos comandos expressos na Constituição: a proibição, dirigida ao Estado, de inibir,
prejudicar e embaraçar as atividades que deve fomentar, ressalvada a tributação de caráter geral” (MOREIRA
NETO. Curso de direito administrativo, p. 524, grifos no original). “Ao Estado, por sua vez, fica vedado, comissiva
ou omissivamente, atuar de forma a prejudicar as atividades destacadas pelo ordenamento jurídico como objeto
de fomento público” (MELLO. O fomento da Administração Pública, p. 84).
1125
CARVALHO. Curso de direito administrativo: parte geral, intervenção do Estado e estrutura da administração,
p. 95: “Por força do referido princípio [da realidade], não pode qualquer norma administrativa ignorar o
mundo dos fatos a que se refere”. Ainda, v. MENDONÇA. O princípio da realidade como limite ao exercício
da discricionariedade administrativa: um novo nome para algumas velhas formas de se argumentar?. Justiça e
Cidadania, p. 24-25.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
345
1126
GARRIDO FALLA; PALOMAR OLMEDA; LOSADA GONZÁLEZ. Tratado de derecho administrativo. 12. ed., v.
2, p. 392.
1127
Há quem afirme que a revogabilidade não existe. Assim, Fernández Farreres: “A Administração outorgante
não pode, em consequência, tornar sem efeito a ajuda concedida, fora das causas fixadas que, previstas com
antecipação, hajam presidido o ato de outorga aceito pelo beneficiário, devendo-se concluir que o caráter
‘gracioso’ da ajuda [...] não dota a Administração de uma faculdade de livre revogabilidade a ponto de poder
deixar sem efeito, a qualquer momento, a ajuda concedida” (FERNÁNDEZ FARRERES. De nuevo sobre la
subvención y su regimén jurídico en el derecho español. Revista de Administración Pública, p. 51). Desenvolver
em Germán Fernández Farreres (La subvención: concepto y régimen jurídico, p. 443 et seq. Ainda, nesse sentido,
partindo do caráter contratual de eventual subvenção, Cassagne: “O certo é que, se a fonte da subvenção deriva de
um contrato, sua concessão deixa de ser discricionária e o particular terá ação para reclamar seu cumprimento ante a Justiça
[...]” (CASSAGNE. Derecho administrativo. 7. ed., t. II, p. 348, grifos nossos). Preferimos adotar a posição clássica,
favorável à revogabilidade do fomento, porém mitigá-la com exceções.
1128
CASSAGNE. Derecho administrativo. 7. ed., t. II, p. 392.
1129
De toda sorte, é incomum que tanto os acordos quanto as leis garantam direitos a renovações ou a aumentos
automáticos, em especial porque isso iria de encontro à ideia de eficiência econômica no desempenho da
atividade fomentada.
1130
Adaptado a partir de GONZÁLEZ PÉREZ. El princípio general da la buena fe en el derecho administrativo, p. 69-
74. Segundo a literalidade da apresentação do autor, existem cinco requisitos para a aplicação do princípio da
proteção da confiança legítima do administrado em relação à Administração Pública: a) o ato da Administração
deve ser suficientemente conclusivo para produzir no afetado a confiança de que a Administração atua
corretamente, ou de que é lícita a atuação que ele mantém em relação ao Poder Público, ou, ainda, de que suas
expectativas, como interessado, são razoáveis; b) a Administração deve gerar sinais externos, que, inclusive sem
necessidade de serem juridicamente vinculantes, orientem o cidadão a uma determinada conduta; c) um ato
da Administração que reconhece ou constitui uma situação jurídica em cuja continuidade o particular podia
confiar; d) deve existir uma causa idônea para provocar a confiança legítima do particular afetado, a qual não se
poderá gerar por mera tolerância, negligência ou ignorância da Administração Pública; e) o administrado deve
haver cumprido todos os deveres e obrigações que lhe incumbem no caso. V., ainda, CASTILLO BLANCO. La
protección de confianza en el derecho administrativo; SCHONBERG. Legitimate Expectations in Administrative Law. Na
doutrina brasileira, v. ARAÚJO. O princípio da proteção da confiança: uma nova forma de tutela do cidadão diante
do Estado. Sob o prisma do Direito privado, cf. SCHREIBER. A proibição de comportamento contraditório: tutela da
confiança e venire contra factum proprium, p. 131-162.
1131
Discute-se, nas doutrinas alemã e suíça que tratam do princípio da proteção da confiança legítima, sobre se a
indenização é a melhor solução jurídica para os casos de violação àquela norma, ou se a saída seria a anulação
do ato administrativo violador. No caso do fomento, por suas particularidades, a indenização parece a única
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
346 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
alternativa (CALMES. Du principe de protection de la confiance légitime en droit Allemand, communautaire et Français,
especialmente p. 457 et seq., item C - Indemisation.
1132
Há certa concessão teórica neste argumento, porque o propósito da redução do imposto de importação não é
exatamente o de despromover determinada atividade — no caso, a montagem de carros no país —, mas o de,
pelo incremento na concorrência trazido pelo acesso fácil aos carros importados, forçar a indústria nacional a
baixar seus preços e melhorar seu nível de qualidade.
1133
V., por exemplo, STF, RE nº 224.285-9.
1134
Analisando o problema a partir da regra da irretroatividade tributária, v. ÁVILA. Sistema constitucional tributário,
p. 149.
1135
Essa é hipótese ilustrativa, portanto, de completa inversão da regra da revogabilidade, o que se admite apenas
na presença de atos explícitos de vontade, seja da vontade legislativa ou da vontade das partes em um acordo.
1136
O STF decidiu, nos Mandados de Segurança nºs 27160, 27253 e 27165, confirmando posição do Conselho
Nacional de Justiça, que não é possível modificar os critérios seletivos de concurso público no curso de sua
realização. Embora concurso público não seja fomento público, as razões de fundo da decisão — “o edital é
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
347
a lei do concurso” — também são aplicáveis ao nosso tema. A única possibilidade de revisão dos critérios de
concessão durante o período de seleção dar-se-ia mediante a devolução do prazo de inscrição, e, ainda assim, a
Administração deveria assumir a reparação de eventuais gastos que os participantes houvessem realizado, em
função do certame, até a data da alteração.
1137
Tais critérios refletem escolha pessoal, porém justificada, à luz do contexto teórico aqui elaborado. Outros
autores farão outras escolhas. Assim, Ariño Ortiz sustenta, como “princípios” do fomento (o que se pode ter
como critérios, na nossa terminologia), a legalidade, a livre concorrência e a eficiência do gasto público (Principios
de derecho público económico, p. 349 et seq.) Já Ignácio de la Riva defende, por exemplo, como “princípios jurídicos
reitores da atividade subvencional” (idem), entre os materiais, o princípio da subsidiariedade, o princípio da
igualdade, o princípio da proporcionalidade e o princípio da eficácia; como princípios formais, o princípio da
legalidade e da reserva de lei, o princípio da transparência e o princípio do controle (RIVA. Ayudas públicas:
incidencia de la intervención estatal en el funcionamiento del mercado, p. 193 et seq). Recentemente, na doutrina
brasileira, Maria Hermínia Pacheco e Silva Moccia, a partir de inspiração tirada do presente livro, apresentou os
seguintes critérios: igualdade, motivação e transparência (parâmetros formais); eficiência e suas implicações e
razoabilidade (parâmetros materiais). V. MOCCIA, Maria Herminia Pacheco e Silva. Parâmetros para a utilização
do fomento econômico: empréstimos pelo BNDES em condições favoráveis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
348 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1138
ORTIZ. Principios de derecho público económico, p. 349. A favor de que os atos ampliativos de direitos estejam
fora do âmbito do princípio da reserva de lei, ver, por todos (GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ. Curso de
derecho administrativo II, p. 577): “Por outro lado, os atos ampliativos não necessitam, em relação ao destinatário,
de uma cobertura legal superior, sem prejuízo de que, com frequência, as regras de garantia do gasto público,
ou de igualdade ante a Lei, ou de outro caráter, possam impô-la para condicionar estritamente sua emissão”.
1139
“Pois bem, em que pese tratar-se de medidas consistentes em estímulos positivos de caráter voluntário, em
qualquer caso estas medidas devem ter cobertura legal prévia que habilite expressamente a Administração,
dado incidirem de forma clara nos direitos de liberdade de empresa e de igualdade, do que decorre sua
submissão ao princípio da legalidade” (GIMENO FELIÚ. Legalidad, transparencia, control y discrecionalidad
en las medidas de fomento del desarrollo económico (ayudas y subvenciones). Revista de Administración Pública,
p. 167).
1140
EISENMANN. O direito administrativo e o princípio da legalidade. Revista de Direito Administrativo, p. 54-55.
1141
RIVA. Ayudas públicas: incidencia de la intervención estatal en el funcionamiento del mercado, p. 223.
Os atos concretos de dispensação de ajudas, como mencionamos, estão, via de regra, mais próximos da
discricionariedade do que da vinculação; a existência de leis com esse conteúdo mínimo é, por assim dizer, seu
registro mínimo de vinculação, que pode aumentar ou diminuir conforme as circunstâncias.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
349
Muito embora tal realidade possa corresponder aos sonhos de muitos adminis-
tradores, bem ou mal intencionados — os bem intencionados acreditarão que desbu-
rocratização significa total ausência de formalismo, os mal intencionados preferem não
deixar rastro —, a verdade é que se faz necessária a existência de formalidades prévias e
concomitantes à concessão do fomento. Formalidade, desnecessário dizer, não é forma-
lismo excessivo, “gaiola de ferro” da burocracia, amontoado de papel. É a medida entre
a segurança, tanto do administrado quanto da Administração, e a eficiência no serviço.
Tais formalidades, ainda, deverão ser expostas à supervisão e à crítica do olhar público.
Daí nosso primeiro critério formal: (i) transparência e procedimentalização do fomento.
Nem todos os procedimentos concessivos de ajudas públicas serão iguais, mas
todos deverão estar estabelecidos à data da seleção. Deverão ser públicos, não apenas
em sentido burocrático-formal, mas também em sentido material: não deve bastar a
publicação, em órgão oficial, de edital de seleção de propostas de apoio à música; deve
haver divulgação em revistas, jornais, sites, mídias sociais e ambientes frequentados
por possíveis interessados. Transparência, contudo, não é sinônimo de invasão de
privacidade. Se, por exemplo, constam dados empresariais sigilosos numa solicitação
de fomento (a empresa abre seu balanço ou indica planos empresariais em algum do-
cumento encartado aos autos), a publicidade daqueles autos restará limitada, mesmo
que tão somente quanto ao conteúdo sigiloso.1142
A existência de procedimento concessivo prévio, e o acesso e o conhecimento,
por todos os interessados, de todas as suas fases é, numa síntese, o conteúdo mínimo
do primeiro critério formal do fomento público. Este critério, a par de possibilitar a
incidência de controles sobre o ato concreto do benefício, sendo, assim, derivação do
princípio democrático,1143 é tido, por Ariño Ortiz, como uma das únicas formas de se
submeter o fomento ao mundo do Direito: “Por isso, já que é impossível o controle sobre
as questões de fundo, a submissão ao Direito da atividade de fomento deve realizar-se
por intermédio do procedimento e do órgão gestor”.1144
Se não concordamos integralmente com o autor — em nossa opinião, é possível,
ainda que bastante complicado, o controle sobre questões materiais —, a existência de
procedimento transparente é critério da maior importância. Apenas por ele, muitas das
arbitrariedades que compõem a história do fomento no Brasil jamais teriam ocorrido.
Além de outorgado por intermédio de um procedimento administrativo transpa-
rente, o fomento deve promover, à medida que as circunstâncias daquele objeto fomen-
tado assim o permitam, a (ii) competitividade. É claro que uma ação de fomento não é uma
licitação; a competitividade é valor-instrumental, existente na medida em que permita a
seleção de um particular apto a desempenhar melhor a atividade. Todavia, ao contrário
1142
O STF, no Mandado de Segurança nº 21.729/DF, entendeu que o sigilo bancário não se aplicava, quando o
requisitante das informações era o Ministério Público Federal, a operações de financiamento creditício realizadas
pelo Banco do Brasil na condição de “executor da política creditícia e financeira do Governo Federal”. Logo, há
exceções quanto à abrangência subjetiva desse sigilo: o MPF pode requisitar dados e documentos relacionados
a seleções e instrumentalizações formais de fomento público.
1143
“Um novo tratamento para o tema [da discricionariedade] acarretaria a atenção, não tanto para o ato discricionário
como resultado do exercício de poder, mas para o processo formativo da decisão ou para o conhecimento dos
mecanismos decisionais. Daí resultaria a preocupação com regras organizacionais e instrumentos pelos quais
se realizaria o conhecimento e consideração dos diversos interesses; e, ainda, a preocupação com os meios de
assegurar informação ao público, o acesso da população às decisões da Administração. [...] A democracia não se
exaure na eleição, na existência de vários partidos políticos e no funcionamento do legislativo; deve transpor o
limiar da Administração e aí vigorar” (MEDAUAR. O direito administrativo em evolução, p. 197).
1144
ORTIZ. Principios de derecho público económico, p. 373.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
350 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
do que usualmente ocorre numa licitação, aqui o particular pode, justamente, precisar
da ajuda pública de forma a adquirir melhores condições de ser competitivo (junto ao
mercado em geral, não em relação ao processo seletivo instituído pela Administração).
Ou seja: o interessado pode precisar da ajuda para ser mais competitivo e, portanto,
não se lhe poderia exigir uma máxima competitividade antes disso.
Assim, o desenho da seleção pública deve ser tal que, de modo competitivo,
selecione aquele agente que tenha condições de melhor desempenhar a atividade a partir
do fomento público, ainda que, não necessariamente, ele já seja o melhor dentro do setor.
Trata-se de selecionar o agente privado que comprove, da melhor forma possível dentre
todos os outros agentes privados colocados em igualdade formal e material de condi-
ções, que vai realizar, dentro dos parâmetros esperados pela Administração, a atividade
fomentada. Não se trata, no entanto, de uma “engenharia de obras prontas”. É preciso
saber dosar a esperada eficiência na execução do objeto fomentado com a necessidade
do fomento. Uma boa estratégia para isso pode ser, por exemplo, dividir os processos
de seleção por faixas de faturamento das possíveis empresas interessadas, de forma a
que apenas entidades assemelhadas concorram entre si.
É claro que nem sempre é possível o disparo de um processo competitivo. Nesses
casos, a regra é o livre acesso ou, se isso também não for possível (o que provavel-
mente ocorrerá, pois os recursos públicos não são infinitos, e o número de potenciais
interessados em ajudas públicas não costuma ser pequeno), pode-se adotar o critério
cronológico do ingresso dos requerimentos junto à repartição competente. É critério
simples, mas, na falta de outro melhor, e desde que não haja fraudes, dos mais eficazes
na garantia da isonomia.
Outro critério formal importante é a (iii) objetividade. A competitividade deve-se
basear em critérios objetivos. Construções como “a critério da Administração Pública”,
ou que se refiram a padrões ou pautas subjetivas de julgamento, devem ser evitadas.
Caso isso não seja possível — nem todas as opções administrativas envolvidas no
exercício do fomento público conseguiriam ser tão objetivas —, que, ao menos, o ônus
da decisão seja delegado a um painel de julgadores. Um grupo de juízes, quando bem
escolhidos, inclusive a partir de critérios como a diversidade de posicionamentos polí-
ticos, culturais e ideológicos, pode produzir decisões com acréscimo de racionalidade
em relação a juízos singulares.1145
1145
É importante que os painéis sejam compostos por julgadores com bakcgrounds diversos. Painéis compostos de
forma homogênea frequentemente significam intensificação de desvios cognitivos, o que redunda em piores
decisões. Acerca da importância da heterogeneidade na composição de grupos julgadores, v. Cass Sunstein
(Why Societies Need Dissent, especialmente, p. 111-144, cap. 7 - The Law of Group Polarization). Há ainda a
questão de que órgãos colegiados costumam reduzir a possibilidade de corrupção, se não por gerarem maior
chance de descoberta da fraude, então porque aumentam os custos do suborno (POSNER. Law and Economics
in Common-Law, Civil-Law, and Developing Nations. Ratio Juris, p. 78.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
351
de tal quantia que, isolada ou conjuntamente com outras subvenções, ajudas, ingressos
ou recursos públicos, supere o custo da atividade subvencionada”.
O fomento não deve servir, por si mesmo, como fonte de enriquecimento do
agente fomentado. Significa dizer que o montante deve ser quantificado na exata pro-
porção da demanda do negócio ou da atividade. Nem mais, nem menos. Não há nada
de errado em que o empresário persiga e obtenha lucro com a atividade (pelo contrário:
dependendo do caráter da atividade, isso até deve ser buscado), mas a fonte de lucro não
deve advir do fomento. Esse critério material é a fonte imediata da obrigação de devolu-
ção de quantias sobrantes à execução do projeto; do contrário, poder-se-ia pensar, até
mesmo, num enriquecimento indevido do particular, por falta de causa legítima.1146
Diretamente conectado com a discussão sobre o pragmatismo no Direito é o
próximo critério material: a análise da b) eficiência do gasto público em sua concessão.
Pode-se dizer que analisar a eficiência do gasto é fazer incidir um filtro de praticidade
junto à seleção das características subjetivas do particular a ser fomentado. Não se
pode gastar dinheiro com quem não possui condição de dar algum retorno, social ou
econômico, à sociedade. Não estamos falando de lucro, mas da realização de algo tão
diáfano e indefinível quanto sentido no dia a dia: o bem comum.
Aqui, o que vale é algo próximo à adequação, assim como tratado nas explica-
ções da proporcionalidade: é uma relação lógica entre a finalidade proposta e o meio
a ser empregado. Só que não lidamos com relação de capacidade lógica — “ser capaz
de fazer” —, mas, além disso, acrescente-se o “ser capaz de bem fazer” ou, em alguns
casos, o “ser o melhor a ser capaz de fazer”.1147 Busca-se afastar, com a seleção pública,
os lunáticos, os nefelibatas, os cronicamente incapazes, aqueles que só buscam drenar
o Erário em troca de adulação de seus egos, sem produzir nada de útil ou de relevante.
Decerto que esse filtro tem de ser realista o suficiente para ser útil, e largo o bastante
para que não exclua quem mais precisa do fomento (v. debate à frente).
Algumas indicações: as receitas que constituem o orçamento tanto do Comitê
Olímpico Brasileiro (COB) quanto do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), as quais
decorrem de fundos desportivos, receitas de concursos de prognósticos, doações e
patrocínios, prêmios de loterias não reclamados (art. 65 da Lei Federal nº 9.615/98),
devem ser, por questão de proximidade com o objeto fomentado, descentralizadas
para as diversas entidades esportivas nacionais filiadas aos comitês. O COB e o CPB, ao
analisarem o projeto de cada entidade — que é a instrumentalização prévia ao repasse
1146
V. art. 884 do Código Civil. Desenvolver em, Maria Cândida do Amaral Kroetz (Enriquecimento sem causa
no direito civil brasileiro contemporâneo e recomposição patrimonial). Ainda, Cledi de Fátima Manica Moscon (O
enriquecimento sem causa e o novo Código Civil brasileiro). A seguir Luís Manuel Menezes Leitão, ter-se-ia, aqui,
enriquecimento sem causa por prestação: “O enriquecimento por prestação respeita as situações em que alguém
efetua uma prestação a outrem, mas se verifica uma ausência de causa jurídica para que possa ocorrer, por
parte desse, a recepção dessa prestação. [...] Verifica-se, nesta sede, uma situação de enriquecimento sem
causa se ocorre a ausência de causa jurídica para a recepção da prestação que foi realizada. A ausência de causa
jurídica deve ser definida em sentido subjetivo, como a não obtenção do fim visado com a prestação. Haverá, assim, lugar
à restituição da prestação, quando for realizada com vista à obtenção de determinado fim, e tal fim não vier a ser obtido”
(MENEZES LEITÃO. O enriquecimento sem causa no novo Código Civil brasileiro. Revista do Centro de Estudos
Judiciários do Conselho da Justiça Federal, p. 28, grifos nossos).
1147
A análise acerca de qual deve ser o meio logicamente mais adequado para a realização da finalidade pretendida
pela medida estatal é, precisamente, o que a sub-regra da adequação não significa: seu sentido, a julgar pela
lição de Virgílio Afonso da Silva, é o de censurar medidas que são logicamente inadequadas para a obtenção
dos fins postulados, ou, pelo menos, que sejam incapazes de fomentá-los. Não se trata de juízo acerca da
eficiência da medida. “Dessa forma, uma medida somente pode ser considerada inadequada se sua utilização
não contribuir em nada para fomentar a realização do objetivo pretendido”. A menção à regra da adequação foi,
em nosso texto, tão somente aproximativa (SILVA. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, p. 14-15).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
352 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1148
ORTIZ. Principios de derecho público económico, p. 354.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
353
1149
FINKELSTEIN. A indústria do holocausto.
1150
Entre os muitos críticos de Finkelstein, contam-se Alan Dershowitz (The case for Israel), Peter Novick (The
Holocaust in American Life) e Omer Bartov (Hitler’s Army: Soldiers, Nazis and War in the Third Reich).
1151
Como os da Revisão Editora, do editor Siegfried Ellwanger Castan, cuja ilegalidade/inconstitucionalidade foi
confirmada a partir de decisão do STF em 2003 (Habeas Corpus nº 82.424/RS). Sobre o caso, v. MILMAN (Org.).
Ensaios sobre o anti-semitismo contemporâneo: dos mitos e da crítica aos tribunais. Ainda, cf. JESUS. Anti-semitismo
e nacionalismo, negacionismo e memória: revisão editora e as estratégias da intolerância (1987-2003).
1152
O exemplo vem do documentário norte-americano Bigger Stronger Faster, que, ao recriminar o estilo de vida
que subjaz ao consumo de esteroides anabolizantes na cultura dos Estados Unidos (“seja o melhor a qualquer
preço”) e suas implicações morais em relação ao fair play nos esportes competitivos, pretende desmitificar
alguns dos riscos de saúde envolvidos no consumo dessas substâncias (BELL. Bigger Stronger Faster).
1153
REGHELIN. Redução de danos: prevenção ou estímulo ao uso indevido de drogas injetáveis. O debate
contemporâneo a respeito da descriminalização da maconha também nos soa como possível campo de teste do
argumento. Seria possível ajuda pública para uma Marcha da Maconha? Deixo a pergunta para o leitor.
1154
O debate acerca da possibilidade de fomento público a obras pornográficas revela apenas uma das facetas da
discussão sobre se o Estado deve permitir a pornografia. De um lado, conservadores alegam que a pornografia
deve ser proibida, por possuir conteúdo que, em sua visão, é moralmente corrompido. A defesa liberal clássica
afirma que discursos envolvendo indivíduos adultos, mentalmente sãos, em atos consensuais, a despeito de
seu baixo valor artístico, ou mesmo de seu mau gosto, não podem ser censurados apenas com base na opinião
de outros (sobre esse valor ou sobre sua eventual perniciosidade à sociedade). Apenas atos que efetivamente
causem mal podem ser restringidos. A visão feminista, aproximando-se, quanto às conclusões práticas, da
opinião conservadora, acredita que a pornografia deve ser proibida, mas porque agride e reduz a mulher,
objetificando-a e naturalizando comportamentos de subjugação e de domínio. Alguns liberais mais recentes,
concordando com as feministas, entendem que a pornografia, se não causa prejuízos diretos, é atentatória às
ideias de liberdade e autonomia, devendo ser proibida. Para a visão feminista, v. CHESTER; DICKEY (Ed.).
Feminism and Censorship. A posição conservadora sobressai em BAIRD; ROSENBAUM (Ed.). Pornography:
Private Right or Public Menace?. A visão liberal “renovada” aparece em Caroline West (The free Speech
Argument Against Pornography. Canadian Journal of Philosophy). V., ainda, DWORKIN. Temos um direito
à pornografia?. In: DWORKIN. Uma questão de princípio, p. 497-554. O debate a respeito do tema toca com
questão maior, a respeito da legalização da prostituição. Quanto a este último assunto, referência no Brasil é a
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
354 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
instigante dissertação de mestrado de Marcio Senra (FARIA. A prostituição no Brasil no século XXI: razões para
sua regulamentação).
1155
Numa lista não exaustiva, e para ficarmos apenas nos filmes, poderíamos citar, nessa categoria, O Último Tango
em Paris, de Bernardo Bertolucci; Salò ou Os 120 dias de Sodoma, de Pier Paolo Pasolini; Calígula, de Tinto Brass;
Brown Bunny, de Vincent Gallo; 9 Songs, de Michael Winterbottom.
1156
Caso interessante, em cuja resolução citou-se, aliás, o presente livro, foi a discussão sobre o fomento público,
autorizado pela ANCINE, à série Mulher Arte, exibida pela HBO. A ANCINE fomentou a primeira temporada
por meio de autorização para compensação tributária. Na segunda temporada, a agência negou o pedido, ao
fundamento de que a obra seria pornográfica. O produtor negou, considerando-a apenas “erótica”. A série, em
rigor, caminha numa zona cinzenta entre a pornografia soft e um erotismo exotique de exportação. Um artista
plástico desenha mulheres despidas ou semi-despidas, enquanto lhes faz perguntas de índole sexual (“como é
que você depila? você tira tudo?”). Apoiamos a decisão da Diretoria Colegiada da ANCINE, eis que o propósito
da série acaba sendo o de destacar a mulher por sua atratividade sexual, mostrando-se secundária a narrativa
turístico-cultural. Mas o caso é, de fato, controverso.
1157
Sem fazer qualquer juízo de valor, e tão somente apresentando outra questão interessante, que se reconduz não
apenas ao debate acerca do fomento público (embora, nesse caso, de modo específico), mas também, de modo
geral, à discussão sobre os limites da liberdade de expressão: em 1989, o fotógrafo americano Andres Serrano
recebeu prêmio público, bancado pelo Centro Nacional de Apoio às Artes dos EUA (“National Endowement
of Arts” – NEA), com obra que consistia numa fotografia de crucifixo mergulhado num pote de urina (“Piss
Christ”). O prêmio despertou reação de setores religiosos e políticos. Alguns alegaram que o pagamento do
prêmio violaria a separação entre Estado e Igreja. Como parte da reação à controvérsia, o Congresso dos EUA
aprovou lei, em 1990, que obrigava o NEA a levar em consideração, em seus apoios, “standards gerais de
decência e respeito à diversidade de crenças e valores do público americano”. Quatro artistas performáticos,
uma delas Karen Finley, famosa por cobrir seu corpo nu com chocolate durante apresentações, questionaram
a constitucionalidade da lei junto à Suprema Corte, alegando, para tanto, violação à Primeira Emenda, porque
a norma suprimiria a liberdade de expressão artística e serviria como justificativa para a discriminação em
desfavor de pessoas com ideias heterodoxas. Depois de uma vitória na 9ª Corte de Apelos, na qual se anotou que a
frase “decência e respeito à diversidade de crenças e valores do público americano” seria inconstitucionalmente
vaga e restringiria o ponto de vista artístico, a Suprema Corte reverteu o julgamento anterior e declarou a
constitucionalidade da norma. A propósito da polêmica artística, v. CASEY. Sacrifice, Piss Christ and Liberal
Excess. Arts & Opinion. Notícia sobre a decisão judicial — Finley versus National Endowement of Arts (1998) —
pode ser encontrada no sítio do Washington Post (BISKUPIK. ‘Decency’ can be Weighed in Arts’ Agency
Funding. 26 June 1998).
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
355
1158
O critério da razão pública é próximo ao da objetividade, mas se foca no aspecto possibilidade de produção de
consenso estável a partir da escolha realizada, enquanto este se centra na possibilidade da realização de escolha
não subjetiva.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
356 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1159
“[...] a outorga de subvenções não pode se configurar como um meio ou mecanismo tendente a condicionar —
restringindo-o de maneira indevida — o exercício dos direitos fundamentais, e isso por intermédio da imposição
de exigências jurídicas que incidem diretamente com o conteúdo essencial de tais direitos” (FERNÁNDEZ
FARRERES. De nuevo sobre la subvención y su régimen jurídico en el derecho español. Revista de Administración
Pública, p. 73).
1160
Exceto, é claro, o fomento negativo.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
357
1161
FERNÁNDEZ FARRERES. De nuevo sobre la subvención y su régimen jurídico en el derecho español. Revista
de Administración Pública, p. 75.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
358 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
A NEORREGULAÇÃO
1162
O pressuposto operacional deste capítulo é o de que a regulação pública seja uma função autônoma em relação
ao poder de polícia. Como se sabe, esta não é, no fundo, nossa posição (cf. capítulo 2 da segunda parte).
1163
Haverá algum benefício na função de descarga da argumentação jurídica com o uso do neologismo? Acredita-se
que sim.
1164
Uma possível comprovação dessa alegação é o sucesso dos mercados de previsão (predicion markets). Tratam-se
de sites de previsão de eventos futuros e incertos, em que os interessados apostam dinheiro em determinado
resultado. O mais famoso deles é o Intrade (<www.intrade.com>), que, a despeito de haver sido fechado pelo
governo americano, apresentou resultados mais precisos a respeito do resultado da eleição presidencial
americana de 2012 (Barack Obama vs. Mitt Romney) do que as pesquisas de opinião tradicionais. Quando há
dinheiro próprio em jogo, as pessoas produzem informação mais acurada do que quando não há (ARROW et al.
The Promise of Prediction Markets. Science).
1165
É claro que a eficiência na transmissão da informação não é o único fator a ser considerado quando da adoção
de um sistema de preços. Alguns sugerem, por exemplo, que uma bolsa de apostas em relação a atividades
terroristas conseguiria reunir informação de modo mais eficiente do que os sistemas tradicionais de inteligência.
Por outro lado, muitas pessoas rejeitam tal ideia, considerando-a bizarra. Michael Sandel traz uma série de
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
360 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
de informação derivada do know how. Sistemas de preços são bons para transmitir
informações como “houve safra recorde de uva no sul do Brasil”, mas são incapazes
de transmitir informações da espécie “como se produz o tradicional vinho do vinhedo
Fombrauge”.1166
De certa forma, é bom que seja assim. A inovação — tecnológica e social — sur-
ge, também e especialmente, a partir dos espaços deixados pelo acaso. Um regulador
inteiramente informado é um regulador poderoso demais.1167
Sob a perspectiva de o regulador público, no entanto, não ter acesso a toda a
informação relevante, ou não conseguir operá-la, é problemático. É fonte de erros, que
acabam sendo repassados para toda a sociedade. Um regulador desinformado é um
regulador ruim.
O problema da (ii) adesão é parente próximo ao da informação. O regulador
deve contar com algum nível de adesão dos regulados à sua pauta de ação. O mercado
regulado aceita o regulamento proposto pela agência, ou a norma é objeto de rejeição?
Decerto que críticas sempre existirão, e faz parte do agir estratégico do mercado regulado
que existam. O ponto, contudo, é outro. Trata-se de diferença de grau. Um regulamento
radicalmente contestado pelo mercado é, potencialmente, um regulamento inefetivo.1168
Grosso modo, o problema da informação é enfrentado por meio de duas espécies
de soluções. A saída é ou buscar a centralização da informação, ou assumir sua disper-
são. O problema da adesão é enfrentado por meio de instrumentos que ou incluam os
regulados no processo de elaboração do ato regulatório, ou busquem ultrapassar as
barreiras psicológicas que podem gerar a rejeição da ação. Os próximos itens detalham
os pontos.
exemplos em que a introdução de sistemas de mercado soa contraintuitiva, em seu livro What Money Can’t Buy
(SANDEL. What Money can’t Buy: the Moral Limits of Markets). O problema parece se inserir num debate mais
amplo a respeito dos limites morais da economia dos incentivos. Ver, quanto a isso, Ruth W. Grant (Strings
Attached: Untangling the Ethics of Incentives).
1166
HAYEK. The Use of Information in Society. The American Economic Review.
1167
Sobre o temário da inovação especificamente no Direito Administrativo, cf. MENDONÇA, José Vicente Santos
de. Direito Administrativo e Inovação: limites e possibilidades. Mimeo.
1168
Por qual motivo o Poder Público haveria de propô-lo ou de mantê-lo? Aqui, novamente, ou por um problema de
informação — o Poder Público não possui domínio sobre os pressupostos de fato —, ou por uma determinação
de vontade dos órgãos deliberativos e/ou executivos, o Estado acredita que sua mantença produzirá um
efeito social global positivo. O Poder Público acredita que a rejeição poderá ser superada no futuro, que seus
benefícios superem seus prejuízos, ou que há alguma razão simbólica para a manutenção da regulação.
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO
361
1169
SUNSTEIN. The Office of Information and Regulatory Affairs: Myths and Realities, p. 3. A versão consultada
para a elaboração deste capítulo foi o primeiro rascunho. O artigo, com algumas alterações, foi publicado, sob
o mesmo título, na Harvard Law Review (v. 126, 1838, [2013]).
1170
SUNSTEIN. The Office of Information and Regulatory Affairs: Myths and Realities, p. 4.
1171
Discute-se, há algum tempo, na Administração Federal, a respeito da criação de uma estrutura de supervisão
regulatória. O PRO-REG, inclusive, produziu estudos a respeito do tema. Chegou-se a cogitar de inclui-la num
projeto de Lei Geral das Agências Reguladoras. Contudo, a última versão deste projeto de lei, e que ora está em
tramitação no Congresso — o Projeto de Lei do Senado nº 52/2013 —, não inclui a criação de tal estrutura.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
362 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1172
Trata-se da incidência da heurística da disponibilidade na avaliação dos riscos da regulação. Ver discussão à
frente no texto principal.
1173
Essa é, em termos de racionalidade econômica, a razão pela qual não existe diferença entre sacrifício e limitação
de direitos anteriormente a uma ponderação para o caso concreto (ver capítulo 2 da segunda parte): está-se
aplicando uma lógica formal a uma realidade dinâmica. O resultado é, quase sempre, equivocado, porque
ingênuo. Uma digressão ilustrativa a respeito do ponto foi realizada quando se analisou o caráter probabilístico
das consequências a serem assumidas para a incidência de nosso “princípio” do pragmatismo (item 1.6).
1174
A hipótese aqui levantada, e que depende de verificação empírica, é a de que mecanismos de centralização de
informação acabam sendo mais refratários à produção de novas regulações do que estratégias de dispersão de
informação.
1175
VERMEULE. Local and Global Knowledge in the Administrative State. Harvard Public Law.
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO
363
1176
Na fase conceitual e constitucional, discutia-se o que eram as agências reguladoras, seu encaixe constitucional, e
os limites e abrangência dos poderes que, desde então, foram-lhes atribuídos. Lugares-comuns do debate eram
a legitimidade democrática das agências, a discussão sobre seu poder normativo, e a polêmica sobre a existência
de mandato de seus dirigentes. Atualmente, vive-se fase eficacial, com discussões sobre qualidade da regulação,
governança regulatória, Análise de Impacto Regulatório, propostas de metrificação da interação entre agências,
Judiciário e Legislativo etc.
1177
Não é correto, no entanto, afirmar que a jurisprudência brasileira haja resolvido por inteiro o problema do poder
normativo das agências. Assim que as agências reguladoras federais surgiram, em meados dos anos 90, havia
decisões judiciais que rejeitavam a validade dos regulamentos normativos por elas editados. Hoje, na maioria
dos casos, tais regulamentos são validados pelo Judiciário, ainda que a lei nos quais se baseiem a eles se refira
de modo bastante indireto. Mas veja-se a ADI nº 4.874/DF. Ela ataca resolução da ANVISA que proibiu o uso de
ingredientes nos cigarros (acidulantes, sabores etc.), alegando que a vedação deveria vir por intermédio de lei, e
não por regulamento. Em 13 de setembro de 2013, a ministra Rosa Webber suspendeu cautelarmente a eficácia
da proibição. Parece que o STF está adotando o que os americanos chamam de “big deal principle”, tal como
enunciado no voto condutor do justice O’Connor no caso Food & Drug Administration v. Brown & Williamson
Tobacco Corp (U.S. 120 [2000]). Este juiz afirma que, “em casos extraordinários, pode haver razão para hesitar
antes de concluir que o Congresso pretendeu tal delegação implícita [para a agência]”. “Estamos confiantes
de que o Congresso não poderia ter pretendido delegar uma decisão de tamanho significado econômico e
político para uma agência de forma tão críptica”. Ou seja: o princípio do big deal significa que não se presume
que assuntos importantes hajam sido delegados, pelo legislador, para que a agência possa deles normatizar.
Tratar-se-ia de matéria que se espera que o Congresso delibere por meio de lei. No entanto, no voto vencido
do caso, os justices Breyer, Stevens, Souter e Ginsburg discordam do raciocínio, afirmando que as eleições de
presidentes da República são justamente sobre isso — sobre big deals. Quando o eleitor elege Bush ou Bill
Cliton, ele também elege um programa regulatório sobre questões importantes, e, portanto, as agências por eles
compostas possuem capacidade para editar normas que sigam tais programas. No Brasil, a questão, como se
disse, ainda está em aberto.
1178
PIERCE JR. Rulemaking Ossification is Real: a Response to Testing the Ossification Thesis. The George Washington
Law Review.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
364 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1179
Pode-se especular, no entanto, que as agências reguladoras brasileiras não estejam efetivamente ossificadas por
razão singela: elas não levam as audiências e consultas públicas a sério. Se isso for verdade — o que depende de
verificação empírica, mas é bem plausível —, ter-se-ia um problema (a má qualidade das consultas e audiências)
que acaba sendo solução a outro possível problema (a ossificação do processo regulatório normogenético).
1180
V. SEELYE. Flooded with Comments, Officials Plug Their Ears. The New York Times. Nesta matéria, a jornalista cita
Chris Wood, conselheiro do Serviço de Florestas da administração Clinton, o qual afirma que o comportamento
típico das agências é “criar um plano de ação, anunciar um período de consulta pública, e então agir como
quiser” (typical agency behaviour is to “develop the plan you want, announce a public comment period and then do what
you want to do”).
1181
VERMEULE. Local and Global Knowledge in the Administrative State. Harvard Public Law, p. 15.
1182
Uma forma institucional de resolver o dilema interesses econômicos privados organizados versus interesses
públicos/sociais desorganizados — o que pode implicar irresolúveis problemas de ação coletiva destes — é
evitar o modelo de agências ligadas a objetos econômicos setoriais, e criar agências de jurisdição geral. É mais
difícil capturar a agência se você torna difusos os destinatários da regulação, já que isso agora lhes impõe,
também, problemas de ação coletiva (ainda que tais problemas não sejam incontornáveis: o que ocorre é que as
indústrias se organizam em associações ideológicas de ação comum).
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO
365
informação. Aceitar ou rejeitar antenas de celulares pode ser visto não só como assunto
de engenharia de telecomunicações, mas também como tema urbanístico, de saúde
pública, de desenvolvimento econômico; talvez a aceitação ou rejeição do ponto deva
depender, afinal, também do escopo, e não só (e talvez nem mesmo especialmente) da
profundidade da análise.1183 1184
Portanto, consultas e audiências públicas têm utilidade na obtenção da adesão
dos regulados. Mas não convém aceitá-las acriticamente.
Diante do que se disse, pode-se cogitar de três modelos de consultas/audiências
públicas na prática brasileira. Trata-se de tipos ideais.1185 Em concreto, as diversas con-
sultas e audiências dificilmente poderiam ser reconduzidas a um só tipo, mas conjugam
aspectos pertencentes a vários modelos.
O primeiro modelo é o da (i) insinceridade deliberativa. Aqui, as decisões já estão
tomadas. A Administração Pública trata a consulta/audiência como formalidade a ser
ultrapassada rumo à decisão, que todos já sabem qual será. O sentido da consulta/
audiência é duplo: legitimação retórica; blindagem em face de revisões judiciais. É
modelo comum, no Brasil e no mundo, especialmente quando o debate envolve te-
mas moralmente carregados (por ex., consulta e audiência públicas, promovidas pela
ANVISA, a respeito de proibição de sabores em cigarros) ou em que exista forte pressão
política direcionada a certa decisão (ex., governos intervencionistas debatendo medidas
intervencionistas; governos liberais promovendo debates sobre medidas liberalizantes).
Ao passo em que bastante praticadas, as audiências e consultas insinceras são,
também, ilegais. A questão é realizar a prova, que é bastante difícil.
O segundo modelo é o modelo (ii) informativo. A Administração Pública não
possui ideia precisa do que fazer. Quer ouvir os regulados, e, a partir daí, identificar
soluções. É, de todos, o modelo mais aberto a inputs dos administrados.
O modelo da obtenção de informação é o adotado nas audiências públicas que
ocorrem junto ao Supremo Tribunal Federal em ações objetivas.1186 Os juízes do Supremo
1183
Este ponto também pode vir a ser corrigido por uma perspectiva mais centralizadora no que toca ao problema
da informação. Ver discussão acima.
1184
Há outro aspecto na contraposição entre agências reguladoras e Parlamento. A defesa do modelo das agências
se fazia por uma contraposição entre dois modelos caricaturais: o modelo pré-agências era uma caricatura de
sistema político, e o modelo agencificado era uma idealização de modelo técnico. Ora, quando se comparam
uma caricatura e uma idealização, é claro que a última sai vencendo. No entanto, a verdade é que não existe
uma divisão em sentido forte entre técnica e política. Aliás, o ideal democrático é que se coordenem propósitos
políticos a uma viabilização técnica. É possível encontrar argumentos técnicos para variados propósitos
políticos (a palavra “técnica” não equivale à palavra “precisão”). Também é verdade que a alegação de se estar
agindo tecnicamente pode esconder a pretensão de impor, para além do debate democrático, opiniões isoladas
de burocracias estatais. O argumento defendia o poder normativo das agências pressupondo que elas agiriam
de modo exclusivamente técnico, ao passo que o Congresso atuaria de forma apenas política. A realidade, no
entanto, é que tais extremos raramente se apresentam no cotidiano da produção de normas.
1185
A noção de tipo ideal é associada à obra de Max Weber. Leia-se, nas palavras do próprio, uma definição para
o termo: “Um conceito ideal é normalmente uma simplificação e generalização da realidade. Partindo desse
modelo, é possível analisar diversos fatos reais como desvios do ideal. Tais construções (...) permitem-nos ver
se, em traços particulares ou em seu caráter total, os fenômenos se aproximam de uma de nossas construções,
determinar o grau de aproximação do fenômeno histórico e o tipo construído teoricamente. Sob esse aspecto,
a construção é simplesmente um recurso técnico que facilita uma disposição e terminologia mais lúcidas”.
WEBER, Max. As rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: QUINTANEIRO, Tania; BARBOSA, Maria
Ligia de Oliveira; MONTEIRO DE OLIVEIRA, Márcia Gardênia. Um toque de clássicos: Marx, Durkheim, Weber.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. p. 103.
CAMARGO, Margarida Lacombe; LEGALE, Siddharta; JOHANN, Rodrigo. As audiências públicas no STF nos
1186
modelos Gilmar e Fux: a legitimação técnica e o papel do cientista no laboratório dos precedentes. Disponível
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
366 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
não devem possuir pré-julgamentos sobre os casos que irão decidir, e realizam audiên-
cias públicas para se municiar de informações.
Por fim, há o modelo (iii) deliberativo. Neste modelo, a Administração Pública
possui proposta de ação, mas quer ouvir os regulados, e, a partir daí, confirmar, adaptar
ou desistir dela. É modelo que corre o risco de descambar para o modelo insincero, se
a Administração Pública não contiver o viés de confirmação de seu plano. Teste simples
para se verificar se se adotou o modelo deliberativo é analisar se houve mudanças
significativas da proposta inicial, ou, mesmo, sua rejeição.
Pois é entre a insinceridade, a informação e a deliberação que corre nossa prática
de partipação na formação da vontade administrativa. Em todos os casos, contudo, a
Administração busca a adesão dos administrados.
em: <http://www.ufjf.br/siddharta_legale/files/2014/07/Margarida-Siddharta-Rodrigo-As-audi%C3%AAncias-
p%C3%BAblicas-no-STF-nos-modelos-Gilmar-e-Fux.pdf>.
1187
GIGERENZER; TOOD; ABC RESEARCH GROUP. Simple Heuristics that Make us Smart.
1188
O estudo clássico é “Judgment Under Uncertainty: Heuristics and Biases” de Amos Tversky e Daniel Kahneman
(Science).
1189
Exercício clássico: imagine que João seja tímido, fechado em si mesmo, ainda que prestativo. João é alguém que
procura, antes de tudo, ordem e estrutura. É mais provável que João seja um bibliotecário ou um fazendeiro? A
resposta correta é fazendeiro — existem mais fazendeiros do que bibliotecários no mundo. No entanto, muitos
creem que João seria provavelmente um bibliotecário apenas porque ele se pareceria com um.
1190
Num experimento de Kahneman e Tversky, perguntava-se a um grupo qual o percentual de países africanos
que participavam da ONU. Antes da resposta, rodava-se uma roda com números que variavam entre um e
cem, mas que estava “maceteada” para cair sempre ou no número 10 ou no número 65. Quando a roda parava
de girar no número 10, os participantes respondiam que, na média, vinte e cinco por cento dos países da ONU
eram africanos. Quando a roda parava em 65, a média das respostas era de que os países africanos compunham
quarenta e cinco por cento da ONU. Em outro experimento, pedia-se a dois grupos diferentes de estudantes
do ensino médio para, em cinco segundos, estimar os resultados de (8 x 7 x 6 x 5 x 4 x 3 x 2 x 1) ou de (1 x 2 x 3
x 4 x 5 x 6 x 7 x 8). O primeiro grupo chutava números maiores (estimativa média de 2.250) do que o segundo
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO
367
(estimativa média de 512). A sugestão é a de que os estudantes tenham sido guiados por uma âncora mental
associada aos primeiros números de sua respectiva sequência.
1191
É por isso que, em geral, preocupa-se mais com furacões logo após haver-se passado por um; e é por isso que
riscos mais recentes ou mais espetaculares são mais combatidos do que riscos mais triviais ou mais distantes
no tempo. Piscinas domésticas são mais perigosas do que depósitos de lixo nuclear, mas o público em geral não
parece acreditar nisso (BREYER. Breaking the Vicious Circle: Toward Effective Risk Regulation).
1192
Uma taxonomia de vieses pode ser encontrada em Matthew Rabin (Psychology and Economics. Journal of
Economic Literature).
1193
Estudos explicam a estrutura cognitiva que gera tais desvios usando um modelo bipolar. É como se existissem
dois sistemas de pensamento dentro de nós: um responsável pela intuição e por processos mentais automáticos;
outro, responsável por processos conscientes e deliberados. Cabe ao sistema automático a maioria das tarefas
cotidianas. Sua domesticação, pelo sistema consciente, leva tempo e requer esforço. As interações entre os
sistemas são o que geram os vieses (GILBERT. Thinking Lightly about Others: Automatic Components of the
Social Inference Process. In: ULEMAN; BARGH. (Ed.). Unintended Thought, p. 189-211).
1194
Outros exemplos podem ser obtidos em Cass Sunstein (Simpler: the Future of Government).
1195
THALER; SUNSTEIN. Nudge: Improving Decisions about Health, Wealth, and Happiness, p. 6.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
368 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1196
Para uma resposta negativa a esta última indagação, v. SCHWEIZER, Mark. Nudging and the principle of
proportionality: obliged to nudge? Mimeo.
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO
369
menos custoso do que outras opções de atuação pública, e, assim, seria comandado pelo
princípio da eficiência? Também a abordagem que propõe — baseada em psicologia
experimental — é-nos ainda majoritamente estranha.1197 Seria, entretanto, interessante
replicar entre nós, no Brasil, as pesquisas realizadas no exterior, para verificar a efeti-
vidade das técnicas e identificar alguma possível variância cultural.1198
Antes disso, no plano teórico e teórico-prático, é importante analisar se a proposta
sobrevive, inócua ou adaptada, às críticas. Outra dúvida seria se nossa realidade rejeita
o paternalismo não libertário como a sociedade americana o faz. Faz sentido falar num
empurrãozinho à brasileira? Quais os vieses a se priorizarem na nossa realidade?
Seja como for, o fato é que ações públicas baseadas em dados da economia com-
portamental são instrumento que vêm sendo usado na promoção da adesão à regulação.
Desde a primeira edição deste livro, o cenário mudou relativamente pouco.
Surgiram, é verdade, interessantes dissertações e teses a respeito do assunto, mas a
adoção (ou a consciência da adoção) de políticas públicas baseadas em economia com-
portamental ainda é baixa.
Vejamos dois exemplos. O primeiro, bem notório, foi a proibição, por lei do estado
do Espírito Santo (Lei Estadual nº 10.369/2015), da exposição de saleiros em mesas
de bares e restaurantes naquela unidade federativa. A lei, no entanto, foi declarada
inconstitucional, em maio de 2015, pelo TJ-ES, sob o argumento de violação à livre
iniciativa e à razoabilidade.1199 Outro exemplo, menos famoso, é o art. 1º da Lei Federal
nº 12.618/2012, que cria a modalidade automática de adesão aos fundos de previdência
complementar dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da União.1200 Trata-se de
regra default em favor da adesão à previdência complementar dos servidores federais.
Ela é objeto da ADI nº 5.502/DF, ajuizada pelo PSOL.
Ora: em nenhum dos casos indicou-se que as estratégias de ação foram motivadas
por inspiração da economia comportamental. E, como se vê, ambas estão sendo objeto
de duras críticas. De resto, não há, no Brasil, ao que se saiba, unidade governamental
que trate de políticas públicas sob a ótica do comportamento real dos administrados.1201
Até agora, importamos o debate acadêmico, mas esquecemos de trazer na mala a in-
teireza da prática.
1197
Mas não o será em alguns anos. A formação da maioria dos operadores institucionais do Direito — juízes,
advogados, promotores —, e a de seus professores, deu-se num período de limitação epistêmica do Direito.
Não se trata, sequer, de saber se se era positivista ou antipositivista: as fronteiras do Direito eram limitadas. Não
mais. Hoje, a revolução da informação, a internacionalização da academia, associados ao cansaço dos temas
tradicionais, estão tornando a formação em Direito mais aberta a métodos e conteúdos heterodoxos.
1198
A hipótese da variância cultural no uso de nudges é secundada por uma série de estudos comparativos.
Desenvolver em José Vicente Santos de Mendonça (The Good, the Bad, and the Ugly: Assessing Nudging
Initiatives From a Brazil-USA Comparative Perspective).
1199
Processo nº 0037560- 21.2016.8.08.0000, Tribunal de Justiça do Espírito Santo.
1200
Art. 1º (...) §1º - Os servidores e os membros referidos no caput deste artigo que tenham ingressado no serviço
público até a data anterior ao início da vigência do regime de previdência complementar poderão, mediante
prévia e expressa opção, aderir ao regime de que trata este artigo, observado o disposto no art. 3º desta Lei.
§2º - Os servidores e os membros referidos no caput deste artigo com remuneração superior ao limite máximo estabelecido
para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social, que venham a ingressar no serviço público a partir do início
da vigência do regime de previdência complementar de que trata esta Lei, serão automaticamente inscritos no respectivo
plano de previdência complementar desde a data de entrada em exercício. §3º - Fica assegurado ao participante o direito de
requerer, a qualquer tempo, o cancelamento de sua inscrição, nos termos do regulamento do plano de benefícios.
1201
No Reino Unido, o Behavioral Insights Team — conhecido também como Nudge Unit — fez parte do Gabinete
do Primeiro Ministro, e hoje é instituição privada, prestando serviços, além de ao Reino Unido, também aos
Estados Unidos e à Austrália. Disponível em: <http://www.behaviouralinsights.co.uk>. Acesso em: 30 jul. 2017.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
370 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1202
O pioneirismo dos EUA na AIR se dá com a criação, nos anos 70, do Office of Management and Budget, e,
posteriormente, do Office of Information and Regulatory Affairs, ambos ligados à Casa Branca. Em 1974, no
governo Nixon, publica-se a Ordem Executiva nº 11.821, a qual obriga a avaliação do impacto inflacionário
das medidas regulatórias. Contudo, o grande marco normativo da AIR, nos EUA, é a Ordem Executiva nº
12.291, editada durante o governo Reagan, a qual introduziu, no Ordenamento americano, o uso do método
da análise de custo-benefício, com o propósito de reduzir o fardo regulatório, aumentar a accountability das
agências reguladoras, estimular a supervisão presidencial do processo regulatório e diminuir as regulações
duplicadas ou conflituosas. É de se registrar, ainda, a Ordem Executiva nº 12.498, editada no governo Reagan,
que estabeleceu um programa anula de regulação; a Ordem Executiva nº 12.866, de 1993, já no governo
Clinton, que, revogando as Ordens anteriores, estabeleceu procedimentos e métodos a serem seguidos na AIR
norte-americana; e, finalmente, a Ordem Executiva nº 13.563, de janeiro de 2011, atualmente em vigor, e que
estabeleceu novos propósitos para as AIR. Sobre o tema, cf. FONTELLES. Avaliação de impacto regulatório e sua
aplicação no Brasil, f. 96-100. Ainda, MORALL III. An Assessment of US Regulatory Impact Analysis Programme.
In: DEIRGHTON-SMITH et al. Regulatory Impact Analysis: Best practices in OECD Countries. Afirmando que
só a partir da Ordem Executiva nº 12.291 é que os EUA passaram a se preocupar com a Análise de Impacto
Regulatório com esse nome, v. HAHN et al. Assessing Regulatory Impact Analysis: the Failure of Agencies to
Comply with Executive Order 12,866.
1203
V. MIRANDA; BARTHOLOMEU; LIMA. A análise de impacto regulatório como novo instrumento de gestão
pública no Brasil.
1204
Mas qual seria o encaixe jurídico das análises de impacto regulatório atualmente feitas? Elas podem se
reconduzir a cinco topoi. Eis nossa proposta.
a) À eficácia positiva do princípio constitucional da eficiência administrativa. Tal princípio não apenas invalida ações
públicas ineficientes — eis sua eficácia negativa —, mas também impõe o dever de planejamento ao Estado. E
tal planejamento se faz, na seara da regulação pública, também e especialmente por intermédio de análises de
impacto.
b) Ao teste da proporcionalidade em sentido estrito. O terceiro teste da proporcionalidade consiste em ponderar os
custos e benefícios da ação ou rejeição de certa linha de ação. Ou seja: trata-se de proceder a uma análise de
custo-benefício, método típico da análise de impacto.
c) Ao princípio democrático e ao dever de motivação dos atos administrativos. A análise de impacto, em boa parte
de suas etapas, requer a participação dos regulados. Embora a análise de impacto não produza, por si só, a
legitimidade democrática, ela pode auxiliar nisso, ao amenizar “silêncios políticos” e permitir que grupos de
interesse — por exemplo, trabalhadores — contestem os dados oficiais e produzam suas próprias avaliações.
Essa possibilidade de participação plural conflui para efetivar o princípio democrático.
Por outro lado, a análise de impacto serve como instrumento de controle do Estado. Só é possível controlar
os rumos daquilo que é fundamentado técnica e juridicamente. A análise de impacto é procedimento útil por
fomentar a tomada de decisões com conhecimento de causa e não com base em conjecturas ou fundamentalismos.
Além disso, atualmente todos os atos administrativos que limitem ou condicionem direitos — como o serão boa
parte dos atos regulatórios —, nos termos do art. 50, da Lei Federal nº 9.784/99, e do art. 93, X, da Constituição
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO
371
economistas próximos a tal pensamento, compatível com uma teoria padrão da análise
econômica do Direito. Ela é o que o bom senso de um economista médio recomendaria
fazer: coletar o máximo de dados, buscar meios de quantificar custos e consequências,
sopesá-los, optar por uma linha de ação a partir dos resultados.1205
A última frase adianta as cinco etapas da análise de impacto. São elas: (i) a qualifi-
cação e a coleta de dados a respeito das possíveis consequências dos atos regulatórios; (ii) a
adoção de critério de valoração a respeito de tais consequências; (iii) a avaliação delas; (iv)
a adoção, correção ou rejeição do ato; (v) seu monitoramento.1206 Analisemo-las brevemente.
(i) A qualificação trata do estabelecimento de filtro dos dados relevantes.
Recomenda-se visão abrangente. É para isso que deve ser transparente: reguladores
devem declinar o que estão considerando como resultados, e, ato seguinte, devem se
abrir à contribuição dos regulados. Depois de qualificar dados, é hora de coletá-los.
Diversas estratégias podem ser utilizadas: consulta a especialistas, entrevistas, apli-
cação de questionários, uso de grupos de discussão controlada, acesso à experiência
internacional, revisão da literatura especializada, realização de painéis com empresas.
A adoção de (ii) critério de valoração dos dados coletados é a próxima etapa. Eis o
momento de estabelecer parâmetros a propósito do que será considerado consequência
positiva, e o que será visto como consequência negativa. Etapa complexa, em que se impõe
que os critérios sejam universalizáveis, não mutuamente excludentes, e compatíveis
com a Constituição.
Reflexo da etapa anterior é (iii) a avaliação das consequências à luz dos critérios.
A partir daí, não teremos mais meras consequências, mas consequências positivas —
benefícios — e consequências negativas — custos — associadas à adoção (ou à rejeição
ou à alteração) da regulação que se pretende implantar ou que se revisa. O resultado é
(iv) a adoção, a revisão ou a rejeição de uma linha de ação regulatória.
Por fim, (v) há o monitoramento dos resultados da regulação. É importante veri-
ficar se o curso dos acontecimentos está se dando de acordo com o esperado, e, se for
o caso, realizar ajustes.
da República, devem ser motivados. E o que é motivar? É declinar as razões de fato e de Direito que justificam
a prática dos atos. Isto se consegue, em se tratando de atos regulatórios, especialmente por intermédio das
análises de impacto.
d) A uma analogia com os instrumentos de medição de impacto ambiental. Institutos análogos à Análise de Impacto
Regulatório são o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), referidos no
art. 225, §1º, IV da Constituição da República, na Lei Federal nº 6.938 /81 e na Resolução nº 1/86 do CONAMA.
O procedimento — tanto do EIA quanto do RIMA — busca identificar as externalidades e o custo-benefício
do empreendimento que se pretende levar a cabo. Ora, nada impediria a extrapolação do argumento até a
admissão de relatórios de impactos regulatórios em sentido amplo. A própria Lei nº 6.938/81, vista de forma
global, indica a necessidade de mensurar os impactos sociais e humanos do projeto.
e) A uma referência normativa. Não há lei das AIRs. O que mais próximo há é o Decreto Federal nº 4.176, de 2002,
que estabelece, em seus Anexos I e II, conjunto de questões a serem analisadas ao momento da elaboração de
atos normativos. Além disso, o decreto cria um passo a passo, em forma de questionário, com vistas a auxiliar
na exposição dos fatos que motivaram o ato. Considerando que muitos atos regulatórios são, antes disso, atos
administrativos normativos, o Decreto seria aplicável, por analogia, como base normativa das análises de
impacto.
1205
O Projeto de Lei do Senado nº 52/2013 — o projeto da Lei Geral das Agências Reguladoras — conta com
dispositivo que institui, de modo geral, a Análise de Impacto Regulatório, delegando o detalhamento a
regulamento. E a Medida Provisória nº 791, de 25 de julho de 2017, que criou a Agência Nacional de Mineração,
estabelece a mesma exigência em seu art. 20, caput.
1206
MENDONÇA. Análise de impacto regulatório: o novo capítulo das agências reguladoras. Justiça e Cidadania,
p. 30. Em sentido semelhante, mas mencionando três etapas — o processo de tomada de decisão da política
regulatória, a implementação e o monitoramento —, v. VALENTE. A análise de impacto como mecanismo de
controle do tabaco. Revista de Direito Público da Economia – RDPE.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
372 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1207
OECD. Introductory Handbook for Undertaking Regulatory Impact Analysis (RIA), p. 10.
1208
POSNER; ADLER. Implementing Cost-Benefit Analysis When Preferences are Distorted. Journal of Legal Studies,
p. 1106-1147.
1209
Na Coreia do Sul, por exemplo, exige-se AIR apenas para regulações “significativas” — aquelas que possuem
impacto anual acima de novecentos mil dólares, impacto sobre mais de um milhão de pessoas, restrição clara
sobre a concorrência de mercado ou afastamento de padrões internacionais. Já nos EUA, a AIR completa se
faz quando os custos anuais da regulação excedem cem milhões de dólares, ou quando as regras implicam
acréscimo de custos para setor ou região, ou geram significativo efeito adverso na concorrência, no emprego, no
investimento, na produtividade ou na inovação.
1210
MACRAE. Análise de Impacto Regulatório-AIR: a experiência do Reino Unido. In: RAMALHO (Org.). Regulação
e agências reguladoras: governança e análise de impacto regulatório, p. 255 et seq.
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO
373
1211
O Decreto Federal nº 4.176/2002 sugere, no segundo item de seu Anexo I, que um dos fatores desfavoráveis, ao
se considerar um projeto de ato normativo a ser encaminhado ao Presidente da República, é a possibilidade
de impugnações judiciais. Em outras palavras: a expectativa da adesão dos administrados ao ato é fator de
influência na decisão de encaminhá-lo ou não.
1212
SEN. The Discipline of Cost-Benefit Analysis. The Journal of Legal Studies, p. 935.
1213
A Análise de Impacto Regulatório não é e não pode ser tida como justificativa para a subsidiariedade da
intervenção do Estado na economia. Ela é um procedimento de transparência da ação pública que, ao torná-la
mais controlável e racional, torna-a, também, mais aberta aos influxos democráticos. A AIR convive com um
Estado mais e menos intervencionista na economia.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
374 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1214
No Brasil atual, pode-se imaginar que os Tribunais de Contas venham a atuar analisando a qualidade das análises
de impacto regulatório realizadas por agências. Os Tribunais de Contas podem atuar identificando falhas e
omissões regulatórias. Em nossa opinião, em princípio isso não impacta na autonomia dessas entidades —
é claro que há risco de que diálogos técnicos escondam disputas de poder. Desenvolver em José Vicente Santos
de Mendonça (A propósito do controle feito pelos Tribunais de Contas sobre as agências reguladoras: em busca
de alguns standards possíveis. Revista de Direito Público da Economia – RDPE).
1215
No Direito americano, é bom observar que as independent agencies — as agências independentes, como o
Securities and Exchange Comission e o National Labor Relations Board — não submetem suas propostas de
normas ao OIRA. Só as executive agencies — as agências excutivas — estão obrigadas a tanto. Embora a analogia
deixe a desejar, é possível afirmar que nossas agências reguladoras estão mais próximas às independent agencies
(embora sem gozar de toda a autonomia destas) do que às executive agencies (que são, em muitos casos, órgãos
públicos comuns). Outro ponto interessante a se destacar é que, historicamente, os presidentes norte-americanos
vêm tentando submeter a atuação das agências independentes à análise do OIRA, até hoje sem sucesso.
1216
O exemplo foi sugerido pelo Professor Mark Tushnet em sala de aula.
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO
375
1217
Em nossa experiência administrativa, o viés de comprometimento de missão encontra um estado de “tempestade
perfeita” a partir de certos exemplos de atuação do Ministério Público e dos Tribunais de Contas, os quais
buscam responsabilizar as agências e demais entidades reguladoras pela chamada omissão regulatória. Como
ninguém sabe ao certo do que se trata tal omissão, o viés de comprometimento de missão se encontra com o
medo de responsabilização pessoal de dirigentes e servidores, e o resultado é uma regulação cada vez mais
intensa, abrangente e espetacular.
1218
O viés de comprometimento com a missão deve ser diferenciado do viés de cruzada, que é seu paroxismo. O viés
de cruzada é a assunção, pela instância reguladora, do dever moral da extirpação de algum comportamento
ou produto. O viés de cruzada possui traços moralistas e paternalistas. O grande exemplo do viés de cruzada
é o comprometimento com a missão das agências reguladoras do consumo de produtos como o tabaco e o
álcool. O viés de cruzada, além dos problemas associados ao viés de comprometimento com a missão, mostra-se
contrário à razão pública, pois aliena existencialmente parcelas significativas da sociedade a partir de um dado
tão singelo quanto um padrão de consumo.
1219
A explicação para isso é outro viés — o viés de saliência —, causado pela heurística da representatividade.
Todos sabemos que desregular e não regular são, também, estratégias regulatórias, considerando-se a ideia de
regulação em sentido amplo. Mas tais estratégias são evidentemente menos visíveis do que a prática de atos e
a expedição de normas regulatórias. Portanto, a agência reguladora possui mais estímulos a adotar posturas
comissivas do que omissivas, pois as primeiras fazem com que seja percebida, pelos atores políticos e sociais
significativos à sua existência, como “atuante”, “pró-ativa” — o que é estratégico para que receba recursos
públicos, acumule capital político-administrativo etc.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
376 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
interesse da sociedade. Aquelas querem, antes de tudo, existir; a sociedade quer uma
regulação democrática e eficiente. Por vezes, a melhor estratégia regulatória pode ser
a desregulação ou a não regulação; a autorregulação privada, acompanhada ou não
de validação pública; etc. Tais estratégias são, contudo, ontologicamente contrárias aos
interesses das entidades reguladoras (ainda que, por vezes, elas possam adotá-las de
modo pontual: é-lhes estratégico, também, passar a imagem de moderação).
O viés do comprometimento com a missão requer algum tipo de controle pú-
blico da atuação das entidades reguladoras. Os argumentos de mérito técnico e de
autonomia das agências, usuais no discurso prático-acadêmico do Direito Regulatório
brasileiro dos anos 90, podem acirrá-lo. É importante que sejam respeitados em seu
núcleo, mas não é recomendável que a regulação se faça de modo imune aos padrões
usuais de accountability republicana. O Judiciário, os Tribunais de Contas, o Ministério
Público, as advocacias públicas, ainda que de modo deferente às decisões e normas das
agências — até pelo dado pragmático da expertise1220 —, podem e devem opinar sobre e
controlar a qualidade da regulação pública feita por agências, e, como instâncias com
interesses diversos daqueles das entidades reguladoras, são alguns dos mecanismos
possíveis para gerar suficiente fricção institucional capaz de reduzir, preventiva ou
repressivamente, o viés de comprometimento com a missão.1221
Falando em comprometimento de missão e em tendência à hiper-regulação, é
hora de apresentar o paradoxo regulatório mencionado no título. Ei-lo: super-regulação
pode causar sub-regulação. Entenda-se.1222
A super-regulação — a regulação intensa recaindo sobre um único risco — inten-
sifica o problema de “acabar com os últimos dez por cento do risco potencial”. Ou seja,
a busca pela exterminação por completo do risco. Só que os custos da inteira redução
de certo risco — quando isso é possível, e raramente o é — são inversamente propor-
cionais à sua incidência estatística.1223 Econômica e socialmente, isso não faz sentido:
se já se gastou novecentos milhões para reduzir noventa por cento de determinado
risco, não é racional gastar oitocentos milhões para reduzi-lo em mais cinco por cento.
Se o Poder Público insiste nisso, faltarão recursos públicos para regular outros setores.
Assim, super-regulação causaria sub-regulação.
Mas há uma segunda razão para tanto: é que, se o Poder Público concentra todas
as energias numa intensa campanha regulatória sobre certo setor, há natural contraofen-
siva por parte das empresas afetadas. Questionamentos judiciais, lobbies, contraofensiva
política financiada pelo capital privado interessado. Tudo isso gera custos e desgaste
para a máquina pública; recursos que serão potencialmente desviados de seu uso na
regulação de outros setores ou riscos. Observe-se, inclusive, que é mais fácil invalidar
judicialmente uma regulação que pareça excessiva do que uma que soe moderada. E,
uma vez invalidada, passa a não existir regulação alguma. Super-regulação gerando
sub-regulação.
Melhor faria o Poder Público se optasse por regulação mais abrangente — isto é,
sobre mais setores, já que neutralizaria mais riscos potenciais —, porém menos intensa,
1220
De lege ferenda, poder-se-ia pensar num opinamento prévio da racionalidade técnica de projetos legislativos a
ser exercitado pelas agências reguladoras. O Congresso consultaria as agências a respeito da tecnicidade de
projeto de lei, e estas emitiriam parecer não vinculante.
1221
É importante observar, no entanto, que tais instâncias também podem acirrar tal viés. V. nota de rodapé supra.
1222
Em sentido próximo (mas não idêntico), v. SUNSTEIN, Cass. Paradoxes of the Regulatory State. University of
Chicago Law Review, p. 407 et seq.
1223
BREYER. Breaking the Vicious Circle: Toward Effective Risk Regulation.
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO
377
quer dizer, que acabasse não lhe sendo tão custosa. Essa é uma estratégia possível para
buscar neutralizar o paradoxo.1224
1224
Há outros paradoxos regulatórios identificados pela literatura. Outro bem interessante é o paradoxo “richer
is safer”. A introdução de qualquer nova regulação possui um preço para a sociedade. Na média, populações
com mais renda livre se expõem a menos riscos. Assim, uma regulação introduzida para reduzir certo risco
pode, ao reduzir a renda disponível, agravar os riscos aos quais aquela comunidade estaria disposta a se expor
(WILDAVSKY. Richer is safer. The Public Interest, 1980).
1225
V., por todos, SABEL; ZEITLIN. Experimentalist Governance. In: LEVI-FAUR (Ed.). The Oxford Hanbook of
Governance.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
378 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
1226
Descrição da iniciativa Maine Top 200 e indicação de seus resultados pode ser encontrada em: ASH CENTER
for Democratic Governance and Innovation. Disponível em: <http://www.innovations.harvard.edu/awards.
html?id=3693>. Acesso em: 09 mar. 2014.
1227
Apesar dos bons resultados, o legalismo adversarial da cultura jurídica norte-americana impediu a pretendida
expansão do programa para o resto do país: a Câmara de Comércio do Estado ajuizou demanda alegando
que a iniciativa era regulação tão intensa que, na prática, equivalia a uma norma regulatória, a qual teria sido
criada de forma ilegal, sem a observância do rito da consulta pública. A Corte de Apelação do Distrito de
Colúmbia invalidou o programa em 1999. Posteriormente, a administração Bush criou programa semelhante —
o “Voluntary Compliance Program” —, mas sem nenhum benefício atrelado (LOBEL. Interlocking Regulatory
and Industrial Relations: the Govenance of Workplace Safety. Administrative Law Review).
CONCLUSÃO GERAL
Síntese objetiva
Ao final do livro, é possível apresentar, sob a forma de proposições objetivas,
algumas das ideias aqui defendidas.
I - Quanto ao pragmatismo
1. O pragmatismo surge na filosofia com Charles Peirce, na condição de uma
teoria da significação, tornando-se, a partir da recepção das ideias deste por William
James, uma teoria da verdade, e, afinal, com John Dewey, uma teoria social. Afora dis-
cussões clássicas sobre o assunto — se o pragmatismo é de fato uma filosofia ou um
modo de se fazer filosofia; quantos pragmatismos existem —, a verdade é que se pode
afirmar a existência de uma “matriz pragmatista” consistente no antifundacionalismo,
no consequencialismo e no contextualismo.
Por muito criticado no final do século XIX, o pragmatismo desapareceu, só vindo
a ressurgir, de modo modificado, em meados do século XX, com Richard Rorty e sua
antifilosofia.
Questão que se coloca é a da utilidade do pragmatismo filosófico para o debate
sobre o pragmatismo jurídico. Embora autores como Richard Posner e Thomas Grey
acreditem que o pragmatismo filosófico tem pouco a contribuir ao mundo do Direito,
pensamos que, ao contrário, é possível aplicar a “matriz” pragmatista para examinar
questões jurídicas.
Além disso, é interessante conhecer o pragmatismo filosófico como meio de
contextualizar as propostas das teorias do pragmatismo jurídico, que, em maior ou
menor grau, derivam algumas de suas características da filosofia pragmatista. Todas
as teorias do pragmatismo jurídico têm sua exposição iniciada com explicações de por
que possuem muita, alguma ou nenhuma relação com o pragmatismo filosófico, daí
que conhecê-lo é útil no mínimo nesse momento.
2. O pragmatismo jurídico de Richard Posner é a mais famosa teoria dentro da
chave semântica dos “pragmatismos jurídicos”. Ela se diz uma teoria distante de todas
as variadas versões dos pragmatismos filosóficos. Na essência, é uma teoria da decisão
que sugere aos julgadores decidirem com os olhos postos nas consequências de suas
decisões. Os julgadores devem decidir de modo a produzir as consequências mais razo-
áveis, consideradas todas as variáveis relevantes para o caso — incluída a consideração
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
380 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
dos efeitos sistêmicos da decisão, isto é, os efeitos para o sistema jurídico como um todo:
a importância de se preservar a generalidade, a previsibilidade, a segurança jurídica etc.
O pragmatismo jurídico de Posner possui seis características: é (i) eclético — usa
de diversas teorias, sem maiores preocupações com consistências —, (ii) instrumental —
vê as normas jurídicas e a teoria jurídica como instrumento para um fim —, (iii) contex-
tual — dá importância ao contexto —, (iv) antiformalista — não vê a forma como um
fim em si mesmo, ainda que na maioria das vezes opte por ela graças a uma decisão
de preservação de valores socialmente percebidos como importantes ao Direito —, (v)
empírico — importa-se com a experiência e com as ciências experimentais —, e (vi)
retórico: liberta-se das amarras do discurso formal e formalizante do Direito.
Muitas críticas foram lançadas contra a teoria de Posner. Selecionamos seis: (i)
o pragmatismo de Posner estimularia uma amplíssima discricionariedade judiciária;
(ii) seria desrespeitoso para com os direitos fundamentais; (iii) seria incompleto, pois
mandaria decidir da melhor forma possível, mas não diria como se chegar a isso; (iv)
seria pouco prático, uma vez que o caminho mais fácil, seguro e barato, consideradas
as características do processo judicial e a aptidão institucional do Judiciário, seria a
adoção do formalismo como teoria da decisão. Ainda, (v) o pragmatismo posneriano
estimularia o Legislativo a produzir leis “ruins”, já que, de todo modo, elas poderiam
ser “consertadas” pelos juízes pragmatistas. Por fim, as visões instrumentalistas do
Direito (de que o pragmatismo posneriano seria exemplo) (vi) destruiriam a noção de
bem comum, porque estariam prontas a desconsiderar normas jurídicas em favor de
considerações utilitárias.
Diante de tais críticas, Posner provavelmente replicaria que seu pragmatismo
não concede discricionariedade aos juízes — apenas é transparente em relação ao que
efetivamente já ocorre — e não é menos desrespeitoso para os direitos fundamentais
do que um formalismo manipulador. Ainda, diria que os juízes, ao decidirem com
base no que pensem ser o melhor para cada um, chegarão a decisões melhores do que
as determinadas pelo formalismo. Aliás, seu pragmatismo recomendaria, por razões
pragmáticas, a adoção do formalismo como teoria da decisão na maioria dos casos. E o
argumento da crítica referente às leis “ruins” poderia ser revertido, uma vez que os le-
gisladores, mercê das virtudes do pragmatismo jurídico, poderiam se sentir convidados
a elaborar leis “melhores”, porque confiantes na complementação ativa do Judiciário.
3. Além de Posner, outros autores elaboraram teorias do pragmatismo jurídico.
Dentre eles, Michael Sullivan, procurando resgatar o pragmatismo filosófico de Dewey
numa incidência liberal junto ao Direito; o justice Stephen Breyer, reconhecendo a im-
portância dos elementos tradicionais da interpretação jurídica, mas ressaltando o papel
da análise prospectiva das consequências, bem como de se decidir de modo a reforçar a
participação dos cidadãos nas escolhas; e Jules Coleman, com uma teoria do positivismo
inclusivo que, do pragmatismo filosófico (ou jurídico), só tem o nome.
4. O pragmatismo jurídico também pode ser estudado junto às teorias da argu-
mentação jurídica. Nessa seara, uma das mais célebres é a teoria de Neil MacCormick,
que, partindo de importantes decisões judiciais na história dos EUA e da Inglaterra,
acredita que, nas hipóteses em que as normas não são claras, ou quando são omissas,
haver-se-á de apelar às consequências da decisão. Tais consequências devem ser analisa-
das à luz dos valores constitucionais e de uma possível universalização do julgamento.
Para MacCormick, consequências são implicações lógicas necessárias, e não resultados
imediatos de uma decisão, ou probabilidades estatísticas da ocorrência de eventos.
CAPÍTULO 4
CONCLUSÃO GERAL
381
recebe críticas, e, no Brasil, começa a ser estuda, mas ainda não é significativamente
aplicada.
A terceira estratégia é realizar análises de impacto regulatório, o que permite
prever e monitorar os efeitos práticos da regulação. Atualmente populares, são pro-
cedimentos que pretendem identificar e qualificar dados, prever consequências, e, a
partir daí, traçar cursos de ação regulatória. Podem ser úteis, mas também possuem
limites — um deles é esquecer que se tratam de racionalizações, e não de profecias —
e riscos, muitos dos quais semelhantes àqueles que recaem sobre as audiências e con-
sultas públicas.
29. Há dois problemas da regulação que merecem destaque: (i) o viés de foco e
(ii) o viés de comprometimento com a missão.
O viés de foco é miopia seletiva, comum em especialistas, que impossibilita a
abordagem do problema sob perspectivas ignoradas pelo regulador. Busca-se neutralizá-
lo por meio da centralização da informação, pela realização de audiências e consultas
públicas, pela adoção de análises de impacto, e, em ambientes em que a informação é
dispersa, pela troca local de expertises.
O viés de comprometimento com a missão é a tendência, das autoridades re-
guladoras, a sugerirem propostas que impliquem mais regulação, pois é isso o que
sabem fazer e é isso o que elas fazem. Busca-se atenuá-lo pela existência de instâncias
de controle da atuação das entidades reguladoras.
30. É possível cogitar do paradoxo segundo o qual a super-regulação cause a
sub-regulação. A busca pela extirpação do risco pode causar o esgotamento de recur-
sos públicos. A regulação intensa pode redundar na rejeição intensa. Sendo assim, na
média, é melhor optar por regulação mais abrangente — cobrindo mais riscos e mais
atividades —, e menos intensa.
31. Das várias propostas que, hoje, são apresentadas na seara da regulação públi-
ca, uma das mais interessantes é a da Nova Governança. Trata-se de indicar objetivos
regulatórios preliminares, de liberar as entidades reguladas para os perseguirem da
forma como souberem melhor fazê-lo, e de monitorar, revisando, os resultados alcan-
çados. Então, é hora de divulgar as melhores práticas adotadas para que as entidades
reguladas, querendo, venham a adotá-las. Outra forma de se praticar a Nova Governança
é negociando, junto à iniciativa privada, a adoção de mecanismos internos de controle
de riscos e de aferição de qualidade.
A Nova Governança abre-se à experimentação e incorpora o know how da socie-
dade. É regulação focada em resultados, não em processos. É pragmatista: incorpora a
inovação como dado essencial.
Encerramento
Fazer incidir o pragmatismo e a razão pública na interpretação jurídica da
Constituição Econômica significa acreditar que é possível ser prático e democrático.
Há nessa dupla proposta um caráter experimental e criativo que se adapta às individu-
alidades e coletividades plurais deste início de século XXI. A história da Constituição
Econômica está longe de terminar: ela está sempre plena de retornos e de ciclos. Daí
que, resguardadas certas garantias civilizacionais, ela só se deve permitir capturar pela
vontade democrática de cidadãos livres e iguais. No mais, a História não acabou. Na
verdade é exatamente o contrário: é hoje — como em todos os dias — que tudo começa.
POSFÁCIO
ATUALIDADE DO LIVRO
O Brasil em que a tese de doutorado que deu origem a este livro começou a ser
escrita, em 2005, não é o Brasil do ano em que o livro foi publicado — meados de 2014.
O Brasil da segunda edição — final de 2017 — não é mais o Brasil de 2014 (Stephen
Dedalus talvez tenha razão: a história é um pesadelo do qual estamos tentando acordar).
Mudou o Brasil, mudou o Direito, mudaram até os livros de Direito.
Comecemos pelo Direito, e por um dos temas do livro: o pragmatismo (o outro
será mencionado à frente). O pragmatismo jurídico e palavra próxima — o conse-
quencialismo — chegaram à moda acadêmica e, em grau crescente, à prática forense.
Consequencialismo tornou-se termo utilizado para seja lá o que for que tenha a ver
com consequências.
Este livro, que percorre horizontal e verticalmente o assunto, talvez encontre
momento mais oportuno hoje do que à época em que a tese foi escrita.
Exceto por um dado, que tem a ver com a mudança nos livros de Direito: hoje,
ninguém mais lê nada em profundidade. A era dos livros jurídicos acabou: vivemos a
era da informação picotada, obtida pela internet, e repetida memeticamente — inclusive
e perigosamente nas salas de aula e nos tribunais. A informação jurídica do ano de 2017
é um meme com pretensões letradas. Livros de Direito são, hoje, cartões de visita, ou,
na melhor das hipóteses, fetiches vintage. Eles podem ser, ainda, pontuação-para-a-
CAPES: números, e não ideias.
E aqui chegamos ao terceiro ponto, ponto mais geral, mas com implicações para o
Direito. Há, em nossa sociedade (mas também no mundo), cada vez mais informação e
cada vez menos atenção. Esse excesso de informação fez com que só sobressaísse o que
é gritado — e a solução foi gritar mais alto, até o ponto em que só os gritos importam.
Ora, embora gritar seja por vezes necessário — e, até, a única coisa que se tem —, não
se constrói uma democracia sem moderação, virtude republicana por excelência.
Diante do fenômeno da polarização da sociedade brasileira, mais do que nunca
se faz importante a cultura da razão pública. Razões não públicas — não só afirmadas
em comunidades virtuais de reforço epistêmico de semelhantes, mas especialmente
nelas — estão se polarizando ao limite do infinito.
É claro que a cultura de fundo pode usar razões não públicas. O problema não
é esse. É que, mercê da impregnação da vida por razões não públicas afirmadas até o
limite da violência — infelizmente, não apenas simbólica —, a atuação pública pode se
ver levada a agir por razões não públicas. É um erro e é um perigo.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
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