Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
PUC-SP
SÃO PAULO
2012
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
SÃO PAULO
2012
Ficha Catalográfica Elaborada pelo Setor Tratamento da Informação BICEN/UEPG
CDD : 305.800.87
Banca Examinadora
________________________
________________________
________________________
________________________
________________________
Atitude
a mais difícil
tratar diferentes
sem indiferença
Flávio Machado.1
Alegre
Flávio Machado.2
1
Poema publicado em 26 de dezembro de 2011. Disponível em: http://www.ibdd.org.br/noticias/noticias-informe-
90%20dois%20poemas.asp
2
Poema publicado em 17 de setembro de 2011. Disponível em: http://poesiaspublicas.blogspot.com.br/ 2011_
09_01_archive.html.
Consegue compreender com maior
profundidade o que é o estigma, e o
que é ser estigmatizado, aquele que
já o vivenciou e que já sentiu seu
látego a ferir intensa e
profundamente como ferro em
brasas, deixando marcas, não na
sua carne, mas na sua alma. Tais
marcas são produzidas nas
interações sociais entre as pessoas
por palavras escritas ou ditas,
pelos gestos, pelo olhar, ou
simplesmente pelo silêncio. Ou
ainda, podem estar expressas ou
não expressas nas leis e normas
que regulam as relações sociais
entre os grupos.
DEDICATÓRIA
Dedico esta tese à minha esposa Eliana Lara, companheira, amiga, fortaleza,
rocha e pilar de sustentação nos momentos mais difíceis.
Ao meu lado esteve ao longo destes anos, muitas vezes com a cumplicidade
de um olhar, ajudando-me a avançar, a me desenvolver, a construir algo que, em
alguns momentos, julguei não ser capaz.
Em razão da minha fé e de minha escolha religiosa, apesar desta tese não tratar
de religião, quero agradecer a Deus, pois que acredito em sua existência; pela
inspiração e pelas pessoas que estiveram ao meu lado ao longo da construção deste
trabalho, bem como, pela força que senti ao encarar o tema de que trato e que me
acompanha ao longo de toda a minha vida, podendo finalmente abordar sobre ele sem
constrangimentos.
À Profª. Drª. Leila Maria da Silva Blass, coautora deste trabalho, pela orientação
firme e segura, mas antes de tudo pelo apoio, por ter acreditado em mim e por ter
desvendado o tema aos meus olhos, ao longo das suas valiosas orientações,
encorajando-me e, ao mesmo tempo sem saber, desafiando-me a explorá-lo sob a ótica
da deficiência.
Porém, uma dessas merece agradecimento especial, pois foi quem possibilitou o
desenvolvimento da pesquisa, me acolhendo, orientando, encaminhando, indicando as
pessoas, preparando o local para as entrevistas, me passando uma série de
informações e esclarecimentos. Sou-lhe profundamente grato e eternamente devedor.
À minha esposa, Eliana Lara pelo trabalho brutal e minucioso de transcrição das
gravações das entrevistas.
Ao Flávio Machado por ter autorizado a utilização de dois de seus poemas que
são bem elucidativos quanto à questão da deficiência.
Esta tese trata dos estigmas no emprego relativos às pessoas com deficiência e
pessoas surdas que em decorrência da promulgação da Lei Federal n° 8.213, de 24
de julho de 1991, começaram a participar do quadro de funcionários do Sistema
Federação das Indústrias do Estado do Paraná (Sistema FIEP), no ano de 2007. Um
dos seus principais objetivos seria mostrar que os estigmas sociais e as
discriminações norteiam e se reproduzem nas relações entre colegas, com seus
chefes e demais representantes da hierarquia empresarial. Além dos depoimentos
orais das pessoas com deficiência inseridas no Sistema FIEP, foram consultados
documentos escritos e foram, na medida do possível, observadas “in situ” algumas
práticas de trabalho desenvolvidas por essas pessoas. Um dos resultados mais
importantes deste estudo diz respeito ao reconhecimento por parte das próprias
pessoas com deficiência e das surdas, de empresários, de colegas e da chefia, dos
aspectos negativos relacionados às limitações física, sensorial ou intelectual,
enviesadas pela visão focada na produtividade. No entanto, os estigmas sociais da
deficiência e da surdez recriam desigualdades no processo de inserção no emprego
pelas empresas.
This thesis deals with the stigma in employment for disabled and deaf people due to
the enactment of the Federal Law No. 8,213 of July 24, 1991, that joined the staff of
the Federation of Industries of the State of Paraná (FIEP System) in 2007. One of its
main goals would be to show that the social stigmas and discrimination guide and
reproduce the relations between colleagues, with their chiefs and other
representatives of the corporate hierarchy. In addition to the oral testimony of
persons with disabilities that entered into the FIEP System, some written documents
were consulted and, as far as possible, some working practices developed by these
people were observed "in situ". One of the most important results of this study
concerns to the recognition by the people with disabilities and deaf themselves,
entrepreneurs, colleagues and managers, the negative aspects related to the
physical, sensory or intellectual limitations, skewed vision by focusing on productivity.
However, the social stigma of disability and deafness recreate inequalities in the
process of integration in employment by businesses.
Introdução........................................................................................................... 15
1 Deficiência e estigmatização................................................................ 37
1.1 Diferentes visões da deficiência.............................................................. 37
1.2 Caracterização do estigma..................................................................... 45
1.3 Construção do estigma social da deficiência.......................................... 66
Anexos................................................................................................................. 198
15
Introdução
Segundo esse artigo, a empresa que tiver a partir de cem empregados, estará
obrigada a preencher seus cargos com beneficiários, reabilitados, ou pessoas com
deficiência, habilitadas, seguindo a seguinte proporção: de 100 até 200 empregados,
2%; de 201 a 500 empregados, 3%; de 501 a 1000 empregados, 4%; de 1001 em
diante, 5%.
Assim, de uma forma geral e restrita a tese de doutoramento aborda sobre o
tema da inserção das pessoas com deficiência no emprego. Geral por que analisa a
situação em termos de país, restrita porque aborda a inserção de pessoas com
deficiência no emprego da indústria, com base no caso Sistema da Federação das
Indústrias do Estado do Paraná (FIEP). Contudo, mais precisamente, se direciona
para uma tentativa de demonstrar que a inserção no emprego, reafirma os estigmas
relativos às deficiências e a surdez, apresentando características próprias.
Este estudo toma como referência o Sistema Federação das Indústrias do
Paraná (FIEP), formado por um conjunto de entidades que atuam em prol do
desenvolvimento da indústria no estado do Paraná, compreendendo a Federação
das Indústrias do Estado do Paraná (FIEP), o Centro das Indústrias do Estado do
Paraná (CIEP), o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI/PR), o
Serviço Social da Indústria do Paraná (SESI/PR), o Instituto Euvaldo Lodi (IEL/PR)
(FIEP, 2010). Também fazem parte do Sistema FIEP a Universidade da Indústria
(UNINDUS) lançada em 2005 com o objetivo de oferecer produtos de vanguarda
para lideranças empresariais e servir de base para a formação de executivos e
lideres; o Centro Internacional de Inovação (C2i) lançado em 2009 com o objetivo de
se transformar em uma concessionárias de inovação e articular produtos de
inovação no SESI/PR, SENAI/PR, IEL/PR e demais parceiros da FIEP, bem como,
oferecer educaçao direcionada à gestão de empresas com foco na inovação ou que
gostariam de inovar por intermédio da UNINDUS. A Faculdade Metropolitana de
Curitiba (FAMEC) que passou a integrar o Sistema FIEP, no ano de 2010. O
Sistema FIEP conta, ainda em sua composição, com mais 107 sindicatos filiados
representantes de diversas atividades industriais paranaenses. (SISTEMA FIEP,
2011).
A Federação das Indústrias do Parana (FIEP) foi criada em 18 de agosto de
1944, em Curitiba, formada inicialmente por nove sindicatos. Desde sua constituição
se destacou como forte representante da indústria voltada para o desenvolvimento
industrial e econômico do Paraná. O período de criação da FIEP coincide com a
18
1
Informação disponível em: <http://www.koller.com.br/diferencas-deficientes-auditivos-e-surdos.html>, Acesso
em: 02 nov. 2011.
21
DESCRIÇÃO TOTAIS
Tipos de Deficiências (A) 61.368.844
Pessoas com Deficiência (B) 45.606.048
Deficiências Múltiplas (A-B) 15.762.796
Fonte: Adaptado do Censo Demográfico 2010 – IBGE.
1 O censo indica um número maior de deficiências do que de deficientes, uma vez que ―as pessoas incluídas em
mais de um tipo de deficiência foram contadas apenas uma vez.‖ (Fonte: IBGE, Censo Demográfico, 2000, nota
1), portanto o número de pessoas que apresentam mais de uma deficiência é de quase 16 milhões.
Fonte: Adaptado do Censo Demográfico 2010 – IBGE.
26
% %
Diferença Diferença
Tipos de Deficiência Homem (A) Mulher (B) Total (A-B)
Homem Mulher
% (A-B)
(A) (B)
Auditiva 4.908.612 4.808.707 9.717.319 99.905 50,5 49,5 1,0
Mental/Intelectual 1.409.597 1.201.938 2.611.535 207.659 54,0 46,0 8,0
Motora 4.979.617 8.285.981 13.265.598 -3.306.364 37,5 62,5 -24,9
Visual 14.919.686 20.854.706 35.774.392 -5.935.020 41,7 58,3 -16,6
TOTAL 26.217.512 35.151.332 61.368.844 -8.933.820 42,7 57,3 -14,6
Fonte: Adaptado do Censo Demográfico 2010 – IBGE.
2
O IBGE no Censo Demográfico de 2010 usa as designações ―deficiência mental/intelectual‖. O
termo deficiência intelectual passou a ser adotado a partir da Declaração de Montreal sobre a
Deficiência Intelectual - Montreal – Canadá OPS/OMS - 06 de Outubro de 2004. Sassaki (2004)
esclarece que o termo deficiência intelectual é mais apropriado por estar ligado ao funcionamento do
intelecto, de forma específica e não ao funcionamento da mente em sua totalidade, como remete a
deficiência mental.
27
Tabela 5 – Situação das Deficiências Investigadas pelo IBGE no Censo Demográfico de 2010
DESCRIÇÃO VALORES PERCENTUAL
Pelo menos uma das deficiências investigadas 45.606.048 23,9
Nenhuma dessas deficiências 145.084.976 76,1
Não responderam à essas questões 64.775 0,02
Total da População 190.755.799 100
Fonte: Adaptado do Censo Demográfico 2010 – IBGE.
Dessa forma, como explica Pais (2005), ao se trabalhar com métodos pós-
lineares é possível dar conta das rupturas de vida, vivenciadas ou relatadas por
aqueles que são pesquisados, que aparecem plenamente em sua fragmentatividade.
Esses fragmentos surgem desprendidos do todo ao qual pertencem, e então tem-se
que em um esforço metodológico ir por partes, para se remontar a um todo, pois que
o par ―partes/todo‖ caminham juntos, sem poder existir a explicação de um sem a
explicação do outro, em razão de que mantém suas relações de ―[...] reciprocidade,
implicação, pressuposição, dependência. O desafio que se coloca é o de saber
como se interconectar [...] o desafio da analise interpretativa, o de trabalhar os
fragmentos de sentido, interconectando-os revirando-lhes os sentidos.‖ (Idem: 86).
Utilizando-se da análise de Sallum Jr. (2005), pode-se dizer que o que se
pretende em termos de pesquisa está ligado aos níveis micro e meso sociológicos
no campo organizacional. Em relação ao primeiro, por trabalhar com os agentes
individuais e os processos de interação e relações com a sociedade. Quanto ao
segundo, por se tratar de um grupo que está inserido em uma organização formal
(local de trabalho) no qual ocorrem relações de trabalho decorrentes. Por isso a
opção por uma pesquisa de cunho qualitativo, a qual permitiu analisar aspectos
pontuais relacionados a esses níveis sociológicos.
A entrevista utilizada como técnica de coleta de dados, em ciências sociais,
constitui-se de suma importância, na perspectiva de Haguette (1997), pois se trata
de um ―[...] processo de interação social entre duas pessoas na qual uma delas, o
entrevistador, tem por objetivo a obtenção de informações por parte do outro, o
entrevistado.‖ (Idem: 86). Como técnica para coleta de dados, a entrevista se
constitui como a ferramenta mais utilizada no trabalho de campo dos cientistas
sociais, por meio da qual se busca obter dados, principalmente subjetivos que para
Boni e Quaresma (2005) dizem respeito aos ―[...]valores, às atitudes e às opiniões
dos sujeitos entrevistados.‖ (Idem: 5).
A observação presencial como coleta de dados, foi usada com o objetivo de
verificar as relações entre as pessoas com deficiência ou surdas e demais colegas
de trabalho, bem como, para analisar as condições de acessibilidade nas
instalações onde trabalham. Segundo Mesquita (2006) esse tipo de observação,
definida por Pais em 1999, como ―in situ‖ se refere à ―[...] uma observação
presencial, constituída pela mistura de um estilo óptico, que se desenvolve mais à
34
distância e um uso táctil, mais próximo, que favorece o contato face a face.” (Idem:
29).
Como forma inicial e depois complementar de coleta de dados, utilizou-se a
entrevista por email, com a representante do programa Aprendendo com a
Diversidade e com o responsável pelo setor de Gestão em Saúde e Segurança do
Trabalho do Sistema FIEP.
A pesquisa efetivamente realizada no período de junho a agosto de 2010,
tomou como base para a coleta de dados, um grupo constituído por pessoas com
deficiência física ou auditiva que trabalha no Sistema da Federação das Indústrias
do Paraná (Sistema FIEP). Além desses, foram incluídos na coleta de dados duas
representantes dos programas de inserção do Sistema FIEP e mais duas tutoras,
colegas de trabalho das pessoas deficientes ou surdas.
Mais precisamente os sujeitos participantes da pesquisa são oriundos do
projeto piloto de qualificação de pessoas com deficiência para o mercado de
emprego desenvolvido pelo SESI/PR em parceria com o SENAI/PR, que se
caracterizou como um curso para formação de auxiliares administrativos para
trabalharem nas empresas afiliadas à Federação das Indústrias do Paraná (FIEP),
mas que acabaram sendo contratados para exercerem funções auxiliares no
Sistema FIEP. Inicialmente o curso de formação contou com onze alunos, contudo
um deles optou por uma oportunidade na área de produção da Volvo, empresa
montadora de caminhões localizada na cidade de Curitiba-PR, após ter participado
em um curso de formação de mão de obra oferecido pela empresa citada. Na época
da pesquisa, duas pessoas com deficiência física estavam afastadas do trabalho por
licença médica.
O estudo de um grupo, suas relações, representações coletivas, encontra
respaldo em Simmel (2006, p.11) que ao abordar sobre a sociedade como conceito
abstrato, expõe que ―[...] cada um dos incontáveis agrupamentos e configurações
englobados em tal conceito é um objeto a ser investigado e digno de ser
pesquisado, e de maneira alguma podem ser constituídos pela particularidade das
formas individuais da existência‖.
A principal fonte de informação para este estudo são os depoimentos de duas
representantes dos programas de inserção de pessoas deficientes no emprego,
desenvolvidos no âmbito do Sistema FIEP (Programa Aprendendo com a
Diversidade – voltado a inserção dos deficientes no Sistema FIEP; Programa Gestão
35
outra, curso superior completo, com especialização. Uma delas é casada e a outra é
solteira. Todas as entrevistadas receberam nomes fictícios e seus dados são
apresentados no Anexo I.
Procurando responder à principal questão que motivou o desenvolver este
trabalho, bem como o objetivo dele decorrente, a tese está estruturada da seguinte
forma: no primeiro capítulo procuro abordar a respeito das diferentes visões da
deficiência, que se construíram em diferentes períodos a partir do século XVIII na
cultura ocidental. Conjuntamente, desenvolvo uma caracterização do estigma e
abordo sobre a construção do estigma social da deficiência.
No segundo capítulo, com o objetivo de compreender o desenvolvimento da
legislação nacional dos direitos das pessoas com deficiência, faço um resgate da
luta das pessoas com deficiência, enfatizando-a desde a década de 1950, passando
pela década de 1980, período importantíssimo para o movimento das pessoas com
deficiência no sentido de reivindicações, a partir do qual as pessoas com deficiência
conseguiram ser reconhecidas como cidadãs, e verem inseridas na Constituição de
1988, muitas das reivindicações propostas ao longo da Assembleia Nacional
Constituinte (ANC).
No 3º capítulo discuto a respeito da deficiência no contexto da diversidade
nas organizações, mais precisamente da gestão da diversidade nas empresas,
passando pelo debate das ações afirmativas como políticas de inserção, versus a
meritocracia, base dos programas de gestão da diversidade com dissolução das
diferenças. Nesse capítulo, ainda, apresento os conceitos de deficiências presentes
na legislação federal brasileira, e que norteiam as categorizações dos indivíduos,
mediante as quais são inseridos no emprego das empresas.
Ao longo do quarto capítulo procuro apresentar uma análise da pesquisa
desenvolvida, com base nas entrevistas realizadas. A partir dessas entrevistas
procuro identificar de que forma se caracteriza, o estigma social da deficiência no
ambiente de trabalho a partir do processo de inserção no emprego. Considerando
diferentes visões, a análise está centrada em três categorias que se entrecruzam no
local de trabalho: pessoas com deficiência; pessoal de gestão; tutores (e colegas de
trabalho). Discuto, ainda, a inserção das pessoas com deficiência ou surdas com
base na desigualdade e na diferença.
37
1 DEFICIÊNCIA E ESTIGMATIZAÇÃO
3
Miranda (2004) estudando a situação das pessoas com deficiência, sob uma perspectiva histórica, coloca que
na Europa e América do Norte ela se divide em quatro estágios: primeira fase, pré-cristã e cristã; segunda fase,
39
de institucionalização (do século XVIII a meados do século XIX); terceira fase, das escolas especiais ou classes
especiais em escolas públicas (final do século XIX e meados do século XX); quarta fase, integração (final do
século XX, a partir dos anos de 1970). Para efeitos deste trabalho será levado em consideração a partir da
segunda fase.
40
No item 1.1 foi visto que no final do século XIX e início do século XX, surge
uma corrente de estudos conhecida como eugenia e paralelamente se desenvolve a
teoria do desvio cuja finalidade seria categorizar os indivíduos que fugiam aos
padrões sociais de normalidade no contexto do binômio normal-patológico.
Durkheim (2007) foi um dos primeiros pensadores sociais que propõe o estudo do
desvio do ponto de vista sociológico. Vagabundos, prostitutas, criminosos etc.
poderiam ser enquadrados neste caso. (MISKOLCI, 2005).
Segundo Miskolci (2005) os estudos sobre o desvio tiveram continuidade e
foram aprofundados a partir da Escola de Chicago, desde a década de 1920,
principalmente com a análise sobre o crime na sociedade. Na década de 1950, os
estudos sobre desvio envolvendo a criminalidade perderam espaço e predominaram,
na Escola de Chicago, estudos sobre profissões e outras formas de interação. Para
46
Miskolci (2005), ―É neste contexto que surgem pesquisas tão originais com relação a
diversas formas de desvio social que alguns passariam a unificá-las como
constituindo uma nova tradição, a Segunda Escola de Chicago.‖ (Idem: 17). Dentro
dessa perspectiva, duas obras marcaram os estudos a respeito de normalidade e
desvio: Asylums publicada em 1961 por Erving Goffman e Outsiders publicada em
1963 por Howard Becker, os dois teóricos mais conhecidos dessa linha de estudos,
(MISKOLCI, 2005).
A partir da consideração de que o desvio é criado e definido socialmente, os
estudos interacionistas privilegiam a análise de ―como‖ esses rótulos foram criados e
quais as suas consequências individuais (LIMA, 2001). Howard Becker foi o principal
autor que se preocupou com a questão dos rótulos sociais, desenvolvendo a teoria
das rotulações, ou teoria da etiquetação Labeling Theory na qual estuda a questão
dos desvios. Mais precisamente Becker (2008), entende ―[...] desvio como o produto
de uma transação que tem lugar entre algum grupo social e alguém que é visto por
esse grupo como infrator de uma regra.‖ (Idem: 25). Especifica que seu interesse
recai menos ―[...] características pessoas e sociais dos desviantes do que pelo
processo através do qual estes são considerados ‗outsiders‘4 e suas reações a esse
julgamento.‖ (Idem: 25). Conforme o autor, ―Desvio não é uma qualidade que reside
no próprio comportamento, mas na interação entre as pessoas que cometem um ato
e aqueles que reagem a eles.‖ (Idem: 27).
Com relação à questão da deficiência, a proposta de análise de Becker
aponta para o fato de que o binômio desvio-normalidade está expresso no próprio
corpo do individuo com deficiência. Segundo Amaral (1998), seja por ―[...] falta ou
excesso de alguma coisa.‖ (Idem: 12)
Assim o desvio se faz presente no tocante à deficiência diante da
anormalidade que o corpo deficiente representa conforme os padrões estabelecidos,
como indica Amaral (1998), ―[...] o fato é que (seja da ótica de quem vive, seja da
ótica de quem vê) a deficiência, do ponto de vista psicológico, jamais passa em
brancas nuvens. Muito pelo contrário: ameaça, desorganiza, mobiliza. Representa
aquilo que foge ao esperado, ao simétrico, ao belo, ao eficiente, ao perfeito... e,
4
Becker (2008) utiliza o termo ―[...] ‗outsiders‘ para designar aquelas pessoas que são consideradas desviantes
por outras situando-se por isso fora do círculo dos membros ‗normais‘ do grupo. Mas o termo contém um
segundo significado, cuja análise leva a um outro importante conjunto de problemas sociais: ‗outsiders‘, do ponto
de vista da pessoa rotulada de desviante, podem ser aquelas que fazem as regras de cuja violação ela foi
considerada culpada.‖ (p. 27).
47
situação, o informado poderá, ser vítima de estigma por ter relação com os
estigmatizados.
No entender de Crocker, Major e Steele (1998), a tipologia apresentada por
Goffman (2008) é falha no sentido que algumas condições estigmatizantes poderiam
ser incluídas em dois ou mais tipos. Citam, por exemplo, as pessoas que estão
acima do peso, consideradas como tendo abominações do corpo e um defeito de
caráter individual.
Falk (2001), ao apresentar a sua classificação de tipos de estigma, esclarece
que toda sociedade humana estabelece limites entre aqueles que estão nela
incluídos e aqueles que por ela estão excluídos marcados por meio dos estigmas ou
rótulos. Explica que nos Estados Unidos, atualmente, o uso da palavra ―estigma‖, ou
do ―processo de estigma‖ tem uma conotação ou indica um sinal de desaprovação
invisível que permite aos integrantes de um determinado grupo desenhar as linhas
de fronteira entre si e os que estão fora, com a finalidade de demarcarem os limites
da sua inclusão num grupo. Este tipo de demarcação permite aos de dentro do
grupo entenderem quem pertence e quem não pertence a ele, e permite que
mantenha sua solidariedade, demonstrando o que acontece com aqueles que se
desviam das normas de conduta aceitas.
Falk (2001) propõe sua tipologia de estigma baseada em duas categorias:
―existencial‖ – na qual estão incluídos aqueles que não contribuíram, não
desenvolveram fatores de causa para o estigma que lhes é imputado e, portanto, ele
independe da sua vontade e controle – os homossexuais, os doentes mentais, as
pessoas com deficiência mental, as pessoas extremamente obesas, os idosos, as
mulheres sozinhas e povos indígenas, se encontrariam nessa situação; também
poderiam ser incluídas nesta categoria todas as pessoas com deficiência e as
pessoas surdas; ―conquistado (ou adquirido)‖ – são incluídos nessa forma de
estigma aquelas pessoas que adquiriram uma marca por sua conduta ou
contribuíram muito para atingi-la, denominado de ―alcançar o estigma‖ – as
prostitutas, os sem tetos, os viciados de vários tipos e os criminosos são
relacionados pelo autor nesta categoria. Além desses, os imigrantes são incluídos
nesta categoria em razão do esforço que fazem para entrar nos Estados Unidos,
muitas vezes ilegalmente, o que gera certa antipatia dos residentes; a realização
profissional de nível elevado, também se enquadra na condição de um sinal
conquistado, e que está presente em todos os segmentos da vida americana,
54
social em que tem de conviver com a presença física do outro, muitas vezes
indesejável. A possibilidade desses contatos poderá levar tanto um quanto outro a
um processo de esquematização de suas vidas de maneira a evitar tais encontros
trazendo, possivelmente, maiores consequências para os estigmatizados. Desta
forma, a falta de feedback saudável no intercâmbio social quotidiano com outras
pessoas levará os estigmatizados ao autoisolamento em que desenvolverão a
desconfiança, a depressão, a hostilidade, a ansiedade, podendo se tornar pessoas
confusas. Mas esses contatos mistos são importantes, para ambos, pois ―quando
normais e estigmatizados realmente se encontram na presença imediata uns dos
outros, especialmente quando tentam manter uma conversação, ocorre uma das
cenas fundamentais da sociologia porque, em muitos casos, esses momentos serão
aqueles em que ambos os lados enfrentarão diretamente as causas e efeitos do
estigma.‖ (Idem: 23).
Outro efeito advindo dos contatos mistos de que trata Goffman (2008) com
relação aos indivíduos estigmatizados é a insegurança que estes poderão sentir com
a forma com que os normais o receberão e o identificarão. Sua incerteza está em
não saberem como serão classificados no processo de categorização em relação à
sua marca, através da qual os normais os tratarão positiva ou negativamente.
Subentende-se que isto lhes gera uma sensação de observação extrema dos seus
menores habituais e usuais atos, causando-lhes desconforto pela sensação de
exposição e exibição, ou um excessivo policiamento do seu agir em público. Em
decorrência, os indivíduos estigmatizados poderão desenvolver formas de defesa,
como a agressividade ao se aproximar dos contatos mistos, que podem se tornar
angustiantes tanto para estigmatizados quanto para normais. Nessa situação, cada
um estará policiando o comportamento do outro, às vezes exacerbadamente,
sempre à espera de algo, um sinal positivo ou negativo pela sua condição.
O estigma, de acordo com Goffman (2008), está carregado de visão negativa
relativa às depreciações decorrentes de determinada condição moral, relacionadas
como: visibilidade, encobertamento, identidade pessoal, encobrimento e técnicas de
controle da informação.
A visibilidade para Goffman (2008) corresponde à perceptibilidade ou
evidenciabilidade da marca do indivíduo. Há exposição desse estigma àqueles que
têm contato com o seu possuidor. Quanto ao encobertamento que ocorre com o
desacreditável, Goffman (2008) explica que está ligado à manipulação da tensão
59
do sinal estaria um possível valor funcional, tanto para aquele que estigmatiza,
quanto para o grupo do qual ele faz parte, para a sociedade, ou ainda para todos
estes elementos. Individualmente, a estigmatização teria como objetivos: servir para
capacitar aquele que estigmatiza a acreditar que são bons (funcionaria para
melhorar a autoafirmação e autoaperfeiçoamento); acreditar que o grupo ao qual
pertence também é bom (teria uma função de melhoraria da identidade social); crer
que são merecedores e justos (uma função de estarem servindo a si mesmos e pela
justificação do sistema); e acreditar que a sua visão de mundo está correta (teria a
função de proteção da ansiedade e gestão do terror). Como funções específicas do
estigma, Crocker, Major e Steele (1998), citam: o autorreforço, o reforço do grupo de
pertença, o sistema de justificação e a gestão do terror.
A construção do estigma está intimamente relacionada com estereótipo,
preconceito e discriminação, mas com eles não se confunde, são distintos. O
estigma, de uma forma geral, seria a relação entre um atributo e um estereótipo, ou
seja, o atributo é o que marca o individuo, o que lhe destaca socialmente. O estigma
é o qualificativo social criado para identificá-lo a partir do seu atributo, como
esclarece Goffman (2008).
O preconceito, segundo Bobbio (2002), diz respeito a ―[...] uma opinião ou
conjunto de opiniões, às vezes até mesmo uma doutrina completa, que é acolhida
acrítica e passivamente pela tradição, pelo costume ou por uma autoridade de quem
aceitamos as ordens sem discussão, ‗acriticamente‘ e ‗passivamente‘, na medida em
que aceitamos sem verificá-la, por inércia, respeito ou temor, e a aceitamos com
tanta força que resiste a qualquer refutação racional, vale dizer, a qualquer refutação
feita com base em argumentos racionais. Por isso se diz corretamente que o
preconceito pertence à esfera do não racional, ao conjunto das crenças que não
nascem do raciocínio e escapam de qualquer refutação fundada num raciocínio.‖
(Idem: 103).
Para Allport (1971) o preconceito se refere a uma atitude de aversão ou
hostilidade utilizada contra uma pessoa que pertence a um grupo, em especifico,
simplesmente porque pertence a e esse grupo e se supõe carregue, ou traga as
características negativas distintivas desse grupo. O principal efeito do preconceito é
posicionar a vitima, ou grupo, em situação de desvantagem em função de estarem
fora dos padrões sociais de crenças, atitudes, comportamentos, ideologias,
costumes, valores, por meio de uma descaracterização em relação ao grupo
61
política, ascendência nacional ou origem social, que tenta por efeito destruir ou
alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou
profissão‖ Sobre a discriminação negativa contra as pessoas com deficiência, a
Convenção da Organização dos Estados Americanos (OEA) – ou Convenção
Interamericana para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as
Pessoas Portadoras de Deficiência, expressa que ―[...] o termo ‗discriminação contra
as pessoas portadoras de deficiência‘ significa toda diferenciação, exclusão ou
restrição baseada em deficiência, antecedente de deficiência, consequência de
deficiência anterior ou percepção de deficiência presente ou passada, que tenha o
efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por
parte das pessoas portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas
liberdades fundamentais.‖ (OEA, 1999, Art. I – 2; a). A Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência, expressa o seguinte, em seu art. 2°: ―‘Discriminação
por motivo de deficiência‘ significa qualquer diferenciação, exclusão ou restrição
baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o
reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as
demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos
âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro. Abrange todas
as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável.‖ (ONU,
2006). Com a finalidade de combater a discriminação negativa na sociedade, são
criados dispositivos legais, como os documentos da OIT e da OEA, reconhecidas
por um grande número de países membros desses órgãos, que se comprometem a
criar e aplicar legislações para proteger as pessoas com deficiência em situações
em que sejam suscetíveis de serem discriminadas negativamente, com o intuito de
estabelecer a igualdade de oportunidades.
O preconceito caminha por um continuum até chegar à condição extrema de
extermínio dos considerados diferentes. Nesse sentido, Allport (1962) propõe uma
escala para medir o grau de preconceito e discriminação em uma sociedade,
dividindo-a em níveis. Nível 1 – antilocução: quando um grupo majoritário denigre a
imagem de um grupo minoritário com base em representações sociais negativas
(estereótipos e imagens) desse grupo. Piadas e chacotas, consideradas como
inofensivas por um grande número de pessoas, podem se constituir como elementos
que propiciam o cenário para o surgimento de expressões mais contundentes de
preconceitos, ou criar o caminho para a discriminação. Nível 2 – esquiva: acontece
65
PRECONCEITO DISCRIMINAÇÃO
Uma ideia preconcebida que se constrói a respeito de algo ou
alguém, de caráter avaliativo, infundado, com conteúdo Em sua forma
emocional, e que pode se estender a todo um grupo ou categoria. negativa é a
Pode ser negativo ou positivo. efetivação prática
Diz respeito ao comportamento das pessoas. Por isso pode-se do preconceito,
punir a discriminação, ato expresso do preconceito, mas não se por meio de
consegue punir o preconceito. atitudes e ações
que visam
impedir pessoas
e grupos a
ATRIBUTO ESTEREÓTIPO gozarem de
Caracteriza e Padrões mentais com os quais um grupo direitos e
distingue o procura qualificar outro grupo como tentativa de igualdade à que
indivíduo. justificar as diferenças existentes entre eles. fazem jus por
Nasce com ele Nasce por meio de caracterizações que são força de lei.
ou é adquirido ao repetidas via automatismo. A agudização da
longo de sua De cunho cognitivo, de forma racional, tem a discriminação se
vida. função de fundamentar e justificar os faz presente nas
preconceitos, que estão na base (Allport, 1962). práticas de
segregação e
extermínio.
ESTIGMA
Surge a partir de uma relação entre atributo e estereótipo (Goffman, 2008).
São valores culturais criados estabelecidos que permitem identificar as
pessoas e estigmatizá-las (Ribas, 1986).
Fonte: O autor.
Fonte: O autor.
―outro grupo‖ em razão de condições de etnia, raça, religião, idade, posição social,
posição hierárquica em uma organização, deficiência, gênero, enfim, de inúmeras
situações com as quais se buscam justificar os elementos de segregação imputados
àqueles julgados diferentes. É a situação vivenciada por Aparecida quando começou
a trabalhar no Sistema FIEP, que apontou na entrevista, a aceitação pelos demais
colegas de trabalho. ―A aceitação. As pessoas olharem para você como uma pessoa
profissional, que tem diferença, mas não olhando para aquela diferença,
entendeu?‖5. A dificuldade de aceitação pelos colegas de trabalho, que representam
um grupo já estabelecido em termos de rotinas, tarefas, conhecimentos e valores
grupais, está diretamente ligada a diferença, à marca de distinção que passa a ser
considerada por esse grupo como algo fora dos padrões de normalidade até então
presentes no ambiente administrativo em que a pessoa com deficiência ou surda
passa a desenvolver suas atividades. Dolores, outra deficiente entrevistada,
apresenta situação semelhante pela qual passou o que reforça o ritual de
discriminação pelo qual passam as pessoas com deficiência no processo de
inserção no emprego: “Vou falar quando fui inserida no SENAI. Quando eu cheguei
ali a maioria foi legal comigo, mas o meu grupo, ali fui excluída bastante. Umas me
olhavam de lado, não conversavam comigo. Fiquei meio assim, sabe, como se fala?
Deixada ali, de lado, meio perdida, isolada, me deram um gelo. Ligava o computador
e ficava olhando para o computador, sem saber o que fazer, me ignoravam
bastante”.6
Nas situações vivenciadas por Aparecida e Dolores, a norma não estava em
algum regulamento ou manual da instituição, mas estava presente, implícita e
tacitamente nas relações informais de cada uma das equipes de trabalho em que
foram inseridas. Analisando os depoimentos acima, nota-se que a demarcação dos
limites das relações entre os membros de um grupo, definindo quem pertence ou
não a esse grupo pode se fazer por duas estratégias: pela via silenciosa expressada
no tratamento dispensado àquele ou àquela, considerados ―estranhos‖ ao grupo,
utilizando-se de táticas como isolar, não estabelecer comunicação; ou pela via
contundente que fere e expõe as diferenças entre um e outro.
5
Depoimento de pessoa com deficiência, coletado por mim em 13 de julho de 2011, na cidade de
Curitiba.
6
Depoimento de pessoa com deficiência coletado por mim em 14 de julho de 2010, na cidade de
Curitiba–PR.
68
coesão do grupo do qual fazem parte; uma forma de defesa deste grupo, caso
contrário as mesmas forças poderão destruí-lo.
Os depoimentos de Aparecida e Dolores, citados anteriormente demonstram,
ainda, as dificuldades que demarcam a diferença no processo de interação, ou de
sociação conforme Simmel (1983). O olhar dos ―normais‖ para o indivíduo não para
analisá-lo como profissional, mas como um deficiente que ali está na condição de
intruso. Aparecida tem problemas na fala o que torna visível sua limitação, tão logo
começa a falar, o que Goffman (2008) aborda especificamente quando trata da
intrusibilidade do estigma. Em razão dessa limitação, não se adaptou em sua
primeira experiência no Sistema FIEP, tendo de ser readaptada em outra equipe de
trabalho. Sua função era atender o público e foi considerada, e desqualificada por
sua superior imediata, com o qualificativo de inapta; usou-se como argumento o fato
dela não atender bem às pessoas.
Em Simmel (1983), ainda, a questão de se desqualificar o outro, pode ser
encontrada em mais um momento, quando ele aborda a ideia de que uma pessoa se
forma a partir do contato pessoal com a outra. Procura-se vê-lo e compará-lo a si
mesmo, pois a tendência é, em certa medida, ver aos demais de forma
generalizada, uma vez que não é capaz de representar plenamente uma
individualidade diferente da sua. Não se consegue, portanto, conhecer plenamente
o outro e diante desta incapacidade, a tendência é tecer conjecturas e passar a olhar
a todos e compará-los com o tipo ideal de ser humano que cada um cria em sua
mente, de acordo com seus valores. Tende-se ainda a projetá-los a partir de si
próprio, apesar da singularidade do outro que é desprezada, pois ao classificá-lo
diante daquilo que se compreende ou se entende como ideal, pode-se colocá-lo
abaixo de uma categoria que certamente não coincidirá com a sua totalidade como
ser humano. Forma-se do outro uma imagem que não coincide com a sua imagem
real e tampouco representa um tipo geral de ser humano, que pode pender para o
lado bom ou para o lado ruim. De certa forma, isto está em concordância com
Goffman (2008) a respeito da abordagem que faz sobre o desacreditado e o
desacreditável.
Conforme Simmel (1977), todos os indivíduos são fragmentos, não somente
do homem em geral, mas de si próprios. Constituem-se em iniciações, não somente
do tipo humano absoluto, não só do tipo de bom e de mau, mas também da
individualidade unida de seu próprio eu, que, desenhado por linhas ideais, rodeia
70
qual faz parte, para um grupo daqueles que lhe são iguais, estará próxima mesmo
quando estiver distante. ―Assim como o indigente e as variadas espécies de
‗inimigos internos‘, o estrangeiro é um elemento do próprio grupo. São elementos
que se, de um lado, são imanentes e têm uma posição de membros, por outro lado
estão fora dele e o confrontam.‖ (Idem: 183). Nesse confronto, muitas vezes
presente no silêncio, sem palavras, no olhar, na simples presença, é que se
desencadeia o processo de alijamento daqueles que nos são diferentes.
Para Simmel (1983), a vida acontece no dia a dia, nas relações e contatos
diários, os mais diversos, renovados, construídos e reconstruídos, entre as pessoas.
Fios de tal gênero são tecidos incessantemente. No microcosmo social encontram-
se ―[...] as interações que se produzem entre os átomos da sociedade, e que
somente são acessíveis ao microscópio psicológico; mas que produzem toda a
resistência e elasticidade, a variedade e unidade desta vida da sociedade, tão clara
e tão misteriosa.‖ (Idem: 72). Nesse aspecto pode-se perceber que o estigma social
em relação à deficiência é um processo que fica evidente na variedade da vida em
sociedade. Nas palavras do mesmo autor, ―estes processos primários, que formam a
sociedade com um material individual imediato, devem ser submetidos ao estudo
formal, junto aos processos e organizações mais elevados e complicados; devem
ser examinadas as interações particulares, que se manifestam em massa, mas às
quais não está habituada a atual concepção teórica, considerando-as como formas
constitutivas da sociedade, como partes da sociação. Sim, precisamente porque a
Sociologia as tem somente considerado por alto, por isso mesmo é conveniente
consagrar um estudo detido a estas modalidades de relação, aparentemente
insignificantes.‖ (Idem: 73). Vale, portanto, o esforço de se dedicar à compreensão
desses fenômenos, aparentemente insignificantes para a grande maioria do grupo
dos ―normais‖, mas de importância fundamental para o grupo em minoria
(estigmatizados), de forma a ressaltar e entender o que permeia o jogo das relações
entre os dois grupos.
A questão do estigma da deficiência no emprego pode ser vista sob o ângulo
do conflito presente na sociedade que é analisado por Simmel como algo positivo
em termos de resultado final para o grupo, pois que nascendo de fatores de
dissociação como ódio, necessidade, desejo, inveja – o conflito destina-se a resolver
divergências e conseguir unidade – os integrantes dos grupos contentores passam a
almejar a paz, a pressionar por isso e a reorganizar uma nova ordem.
72
outro local existirão grupos que se acharão melhores do que aqueles que
apresentem algum tipo de deficiência e lançarão sobre eles os atributos decorrentes
das marcas relacionadas ao estigma de ser deficiente.
Como se pode compreender a partir do que colocam Elias e Scotson (2000),
com grande profundidade será o processo de estigmatização que poderá afetar os
indivíduos marcados ao ponto destes passarem a crer que realmente são inferiores,
incompetentes, carentes de virtudes e de qualidades, o que lhes condiciona a
aceitarem o desempenho de atividades abaixo de suas reais capacidades.
Elias e Scotson (2000) descrevem como se dá o processo de estigmatização
que o grupo de estabelecidos desenvolve contra os outsiders. Segundo os autores,
uma constante nesse tipo de situação é o grupo de estabelecidos atribuir a si,
qualidades ou características humanas superiores que os qualifica em relação aos
de fora ou estranhos, além de excluí-los dos relacionamentos e contatos sociais,
controlando-os por meio da fofoca elogiosa ou depreciativa (dependendo da
situação de julgamento dos estabelecidos). Em Winston Parva o domínio do grupo
de estabelecidos se fundamenta na coesão advinda simplesmente de um elo que os
unia: a antiguidade, ou tempo de residência no local. Isto os tornava diferentes
perante os recém-chegados e lhes possibilitava construir o processo de
estigmatização. A coesão existente no grupo fazia toda a diferença, pois envolvia
famílias que se conheciam há duas ou três gerações, em contraste com os demais
que não conheciam os antigos residentes e não se conheciam entre si. Com base na
elevada coesão e controle social, o grupo de antigos residentes conseguia reservar
para os seus, os cargos importantes nas organizações de Winston Parva. É possível
a partir dessa condição, de um grupo estabelecido em relação ao outro que julga
inferior, fazer uma leitura com relação às pessoas com deficiência nas organizações
na qual são inseridos, analisando-se os cargos que ocupam na hierarquia e da
importância que lhes é atribuída no contexto empresarial. Poucos são as pessoas
com deficiência que ocupam cargos elevados, ou de destaque, nas empresas. Estes
estão reservados àqueles que preenchem as normas organizacionais. Como diz
Goffman (2008) quando define o homem dentro da normalidade, que tenham bom
aspecto, ou em outras palavras, que não causem impacto por sua diferença. No
caso em estudo, nota-se no Sistema FIEP que as pessoas com deficiência, que
fizeram um curso de capacitação para trabalharem como auxiliar administrativo, não
foram enquadrados nesse cargo, mas em um inferior: auxiliar de serviços.
76
Elias e Scotson (2000), explicam que o não contato com o grupo outsider, por
um membro do grupo dos estabelecidos, tem toda a conotação emocional de se
evitar a ―poluição‖, pois um o estranho representa o não cumprimento às regras, às
normas e aos tabus coletivos; existe a ameaça à integridade, à identidade e à
defesa do grupo dos estabelecidos, bem como ao seu próprio orgulho e identidade
de pertencer a um grupo de indivíduos superiores. Adicionalmente, os autores
apontam que os outsiders, para os estabelecidos, carregam uma conotação
anômica, e afim de não serem infectados, evita-se o contato com os mesmos.
Tal situação foi por mim identificada quando entrevistei Aparecida. Verifiquei
por meio da sua ficha de identificação ter indicado grande perda visual, 15 graus de
miopia. Ao lhe perguntar se fazia uso de lente de contato, confirmou explicando:
“Uso lente por ter muito preconceito, muito preconceito mesmo. Quando uma pessoa
vê que você tem algum probleminha a tendência dela é se afastar, acha que aquilo é
contagioso, não entende que não é, que todo mundo tem um problema ou outro”. 7
Segundo Elias e Scotson (2000), em algumas situações, aqueles que
transgridem a norma estabelecida no grupo, de não contato com um indivíduo
considerado estranho ou perigoso, como decorrência da infecção anômica, poderá
ficar sob suspeita e observação por estar rompendo as normas e os tabus do seu
grupo, podendo sofrer sanções, mesmo que não declaradas, além de ter seu status
rebaixado diante dos seus iguais; perderá a consideração e o respeito dos demais
membros do grupo ao qual pertence, e principalmente, não poderá mais
compartilhar daquele valor superior de humanidade que o grupo de estabelecidos se
atribui. A análise empreendida por Elias e Scotson (2000), possibilitou-me entender
as relações existentes no Sistema FIEP, entre gestores, colegas de trabalho e
pessoas com deficiência ou surdas.
Ao longo deste capítulo foram abordadas as visões da deficiência como um
processo histórico e social cuja perspectiva permite desvendar a questão da
inserção de pessoas deficientes ou surdas no emprego e seus desdobramentos.
Antes, porém, cabe traçar em linhas gerais os principais aspectos das lutas
empreendidas pelas pessoas com deficiência, ou surdas, no Brasil objetivando
conquistar direitos e reconhecimento social – uma luta travada contra os estigmas
da deficiência física, da deficiência intelectual, da surdez e da cegueira.
7
Depoimento de pessoa com deficiência, colhido por mim no dia 13 de julho de 2011, na cidade de
Curitiba–PR.
79
e nos Estados Unidos, esses centros tinham como objetivo propiciar ao paciente o
retorno à vida em sociedade. Dentre essas iniciativas estão a fundação da
Associação de Assistência à Criança Defeituosa (AACD) em 1950, na cidade de São
Paulo, atualmente Associação de Assistência à Criança Deficiente; a Associação
Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR), em 1954, que criou a escola de
reabilitação para a formação de fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais com
vistas a suprir uma carência desses profissionais no Brasil, com início de suas
atividades em 1956; o Instituto Baiano de Reabilitação (IBR) na cidade de Salvador,
no ano de 1956; a Associação Fluminense de Reabilitação (AFR) de Niterói, em
1958. Alguns hospitais se tornaram referência no tratamento e reabilitação das
pessoas vitimadas pela poliomielite, como o Hospital da Baleia e o Hospital Arapiara
na cidade de Belo Horizonte no estado de Minas Gerais. (LANNA JUNIOR, 2010;
MAIOR, 1997).
Retomando a discussão proposta no início deste capítulo, durante a década
de 1950, segundo Lanna Junior (2010), surgem no Rio de Janeiro as primeiras
associações com fins eminentemente econômicos para defender os interesses dos
cegos associados que trabalhavam como: ―[...] vendedores ambulantes, artesãos
especializados no fabrico de vassouras, empalhamento de cadeiras,
recondicionamento de escovões de enceradeiras e correlatos‖. (Idem: 39). A
associação tinha como objetivo, ainda, melhorar a posição desses indivíduos na
sociedade. (LANNA JUNIOR, 2010).
Apesar da primeira associação de cegos ter surgido em 1893 pela união de
um grupo formado por ex-alunos do Instituto Benjamin Constant (IBC), com o nome
de Grêmio Comemorativo Beneficente Dezessete de Setembro, tendo como
principais finalidades: comemorar a data de fundação do instituto, desenvolver ações
no sentido de promover a educação dos cegos, proporcionar o apoio aos ex-alunos
do IBC com relação à empregabilidade e desenvolver ações que sensibilizassem a
sociedade contra o preconceito, as associações que surgem na década de 1950 se
diferenciam em seu modo de atuar. São marcadas, pela dubiedade, pois
reproduzem as práticas assistencialistas que reforçam o estigma e a discriminação e
ao mesmo tempo, procuram combater frontalmente esses códigos culturais. (LANNA
JUNIOR, 2010).
Associações surgidas durante a década de 1960 resultam de uma ação dos
cegos no sentido de debater a Campanha Nacional de Educação para os Cegos e o
81
integradas por pessoas com deficiência. Decidiu-se, ainda, que as entidades que
participaram do 1º Encontro Nacional ocorrido em Brasília seriam consideradas
membros natos da ―Coalizão‖. Essas decisões causaram profundas controvérsias
entre as entidades integrantes da ―Coalizão‖, contrapondo aquelas criadas por
pessoas sem deficiência, para assistência, reabilitação e amparo das pessoas com
deficiência e as criadas pelas pessoas com deficiência. Evidenciavam-se as
questões do para e do de que tinham se tornado o centro do debate no 2º Encontro
Nacional de Entidades de Recife. (CRESPO, 2009; LANNA JUNIOR, 2010).
O 3º Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes que era para
ocorrer em 1982 aconteceu de 13 a 17 de julho de 1983, em São Bernardo do
Campo, com o tema: ―Organização Nacional das Pessoas Deficientes‖. Nesse
encontro duas tendências contrárias ficaram visíveis na apresentação das propostas
de encaminhamento para a organização do movimento. Uma propunha a criação da
Federação Nacional como órgão de representação única do movimento, a outra
proposta defendia que cada deficiência deveria se organizar de forma independente,
nacionalmente, para tratar de suas questões específicas. Justificavam essa posição
apontando que a estrutura de um movimento único não permitia aprofundar as
questões que diziam respeito a cada um dos grupos em particular, e que as
deliberações e decisões ficavam restritas a poucos grupos de pessoas, situações
que possivelmente seriam corrigidas se a proposta fosse aprovada. Para a
discussão de questões envolvendo interesses em comum seria criado o Conselho
Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes, mediante a extinção da Coalizão,
assim que o Conselho entrasse em funcionamento, o que não se efetivou. A
proposta inicial de atender a todos mediante a unicidade do movimento, perdeu
espaço, prevalecendo a implantação das entidades nacionais representativas dos
movimentos por tipos de deficiência. (CRESPO, 2009; LANNA JUNIOR, 2010).
Outro marco importante a ser destacado, na luta do movimento das pessoas
com deficiência, diz respeito ao Dia Nacional de Luta das Pessoas Deficientes,
definido no ano de 1982. Não existe um consenso a respeito da data específica de
criação desse dia tão importante para as pessoas com deficiência .(CRESPO, 2009).
Para Sassaki (1997) ele foi criado no encontro nacional das entidades que se
realizou em São Bernardo do Campo, por sugestão do Movimento pelos Direitos das
Pessoas Deficientes (MDPD). A justificativa para a escolha do dia 21 de setembro foi
a de que o encontro estava sendo realizado na primavera e próximo ao Dia da
91
a gente não tem ainda uma política, uma rotina de procedimentos. A gente tá muito
ainda no caseiro com relação a isso. Não dá pra negar. É muito no individual. [...] As
coisas estão, ainda, no início e funcionam na direção de atender as necessidades
quando elas aparecem, pois não existe um planejamento nesse sentido. Não está
institucionalizado. A gente tem feito um trabalho mais individual e mais caseiro”. 8
O discurso sobre diversidade no âmbito organizacional ganha força, também,
em razão da presença crescente das denominadas minorias na composição da força
de trabalho. Segundo Pereira e Hanashiro (2007), em 2020 o grupo majoritário nas
empresas não será mais constituído somente por homens brancos, mas por uma
variedade de trabalhadores. Por exemplo, na Austrália, cresce a participação
feminina na força de trabalho, com previsões de 60% de participação em 2011. Isso
já pode ser sentido no Brasil com o aumento da participação das mulheres nos
níveis gerenciais, de 18% em 2003 para 31% em 2005; dos afrodescendentes no
quadro de executivos, de 1,8% em 2003 para 3,4% em 2005 e o aumento da
participação das pessoas com deficiência, de 3,5 em 2003 para 13,6% em 2005.
Ao se abordar sobre diversidade no contexto organizacional, como
esclarecem Pereira e Hanashiro (2007), deve-se ter claro que o termo é complexo
por não ser imediato e nem unívoco, em razão de que existem pelo menos, três
definições. A primeira delas, a mais utilizada, seria baseada na identidade social, a
partir das diferenças entre grupos. A segunda compreende a diversidade a partir da
identidade pessoal, o que significa considerar as características pessoais que
incluem dimensões como background, personalidade e estilo de comportamento. A
terceira definição, embora pouco explorada, considera a diversidade a partir de uma
mistura na qual são contempladas não apenas as diferenças entre os indivíduos,
mas também similaridades. Do ponto de vista dessas autoras, escrevem elas: ―O
que delimita o conceito de diversidade sob uma ou outra vertente é o que faz com
que as definições sobre o termo sejam diferentes em significado. Na primeira
vertente, o termo diversidade é definido pelas diferenças de um grupo em relação a
outro, o seu principal pressuposto é de que a diversidade é identificada por meio de
atributos ou categorias que fazem essa diferenciação. Na segunda vertente, o termo
é definido pelas diferenças estabelecidas entre os indivíduos; e a terceira vertente é
definida pelas diferenças e similaridades dos diferentes indivíduos, seu principal
8
Depoimento da representante do programa de inserção (foco interno) coletado por mim em 01 de
julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
100
que todas as pessoas fossem tratadas de forma igual nos empregos contratados
pelo governo federal, sem distinção de raça, cor, sexo, religião, ou nacionalidade.
As ações afirmativas, sob o ponto de vista de Lawrence (2002) e de Willert
(2010) foram reafirmadas como políticas por meio da Lei dos Direitos Civis de 1964,
que tornou ilegal a discriminação racial e sexual. Em 1965, o presidente Lyndon B.
Johnson criou o Conselho Presidencial sobre Igualdade de Oportunidades
(President‘s Council on Equal Opportunity) e determinou a exigência que fosse
incluída nos contratos com todos os empreiteiros e subempreiteiros do governo, uma
cláusula que garantisse a igualdade de oportunidades de emprego para as minorias.
No ano de 1967, as mulheres passam a ser incluídas nas ações. Pauley e College
(2008) entendem que Johnson teve o mérito de ampliar o sentido do termo ação
afirmativa, ao utilizá-lo para redefinir o significado da ideia de igualdade de
oportunidades.
Além dos Estados Unidos, explica Mascarenhas (2008), as ações afirmativas
se estenderam à Europa, principalmente em razão da imigração diversificada. Para
Glazer (2003), com finalidades mais parecidas com as norte-americanas, foram
implantadas em outros países de imigração inglesa como, Austrália, Canadá, Nova
Zelândia, Índia e África do Sul. Thomas Junior (2004) coloca que no seu início as
ações afirmativas estavam voltadas para superar o passado de discriminação contra
os negros, depois foram ampliadas para atenderem às mulheres norte-americanas.
O papel das ações afirmativas foi se direcionando para a proteção aos grupos
minoritários passíveis de discriminação que estariam fora das leis gerais, destinadas
a tratar todos indistintamente, pois as leis votadas pela maioria poderiam oprimir a
minoria, como esclarece Fonseca (2008), ao comentar o Art. 27 – Trabalho e
Emprego, da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
Com a mesma percepção, expõe Gomes (2001), ―[...] as ações afirmativas
podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter
compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à
discriminação racial, de gênero ou de origem nacional, bem como para corrigir os
efeitos presentes da discriminação praticada pelo passado, tendo por objetivo a
concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais [...].‖
(Idem: 40). Em vista disso, as ações afirmativas estão baseadas na concepção de
que os fenômenos sociais surgem a partir das interações sociais, não se
constituindo em fenômenos naturais, o que justificaria a intervenção política na
103
forma a organização. Comentam Pereira e Hanashiro (2007) que cada parte desse
mosaico ―[...] é conhecido, aceito e tem um lugar na estrutura‖ (Idem: 5). Na visão de
Kandola e Fullerton (1994 p. 49), Mosaic, diz respeito à: “Misson and Value;
Objective and fair processes; Skilled workforce, sware and fair; Active flexibility;
Individual focus; Culture that empowers.” (Idem: 49).11
De acordo com Pereira e Hanashiro (2008), na prática isso representaria:
―Missão e valores que procurem valorizar as necessidades de todos os empregados
e não somente as dos considerados diversos; Objetividade e processos justos, em
que o recrutamento e seleção, promoções e avaliações sejam auditados para
assegurar que não há protecionismo e sejam justos para todos; Reconhecimento
das habilidades e de seu desenvolvimento em toda a força de trabalho como
necessários para o crescimento da organização; Flexibilidade de modelos de
trabalho, de locais de trabalho, de benefícios para todos e não somente para alguns
grupos específicos; Foco no indivíduo; Um modelo de cultura que possibilite aos
indivíduos tomar decisões, participar e ser encorajados a ouvir e a agir entre eles.‖
(Idem: 3).
Na abordagem em que a gestão da diversidade está focada na valorização
das diferenças entre as pessoas considerando as características grupais a que os
indivíduos pertencem, as diferenças de identidade social são relevantes e devem ser
Levadas em consideração a ―[...] partir das características dos grupos sociais a que
os indivíduos pertencem, tais como raça, gênero etc.‖ (Idem: 4). Nessa abordagem
considera-se que a competitividade organizacional será alcançada a partir da
valorização das diferenças e dos diferentes grupos sociais. O pressuposto básico
dessa abordagem é que nem todos têm a mesma igualdade de oportunidades e que
em função disso, estas devem ser criadas e ter o seu acesso facilitado. Como
consequência, as políticas de recursos humanos deverão contemplar as diferenças
grupais. (Idem).
No Brasil as práticas de gestão da diversidade vêm sendo difundidas e
incentivadas principalmente pelas empresas de origem norte-americanas. Para as
empresas brasileiras, verifica-se que a divulgação destas práticas ocorre
12
Depoimento colhido por mim com a representante do programa de inserção do Sistema FIEP (foco interno), no
dia 01 de julho de 2011, na cidade de Curitiba-PR.
13
Idem
109
14
Idem
110
15
Depoimento colhido por mim com a representante do de inserção do Sistema FIEP (foco externo) , no dia 01
de julho de 2010, na cidade de Curitiba-PR.
112
Revelam Diniz et. al. (2007) que a principal crítica dos defensores do modelo
social da deficiência era a de que esse documento aproximava a deficiência das
doenças, revelando-se num dos seus aspectos negativos, o que afastava, portanto,
o debate do campo sociológico. Os críticos do documento demonstraram que se
tratava de uma tentativa camuflada de retomar a medicalização do corpo com
lesões. Caracterizava-se como um documento que não fora elaborado pelos
defensores dos direitos das pessoas com deficiência, eivado de erros e vieses,
principalmente quanto às concepções de normalidade para os deficientes. O ICIDH
sofreu revisões em 1990, quando contou com uma participação bastante intensa das
diversas entidades acadêmicas e dos movimentos sociais das pessoas com
deficiência.
A discussão permitiu a contraposição entre o modelo médico e o modelo
social da deficiência, resultando na publicação da International Classification of
Functioning, Disability and Health (ICF), aprovada pela Resolução WHA 54.21 de 22
de Maio de 2001 (DINIZ, 2007, SQUINCA, 2008). A ICF também conhecida como
ICIDH-2 ou Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde
(CIF), publicada em 2002 tem o objetivo geral de apresentar uma classificação com
a finalidade de unificar e padronizar, bem como oferecer uma estrutura de trabalho
para a descrição da saúde e dos estados a ela relacionados. A OMS (2004) aponta
que ―A classificação define os componentes da saúde e alguns componentes do
bem-estar relacionados com a saúde (tais como educação e trabalho).‖ (Idem: 7).
A partir dessa classificação, que ainda sofreu muitas críticas, a deficiência
deixou de ser considerada simplesmente como consequência de doenças, tornando-
se uma questão pertencente aos domínios da saúde como uma tentativa de se unir
os modelos médico e social da mesma. (DINIZ et. al., 2007; SQUINCA, 2008). Farias
e Buchalla (2005) lembram que a CIF está baseada em uma abordagem
biopsicossocial que busca incorporar os componentes de saúde nos níveis corporais
e sociais. A OMS (2004) expressa que ―[...] um domínio é um conjunto prático e
significativo de funções relacionadas com a fisiologia, estruturas anatômicas, ações,
tarefas ou áreas da vida.‖ (Idem: p.7). Em sua estrutura básica, a CIF tem duas
partes com dois componentes cada. Na primeira parte que trata da funcionalidade e
incapacidade, estão agrupados: componentes funções do corpo e estrutura do
corpo, atividades e participação. Na segunda parte que aborda os fatores
contextuais, estão agrupados: fatores ambientais e fatores sociais. Esses
115
A Organização das Nações Unidas (ONU) entende que ―[...] pessoas com
deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física,
mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras,
podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de
condições com as demais pessoas.‖ (Resolução A/61/106, de 13/12/06 – ONU),
entendimento este em conformidade com o modelo social da deficiência.
Em termos de Brasil, para efeitos de reserva legal de cargos previstos pela
Lei de Cotas (Lei 8.213/91), segundo o Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE),
a definição de deficiência segue a constante no Decreto nº 3.298 de 20 de dezembro
de 1999, atualizado pelo Decreto nº 3.956, de 08 de outubro de 2001, alinhados à
―Convenção nº 159/83 da OIT e à Convenção Interamericana para a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência,
também conhecida como Convenção da Guatemala, promulgada pelo Decreto nº
3.956/2001. Ambas conceituam deficiência, para fins de proteção legal, como uma
limitação física, mental, sensorial ou múltipla, que incapacite a pessoa para o
exercício de atividades normais da vida e que, em razão dessa incapacitação, a
pessoa tenha dificuldades de inserção social.‖ (MTE-SIT, 2007, p.20). Todavia,
lembra Ribas (2007), ―[...] as definições que encontramos na legislação brasileira
atual [...] não toma como referência os documentos da OMS. Portanto, em se
tratando da maneira de compreender as pessoas com deficiência, a legislação
brasileira vigente e as publicações internacionais encontram-se em dissonância.‖
(Idem: 18).
O texto legal mais atual, no Brasil, a respeito de deficiência, é o Decreto n°
5.296, de 02 de dezembro de 2004 que fez uma reanálise das definições de
deficiência. Mas, de acordo com Ribas (2007), ―[...] ainda que em alguns aspectos
seja um avanço legal, ele sustenta-se numa visão médica da deficiência e não numa
visão sociocultural. Assim não nos convida a relativizar. Simplesmente tacha, rotula.‖
(Idem: 18). A legislação brasileira, além dos textos da OMS, está em dissonância
com a Resolução A/61/106, de 13/12/06 da ONU – Convenção dos Direitos das
Pessoas com Deficiência, apesar de em conjunto com seu Protocolo Facultativo,
terem sido ratificados pelo Congresso Nacional em 09/07/2008 pelo decreto
legislativo nº 186/2008.
Assim, de conformidade com o Decreto n° 3.298/99, o qual regulamenta a Lei
n° 7.853, de 24 de outubro de 1989 e dispõe sobre a Política Nacional para a
119
16
Depoimento de pessoa com deficiência, colhido por mim no dia 13 de julho de 2010, na cidade de
Curitiba–PR..
123
17
Depoimento da representante do programa de inserção de pessoas com deficiência, (foco externo)
colhido por mim no dia 01 de julho de 2011, na cidade de Curitiba–PR.
124
18
Depoimento colhido por mim em 13 de julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
19
Idem.
126
conviver com a negação social que passa a lhes ser imposta, decorrente dos vários
estereótipos do estigma social da deficiência constroem uma visão negativa da sua
deficiência, principalmente, quando passam a procurar emprego. Isso fica claro nas
palavras de Dolores: Foi quando comecei a procurar trabalho que passei a conviver
com o preconceito em relação à deficiência. Inicialmente na SIEMENS, quando
preenchi uma ficha e fiz uma entrevista para emprego e no momento de me chamar
a pessoa me falou que não daria certo, porque aquele cargo não condizia com as
minhas qualificações, mas era para eu aguardar que entrariam em contato por
telefone para vagas futuras. Até hoje o tal telefonema não aconteceu. 20
No processo de desenvolvimento da auto estigmatização e a reafirmação do
estigma social da deficiência, as pessoas com deficiência ou surdas, se deparam
com um dilema. Ou assumem a fachada de dependentes da sociedade ou assumem
a fachada de lutadoras e causam espanto. Ambas as situações podem se inserir no
que Goffman (2011) entende por ―preocupação com a fachada.‖ (respeito próprio)
que o indivíduo constrói no processo de interação com os demais e a preocupação
com a linha (o padrão mediado por atos verbais ou não com o qual um indivíduo
expressa sua opinião sobre uma dada situação, e por meio desta emite uma
avaliação sobre os demais participantes e a si mesmo).
Sob perspectiva de assumir ou não a condição de trabalhadoras assalariadas
os depoimentos de Aparecida e Dolores, podem indicar dois caminhos que estão
inseridos em uma mesma análise de Goffman (2011) e que dizem respeito ao
processo de interação e preservação da fachada, ―[...] quanto à sociedade, se a
pessoa estiver disposta a estar sujeita a um controle social informal – se esta estiver
disposta a descobrir, a partir de dicas e olhadelas e pistas cuidadosas qual é o seu
lugar e mantiver esse lugar – então não haverá nenhuma objeção a que ela mobílie
esse lugar do jeito que quiser, com todo o conforto, elegância e nobreza que sua
sagacidade obtenha para ela. Para proteger esse abrigo, ela não precisa trabalhar
duro, nem se juntar a um grupo, nem competir com alguém; ela precisa apenas
tomar cuidado com os juízos expressos aos quais ela se coloca numa posição de
testemunhar. Algumas situações, atos e pessoas terão que ser evitados; outros
menos ameaçadores, não devem ser levados muito longe. A vida social é uma coisa
ordenada e não atravancada, porque a pessoa voluntariamente fica longe dos
20
Depoimento colhido por mim em 14 de julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
127
lugares e tópicos e momentos em que ela não é desejada e onde poderia ser
depreciada.‖ (Idem: 47-48).
Ao assumir a fachada de pessoa com deficiência, ou surda, vivendo com o
auxílio do governo e sob o controle informal da sociedade no sentido de ter
reconhecida a sua fachada de que não pode ser uma pessoa produtiva em razão de
sua limitação, a pessoa em tais condições construirá linhas de participação nos
grupos sociais com os quais se relaciona ou se manterá afastada, o máximo deles,
para evitar os constrangimentos que coloquem em risco a sua fachada ou sofrer
discriminações. Entretanto, ao agir assim, contribuirá para reforçar o estigma
daquele que vive na dependência da sociedade e que para ela não contribui de
forma produtiva.
Construir e assumir a fachada de pessoa com deficiência, mas inserida no
processo produtivo, e ao contrário do que Goffman (2011) colocada, terá que
trabalhar duro para participar de algumas atividades empresariais. Dolores relata o
que ocorria com ela nesse sentido, quando estava sendo treinada em uma empresa
que trabalhava antes de vir para o Sistema FIEP: [...] algumas não gostavam de me
ensinar. Elas queriam que você pegasse a orientação dada na hora. Então tinha
duas que, até eu aprender, sofri muito com elas. [...]. Mas a Cláudia, que era a
encarregada de me ensinar era muito ruim. Gritava, me xingava de burra e de outras
coisas.21
Esse trabalhar duro, apontado por Goffman (2011), inclui entender as
olhadelas, as dicas e pistas relativas à escolha realizada pela pessoa com
deficiência que poderão ser contraditórias, estimulantes ou desestimulantes. No
processo produtivo, por exemplo, poderá estar colocando em ameaça outros que
com ela concorrem por uma determinada vaga ou cargo, e estes, poderão
desenvolver estratégias e linhas de defesa, muitas vezes depreciativas, baseadas
nos estereótipos que procuram reforçar o estigma da deficiência ligado à
ineficiência, à incapacidade, baseados no temor que desenvolvem diante de uma
pessoa com deficiência ou surda.
Em ambos os caminhos, a pessoa deficiente ou surda sofrerá o controle
informal dos grupos sociais em que está inserida. Porém existe ainda outro tipo de
controle a que estão sujeitos os deficientes e os surdos denominado por Goffman
21
Idem.
128
22
Depoimento colhido por mim em 14 de julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
129
O termo deficiente não deve ser aplicado à pessoa na sua totalidade, viés que
infelizmente acontece no processo produtivo, podendo condenar uma pessoa
nessas condições ao que Goffman (2008) designa por ―carreira moral distorcida‖. A
deficiência deveria ser compreendida como a indicação de uma limitação para uma
determinada atividade, mas não para todas. Infelizmente as pessoas nessas
condições passam a ser vistas como totalmente incapazes.
Em razão das exigências e da rapidez na obtenção de resultados nas
empresas, a visão em relação às pessoas com deficiência e às surdas é a de que
não conseguirão atender às exigências e não conseguirão alcançar as metas nos
mesmos patamares das chamadas pessoas normais. Relaciona-se, destarte,
eficiência humana e pessoal com normalidade física. Quando alguém com
deficiência ou surda está empregada e consegue obter desempenho igual ou acima
das demais, desde que respeitadas as limitações, a maioria destas demonstra
surpresa pelo resultado alcançado pelas pessoas com deficiência ou surdas.
Geralmente, o que embasa esse discurso que trata da admiração, do exemplo, da
melhoria do clima organizacional ao se trabalhar com uma pessoa com deficiência
ou surda é a visão estereotipada de que essas pessoas não conseguiriam, por sua
deficiência, alcançar os resultados que alcançam.
No caso das pessoas surdas, a compreensão da sua condição remete à
igualdade com os chamados normais, em termos de sentimentos e dificuldades
pelos quais passam. Na visão de Luiza, ser uma pessoa surda é ser normal como
qualquer outra, ter sonhos, objetivos, dificuldades. Quanto à barreira de
comunicação, existem várias maneiras de conseguirmos nos comunicar com as
pessoas além dos sinais, por exemplo, escrita e gestos.23 O depoimento expressa
que, com relação aos surdos, a grande barreira, a grande fraqueza que impede o
maior relacionamento com o mundo dos ouvintes, ainda é a língua, a comunicação,
o mesmo comenta Joana na sua entrevista: [...] o que às vezes é complicado
quando a pessoa conversa comigo e fala rápido, não consigo fazer a leitura labial,
então peço que escreva, então entendo e respondo escrevendo também. 24 Em outro
momento, trata situações de treinamento, eventos, ou reuniões coletivas, nas
instituições do Sistema FIEP, quando as pessoas surdas não contam com a
presença de um intérprete em LIBRAS. Tento fazer leitura labial, observo os slides
23
Depoimento colhido por mim em 10 de agosto de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
24
Depoimento colhido por mim em 10 de agosto de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
130
ou pergunto alguma coisa para a minha tutora, e ela escreve para eu ler. Em Libras,
não tem nada.25
Apesar de Luiza e Joana apontarem a superação da barreira da comunicação
entre surdos e ouvintes com outras formas de comunicação (escrita, leitura labial), a
situação constrange, nem tanto às surdas, mas também os colegas de trabalho.
Essa situação aparece na entrevista da tutora Kátia, que se sente ―mal‖ por tentar se
comunicar com uma pessoa surda e não conseguir, ―ter medo de errar os sinais e
fazer papel de boba,‖ indicando a necessidade de se oferecer treinamento em
LIBRAS periodicamente. Nesse contexto, é necessário entender que para os surdos,
a LIBRAS é a sua língua, tendo na língua portuguesa a segunda língua. Quando for
possível compreender isso, se modificará o modo de agir em relação aos surdos.
Deste modo, o processo de sua inserção no emprego poderá ser facilitado.
A situação de ser pessoa com deficiência e trabalhadora, ao mesmo tempo
indica para Aparecida que alguém em tais condições é uma pessoa esforçada, diz
ela: O mundo do trabalho é capitalista. [...] Você tem que realizar as coisas para
ontem. Você tem que correr, tem que atingir as metas, tem que “se virar nos 30”
para conseguir os resultados esperados. Ninguém vai lhe dizer, “aí, olha você
produziu tanto, tá bo”. Nesse mundo do trabalho não tem isso. 26
As palavras de Aparecida revelam, conforme explica Aranha (2003), que no
modo de produção capitalista, ―[...] as relações de produção são organizadas de
forma a utilizar-se mecanicamente do fazer do homem, e não do seu pensar e ativa
participação [...].‖ (Idem: 8). Isso pode, segundo a autora, levar o indivíduo a um
processo de coisificação, o que implica a ser considerado apenas como uma
engrenagem no processo produtivo, perfeitamente substituível quando não
corresponder mais aos interesses da empresa.
Para Eliane, as pessoas com deficiência são cobradas tanto quanto as sem
deficiência. Você tem que ser taxativo naquilo que eles estão pedindo né, fazer bem
feito e ter o potencial para fazer, porque se você falar “não, olha não tenho condição
de fazer”, provavelmente eles vão procurar outra pessoa para fazer por você, ou
ajudá-lo. Acho que ajudar não seria tão normal, porque se eu preciso de você para
ajudar é porque eu não consigo fazer aquilo que eu tenho que fazer. 27
25
Idem.
26
Depoimento colhido por mim em 13 de julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
27
Depoimento colhido por mim em 14 de julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
131
A principal dificuldade que uma pessoa com deficiência sente ao ser inserida
no emprego, e isso acontece também no Sistema FIEP, é a sensação de estar
―encaixado‖, ―pertencer‖ à equipe na qual foi colocada. Aparecida, um das minhas
entrevistadas, sofreu com as implicâncias da chefe, em razão da sua deficiência na
fala, pois no local em que estava trabalhando tinha que se relacionar com o público.
Expõe ela: Quando eu comecei a trabalhar aqui, eu trabalhava em outro setor. Eu
não me acostumei lá. Lá eu tive problemas, sofri com o preconceito por causa do
meu jeito de falar. Só que quando eu vim para a área que estou hoje, os horizontes
se abriram, porque aqui o ambiente é maior, as pessoas são mais comunicativas. Lá
as pessoas olhavam para minha diferença, não para mim como profissional.28
28
Depoimento colhido por mim em 13 de julho de 2010, na cidade de Curitiba-PR.
132
explícito ao comentar que: [...] discriminação e preconceito, isso tem em todo lugar.
Se você tiver um problema [deficiência], em todos os lugares tem. Aqui isto não é
explícito. Mas não se criou, ainda, dentro do Sistema FIEP a cultura da inclusão das
pessoas com deficiência. Também tem o fato, que eles têm que lidar, com as
pessoas de fora que adentram, que chegam ao Sistema FIEP e olham as pessoas
com deficiência com um preconceito velado, mas é preconceito.29 Nessa fala, dois
aspectos são importantes. Um é o preconceito, mesmo que não explícito, dos
colegas, o outro está relacionado aos públicos externos que se relacionam com o
Sistema FIEP e, em muitos casos, não estão preparados para serem atendidos por
uma pessoa com deficiência, e isso lhes choca.
A questão do preconceito com relação às pessoas com deficiência, por parte
dos seus colegas, é algo que está presente nas falas de algumas das pessoas com
deficiência e das surdas. Uma delas conta que, ao terminar as suas tarefas, sempre
pergunta para os outros da equipe se querem ajuda ou se tem algo que possa fazer
e sempre ouve que não precisa se preocupar, como se a tivessem despachando. A
―invisibilidade‖ é outro preconceito oculto aplicado às pessoas com deficiência e às
surdas. A deformidade do corpo, para algumas pessoas, pode ser algo tão brutal
que é preferível ignorar aquele que a apresenta, tornando-o invisível, do que encará-
lo como um indivíduo, que apesar da sua limitação (ou limitações) é uma pessoa
com direitos e deveres iguais aos daquele que o defronta.
Um desses direitos é o de aprender e desenvolver novas atribuições, mas
para isso se concretizar têm que conviver com a desconfiança sobre as suas
capacidades ou com a falta de tempo dos colegas para ensinar-lhes como executar
certas atividaes. Joana, em seu depoimento, queixou-se que nesse processo sente
que os colegas de trabalho ―dispensam a sua ajuda‖ nota como se a estivessem
considerando uma pessoa sem suficiência intelectual para compreender e auxiliar
(geralmente as pessoas surdas são vistas, pelas pessoas sem deficiência, como
deficientes intelectuais). Também deixa claro a dificuldade dos demais colegas em
ensiná-la: [...] então me ofereço para ajudar, mas me dizem que não precisa, ou que
é difícil e não vão saber explicar para mim, que não preciso me incomodar. Sinto
que acontece isso porque sou surda, eles não têm tempo para me explicar, eu fico
quieta, digo tudo bem. Mas gostaria de aprender mais. As coisas que já aprendi até
29
Idem.
134
agora, consigo fazê-las com tranquilidade, por isso quero aprender serviços
diferentes. No início, explicaram o que deveria fazer. Só agora que tenho pedido
para aprender tarefas diferentes, eles dizem que não dá tempo para ensinar que
depois me explicam, ou que não preciso me preocupar se já acabei o meu
trabalho.30 O descrédito em relação à capacidade da pessoa surda assumir alguma
tarefa é expresso por Joana. O recado tácito do grupo lhe é transmitido: ―permaneça
no seu lugar‖, quando entendido , aparece na sua atitude: ―fico quieta, digo tudo
bem.‖ A solicitação de aprendizagem de coisas novas é descartada, principalmente,
pela barreira da comunicação existente entre o grupo e a surda. O comodismo dos
membros do grupo conduz à subutilização da capacidade da pessoa surda.
Outra faceta do processo de inserção no Sistema FIEP aparece no
depoimento de Dolores, ao revelar o que ocorre com seus colegas de equipe.
Segundo ela: Já estão acostumados. Já levaram o choque. O choque ocorre no
começo, depois se acostumam. O contato possibilita conhecerem a outra pessoa
melhor, eles conhecem seus pontos fracos e seus pontos fortes.31
Essa adaptação se explica, em parte pelo fato, conforme Goffman (2008) que
nas suas interações sociais um estigma é visível a todos.
Este choque, ao qual Dolores se refere, é o impacto que causa o corpo com
alguma deformidade, falta ou insuficiência, que fuja ao padrão de normalidade
conhecido e aceito pelos olhares de outros. Assim, a convivência e o contato diário
amenizam a convivência com o diferente. As interações cotidianas permitem
conhecer melhor o colega de trabalho, até mesmo analisá-lo. O que ainda está
presente nos colegas de equipe das pessoas com deficiência é a desconfiança com
relação ao estranho, ao diferente, que chega, praticamente um ―estrangeiro‖, usando
a expressão de Simmel (1983), na consideração do grupo. Os membros de algumas
equipes já se acostumaram por contarem entre eles com pessoas que têm alguma
limitação física, sensorial ou intelectual. No entanto, outras equipes apenas
convivem de forma distante e se sentirão impactados quando passarem pelo
processo de inserção.
A constituição de equipes de trabalho, prática evidente no Sistema FIEP,
segue uma tendência que acaba por favorecer a constituição de laços de lealdade
fracos, ou formas passageiras de associação, que escreve Sennet (1999) ―[...] se
30
Depoimento colhido por mim em 10 de agosto de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
31
Depoimento colhido por mim em 14 de julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
135
32
Depoimento colhido por mim em 10 de agosto de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
33
Depoimento colhido por mim em 14 de julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
136
34
Depoimento colhido por mim em de 13 de julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
35
Idem.
137
trabalho ali, entendeu? Essas coisas machucam a gente, mais ainda quando você é
sensível, a sensibilidade em si estraga tudo36.
Nas duas situações existe um distanciamento entre a chefia e suas
funcionárias com deficiência em termos de relacionamento, talvez pela falta de
sentarem e conversarem abertamente, ou mediante a interveniência da coordenação
da área de um representante do programa responsável pela inserção das pessoas
com deficiência no Sistema FIEP de forma a resolver os conflitos. Importante que as
chefias conheçam os membros das suas equipes de trabalho, principalmente as
pessoas deficientes. Uma das entrevistadas, por exemplo, tem agravado seu quadro
de deficiência quando está com seu sistema nervoso abalado, como consequência
fica afastada do trabalho o que baixa sua produtividade e reforça, diante dos seus
colegas, o estereótipo de que as pessoas com deficiência são problemáticas, só
causam problemas, não podem contar com elas, caracterizando o estigma da
deficiência no emprego.
Outro depoimento fala a respeito da necessidade da chefia acompanhar os
anseios de crescimento das pessoas com deficiência ou surdas e coloca que pensa
em desenvolver coisas e projetos diferentes como forma de crescer, não apenas
profissionalmente na instituição, mas também em importância e valorização pelos
demais colegas de trabalho. Explica que precisou elaborar determinada atividade em
seu computador para uma colega de trabalho, mas que não tinha o ―software‖ ou a
ferramenta necessária, que lhe foi repassada por essa colega por email e questiona,
será que não colocaram no seu computador uma ferramenta que tem nos
computadores dos demais funcionários por que não acreditam na sua capacidade ou
por que acham que ela nunca precisaria executar tal atividade em razão do cargo
que ocupa?
Fica a questão: essa postura seria uma política, uma prática ou uma falha
institucional, ou uma falha da chefia que não verificou isso? Se configurar uma
política institucional, seria contrária à política de inserção de pessoas com
deficiência no Sistema FIEP. Se for uma responsabilidade da chefia demonstra falta
de preparo para tratar com a sensibilidade e suscetibilidade dos seus subordinados,
incluindo-se pessoas com deficiência e as surdas, pois deveria verificar se todos
estão recebendo as mesmas condições para desenvolvimento de suas atividades,
36
Depoimento colhido por mim em 14 de julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
138
37
Depoimento colhido por mim em 14 de julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
139
fazer meus sobrinhos ficarem quietos para eu descansar até mais tarde. Ela fala
assim: “Tua tia trabalhou a semana inteira, deixe-a descansar”. Então, é uma coisa
gostosa de ouvir. Que a pessoa nota que você está trabalhando, está sendo útil.38
Esses depoimentos indicam que o descrédito em relação às pessoas com
deficiência e o estigma social a partir do qual estão marcadas ao longo de suas
vidas, também aparece no emprego que possibilita o confronto com situações de
discriminação.
A importância, a história e a tradição do Sistema FIEP conferem ao emprego
dessas pessoas com deficiência um status que lhes garante maior reconhecimento
público. Márcia, de certa forma, evidencia isso em seu depoimento: Ah, as pessoas
ficam admiradas de eu estar trabalhando no Sistema FIEP, por causa do tamanho
[da instituição] [...].39
Nesses contatos são demonstrados o preconceito contra as pessoas com
deficiência e as surdas que no fundo se expressa na visão: ―nossa como ela, uma
pessoa com deficiência, pode estar trabalhando nesse local?‖
Márcia ressalta a importância da Lei de Cotas na destinação de vagas para as
pessoas com deficiência. Aqui [onde trabalho] é muito bom, graças à lei [de cotas]
que obriga as empresas à contratação de pessoas com deficiência eu estou aqui,
por que na época quando eu tinha 23 anos não tinha oportunidade de emprego para
te favorecer. Sempre tive vontade de trabalhar, sempre; depois eu vi que a lei
mudou a contratação de pessoas com deficiência.40
A partir do depoimento de alguém que está vivenciando o processo de
inserção, e que passou pela discriminação de ser rejeitada pelo mercado de
emprego, é possível notar que a Lei de Cotas vem cumprindo um papel muito
importante na inserção de pessoas no emprego. Com relação às atividades
desempenhadas no emprego, a avaliação de Márcia se aproxima das visões de
suas colegas: Eu me sinto bem no trabalho, graças a Deus, gosto de trabalhar, me
sinto bem porque eu aprendi muitas coisas, como para não gritar e tratar bem as
demais pessoas, de forma educada. Coisas que não tinha aprendido antes.41
Dessa forma, fica clara a importância do emprego na vida das pessoas com
deficiência ou surdas, conferindo-lhes um papel na sociedade, bem como, a
38
Depoimento colhido por mim em 14 de julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
39
Depoimento colhido por mim em 14 de julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
40
Depoimento colhido por mim em de 14 de julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
41
Idem.
140
42
Depoimento da representante do programa de inserção (foco interno) colhido por mim em 01 de
julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
141
43
Depoimento da representante do programa de inserção (foco externo) colhido por mim em 01 de
julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
142
limitações, uma pessoa com deficiência ou surda for considerada inadequada para o
desempenho de uma determinada tarefa ou atividade.
Em função disso, Paula e Hanna têm buscado mostrar aos gestores do
Sistema FIEP e das suas empresas afiliadas que as pessoas com deficiência ou
surdas enfrentam muitas restrições em várias situações e a obtenção de emprego
seria uma delas. Uma das restrições, as ausências, um dos pontos bastante
apresentados pelos gestores para não contratar pessoas com deficiência ou surdas,
são rebatidas por Paula e Hanna, informando-os que não somente esse grupo de
pessoas tem faltas elevadas ao trabalho, mas que existem empresas cujas taxas de
absenteísmo dos funcionários sem deficiências são maiores do que dos funcionários
com alguma limitação. Além disso, se o absenteísmo entre eles crescer é necessário
diagnosticar as causas disso, minimizá-las ou eliminá-las. Às vezes taxas elevadas
de absenteísmo indicam as dificuldades de locomoção e a distancia entre o local de
moradia e a empresa; problemas de saúde; de relacionamento com a chefia ou
colegas; inadaptabilidade às funções que realiza, às máquinas e equipamentos;
dificuldade de comunicação; dificuldade com o horário. Uma série de aspectos que
deve ser investigada e que envolve também todos os funcionários, não apenas as
pessoas com deficiência.
No tocante à baixa escolaridade das pessoas com deficiência, ou surdas,
argumentam com os representantes empresariais, que as falhas na formação das
pessoas com deficiência ou surdas decorrem do sistema escolar que, geralmente,
não estão aparelhadas para inseri-las, ou para atender as suas necessidades
específicas. Como consequência, muitos deles abandonam a escola. Assim, as
pessoas deficientes e pessoas surdas, se têm baixa qualificação profissional, essa
situação mostra que o grau de escolaridade exigido por cursos profissionalizantes
rebate na oferta de emprego, também. Portanto, as situações de vida se inter-
relacionam e se afetam reciprocamente. Quando não se contrata alguém porque tem
baixa qualificação profissional ou porque não tem escolaridade, desconsidera-se que
uma oportunidade de emprego possibilita adquirir qualificação pela experiência na
execução de tarefas.
Segundo as entrevistadas, se chegou a um nível tal de exigência de
escolaridade que para desempenhar determinadas atividades básicas, por exemplo,
de limpeza, exige-se o segundo grau completo. Existem, ainda, as desculpas e
discussões sobre a Lei de Cotas. Hanna comenta: Infelizmente, pelo que a gente
143
conhece do nosso país, se não tivesse lei, iam levar mais 20, 30 anos pra este
processo [de inserção] ou até mais para ele se concretizar. Então, o que, que a
gente também trabalha com os gestores é se esse pessoal não está qualificado,
vamos qualificá-los. A gente qualifica aprendiz, a gente qualifica “trainee”. Então por
que não outro grupo, que também precisa de qualificação? E também a gente
lembra que tem muitas funções numa companhia, que não precisa de grandes
qualificações. 44
O grau educacional é importante, mas a contratação de funcionários nas
funções, como por exemplo, zeladoria, ou limpeza, não há essa exigência, o que
importa seria a habilidade demonstrada no desempenho de certas tarefas e
atividades. No entanto, isso requer uma atitude mais flexível na contratação de
assalariados nas empresas.
Esses comentários demonstram a resistência quanto à obrigatoriedade de
contratação para atender as exigências da Lei de Cotas. Considerando a
qualificação exigida, Hanna explica que o Sistema FIEP, por meio do SENAI/PR
passou a desenvolver um projeto que visa qualificar as pessoas para o emprego,
inicialmente não destinado às pessoas com deficiência ou surdas, mas que passou a
atender bem as necessidades desse público, com cursos de menor duração e de
aspecto bem técnico. Segundo Hanna, esses cursos proporcionam [...] uma
formação inicial em mecânica, em manutenção predial, manipulação de alimentos.
Então eles já dão uma condição. Para esses cursos o nível de escolaridade mínima
é a quarta série do ensino fundamental, isso porque na maioria dos cursos técnicos,
eles pedem uma escolaridade maior. Então já é uma forma de você começar a
qualificar e dar oportunidade [a outro nível de trabalhadores].45
Além dos aspectos relacionados ao grau de escolaridade e a qualificação
profissional, Tanaka e Manzini (2005), apontam também, o descumprimento das
determinações presentes na legislação, o descrédito referente à capacidade real das
pessoas com deficiência para o exercício das funções a eles atribuídas, que se
caracterizam em muitos casos por atividades simples, que praticamente não exigem
qualificação profissional. Enquanto Lino e Cunha (2008) chamam a atenção para
outros aspectos que contribuem para a não contratação de pessoas com deficiência,
por exemplo, a obrigação das empresas terem de substituir uma pessoa deficiente
44
Idem.
45
Idem.
144
por outra nas mesmas condições, em caso de demissão; a alegação de que tem
dificuldade para encontrar profissionais com deficiência que estejam aptos ao
desempenho das funções, resultado do pouco investimento na qualificação de
pessoas em tais condições; a crença de que não tendo qualificação profissional não
apresentará resultados compatíveis com o ritmo de produtividade determinado pela
empresa; a exigência de contratar um determinado número de pessoas com
deficiência quando a empresa deve criar novas vagas ou demitir outros profissionais
sem deficiência; as dificuldades em adaptar as instalações físicas para extinguir as
barreiras arquitetônicas. Diante disso, algumas empresas patrocinam cursos de
capacitação profissional com a finalidade de preparar as pessoas com deficiência
para a posterior contratação como funcionário, se surgirem vagas. Outras preferem
pagar as multas em razão de não contratarem pessoas deficientes como preconiza a
lei.
Importante, ainda, destacar a situação em que as pessoas com deficiência e
as surdas tem nível elevado de escolaridade e qualificação, mas não são
contratadas. Qual a causa? Hanna comenta: Então a gente tem os dois lados [no
mercado de emprego]: tem as pessoas com um alto grau de escolarização que
também não conseguem. Que daí é aquela coisa cai por terra o discurso de que: ah,
se tiver escolarização então ele está pronto. Tem aqui um com escolaridade e vocês
não estão contratando.46
Portanto, quando a escolarização é alta, qual seria a justificativa para a não
contratação? O jornal O Estado de São Paulo, em matéria publicada no caderno
empregos do dia 22 de maio de 2011, expõe uma questão que vem desafiando a
gestão empresarial de pessoas com deficiência. Segundo Danilo Castro, consultor
desse artigo, ―o gestor não sabe como lidar com esses profissionais na empresa‖ ou
seja, profissionais de nível superior com alta qualificação. Eles sofrem, mesmo
assim, discriminação e carregam o estigma da deficiência, seja no emprego, seja na
busca de um emprego. Se para as empresas inserir pessoas com deficiência ou
surdas com baixa escolaridade ou qualificação profissional já é um desafio, o
contrário se torna um desafio ainda maior.
Os depoimentos relatados até aqui, se somam aos de uma funcionária da
Agência Regional do Trabalhador de Ponta Grossa – PR, da Secretaria Estadual do
46
Idem.
145
47
Idem.
146
48
Esse é o pensamento das representantes dos programas de inserção do Sistema FIEP. Como
lembra Lumatti (2004), assim como outras leis, a Lei de Cotas não surgiu sem uma base de reflexão
proveniente da consciência social de um grupo, refletindo um momento histórico, em que o
movimento das pessoas com deficiência exerceu pressão política e fizeram reivindicações ―para que
se instituísse no plano público a garantia dos seus direitos.‖ (Idem: 9).
147
A vida produtiva das pessoas inseridas no Sistema FIEP, e por extensão nas
empresas filiadas, está ligada ao desenvolvimento de tarefas rotineiras, como fica
evidente na fala de Paula, representante do programa interno de inserção, quando
comenta: Isso, exatamente, rotineira. Porque, a gente tem um público muito técnico
no prédio. Então a gente teve que pensar muito estrategicamente onde colocaria as
pessoas. Aí elas ficaram realmente naquelas atividades assim rotineiras, naquelas
coisas que a gente precisa de alguém pra fazer, [mas] acabava relegando e
deixando pra daqui a pouco.49
A execução de tarefas rotineiras no processo produtivo das empresas
capitalistas, por pessoas com deficiência ou surdas é recorrente. Toffler (1980) fala
que em sua autobiografia Ford registrou que quando começou a fabricar o Modelo T,
eram necessárias 7.882 operações para produzi-lo e ―[...] destas 7.882 tarefas
especializadas, 989 exigiam ‗homens fortes‘, fisicamente hábeis e praticamente
homens perfeitos‘; 3.338 tarefas precisavam de homens de força física apenas
‗comum‘, a maioria do resto podia ser realizada por ‗mulheres e crianças crescidas‘
e, continuava friamente, ‗verificamos que 670 tarefas podiam ser preenchidas por
homens sem pernas, 2.637 por homens com uma perna só, duas por homens sem
braços, 715 por homens com um braço só e 10 por homens cegos‘. Em suma, a
tarefa especializada não exigia um homem inteiro, mas apenas uma parte. Nunca foi
apresentada uma prova mais vivida do quanto à superespecialização pode ser
brutalizante.‖ (Idem: 62).
Relacionada ao trabalho das pessoas com deficiência existe, nas empresas,
preferências por tipos específicos de deficiências no processo de recrutamento e
seleção, apesar de ser uma prática condenada por lei. Dentre os fatores que podem
afetar as atitudes dos empresários na contratação de pessoas com deficiência, ou
surdas, estudados por Unger (2002), está o tipo e, ou a gravidade da deficiência do
trabalhador ou candidato. Greenwood, Schriner e Johnson (1991) mostram que, na
indústria, os gestores estão mais dispostos a contratar pessoas com deficiência
física do que as pessoas com deficiência intelectual ou surdez, que afetem o
49
Depoimento da representante do programa de inserção (foco interno) colhido por mim em 01 de
julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
148
50
Idem.
149
qualificação dos candidatos; pouca oferta de mão de obra; baixa escolaridade dos
candidatos.
51
Idem.
150
deles fazem as coisas que a gente literalmente não gosta de fazer, aquelas coisas
que exigem maior concentração.52
A convivência seria o fator decisivo na mudança de perspectiva sobre as
pessoas com deficiência, quando se considera principalmente, as dificuldades de
deslocamento da residência até o emprego; no próprio local de emprego e na
superação para o desempenho de atividades que, às vezes, se tornam desafiadoras.
No processo de interação e reflexão são construídas e reconstruídas as
representações sobre a deficiência e as pessoas que trazem limitações físicas ou
cognitivas. Uma postura que se estenderá à avaliação do desempenho de cada
uma. É o que expressa, Paula: Então, eles começam a ver a competência no
trabalho, começam a ver a pessoa [não a deficiência}, começam a ver o quanto ele
aprende convivendo com o que é diferente, ele [a pessoa com deficiência] não se
resume naquela questão pejorativa da deficiência, mas ele é uma pessoa diferente.
Aceitar a diferença, não a deficiência. E se surpreender como muitos se
surpreendem, e eles falam: [...] eles fazem melhor do que eu.53
O que está em jogo seria o desafio de se trabalhar com o diverso, tendo em
vista a proposta de gestão da diversidade, aceitando e respeitando as diferenças.
No entanto, as pessoas com deficiência não são modelo ou referência para
execução de certas tarefas, ou seja, se elas fazem por que na posso executar. Essa
avaliação pode expor as pessoas com deficiência e as surdas nas suas interações
no emprego acarretando dificuldades para sua adaptação e aceitação.
Com Goffman (2008), pode-se dizer que ao mesmo tempo em que se busca
inferir uma série de imperfeições das pessoas deficientes ou surdas, a partir da sua
imperfeição original, busca-se atribuir outros tipos de atributos. O autor fala de
atributos desejáveis, mas não desejados, que estão ligados ao aspecto sobrenatural
como sexto sentido ou percepção. Nessa mesma linha, pode-se entender esses
atributos com os quais se tenta ―premiar‖ as pessoas com deficiência que as coloca
na condição de sobre-humanos pelo que fazem ou realizam, sobretudo no campo de
trabalho. A fala de Goffman (2008) se torna mais clara quando Paula comenta: Isso,
isso é uma coisa que eu ia comentar aqui sobre produtividade. Que é assim, a
produtividade deles é diferente. Nem todos têm uma produtividade assim: ah, 100%.
Não são 100%. Mas, o que eles produzem é melhor até do que a gente produz...
52
Idem.
53
Idem.
152
Então assim, quando eles apostam naquilo eles fazem com qualidade realmente,
com vontade de fazer aquilo muito bem feito.54
A visão sobre o desempenho das pessoas com deficiência revela, ainda, uma
tentativa compensar, de certa forma, as pessoas com deficiência pelas
discriminações sofridas. Corre-se o risco de se desenvolver uma expectativa que
transcende à capacidade real do indivíduo com deficiência, que poderá marcá-lo
negativamente caso não corresponda a tal expectativa. Afinal, afora a sua limitação
física, como já foi comentado, ele é um indivíduo que passa pelos mesmos
processos emocionais de uma pessoa normal.
Nesse processo de inserção no emprego é importante respeitar as diferenças,
compreender que cada pessoa tem uma história por trás de sua deficiência ou
surdez, necessitando de compreensão, paciência e tolerância até sentir-se
realmente inserida no Sistema FIEP. A esse respeito, Paula comenta que [...] cada
pessoa com deficiência é única. Então assim, você vai fazer a inclusão, você tem
que pensar que: uma que você consiga fazer inclusão efetiva, nossa você vai tá
fazendo um baita de um trabalho, porque eles são muito individuais e cada um com
sua história, cada um com sua limitação, a sua competência.55
Apesar de o tratamento ser dispensado de forma igual, para todos, como já foi
especificado, a área de gestão de pessoas das instituições que formam o Sistema
FIEP tem buscado atender as pessoas com deficiência de forma diferenciada em
suas necessidades. Contudo, apesar de exporem que cada um tem a sua
competência, que é tratada de forma homogênea, e coletivamente todas as pessoas
com deficiência do Programa Aprendendo com a Diversidade, edição 2007, estão
desempenhando funções de auxiliar de serviços. Será que nenhum dos
selecionados e contratados têm competência para ocupar o cargo de auxiliar
administrativo para o qual se prepararam no curso de capacitação? As práticas,
portanto, são contrárias ao discurso apresentado. A ―inclusão efetiva‖ também não
acontece, pois a questão da acessibilidade não é levada em consideração, além do
que, na prática, verifica-se que nos relacionamentos entre os colegas de trabalho,
como já foi discutido na parte que trata sobre a visão das pessoas com deficiência
na relação com os colegas de trabalho, os deficientes são desconsiderados quando
se oferecem para realizar outras atividades ou para auxiliar os demais integrantes
54
Idem.
55
Idem.
153
das equipes de trabalho em atividades outras. Isso é não realizar ―inclusão efetiva‖ e
nem acreditar na competência de cada um. Apesar do discurso de que cada um é
único, o tratamento nas relações diárias de trabalho é homogêneo e isso inclui as
pessoas com deficiência e as pessoas surdas: todos acabam sendo deficientes (no
sentido de eficiência para o desempenho de tarefas).
56
Depoimento colhido por mim em de 10 de agosto de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
154
57
Idem.
155
adaptar. O temor demonstrado por Mariana está ligado à aceitação ou não pelos
colegas, da pessoa diferente.
O cenário, o local em que a equipe atua descrito pela tutora, ligado à
formalidade nas relações decorrente das atividades desenvolvidas pela equipe, em
que estão presentes diversas representações e fachadas que fazem parte do
processo de interação. Goffman (2009) denomina de representações, ―Toda
atividade de um indivíduo que se passa num período caracterizado por sua presença
contínua diante de um grupo particular de observadores e que tem sobre estes
alguma influência.‖ (Idem: 29). Fachada se refere a todo ―[...] equipamento
expressivo de tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo
indivíduo durante sua representação.‖ (Idem: 29). A fachada é composta de partes
padronizadas, como o cenário que compreende a ―[...] a mobília, a decoração, a
disposição física e outros elementos do pano de fundo que vão constituir o cenário e
os suportes do palco para o desenrolar da ação humana executada diante, dentro ou
acima dele.‖ (Idem: 29). O cenário é estático e precisa sempre estar adequado para
garantir a representação pelos atores que dele se utilizam. Em outro momento,
indicando o cenário como algo que se refere às partes cênicas do equipamento
expressivo, usa o termo fachada pessoal para se referir aos outros itens que
compõem o expressivo e que estão mais intimamente ligados, mais próximos ao ator
e que são levados aonde este vai. ―Entre as partes da fachada podemos incluir os
distintivos de função ou da categoria, vestuário, sexo, idade e características raciais,
altura e aparência, atitude, padrões de linguagem, expressões faciais, gestos
corporais e coisas semelhantes.‖ (Idem: 31). Numa empresa, em decorrência da
profissão (administradores, advogados, analistas de sistemas) e dos níveis de
hierarquia, diversas são as fachadas que servem como identificadores dos
indivíduos em relação às equipes que pertencem.
Assim na situação em análise, o ambiente formal é composto por um cenário
que procura transmitir o clima ―fechado‖, formal, onde as pessoas devem ser
tratadas com o designativo relativo ao cargo. O vestuário, de caráter social e,
portanto formal, procuram demonstrar o respeito que se deve ter para com aqueles
que trabalham naquele setor.
De tal forma, esses aspectos apontados por Goffman (2009) são importantes
e criam uma aura de respeito, neste caso em específico, que a tutora questiona-se
se ―essa pessoa‖ poderia se enquadrar naquele local. Se os membros daquele
156
58
Idem.
59
Idem.
157
preciso evitar que se transforme em prejuízo definitivo contra o outro.‖ (Idem: 91). No
seu discurso a tutora demonstra como ela vê as pessoas com deficiência, dos quais
procura separar a sua tutelada. Mas e se tivesse contatos diretos e próximos com as
demais pessoas deficientes, sua opinião não poderia sofrer alterações?
Em sua fala, evidencia-se o preconceito com relação às escolas especiais e
as pessoas com deficiência que frequentam escolas especiais. Passa uma noção de
que escolas especiais são direcionadas para pessoas com deficiência intelectual,
quando existiam escolas para cegos e para surdos. Atualmente, muitas crianças
com deficiência intelectual, as cegas e as surdas estão sendo inseridas no ambiente
escolar de qualquer escola com o intuito de desenvolver uma educação inclusiva e
não mais segregativa. Apesar de todas as dificuldades e críticas que essa prática
tem possibilitado, alguns avanços estão se concretizando. A pessoa citada pela
tutora é um exemplo disso. Estudar na escola ―dos normais‖ possibilitou-lhe
desenvolver a fala. Caso estivesse estudado em uma escola para pessoas surdas,
teria desenvolvido a LIBRAS. Ela domina, hoje, as duas línguas – o português e a
LIBRAS.
Mariana, observando o comportamento das pessoas com deficiência e
pessoas surdas apresenta sua visão sobre eles. Diz ela: Eu acho o pessoal que tem
Síndrome de Down super alegre, com a autoestima lá em cima. Entretanto, as que
têm deficiência auditiva estão assim, sempre em depressão. Tem uma que está
sempre reclamando... Elas têm isso. Eu fico pensando, talvez porque elas se sintam
discriminadas. Porque elas não têm nenhum problema mental. Elas são como eu,
como você e as pessoas não as olham como uma pessoa igual a mim. Entendeu? 60
Os estereótipos sobre os diferentes tipos de deficiência se fazem presentes
nesse fragmento de discurso. Martins (2002) a esse respeito aponta que o
comportamento das crianças com Síndrome de Down (SD) origina um estereótipo
que não tem ligação com o real, pois a sua forma de comportamento é única e tem
diferenças de personalidade e temperamento como qualquer outro pessoa. No
entanto as ideias pré concebidas do comportamento infantil que remetem à doçura,
afetividade, calma e alegria pouco se relaciona com as crianças com essa e outras
síndromes. As mesmas observações aparecem em Schwartzman et al. (2003) e
Rodriguez (2004), que chamam a atenção para o fato das crianças com SD
60
Idem.
158
61
Idem.
62
Idem.
159
fatos. É ainda a etiqueta que aparece primeiro aos nossos olhos e nos faz
desconsiderar todos os elementos da identidade pessoal e social.‖ (Idem: 117).
As pessoas com deficiência ou surdas, na visão da tutora Mariana, não tem
seu potencial explorado como deveriam ter, em algumas equipes, isto é, [...] não é
feito muita coisa para a pessoa evoluir. Ficam limitados. Se vai fazer aquilo, vai fazer
para o resto da vida. Não exploram a capacidade da pessoa, o que pode ser feito
como com qualquer um.63
E confessa que, inicialmente, tinha receio de atribuir a sua tutelada,
determinadas tarefas para a execução externa. Mas ponderou que as pessoas com
deficiência ou surdas se deslocam, muitas vezes, de regiões muito distantes do local
de trabalho, portanto, devem viver com autonomia. Assim, estava tendo um excesso
de zelo ao não permitir que assumisse certas atividades que, mais tarde, passou a
executar com primor.
Mariana, também, destaca que a inserção dessa pessoa na sua equipe serviu
para ―quebrar o gelo‖, quando todos aceitaram o desafio. A partir daí a equipe ficou
mais unida e passaram a enxergar a pessoa deficiente de forma bem diferente, com
admiração e respeito.
Dentre as pessoas com deficiências, as com limitações múltiplas ou
limitações de ordem intelectual são as que sofrem maior discriminação. Na maioria
das vezes, as que apresentam limitação intelectual são vistas como ―idiotas‖,
―imbecis‖. Outrora, eram chamados de ―retardados‖, ou a sua limitação era
confundida com doença mental, considerados como loucos. Tudo concorre para
deixá-los à margem do processo de inserção no emprego, provavelmente
segregados em uma instituição voltada ao atendimento de crianças ―especiais‖,
rótulo que recebem diante dos desafios familiares a serem enfrentados na sua
condição de filhos. Em geral o preconceito se manifesta num sentimento de pena
quando uma família recebe um filho com limitação intelectual. As diferentes formas
dessa limitação podem afetar uma pessoa e muitos não dão crédito às
potencialidades individuais e, assim, são estigmatizados. Essa situação remete à
questão: em que medida o domínio e execução de tarefas rotineiras seria preciso o
uso pleno de capacidades intelectuais e físicas? Teria Henry Ford razão?
63
Idem.
160
64
Idem.
161
destaca o papel da tutoria que apoia as pessoas com deficiência, orientando sobre o
vocabulário a ser usado, o comportamento dispensado aos demais, à chefia e aos
colegas.
Essa experiência permite-lhe analisar a vida por outro prisma, comparando as
pessoas com e sem deficiência e, descobrindo que todos, de uma forma ou de outra,
tem problemas, em muitos casos, mais sérios do que uma limitação física, sensorial
ou intelectual. Comenta Mariana: por exemplo, tem um monte de gente que trabalha
junto comigo e toma remédio controlado [...]. Tem pessoa que é dependente do
remédio, se não vai ao médico e fica sem, começa a passar mal, não consegue nem
trabalhar.65
Kátia, outra tutora, explica que nunca teve problemas com situações que
envolvem diferentes tipos de deficiência ou surdez. Os limites relacionados com as
pessoas com deficiência são enfrentados por ela comparando com outras situações,
que segundo ela com relação a quem [...] baba, ou usa fralda. Eu acho tão pequeno
isso, essas atitudes, porque essa é uma questão externa, de higiene, de não sei o
que. Por que, meu Deus! Um dia a gente vai ficar tudo igual, não é? Todo mundo vai
ter odor, é ou não é? Às vezes em vida mesmo acontece isso de sofrer algo e ficar
em situação difícil.66
Essas observações sobre o convívio com pessoas com deficiência se
complementam demonstrando a visão sobre a deficiência e sobre as pessoas com
deficiência.
Conviver com pessoas com limitações físicas, surdez ou limites intelectuais
não significa mudar radicalmente de vida, mas implica a aceitação da diferença,
respeitando suas peculiaridades compreendendo que cada um, ao seu modo, tem
algo a contribuir. Infelizmente, não é sempre assim na vida cotidiana, quando se
permitiria às pessoas com deficiência desenvolver todas suas capacidades. No
jargão popular, ―sempre se está com um pé atrás‖ esperando o deslize, o erro, a
falta, o não cumprimento das metas ou alcance dos objetivos. No primeiro discurso,
no de Mariana, surge mais uma faceta de estereótipo relacionado à deficiência.
Estereótipo que se expressa tanto pelos deficientes quanto pelos não deficientes: o
de que todos apresentam algum tipo de deficiência. Isso é uma forma de minorar, ou
65
Idem.
66
Depoimento colhido por mim em de 10 de agosto de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
162
tornar a visão sobre o estigma da deficiência mais aceitável, mais próximo dos não
deficientes.
A visão de que uma pessoa com limitação física é ―normal‖, é uma visão que
tenta justificar e reordenar os próprios valores a respeito da deficiência. De tal forma,
que se passa a duvidar, ou pensar sobre a vida, além dos limites impostos pela
deficiência, incluindo nesse aspecto a sexualidade. Duvida-se até que uma pessoa
com deficiência tenha vida sexual, estereótipo que também atinge as pessoas
idosas.
Em outra direção, busca-se desenvolver uma visão positiva a respeito da
vida, de valorização das coisas e das condições que tem, considerando as
condições advindas da deficiência. Constrói-se uma situação de que a vida poderia
ser pior, e isso não deixa de negativar a pessoa com uma limitação qualquer que
seja e a situação que passa em razão dessa limitação. Isso está presente no que
não é dito, nas reticências, no diálogo que não aparece de forma expressa, mas
aparece nas entrelinhas.
Em linhas gerais, os depoimentos coletados indicam que o emprego
proporciona às pessoas deficientes ou surdas, a condição de autonomia e lhes
faculta o sentido de utilidade, de estar contribuindo em alguma coisa para a
sociedade da qual fazem parte. Segundo essa perspectiva, o emprego no Sistema
FIEP, como decorrência da importância da instituição no Estado do Paraná, lhes
confere algum destaque nos círculos de suas relações pessoais. Luiza, por exemplo,
quando lhe perguntei se o emprego no Sistema FIEP modificou alguma coisa em
sua vida, expressa: Eu acho que sim, minha vizinha observou que comecei a sair de
casa, me arrumava, e então a minha mãe, toda feliz foi contar para a vizinha que eu
havia começado a trabalhar aqui, e ela ficou muito feliz por mim. Sinto-me bem em
poder ajudar em casa, com as despesas. [...] As pessoas do meu trabalho me
elogiam, me falam que estou muito bonita, então eu acho que mudou sim 67.
No tocante ao relacionamento com os demais colegas de equipe,
supervisores e chefias, nota-se um distanciamento por parte de alguns,
principalmente das pessoas surdas em função da dificuldade de comunicação.
Nessa mesma dimensão de análise, as pessoas sem deficiência que trabalham com
67
Depoimento colhido por mim em 10 de agosto de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
163
68
Depoimento da representante do programa de inserção (foco externo) colhido por mim em 01 de
julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
166
Percentual
Vinculos
Formais PCD Def. Def. Def. Def. Def.
Ano (Milhões) (milhares) Físicos Audit. Visuais Mentais Mult. Reabilit. Total
2007 37.607.430 348.818 0,93 175.377 98.236 10.275 8.407 5.839 48.907 347.041
2008 39.441.566 323.200 0,82 177.834 79.347 12.428 10.864 3.517 37.916 323.168
2009 41.207.546 288.593 0,7 157.805 65.613 14.391 13.120 3.506 34.158 288.593
2010 44.068.355 306.013 0,7 166.690 68.819 17.710 15.606 3.845 33.343 306.013
Fonte: Adaptado da RAIS - 2007 a 2010/MTE.
aos outros.‖ (Idem: 19-20). E nesse jogo de forças e de relações, no caso aqui do
emprego imposto pela legislação, ―[...] há sempre algum fato para provar que o
próprio grupo é ‗bom‘ e o outro é ruim.‖ (Idem: 23). Isso afeta, inclusive, a visão das
chefias a respeito das pessoas com deficiência ou surdas, como aparece no diálogo
com Luiza, uma das surdas entrevistadas, se referindo ao tratamento que lhe é
dispensado pela chefia imediata: Ela diz: É diferente, sinto que me tratam
[consideram] inferior em relação aos meus colegas ouvintes.69
Considerando a imposição legal, por meio das ações afirmativas surgem as
questões: até que ponto se pode observar a chamada ―inclusão‖ nas empresas e
como acontece isso, tendo em vista que é oferecido às pessoas com deficiência e
sem deficiência? Em outros termos, as pessoas com deficiência recebem o mesmo
tratamento em relação à progressão na carreira, isonomia salarial, bônus e prêmios
para cargos e funções, que o destinado às pessoas sem deficiência, ou será que o
estigma social pela condição da deficiência os coloca em situações inferiorizadas
nas organizações em que estão sendo inseridos via emprego? Isso remete,
novamente, ao questionamento de Danilo Castro: ―como trabalhar com pessoas com
deficiência‖?70
Essa situação atinge quem tem baixa escolaridade e todas as pessoas com
deficiência. Isso demonstra o despreparo por parte da grande maioria das empresas
no sentido de integrar essas pessoas de modo produtivo. Nesse contexto a
contratação visaria apenas o cumprimento das cotas sem atender as suas
necessidades e demandas (ARAÚJO; SCHMIDT, 2006; HANSEL, 2009;
NASCIMENTO et al., 2011), como acontece também com os funcionários que não
estão preparados para recebê-las. A fala de boa parte das pessoas com deficiência
ou surdas, e uma das tutoras do Sistema FIEP por mim entrevistadas, apontam
nessa direção. Kátia, a tutora, demonstra a falta do treinamento em LIBRAS que
dificulta a comunicação, o que lhe deixa insegura para tratar com sua tutelada.
Quanto à Lei de Costa, Pastore (2001) diz que ―A simples imposição de uma
obrigatoriedade não garante que ela seja cumprida, e muito menos que as empresas
venham a oferecer, de bom grado, condições condignas de trabalho para os
69
Depoimento colhido por mim em 10 de agosto de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
70
Matéria publicada no Caderno Empregos do Jornal Folha de São Paulo no dia 22 de maio de 2011,
já analisada no item 4.2.2, subitem 1; que trata da visão dos gestores sobre a deficiência e as
pessoas com deficiência.
170
portadores de deficiência.‖ (Idem: 183). Além disso, tal prática leva a uma condição
contraproducente e desumana, no local de trabalho (Idem).
Na pesquisa intitulada Estratégias de Recursos Humanos para Incluir a
Pessoa com Deficiência no Mercado de Trabalho, Barbosa e Beraldo (2003)
apontam que aproximadamente 90% das empresas pesquisadas manifestaram a
intenção de contratar deficientes para funções administrativas, recepcionistas,
telefonistas, digitadores, operadores de telemarketing e agentes de segurança. Na
referida pesquisa, apenas uma das empresas não manifestou restrição quanto à
função para a qual as contrataria.
A intenção manifesta dessas empresas torna visível um aspecto da
discriminação com relação às pessoas com deficiência, presente no que Pastore
(2001) denomina de contraproducente e desumana: o direcionamento para
determinados cargos ou funções dentro da organização.
Com relação às dificuldades apontadas e alegadas pelas empresas que
impedem ou dificultam a contratação de pessoas com deficiência foram apontadas
as seguintes: nunca pensaram na possibilidade de contratação, não contratam por
não possuírem informações detalhadas sobre essa questão e sobre as habilidades
das pessoas com deficiência, por não disporem de informações de onde recrutarem
esse tipo de trabalhadores, pela dificuldade em adaptar suas instalações para
recebê-los, pela falta de pessoas com deficiência habilitadas e capacitadas no
mercado de emprego, pela não disponibilidade de pessoal capacitado para a
realização do recrutamento e seleção de pessoas com deficiência, pela falta de
preparo dos funcionários para se relacionar com as pessoas com deficiência, e em
razão do temor pela segurança das pessoas com deficiência no desempenho das
atividades. Tais alegações possivelmente escondem na discriminação velada que
sofrem as pessoas com deficiência, um estigma social pelo qual passa esse grupo.
(BARBOSA e BERALDO, 2003).
A situação apontada por Barbosa e Beraldo (2003), revela-se no depoimento
de Hanna representante do voltado para a inserção de pessoas com deficiência nas
empresas parceiras, quando expõe a preferência das empresas em contratar
pessoas [...] com deficiência física leve, que não seja cadeirante. Se o
71
comprometimento na área física é maior, daí já terá maiores restrições . Quanto
71
Depoimento da representante do programa de inserção (foco externo) colhido por mim em 01 de
julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.
171
72
Idem.
172
ocupação das vagas de emprego das pessoas com deficiência pelos dados da
RAIS/2010 (tabela 7), mesmo nas deficiências em que os homens são a maioria,
pois esta diferença não é assim tão grande em relação às mulheres. Estaria por trás
dessa discrepância um duplo estigma: o de ser mulher e deficiente? Seria essa a
barreira invisível a impedir um maior acesso das mulheres com algum tipo de
deficiência ao mercado de emprego para as pessoas deficientes?
Outra situação que indica uma diferença de tratamento dispensado entre
homens e mulheres é a que se reflete na remuneração para as pessoas com
deficiência, apresentada na tabela 8. Isso indica a discriminação de gênero. Na
situação das pessoas com deficiência, apenas se reproduz o que já está presente no
mercado de trabalho assalariado em geral, neste tocante.
Pelos dados da RAIS 2010, verifica-se que as mulheres recebem menos do
que os homens com os mesmos tipos de deficiências, aproximadamente: 28,5%
menos do que a remuneração que os homens com deficiência física, 43% menos
que os homens com deficiência auditiva, 23% menos que os homens com
deficiência visual, 13% menos que os homens com deficiência mental, 15,5% menos
que os homens com deficiência múltipla e 20,7% menos que os homens na condição
de reabilitados.
Tabela 8 – Remuneração Média Recebida do Emprego no Brasil em 2010, por Tipo de
Deficiência e Sexo.
Remuneração Média R$
Tipo De Deficiência Masculino Feminino
Física 2.254,04 1.611,22
Auditiva 2.255,51 1.282,27
Visual 1.927,50 1.477,60
Mental 802,09 695,78
Múltipla 1.451,96 1.227,16
Reabilitado 2.257,71 1.789,34
Total de Deficientes 2.144,43 1.506,58
Não Deficientes 1.874,55 1.553,72
Total 1.876,58 1.553,44
Fonte: RAIS-2010/TEM
(*) Deflator INPC
CONSIDERAÇÕES FINAIS
deficiência, como a dizer-lhes que não merecem atenção, não tem importância, ou
seja, não são de fato respeitados em suas diferenças.
O presente estudo deixa em aberto a possibilidade de outras investigações
como por exemplo, a questão da identidade do trabalhador assalariado enquanto
pessoa com deficiência, ou seja, a constituição das subjetividades das pessoas.
183
REFERENCIAS
REFERÊNCIAS IMPRESSAS
CROCKER, J.; MAJOR, B. STEELE, C. (1998). Social stigma. In: GILBERT, D.;
FISKE, S.T; LINDZEY, G. (Ed.). The handbook of social psychology. New York:
McGraw-Hill. v.2, p. 504–553.
DESLANDES, S.F; et al. (Orgs.). (1994) Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 7ªed.
Petrópolis: Vozes.
KANDOLA, R.; FULLERTON, J.(1994). Diversity: more than just an empty slogan.
Personnel Management; v. 26, n.11, Nov.
LINNEHAN, F.; KONRAD, A. M. (1999). Diluting diversity. Journal of Management
Inquiry, v.8, n. 4, Dec.
MARTINS, J. S. M. (1997). Exclusão social e a nova desigualdade. 3. ed. São
Paulo: Paulus.
MARTINS, L. de A. R. (2002). A inclusão escolar do portador da síndrome de
Down: o que pensam os educadores? Natal-RN:UFRN.
MASCARENHAS, A. O. (2008). Gestão da diversidade. In: ______. Gestão
estratégica de pessoas: evolução, teoria e crítica. São Paulo: Cengage Learning,
REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS
Research. Leeds, UK: The Disability Press. cap. 2, p.18-31. Disponível em:
<http://www.leeds.ac.uk/disability-studies/archiveuk/Barnes/implementing%20the%
20social%20model%20-%20chapter%202.pdf> Acesso em: 15 jan. 2010.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. (1948). Resolução 217 A (III) -
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
<http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm> Acesso: 10
mar. 2008.
______.(1982). – RES. 37/52 – Programa de Ação Mundial para as Pessoas
Deficientes. Disponível em: <http://app.crea-rj.org.br/portalcreav2midia/documentos/
resolucaoonu37 .pdf> Acesso em: 17 jan. 2011.
______.(2006). Resolução A/61/106 - Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência (CDPD). Disponível em: <http://www.direitoshumanos.gov.br/
pessoas-com-deficiencia-1/Convencao%20dos%20Direitos%20Humanos_26-7-
10.pdf> Acesso em: 20 jul. 2011.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS - OEA. (1999). Convenção
Interamericana para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra
as Pessoas Portadoras de Deficiência. Guatemala. Disponível em:
<http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/o.Convencao.Personas.Portadoras.de.
Deficiencia.htm> Acesso em: 05 jun. 2012.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. (1983) Convenção nº.
159 - Organização Internacional do Trabalho relativa a Reabilitação Profissional e
Emprego de Pessoas Deficientes. Disponível em:
<http://www.oit.org.br/node/505#_ftn1> Acesso em: 12 jun. 2011.
______.(2006). Gestão de questões relativas a deficiência no local de trabalho.
Repertório de recomendações práticas da OIT. Brasília. Disponível em:
<http://www.oit.org.br/sites/default/files/topic/disability/pub/gestao_2006_297.pdf>
Acesso em: 26 set. 2011.
______.(2010). Discapacidad en el lugar de trabajo: Prácticas de las empresas.
Ginebra: OIT. ACT/EMP; OIT. EMP/SKILLS, 2010. 97p. (Documentos de trabajo, 3)
Disponível em: <http://www.ilo.org/public/spanish/dialogue/actemp/downloads/
publications/working_paper_n3_sp.pdf> Acesso em: 04 jan. 2011.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE - OMS. (2004). Classificação Internacional
de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). Lisboa: Direção Geral da Saúde.
Disponível em: <http://www.inr.pt/uploads/docs/cif/CIF_port_%202004.pdf> Acesso
em: 18 mar. 2011.
______. (2004). Declaração de Montreal sobre Deficiência Intelectual. OMS/
OPAS. Disponível em: <http://www.planetaeducacao.com.br/portal/artigo.asp?
artigo=2186> Acesso em: 10 ago. 2012.
______.(2008). CID-10 – Classificação Estatística Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados à Saúde. Décima Revisão. Versão 2008. v.1. Disponível
em: <http://www.fau.com.br/cid/webhelp/cid10.htm> Acesso em: 22 set. 2011.
195
ANEXOS
ANEXO I
MARIANA (Tutora 1)
Idade: 53
Sexo: Feminino
Estado Civil: Casada
Escolaridade: Superior Incompleto
KÁTIA (Tutora 2)
Idade: 42
Sexo: Feminino
Estado Civil: Solteira
Escolaridade:Superior, com especialização.
ANEXO II
(Continua)
GRUPO ESTEREÓTIPOS
DIMENSÕES
SOCIAL NO CARACTERIZADORES DO ESTIGMA DA DEFICIENCA NO
CONSIDERADAS
EMPREGO EMPREGO
As pessoas com deficiência apresentam baixa produtividade.
As pessoas com deficiência devem ser contratadas em
função das cotas previstas pela Lei.
As pessoas com deficiência e candidatas à vaga não
atendem às exigências do cargo ou da função em aberto.
As pessoas com deficiência é que tem que se adaptar às
condições de trabalho oferecidas.
As pessoas com deficiência intelectual, e as surdas, devem
ser colocadas em atividades rotineiras em razão do elevado
nível de concentração.
As pessoas com deficiência não apresentam o laudo médico
que aponta o CID da deficiência alegada, como exige a lei.
Baixo nível de escolaridade das pessoas com deficiência.
Baixo nível de qualificação das pessoas com deficiência.
Competências e habilidades apresentadas pelas pessoas
com deficiência não são condizentes com aquelas esperadas
pela empresa.
Cultura organizacional de oposição e resistência em
contratar pessoas com deficiência.
Desconfiança dos clientes e demais públicos externos da
empresa em relação às pessoas com deficiência.
Desconfiança dos demais funcionários da empresa por não
Deficiencia
estarem preparados para se relacionarem com as pessoas
Pessoas com
com deficiência.
deficiência
Dificuldade de adaptação das instalações para receber as
Pessoal de Pessoas surdas
pessoas com deficiência.
Gestão As atividades
É difícil se comunicar com as pessoas surdas.
das pessoas
Falta de profissionalização das pessoas com deficiência.
com deficiencia
ou surdas Medo, receio e desconfiança em trabalhar com as pessoas
deficientes.
Não contratam pela falta de informações sobre as
habilidades das pessoas com deficiência.
Não sabem onde recrutar esse tipo de mão de obra.
O departamento de recursos humanos não está preparado
para recrutar e selecionar pessoas com deficiência.
Os dirigentes da organização se opõem em contratar
pessoas com deficiência.
Pessoas cegas podem ser utilizadas em atividades que
exigem elevada capacidade de memorização.
Pessoas com deficiencia são todas iguais (não se
consideram as peculiaridades de cada tipo de deficiencia,
que diferem uma pessoa para outra).
Pessoas surdas se adaptam às atividades com ruído intenso.
Pouca oferta de mão de obra (pessoas com deficiência) no
mercado de mão de obra.
Problemas de conduta das pessoas com deficiência no
relacionamento e adaptação com os demais colegas de
trabalho.
Problemas nas instalações da empresa que impedem a
acessibilidade.
202