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INTRODUÇÃO AO DIREITO
Sumários desenvolvidos
Introdução
Elementos de estudo:
—A. CASTANHEIRA NEVES, « Relatório...», in Curso de
Introdução ao Estudo do Direito — Textos compilados (Textos
de introdução ao estudo do direito), cit. (na Bibliografia
principal), pp. 7-17 (pontos 2., 3. e 4.), 32-34 (pontos 7. e 8.),
58—65 (pontos 12 e 13)
— Fernando José BRONZE, Lições de Introdução ao direito,
2º edição, Coimbra 2006, pp. 11-29.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 3
Primeira Parte
O direito como dimensão da nossa prática: o
problema do seu «sentido civilizacional»
Capítulo I
O sentido geral do «projecto humano» do direito
1.2.1. Uma tectónica determinada por três grandes linhas estruturais (a assumir
uma significativa herança de especificações das intenções à normatividade, se não
mesmo das dimensões da justiça): α) ordo partium ad partes; β) ordo partium ad
totum; γ) ordo totius ad partes.
Uma consideração atenta dos equilíbrios manifestados nesta estrutura (e nas suas
três linhas):
— a constância dos desempenhos relacionais e da intersubjectividade que lhes
corresponde (a conexão direitos / deveres) ;
— as diversas «qualidades» dos sujeitos (privados e públicos, privados e socii);
— algumas especificações do equilíbrio paritário (primeira linha) e da intenção
à justiça (comutativa e correctiva) que nele se manifesta;
a) A «troca» nas «transacções particulares voluntárias» (na «troca de
bens feita de livre vontade»), iluminada pelas categorias da «perda» e
do «ganho» e associada a uma dinâmica de participação — uma
dinâmica sustentada numa exigência de igualdade das prestações e
das expectativas que lhe correspondem... mas nem por isso menos
compossível com o «lucro» (e nestes sentido também a admitir o
risco do «prejuízo»). O exemplo paradigmático do contrato privado.
b) As «transacções particulares involuntárias» e a pretensão-exigência
de repor o equilíbrio (de integração) perturbado [«De tal sorte que o
justo nas transacções involuntárias [seja] o que está no meio termo
entre um certo lucro e um certo prejuízo: é ter antes e depois uma
parte igual»]. O exemplo da responsabilidade civil: o objectivo de
tornar o lesado indemne (sem dano, na situação em que estaria se não
tivesse ocorrido o dano).
A lição da Ética a Nicómaco de ARISTÓTELES (Livro V, IV, 1131-1132)
— as distintas «máscaras» do sujeito comunitário (da comunidade de valores
ou de «bens jurídicos» à societas-providência) [uma breve alusão (remissiva)
a duas imagens da societas politicamente organizada em Estado: (a) aquela
em que o «estatuto» universal da cidadania é dominado pela garantia da
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 5
Elementos de estudo:
— A.CASTANHEIRA NEVES, « O direito (O problema do
direito)/O sentido do direito...»,in Curso de Introdução ao
Estudo do Direito — Textos compilados, 1-13.
— Fernando José BRONZE, Lições de Introdução ao direito,
cit., 31-58.
Excurso:
— MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4ºed.,
Coimbra Editora 2005, pp. 35-46.
Leitura recomendada:
J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao direito e ao
discurso legitimador, Coimbra 1983 (sucessivamente reeditado),
63-77 (capítulo III).
Proposta de trabalho
Na sua resposta não deixe de caracterizar as intenções que sustentam cada uma das
linhas em causa.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 6
(a) «Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou
propalar factos inverídicos, capazes de ofenderem a credibilidade, o prestígio ou
a confiança que sejam devidos a pessoa colectiva, instituição, corporação,
organismo ou serviço que exerça autoridade pública, é punido com pena de
prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias»
(b) « Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos
que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve
a sua utilização.»
(c) «Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família,
no seu domicílio ou na sua correspondência..»
(d) «É nulo o testamento em que o testador não tenha exprimido cumprida e
claramente a sua vontade, mas apenas por sinais ou monossílabos, em resposta a
perguntas que lhe fossem feitas. »
(e) «Beneficiam de uma redução do Imposto sobre o Rendimento (IRS ou IRC)
todas as a pessoas singulares ou colectivas que apoiem, através da concessão de
donativos, entidades públicas ou privadas que exerçam acções relevantes para o
desenvolvimento da cultura portuguesa.»
(f) «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem (..)
fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.»
(g) «Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo,
por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou,
determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa,
prejuízo patrimonial, é punido com pena de prisão até 3 anos»
(h) «O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e
será único e progressivo...»
(i) «Têm direito de sufrágio todos os cidadãos maiores de dezoito anos.»
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«A legislação que faz de uma acção um dever e simultaneamente desse dever um móbil é ética.
Mas a que não inclui o último na lei e que, consequentemente, admite um móbil diferente da
ideia do próprio dever é jurídica (…) A mera concordância ou discordância de uma acção com a
lei, sem ter em conta os seus móbiles, chama-se legalidade–Legalität (conformidade com a lei),
mas aquela em que a ideia de dever decorrente da lei é ao mesmo tempo móbil da acção chama-
-se moralidade-Moralität (eticidade) da mesma. Os deveres decorrentes da legislação jurídica só
podem ser deveres externos...» (KANT, Metafísica dos costumes, 1797, Introdução, III «De
uma divisão da metafísica dos costumes»)
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«O que nos permite começar a ver aqui a nota decisivamente diferenciadora do direito
perante a moral — esta poderá ser apenas ad alterum e de sentido puramente imperativo (i.é, com a
exclusiva categoria do dever), mas o direito não poderá deixar de se manifestar numa
“bilateralidade atributiva” (i. é, com as correlativas categorias de direito e de dever ou obrigação).
Pelo que se poderá dizer que o princípio da moral está nos deveres — no ponto de vista do outro ou
no rosto do outro que me interpela (LEVINAS) — e o princípio do direito está simultaneamente nos
direitos (no ponto de vista do eu) e nos deveres (no ponto de vista do outro e dos outros) pela
mediação do comum da vida social.» (CASTANHEIRA NEVES, O problema actual do direito. Um
curso de Filosofia do Direito, Coimbra-Lisboa 1994)
«A bilateralidade atributiva distingue sempre o Direito, porque a relação jurídica não toca apenas a um
sujeito isoladamente, nem ao outro, mesmo quando se trate do Estado, mas sim ao nexo de polaridade e
de implicação dos dois sujeitos. Existe conduta jurídica porque existe medida de comportamento que não
se reduz nem se resolve na posição de um sujeito ou na do outro, mas implica concomitante e
complementarmente a ambos. (…) Se dizemos que uma conduta jurídica não se caracteriza, nem se
qualifica somente pela perspectiva ou pelo ângulo deste ou daquele sujeito, mas pela implicação de
ambos, compreenderemos a possibilidade daquilo que chamamos exigibilidade. Tratando-se de uma
conduta que pertence a duas ou mais pessoas, quando uma falha (voluntariamente ou não),à outra é
facultado exigir. Da atributividade decorre a exigibilidade...» (Miguel REALE, Filosofia do direito, 9ª
edição, São Paulo, 1982, pp.687-688),
Excurso II
— A. SANTOS JUSTO, Introdução ao estudo do direito, 3ª
ed., Coimbra Editora 2006, pp. 158-163.
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Leia com atenção este excerto de The Concept of Law (1961) de Herbert HART (1907-
1992), uma obra capital do pensamento jurídico do século XX. Procure depois reflectir
sobre a caracterização das funções secundária da ordem jurídica com que este texto nos
que outras dimensões lhe parecem relevantes? e que dizer da distinção nele proposta
«Se quisermos fazer justiça à complexidade de um sistema jurídico, é preciso distinguir dois tipos de
regras diferentes, embora relacionados. Por força das regras do primeiro tipo, que bem pode ser
considerado primário ou básico, é exigido aos seres humanos (quer estes queiram quer não!) que realizem
ou se abstenham de realizar certas acções. As regras do outro tipo são por assim dizer parasitas ou
secundárias em relação às primeiras: porque asseguram que os seres humanos possam criar, extinguir ou
modificar as regras anteriores, ou determinar de diferentes modos a sua incidência ou fiscalizar a sua
aplicação. As regras do primeiro tipo impõem deveres (regras de comportamento), as regras do segundo
tipo atribuem poderes, públicos ou privados (regras de reconhecimento, de transformação e de decisão-
julgamento). As regras do primeiro tipo dizem respeito a acções que envolvem movimento ou processos
de mudança físicos; as regras do segundo tipo tornam possíveis actos que conduzem não só a um
movimento ou a processos de mudança físicos mas também à alteração de deveres ou obrigações. (…) O
direito pode ser caracterizado (…) como uma união de regras primárias e secundárias…» (HART, The
Concept of Law, capítulo V)
Para poder fazer um comentário mais conseguido a este texto, importará de resto saber
um pouco mais sobre as regras secundárias autonomizadas por HART. Tratando-se assim
¥
Só mais tarde estaremos em condições de perceber que a caracterização das normas secundárias
proposta por HART e por TEUBNER se nos impõe indissociável das compreensões do direito que os
autores em causa explicitamente assumem (se não mesmo como «sinais» claríssimos dessas concepções)!
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uma regra (última!) que, uma vez aceite, combate a incerteza que pode resultar da
característica geral possuída por tais regras primárias (por exemplo, o «facto» de terem
sido prescritas por um determinado orgão legislativo ou construídas por uma certa
que devem ser (validamente) reconhecidos como jurídicos e como tal dotados de
autoridade-potestas…
respectivas características gerais, se porventura for indicada mais do que uma) [definindo
[primárias] não são agora apenas um conjunto discreto e desconexo, mas estão, de modo
•• «Onde quer que uma tal regra de reconhecimento seja aceite, tanto os cidadãos
••• «Dizer que uma determinada regra é válida é reconhecê-la como tendo passado
3.)]: regras que combatem o estatismo do regime de regras primárias, conferindo poder
revogação devem ser compreendidas...» [Sem esquecer que as regras secundárias em causa
poderão então «especificar quais são as pessoas que devem legislar», mas também e
b)’’ É no entanto também à luz de tais regras que podemos entender o exercício da
regras que combatem a ineficácia das regras primárias (ou da sua «pressão social
difusa»), dando poder «aos indivíduos» (a certos indivíduos) para julgar, entenda-
de saber se uma regra primária foi ou não violada numa circunstância concreta específica.
sentença»).
porquê, fazendo corresponder a cada uma destas vantagens sociais as diferentes regras
Segundo TEUBNER, são as regras secundárias que nos permitem passar de uma fase de um direito
socialmente difuso (na qual o direito se distingue dificilmente das outras comunicações sociais que
assumem uma pretensão normativa) para a fase do direito parcialmente autónomo. O papel que
«As “normas secundárias” analisadas por H. L. A. Hart constituem o exemplo mais célebre da
autodescrição do direito. Estas descrevem a operação pela qual o sistema jurídico observa na
~
Só quando as normas secundárias (autonomizadsa pelo discurso jurídico universitário) são
usadas operacionalmente no funcionamento das decisões das práticas legislativa e jurisdicional é que
TEUBNER nos fala de autoconstituição. A passagem da autodescrição à autoconstituição dá-se quando as
referidas práticas passam a servir-se daquelas autodescrições (e das normas secundárias que elas
distinguem).
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primárias de comportamento. Segundo Hart, “se (...) considerarmos a estrutura que resultou da
coração do sistema jurídico”…» (Recht als autopoietisches System, 1989, cap. III)
Há uma tradução portuguesa de Recht als autopoietisches System, Frankfurt, Suhrkamp, 1989:
O Direito como sistema autopoiético, , Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989
Elementos de estudo:
A.CASTANHEIRA NEVES, « O direito (O
problema do direito)/O sentido do direito...»,in
Curso de Introdução ao Estudo do Direito, cit., 39-
-43.
Fernando José BRONZE, Lições de Introdução ao
direito, cit., 84-92
Leituras recomendadas: o citado capítulo V de O conceito de direito de HART(«O
Direito como união de regras primarias e secundárias»). Para uma reconstituição da
proposta de HART ver ainda Mário REIS MARQUES, Introdução ao Direito, vol. I,
Coimbra, Almedina, 2007, 2ª ed., pp. 455-459 (2.)
Propostas de trabalho
nós, que suportamos o peso do dia e do calor... ») não é seguramente aquela que o
proprietário assume («Porventura vês com maus olhos que eu seja bom? »].
II
1. Considere de novo as proposições normativas (a), (b), (d), (e), (f) e (g) propostas
supra, na pág. 6, procurando agora reconhecer a estrutura lógica das normas que estas
objectivam e a especificidade (se quisermos, o tipo) da sanção que lhes corresponde.
(j) «O juiz presidente informa o arguido de que tem direito a prestar declarações em
qualquer momento da audiência, desde que elas se refiram ao objecto do processo,
sem que no entanto a tal seja obrigado e sem que o seu silêncio possa desfavorecê-
-lo...»
(k) «É direito dos trabalhadores criarem comissões de trabalhadores para defesa dos
seus interesses e intervenção democrática na vida da empresa...»
(l) «O Conselho de Estado é o orgão político de consulta do Presidente da República,
competindo-lhe assim pronunciar-se sobre a dissolução da Assembleia da República
e a demissão do Governo.
(m) «O método correcto da interpretação da lei é aquele que corresponde a uma
investigação histórica dos comandos e dos interesses...»
(n) «Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são
directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas...»
(o) «A sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do
falecimento deste...»
(p) «Os tribunais são os orgãos de soberania com competência para administrar a justiça
em nome do povo»
(q) «O tribunal pode, quando o considerar necessário à boa decisão da causa, deslocar-
se ao local onde tiver ocorrido qualquer facto cuja prova se mostre essencial e
convocar para o efeito os participantes processuais cuja presença entender
conveniente...»
(r) «Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos
análogos...»
(s) «As testemunhas depõem na audiência final, presencialmente ou através de
teleconferência, devendo o juiz procurar identificá-las e perguntar-lhes se são
parentes, amigos ou inimigos de qualquer das partes, se estão para com elas
nalguma relação de dependência e se têm interesse, directo ou indirecto, na causa.»
Para explorar desde logo as características e os efeitos-resultados: ver, numa leitura
complementar, CASTANHEIRA NEVES, «O direito (O problema do direito)/O sentido do direito...»,in
Curso de Introdução ao Estudo do Direito, cit., pp. 43-52.
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░
Para perceber bem o que significa esta inespecialização ou inacabamento (mas também a
abertura ao mundo) da espécie homem (em confronto com as espécies animais plenamente adaptadas), ler
com toda a atenção Fernando BRONZE, Lições de Introdução ao direito, cit., pp. 116-119 (incluindo as
notas 2-6).
▣
A propósito destas experiências cultural-civilizacionalmente distintas da nossa (que não se nos
oferecem afinal como autênticas civilizações de direito), ver também Fernando BRONZE, Lições de
Introdução ao direito, cit., pp. 153-157 (incluindo as notas 21-31).
╝
Ver supra, p. 16, nota ~.
╞
Pretensão de juridicidade que TEUBNER (assimilando LUHMANN) associa à determinação
de um código com duas valências (Recht/Unrecht), melhor dizendo, um código que prevê-projecta uma
valência positiva (lícito, legal, «justo»…→→ juridicamente positivo) e uma valência negativa (ilícito,
ilegal, «injusto»...→→ juridicamente negativo, «contra o direito»). Especificação que não nos deverá
agora ocupar. Bastando-nos ter presente que este código, assim enunciado, tem um carácter formal-
procedimental (livredeexigências ou determinações materiais).
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●
A expressão é precisamente de TEUBNER: «The Two Faces of Janus: Rethinking Legal
Pluralism», in TUORI / /BANKOWSKI / UUSITALO (ed.), Law and Power, Liverpool 1997, 119 e ss.
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Sem esquecer por fim que o referido novo pluralismo (com uma intenção
sociológica descritivo-explicativa ou compreensiva e/ou assumindo um programa
crítico de emancipação ☼) nos obriga ainda a dirigir a mesma pergunta a outras ordens
normativas — temporal e territorialmente concorrentes (ou pelo menos coexistentes)
com a ordem jurídica estadual — … nas quais a experiência instituinte (e condutora) é
menos a da pura associação-societas de interesses do que a de uma identidade
comunitária (relativamente restrita) e a das comunicações que a distinguem. Tratando-se
de dirigir a mesma pergunta… a que ordens?
▀
Ler BRONZE, cit., pp.140-141.
☼
Precisamente aquele que nos permite falar de um direito achado na rua, de um direito
alternativo, de um direito insurgente (um direito que importará invocar para denunciar os compromissos
político-ideológicos e as vinculações económicas do direito dominante ou da sua consagração estadual).
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Sem uma voz autónoma do direito a institucionalização estadual tem o caminho aberto para se
converter na ordem de necessidade de um poder — e então e assim (para o dizermos com RADBRUCH)
num autêntico Estado de não-direito ou Estado-contra-o-direito (Und so hat die Gleichstellung von Recht
und vermeintlichem oder angeblichem Volksnutzen einen Rechtsstaat in einen Unrechtsstaat verwandelt).
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Direito e intenção à validade. A resposta de RADBRUCH à pergunta que formulámos supra (dirigida
explicitamente à ordem de necessidade de um Estado totalitário) [supra, pp. 21-22 (e)]:
« Direito é [significa o mesmo que] vontade e desejo de Justiça. Justiça, porém, significa: julgar sem
consideração de pessoas; medir todos pelo mesmo metro [comparar mobilizando o mesmo
critério-padrão, se quisermos, o mesmo tertium comparationis (an gleichem Maße alles
messen)]
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Capítulo II
« O “direito natural” foi sempre pensado na scientia que a ele se dirigia (...), numa dupla
intenção. Numa intenção filosófica, de compreensão essencial e absoluta do direito pela
explicitação dos seus constitutivos fundamentos ontológicos (fosse uma ontologia
metafísica nos gregos, fosse uma ontologia já de sentido teológico-metafísico, já mais
cingida à “natura rerum”, na Idade Média cristã (...)), que logo se projectava numa
intenção normativa ― intenção normativa esta que, tendo naquela outra primeira o seu
fundamento regulativo, se traduzia na determinação de uma normatividade válida por si
mesma, porque referida àquele fundamento ontológico e filosófico-especulativamente
explicitado. Normatividade que procurava objectivar-se [em princípios e critérios] (...)
e que constituiria tanto o cânone regulativo como o critério da validade de qualquer
ordem histórica de convivência prática. Ou seja, o direito era nestes termos imputado a
uma filosofia que definia anteriormente a nomos da prática, e que ia compreendida no
seu sentido e função como uma normativa “filosofia prática”. Com duas notas mais a
ter em conta. Por um lado, essa filosofia, se era prática na sua intenção de validade e
na sua projecção normativa, era manifestamente teorética no sentido da sua
fundamentação – pois a fundamentação seria atingida(...) em termos (...) ontológico-
normativos(...), pelo conhecimento do ser (com uma teleologia essencial) ou pelo
conhecimento de uma certa “natureza”. Aliás, não era isso senão directa expressão do
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pensamento clássico, enquanto procurava ele, para o que quer que fosse, o sentido e o
fundamento no ser e compreendia a inteligibilidade sempre como verdade – como
correspondência a uma pressuposta auto-subsistência material. Para o jusnaturalismo
clássico em sentido estrito ou pré-moderno o “direito natural” (“dikaion physikon”, “ius
naturalis” ou “lex naturalis”) era verdadeiramente, não um direito a concorrer com
outro ou outros direitos, mas “o direito absoluto”, já que, se o direito positivo (“dikaion
nomikon” ou “thesei dikaion”, “lex temporalis”, “lex humane”, “ius positivum”) era
decerto reconhecido, e na sua contingência histórico-social e política, não deixava
também de ser pensado como elemento de um sistema normativo hierárquico e
integrado, que teria no “direito natural” o seu fundamento normativamente constitutivo
e também regulativo e perante o qual lhe cabia tão-só a função de uma histórico-social,
e portanto variável, determinação e concretização» (CASTANHEIRA NEVES, O
problema actual do direito. Um curso de Filosofia do Direito, Coimbra-Lisboa 1994)
●«And therefore if any two men desire the same thing, which nevertheless they cannot both
enjoy, they become enemies; and in the way to their end (which is principally their own
conservation, and sometimes their delectation only) endeavour to destroy or subdue one
another.(…) To this war of every man against every man, this also is consequent; that nothing
can be unjust. The notions of right and wrong, justice and injustice, have there no place. Where
there is no common power, there is no law; where no law, no injustice…» [Thomas HOBBES,
Leviathan (1651) part I, Of Man, Chapter XIII («Of the natural condition of mankind as concerning
their felicity and misery»)]
«[The] project of founding a form of social order in which individuals could emancipate
themselves from the contingency and particularity of tradition by appealing to genuinely universal,
tradition-independent norms was and is not only, and not principally, a project of philosophers. It was and
is the project of modern liberal, individualist society…» (MACINTYRE, Whose Justice? Which
Rationality?, London, Duckworth, 1988, p. 335)
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 32
●●«It is true that certain living creatures, as bees and ants, live sociably one with another
(which are therefore by Aristotle numbered amongst political creatures), and yet have no other
direction than their particular judgements and appetites; nor speech, whereby one of them can
signify to another what he thinks expedient for the common benefit: and therefore some man
may perhaps desire to know why mankind cannot do the same. To which I answer, (…) the
agreement of these creatures is natural (…), that of men is by covenant only, which is artificial:
and therefore it is no wonder if there be somewhat else required, besides covenant, to make their
agreement constant and lasting; which is a common power to keep them in awe and to direct
their actions to the common benefit. The only way to erect such a common power (…) is to
confer all their power and strength upon one man, or upon one assembly of men, that may
reduce all their wills, by plurality of voices, unto one will. (…) This is more than consent, or
concord; it is a real unity of them all in one and the same person, made by covenant of every
man with every man, in such manner as if every man should say to every man: I authorise and
give up my right of governing myself to this man, or to this assembly of men, on this condition;
that thou give up, thy right to him, and authorise all his actions in like manner. This done, the
multitude so united in one person is called a Commonwealth; in Latin, Civitas. This is the
generation of that great Leviathan, or rather, to speak more reverently, of that mortal god to
which we owe, under the immortal God, our peace and defence. » [Thomas HOBBES, Leviathan
(1651) part II, Of Commonwealth, Chapter XVII («Of the causes, generation, and definition of a
Commonwealth »)]
┿
Ver ainda BRONZE, cit, pp. 240 ( nota 13), 242-243, 328-330.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 34
“direito natural” e o “direito positivo”. E foi este o ponto decisivo para a evolução que
nos importa considerar. É que este “direito natural” moderno ou os seus sistemas
normativos jusracionalistas haviam perdido, como já o denunciava o seu próprio
dualismo, a vinculação ao ser enquanto tal – não se inseriam com o direito positivo num
sistema integrante que globalmente radicaria no ser –, pois não eram verdadeiramente
mais do que sistemas racionalmente construídos, embora invocando como base axiomas
e postulados que se pretendiam “naturais” na sua evidência ética. E daí,
paradoxalmente, que esse direito natural moderno não fosse afinal verdadeiramente
direito. É que também para o direito, ou particularmente para o direito como entidade
prática, a “essência” não comprova nem garante a “existência”: o direito não o é (não é
direito) sem um particular modo de “existência”, sem um específico modo-de-ser. Para
que o direito possa reconhecer-se como tal não basta a sua intencionalidade normativa,
há que revelar-se determinante dimensão da praxis – desde logo em termos de
vinculante validade para a acção ou a inter-acção. Que tanto é dizer que o direito não
pode ser tão-só intencionalmente prático, terá de ser efectivamente prático. Não temos
direito apenas porque pensamos a essência jurídica ou porque construímos um sistema
de normatividade jurídica – teremos assim tão-só pensado a juridicidade ou quando
muito construído uma possibilidade jurídica e nada mais. Para que tenhamos direito
importa ainda que a normativa juridicidade, além da sua característica intencionalidade
ou de uma específica possibilidade, se possa reconhecer histórico--socialmente
vinculante e, portanto, dimensão determinante da prática social – só a determinação e
vinculação práticas transformam a juridicidade em direito. Nesse sentido é, pois, exacto
dizer-se que “a positividade é uma característica irrenunciável do direito” (H.
WELZEL)...»
(CASTANHEIRA NEVES, O problema actual do direito. Um curso de Filosofia do
Direito, Coimbra-Lisboa 1994)
«To understand political power right, and derive it from its original, we must
consider, what state all men are naturally in, and that is, a state of perfect
freedom to order their actions, and dispose of their possessions and persons, as
they think fit, within the bounds of the law of nature, without asking leave, or
depending upon the will of any other man. A state also of equality, wherein all
the power and jurisdiction is reciprocal, no one having more than another (…).
But though this be a state of liberty, yet it is not a state of licence: though
man in that state have an uncontroulable liberty to dispose of his person or
possessions, yet he has not liberty to destroy himself, or so much as any
creature in his possession, but where some nobler use than its bare preservation
calls for it. The state of nature has a law of nature to govern it, which obliges
every one: and reason, which is that law, teaches all mankind, who will but
consult it, that being all equal and independent, no one ought to harm another
in his life, health, liberty, or possessions: …» [L OCKE, Second Treatise of Civil
Government (1680-1690), cap. II («Of the State of Nature»)]
Para ler mais , ver http://www.constitution.org/jl/2ndtr02.htm
e http://www.saywhatistruth.com/locke.htm
«The state of men is either natural or adventitious. The natural state can be considered
under three heads, so far as mere reason lights the way; either in relation to God the
Creator, or in relation to individual men, as regards themselves, or as regards other men.
(…) In the second way we can consider the natural state of man, if we imagine what his
condition would be, if one were left entirely to himself, without any added support from
other men, assuming indeed that condition of human nature which is found at present.
Certainly it would seem to have been more wretched than that of any wild beast, if we
take into account with what weakness man goes forth into this world, to perish at once,
but for the help of others; and how rude a life each would lead, if he had nothing more
than what he owed to his own strength and ingenuity. On the contrary, it is altogether
due to the aid of other men, that out of such feeble-ness we have been able to grow up,
that we now enjoy untold comforts, and that we improve mind and body for our own
advantage and that of others. And in this sense the natural state is opposed to a life
improved by the industry of men…» [PUFENDORF, De officio hominis et civis juxta legem
naturalem libri duo (1682), cit.na trad. Inglesa On The Duty of Man and Citizen, Livro II,
capítulo I («On the Natural State of Man»)]
KANT
Estado de natureza: um status de «liberdade externa desprovida de leis» onde encontramos
um modo de determinação do «meu e do teu exterior» com um carácter puramente provisório — um
direito privado baseado na «posse física», ou mais rigorosamente, um «modo de ter» que goza da
«presunção jurídica» de se «poder converter em jurídico» [A posse física só se converterá plenamente
em modo de ter jurídico mediante a «união com a vontade de todos numa legislação pública»: no
estado de natureza a sua juridicidade é potencial e cumpre-se como uma antecipação-expectativa do
status civilis («tem comparativamente o valor de uma posse jurídica enquanto se aguarda por um tal
estado»)] (§ 9 da Doutrina do Direito, Primeira Parte da Metafísica dos costumes)
Pacto social ►►Constituição civil ▬ Passagem para o status civilis ou «estado jurídico»
«O estado jurídico é aquela relação dos homens entre si que engloba tanto as condições sob as
quais exclusivamente pode cada um participar do seu direito quanto o princípio formal do mesmo
direito, considerado de acordo com a ideia de uma vontade legisladora universal...» (Ibidem, § 41)
«Do direito privado no estado de natureza surge então o postulado do direito público: deves,
numa relação de coexistência inevitável com todos os outros, sair do estado de natureza para entrar
num estado jurídico...(...) A razão para isso pode explicar-se analiticamente a partir do conceito de
direito na relação externa, por contraposição à violência. Os homens (...) cometem uma injustiça em
último grau ao querer estar e permanecer num estado que não é jurídico, num estado, entenda-se, em
que ninguém está seguro do seu contra a violência» » (Ibidem, § 42)
«O conjunto de leis que precisam de ser universalmente promulgadas para produzir um estado
jurídico é o direito público. Este é portanto um sistema de leis para um povo, quer dizer, para um
conjunto de homens, ou para um conjunto de povos que, achando-se entre si numa relação de
influência recíproca, necessitam do estado jurídico sob uma vontade que os unifique, ou seja de uma
constituição (constitutio), para se tornarem participantes daquilo que é de Direito...» (Ibidem, § 43)
uma voluntas legítima) que só se constitui na sua juridicidade quando o seu texto
assimila a estrutura racional de uma norma. Uma racionalidade que resulta:
— da articulação hipotético-condicional se...→então;
— da universalidade racional das suas formulações [generalidade
/abstracção/ formalidade em sentido estrito];
►«Actos de todo o povo para (e sobre) todo o povo...» (generalidade) «...que
tratam de uma matéria comum...» (abstracção)... [ROUSSEAU].
«Mais quand tout le peuple statue sur tout le peuple il ne considère que
lui-même, et s'il se forme alors un rapport, c'est de l'objet entier sous un
point de vue à l'objet entier sous un autre point de vue, sans aucune
division du tout. Alors la matière sur laquelle on statue est générale
comme la volonté qui statue. C'est cet acte que j'appelle une loi. Quand je
dis que l'objet des lois est toujours général j'entends que la loi considère les
sujets en corps et les actions comme abstraites, jamais un homme comme
individu ni une action particulière. Ainsi la loi peut bien statuer qu'il y
aura des privilèges, mais elle n'en peut donner nommément à personne; la
loi peut faire plusieurs classes de citoyens, assigner même les qualités qui
donneront droit à ces classes, mais elle ne peut nommer tels et tels pour
y être admis; elle peut établir un gouvernement royal et une succession
héréditaire, mais elle ne peut élire un roi ni nommer une famille royale; en
un mot toute fonction qui se rapporte à un objet individuel n'appartient
point à la puissance législative…» (Du Contrat social, cit., Livro II, cap. VI)
Ler todo este capítulo no Material de apoio (ROUSSEAU)
►... mas também actos da vontade legisladora geral que enquadram a acção sem lhe
imporem previamente um conteúdo (antes confiando este à livre autodeterminação dos
interesses e dos fins de cada sujeito) {A exigência de abstrair do arbítrio, do «fim que
cada um se pode propor no que quer», para se considerar «apenas a forma na relação
dos arbítrios» e a forma que confere a estes a sua «liberdade racional»: «Age de tal
modo que a máxima da tua vontade possa sempre ser considerada como um princípio de
legislação universal» (princípio da moralidade) / «Age exteriormente de tal sorte que o
livre uso do teu arbítrio possa concordar com a liberdade do outro segundo uma lei geral
de liberdade» (princípio do direito) [KANT]}.
(...) . [Em] segundo lugar (...) à relação do arbítrio pura e simplesmente com
o arbítrio do outro. Em terceiro lugar, nesta relação recíproca dos arbítrios não
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 41
se atende, de todo em todo, à matéria do arbítrio, quer dizer, ao fim que cada
qual se propõe com o objecto que quer; por exemplo, não se pergunta se alguém
pode ou não retirar benefícios da mercadoria que me compra para o seu próprio
como livres, e se, com isso, a acção de cada um se pode conciliar com a liberdade
les résolutions publiques, et celui de juger les crimes ou les différends des
particuliers.(...)Ainsi, la puissance législative sera confiée, et au corps des nobles, et au
corps qui sera choisi pour représenter le peuple, qui auront chacun leurs assemblées et leurs
délibérations à part, et des vues et des intérêts séparés.(...) La puissance exécutrice doit être
entre les mains d'un monarque, parce que cette partie du gouvernement, qui a presque
toujours besoin d'une action momentanée, est mieux administrée par un que par plusieurs; au
lieu que ce qui dépend de la puissance législative est souvent mieux ordonné par plusieurs que
par un seul. Que s'il n'y avait point de monarque, et que la puissance exécutrice fût confiée à un
certain nombre de personnes tirées du corps législatif, il n'y aurait plus de liberté, parce que les
deux puissances seraient unies; les mêmes personnes ayant quelquefois, et pouvant toujours
avoir part à l'une et à l'autre. (...) Des trois puissances dont nous avons parlé, celle de juger
est en quelque façon nulle. (...) La puissance de juger ne doit pas être donnée à un sénat
permanent, mais exercée par des personnes tirées du corps du peuple dans certains temps de
l'année(...). De cette façon, la puissance de juger (...)devient, pour ainsi dire, invisible et nulle. On
n'a point continuellement des juges devant les yeux; et l'on craint la magistrature, et non pas les
magistrats. (...) Les juges de la nation ne sont (...) que la bouche qui prononce les paroles
de la loi; des êtres inanimés qui n'en peuvent modérer ni la force ni la rigueur(...).»
(MONTESQUIEU, De L’esprit des lois, excertos do Livro XI, capítulos IV e VI)
Para ler mais, ver
http://classiques.uqac.ca/classiques/montesquieu/de_esprit_des_lois/partie_2/de_esprit_des_lois_2.html.
Ver ainda a síntese proposta em http://maltez.info/biografia/Obras/montesquieu%20espritl%20des.pdf
—... antes de (com ROUSSEAU e KANT) se converter num «corolário
institucional» (livre de qualquer consideração pragmática) da concepção moderno-
-iluminista da lei e do «Estado ideal» e «autónomo» («segundo os puros princípios do
Direito») que esta concepção promete (enquanto «situação a que a razão nos obriga a
aspirar por via de um imperativo categórico»).
Reparemos que as compreensões legalista e normativista do direito não têm necessariamente que
coincidir:
(a) assumir uma compreensão legalista significa ver na lei o modo exclusivo (ou pelo menos
dominante e determinante) da constituição e objectivação do jurídico (jurídico assim mesmo
imputado a uma voluntas prescritiva político-constitucionalmente institucionalizada);
(b) assumir uma concepção normativista significa pensar o jurídico como um sistema de
normas racionalmente auto-subsistentes — e exigir que todo o discurso juridicamente relevante
envolva como sua dimensão irrenunciável a possibilidade de universalização associada à ratio da
norma-regra (enquanto proposição de dever-ser geral e abstracta).
▬… na mesma medida em que é possível sustentar uma opção normativista sem defender
no plano (dito) das fontes uma opção legalista, antes e em contrapartida reconhecendo diversos
modos de constituição do direito (legislativos, jurisdicionais, consuetudinários e até doutrinais)…
[por exemplo, dar todo o relevo às decisões judiciais enquanto precedentes ou pré-juízos para
decisões futuras… exigindo simultaneamente (para que estas possam ser pensadas e
experimentadas-realizadas juridicamente) que se reconstrua a norma geral e abstracta que tais
decisões introduzem ou especificam (a norma geral e abstracta implícita na solução concreta e
individual que estas decisões exprimem); ou então… aceitar que a doutrina é hoje uma «fonte de
direito», exigindo simultaneamente que os seus critérios possam ser pensados e reconstituídos
integralmente como programas condicionais… (se não como condições da exploração-interpretação
racional de tais programas)…].
Importando então concluir que o que aconteceu no contexto prático-cultural do Iluminismo — e
sustentou todo o processo de institucionalização do Estado demo-liberal, para encontrar a sua
expressão culminante (não sem dificuldades embora◙!) no Método Jurídico do século XIX —, foi
precisamente uma conjugação-concertação (reciprocamente constitutiva) de legalismo e de
normativismo (a de um legalismo que é incondicionalmente normativista… e a de um normativismo
exclusivamente alimentado por um legalismo).
◙
Dificuldades resultantes de um processo de construção muito complexo (no qual a «teoria » das
fontes do historicismo constitui decerto um elemento tão relevante quanto perturbador!)… processo ao
qual aludiremos infra, na última parte do nosso curso
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 48
O paradigma da aplicação:
(a) o direito-lei pré-determinado (reconstruído racionalmente e
interpretado em abstracto) sem qualquer interferência do mundo dos
casos concretos (ou da perspectiva que estes autorizam) [a exigência
do julgador abstrair do problema que o pré-ocupa para poder
interpretar a norma em abstracto, garantindo a esta a sua plena
inteligibilidade racional e a juridicidade que resulta da sua
universalidade (infra, na última parte deste curso, compreenderemos
de que interpretação se trata e quais são os cânones que a
explicitam)];
(b) a exigência de reconduzir o mundo dos casos-acontecimentos a um
acervo de factos empíricos desarticulados (factos discretos), factos
que o juiz-sujeito irá «organizar» à luz da perspectiva de relevância e
das exigências de articulação que a hipótese da norma lhe oferece (o
contraponto normas /factos);
(c) o esquema lógico-dedutivo do silogismo subsuntivo a garantir a
relação entre o geral e o particular sem implicações normativas.
PREMISSA A proposição normativa reconhecida na sua estrutura (hoje
MAIOR diríamos no seu programa condicional): à hipótese H («se...»)
corresponde a consequência (-solução) jurídica C («então...»)
. Colectânea de extractos (189 págs) disponível na Sala de leitura G-4-2.
A identificação destes sinais (na medida em que nos remete para temas que virão a ser
desenvolvidos em Introdução ao direito II) mereceu nas aulas teóricas uma alusão relativamente breve.
Aqueles que foram considerados com mais autonomia e desenvolvimento (e que exigem neste momento
um especial cuidado!) são os que correspondem aos nºs 4.1.2. e 4.1.5. (infra, pp. 51-53, 55-58).
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 53
— no plano do pensamento jurídico [para que este deixe de ser uma ciência jurídica
de normas-textos (preocupada apenas com a estrutura categorial que sustenta a
relação horizontal dos significantes e significados das normas)].
Uma alusão à conhecida classificação de KANTOROWICZ [em Die Epochen
der Rechtswissenshaft (1914)]:
— o pensamento jurídico formalista a partir de uma estrutura dogmática
auto-subsistente (norma-texto, sistema de conceitos) e a «procurar um
sentido para a fórmula dada» (e então e assim a fechar o direito num
sistema formalmente autónomo)...
SOCIETAS
► VALORES ►TAREFAS►
RESPONSABILIDADES ►VÍNCULOS INTEGRANTES
►HIERARQUIZAÇÃO DOS FINS ►RACIONALIDADE
PRÁTICA SUJEITO / SUJEITO
COMMUNITAS
«Se os valores referem uma transindividual vinculação ético-normativa que responsabiliza e que convoca a prática para o
desempenho irrenunciável de “tarefas” (...) em que se projecta essa sua vinculação ou compromisso, os fins desvinculados pelo
“mecanicismo” moderno da teleologia ontológica, são agora tão-só opções decididas pela subjectividade que programa os seus
objectivos (...), decerto sempre condicionados por um certo contexto mas em último termo justificados por interesses e em vista deles
– comunga-se nos valores, diverge-se nos fins e nos interesses...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do direito (versão em fascículos), pp. 154-
155 , (versão em A4), pp.85-86]
Ora estes caminhos vão-se separar (ao ponto de hoje serem protagonizados
por verdadeiros interlocutores-oponentes)! Bastando-nos por agora perceber o
sentido da diferença entre fins e valores... mas também que a acentuação exclusiva
dos fins leva inevitavelmente a uma concepção instrumental do direito e a uma
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 56
célebre (na qual converge também uma consideração do que viremos a dizer os
limites normativo-intencionais da lei) KANTOROWICZ, um dos corifeus do
Movimento do Direito Livre, virá mesmo a concluir que o sistema ordinatum das
normas legais tem «tantas lacunas como palavras...» [Ler com muita atenção
CASTANHEIRA NEVES, Curso de Introdução ao estudo do direito (extractos), polic.,
Coimbra, 1971-1972, pp. 26-30]
Para que o «direito que no processo e através do processo se manifesta e cumpre [não
seja] deste modo apenas o resultado de uma redução lógica do geral das normas
pressupostas ao particular do objecto a julgar e sim aquele direito específico do caso
concreto que se constituirá, com apoio nas normas e outros critérios jurídicos, através
do diálogo normativamente participante de todas as entidades que concorrem no litígio a
decidir — o tribunal e as próprias partes do caso decidendo» (CASTANHEIRA
NEVES, O instituto dos «Assentos» e a função jurídica dos Supremos Tribunais,
Coimbra 1983, págs 125-126).
«O compromisso político que corresponde hoje à lei, a fazer dela um instrumento jurídico-político
de governo, não pode deixar de implicar para a sua normatividade a parcialidade e mesmo a
partidarização que são próprias do compromisso político numa sociedade dividida e plural. (...) Se a
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 59
evolução do sentido da lei é forçosa, ela própria convoca, e com o mesmo carácter forçoso, um
contrapeso, um poder chamado a garantir o respeito pelos valores fundamentais da ordem jurídica e
do direito. (...)As funções legislativa e jurisdicional, no actual sistema político-jurídico, não só
continuam a não ser análogas, como voltam a ser contrárias: e se igualmente não são contraditórias,
pois uma não nega a validade e a autonomia específica da outra, o certo é também que deixaram de
ser simplesmente complementares nos termos em que o eram no sistema moderno-iluminista (a
complementaridade da criação genérica e da aplicação particular de um direito-norma geral), para
serem antes concorrentes, como duas dimensões, intencional e institucionalmente contrapostas, de
uma dialéctica entre um poder de programação politicamente constituinte e um contra-poder que
postula a validade do direito e é convocado unicamente à sua realização...» (CASTANHEIRA
NEVES, O instituto dos «Assentos» e a função jurídica dos Supremos Tribunais, Coimbra 1983,
págs. 604 a 611)
►►Sendo certo que estas Massnahmegesetze hão-de ter como limites vinculantes
tanto o princípio da separação dos poderes (ainda que na sua dimensão positiva e
como princípio normativo autónomo)[que declare inconstitucional a «utilização
reiterada de “leis concretas” (G.CANOTILHO)] quanto o princípio da igualdade
[«...na medida em que este princípio lhes recusa a validade para quaisquer medidas
ou diferenciações que não sejam, no sentido desse princípio ou pelo equilíbrio social
que ele postula, materialmente justificadas...» (CASTANHEIRA NEVES)]
4.1.5.2.4. A crise do Estado providência — que é desde logo a da sua eficiência mas
que não é menos a da sua matriz ideológica (pelo modo como esta pretendeu traduzir as
exigências de igualdade e solidariedade) — e as diversas propostas de «solução», a abrir
outras tantas portas à recompreensão da legalidade — da «fuga para a frente» das
autênticas engenharias sociais (que se pretendem ideologicamente neutras), às opções
neo-liberais, passando pelas possibilidades da reprocessualização sistémica.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 62
4.1.6.1. Uma nova concepção da ciência: ciência que — nos seus processos de
«construção», «selecção» e «eliminação» dos objectos, dos «enunciados» e dos
«expedientes de formulação» mas então também dos «conceitos» (que «interpretam»
os dados) e das «teorias» (que os «explicam») ... sem esquecer as operatórias da
comprovação empírica e os sentidos desta — se descobre a si própria como prática,
histórico-contextualmente vinculada às opções metódicas de uma comunidade de
investigadores, com as suas rupturas e mudanças de paradigma... e então como um
possível «jogo de linguagem», se não mesmo como uma «simples tradição entre
outras tradições»...
«Precisamos de uma redescrição do liberalismo, segundo a qual este seja a esperança de a cultura no
seu todo poder ser “poetizada” e não, como era esperança do Iluminismo, de poder ser
“racionalizada” ou tornada científica. Isto é, precisamos de substituir a esperança de que todos
substituam “a paixão” ou a fantasia pela “razão” pela esperança de que as oportunidades de realização
de fantasias idiossincráticas possam ser niveladas ou equiparadas...» (RORTY)
Pontos meramente aludidos (cuja leitura se recomenda, mas que não constituem enquanto tal
núcleos temáticos obrigatórios).
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 63
concreto) e como tal sustentado num esquema sujeito/sujeito — com uma estrutura
dialógico-argumentativa e uma índole dialéctica (dinamizada pela diferença).
Outra leitura:
A. CASTANHEIRA NEVES, «A imagem do
homem no universo prático», Digesta, vol. 1º,
Coimbra, Coimbra Editora, 1995, volume 1º, 331-
335 (III 1.).
Pontos 4.1.4. e 4.1.5.2. do nosso sumário.
Ponto 4.1.4. do nosso sumário.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 64
Tenhamos presente que a possibilidade de realização de negócios jurídicos — enquanto actos
de vontade juridicamente relevantes, com resultados-efeitos jurídicos (constitutivos, modificativos ou
extintivos de relações jurídicas) desencadeados por declarações de vontade e a coincidir nuclearmente
com o «teor declarado» da intenção (que tais declarações realizam) — é, na perspectiva das exigências
em que o princípio da autonomia privada se traduz, o domínio de experimentação privilegiado. Ora os
contratos são precisamente negócios jurídicos bilaterais, constituídos por duas ou mais declarações de
vontade com direcções opostas mas convergentes, que tendem à produção de um resultado jurídico
comum, ainda que com um significado distinto para cada uma das partes (sempre compostos por uma
proposta-oferta e por uma aceitação, ainda que possam gerar obrigações principalmente, se não
exclusivamente, para uma das partes) [Quando o negócio jurídico é constituído por uma declaração de
vontade ou por várias declarações de vontade «paralelas», que assumem «a mesma orientação», diz-se
unilateral; quando o contrato gera obrigações para ambas as partes diz-se sinalagmático ou bilateral (se
gera obrigações para uma das partes apenas diz-se contrato unilateral).]. Experimente esta
classificação elementar confrontando os critérios dos artigos 185º-186º, 458º,940º,
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 66
«Não se trata de autodeterminação isolada, mas já funcionalmente, de um uso comum da autonomia (...).
A subjectividade é aqui sempre intersubjectividade, a autonomia conjuga-se necessariamente no plural...»
(SOUSA RIBEIRO,O problema do contrato..., Coimbra 1999, pp.51 e ss.(3.))
«Importa compreender a relação contratual como um esquema prático de sentido...(...) que articula e vincula acções
normativamente ordenadas... (...) sem que as estruturas internas destas acções (...) ou o seu desempenho funcional (...)
se possam compreender inteiramente através da disciplina normativa exigida pelo consenso das partes...»
(G.TEUBNER)
1154º, 1157º e 1170º nº1, 1569º, 1577º, 1698º e 1701º nº 1, 2062º, 2179º do Código
Civil (ou as noções que estes critérios integram ou em que se esgotam).
A liberdade de celebração ou conclusão dos contratos traduz-se na exigência seguinte: «A ninguém
podem ser impostos contratos contra a sua vontade ou aplicadas sanções por força de uma recusa de
contratar nem a ninguém pode ser imposta a abstenção de contratar...» (a formulação é de Carlos A.
MOTA P INTO, cuja Teoria Geral do Direito Civil, I Parte, Capítulo II, § 3º, se recomenda como leitura
complementar)[ver 4ª ed. (por António PINTO MONTEIRO e Paulo MOTA PINTO), Coimbra, Coimbra
Editora, 2005, pp. 102-116].
Procure descobrir nos critérios que integram o artº 405º (nº 1 e 2) as diversas especificações da
liberdade contratual como «liberdade de fixação do conteúdo do contrato»... : a) a possibilidade de
«realizar contratos com as características dos contratos previstos e regulados na lei, bastando nessa
hipótese, para desencadear a produção dos respectivos efeitos, indicar o respectivo “nomen juris” (venda,
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 67
flexível (palavra mágica dos nossos tempos, por mais imprecisa que seja a respectiva
noção no plano jurídico), em que a contratação colectiva já não é concebida como um
instrumento vocacionado para melhorar as condições de trabalho relativamente à lei,
mas antes como um puro mecanismo de adequação da lei às circunstâncias e às
conveniências da organização produtiva...» (ver LEAL AMADO, «Tratamento mais
favorável e art. 4º, nº 1, do Código do Trabalho português: o fim de um princípio?»,
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9997).
▼▼
▼
Sem que, no contexto aberto pelo Estado Providência — num processo de
multiplicação dos riscos que o é também da sua progressiva socialização ou repartição-
assimilação social ( e então e assim no processo de uma assumida «substituição da
responsabilidade pela reparação») —, possamos esquecer o exemplo dos contratos de
seguro — nos quais, e à custa de uma remuneração (prémio), se cumpre a transferência
do risco de um «evento futuro e incerto»... de uma pessoa (segurado) para outra
(seguradora). Contratos estes...
—... que são por vezes de celebração obrigatória...
—... e que quase sempre se nos impõem como contratos de adesão [cabendo ao
segurado (que beneficia do seguro), aceitar como que em bloco as «condições da
apólice» (unilateralmente propostas e determinadas pela seguradora, a maior parte das
vezes de resto num modelo ou formulário uniforme)].
(enquanto exercício dos direitos e cumprimento das obrigações que dele derivam) ao
princípio da boa fé... e o modo como esta exigência (de «agir de modo honesto»,
«diligente» e «leal», de «prestar todas as informações exigíveis», de atender às
circunstâncias, de corresponder às expectativas de confiança depositadas nessa
acção) se projecta numa recompreensão–enriquecimento da relação obrigacional
complexa (na consagração não tanto de uma teia de deveres secundários de
prestação quanto de deveres acessórios de conduta)... mas também numa
progressiva (mas nem sempre reconhecida...) convocação da prioridade metódica do
caso concreto.
Considere os exemplos dos artigos 239º e 762º nº2 e muito
especialmente do art. 227º nº1 do Código Civil (este último a
consagrar legislativamente o critério dogmático da
responsabilidade pela culpa na formação dos contratos ou culpa in
contrahendo) [uma responsabilidade que se impõe tanto no caso de
conclusão como de não conclusão do contrato em causa].
théorie (dite) de l’abus des droits de Louis JOSSERAND (já em De l’abus des
droits de 1905).
« On conçoit que la fin puisse justifier les moyens, du moins lorsque ceux-ci sont
légitimes en eux-mêmes ; mais il serait intolérable que des moyens, même
intrinsèquement irréprochables, pussent justifier toute fin, fût-elle odieuse et
inconcevable. C'est précisément contre une telle éventualité que se dresse la thèse de
l'abus des droits qui a pour ambition et pour raison d'être d'assurer le triomphe de
l'esprit des droits, et, par là, de faire régner la justice, non point seulement, ce qui est
relativement aisé, dans les textes des lois et dans des formules abstraites, mais, ce
qui est un idéal plus substantiel, dans leur application même et jusque dans la réalité
vivante» (JOSSERAND).
4.2.2.4. A objectivação normativo-legal de um critério possível: o artº 334º do
Código Civil.
4.2.2.5. A reinvenção do princípio da autonomia da vontade — e da concepção dos
direitos subjectivos — que a experimentação deste problema e o processo de
especificação-objectivação (mas também e indissociavelmente de realização
jurisdicional) do(s) seu(s) critério(s) (casuísticos, dogmáticos e normativo-legais)
nos permite surpreender e assumir.
Elementos de estudo:
1
Para um desenvolvimento ver CASTANHEIRA NEVES, «O princípio da legalidade criminal...»,
Digesta, vol.1º, 435 e ss.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 75
Outras leituras:
J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao direito e ao discurso legitimador, cit.,
capítulo IV, secção II, §3.).
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 76
Formulação que seria parcialmente alterada pela revisão de 1971.
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 79
→→ Parta também aqui de uma consideração de duas normas do Código Civil, na sua
redacção «primitiva»:
•«Presume-se legítimo o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio da
mãe(...)»(artº 1801 nº1)
••«A partilha entre filhos faz-se por cabeça, dividindo-se a herança em tantas partes
quantos forem os herdeiros(...).Concorrendo à sucessão filhos legítimos ou legitimados
e filhos ilegítimos, cada um destes últimos tem direito a uma quota igual a metade da de
cada um dos outros.» (artº2139º)
→→Leia depois estas normas à luz da especificação do
princípio da igualdade objectivada no artigo 36º nº 4 da Cons-
tituição. Não deixe de as confrontar com a redacção em vigor
dos artos 1796º e 2139º do Código Civil.
Logo no início da Introdução ao direito II voltaremos aos princípios e ao sentido de uma
classificação destes segundo a posição que ocupam na «consciência jurídica geral» (bastando-nos agora
uma alusão brevíssima).
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 80
específico e os deveres, nesse sentido fundados, que vinculam os respectivos membros), a própria nação
(com os valores da “ordem pública”, os deveres de fidelidade), etc. Muitos destes valores e princípios
obtiveram consagração nas declarações dos direitos do homem, nos «direitos, liberdades e garantias dos
cidadãos», nos princípios materiais das várias constituições nacionais. Mas seria um erro pensar que
última expressão da juridicidade não pode, desde logo, identificar-se com a legalidade
A. CASTANHEIRA NEVES, «A revolução e o direito» , Digesta, vol. 1º, Coimbra, Coimbra Editora,
1995, pp. 208-212 [a)- b)]; F. BRONZE, ob.cit., pp. 475-489.
benevolamente e como homens (como sujeitos), nem por isso deixam de ser escravos – susceptíveis
de apropriação e alienação, objectos jurídicos, recusados como “entes de pretensões, ou titulares de
direitos e de deveres e obrigações”, para o dizermos com RAWLS. Numa palavra, verdadeiramente
coisas e não fins em si (“algo que não pode ser usado como simples meio”) em que KANT viu a
essência diferenciadora da pessoa, naquele seu absoluto a que, por isso mesmo, se imputa dignidade
(não instrumentalidade ou preço). Só que “dignidade” é uma categoria axiológica, não ontológica, e
apenas emerge e se afirma pelo “respeito” (para o dizermos com KANT) ou pelo reconhecimento
(para o dizermos com HEGEL) – daí a verdade da palavra justamente de HEGEL, “Der Mensch ist
Anerkennen”. Insistamos, agora com CALOGERO: a “lei moral” não se funda na “teoria do
conhecimento”, mas na “teoria da nossa prática”, o bem e o dever “há-de ser qualquer coisa mais do
que verdadeiro, haverá de ser querido”. E di-lo também expressamente ARTHUR KAUFMANN: “as
criaturas humanas só se personalizam quando elas se reconhecem reciprocamente como pessoas”.
Por isso será errada a concepção substancialista de pessoa em BOÉCIO (persona est rationalis
naturae individua substantia), o ser do logos ou que tem logos, e não muito diferentemente tanto
em S. TOMÁS como em SUÁREZ, e não menos a tentativa de uma sua dedução pragmático- -
transcendental em referência à comunicação (APEL) ou ao discurso (ADELA CORTINA) – a
comunicação só o será autenticamente entre pessoas, é certo, mas são estas que instituem a
comunicação, e não a comunicação que fundamenta constitutivamente as pessoas. Problemática
vasta que só assim não fica, decerto, decidida – mas por agora temos de ficar por aqui.
Importando apenas, e a mais, inferir desse reconhecimento, enquanto confere ele ao homem
dignidade e, portanto, um estatuto ético, que o homem assim não só ascende, enquanto pessoa, à
axiologia e se faz participante e sujeito do “reino dos fins”, do mundo dos valores, como tem
sentido e fundamento já o comprometer-se (ético) perante os outros –o “prometer” de que nos fala
NIETZSCHE –, já a interpelação (ética) dos outros perante ele.
Havendo todavia de ter presente que o reconhecimento eticamente instituinte da pessoa não
se verificaria sem a base de possibilidade que a qualidade de sujeito lhe oferece – como que o
corpus da espiritualidade dessa instituição e em que temos, digamo-lo com HÖFFE, “moral mais
antropologia” – assim como, do mesmo modo, as relações de compromisso e de interpretação
também éticas encontram a sua possibilidade, e mesmo a sua exigência, na referência comunitária
do homem. Por um lado, a pessoa manifesta-se em relação, a relação que a reconheceu como tal,
por outro lado, o seu mundo é a comunidade, a comunidade em que assim se realiza...»
termos negativos, se não passivos («a dignidade como um valor, indisponível para
o poder e para a prepotência dos outros»). ↓↓
NEMINEM LAEDERE
COEXISTÊNCIA
CONVIVÊNCIA
sunt servanda.
... como condição vital... ... como condição existencial... ... como condição «ontoló-
––––––––––––––––––––– gica» ou de realização
«A realidade na qual se «O mundo circunstante e quotidiano da pessoal
afirmam: vida em que estamos mergulhados e que «Só me realizo plena-
— as carências e as re- pressupomos... e que é simultaneamente
lações interindividuais mente (só constituo-
correlato funcional da nossa actuação e manifesto as minhas
dos interesses... comunicação e o seu meio-ambiente...»
—...e a mediação po- possibilidades de ser)
A experiência pré-reflexiva de um
sitiva dos outros [as património de possibilidades comuns... quando contribuo para
respostas da comple- um (e sobretudo quando
mentaridade (divisão do
Um apriori da convivência... participo num) trans-
...enquanto ...enquanto
trabalho e dos sexos, pessoal — capaz de
especialização) e da co- comunica- significação↓↓↓
a pressuposição dos ultrapassar a negativi-
laboração (associação)] ção →→a
valores, sentidos dade do eu individual e
—...mas ainda os meios palavra e a
e fundamentos de assim mesmo sub-
técnico-materiais e cul- linguagem argumentativos...
turais de que carecemos sistir para além do mero
para vencer a nossa correlato formal das re-
necessidade e usufruir o lações interindividuais,
padrão de civilização como que emergindo
que cada momento materialmente da comu-
histórico postula...» nicação intersubjectiva.
A comunidade como O intercâmbio com os outros a concorrer para nosso modo de
condição empírica... e existência comunitária
então ainda sobretudo «Serei tanto mais rico (de riqueza humana) quanto mais
como societas
ricos o forem no mesmo sentido os outros...»
INTRODUÇÃO AO DIREITO Sumários desenvolvidos 85
HONESTE VIVERE
[Alusão ao problema da tutela-protecção dos bens jurídico-criminais]
(b) «Se estiver perante uma ordem social que articule logradamente (com suficiente
diferenciação institucional e comprovada eficácia) regras primárias e
secundárias, estarei certamente a reconhecer-experimentar uma ordem de direito
(e então e assim a levar a sério as exigências do novo pluralismo jurídico)...»
(c) «O que aconteceu no contexto prático-cultural do Iluminismo — e sustentou
todo o processo de institucionalização do Estado demo-liberal — foi
precisamente uma conjugação-concertação (reciprocamente constitutiva) de
legalismo e de normativismo (a de um legalismo que é incondicionalmente
normativista… e a de um normativismo exclusivamente alimentado por um
legalismo)...»
II