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INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 1

INTRODUÇÃO AO DIREITO

Sumários desenvolvidos

Introdução

A possibilidade de, como juristas, interpelarmos directamente o direito. A


pergunta dirigida ao quid jus orientada por uma intenção normativa — distinta da
exigência de distanciação metanormativa imposta por uma abordagem analítico-
-epistemológica, por uma determinação sociológica ou por uma reconstrução semiótica
(todas elas a postularem o direito como objecto investigável) ... mas também
inconfundível com a preocupação reflexiva radical da interrogação filosófica [esta
última a remeter-nos ao originarium do sentido «civilizacional» do direito, nas suas
condições, funções e fundamento material].

Algumas especificações indispensáveis.


1. O contraponto com os problemas de quid juris (questões suscitadas na
perspectiva do direito e que o postulam como «perspectiva investigante» ou como
intenção).
2. A recusa de uma abordagem que distinga os problemas de direito e o
problema do direito confiando-os a «territórios» estanques (para admitir que só os
primeiros importam hoje ao jurista). A nossa circunstância a exigir uma interpenetração
cada vez mais exigente dos referidos «territórios» ou das questões a que estes
respondem.
3. A intenção normativa (capaz de orientar uma perspectiva interna) e o seu
problema-desafio no nosso contexto prático-cultural:
(a) a procura de uma perspectiva interna distinta daquela que o discurso jurídico
do século XIX nos ensinou a reconhecer (remissão para um dos temas capitais do nosso
curso…e que o justifica enquanto tal!);
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(b) a procura de uma perspectiva interna num contexto de multiplicação


(fragmentação) das perspectivas de compreensão do direito (a superação do paradigma
do normativismo legalista e a impossibilidade de reconstruir um paradigma alternativo);
(c) a procura de uma perspectiva interna num contexto de reconhecimento e de
valorização dos «códigos» linguísticos e extralinguísticos que distinguem os grupos ou
pequenas comunidades (de advogados, de juízes, de «académicos»)…
4. A antecipação (meramente alusiva) de uma resposta: uma experiência da
autonomia do direito que vê neste direito uma prática-procura (comprometida com um
exercício de demarcação humano/ /inumano) … mas então também um sentido-
exigência e uma experiência continuada de realização (apoiados num discurso
culturalmente autónomo). Ora uma prática-procura que encontra a sua «claridade
matinal» (plenamente assumida) na experiência da civitas romana (e na praxis de
responsa que a ilumina). Uma prática-procura comprometida com uma «civilização»
(greco-romana, judaico-cristã e europeia)? [Uma acentuação esta última que nos
autoriza a compreender que o nosso problema seja também o do «sentido civilizacional»
do direito].

Elementos de estudo:
—A. CASTANHEIRA NEVES, « Relatório...», in Curso de
Introdução ao Estudo do Direito — Textos compilados (Textos
de introdução ao estudo do direito), cit. (na Bibliografia
principal), pp. 7-17 (pontos 2., 3. e 4.), 32-34 (pontos 7. e 8.),
58—65 (pontos 12 e 13)
— Fernando José BRONZE, Lições de Introdução ao direito,
2º edição, Coimbra 2006, pp. 11-29.
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Primeira Parte
O direito como dimensão da nossa prática: o
problema do seu «sentido civilizacional»

Capítulo I
O sentido geral do «projecto humano» do direito

1. A experiência imediata da controvérsia concreta traduzida numa abordagem


perfunctória do seu contexto-correlato comunicacional: a reconstrução analítica da
ordem jurídica.

1.1. A controvérsia como problema prático mergulhado no mundo (o


originarium da comunicação-compreensão).

Os elementos da controvérsia juridicamente relevante:


α) a situação histórico-concreta partilhada;
β) o contexto-ordem (e a dogmática integrante que o estabiliza num sistema de
referências) [um horizonte integrante de fundamentos e de critérios estabilizados num
sistema]
γ) os sujeitos na sua autonomia-diferença [diversas posições sobre a mesma
situação histórico-concreta (a assumir no mesmo horizonte de fundamentos e critérios)];
δ) a exigência de «tratamento» (ou de assimilação) desta diferença [a
impossibilidade de ficar por uma resposta que se limite a confrontar ou a esclarecer
afirmações possíveis da subjectividade-autonomia].

A controvérsia como litígio (versus diferendo) e a experiência de tratamento que


a (o) assimila. A convocação de um terceiro imparcial: a «tercialidade» que se exprime
num autêntico sujeito-julgador (que não é parte!) e aquela que corresponde à
pressuposição de um sistema de fundamentos e de critérios jurídicos (e que nos liberta
assim de um decisionismo arbitrário).
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1.2. A pressuposição da ordem e a analítica que lhe corresponde.

1.2.1. Uma tectónica determinada por três grandes linhas estruturais (a assumir
uma significativa herança de especificações das intenções à normatividade, se não
mesmo das dimensões da justiça): α) ordo partium ad partes; β) ordo partium ad
totum; γ) ordo totius ad partes.

Uma consideração atenta dos equilíbrios manifestados nesta estrutura (e nas suas
três linhas):
— a constância dos desempenhos relacionais e da intersubjectividade que lhes
corresponde (a conexão direitos / deveres) ;
— as diversas «qualidades» dos sujeitos (privados e públicos, privados e socii);
— algumas especificações do equilíbrio paritário (primeira linha) e da intenção
à justiça (comutativa e correctiva) que nele se manifesta;
a) A «troca» nas «transacções particulares voluntárias» (na «troca de
bens feita de livre vontade»), iluminada pelas categorias da «perda» e
do «ganho» e associada a uma dinâmica de participação — uma
dinâmica sustentada numa exigência de igualdade das prestações e
das expectativas que lhe correspondem... mas nem por isso menos
compossível com o «lucro» (e nestes sentido também a admitir o
risco do «prejuízo»). O exemplo paradigmático do contrato privado.
b) As «transacções particulares involuntárias» e a pretensão-exigência
de repor o equilíbrio (de integração) perturbado [«De tal sorte que o
justo nas transacções involuntárias [seja] o que está no meio termo
entre um certo lucro e um certo prejuízo: é ter antes e depois uma
parte igual»]. O exemplo da responsabilidade civil: o objectivo de
tornar o lesado indemne (sem dano, na situação em que estaria se não
tivesse ocorrido o dano).
A lição da Ética a Nicómaco de ARISTÓTELES (Livro V, IV, 1131-1132)
— as distintas «máscaras» do sujeito comunitário (da comunidade de valores
ou de «bens jurídicos» à societas-providência) [uma breve alusão (remissiva)
a duas imagens da societas politicamente organizada em Estado: (a) aquela
em que o «estatuto» universal da cidadania é dominado pela garantia da
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compossibilidade dos arbítrios (Estado demo-liberal) e... (b) aquela em que o


mesmo estatuto é dominado pela efectividade da expansão-generalização
dos benefícios (Estado social ou Estado Providência)].
— os compromissos práticos implicados (que autonomia? que
responsabilidade?) [remissão];
— o esboço plausível de uma representação da justiça ou das intenções que a
determinam (justiça comutativa e correctiva / justiça geral e protectiva /
justiça distributiva).

Excurso (a desenvolver nas «aulas práticas»): o contraponto direito público


/direito privado e os critérios tradicionais da distinção.

Elementos de estudo:
— A.CASTANHEIRA NEVES, « O direito (O problema do
direito)/O sentido do direito...»,in Curso de Introdução ao
Estudo do Direito — Textos compilados, 1-13.
— Fernando José BRONZE, Lições de Introdução ao direito,
cit., 31-58.

Excurso:
— MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4ºed.,
Coimbra Editora 2005, pp. 35-46.

Leitura recomendada:
J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao direito e ao
discurso legitimador, Coimbra 1983 (sucessivamente reeditado),
63-77 (capítulo III).

Proposta de trabalho

Considere com atenção as seguintes proposições normativas, procurando fazer


corresponder às linhas de estrutura da ordem jurídica as exigências e os tipos de
problemas nelas considerados:


Na sua resposta não deixe de caracterizar as intenções que sustentam cada uma das
linhas em causa.
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(a) «Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou
propalar factos inverídicos, capazes de ofenderem a credibilidade, o prestígio ou
a confiança que sejam devidos a pessoa colectiva, instituição, corporação,
organismo ou serviço que exerça autoridade pública, é punido com pena de
prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias»
(b) « Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos
que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve
a sua utilização.»
(c) «Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família,
no seu domicílio ou na sua correspondência..»
(d) «É nulo o testamento em que o testador não tenha exprimido cumprida e
claramente a sua vontade, mas apenas por sinais ou monossílabos, em resposta a
perguntas que lhe fossem feitas. »
(e) «Beneficiam de uma redução do Imposto sobre o Rendimento (IRS ou IRC)
todas as a pessoas singulares ou colectivas que apoiem, através da concessão de
donativos, entidades públicas ou privadas que exerçam acções relevantes para o
desenvolvimento da cultura portuguesa.»
(f) «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem (..)
fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.»
(g) «Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo,
por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou,
determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa,
prejuízo patrimonial, é punido com pena de prisão até 3 anos»
(h) «O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e
será único e progressivo...»
(i) «Têm direito de sufrágio todos os cidadãos maiores de dezoito anos.»
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1.2.2. Uma tradução funcional: (a) a função primária ou prescritiva (o direito


como princípio de acção e critério de sanção).

1.2.2.1. A especificidade (-objectividade) mundanal-social dos problemas


jurídicos. O mundo como o «meio em que decorre a existência humana» (a natureza
assimilada e transformada numa intenção vital / os artefactos e as obras produzidos
numa intenção instrumental / os sentidos e os referentes culturais criados e
reproduzidos numa intenção comunicativa e na interacção que lhe corresponde). A
mediação positiva e negativa dos outros.

1.2.2.2. O confronto moralidade (ética) / direito (mas também, e no limite, o


problema do confronto entre as relações jurídicas e as relações intimamente pessoais, de
amizade e de amor) experimentado na «estrutura» imediata de determinação dos seus
problemas.

1.2.2.2.1. A intersubjectividade ou bilateralidade atributiva dos problemas


jurídicos como nota distintiva capital (uma nota que podemos convocar mesmo quando
se trate de assumir uma compreensão da moralidade determinada por uma exigência de
universalidade formal-racional ou de qualquer modo traduzida em critérios-regras
abstractamente formulados).
(a) A conexão exterioridade /ponto de vista externo.

A proposta de KANT:A moralidade a garantir a liberdade interna do sujeito e a impor uma


motivação pelo dever (uma «adesão íntima e profunda da consciência aos motivos do agir»). A
juridicidade a garantir a liberdade externa e a exigir apenas uma conformidade exterior da
acção ao critério-norma..

«A legislação que faz de uma acção um dever e simultaneamente desse dever um móbil é ética.
Mas a que não inclui o último na lei e que, consequentemente, admite um móbil diferente da
ideia do próprio dever é jurídica (…) A mera concordância ou discordância de uma acção com a
lei, sem ter em conta os seus móbiles, chama-se legalidade–Legalität (conformidade com a lei),
mas aquela em que a ideia de dever decorrente da lei é ao mesmo tempo móbil da acção chama-
-se moralidade-Moralität (eticidade) da mesma. Os deveres decorrentes da legislação jurídica só
podem ser deveres externos...» (KANT, Metafísica dos costumes, 1797, Introdução, III «De
uma divisão da metafísica dos costumes»)
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(b) A conexão intersubjectividade (bilateralidade atributiva) /exigibilidade/


executabilidade [A intersubjectividade em DEL VECCHIO e COSSIO: ver com muita
atenção C. NEVES, «O direito (O problema do direito)/O sentido do direito...»,cit.,
pp.20 e 21, nota 18].

«O que nos permite começar a ver aqui a nota decisivamente diferenciadora do direito
perante a moral — esta poderá ser apenas ad alterum e de sentido puramente imperativo (i.é, com a
exclusiva categoria do dever), mas o direito não poderá deixar de se manifestar numa
“bilateralidade atributiva” (i. é, com as correlativas categorias de direito e de dever ou obrigação).
Pelo que se poderá dizer que o princípio da moral está nos deveres — no ponto de vista do outro ou
no rosto do outro que me interpela (LEVINAS) — e o princípio do direito está simultaneamente nos
direitos (no ponto de vista do eu) e nos deveres (no ponto de vista do outro e dos outros) pela
mediação do comum da vida social.» (CASTANHEIRA NEVES, O problema actual do direito. Um
curso de Filosofia do Direito, Coimbra-Lisboa 1994)

«A bilateralidade atributiva distingue sempre o Direito, porque a relação jurídica não toca apenas a um
sujeito isoladamente, nem ao outro, mesmo quando se trate do Estado, mas sim ao nexo de polaridade e
de implicação dos dois sujeitos. Existe conduta jurídica porque existe medida de comportamento que não
se reduz nem se resolve na posição de um sujeito ou na do outro, mas implica concomitante e
complementarmente a ambos. (…) Se dizemos que uma conduta jurídica não se caracteriza, nem se
qualifica somente pela perspectiva ou pelo ângulo deste ou daquele sujeito, mas pela implicação de
ambos, compreenderemos a possibilidade daquilo que chamamos exigibilidade. Tratando-se de uma
conduta que pertence a duas ou mais pessoas, quando uma falha (voluntariamente ou não),à outra é
facultado exigir. Da atributividade decorre a exigibilidade...» (Miguel REALE, Filosofia do direito, 9ª
edição, São Paulo, 1982, pp.687-688),

O exemplo de PETRAZISKY reconstituído por Miguel REALE: «Petrasisky imagina que


um grande senhor, ao sair de seu palácio para tomar um coche, se encontre com um velho
postado à sua porta, à procura de auxílio. Poucos rublos bastariam, para atender à sua aflição, mas
o nobre prossegue indiferente e imperturbável o seu caminho. Toma o coche e, ao chegar ao seu
destino, recusa-se a pagar o preço do serviço prestado.» O confronto entre imperatividade pura e
imperatividade atributiva: «A moral determina que se faça mas ao destinatário do comando cabe
fazer ou não; ao passo que o direito se caracteriza porque ordena e ao mesmo tempo assegura a
outrem o poder de exigir que se cumpra...» (Ibidem, p.691)
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1.2.2.2.2. A comparabilidade ou tercialidade exigida pelas controvérsias


jurídicas (uma nota distintiva que se torna particularmente importante quando
confrontamos o universo do direito com o das experiências pessoais de amor ou de
amizade... mas também, hoje muito especialmente, quando invocamos compreensões da
ética ou da justiça ligadas à experiência de uma singularidade irrepetível).
A infungibilidade do sujeito eticamente (e também pessoalmente) relevante —
mergulhado num horizonte «simbólico-cultural» e não obstante preservado como
absoluto, na integridade irrepetível das suas dimensões — e a «fungibilidade»-
correlatividade do sujeito jurídico — criado pela mediação constitutiva do mundo e
assim determinado pela posição relacional que os modos situacionalmente
comunicativos desse mundo (ao assegurarem uma trama de direitos e de obrigações) lhe
impõem [A autonomização do direito como prática comunitariamente prudencial (na
experiência dos jurisconsultos romanos) reconstituída a partir do «isolamento» dos seus
sujeitos e destes como máscaras de direitos e deveres intersubjectivamente
sustentados].
O confronto exemplar entre uma ética da incomparabilidade e da
singularidade e a exigência de comparação inscrita na estrutura da controvérsia
juridicamente relevante (os exemplos decisivos das parábolas do filho pródigo e
dos trabalhadores da vinha). A mediação-interrupção do terceiro ou do tertium
comparationis (quer enquanto sujeito imparcial, quer sobretudo enquanto sistema
de fundamentos e critérios): a mediação que nos obriga a comparar e que converte
os únicos e incomparáveis em sujeitos relacionais de direitos e de deveres [Aquela
mediação-tertiallité interrompe o face-à-face e condena-nos a submeter os rostos
nus às “formas plásticas” da “representação” e da “objectividade”: muito
simplesmente porque nos obriga a “comparar” os únicos e incomparáveis e a
escolher entre eles. Uma escolha que perturba originaria e irremediavelmente o
“continuum” ético-prático de um “duelo de rostos” e que nos obriga assim a
frequentar os lugares que a assunção de uma responsabilidade puramente ética
deve evitar] .

1.2.2.3. A institucionalização normativa dos meios capazes de garantir a «eficácia»


social que o nexo intersubjectividade/ exigibilidade/ executabilidade impõe (e
determina): o problema da sanção. A bilateralidade atributiva dos problemas jurídicos
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cria (performativamente) realidades novas. As sanções positivas (promocionais) e


negativas (repressivas): as primeiras a «potenciar as efectivas possibilidades de
realização da intersubjectividade social», as segundas como «restrições e proibições que
acrescentam à negatividade do ilícito a sua própria negatividade real» (a sanção a
autonomizar-se da estatuição da norma-critério).

Excurso I: a estrutura lógica da norma


A articulação hipotético-condicional se...→então [hipótese ou previsão →
estatuição ou injunção: se ocorrerem determinados acontecimentos na realidade —
delimitados na sua relevância problemática e comprovados na sua referencialidade —...
→ então a resposta-solução do direito será esta...]

O problema da coacção (um esboço introdutório do problema das relações


direito/poder). A exigência de considerar a coacção apenas como um meio-instrumento
entre outros meios-instrumentos de efectivação prática da normatividade jurídica. A
impossibilidade de partir da experiência (limitada) deste meio para identificar o
universo do direito. A exigência de recusar uma caracterização do projecto prático-
-cultural do jurídico que mobilize as notas da coercitividade (coacção actual, efectiva)
ou mesmo da coercibilidade (coacção virtual ou possível)

Excurso II: uma consideração exemplar de alguns tipos de sanções.


a) Sentido das sanções reconstitutivas e compensatórias.
b) Modalidades de ineficácia..
c) Penas e medidas de segurança
d) Sanções preventivas
e) A especificidade dos ónus
Elementos de estudo:
— A.CASTANHEIRA NEVES, « O direito (O problema do
direito)/O sentido do direito...»,in Curso de Introdução ao
Estudo do Direito, cit., 14-35.
— Fernando José BRONZE, Lições de Introdução ao direito,
cit., 60-76

Excurso II
— A. SANTOS JUSTO, Introdução ao estudo do direito, 3ª
ed., Coimbra Editora 2006, pp. 158-163.
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1.2.2. Uma tradução funcional: (b) a função secundária ou organizatória .


A exigência de construção-estabilização da ordem traduzida num plano explícito
de auto-observação — já também (digámo-lo com TEUBNER!) de autodescrição e
autoconstituição reflexiva. A constituição-estabilização de situações institucionais
específicas (a exigência de um cosmos prático-cultural).

1.2.2.1. O momento da procura de unidade (a «modalidade» sistemática).A


possibilidade de estabelecer critérios secundários ou de segundo grau que procurem
assegurar essa procura (ou torná-la menos complexa). Alguns problemas possíveis.
(a) A concorrência sincrónica de critérios primários — também, como veremos
à frente, o confronto entre as soluções-respostas prescritas ou consagradas por estes
critérios (legais, jurisdicionais ou dogmáticos) e as exigências ou compromissos
assumidos pelos princípios fundamentos. O problema das antinomias. Alusão a alguns
critérios-regras que se preocupam em solucionar este problema, quando estão em causa
normas legais situadas em patamares hierarquicamente diferentes (lex superior derogat
legi inferiori)… ou normas situadas no mesmo patamar, mas relacionáveis em termos
de regime geral/regime especial (lex specialis derogat legi generali).
A acentuação de que muitos destes problemas de convergência-conflito só
podem ser tratados em concreto na perspectiva do caso. De tal modo que a procura de
unidade passa então a ser reflexivamente traduzível apenas num plano metodológico —
desencadeando eventualmente (ainda que não necessariamente!) um problema de
construção-objectivação de possíveis regras-cânones, explícitas ou implícitas , ditas
regras e /ou esquemas de juízo (por exemplo, o «cânone» de que deve ser dada
prevalência às intenções dos princípios-fundamentos).
(b) A concorrência no espaço (a plurilocalização dos elementos do problema-
-controvérsia a conexionar diversas ordens nacionais). As normas de Direito
Internacional Privado como critérios secundários.
(c) A convergência-concorrência diacrónica dos critérios (e muito especialmente
das normas legais). O problema da « “aplicação” das leis no tempo» (remissão)
Elementos de estudo:
A.CASTANHEIRA NEVES, « O direito (O problema do direito)/O sentido do
direito...»,in Curso de Introdução ao Estudo do Direito, cit., 36-39.
Fernando José BRONZE, Lições de Introdução ao direito, cit., 77-83
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1.2.2.2. O momento de assunção da dinâmica histórica (dito de desenvolvimento


constitutivo). O contraponto entre estabilização dogmática e mutação. A novidade
irredutível dos casos, a exigir respostas que não estão pré-determinadas.
Exemplos de critérios secundários associáveis a este momento:

(a) as prescrições que se propõem enfrentar (num plano-perspectiva


político-constitucional) o problema das fontes do direito [v. artos. 1º a 4º
do Código Civil] ;
(b) os critérios ou cânones da doutrina que tematizam este mesmo
problema (nesta ou noutras perspectivas);
(c) as normas legais que enfrentam o problema do começo e da cessação
da vigência das leis [alusão às categorias da vacatio legis («o tempo que
decorre entre os momentos da publicação e da entrada em vigor da
norma legal»), da caducidade e da revogação (expressa ou tácita, global
ou específica, total ou parcial) associáveis ao problema da vigência
formal da lei (ver artºs 5º e 7º do Código Civil)].

Uma primeira alusão aos problemas das normas caducas e obsoletas


(enquanto normas formalmente vigentes), a exigirem já uma mediação reflexiva
metodologicamente assumida (que também aqui poderemos especificar em cânones
ou regras de juízo).

1.2.2.3. O momento da realização orgânica: os critérios que criam formalmente


orgãos e que lhes atribuem poderes e competências (definindo o círculo de problemas
relevantes que estes podem enfrentar), na mesma medida em que hierarquizam as suas
relações. Exemplos extraídos da parte III da Constituição («Organização do poder
político»).

1.2.2.4. O momento da determinação-realização procedimental que, sendo


indissociável do anterior, corresponde não obstante a uma autonomização de regras de
processo — aquelas que o jogo ou modus operandi das tomadas de decisão
juridicamente relevantes (a começar decerto por aquelas que tais orgãos assumem)
deverá constitutivamente respeitar.
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O momento institucional-processual como condição adjectiva do juízo decisório


(a institucionalizar um percurso-iter de tomada de decisão e o modus que este deverá
assumir): um confronto com as condições normativas substantivas — asseguradas pelos
fundamentos e critérios materiais do ordenamento jurídico (enquanto prosseguem
nuclearmente uma função primária) — e com a especificidade dos cânones e esquemas
de juízo (justificados pelo problema e pelo discurso metodológicos).

Partindo do exemplo de uma controvérsia entre as partes A e B — na qual


A se diz proprietário de um prédio rústico encravado e como tal titular de um
direito potestativo (do direito de exigir a constituição de uma servidão de
passagem sobre o prédio de B)… e B se recusa a reconhecer esta faculdade… —,
admita que, para responder juridicamente a esta controvérsia, o juiz-terceiro se
confronta com os seguintes critérios:
(a) «Os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via
pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou
dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem
sobre os prédios rústicos vizinhos» (Código Civil, art. 1550, nº 1)
(b) «Concluída a discussão do aspecto jurídico da causa, é o processo
concluso [i.e, enviado, com termo de conclusão] ao juiz, que proferirá sentença
dentro de 30 dias» (Código do Processo Civil, art. 658º)
(b)’ «A sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio,
fixando as questões que ao tribunal cumpre solucionar» (Código do Processo
Civil, art. 659 nº1)
(c) «A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a
partir dos textos o pensamento legislativo… » (Código Civil, art. 9 nº1)
Prescindindo de uma apreciação destes critérios — veremos que o último
enfrenta um problema que não compete afinal ao legislador (porque é antes da
competência da reflexão metodológica e do pensamento jurídico que criticamente
a assume)! —, procure mostrar porque é que se pode dizer que o critério (a)
corresponde a uma função primária e os outros três a uma função secundária, mas
também porque é que os critérios (b) e (b)’ identificam regras de procedimento e
o critério (c) uma regra de juízo ou de julgamento (entenda-se, um cânone
metódico).
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 14

Excurso-Leitura (HART e TEUBNER e as regras secundárias)¥

Leia com atenção este excerto de The Concept of Law (1961) de Herbert HART (1907-

1992), uma obra capital do pensamento jurídico do século XX. Procure depois reflectir

sobre a caracterização das funções secundária da ordem jurídica com que este texto nos

confronta (corresponderão as notas invocadas a todos os momentos que autonomizámos?

que outras dimensões lhe parecem relevantes? e que dizer da distinção nele proposta

entre regras primárias e secundárias?).

«Se quisermos fazer justiça à complexidade de um sistema jurídico, é preciso distinguir dois tipos de
regras diferentes, embora relacionados. Por força das regras do primeiro tipo, que bem pode ser
considerado primário ou básico, é exigido aos seres humanos (quer estes queiram quer não!) que realizem
ou se abstenham de realizar certas acções. As regras do outro tipo são por assim dizer parasitas ou
secundárias em relação às primeiras: porque asseguram que os seres humanos possam criar, extinguir ou
modificar as regras anteriores, ou determinar de diferentes modos a sua incidência ou fiscalizar a sua
aplicação. As regras do primeiro tipo impõem deveres (regras de comportamento), as regras do segundo
tipo atribuem poderes, públicos ou privados (regras de reconhecimento, de transformação e de decisão-
julgamento). As regras do primeiro tipo dizem respeito a acções que envolvem movimento ou processos
de mudança físicos; as regras do segundo tipo tornam possíveis actos que conduzem não só a um
movimento ou a processos de mudança físicos mas também à alteração de deveres ou obrigações. (…) O
direito pode ser caracterizado (…) como uma união de regras primárias e secundárias…» (HART, The
Concept of Law, capítulo V)

Para poder fazer um comentário mais conseguido a este texto, importará de resto saber

um pouco mais sobre as regras secundárias autonomizadas por HART. Tratando-se assim

de distinguir três planos ou degraus analíticos: o primeiro ocupado pela

¥
Só mais tarde estaremos em condições de perceber que a caracterização das normas secundárias
proposta por HART e por TEUBNER se nos impõe indissociável das compreensões do direito que os
autores em causa explicitamente assumem (se não mesmo como «sinais» claríssimos dessas concepções)!
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 15

(importantíssima) regra de reconhecimento (uma regra «raramente formulada de forma

expressa na vida quotidiana de um sistema jurídico»!) e os outros (respectivamente)

pelas regras de mudança-transformação e de decisão-julgamento.

(a) A regra de reconhecimento (rule of recognition) [e as regras que a especificam]:

uma regra (última!) que, uma vez aceite, combate a incerteza que pode resultar da

convocação das regras primárias (ditas de comportamento)…

(a)’ enquanto indica-identifica autoritariamente — por referência a uma certa

característica geral possuída por tais regras primárias (por exemplo, o «facto» de terem

sido prescritas por um determinado orgão legislativo ou construídas por uma certa

experiência consuetudinária ou judicial) — quais são os critérios de comportamento-acção

que devem ser (validamente) reconhecidos como jurídicos e como tal dotados de

autoridade-potestas…

(a)’’… mas também enquanto hierarquiza e unifica estes critérios (ordenando as

respectivas características gerais, se porventura for indicada mais do que uma) [definindo

um critério de superioridade que beneficie uma delas].

•«Ao conferir uma marca dotada de autoridade, a regra de reconhecimento

introduz, embora de forma embrionária, a ideia de sistema jurídico; porque as regras

[primárias] não são agora apenas um conjunto discreto e desconexo, mas estão, de modo

simples, unificadas…» (HART, The Concept of Law, capítulo V, 3.)

•• «Onde quer que uma tal regra de reconhecimento seja aceite, tanto os cidadãos

particulares como as autoridades dispõem de critérios dotados de autoridade para

identificar as regras primárias de obrigação…» ( Ibidem, cap.VI, 1.)


INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 16

••• «Dizer que uma determinada regra é válida é reconhecê-la como tendo passado

todos os testes facultados pela regra de reconhecimento…» ( Ibidem, cap.VI, 1.)

(b) As regras de alteração ou transformação (rules of change) [(Ibidem, capítulo V,

3.)]: regras que combatem o estatismo do regime de regras primárias, conferindo poder

a um «indivíduo» ou a um «corpo de indivíduos» para introduzir novas regras primárias

(«dirigidas à vida do grupo») e eliminar as regras antigas.

b)’ «É à luz de tais rules of change que as ideias de acto legislativo e de

revogação devem ser compreendidas...» [Sem esquecer que as regras secundárias em causa

poderão então «especificar quais são as pessoas que devem legislar», mas também e

muito significativamente «definir» («em termos mais ou menos rígidos») o processo ou

modus operandi que a construção das leis há-de «seguir»].

b)’’ É no entanto também à luz de tais regras que podemos entender o exercício da

autonomia privada: «vendo nos actos de celebração de um contrato ou de transferência

de propriedade» um exercício por indivíduos de «poderes legislativos limitados» (the

exercise of limited legislative powers by individuals) .

(c) As regras de decisão-julgamento (rules of adjudication) [(Ibidem, capítulo V, 3.)]:

regras que combatem a ineficácia das regras primárias (ou da sua «pressão social

difusa»), dando poder «aos indivíduos» (a certos indivíduos) para julgar, entenda-

-se , para responder autoritariamente (através de uma decisão-julgamento) ao problema

de saber se uma regra primária foi ou não violada numa circunstância concreta específica.

Estas regras identificam os «indivíduos» que «devem julgar», na mesma medida em

que determinam o «processo a seguir». Abrem-nos assim as portas para um universo de


INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 17

conceitos ou categorias indispensáveis («os conceitos de juiz ou tribunal, jurisdição e

sentença»).

As vantagens sociais das regras secundárias: certeza e confiabilidade (reliability),

flexibilidade (na capacidade de mudança), eficácia (efficiency). Sem elas os sistemas de

regras primárias seriam incertos, estáticos (inflexíveis) e ineficazes. Procure perceber

porquê, fazendo corresponder a cada uma destas vantagens sociais as diferentes regras

secundárias analisadas por HART.


Há uma tradução portuguesa disponível de The Concept of Law:
O conceito de direito, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,
1ª ed., 1986 (da 1ª ed. inglesa de 1961),...., 5ª ed., 2007 (esta última da 2ª ed. inglesa de 1994)

Segundo TEUBNER, são as regras secundárias que nos permitem passar de uma fase de um direito

socialmente difuso (na qual o direito se distingue dificilmente das outras comunicações sociais que

assumem uma pretensão normativa) para a fase do direito parcialmente autónomo. O papel que

estas desempenham é assim o de uma indispensável autodescrição ~


do sistema (capaz de

distinguir as componentes do sistema jurídico das componentes da interacção social corrente).

Vale a pena dar-lhe a palavra:

«As “normas secundárias” analisadas por H. L. A. Hart constituem o exemplo mais célebre da

autodescrição do direito. Estas descrevem a operação pela qual o sistema jurídico observa na

perspectiva de uma comunicação plausível as suas próprias componentes e as transforma em

~
Só quando as normas secundárias (autonomizadsa pelo discurso jurídico universitário) são
usadas operacionalmente no funcionamento das decisões das práticas legislativa e jurisdicional é que
TEUBNER nos fala de autoconstituição. A passagem da autodescrição à autoconstituição dá-se quando as
referidas práticas passam a servir-se daquelas autodescrições (e das normas secundárias que elas
distinguem).
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 18

artefactos semânticos. Hart só se autoriza a falar de direito a partir do momento em que as

normas secundárias de identificação e de procedimento organizam-distribuem e regulam as normas

primárias de comportamento. Segundo Hart, “se (...) considerarmos a estrutura que resultou da

combinação-articulação de regras primárias de obrigação e de regras secundárias de

reconhecimento, de transformação e de decisão-julgamento, é evidente que teremos (...) o

coração do sistema jurídico”…» (Recht als autopoietisches System, 1989, cap. III)
Há uma tradução portuguesa de Recht als autopoietisches System, Frankfurt, Suhrkamp, 1989:
O Direito como sistema autopoiético, , Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989

Elementos de estudo:
A.CASTANHEIRA NEVES, « O direito (O
problema do direito)/O sentido do direito...»,in
Curso de Introdução ao Estudo do Direito, cit., 39-
-43.
Fernando José BRONZE, Lições de Introdução ao
direito, cit., 84-92
Leituras recomendadas: o citado capítulo V de O conceito de direito de HART(«O
Direito como união de regras primarias e secundárias»). Para uma reconstituição da
proposta de HART ver ainda Mário REIS MARQUES, Introdução ao Direito, vol. I,
Coimbra, Almedina, 2007, 2ª ed., pp. 455-459 (2.)

Propostas de trabalho

1. Reconstituindo por palavras suas o exemplo de P ETRAZISKY evocado supra, procure


mostrar a importância da intersubjectividade (enquanto bilateralidade atributiva) na
compreensão do problema–controvérsia que distingue o direito.

2. Releia a parábola dos trabalhadores da vinha (São Mateus 20:1-16) e construa um


texto desenvolvido em que procure mostrar a importância da tercialidade na
compreensão do problema–controvérsia que distingue o direito [A justiça que os
trabalhadores invocam («Os últimos só trabalharam uma hora... e deste-lhes tanto como a
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 19

nós, que suportamos o peso do dia e do calor... ») não é seguramente aquela que o
proprietário assume («Porventura vês com maus olhos que eu seja bom? »].

3. Faça um comentário desenvolvido ao texto seguinte:


«A ordem jurídica distingue-se das outras ordens sociais não tanto porque mobilize
sanções quanto porque é caucionada pela coercibilidade...»

II

1. Considere de novo as proposições normativas (a), (b), (d), (e), (f) e (g) propostas
supra, na pág. 6, procurando agora reconhecer a estrutura lógica das normas que estas
objectivam e a especificidade (se quisermos, o tipo) da sanção que lhes corresponde.

2. Considere depois estas outras proposições:


(a) «Os cônjuges devem escolher de comum acordo a residência da familia.»
(b) «Não tendo os cônjuges a mesma nacionalidade, as relações entre estes são
reguladas pela lei da sua residência habitual comum.»
(c) «Compete ao Governador civil, como representante do Governo na área do distrito,
velar pelo cumprimento das leis e regulamentos por parte dos orgãos autárquicos.»
(d) «Concluída a discussão do aspecto jurídico da causa, o juiz proferirá sentença dentro
de 30 dias, devendo discriminar os factos que considera provados e fundamentar a
decisão final.»
(e) «Quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for
revogada por outra lei.»
(f) «Todos têm direito à fruição e criação cultural, bem como o dever de preservar,
defender e valorizar o património cultural.»
(g) «A lei hierarquicamente superior deve ter prevalência sobre aquela que se integra
num escalão inferior.»
(h) «A lei só dispõe para o futuro...»
(i) «As leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais são publicados no
jornal oficial, Diário da República...»
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 20

(j) «O juiz presidente informa o arguido de que tem direito a prestar declarações em
qualquer momento da audiência, desde que elas se refiram ao objecto do processo,
sem que no entanto a tal seja obrigado e sem que o seu silêncio possa desfavorecê-
-lo...»
(k) «É direito dos trabalhadores criarem comissões de trabalhadores para defesa dos
seus interesses e intervenção democrática na vida da empresa...»
(l) «O Conselho de Estado é o orgão político de consulta do Presidente da República,
competindo-lhe assim pronunciar-se sobre a dissolução da Assembleia da República
e a demissão do Governo.
(m) «O método correcto da interpretação da lei é aquele que corresponde a uma
investigação histórica dos comandos e dos interesses...»
(n) «Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são
directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas...»
(o) «A sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do
falecimento deste...»

(p) «Os tribunais são os orgãos de soberania com competência para administrar a justiça
em nome do povo»
(q) «O tribunal pode, quando o considerar necessário à boa decisão da causa, deslocar-
se ao local onde tiver ocorrido qualquer facto cuja prova se mostre essencial e
convocar para o efeito os participantes processuais cuja presença entender
conveniente...»
(r) «Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos
análogos...»
(s) «As testemunhas depõem na audiência final, presencialmente ou através de
teleconferência, devendo o juiz procurar identificá-las e perguntar-lhes se são
parentes, amigos ou inimigos de qualquer das partes, se estão para com elas
nalguma relação de dependência e se têm interesse, directo ou indirecto, na causa.»

Distinga as proposições que lhe parecem corresponder ao desempenho de uma


função primária e de uma função secundária.

• Na sua justificação comece por mostrar em que linha da tectónica da ordem


jurídica se integram as proposições primárias que reconheceu.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 21

•• Concentre-se depois nas proposições ditas secundárias e procure descobrir


qual é o momento (de unidade sistemática, de desenvolvimento constitutivo, de
realização orgânica e de determinação procedimental) a que cada uma delas
principalmente corresponde.

••• Complementarmente, sempre que lhe pareça adequado, procure socorrer-se


da analítica da função secundária proposta por HART.

2. Dificuldades e perguntas… ou uma grande questão condutora : porque é


que (ou até que ponto é que) a analítica até agora ensaiada (e que poderíamos
prosseguir!) se mostra insuficiente (nos planos objectivo e normativo) se quisermos
compreender o projecto-procura que prático-culturalmente distingue o direito?

2.1. Será indispensável ver no direito um projecto com um determinado sentido


(ou uma experiência cultural com uma identidade e continuidade reconhecíveis)? Não
se nos exporá tal direito hoje como um mero regulador socialmente contingente,
disponível para assumir (e projectar normativamente, em termos sancionatoriamente
eficazes) quaisquer intenções e finalidades (aquelas nomeadamente que uma prática
económica, uma ética ou uma política dominantes estiverem em condições de lhe
impor)?
Que necessidade será a sua… senão a da institucionalização de uma ordem
social — e (ou) de uma ordem que possa responder ao problema da «indeterminação»


Para explorar desde logo as características e os efeitos-resultados: ver, numa leitura
complementar, CASTANHEIRA NEVES, «O direito (O problema do direito)/O sentido do direito...»,in
Curso de Introdução ao Estudo do Direito, cit., pp. 43-52.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 22

ou «inespecialização» da espécie homem░? Não será esta necessidade (e apenas esta!)


aquela que o aforismo «ubi societas, ibi jus» está hoje em condições de acentuar? Se
assim for, não teremos afinal que reconhecer que faz pouco sentido falar d’o direito
enquanto tal e que devemos antes reconhecer (diacronica e sincronicamente) muitos e
inconfundíveis direitos, direitos que não terão em comum senão uma experiência (mais
ou menos lograda) de partilha do mundo e de ordenação da(s) intersubjectividade(s) (o
direito da civitas romana, o direito medieval, o direito moderno… mas também o
direito islâmico e judaico▣ … o direito das favelas e dos «novos movimentos sociais»…
o direito da União Europeia e do comércio internacional)?
Será no entanto que podemos (que devemos) hoje repetir acriticamente este
aforismo? Constituirão todas estas institucionalizações normativas (e em todas as suas
dimensões regulativas) autêntico direito? Admitirá a nossa circunstância presente (e o
contexto cultural que lhe corresponde) que nos resignemos a descobrir na máscara
direito apenas um nome (capaz de identificar toda e qualquer experiência de
institucionalização mundano-social)?
Reparemos que os exemplos de H ART e TEUBNER — a que o nosso excurso-
-leitura deu atenção (supra, pp.14-16) — não foram seleccionados por acaso. É que
estes exemplos ajudam-nos (como que num contraponto negativo) a reformular a nossa
pergunta principal. Trata-se de querer saber se, para identificar uma ordem de direito,
nos basta afinal descobrir uma coordenação institucionalmente lograda de regras
primárias e secundárias, capaz de satisfazer exigências de certeza, flexibilidade e
eficácia (HART)…
…ou então de garantir a autodescrição que leva sério esta coordenação

autoconstitutivamente projectada na prática (e acompanhada formalmente por uma
pretensão de juridicidade╞) [TEUBNER].


Para perceber bem o que significa esta inespecialização ou inacabamento (mas também a
abertura ao mundo) da espécie homem (em confronto com as espécies animais plenamente adaptadas), ler
com toda a atenção Fernando BRONZE, Lições de Introdução ao direito, cit., pp. 116-119 (incluindo as
notas 2-6).

A propósito destas experiências cultural-civilizacionalmente distintas da nossa (que não se nos
oferecem afinal como autênticas civilizações de direito), ver também Fernando BRONZE, Lições de
Introdução ao direito, cit., pp. 153-157 (incluindo as notas 21-31).

Ver supra, p. 16, nota ~.

Pretensão de juridicidade que TEUBNER (assimilando LUHMANN) associa à determinação
de um código com duas valências (Recht/Unrecht), melhor dizendo, um código que prevê-projecta uma
valência positiva (lícito, legal, «justo»…→→ juridicamente positivo) e uma valência negativa (ilícito,
ilegal, «injusto»...→→ juridicamente negativo, «contra o direito»). Especificação que não nos deverá
agora ocupar. Bastando-nos ter presente que este código, assim enunciado, tem um carácter formal-
procedimental (livredeexigências ou determinações materiais).
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 23

2.2. Uma convocação exemplar de distintas experiências de institucionalização


de ordens (ditas) eficazes:
— uma convocação que nos confronta com experiências-limite associáveis
à organização macroscópica (experiências que constituíram sempre um
desafio para o discurso jurídico e filosófico-jurídico!)[ver infra, p. 22,
(e)]…
— uma convocação que sobretudo nos permite — numa fronteira marcada
pela interpenetração do jurídico e do social, do formal e do informal, do
público e do privado, do deliberado e do espontâneo, do central e do
periférico, do macroscópico e do microscópico, do dominante e do
subversivo — invocar as lições do «novo» pluralismo dos nossos dias
para surpreender uma «face oculta» (ou uma «face» menos visível) da
normatividade socialmente vigente (looking at the dark side of the
majestic rule of law!●) …

Reproduzamos a nossa pergunta, dirigindo-a sucessivamente:


(a) às ordens da mafia e do gang;
(b) aos «códigos» e «situações institucionais das sociedades secretas… e das
organizações clandestinas;
(c) à «nova» lex mercatoria (ou pelo menos à «ordem» das relações comerciais
internacionais);
Brevíssima alusão ao sentido e possibilidades da arbitragem ligada aos «interesses do
comércio internacional» [e muito especialmente à faculdade das partes escolherem os
àrbitros-«julgadores» e o «direito» (a ordem jurídica) «aplicável ao mérito da causa»].

(d) ao «cosmos regulativo» das organizações terroristas;


(e) às experiências (macroscópicas) de uma ordem estadual totalitária
(ideologicamente sustentada… mas também científico-tecnologicamente justificada);
• O exemplo do «sistema totalitário de não direito» (totalitäres Unrechtssystem)
construído pelo Estado Nacional-Socialista entre 1933 e 1945, dominado pelo «dogma
ideológico» de uma «política de raça» (mitológico-narrativamente justificada) e por uma
revisão drástica dos modos de constituição da «juridicidade» (uma revisão que transforma
os «factores»-experiências da «raça», da «nacionalidade»-sangue, da «vontade do chefe-
-Führer» e do «programa do partido» em «fontes de direito vinculantes») [O juiz e a


A expressão é precisamente de TEUBNER: «The Two Faces of Janus: Rethinking Legal
Pluralism», in TUORI / /BANKOWSKI / UUSITALO (ed.), Law and Power, Liverpool 1997, 119 e ss.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 24

prioridade da «ordem concreta»: a exigência de submeter interpretativamente toda a


«legislação» (aquela que é prescrita pelo novo Estado e aquela que sobrevive das
experiências anteriores) à mundividência nacional-socialista, tal qual ela se exprime no
«programa do partido» e nas «afirmações»-Äußerungen do Führer] [A nova versão
proposta para o § 1º do BGB (o Código Civil Alemão): «Sujeito da comunidade jurídica é
aquele, e só aquele, que é compatriota; compatriota é o que tem (o que é) sangue
alemão» (Rechtsgenosse ist nur, wer Volksgenosse ist: Volksgenosse ist, wer deutschen
Blutes ist)].

•• Os exemplos das narrativas de ficção: a ordem de necessidade do «Big Brother» de


1984 ▀... e a ordem de ciência (ainda que não de sociedade aberta!) determinada pela
engenharia social do Brave New World [sem esquecer a ordem dos «bombeiros» ou dos
«queimadores de livros» denunciada em Fahrenheit 451... e a ordem dos habitáculos-
-casulos (e da humanidade virtualmente programada) evocada em Matrix].

(f) aos sistemas estatutários de contrôle e de disciplina (correctiva e punitiva)


que — através de regras explícitas ou de práticas exemplares — operam nas (e que são
em parte autonomamente construídos pelas) instituições, organizações ou grupos (a
«justiça privada» das associações e das empresas);
(g) às experiências de regulação colectivamente negociada (às ordens das
convenções colectivas e dos acordos ou pactos normativos);
(g) às situações institucionais (com um carácter negocial) do direito dos
privados (criadas dispositivamente pela dinâmica de autodeterminação e de participação
dos sujeitos jurídicos privados);
(h) à ordem-rede da (desterritorializada) economia da informação (as a
transformation of the legal system in internet economy)…

Sem esquecer por fim que o referido novo pluralismo (com uma intenção
sociológica descritivo-explicativa ou compreensiva e/ou assumindo um programa
crítico de emancipação ☼) nos obriga ainda a dirigir a mesma pergunta a outras ordens
normativas — temporal e territorialmente concorrentes (ou pelo menos coexistentes)
com a ordem jurídica estadual — … nas quais a experiência instituinte (e condutora) é
menos a da pura associação-societas de interesses do que a de uma identidade
comunitária (relativamente restrita) e a das comunicações que a distinguem. Tratando-se
de dirigir a mesma pergunta… a que ordens?


Ler BRONZE, cit., pp.140-141.

Precisamente aquele que nos permite falar de um direito achado na rua, de um direito
alternativo, de um direito insurgente (um direito que importará invocar para denunciar os compromissos
político-ideológicos e as vinculações económicas do direito dominante ou da sua consagração estadual).
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 25

(i) À ordem prático-normativa das favelas («A favela é um espaço territorial,


cuja relativa autonomia decorre, entre outros factores, da ilegalidade colectiva da
habitação à luz do direito oficial brasileiro»);
Ler Boaventura de SOUSA SANTOS, «Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada», in
SOUTO / FALCÃO (org.), Sociologia e Direito. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, pp. 107-
117, disponível em.http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/boaventura/boaventura1d.html.

(j) às práticas e critérios de interrelação narrativamente autonomizados (e


espontaneamente reinventados) pelas «minorias» rácicas, étnicas, sexuais, religiosas ou
culturais na sua interacção com a(s) repectiva(s) maioria(s) (o problema do
multiculturalismo);
(k) às práticas consuetudinárias das pequenas comunidades (o exemplo das
comunidades indígenas da América do Sul… mas também de Rio de Honor );
(l) à normatividade construída pelos «novos movimentos sociais» e pelas suas
identidades colectivas difusas… mas também e muito especialmente pelo processo de
intervenção militante que explicitamente assumem (Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra, Mães da Praça de Maio, movimentos ecologistas e feministas,
movimentos de libertação das minorias sexuais, movimentos pós-coloniais)…

A possibilidade de descobrirmos em todas estas ordens articulações socialmente


logradas de critérios primários e secundários...

2.3. O diagnóstico de insuficiência objectiva e a procura de um critério de


demarcação ou dos sinais que o manifestam. A resposta oferecida pelo critério da
estadualidade e a desadequação desta resposta [ver com muita atenção
CASTANHEIRA NEVES, «O direito (O problema do direito)/O sentido do direito...»,in
Curso de Introdução ao Estudo do Direito, cit, pp. 58 (b))-71 e Fernando José
BRONZE, Lições de Introdução ao direito, cit., pp. 157-169].

2.4. A oportunidade-exigência de reconhecermos ainda uma insuficiência


normativa... que é também a de recusarmos a solução (alternativa àquela que o critério
da estadualidade nos oferece) de um nominalismo ou de um pluralismo acríticos (a
solução que atribuiria o «nome» direito a todas as situações institucionais de partilha do
mundo... que pudéssemos dizer socialmente eficazes!)

Ver BRONZE, cit., p.159.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 26

A acentuação do carácter prático-cultural do direito (e o desafio de reconhecer as


duas vozes-interlocutores inconfundíveis que alimentam o compromisso-promessa do
Estado-de-direito… ) a abrir-nos a possibilidade-exigência de identificar um projecto
autónomo e a sua pre-ocupação condutora [Para uma acentuação do «desafio» do
Estado-de-direito (enquanto exige que a juridicidade-validade «que nele se manifesta»
seja «autónoma do poder político») ver F. BRONZE, Lições de Introdução ao direito,
cit., pp. 166-168 ea s notas 63-71].
Uma preocupação condutora que (enquanto modo específico de criação e
recriação de sentidos comunitários) se precipita numa certa prática-procura — num
exercício, permanentemente renovado, de experimentação de um específico homo
humanus… e no processo de demarcação humano / inumano que lhe corresponde (mas
então também na pressuposição-experimentação-realização de uma validade)? Importa
reconhecê-lo. E reconhecê-lo... compreendendo que tal preocupação condutora emergiu
de um processo historicamente situado de autonomização-Isolierung…
— aquele (precisamente aquele!) que a civitas romana pôde assumir... enquanto
inventou o «nome» humanitas (e com ele o primeiro dos humanismos conhecidos!), mas
também enquanto permitiu que este humanismo (nas suas exigências de sentido e no seu
percurso de realização) se inscrevesse na nossa herança civilizacional (e assim mesmo
passasse a interpelar-nos!) como contexto e correlato de uma praxis de respostas a
controvérsias ou casos-problemas («no princípio era o caso!») [a praxis de responsa
dos jurisconsultos, sustentada numa auctoritas (numa legitimidade prático-cultural e na
adesão comunitária que esta suscita)... e não numa autoridade-potestas (na mobilização
efectiva de um poder e das vontades ou decisões que o tornam actuante)...]. Uma
preocupação condutora que esta experiência acendeu como uma das piras fundadoras da
nossa identidade civilizacional… cujos sinais-rastos — permanentemente sulcados e
convertidos (mas nem por isso menos indeléveis) — nos expõem assim (ainda hoje) a
uma experiência privilegiada de continuidade.

A insuficiência normativa de uma analítica que reduzisse o direito aos traços


identificadores de uma ordem objectivada.


Sem uma voz autónoma do direito a institucionalização estadual tem o caminho aberto para se
converter na ordem de necessidade de um poder — e então e assim (para o dizermos com RADBRUCH)
num autêntico Estado de não-direito ou Estado-contra-o-direito (Und so hat die Gleichstellung von Recht
und vermeintlichem oder angeblichem Volksnutzen einen Rechtsstaat in einen Unrechtsstaat verwandelt).
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 27

A exigência de compreender que o projecto autónomo do direito (na sua referência


normativa a valores) se constrói assumindo o modo-de-ser de uma vigência— uma
vigência que invoca uma validade comunitária (e a adesão prático-cultural que esta
exige)... na mesma medida em que exige um discurso de fundamentação (uma vigência
que enquanto tal é irredutível a uma pura eficácia ou ao núcleo gerador de uma
autoridade-potestas)…

 A exigência de compreender que esse projecto de demarcação humano / inumano se


cumpre na prática histórica como um continuum constituendo (com uma dimensão de
realização-experimentação que é indissociável da própria validade e dos sentidos
comunitários que a distinguem) [como se a novidade dos problemas-casos, inscrita em
contextos de realização sempre distintos, nos impusesse uma reinvenção permanente de
tal validade e do projecto que a assume… sem no entanto pôr em causa a continuidade
do projecto (e a possibilidade de a reconhecermos)]…
 A exigência de reconhecer que, se este projecto identifica uma dimensão
inconfundível da nossa prática — aquela em que nos expomos como sujeitos
comparáveis de direitos e de deveres (inscritos numa teia de bilateralidades atributivas)
—, é decerto porque nos oferece uma oportunidade de criação-realização de sentidos
comunitários específicos (constitutivos da experiência de um certo homo humanus de
autonomia e de responsabilidade) — sentidos que só poderemos compreender se (e na
medida) em que reconhecermos uma (não menos específica) intenção à validade e a
experiência de integração que esta assegura e que é diferente das (embora não
indiferente às) outras experiências de integração (que constituem outras dimensões da
nossa prática) [Como se tratasse afinal de descobrir-construir um commune diferente
daqueles communia que outros eixos de articulação-composição da identidade colectiva
nos proporcionam (um commune diferente daqueles communia que os sistemas político
e económico mas também as experiências éticas e religiosas, estéticas e filosóficas nos
oferecem)... ]

Direito e intenção à validade. A resposta de RADBRUCH à pergunta que formulámos supra (dirigida
explicitamente à ordem de necessidade de um Estado totalitário) [supra, pp. 21-22 (e)]:
« Direito é [significa o mesmo que] vontade e desejo de Justiça. Justiça, porém, significa: julgar sem
consideração de pessoas; medir todos pelo mesmo metro [comparar mobilizando o mesmo
critério-padrão, se quisermos, o mesmo tertium comparationis (an gleichem Maße alles
messen)]
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 28

Quando se aprova o assassínio de adversários políticos e se ordena o de pessoas de outra raça, ao


mesmo tempo que acto idêntico é punido com as penas mais cruéis e afrontosas se praticado contra
correlegionários (gegen die eigenen Gesinnungsgenossen), isso é a negação do direito e da justiça.
Quando as leis conscientemente desmentem essa vontade e desejo de justiça, como quando por
exemplo concedem ou negam arbitrariamente os direitos do Homem a certos homens (Wenn Gesetze
den Willen der Gerechtigkeit bewußt verleugnen, zum Beispiel Menschenrechte Menschen nach
Willkür gewähren und versagen), então carecerão tais leis de qualquer validade, o povo não lhes
deverá obediência, e os juristas deverão também ter a coragem de lhes recusar o carácter de jurídicas
(dann müssen auch die Juristen den Mut finden, ihnen den Rechtscharakter abzusprechen)...»
[Gustav RADBRUCH, "Cinco Minutos de Filosofia do Direito" (Setembro de 1945), Terceiro minuto]

Ora é precisamente a experiência de continuidade desta específica procura do


homo humanus — e esta convocada (interrogada) nuclearmente como uma experiência
de realização autónoma (com diversas dimensões e diversos palcos) — que o próximo
capítulo irá explorar... enquanto se propõe reflectir sobre o sentido específico do
direito... Com um esforço de concentração inevitável, que nos obrigará a privilegiar os
palcos mais recentes (e os ciclos que lhes correspondem).

Elementos de estudo (pp. 20-27)


A. CASTANHEIRA NEVES, « O direito (O
problema do direito)/O sentido do direito...»,in
Curso de Introdução ao Estudo do Direito, cit., 52-
-89 (todo o ponto 2.).
Ver também todas as pp. das Lições de F.
BRONZE indicadas expressamente neste
sumário desenvolvido (e nas suas notas).

Capítulo II

A experiência do sentido específico do direito reconstituída


num diálogo crítico com o positivismo normativista do
século XIX ou os desafios e possibilidades de uma
representação pós-positivista

1. O grande arco pré-moderno.


1.1. Um direito que se descobre e autonomiza sucessivamente...
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 29

α)...como sentido e como especulação filosófica [O holismo metafísico-ético-


político grego a assumir e a integrar-assimilar o jurídico como direito natural
teoreticamente determinável...];
β)...como prática jurisprudencial [A experiência romana a impor a autonomia
comunitária do jurídico enquanto tarefa de assimilação judicativa
(respondere/cavere/agere) de controvérsias-casos («No princípio era o caso») e a
descobrir nesta assimilação uma explicitação correctiva (prudencial) de uma
ordem materialmente pressuposta: o jurista-jurisconsulto como intérprete
autêntico da comunidade sustentado numa auctoritas e na articulação de virtudes
morais e intelectuais que esta determina.];
γ)...como domínio cultural universitariamente reconstituído e comunicado [A
trindade sapientia /prudentia /scientia. A Scientia Juris como interpretatio. A
reconstrução prática (hermenêutico-dialéctica) dos textos de autoridade (do
Corpus iuris civilis mas também do Corpus iuris Canonici): o método
escolástico.].

1.2. Um contexto prático comunitariamente indisponível.


α) A polis grega [O Ser como ordem pressuposta, definitiva e perfeita; o
homem como zoon politikon; a referência ontológico-metafísica ao ser cósmico, a
identidade ser/valor.].
β) A civitas romana [ A ordem materialmente pressuposta, descoberta (como
um «cosmos de instituições hipostasiadas») na experiência ontológica do caso e
na tipologia substancializada que a traduz: o direito natural como a ipsa res justa
(o justo natural concreto, autêntico jus lido na «natureza das coisas» pela
prudentia dos jurisprudentes «segundo a situação e o curso das coisas humano-
sociais, nas suas condições e situações particulares»).].
γ) A respublica christiana medieval [A ordem da criação: a «transcendência»
com um «nome pessoal». A ontologia teológico-metafísica.].

1.3. A unidade reflexiva da filosofia prática (iuris naturalis scientia): a intenção


filosófica e a intenção prática; a relação integrada direito natural/direito positivo.

« O “direito natural” foi sempre pensado na scientia que a ele se dirigia (...), numa dupla
intenção. Numa intenção filosófica, de compreensão essencial e absoluta do direito pela
explicitação dos seus constitutivos fundamentos ontológicos (fosse uma ontologia
metafísica nos gregos, fosse uma ontologia já de sentido teológico-metafísico, já mais
cingida à “natura rerum”, na Idade Média cristã (...)), que logo se projectava numa
intenção normativa ― intenção normativa esta que, tendo naquela outra primeira o seu
fundamento regulativo, se traduzia na determinação de uma normatividade válida por si
mesma, porque referida àquele fundamento ontológico e filosófico-especulativamente
explicitado. Normatividade que procurava objectivar-se [em princípios e critérios] (...)
e que constituiria tanto o cânone regulativo como o critério da validade de qualquer
ordem histórica de convivência prática. Ou seja, o direito era nestes termos imputado a
uma filosofia que definia anteriormente a nomos da prática, e que ia compreendida no
seu sentido e função como uma normativa “filosofia prática”. Com duas notas mais a
ter em conta. Por um lado, essa filosofia, se era prática na sua intenção de validade e
na sua projecção normativa, era manifestamente teorética no sentido da sua
fundamentação – pois a fundamentação seria atingida(...) em termos (...) ontológico-
normativos(...), pelo conhecimento do ser (com uma teleologia essencial) ou pelo
conhecimento de uma certa “natureza”. Aliás, não era isso senão directa expressão do
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 30

pensamento clássico, enquanto procurava ele, para o que quer que fosse, o sentido e o
fundamento no ser e compreendia a inteligibilidade sempre como verdade – como
correspondência a uma pressuposta auto-subsistência material. Para o jusnaturalismo
clássico em sentido estrito ou pré-moderno o “direito natural” (“dikaion physikon”, “ius
naturalis” ou “lex naturalis”) era verdadeiramente, não um direito a concorrer com
outro ou outros direitos, mas “o direito absoluto”, já que, se o direito positivo (“dikaion
nomikon” ou “thesei dikaion”, “lex temporalis”, “lex humane”, “ius positivum”) era
decerto reconhecido, e na sua contingência histórico-social e política, não deixava
também de ser pensado como elemento de um sistema normativo hierárquico e
integrado, que teria no “direito natural” o seu fundamento normativamente constitutivo
e também regulativo e perante o qual lhe cabia tão-só a função de uma histórico-social,
e portanto variável, determinação e concretização» (CASTANHEIRA NEVES, O
problema actual do direito. Um curso de Filosofia do Direito, Coimbra-Lisboa 1994)

1.2. A especificidade jurisprudencial e a autonomia material do direito: o direito como


juris-prudência que assume (ora mais judicativamente ora mais hermenêutico-
dialecticamente) a prática comunitária : a unidade intencional direito/pensamento
jurídico. O direito como tarefa prática de resolução de controvérsias. A pluralidade dos
modos de constituição do direito.

Elementos de estudo (pp. 27-28):


Fernando José BRONZE, Lições de Introdução ao
direito, cit., 308-315

Leitura especialmente recomendada:


A. CASTANHEIRA NEVES, «O problema da
universalidade do direito – ou o direito hoje, na
diferença e no encontro humano-dialogante das
culturas», Digesta, vol. 3º, Coimbra, Coimbra
Editora, 2008, pp. 111-114 (pontos 1.-3.)
Outras leituras:
A. CASTANHEIRA NEVES, «A imagem do
homem no universo prático», Digesta, vol. 1º,
Coimbra, Coimbra Editora, 1995, volume 1º, 319-
323 (II 1.).

2. Os factores determinantes do legalismo e do normativismo positivistas reconstituídos


no contexto prático-cultural do pensamento moderno-iluminista.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 31

2.1. O factor antropológico:


A narrativa de uma criação ex nihilo: o homem desvinculado anterior a qualquer
vínculo social... mas também livre de qualquer tradição

(a) Da comunidade — dada enquanto dimensão integrante da


ordem natural indisponível (na qual o homem se inscreve-
integra como homo institutionalis) — à sociedade (enquanto
artefacto construído prático-culturalmente pelo homem).

(b)O auto-projecto regulativo (a ideia) do homem desvinculado,


onerado com a invenção-construção da societas ― o homem do
estado de natureza, «composto» pelas dimensões irredutíveis dos
interesses, da liberdade-voluntas e da razão-ratio
(axiomaticamente autofundamentante).
Os «papéis» distintos que estas dimensões desempenham (ou os diversos
equilíbrios de institucionalização que histórico-culturalmente propiciam):
α) o homem dos interesses emancipados (das necessidades subjectivas) como
núcleo de reinvenção-construção da societas: a lição de HOBBES (de pensar a societas-
artefacto e o Estado-Leviathan a partir do dado do homem dos interesses egoistas e do
seu ius omnium in omnia, se não já da «guerra de todos contra todos»), uma lição que só
o utilitarismo de BENTHAM (com outros pressupostos e em nome de um outro projecto)
virá a prosseguir... e que, prolongada pelo pragmatismo norte-americano do século XIX
(PEIRCE, JAMES, HOLMES), encontrará no funcionalismo pragmático (e pragmático-
económico) do nosso tempo a sua expressão mais acabada.

●«And therefore if any two men desire the same thing, which nevertheless they cannot both
enjoy, they become enemies; and in the way to their end (which is principally their own
conservation, and sometimes their delectation only) endeavour to destroy or subdue one
another.(…) To this war of every man against every man, this also is consequent; that nothing
can be unjust. The notions of right and wrong, justice and injustice, have there no place. Where
there is no common power, there is no law; where no law, no injustice…» [Thomas HOBBES,
Leviathan (1651) part I, Of Man, Chapter XIII («Of the natural condition of mankind as concerning
their felicity and misery»)]


«[The] project of founding a form of social order in which individuals could emancipate
themselves from the contingency and particularity of tradition by appealing to genuinely universal,
tradition-independent norms was and is not only, and not principally, a project of philosophers. It was and
is the project of modern liberal, individualist society…» (MACINTYRE, Whose Justice? Which
Rationality?, London, Duckworth, 1988, p. 335)
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 32

●●«It is true that certain living creatures, as bees and ants, live sociably one with another
(which are therefore by Aristotle numbered amongst political creatures), and yet have no other
direction than their particular judgements and appetites; nor speech, whereby one of them can
signify to another what he thinks expedient for the common benefit: and therefore some man
may perhaps desire to know why mankind cannot do the same. To which I answer, (…) the
agreement of these creatures is natural (…), that of men is by covenant only, which is artificial:
and therefore it is no wonder if there be somewhat else required, besides covenant, to make their
agreement constant and lasting; which is a common power to keep them in awe and to direct
their actions to the common benefit. The only way to erect such a common power (…) is to
confer all their power and strength upon one man, or upon one assembly of men, that may
reduce all their wills, by plurality of voices, unto one will. (…) This is more than consent, or
concord; it is a real unity of them all in one and the same person, made by covenant of every
man with every man, in such manner as if every man should say to every man: I authorise and
give up my right of governing myself to this man, or to this assembly of men, on this condition;
that thou give up, thy right to him, and authorise all his actions in like manner. This done, the
multitude so united in one person is called a Commonwealth; in Latin, Civitas. This is the
generation of that great Leviathan, or rather, to speak more reverently, of that mortal god to
which we owe, under the immortal God, our peace and defence. » [Thomas HOBBES, Leviathan
(1651) part II, Of Commonwealth, Chapter XVII («Of the causes, generation, and definition of a
Commonwealth »)]

Para ler estes ou outros capítulos do Leviathan, ver


http://oregonstate.edu/instruct/phl302/texts/hobbes/leviathan-contents.html.

β) A autonomia da voluntas e (ou) da ratio (e da concertação que estas


autorizam) hipertrofiada num individualismo e secularizada na imanência [ver
CASTANHEIRA NEVES, «O pensamento moderno-iluminista como factor
determinante do positivismo jurídico (A origem moderno-iluminista do legalismo)», pp.
3-5 αα)].
γ) A secularização e o secularismo [ibidem, pp. 5-7 ββ)].
A Razão já não como «serva da Revelação» mas como «fonte autárquica do conhecimento do
justo»: a validade do direito que a razão conhece impor-se-ia nos mesmos termos «ainda que
pudéssemos admitir – o que não pode conceber-se sem um grave pecado! – que Deus não existe
ou que não se ocupa dos assuntos humanos» [Hugo GRÓCIO, De Jure Belli ac Pacis (1625),
Prolegomena, 11.].

2.2. A emancipação dos interesses (e do sistema económico) e a condição social em


que esta se traduz [CASTANHEIRA NEVES, «O pensamento moderno-iluminista...», cit.,
13-16 β)].
A emergência do capitalismo A «descentralização das perspectivas de
compreensão do mundo» que autonomiza o sistema económico e o seu discurso
instrumental-estratégico (HABERMAS), discurso este sustentado numa intenção de
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 33

eficiência (se não explicitamente numa demarcação custo /benefício e na operatória de


maximização que esta exige)┿.

2.3. Uma nova concepção da razão: a identidade teorético-epistémica do logos (um


empobrecimento das modalidades da razão!) e a conversão da techné — que deixa de
estar associada à poiesis (a virtude intelectual da criação) para se converter numa
operatória da episteme-ciência. O sujeito racional e o mundo dos factos empíricos e
discretos (que a subjectividade intencional deste sujeito irá submeter a uma
reconstrução racional, capaz de reconhecer uma ordem de causalidade e as
regularidades que a manifestam).
A especificidade de uma concertação discursiva determinada por três planos:
— a pressuposição axiomática;
— a construção hipotético-explicativa (o método indutivo vinculado à
comprovação empírica);
— a desimplicação lógico-formal (a consistência lógico-dedutiva).
A «ideia» moderna de ciência (os modelos polarizadores da analítica
matemática e da experimentação física). O declínio da racionalidade prático-prudencial
e dos domínios que a convocavam-especificavam (tópica, retórica, dialéctica).
[CASTANHEIRA NEVES, «O pensamento moderno-iluminista...», cit., 7-8 β)]

2.4. O jusracionalismo a descobrir a juridicidade como uma normatividade


sistematicamente explicitante de um auto-projecto humano [ibidem, 8-10]

«O direito natural moderno foi pensado – em consonância com o racionalismo


também moderno e a sua razão axiomático-demonstrativa ou sistemático-dedutiva,
que em LEIBNIZ foi elevada filosoficamente à ideia de “sistema” – igualmente em
sistemas de uma normatividade abstractamente deduzida de axiomas teológicos e ético-
racionais (F. SUAREZ) OU a partir de certos postulados antropológico-racionais (assim
em GRÓCIO, PUFENDORF, THOMASIUS, WOLF, etc.), convertendo-se desse modo num
jusracionalismo que definia um sistema construído e concluso de normas, como um
direito ideal e um sistema normativo-crítico contraposto ao direito real ou histórico-
social e político, o direito positivo. Daí a dualização do universo jurídico consequente
ao jusnaturalismo moderno-iluminista – não haveria já um único sistema integrado por
vários níveis de normatividade e numa sucessiva especificação, desde a “natural” ou
essencial normatividade fundamentante à positiva normatividade determinada e
concretizadora, mas dois direitos com sentido, constitutividade e realidades diferentes, o


Ver ainda BRONZE, cit, pp. 240 ( nota 13), 242-243, 328-330.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 34

“direito natural” e o “direito positivo”. E foi este o ponto decisivo para a evolução que
nos importa considerar. É que este “direito natural” moderno ou os seus sistemas
normativos jusracionalistas haviam perdido, como já o denunciava o seu próprio
dualismo, a vinculação ao ser enquanto tal – não se inseriam com o direito positivo num
sistema integrante que globalmente radicaria no ser –, pois não eram verdadeiramente
mais do que sistemas racionalmente construídos, embora invocando como base axiomas
e postulados que se pretendiam “naturais” na sua evidência ética. E daí,
paradoxalmente, que esse direito natural moderno não fosse afinal verdadeiramente
direito. É que também para o direito, ou particularmente para o direito como entidade
prática, a “essência” não comprova nem garante a “existência”: o direito não o é (não é
direito) sem um particular modo de “existência”, sem um específico modo-de-ser. Para
que o direito possa reconhecer-se como tal não basta a sua intencionalidade normativa,
há que revelar-se determinante dimensão da praxis – desde logo em termos de
vinculante validade para a acção ou a inter-acção. Que tanto é dizer que o direito não
pode ser tão-só intencionalmente prático, terá de ser efectivamente prático. Não temos
direito apenas porque pensamos a essência jurídica ou porque construímos um sistema
de normatividade jurídica – teremos assim tão-só pensado a juridicidade ou quando
muito construído uma possibilidade jurídica e nada mais. Para que tenhamos direito
importa ainda que a normativa juridicidade, além da sua característica intencionalidade
ou de uma específica possibilidade, se possa reconhecer histórico--socialmente
vinculante e, portanto, dimensão determinante da prática social – só a determinação e
vinculação práticas transformam a juridicidade em direito. Nesse sentido é, pois, exacto
dizer-se que “a positividade é uma característica irrenunciável do direito” (H.
WELZEL)...»
(CASTANHEIRA NEVES, O problema actual do direito. Um curso de Filosofia do
Direito, Coimbra-Lisboa 1994)

2.4.1. Uma classificação possível:


α) A excepcionalidade do jusracionalismo «existencial» ou «empírico» de
Thomas HOBBES (1588-1679)...
O ius omnium in omnia (direito de todos sobre todas as coisas) e as laws of
nature do status naturalis (concentradas na regra pacta sunt servanda). A
superação do bellum omnium contra omnes conduzida pela societas-
-máquina do Leviathan. A definição avant la lettre de um sentido
pragmático-instrumental, se não mesmo já estratégico, de lei (que só o nosso
tempo vai estar em condições de assumir)...

β) O jusracionalismo comum, alimentado por uma construção racional


nuclearmente apriorística («inteiramente sincronizado com as exigências políticas e
jurídicas do seu tempo»):
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 35

β)’... o ciclo do direito racionalmente natural ― no qual o direito natural


(«aquele que a razão conhece») determina autênticas exigências de conteúdo ao
direito positivo ou voluntário («aquele que a vontade cria») [«o direito não é
sem a sua expressão na vontade mas o seu conteúdo é racionalmente
constituído»];
Hugo GRÓCIO (1583-1645)
Samuel PUFENDORF (1632-1694)
Christian THOMASIUS (1655-1728)
Christian WOLF (1679-1754)
β)’’... o ciclo do direito racional ou do direito formalmente racional ― no
qual a razão intervém apenas formalmente, impondo exigências estruturais à
composição da vontade legislativa e ao texto em que esta se exprime.
Jean-Jacques ROUSSEAU (1712-1778)
Emmanuel KANT (1724-1804)

2.4.2. O ponto de partida : a «natureza do homem» experimentada e assumida na


sua inteligibilidade (na sua «evidência») ético-empírica: a possibilidade de «descobrir»-
-isolar nesta ― e no status naturalis ou status primaevus que lhe corresponde (sendo
este status a representação hipotética do «estado ou da situação do homem individual
desvinculado, anterior à sua convivência social e política») ― um traço decisivo, que se
constitui-constrói e reconstrói racionalmente.

Assim nos contemporâneos GRÓCIO e HOBBES: com a representação do


appetitus societatis do primeiro a contrapor-se ao modelo antropológico do homo homini
lupus justificado pelo segundo. Assim em John LOCKE (1632-1704) e PUFENDORF (por
sua vez também entre si rigorosamente contemporâneos!): de tal modo que o modelo
antropológico de um homem já naturalmente social assumido pelo primeiro ― com a
especificidade de um status naturalis já sustentado numa ordem de direitos subjectivos
naturais (reason teaches all mankind who will consult it, that, being all equal and
independent, no one ought to harm another in his life, health, liberty or possessions) ―
se contraponha agora à representação da debilidade, vulnerabilidade ou desamparo
(imbecillitas) assumida pelo segundo ― sendo certo não obstante que esta debilidade
aparece já ligada à possibilidade-faculdade da sociabilidade (socialitas)…
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 36

«To understand political power right, and derive it from its original, we must
consider, what state all men are naturally in, and that is, a state of perfect
freedom to order their actions, and dispose of their possessions and persons, as
they think fit, within the bounds of the law of nature, without asking leave, or
depending upon the will of any other man. A state also of equality, wherein all
the power and jurisdiction is reciprocal, no one having more than another (…).
But though this be a state of liberty, yet it is not a state of licence: though
man in that state have an uncontroulable liberty to dispose of his person or
possessions, yet he has not liberty to destroy himself, or so much as any
creature in his possession, but where some nobler use than its bare preservation
calls for it. The state of nature has a law of nature to govern it, which obliges
every one: and reason, which is that law, teaches all mankind, who will but
consult it, that being all equal and independent, no one ought to harm another
in his life, health, liberty, or possessions: …» [L OCKE, Second Treatise of Civil
Government (1680-1690), cap. II («Of the State of Nature»)]
Para ler mais , ver http://www.constitution.org/jl/2ndtr02.htm
e http://www.saywhatistruth.com/locke.htm

«The state of men is either natural or adventitious. The natural state can be considered
under three heads, so far as mere reason lights the way; either in relation to God the
Creator, or in relation to individual men, as regards themselves, or as regards other men.
(…) In the second way we can consider the natural state of man, if we imagine what his
condition would be, if one were left entirely to himself, without any added support from
other men, assuming indeed that condition of human nature which is found at present.
Certainly it would seem to have been more wretched than that of any wild beast, if we
take into account with what weakness man goes forth into this world, to perish at once,
but for the help of others; and how rude a life each would lead, if he had nothing more
than what he owed to his own strength and ingenuity. On the contrary, it is altogether
due to the aid of other men, that out of such feeble-ness we have been able to grow up,
that we now enjoy untold comforts, and that we improve mind and body for our own
advantage and that of others. And in this sense the natural state is opposed to a life
improved by the industry of men…» [PUFENDORF, De officio hominis et civis juxta legem
naturalem libri duo (1682), cit.na trad. Inglesa On The Duty of Man and Citizen, Livro II,
capítulo I («On the Natural State of Man»)]

Para ler mais , ver http://www.constitution.org/puf/puf-dut_201.htm

Assim também de THOMASIUS («a apetência de felicidade») a ROUSSEAU («a


bondade como que associal do bom selvagem»)... mas já não em K ANT! KANT recusa a
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 37

possibilidade de encontrar os princípios da filosofia prática numa «antropologia»


empírica e fenoménica (num qualquer conhecimento da natureza do homem) e propõe-se
compreender estes princípios na sua autonomia noménica, transcendental e ideal-
regulativa («como autênticas leis a priori que o Homem atingiria enquanto ser racional»):
ao ponto de reconhecer que o abandono do estado natural deve ser entendido já como um
dever ético («um postulado racional prático que se deduz do próprio conceito de direito»).

KANT
Estado de natureza: um status de «liberdade externa desprovida de leis» onde encontramos
um modo de determinação do «meu e do teu exterior» com um carácter puramente provisório — um
direito privado baseado na «posse física», ou mais rigorosamente, um «modo de ter» que goza da
«presunção jurídica» de se «poder converter em jurídico» [A posse física só se converterá plenamente
em modo de ter jurídico mediante a «união com a vontade de todos numa legislação pública»: no
estado de natureza a sua juridicidade é potencial e cumpre-se como uma antecipação-expectativa do
status civilis («tem comparativamente o valor de uma posse jurídica enquanto se aguarda por um tal
estado»)] (§ 9 da Doutrina do Direito, Primeira Parte da Metafísica dos costumes)

Pacto social ►►Constituição civil ▬ Passagem para o status civilis ou «estado jurídico»

«O estado jurídico é aquela relação dos homens entre si que engloba tanto as condições sob as
quais exclusivamente pode cada um participar do seu direito quanto o princípio formal do mesmo
direito, considerado de acordo com a ideia de uma vontade legisladora universal...» (Ibidem, § 41)

«Do direito privado no estado de natureza surge então o postulado do direito público: deves,
numa relação de coexistência inevitável com todos os outros, sair do estado de natureza para entrar
num estado jurídico...(...) A razão para isso pode explicar-se analiticamente a partir do conceito de
direito na relação externa, por contraposição à violência. Os homens (...) cometem uma injustiça em
último grau ao querer estar e permanecer num estado que não é jurídico, num estado, entenda-se, em
que ninguém está seguro do seu contra a violência» » (Ibidem, § 42)

«O conjunto de leis que precisam de ser universalmente promulgadas para produzir um estado
jurídico é o direito público. Este é portanto um sistema de leis para um povo, quer dizer, para um
conjunto de homens, ou para um conjunto de povos que, achando-se entre si numa relação de
influência recíproca, necessitam do estado jurídico sob uma vontade que os unifique, ou seja de uma
constituição (constitutio), para se tornarem participantes daquilo que é de Direito...» (Ibidem, § 43)

Ler estes e outros parágrafos de Die Metaphysik der Sitten (1797-1798)


na tradução portuguesa de José LAMEGO,
A metafísica dos costumes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004

2.4.3. O sistema de consistência axiomático-dedutiva... que não obstante a


concepção maximalista de direito natural que assume (exigindo como que um
continuum de consistência lógico-proposicional entre o direito racional e o direito
voluntário) acaba por se esgotar num direito puramente pensado (apenas «essência
racional» ou «projecto normativo»...«mas não, só por isso direito») e por impor uma
cisão efectiva entre um direito ideal e um direito real [ler atentamente supra o texto da
pág. 32]: cisão sobretudo visível porque o direito real desafiado por estes projectos
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 38

filosófico-políticos prolongava-continuava (não obstante algumas correcções


progressivas, determinadas sobretudo pela codificação do despotismo iluminado mas
também pela assimilação do cânone da interpretação do direito positivo segundo a
recta razão) a prática (e o sentido da prática) do ius commune.
« A verdade do direito positivo, como a do direito natural, pode demonstrar-se com
precisão e clareza e isto na medida em que há uma relação entre todas as obrigações e
todos os direitos e de tal modo que é possível deduzir um do outro mediante uma cadeia
ininterrupta de raciocínios: as verdades que assim se relacionam entre si constituem um
sistema.» (WOLF)

2.4.4. A concepção normativista: o direito como um sistema autónomo de


normas com uma realidade e um modo de existência racional-abstractos (o direito existe
nas suas proposições normativas e existe independentemente da sua realização concreta,
que nada há-de poder acrescentar-lhe no plano da normatividade-juridicidade). A
possibilidade-exigência de cumprir positivamente este direito numa legislação
sistemática, num código. A exigência constitutiva e transformadora dos códigos
jusracionalistas (que não se limitam a declarar-especificar ou a «ordenar» ou a
«melhorar»-reformar um direito já vigente mas que constituem um direito novo e que
com este e com a mediação deste determinam uma «planificação global da sociedade»).
Os códigos do despotismo iluminado (o Código prussiano e o Código civil austríaco) e
os códigos napoleónicos pós-revolucionários (o modelo inexcedível do Code Civil).

2.5. A subjectividade auto-constitutuinte da modernidade a assumir o problema


teleológico-político da invenção da societas.

2.5.1. A dimensão da autonomia-liberdade como «dimensão e categoria prática


originária» (the state of perfect freedom within the bounds of the law of nature) a
projectar-se numa representação dos direitos subjectivos («a conversão do direito em
direitos») [ «Direitos que se diziam “naturais” para assegurar um sentido individualista
pré-social que os preservasse da disponibilidade pelo poder político...» (CASTANHEIRA
NEVES)]. A excepção de HOBBES…

2.5.2. A recuperação do contratualismo já não como o pactum histórico


homologador da convivência político-comunitária mas como «acordo racional de
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 39

vontades»: a criação-constituição de um novo poder que resultasse da liberdade e fosse


por ela legitimado.
A sucessão de dois pactos: o pactum unionis que constitui o cosmos social ou a
associação e o pactum subjectionis que constitui o poder político ou Estado. A
construção exemplar de GRÓCIO e mais uma vez a excepção de HOBBES…[«que
dissolve desde logo o contrato social no pacto de submissão, pelo qual a sociedade
abandona imediatamente os seus direitos naturais a favor do soberano, de tal modo que,
como resultado, só restam um estado de natureza desprovido de direito e um direito
positivo absoluto...» (WIEACKER) ].
O status civilis (social, político ou jurídico) como status adventitius («que vem
depois», que «não é natural», que é «acidental») [P UFENDORF].
A concentração exemplar do problema em R OUSSEAU: «Encontrar uma forma
de associação que defenda e proteja (...) a pessoa e os bens de cada associado e pela
qual cada um, ao unir-se (e enquanto se une) a todos os outros não obedeça no entanto
senão a si próprio e permaneça tão livre como antes. Tal é o problema fundamental
para o qual o contrato social representa a solução...» [Du Contrat social ou principes du
droit politique (1762), Livre premier, Chapitre VI («Du pacte social»)]

«L’homme est né libre et partout il est dans les fers. Tel se


croit le maître des autres, qui ne laisse pas d’être plus
esclave qu’eux…» [Ibidem, Livre premier, Chapitre I ]

2.5.3. O novo poder ? Que novo poder? Não certamente o do Leviathan de


HOBBES (Estado absolutamente soberano a quem todos os súbditos entregam o seu
direito à autodeterminação). Mas então que poder? Numa primeira fase (ligada á
experiência do direito racionalmente natural e a T HOMASIUS e a WOLF em particular)
decerto o poder do despotismo esclarecido. Depois (e muito especialmente!), numa
concertação exemplar dos contributos de LOCKE e de ROUSSEAU ou das ideologias
liberal e democrática que traduzem (e de certo modo empobrecem) estes contributos —
e então e assim exigindo uma ruptura revolucionária! —, o poder do Estado demo-
liberal. Uma atenção particular a esta especificação ideológica e às exigências de
liberdade e de igualdade [ver BRONZE, ob.cit., pp. 335-341]

2.6. A condição jurídica [ver C. NEVES, «O pensamento moderno iluminista...», cit.,


pp.19-22 δ)]: uma nova concepção da lei como expressão de um poder legislativo (de
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 40

uma voluntas legítima) que só se constitui na sua juridicidade quando o seu texto
assimila a estrutura racional de uma norma. Uma racionalidade que resulta:
— da articulação hipotético-condicional se...→então;
— da universalidade racional das suas formulações [generalidade
/abstracção/ formalidade em sentido estrito];
►«Actos de todo o povo para (e sobre) todo o povo...» (generalidade) «...que
tratam de uma matéria comum...» (abstracção)... [ROUSSEAU].

«Mais quand tout le peuple statue sur tout le peuple il ne considère que
lui-même, et s'il se forme alors un rapport, c'est de l'objet entier sous un
point de vue à l'objet entier sous un autre point de vue, sans aucune
division du tout. Alors la matière sur laquelle on statue est générale
comme la volonté qui statue. C'est cet acte que j'appelle une loi. Quand je
dis que l'objet des lois est toujours général j'entends que la loi considère les
sujets en corps et les actions comme abstraites, jamais un homme comme
individu ni une action particulière. Ainsi la loi peut bien statuer qu'il y
aura des privilèges, mais elle n'en peut donner nommément à personne; la
loi peut faire plusieurs classes de citoyens, assigner même les qualités qui
donneront droit à ces classes, mais elle ne peut nommer tels et tels pour
y être admis; elle peut établir un gouvernement royal et une succession
héréditaire, mais elle ne peut élire un roi ni nommer une famille royale; en
un mot toute fonction qui se rapporte à un objet individuel n'appartient
point à la puissance législative…» (Du Contrat social, cit., Livro II, cap. VI)
Ler todo este capítulo no Material de apoio (ROUSSEAU)
►... mas também actos da vontade legisladora geral que enquadram a acção sem lhe
imporem previamente um conteúdo (antes confiando este à livre autodeterminação dos
interesses e dos fins de cada sujeito) {A exigência de abstrair do arbítrio, do «fim que
cada um se pode propor no que quer», para se considerar «apenas a forma na relação
dos arbítrios» e a forma que confere a estes a sua «liberdade racional»: «Age de tal
modo que a máxima da tua vontade possa sempre ser considerada como um princípio de
legislação universal» (princípio da moralidade) / «Age exteriormente de tal sorte que o
livre uso do teu arbítrio possa concordar com a liberdade do outro segundo uma lei geral
de liberdade» (princípio do direito) [KANT]}.

«O conceito de Direito (...) diz respeito , em primeiro lugar, à relação externa

(...) . [Em] segundo lugar (...) à relação do arbítrio pura e simplesmente com

o arbítrio do outro. Em terceiro lugar, nesta relação recíproca dos arbítrios não
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 41

se atende, de todo em todo, à matéria do arbítrio, quer dizer, ao fim que cada

qual se propõe com o objecto que quer; por exemplo, não se pergunta se alguém

pode ou não retirar benefícios da mercadoria que me compra para o seu próprio

negócio, mas pergunta-se apenas pela forma na relação entre os arbítrios de

ambas as partes, na medida em que tais arbítrios são considerados simplesmente

como livres, e se, com isso, a acção de cada um se pode conciliar com a liberdade

do outro segundo uma lei universal...» (Metafísica dos costumes, cit.,

Introdução à doutrina do direito, § C.)

— do fundamento imanente que o sistema das normas (na sua unidade


horizontal por coerência) lhe proporciona (remissão).

Dois contrapontos paralelos :


α ) A volonté génerale em ROUSSEAU — inconfundível com as vontades
empíricas, reais (determinadas por um interesse privado) [volonté particuliére, volonté
de tous, (volonté de la majorité)] e então e assim a impor-se como uma «racionalização
da volonté de tous» (a lei como a «a mais sublime das instituições»... e o carácter
«extraordinário» do autêntico legislador).

β ) A liberdade em KANT — inconfundível com o arbítrio e a contingência


material deste («O direito como o conjunto das condições por meio das quais o arbítrio
de cada um pode concordar com o de outro segundo uma lei geral da liberdade»).

Breve alusão ao sentido do êxito histórico imediato destes pensamentos e ao


modo como a recepção liberal destes os empobrece. A impossibilidade individualístico-
-liberal de fazer justiça ao personalismo ético de KANT: aquele que se traduz na
representação de um Reino dos Fins [«Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto
na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e
nunca simplesmente como meio...» (Fundamentação da metafísica dos costumes)]

2.7. Duas condições epistemológicas — já no limite do contexto iluminista (a primeira


de resto em contraposição directa com este!)... e não obstante decisivas para a a
consumação deste no positivismo jurídico do século XIX...
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 42

2.7.1. O historicismo a posteriori da Escola Histórica: a pressuposição (ainda


que não imposição) do direito-dado e a distinção entre o elemento político (o elemento
material que vincula o direito à «vida geral» da «comunidade»-povo) e o elemento
técnico (que determina uma autêntica ciência do direito) [ver CASTANHEIRA NEVES, «O
pensamento moderno-iluminista como factor determinante do positivismo jurídico...», cit., pp.
10-13 δδ); ver também BRONZE, ob. cit., pp.342-348].

2.7.2. O cientismo positivista, a hipertrofiar os discursos e os tipos de


racionalidade que considerámos acima (supra, 2.3.) [ver BRONZE, ob cit., pp. 348- 351].A
conversão do direito num objecto do pensamento jurídico (ou deste enquanto ciência do
direito) [remissão].

Elementos de estudo (pp. 29-40)


A. CASTANHEIRA NEVES, «O pensamento
moderno-iluminista como factor determinante do
positivismo jurídico (A origem moderno-iluminista
do legalismo)», 23 pp., in Curso de Introdução ao
Estudo do Direito, cit. (a mesma colectânea que até agora
temos mobilizado).
Fernando José BRONZE, Lições de Introdução ao
direito, cit., 315-351.

Outras leituras (para além daquelas já indicadas no


sumário)
CABRAL DE MONCADA, Filosofia do direito e
do Estado, vol I (Parte histórica), §§ 24 (ROUSSEAU)
e 25 (KANT).
A. CASTANHEIRA NEVES, O instituto dos
Assentos e a função jurídica dos Supremos
Tribunais, Coimbra 1983, pp. 525 e ss., 539-562,
562 e ss.
J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao direito
e ao discurso legitimador,cit., pp. 79-82, 91-93.

3. O positivismo legalista reconhecido nas suas coordenadas caracterizadoras.

3.1. Coordenada político-institucional: o Estado-de-Direito de legalidade e os princípios


da separação-divisão dos poderes, da legalidade e da independência judicial.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 43

A especificidade de um Estado de representação parlamentar — de cidadãos


que se assumem como «vozes do dever» e participantes na vontade geral e que assim
(«obedecendo a si mesmos») se afirmam simultaneamente como soberanos e súbditos,
vontades livres e limitadas — no qual a função legislativa se reconhece e
institucionaliza como único poder «supremo e soberano» ou como «monopólio
normativo deste poder» (the supreme power in every commonwealth).

3.1.1. A separação-divisão dos poderes...:


— autonomizada primeiro (por MONTESQUIEU... mas também e ainda
parcialmente por LOCKE!) no seu sentido «pragmaticamente» negativo (estritamente
político)...

...enquanto resultado e correlato de uma «prudência política» justificada por


argumentos de responsabilização e de eficácia (ou pelo modo como estes
convergem na construção de um pouvoir moderé «socialmente equilibrado»)...

A faculdade de «impedir»-empêcher que cada um dos poderes da societas-Estado


exerce sobre o outro

• Um «sistema de pesos e contrapesos» (no qual o «poder trave o poder»): a


experiência exemplar da democracia inglesa, construída paulatinamente (sem rupturas e
sem uma planificação racional prévia).
•• A exigência de confiar a um só (ao monarca) o poder executivo e a de
permitir que as diferenças de nascimento (de «estado») dos «nobres» e do «povo»
(consagradas por diferentes ordens normativas e jurisdições) se projectem na partilha do
poder legislativo (entregues a dois corpos e às respectivas assembleias)...
••• O poder judicial como um poder invisível e nulo: «os juízes da nação»
(enquanto «seres inanimados») «não são senão a boca que pronuncia as palavras da lei»
«La liberté politique ne se trouve que dans les gouvernements modérés. Mais elle n'est pas
toujours dans les États modérés; elle n'y est que lorsqu'on n'abuse pas du pouvoir; mais c'est
une expérience éternelle que tout homme qui a du pouvoir est porté à en abuser; il va
jusqu'à ce qu'il trouve des limites. Qui le dirait! La vertu même a besoin de limites Pour qu'on ne
puisse abuser du pouvoir, il faut que, par la disposition des choses, le pouvoir arrête le
pouvoir. (...)Lorsque, dans la même personne ou dans le même corps de magistrature, la
puissance législative est réunie à la puissance exécutrice, il n'y a point de liberté; parce qu'on
peut craindre que le même monarque ou le même sénat ne fasse des lois tyranniques pour les
exécuter tyranniquement. Il n'y a point encore de liberté si la puissance de juger n'est pas
séparée de la puissance législative et de l'exécutrice. Si elle était jointe à la puissance
législative, le pouvoir sur la vie et la liberté des citoyens serait arbitraire: car le juge serait
législateur. Si elle était jointe à la puissance exécutrice, le juge pourrait avoir la force d'un
oppresseur. Tout serait perdu, si le même homme, ou le même corps des principaux, ou des
nobles, ou du peuple, exerçaient ces trois pouvoirs: celui de faire des lois, celui d'exécuter
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 44

les résolutions publiques, et celui de juger les crimes ou les différends des
particuliers.(...)Ainsi, la puissance législative sera confiée, et au corps des nobles, et au
corps qui sera choisi pour représenter le peuple, qui auront chacun leurs assemblées et leurs
délibérations à part, et des vues et des intérêts séparés.(...) La puissance exécutrice doit être
entre les mains d'un monarque, parce que cette partie du gouvernement, qui a presque
toujours besoin d'une action momentanée, est mieux administrée par un que par plusieurs; au
lieu que ce qui dépend de la puissance législative est souvent mieux ordonné par plusieurs que
par un seul. Que s'il n'y avait point de monarque, et que la puissance exécutrice fût confiée à un
certain nombre de personnes tirées du corps législatif, il n'y aurait plus de liberté, parce que les
deux puissances seraient unies; les mêmes personnes ayant quelquefois, et pouvant toujours
avoir part à l'une et à l'autre. (...) Des trois puissances dont nous avons parlé, celle de juger
est en quelque façon nulle. (...) La puissance de juger ne doit pas être donnée à un sénat
permanent, mais exercée par des personnes tirées du corps du peuple dans certains temps de
l'année(...). De cette façon, la puissance de juger (...)devient, pour ainsi dire, invisible et nulle. On
n'a point continuellement des juges devant les yeux; et l'on craint la magistrature, et non pas les
magistrats. (...) Les juges de la nation ne sont (...) que la bouche qui prononce les paroles
de la loi; des êtres inanimés qui n'en peuvent modérer ni la force ni la rigueur(...).»
(MONTESQUIEU, De L’esprit des lois, excertos do Livro XI, capítulos IV e VI)
Para ler mais, ver
http://classiques.uqac.ca/classiques/montesquieu/de_esprit_des_lois/partie_2/de_esprit_des_lois_2.html.
Ver ainda a síntese proposta em http://maltez.info/biografia/Obras/montesquieu%20espritl%20des.pdf
—... antes de (com ROUSSEAU e KANT) se converter num «corolário
institucional» (livre de qualquer consideração pragmática) da concepção moderno-
-iluminista da lei e do «Estado ideal» e «autónomo» («segundo os puros princípios do
Direito») que esta concepção promete (enquanto «situação a que a razão nos obriga a
aspirar por via de um imperativo categórico»).

«Um Estado (...) é a união de um conjunto de pessoas sob leis jurídicas. Na


medida em que estas, como leis a priori, são necessárias, ou seja, resultam por si dos
conceitos do direito externo em geral (...), a sua forma é a forma de um Estado em geral,
i.e., do Estado ideal, tal como ele deve ser segundo os puros princípios do Direito, ideia
essa que serve de norma (...) a toda associação efectiva dirigida a constituir um corpo
político (...).Qualquer Estado contém em si três poderes, quer dizer, a vontade geral
unificada que se ramifica em três pessoas (trias politica): o poder soberano (soberania)
na pessoa do legislador, o poder executivo na pessoa do governante (em observância à
lei) e o poder judicial (que atribui a cada um o que é seu, de acordo com a lei) na pessoa
do juiz (potestas legislatoria, rectoria et iudiciaria), à semelhança das três proposições
de um silogismo prático: a premissa maior, que contém a lei daquela vontade, a
premissa menor, que contém o preceito de proceder em conformidade com a lei, isto é,
o princípio de subsunção à lei, e a conclusão, que contém a decisão judicial (a sentença),
sobre o que é de Direito em cada caso.
(...) Existem, assim, três diferentes poderes (...) graças aos quais o Estado tem a
sua autonomia, quer dizer, se estrutura e conserva segundo leis de liberdade. — Na sua
união reside a salvação do Estado (...); salvação essa pela qual não devemos entender
nem o bem estar dos cidadãos nem a sua felicidade, pois que esta pode ocorrer no
estado de natureza (como afirma ROUSSEAU) ou mesmo sob um governo despótico,
porventura de modo muito mais cómodo e apetecível; mas sim a situação da máxima
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 45

concordância entre a Constituição e os princípios do Direito, situação a que a razão nos


obriga a aspirar por via de um imperativo categórico...»

(KANT, §§ 45 e 49 da Doutrina do Direito, Primeira Parte da


Metafísica dos costumes, cit.)
«Pois a lei assim entendida distingue-se logicamente tanto da execução concreta como da aplicação particular, e
o poder legislativo, que só poderá prescrever normas gerais e abstractas, postula, já por isso, institucionalmente,
diferentes poderes-funções de execução e de aplicação da sua legislação: um poder executivo chamado à
iniciativa de governo e de administração, segundo um princípio de legalidade ou no quadro da lei, e um poder
judicial com a função exclusiva da aplicação da mesma lei aos casos particulares da sua previsão abstracta (...).
Excluída qualquer forma de determinação do direito para além da lei (...), seria impensável que à função
jurisdicional se atribuísse ou ela assumisse qualquer modalidade normativamente legislativa. Quer dizer, as
funções legislativa e jurisdicional, deixando de ter perante o direito e a ordem jurídica objectivos análogos —
como haviam tido nos sistemas políticos pré-modernos —passam a ser intencional e institucionalmente
contrárias (uma delimita e exclui do seu campo funcional a outra), embora não contraditórias (a sua distinção é
funcionalmente complementar) e numa marcada relação de função exclusivamente soberana e criadora (a
função legislativa) para função subordinada e estritamente aplicadora (a função judicial)...» (CASTANHEIRA
NEVES, O instituto dos «Assentos» e a função jurídica dos Supremos Tribunais, Coimbra 1983, págs. 580-584)
3.1.2. O princípio da legalidade: as exigências da supremacia ou prevalência da lei
(Vorrang des Gesetzes) e da reserva da lei (Vorbehalt des Gesetzes) — a primeira a
projectá-la como «acto da vontade estadual que prevalece ou tem preferência sobre
todos os outros actos do Estado» e a segunda a levá-la a sério como imperativo-norma
constitutivo da juridicidade (aqui e agora capaz de confundir a delimitação dos «âmbitos
de matérias» que lhe estão reservados com a determinação do território do direito) —
enquanto traduções institucionais convergentes...:
—…de uma concepão representativa da legitimidade…(se não de uma
concepção que transforma esta em soberania, em «poder autónomo
contratualmente instituinte e constituinte»)...
«A submissão da administração à lei é uma condição necessária da
legitimidade da sua actuação (...) . Os órgãos executivos não são
directamente representativos, não participam qua tale na formação-
-manifestação da volonté générale. Para assegurar a legitimidade das
suas decisões, é necessário que se ajustem aos critérios gerais
estabelecidos nas normas...» (ESTÉVEZ ARAUJO, J.A.)
A articulação entre as promessas de uma constituição limitada e limitadora (limited and
limiting Constitution) — construída pelo dispositivo da separação dos poderes — e a
garantia da liberdade individual (contra o arbítrio da autoridade) — consumada numa
juridicização do poder: uma articulação que se determina exigindo que os representantes
que detêm a autoridade legislativa não façam senão critérios gerais e abstractos
(LOCKE).
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 46

A liberdade racional dos cidadãos (membros da societas civilis, entenda-se,


do Estado) de «não obedecer a nenhuma outra lei senão àquela a que
(através do exercício do poder legislativo) deram o seu consentimento»:
«O poder legislativo só pode caber à vontade unida do povo. Uma vez que dele deve
decorrer todo o direito, não pode ele causar com a sua lei injustiça absolutamente a
ninguém. (...) Daí que só a vontade concordante e unida de todos, na medida em que
decide cada um o mesmo sobre todos e todos decidem o mesmo sobre cada um, por
conseguinte, só a vontade geral colectiva do povo pode ser legisladora...» (KANT, §
46 da Doutrina do Direito, Primeira Parte da Metafísica dos
costumes, cit.)):

Ainda o confronto com MONTESQUIEU (e com o modelo da Constituição inglesa:


«Daí que a chamada Constituição estadual moderada, como Constituição do Direito interno do
Estado, seja um absurdo e que, em vez de fazer parte do Direito, seja um princípio de prudência...»
(KANT, Anotação geral, ponto A.,inscrita a seguir ao § 49 da Doutrina do
Direito, Primeira Parte da Metafísica dos costumes, cit.)

—… e do «duplo postulado do legalismo»…


«A lei é todo o direito... e toda e qualquer lei é direito... Não há direito fora da lei; não há não-direito no interior da lei. Ou o que é o
mesmo: não há normas vigentes que não sejam legais e não há normas legais que não sejam vigentes... Eis o duplo postulado do
legalismo...» (LOMBARDI VALLAURI)
—… mas também e muito especialmente da concertação exemplar
das opções normativista e legalista [«Não há leis que não sejam normas
nem normas jurídicas que não sejam leis…» / «O direito é um sistema de
normas gerais e abstractas prescrito pela vontade legisladora enquanto
“vontade geral colectiva do povo”…»]

Reparemos que as compreensões legalista e normativista do direito não têm necessariamente que
coincidir:
(a) assumir uma compreensão legalista significa ver na lei o modo exclusivo (ou pelo menos
dominante e determinante) da constituição e objectivação do jurídico (jurídico assim mesmo
imputado a uma voluntas prescritiva político-constitucionalmente institucionalizada);
(b) assumir uma concepção normativista significa pensar o jurídico como um sistema de
normas racionalmente auto-subsistentes — e exigir que todo o discurso juridicamente relevante
envolva como sua dimensão irrenunciável a possibilidade de universalização associada à ratio da
norma-regra (enquanto proposição de dever-ser geral e abstracta).

Se pusermos o problema no nosso contexto actual… podemos dizer com efeito…


▬… que é possível ser-se-legalista sem se ser normativista [reconduzir a constituição do
direito à voluntas do poder ou dos poderes legislativos… admitindo que as leis assim prescritas não
se exprimam todas através de normas-regras ou de programas condicionais («se →…então»)… ou
reconhecendo que, mesmo quando se exprimem através de normas gerais e abstractas, tais
prescrições devem ser tratadas racionalmente como estratégias ou programas finais),
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 47

▬… na mesma medida em que é possível sustentar uma opção normativista sem defender
no plano (dito) das fontes uma opção legalista, antes e em contrapartida reconhecendo diversos
modos de constituição do direito (legislativos, jurisdicionais, consuetudinários e até doutrinais)…
[por exemplo, dar todo o relevo às decisões judiciais enquanto precedentes ou pré-juízos para
decisões futuras… exigindo simultaneamente (para que estas possam ser pensadas e
experimentadas-realizadas juridicamente) que se reconstrua a norma geral e abstracta que tais
decisões introduzem ou especificam (a norma geral e abstracta implícita na solução concreta e
individual que estas decisões exprimem); ou então… aceitar que a doutrina é hoje uma «fonte de
direito», exigindo simultaneamente que os seus critérios possam ser pensados e reconstituídos
integralmente como programas condicionais… (se não como condições da exploração-interpretação
racional de tais programas)…].
Importando então concluir que o que aconteceu no contexto prático-cultural do Iluminismo — e
sustentou todo o processo de institucionalização do Estado demo-liberal, para encontrar a sua
expressão culminante (não sem dificuldades embora◙!) no Método Jurídico do século XIX —, foi
precisamente uma conjugação-concertação (reciprocamente constitutiva) de legalismo e de
normativismo (a de um legalismo que é incondicionalmente normativista… e a de um normativismo
exclusivamente alimentado por um legalismo).

LEGALISMO Positivismo jurídico NORMATIVISMO


do século XIX

3.1.3. A independência judicial assegurada na e pela estrita obediência à lei. As normas


legais como «critérios normativos» racionalmente universais e não como «imposições
ou intenções concretas de decisão».
Uma reinvenção (muito mais luminosa) da imagem do juiz (e do poder judicial).
[Ainda aqui um confronto com MONTESQUIEU !]. Ser apenas a «boca que pronuncia
as palavras da lei» (ser independente e neutro) passa a significar antes de mais libertar-
-se da «sujeição a poderes ou forças politico-socialmente contingentes» (àqueles
poderes e forças que actuam nos comandos-imperativos singulares, com destinatários
individualizados e reacções-respostas construídas para situações concretas)... para
garantir que as prescrições da vontade geral se cumpram em cada caso (perante cada
problema-controvérsia) sem quaisquer restrições na sua universalidade racional. Sendo
precisamente a pressuposição desta normatividade universal (assumida na sua
completude e deixada intocada na sua auto-subsistência ideal) que garante a
racionalidade plena (a inevitabilidade racional) da resposta que o julgador há-de dar
«sobre o que é de Direito em cada caso» (a resposta que «atribui a cada um o que é seu»
de acordo com a lei e pronunciando sem restrições as suas palavras). Só pressupondo


Dificuldades resultantes de um processo de construção muito complexo (no qual a «teoria » das
fontes do historicismo constitui decerto um elemento tão relevante quanto perturbador!)… processo ao
qual aludiremos infra, na última parte do nosso curso
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 48

esta normatividade (plenamente dominada na sua unidade, como um autêntico sistema


de normas) estará tal resposta em condições de se libertar da contingência e do arbítrio.

O paradigma da aplicação:
(a) o direito-lei pré-determinado (reconstruído racionalmente e
interpretado em abstracto) sem qualquer interferência do mundo dos
casos concretos (ou da perspectiva que estes autorizam) [a exigência
do julgador abstrair do problema que o pré-ocupa para poder
interpretar a norma em abstracto, garantindo a esta a sua plena
inteligibilidade racional e a juridicidade que resulta da sua
universalidade (infra, na última parte deste curso, compreenderemos
de que interpretação se trata e quais são os cânones que a
explicitam)];
(b) a exigência de reconduzir o mundo dos casos-acontecimentos a um
acervo de factos empíricos desarticulados (factos discretos), factos
que o juiz-sujeito irá «organizar» à luz da perspectiva de relevância e
das exigências de articulação que a hipótese da norma lhe oferece (o
contraponto normas /factos);
(c) o esquema lógico-dedutivo do silogismo subsuntivo a garantir a
relação entre o geral e o particular sem implicações normativas.
PREMISSA A proposição normativa reconhecida na sua estrutura (hoje
MAIOR diríamos no seu programa condicional): à hipótese H («se...»)
corresponde a consequência (-solução) jurídica C («então...»)

PREMISSA A subsunção propriamente dita


MENOR (cujo núcleo é ainda e por sua vez
constituído por um silogismo • H está caracterizado de
lógico): o problema P (determinado modo pleno pelas notas(-
e comprovado na sua factualidade qualidades) x, y e z.
empírica) é uma espécie (é um •• P apresenta as notas (-
exemplar) do género H — entenda- qualidades) x, y e z.
se, é assimilado pelas possibilidades ••• Logo P é um caso singular
de «representação» ou de «previsão» e concreto inscrito na hipótese
da norma em causa (ou pela tra- geral e abstracta H
dução sistemático-categorialmente
plausível, e não obstante única,
destas possibilidades).
CONCLUSÃO Para o problema concreto P vigora (impõe-se-nos) a solução tipificada
C (ou uma desimplicação lógica desta)
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 49

A institucionalização deste modelo de separação dos poderes (iluminado pelo horizonte


de um «Estado ideal» e «autónomo», construído «segundo os puros princípios do
Direito») cumpre-se porém introduzindo dinâmicas perversas (que a evolução posterior
virá a confirmar e a submeter a um diagnóstico implacável de fracasso): decerto porque
a promessa de juridicização integral dos poderes do status civilis se cumpre (se
consuma) afinal esvaziando materialmente o jurídico… e entregando-o à pura
contingência da vontade política (cada vez menos claramente sustentada pela luz da
volonté générale).

«Reparemos no entanto que houve aqui uma evolução... que superou-transformou o


sentido originário destas exigências.(...) A ideia liberal do Estado-de-direito,(...) que
assumia uma função privilegiada de garantia dos cidadãos (...), vinculada a uma
experiência de certeza do direito (...), converte-se pouco a pouco, por excesso de
confiança, na ideia do direito do Estado. A doutrina da divisão dos poderes, interpretada
no sentido de libertar o juiz de toda e qualquer função normativa — para conferir esta
integralmente ao órgão da vontade geral e (...) assim garantir racionalmente a
independência do aplicador do direito perante os homens e as políticas —, acaba por se
esgotar na prescrição de um discurso lógico-dedutivo (...) e por impor aos juízes e aos
juristas em geral uma formação que os entrega a um legalismo passivo e formalístico...»
(LOMBARDI VALLAURI)

3.2. Coordenada estritamente jurídica: as duas dimensões imprescindíveis da lei.


α) A lei enquanto imperativo ou formale legis — comando, prescrição ou
estatuição normativa, que tem a «sua fonte na vontade do povo» e no poder soberano
que a representa, e que como tal se impõe (e nos vincula).
β) A lei enquanto norma racionalmente universal — geral, abstracta e formal
[com o sentido que já explorámos supra, 2.6., pp.37-39] mas também permanente ou
estável (se não já imutável), entenda-se, «subtraída à contingência e mutabilidade do
individual histórico-concreto, à relatividade histórico-concreta».
A importância da normatividade constitucional e da organização da legalidade
sub specie codicis (a pretensão de unidade e de completude).

3.3. Coordenada axiológico-jurídica: a racionalidade da lei a «consubstanciar» as


exigências normativas da juridicidade («a justiça racional da universalidade-igualdade e
da segurança»).
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 50

α) A generalidade a fundar-se na liberdade (que inventa a societas) mas também


a excluir o arbítrio e os «privilégios» e a consumar (na sua auto-subsistência) uma
exigência de igualdade.
β) A abstracção a assimilar o comum racionalmente parificador (outra das
dimensões da igualdade) mas também a «atingir o futuro e a assegurar a permanência».
γ) A formalidade a definir o «status ou o quadro normativo» das possibilidades
de actuação-autodeterminação dos sujeitos («as estruturas genérico-abstractas ou
objectivo-formais dos direitos e liberdades, fossem os direitos e liberdades
fundamentais, fossem os direitos e liberdades comuns, e igualmente as obrigações e
responsabilidades») sem impor fins, antes permitindo a cada um a prossecução dos seus
fins (subjectivamente emancipados) e a realização lograda dos seus arbítrios: a lei a
afirmar a pureza jurídica da sua intencionalidade enquanto norma (a «assegurar
negativamente a garantia dos direitos, protegendo os direitos de cada um contra os
ataques dos outros») e então e assim a desempenhar uma função político-socialmente
estatutária de garantia (a garantir a ordem das «liberdades» de um «modo igual e
objectivo, permanente e seguro»).
δ) A permanência enquanto condição da segurança. Os dois sentidos da
segurança — através do direito e do direito — e a acentuação privilegiada que o
liberalismo individualista (na mesma medida também em que hipertrofia o pólo dos
direitos subjectivos e a liberdade dos fins) acaba por conferir à primeira. A conexão
aproblemática entre a previsibilidade (obtida «através de uma regulamentação genérica
e tendencialmente formal») e a segurança através do direito. [Ler com muita atenção
CASTANHEIRA NEVES, Curso de Introdução ao estudo do direito (extractos), polic.,
Coimbra, 1971-1972, pp. 68-72].

3.4. Coordenada funcional: a especificidade dum pensamento jurídico formalista.


A cisão intencional entre um direito-objecto pressuposto (positum) — cuja
criação ou constituição se imputa a um poder estadual (ou pelo menos a um elemento
político) — e o pensamento jurídico (intencionalmente teorético e só como tal
juridicamente autónomo) que se lhe dirige.
A ruptura que este entendimento, aberto pelo objectivismo historicista,
representa [Antes desta ruptura todos os degraus do pensamento jurídico (sem esquecer
aquele assumidamente especulativo da filosofia prática, dita iuris naturalis scientia)

Ver elementos de estudo indicados na pág. 49.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 51

eram orientados por intenções prático-normativas… intenções como tal circular e


indissociavelmente partilhadas pelo projecto-procura do direito].
« Se para o positivismo jurídico o direito era só o direito positivo, isto é, o
direito posto (imposto) pelas prescrições do órgão ou órgãos político-
socialmente legitimados para tanto, isto significava que o direito era
entendido como criação autónoma do legislador político, segundo a sua
teleologia político-social, e variável em função das circunstâncias histórico-
sociais condicionantes dessa mesma teleologia. Uma vez porém desse modo
criado e posto, o direito passaria a ser objecto de um pensamento que se
pretendia puramente jurídico e assumido assim pelo “jurista enquanto tal”
(WINDSCHEID), pois que o seu objectivo metodológico seria exclusivamente
cognitivo (a analítico-interpretativa reprodução e conceitualização desse
direito positivo, não de qualquer modo a reconstituição ou coprodução da
sua normatividade) e a sua intenção noética estritamente formal — se o
legislador cria o direito positivo, o jurista com o seu pensamento
exclusivamente jurídico conhece-o na sua estrutura lógico-formal e aplica-o
também lógico-formalmente ou lógico-dedutivamente, constituindo nestes
termos o que se viria a designar o estrito Método Jurídico...»
(CASTANHEIRA NEVES,«A redução política do pensamento metodológico-
jurídico...», Coimbra 1993).

O confronto entre a contingência prático-material e político-ideológica que


sustenta o processo de criação do direito (e as decisões em que este culmina) e a pureza
formalmente jurídica do processo cognitivo e da ciência do direito que o torna possível.
A procura de uma perspectiva puramente jurídica desenvolvida ao longo do século XIX
enquanto procura de cientificidade (a construção de uma ciência jurídica de normas,
sustentada num cognitivismo-objectivismo normativista e na exigência de determinar
um direito-dogma, imputado à auto-inteligibilidade racional de um sistema de institutos
e de conceitos).
O equilíbrio construção conceitual /sistematização /interpretação e as cisões
interpretação/integração, interpretação/aplicação; a aplicação como momento prático-
-técnico (exterior ao Método) [remissão para a última parte do nosso curso].
A pretensão de dominar teoreticamente a prática enquanto condição de
racionalidade. A «neutralidade científica» a levar implícita uma intenção axiológico-
jurídica de «universalidade racional» (a neutralidade da ciência jurídica a «concorrer
para o êxito e consumação da última intenção axiológica daquele direito-lei que se
recebia como mero objecto de conhecimento») [Ler com muita atenção C ASTANHEIRA
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 52

NEVES, Curso de Introdução ao estudo do direito (extractos), polic., Coimbra, 1971-


-1972, pp. 12-13]
3.5. Coordenada epistemológico-metodológica (remissão): a (contingente) assimilação
exegética dos sentidos e a sua tradução em (invariantes) estruturas conceitual-
sistemáticas (mediatizadas pela determinação de um direito-dogma).

Elementos de estudo (pp. 40-49)


Fernando José BRONZE, Lições de Introdução ao
direito, cit., 353-376.
A. CASTANHEIRA NEVES, Curso de Intro-
dução ao estudo do direito (extractos), polic.,
Coimbra, 1971-1972, pp. 3-17.

[ponto 3.2. do nosso sumário] ID., «O pensamento


moderno-iluminista como factor determinante do
positivismo jurídico (A origem moderno-iluminista
do legalismo)», in Curso de Introdução ao Estudo
do Direito, cit., pp. 19-22 [δ].
[ponto 3.3. δ)] ID., Curso de Introdução ao estudo
do direito (extractos) , polic., Coimbra, 1971-1972,
pp. 67-77.

4. Uma primeira abordagem do universo pós-positivista concentrada numa


experimentação antropológica e no modo como esta corresponde a uma compreensão
(hoje plausível) do sentido específico do direito (ou mais rigorosamente, à pré-
-determinação fundamentante de uma tal compreensão, considerada no seu momento
regulativo).

4.1. O processo de superação do positivismo legalista. O diagnóstico de uma crise (já


anunciada nas três últimas décadas do século XIX) e este diagnóstico concentrado-
-simplificado em seis sintomas (ou núcleos de sintomas) exemplares .


. Colectânea de extractos (189 págs) disponível na Sala de leitura G-4-2.


A identificação destes sinais (na medida em que nos remete para temas que virão a ser
desenvolvidos em Introdução ao direito II) mereceu nas aulas teóricas uma alusão relativamente breve.
Aqueles que foram considerados com mais autonomia e desenvolvimento (e que exigem neste momento
um especial cuidado!) são os que correspondem aos nºs 4.1.2. e 4.1.5. (infra, pp. 51-53, 55-58).
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 53

4.1.1. A crítica metodológica a mostrar-nos numa perspectiva analítica que o juízo


jurisdicional concreto (que soluciona controvérsias práticas) é irredutível ao
esquema silogístico-subsuntivo exigido pelo paradigma da aplicação... e então e
assim a pedir uma verdadeira revisão metodológica (alternativa)... alimentada por
uma outra racionalidade.
A problematização da cisão interpretação (em abstracto) / aplicação (em
concreto) conduzida pela autonomização progressiva de uma interpretação
normativo-teleológica (remissão).
O reconhecimento dos «verdadeiros problemas», que o Método Jurídico do
século XIX pressupõe resolvidos e oferecidos nas premissas (e que como tal se
abstém de tematizar): a construção do caso (e a determinação da sua relevância
jurídica); a procura do critério normativo (a selecção da «norma aplicável»); o
confronto da relevância do caso com a relevância da norma.
A importância (a força) da decisão e da sua (irredutível!) componente
volitiva mas também das ponderações práticas, dos juízos de valor e das
considerações teleológicas que nela interferem (que a condicionam e constrangem,
mas que também a constituem, exigindo assim que a juridicidade deixe de se
identificar com a legalidade racionalmente reconstruída em abstracto).
O isolamento progressivo de um Método idealmente pré-determinado (e
como tal prescrito) e as resistências da realidade: não nos podemos esquecer com
efeito que o êxito da ciência do direito dogmática assumida pelo positivismo
normativista (muito especialmente por aquele positivismo normativista que, como
veremos, levou a sério a assimilação-superação da herança da Escola Histórica!)
dependia afinal da autonomização-consagração (irreversível) de um «direito»
puramente pensado — um direito que se pretendia direito-dogma e que era então e
assim entendido como uma versão-Fassung, integrantemente racional, do direito
positivo interrogado por esta ciência!

4.1.2. A exigência de superar o normativismo como um pensamento jurídico


formalista e de abrir as portas a um discurso finalista (teleológico).
Uma superação em duas frentes complementares:
— no plano do direito [para que este deixe de ser o estatuto-ordem, universalmente
racional, da compossibilidade relacional entre os arbítrios (ao qual só a forma na
relação entre os arbítrios importava)];
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 54

— no plano do pensamento jurídico [para que este deixe de ser uma ciência jurídica
de normas-textos (preocupada apenas com a estrutura categorial que sustenta a
relação horizontal dos significantes e significados das normas)].
Uma alusão à conhecida classificação de KANTOROWICZ [em Die Epochen
der Rechtswissenshaft (1914)]:
— o pensamento jurídico formalista a partir de uma estrutura dogmática
auto-subsistente (norma-texto, sistema de conceitos) e a «procurar um
sentido para a fórmula dada» (e então e assim a fechar o direito num
sistema formalmente autónomo)...

«O formalismo parte de uma norma jurídica enunciada, que é quase sempre


um texto legislativo» e pergunta-se “como devo interpretar este texto para
me ajustar à vontade que o formulou?”; partindo dessa vontade constrói, por
procedimentos aparentemente lógicos, um sistema cerrado de conceitos e de
princípios gerais dos quais deverão resultar em termos necessários a decisão
de qualquer questão jurídica real ou imaginada»
— ... o pensamento jurídico finalista a partir de um «sentido» (da
realidade material dos fins, exigências e compromissos práticos, que
podem ser também valores comunitários) e a «procurar uma fórmula»
para a solução (-«sentido material») que encontra (ou experimenta)... e
então e assim a assumir a conexão direito/realidade social (nas suas
dimensões política, económica, ética, científica, cultural, axiológica...).

«O finalismo parte do”sentido” e não do livro, parte da realidade, dos fins e


das necessidades da vida social, espiritual e moral e pergunta como devo
manejar e modelar o direito para dar satisfação aos fins da “vida”; e
ajustando-se a esses fins, resolve as inumeráveis dúvidas do direito formal e
preenche as suas incontáveis lacunas...»

Uma alusão à diversidade de caminhos que este teleologismo pode percorrer,


com dois pólos de atracção claríssimos:
(a) o primeiro a atender exclusivamente a fins... e a exigir novos palcos para
a institucionalização da societas (e das relações desta com o Estado e
com o direito) — palcos diferentes daqueles que o Estado demo-liberal
consagrou [Veremos em breve quais!]
(b) O segundo a atender a fins e a valores... e a exigir uma compreensão do
direito em que se volte a falar de validade comunitária (de um regresso
da communitas, diferente embora daquela que o arco pré-moderno
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 55

consagrara!)... mas então também a exigir que se leve a sério o


contraponto sociedade / comunidade.

NECESSIDADES SUBJECTIVAS ► INTERESSES


(RELAÇÃO COM OS «OBJECTOS»-RECURSOS
FUNCIONALMENTE APTOS A SATISFAZÊ-LAS)
►ESCASSEZ DOS OBJECTOS (O OUTRO SUJEITO

COMO MEIO E COMO OBSTÁCULO) ► FINS-

OBJECTIVOS (ANTECIPAÇÕES PROGRAMADAS DE


ORDENS DE PREFERÊNCIAS) ►EQUIVALÊNCIA DOS
FINS► EXIGÊNCIA DE DECISÕES QUE
HIERARQUIZEM OS FINS ►RACIONALIDADE
INSTRUMENTAL-ESTRATÉGICA (MEIS-FINS /
ALTERNATIVAS DE DECISÃO ORIENTADAS POR
EFEITOS)

SOCIETAS

CONVICÇÕES-PROJECTOS ►COMPROMISSOS PRÁTICOS


TRANS-INDIVIDUAIS ►O OUTRO COMO SUJEITO NUM
MUNDO PRÁTICO DE COMUNICAÇÃO-INTERRELAÇÃO

► VALORES ►TAREFAS►
RESPONSABILIDADES ►VÍNCULOS INTEGRANTES
►HIERARQUIZAÇÃO DOS FINS ►RACIONALIDADE
PRÁTICA SUJEITO / SUJEITO

COMMUNITAS

«Se os valores referem uma transindividual vinculação ético-normativa que responsabiliza e que convoca a prática para o
desempenho irrenunciável de “tarefas” (...) em que se projecta essa sua vinculação ou compromisso, os fins desvinculados pelo
“mecanicismo” moderno da teleologia ontológica, são agora tão-só opções decididas pela subjectividade que programa os seus
objectivos (...), decerto sempre condicionados por um certo contexto mas em último termo justificados por interesses e em vista deles
– comunga-se nos valores, diverge-se nos fins e nos interesses...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do direito (versão em fascículos), pp. 154-
155 , (versão em A4), pp.85-86]

Ora estes caminhos vão-se separar (ao ponto de hoje serem protagonizados
por verdadeiros interlocutores-oponentes)! Bastando-nos por agora perceber o
sentido da diferença entre fins e valores... mas também que a acentuação exclusiva
dos fins leva inevitavelmente a uma concepção instrumental do direito e a uma
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 56

renúncia à autonomia deste — a uma compreensão do direito como prática-


-instrumento, ao serviço de finalidades transjurídicas (políticas, económicas, mesmo
éticas).

4.1.3 A exigência de superar o legalismo (de recuperar a distinção direito/lei)


compreendida em dois planos distintos (cujo desenvolvimento nos vai ocupar nos
próximos capítulos).
α) A experiência, assumida na realização concreta do direito, dos limites
normativos da lei, acompanhada pela recompreensão do direito jurisprudencial
(judicial e doutrinal)[O problema dos limites normativos da lei (e da perspectiva
microscópica que o reconhecimento destes limites exige) será tratado infra, no
capítulo das Fontes do direito].
β) A convocação-especificação dos elementos (critérios mas sobretudo
fundamentos) constitutivos de uma «normatividade jurídica diferente da lex».
«Um desses elementos ou, se quisermos, um primeiro pólo dessa diferente normatividade
translegal é o actual reconhecimento dos “direitos fundamentais” acima e independentemente da lei
e numa incondicional prioridade jurídica perante esta. Trata-se da universal proclamação desses
direitos igualmente como “direitos do homem” (na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de
1948, e em todas as Declarações e Convenções da mesma índole, quer gerais, quer regionais que se lhe
seguiram), e do seu também universal reconhecimento, no pensamento jurídico em geral e em todas
as constituições contemporâneas. Não é já a lei a dar validade jurídica a direitos, enquanto direitos
subjectivos, são os direitos, afirmados como fundamentais, a imporem-se à lei e a condicionarem a sua
validade jurídica (cfr., desde logo, o art. 18.º da Constituição da República Portuguesa).
Um outro elemento, a impor-se como um outro pólo de uma diferente normatividade jurídica,
têmo-lo no actual reconhecimento de princípios normativos a transcenderem também a lei, e a sua
estrita legalidade, convocados como fundamentos normativo-jurídicos da juridicidade e que a própria
lei terá de respeitar e cumprir – e em grande parte obtidos como um resultado normativamente
constitutivo e final de “jurisprudência” a que fizemos referência. (...)
[Sendo certo] que esses direitos (os direitos do homem ou fundamentais) e esses princípios, se
não podem compreender-se hoje a exprimirem um qualquer “direito natural” – a pressuposição já
ontológica (ontológico-metafísica), já antropológica do direito natural, na procura de um fundamento
absoluto de normatividade jurídica, estaria culturalmente superada –, [não deixam de afirmar] uma
referência normativo-juridicamente material em que se haveriam de ver os critérios actuais
(histórico-culturalmente actuais) da justiça (não certamente em sentido apenas político) e assim, não
obstante a superação do jusnaturalismo, [de desempenhar] uma função análoga à do clássico direito
natural: a função capital de afirmarem os fundamentos de validade e as possibilidades normativo-
juridicamente críticas relativamente à legalidade positiva.» (CASTANHEIRA NEVES, A crise actual
da filosofia do Direito no contexto actual da crise da filosofia)

A atenção prioritária que a crítica ao legalismo normativista concedeu ao


problema dos limites objectivos da lei (o qual, na imanência do mesmo
normativismo e da sua representação sistémica, continua a impor-se-nos sob a
designação tradicional de problema das lacunas). Numa especificação problemática
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 57

célebre (na qual converge também uma consideração do que viremos a dizer os
limites normativo-intencionais da lei) KANTOROWICZ, um dos corifeus do
Movimento do Direito Livre, virá mesmo a concluir que o sistema ordinatum das
normas legais tem «tantas lacunas como palavras...» [Ler com muita atenção
CASTANHEIRA NEVES, Curso de Introdução ao estudo do direito (extractos), polic.,
Coimbra, 1971-1972, pp. 26-30]

4.1.4. As novas exigências do princípio da igualdade reconstituídas a partir de uma


«referência-limite aos pressupostos sociais e às situações reais da concreta e efectiva
realização do direito». A crítica à pressuposição aproblemática da igualdade do
cidadão perante a lei — determinada pela perspectiva da norma-ratio e pela auto-
inteligibilidade (se não auto-suficiência) da característica textual da generalidade...
mas também pela necessidade de considerar tal igualdade e o seu sentido abstraindo
da solução materialmente contingente consagrada pela voluntas legislativa [«Autre
motif d’orgueil, que d’être citoyen! Cela consiste pour les pauvres à soutenir et à
conserver les riches dans leur puissance et leur oisiveté. Ils y doivent travailler
devant la majestueuse égalité des lois, qui interdit au riche comme au pauvre de
coucher sous les ponts, de mendier dans les rues et de voler du pain…» (Anatole
FRANCE)]. O sentido de uma igualdade perante o direito que é também a
possibilidade de distinguir as perspectivas político-ideológica e axiológico-jurídica
da igualdade material — a primeira a transformar a igualdade no compromisso de
um Estado social (que intervém «nos processos económicos e sociais para eliminar
as situações de carência ou de dependência de certos grupos ou sectores da
sociedade»), a última a realizar-se (se não exclusivamente, também) no «processo
judicial» enquanto «correcção microscópica» (mas não menos fundamentada) das
injustiças (a conciliar a intenção de unidade do sistema com a novidade irredutível
dos problemas concretos)… e então e assim a conceber a igualdade como uma
intenção fundantemente normativa que a própria lei (se a quisermos ver como um
autêntico critério jurídico) «é chamada a cumprir» (uma intenção que se nos impõe
logo que nos confrontamos com a experiência da controvérsia prática e
reconhecemos a igualdade dos sujeitos-partes na manifestação relevante de posições
distintas).
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 58

Para que o «direito que no processo e através do processo se manifesta e cumpre [não
seja] deste modo apenas o resultado de uma redução lógica do geral das normas
pressupostas ao particular do objecto a julgar e sim aquele direito específico do caso
concreto que se constituirá, com apoio nas normas e outros critérios jurídicos, através
do diálogo normativamente participante de todas as entidades que concorrem no litígio a
decidir — o tribunal e as próprias partes do caso decidendo» (CASTANHEIRA
NEVES, O instituto dos «Assentos» e a função jurídica dos Supremos Tribunais,
Coimbra 1983, págs 125-126).

4.1.5. As transformações político-institucionais reconhecidas em dois núcleos temáticos


possíveis.

4.1.5.1. A reinvenção do princípio da separação dos poderes: brevíssima alusão.


A «separação como constitucionalização, ordenação e organização do poder
do Estado tendente a decisões funcionalmente eficazes e materialmente justas» e
assim a conferir ao princípio um sentido positivo (o de um «esquema relacional de
competências, tarefas, funções e responsabilidades dos órgãos constitucionais da
soberania») : de tal modo que se possa normativamente justificar uma «“compar-
timentação de funções” não coincidente com uma rígida separação orgânica»
[pense-se por exemplo na atribuição de funções legislativas ao poder executivo
(ConstRP, art. 198º)](G.CANOTILHO).
Sendo certo... — e é este o ponto que nos importa acentuar!— que esta
reinvenção não pode (ou não deve!) comprometer a diferença (ainda que uma nova e
radicalmente distinta compreensão da diferença!) que separa a função de progra-
mação legislativa (de uma política) da função de realização judicial (do direito).

Ao ponto de podermos falar da «tarefa construtiva» de um autêntico Estado-


de-Direito-de-Jurisdição, quando não mesmo de um Estado-de-Justiça? Ao ponto
pelo menos de, com CASTANHEIRA NEVES, podermos...

...«[exigir que] a índole política (comprometidamente política) da função legislativa


(...) [possa] ter o seu contra-pólo na índole jurídica (autonomamente jurídica) da
função jurisdicional...»

«O compromisso político que corresponde hoje à lei, a fazer dela um instrumento jurídico-político
de governo, não pode deixar de implicar para a sua normatividade a parcialidade e mesmo a
partidarização que são próprias do compromisso político numa sociedade dividida e plural. (...) Se a
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 59

evolução do sentido da lei é forçosa, ela própria convoca, e com o mesmo carácter forçoso, um
contrapeso, um poder chamado a garantir o respeito pelos valores fundamentais da ordem jurídica e
do direito. (...)As funções legislativa e jurisdicional, no actual sistema político-jurídico, não só
continuam a não ser análogas, como voltam a ser contrárias: e se igualmente não são contraditórias,
pois uma não nega a validade e a autonomia específica da outra, o certo é também que deixaram de
ser simplesmente complementares nos termos em que o eram no sistema moderno-iluminista (a
complementaridade da criação genérica e da aplicação particular de um direito-norma geral), para
serem antes concorrentes, como duas dimensões, intencional e institucionalmente contrapostas, de
uma dialéctica entre um poder de programação politicamente constituinte e um contra-poder que
postula a validade do direito e é convocado unicamente à sua realização...» (CASTANHEIRA
NEVES, O instituto dos «Assentos» e a função jurídica dos Supremos Tribunais, Coimbra 1983,
págs. 604 a 611)

Que contra-pólo? Como veremos nos próximos capítulos...


—... não só aquele que se afirma como um contrôle explícito da
constitucionalidade das leis...
— ...mas também aquele que, para além do primeiro, se propõe reconstituir estas
leis na perspectiva da sua ratio juris (como autênticos critérios jurídicos capazes de
assimilar a relevância de controvérsias concretas... mas então também como critérios
que objectivam fundamentos prático-comunitários especificamente jurídicos).

4.1.5.2. O ciclo do Estado providência (Welfare State)


4.1.5.2.1. Uma nova imagem do homem (homo socialis) convertida em projecto da
societas e do Estado.
O projecto-promessa de institucionalização de uma justiça distributiva e da
igualdade mas também da «libertação da carência» que a especificam.
O processo de socialização. A hipertrofia de uma racionalidade finalística
(estratégico-táctica). A felicidade «medida pela qualidade da vida e do bem-estar»
(pela maximização dos benefícios e redução dos custos).

4.1.5.2.2. A intervenção estadual determinada por uma planificação selectiva dos


fins — que não o é menos a de uma previsão cientificamente informada dos efeitos
e das diversas alternativas que lhes correspondem (o legislador estratega) — e por
uma concepção holística da realidade social (que descobre a sociedade como uma
espécie de sujeito individual macroscópico, a seleccionar as necessidades-fins e a
mobilizar os meios e as alternativas de decisão eficientes).
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 60

4.1.5.2.3. A superação do conceito iluminista (jurídico) de lei-norma (uma nova lei


que «deixa de querer ser o mero estatuto formal das liberdades»... e que renuncia à
generalidade e à abstracção... mas também à permanência): o exemplo das leis-
-plano e das leis-medida.

A lei-plano enquanto mobilização explícita de uma intenção transformadora: que


especifica um «programa final» (e assume o vector finalidade como sua dimensão
constitutiva) na mesma medida em que, levando a sério os limites de estabilização
táctico-estrategicamente desejáveis, se mostra capaz de escolher alternativas (ou de as
inscrever numa ordem de preferências) para assim mesmo estruturar–condicionar os
comportamentos dos seus destinatários.

A lei-medida ou lei-providência (Massnahmegesetz) como uma


opção justificada rationis necessitatis pela agonia do Estado demo-
-liberal e pelas «transformações sociais, políticas e culturais» que, no
final da 1º Guerra Mundial, desmascararam essa agonia. A distinção lei-
-norma/lei-medida (C.SCHMITT, E. FORSTHOFF).

►► A lei-medida como um comando-imperativo que nasce de uma


situação real (concreta, contingente, irrepetível) de necessidade... e que
permanece vinculado a essa situação... De tal modo que o critério gerado
se nos apresente... ↓

— ... como um enunciado particular [e particular tanto na


titularidade quanto na determinação dos destinatários]:
não pretendendo constituir um «acto de todo o povo
para todo o povo» mas uma prescrição autoritária
(primeiro de um legislador extraordinário em estado
de necessidade e depois do legislador ordinário) que
como tal se imputa a um determinado contexto de
oportunidade estratégico-social e à decisão que lhe
corresponde... para se dirigir a um grupo de cidadãos
(ou a um só cidadão)... ↓
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 61

— ... mas também (e/ou também) como uma


resposta directa a uma «situação concreta»
(«anómalo caso particular ou situação
conjuntural perturbadora de uma acção
planificada») , que se considera e pressupõe
normativamente qua tale (como a «lei de um
único caso»)... ↓

— ... mas ainda como uma solução que «joga


em pleno o jogo da mutabilidade e da
relatividade histórica», descobrindo-se
como uma opção temporária ou pro-
visória (als Zeitgesetz)....

►►Sendo certo que estas Massnahmegesetze hão-de ter como limites vinculantes
tanto o princípio da separação dos poderes (ainda que na sua dimensão positiva e
como princípio normativo autónomo)[que declare inconstitucional a «utilização
reiterada de “leis concretas” (G.CANOTILHO)] quanto o princípio da igualdade
[«...na medida em que este princípio lhes recusa a validade para quaisquer medidas
ou diferenciações que não sejam, no sentido desse princípio ou pelo equilíbrio social
que ele postula, materialmente justificadas...» (CASTANHEIRA NEVES)]

4.1.5.2.4. A crise do Estado providência — que é desde logo a da sua eficiência mas
que não é menos a da sua matriz ideológica (pelo modo como esta pretendeu traduzir as
exigências de igualdade e solidariedade) — e as diversas propostas de «solução», a abrir
outras tantas portas à recompreensão da legalidade — da «fuga para a frente» das
autênticas engenharias sociais (que se pretendem ideologicamente neutras), às opções
neo-liberais, passando pelas possibilidades da reprocessualização sistémica.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 62

4.1.6. As transformações culturais simplificadas em dois núcleos decisivos: brevíssima


alusão.

4.1.6.1. Uma nova concepção da ciência: ciência que — nos seus processos de
«construção», «selecção» e «eliminação» dos objectos, dos «enunciados» e dos
«expedientes de formulação» mas então também dos «conceitos» (que «interpretam»
os dados) e das «teorias» (que os «explicam») ... sem esquecer as operatórias da
comprovação empírica e os sentidos desta — se descobre a si própria como prática,
histórico-contextualmente vinculada às opções metódicas de uma comunidade de
investigadores, com as suas rupturas e mudanças de paradigma... e então como um
possível «jogo de linguagem», se não mesmo como uma «simples tradição entre
outras tradições»...

A multiplicação das epistemologias (e das gnoseologias) críticas (que superam internamente o


positivismo cientista e os vários neo-positivismos).

As lições de POPPER, ALBERT, KUHN, QUINE, LAKATOS ...mas também de WITTGENSTEIN,


RORTY, PUTNAM, CANGUILHEM e FEYERABEND

«Precisamos de uma redescrição do liberalismo, segundo a qual este seja a esperança de a cultura no
seu todo poder ser “poetizada” e não, como era esperança do Iluminismo, de poder ser
“racionalizada” ou tornada científica. Isto é, precisamos de substituir a esperança de que todos
substituam “a paixão” ou a fantasia pela “razão” pela esperança de que as oportunidades de realização
de fantasias idiossincráticas possam ser niveladas ou equiparadas...» (RORTY)

... que traduz muito especialmente (e em várias frentes) a superação do


monismo cientista da razão moderna... abrindo-nos a possibilidade de recuperar e de
levar a sério um pluralismo de racionalidades.

A reabilitação da poiesis (aisthesis)[virtude intelectual da criação (de um objecto


exterior ao sujeito)] e da praxis (-phronesis, prudentia) [virtude intelectual da acção e da
decisão num mundo humano e num contexto comunicacional intersubjectivamente situado
e problematicamente concreto] enquanto universos racionalmente específicos.
A racionalidade prática a realizar-se numa acção comunicativa e no horizonte
dogmático de uma comunidade de comunicação sob o modus de um pensamento que é
constitutivamente problemático (integralmente perspectivado pela situação ou problema


Pontos meramente aludidos (cuja leitura se recomenda, mas que não constituem enquanto tal
núcleos temáticos obrigatórios).
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 63

concreto) e como tal sustentado num esquema sujeito/sujeito — com uma estrutura
dialógico-argumentativa e uma índole dialéctica (dinamizada pela diferença).

4.1.6.2. Uma nova concepção do homem, com quatro vértices ou núcleos


centrífugos (e muitas outras ideias-imagens intermédias).

α) O homo socialis da racionalidade estratégica, que a reacção à crise do Estado


Providência (ou uma das frentes de reacção possíveis, dominada pela absolutização
do mercado perfeito) vai converter em unidimensional homo economicus.
β) O homo ludens da «estética da existência» e das guerras (e jogos) das linguagens,
fragmentado em diferenças e diferendos... a entregar-se à impotência de um
relativismo consumado e irresistível... (a encontrar na singularidade irrepetível do
juízo estético o «vestígio de inteligibilidade» que caracteriza a sua condição
presente...).
γ) O homo humanus da compaixão e responsabilidade infinitas (mas também da
hospitalidade incondicional) assumido pela ética da alteridade (e pela celebração da
singularidade que esta assume).
δ) O sujeito prático-hermenêutico existencialmente concreto, que é capaz de se dar
conta da sua finitude (da sua condição de elemento-parte num todo que o transcende
e integra) para assim mesmo — numa pressuposição autoconstitutiva da validade e
desta como criação cultural — se comprometer com a transfinitude das valores
comunitários (e com estes como projectos de ser constituídos e realizados na
praxis)...

Leituras recomendadas [ponto 4.1.] (pp. 50-60)

CASTANHEIRA NEVES, Curso de Introdução ao estudo do direito (extractos), polic.,


Coimbra, 1971-1972, pp. 24[β]-30.
F. BRONZE, ob. cit., pp. 393 (último parágrafo)-398, 433-438.

Outra leitura:
A. CASTANHEIRA NEVES, «A imagem do
homem no universo prático», Digesta, vol. 1º,
Coimbra, Coimbra Editora, 1995, volume 1º, 331-
335 (III 1.).


Pontos 4.1.4. e 4.1.5.2. do nosso sumário.

Ponto 4.1.4. do nosso sumário.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 64

4.2. Os processos de superação do homo juridicus e do formalismo ateleológico


concentrados no exemplo do direito privado: numa recompreensão (em diversas frentes)
do princípio da autonomia da vontade mas muito especialmente no problema do
exercício dos direitos subjectivos (e dos seus limites).

4.2.1. O princípio da autonomia da vontade ou autonomia privada enquanto condição


normativa de possibilidade do direito privado: e certamente porque o compromisso-
exigência que este princípio traduz — o (a) de uma autodeterminação e o (a) de uma
vinculação auto-responsabilizante que conferem ao sujeito privado a possibilidade de
constituição e de composição-especificação das relações em que participa — é
indissociável da compreensão-experimentação de um tal domínio do direito (ao ponto,
como veremos, de poder falar aqui de um princípio transpositivo de direito privado).
A compreensão individualista deste compromisso-exigência concentrada numa
«subjectividade constitutivamente distanciada» (Pietro BARCELLONA), entenda-se,
numa inteligibilidade do sujeito como categoria universal, indiferente às determinações
que o individualizam e diferenciam, às práticas (e aos poderes) com que se compromete,
às situações-acontecimentos que constroem a(s) sua(s) identidade(s), aos fins (e aos
interesses) cuja prossecução assume... e aos efeitos sociais que as suas acções-decisões
desencadeiam.
O paradoxo de um individualismo assumido em abstracto, no qual o homem concreto dos
interesses aparece submetido à máscara universalizante do indivíduo-cidadão participante na
vontade geral (l’homme placé sous la généralité des lois): o paradoxo, se quisermos, de uma
“particularidade”-”generalidade” (la particularité d’un individu du genre humain) [LEVINAS]

Mas então sustentada numa inteligibilidade do sujeito que descobre na


autonomia-liberdade (e na esfera-mónada que a realiza) a «categoria prático-jurídica
originária» e que, subalternizando a responsabilidade, exclui do «poder de livre
exercício dos direitos ou do livre gozo dos seus bens pelos particulares» uma autêntica
(e fundante) «referência comunitária».

A PROCURA DE UM EQUILÍBRIO SUUM / COMMUNE

QUE SE CUMPRE PARADOXALMENTE HIPERTROFIANDO

O PÓLO DO SUUM (OU A ORDEM QUE O ASSUME NA

SUA UNIVERSALIDADE RACIONAL).


INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 65

A superação dessa compreensão individualista... e as suas diversas frentes (elas


próprias em tensão manifesta umas com as outras):
(a) a superação determinada pelas exigências específicas de um projecto-programa
de institucionalização da societas — pelo novo palco do Estado Providência e
pela especificação finalístico-estratégica do interesse comum que este exige;
(b) a superação facticamente experimentada pela crescente fragmentação da
sociedade em grupos (profissionais, partidários, de pressão, de interesses) com
expectativas e objectivos conflituantes e distintas interpretações do interesse
comum (quando não dominados pelos interesses do grupo e neste sentido
incapazes de compreender tal interesse público partilhado);
A conversão dos direitos individuais em posições de interesses convergentes,
quando não explicitamente em processos de reivindicação (político-socialmente
legitimados).
A insensibilidade ao interesse comum a favorecer um novo individualismo: já
não o do cidadão da vontade legislativa universal e da universalidade racional mas o do
homem dos interesses «rasteiramente egoísta e pragmático» (CASTANHEIRA NEVES)

(c) a superação comprometida com o regresso da comunidade e o horizonte de


validade que esta exige — uma superação paulatina... muitas vezes prosseguida
sob a máscara de uma correcção parcelar (especial, se não mesmo excepcional).

Uma concentração privilegiada no universo exemplar dos contratos e na evolução


que este tem vindo a assimilar. O princípio da liberdade contratual como especificação
normativa — esta a merecer uma objectivação positiva no critério do artº 405 do


Tenhamos presente que a possibilidade de realização de negócios jurídicos — enquanto actos
de vontade juridicamente relevantes, com resultados-efeitos jurídicos (constitutivos, modificativos ou
extintivos de relações jurídicas) desencadeados por declarações de vontade e a coincidir nuclearmente
com o «teor declarado» da intenção (que tais declarações realizam) — é, na perspectiva das exigências
em que o princípio da autonomia privada se traduz, o domínio de experimentação privilegiado. Ora os
contratos são precisamente negócios jurídicos bilaterais, constituídos por duas ou mais declarações de
vontade com direcções opostas mas convergentes, que tendem à produção de um resultado jurídico
comum, ainda que com um significado distinto para cada uma das partes (sempre compostos por uma
proposta-oferta e por uma aceitação, ainda que possam gerar obrigações principalmente, se não
exclusivamente, para uma das partes) [Quando o negócio jurídico é constituído por uma declaração de
vontade ou por várias declarações de vontade «paralelas», que assumem «a mesma orientação», diz-se
unilateral; quando o contrato gera obrigações para ambas as partes diz-se sinalagmático ou bilateral (se
gera obrigações para uma das partes apenas diz-se contrato unilateral).]. Experimente esta
classificação elementar confrontando os critérios dos artigos 185º-186º, 458º,940º,
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 66

Código Civil — do princípio da autonomia privada. A possibilidade de — sem escapar


à ambiguidade denunciada supra, 4.1.2. (e então e assim sem escapar aos riscos de uma
instrumentalização-funcionalização da autonomia em causa) — se falar de uma
«efectiva materialização do princípio»...
Uma materialização que nos permite levar a sério a exigência de reconstituir
o domínio de relevância assumido pelo contrato, descobrindo neste um
«núcleo de conformação bilateral-interactivo», que só a pressuposição
realizadora de um commune de sentidos práticos nos permitirá entender —
commune de resto que se imporá como condição de possibilidade e
fundamento determinante da própria autonomia da vontade, superando a
«relação de tensão» (muitas vezes reconhecida e diagnosticada) que uma
compreensão do princípio da autonomia como «autodeterminação de cada
um segundo a sua vontade» poderia impor a um princípio da liberdade
contratual justificado pela «bipolaridade dos interesses»...

«Não se trata de autodeterminação isolada, mas já funcionalmente, de um uso comum da autonomia (...).
A subjectividade é aqui sempre intersubjectividade, a autonomia conjuga-se necessariamente no plural...»
(SOUSA RIBEIRO,O problema do contrato..., Coimbra 1999, pp.51 e ss.(3.))

«Importa compreender a relação contratual como um esquema prático de sentido...(...) que articula e vincula acções
normativamente ordenadas... (...) sem que as estruturas internas destas acções (...) ou o seu desempenho funcional (...)
se possam compreender inteiramente através da disciplina normativa exigida pelo consenso das partes...»
(G.TEUBNER)

A intenção de realizar uma juridicidade social e comunitariamente (ainda que


por vezes apenas colectivamente) fundada. Alguns exemplos possíveis (entre muitos
outros...).
α) As restrições às chamadas liberdade de contratar e liberdade de modelação
do conteúdo do contrato... enquanto exigências de controlar institucionalmente as
condições reais do acordo.

1154º, 1157º e 1170º nº1, 1569º, 1577º, 1698º e 1701º nº 1, 2062º, 2179º do Código
Civil (ou as noções que estes critérios integram ou em que se esgotam).

A liberdade de celebração ou conclusão dos contratos traduz-se na exigência seguinte: «A ninguém
podem ser impostos contratos contra a sua vontade ou aplicadas sanções por força de uma recusa de
contratar nem a ninguém pode ser imposta a abstenção de contratar...» (a formulação é de Carlos A.
MOTA P INTO, cuja Teoria Geral do Direito Civil, I Parte, Capítulo II, § 3º, se recomenda como leitura
complementar)[ver 4ª ed. (por António PINTO MONTEIRO e Paulo MOTA PINTO), Coimbra, Coimbra
Editora, 2005, pp. 102-116].

Procure descobrir nos critérios que integram o artº 405º (nº 1 e 2) as diversas especificações da
liberdade contratual como «liberdade de fixação do conteúdo do contrato»... : a) a possibilidade de
«realizar contratos com as características dos contratos previstos e regulados na lei, bastando nessa
hipótese, para desencadear a produção dos respectivos efeitos, indicar o respectivo “nomen juris” (venda,
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 67

Procure «experimentar» esta distinção liberdade de contratar/


/liberdade de modelação do conteúdo do contrato e compreender o
sentido social e (ou) comunitário (mais ou menos explícito, ainda que
com gradações diversas) das restrições em causa considerando os
exemplos dos critérios que integram os artigos 280º nº2, 282º nº1,
577º e 579º nº 1, 877º no 1, 928º, 946ºnº1, 953º, 1025º, 1142º e
1146º nº1, 1245º, 2028º do Código Civil
▼▼

►►Não deixe de se dar conta da importância crescente dos chamados


contratos normativos, aqueles que constroem em termos gerais e abstractos
uma autêntica «disciplina imperativa comum» (parificadora), à qual se vão
submeter todas as futuras relações contratuais (ditas individuais) que se
celebrem no âmbito correspondente...

São contratos normativos (integrados na subespécie dos contratos


colectivos) as convenções colectivas de trabalho (vinculantes para todos os
trabalhadores que nelas «se enquadrem», independentemente de estes terem
ou não participado na construção do acordo)...

Alusão ao problema da «concorrência» possível entre normas legais (de


direito do trabalho), claúsulas das convenções colectivas e claúsulas dos
contratos individuais de trabalho. O sentido do princípio do favor
laboratoris (do tratamento mais favorável do trabalhador) a
permitir-nos compreender que o direito do trabalho assume uma
exigência de compensação-correcção da «assimetria típica da relação
laboral».

O critério do art. 4º nº1 do novo Código do Trabalho (Agosto de 2003)  a frustrar


parcialmente as intenções deste princípio (a possibilidade de a negociação colectiva
poder consagrar uma alteração in pejus, quer dizer uma alteração que desfavoreça o
trabalhador). «Em suma, também neste campo — no campo da concorrência e
articulação das fontes juslaborais — estamos perante um Direito do Trabalho mais

arrendamento), sem necessidade de convencionar a regulamentação correspondente» (contratos típicos ou


nominados); b) a possibilidade de «celebrar contratos típicos aos quais se acrescentam as claúsulas que
lhes aprouver, eventualmente conjugando-se dois contratos diferentes» (contratos mistos); c) a possi-
bilidade de «concluir contratos diferentes dos contratos expressamente disciplinados na lei» (contratos
atípicos ou inominados) [Ibidem, pp. 109-110].

«1 - As normas deste Código podem, sem prejuízo do disposto no número seguinte, ser
afastadas por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, salvo quando delas resultar o
contrário.
2 - As normas deste Código não podem ser afastadas por regulamento de condições mínimas.
3 - As normas deste Código só podem ser afastadas por contrato de trabalho quando este
estabeleça condições mais favoráveis para o trabalhador e se delas não resultar o contrário...» (Código do
Trabalho, artº 4º)
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 68

flexível (palavra mágica dos nossos tempos, por mais imprecisa que seja a respectiva
noção no plano jurídico), em que a contratação colectiva já não é concebida como um
instrumento vocacionado para melhorar as condições de trabalho relativamente à lei,
mas antes como um puro mecanismo de adequação da lei às circunstâncias e às
conveniências da organização produtiva...» (ver LEAL AMADO, «Tratamento mais
favorável e art. 4º, nº 1, do Código do Trabalho português: o fim de um princípio?»,
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9997).
▼▼

►►... Considere ainda o núcleo problemático (relacionado principalmente com o processo


de «fornecimento massificado de bens e serviços») onde convergem os chamados contratos
de adesão ou por adesão (contratos em que «uma das partes formula prévia e unilateralmente
as cláusulas negociais» e a outra parte «aceita essas condições», «mediante a adesão a um
modelo a ou um impresso» ou as rejeita, não sendo possível modificar o ordenamento
negocial apresentado») e as cláusulas contratuais ou condições negociais gerais (enquanto
pré-determinações normativas gerais e abstractas de conteúdos contratuais, assim mesmo
«uniformizadoras de uma multiplicidade de contratações futuras»)... ou este núcleo na
pluralidade das intenções que nele se cruzam (a exigir outros tantos processos de correcção
ou de contrôle).
Leitura recomendada: MOTA PINTO, ob. cit., pp. 113-116 (IV)


Sem que, no contexto aberto pelo Estado Providência — num processo de
multiplicação dos riscos que o é também da sua progressiva socialização ou repartição-
assimilação social ( e então e assim no processo de uma assumida «substituição da
responsabilidade pela reparação») —, possamos esquecer o exemplo dos contratos de
seguro — nos quais, e à custa de uma remuneração (prémio), se cumpre a transferência
do risco de um «evento futuro e incerto»... de uma pessoa (segurado) para outra
(seguradora). Contratos estes...
—... que são por vezes de celebração obrigatória...
—... e que quase sempre se nos impõem como contratos de adesão [cabendo ao
segurado (que beneficia do seguro), aceitar como que em bloco as «condições da
apólice» (unilateralmente propostas e determinadas pela seguradora, a maior parte das
vezes de resto num modelo ou formulário uniforme)].

β) A exigência de submeter a formação do contrato — nas fases negociatória e


decisória (incluindo esta última a proposta e a aceitação) — e a execução deste
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 69

(enquanto exercício dos direitos e cumprimento das obrigações que dele derivam) ao
princípio da boa fé... e o modo como esta exigência (de «agir de modo honesto»,
«diligente» e «leal», de «prestar todas as informações exigíveis», de atender às
circunstâncias, de corresponder às expectativas de confiança depositadas nessa
acção) se projecta numa recompreensão–enriquecimento da relação obrigacional
complexa (na consagração não tanto de uma teia de deveres secundários de
prestação quanto de deveres acessórios de conduta)... mas também numa
progressiva (mas nem sempre reconhecida...) convocação da prioridade metódica do
caso concreto.
Considere os exemplos dos artigos 239º e 762º nº2 e muito
especialmente do art. 227º nº1 do Código Civil (este último a
consagrar legislativamente o critério dogmático da
responsabilidade pela culpa na formação dos contratos ou culpa in
contrahendo) [uma responsabilidade que se impõe tanto no caso de
conclusão como de não conclusão do contrato em causa].

γ) A concordância prática entre por um lado as exigências dos princípios da


força vinculativa e da estabilidade do contrato, especificadas nos critérios da
pontualidade, irretractabilidade ou irrevogabilidade dos vínculos e na
intangibilidade do seu conteúdo (pacta sunt servanda) e por outro lado as
exigências do princípio da imprevisão (reconhecidas na claúsula rebus sic stantibus
e assimiladas pelas doutrinas da pressuposição e da base negocial mas também pela
correcção desta última iluminada pelo princípio da boa fé). Uma alusão às cláusulas
de hardship (incluídas em contratos internacionais ou de elevado valor).

Considere os exemplos dos artigos 406º nº1, 837º, 763º do Código


Civil em confronto com a solução proposta pelo critério do artº
437º do mesmo Código.
A possibilidade de «eventos imprevistos (ruína da moeda, alteração
da legislação, acontecimentos políticos)» converterem «as relações
de ambas as partes numa “grosseira não relação”, de tal modo que
o contrato não satisfaça já o seu sentido como contrato de troca...
Desta forma, deixando de ser inteiramente válido o dogma da
cristalização da vontade no contrato, em termos de este só poder ser
alterado por um novo pacto, e admitindo-se a sua resolução ou
modificação por força de um critério objectivo [ou transsubjectivo]
(a boa fé), perdeu o contrato o carácter de exclusiva lex privata das
partes, assumindo caracteres mais conformes com uma concepção
social do direito...» (MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil,
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 70

II Parte, III, Título II, Subtítulo III, Capítulo VI considerando a


solução exemplar de MANUEL DE ANDRADE e o modo como esta
corresponde ao critério do 437º).

Leitura recomendada: MOTA PINTO, ob. cit., pp. 604-613

δ) A relevância jurídica de «auto-vinculações» sem a «pré-existência de uma


transparente declaração de vontade» (expressa ou tácita) a impor-nos o universo das
relações jurídico-contratuais fácticas...

«Estamos aqui perante casos de uma relevância jurídico-material


que só restritivamente (i.e., de modo restrito ou limitado) realiza a
relevância jurídico-contratual, mas no entanto em termos
suficientemente (nuclearmente) análogos para justificar como seu
critério jurídico as normas contratuais...» (A. CASTANHEIRA
NEVES)

ε) Por fim, numa determinação fundamentante que ilumina todos os exemplos


anteriores, a superação objectivista do (subjectivista) dogma da vontade — um
dogma centralizado na vontade real do declarante (esta embora sob a máscara do
abstracto homo juridicus) ...
Uma superação aberta pela consagração objectivista do princípio da declaração
— e muito especialmente pelo critério dogmático da impressão do destinatário («a
declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na
posição concreta do real declaratário, lhe atribuiria»)...
Mas uma superação sobretudo que culmina num núcleo privilegiado de
concordância prática (que em rigor supera a própria compreensão objectivista). Que
concordância prática? Aquela que convoca as exigências da confiança (objectiva-
mente recíproca) e da participação (positivamente autónoma, enquanto
«concorrência constitutiva autodeterminada com os outros») ou esta concordância
traduzida num princípio de auto-responsabilidade.

Elementos de estudo [ponto 4.2.1. ] (pp. 61-67 do nosso sumário)


A. CASTANHEIRA NEVES, Curso de Introdução ao Estudo
do Direito, Coimbra 1971-72 (extractos), 19[2)]-24, 52(«Mas onde
a autonomia...»)-64 .
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 71

Fernando José BRONZE, ob. cit., 404-425

Ter ainda em atenção as pp. de MOTA PINTO


expressamente recomendadas no texto

4.2.2. O problema do abuso do direito.

4.2.2.1. O contraponto direito objectivo / direito subjectivo: sentido comum da


distinção.
(a) O direito enquanto ordem social, enquanto sistema de fundamentos e critérios,
enquanto dimensão da nossa prática, enquanto domínio prático-cultural (que
pode ser «estudado» e reflexivamente «reconstituído»).
(b) O direito enquanto poder ou faculdade exercidos por um sujeito…

4.2.2.2. O problema do abuso do direito (direito em sentido subjectivo!) denunciado


pela jurisprudência judicial francesa: o do exercício de um direito subjectivo que,
respeitando embora a estrutura formalmente definidora desse direito (a
compossibilidade-forma na relação entre os arbítrios), se nos impõe juridicamente (e
não apenas ética ou socialmente) como um desempenho abusivo — que importa
«sancionar» enquanto tal (ferindo de invalidade o acto concreto correspondente ou
impondo ao sujeito-agente um dever de «indemnização pelos danos abusivamente
causados»). Uma experiência problemática que começa por ser exemplarmente
dominada pelo exercício do direito de propriedade («le Code civil de 1804 fait du
droit de propriété un droit absolu, et a priori comme tel insusceptible d’être exercé
dans des conditions abusives»).

4.2.2.3. A autonomização de um critério dogmático que, reflectindo a experiência


constituinte de uma tal casuística, possa assimilar a especificidade deste problema
(superando a antinomia aparente entre direito subjectivo e exercício abusivo)... e
tornar explícita a normatividade das soluções ensaiadas. O ponto de partida: a
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 72

théorie (dite) de l’abus des droits de Louis JOSSERAND (já em De l’abus des
droits de 1905).
« On conçoit que la fin puisse justifier les moyens, du moins lorsque ceux-ci sont
légitimes en eux-mêmes ; mais il serait intolérable que des moyens, même
intrinsèquement irréprochables, pussent justifier toute fin, fût-elle odieuse et
inconcevable. C'est précisément contre une telle éventualité que se dresse la thèse de
l'abus des droits qui a pour ambition et pour raison d'être d'assurer le triomphe de
l'esprit des droits, et, par là, de faire régner la justice, non point seulement, ce qui est
relativement aisé, dans les textes des lois et dans des formules abstraites, mais, ce
qui est un idéal plus substantiel, dans leur application même et jusque dans la réalité
vivante» (JOSSERAND).
4.2.2.4. A objectivação normativo-legal de um critério possível: o artº 334º do
Código Civil.
4.2.2.5. A reinvenção do princípio da autonomia da vontade — e da concepção dos
direitos subjectivos — que a experimentação deste problema e o processo de
especificação-objectivação (mas também e indissociavelmente de realização
jurisdicional) do(s) seu(s) critério(s) (casuísticos, dogmáticos e normativo-legais)
nos permite surpreender e assumir.

►►Uma compreensão privilegiada da dinâmica do sistema mas também da dialéctica


problema/sistema que distingue e autonomiza o discurso jurídico(remissão).▼▼
O problema do abuso de direito a manifestar exemplarmente o novo «sentido normativo
e metodológico assumido pelo pensamento jurídico»:

(a) o reconhecimento de princípios e compromissos normativos materiais (de um


autêntico jus vigente);
(b) a exigência de uma «ponderação ou apreciação jurídica em concreto» (histórico-
-concretamente situada)

►►«Desde que se abandone a ideia de direitos subjectivos formal-conceitualmente


absolutos e se veja nestes direitos uma função normativa, teleológico-materialmente
fundada,(...) o abuso de direito não pode deixar de ser juridicamente assimilado.(...)
Trata-se com efeito de compreender os direitos subjectivos (...) como uma intenção
normativa que apenas subsiste na sua validade jurídica enquanto cumpre concretamente
o fundamento axiológico-normativo que a constitui. Um comportamento que tenha a
aparência de licitude jurídica — por não contrariar a estrutura formal-definidora (legal
ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde — e, no
entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto-materialmente realizado, a
intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de
que o comportamento realizado se diz exercício, é o que juridicamente se deverá
entender por exercício abusivo de um direito...» (A. CASTANHEIRA NEVES)
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 73

Elementos de estudo:

[ponto 4.2.2.1. ] A. CASTANHEIRA NEVES, Curso de Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra


1971-72 (extractos), pp. 155-158 [α)]
[ponto 4.2.2.2 –4.2.2.5.]: F. BRONZE, ob.cit., pp. 426(segundo parágrafo)–433.

4.2.3. O recurso, cada vez mais frequente, a conceitos indeterminados e a claúsulas


gerais. Um problema que a consideração atenta dos critérios dos artigos 227º
nº1[supra,4.2.1. β)], 437º[supra,4.2.1. γ)] e 334º [supra,4.2.2.4.] do Código Civil —...
não tanto destes quanto dos «recursos» ou «instrumentos» de formulação a que eles
recorrem — já nos permitiu compreender... mas que agora importa autonomizar!

É certo que toda a linguagem mobilizada pelas normas sofre de indeterminações


significativas (especificamente linguísticas), que a analítica da linguagem nos ensina a
reconhecer.

Excurso (brevíssima alusão):

São estas indeterminações:


— as ambiguidades (equivocidades ou plurivocidades) que afectam a intensão ou
conteúdo intencional das expressões, entenda-se, as «qualidades» que estas
expressões ou os seus enunciados atribuem aos «objectos possíveis a que se
dirigem»...

Para compreender por exemplo as expressões «É ilegítimo», «São


nulos...», «É juridicamente inexistente...» que integram as estatuições
respectivamente dos artigos 334º, 1628º e 1939ºdo Código Civil eu
tenho que convocar contexto(s) de significação específico(s)... e com
diversos graus de dificuldade! [ A expressão mais indeterminada é
certamente a primeira...]
— as vaguidades, que dizem respeito à extensão ou ao(s) objecto(s) referido(s)
enquanto dúvidas relativamente a «fenómenos conhecidos»...
Eu só posso determinar a extensão das expressões «prédio
encravado», «via pública», «excessivo incómodo ou dispêndio»
(artigo 1550º do Código Civil) enquanto (e na medida em que) para
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 74

além de invocar determinados contextos de significação (que me são


oferecidos pelas linguagens jurídicas ou pela linguagem comum)
experimento um certo contexto de concretização-realização: quando
avalio a situação concreta do Sr. A... e concluo que neste plano ou em
relação a cada um destes elementos o referido critério assimila (ou
não assimila!) a relevância material da controvérsia que tenho que
resolver... É que a norma em abstracto não é «unilateralmente pré-
determinante do seu próprio campo de aplicação ou da sua concreta
extensão...»

«Só na aplicação concreta da própria norma se descobrirá afinal se o


caso a decidir é um caso da própria norma ou não...» (HASSEMER)

— as porosidades ou vaguidades potenciais, que têm a ver com a extensão


também... mas agora enquanto dificuldades provocadas pela constante
mutação das «situações e dos contextos práticos» e também pela «possível
alteração ou novidade dos problemas» (indeterminação relativamente a
«fenómenos ainda não conhecidos»)1.

«Contra a porosidade não há remédio nenhum...» (KOCH) O que aqui


reconhecemos com efeito é o confronto entre a norma como critério
formalmente abstracto e a novidade imprevisível e indominável das
situações concretas... ▼

►►Recordemos a célebre decisão do Tribunal do Reich que, invocando o §211 do Código


Penal alemão e o modo como este tipifica o crime de furto (aquele que «subtrai a outrem uma
coisa móvel alheia com o intuito de ilicitamente se apropriar dela»), se «achou impedido de
qualificar e punir como furto o desvio não autorizado de energia eléctrica através de uma
derivação subreptícia da corrente a partir do cabo condutor...»▼▬▬▬ ▼▬▬▬▬▬▬▬▼

►►«Com HECK, podemos distinguir nos conceitos jurídicos


indeterminados um núcleo e uma auréola conceituais. Sempre que temos
uma noção clara do conteúdo e da extensão de um conceito, estamos no
domínio do núcleo conceitual. Onde as dúvidas começam, começa a
auréola do conceito.(...) É fora de toda a dúvida que os imóveis, os
móveis, os produtos alimentares, são coisas; mas outro tanto se não
poderá dizer (...) da energia eléctrica...» (ENGISCH)

A «diferença» que nos permite falar de conceitos indeterminados é assim, antes


de mais, uma diferença de grau: um «conceito indeterminado [melhor dizendo, mais
indeterminado] é aquele cujo conteúdo e extensão são em larga medida incertos»
(ENGISCH).

1
Para um desenvolvimento ver CASTANHEIRA NEVES, «O princípio da legalidade criminal...»,
Digesta, vol.1º, 435 e ss.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 75

Se a fórmula ou enunciado em causa não permite obter uma resposta


determinativa que culmine (ou que admita traduzir-se) numa decantação categorial,
remetendo-nos antes para um fundamento normativo (extralegal, se bem que não
forçosamente extrajurídico) de apreciação — na mesma medida em que nos seus limites
renuncia deliberadamente a uma hipótese tipificadora (ou a um núcleo significante de
tipificação-circunscrição)... mas também em que exige do intérprete-realizador uma
valoração explícita (sustentada no referido fundamento) — podemos falar de cláusulas
gerais.
Uma exploração desta diferença, que contrapõe à claúsula geral da boa fé o
conceito indeterminado as demais circunstâncias do caso. Ainda aqui... uma mera
diferença de grau (justificada pelo carácter mais ou menos explícito da valoração).

Experimente à luz desta diferenciação as seguintes expressões ou enunciados (todos do


Código Civil):estado ou situação de «boa fé» (artigos 179º, 184ºnº2, 243º, 892º, 1648º),
princípio da «boa fé» (artigos 227º nº1, 239º, 334º, 437º nº1, 762º nº1),«bons costumes» e
«ordem pública» (artigos 271º nº1, 280 nº2, 2230º), «exercício de um direito», «exceda
manifestamente»,«fim social e económico do direito» (artº 334º) «diligência de um bom pai de
família» e «circunstâncias do caso» (artº 487 nº1), «grau de culpabilidade», «situação
económica do agente e demais circunstâncias do caso» (artº494º) «escassa importância» (artº
802 nº 2). Cfr. também o critério que compõe o artigo 473º nº1 do Código Civil e ainda alguns
enunciados mobilizados pelo Código Penal: «especial censurabilidade ou perversidade do
agente» (artº132º nº1), «os bons costumes» (artº149º) «escarnecer ou ofender outrem de maneira
baixa, vil ou grosseira» (artº220o nº1), «interesse público legítimo» e «boa fé» (164º nº2).
A importância decisiva destes «recursos de formulação», enquanto
correspondem a uma exigência de materialização do discurso jurídico e a uma
acentuação decisiva da importância do caso concreto e da situação de realização [não
nos esqueçamos no entanto de que estas exigências não são univocamente assumidas,
cumprindo-se antes à luz dos dois grandes caminhos que esboçámos supra, na pág. 52
destes sumários (invocando por um lado um paradigma pragmático-funcionalista de
decisão e por outro um paradigma jurisprudencialista de juízo)].
Elementos de estudo:

A. CASTANHEIRA NEVES, Curso de Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra 1971-72 (extractos),


pp. 22-25, 58-60
F. BRONZE, ob.cit., pp. 415-423.

Outras leituras:
J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao direito e ao discurso legitimador, cit.,
capítulo IV, secção II, §3.).
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 76

K. ENGISCH, Introdução ao pensamento jurídico, trad. de BAPTISTA


MACHADO, ed. da Fundação Gulbenkian, Lisboa, todo o cap.VI.

4.3. O reconhecimento axiológico da pessoa enquanto compreensão-experimentação da


validade jurídica (na sua auto-referencialidade e autotranscendentalidade prático-
-culturais).
Mais do que celebrar a vocação integradora (de sentido comunitário) que a
resposta direito assume — enquanto participa da praxis-poiesis de um integrante mundo
humano —, trata-se com efeito de reconhecer a especificidade do commune que esta
resposta constrói… e o modo ou forma de vida que este nos incita a prosseguir… e que
assim mesmo (e enquanto tal) deverá cruzar-se e inter-relacionar-se com outras
identidades colectivas e outros horizontes de integração (sociais ou comunitários)…
O direito como um «projecto»-procura prático-culturalmente «situado» (a
procura de um homo humanus de autonomia e responsabilidade e do equilíbrio
dialéctico que o constitui): um equilíbrio que os diferentes ciclos históricos e os
diversos contextos prático-culturais (na sua teia de factores condicionantes) irão
compreender e experimentar (mas também estabilizar-institucionalizar) em termos
muito diferentes.
A especificidade da normatividade jurídica compreendida no seu momento
regulativo e na pré-determinação fundamentante deste sentido (mas nem por isso menos
dominada por uma historicidade constitutiva) — a consciência jurídica geral
(CASTANHEIRA NEVES).

4.3.1. A consciência jurídica geral enquanto objectivação histórico-


-comunitária do (que se poderá dizer o) princípio normativo do direito (ou deste como a
exigência que ilumina a procura-invenção do homo humanus da autonomia e da
responsabilidade): a «síntese de todos os valores e fundamentos que nessa comunidade
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 77

dão sentido ao direito como direito» (CASTANHEIRA NEVES). As três objectivações


intencionais desta síntese axiológico-jurídica.

4.3.1.1. O primeiro nível. A codeterminação contextual de uma espécie de consensus


omnium... no qual a realidade histórico-social, através das suas intenções normativo-
culturais («valores, princípios éticos, exigências morais, intenções ético-culturais,
concepções sociais sobre o válido e o inválido, etc., que informam o ethos de uma
determinada comunidade num certo tempo») se revela a informar a normatividade
jurídica e a ser (ainda que não unilateralmente) assimilada por esta.

«Trata-se do que se poderá considerar o consensus omnium ou a normativa


conscience publique da comunidade de que se trate e em que será lícito ver
como que o costume ético-social da mesma comunidade, posto que
porventura a diferenciar-se em função dos grupos sociais a que vai referido
— desde os grupos económicos, profissionais, científico-técnicos, artísticos,
religiosos, etc., até à sociedade em geral — e lhes prescreve os seus padrões
de acção ou modelos de comportamento inter-relacional, já no seio do grupo,
já perante outros grupos ou a sociedade também em geral, e permite ajuizar
dessas acções e desses comportamentos como válidos, correctos, exigíveis,
razoáveis ou aceitáveis, etc — como a conduta social correcta dessa
categoria ou dos “tipos normais” desses grupos. Nestes termos se invocarão,
p. ex., os “usos do tráfego” os “usos do comércio”, se faz referência ao
diligens pater familias, à “concorrência leal”, à “informação permitida” (...),
aos “bons costumes” (enquanto tipicidade social eticamente
aprovada)...»(CASTANHEIRA NEVES Metodologia jurídica. Problemas
fundamentais, Coimbra 1993, 280 e ss)

O exemplo do compromisso prático dos «bons costumes», «originariamente»


vinculado a um acervo de padrões pré-jurídicos (à experiência de uma «tipicidade social
eticamente aprovada») e não obstante continua e constitutivamente submetido a uma
assimilação-transformação jurídica — uma assimilação que lhe confere uma
inteligibilidade inconfundível e um sentido normativamente autónomo e que é por assim
dizer protagonizada pelas diversas comunidades de juristas (e pelas inter-relações que
estas assumem mas então também pelo mundo prático que se descobre como contexto-
correlato funcional destas inter-relações). Numa espécie de continuum sem soluções que
assimila e «confunde» (resta saber até que ponto... e com que possibilidades
transformadoras) as experiências distintas de uma pressuposição-condicionamento
material e de uma autotranscendência fundamentante.
O confronto entre a experiência de uma sociedade «tendencialmente integrada e
estabilizada» (que apaga a «diferença entre o ideológico e o axiológico») [«When an
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 78

ideology is uncontested it is not even perceived to be an ideology but rather is treated as


common sense...» (POSNER)] e de uma sociedade «plural e conflituante» (na qual esta
diferenciação se torna simultaneamente vulnerável e indispensável... sob pena de termos
que renunciar à autonomia intencional do jurídico). A experiência da ruptura
revolucionária: cairá o direito «na sua totalidade»?

Alguns exemplos de exigências e de compromissos práticos (traduzíveis em princípios


ou especificações de princípios) que descobrimos comprometidos com este nível (não
imediatamente jurídico) de assimilação do «costume ético-social» mas também com a
teia de poderes e de resistências que o seu ethos mobiliza ou está autorizado a mobilizar
(numa convocação possível de uma concepção ou mundividência ideológica dominante,
quando não de uma intenção político-ideológica condutora):
● a assimilação normativa do sistema político ou das exigências que este
introduz [considere os artigos 1º, 2º e 91º da Constituição da República
Portuguesa (e confronte-os com as suas redacções anteriores)];
●● a disciplina normativa do direito de propriedade (o problema
da função social da propriedade e do seu sentido e limites) e
(ou) a possibilidade de autonomização dos chamados «direitos e
deveres económicos» [cfr.os artigos 58º-62º da Constituição];

●●● a representação da igualdade e das «diferenças» ou da exigência de as superar no


universo específico do Direito da Família [cfr.o artigo 36º nºs 3 e 4 da Constituição].

►O Código Civil de 1966 («interpretando» o § 2º do art. 5º da Constituição de 1933 e a sua


convocação em relação à mulher das «diferenças» resultantes da «natureza» e do «bem da
família»... mas também a compreensão da instituição família consagrada nos artºs 12º e19º)
preservava, com efeito, uma representação «tradicional» (implacavelmente discriminatória») do
papel da mulher: poder-se-á mesmo dizer que assumia neste sentido uma exigência-
-princípio de preponderância do marido (nas relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges
e com os filhos)... — disciplina normativa que (associada à representação de uma concepção
dominante ou à aparência desta) a ruptura revolucionária de 74 ou esta projectada na
Constituição de 1976 puseram directamente em causa, determinando a revogação de parte
importante das normas legais de Direito da Família...

►►Procure dar-se conta da contingência e da vulnerabilidade histórica desta exigência ou


deste compromisso normativo de diferenciação dos papéis dos cônjuges e da concepção da
família que ele traduz. Parta de uma consideração de três normas do Código Civil na sua
redacção «primitiva»:
• «O marido é o chefe da família, competindo-lhe nessa qualidade representá-la e
decidir em todos os actos da vida conjugal comum (...).» (artº1674º)


Formulação que seria parcialmente alterada pela revisão de 1971.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 79

•• «A administração dos bens do casal, incluindo os próprios da mulher e os bens dotais,


pertence ao marido, como chefe da família.» (artº1678ºnº1)
••• «Compete especialmente ao pai, como chefe da família:... e) autorizar (...) [o filho] a
praticar os actos que, por determinação da lei, dependam do consentimento dos
pais;...g)administrar os seus bens.»(artº1881ºnº1)
Leia estas normas à luz da especificação do princípio da igualdade objectivada
nos artigos 13º nº2 e 36º nº 3 da Constituição. Não deixe também de as confrontar com
a redacção em vigor (introduzida pelo DL nº 496/77) dos artigos 1671º, 1674º, 1678º,
1878º,1885º do mesmo Código Civil.

►►E que dizer do princípio da distinção (juridicamente relevante) entre filhos


legítimos e ilegítimos que as normas do Código Civil de 66 (na sua redacção inicial) nos
permitem reconstituir (como princípio simultaneamente positivo e contingente)? ↓↓↓↓

→→ Parta também aqui de uma consideração de duas normas do Código Civil, na sua
redacção «primitiva»:
•«Presume-se legítimo o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio da
mãe(...)»(artº 1801 nº1)
••«A partilha entre filhos faz-se por cabeça, dividindo-se a herança em tantas partes
quantos forem os herdeiros(...).Concorrendo à sucessão filhos legítimos ou legitimados
e filhos ilegítimos, cada um destes últimos tem direito a uma quota igual a metade da de
cada um dos outros.» (artº2139º)
→→Leia depois estas normas à luz da especificação do
princípio da igualdade objectivada no artigo 36º nº 4 da Cons-
tituição. Não deixe de as confrontar com a redacção em vigor
dos artos 1796º e 2139º do Código Civil.

4.3.1.2. O segundo nível. A determinação do sentido do direito pelos princípios


fundamentais e esta como a experiência histórica de uma aquisição «humana
autenticamente reveladora» que, em cada ciclo, se justifica e assume como «universal».
Alguns exemplos destes princípios. Uma consideração exemplar das exigências do
princípio da legalidade criminal e da sua representação como princípio fundamental e
transpositivo
«... São exemplos destes os princípios do Estado-de-Direito e da legalidade em geral, os princípios da
independência judicial, da defesa, do contraditório, da não retroactividade da lei penal e da culpa, os
princípios da responsabilidade pelos danos, de pacta sunt servanda, da fides (a vinculação à palavra dada, o
dever de honradez e o dever de lealdade, da boa fé), da censura do “abuso de direito”. Acrescem as
exigências normativas próprias de certas instituições, como o casamento e a família (com o seu valor


Logo no início da Introdução ao direito II voltaremos aos princípios e ao sentido de uma
classificação destes segundo a posição que ocupam na «consciência jurídica geral» (bastando-nos agora
uma alusão brevíssima).
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 80

específico e os deveres, nesse sentido fundados, que vinculam os respectivos membros), a própria nação
(com os valores da “ordem pública”, os deveres de fidelidade), etc. Muitos destes valores e princípios
obtiveram consagração nas declarações dos direitos do homem, nos «direitos, liberdades e garantias dos

cidadãos», nos princípios materiais das várias constituições nacionais. Mas seria um erro pensar que

esses mesmos valores e princípios jurídicos fundamentais, que ao direito

indefectivelmente importam, se reduzem aos dessa forma reconhecidos ou que só

mediante esse reconhecimento poderão ser juridicamente relevantes. Até porque a

última expressão da juridicidade não pode, desde logo, identificar-se com a legalidade

constitucional...» (CASTANHEIRA NEVES, Metodologia jurídica. Problemas fundamentais,


Coimbra 1993, 282)
Partindo dos exemplos que a leitura deste texto lhe propõe (e sem
deixar de ter em atenção a reserva enunciada supra, no último excerto
citado), considere atentamente as objectivações normativas propostas
nos artigos 12º, 13º, 18º nº2 (ⁿ), 19º nº2(ⁿ), 20º(‫)ײ‬, 28 nº2(ⁿ), 29º nºs 1,
3 e 4, 32º nºs 2(‡), 5 e 7(▫), 37º nº1, 119º(), 266º, 268º nº3, e 272º
nº2(ⁿ) da Constituição. Sem deixar de ter presentes os exemplos
desenvolvidos supra,4.2. a propósito do princípio da autonomia privada
e dos referentes comunitários com que hoje o assumimos.
(ⁿ)Pode falar-se aqui de um princípio de Princípios…
proibição do excesso ou de justa medida (se (‫)ײ‬...do acesso ao direito...
quisermos, de uma especificação normativa de um (‡)…in dubio pro reo…
princípio de proporcionalidade). (▫)... do juiz natural...
() ... da publicidade...

Elementos de estudo [pontos 4.3.1.1. e 4.3.1.2.]

A. CASTANHEIRA NEVES, «A revolução e o direito» , Digesta, vol. 1º, Coimbra, Coimbra Editora,
1995, pp. 208-212 [a)- b)]; F. BRONZE, ob.cit., pp. 475-489.

4.3.1.3. O terceiro nível. O «princípio normativo» do direito enquanto normatividade


radicalmente fundamentante. A pessoa e a sua dialéctica.

A assunção da pessoa como aquisição axiológica cujo


reconhecimento é verdadeiramente especificante do direito como direito
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 81

A distinção fundamental entre o sujeito-originarium como entidade antropo-


lógica e a pessoa como aquisição axiológica. O salto decisivo do reconhecimento
recíproco ou a assunção de uma ordem (de integração comunitária ) que reconheça a
cada homem a dignidade de sujeito ético. O exemplo-limite do escravo, tratado como
sujeito e muitas vezes celebrado como autor... e não obstante recusado como «fonte de
pretensões, ou titular de direitos e de deveres» («Não há direito para os escravos, tal
como não o há para seres inteiramente disponíveis perante uma qualquer
heteronomia...»).

CASTANHEIRA NEVES, excerto de Apontamentos complementares de


Teoria do Direito (1988/89)«
Assim, será imprescindível distinguir o sujeito (o homem-sujeito) da pessoa (o homem-
pessoa). O primeiro é uma entidade antropológica, o segundo uma aquisição axiológica. O homem
é sujeito enquanto é um originarium, a possibilidade da novidade no mundo que exclui a
necessidade (tanto na determinação da acção como da sua realização). Que o mesmo é dizer:
postula um initium, um início que essencial e continuamente se retome na existência. Cada homem
como sujeito é novo (um homem diferente) e novador (uma fonte de novidade). Afirmou-o também
S. AGOSTINHO – initium ergo est esset creatus est homo, ante que nullus fuit – e comenta HANNAH
ARENDT: “este começo é coisa diferente do começo do mundo; não é o aparecer de qualquer coisa,
mas de alguém, que é ele mesmo um novador”. Podia dizer-se de outra forma: o homem-sujeito é o
homem-autor, i. é, aquele que pode falar e agir em nome próprio, assumindo-se como um eu, já
perante si próprio na ipseidade, já perante os outros na identidade. O que implica decerto o
problema da liberdade e a possibilidade da sua negação – mas desse ponto capital não podemos
tratar.
O “homem soberano não semelhante senão a si próprio” de NIETZSCHE está aqui. Mas o
homem-sujeito ou o homem-autor com o seu eu não está só – está com os outros (Mitsein), ele é um
ser-com-outros. Isto é desde logo condição da correlatividade das próprias ipseidade e identidade.
Mas a nível mais profundo ainda, a nível constitutivo: a coexistência comunicativa com os outros é
tanto condição de existência (pense-se na Lebenswelt e na linguagem), como condição empírica
(pense-se na situação de carência e a necessidade da sua superação pela complementaridade e a
participação dos outros), como ainda condição ontológica (pense-se no nível cultural e da
existência, a nível de ser, que a herança e integração histórico-comunitárias oferecem). Tudo
converge, pois, na simultaneidade e na dialéctica constitutiva do eu e do nós, ou das dimensões
constitutivamente irredutíveis da existência autónoma e da existência comunitária do homem. Ponto
da maior importância, mas sobre o qual nos teremos de bastar com estas sumárias alusões.
Pois bem, com tudo isto não abandonámos o plano estritamente antropológico e ainda não
temos perante nós a pessoa. Pois ser livre ou autónomo na originalidade e na autoria não exclui,
quer a não assunção da intencionalidade e do compromisso éticos, quer o domínio e a objectivante
fruição que os outros possam exercer sobre esse eu-autor. De outro modo, o ser “eu” em termos
antropológicos e essencialmente livres na afirmação da minha originalidade e autoria não exclui a
possibilidade da minha real condição de escravo. Mesmo quando os escravos sejam tratados
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 82

benevolamente e como homens (como sujeitos), nem por isso deixam de ser escravos – susceptíveis
de apropriação e alienação, objectos jurídicos, recusados como “entes de pretensões, ou titulares de
direitos e de deveres e obrigações”, para o dizermos com RAWLS. Numa palavra, verdadeiramente
coisas e não fins em si (“algo que não pode ser usado como simples meio”) em que KANT viu a
essência diferenciadora da pessoa, naquele seu absoluto a que, por isso mesmo, se imputa dignidade
(não instrumentalidade ou preço). Só que “dignidade” é uma categoria axiológica, não ontológica, e
apenas emerge e se afirma pelo “respeito” (para o dizermos com KANT) ou pelo reconhecimento
(para o dizermos com HEGEL) – daí a verdade da palavra justamente de HEGEL, “Der Mensch ist
Anerkennen”. Insistamos, agora com CALOGERO: a “lei moral” não se funda na “teoria do
conhecimento”, mas na “teoria da nossa prática”, o bem e o dever “há-de ser qualquer coisa mais do
que verdadeiro, haverá de ser querido”. E di-lo também expressamente ARTHUR KAUFMANN: “as
criaturas humanas só se personalizam quando elas se reconhecem reciprocamente como pessoas”.
Por isso será errada a concepção substancialista de pessoa em BOÉCIO (persona est rationalis
naturae individua substantia), o ser do logos ou que tem logos, e não muito diferentemente tanto
em S. TOMÁS como em SUÁREZ, e não menos a tentativa de uma sua dedução pragmático- -
transcendental em referência à comunicação (APEL) ou ao discurso (ADELA CORTINA) – a
comunicação só o será autenticamente entre pessoas, é certo, mas são estas que instituem a
comunicação, e não a comunicação que fundamenta constitutivamente as pessoas. Problemática
vasta que só assim não fica, decerto, decidida – mas por agora temos de ficar por aqui.
Importando apenas, e a mais, inferir desse reconhecimento, enquanto confere ele ao homem
dignidade e, portanto, um estatuto ético, que o homem assim não só ascende, enquanto pessoa, à
axiologia e se faz participante e sujeito do “reino dos fins”, do mundo dos valores, como tem
sentido e fundamento já o comprometer-se (ético) perante os outros –o “prometer” de que nos fala
NIETZSCHE –, já a interpelação (ética) dos outros perante ele.
Havendo todavia de ter presente que o reconhecimento eticamente instituinte da pessoa não
se verificaria sem a base de possibilidade que a qualidade de sujeito lhe oferece – como que o
corpus da espiritualidade dessa instituição e em que temos, digamo-lo com HÖFFE, “moral mais
antropologia” – assim como, do mesmo modo, as relações de compromisso e de interpretação
também éticas encontram a sua possibilidade, e mesmo a sua exigência, na referência comunitária
do homem. Por um lado, a pessoa manifesta-se em relação, a relação que a reconheceu como tal,
por outro lado, o seu mundo é a comunidade, a comunidade em que assim se realiza...»

4.3.1.3.1. O pólo do suum (eu pessoal, proprium) assimilado num princípio


suprapositivo de igualdade. A garantia normativa de uma reserva de possibilidades de
autodeterminação (tão irrecusável quanto irredutível às exigências comunitárias). «A
igualdade entre os sujeitos-pessoas e no todo comunitário (fundada no valor absoluto da
pessoa e nas suas indisponibilidade e infungibilidade éticas).»

α) Implicação axiológico-normativa negativa (um modo negativo que se cumpre-


-constitui determinando-realizando limites ou proibições dirigidas aos outros e à
comunidade como um todo): o respeito incondicional da dignidade da pessoa
traduzido numa exigência normativa de autonomia, aqui e agora reconhecida em
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 83

termos negativos, se não passivos («a dignidade como um valor, indisponível para
o poder e para a prepotência dos outros»). ↓↓

NEMINEM LAEDERE

COEXISTÊNCIA

β) Implicação axiológico-normativa positiva:

PACTA SUNT SERVANDA

CONVIVÊNCIA

β)’ O espaço de reserva jurídica da pessoa: os direitos subjectivos e os


«direitos do homem» ou os direitos fundamentais.
A relação entre os direitos fundamentais e os princípios: cfr. o texto proposto
supra, pág. 53. Estamos agora em condições de concluir...:↓↓

«Entre os direitos e os princípios...


—... [nem temos que descobrir uma] básica antinomia, com os direitos (como
“direitos individuais”) a manifestarem uma social ou comunitariamente “força
desagregadora” ou “desintegradora” e os princípios a afirmarem “a tendência à
integração, à justiça” (assim G. ZAGREBELSKI)...
—… [nem estamos vinculados a sustentar] uma sua última e normativa identidade
— [o que significaria por ex. assumir a lição de] DWORKIN e da sua conhecida
rights thesis para considerar que os arguments of principle (em contraste com os
arguments of policy) são chamados a justificar as decisões sempre pela invocação
de direitos e pela invocação destes como fundamentos...
[O que temos que reconhecer ...e que levar a sério é antes] uma dialéctica
convergência dinamizada pela normativa axiologia da pessoa com a sua
responsabilidade comunitária, em que os direitos e os princípios são faces
axiológico-normativamente diferenciadas, mas correlativas, de uma última unidade
(unidade dialéctica) só compreensível segundo a perspectiva do homem-pessoa
(uma unidade de resto que essa perspectiva implica)...» (CASTANHEIRA NEVES,
A crise actual da Filosofia do Direito)

β)’’ As possibilidades de realização da pessoa enquanto mobilização


dinâmica da sua «reserva» de direitos subjectivos e de direitos fundamentais
e esta traduzida em dois compromissos práticos suprapositivos: o princípio
da autonomia na sua dimensão ou na sua face positiva ou activa e o
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 84

princípio da participação — de tal modo que a autodeterminação do


proprium garantida normativamente pelo primeiro se projecte-desenvolva na
concorrência constitutiva justificada pelo segundo e neste já como uma
articulação plausível de exigências comunitárias (ou da dialéctica com o
suum que estas impõem ).Que concorrência constitutiva? A que descobrimos
nos contratos [supra, 4.2.1.ε)], nas formas de associação, na representação

legislativa, nos modos institucionalmente informais de cooperação. Pacta

sunt servanda.

4.3.1.3.2. O pólo do commune assimilado num princípio suprapositivo de


responsabilidade.
Ter presente o modo como o individualismo moderno se confrontava com a
responsabilidade, a qual nos aparecia apenas como correlato do
exercício das liberdades... e nunca como uma categoria prática
originária [ver supra,4.2.1.].

A comunidade como condição vital, como condição existencial e como condição


«ontológica»...

... como condição vital... ... como condição existencial... ... como condição «ontoló-
––––––––––––––––––––– gica» ou de realização
«A realidade na qual se «O mundo circunstante e quotidiano da pessoal
afirmam: vida em que estamos mergulhados e que «Só me realizo plena-
— as carências e as re- pressupomos... e que é simultaneamente
lações interindividuais mente (só constituo-
correlato funcional da nossa actuação e manifesto as minhas
dos interesses... comunicação e o seu meio-ambiente...»
—...e a mediação po- possibilidades de ser)
A experiência pré-reflexiva de um
sitiva dos outros [as património de possibilidades comuns... quando contribuo para
respostas da comple- um (e sobretudo quando
mentaridade (divisão do
Um apriori da convivência... participo num) trans-
...enquanto ...enquanto
trabalho e dos sexos, pessoal — capaz de
especialização) e da co- comunica- significação↓↓↓
a pressuposição dos ultrapassar a negativi-
laboração (associação)] ção →→a
valores, sentidos dade do eu individual e
—...mas ainda os meios palavra e a
e fundamentos de assim mesmo sub-
técnico-materiais e cul- linguagem argumentativos...
turais de que carecemos sistir para além do mero
para vencer a nossa correlato formal das re-
necessidade e usufruir o lações interindividuais,
padrão de civilização como que emergindo
que cada momento materialmente da comu-
histórico postula...» nicação intersubjectiva.
A comunidade como O intercâmbio com os outros a concorrer para nosso modo de
condição empírica... e existência comunitária
então ainda sobretudo «Serei tanto mais rico (de riqueza humana) quanto mais
como societas
ricos o forem no mesmo sentido os outros...»
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 85

Nota: todos os princípios (que veremos suprapositivos) imputados ao pólo do


commune serão estudados no próximo capítulo, o primeiro de Introdução II — pelo que
nos basta aqui e agora esta alusão brevíssima.

α) Implicação axiológico-normativa negativa : um modo negativo que se cumpre-


constitui impondo limites... às exigências comunitárias ou às proibições que estas
introduzem. Que limites? Os de um verdadeiro discretum normativo — que possa
interromper o continuum (se não já a hipertrofia) da responsabilidade.

α)’O princípio do mínimo (quoad substantiam) ou o(s) limite(s) dos limites


no plano material. A justificação dos impedimentos («aqueles e apenas
aqueles que se reconheçam e justifiquem como condições comunitariamente
indispensáveis para a realização pessoal de cada um»).
α)’’ O princípio de formalização (quoad modum) ou o(s) limite(s) dos
limites no plano da institucionalização formal. A exigência da determinar um
esquema objectivo capaz de pré-demarcar os (ou de controlar a realização
dos) limites materialmente intencionados.

β) Implicação axiológico-normativa positiva: as três modalidades da


responsabilidade jurídica (corresponsabilidade lato sensu).

β)’ A responsabilidade perante as condições gerais da existência comunitária:


— a responsabilidade de preservação traduzida no princípio da
corresponsabilidade (stricto sensu);↓↓

HONESTE VIVERE
[Alusão ao problema da tutela-protecção dos bens jurídico-criminais]

— a responsabilidade de contribuição traduzida no princípio da


solidariedade.↓↓

SUUM CUIQUE TRIBUERE


INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 86

→→ O problema dos deveres jurídicos de solidariedade (o exemplo


paradigmático dos deveres fiscais e as exigências específicas do
chamado princípio do Estado social) [Cfr.o nº1 do artigo 103º da
Constituição].

β)’’ A responsabilidade por reciprocidade: comutativa em geral e contratual em


particular. A exigência de auto-responsabilidade a impor uma «normatividade
mais extensa e profunda» do que aquela que vemos traduzida no princípio pacta

sunt servanda. →→ EXECUTIO IUSTI

β)’’’ A responsabilidade pelo equilíbrio da integração (pelo dano, pelo


prejuízo, por situações de acção antinómica). ↓↓

HOMINIS AD HOMINEM PROPORTIO

4.3.2. A identidade (autonomia, mas também continuidade) do projecto do direito


compreendida a partir das exigências da dialéctica suum /commune (e do homem de
liberdade-autonomia e de responsabilidade que esta constrói). Uma procura situada, a
retomar-reinventar em cada circunstância histórica e em cada horizonte cultural (sob o
fogo-cruzamento de distintos factores).

Elementos de estudo [pontos 4.3.1.3.-4.3.2.]

CASTANHEIRA NEVES, «A revolução e o direito» , cit., 215-217; ID., Curso de introdução....


(extractos), cit.,185-189[α α)].; F. BRONZE, ob.cit., pp. 489-502, 534-540

Propostas de trabalho (temas sumariados nas pp 20-83)

Comente desenvolvidamente cada um dos textos seguintes:


(a) «Só a característica objectiva da estadualidade nos permite distinguir a ordem
jurídica das outras ordens sociais...»
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 87

(b) «Se estiver perante uma ordem social que articule logradamente (com suficiente
diferenciação institucional e comprovada eficácia) regras primárias e
secundárias, estarei certamente a reconhecer-experimentar uma ordem de direito
(e então e assim a levar a sério as exigências do novo pluralismo jurídico)...»
(c) «O que aconteceu no contexto prático-cultural do Iluminismo — e sustentou
todo o processo de institucionalização do Estado demo-liberal — foi
precisamente uma conjugação-concertação (reciprocamente constitutiva) de
legalismo e de normativismo (a de um legalismo que é incondicionalmente
normativista… e a de um normativismo exclusivamente alimentado por um
legalismo)...»
II

Considere atentamente as seguintes questões:


1. «Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja (...) a pessoa e os
bens de cada associado e pela qual cada um, ao unir-se (e enquanto se une) a
todos os outros não obedeça no entanto senão a si próprio e permaneça tão livre
como antes. Tal é o problema fundamental para o qual o contrato social
representa a solução...» Partindo do problema-desafio assim enunciado por
ROUSSEAU procure mostrar em que termos se pode dizer que «o homem
moderno superou uma certa representação-experiência da comunidade para
assumir a exigência teleológico-política da invenção da societas». Não deixe de
mostrar que a recuperação do contratualismo nos aparece com um sentido
claramente distinto daquele que era possível no contexto pré-moderno.
2. Identifique as características da lei a que os seguintes textos principalmente se
referem, mostrando também em que termos estas se projectam nas exigências
normativas da juridicidade assumidas pelo legalismo normativista do século
XIX: (a) «Quando todo o povo estatui sobre todo o povo, não considera senão a
si próprio...»; ((b) «Na relação recíproca dos arbítrios não se atende, de todo em
todo, à matéria do arbítrio...»; (c) «Ao tratar de uma matéria comum, a lei não
considera nunca as situações concretas...».
3. Distinga claramente as duas concepções do princípio da separação dos poderes
propostas nestes dois textos: (a) «Para que não se possa abusar do poder, é
preciso que (..) o poder detenha (arrête) o poder...»; (b) «Na união dos três
diferentes poderes (...) reside a salvação do Estado (...). [Esta corresponde à]
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 88

situação da máxima concordância entre a Constituição e os princípios do direito,


situação a que a razão nos obriga a aspirar por via do imperativo categórico...».
4. «É precisamente a pressuposição desta normatividade universal (assumida na
sua completude e deixada intocada na sua auto-subsistência ideal) que garante a
racionalidade plena (a inevitabilidade racional) da resposta que o julgador há-de
dar “sobre o que é de Direito em cada caso” (a resposta que “atribui a cada um o
que é seu” de acordo com a lei e pronunciando sem restrições as suas
palavras)...» Identifique o problema a que o texto se refere, mostrando em que
sentido é que um certo paradigma da aplicação (que deverá reconstituir)
expressamente lhe corresponde.
5. «A utilização reiterada de leis concretas viola os princípios da igualdade e da
separação de poderes...» A que leis concretas se refere este texto? Que outras
características devemos ter em atenção para reconhecer estas leis (e que contexto
político-constitucional as tornou possíveis)? Está de acordo com a afirmação do
Autor?
6. Partindo das exigências do princípio da autonomia privada (e da sua
especificação num princípio de liberdade contratual), procure mostrar a que
dimensões (mas também a que compreensão) destas exigências se referem os
critérios seguintes: (a) «É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando
alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza,
dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste,
para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou
injustificados. » (b) «As partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo
dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir
nestes as claúsulas que lhes aprouver...» Na sua resposta socorra-se das
especificações que a dialéctica autonomia / responsabilidade (através dos
princípios associados aos pólos do suum e do commune) o ajudam a determinar.
7. «Nos contratos de adesão não há restrições à liberdade de contratar. O
consumidor do serviço, se não está de acordo com as condições constantes do
modelo elaborado pelo fornecedor, é livre de rejeitar o contrato...» Que
comentário lhe merece esta afirmação?
8. Invocando a dialéctica autonomia / responsabilidade (e os princípios que lhe
pareçam pertinentes associáveis aos pólos do suum e do commune), procure
compreender os problemas que os critérios seguintes tipificam: (a) «É ilegítimo
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 89

o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites


impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico
desse direito... »; (b) «Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão
de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à
resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde
que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os

princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato...»

9. «O uso deliberado de formulações legislativas indeterminadas compromete


significativamente as possibilidades de uma aplicação racionalmente autónoma
da lei...» Está de acordo com esta afirmação? A que formulações indeterminadas
lhe parece este texto aludir?

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