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1626 FÓRUM FORUM

Sistema Único de Saúde: espaços decisórios


e a arena política de saúde

The Unified National Health System:


decision-making forums and the
political arena in health

Soraya Vargas Côrtes 1

Abstract Introdução

1Programa de Pós-graduação This article analyzes the creation of new political O presente artigo procura colaborar no esforço
em Sociologia, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul,
arenas in the Brazilian health sector as well as de compreensão sobre os processos sociais e po-
Porto Alegre, Brasil. shifts in power relations among state and social líticos que se desenrolaram ao longo das duas
political actors in the context of public health décadas de existência do Sistema Único de Saú-
Correspondência
S. V. Côrtes system reform, focusing on the last two decades. de (SUS). Para isso, focaliza as trajetórias de du-
Programa de Pós-graduação The three main conclusions are the following: as instâncias colegiadas de nível federal: o novo
em Sociologia, Universidade
The creation of forums in which government Conselho Nacional de Saúde (CNS), criado em
Federal do Rio Grande do Sul.
Av. Bento Gonçalves 9500, actors can establish agreements that allow the 1990, e a Comissão Intergestores Tripartite (CIT),
Porto Alegre, RS shared national, State, and municipal coordina- constituída em 1993. Sua criação está relacionada
91509-900, Brasil.
tion of management measures have strengthened a características fundamentais do desenho insti-
scortes@via-rs.net
the positions of these actors in the health political tucional do sistema, quais sejam, a instituciona-
arena. Social actors, led by representatives of pro- lização de mecanismos participativos e a gestão
fessional health societies, were both urged (and descentralizada. O artigo analisa o impacto do
also took the initiative) to submit their demands processo de consolidação do papel institucio-
and proposals through participatory forums that nal desses fóruns sobre a arena política da área
dealt mainly with secondary political issues, thus e sobre a configuração das relações entre atores
steadily losing the capacity to influence the real estatais e societais no âmbito do SUS. Examina
decision-making process in the sector. Market ainda a ação desses atores e de comunidades de
stakeholders took little part in the participatory política no âmbito desses fóruns e fora deles, vi-
forums, rather preferring to exert their influence sando a aumentar seu poder de influência sobre
directly on public decision-makers and to imple- o processo decisório setorial.
ment adaptive strategies to increase their profits. Mecanismos de participação e de gestão des-
centralizada não são peculiaridades da área de
Single Health System; Health Policy; Health saúde. Entretanto, o pioneirismo na sua constru-
Councils; Health Personnel ção e implementação tornou a área uma espécie
de modelo inspirador de outros setores de polí-
tica pública para a construção de mecanismos
similares. A institucionalização dos dois fóruns
aqui focalizados impactou sobre o modo como
foi se configurando a arena política de saúde,

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enquanto eles mesmos se constituíram como municipal, ou como gestores públicos que não
subarenas de mediação e de decisão política e atuam diretamente na área.
foram assumindo diferentes papéis nessa arena O conceito de atores societais não expressa
ao longo do período. diferenças essenciais entre dois tipos de atores:
O artigo está dividido em quatro seções. Após os sociais e os de mercado. Enquanto os primei-
esta Introdução é apresentada a perspectiva teó- ros estão associados ao conceito de “sociedade
rico-conceitual utilizada na análise. A seguir são civil”, os segundos estão relacionados com a
examinados os processos de constituição do CNS noção de economia de mercado. Sem assumir
e da CIT e as transformações sofridas pela are- a carga normativa por vezes aferida ao conceito
na política setorial. Ao final são apresentadas as de sociedade civil – criticada por atribuir positi-
considerações finais. vidade ao conceito em contraposição à negati-
vidade conferida às instituições políticas 5,6,7,8,9
– este trabalho considera que a sociedade civil
Atores e configurações sociais em e seus atores seriam diferentes do Estado e do
contextos institucionais mercado, e de seus atores. Os atores estatais e
de mercado seriam compelidos a agir em am-
O conceito de arenas políticas é normalmente bientes regidos pelo poder e pelo dinheiro, en-
empregado sem qualquer preocupação em defi- quanto o mesmo não aconteceria com os atores
ni-lo ou situá-lo no contexto de algum referencial sociais. Atores sociais não visam a tomar o poder
teórico (em uma pesquisa em periódicos filiados do Estado ou organizar a produção, mas, sim,
ao indexador SocINDEX a noção “policy arena” “...exercer influência por meio da participação
foi utilizada deste modo por 180 dos 183 artigos em associações e movimentos democráticos” 10
que incluíam o conceito em seus resumos). O (p. 427).
uso em geral é metafórico, no sentido de ressal- A literatura aponta como os atores sociais
tar a existência de espaços conflitivos estatais, mais influentes nas arenas políticas da área de
societais ou, mais freqüentemente, espaços de saúde 11,12 organizações de profissionais e traba-
interconexão entre as duas esferas, nos quais lhadores de saúde; entidades de trabalhadores,
proposições, atores e grupos de interesse dispu- não especificamente da área da saúde; associa-
tam a primazia de suas posições. Neste trabalho, ções comunitárias; movimentos sociais; entida-
o conceito de arena política também se refere à des de portadores de patologias, deficiências,
noção de espaço político conflituoso 1, mas a ên- étnicas e de gênero. Os atores de mercado mais
fase recai sobre o papel dos atores e dos espaços influentes seriam os prestadores de serviços, se-
decisórios em processos que levam à definição guradoras de saúde e também organizações de
e redefinição de estruturas setoriais de relações empresários, com interesses não diretamente
entre tais atores e espaços políticos 2, no caso vinculados à área de saúde.
na área de saúde. Essas arenas setoriais têm os No entanto, existem atores cuja posição no
governos e particularmente o Governo Federal contexto da política não pode ser determinada
como decisor fundamental em torno dos quais se em relação ao Estado, ao mercado ou à socieda-
organizam as disputas. O conceito remete às no- de civil. Segundo Heclo 13, seriam comunidades
ções de processo, de transformação constante e de políticas que agem em contextos de redes de
de demarcação difusa de participantes e de fron- políticas. O conceito de comunidade de política
teiras entre Estado e sociedade e entre setores de refere-se a um número limitado e relativamente
política pública. estável de membros que compartilham os mes-
Tais participantes são aqui tratados como mos valores e visão sobre quais deveriam ser os
atores estatais e societais ou como atores em re- resultados da política setorial 14. Comunidades
de. O conceito de atores estatais pode ser atribu- de políticas participam das redes de políticas,
ído tanto àqueles que ocupam cargos de direção tentando afetar processos decisórios que se tor-
em órgãos dos três Poderes republicanos quan- naram muito segmentados, na medida em que as
to aos que, dependendo do conceito de Estado políticas são elaboradas “...por uma miríade de or-
adotado, participam na construção de consensos ganizações interconectadas e interpenetradas” 15
que mantêm a hegemonia da classe dominante (p. 53). Podem existir diferenças dentro da co-
3 ou da ação formadora de disposições sociais munidade, especialmente relacionadas a “ques-
duráveis, que impõem e inculcam os princípios tões administrativas” 16 (p. 9), as quais tendem a
de hierarquização social 4. No entanto, conside- se transformar em clivagens partidárias, ou en-
rando a natureza dos fóruns aqui examinados, os tre facções de partidos. No entanto, a unidade
atores estatais que neles participam são predo- mantém-se enquanto houver consenso político
minantemente governamentais, atuando como e ideológico em torno de uma determinada visão
gestores de saúde de nível federal, estadual ou sobre a explicação para os principais problemas

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da área em que atua e, principalmente, sobre um A última era formada por acadêmicos, pesquisa-
conjunto básico e essencial de propostas. dores, sindicatos de profissionais e trabalhado-
As noções de comunidade e rede de políti- res de saúde e ficou conhecida como movimento
ca, tendo em vista o modo como foram origi- sanitário. Ela criticava a organização do sistema
nalmente desenvolvidas por Heclo 13, Jordan & de saúde brasileiro então vigente, e suas propos-
Richardson 15 e Rodes 14, foram redefinidas ou tas eram inspiradas nos princípios defendidos
atualizadas por diversos autores que procuravam na Declaração dos Cuidados Primários de Saú-
entender como se processam as decisões nas di- de e nos modelos inglês e cubano de atenção à
versas áreas de políticas públicas e nos centros saúde.
decisórios gerais dos Governos. Como afirmam A arena política da área de saúde, aqui con-
True et al. 17 (p. 158), elas podem ser denomina- cebida como uma rede na qual as relações entre
das “como triângulos de ferro, nichos temáticos, atores individuais e coletivos são assimétricas e
subsistemas políticos, redes temáticas”, mas “... muitas vezes conflitivas, nos últimos anos, sofreu
qualquer que seja a denominação adotada, ela alterações em sua configuração. O movimento
se refere a uma comunidade de especialistas ope- sanitário, comunidade reformista formada ao fi-
rando fora do processo político visível, em contex- nal dos anos 70 do século passado, passou por
tos nos quais a maior parte das questões de cada um processo de diferenciação interna – ao me-
política setorial específica é tratada no interior de nos em parte, produzido por mudanças no modo
uma comunidade de experts”. como o SUS passou a se organizar no país – que
Na área da saúde, comunidades e redes de deu origem a uma nova comunidade 20,21.
políticas incluem indivíduos de várias institui- A noção de configuração aqui empregada é
ções, áreas de conhecimento ou profissões. Eles definida como redes interdependentes de seres
podem trabalhar na prestação de serviços, lide- humanos, com relações de poder assimétricas
rar organizações da sociedade civil, atuar como estruturadas e mutantes 22. O conceito é relevan-
pesquisadores e acadêmicos ou como gestores. te para o presente estudo porque, como Elias 23 o
As redes de política são formadas pelas relações propôs, ressalta a interdependência dos atores,
complexas que se estabelecem entre compa- sejam eles indivíduos, sejam grupos, ao invés
nhias farmacêuticas, profissionais, prestadores de salientar os antagonismos entre indivíduo e
privados de serviços hospitalares, associações de sociedade e entre grupos e instituições, como é
portadores de patologias, dentre outros grupos prática recorrente nas análises entre Estado e so-
de interesse, e comunidades de políticas, que ciedade. Para ele, não há dicotomia entre Estado
têm membros dentro e fora do Governo 12. e sociedade, ambos estão implicados em uma
No Brasil, durante as três últimas décadas, configuração social de poder que é constante-
podem ser identificadas duas comunidades de mente recriada, mudando ainda que de forma
políticas exercendo forte influência sobre o pro- incremental.
cesso de decisão política federal 18,19. Nos anos As instituições são tratadas aqui como regras
70, a comunidade de política mais influente era explícitas e, principalmente, implícitas que pro-
formada por dirigentes públicos – do Instituto duzem incentivos e constrangimentos à partici-
Nacional de Previdência Social (INPS), depois do pação de atores. Se por um lado elas constrangem
Instituto Nacional de Assistência Médica e Previ- os modos de ação e organização de atores sociais,
dência Social (INAMPS) e do Ministério da Saúde mas são as transformações nas configurações de
– que tinham conexões com a indústria farma- relações entre atores estatais e societais que, por
cêutica, com entidades de prestadores privados um lado, mantêm e, por outro, redefinem as ins-
de serviços, empresas de medicina de grupo, e tituições. Isso ocorre mesmo considerando que
organizações de profissionais de saúde, particu- os resultados de políticas e as capacidades de
larmente da área médica, por meio do Conselho reflexão e de ação desses atores sejam condicio-
Federal de Medicina, conselhos, associações e nadas por legados históricos institucionais e por
sindicatos médicos estaduais. Essa articulação configurações societais precedentes. É a articu-
política determinou a consolidação e expansão lação de atores societais e estatais individuais e
de um modelo de organização de serviços de coletivos em comunidades de política que pode
saúde cuja característica central era a provisão alterar o formato e os espaços decisórios de are-
privada oferecida nos centros urbanos, financia- nas políticas setoriais e redefinir a configuração
da com recursos da previdência social, controla- das relações entre atores e, portanto, suas posi-
da por mecanismos frágeis de regulação. ções nas estruturas hierarquizadas de relações
Durante os anos 80 e 90, a predominância que formam tais arenas 24,25,26,27,28. A perspectiva
dessa comunidade de política foi desafiada por teórica apresentada nesta seção oferece as bases
uma comunidade que propôs e liderou a refor- para a análise do processo de constituição e re-
ma do modelo consolidado na década anterior. definição da arena política de saúde brasileira a

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partir da criação do SUS, focalizando o impacto das Comissões Bipartites, nos estados, e Tripar-
sobre esta arena da constituição do novo CNS e tite no nível federal, como instâncias colegiadas
das comissões intergestores. de pactuação entre os gestores nos níveis de go-
verno correspondentes foi articulada no CNS
por representantes dos gestores municipais e
Arena política da área de saúde a partir estaduais 20. Em seguida, o CNS propôs ao Mi-
da criação do SUS nistério da Saúde que fosse criada uma comissão
especial para “discutir e elaborar propostas para
A realização da 8a Conferência Nacional de Saú- implantação e operacionalização do SUS (...) a ser
de, no ano de 1986, é considerada como um dos constituída pelas três instâncias gestoras gover-
principais marcos fundadores do processo de re- namentais” 30. O Ministério da Saúde, seguindo
forma que levou à criação do SUS 19. A Conferên- a recomendação do CNS, formou em 1991 “uma
cia estabeleceu os parâmetros normativos que comissão técnica com o objetivo de discutir e ela-
guiaram as propostas daqueles que defendiam borar propostas para implantação e operaciona-
a reforma e deu origem à Comissão Nacional da lização do Sistema Único de Saúde”, que viria a
Reforma Sanitária, que viria, em certa medida, a ser conhecida como a Comissão Intergestores
ser a precursora do “novo” CNS 20. A Comissão Tripartite (CIT) 31.
foi instalada ainda em 1986 29 com as finalida- A Norma Operacional Básica do Ministério
des de analisar as dificuldades da rede nacional da Saúde de 1993 (NOB/93) 32, além de aprofun-
de serviços de saúde e de sugerir uma nova es- dar o processo de municipalização, formalizou a
trutura organizacional do sistema. Coordenada criação das comissões intergestores. Elaborada
pelo Secretário Geral do Ministério da Saúde, era no início do Governo Itamar Franco, logo após o
integrada de forma paritária por representantes processo político que levara ao impedimento do
governamentais e societais. Presidente Fernando Collor, foi construída em
As propostas da Comissão, o Relatório Final um ambiente político favorável, pois os novos di-
da 8a Conferência e a implementação do Progra- rigentes federais na área eram claramente iden-
ma dos Sistemas Unificados Descentralizados de tificados com o movimento sanitário, sendo mais
Saúde (SUDS) fixaram uma agenda de tópicos a permeáveis às propostas de aprofundamento da
serem incluídos na Constituição Federal de 1988 municipalização e da descentralização do siste-
que definiria os parâmetros legais do sistema. A ma, se comparados aos gestores da administra-
comunidade de política movimento sanitário foi ção Collor 33. Estabeleceu-se assim o desenho
o ator protagonista na 8a Conferência, durante os institucional de planejamento e de gestão do
trabalhos da Comissão, nos processos de elabo- SUS até hoje vigente, caracterizado pela descen-
ração e implementação do SUDS e nos debates tralização e pela existência de fóruns permanen-
que definiram o teor da seção sobre saúde no tex- tes de coordenação vertical e horizontal.
to constitucional. A institucionalização das comissões interges-
O novo CNS, criado em 1990, passou a ser de- tores teve impacto sobre o CNS. Tanto os conse-
liberativo e responsável pela formulação de es- lheiros 20,21 quanto a literatura 33,34,35, salientam
tratégias e pelo controle da execução da política que as comissões passaram a ser os principais
de saúde nacional. Durante os primeiros anos da espaços institucionais de tomada de decisões
década ocupou lugar central na arena política da sobre financiamento, coordenação da estrutura
área. Paradoxalmente, foram as ações de atores gestora descentralizada e funcionamento geral
governamentais e de atores sociais no CNS que do SUS, o que afetou negativamente a capaci-
vieram a consolidar o lugar secundário que ele dade do CNS em consolidar-se como um fórum
passaria a ocupar nessa arena ao final da década central de decisão sobre a política de saúde na-
e durante a década seguinte. A principal ação dos cional. Para os gestores que as idealizaram 20,21,
atores governamentais nesse sentido, capitanea- havia a necessidade de coordenação das ações
da por representantes de gestores municipais e em saúde nos três níveis de governo para possi-
estaduais do CNS, foi o conjunto de iniciativas bilitar a implementação de políticas nacionais de
que conduziram à criação das comissões inter- forma articulada e organizada. Para os represen-
gestores. tantes de entidades de profissionais e trabalha-
No início da década de 90, as dificuldades de dores de saúde com atuação destacada no CNS,
gestão de um sistema de saúde em um estado as comissões teriam tirado o protagonismo do
federativo, como é o brasileiro, desafiavam os CNS na definição das políticas de saúde. No en-
gestores e o movimento sanitário a encontrar tanto, a ação no interior do fórum desses atores
mecanismos que viabilizassem a coordenação sociais, sob a liderança dos representantes de en-
vertical e horizontal das ações implementadas tidades de profissionais e trabalhadores de saúde
de forma descentralizada. A proposta de criação ao final dos anos 90 e durante a década seguinte,

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reafirmou o lugar secundário do CNS na arena de herdeira legítima do movimento reformista


política da área. fundador do SUS.
Entre 1990 e 2006, os conselheiros provenien- Os atores sociais que passaram a liderar os
tes de entidades sociais gradativamente assumi- trabalhos do CNS optaram por uma estratégia
ram posição dominante no CNS. Ao longo do que visava a ampliar o seu controle sobre o fórum
período, o número de representantes de organi- e não a fortalecê-lo como espaço decisório na
zações sociais no fórum cresceu tanto em termos arena política da área. Suas ações foram no sen-
relativos como absolutos, enquanto diminuiu a tido de, por um lado, concentrar as discussões
participação dos representantes governamentais no funcionamento do próprio CNS e no controle
e de mercado 20,21. Em 2005, esses conselheiros social no âmbito de todo o sistema. Desse mo-
eram os mais assíduos às reuniões, eram aqueles do, revigoravam sua hegemonia sobre o fórum e
que se manifestavam com maior freqüência du- consolidavam o caráter nacional da nova comu-
rante as discussões e que coordenavam a maior nidade de política ao articularem-se com conse-
parte das reuniões, além de serem também aque- lheiros estaduais e municipais de todo o país. Por
les que mais vezes representaram o CNS em ativi- outro lado, buscavam acabar com a vaga cativa
dades externas. Havia uma preponderância rela- dos médicos e manter o número de represen-
tiva desses conselheiros na condução das discus- tantes de gestores e de entidades de mercado re-
sões e deliberações, frente à menor participação duzido, ao mesmo tempo em que pressionavam
de conselheiros governamentais e ao diminuto para retirar do Ministro da Saúde a prerrogativa
envolvimento de representantes de organizações de presidir o CNS 20.
de mercado. Segundo Silva et al. 21, um “núcleo No entanto, a vitória relativa da estratégia e a
duro” de seis conselheiros provenientes de enti- “conquista do poder” no CNS podem ter colabo-
dades sociais influenciava fortemente as discus- rado para que o poder do CNS na arena política
sões e as deliberações que ocorriam no fórum. O da área tenha diminuído. Segundo Silva et al. 21,
“núcleo” era formado por quatro representantes ao restringirem a influência dos representantes de
de organizações de profissionais e trabalhadores entidades de mercado, dos médicos e de gestores
de saúde e por dois representantes de entidades no fórum estimularam que estes atores, que ocu-
de portadores de patologias e deficiências, étni- pavam posições centrais no processo decisório
cas e de gênero. da área de saúde, buscassem defender seus inte-
O papel do CNS na arena setorial mudara. resses e apresentassem suas propostas em outros
Ele constituía-se agora no principal espaço de espaços políticos. Eles apenas reduziram a sua
articulação nacional de aliados e de difusão de influência no CNS e não na arena política da área.
idéias e propostas de uma nova comunidade Enquanto os atores governamentais, es-
de política que tinha como núcleo organizati- pecialmente gestores municipais e estaduais,
vo societal o Fórum de Entidades Nacionais de concentravam suas atuações nas comissões in-
Trabalhadores da Área da Saúde (FENTAS). O tergestores, os atores de mercado optaram por
FENTAS era o centro político – formulador de exercer influência direta sobre os decisores go-
interpretações, propostas e estratégias de ação vernamentais e por estratégias de mercado que
– da nova comunidade, cuja ação no CNS visava lhes garantissem posição privilegiada como
a fortalecer os laços entre representantes de ca- provedores de serviços no âmbito do SUS e fora
tegorias profissionais integrantes do FENTAS e dele. Sua posição no sistema setorial, como pro-
outros líderes de entidades sociais. Os princípios vedores de serviços de saúde para o SUS e para
fundadores do SUS integravam o conjunto de o setor de seguros de saúde, foi fortalecida ao
suas propostas, mas a eles acrescia-se a defesa longo do período mediante subsídios públicos
da provisão exclusivamente pública de serviços e diretos e indiretos e por meio de escolhas estra-
dos interesses trabalhistas de categorias de pro- tégicas sobre os tipos de serviços oferecidos para
fissionais e de trabalhadores de saúde, não-mé- estes dois complexos compradores. Como afir-
dicos, em oposição a entidades que defendiam mam Santos & Gerschman 34 (p. 798), através do
os interesses da categoria médica. Os gestores, apoio “à expansão de serviços e coberturas” e da
profissionais de saúde e acadêmicos identifica- consolidação de anéis burocráticos, a iniciativa
dos com o movimento sanitário, que lideraram privada pôde não apenas auferir os benefícios da
o processo de reforma do sistema brasileiro de contratação direta de serviços financiados pelo
saúde, eram vistos pela nova comunidade como SUS como garantiu subsídios públicos para re-
integrantes de um grupo que renunciara aos ver- forçar seu parque tecnológico. Para as autoras,
dadeiros ideais reformistas 21. Assim, essa comu- “ao optar pela provisão privada como forma de
nidade, articulada em torno do “núcleo duro” de viabilizar a universalização, (...) o setor público
integrantes do CNS, disputava com o movimento acaba criando e consolidando bases para a oferta
sanitário na arena política da área a condição privada de serviços” 34 (p. 798).

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O compromisso programático do movimento gestores federais. Nas comissões intergestores


sanitário com a expansão dos serviços, as reco- – fechadas à participação de atores sociais e de
mendações do Banco Mundial pela segmenta- mercado – gestores estaduais e municipais, indi-
ção do sistema, as dificuldades de financiamento vidualmente e por intermédio de suas cada vez
– agravadas com a perda dos recursos financeiros mais influentes entidades associativas (Conse-
provenientes das contribuições sobre a folha de lho Nacional de Secretários de Saúde – CONASS
salário para previdência social –, a existência de – e Conselho Nacional de Secretarias Municipais
um setor privado prestador e comprador de ser- de Saúde – CONASEMS), estabeleceram canais
viços criaram condições institucionais e políticas diretos de relação com os gestores federais e am-
que favoreceram a permanência da provisão pri- pliaram sua capacidade de ação sobre a arena
vada de serviços no âmbito do SUS e o fortale- política da área.
cimento da capacidade de barganha dos atores Os atores de mercado, por sua vez, mesmo
de mercado na arena política da área. Mas tal sem participação nesses fóruns colegiados, con-
fortalecimento foi também o resultado da ação tinuaram a influir sobre as decisões governamen-
de representantes de interesses de mercado em tais. A robustez dos recursos de poder de que
espaços decisórios que não estavam abertos ao dispunham, as decisões tomadas por gestores
escrutínio público 34,35,36,37. Os “anéis burocrá- federais e o legado institucional anterior à cria-
ticos” construídos na década de 70, entre atores ção do SUS que os constituíra como o principal
de mercado e os dirigentes do antigo INAMPS, grupo de provedores de serviços de média e alta
foram revitalizados ou reconstituídos. Os recur- complexidades para o setor público, favoreceram
sos de poder desses atores viabilizaram ainda o tal continuidade e que se ampliassem as possibi-
exercício constante de pressões sobre o Poder lidades de sua inserção lucrativa no setor.
Legislativo, a organização de campanhas na mí- A posição dominante desses dois tipos de
dia em favor de suas demandas e propostas, e o atores, no entanto, não deve obscurecer a novi-
acionamento do Poder Judiciário e do Ministério dade que representou na arena política da área a
Público na defesa de seus interesses. presença atuante de atores sociais. A criação de
mecanismos participativos, particularmente dos
conselhos, fez surgir uma cadeia de fóruns insti-
Considerações finais tucionalizados em cujo topo se localiza o CNS.
Mesmo com posição relativamente secundária
Ao longo das duas décadas de existência do SUS, na arena setorial, o CNS e os atores nele prepon-
o CNS transitou de um lugar central para outro derantes podiam influir sobre o processo decisó-
relativamente secundário na arena política seto- rio da área ou ao menos contestar decisões que
rial. Entretanto, a posição subordinada dos ato- fossem consideradas contrárias aos seus interes-
res estatais e de mercado no interior do CNS, não ses ou aos princípios que defendiam. Outra no-
significou que tenham deixado de ser dominan- vidade foi a formação de uma nova comunidade
tes na arena política setorial. de política cujo centro de atuação é exatamente o
A criação das comissões intergestores, que se CNS. Futuros estudos poderão examinar a natu-
tornaram o principal espaço de negociação entre reza dessa comunidade e verificar se confirmam-
os três níveis de gestão do sistema, e a edição de se as indicações de que ela se estrutura como
normas legais e administrativas pelo Ministério uma rede hierarquizada de relações entre atores
da Saúde regrando o funcionamento do SUS e individuais e coletivos, cujas posições superiores
do setor mostram o fortalecimento do papel dos são ocupadas por profissionais de saúde.

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Resumo

O artigo analisa o impacto da criação do novo Conse- ativamente, a apresentar suas demandas e propostas
lho Nacional de Saúde, em 1990, e das comissões in- em fóruns participativos que tratavam principalmen-
tergestores, em 1993, sobre a arena política de saúde e te de questões políticas secundárias, perdendo assim,
sobre a configuração das relações entre atores estatais ao longo do período, capacidade de influir sobre o
e societais no âmbito do Sistema Único de Saúde. As processo decisório da área; atores de mercado pouco se
três principais conclusões do artigo são as seguintes: envolveram em fóruns participativos, dando preferên-
a criação de fóruns nos quais atores estatais podem cia a exercer influência diretamente sobre os decisores
construir acordos que viabilizem a coordenação fede- públicos e a implementar estratégias adaptativas para
rativa das ações de gestão fortaleceu as posições desses aumentar seus lucros.
atores na arena política da área; atores sociais, lidera-
dos por representantes de entidades de profissionais Sistema Único de Saúde; Política de Saúde; Conselhos
de saúde, foram compelidos, mas também buscaram de Saúde; Profissional de Saúde

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Recebido em 09/Mar/2009
Aprovado em 18/Mai/2009

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