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3
As lendas do ciclo do Graal são de
elaboração coletiva e remontam a mitos
pagãos antiqüíssimos. Ao passarem ao
domínio literário, já na época dos
trovadores, sofreram uma impregnação
cristã. Apesar disso, Roma nunca aderiu
ao Graal. Instintivamente desconfiava
dessa busca interminável de um
objetivo, que segundo Wolfram von
Eschenbach seria "a quintessência da
perfeição paradisíaca, princípio e fim
de toda a aspiração humana".
As restrições se concentravam
precisamente neste ponto. Se, para a
Igreja, esse ideal era o próprio
Cristo, o Graal representava uma
promessa que, de certo modo, se opunha
às esperanças cristãs. A Igreja não
estava enganada. Na verdade todos os
cavaleiros empenhados na demanda eram
cristãos mas o próprio Graal era pré-
cristão e mesmo supracristão, isto é,
de todos os tempos. Essas lendas
reordenadas em epopéias, como a de Wolf
ram e de outros poetas do ciclo,
falavam de um reino que se tornou
estéril, em virtude do desaparecimento
do Graal. O próprio Graal não estaria
4
PARSIFAL
Brasília - DF
1989
leais e muito queridos, aos quais devo agradecer. Entre eles, Raquel Ferreira
primeiro me fez chegar às mãos o texto do século XIII, bem como as versões
Ana Maria Dagnino Falcão, que revisaram o texto e fizeram uma crítica sobre tudo o
que lhes parecesse obscuro e incorreto. Sou grato, sobretudo, a Osvaldo Rodrigues
Conde Filho, meu parceiro neste empreendimento e que num mundo mais justo
seria mencionado, se não como co-tradutor, ao menos como o mais talentoso dos
editores.
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O Aqui e o Agora
7
“Para David M. que esperou pacientemente 2 anos
para a digitalização deste livro”
S.V.M.
Sumário
INTRODUÇÃO ............................................................................................................1
A Cavalaria e a Literatura ........................................................................................1
O ciclo arturiano ou do Graal ...................................................................................4
O Parsifal .................................................................................................................7
A Tradução ............................................................................................................16
LIVRO I .....................................................................................................................17
PRÓLOGO.............................................................................................................17
A VIAGEM DE GAHMURET À CORTE DO BARUC .............................................21
A VIAGEM DE GAHMURET À CORTE DA RAINHA BELAKANE.........................28
A CHEGADA DE GAHMURET À CORTE DE ZAZAMANC...................................30
GAHMURET É RECEBIDO POR BELAKANE.......................................................33
PREPARATIVOS PARA O COMBATE..................................................................38
GAHUMURET RECEBE A VISITA DE BELAKANE ..............................................40
OS COMBATES DE GAHMURET DIANTE DE PATELAMUNT ............................43
RECOMPENSAS AMOROSAS .............................................................................49
NEGOCIAÇÕES DE PAZ ......................................................................................50
GAHMURET ABANDONA BELAKANE .................................................................57
O NASCIMENTO DE FEIREFIZ ............................................................................59
A CHEGADA DE GAHMURET A SEVILHA...........................................................60
LIVRO II.....................................................................................................................61
A VIAGEM DE GAHMURET A KANVOLEIS .........................................................61
O TORNEIO DE KANVOLEIS ...............................................................................68
GAHMURET ENTRE TRÊS MULHERES..............................................................78
GAHMURET NO CUME DA FAMA .......................................................................91
A MORTE DE GAHMURET ...................................................................................95
LAMENTAÇÕES DE HERZELOYDE ....................................................................98
O NASCIMENTO DE PARSIFAL.........................................................................100
EXCURSO DO POETA........................................................................................101
LIVRO III..................................................................................................................104
A INFÂNCIA DE PARSIFAL NO ERMO DE SOLTANE.......................................104
O PRIMEIRO CONTATO DE PARSIFAL COM A VIDA CAVALEIROSA ............107
O PRIMEIRO CONTATO DE PARSIFAL COM O MUNDO .................................112
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PARSIFAL E IECHUTE .......................................................................................115
O COMEÇO DA VIA-CRUCIS DE IECHUTE.......................................................119
O PRIMEIRO ENCONTRO COM SIGUNE..........................................................121
PARSIFAL A CAMINHO DA CORTE DO REI ARTUR ........................................125
PARSIFAL NA CORTE DO REI ARTUR .............................................................128
KEYE CASTIGA CUNEWARE.............................................................................130
A MORTE DE ITHER...........................................................................................132
PARSIFAL SE APOSSA DA ARMADURA DE ITHER.........................................134
O LUTO PELA MORTE DE ITHER......................................................................136
O ENCONTRO COM GURNEMANZ ...................................................................138
ACOLHIDA HOSPITALEIRA ...............................................................................140
EDUCAÇÃO CAVALEIROSA ..............................................................................145
PARSIFAL DESPEDE-SE DE GURNEMANZ .....................................................149
LIVRO IV ................................................................................................................152
A CHEGADA DE PARSIFAL A PELRAPEIRE.....................................................152
PARSIFAL E CONDWIRAMURDS ......................................................................157
3. A LUTA ENTRE PARSIFAL E KINGRUN ........................................................163
4. O CASAMENTO DE PARSIFAL E CONDWIRAMURS ...................................167
5. O ASSÉDIO DE PELRAPEIRE........................................................................168
6. CLAMIDE NO ACAMPAMENTO DE ARTUR ..................................................176
7. PARSIFAL ABANDONA CONDWIRAMURS ...................................................180
LIVRO V ..................................................................................................................183
1. PARSIFAL NO CASTELO DO GRAAL ............................................................183
2. PARSIFAL DIANTE DO REI DO GRAAL.........................................................187
3. OS MISTÉRIOS DO GRAAL ...........................................................................189
4. O GRAAL.........................................................................................................191
5. A PERGUNTA POSTERGADA........................................................................193
6. O PERNOITE NO CASTELO DO GRAAL .......................................................196
7. A PARTIDA DE PARSIFAL..............................................................................198
8. O SEGUNDO ENCONTRO COM SIGUNE .....................................................200
9. O SEGUNDO ENCONTRO COM IESCHUTE .................................................205
10. O DUELO ENTRE PARSIFAL E ORILUS......................................................209
11. PARSIFAL RECONCILIA ORILUS COM IESCHUTE ....................................213
12. ORILUS E IESCHUTE NO ACAMPAMENTO DE ARTUR ............................219
LIVRO VI .................................................................................................................223
1. AS TRÊS GOTAS DE SANGUE NA NEVE .....................................................223
2. O DUELO ENTRE PARSIFAL E SEGRAMORS..............................................225
3. EXCURSO SOBRE A NATUREZA DA PAIXÃO..............................................231
4. O DUELO ENTRE PARSIFAL E KEYE ...........................................................233
5. PARSIFAL E GALVÃO ....................................................................................237
6. A ADMISSÃO DE PARSIFAL NA TAVOLA REDONDA ..................................243
7. CUNDRIE AMALDIÇOA PARSIFAL ................................................................246
8. KINGRIMURSEL DESAFIA GALVÃO..............................................................251
9. CLAMIDE E CUNEWARE................................................................................255
10. PARSIFAL ABANDONA A TAVOLA REDONDA ...........................................258
11. EXCURSO DO POETA..................................................................................263
LIVRO VII ................................................................................................................265
1. EXCURSO DO POETA....................................................................................265
2. GALVÃO A CAMINHO DE ASCALUN .............................................................266
3. GALVÃO DIANTE DE BEAROCHE.................................................................273
9
4. OBIE MENOSPREZA GALVÃO ......................................................................274
5. OS PRIMEIROS COMBATES DIANTE DE BEAROCHE ................................275
6. OBIE TENTA HUMILHAR GALVÃO ................................................................278
7. LIPPAUT PEDE APOIO A GALVÃO................................................................284
8. GALVÃO TORNA-SE CAVALEIRO DE OBILOT .............................................286
9. A BATALHA DIANTE DE BEAROCHE ............................................................291
10. OS NOTÁVEIS FEITOS DE GALVÃO ...........................................................294
11. O CAVALEIRO VERMELHO .........................................................................299
12. A RECONCILIAÇÃO DE OBIE E MELJANZ..................................................304
13. GALVÃO SE DESPEDE DE OBILOT ............................................................306
LIVRO VIII ...............................................................................................................307
1. GALVÃO A CAMINHO DE ASCALUN .............................................................307
2. GALVÃO E ANTIKONIE ..................................................................................312
3. O ATAQUE IMPREVISTO ...............................................................................314
4. O ATAQUE À TORRE .....................................................................................315
5. A INTERVENÇÃO DE KINGRIMURSEL .........................................................317
6. NEGOCIAÇÕES DE PAZ ................................................................................319
7. A RECONCILIAÇÃO........................................................................................330
8. A PARTIDA DE GALVÃO ................................................................................331
LIVRO IX .................................................................................................................334
1. O TERCEIRO ENCONTRO COM SIGUNE .....................................................334
2. O COMBATE COM O TEMPLÁRIO DO GRAAL .............................................341
3. ENCONTRO NA SEXTA-FEIRA SANTA .........................................................343
4. OS CONSELHOS DO EREMITA TREVRIZENT .............................................347
LIVRO X ..................................................................................................................381
1. GALVÃO E O CAVALEIRO FERIDO...............................................................381
2. O ENCONTRO COM ORGELUSE ..................................................................385
3. A INSOLÊNCIA DE MALCREATURE..............................................................391
4. AS INFÂMIAS DE URIANS..............................................................................395
5. OS MOTEJOS DE ORGELUSE ......................................................................399
6. EXCURSO DO POETA ACERCA DAS COISAS DO AMOR...........................402
7. GALVÃO DIANTE DO CASTELO ENCANTADO ............................................403
8. O DUELO ENTRE GALVÃO E LISCHOYS .....................................................404
9. HÓSPEDE DO BARQUEIRO ..........................................................................410
LIVRO XI .................................................................................................................416
1. O CASTELO ENCANTADO DE CLINSCHOR.................................................416
2. OS TERRORES DO CASTELO ENCANTADO ...............................................422
LIVRO XII ................................................................................................................435
1. AS AFLIÇÕES AMOROSAS DE GALVÃO ......................................................435
2. A COLUNA MÁGICA .......................................................................................439
3. O COMBATE COM O TURCÓIDE ..................................................................442
4. A TRAVESSIA DO PASSO SELVAGEM .........................................................446
5. A ÁRVORE DE GRAMOFLANZ ......................................................................449
6. O COMBATE APRAZADO...............................................................................452
7. GALVÃO CONQUISTA ORGELUSE ...............................................................454
8. REGRESSO FESTIVO AO CASTELO ENCANTADO .....................................460
LIVRO XIII ...............................................................................................................465
1. A FESTA NO CASTELO ENCANTADO DE CUNSCHOR...............................465
2. SERVIÇOS RECOMPENSADOS ....................................................................473
3. O REGRESSO DO MENSAGEIRO .................................................................476
10
4. A ESTRANHA BIOGRAFIA DE CLINSCHOR .................................................484
5. A CHEGADA DE ARTUR ................................................................................488
6. ARTUR PARTE PARA JOFLANZE .................................................................492
LIVRO XIV...............................................................................................................500
1. A PARTIDA DE GRAMOFLANZ ......................................................................500
2. A LUTA ENTRE PARSIFAL E GALVÃO..........................................................506
3. GRAMOFLANZ NO CAMPO DA LUTA ...........................................................508
4. PARSIFAL NO ACAMPAMENTO DE GALVÃO ..............................................511
5. O COMBATE ENTRE PARSIFAL E GRAMOFLANZ.......................................517
6. GESTÕES DE APAZIGUAMENTO .................................................................520
7. RECONCILIAÇÃO ...........................................................................................533
8. A PARTIDA DE PARSIFAL..............................................................................536
LIVRO XV................................................................................................................538
1. O COMBATE DE PARSIFAL COM FEIREFIZ.................................................538
2. OS IRMÃOS SE RECONHECEM....................................................................545
3. FEIREFIZ E PARSIFAL NO ACAMPAMENTO DE GALVÃO ..........................550
4. A FESTA EM JOFLANZE ................................................................................557
5. PARSIFAL, O ELEITO DO GRAAL .................................................................568
LIVRO XVI...............................................................................................................575
1. OS SOFRIMENTOS DE ANFORTAS ..............................................................575
2. PARSIFAL NO CASTELO DO GRAAL ............................................................578
3. PARSIFAL, O REI DO GRAAL ........................................................................580
4. O REENCONTRO COM TREVRIZENT...........................................................583
5. O REENCONTRO COM CONDWIRAMURS...................................................584
6. KARDEIZ SUCEDE A PARSIFAL....................................................................587
7. A MORTE DE SIGUNE....................................................................................588
8. CONDWIRAMURS, A RAINHA DO GRAAL ....................................................590
9. A FESTA NO CASTELO DO GRAAL ..............................................................590
10. FEIREFIZ E REPANSE DE SCHOYE ...........................................................593
11. O BATISMO DE FEIREFIZ ............................................................................598
12. O REINO DE PRESTE JOÃO........................................................................600
13. A MISSÃO DE LOHERANGRIN ....................................................................604
14. EXCURSO FINAL DO POETA ......................................................................606
11
INTRODUÇÃO
A Cavalaria e a Literatura
1
instituição não apareceu de repente, nem com todas as características de que se
revestiria já na época dos trovadores. Com exceção do estatuto feudal que se forjou
assumiram sua forma definitiva em torno do século XI. Com efeito, o brasão mais
Sob a influência da Igreja essa cerimônia transformou-se aos poucos numa espécie
de sacramento que, via de regra, era precedida de vigília de armas, noite de preces
a vida nos torneios e usar as cores da bela a quem dedicava seus serviços. Seu
objetivo maior era buscar a permanência de seus altos feitos na memória coletiva.
Ser imortalizado pêlos serviços prestados ao monarca, à sua dama ou aos fracos e
1
O escudo é conhecido desde a Antiguidade. Na sua Eneida (Canto VIII, 608), Virgílio faz a descrição dos
símbolos do escudo que Vulcano, a pedido de Vênus, forjara para Enéias. Mas essa arma defensiva dos antigos
era coisa diversa do brasão medieval. Este, além de meio de defesa, era peça honorífica elaborada consoante as
normas da Heráldica e cuja concessão e autenticidade eram confirmadas em registros públicos.
2
É oportuno estabelecer aqui a diferença entre a cavalaria, instituição
podia ser conferida por qualquer senhor feudal, com a participação da Igreja. Já as
ordens de cavalaria eram criadas pelo Papa e seus membros eram um misto de
João de Jerusalém — hoje Soberana Ordem Militar de Malta — foi fundada no final
Teutônicos (1190).
Fica claro, pois, que não havia qualquer ordem de cavaleiros nos tempos
do Rei Artur (século VI) e do Imperador Carlos Magno (742-814). Trata-se de meras
séculos XII e XIII, quis-se enobrecer suas origens, fazendo-as remontar àqueles
portanto, sonhos.
2
Em artigo publicado no Times, de Londres, e reproduzido no Jornal do Brasil, de 3 de janeiro de 1977, Robert
Dervel Evans desvenda o mistério da enorme mesa circular exposta na cidade de Winchester. Aos turistas era
dito que em torno dela se reuniam o Rei Artur e seus cavaleiros. Embora os historiadores nunca acreditassem
seriamente em que a peça datasse de tempos tão recuados (século VI), somente a utilização do radiocarbono
confirmou a suspeita dos pesquisadores, determinando o ano exato de sua construção: 1336. O autor desse
embuste teria sido o esperto Rei Eduardo III que, pretendendo revitalizar os ideais da cavalaria decadente,
3
Esse fato nos leva a fazer outra distinção, desta feita entre a cavalaria
como instituição que de fato existiu e sua posterior reelaboração pelos trovadores,
idealizadas. A realidade era bem outra. A cavalaria era um rude ofício e só poucos
instituição cavaleirosa com uma imagem que todos gostariam de que tivesse e não
germânicos, para os quais as artes marciais e a mulher eram objeto veneração que
fundou a Ordem da Távola Redonda (de efêmera duração), mandou esculpir em carvalho a enorme mesa circular
de 10 metros de diâmetro e divulgou o mito de que datava dos tempos do Rei Artur.
4
se assemelhava a um culto. A despeito disso a cavalaria nunca adquiriu entre os
comunicar.
Contudo, é certo que ela ganhou maior brilho na França, onde pela primeira vez
Como personagem histórico e líder político dos bretões, Artur foi mencionado
por primeira vez pelo historiador Nennius de Mércia (c. 800 d.C) em sua Historia
aparecia envolto num halo de lenda. Enquanto permaneceu restrito à sua nativa
Inglaterra a figura do rei bretão se movia numa esfera intermediária entre história e
mito. Para se tornar personagem literário Artur teve de emigrar para a França.
Comte du Graal apareceu pela primeira vez o Graal, que não constava da primitiva
matéria bretã. Iniciou-se assim um ciclo que ora é chamado arturiano, ora do Graal.
5
Com o Erek, de Hartmann von Aue, o ciclo do Graal se estendeu até a
Alemanha. Wolf ram von Eschenbach, cuja obra será aqui o objeto central de nossa
novo sentido. Com a obra tardia Lê Morte Dartur, de Sir Thomas Malory (1408-
Atila (Etzel) - passam certamente por uma reelaboração poética mas continuam
mais do rei bretão que historicamente existiu mas do Artur, personagem lendário e
literário que, com sua corte e sua Ordem da Távola Redonda, vive liberto da barreira
do tempo. Até a realidade torna-se irreal. Nantes, a capital de Artur, é uma cidade
relação à qual todo o restante é considerado. Ele próprio não realiza feito algum. E
Mas todas as ações são por ele determinadas. O universo arturiano é um mundo de
6
Távola Redonda é quase sempre o mesmo. Ele deixa as delícias da corte em busca
façanhas resulta para ele na conquista da amada. Com ela volta ao convívio da
Távola Redonda. Essa constante permuta entre centro e periferia parece ser o único
O Parsifal
razões para fazer o cotejo das duas obras: a insistência dos analistas literários em
semelhança entre as duas obras, onde ao lado do círculo arturiano existe o círculo
era a mesma, com a diferença de que ele teria contado a "história verdadeira". O
poeta alemão parece ter alguns motivos que justificam sua afirmação. Chrétien
reelaborou a matéria bretã e com ela construiu a estrutura de uma obra literária que
Graal com os problemas de sua época e o transformou num dos mitos fundadores
do Ocidente.
7
Trata-se de uma história exemplar que serve de modelo ao comportamento dos
global da personalidade.
Nessa análise Johnson identifica o Graal com o self e sua busca Com o
da qual o buscador (Parsifal) vai-se tornando aos poucos um ser humano integral.
Suas buscas terminam quando acha O Graal, isto é, quando atinge o self, tornando-
se "ele mesmo".
numa terra estéril (gaste terre), o empenho de Parsifal em restaurar esse reino
termina quando Parsifal está prestes a achar o Graal, ou seja, quando está na
Chrétien não foi além desse ponto, seja porque morreu, seja mesmo
porque não tinha mais o que dizer. Johnson afirma que "em muitos sentidos ele
3
JOHNSON, Robert A. He. São Paulo, Mercuryo, 1987
8
parou onde nos encontramos também". Seria o caso de cada um retomar a busca e
modo, num desvio do texto de Wolfram, fato que levou alguns admiradores do mago
o corpo físico (Kundry) pode, pela ascese, sublimar o fogo serpentino (Kundalini),
elevando-o para a cabeça (Mont Salvai) e atingir desse modo a perfeição (Nirvana).
dos séculos XII e XIII intuições que provavelmente jamais tiveram. Não se poderia,
então, lançar contra essas teses uma objeção que as faria desmoronar pela base?
tinha a esse respeito uma orientação bastante diferente. Ver, então, na busca do
Graal um processo de individuação que leva o homem ao seu centro, ao self, é uma
9
considerados do ponto de vista da consciência de quem os experimenta. Não existe,
no caso, qualquer agente externo a impelir o aspirante nessa direção. Existe apenas
Existe, no caso, uma força externa - a missão - que se propõe à vontade de Parsifal
o qual Parsifal - e unicamente ele - foi convocado. Por isso ele nasce como avatar,
criaturas para o fim que lhes foi destinado. Lendo nas entrelinhas percebe-se que
Wolfram atribui ao Poder uma origem diferente. Segundo tal concepção tradicional e
entre esses dois planos, cujo grande mediador era o monarca no seu palácio.
4
GUÉNON, René. O Rei do mundo. Lisboa, Edições 70, 1982.
10
simultaneamente sacerdote e rei nunca foi inteiramente aceita. Durante a Idade
Média o Poder supremo estava dividido entre o Papa e o monarca do Santo Império
transpor esse antagonismo para o plano das idéias. Frederico II, ao contrário, soube
retomar a via útil. Dotado de grande inteligência, esse inimigo irredutível dos papas
foi iniciado no sufismo islâmico e nos mistérios templários. Falava diversas línguas,
entre as quais o árabe e o grego. Sua guarda pessoal era composta unicamente de
marchou sobre Jerusalém, onde ocorreu um fato insólito em que o Papa custou a
Oriente. Frederico estava entre irmãos. Mircea Eliade5 atesta que Frederico II foi
apenas em virtude de seu cargo mas sobretudo por sua natureza inata - nada
5
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo, Perspectiva, 1972.
11
Analisando atentamente o texto do Parsifal descobrimos um estranho
afirma esse paralelo. Sob o texto do poema que está diante de nós existe um pré-
Em vários trechos da epopéia (livro VIII, 416; livro IX, 453; livro XVI, 827)
Wolfram aponta como fonte de seu Parsifal um certo Kyot, o Provençal. Esse fato
levou seus críticos a sustentar a idéia de que Kyot seria apenas um personagem
Parsifal de um "certo livro" (le livre), sem se dar ao trabalho de explicar que tipo de
livro era esse e qual o seu autor. Como as duas histórias (até o Livro XIII) são
tivessem servido da mesma fonte? E não teria sido essa a razão que levou Wolfram
12
Wolfram grande número de nomes célticos e uma rica terminologia científica árabe
Além disso a corte de Artur e o reino Graal são tratados de modo diverso
nas duas obras. Em Chrétien não fica muito claro qual dos dois centros é o mais
Artur é indiscutível. Ali a Ordem da Távola Redonda não passa de uma escola
Mas a diferença maior e que leva a todas as outras está na forma pela
qual é tratado o Graal nos diversos poemas do ciclo. Chrétien não se atreve a sair
flanco de Cristo, aberto pela lança do centurião Longino. Para Wolfram o Graal é
penas do inferno" (Livro IX, 453). Ora, sendo o batismo anterior à instituição da
Igreja, o Graal já é cristão mas ignora o primado de Pedro, isto é, do Papa. Como
bom gibelino, Wolfram ignora totalmente a Igreja como instituição. Pela leitura do
poema ficamos sabendo que Parsifal recebe sua educação ética e cavaleirosa de
13
a uma missa sequer. Na corte do Rei Artur o sacerdote aparece às vezes oficiando a
momento. Mas para que a pia batismal se enchesse de água benta foi necessária a
presença do Graal. Esse breve episódio simbólico foi compreendido por poucos
analistas de Wolfram. Ele significa simplesmente que o ato litúrgico da Igreja só teria
força e validade se fosse prestigiado e sancionado pelo Graal que, por sua vez,
Igreja, cuja mensagem era dirigida aos não-iniciados, isto é, à massa dos fiéis. O
papel esotérico de grande mediador entre a ordem cósmica e terrena cabia ao Rei
quaisquer diferenças raciais e religiosas. Foi por ser príncipe e cavaleiro que Feirefiz
do Graal, a despeito de ainda pagão. Mas para efeitos externos o cristianismo faz
sentir sua força. Para casar com Repanse de Schoye, a virgem do Graal, o príncipe
do Oriente teve de abraçar o cristianismo. Com ela, volta à índia que seria
outro objetivo caro ao gibelinismo: estabelecer uma aliança secreta entre o Oriente e
o Ocidente.
14
essa cidadela proibida representava o coração vivo e o segredo do Graal. Ninguém
poderia decifrar os mistérios desse palácio de púrpura e ouro se antes não tivesse
palavra teve um sentido mais preciso. Parsifal experimentou essa sensação ao ali
ingressar pela primeira vez, sem ser convidado. Entrou como "forasteiro
triunfal. Sua presença e sua palavra fizeram reflorescer B terra devastada. Ele
Graal", de oculto, se tornasse manifesto, como nas suas origens romanas, o Poder
15
O Gibelinismo não vingou mas deixou seqüelas. Permaneceu como
profano da política. Séculos depois veio à tona com o protesto de Lutero. Coube ao
grande reformador realizar, embora em termos mais modestos, o ideal gibelino. Nos
da Igreja.
A Tradução
medieval se ajusta o qualificativo de Bilac "rude e doloroso idioma". Mas utilizada por
três objetivos: 1) ficar o mais possível fiel ao texto original;2) nada dizer além daquilo
sentido de certas passagens do poema que os analistas qualificam como "a sublime
obscuridade de Wolfram".
16
Em que consiste essa obscuridade? Trata-se de uma linguagem oculta
utilizada por alguns trovadores dos séculos XII e XIII para que sua doutrina não
fosse acessível aos não-iniciados. Limita-mo-nos a dizer não só o quão difícil foi a
tarefa, mas ao mesmo tempo como foi impossível a certeza de ter compreendido de
preferimos manter a literalidade do texto e não lhe atribuir um sentido que parecia
LIVRO I
PRÓLOGO
intrepidez com o seu oposto, então tudo será, a um tempo, glória e ignomínia. Quem
vacila sempre terá motivo para regozijar-se pois céu e inferno estão nele presentes.
Mas quem perde de todo a estabilidade emocional está na escuridão e fatalmente irá
terminar nas trevas do inferno. Quem, ao contrário, sabe conservar sua integridade
17
Este exemplo alado6 pode parecer superficial aos tolos que não alcançam
seu sentido. Ele se move diante deles, de um lado para outro, como lebre acuada.
Ele é como o espelho e o sonho dos cegos, que conseguem oferecer apenas uma
imagem fugidia e superficial sem que por trás dela haja algo consistente e palpável.
Seu brilho turvo e mutável apenas consegue alegrias efêmeras. Quem quisesse
agarrar-me pela palma da mão, onde jamais cresceram cabelos, teria que ser muito
É que eu procuro constância exatamente onde ela, por lei natural, está
Ora, não conheço qualquer pessoa inteligente que não quisesse alcançar
o sentido mais profundo desta história e os ensinamentos que ela oferece. Ela por
tão vária, tem a cabeça no lugar. Ele não se comportará como um borralheiro, não
irá enveredar por falsos caminhos e achará facilmente seu lugar no mundo. A
reputação, como chuva de granizo. Sua credibilidade possui cauda tão curta que na
6
"Exemplo alado". Referência à plumagem claro-escura da pega para estabelecer o contraste entre
frouxidão e firmeza, embora, a seguir, a velocidade da ave passe a ser o fundamento da comparação.
7
A alusão do poeta à combinação da água (fonte, orvalho) com o fogo (chama, sol) traduz o princípio
alquímico da união dos opostos. Mas, no caso, não cuida de transmutar metais, e sim de otimizar o desempenho
da mente. Tal objetivo seria alcançado mediante a integração dinâmica das potencialidades do hemisfério
cerebral esquerdo, essencialmente lógicas, verbais e seqüenciais, com as do hemisfério cerebral direito,
predominantemente visuais, intuitivas e atemporais. Dessa alquimia mental ou "casamento místico dos
contrários" resultaria um poder cerebral combinado, muito superior ao uso normal da mente. Essa convicção
levaria Wolfram a afirmar num trecho mais adiante que seria capaz de triplicar o poder criador de sua mente. A
aparente falta de modéstia revela apenas sua fé na eficácia de um princípio. N T
18
Estas palavras sobre a necessidade de distinguir as coisas não são
objetivos:
quem pode dispensar encômios e consideração e a quem pode entregar depois seu
amor e sua reputação a fim de que mais tarde não venha a lamentar sua pureza e
fidelidade. Que Deus inspire as mulheres honradas, a fim de que possam achar em
todos os atos de sua vida a medida justa! O pudor é a coroa de todas as virtudes.
A mulher inautêntica, que não atinge esse equilíbrio interior, não alcança
canícula de agosto? Tão transitório será seu prestígio! Quanta mulher há cuja beleza
é celebrada em toda parte! Mas se for fingido seu coração, comparo seu valor a um
caco de vidro dourado. Inversamente, não desprezo o nobre rubi com todas as suas
secretas energias9, incrustado em metal sem valor. É com ele que me agradaria
comparar o estofo de uma mulher genuína. Se ela cumprir plenamente sua condição
feminina, não a julgaria nem pela sua aparência nem pelo que é possível perceber
8
Nesta passagem do "prólogo", uma espécie de doutrina de comportamento para as suas personagens,
Wolfram estabelece uma distinção essencial, quase metafísica e ontológica, entre seres humanos, o que
corresponde visivelmente à componente de uma sociedade de escol em oposição àqueles incapazes de comungar
de tais sentimentos. NT
9
"As secretas energias do rubi". Na Idade Média atribuía-se às pedras preciosas virtudes miraculosas,
benéficas ao homem.
19
Pudesse eu, como gostaria, analisar profundamente o homem e a mulher,
ouviríeis uma longa história. Escutai pois do que trata nossa narrativa. Ela vos dará
invés de uma, houvesse três pessoas como eu e que cada uma delas tivesse
para vos dar notícia daquilo que agora eu, sozinho, me proponho a vos contar.
curvaram diante da prepotência. Onde quer que nosso herói se tenha batido, jamais
arrefeceu sua bravura. Parecia feito de aço, alcançando grande renome em virtude
de suas sucessivas vitórias nos combates que sustentou. Embora destemido, só aos
que esse personagem, por mim escolhido como herói e de quem irão tratar todos os
miraculosos acontecimentos desta narrativa, ainda não havia nascido nessa altura
de minha história.
vinha sendo praticado em remotos tempos. Como, por certo sabeis, em certas
10
Em França prevalecia entre a nobreza o direito da primogenitura que instituía o filho mais velho como
sucessor único da herdade.
20
regiões da Alemanha11 procede-se do mesmo modo. O soberano do país podia
irmão mais velho. Para os irmãos mais novos era naturalmente uma infelicidade o
fato de a morte do pai lhes arrebatar aquilo que, enquanto vivia, estivera à sua
disposição. Aquilo que antes era de todos, agora passava a pertencer a um só.
vantagens a velhice traz consigo sofrimentos e queixumes. E não há sina mais triste
que a velhice coincidir com a pobreza. Mas que, exceto o filho mais velho, reis,
Foi por força desse princípio jurídico que o intrépido mas conformado
herói Gahmuret perdeu todos os castelos e domínios nos quais, com grande
prestígio e autoridade, o pai havia ostentado o cetro até perder a vida numa justa.
Muito se lamentou sua perda pois sua autoridade e seu estilo de governo haviam
sido exemplares.
Seu filho mais velho determinou por isso que todos os príncipes do reino
11
O direito francês da primogenitura, cuja origem germânica remota ao "jus francorum" e à sucessão
hereditária borgonhesa, prevalecia em algumas regiões da Alemanha, sobretudo nos condados renanos; mas era
igualmente admitido no sul franco-bávaro, terra de Wolfram.
21
porque esperavam receber dele a concessão de grandes feudos. Ouvi pois o que
vassalos. Pediam ao soberano que tratasse Gahmuret com sentimento fraternal, não
o deserdando de todo, o que para o rei resultaria afinal num acréscimo de prestígio;
que, pelo contrário, lhe concedesse em seu reino um domínio rural onde o jovem
fidalgo pudesse viver de acordo com sua ilustre origem e sua categoria social.
pedir, o fazeis com modéstia. Pois conceder-vos-ei isto e muito mais. Por que não
chamais meu irmão pelo gentílico de Gahmuret de Anjou? Anjou é o nome do meu
reino e por isso tanto eu quanto ele devemos ostentar esse título." E o nobre rei
prosseguiu: "Meu irmão pode, além disso, estar seguro de minha permanente
disposição de lhe ser útil. Compartilharemos do mesmo teto e diante de todos vós
quero deixar claro que somos filhos da mesma mãe. Se suas posses são modestas,
é excessiva minha fortuna. Dela Gahmuret terá parte considerável a fim de que
minha salvação não seja posta em jogo diante Aquele que, com justiça, dá e tira os
Aquele foi um dia de júbilo, posto que todos os poderosos príncipes ali
presentes sentiram que havia sinceridade nas palavras do rei. Cada um deles
inclinou-se profundamente diante dele. Gahmuret, porém, não podendo reprimir por
mais tempo o que lhe ia na alma, dirigiu-se cortesmente ao rei, nestes termos: "Meu
22
outro príncipe, naturalmente estaria preparado para me instalar o mais
meu, só possuo a armadura. Ah, tivesse eu realizado com ela feitos suficientemente
memoráveis a fim de desfrutar de fama e prestígio onde quer que meu nome fosse
lembrado!"
apenas seis possuem armaduras. Dai-me mais quatro pajens bem criados e de
nobre origem. Em tudo que venha a realizar terão eles uma justa participação.
Quero uma vez mais correr mundo. Caso a fortuna me sorria terei a estima de
muitas nobres damas. Se, como cavaleiro, for suficientemente digno para requestar
tais favores eu me empenharei nisso com toda a lealdade. Este é meu objetivo,
sobre o qual demoradamente refleti. Que Deus me guie por caminhos afortunados!
Ao tempo em que nosso pai, Gandin, ainda reinava sobre vossos domínios, saíamos
O rei suspirou e disse: "Ah, quem me dera nunca te ter visto, pois com
23
Meu pai deixou-nos como herança uma fortuna imensa. Ela será minha e
tua em partes iguais pois eu te estimo sobremodo. Requisita pedras preciosas, ouro
meu irmão."
exigem de vós. Concedei-me agora em igual medida vosso apoio. Se vós e minha
mãe quisésseis dividir comigo os bens móveis da herança isso resultaria para mim
num acréscimo de prestígio. Mas as aspirações do meu coração vão além. Não sei
porque ele bate, tão violentamente que quase se parte. Ai de mim, para onde irá
levar-me esta paixão? Se esta sina me foi imposta quero conhecer a causa dessa
O rei o proveu de tudo, indo sempre além do que fora pedido. Ofereceu-
melhores de todo o reino, além de toda a sorte de vasos dourados e muitas barras
de ouro. Sem vacilar nem lastimar-se o rei determinou que se enchessem quatro
12
"Gylstram". Região fictícia, supostamente localizada no Ocidente extremo.
13
"Ranculat". Situado junto ao Eufrates, assume aqui o significado de antípoda, isto é, de ponto situado
no Oriente extremo, em posição diametralmente oposta à de "Gylstram".
14
Arca. Espécie de baú com alças laterais, apropriado para ser conduzido em lombo de besta de carga,
pendurada na albarda, uma de cada lado. NT
24
possuíam montaria. Mas quando Gahmuret foi ter com a mãe, que o estreitou nos
braços, a dor da separação exigiu seu preço pois a bondosa senhora a ele se dirigiu
nestes termos: "Filho do Rei Gandin, não queres tu permanecer por mais tempo em
minha companhia? Ah, eu que te carreguei no ventre sei que também tu és filho de
Gandin. Deus acaso ficou cego e surdo a tal ponto que não ouve meus rogos e me
nega Sua ajuda? Terei que passar, porventura, por novos sofrimentos? A força de
meu coração e o brilho dos meus olhos, eu já os enterrei. Se Ele, o justo Juiz,
persistir em arrebatar-me o que amo, tudo o que se diz acerca de Sua amorosa
console da morte de meu pai. Ambos, vós e eu, lamentamos do fundo do coração
sua perda. Asseguro-vos que jamais mensageiro algum vos trará más notícias a
meu respeito. É por uma questão de prestígio pessoal que parto agora, a fim de
realizar feitos meritórios em terras estranhas. Senhora, esta é a sina que me coube."
A rainha assim falou: "Filho querido, já que é teu desejo dedicar-te de corpo e alma
ao serviço das formas mais elevadas do amor, não me negues agora o prazer de
preparar-te para a viagem com recursos de minha fortuna pessoal. Dá ordem aos
teus camareiros para que apanhem em meus aposentos quatro pesadas arcas.
querido, posso saber quando pretendes voltar? Isso me deixaria muito feliz."
"Senhora, eu não sei para que país a Fortuna irá conduzir-me. Mas
qualquer que seja meu caminho, vossa generosidade me proveu de tudo que é
25
forma que poderá contar sempre com minha gratidão e meus préstimos. Estou certo
uma senhora de sua intimidade, recebeu jóias no valor de mil marcos15. Mesmo hoje
um judeu emprestaria essa quantia, recebendo esses objetos em garantia, sem risco
de prejuízo. Eles lhe foram presenteados por uma admiradora. Seus méritos de
irmão e a pátria16. Para muitos foi uma grande perda. Quem em algum tempo lhe
havia prestado favores podia contar com sua gratidão inteira pois supervalorizava
cada serviço que lhe era prestado. Em virtude de sua distinta educação nem lhe
passava pela cabeça que os outros fossem obrigados a isso por dever de ofício. Era
de suas façanhas.
nunca se valendo de outros meios. De si mesmo não fazia muito caso. Respeitosos
15
Na Idade Média, medida de peso para metais nobres, que variava consoante a época e a região. O
marco que circulou em Colônia pesava 233,812 gramas, de sorte que 1000 marcos correspondiam a 5 quintais de
ouro ou de prata.
16
A epopeia se compraz em antecipar o que vai acontecer, ao contrário do romance moderno que
sonega ao leitor, até o desenlace, o conhecimento prévio dos fatos. NT
26
coadunava com sua maneira de ser. Entretanto o intrépido jovem mantinha-se fiel a
este princípio: jamais concordaria em fazer parte dos seguidores de uma testa
coroada, quer fosse rei, quer imperatriz ou imperador, ainda que se tratasse do mais
Dizia-se que dois terços ou mais do globo lhe estariam sujeitos. Tamanho era seu
prestígio entre os gentios17 que era chamado de Baruc18. Sua autoridade exercia
tamanha atração, mesmo sobre cabeças coroadas, que muitos reis se punham a
seu serviço. O cargo honorífico de Baruc existe, de resto, até hoje. A exemplo dos
princípios de vida cristã assumidos por nós pelo batismo, que são determinados por
posse dos antepassados destes. Justo por esse tempo havia chegado ali o jovem
portanto a seu serviço. É pois compreensível que, como príncipe, quisesse adotar
símbolos heráldicos diversos daqueles que seu pai Gandin lhe havia legado. Como
emblema de sua futura atuação passou a usar daí em diante, na teliz de seus
escudo e nos trajes. A gualdrapa era de seda mais verde que a esmeralda,
17
Aqui o termo "gentio" é usado no sentido lato de não-cristão, embora se trate, no caso, de muçulmanos
que, como os cristãos e os judeus, são monoteístas. NT
18
"Baruc". Em hebreu Baruch, o bendito (Referência ao Califa de Bagdá).
27
aproximadamente da cor de achmardi19 e do mesmo tecido, mais precioso que o
veludo, eram feitas a cota de armas e o mantelete. Em tudo era bordada a âncora
fundo, nem se firmaram em parte alguma. O nobre forasteiro teve que carregar o
tantos quantos constam desta narrativa. Outro testemunho não vos posso
apresentar. Segundo tais fontes sua força heróica manteve-se invicta de forma
seu punho heróico manteve-se também vitorioso mais ao norte, como Damasco,
realizavam torneios cavaleirosos. Por fim adquiriu tamanho renome que campeão
eclipsasse. Todo aquele que ousava enfrentá-lo em combate singular passava por
19
"Achmardi". Seda verde da Arábia entretecida de fios de certo ouro.
20
"Âncora arminhada". Ao iniciar suas andanças pelo mundo Gahmuret adotou símbolos que
exprimissem sua condição de cavaleiro da fortuna. Associada ao verde, cor da individuação, elege ele a âncora,
definida por ele próprio no Livro II como símbolo do cavaleiro andante em busca de afirmação. Ao atingir esse
objetivo (firmar sua âncora), tornando-se Rei de Valois por seu próprio valor, renuncia a esses símbolos
transitórios e passa a usar novamente as armas do clã do Anjou: uma pantera de sable. NT
28
Certa feita partiu dali rumo ao Reino de Zazamanc21, onde todos vinham
perdera a vida por causa de uma mulher. A doce e virtuosa Belakane o impelira para
a morte. Na verdade sua morte resultara dessa paixão não correspondida. Seus
parentes empreenderam por isso uma guerra de vingança, recorrendo para tanto à
soberana defendeu-se sem esmorecimento. Sucedeu que, por esse tempo, foi
sido devastado pouco antes pelo escocês Friedebrant e seus marinheiros, antes de
se retirarem dali.
Mas escutai agora o que neste meio tempo sucedeu ao nosso cavaleiro.
Uma tempestade no mar, da qual escapou com vida a duras penas, o havia impelido
às costas desse país. Ele singrou, pois, porto adentro, lançando ferros exatamente
em torno divisou grande número de tendas que, com exceção do lado voltado para o
mar, cercavam inteiramente a cidade. Dois poderosos exércitos haviam armado ali
governo da cidade fortificada, pois nem ele nem seu piloto haviam ouvido falar
dela. A seus mensageiros foi dito que estariam diante da cidade de Patelamunt22. A
seus serviços, mediante um soldo condizente. Mas ele pretendia enfrentar a sanha
21
"Zazamanc". Reino fictício que o autor situa na África.
22
"Patelamunt". Capital fictícia do igualmente imaginário Reino de Zazamanc.
29
dos inimigos da cidade contando ainda com outra recompensa. A resposta veio
unânime da boca dos cavaleiros feridos e dos ainda incólumes, dizendo que nesse
caso entregar-lhe-iam todo o seu ouro e todas as suas pedras preciosas. Tudo
passaria a ser dele e além disso seria recebido com grandes demonstrações de
apreço. Em verdade naquele momento o ouro não estava muito nos seus cálculos,
em virtude das muitas barras desse metal que havia trazido da Arábia. Os habitantes
de Zazamanc eram escuros como a noite, de modo que uma longa permanência não
lhe parecia exatamente sedutora. Á despeito disso decidiu ficar na cidade, onde foi
imaculado, fosse ornado de numerosas peles de marta negra, nas quais o marechal
confiança pois acreditava já ter visto esse cavaleiro ou seu sósia em algum lugar,
mais precisamente em Alexandria, quando essa cidade fora assediada pelo Baruc.
Porém precedendo a estes, podia ser visto seu pessoal de serviço - pajens,
30
cozinheiros e ajudantes de cozinheiro que vinham à testa da coluna. Magnífica era
sua comitiva: doze jovens de nobre origem, distintos e disciplinados - entre eles
oito corcéis ornados de preciosas cobertas de seda. O nono vinha equipado com os
Um tamborileiro rufava seu instrumento, lançando-o para o alto, vez por outra. Mas
isso ainda não bastava ao nosso herói pois agora seria a vez dos flautistas e de três
retaguarda da coluna.
mouros e mouras. Nosso fidalgo via, pendentes das paredes e portas, muitos
toda parte pois os feridos graves, desenganados pela ciência médica, eram
colocados ao ar fresco junto às janelas. Pelo seu estado percebia-se que haviam
medido forças com o inimigo. Tal se deu com aqueles que se haviam recusado a
apresentados. Mas de ambos os lados o caminho era ladeado por beldades mouras,
Seu anfitrião o recebeu cordialmente, o que mais tarde resultaria para ele
em grata vantagem. Era, de resto, um vigoroso guerreiro que ao defender uma das
portas da cidade havia distribuído muitos golpes e estocadas. Gahmuret viu junto
31
dele numerosos cavaleiros com os braços enfaixados ou feridos na cabeça. Eram os
Gahmuret, embora sem muita disposição, saudou com um beijo. A seguir serviu-se-
lhe uma refeição ligeira. Sem tardança o marechal foi ter com a rainha que se
destacado que devemos agradecer durante toda a vida aos deuses por tê-lo
o emprego de todas as suas forças. Nesse combate que para os babilônios terminou
excepcional perpetrou tantas proezas que os inimigos recorreram à fuga como único
meio de salvação. Além disso soube que sua fama de combatente de escol
23
"Burgrave". Título dado, no Santo Império Romano-Germânico, ao comandante militar da cidade ou
cidadela. Mais tarde a dignidade se tornou hereditária tanto como função militar como título nobiliárquico. NT
32
espalhou-se por muitos países, ofuscando a reputação de todos os outros
guerreiros."
aliás, é dia de trégua. Desse modo o herói pode apresentar-se aqui, sem outras
formalidades. Ou conviria talvez descer até ele? A cor de sua pele é sem dúvida
diferente da nossa. Em verdade espero que não vá ficar chocado com isso. Antes,
porém, vou consultar meu conselheiro a fim de decidir sobre a conveniência ou não
apresentar-se diante de mim? Se seu grau de nobreza for igual ao meu, meu beijo
que ponham seus trajes mais suntuosos e permaneçam junto de vós até a nossa
sentido. Irei descer agora a cavalo a fim de trazer à vossa presença o nobre
vestimenta magnífica - e de grande valor, segundo ouvi dizer - que ele pôs em
33
seguida. A seu pedido foram aplicadas ali âncoras ricamente bordadas com fios de
ouro da Arábia. A seguir nosso herói, que sempre soube retribuir as atenções que
lhe eram dispensadas, montou o corcel que fora montaria de um babilônio por ele
cavaleiros. Apearam diante do paço real onde, nesse ínterim, haviam chegado
muitos cavaleiros ricamente trajados. Gahmuret era precedido de seus pajens que,
de dois em dois, vinham de mãos dadas. Quando seu amo entrou na sala viu muitas
sentiu seu coração tomar-se por ele de ardente anelo. Tão magnífico era seu
aspecto que involuntariamente o coração da soberana, até então contido pelo pudor
feminino, abriu-se para o amor. Ela deu alguns passos em sua direção e pediu-lhe
um beijo de boas-vindas. A seguir tomou-o pela mão e o conduziu à ala voltada para
o acampamento inimigo. Ali, junto a uma ampla janela, sentaram-se sobre uma
coberta de veludo pespontada que recobria uma macia almofada. Na verdade a cor
da rainha não superava a luz do dia. Embora sendo uma presença feminina e
finamente educada não se parecia com uma rosa orvalhada pois era preta retinta.
Sua coroa era feita de um rubi cintilante que entremostrava furtivamente a cabeça. A
anfitriã declarou-se sumamente satisfeita com a sua chegada: “Senhor, fui informada
acerca de vosso alto valor como cavaleiro. É confiada na vossa educação que peço
ameaçou ou ameaçar será afastado por meu braço. Ele estará a vosso serviço. Sou
34
apenas um cavaleiro solitário mas todo aquele que vos agrediu ou agredir irá
esbarrar no meu escudo. Mas isso pouca impressão irá causar ao inimigo."
considerando que Friedebrant se fez outra vez ao mar. Ele estará ocupado com a
libertação de seu próprio país, já que os parentes do Rei Hernant, morto por ele por
causa de Herlinda, dar-lhe-ão muito trabalho, pois sua sede de vingança é sem
Hüteger e seus companheiros, cuja atuação nos infligiu muitas perdas. Eles são
Normandia, o nobre e experiente guerreiro que consigo trouxe numerosa tropa. Mais
foram trazidos a este país por Friedebrant, rei da Escócia, e por seus aliados. A
oeste, junto ao mar, está acampado o enlutado exército de Isenhart. Desde que seu
exército que não esteja tomado da mais profunda tristeza. As lágrimas rolam
"Esclarecei-me por favor por que estais sendo castigada com tamanho rigor pela
força das armas adversárias. Afinal muitos ousados combatentes estão à vossa
disposição e causa-me pena ver como o ódio do inimigo vos persegue e intenta
35
"Quero, nobre senhor, dar-vos a explicação desejada. Certa vez esteve a
meu serviço um distinto cavaleiro. Ele era um ramo no qual floresciam todas as
qualidades varonis. Era tão corajoso e sábio, tão firme em sua lealdade como uma
demais cavaleiros, sendo além disso casto como uma mulher. Era dotado de
coragem, vigor e generosidade inigualáveis. O que seria de nós, não sei. Que os
outros julguem a respeito. Era lhe estranho qualquer procedimento menos digno.
Negro de pele, era mouro como eu. Tankanis, seu pai, desfrutava também de
grande reputação. Meu amado chamava-se Isenhart e mal avisada andou minha
intuição feminina ao aceitar seus serviços sem lhe conceder a tão almejada
felicidade. Terei que lamentar esse lapso por toda a minha vida. Seus parentes
acreditam ter sido eu a causadora de sua morte; mas por mais que seu clã me
incrimine sou incapaz de trair a quem quer que seja. Eu o amava mais do que ele a
mim. Tenho até testemunhas com cuja ajuda pretendo provar minhas afirmações.
Os deuses dele e os meus conhecem, com certeza, a verdade inteira. Por causa
dele venho passando por muitos dissabores. Meu recato feminino levou-me a fazê-lo
minhas penas. Minha pureza virginal impeliu o herói à obtenção de grande renome
nas pugnas cavaleirosas. Por fim, resolvi pô-lo à prova a fim de determinar se era
digno de se tornar meu amante. Sua disposição tornou-se logo evidente, de vez que
por minha causa doou todo o seu aparato bélico. Isso incluía sua tenda, grande
como um palácio, que foi transportada pelos escoceses a esta planície. De tudo
abriu mão e no seu desgosto nem à vida dava mais importância. Sem armadura
lançou-se em mais de uma aventura até ser colhido pela desgraça. Certa feita um
36
príncipe chamado Prothizilas partiu com seus seguidores em busca de aventuras, o
que iria custar-lhe muito caro. Na floresta de Azagouc24, decidiu enfrentar um varão
destemido em luta singular. Esse encontro foi-lhe fatal mas seu adversário foi
eu, pobre mulher, essa calamidade. A morte dos dois homens me angustia
homem nenhum."
jamais tamanha dignidade, honesta e fiel, habitara o coração de uma mulher. Sua
virtude, suas lágrimas que, brotando-lhe dos olhos, molhavam suas faces e
do mar o rei escocês atacou-me de surpresa com suas forças, por ser primo de
Isenhart. Na verdade não puderam infligir-me dano maior que aquele que já havia
varão. Até mesmo a clara coloração de sua pele não lhe parecia de todo insólita,
pois anteriormente havia conhecido muitos pagãos de pele clara. Sem se darem
24
"Azagouc". A exemplo de Zazamanc, um reino africano fictício
37
mais poder desprender os olhos do outro. A seguir ela mandou vir o trago de
despedida. Se fosse possível teria preferido não fazê-lo. Afligia-se com a idéia de
que a despedida não podia ser protelada por mais tempo pois implicava igualmente
a saída dos cavaleiros que teriam preferido prolongar um pouco mais a conversa
que mantinham com as damas. Mas ela já era inteiramente devotada a ele e em via
de lhe consagrar o coração, de modo que suas vidas se entrelaçavam. Foi então
que ele se levantou e disse: "Senhora, devo estar importunando, por vos ter
servir. Disponde de mim, senhora! Meu braço vingador abaterá qualquer alvo que ,
nenhum deles era mantido fechado, "desde que a furiosa vingança do inimigo nos
atingiu por causa da morte de Isenhart. Dia e noite os combates fluíam e refluíam
38
sem definição. Desde então, os portões eram mantidos abertos. Os fiéis
passado por uma lança, lembrando a forma pela qual Isenhart perderá a vida. Seu
exército elegera essa imagem como signo heráldico. Para atenuar as penas de
apenas reforça sua fidelidade. No alto desses oito portões paira nossa bandeira.
Friedebrant, uma tropa cristã vinda do além-mar. Cada portão é defendido por um
príncipe, que sob o seu pavilhão empreende investidas e oferece combate. Nessa
elevado resgate. Como sobrinho de Kaylet deverá responder por todos os danos
que este nos causar. Na verdade só raramente nos é possível levar a efeito uma
25
"Lance de arremetida". No torneio o percurso entre o ponto inicial da arremetida e o local do
entrechoque dos cavaleiros.
39
muitas justas." O anfitrião prosseguiu no seu relato: "Entre nossos adversários há
serviço da dama que o enviou, de que lhe terá valido sua audaciosa provocação? E
o orgulhoso Hüteger, sobre o qual devo acrescentar mais alguma coisa. Desde que
prendas26, reputadas como valiosas pelos pregoeiros de torneio27. Elas aderem aos
escudos de muitos dos nossos, ao serem atravessados pela lança desse intrépido
adversário. Muitos dos nossos cavaleiros foram derrubados por ele. De bom grado
exibe-se ele aos olhos do público e até mesmo nossas damas o exaltam. E quem for
exaltado pelas mulheres será exaltado em toda parte. Louvor e prazer lhe estarão
assegurados."
Enquanto isso o sol cansado ocultou o esplendor sob o seus cílios e foi
jantar pronto para ser servido. Sobre o jantar devo relatar-vos mais alguma coisa.
de Gahmuret, onde o peixe e o assado de garça já haviam sido postos. Ela viera
26
"Prendas". Era uso, na Idade Média, atar nas lanças as prendas oferecidas pelas damas que, ao ser
perfurado o escudo do adversário, ali ficavam presas.
27
"Pregoeiro de torneio". Ajudante do cavaleiro empenhado numa justa. Ele provia o combatente de
novas armas, substituía as montarias exaustas por outras descansadas e proferia os gritos de guerra.
40
Acompanhavam-na as donzelas de sua corte. Para a consternação de
Gahmuret ela se ajoelhou a seu lado e com as próprias mãos partiu a comida e
um tratamento tão honroso como este que me dispensais nunca recebi em toda a
agora uma recepção consoante meu merecimento e vós não teríeis vindo. Se
servissem à vontade. Tal ela fez para honrar o hóspede. Os pajens achavam a
"Recomendo-te de modo muito especial nosso hóspede, que honra tua casa. Este
pedido eu o dirijo a vós dois". Ela se despediu e a seguir dirigiu-se uma vez mais a
seu hóspede, cujo coração já estava tomado pelas inquietações de amor. Isso lhe
denunciavam seus olhos e seu coração que, sem dúvida, estavam mais
senhor! O que desejais ser-vos-á concedido, pois vós o mereceis. Não obstante,
permiti que me retire. Será motivo de satisfação para mim se tudo correr consoante
41
vossos desejos e preferências". Os candeeiros de quatro velas que a precediam
eram de ouro puro e ela se retirou por um caminho onde havia muitos desses
candeeiros.
nosso herói se sentia triste e alegre; alegre pela distinção que lhe era conferida; por
outro lado, atormentava-o pela uma dor angustiante. Era o amor que vinha, com
descanso. Repousai bem para que, possais enfrentar o que vos aguarda amanhã". A
camas de seus jovens fidalgos haviam sido dispostas em torno da sua com as
ambiente. Entretanto nosso herói se aborrecia com a noite que lhe parecia
algumas vezes quase fora de si. Sem poder conciliar o sono, virava-se como vara de
um lado para outro, de sorte que em virtude da tensão todos os seus ossos
estalavam. Ansiava ardentemente por luta e amor Fazei, pois, votos para que esses
anseio de combater, palpitava com tanta veemência que as batidas eram audíveis,
28
"Besta". Arma antiga formada de arco, cabo e corda com que se disparavam setas. NT
42
OS COMBATES DE GAHMURET DIANTE DE PATELAMUNT
recomendou ao capelão que se paramentasse para a missa matinal, que foi rezada
trazida a armadura com a qual deveria partir, sem demora, para o combate. Ele
montou o fogoso corcel que partiu de um salto mas obedecendo à pressão do freio,
virou-se agilmente na direção oposta. Ele foi visto cavalgar rumo ao portão, com a
âncora encimando o elmo. Homens e mulheres asseguravam nunca ter visto tão
magnífico cavaleiro. Ele se assemelhava por demais aos seus deuses. Poderosas
E que tal o ornato de suas armas? Seu corcel era coberto de uma barda
para protegê-lo contra golpes de espada. Sobre esta trazia uma coberta leve de
altura a rainha já estava sentada em meio a suas damas, junto à janela. Hüteger
cavaleiro galopar em sua direção, pensou consigo mesmo: "Quando e como esse
29
"Dorso". Reforço metálico embutido no centro do escudo.
43
francês chegou ao país? Quem teria enviado esse ousado combatente? Se eu o
se em pedaços, de sorte que seus fragmentos volteavam pelos ares. Ele próprio foi
arremessado pelo adversário sobre a relva, à retaguarda de seu corcel. Até então
jamais havia passado por uma situação semelhante. Gahmuret arremeteu sobre ele
dirigisse para a cidade. Naturalmente isso lhe valeu os aplausos generalizados das
estava preparado para esse segundo encontro. Sua lança era constituída de uma
44
haste reforçada com ponta achatada. Quando os dois adversários se entrechocaram
vossa mão que com tanto valor soube combater! Regressai e determinai ao exército
escocês que daqui por diante se abstenha de nos hostilizar. Depois segui-me para a
suspender as hostilidades.
Mas eis que se aproxima Kaylet. Por ser seu primo, Gahmuret recuou
diante dele. Por que razão haveria de lhe causar dano? Na verdade o espanhol não
penacho de plumas. Convém registrar que esse ilustre varão vinha ataviado com um
longo e ondulante manto de seda. Sonoramente retiniam os guizos dos seus arreios,
De tal florescente graça desfrutariam, mais tarde, apenas Beacurs, filho de Lot, e
Parsifal. Estes na verdade ainda não haviam nascido, mas em seu tempo eram
Gaschier agarrou o corcel de Kaylet pelo freio: "Por minha fé, se fordes
competir com o angevino, vossa fúria combativa irá arrefecer de pronto. A ele tive
consideração meu conselho e meu pedido. Assumi com ele o compromisso de vos
45
pois, por consideração a mim, de vossa sede de combater, caso contrário também
A isto o Rei Kaylet respondeu: "Caso esse cavaleiro seja meu primo
Gahmuret, filho do Rei Gandin, então desisto do intento de medir forças com ele.
Soltai o freio!"
"Não vou soltá-lo, enquanto vossa cabeça estiver protegida com o elmo; a
minha ainda está um tanto atordoada." Então Kaylet desatou a presilha do elmo,
descobrindo-se. Mas Gahmuret ainda teria que enfrentar outros combates. A manhã
assemelhava a uma armadilha de apanhar pássaros. O que lhe caía nas mãos era
onde junto ao mar o inimigo mouro com seu exército estava acampado. Ali fez alto e
tomou posição.
país de Azagouc e não havia dia em que não se apresentasse diante da cidade,
46
oferecendo combate. Honrava com isso sua origem, pois descendia de uma estirpe
de reis. Porém o herói de Anjou o pôs rapidamente fora de combate. Isso para o
desgosto da fidalga negra que Razalic havia enviado ao local para presenciar o
combate. Sem que lhe fosse solicitado, um escudeiro entregou ao Senhor Gahmuret
uma lança com haste de bambu. Com ela arremessou o mouro à retaguarda de seu
cavalo, sobre a areia. Sem lhe dar tempo para refletir, obrigou-o a render-se. Com
isto a guerra havia terminado e Gahmuret alcançara grande fama. Quando observou
que, a despeito disso, uma grande formação de tropas precedida de oito bandeiras
que lhe desse ordem de recuar imediatamente e depois o seguisse para a cidade.
de Gahmuret deu-se conta de que seu hóspede havia partido para o combate. Num
acesso de desgoste ele só não engoliu, como o avestruz, seixos e pedaços de ferro,
pelo fato de não ter tais coisas à mão. Rosnando de raiva e bramindo como leão,
eu! Os deuses enviaram à minha casa um digno e destemido hóspede. Caso ele,
Quem me recordar este dia poderá com boas razões considerar-me desonrado."
47
signo o identificava desde logo como sendo procedente do Reino de Isenhart.
Trazia, além disso, o elmo e a espada que Razalic tão corajosamente havia
escura, cuja fama corria longe. Caso viesse a falecer sem o sacramento do batismo,
que Aquele cuja onipotência tudo pode se apiedasse desse intrépido herói.
portão, onde deparou com seu jovem hóspede, disposto a enfrentar novos desafios.
Foi então que o anfitrião Lachfilirost agarrou seu cavalo de batalha pelo freio,
levando-o à força de volta à cidade a fim de que naquele dia não mais
país estará doravante ao abrigo de todas as incursões hostis. Ele é o líder de todos
esses mouros, de todos esses partidários do fiel Isenhart. Agora nossas angústias
terminaram. Um deus irado deve tê-los instigado a marchar sobre nós com seu
gorjal e segurou seu cavalo pelas rédeas; com isso o anfitrião ficou dispensado de
vitórias e celebridade diante dos olhos de todos, pelas ruas da cidade. Chegando ao
30
"Schahtelacunt". Corresponde, em francês arcaico, à locução "Cons dei Gastei", que Wolfram
germanizou, invertendo a ordem das palavras e aglutinando-se. Corresponde ao título "Burgrave".
48
destino, desmontou e disse: "Ai de mim, quão lealmente dedicados sois vós, ó
escudeiros! Acaso receais perder este ilustre varão? Doravante ele será bem
cuidado, mesmo sem vossa ajuda. Tomai seu cavalo e o conduzi convosco. Serei
RECOMPENSAS AMOROSAS
pessoa, com sua mão escura, retirou-lhe a armadura. A seguir foi conduzido a uma
cor da pele de ambos fosse diferente, ela e seu querido Gahmuret entregaram-se
valente Razalic, este tratou de cumpri-las com toda a lealdade, embora a dor pela
49
memoráveis feitos por ele realizados. Vinte e quatro cavaleiros haviam sido
cavalos enviada para a cidade como despojos de guerra. Os três príncipes que
NEGOCIAÇÕES DE PAZ
ontem, agora mulher florescente, o conduzia pela mão. Ela disse: "Eu e meu reino
objeção a fazer?"
singular, ele pediu que a beijasse na boca. A seguir pediu aos cavaleiros que se
50
prosseguiu: "Muito me agradaria ver também diante de mim meu sobrinho, caso
A rainha começou a rir e determinou que fosse trazido à sua presença. Assim
combate, já que se havia batido com distinção. Ele vinha sendo conduzido por
Gaschier, o normando.
Era extremamente educado, pois seu pai era francês. Era sobrinho de
parentesco existente entre ambos. Ao avistá-lo Gahmuret pediu à rainha que lhe
também até mim". E deu-lhe igualmente um beijo. Ambos estavam felizes com o
reencontro e Gahmuret foi logo dizendo: "Ó jovem florescente, tu que ainda não
atingiste plenamente a força da idade viril, o que te trouxe até cá? Dize-me se foi
"Ó senhor, ainda não cuidei de me pôr a serviço de uma dama. Eu vim
com meu primo Gaschier, que certamente sabe por que estamos aqui. Reforcei seu
exército com mil cavaleiros e estou sempre disposto a lhe dar apoio. Para atendê-lo
parti da Champanha para Ruão, na Normandia, para a junção dos exércitos, pondo
à disposição dele um pugilo de jovens heróis. Agora a fortuna das armas voltou-se
contra ele. Peco-vos, por isso, que façais com que por amor à vossa honra se
51
conforme e que nosso parentesco sirva de argumento para amenizar sua condição
de prisioneiro."
"Deste caso tu mesmo irás tratar. Vai, desde logo, com o Senhor Gaschier
sua presença. Também ele foi recebido com cordialidade por Gahmuret e pela
rainha, que o abraçou e lhe deu um beijo sobremodo afetuoso. Nisso nada havia
demais, pois era de sangue real e primo de Gahmuret. Rindo, o anfitrião retomou a
palavra: "Deus sabe, Senhor Kaylet, que eu teria sido pouco leal se para a vantagem
do Rei da Gasconha, cuja cólera já vos causou não poucos embaraços, tivesse
pretendido arrebatar-vos Toledo e vosso reino espanhol. Sois, afinal, meu primo.
reforcei seu exército com seis mil seletos e aguerridos cavaleiros. Por consideração
a ele trouxe, além disso, mais cavaleiros, dos quais parte já se retirou. Assim, aqui
combate. Todos eles já se retiraram. Porém eu, juntamente com os meus guerreiros,
52
Belakane, que pode dispor de meus serviços. Tu não me deves, por isso, em virtude
de nosso parentesco, qualquer favor, de vez que agora estão sob tuas ordens todos
seriam, como inimigos, uma ameaça para qualquer testa coroada. Dize-me agora,
"Acredito que esta maneira gostosa de fazer a guerra fez com que, desde
não te cansaste em desafiar-me em altas vozes. O que afinal pretendias ganhar com
"Não poderia supor que estivesses por trás da âncora daquele escudo,
considerando que meu tio Gandin nunca se apresentou com esse símbolo."
53
"Provavelmente eu teria tido a mesma sorte e devo confessar: o demónio
em pessoa, que sempre terá minha antipatia, teria engolido as mulheres como
"Não, lisonjear não é de meu feitio. Tu te terás que valer de meu apoio de
forma diferente."
A seguir pediram a Razalic que viesse até eles. A ele Kaylet dirigiu-se
"Assim é, senhor. Tive que prometer a este ilustre varão que o reino de
Azagouc irá permanecer disponível e dócil à disposição dele, de vez que a cabeça
do meu soberano Isenhart já não mais pode carregar a coroa. A serviço dessa
senhora que agora é esposa de vosso primo, perdeu ele a vida. Com meu beijo
perda, então irei estender-lhe as mãos postas. Terá então posses, honras e tudo o
que mais Tankanis deixara ao seu herdeiro Isenhart, cujo corpo embalsamado acha-
se exposto em nosso acampamento. Desde que esta ponta de lança traspassou seu
54
"Ainda é cedo. Caso o Senhor Killirjacac esteja disposto a transmitir uma mensagem
Como credencial deu-lhe um anel para o cumprimento da missão. De fato, não muito
depois viu-se cavalgar pela cidade todos os príncipes, negros como a noite. Ali
declarou-se satisfeito com seu feudo. Como soberano deles, Gahmuret reservou
que, com mão experiente obtivera muitas vezes honrosas vitórias: o burgrave
por seu desempenho em combate, a tenda de Isenhart, que está armada diante da
cidade. Ele pagou com a vida o gesto de doar a Friedebrant sua armadura, a grande
preciosidade de nosso reino. Toda a sua fortuna se arruinou e agora ele próprio aqui
31
Uma das formas de concessão de feudos. Consistia no ato formal em que o vassalo entregava ao
suserano uma bandeira, a qual este lhe oferecia novamente. Por estar vinculada à jurisdição senhorial e ao direito
de convocar os vassalos para a guerra, a concessão de tais feudos era privilégio exclusivo dos reis.
55
jaz neste ataúde. Um amor não correspondido o precipitou nesta desgraça". Não
Hüteger prometeu solenemente que tão logo regressasse ao reino de seu soberano
mais devastado que estivesse seu país, Gahmuret pode distribuir tais presentes
como se o ouro medrasse nas árvores. Sumamente preciosos eram tais presentes.
Em atenção aos desejos da rainha tanto os seus combatentes quanto seus parentes
tiveram naquele dia como desfecho a reconciliação. Foi-me dito - eu não o inventei -
que a Isenhart foi dado pelos seus um funeral de rei. A seguir, por decisão
tributos anuais sobre suas propriedades. Gahmuret porém legou essas riquezas
acumuladas aos seus novos súditos com a recomendação de serem rateadas entre
determinou que fosse transportada para o seu navio, alegando a seus súditos que
56
O altivo e intrépido cavaleiro ali permaneceu até o ponto em que mal pôde
reprimir sua sede por novas aventuras. Sua alegria de viver redundou em amargura,
pelo fato de não mais poder exercitar-se em pugnas cavaleirosas. A despeito disso
amava a esposa escura mais que a própria vida. Com efeito, nenhuma mulher lhe
parecia mais encantadora que ela, pois seu coração estava sempre em nobre
fizesse com ele ao mar. Esse homem, um branco como Gahmuret, já havia
manejado antes o timão de sua nau através de muitas milhas marítimas e fora
igualmente ele que o trouxera a esse lugar. O esperto piloto disse-lhe: "Usai de todo
o cuidado para que os homens de pele escura não saibam de vossas intenções.
Meu navio navega com tamanha rapidez que eles não nos poderão alcançar.
filho de doze semanas. A ele, porém, o vento arrebatou célere daquelas paragens.
57
A soberana encontrou em sua bolsinha uma carta do marido, escrita em
francês, que lhe era familiar. Ali estava escrito: "Com esta, o amante assegura à
por ti, de vez que, mesmo assim, a despedida me foi deveras penosa. Se deres à luz
um filho, ele será certamente robusto, pois descende da estirpe de Anjou. O próprio
combate com seus inimigos e sobre eles cairá como granizo. Meu filho, um dia, terá
de saber que Gandin, morto numa justa, foi seu avô. Ao pai deste, chamado Addanz,
coube a mesma sorte, pois nunca voltava para casa com o escudo intacto. De raça
era bretão. Ele e Utepandragun32 eram filhos de dois irmãos, sobre os quais corria a
foi arrebatado para o país de Feimurgan33 pela fada Terdelaschoye34, cujo coração
cativou. Esses dois fundaram minha estirpe que, desde então, ascendeu
de volta."
Não era outra sua aspiração: "Ai de mim. Isso poderia ter sido feito
imediatamente. Eu concordaria com isso sem titubear, caso ele regressasse. Agora,
32
"Utepandragun". Depois da retirada dos romanos foi restabelecido na Bretanha o governo de clã. Os
bretões, unindo-se numa confederação, instituíram o cargo de "Pendragon" (ou "Pandragun"), cujos étimos "Pen"
(cabeça) e "dragon" (líder) significam literalmente "chefe supremo". O nome do pai do Rei Artur era, portanto,
Ute (ou Uter), seguido do título "Pandragon". NT
33
"Feimurgan". Terra lendária no universo mítico dos celtas.
34
"Terdelaschoye". O próprio nome dessa mulher sobrenatural — (Ter-de-la-Schoye) (terra das delícias)
— remete à "Terra da Alegria", situada no ocidente extremo, "lá onde o sol se põe" que seguidamente aparece no
ciclo arturiano. Foi aliás para lá, depois de morto, que o corpo do Rei Artur teria sido trasladado para o repouso
eterno. N T
58
a quem o herói deixa entregue o fruto de seu amor? Ai de ti, ó terno vínculo
amoroso, pois por tua causa caber-me-á doravante como sorte uma dor desmedida.
consoante sua vontade." Assim seu coração debatia-se em penas enquanto sua
felicidade se retirava para um ramo seco, como costuma fazer a rola; quando o
amado se ausenta ela elege como paradeiro um ramo seco, como símbolo de sua
fidelidade.
O NASCIMENTO DE FEIREFIZ
Quando chegou sua hora a soberana deu à luz um filho bicolor no qual
Deus havia operado um prodígio. É que sua pele era malhada de branco e preto. A
rainha cobriu de beijos as partes brancas de sua pele. Feirefiz35 de Anjou foi o nome
que a mãe impôs ao filho que se tornaria um demolidor, de tanto quebrar lanças e
perfurar escudos. Sua pele e seus cabelos eram matizados de preto e branco, como
a plumagem da pega36.
Zazamanc, onde havia obtido vitórias e acumulado riquezas. A despeito disso ainda
cruzava os mares, em virtude dos fortes ventos contrários. Mas eis que então
avistou no horizonte distante uma vela de seda vermelha. Era a vela da nau dos
35
"Feirefiz". Significando, literalmente, "filho colorido".
36
"Pega". O autor volta à alegoria da pega, utilizada no "prólogo" do poema (V. Nota n." 1). NT
59
Belakane. Por meio deles apresentava-lhe desculpas por ter invadido seu país
consigo o elmo diamantino, uma espada, uma cota de malhas e um par de grevas. O
sucederam exatamente dessa forma. Eles lhe entregaram a armadura. Ele, por sua
rainha.
cavaleiro remunerou o piloto largamente com ouro, pelos serviços que lhe prestara.
60
LIVRO II
A VIAGEM DE GAHMURET A KANVOLEIS
primo Kaylet. Ele foi à sua procura em Toledo, mas Kaylet havia-se ausentado para
participar de um torneio onde a luta prometia ser áspera. Segundo assegura meu
relato Gahmuret também mandou que fossem feitos preparativos: lanças de torneio
era firmada uma bandeira em cujo campo apareciam três alvíssimas âncoras
61
prolongavam-se até o punho. Uma centena de lanças, preparadas desse modo, era
fantasia. Eu conto- permiti que o diga - a pura verdade. Gahmuret determinou à sua
tropa que fizesse alto e enviou inicialmente o esperto chefe dos escudeiros à cidade,
onde devia procurar para seu amo um local de pousada. Ele partiu célere que era
seguido por outros que puxavam atrás de si os animais de carga. Mas o escudeiro
não achou casa que já não tivesse como prolongamento um segundo telhado feito
dependuradas, a ponto de não mais ser visível a alvenaria. É que a Rainha de Valois
condições que mesmo hoje faria muitos poltrões gelar de horror. Claro está que este
não era assunto para maricas. A rainha era ainda solteira e empenhara como prêmio
ao vencedor do torneio sua mão e seus dois reinos. Esse chamariz seria fatal a
verdade qualquer perspectiva de obter o prêmio. Heróis intrépidos davam ali prova
62
Um portão fechado vedava o acesso a uma ponte de barcas, construída
sobre o rio, que conduzia a uma planície verdejante. Um escudeiro abriu o portão
sem fazer muitas perguntas. Acima da ponte erguia-se o palácio em cujas janelas
podiam ser vistas a rainha e muitas damas da corte. Seus olhares curiosos
acordo e armaram a tenda que o Rei Isenhart perdera, depois de Belakane ter-lhe
recusado a recompensa que esperava receber pelos serviços que lhe prestara. A
custo armou-se a magnífica tenda, para cujo transporte foram necessárias trinta
bestas de carga. O espaço livre era suficientemente amplo para ancorar as escoras
de sustentação das cordas. Enquanto isso o nobre cavaleiro Gahmuret fazia uma
que sua entrada na cidade fosse distinta e notável. Seus escudeiros armavam
numa mão, enquanto a outra segurava uma sexta, onde se achava firmada uma
demonstrou estar familiarizado com os hábitos da corte. A julgar por sua língua
alguns pareciam oriundos de Anjou. Seu espírito era altivo e seu vestuário, feito sob
comportavam de modo distinto. Eles afirmavam que seu amo cuidava dos
Ao lhes perguntar quem era seu amo responderam que era o Rei de Zazamanc." O
pajem que havia transmitido à rainha esta notícia assim prosseguiu: "Vede que
63
tenda! Vossa coroa e vosso próprio reino não alcançam sequer a metade de seu
valor!"
pertencer a um rico e nobre cavaleiro", atalhou a rainha. "Mas quando será que ele
próprio fará sua entrada?" Ela determinou ao pajem que tratasse de se informar a
respeito.
trombetas. Dois tamborins, rufados a toda a força, causavam tamanho alarido que
ecoava por toda a cidade. A isso se misturava o som das flautas tocando uma
marcha. Não devo omitir o relato sobre a forma pela qual se deu a entrada do
nobre varão colocou diante de si, sobre a sela, uma perna nua, enfiada apenas
numa bota leve. Seus lábios cheios, vermelhos como rubi, brilhavam como se
deitassem labaredas. Toda a sua figura era deslumbrantemente bela. Seus louros
de zibelina negra, era seu manto que descia sobre uma vestimenta alvíssima.
identidade desse cavalheiro imberbe que com tamanha pompa vinha entrando na
64
verdadeiras. Eis que se aproximava da ponte a coluna de Gahmuret, conduzida por
empertigou-se na sala. Nosso herói deu-se conta de quanto era convidativo esse
lugar onde a anfitriã, a Rainha de Valois, lhe concedia de bom grado o direito de
hospitalidade.
havia sido armada a tenda que, consoante desejo do valoroso Razalic, permanecera
Ao lhe ser transmitida essa notícia por um cavaleiro, saltou do leito, lesto
vosso primo entrar na cidade com o fausto costumeiro. Diante de sua enorme tenda,
37
"Leoplano". Grande planície diante de Kanvoleis
65
Sem tardança despachou mensageiros para o local em que Gaschier, o
Killirjakac. Ambos tinham vindo a pedido dele para participar do torneio. Juntos
lhes informações sobre os cavaleiros que haviam vindo para o torneio. O filho de sua
distantes, apresentaram-se aqui impelidos pela paixão." Ali também estava o Rei
que fugira com um clérigo versado em magia negra39. Artur seguira no encalço
deles. Agora já se haviam escoado quase três anos desde que perdera, de uma só
ver, filho e mulher. Também se encontrava no local seu genro, Lot da Noruega, um
sedento de glória. Com ele viera o filho Galvão, demasiadamente novo para
suficientemente vigoroso para quebrar lanças com o adversário. Quão cedo nele
38
"Mãe de Artur". Esposa de Utepandragun, cujo nome, Arnive, é mais adiante mencionado no texto.
39
"Mago versado em arte negra". Refere-se a Clinschor, mencionado mais adiante no texto.
40
"O rapazinho se avistou comigo". Com esta intromissão, entrevistando-se com uma das futuras
personagens-chave do poema — Galvão —, Wolfram pretende fazer crer ao leitor que esteve presente ao evento
como testemunha ocular. NT
66
floresta de lanças. Na verdade essa força representava nada,comparada à dos
virtude de sua mania de perfurar o maior número possível de escudos. Presentes ali
impor-se no entrevero do combate. Ainda muitos outros cavaleiros, aos quais nem
todos conheço pelo nome, compareceram para prestigiar suas damas. Como nós,
aos desejos da rainha. Agora quero dar-te ainda notícias daqueles que lá fora se
valente Lahelin e Morholt da Irlanda, que já havia aprisionado muitos dos nossos.
marcou sua presença no reino e isto especificamente por causa do Rei Hardiz. O
soberano da Gasconha havia-lhe dado em casamento sua irmã Alice, de sorte que
Todos eles estão impacientes para enfrentar-me no torneio. De minha parte ponho
ti, não precisas agradecer-me. Nós dois seremos coração e alma. Teu penacho
acaso está sem ninho? Teu elmo encimado pela serpente pode pôr-se
67
tranquilamente em campo contra o meio-grifo dele. Ao arremeter contra mim, minha
âncora atingirá firmemente o fundo, de sorte que Hardiz tratará de achar um lugar
seguro na areia à retaguarda de seu cavalo. Caso venha a defrontar-me com teu
O TORNEIO DE KANVOLEIS
liça um combate singular, dando início aos exercícios da véspera de torneio41. Ali
vinham arremetendo seis, acolá três, aos quais logo se juntava um grupo. Num abrir
o Rei de Zazamanc dirigiu-se sem pressa para o local dos combates, escoltado por
muitas lanças encimadas de claras flâmulas. É que pretendia antes observar com
41
"Véspera de torneio". Jogos marciais realizados no dia precedente ao do torneio propriamente dito.
42
"Regras de torneio". Na Idade Média os torneios eram exercícios de arte marcial, organizados com o
objetivo de adestrar os membros da nobreza. Para evitar ferimentos decorrentes de excessos, eram previstas
regras de cumprimento obrigatório. Quando se indica Godofredo de Preully como tento inventado os torneios em
1066, deve-se entender que lhes deu ordem e forma, pois Santo Enódio (473-521), Bispo de Pávia, já a eles se
refere em seu "Panegírico de Teodorico". N T
68
toda a calma o rendimento das duas facções em luta. Na planície onde os
som do entrechoque das espadas vinha de todas as direções. O sonoro tilintar das
que se entrechocavam o envolvia como sólida muralha erguida pelo punho dos
Mas ela não era a única a perguntar por ele. É que nesse entretempo
havia falecido o Rei da França, cuja esposa se apaixonara perdidamente por nosso
herói bem antes deste haver partido de Valois. Ocorreu que a nobre rainha havia
esse passo.
concorrer ao prêmio estipulado pela rainha - sua mão e seu reino. Aspiravam, por
69
Gahmuret já havia posto a armadura que fora enviada à esposa como
todos os prejuízos que lhe havia causado com suas incursões guerreiras. Não havia
Sim, esse era um elmo e tanto! Sobre ele foi firmada uma âncora ornada de pedras
precioso de ouro da Arábia fora fixado no escudo, carga considerável, cujo peso
Gahmuret bem que pode sentir. Sua superfície era tão polida que podia servir de
espelho. Na parte inferior foi aplicada uma âncora de sable. O restante de seu
vestuário eu mesmo bem que gostaria de possuir, pois valia milhares de marcos.
comprida que descia até o tapete. Acredito mesmo que algo tão magnífico nunca
mais, depois dele, havia sido usado em combate. Só posso descrevê-la desse
modo: ela brilhava qual labareda noturna e nela não havia um só lugar que fosse
fosco. Seu brilho atraía sobre si todos os olhares e era tão intenso que chegava a
magoar os olhos doentes. Era urdida de um certo ouro que os grifos43 com suas
garras extraem de uma rocha do Cáucaso e mantêm escondido até hoje. Os árabes
seda. Não havia, em parte alguma, túnica igual. Gahmuret ergueu pois o escudo até
43
"Grifo". Animal fabuloso, misto de leão e águia, possui uma antiguidade de 4 mil anos, pois já figurava
na Sala do Trono do Palácio de Cnossos em Creta. Em nossa era o Cristianismo e a Heráldica conferiram-lhe
novo significado. Reunindo em si o princípio de dois animais reais — o do leão e o da águia — (elemento terra-
ar) o grifo representa, no sentido heráldico, a força e a velocidade e no sentido religioso, a dupla natureza, divina
e humana do Cristo. N T
70
a altura do gorjal. À sua espera estava um magnífico corcel cuidadosamente
Gahmuret montou e, enquanto o diabo esfregava o olho, nosso herói gastou número
tropel dos combatentes e sua âncora era seguida pelo penacho. Gahmuret
proveito dos feitos de nosso herói, pois este lhes doou as montarias tomadas ao
ostentando em seu campo uma cauda de grifo. Uma audaciosa tropa a cavalo
acidentado foi inteiramente aplanado pelas patas dos cavalos, enquanto as espadas
faziam seu trabalho de devastação. Uma verdadeira floresta de lanças foi consumida
44
"Portadores da Cruz da Pobreza". Possível alusão aos templários. NT
71
arrastaram-se, então, para fora do local do combate, permanecendo num canto,
Riwalin, Rei de Lohneis - uma chuva de brancos estilhaços de madeira. Quando ele
arremetia, era só estrondo que se ouvia. Enquanto isso, Morholt arrebatou ao partido
as normas, a tomar lugar na parte dianteira da sela de seu cavalo. Já antes disso
Morholt havia pago ao Rei Lac o soldo que este, ao cair, teve que catar no chão,
depois de se haver defendido com todas as suas forças. Foi aí que ocorreu ao
gigantesco Morholt a idéia de superar o adversário, sem fazer uso da espada. E foi
assim que o nobre combatente se tornou seu prisioneiro. Entrementes Kaylet havia
soberano com suas espadas. Logo depois o Rei de Aragão arremessou o velho
Utepandragun, rei dos bretões, ao solo, à retaguarda de sua montaria. Ali cresciam
muitas flores. Foi, sem dúvida, uma gentileza de minha parte ter preparado ao nobre
camponês já evitava esse lugar, muito menos depois teria ele coragem de ali pôr os
pés. Desse modo não houve necessidade de ele ficar por mais tempo sentado em
seu cavalo. Na verdade não ficou desamparado pois os seus, ainda montados, o
72
combatendo. Naquele momento vinha avançando o Rei de Puntortoys, mas diante
de Kanvoleis foi tão violentamente varrido de sua montaria que durante muito tempo
encarniçados entrechoques.
Gahmuret, e foi a partir desse momento que a luta se tornou mais áspera. Quando o
coisas estavam realmente muito mal paradas e era o amor o acicate que incitava
senhores tiveram a honra de ocupar um lugar sobre a grama aparada, depois de sua
queda sobre a relva florida! Confesso que tais distinções não me atraem. Prefiro,
73
quisesse exibir-se, mas refrescar-se. Livraram-no igualmente do gorro de malha45; a
puxavam empós si duas bestas de carga. A Rainha Amf lise os havia enviado. Num
cumprimentou, desde logo, em francês: "Nobre senhor, sede por mim e por minha
amor por vós." Com isso passou às mãos de Gahmuret uma carta, na qual este
nunca estiveram isentos de penas desde que me senti amada por ti. Teu amor é
renunciar ao teu amor, amar, para mim, será uma fonte de sofrimento. Volta e
recebe de minha mão o cetro e o reino que me couberam por herança. A eles
passas a ter direito, em nome de teu amor. Como doação, aceita esses preciosos
Herzeloyde, a rainha desse país, venha a se dar conta da situação, pois isso
45
"Gorro de Malha". Capelo em forma de capuz, feito de malha entrançada, usado sob o elmo.
74
dificilmente virá prejudicar-me. Sou mais bela e mais poderosa e sei, com mais
ternura, receber e conceder amor. Se teu coração corresponder a esse nobre afeto,
Colocou-se-lhe e se lhe atou o duro e sólido elmo diamantino pois ele pretendia pôr
sua força novamente à prova. Aos mensageiros ordenou que descansassem. Ele,
era derrotado o outro saía vencedor. Aqui cada um podia recuperar o que até então
valiam as intimidades familiares pois o ardor combativo não as permitia. Aos poucos
feito por carta, combatendo como seu cavaleiro. De fato, só a partir daí foi que o
comprazia em demonstrar sua própria força? Como quer que seja, seu grande amor
46
"Estocadas amistosas". Golpes de lança desferidos por amigos em exercícios de torneio sem caráter de
competição.
75
e sua imutável lealdade lhe conferiam sempre renovadas energias. Percebendo que
o Rei Lot se protegia penosamente com seu escudo e já se dispunha em pôr sua
varou o tropel confuso dos combatentes e com uma lança de bambu arremessou
pela queda do orgulhoso campeão não ostentava insígnia. Ele a trouxera consigo da
terra dos pagãos. A despeito do empenho dos partidários defendendo-o com todas
então, a empurrar sem demora a facção contrária rumo ao campo aberto. A véspera
passou a ser considerada um torneio plenamente válido. Como prova disso achava-
inflijam tal desonra? Ó responsável por tudo isso é aquele que tem a âncora no
escudo. Um de nós dois terá que arremessar o outro para aquele local que não
afastaram pois já não se tratava mais de brincadeira de criança. Eles lutaram tão
Lanças! Lanças!" Sem cessar, ouvia-se esse brado da boca de ambos. Mas por fim
Lahelin teve que sofrer ignominiosa derrota pois o Rei de Zazamanc o arremessou,
com uma lança de bambu, a uma distância não menor de um comprimento de lança,
76
que esses cavaleiros caíssem como frutas maduras; eu mesmo, porém, preferiria a
tarefa mais amena de colher as doces pêras. Muitos dos que deparavam com
Gahmuret exclamavam: "Aí vem chegando o homem da âncora. Para trás, saiam
da frente!"
brasão. Por que lhe teria voltado as costas? Posso indicar-vos o motivo, se assim o
desejais. Desde tempo esse escudo lhe havia sido dado pelo altivo Galões, filho do
Rei Gandin e portanto irmão de Gahmuret, antes de perder a vida num combate
singular por causa de uma paixão amorosa. Gahmuret desatou a presilha e tirou o
o pó. Causava-lhe remorso o fato de não ter indagado do primo Kaylet por que o
irmão também não se havia feito presente no torneio de Kanvoleis. Em virtude disso
Antes desse acontecimento suportara amargas penas por causa da nobre paixão
que nutria por uma poderosa rainha. Esta, ao inteirar-se de sua morte, se tomara de
desespero tamanho que, na sua sincera dor pelo morto, sucumbira a um ataque de
coração.
nos combates, já havia quebrado em um meio dia tantas lanças que por certo teria
chegado a consumir uma floresta inteira delas se o torneio propriamente dito tivesse
sido realizado. Nada menos de cem lanças, que lhe haviam sido entregues, foram
77
gastas pelo altivo campeão. Segundo o costume seus luminosos estandartes
seguido pelo pajem da rainha de Valois. A este foi entregue a túnica de Gahmuret,
ouro, era mesmo assim bastante preciosa. Brilhava qual brasa incandescente, o que
nestes termos: "Contigo uma nobre dama enviou ao meu reino um cavaleiro.
Entretanto exige o bom-tom que não sejam menosprezados os outros que para cá
vieram, atraídos pelo gosto da aventura. Quero bem a todos, pois, pela costela de
Adão, tenho com eles vínculo de parentesco. Entretanto acredito que Gahmuret
que desferiam, incansavelmente, golpes uns nos outros até ao escurecer o dia. No
decorrer da luta o partido da cidade havia empurrado os outros até suas tendas. Só
alcançaram fama e glória. Mas como ninguém tratou de iluminar o local, havia
quem é que iria jogar com a sorte, no escuro? Por isso os contendores exaustos já
78
Mas lá, onde Gahmuret tomara assento, não havia treva. Parecia como se
ainda fosse dia claro. Essa claridade, porém, não provinha da luz do dia, mas de
dos amplos tapetes, magníficas almofadas haviam sido dispostas com esmero. Eis
que se aproximava da tenda a rainha, conduzida por damas de sua corte, pois
de Valois com cavaleirosa simpatia. Esta simpatizou com ele à primeira vista e
prazerosamente excitada lhe disse: "Embora neste local em que vos visito sejais
anfitrião, neste reino a anfitriã sou eu. Se convierdes aceitar o beijo de boas-vindas,
convierdes concedê-lo também aos fidalgos aqui presentes. Mas se ele for negado a
"Tendes razão! Assim será, embora até agora não conheça qualquer
deles."
rainha tomar assento. Num fino gesto de cortesia o senhor Brandelidelin sentou a
seu lado. Folhas verdes de junco, ainda molhadas de sereno, haviam sido
79
espalhadassobre o tapete. Ali sentou-se aquele que excitava o encantamento da
rainha, a qual, a essa altura, já se vinha tomando de amor por ele. Sentara tão junto
dela que esta poderia tocá-lo com as mãos e atraí-lo para junto de si. Aquela que
havia reservado para Gahmuret um lugar tão junto de si ainda era virgem. Quereis
agora ouvir seu nome? Chamava-se Herzeloyde e era prima de Richoyde, esposa
do primo de Gahmuret, o Rei Kaylet. Era tal o esplendor que a beleza da Senhora
Herzeloyde irradiava que ainda haveria, na tenda, claridade suficiente, caso fossem
apagadas as velas. Se o amargo pesar não tivesse abafado sua alegria pela visita
por ela. Mas dado esse fato limitaram-se a cumprimentos e troca de amabilidade.
trazendo essas peças para o interior da tenda. Talhadas em pedra preciosa e sem
que Isenhart oferecera a Belakane a fim de que sua paixão fosse correspondida.
honra. Eles entraram na tenda. Um deles era Kaylet. Ao ver o Rei Gahmuret ali
sentado, com a tristeza estampada no rosto, disse-lhe: "O que te falta? Propala-se
80
ou irlandês; quer se exprima em língua românica - francês ou brabantino -, todos
equiparar-se a ti. O que aqui é-me dado ver é a melhor prova. Força e valor
certamente não te faltaram quando puseste estes fidalgos, que nunca se haviam
modo meus méritos. Não devias lançar-me no mercado a preço tão alto pois há
muitos que em mim poderão descobrir defeitos de sobra. Devias antes explicar-me
condição ele reterá a mim e o filho de minha irmã como reféns. Portanto, em relação
a nós devias agir com benevolência. Vivemos uma véspera de torneio de tal modo
afetuoso pedido: "Agora não deveis negar-me o direito que tenho sobre vós.
81
Gostaria ainda de recompensar os serviços que me prestastes. Entretanto, se
educada Rainha Amflise e exclamou: "Alto lá! Ele, de direito, pertence à minha
Por ele vem-se consumindo em saudades e este amor lhe confere um direito sobre
ele. Unicamente a ela deve pertencer porque o ama mais que todas as demais
mulheres. Estes três jovens fidalgos sem mácula, filhos de príncipes, são seus
ao terceiro também sabereis de quem se trata. Sua mãe Beaflurs e seu pai
esperto, poderás desfrutar sem risco nem demora de uma inalterável felicidade."
Ao ouvir essa mensagem a rainha disse a Kaylet, que estava junto dela e
cujo joelho encobria uma ponta de seu manto: "Dize-me se estás mais machucado
do que me é dado ver. Eu observei como todos caíram sobre ti." A gentil rainha
contusões. É que faces, seu queixo e nariz estavam cobertos de manchas azuis e
47
"Carolíngia": nome popular com que antigamente era conhecida a França.
82
ela tê-lo distinguido de modo especial, tocando-o com as mãos. A seguir dirigiu
estas graves palavras a Gahmuret: "A nobre francesa não perde tempo em se
justiça. Conservai-vos neutro até que esta causa seja julgada, caso contrário ireis
expor-me à vergonha."
despediu e partiu. Kaylet, o valoroso cavaleiro, a pôs na sela, de sorte que não foi
preciso servir-se do banquinho para montar. A seguir juntou-se ele aos amigos na
tenda e dirigiu-se a Hardiz nestes termos: "Em outro tempo, vossa irmã Alice
propusera-me seu amor e eu aceitei o que me havia sido oferecido. A seguir casou
com outro e essa união deu-lhe mais do que eu poderia ter-lhe oferecido. Fazei jus à
tomou-a por esposa. Embora não ostente a coroa real, desfruta, contudo, de
atenção a vossas palavras reconciliar-se convosco, teria que desistir desse intento
para não ser mal interpretado. Afinal, sou prisioneiro de vosso primo."
"Ele é incapaz de ser injusto com quem quer que seja. Gahmuret
certamente irá restituir-vos a liberdade. Esse será o primeiro pedido que lhe farei.
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Depois, quando tiverdes recobrado a liberdade, espero através de minha dedicação
deveis tratar de esquecer. Entretanto, qualquer que seja vossa atitude em relação a
mim, vossa irmã certamente não irá tirar-me a vida." Estas palavras provocaram um
riso generalizado.
penas do coração são, afinal, um agudo e doloroso espinho. Para cada um dos
presentes tornou-se evidente que ele era oprimido pela dor, sobre a qual nem as
primo, que lhe disse: "Tu te mostras, sem dúvida, pouco atencioso."
"Ah, não digas isso! Não consigo reprimir este desgosto. Estou com
e nobre torna-me saudoso de seu amor. Ela me fez soberano de seu reino e de seu
prática de feitos cavaleirosos. Aqui, até que pude realizar alguns. Na verdade muita
gente que não está a par dos fatos acredita que sua pele fez-me arrepiar caminho.
84
Ó, não! Para mim ela era como o sol. A causa de meu grande sofrimento está
precisamente no fato de ela ser uma mulher incomparável. Não há mulher que a ela
aflição: vi como o escudo com as armas de meu irmão vinha sendo usado na
insensata Rainha Fole, pois por causa de teu amor, perdeu Galões a vida. Todas as
recolher encômios por essa atitude. Ai de ti, ó Rainha de Averre. Por pouca
importância que possas dar a esse fato, foi por tua causa que perdi um parente
viraram a borda de seus escudos para baixo. O luto fechado os faz entrar na liça
desse modo. A dor os aflige desde o momento em que meu primo Galões não mais
Anjou! Que ninguém, de futuro, duvide disso: Nunca, antes de ti, havia nascido na
nobreza rebento mais nobre, nem mais viril. Em teu coração floresciam os frutos da
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verdadeira magnanimidade". A seguir virou-se para Kaylet e indagou: "Como vai
"Que desgraça! Quando Gandin e teu irmão Galões lhe foram arrebatados
fordes um homem de fato, não deveis permitir que a dor vos domine."
Contudo a dor foi tão intensa que uma torrente de lágrimas brotou dos
concordaram que todos aqueles que vinham aguardando, prontos para o combate, o
Ali pediu aos mais ilustres dentre eles que comparecessem ao Leoplano. Atendendo
o pedido chegaram ao local onde vinha sendo rezada uma missa a pedido do
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aprovação geral. Este, então, disse: "Senhora, eu já tenho uma esposa, a quem amo
mais que minha vida. Mas ainda que fosse solteiro saberia como subtrair-me de
vossa reivindicação, cuidando para que alguém assumisse meus encargos junto a
vós."
exercem um poder mais alto. Apartai-vos dos pagãos e amai-me segundo as normas
do Cristianismo pois vivamente desejo vosso amor. Ou será que a rainha dos
franceses fez com que vosso coração se apartasse de mim? Seus embaixadores
trouxe também comigo uma educação cavaleirosa, fruto de seus sábios conselhos.
Ainda hoje desfruto dos benefícios que minha nobre soberana sem mácula me
Amflise desfrutará do conceito de ser uma mulher, no mais alto sentido da palavra.
país, pois, ao tempo era muitíssimo mais pobre do que sou agora. Por isso aceitei,
agradecido, sua ajuda. Mas vós, senhora, podeis mesmo agora incluir-me no
número dos pobres. Podeis ter pena de mim, pois perdi meu nobre irmão. Em nome
de vossa distinta educação não insistais mais comigo neste assunto. Dedicai vossos
87
"Não permitais que eu me consuma por mais tempo em ansiedade e
muitos outros, que também se distinguiram. Por isso não me forceis a vos dar uma
justificação. Aqui há muito cavaleiro que satisfez as exigências mais do que eu.
Vossas pretensões sobre mim não podem ser sustentadas. O reconhecimento que
ao qual caberia decidir a questão levantada pela soberana. Já era quase meio-dia /
quando a sentença foi divulgada: "Um cavaleiro que se apresentou para competir em
pugna cavaleirosa, que atou a presilha de seu elmo e obteve o triunfo no torneio,
pertence à rainha48" .
48
Reparemos no caráter singular dessa sentença que traduz igualmente uma lei cavaleirosa: a dama ou
mulher real, objeto da disputa, passou quase automaticamente ao vencedor (Gahmuret), que devia fazê-la sua,
mais por dever que por direito. NT
88
simpatia e vos fazer tão feliz que acabareis esquecendo vossas penas, recobrando a
alegria."
enamorada estava ali mesmo para lhe conceder esse amor. Ele contemplou
Herzeloyde, a bela curva de seus lábios e falou-lhe assim, com nobre distinção:
"Senhora, se quereis que eu me sinta feliz a vosso lado não tolhais minha liberdade
feitos cavaleirosos. Como ela me manteve distante dos combates, abandonei seu
A isso ela respondeu: "Senhor, vós mesmo ireis decidir sobre vossos
89
Isso ela prometeu e, consoante eu soube, foi desse modo que ele obteve
o reino e a donzela.
capelão, ao qual foi dado ouvir e ver tudo. Sorrateiramente, então, cochichou nos
Patelamunt o triunfo supremo e lá sois soberano de dois reinos. Ela também possui
não fosse ela. A sentença proferida a partir dos preceitos cavaleirosos compele-me
a permanecer aqui, quer que isso me agrade ou não. Regressai pois e dizei-lhe que
ela pode, sem constrangimento, dispor de meus serviços e que a despeito de tudo
desonra para sua soberana. Aliás, eles não se despediram, como só acontece
quando se é dominado pela ira. Os três pajens principescos estavam quase cegos
de tanto chorar.
90
GAHMURET NO CUME DA FAMA
luto souberam de seus amigos acampados na planície fora da cidade que o senhor
encontra em outras paragens. Em busca de renome, dirigi-se ele para a terra dos
"O homem que obteve o maior e o mais honroso prêmio e derribou muitos
cavaleiros, que com mão potente perfurou e golpeou e que sobre o elmo usa, como
quem falo. Ó Rei Kaylet me assegurou que esse senhor seria Gahmuret. Ele
de mistura com a dor. Gahmuret beijou seus fiéis servidores e lhes disse: "Não vos
entregueis a uma tristeza sem fim por causa do meu irmão. Ocuparei o lugar dele
junto a vós. Passai a usar vossos escudos na posição normal e permiti que a alegria
pai, pois minha âncora achou o fundo no seu reino. A âncora é o símbolo do
desejar, poderá adotá-la e usá-la doravante. Como conquistei um grande poder terei
91
que dedicar-me aos meus súditos. Se me dispusesse a ser soberano deste povo,
reis e príncipes que aceitem meu convite de aqui permanecer até que vos convenha
seu amado: "Entregai-vos, agora, aos meus cuidados!" E partiu com ele sem que
dissipou. Ele superou suas penas e readquiriu o gosto pela vida, o que na
perdeu, em virtude disso, sua virgindade. Eles não pouparam seus lábios, mas os
tristeza.
reconciliação entre Hardiz e Kaylet. A seguir realizou-se magnífica festa em que todo
aquele que quisesse ombrear-se com Gahmuret teria que dispor de considerável
fortuna. Gahmuret decidiu não poupar suas posses. Todos os cavaleiros comuns
92
suas próprias mãos punhados de pedras preciosas. Os músicos saltimbancos
presentes. Mas agora deixai partir aqueles que eram seus hóspedes. Ele
pai - foi afixada no seu escudo. Sobre a armadura pôs ele uma camisola de seda,
tênue e branca, que a esposa, a rainha, costumava usar sobre o corpo desnudo.
Dezoito de tais camisolas, dilaceradas por lançaços e golpes de espada, trouxe ele
mais tarde para casa, antes de se despedir da esposa para sempre e ela as usava
sobre o corpo nu, como símbolo de vitoriosos combates, quando seu amado
seu arrojo varonil o impeliu a uma contenda da maior gravidade no além-mar. Essa
expedição encheu-me de tristeza. E que ele havia recebido notícias seguras de que
seu antigo amo, o Baruc, havia sido atacado de surpresa e com superioridade de
forças pelos reis babilônios Ipomidão e Pompeu. Nessa história Pompeu aparece
como homem intrépido e de grande nobreza. Não se trata daquele Pompeu que um
dia, por temor a Júlio49 fugiu de Roma. O irmão de sua mãe fora aquele Rei
Nabucodonosor50 que em escritos facciosos havia lido que ele próprio era um deus,
sendo por isso até hoje motivo de riso. Os dois irmãos que em todos os
nobilíssima estirpe. Seu ancestral, Nino, que fora soberano da região em época
49
Júlio. Refere-se a Caio Júlio César (17-07-100 +15-03-44- a.C), general, escritor e estadista romano.
50
"Nabucodonosor". Wolfram utiliza a forma grega do nome do Rei da Babilônia Nebukadnezar II (605-
562 a.C.), que em 586 a.C. destruiu Jerusalém e mandou deportar toda a população judaica para a Babilônia. O
profeta Daniel afirma em seu livro (2 e 3) que foi esse rei quem mandou erigir uma estátua com sua imagem,
como se fosse um deus.
93
anterior à fundação de Bagdad, havia sido igualmente construtor de Nínive. Mas
encontrou o Baruc no acampamento, cercado por suas tropas. Ali foi recebido com
da guerra, isto a Senhora Herzeloyde jamais soube. Ela irradiava beleza e felicidade
procedimento exemplar mereceu muitos encômios e sua castidade era exaltada. Era
soberana de ires reinos, pois não reinava apenas sobre Valois e Anjou como ainda
tão extremada que seria de seu agrado que toda a mulher tivesse também um tão
nobre amante. Mas decorrido meio ano após sua partida passou a aguardar
Foi aí, porém, que a lâmina de sua felicidade se partiu junto ao punho. Que
desgraça! Por que a bondade está sujeita a passar por tamanha desgraça e a
felicidade está exposta a culminar em dor tamanha? Sim, de tudo isso é feita a
fortuna vária dos homens: a alegria de hoje pode amanhã ser afogada na dor.
51
"Norgals". Trata-se, provavelmente, de Nordwales.
94
A MORTE DE GAHMURET
Intenso pavor apoderou-se dela pois lhe parecia que um meteoro a estivesse
Todos se abatiam sobre ela de modo que suas longas tranças crepitavam pipocando
derramavam sobre ela. Quando recobrou a consciência um grifo puxava sua mão
seguir, alçar vôo e sumir de sua vista. Ele lhe arrancou o coração do peito e o mais
terrificante foi o fato de ela ter que assistir a tudo isso com os próprios olhos e
adormecida tenha passado por aflição tamanha. Se até então Herzeloyde havia sido
com que a angústia empalidecesse esse fulgor. Com a perda irreparável que iria
inicialmente imóvel a nobre dama passou a virar-se, depois, de um lado para outro,
lamentando-se em altas vozes. Foi então que as jovens damas que se encontravam
seu amo. A notícia teve sobre Herzeloyde um efeito tão fulminante que caiu sem
95
sentidos. Entretanto os cavaleiros interrogavam-se: "Como foi possível nosso amo
Embora dominado pela dor o escudeiro fez aos heróis este relato: "Meu
amo perdeu tão cedo a vida porque tirou a touca de malha em virtude do calor
Um cavaleiro encheu uma garrafa com sangue de bode e a rebentou sobre o elmo
diamantino de Gahmuret que, desse modo, tornou-se mais mole que esponja. O que
como cordeiro, com os pés pregados à cruz! Ah, como ali se combatia quando as
Muitos escudos foram perfurados quando se deu o grande choque na planície diante
bandeiras se emaranharam umas nas outras e muito altivo campeão tombou ali sem
vida. Meu amo destacou-se por tantos feitos que deslustrou a fama de todos os
demais. Foi aí que Ipomidão arremeteu a toda a brida. Ele se vingou de meu amo,
Meu amo, isento de qualquer falsidade, havia-se voltado contra o rei cuja lança o
mataria, pois atravessou o elmo e perfurou-lhe o crânio onde, mais tarde, foi
Seu capelão inclinou-se sobre o moribundo, que se confessou com poucas palavras.
Esta camisa e a ponta de lança que o arrebatou de nós, ele recomendou que fossem
entregues aqui. Determinou ainda que seus pajens e escudeiros ficassem sob a
96
"Na transladação do corpo para Bagdad o Baruc não mediu despesas.
herói sem mácula estava ornado com ouro e pedras preciosas. Havia ali muitas
rubi, o que permitia que fosse visto quem sob ela repousava. A nosso pedido
permitiu-se que fosse erigida sobre sua sepultura uma cruz, o que lembrava o
martírio com que Cristo nos redimiu. Ela devia proporcionar consolo e proteção à
sua alma. A cruz, custeada também pelo Baruc, consistia de uma preciosa
esmeralda. Nós a erigimos sem a ajuda dos pagãos, cuja religião nada sabe sobre a
cruz na qual Cristo morreu e nos redimiu. A partir de então Gahmuret passou a ser
efetivamente venerado pêlos pagãos como deus poderoso, mas não por causa da
cruz, nem da doutrina cristã que nos trarão a redenção no dia do juízo final.
epitáfio que dizia: Um lançaco perfurou este elmo e atingiu o nobre e valoroso
campeão (que aqui jaz). Chamava-se Gahmuret. Como poderoso monarca reinou
sobre três países e em cada um desses reinos em que cingiu a coroa poderosos
príncipes foram seus vassalos. Era natural de Anjou e perdeu a vida diante de
Bagdad, lutando pela causa do Baruc. Tamanha era sua fama que ninguém podia
comparar-se com ele. Ainda está por nascer aquele cavaleiro com valor igual ao
seu. Com recursos e bom conselho assistia ele incansavelmente aos amigos e para
97
batizado e seguidor do Cristianismo. Sua morte foi lamentada também, com sincero
pesar, pêlos sarracenos. Mal se fez homem, passou a buscar ousadamente a fama
e foi cercado de honras até que a morte o surpreendeu. Nele não havia falsidade.
LAMENTAÇÕES DE HERZELOYDE
habitantes de Valois puseram-se então a chorar, pois tinham bons motivos para
lamentar-se. A soberana, porém, trazia no seu seio um filho que nela já se agitava,
quando ali jazia sozinha e sem socorro. Ele começara a se mover desde dezoito
dentro de si aquele que poderia vir a ser a suprema glória da Cavalaria, caso
escapasse da morte. Foi então que dela se aproximou um velho sábio para
contraídos, possibilitando que se lhe instilasse água. Foi quando ela voltou a si e
coração. Seu ardor combativo o arrebatou de mim. Embora muito mais nova que ele,
agora devo ser, a um tempo, sua mãe e sua esposa pois trago comigo seu embrião
que nosso amor instilou em mim. Se Deus for conseqüente permitirá que o fruto que
98
tenho dentro de mim amadureça, considerando que já sofri demais com a perda
Gahmuret jamais desfrutou dos favores femininos sem que sua mulher participasse
de sua felicidade e sem que ele, por sua vez, compartilhasse de suas penas.
Fidelidade conjugal genuína o levava a agir desse modo pois era homem
profundamente sincero."
Escutai agora o que a soberana fez depois disso. Cingindo com mãos e
braços o ventre que abrigava o nascituro, assim falou: "Permiti-me, Senhor, que eu
traga ao mundo este nobre rebento de Gahmuret; este é meu desejo mais ardente.
fidelidade conjugal."
mulher segura do que dizia - os recipientes para o sustento de meu filho; eles se
tornaram úmidos desde que ele começou a se mover dentro de mim". Viu assim
realizar-se seu desejo mais vivo pois agora este alimento - o leite de seus seios -
te-ia para batizar-me. Para chorar a morte de Gahmuret quero inundar-me com este
leite e com minhas lágrimas, tanto às escondidas quanto diante dos olhos de todos."
99
Depois a soberana mandou trazer a camisa borrifada de sangue que
reino.
O NASCIMENTO DE PARSIFAL
Quatorze dias depois a soberana deu luz a uma criança. Era um menino
de constituição física tão robusta que seu nascimento quase lhe custou a vida. É
nesse momento que começa a narrativa propriamente dita pois somente agora
nascia aquele a quem este relato diz respeito. Até aqui ouvistes umas tantas coisas
acerca da boa e má fortuna do pai, sobre sua vida e sua morte. Agora que
forma pela qual era protegido. Foi-me dito que desde a infância ele era mantido
100
Já restabelecida e com o filho de volta a seus braços a rainha e as damas
fazendo saltar faíscas dos elmos de seus adversários pois tinha coração de homem
ênfase: "Bon fils, crier fils, beau fils52". Cheia de zelo segurou o róseo sinal - quero
ventre foi igualmente sua ama de leite. Contrária a qualquer procedimento pouco
Gahmuret tivesse voltado a seus braços. Não era de ânimo leve, mas com toda a
senhora Herzeloyde de si para si: "Não foi a suprema rainha que alimentou Jesus no
seu seio, o mesmo que, mais tarde, como homem, sofreu na cruz uma morte atroz
só para demonstrar Sua lealdade? A alma daquele que menosprezar Sua ira estará
em situação difícil diante de Seu juízo, por mais pura que seja ou tenha sido. Esta
que é a pura verdade." A soberana do reino inundava-se com as lágrimas que lhe
brotavam do íntimo da alma. Essas lágrimas desciam com chuva sobre o menino,
pois era uma mulher autêntica. Sua boca podia tanto deixar escapar um suspiro
quanto abrir-se num sorriso. Embora feliz com o nascimento do filho, sua alegria
EXCURSO DO POETA
52
"Bon Fils, Cher Fils, Beau Fils": Meu bom filhinho, meu rico filhinho, meu belo filhinho
101
Pouco se me dá se alguém se revelar mais engenhoso que eu no trato de
assuntos femininos. Ouço de bom grado tudo aquilo que lhes causa satisfação.
Apenas a uma única eu recuso meus leais serviços. A repulsa que lhe tenho vem
domino razoavelmente a arte da composição poética. Mas sou, também, qual tenaz,
do que resulta que me aferre ao meu rancor contra essa mulher. Ela foi de tal modo
injusta para comigo que o ressentimento que lhe tinha acabou por se tornar
irremediável. Esta é a razão porque as outras mulheres estão agora de mal comigo.
Ah, por que fariam isso? Na verdade, dói-me esse rancor, mas relevo-lhes o amor
próprio pois certa vez excedi-me e com isso prejudiquei a mim mesmo. Mas é
aconselhável que não se aproximem muito de minhas muralhas pois irão defrontar-
se com uma vigorosa resistência. Suas atitudes e maneiras de ser eu sei muito bem
avaliar. Uma mulher que resguarda sua pureza terá em mim um defensor certo de
sua reputação e suas penas não me serão indiferentes. Mas certamente são
subestima as demais53. A quem quiser ouvir e constatar quem de fato eu sou, posso
educação. Se uma mulher quisesse conceder-me seu amor apenas em atenção aos
merecê-lo pela minha arte no manejo do escudo e da lança. Arrisca um alto lance
53
"Mas certamente são suspeitos os elogios...": Referência à poesia lírica do Reinmar von Hagenau
(1160-1230), na qual a mulher, objeto de seu canto, é colocada muito acima das demais.
102
Se agora me disponho a retomar minha narrativa, contando uma série de
fatos surpreendentes, isto não deve ser interpretado pelas mulheres como
expediente para lisonjeá-las. Mas quem desejar que eu prossiga não deve
considerar esta narrativa como obra de cunho literário. É que eu não sei ler nem
não se ajusta aos princípios da sabedoria livresca. Se este livro fosse confundido
com obras desse gênero, preferiria permanecer sentado no banho, sem roupa e sem
54
"Não sei ler nem escrever". Durante muito tempo discutiu-se sobre se este depoimento devia ou não
ser tomado ao pé da letra. Os abrangentes conhecimentos de que Wolfram dá prova em suas muitas obras
fizeram prevalecer a opinião geralmente aceita de que, no caso, tratar-se-ia apenas de um recurso de expressão
levado ao exagero, destinado a ironizar outros autores que se valeram de sua formação acadêmica como pretexto
para alardear uma pretensa superioridade intelectual. Existe, contudo, outra maneira de explicar a atitude de
Wolfram ao se proclamar analfabeto, condição incompatível e inexplicável num poeta de tantos méritos. No seu
"Livro da Tradição" (Trad. de Maria Elisa Mascarenhas, SP/Rio, DIFEL, 1976, p. 174), Jean-Michel
Angebert relaciona esta confissão do épico alemão com a máxima maçônica: "Não sei ler nem escrever". Esta
aproximação parece dar consistência à afirmação dos que sustentam que Wolfram foi templário. Ora, é sabido
que em vários de seus altos graus a Maçonaria retomou a tradição e os ritos secretos da Ordem Militar do
Templo. NT
55
"Há, na verdade, muitas gentes..." Trata-se aqui, possivelmente, de referência a Hartmann von Aue
(1168-1210), um dos clássicos da literatura cortês que exaltou expressamente sua própria erudição. É autor das
epopéias cavaleirosas "Erec" e "Iwein" (compostas a partir do modelo do poeta francês de Chrétien de Troyes),
do conto "Gregório" e da novela "O Pobre Henrique".
103
LIVRO III
A INFÂNCIA DE PARSIFAL NO ERMO DE SOLTANE
consideradas mulheres. Todas possuem claro timbre de voz mas a maioria tende
para a dissimulação e apenas umas poucas não têm esse defeito. Existem na
Houve de fato uma mulher que por amor à lealdade tomou a si esse ônus
e terá por isso as eternas recompensas do Céu. Acredito que dificilmente haverá
104
alguém capaz de, ainda na força da idade, renunciar ao poder e às riquezas deste
mundo, visando as glórias celestes. Em todo o caso eu não conheço alguma -e isso
Rainha Herzeloyde renunciou aos seus três reinos e assumiu o fardo de uma vida
desprovida de atrativos. Tão purificada estava que nem olhos nem ouvidos podiam
Afastada de todos os prazeres deste mundo, a ronda dos dias e das noites passava-
desabitada região de Soltane. Para ela as flores do prado não tinham qualquer
atrativo pois tamanho era seu desalento que nenhuma grinalda de flores - fosse ela
vermelha ou amarela - era capaz de atrair sua atenção. Para lá conduziu ela o filho
esmerava em desvelos pelo filho. Antes de ele começar a entender as coisas, reuniu
em torno de si seu séqüito, homens e mulheres, para lhes determinar que não
fizessem qualquer referência a cavaleiros, caso tivessem amor à vida. "Se o dileto
do meu coração tivesse alguma notícia sobre a vida dos cavaleiros isso implicaria
graves sofrimentos para mim. Sede pois sensatos e não lhe digais coisa alguma
105
preparou arco e flecha e abateu muitas aves. Mas quando abatia um pássaro que
punha-se a chorar. Ele próprio era bem parecido e de boa constituição física. Todas
as manhãs lavava-se num regato que corria junto à campina. Ele viveria sem
cuidados se não houvesse o canto dos pássaros, que lhe calava tão fundo no
amargamente voltava então correndo para junto da rainha, que lhe perguntava:
"Alguém te fez alguma coisa? Afinal tu estiveste apenas lá fora na campina." Mas
como sói acontecer com as crianças, ele não conseguia dar uma explicação
satisfatória.
A rainha o seguiu por muito tempo até que um dia o viu parado, com o
olhar cravado na copa das árvores, a escutar o canto dos pássaros. Então notou
como ao som desse canto o filho ficava com a respiração suspensa, dominado por
um impulso atávico e uma ânsia irreprimível. Sem saber exatamente por quê o ódio
expeditos que os esbirros e alguns deles, tendo escapado com vida, puseram-se a
Foi então que o menino perguntou à rainha: "Que tipo de falta se imputa
aos pássaros?" E exigiu que daquele momento em diante fossem deixados em paz.
Deus Altíssimo. É justo que os pássaros desistam de seu alegre cantar por minha
106
causa?" Mas o menino foi logo perguntando: "Mãe, explica-me o que vem a ser
Deus."
"Meu filho, quero dar-te uma idéia muito precisa a respeito d'Ele. Ele
resolveu assumir forma humana e Seu aspecto é mais fulgurante que o claro dia.
Toma nota desta lição, meu filho: Se um dia te encontrares em situação difícil, deves
implorar Sua ajuda, pois Ele, na Sua lealdade, tem assistido constantemente a
invariavelmente desleal. Dele e das vacilações dúbias deves acautelar-te." Era deste
modo que a mãe lhe explicava a diferença entre a treva e a luz. Depois disso o
verão empreendia ele caçadas bem-sucedidas e agora ouvi este fato espantoso:
quando matava uma caça graúda, para cujo transporte seria necessário uma mula,
Um dia vinha ele caçando em terreno formado por extensa ladeira. Tinha
acabado de quebrar um ramo com a intenção de servir-se de uma folha para imitar o
107
Brandindo o venábulo, exclamou: "Que será? Mas ainda que estivesse a caminho o
próprio demônio, com toda a sua fúria insidiosa, estaria pronto a medir forças com
ele. Na verdade, minha mãe me contou coisas aterradoras a respeito dele mas
acredito que o que lhe faltou, mesmo, foi coragem." E, cheio de ardor combativo,
pôs-se em guarda.
ajaezados e cobertos de armadura dos pés à cabeça, de sorte que o jovem foi
ajoelhado no caminho: "Este rapaz maluco de Valois detém nossa marcha a galope
largo."
homens de Valois. Se eles são ainda mais obtusos que os bávaros, sabem contudo
ser valentes numa briga. Quem se cria em um desses dois países é um modelo de
retidão e dignidade.
magnífica armadura que estava sem dúvida com muita pressa; cheio de ardor
combativo, vinha ele perseguindo os dois cavaleiros que haviam ganho boa
56
"Nós, bávaros...": Aqui o poeta assume claramente sua naturalidade bávara.
108
dianteira. Eles haviam raptado uma fidalga de seu reino, o que ele considerou uma
com seus captores. Três cavaleiros compunham seu séqüito. Montava um magnífico
impede de prosseguir caminho?" E avançou sobre o menino. Mas a este parecia que
estava na presença de um deus. Tamanho fulgor ainda não havia visto. A orla de
seu manto roçava a relva úmida de sereno. Os estribos com loros de comprimento
adequado eram providos de guizos que retiniam. Quando movia o braço direito havia
ali também guizos que retiniam. Ele se comprazia com o sonoro retintim desses
guizos como acompanhamento sonoro dos golpes de sua espada pois agia com
quintessência da beleza máscula: "Meu jovem, acaso vistes passar por aqui dois
cavaleiros? A rigor eles já não merecem mais tal qualificação pois se acham
descrição que a senhora Herzeloyde lhe havia feito sobre a aparência de Deus
109
O príncipe replicou: "Não sou Deus, embora cumpra Seus mandamentos
isto? Se não dispões de poder divino, dize-me então quem é que confere a
dignidade de cavaleiro?"
à sua corte ele fará de vós um cavaleiro, em condições tais que para vós jamais será
havia feito dele uma verdadeira obra-prima da natureza. Da narrativa fidedigna que
me foi dado consultar,eu deduzo que desde os tempos de Adão não existiu homem
mais bem parecido. Mais tarde seria ele enaltecido por todas as mulheres.
cavaleiros: "Nobre cavaleiro, que tipo de criatura és tu, afinal? Tu envolveste todo o
atentamente a cota de malhas e opinou: "As jovens damas de minha mãe usam
seus anéis presos a um barbante e não assim, entrançados uns nos outros." E
prosseguiu na sua simplicidade: "Para que serve isto que te assenta tão bem? Não
110
O príncipe mostrou-lhe, então, sua espada: "Quando alguém me desafia
adversário é necessário que rne vista deste modo. É preciso que esteja protegido
meu venábulo não poderia feri-los. Com ele já abati muitos deles."
tempo com esse jovem simplório. Mas o príncipe disse: "Deus te proteja. Ah, se me
fosse dado ter tua aparência! Deus teria feito de ti uma obra perfeita, se te tivesse
males!"
cultivado onde deparou com os agricultores da senhora Herzeloyde. Viu como ali
grande número de pessoas vinha amainando a terra. Não podia ter-lhes sucedido
responderam a sua pergunta: "Hoje pela manhã passaram por aqui dois cavaleiros
com uma jovem que parecia estar profundamente abatida. Os que a conduziam
Meljakanz. Karnahkarnanz o alcançou e lhe arrebatou pela força das armas a jovem
111
Enquanto os quatro heróis se afastavam rapidamente os servos ficaram
consternados, dizendo uns para os outros: "Que desgraça! Se nosso jovem amo
chegou a ver os elmos dos cavaleiros, marcados por golpes, então fomos muito
descuidados. Com muita razão a rainha nos fará ásperas reprimendas pois ele saiu
questão de quem iria abater os cervos grandes ou pequenos. Correndo para junto
da mãe contou-lhe o que havia visto. Ao ouvir o relato do filho, ficou tão abalada que
perguntou: "Meu filho, quem foi que te contou algo a respeito de cavalaria? Onde
Deus. Foram eles que me fizeram uma descrição da instituição cavaleirosa. É o Rei
Artur que fará de mim um cavaleiro, pois é inerente ao seu poder de soberano a
mais a angústia que tomara conta de seu coração foi a insistência do nobre e
insensato menino de pôr um cavalo à sua disposição. Finalmente disse de si para si:
112
"Não convém negar-lhe essa montaria mas será um cavalo bem ordinário." E a
rainha procurou desenvolver este raciocínio: "Os homens estão sempre dispostos a
certamente voltará para mim." Ah, quão desmedidos foram seus sofrimentos!
ele calça e camisa. A calça cobria-lhe apenas a metade das pernas. Era a
indumentária característica dos palhaços, à qual não faltava nem mesmo o barrete.
Seus pés, ela os calçou com botinas de camponês, de couro cru. E uma vez mais a
rainha se lamentou em altas vozes, pedindo-lhe que ficasse por mais uma noite, pois
tinha alguma coisa a lhe dizer: "Não deves partir sem receber de mim alguns
se dispuser a te ensinar boas maneiras, não te irrites, mas segue prontamente seus
pois essas coisas afastam os maus pensamentos. Não hesites em beijá-la e abraçá-
sentimentos. Além disso é preciso que saibas, meu filho, que o orgulhoso e
intrépido Lahelin arrebatou a teus príncipes dois reinos - Valois e Norgals - que
113
"Ele pagará por isso, mãe, se Deus o permitir. Meu venábulo fará jorrar
correu empós ele. Quando a figura do filho, que tão empolgado se ia, começou a
cruel que lhe causou a morte. Sua morte tendo como causa o amor materno punha a
nobre mulher a salvo dos tormentos do Inferno. Que descanse em paz, pois foi uma
feminina! Assim iniciou ela a viagem para a outra vida, onde lhe estariam reservadas
as eternas recompensas. Ah, em nossos dias pessoas como ela não as há mais -
vê abandonada pelo filho, deseja que ele siga por caminhos afortunados.
sobre ele, o jovem não o atravessou. Como sua capacidade de raciocínio era
bastante limitada prosseguiu sua marcha ao longo do arroio durante o dia inteiro.
claro e límpido.
57
"Bríziljan": A floresta encantada dos bretões.
114
PARSIFAL E IECHUTE
armada uma magnífica tenda. Feita de veludo de três cores, era alta e espaçosa,
com preciosos galões recobrindo as costuras. Do lado pendia uma capa de couro
esposa do Duque Orilus de Lalant. A nobre duquesa jazia ali em sua fascinante
chama-se lechute. Sua boca, arma de sedução e causa dos tormentos do cavaleiro
seus lábios quentes e palpitantes de vida. Assim jazia ela ali, um verdadeiro
alinhavam-se perfeitos e sem falhas. Acredito que jamais ser-me-á dado beijar lábios
tão decantados. Em todo o caso, até agora não tive essa sorte. Uma coberta de pele
de marta negra cobria-a apenas até a altura dos delicados quadris. Devido ao calor
era bem proporcionado, como modelado por mão de artista que quisesse manifestar
através dela todo o seu talento. Foi Deus em pessoa que criou esse corpo
para a cama, onde começou a lutar com a duquesa. É que ele se havia lembrado da
mãe e dos conselhos que esta lhe dera acerca do anel. O belo rapaz voou, portanto,
115
do tapete para a cama num salto. Quando sem percebê-lo, viu-se nos braços de
refinada dama exclamou: "Quem foi que me desonrou? Meu jovem, vós passastes
não fez caso de seus apelos, mas colou firmemente seus lábios aos da duquesa,
atraindo-a a si num violento abraço, além de lhe tirar o anel do dedo. Ao notar um
broche na sua camisa, arrancou-o com violência. Embora a fidalga fosse apenas
exército inteiro, a luta foi renhida. Às queixas do menino de estar com fome, a
radiante dama reagiu assim: "Espero que não me devoreis. Se soubésseis o que vos
convém, preferiríeis outro alimento. Ali estão pão, vinho e duas perdizes que uma
jovem dama da corte trouxe, sem naturalmente contar com vossa presença."
A despeito disso observou-lhe: "Meu jovem, deixai aqui meu anel e meu
broche e parti sem demora. Se meu esposo voltar sereis atingidos por sua ira,
116
Mas o ilustre jovem replicou: "Por que deveria eu temer a ira de vosso
marido? Mas se minha presença resultar em prejuízo para vossa reputação, partirei."
montando, partiu sem dela receber uma palavra de despedida. Mas antes de se
afastar, disse: "Deus vos proteja. Foi este conselho que minha mãe me deu."
cavalgado durante algum tempo voltou à tenda aquele de quem agora vos quero dar
notícia. Pelas marcas que ficaram na grama molhada de sereno, percebeu que sua
mulher havia recebido visita. Algumas cordas da tenda também haviam sido
por ali havia passado. O distinto e renomado príncipe encontrou sua mulher na
tenda, mergulhada num estado de profunda depressão: "Ai de vós, nobre senhora-
disse o altivo Orilus - acaso não vos tenho servido com toda a lealdade? Vejo,
amante!"
inocência. Mas ele não deu crédito às suas palavras. Então, amedrontada, admitiu:
"Um parvo chegou aqui a cavalo. Já vi muita gente em minha vida mas nunca
deparei com pessoa tão bem parecida. Ele se apoderou de meu broche e de meu
anel."
"Ah, então ele vos agradou! Vós vos entregastes a ele." Ela, porém,
replicou: "Deus me livre! Pelos sapatos grosseiros e pelo venábulo, logo vi com
117
quem vinha lidando. Vós vos devíeis envergonhar de vossas palavras. Seria
desprazer. Acredito por isso que estais arrependida por haverdes renunciado, por
"Agora, essa posição de status revela-se para mim por demais onerosa.
Acontece que minha reputação de cavaleiro é tão conhecida que vosso próprio
irmão Erec, meu cunhado, filho do Rei Lac, vos quererá mal por isso. Todos
alcancei diante de Karnant58 honrosa vitória, quando numa justa na qual foram
observadas todas as regras de torneio o varri de seu cavalo. Minha lança furou seu
escudo com tamanho ímpeto que até vossa preciosa prenda foi empurrada para o
passaria pela cabeça que um dia pudésseis preferir outro amante. Podeis crer-me
que o altivo Galões, filho do Rei Gandin, foi igualmente morto por mim em combate
singular. Vós mesma estivestes presente quando Plihopliheri avançou contra mim,
retaguarda de sua montaria que nunca mais terá contato com a sela. Repetidas
vezes alcancei os louros da vitória, descavalgando muitos cavaleiros. Mas tudo isso
desprestígio em que fui envolvido. Bem sei que cada um dos cavaleiros da Távola
58
"Karnant": Pátria e Erec e lechute, cujo pai Lac deriva seu nome de uma fonte de virtudes mágicas ali
existente. A história de Erec e lechute é tema da epopéia "Erec", concebido por Hartmann von Aue segundo
modelo homônimo de Chrétien de Troyes.
118
Redonda59 me odeia, desde que no certame pelo gavião60, em Kanedic, abati oito
deles diante dos olhos das muitas jovens damas presentes. Para vós conquistei
esse prêmio, para mim a fama. Vós vistes meu feito, como o viu o próprio Artur, em
cuja corte vive a doce Cuneware, minha irmã. Sua boca não poderá sorrir enquanto
seus olhos não avistarem o homem para quem estão reservadas as distinções da
glória suprema. Se um dia eu deparar com esse homem, então haverá uma luta
como a que sustentei hoje cedo, quando um príncipe me desafiou para combate
singular. Fui eu a causa de seu infortúnio pois meu lançaço causou-lhe a morte."
"Não é arrebatado pela ira que vos digo que muitos homens castigam
suas mulheres por faltas bem menores. Mas a partir de agora devereis esperar
muito tempo antes que volte a vos prestar meus serviços de cavaleiro ou vos
demonstre consideração. Nos vossos brancos braços em que encontrei amor nos
dias felizes eu nunca mais quero abrasar-me. Vossos lábios perderão a cor, vossos
vosso prestígio de cavaleiro não seja aniquilado por vosso comportamento. Afinal
59
A Tavola Redonda do lendário Rei Artur representou a aspiração última de numerosos teóricos da
instituição cavaleirosa. Somente os cavaleiros mais destacados e de inegável valor eram admitidos juntamente
com suas damas nesse grêmio seleto. Ali o próprio Rei Artur era apenas o primeiro entre iguais, refletindo a
idéia da igualdade que deve prevalecer entre todos os membros da confraria cavaleirosa. NT
60
"Torneio do Gavião". Na epopéia "Erec" (1185), de Hartmann von Aue, um gavião é instituído como
prêmio para a mais linda dama cujo cavaleiro sustentasse essa sua pretensão ao título em três combates
singulares.
119
sois leal, experiente e me tendes em vosso poder, podendo penalizar-me da forma
mais dolorosa. Antes, porém, ouvi minha justificação: por respeito às mulheres, sede
que outro me matasse, a fim de que esse crime vos não pesasse na consciência.
tornando por demais petulante. Mas não perdeis por esperar. A partir de agora não
mais haverá cama e mesa comuns. Não tereis outra vestimenta senão esta que
trazeis no corpo. Vosso freio será uma corda, vosso cavalo passará fome e vossa
sela ricamente ajaezada terá logo mais um aspecto lastimável." Com estas palavras
autenticidade de seu caráter, teve que suportar sua ira, que sobre ela se abateu
como um raio caído do céu sereno. A seguir ordenou: "Minha senhora, partamos. Se
combate, ainda que, qual dragão feroz, expila fogo das narinas."
Não era sua própria desdita, mas a aflita exasperação do marido que a afligia. Seu
amargor a fazia sofrer tanto que preferia morrer. Lamentai sua fidelidade, pois a
partir de então sua vida seria de tristeza imensa. As penas da senhora lechute me
120
O PRIMEIRO ENCONTRO COM SIGUNE
O destemido rapaz nem suspeitava de que vinha sendo seguido. A todos que
Nosso parvo jovem vinha descendo uma ladeira quando diante de um dos
maior atenção o quadro com que deparava, viu no regaço da jovem o falecido
todos. Deus vos proteja", disse o jovem. "Descubro em vosso regaço algo de infundir
pena. Como o cavaleiro ferido veio parar aqui?" Sem se impressionar com o silêncio
estar morto, nobre senhora. Não quereis dizer-me quem matou vosso cavaleiro?
Bater-me-ei de bom grado com seu matador, se ainda for possível alcançá-lo."
61
"Sigune e Schionatulander". No fragmento do "Titurel" (1215) Wolfram começou a esboçar o destino
desse infeliz casal de amantes, completado, posteriormente por Albrecht von Scharfenberg.
121
Com essas palavras o bravo rapaz pôs a mão na sua aljava que continha
Tivesse ele o fino trato do pai, teria buscado objetivos mais altos, ao deparar com a
duquesa solitária. Por sua causa vinha ela passando por duras provações, de vez
que por mais de um ano teria de suportar o desprezo do marido. Por esse motivo, a
Agora ouvi o que tenho a vos contar a respeito de Sigune que tinha boas
razões para lamentar-se. Ela disse ao jovem: "Tu tens nobres sentimentos. Quero
louvar tua juventude afável e tua simpática aparência. Certamente terás uma vida
afortunada. Este cavaleiro não foi atingido por venábulo, mas tombou em combate
"Bon fils, cher fils, beau fils - é assim que me chamavam em casa."
Ao ouvir estas palavras, tornou-se claro para ela com quem vinha
tratando. Também a vós ele será apresentado, a fim de que identifiqueis o herói
de pronto exclamou: "Tu és Parsifal e teu nome quer dizer aquele que passou pelo
meio. Tal se deu porque tua mãe foi tão fiel que o grande amor abriu-lhe um sulco
no coração, já que teu pai a havia deixado só e prostrada na dor. Eu não te conto
isso para demonstrar conhecimento. Tua mãe é irmã da minha e por isso posso
122
revelar-te sem rodeios a verdade sobre tua origem. Teu pai era angevino, tua mãe
aos fatos. Tu és também Rei de Norgals e deverias portar a coroa na capital desse
reino Kingrivais. Este príncipe foi morto por tua causa, porque ali defendia os teus
direitos. Homem gentil e vistoso, manteve-se fiel até o fim. Dois irmãos são os
Lahelin te arrebatou dois reinos e Orilus matou em combate singular este cavaleiro,
teu primo. A mim ele lançou no desespero e na angústia. Este príncipe, natural de
teu país onde tua mãe o educou, serviu-me com toda a lealdade. Querido e valoroso
primo, ouve nossa história. Uma coleira de cão62 foi a causa de sua ruína. Ele
consumir de amor por ele. Fui demasiadamente imprudente ao lhe recusar meu
amor e agora o destino adverso destruiu minha felicidade. Cabe-me, agora, amá-lo
na morte."
afronta de que fui alvo. Se puder, vingar-me-ei com satisfação." Ele literalmente
ardia por tirar desforço. Ela porém indicou-lhe uma pista falsa, temendo perdê-lo e,
rumo indicado, alcançou uma estrada real, larga e plana que conduzia à região dos
segundas intenções. Ao cair da noite, sentiu-se extenuado. Foi então que o jovem
62
"Coleira de cão". Schionatulander foi morto por Orilus em combate singular quando, atendendo a um
pedido inconsequente de Sigune, vinha seguindo um cão que passava em desabafada carreira, a fim de se apossar
de sua rica coleira e da respectiva trela.
123
inexperiente avistou uma magnífica casa habitada por um avarento, um traço
sem coração. Premido pela fome o jovem acercou-se da casa e pôs seu dono a par
de sua aflitiva situação. Este, porém, lhe disse: "Não vos darei sequer metade de um
pão ainda que o peçais por trinta anos. Quem contar com meu espírito caridoso
filhos. Vós não tereis acolhida em minha casa. Agora, se tiverdes ouro ou jóias,
senhora lechute. Quando o rude plebeu avistou o mimo sua boca alargou-se num
sorriso acolhedor e disse: "Meiga criança, se quiserdes ficar conosco todos os que
jovem tão bem parecido. Só por causa de tua beleza incomum, conduzir-te-ei à
O jovem pernoitou ali mas ao raiar do dia se pôs a caminho. Ele havia
aguardado com impaciência o raiar do dia. Seu anfitrião também havia madrugado e
tinham pressa.
124
PARSIFAL A CAMINHO DA CORTE DO REI ARTUR
Artur, vosso soberano, à vossa casa se apresentará um hóspede enviado por mim.
Peço-vos por isso que não escarneçais dele pois ele não é violino, nem rata64 nos
educação e recrear-se com outras coisas. Caso contrário farei passar a nobilíssima
senhora Enite, juntamente com sua mãe Karsnafite65pela roda viva do escárnio de
para avistar Nantes à distância. O pescador então lhe disse: "Meu filho, Deus te
direção!"
"Isto vou-te ficar devendo. A sociedade da corte é tão refinada que ali o
falta grave." O jovem prosseguiu, pois, sozinho, atravessando uma campina estreita
63
"Senhor Hartmann von Aue". Alusão às epopéias cavaleirosas "Erec" e "Iwein", de autoria de
Hartmann von Aue, cujas figuras centrais são cavaleiros do Rei Artur.
64
"Rata". Instrumento de corda medieval, semelhante à cítara, provida de caixa de ressonância, cujas
cordas se ferem com arco.
65
"Enite e Karsnaflte". Personagens femininas da epopeia "Eric", de Hartmann von Aue. l 420
125
revestida de flores multicoloridas. Ele não havia sido educado por qualquer
Curvenal66 e como toda a criatura bisonha não tinha a mínima idéia sobre os
costumes da corte. Seus arreios eram de fibra de cortiça e seu cavalinho tão mísero
que suas pernas fraquejavam. Rotos e velhos eram seus arreios e nele próprio não
para o manto que não tinha e no lugar da sobreveste trazia na mão seu venábulo.
Seu pai, que deixara fama de homem da corte, estava mais bem apresentado
quando sentado num tapete diante de Kanvoleis. Eis que vinha ao encontro desse
jovem, que nunca sentira o frio suor do medo, um guerreiro a cavalo. Ele o
cumprimentou com a expressão habitual: "Deus te proteja! Este foi o conselho que
"Que Deus retribua esta gentileza a vós e a ela, meu jovem", respondeu o
filho da prima de Artur. Este herói, educado por Utepandragun, vinha reivindicando
vista. Seu cavalo era vermelho e ágil e vermelhos eram seus arreios. Seu xairel era
de veludo vermelho e seu escudo era de um vermelho ainda mais vivo que o da
Vermelhas eram a haste e a ponta de sua lança e, segundo seu desejo, a lâmina de
Kukumerland67 trazia na mão uma taça de ouro rubro com gravações artísticas que
ele havia retirado da Távola Redonda. Sua cútis era branca e seus cabelos
66
Na história de Tristão e Isolda, Curvenal é preceptor de Tristão. A versão mais conhecida dessa lenda é
a epopéia "Tristão e Isolda", de Gottfríed von Strassburg, redigida entre 1205 e 1215.
67
"Kukumerland". Ither de Gaheviez é apresentado como Rei de Kukumerland. Provavelmente o poeta
quis se referir a Cumberland.
126
vermelhos. Tomado de sincera admiração, assim se dirigiu ao jovem: "Quero louvar
tua simpática aparência! Foi certamente uma criatura sem mácula que te trouxe ao
mundo! Salve a mãe que te deu à luz! Jamais me foi dado ver tão máscula beleza.
saudosa angústia de uma mulher. Caro amigo, se teu destino for a capital gostaria
absolutamente não fugi. De bom grado estarei aqui à espera de todos que estiverem
reivindicar direitos sobre meu reino. Por este motivo subtraí a taça da Távola68,
sujar-me com a fuligem." E o intrépido campeão rematou: "Fiz isso não com
intenções predatórias. Uma testa coroada não recorre a tais expedientes. Amigo,
dize à rainha que eu a molhei por descuido e na presença de fidalgos que não
esboçaram sequer um gesto para impedir meu ato. Por que esses reis e príncipes
permitem que seu soberano pereça de sede? Por que não resgatam o cálice de ouro
68
"Subtrair da távola". A posse simbólica de uma propriedade se realizava quando o reivindicante
subtraía um objeto do adversário
69
"Apresentar minha pretensão". Tomava-se posse de uma terra sem dono acendendo uma fogueira.
127
PARSIFAL NA CORTE DO REI ARTUR
rumando para Nantes. No seu trajeto até o palácio foi seguido por uma multidão de
pajens curiosos. A corte vivia um de seus dias agitados. Em torno dele estabeleceu-
se logo uma confusão. Foi quando Iwanet, um jovem fidalgo, se apressou em lhe
oferecer amistosa ajuda. Nosso jovem disse-lhe então: "Deus te proteja. Foi este
conselho que minha mãe me deu ao me despedir dela. Mas eu vejo aqui tantos
Artures. Quem deles, afinal, fará de mim um cavaleiro?'' lwanet começou a rir e
disse: "O verdadeiro Artur não é nenhum destes! Mas tu o verás logo!" E sem perda
corte. Alteando a voz para sobrepujar o vozerio, Parsifal exclamou: "Deus proteja a
vós todos, senhores e, antes de quaisquer outros, o rei e sua esposa! Minha mãe
que por seus feitos mereceram um lugar na Távola Redonda. Infelizmente ignoro
quem dentre vós seja o anfitrião. Um cavaleiro inteiramente vermelho mandou dizer-
lhe que o espera lá fora, em campo raso. Acredito que se trata de um desafio. Ele,
contudo, lamenta ter molhado a rainha com vinho. Ah, sentir-me-ia sobremodo feliz
se recebesse das mãos do rei uma armadura! Ela confere um aspecto tão
cavaleiroso!"
presentes a convicção de que nunca havia nascido criatura mais simpática. Deus,
por certo, estivera numa disposição de espírito particularmente feliz quando criara o
128
bravo e intrépido Parsifal. E mais essa obra-prima do criador, a quem ninguém
onde suas vestes haviam sido molhadas com vinho. Artur o observou e assim se
dirigiu ao jovem parvo: "Deus vos pague esta saudação que eu de bom grado,
desejo retribuir com meus bens e minha vida. É com prazer que eu me declaro
disposto a isto."
processo que fará de mim um cavaleiro. Esta demora não me agrada de modo
algum. Não me façais, pois, esperar por mais tempo e armai-me cavaleiro!"
"Isso farei com muito prazer", respondeu o anfitrião, "se eu for digno
farei com todo o gosto. Peço-te apenas que esperes por mais um dia a fim de que
impacientemente de um lado para outro, e exclamou: "Eu não estou pedindo nada.
presentes me são indiferentes. Estes minha mãe poderá oferecer-me que, afinal, é
uma rainha."
129
Artur, porém, explicou: "A armadura pertence a um homem de tamanho
profundamente entristecido desde que ele deixou de ser meu amigo sem que eu lhe
desse motivos para isso. Esse homem que ensombreceu minha alegria de viver
por demais precioso. Não hesiteis em lhe conceder", interveio Keye; "Deixai que
parta para o combate. Se é necessário que alguém recupere para nós o cálice, aqui
está o chicote e lá o pião70. Deixai pois que o rapazinho tome o pião na unha, a fim
de que as mulheres tenham motivos para louvá-lo. Ele terá que lutar muito para
superar prova tão difícil. Pouco se me dá a vida dos dois. Para caçar o javali é
'”Eu nada lhe recusaria se não temesse arriscar a vida daquele que devo
rés-do-chão, onde olhou em torno. A galeria era tão extensa e profunda que pôde
70
Significa que "aqui está o chicote (Parsifal) e ali Ither (o pião)". NT
130
ver, ouvir e entristecer-se com o que iria passar-se a seguir. É que a rainha, cercada
de cavaleiros e damas, havia assomado à janela, donde ele passou a ser examinado
com curiosidade. Entre eles encontrava-se a bela e altiva senhora Cuneware. Ela
havia jurado que só iria rir novamente no dia em que avistasse o homem que tivesse
alcançado ou que iria alcançar a glória suprema. De fato, nunca mais riu até o
momento em que o jovem passou diante dela. Foi então que sua boca mimosa
soltou sonora gargalhada, atitude que resultaria em dano para suas costas. É que
firmemente suas longas tranças louras no seu punho, imobilizando-a. Sem que, pelo
juramento, suas costas estivessem sujeitas aos rigores do juiz, foram elas de tal
modo maltratadas pelo bastão do Senescal que este até se partiu. Enquanto isso o
corte do Rei Artur compareceram muitos nobres campeões sem que esse fato vos
tivesse induzido ao riso. Agora a presença de um rapaz sem a mínima noção sobre
como acontecimento inacreditável. O fato era tanto mais grave por se tratar de
descendente de estirpe principesca. Certamente não teria sido vítima desse vexame
71
"Senescal". O Senescal era o supervisor administrativo da corte. Os quatro cargos mais importantes
numa corte medieval eram: o tesoureiro, o copeiro, o senescal e o marechal
131
Ao tempo vivia na corte o mudo Antanor que, dado o fato de não falar, era
tido como demente. Entretanto sua decisão de romper o silêncio estava vinculada ao
riso dela. Ele voltaria a falar quando a jovem que acabava de ser castigada voltasse
"Por Deus, senhor Senescal, para vosso desencanto o jovem por cuja
"Já que vossas primeiras palavras são de ameaça, elas vos trarão poucas
alegrias." E, ato contínuo, moeu Antanor com pancadas. Keye cochichou a resposta
compaixão pelos padecimentos de ambos. Mais de uma vez fez menção de agarrar
seu venábulo mas diante da rainha havia-se formado tumulto tal que teve que
A MORTE DE ITHER
A este contou que não havia achado alguém que quisesse medir-se com
ele: "O rei, além disso, deu-me um presente! Eu lhe disse que derramaste o vinho
por descuido e que lamentas esse ato desastrado. Como ninguém quer medir-se
contigo, dá-me tua montaria e tua armadura. Ambas me foram dadas de presente lá
132
no palácio a fim de que possa tornar-me um cavaleiro. Tua recusa implicará um
vontade. Portanto entrega-me tudo e fim de conversa! Não quero permanecer por
mais tempo como escudeiro! Um cavaleiro quero ser!" E agarrando o corcel de Ither
pelo freio acrescentou: "Suspeito que sejas Lahelin, de quem minha mãe tem
queixas!"
Foi então que o cavaleiro inverteu a lança e com a ponta obtusa golpeou
tão violentamente o jovem que este, juntamente com seu matungo, foram
intensa fúria. Num abrir e fechar de olhos, agarrou seu venábulo. Pela fenda da
cérebro até a nuca. E assim esse herói avesso a qualquer tipo de falsidade tombou
133
provas de amor viam destruídas sua felicidade e alegria de viver. Para elas a
forma pela qual poderia tirar-lhe a armadura. Era uma situação singular. Suas belas
desatar ou romper os cordões que prendiam as grevas. Foi então que o corcel do
morto e a pileca de Parsifal puseram-se a relinchar tão alto que o som foi ouvido
junto ao fosso diante da cidade. Ao ouvir o rinchar do corcel e vê-lo sem o seu ginete
o elegante escudeiro acudiu, pois apesar de tudo simpatizava com Parsifal. Ali
Gahmuret. Diante da planície de Nantes o morto foi despojado de sua armadura que
foi colocada no vivo e ainda inexperiente e alheio ao mundo. Iwanet observou: "As
134
rústicas botas de camponês não combinam com as grevas. A partir de agora terás
as reluzentes grevas de ferro. Foram-lhe postas duas esporas de ouro, firmadas não
com correias de couro mas com galões bordados a ouro. Antes de lhe colocar a
couraça, prendeu-lhe as joelheiras. Foi assim que num abrir e fechar de olhos mãos
hábeis armaram o impaciente Parsifal dos pés à cabeça. Quando pediu sua aljava,
tais armas." Ao invés disso cingiu-lhe uma espada bem afiada e lhe mostrou como
morto, que Parsifal, armado de ponto em branco e com a vigorosa agilidade que
utilizar dos estribos. Iwanet não se cansava em instruí-lo de que forma, protegido
pelo escudo, devia dar combate ao adversário, observando todas as normas da arte
marcial. Quando lhe foi entregue a lança Parsifal, visivelmente mal satisfeito,
135
"Se alguém te atacar tu transpassas seu escudo com a lança de modo
companheiro, tenho agora tudo que desejava. Volta agora para a corte, assegura ao
Rei Artur minha dedicação e registra queixa da grande afronta que me foi feita.
ofendeu-me, pois maltratou a jovem que se riu de mim. Seus gritos de dor e sua
solidário com meu desgosto. Agora devo partir! Que Deus te proteja e que tome a
Ither, que em vida havia sido bafejado pela fortuna, conservou mesmo na morte sua
cavaleiros - fulminado por lança através do escudo -, teria sido mais fácil aceitar a
terrível desgraça. Mas foi morto com um venábulo! Iwanet o cobriu de flores à
72
“Maastricht”. Cidade dos Países-Baixos que serviu de residência aos reis francos e aos duques de
Brabante
136
semelhança de uma coberta. À sua cabeceira fincou o venábulo. O belo e íntegro
conjunto servia de cruzeiro. A seguir partiu, divulgando na corte a notícia que fez
tristeza.
corpo do Rei de Kukumerland que Parsifal havia matado a Rainha Ginover proferiu
estes lamentos: "Ai de nós, esta terrível desgraça virá certamente arruinar a real
reputação de Artur, pois aquele que deveria ser distinguido com a glória suprema da
Távola Redonda jaz agora morto diante de Nantes. Ele reivindicou sua parte na
de disputar com bravura e hombridade o amor de uma mulher. Agora foi lançada
nos corações femininos a semente de uma angústia inaliviável. Nossa mágoa brota
de tua ferida. Ah, teus cabelos eram tão rubros que teu próprio sangue não seria
capaz de tornar tão vivo o vermelho luminoso das flores. Tua morte fez emudecer o
137
Ao renomado Ither foi dado funeral de rei. Essa morte foi lamentada pelas
damas. Sua armadura fora causa de sua perdição, pois ela impelira o simplório
Parsifal a atentar contra sua vida. Mais tarde, tornando-se mais sensato, sentiria
Cavalgadas sob o frio e o calor, sobre montes e vales, não eram capazes de fazê-lo
de ponto em branco, percorreu num único dia uma distância que um homem
desarmado e com a cabeça no lugar não perfaria em dois dias. Como Parsifal não
sabia sofrear a montaria, deixou que ela galopasse o tempo todo e só raras vezes
simplório acreditava que Artur os havia semeado e feito germinar do chão. Por isso o
jovem parvo disse de si para si: "Os servos de minha mãe nada entendem de
138
diretamente ao local onde o senhor do castelo e da terra vinha descansando
bamboleasse de um lado para outro, o que não apenas atentava contra todas as
Gurnemenz estava sentado ali inteiramente só e a crista da tília lançava sua sombra
hóspede como convém. Como não via junto ao príncipe nem cavaleiros nem servos,
"Se viestes para ser instruído por mim, peço vossa amizade. Esta é a
condição implícita para quem deseja meus conselhos." Com estas palavras o
príncipe lançou ao ar o falcão amestrado que estava pousado em sua mão. A ave
elevou-se aos cimos do castelo e fez tinir um guizo preso às suas garras. Era o
139
ACOLHIDA HOSPITALEIRA
sua ingenuidade, explicou: "Foi um rei que me armou cavaleiro e eu não desmonto,
haja o que houver! Entretanto desejo saudar-vos - foi este o conselho que minha
mãe me deu."
persuasão para convencê-lo a desmontar e dirigir-se para um quarto. Foi então que
insistiram com ele: "Permite-nos que te aliviemos da armadura para que te ponhas à
vontade!" Sem demora livraram-no da armadura mas quando sob ela descobriram
descoberta e este, constrangido, não sabia o que fazer. Um dos cavaleiros fez então
esta observação indulgente: "Em verdade nunca me foi dado ver criatura de
tamanha perfeição física. Uma expressão de felicidade irradia de seu rosto, que
lástima. Indigna-me ver esta obra-prima da natureza envolta em tais andrajos. Salve
a mãe que deu à luz este jovem magnífico. Ricamente ajaezado, dava uma
impressão sobremodo cavalei rosa até que lhe retiramos a armadura. De resto,
140
O castelão respondeu-lhe: "A história toda parece estar relacionada com
tão singular", decidiu o senhor do castelo. Eles foram ter com Parsifal que, apesar de
ferimentos com suas próprias mãos. A seguir foi servido o jantar, que o jovem
hóspede esfomeado aguardava com visível ansiedade. Ele se havia levantado cedo
onde igualmente nada lhe havia sido oferecido, deixaram-no esfalfado e faminto.
Quando o castelão o convidou para jantar com ele, comeu com muita disposição.
Tão avidamente se serviu dos diversos pratos que num abrir e fechar de olhos os
141
"Por Deus, isso de fato aconteceu. Minha mãe, por certo, ainda estava
Parsifal obedeceu contra a vontade, de vez que não tinha outra alternativa. Sobre o
corpo nu desse jovem tão magnífico - jamais mulher alguma havia dado à luz outro
em sono tão profundo que nenhuma vez sequer mudou de posição; e assim
Enquanto tais preparativos vinham tendo curso o hóspede despertou sem que fosse
Embora não saiba quem as tivesse enviado, devo mencionar que ali
consideraram antipática sua maneira de se comportar. Dessa vez sua candura não
foi objeto de irritação, de modo que pôde fazer do banho um real motivo de prazer. A
atitude das jovens que dele se ocupavam era discreta, embora de jovial desinibição.
conversa despreocupada das moças. Na verdade não podia alegar que o ambiente
estava escuro pois as jovens, a par da luz do dia, irradiavam uma claridade
142
mas a de Parsifal sobrepujava a ambos. Quando se lhe passou a toalha de banho
permanecer ali. Acredito porém que teriam preferido levar a certeza de que tudo
Nosso hóspede retornou para junto do leito, onde se lhe pôs uma
vestimenta branca com cinto de seda entretecido de fios de ouro. Foram-lhe postas
também calças de cor escarlate. Agora sim, suas pernas bem torneadas ofereciam
branco com largas guarnições de marta cinza-escura. Tudo isso nosso jovem vestiu.
terem visto jovem tão bem parecido, exaltando a mulher que havia brindado o
mundo com tão magnífico rebento. E não foi por mera cortesia mas plenamente
convictos que fizeram este comentário: "Se, como cavaleiro, dedicar-se ao amor
pela qual seria reconhecido por todos que com ele cruzassem.
143
O anfitrião o tomou pela mão, deixando com ele o recinto. O príncipe lhe
ajuda."
"Que Deus recompense a ambos por essa opinião lisonjeira, senhor. Sois
sobremodo bondoso."
anfitrião mostrou-lhe como, pela participação no santo sacrifício da missa, pelo sinal
melhorar sua sorte. A seguir retornaram ao palácio, onde lhes foi servida a refeição
matinal. O convidado sentou-se ao lado do anfitrião e revelou uma vez mais seu
excepcional apetite. Foi então que o senhor do castelo em tom cortês fez-lhe esta
pergunta: "Meu senhor, não me leveis a mal se agora vos perguntar de onde
vindes."
o cavaleiro vermelho, suspirou lamentando sua morte. Deu, por isso, ao seu
144
EDUCAÇÃO CAVALEIROSA73
Parsifal, falando-lhe nestes termos: "Vós pairais como uma criança. Por que não
desistis de uma vez por todas de falar em vossa mãe, ocupando-vos de outros
que fala sem refletir não serve para nada, muda de idéia a toda hora, perde o
prestígio e termina nas trevas do Inferno. Pelo que pude observar tendes aptidões
para liderança. Mas por mais alto que subais na vida não vos esqueçais nunca de
solicitude pois quem minorar suas penas poderá estar seguro da graça de Deus.
Um homem assim encontra-se em situação muito mais difícil do que aquele que
publicamente implora a caridade dos que passam. Deveis saber, por outro lado,
tudo deveis achar a justa medida. Logo percebi o quanto necessitais de orientação.
desnecessárias mas quando alguém vos fizer perguntas astuciosas, reagi de pronto
com uma resposta ponderada. Vossos cinco sentidos são, afinal, bem normais.
73
"Educação cavaleirosa". A educação dos filhos da nobreza incluía o adestramento nas artes marciais,
normas de procedimento na corte. Esses objetivos educacionais, segundo o modelo provençal, podem ser
sintetizados desta forma: "Joi e jovén" (jovialidade e espírito jovem); "pretz e valor" (renome e firmeza de
caráter); "mezura e cortezia" (compostura e fino trato); "franqueza ed onor" (sinceridade e prestígio); "depórt e
solatz" (espírito festivo e sociabilidade); "dompnéi ed amor" (dedicação à dama e amor). N T
145
intrepidez com a misericórdia então estarei seguro de que haveis compreendido
vos tenha causado tamanha dor que, mesmo depois, o ressentimento contra ele
mundo feminino repara muito nisso. Se fordes, a um tempo, intrépido e jovial, então
jovem cavaleiro."
possui uma aguda sensibilidade para detectar a infidelidade e a perfídia e uma vez
atormentado a vida inteira pelo remorso. Tomai a peito este ensinamento! Quero
mulher são tão inseparáveis como o sol e o dia. Ambos brotam da mesma semente
nunca mais fez referência à mãe, guardou-a, contudo, no recesso do coração. O que
o príncipe lhe disse, a seguir, resultaria em seu prestígio: "Aprendereis agora como
146
deve comportar-se um verdadeiro cavaleiro. Lembro vossa postura quando aqui
aparecestes. Conheço muitas paredes em que o escudo ficaria mais bem pendurado
que em vosso pescoço. Ainda há tempo para exercícios ao ar livre. Aprendereis ali a
arte do manejo das armas. Dai-lhe um cavalo! Trazei também o meu e os de todos
os cavaleiros! O jovem virá conosco e todos deverão ter à mão uma lança de torneio
nova e reforçada!"
disse -"é assim que deveis fazer." Essa maneira de corrigir os erros de Parsifal
revelou-se mais eficiente que o emprego da vara de salgueiro com que se costuma
contra Parsifal. Para essa primeira quebra de lanças acompanhou seu protegido até
o local do encontro. Eis que pela primeira vez o jovem enfiou sua lança num
Ele lançou o corcel ao ataque a toda a brida e assestou a lança por entre os quatro
147
pregos74 de modo que o cavaleiro do anfitrião não pôde se manter na sela,
parte, pois Parsifal descavalgou mais cinco adversários até que o príncipe o
reconduziu ao castelo. Mais tarde iria ele confirmar a reputação conquistada nos
aos exercícios confirmaram sua destreza e vigor. Um deles opinou: "Agora nosso
príncipe irá livrar-se de seu desgosto e rejuvenescer uma vez mais. Ele deverá dar-
lhe em casamento sua filha, nossa futura soberana. Se for suficientemente sagaz,
terão fim suas tribulações. Apareceu-lhe o substituto dos três filhos que tombaram
em combate."
jantar já estava posta. Ele pediu à filha que participasse da refeição. Agora ouvi o
Fortuna. Quanto a vós, peço que permitais que ela continue na posse do anel, caso
use algum. Ela, aliás, não possui anel ou broche, pois ela não tem, como a fidalga
da floresta, alguém que lhe ofereça essas prendas. Aquela tinha quem lhe desse o
que mais tarde lhe subtraístes. Em todo o caso, convém que não vos aposseis de
74
"Pregos do escudo". O dorso metálico era afixado ao escudo de madeira com quatro pregos, cujo centro
tradicionalmente servia de alvo ao cavaleiro atacante
148
A mesa era baixa e comprida e nela o dono da casa, sentado à cabeceira,
ficava em posição cômoda sem que alguém lhe tolhesse os movimentos. O hóspede
foi convidado a tomar assento entre ele e a filha. A esta determinou que com suas
íntimos. A moça cumpriu docilmente tudo o que o pai lhe havia determinado. A
presença de ambos era uma verdadeira festa para os olhos. Terminada a refeição a
dias. Ele, porém, vivia mergulhado em inquietude e isso pelo seguinte motivo:
antes de se abrasar nos braços de uma mulher, pretendia realizar muitos feitos.
Parecia-lhe que tão nobre aspiração era penhor da suprema felicidade nesta e na
o quarto filho que perco. Eu esperava que através de vós pudesse ressarcir-me da
perda dos três. Antes eram apenas três. Agora, se alguém quisesse cortar meu
coração em quatro pedaços e distribuí-los entre meus três filhos que tombaram
valorosamente e vós que partis, eu me declararia satisfeito com isso. Que no fim das
149
contas estejamos envoltos em luto é a sina da vida de cavaleiro. Dói-me
pretendentes tanto sua mão quanto seu reino. Esse acontecimento causou ao meu
coração tantas feridas quantos são os vãos de uma cerca. Cedo demais relegais-me
à mais profunda desesperança. Ah, por que me não é dado morrer, depois que
desprezastes Liaze, a bela jovem, e meu próprio reino? Meu segundo filho era o
Conde Lascoyt, morto por Ider, filho de Noyt, por causa de um falcão. Isto roubou-
Acompanhava-o nas suas andanças a bela Mahaute, cujo irmão Ehkunat lhe havia
onde perdeu a vida. Ali foi morto por Mabonagrin. Por causa dessa desgraça perdeu
Mahaute sua radiante beleza e minha esposa, sua mãe, a vida. A dor inominável
cavaleiro de verdade e com algum direito puder aspirar ao amor é que me dareis
vossa filha Liaze, a bela jovem, em casamento. Mas agora chega de lamúrias! Se eu
de fato reúno condições para vos libertar do sofrimento, isso certamente vai
75
"Kingrun". Senescal de Clâmide.
76
"Brandigan": Capital de Iserterre, reino de Clâmide.
77
"Schoydelacurt". "As delícias de Corte", um parque magnífico. Quem nele ingressava sujeitava-se a
uma luta de vida e de morte. A aventura de Schoydelacurt é narrada minuciosamente na epopéia "Erec", de
Hartmann von Aue.
150
séqüito. A tríplice dor do príncipe teria um acréscimo de sofrimento, pois pela quarta
151
LIVRO IV
A CHEGADA DE PARSIFAL A PELRAPEIRE
Como que compelido por tenaz, sua lembrança fixava-se na bela Liaze, a moça
atraente que o distinguira de todos os modos. Apenas seu amor não lhe havia
ritmo que quisesse, troteando ou galopando. Na floresta pela qual seguia não havia
nem atalhos, por regiões desabitadas e por vales e montes desconhecidos. Mas
como reza o ditado, quem cavalga ao acaso encontra, quando menos espera, a
estrada real. Sinais havia de sobra, na medida em que grandes troncos derrubados
poderiam constituir-se indicativo disso. Mas Parsifal não enveredava por pistas
falsas pois prosseguia sempre em linha reta até atingir, no mesmo dia em que
privações. A torrente do rio disparava qual seta bem talhada e emplumada, impelida
por corda de besta. A ponte de madeira, cuja parte superior havia sido remendada
oposta na qual se erguia a cidade. Logo após a ponte o rio desaguava no mar.
sem estar suspensa por corda. No entanto essa situação extravagante nada tinha a
que estavam Vendo-o aproximar-se com porte régio pela planície em direção à
ponte, tomavam-no por Clâmide, com cujas visitas estavam acostumados. Ao ser
recebido por tamanho alarido, sua montaria relutava em pisar na ponte combalida,
por mais que a estimulasse a avançar. Mas Parsifal, a quem Deus poupou do
o cavalo. Um poltrão dificilmente se teria animado a enfrentar luta tão desigual. Ele
78
Pelrapeire: Capital de Brobarz.
153
cavaleiros desapareceram na cidade e trancaram os portões atrás de si, por
perdido a vida. Presa ao portão, descobriu uma argola com a qual bateu
bela jovem que de uma janela observava o intrépido guerreiro que lá em baixo vinha
aguardando ingresso. A recatada beldade gritou: "Se vindes como inimigo não
faremos caso de vossa presença. Mesmo sem vos levar em conta estamos sendo
vos ajudar no que puder. Que vosso cumprimento seja minha recompensa. Cá estou
obter seu ingresso na cidade. Com isso cessariam as grandes tribulações pelas
quais vinha passando a cidade. Ao entrar nesta Parsifal deparou com grande
Ademais, viu muitos valentes infantes, os melhores do país, todos armados com
lanças sólidas, afiadas e em bom estado. Eu soube que, a mando dos capitães,
venábulos. Mas todos eram magros e fracos de causar dó. A duras penas o
154
do castelo transformado em praça de guerra. Em lugar nenhum vira tantas torres
tornaria um cavaleiro b soldo da soberana local, pois de um soldo assim não teria
passando fome. Não havia queijo, nem carne, nem pão. Eles não tinham por que
de gordura. Flácidos eram os ventres, os ossos dos quadris salientes e sobre suas
brasa ardente.
mui ilustre. Eles vinham pagando por isso, porque o pedido de casamento de
Clâmide havia sido recusado. Se ali por acaso caísse um barril ou um cântaro, era
inútil pensar que ele deitasse fora alguma gota de cerveja. Nenhuma carpa da
haviam sido privados de tão grato ruído. Eu não estaria no meu juízo perfeito se os
quisesse censurar por isso porque, lá onde muitas vezes desmonto, onde sou o
dono da casa, isto é, no meu próprio lar, o rato passa por decepções toda a vez que
tenta afanar sorrateiramente algo para se alimentar. Não adianta esconder algo de
79
Os domínios de Conde de Wertheim, protetor de Wolfram von Eschenbach, situavam-se na região do
Meno.
80
Carpa da Truhendíngia. O autor, por certo, quis referir-se à localidade denominada Wasserrüdingen, a
três milhas de Eschenbach, na Francônia, cujas carpas ainda desfrutavam de fama no século XIX.
155
mim num lugar onde, de resto, nada acho. Com demasiada freqüência eu, Wolfram
leais vassalos curtiam sua pobreza mas sua fibra inquebrantável fê-los persistir até o
fim. Essa aflitiva situação deveria comover-nos! Seus dias estariam contados, caso
Deus Todo-Poderoso não os viesse socorrer. Ouvi, pois, mais acerca da situação
generoso para, num caso desses, não contar com grandes demonstrações de
hospitalidade. Com efeito ele não tinha a mínima idéia da extensão das privações
por que vinham passado. Estenderam um tapete sobre a relva, para ser preciso,
debaixo de uma tília cercada por muro, onde sua frondosa copa oferecia sombra
na água do poço dos vestígios de ferrugem, puderam vê-lo surgir na sua verdadeira
aparência. Por um momento parecia-lhes que o sol brilhava menos, tomando por
exatamente igual àquele por ele usado em Graharz. A guarnição de marta tinha
81
O autor faz aqui uma confissão de pobreza efetiva que contrasta com seu altivo comportamento de
"gran seigneur", encarnando um tipo humano que cultiva o código cavaleiroso e hábitos refinados. N T
156
PARSIFAL E CONDWIRAMURDS
Ao responder que era essa sua disposição, subiram com por uma escada
de muitos degraus. No alto da escada aviste uma face radiante, cuja formosura
um sol radioso Ela vinha sendo conduzida ao encontro do visitante pelos seu tios, os
Duques Kyot da Catalunha e o valoroso Manphilyot. por amor a Deus haviam eles
pares de lábios rubros e brilhantes. A seguir tomou ela Parsifal pela mão
completamente as forças. A castelã e sua corte não tinham mais alegrias. A despeito
todas essas, acrescidas a das duas lsoldas82. Num confronto, Condwiramurs levaria
"beleza física". Mulheres abençoadas haviam dado a luz aos dois que ali juntos
82
“As duas Isoldas”. Referência à lenda de Tristão e Isolda. A primeira Isolda (esposa do rei Marcos) é
amante de Tristão; a segunda e sua mulher, a qual. Após uma separação forçada da amante, reconduz ao lar.
157
e cá. Deus deseja pôr termo às minhas tribulações, Vejo diante de mim, sentada,
comparada aos encantos da jovem soberana do país. Deus nada lhe deixara faltar:
ela era qual rosa, úmida de doce orvalho, que irradiava um viço desatado em plena
sentado ao lado da deslumbrante soberana sem dizer palavra. Afinal, por vezes
faltam palavras mesmo àquele homem que em mais de uma oportunidade desfrutou
de companhia feminina.
A rainha, porém, inquiriu de si para si: "Acredito que não caí no seu
agrado, porque emagreci muito. Mas, não! Seu silêncio talvez seja deliberado e
fundado em outros motivos. Afinal, ele meu hospede e cabe a mim como anfitriã
abrir o diálogo. Desde que tomamos assento vem ele contemplando-me com olhar
benevolente. Certamente deseja apenas dar prova de boa educação. Está visto que
me calei por tempo demasiado e devo, pois, usar da palavra." Dirigiu então ao
hóspede estas palavras: "Meu senhor, como anfitriã cabe-me iniciar o diálogo. Vós
158
"Senhora, deixei hoje os domínios de um homem que de mim se despediu
outro me afirmasse ter vencido uma distância que um mensageiro expresso não
consegue percorrer em dois dias. Conheço vosso anfitrião, pois a irmã dele é minha
mãe. A beleza de sua filha certamente feneceu de tristeza, pois muitos dias
vosso antigo anfitrião peço que vos contenteis com aquilo a que, de há muito, nos
acostumamos. Com isso prestais também a ele um serviço. Agora permiti que vos
Foi aí que interveio seu tio Kyot: "Senhora, estou em condições de vos
enviar doze pães, três dianteiros, três presuntos, oito queijos e dois barris de vinho;
dada a emergência meu irmão também irá contribuir com qualquer coisa."
tempo os habitantes do castelo não tinham o que comer. Antes da chegada desses
159
fez distribuir aos famintos a carne, o queijo e o pão, sobrando para ela e Parsifal
uma única fatia de pão que repartiram equitativamente entre si. Os víveres
de inanição. Quero crer portanto, que se preparou para o hóspede um leito bem
castelo não teriam podido encher o papo com uma refeição assim. Tirante o jovem e
Foi ele precedido de portadores de tochas de palha? Oh, não Ele foi
distinguido com iluminação bem mais adequada. Nosso belo jovem dirigiu-se a uma
pobreza. Diante de tal leito estendeu-se um tapete. Parsifal não tolerou por mais
isso que se retirassem. Aliviado dos sapatos pelos pajens caiu logo em sono
profundo até ser despertado por uma torrente de lágrimas que uma profunda aflição
fez brotar de dois olhos brilhantes. Quero contar-vos como isso aconteceu a fim de
vinha sendo posta em jogo, pois a jovem rainha — é dela que se tratava - era casta
estima a haviam abalado tão profundamente que não pôde conciliar o sono. Para a
rainha não se tratava, pois, daquele amor que transforma virgens em mulheres. Ela
bem preparada; para ser preciso, vestida de alvíssima camisola de seda. Uma
mulher que vai ao encontro de um homem podia estar mais bem armada? A nobre
160
dama havia posto, além disso, um longo manto de veludo. Tomada de viva aflição,
seguia seu caminho. Deixou que suas damas, seus camareiros e todos os demais
para dentro do quarto em que Parsifal repousava. O espaço diante do leito estava
Ambos - ele e a rainha - ignoravam tudo acerca daquele amor que unia
fisicamente os corpos. Tal hipótese seria inimaginável, pois a moça era por demais
recatada para sequer pensar em tais gratificações. Ele a atraiu para junto do leito?
Claro que não, pois ele tampouco entendia dessas coisas. E no dia em que a tomou
nos braços isso aconteceu com a maior simplicidade de coração, numa espécie de
pensava nisso.
disse o jovem à rainha: "Senhora, quereis zombar de mim? De joelhos deveis ficar
unicamente diante de Deus! Sentai no meu leito ou descansai nele e permiti que
161
Recebida sua promessa ela se acomodou junto dele na cama. Era ainda
alta noite, cedo demais, portanto, para que os galos se fizessem ouvir. Ademais os
queixas. Ela disse: "Temo que meu relato perturbe vosso sono e isso não seria nada
bom. O Rei Clâmide e seu Senescal Kingrun devastaram todos os meus castelos e
conservar-me alegre em face de tal emergência? A situação chegou a tal ponto que
falsidade."
saudade. A afeição que lhe devotava fez emergir em seu espírito tristes lembranças.
Ele perguntou à rainha: "Senhora, acaso não há alguém capaz de vos ajudar?"
finalmente abrir-se para seu soberano. Vós vistes meu palácio. Prefiro jogar-me da
162
Sem vacilar Parsifal fez-lhe esta promessa: "Senhora, seja ele francês ou
bretão, ou venha de onde vier, podeis estar segura de que meu braço irá vos
Ele próprio não mais conseguiu conciliar o sono. O sol vinha elevando-se
rapidamente no horizonte, irradiando seu fulgor através das nuvens. Parsifal ouvia o
assim, de ponto em branco, revelou-se por inteiro o rijo combatente que de fato era.
da cidade, acompanhado pelas orações de seus habitantes. Este seria seu primeiro
163
Parsifal arremeteu com tamanho ímpeto que no violento entre-choque as
correias dos arreios se romperam e as montarias foram atiradas sobre seus jarretes.
combate resultaria em ferimentos nos braços e no peito, além da perda de sua fama
de campeão que até aquele dia havia ostentado com pretensiosa arrogância.
Parsifal vinha-lhe dando o troco de tal forma que o consternado Senescal acreditava
catapulta. Mas era apenas a espada de Parsifal que fazia ressoar seu elmo. Parsifal
o abateu e lhe pôs o joelho sobre o peito. Kingrun admitiu, então, o que nunca havia
pela morte do filho dele, chamado Schenteflurs. Que mais queres? Deus te cumulou
de honras. Onde quer que seja relembrada esta tua vitória sobre mim poderás
Presta voto de submissão à rainha a quem teu soberano, em sua ira, causou
amargo sofrimento."
reduzido a pó, pois sou o responsável pela miséria de muitos bravos dessa cidade."
164
"Então vai à Bretanha e presta teu voto de submissão de cavaleiro a uma
jovem que por minha causa passou por um sofrimento imerecido. Dize-lhe que, o
que quer que ocorra, nunca mais poderei desfrutar de alegria verdadeira / enquanto
não tiver reparado a injúria que lhe foi feita, trespassando um certo escudo com
minha lança. Dize a Artur, à sua esposa e à sua corte que estou sempre pronto a
servi-los. Dize-lhes ademais que não poderei privar da companhia deles enquanto
não houver reparado a afronta de que eu e aquela jovem fomos vítimas. Ela riu-se
de mim e só por isso passou por sérias dificuldades. Assegura-lhe que tem em mim
regressou a Pelrapeire, onde vinha sendo esperado com seu cavalo, que
pois no exército sitiante passou a predominar uma insegurança geral depois de seu
comandante Kingrun ter sido vencido em combate. Parsifal foi levado à presença da
rainha, que o estreitou nos braços, o atraiu para junto de si e exclamou: "Jamais
serei mulher de outro homem senão deste que tenho em meus braços." E, animada,
que consentisse em ser seu soberano. A rainha também lhe pediu que se tornasse
seu amado esposo, já que na luta com Kingrun havia conquistado tão grande
reputação.
165
Foi então que do parapeito das ameias se avistaram duas velas pandas
que um forte vento impelia porto adentro. Os porões dos navios continham uma
carga que iria encher de júbilo todos os habitantes da cidade; ela consistia - Que
murchos podiam até voar como folhas secas levadas pelo vento. Entretanto o
fossem pagas pelo dobro de seu preço real. Embora os próprios mercadores
considerassem esse gesto uma liberalidade, assim foi feito. Agora no lar dos
habitantes da cidade gotejava uma vez mais a gordura da carne assada sobre os
carvões em brasa. Agora, mesmo eu aceitaria ser ali um cavaleiro a soldo, pois
Agora permiti que vos descreva o recurso utilizado por Parsifal nessa
servindo os nobres que se achavam em torno dele, pois não desejava sobrecarregar
seus estômagos vazios. Tão judiciosa distribuição dos alimentos resultou para eles
166
4. O CASAMENTO DE PARSIFAL E CONDWIRAMURS
ambos concordaram. Deitado a seu lado ele se comportou de forma tão retraída que
hoje em dia muitas mulheres ficariam mal satisfeitas com um homem assim. Ah,
neste nosso tempo elas tratam unicamente de se enfeitar de forma sedutora para
tratam de parecer castas, mas sua própria lascívia desmascara esse procedimento
Acertadamente raciocina ele da seguinte forma: "Servi a esta mulher anos a fio, na
esperança de um dia merecer a recompensa de seu amor. Eis que meu ideal se
realizou. Eu a tenho agora a meu lado. Eu me daria por satisfeito em apenas tocar
seu vestido com a mão. Se sofregamente exigisse mais, meu comportamento seria
injusto e desleal. Por que razão devo eu precipitá-la num drama de consciência e a
nós ambos numa situação de ignomínia? Com mulheres de escol convém manter
vermelho, quieto e satisfeito ao lado dela. Nem sequer tocou a rainha. Ela, porém,
firmou-se na crença de que se havia tornado sua mulher desde então. E por amor a
casada e investiu seu bem-amado na suserania do reino com suas cidades e seus
castelos.
167
Dois dias e três noites viveram assim juntos e foram felizes no seu amor.
mulher são uma só realidade inseparável. Eles entrelaçaram, pois, braços e pernas
e já que devo dize-lo: ele descobriu a doçura que havia nela e ambos se exercitaram
nesse jogo tão antigo e eternamente novo. Isso os encheu de euforia, sem sentirem
5. O ASSÉDIO DE PELRAPEIRE
ouvidos. Um mensageiro, cuja montaria sangrava nos flancos sob o estímulo das
seus dois exércitos encontrarão Pelrapeire preparada para resistir. Eis que se
dos cavaleiros da Távola Redonda do Rei Artur -, pois os símbolos de seu escudo
168
O rei atalhou bruscamente o escudeiro: "Condwiramurs será minha, ela e
seu reino. Meu Senescal Kingrun assegurou-me que os sitiados, premidos pela
Foi então que veio ao encontro do rei um cavaleiro, com a montaria completamente
príncipes de seu séquito observou: "Kingrun lutou unicamente por seus próprios
interesses e não pela causa de todos. Mesmo se tivesse sido morto não se
constituiria motivo suficiente para que os dois exércitos - este e aquele que sitia a
cidade - fossem moralmente afetados no seu ânimo de combater." Ele pediu a seu
engajarmos a fundo faremos numerosos assaltos, até que lhes faleça a vontade de
Ele, com efeito, conseguiu expor a cidade a duras provas, mas ele próprio encontrou
Guiados por cordas, arremessavam do alto das muralhas grandes toras de madeira
que terminavam em pontas agudas, causando assim grandes estragos nas hostes
169
inimigas. Isto havia sido treinado antes de Clamide desfechar o ataque de represália
pela derrota sofrida por Kingrun. Além disso navios de abastecimento haviam trazido
assédio. Torres de assalto sobre rodas, aríetes, catapultas e colubrinas — tudo foi
encontrou o Rei Artur em Karminal, seu castelo de caça, situado em Briziljan. Ali
explicou os motivos pelos quais Parsifal o havia enviado como prisioneiro e prestou
vermelho com seu sofrimento. A novidade espalhou-se logo em toda parte e o gentil-
paladinos deu conta daquilo de que foram incumbido. Keye assustou-se, enrubesceu
e disse: "Es tu esse Kingrun de quem tanto se fala? Ah, muitos bretões foram
pois para que a senhora Cuneware se reconcilie comigo com a ajuda de um grande
83
Fogo grego: líquido pastoso altamente inflamável, resultante da combinação de cal queimada, breu,
resina, nafta e, possivelmente, salitre, inventado por monges gregos do século XI. Na guerra naval contra árabes
e eslavos os bizantinos empregaram o fogo grego com sucesso sob a forma de jato com que borrifavam as
embarcações inimigas, incendiando-as, pois tinha a propriedade de arder na água.
170
desfechando sobre ela um ataque devastador. Os sitiados trataram de resistir com
bravura. Animados pela certeza da vitória e estimulados por novo espírito combativo
mesmo os portões eles abriram, empreendendo uma sortida com seu soberano
inimigos vencidos pelo defeito da couraça84, até que Parsifal proibisse essas práticas
tumulto dos combates diante dos portões, passando a atacar o outro lado da cidade.
O intrépido jovem galopou por terrenos ínvios, contornou o exército e atacou o rei
pela retaguarda. Eis que havia chegado a hora em que já não era mais vantagem
que seus escudos ficaram reduzidos a cacos, o mesmo ocorrendo com o de Parsifal,
admirá-lo, ainda que sua combatividade lhes custasse caro. Galogandres, o porta-
mortalmente ferido ao lado do rei. Quando o próprio Clamide passou a correr perigo,
ele e os seus foram acometidos pelo temor. Clamide determinou então que se
84
Defeito da couraça. O intervalo entra a borda da couraça e as outras peças que se lhe ligam.
171
Parsifal determinou que durante três dias fosse dispensado aos
submissão e a seguir lhes falou: "Ó homens honrados, prometei-me que ireis
exército sitiante. Embora suas faces coradas traíssem generosas libações de vinho,
população e a vós seguramente por um ano, caso vos apraza permanecer aqui por
tanto tempo. Além disso nunca foi armado cavaleiro um varão tão magnífico quanto
este que agora é marido da rainha. Ao que parece é de nobilíssima estirpe, já que
que havia feito. Enviou por isso um mensageiro à cidade, anunciando o seguinte:
"Aquele que compartilhou o leito com a rainha deve apresentar-se aqui para um
sua cidade, enfrentando-me. Sob tais condições será observado um armistício entre
os dois exércitos."
172
Ao ouvir tal mensagem de desafio Parsifal ficou satisfeitíssimo. O
destemido jovem replicou: "Asseguro-vos por minha honra que ninguém do nosso
exército virá em meu socorro, caso me veja em situação difícil." Concluiu-se pois um
Brandigan montou seu castelhano chamado Guverjorz, protegido por inteiro por uma
couraça. Esse corcel, juntamente com outros presentes, havia-lhe sido enviado do
Norte, através do lago Ucker, pelo primo Grigorz, Rei de Ipotente. O portador desses
combatentes a pé, aos quais faltavam apenas os escudos. Caso se queira dar
crédito ao relato, vinham eles já com dois anos de soldo pago por antecipação. Além
inteiramente por terra e por mar do sorte que seus habitantes passassem por maus
momentos. Parsifal cavalgou, pois, rumo ao local em que devia se travar o combate
decisivo e onde Deus devia revelar se lhe havia predestinado ou não a filha do Rei
arremeter. Para esse combate o animal havia sido bem equipado. Sobre a cota de
um rubro resplandecente e uma cota de armas de igual cor. O combate foi iniciado
por Clamide, que estava armado com uma lança curta sem polimento, com a qual
arremeteu com impetuosa fúria e foi então que se travou entre os dois jovens
imberbes uma luta singular em que foram observadas todas as regras da arte
173
dos animais, que acabaram ruindo sob o peso de seus ginetes. Agora, cada qual
fazia saltar faíscas do elmo do adversário. Pausas não havia, posto que um não
cacos como se fossem penas atiradas buliçosamente ao vento. Apesar disso, não
acreditar que os defensores da cidade haviam rompido o armistício. Exigiu por isso
sorte da luta mantinha-se indecisa até que o Rei Clamido caiu derribado por um
potente golpe de Parsifal. O sangue que lho escorria da boca e dos ouvidos tingiu de
multiplicaste trinta vezes tua fama. Com razão pode Condwiramurs considerar-me o
que sem lastro perde a estabilidade, assim meu poder perdeu sua importância.
174
humilhação sofrida se refletirá no último de meus descendentes! Conquistaste a
fama e o sucesso! Não me matarás, pois agora não passo de um morto vivo. Dou
a Clamide: "Poupo-te a vida, contanto que prestes ao pai de Liaze teu compromisso
de submissão."
"Não, senhor! Matei seu filho e com isso causei-lhe amargo sofrimento.
Não exijas isto de mim! Por causa de Condwiramurs empenhei-me em luta com
como mil e quinhentos infantes aos quais faltavam apenas os escudos. Eles
na luta. Mais tarde essa guerra resultou para mim em perda de parte substancial de
meus efetivos, arruinando minha honra e minha fortuna. Em face disso o que mais
se encontra Kingrun. Ali dize a Artur, o bretão, que pode dispor de meus serviços,
175
jovem riu-se de mim e o fato de ter sido maltratada por minha causa atingiu-me
moralmente mais que qualquer outra coisa. A essa jovem prestarás teu
Com esse compromisso despediu-se aquele cujo orgulho foi causa de sua
Sem se servir do estribo, montou de um salto, de sorte que os restos de seu escudo
que havia assistido à derrota de Clamide, o desânimo era visível. Com os membros
85
Lover. Território do rei Artur.
176
estacas de tendas que árvores no Spessart86. Em meio a seus numerosos paladinos
e muitas nobres damas vinha ele comemorando a festa de Pentecostes. Ali podiam
ser vista faustosas tendas bem como numerosos estandartes e escudos com seus
não tivesse o apaixonado a seu lado. Na verdade havia ali igualmente muitos
se atreveria a lhe declarar sua ardente paixão, alegando que essas penas de amor
vinham toldando sua alegria do viver; dir-se-ia ainda disposto a servi-la sempre,
caso se dispusesse a libertá-lo desse tormento. Antes que tal acontecesse teria
Mas eis-me falando novamente de mim mesmo. Ouvi, pois de que forma
era identificada a tenda de Artur. Diante dela toda n sua corte achava-se
alegremente reunida em torno de uma mesa. Havia ali muitos nobres cavaleiros de
e que usavam seus apaixonados como se fossem setas disparadas contra o inimigo
86
Spessart. Região montanhosa na Alemanha onde, em virtude da erosão, existem poucas florestas. Na
“Canção dos Niebelungen” é citada como “spehtshart” (Serra do Picapau).
177
espanto o cavalo de batalha e o cavaleiro armado de ponto em branco que, no elmo
e no escudo, exibia marcas visíveis de uma luta. Já estais a par da forma pela qual
senhora, presumo que sois vós a quem devo prestar meus serviços. Na verdade
meu gesto não é inteiramente espontâneo. Por meu intermédio o cavaleiro vermelho
vos assegura que podeis dispor de seus serviços e que pretende reparar a
apresentasse queixa diante do rei Artur. Se não me engano, fostes maltratada por
Cuneware. À vista disso, observou: "Nobre senhora, este cavaleiro foi compelido a
Segui meu conselho e determinai que o prisioneiro seja aliviado de sua armadura. Já
178
reconhecido. Kingrun também o reconheceu de pronto. Tomado de desespero,
salto, empurrou a mesa e perguntou a seu amo o que havia acontecido. Abatido,
Clamide respondeu: "Já nasci com falta de sorte. Perdi um exército magnífico.
Jamais criatura alguma, amamentada por seio materno, teve de suportar tamanha
perda. Entretanto, mais que a perda do meu exército aflige-me o fato de ter de
renunciar ao meu amor. A renúncia a que fui obrigado pesa-me tanto que para mim
já não existe alegria nem felicidade. Por causa de Condwiramurs meus cabelos nas
aquele que atingiu Pôncio Pilatos e o infame Judas, cujo beijo atraiçoou Nosso
Senhor, contanto que pudesse abraçar a rainha de Brobarz como minha amada
esposa. O que viesse depois me seria indiferente. Mas infelizmente ela desprezou o
rei de Iserterre! Meu país e meu povo jamais irão se conformar com isso. Em
Brandigan, meu primo Mabonagrin87 teve que sustentar também por tempo
tive de apresentar-me a ti, ó Rei Artur. Que em meu reino muita coisa má te
sucedeu, tu bem o sabes. Esquece isso, nobre varão! Enquanto for prisioneiro, não
tomes contra mim qualquer medida de represália. Para isso invoco a proteção da
87
Mabonagrin. Esta passagem se refere, possivelmente, aos árduos combates sustentados por Mabonagrin
para defender Schoydelacourt.
179
gentilmente permissão para juntar-se aos demais cavaleiros: "Caso me julgueis
ele não recusará vosso pedido. Sua concordância resultará em prestígio para vós e
Em vista disso o próprio Artur pediu ao filho de sua irmã que acolhesse
Clamide na roda de seus amigos, o que mesmo sem essa recomendação teria sido
feito. Amistosamente o grupo acolheu esse vencido mas honrado cavaleiro. Kingrun,
porém, disse-lhe em voz baixa: "Com os diabos! Afinal, nenhum bretão te venceu até
agora numa contenda. És mais rico e mais poderoso que Artur e tem sobre ele uma
vantagem a mais - a juventude. E justo que esse Artur se cubra de honra e glória
pelo simples fato de Keye, num acesso de cólera, ter maltratado uma nobre
princesa? Ela apenas obedeceu aos ditames do coração e honrou com seu riso
agora convictos de que seu prestígio foi solidamente fortalecido. Ademais não
mexeram um dedo quando Ither, o rei de Kukumerland, foi levado morto para Nantes
Também a mim ele venceu em combate honroso. De fato o que mais ali se viu foram
chispas saltando dos elmos e espadas vibrando no ar." Mas na corte a opinião
cena anterior. A terra devastada, na qual Parsifal agora ostentava a coroa, havia
180
sido reconstruída e logo voltaram a reinar, uma vez mais, jovialidade e espírito
necessitados do reino, onde era estimado em virtude de sua liberalidade. Uma vez
mais muitas bandeiras e novos escudos passaram a enfeitar os locais onde Parsifal
destemido herói fazia com que as forças estrangeiras que se haviam infiltrado nas
fronteiras do reino sentissem o peso de sua força. Seus feitos eram exaltados como
privilegiada. A nobre e encantadora jovem pôde realizar tudo que desejava neste
mundo. Seu amor era sólido e inabalável e sabia-se amada pelo marido na mesma
medida. Ao agora tratar das circunstâncias que impunham a separação dos dois
devo também dizer alguma coisa sobre os numerosos sofrimentos que para ambos
de Parsifal haver salvo seu povo, seu país e a ela própria de uma situação difícil
dirigiu-se a ela nestes termos: "Nobre senhora, gostaria de ausentar-me com vossa
permissão, a fim de saber o que se passa com minha mãe. Não sei se ela vai bem
ou mal e por isso gostaria de lhe fazer uma breve visita e de permeio, quem sabe,
consoante assegura meu relato, não quis contrariá-lo com uma negativa.
181
Determinou a seus cavaleiros que ali permanecessem e dispensando qualquer
182
LIVRO V
1. PARSIFAL NO CASTELO DO GRAAL
Quem estiver desejoso de saber para onde Parsifal seria impelido por sua
sede de aventuras ouvirá, sem demora, coisas extraordinárias. Deixai, pois que o
filho de Gahmuret siga seu caminho. Por certo todas as pessoas de boa vontade
hão de desejar que ele siga por caminhos afortunados, pois estava escrito que teria
de passar por muitas situações difíceis antes de conquistar honras e sucesso. O que
mais que qualquer outra coisa lhe confrangia a alma era o fato de ter de separar-se
ouviu falar. A saudade por Condwiramurs o afligia tanto que teria perdido toda a
alegria de viver se não fosse um cavaleiro de muito brio. De rédea solta e sem
terrenos cobertos de liquens. A narrativa nos assegura que teria percorrido, num
único dia, distância igual à que uma ave seria capaz de superar em vôo ininterrupto.
Caso essa afirmação seja correta, venceu ele uma distância ainda maior que a que
Graharz a Brobarz.
cair da tarde atingiu as margens de um lago, onde pescadores haviam ancorado sua
183
embarcação. O lago lhes pertencia. Eles se encontravam suficientemente próximos
da margem para ouvir as palavras de apelo que Parsifal lhes dirigia na medida em
que se vinha aproximando do local. Na embarcação viu um homem usando traje tão
magnífico que um soberano com jurisdição sobre todos os reinos da terra não teria
condições de possuir igual. Seu chapéu com forro confortável era ornado com penas
de pavão. A esse pescador Parsifal se dirigiu, pedindo que ele, como homem bem-
educado, lhe indicasse por amor de Deus onde poderia achar local de pousada.
Esse homem, cujas feições eram marcadas por profundo sofrimento, respondeu:
"Senhor, tanto quanto sei esta região, incluindo suas águas, é desabitada num raio
de trinta milhas, com exceção de um castelo, das proximidades do qual posso dar-
vos seguras notícias. Ademais a que outro lugar pretenderíeis chegar a esta hora do
dia? Ao chegar à base daquele penhasco dobrai à direita. Ao atingir o fosso tereis de
munir-vos de alguma paciência. Pedi ali para que baixem a ponte levadiça e vos
concedam ingresso."
pescador houve por bem dar-lhe mais um conselho: "Caso acerteis o caminho, eu
mesmo cuidarei hoje à noite de vosso bem-estar. Que vossa gratidão corresponda
ao grau de hospitalidade com qual ali sereis recebido. Mas acautelai-vos! Há ali
enveredar por uma pista falsa — uma situação pela qual não gostaria que
passásseis."
fosso. Com a ponte levantada, estava o soberbo castelo ali diante dele, como
tivesse emergido repentinamente do chão. Não tinha por que temer ataques vindos
184
de fora a menos que os atacantes tivessem asas ou fossem carregados pelo vento
tinham por que preocupar-se com pão, ainda que o assédio durasse trinta anos.
agradecimento. Ele me instruiu para que me apresentasse aqui e pede que seja
adentro, chegando a um amplo pátio que não apresentava qualquer sinal de ser
palco de jogos marciais, pois o gramado era verde e bem aparado. Ficou claro que
cavaleiros se haviam reunido para dar boas-vindas ao visitante. Alguns pajens ainda
88
Abenberg. O Castelo de Klein Amberg está situado a meio caminho entre o Spalt e Schwabach, a cerca
de duas milhas a leste de Eschenbach.
185
se esmerava em ser o primeiro a servi-lo. Eles seguraram seu estribo, de sorte que
imberbe Parsifal surgiu diante deles em todo o seu garbo e sua juventude, não
houve quem o não considerasse o filho dileto da Fortuna. Pedindo água, o jovem
tomou assento junto deles a todos parecia que brilhava como um novo dia. Um
manto de preciosa seda árabe foi posto, solto, sobre seus ombros. Todos o
obsequioso: “Este manto foi usado por minha soberana, a Rainha Repanse de
Schoye89 e ela o coloca à vossa disposição até que fiquem prontas as roupas que
vos serão oferecidas. Eu lhe pedi esse favor sem qualquer receio, por presumir que
"Senhor, que Deus vos retribua as palavras amigas. Se vossa opinião for
correta posso julgar-me feliz por haver sido distinguido por Deus de forma tão
especial."
alegres e bem dispostos. Ele era tratado com consideração e servido com
liberalidade, posto que havia ali mais víveres do que Parsifal encontrara na sitiada
Pelrapeire. Sua armadura havia sido guardada em outro lugar o que, depois de
algum tempo, o aborreceu sobremodo. É que o loquaz bobo da corte, com sua
89
Repanse de Schoye (o Despontar da Alegria), irmã de Anfortas, Rei do graal, NT
186
incontinenti ao anfitrião, como se Parsifal tivesse provocado sua ira. Por causa
dessa brincadeira o jovem quase o matou. Como não tinha à mão sua espada,
ornada de lavores, cerrou os punhos com tamanho ódio que o sangue espirrou-lhe
indignação. "Aquele homem tem o direito de fazer suas brincadeiras, por mais tristes
que nós outros estejamos. Perdoai-o! Com isso ele quis dizer apenas que o
Pescador acaba de chegar. Deixai passar vossa ira e ide a seu encontro, pois sois
sobre as cabeças dos que ali se achavam reunidos, enquanto nas paredes em torno
deles oferecia espaço suficiente para acomodar quatro pessoas. Entre os canapés
havia espaço livre para circulação e diante deles haviam sido colocados tapetes
circulares. Afinal o filho do Rei Frimurtel90 podia permitir-se esse luxo. Ali havia ainda
90
Filho de Frimurtel, Anfortas.
187
crepitavam achas de pau de áloe. Fogo tão soberbo e ainda por cima alimentado por
madeira tão nobre nunca havia sido visto, nem mesmo em Wildenberg91.
Privado de todas as alegrias, consumia sua existência num sofrimento sem fim.
anfitrião. Não o deixando esperar por mais tempo, pediu que se aproximasse e
tomasse assento a seu lado: "Ficai aqui comigo. Temos tanta coisa em comum que
causa de sua enfermidade. Pela mesma razão vinha ele agasalhado com roupas
sumamente preciosas. A boina que usava havia sido confeccionada com a mesma
preciosa pele de marta. Uma orla de ouro árabe contornava a boina em cujo centro
resplandecia um rubi.
quais foi dado assistir a uma cena comovente. Um escudeiro irrompia pela sala,
carregando consigo uma lança de cuja ponta brotava vá sangue, que escorria pela
haste, manchando a manga e a mão de seu portador. Foi então que se fizeram ouvir
no vasto pé tantos lamentos e choros que nem mesmo trinta povos teriam como
derramar tantas lágrimas. Ó escudeiro, portador da lança, deu uma volta completa
ao salão e se apressou em sair pela mesma porta pela qual havia entrado. Quando
91
Wildenberg. Nome de vários castelos na Francônia. Aqui se trata possivelmente do Castelo de
Wildenberg, situado nas imediações de Amorbach, e que fora sede do feudo dos senhores de Düme, protetores
de Wolfran.
188
o escudeiro e a lança – que tinham como objetivo manifesto lembrar aos cavaleiros
3. OS MISTÉRIOS DO GRAAL
abertas e por elas entraram no salão duas jovens encantadoras. Eram duas moças
belíssimas que poderiam ser alvo das pretensões amorosas de qualquer varão que
cabelos louros que, em longos anéis, lhes desciam aos ombros. Cada uma trazia
nas mãos um castiçal de ouro onde havia um círio aceso. O vestuário com que
damas rebrilharam qual chama rubra. As duas colocaram com consumada elegância
os pedestais de marfim diante do anfitrião. Feito isso as quatro, com vestidos iguais
92
Condessa de Tenabroc. Mais adiante Wolfram menciona seu nome: Clarischanze.
189
Mas reparai que oito outras damas convocadas para esse serviço não se
restantes vinham carregando uma preciosa lousa que à luz do dia se mostrava
translúcida. Ela fora um único e enorme bloco de pedra granada jacinto tão comprido
quanto largo. Ao ser desbastado e lapidado para servir de tampo de mesa ficara
reduzido a essa fina placa de pedra de peso reduzido. Essa preciosa mesa sobre a
preciosos acentuavam a linha dos quadris das oito jovens, cujos cabelos estavam
muitas milhas distantes da pátria - as filhas dos condes Iwan de Nonel e Jernis de
esmero, que com elas poderia cortar-se até mesmo o aço. Elas eram precedidas por
quatro jovens fidalgas que na qualidade de virgens sem mácula haviam sido
190
solene. Atentai agora para o que faziam. Inclinando-se, duas delas colocaram a
doze já mencionadas de sorte que - caso minha conta esteja certa - havia ali dezoito
fidalgas. Mas eis que vinham surgindo mais seis damas usando preciosas vestes de
seda de Nínive entretecida de fios de ouro. Seus vestidos, como os das demais,
4. O GRAAL
Por fim surgiu a rainha. O esplendor que sua face irradiava sugeria aos
presentes o despontar de um novo dia. Seu vestido era de seda árabe e sobre uma
princípio e fim de toda a aspiração humana. Esse objeto, chamado Graal, era
natureza sobremodo sublime do Graal exigia que sua guardiã fosse intocada e sem
vidro translúcido contendo bálsamo que alimentava uma bela chama. Depois de
93
Wolfram nos descreve aqui uma verdadeira Ordem Feminina do Graal, cujas integrantes aparecem
desempenhando funções que na liturgia dos cultos contemporâneos do autor eram privativas de sacerdotes, isto
é, de homens. N.T.
94
O mistério do Graal é revelado a Pasifal só mais adiante (Livro IX, 469-471) pela boca do tio
Trevizent. N.T.
191
Graa, pois sua presença lhe evocava o manto que usava. Com passo lento e grave
as sete se dirigiram ao local onde se achavam reunidas as dezoito. Foi-me dito que
ali se formou novo dispositivo com a mais ilustre ao centro, tendo de cada lado doze
acercavam dos cavaleiros reunidos em palácio. Cada qual servia a quatro cavaleiros
enquanto um pajem bem parecido lhes entregava alvíssima toalha de mão. Havia ali
os cercava, de vez que a seguir foi posta uma mesa coberta com toalha alvíssima
diante de cada grupo formado por quatro cavaleiros. Havia ao todo cem dessas
Onde não havia mesas os cavaleiros eram servidos atentamente por um grupo de
outros traziam a comida e a bebida. Ouvi mais sobre o fausto que ali se fazia
intendente encarregado de recolher as peça servidas. Agora atentai para mais esta
notícia: cem escudeiros tinham por incumbência erguer o pão diante do Graal em
sorte que mentis comigo caso vos falte com a verdade - que diante do Graal
192
apareceu, pronto para o consumo, tudo que pudesse ser desejado. Havia ali rações
Possivelmente, um ou outro dirá que estou a contar coisas impossíveis. Mas ele
estará sendo injusto. O Graal era, de fato, depositário da Fortuna, uma cornucópia
tratamento. Donde quer que surgisse um copo, qualquer que fosse a bebida
solicitada - vinho de amora, vinho de uva, rubro sinopel95 - o pedido era atendido de
miraculosas do Graal. Toda essa ilustre comunidade era, pois, conviva do Graal.
5. A PERGUNTA POSTERGADA
miraculoso fenômeno. Mas sua educação cortês fez com que se abstivesse de
95
Sinopel. Vinho encorpado, adocicado com xarope.
193
fazendo perguntas inconvenientes? Mesmo sem perguntar acabarei sabendo o que
espada. Só a bainha devia valer em torno de mil marcos e o punho havia sido
talhado de um enorme rubi. A lâmina era, por certo, predestinada a perpetrar feitos
em muitos combates até que Deus me pôs à prova fazendo-me padecer de uma
Ao fazer uso dela tereis a prova de que é uma companheira de muita confiança."
Ai dele, pois mesmo assim nada perguntou. Ainda hoje sinto o que lhe
sucedeu. É que, ao lhe pôr a espada nas mãos, quis estimulá-lo a levantar a
a padecer de uma chaga incurável quando uma única pergunta poderia tê-lo
redimido.
acompanharam a mais ilustre até o local onde se achava exposto o Graal. Com ar
seguir recolheram tudo que haviam trazido. Parsifal seguiu-as com a vista enquanto
se afastavam e antes que a porta se fechasse atrás delas avistou sobre a cama num
96
Ao não fazer a pergunta, ficou evidenciada a imaturidade ou insuficiência do herói.
194
quarto contíguo um ancião que irradiava uma dignidade imponente e grave que
nunca antes lhe fora dado ver. Asseguro-vos, sem vislumbre de exagero, que seu
cabelo era mais branco que a neblina./A identidade desse ancião, a narrativa irá
naturalmente, é mero exemplo. A muitos pode parecer que o arco é ágil e flexível
mas ainda mais veloz é a seta disparada pela corda. Caso meu exemplo tenha sido
feliz a corda seria comparável a uma narrativa linear capaz de satisfazer os ouvintes.
Mas o relato que se perda em detalhes assemelha-se à curva do arco, pois vos
distendido verá a corda como se fosse uma linha reta. Estica-se, então, a corda e a
seta é disparada. Quem se estende a pormenores a envereda por desvios acaba por
cansar o ouvinte. Sua narrativa não adquire consistência porque segue o caminho
mais cômodo, entrando num ouvido e saindo pelo outro. Se molestasse meus
ouvidos dessa forma, veria baldados todos os meus esforços. Poderia então
Pretendo contar-vos agora mais alguma coisa sobre aquela gente sofrida.
No castelo no qual Parsifal era hóspede nunca só ouvia o alegre alarido do torneio
gracejo. Em meio a toda aquela abundância não havia sinal de alegria embora
97
O nome do ancião é revelado mais adiante: Titurel, avô de Anfortas e de Pasifal.
195
O anfitrião voltou-se para seu hóspede: "Acredito que vosso leito já esteja
do canapé e postando-se sobre o tapete diante do anfitrião desejou a este uma boa
aproximaram de Parsifal para acompanhá-lo à sua kemenate98. Havia ali uma cama
magnífica cuja rica ornamentação me fez sentir mais amargamente minha pobreza.
Uma tal cama estava muito longe da pobreza. Estava guarnecida por uma coberta
de seda colorida, que cintilava como fogo. Quando Parsifal percebeu que no quarto
havia apenas uma cama pediu aos cavaleiros que fossem descansar também.
muitas velas emulava com o de sua beleza máscula, de sorte que à luz do dia não
poderia ser mais claro, sentou-se num banco estofado, guarnecido por uma colcha.
98
Kemenate. Do latim caminata. Quarto de dormir medieval aquecido por lareira. (caminus: chaminé).
N.T.
196
se o leito oferecia condições ideais de comodidade. Segundo a narrativa cada uma
delas vinha sendo precedida de um escudeiro portando vela acesa. O lesto Parsifal
ainda por alguns minutos, por nossa causa". Embora, antes que pudessem
cumprimentá-lo, Parsifal num abrir e fechar de olhos tivesse puxado a coberta até o
queixo a breve visão de seu corpo desnudo já havia encantado seus olhos. Sua
boca rubra em torno da qual nem sequer o buço havia aflorado exercia sobre elas
uma secreta atração. Ouvi agora o que as quatro graciosas jovens haviam trazido.
Três delas traziam em suas brancas mãos vinho de amora, vinho de uva e vinho
aparência paradisíaca. Quando a viu ajoelhada, pediu que se sentasse junto dele.
Ela, porém, replicou: "Não me confundais, pois do contrário não vos poderei servir
quando os pajens notaram que havia adormecido puseram as velas sobre o tapete e
se retiraram sorrateiramente.
Mas Parsifal não permaneceu só. Maus sonhos o atormentaram até alta
madrugada. Seu sono era perturbado por presságios e sofrimentos que haviam de
vir. O jovem teve um sonho pontilhado de angústias, semelhante àquele de sua mãe
de sorte que teria preferido passar trinta vezes pelo transe da morte, mas de olhos
197
abertos. Quando finalmente, banhado de suor, despertou sobressaltado dessa
terrível experiência onírica, já era claro dia. Parsifal disse de si para si: "Que é feito
dos pajens? Por que não estão aqui para vestir-me?" Depois de esperar inutilmente
por algum tempo nosso herói adormeceu novamente. Ninguém o despertou. Todos
Quando nosso destemido herói se ergueu avistou sobre o tapete sua armadura e as
duas espadas. Uma, recebera do anfitrião, a outra havia sido usada por Ither de
Gaheviez. Ele se pôs a cismar: "Que significa isto? Evidentemente devo pôr a
armadura! Durante o sono passei por tantas angústias que hoje possivelmente me
bom grado acudir a seu chamado. Darei igualmente meu Ieal apoio à dama que tão
bondosamente me deixou seu novo manto, caso lhe convenham meus serviços.
Afinal, minha real esposa é tão linda quanto ela, ou mais ainda."
7. A PARTIDA DE PARSIFAL
Ele fez o que não podia deixar de fazer: armou-se dos pés à cabeça,
cingiu as duas espadas e se dirigiu à porta. Para sim satisfação viu junto à porta seu
cavalo amarrado e, encostado ali perto, escudo e lança. Antes de montar, nosso
herói percorreu muitos quartos à procura dos moradores do castelo. Como não
encontrou vivalma, ficou preocupado. Por fim, enfurecido, correu ao pátio onde na
noite de sua chegada havia desmontado. Ali a terra e a grama ainda úmidas de
198
sereno apresentavam evidentes sinais de terem sido pisadas por cascos de cavalos.
Gritando alto, correu para junto de sua montaria e como não viu vivalma montou
xingando. O portão do castelo estava aberto de par em par e também ali havia
largos rastros de cascos de cavalos que se dirigiam para fora. Percebendo isso não
hesitou por mais tempo, atravessando a trota largo a ponte levadiça. Foi então que
que Parsifal a houvesse atravessado completamente, levando por pouco seu animal
à queda. Parsifal virou-se, pois desejava se informar sobre o que havia ocorrido no
castelo. Foi então que o escudeiro o repeliu aos gritos: "Não sois digno da luz da sol!
Afastai-vos deste lugar, poltrão obtuso! Se vos tivesse ocorrido inquirir vosso
Fortuna e a alegria de viver se haviam apartado deste que agora iria enveredar por
sombrios caminhos. Tudo ele havia perdido. Quando Parsifal estivera face a face
com o Graal pusera em jogo seu destino, e isso só com o olhar, sem que sua mão
tocasse nos dados da Fortuna. Na verdade não havia sofrido muito até essa parte.
Parsifal seguiu os rastros claramente visíveis e disse lá com seus botões: "Os
cavaleiros cujo rastro estou seguindo deverão por certo combater ainda hoje pela
Comigo não há recuo! Combaterei ao lado deles a fim de fazer jus à hospitalidade e
à magnífica espada que recebi do distinto soberano. Nada ainda fiz por merecê-la e
199
O jovem, que detestava a falsidade, seguiu os rastros deixados pelos
cavalos. Sinto pena vê-lo partir nessas condições. Na verdade somente agora iria
começar sua grande aventura. Os rastros se tornaram cada vez menos visíveis.
pois os rastros, antes nítidos e profusos, se tornavam cada vez mais fracos e
de sereno avistou sentada num tronco de tília uma jovem, bem como o objeto de sua
gesto de solidariedade. Parsifal aproximou-se. Embora fosse sua prima carnal ela
200
desinformado99 corre aqui sério risco. Tenho ouvido falar de casos e mesmo visto
com meus próprios olhos as cenas em que muita gente perdeu a vida. Abalai-vos
daqui se tendes amor à vida! Antes, porém, dizei-me onde passastes a noite."
"A cerca de uma milha daqui há um castelo. Nunca vi outro tão altanado e
Ela, porém, respondeu em tom de censura: “Não devíeis iludir a quem vos
dá crédito. Os símbolos de vosso escudo me dizem que vindes de fora. Mas se sois
impenetrável. Aqui, num raio de trinta milhas, não existe edificação, quer de
mais magnífico da terra. Mas ele não pode ser encontrado por quem
o avista quem, sem o saber, está predestinado a encontrá-lo. Senhor, não posso
cavaleirosos até que, a serviço de uma dama a cujo amor aspirava, encontrasse a
morte. Deixou quatro filhos, dos quais três se acham mergulhados, em irremediável
99
“Forasteiro desinformado” tem aqui o sentido de “profano”, de “não-iniciado”, pois nas terras do Graal
eram uma região edêmica, geograficamente desvinculadas do resto do mundo. Por isso, ao encontrar o Rei-
Pescador nessas misteriosas paragens, este advertiu Parsifal acerca dos “descaminhos (Livro V) Mas o aspirante
ao Graal seguiu seu “caminho certo” e a certa altura viu diante de si o castelo do Graal como que “brotado do
chão”. N.T.
201
voluntariamente uma vida de pobreza e penitência. Chama-se Trevrizent100. Seu
irmão, Anfortas, passa a vida numa cadeira de amplo espaldar. Não pode andar,
mas incorreu na ira de Deus. Senhor, se de fato tivésseis sido admitido nessa
prolonqado sofrimento."
Parsifal! Dize-me, agora, se te foi dado ver o Graal e o desditoso senhor do castelo!
Quero ouvir a boa nova! Bendita seja a tua afortunada demanda que o libertou
chamou pelo nome! Não precisas envergonhar-te de nosso parentesco. Tua mãe é
minha tia. Ela é a suprema expressão do recato feminino e de pureza sem mácula!
perdeu a vida em combate. Agora o sustento em meus braços! Podes avaliar dor
100
Trevrizent. Nome simbólico que pode ser traduzido como “Trégua Recente”. Pretende representar uma
solução provisório pela qual o eremita procura aliviar pelo ascese o sofrimento do irmão e protelar a “decadência
do reino do Graal”, enquanto se aguarda a vida do “herói restaurador”. N.T.
202
que Deus me impôs com sua morte? Ele era o portador do todas as virtudes varonis
e sua morte atingiu-me profundamente, Agora, dia após dia, renovo meu lamento
fúnebre."
cheia de encantos. Mas agora estás exaurida de beleza e energia. Sinto-me mal em
senhora Lunete101 dera à sua ama: "Deixai viver o matador de vosso marido para
que vos possa ressarcir da perda que sofrestes!" Sigune nem pensava em tais
reparações, embora tal prática seja comum a mulheres de caráter vacilante, com as
quais aqui não quero perder tempo. Ouvi mais sobre a fidelidade de Sigune. Ela
disse a Parsifal: "Se alguma coisa neste mundo ainda pudesse constituir-se para
mim motivo de satisfação esta seria a notícia de que o amargurado Anfortas foi
libertado de sua longa agonia. Se tu o redimiste antes de partir, farás jus à suprema
glória. Vejo que portas sua espada. Conhecendo sua miraculosa força secreta
Em Karnant existe uma nascente chamada Lac, nome que perpetua o do soberano
segundo ela se partirá. Se a levares à fonte, seu jato d'água reconstituirá as partes.
101
Lunete. Personagem da epopéia “Iwen” que Hartmann von Aue elaborou segundo modelos franceses.
Ela deu o exemplo aqui referido a ama Laudine que, seguindo-o, casou-se com Iwen, a despeito de lhe ter morto
o marido.
203
Para tanto deveras, antes do alvorecer, estar junto à fonte Lac, cujo manancial
for reposto no seu devido lugar a água da fonte fará com que a espada ressurja
inteiriça. Encaixes e fios terão até mesmo sua tempera reforçada, sem esquecer as
correta versão da fórmula mágica e temo que esta não te foi transmitida quando de
tua estada no castelo. Mas se a aprendeste a Fortuna jamais se apartará de ti. Crê-
me, querido primo, todas as coisas singulares que te foi dado ver passam a te
pertencer a partir de agora. Exaltado muito acima dos demais membros da nobreza,
a questão não haverá homem sobre a face da terra que possa ombrear-se contigo
em poder e riqueza.”
"Ah, teria sido melhor que meus olhos jamais vos102 tivessem visto",
a face com o Graal? Vistes muitas damas nobilíssimas, entre elas a distinta
lança vertendo sangue! Ai de vós, o que afinal pretendeis de mim, ó homem maldito
102
A brusca mudança de “tu” para “vós” só pode ser explicada como rejeição, em conseqüência da
dolorosa descoberta que consiste no fato de não ter “posto a questão”. Repelindo qualquer intimidade decorrente
dos laços de parentesco, Sigune estabelece uma distância formal como se Parsifal tivesse passado a ser um
“estranho” para ela. N.T.
204
Desde os verdes anos o amargo fel da perfídia sufocou em vós o sentimento da
forma tão terrível e indagado da causa de seus sofrimentos. Escapastes com vida,
Mas a reação da jovem foi de desprezo: "A penitência vos será concedida
irremediável vossa honra e reputação de cavaleiro. A partir de agora não vos dirigirei
peso de sua dor, deixou nosso herói profundamente abatido. O remorso e o calor
que haviam aumentado com o perpassar das horas fizeram-no suar por todos os
ferrugem. Foi aí que descobriu um novo rastro. Ficou claro para ele que à frente
seguiam um animal ferrado e outro não ferrado. O último transportava uma dama
103
Gorjal. Parte da armadura que protege o pescoço
205
que conhecera em outros tempos. O acaso dispôs que seguisse na mesma direção.
A montaria da dama era tão subnutrida que era possível contar o número de
costelas sob a pele. Era um cavalo branco, cujo cabresto era de fibra ordinária, A
crina descia-lhe até os cascos e os olhos jaziam mortiços fundo das órbitas. O
esgotado. Era seco como palha e de tão esfaimado mal conseguia conciliar o sono.
partido, era estreito e não oferecia qualquer comodidade, Muitos de seus guizos
haviam sido arrancados. Como arremedo de cilha teve de contentar-se com uma
corda grosseira pouco condizente com sua nobre ascendência. Sua camisa
esfacelada por galhos e espinhos havia sido reduzida a farrapos sob os quais se
destacava na verdade uma pele mais alva que a plumagem do cisne. Na realidade
cobria-se com andrajos mal atados uns aos outros. As partes protegidas da pele
considerá-la vilã104, embora tivesse praticamente nada para se cobrir. Por vossa
honra, podeis crer-me que o ódio que a perseguia não tinha qualquer fundamento
pois sempre conservara intacta sua bondade feminina. Poderíeis agora perguntar-
resposta é simples. No fundo as pessoas são julgadas pela sua riqueza. Quanto a
104
Vilã. Feminino de vilão, plebeu, camponês.
206
mim prefiro uma mulher assim, mesmo sem roupas, a muitas outras magnificamente
ataviadas..
jovem mais bem parecido sobre a face da terra, eIa assim lhe falou: "Eu já vos vi
certa feita. Devo dizer que essa circunstância acabou se constituindo fonte da
grande desgraça por que venho passando. No que me toca, Deus vos favoreceu
mais que mereceríeis. Cabe-vos a culpa pelo fato de hoje meu vestido ser mais
miserável que aquele que usei quando do nosso último encontro. Se naquela
dúvida."
contra a qual se volta vossa indignação. Desde que recebi o escudo e me iniciei nas
lides de cavaleiro não mais pratiquei qualquer ato indigno contra vós, nem contra
qualquer outra dama, caso contrário minha honra estaria comprometida. Sinto, de
artista. Entretanto nem mesmo o mais hábil dos artesãos poderia ter-lhes dado
forma tão magnífica como a natureza. Embora sensível a esse fascínio o aspecto
da dama confrangeu-lhe a alma, ao ver seu esforço por lhe esconder sua nudez com
mãos e braços. Por isso disse-lhe: "Nobre senhora, aceitai por amor de Deus e
207
"Ah, senhor, ainda que todo o meu destino dependesse disso não me
atreveria a tocá-lo! Se quiserdes livrar a mim e a vós próprio da morte certa afastai-
vos daqui o mais longe que puderdes. A idéia de morrer na verdade não me
"Nobre senhora, quem quereria atentar contra nossas vidas? Foi Deus
Onipotente que nô-las deu e ainda que todo um exército se pusesse em marcha
campeão. Tamanha é sua sede de luta que mesmo seis cavaleiros como vós teriam
enche de temor. Em outros tempos fui sua esposa, mas agora fui reduzida a
tamanha miséria que nem mesmo sirvo para ser sua criada."
esposo? Se seguisse vosso conselho e pusesse minha salvação na fuga no fim das
contas vós mesma considerais vergonhosa tal atitude. Prefiro a morte à fuga."
Mas se esperais levar a melhor sobre esse único adversário estais completamente
equivocado."
de rendas. Mas em meio a toda essa miséria, conservava como glória íntima sua
208
condição de mulher ilibada. Sua bondade feminina era genuína e isenta de qualquer
falsidade.
máximo seu campo de visão. Foi então que seu corcel, estranhando a presença do
compeliu o cavalo a dar meia volta, mas fê-lo de modo tão brusco que a montaria foi
jogada para fora do leito da estrada. Pronto para o combate, o Duque Orilus seguiu
de lança em riste. Essa lança oriunda de Gaheviez ostentava suas cores herálticas.
Seu elmo era obra artesanal de Trebuchet. O escudo do campeão fora forjado em
havia sido forjada em Tenabroc com malhas de aço sobremodo sólidas. Sobre a
primeira vista. Valiosa e leve era sua armadura composta de grevas, couraça e gorro
105
Toledo. As lâminas de Toledo eram afamadas e possivelmente também os escudos.
209
Bealzenan, capital de Anjou. O que a nobre e desvalida dama, que triste seguia à
sua retaguarda, trazia no corpo, não podia na verdade comparar-se com esse
aparato bélico. Sua armadura havia sido forjada em Soissons. Sou corcel procedia
arremeteu contra Orilus de Lalant, em cujo escudo aparecia um dragão em tudo fiel
formalmente, até porque não havia qualquer motivo para isso. Ambos arremeteram
com vigoroso embalo, de sorte que o violento entrechoque arremessou aos ares os
brancos estilhaços das lanças quebradas. Teria preferido assistir pessoalmente aos
lances desse embate, tal como consta da narrativa que aqui reproduzo. Quando os
dois se entrechocaram a senhora leschute teve de admitir que jamais lhe fora dado
espadas, as chispas que saltavam dos elmos e as lâminas que desferiam golpes
210
ininterruptamente. Dois combatentes de escol defrontavam-se ali em duríssima
dragões. Nesse combate o dragão acocorado sobre o elmo de Orilus foi golpeado
combatendo montados e não a pé. Em meio aos golpes de espada desferidos pela
combatentes. Sua nobre esposa havia sido agredida e sendo ele seu legítimo
defensor era natural que a protegesse. Acreditava, ademais, que se havia tornado
infiel e que nos braços de amante malbaratara sua pureza e seu bom nome, o que
considerava um insulto pessoal. Puniu-a por isso com tanta severidade que, exceto
a morte, não há memória de que em algum tempo uma mulher inocente tenha sido
submetida a vexames mais cruéis. Orilus era de opinião que a mulher achava-se
negando a quem quer que fosse o direito de intervir nesse assunto. Mas Parsifal, o
211
Mas no caso não havia clima para amabilidades. Eu mesmo acredito que nessa
contenda ambos tinham razão embora cada um a seu modo. Se Deus, que sabe
distinguir o certo e o errado, fosse chamado para dirimir a questão, deixaria que
ambos escapassem com vida, pois a essa altura um havia infligido ao outro dano
considerável.
combate ninguém podia ombrear com ele. Muitas vezes sagrava-se vencedor em
procurando desalojá-lo da sela. Este, porém, foi mais rápido, arrancando-o da sela.
saltou com ele da sela e o imprensou contra um tronco de árvore. Orilus, que nunca
havia passado por tais apuros, teve a contragosto de admitir a derrota: "Agora
pagarás pelos vexames a que, em teu ódio cego, expuseste uma nobre dama. Ou a
212
11. PARSIFAL RECONCILIA ORILUS COM IESCHUTE
Desse modo forçou o adversário a transigir, pois a morte não estava nos
e intrépido varão! Por que motivo mereceria eu a morte por tua mão?"
desespero. Tudo o mais farei para resgatar minha vida! Deus ma deu; agora está em
disposto a pagar um alto preço por minha vida. Meu irmão é soberano de dois
sem dúvida este meu compromisso. Ademais comprometo-me a receber de tua mão
de mim qualquer outra coisa que possa elevar tua fama! O que quer me aconteça,
213
A isso respondeu o magnânimo Parsifal: "Não há homem, reino ou
Bretanha e ali ir à procura de uma jovem que por minha causa foi maltratada por um
homem. Caso ela própria não interceda por ele, minha vingança o alcançará. A essa
disposição de sempre bem servi-la. Uma recusa implicará tua morte! Além disso dize
a Artur e à sua esposa que podem dispor de meus serviços. Como recompensa, me
que aqui e agora te reconcilies sincera e irrestritamente com essa nobre dama. Se
recusares sairás deste lugar morto numa maça. Reflete e decide e agora assume o
O Duque Orilus assim respondeu ao Rei Parsifal: "Já que nada consegue
separar os combatentes embora deplorasse os apuros por que vinha passando seu
"Nobre senhora, já que por vossa causa tive que amargar uma derrota voltai a meus
214
A nobre dama em sua nudez resvalou rapidamente da sela para o chão e
pôs a mão sobre a relíquia e fez o seguinte juramento: "Juro agora por minha honra
nome, no passado, esteve envolto em auréola de glória e ainda hoje manténs intacto
teu inteiro brilho! Se eu jurar falso quero perder meu prestígio e ficar nesta vida
penhor meu destino nas mãos do Altíssimo. Quero que Sua onipotência me puna,
nobre dama quando lhe subtraí anel e broche. Quando fiz isso não era um cavaleiro,
mas um parvo criado na mais asfixiante ignorância. Quando aconteceu isso ela
chorou lágrimas de desespero. Asseguro-vos que ela não teve a mínima culpa
honra. Podeis estar convicto de sua inocência. Tomai de volta o anel e restituí-lho.
broche."
215
O príncipe recebeu a jóia e a pôs novamente no dedo da esposa. A seguir
removeu o sangue dos lábios, beijou a amada e cobriu sua nudez, colocando-lhe
sobre os ombros seu próprio mantelete. Este era confeccionado de seda de bom
alguma usara mantelete mais retalhado em combate que esse, e isso sem participar
me alegra e dissipa todas as minhas mágoas. Na verdade sofri uma derrota mas ela
resultou em felicidade. Agora posso ressarcir esta nobre dama pelo tratamento duro
e desumano a que a submeti, sem temer por minha honra. Rejeitei esta mulher
encantadora sem que tivesse a mínima culpa. Na verdade, ao referir-se à tua boa
naquela vez em que cavalgava pela campina que se estende diante da floresta de
Briziljan."
impetuoso Tauriano, irmão de Dodines, ali havia esquecido. Imaginais onde e como
tomando-se inútil as tentativas de retê-lo ali. Assim cada um seguiu seu caminho.
106
Alusão obscura do poeta, que permanece enigmática.
216
A narrativa nos dá conta do seguinte: Quando o renomado príncipe Orilus
esposo. Sem perda de tempo aliviaram-no da armadura e ele se livrou das manchas
deixou-se ficar nos braços do amado, mas como só acontece essas lágrimas eram
com uma boca mimosa. Gostaria de me demorar neste tema. Uma grande paixão é
fonte de felicidade e sofrimento. Quem conhece todas as histórias de amor sabe que
seu desfecho não podia ser outro, leschute e Orilus reconciliaram-se sem reservas.
inocente durante todo o tempo em que tivera de suportar as iras do homem que
amava. Depois das agruras do dia durante o qual fora compelida a acompanhar
seminua, o marido nas suas andanças, encontrava sempre uma cobertura na sua
Quereis saber como chegou aos ouvidos de Orilus a notícia de que Artur
se havia ausentado da corte? Foi um cavaleiro que lhe transmitiu esta novidade: "Vi,
armadas em campo aberto cerca de mil tendas, ou mais! Não muito longe daqui
milha daqui, o terreno é impraticável. Escuta-se ali o alegre e ruidoso alarido dos
217
cavaleiros que se acham acampados no declive do vale em ambas as margens do
Plimizoel."
meiga e doce criatura saiu do banho e se dirigiu à sua alcova, onde todas as suas
penas tiveram fim. Puseram-lhe um vestido magnífico, que de muito não usava.
com uma vestimenta magnífica. Sentados na cama, saboreavam com muito apetite
espada que naquele dia usava em combate foi firmada na parte dianteira da sela.
218
12. ORILUS E IESCHUTE NO ACAMPAMENTO DE ARTUR
que suas tendas, armadas às margens, se estendiam por uma milha rio abaixo. O
príncipe determinou ao cavaleiro que lhes havia servido de guia que regressasse.
Sua única acompanhante passou a ser a bela leschute. Naquele preciso instante o
sua corte. Eis que deles se aproximava o fiel Orilus, com elmo e escudo tão
encargo de cuidar dos cavalos." Colocando seu escudo mutilado sobre a relva O
nobre campeão perguntou onde poderia encontrar aquela que era a própria razão de
pelos reis da Bretanha. Ele agradeceu e a seguir prestou diante da encantadora irmã
que estava diante de um dos dois irmãos, sem ter certeza de qual dos dois se
219
O príncipe caiu de joelhos diante da jovem e disse: "Tem razão. Sou
Orilus, teu irmão. O cavaleiro vermelho me compeliu a agir desta forma, pois só
assim pude salvar minha vida. Aceita pois meu compromisso, a fim de que
esquecer jamais as pancadas que levaste. Quando soar a hora da vingança todos
poderão compreender a grande humilhação que sofri. Solidário com minha queixa
está o varão mais intrépido que jamais uma mulher trouxe ao mundo. Ele se chama
o cavaleiro vermelho. Ele vos assegura, preclaro rei e ilustre rainha, mas em
especial a ti, minha irmã, que estará sempre pronto a vos servir. Como recompensa
ele vos pede que a jovem receba uma reparação. Certamente eu me teria entendido
melhor com o intrépido herói se ele tivesse sabido que Cuneware era minha irmã e
Plimizoel voltou-se com renovada veemência contra Keye. Galvão, Jofreit, filho de
Ydoel, o captivo Rei Clamide, de cuja triste sorte já vos dei notícia e numerosos
outros fidalgos cujos nomes, por amor à concisão aqui omito, aproximaram-se
solícitos oferecendo seus préstimos, que polidamente foram aceitos. Eis que
conduziram ao local a senhora leschute montada em seu cavalo. O rei Artur e sua
beijos. Artur dirigiu-se então a leschute nestes termos: "Tenho em alta conta vosso
220
pai Lac, rei de Karnant. Por isso, tão logo soube do acontecido lamentei vossa triste
sorte. Sois tão encantadora que vosso esposo bem que poderia vos ter poupado
esses dissabores. Por vossa graça irradiante merecestes a vitória num concurso de
maior dano que Orilus me tenha causado não pude deixar de sentir profunda pena
de vós, da mesma forma que irá entristecer-me qualquer mal que venha a atingir-vos
de futuro. Daí minha alegria por terdes reconquistado a afeição de vosso esposo e
Ela respondeu: "Que Deus recompense vosso gesto. Ele confere brilho
marido desta. Ao lado da tenda circular do Rei Artur erguia-se sua tenda a cavaleiro
castão que encimava a tenda. Sob esse signo do dragão convergiam as quatro
tenda em seu vôo pelas alturas. Por essa figura heráldica Orilus identificou a tenda
no de sua armadura e a atraente irmã tratou de pô-lo à vontade. O assunto ali era o
Orilus. Esse trabalho não era novidade para Kingrun, pois era esse o serviço que
221
príncipe com seu bastão. Tratou por isso de respeitar os melindres de Orilus, já que
Cuneware ainda não lhe havia perdoado a ofensa. Na verdade tratou de pôr à
oferecê-los a Orilus. A digna senhora Cuneware serviu o irmão com suas brancas e
donaire. Enquanto transcorria assim essa refeição íntima o Rei Artur não se
descuidou de aparecer ali e de lhes dizer: "Se não estiverdes sendo servidos a
vosso gosto, não será por minha culpa. Asseguro-vos, todavia que, em parte
222
LIVRO VI
conselho de seus nobres e deixar seu país e seu castelo em Karidoel? Segundo
consta de nossa narrativa já se haviam passado oito dias desde que ele e seus
traspassar o Rei Ither com seu venábulo e enviar tanto Clamide quanto Kingrun à
sua corte na Bretanha. Era este o motivo pelo qual o rei estava à sua procura.
singular sem sua permissão. Ele disse-lhes: "Atravessaremos muitos países onde
lanças em riste oferecendo combate. Nesse caso não gostaria de que disparásseis
mor houvesse soltado a trela. Se o combate não puder ser evitado podeis contar
223
comigo e com minha capacidade de decidir acerca da conveniência de aceitar o
repto."
foi feito de Parsifal, o jovem de Valois. Depois dos fatos mencionados nesta
narrativa houve em plena primavera uma nevasca noturna que cobriu Parsifal
inteiramente. Artur é conhecido como "Cavaleiro de Maio", posto que tudo o que se
maio. Nesta narrativa nem sempre as coisas acontecem no tempo certo, pois
empregar falcões. Foi aí que sofreram uma grande perda, pois seu melhor falcão
muito frio numa floresta que lhes era desconhecida. Ao amanhecer Parsifal
constatou que a estrada desaparecera sob uma camada de neve. Assim, pôs-se a
caminho pela ínvia floresta, troteando sobre paus e pedras. Aos poucos a luz do dia
vinha iluminando a floresta. Em meio a uma clareira havia um tronco caído, em cuja
direção Parsifal seguiu a trote lento. Sem que o tivesse percebido o falcão de Artur
seguira sua marcha. Na clareira haviam descido cerca de mil gansos selvagens que
enchiam o ar com suas grasnadas. Foi naquele momento que o falcão arremeteu em
224
célere ataque enterrando suas garras num dos gansos selvagens, que conseguiu
caído, mas já sem possibilidades de alçar vôo novamente. Escorrendo da ferida, três
aflição para Parsifal. Tal aconteceu porque era fiel no amor. Ao avistar as gotas de
sangue sobre a neve alvíssima, disse de si para si: "Quem criou este deslumbrante
contraste de cores? Ele me faz lembrar de ti, Condwiramurs. Deus deseja minha
felicidade, pois permitiu que aqui encontrasse algo que se assemelha a ti,
Condwiramus. Que Suas mãos sejam louvadas e todas as coisas que Elas criaram!
Condwiramurs, é como a alvissima neve que contrasta com o rubro sangue." Como,
pelas suas faces e a terceira pelo seu queixo. Isso era indicação segura de que seu
ignorar o mundo em torno, tamanho era o fascínio desse amor. Era a lembrança da
sua ama. Foi quando ele se deparou com um elmo cheio de marcas resultantes de
225
golpes de espada e um escudo maltratado, sem saber que isso ocorrera a serviço
de sua ama. Diante dele achava-se um guerreiro armado dos pés à cabeça e com a
lança em riste, como se estivesse desafiando alguém para a luta. Sem perder tempo
sua ama, certamente não teria proferido seus altos brados de advertência. Ao invés
disso seus gritos fizeram todos os homens do rei saírem alarmados de suas tendas,
como se ele tivesse descoberto algum proscrito. Queria com isso prejudicar Parsifal,
procedimento fama de tolo. Mas não lhe queiramos mal por isso. Afinal sua própria
ama também não passava de uma tonta. Alteando, pois a voz, bradou: "Que eterna
vergonha cubra a vós todos, gente miserável e desacreditada! Quem ainda fará fé
na honra de Galvão, dos outros cavaleiros de Artur e do próprio rei dos Bretões?"
Com gritos como "a Távola Redonda foi ultrajada, o acampamento foi invadido", o
sempre disposto a combater, saiu correndo, dando grandes saltos. Quando havia
uma luta em perspectiva era preciso amarrá-lo; caso contrário, nela se envolveria
batalha não indagaria se esse curso de água era largo ou estreito, se a temperatura
da água era fria ou cálida, mas nela mergulharia de cabeça. Em desabalada carreira
dirigiu-se á área circular da tenda de Artur. Embora o nobre rei estivesse dormindo a
226
sono solto, Segramors saltou sobre as cordas de sustentação e penetrou na tenda.
Ali arrancou simplesmente a coberta da pele de marta que cobria o casal real
único remédio era rir desse gesto descarado. Ele, porém dirigiu-se em tom de
súplica à tia: "Senhora Ginover, minha soberana, todo o mundo sabe que somos
parentes e que posso contar com tua boa vontade. Ajuda-me, pois senhora, e dize a
incursões na região a fim de defender a floresta que serve de fronteira ao seu reino.
lançar nessa aventura ficou tão contente que quase morreu de alegria. Não havia
preço neste mundo que o fizesse abrir mão, em favor de outrem, dos louros que
esperava conquistar nesse encontro. Sem perder tempo o altivo e imberbe Rei
de batalha. Lá se ia ele a galope mata adentro, com seu corcel transpondo aos
227
armadura e à teliz retiniam sonoramente. Se fosse falcão e tivesse sido posto/= ao
encalço de algum faisão escondido na mata baixa de espinheiras o sonoro tinir dos
guizos teria assinalado de longe sua presença. Bem disposto ia, pois, o fogoso
alheamento. Contudo não investiu sobre ele a golpes e estocadas sem antes
dominado pelo fascínio das gotas de sangue e por uma paixão sem limites, que a
do desespero. Ah, ralo-me de penas por causa de uma mulher! Mas se ela me levar
eu lhe voltar as costas. Prossegui pois ouvindo o relato sobre o iminente choque
prazer especial no fato de estarem acampados diante de vós um rei com seus
perder a vida. Postes longe demais em vossa vontade de competir. Faço-vos agora
discordardes, tereis o que mereceis - uma queda espetacular na neve! Portanto uma
228
preciso momento o magnífico castelhano de Parsifal virou-se, assumindo uma
impetuoso ataque. Parsifal ainda teve tempo para colocar em posição horizontal a
lança de Troyes, cuja haste era sólida, flexível e multicolorida. Embora o lançaço do
ilustre Segramors que este acabou sendo descavalgado sem nem ao menos ter
quebrado sua lança. Aprendeu assim a arte de ir ao chão. Parsifal, por sua vez, sem
dizer palavra voltou a se concentrar nas gotas de sangue. Tão logo as tivesse
novamente sob sua vista a senhora Paixão voltaria a enleá-lo com seus sortilégios.
Seu ginete não teria outra saída senão erguer-se, caso lhe aprouvesse regressar ao
Afinal ele já estava deitado como sabeis, quando alguém se deita a intenção é
descansar. Mas descansar como e ainda por cima na neve? Se estivesse no lugar
dele essa situação por certo não me agradaria. Mas isso é assim mesmo: quem se
encontra em situação ridícula não precisa cuidar dos motejos que não tardarão em
que os homens do rei puderam observar todo o desenrolar da cena, inclusive a volta
de Parsifal à sua posição anterior. Este não teve outra opção senão render-se aos
229
ditames da paixão, a cujos apelos nem mesmo Salomão107 soube resistir. Não muito
argumento: "Por experiência própria bem sabeis que uma justa é um jogo de dados.
O desfecho de uma luta singular é sempre um indo ao chão. Até mesmo navios de
alto bordo acabam naufragando. Se ele tivesse reconhecido o símbolo que carrego
no escudo teria posto sua salvação na fuga. Disso estou convencido. Para minha
desgraça isso não aconteceu. Agora continua ele postado diante do acampamento
em atitude de desafio. No fim das contas o desempenho dele foi bastante razoável."
"Senhor, jamais perdoaria a mim mesmo se o deixasse partir sem lhe dar uma lição.
descarada ousadia de desafiar-nos com lança em riste e isso com vossa esposa
presente. Vossa recusa me afastará de vós. Se ele não for compelido a tempo de
230
floresta de lanças. O desconhecido já vinha suportando o peso ingente da paixão
que o sangue e a neve lhe haviam imposto; incorreria, pois em pecado quem se
dispusesse a sobrecarregá-lo ainda mais. Isso seria uma situação inglória para o
danação? Por que atirais ao pó a força viril e a alegria de viver? Quem se dispõe a
a senhora Atração. Sem ela serieis impotente. Vossas práticas são detestáveis
Vossa força ao conseguir que senhores, vassalos e amigos se enganassem uns aos
108
Paixão é o termo mais adequado para traduzir a “Minne” germânica. Na literatura cortes dos séculos
XII e XIII a “Minne” constitui-se em motivo central dos “Minnesänger” (trovadores) para exprimir as mais
elevadas experiências humanas nos domínios da vida afetiva. Com pequena variação na lírica e na épica ela
passou a traduzir uma relação do tipo muito especial entre o cavaleiro e sua dama. Ao tempo, os poetas
desenvolveram o conceito de “hohe Minne” (paixão sublime) para distingui-la da “niedere Minne” (paixão
comum), sinônimo da simples satisfação dos sentidos. A dama, objeto de culto do poeta, encarnava sempre a
imagem da mulher ideal e, dada a sua elevada posição – princesa, duquesa etc. -, permanecia para sempre
inatingível para o trovador apaixonado. Essa distância entre amante e amada era tão grande que mesmo os versos
mais apaixonados eram considerados simples homenagem. Uma paradigma dessa mulher ideal era Santa Isabel,
esposa de Landgrave Hermann I da Turquia, protetor das Belas Artes e amigo pessoal de Wolfram. No tempo de
Dante o ambiente cortês já estava em decadência. Por isso situou sua amada Beatrice num nível próximo a Nossa
Senhora, brindando-a com epítetos como “benedetta” e “gentilíssima”, até então qualificativos exclusivos da
Virgem Maria. Com o desaparecimento dos trovadores a “Minne sublime” se degradou, dando lugar a um tipo de
literatura vulgar que, em Portugal, seria conhecida como “Cantigas de Escárneo e de Maldizer”. O
neopaganismo renascentista substituiu a “Senhora Minne” pela “Senhora Vênus”. Somente com o advento do
Romantismo a paixão nobre que a “Minne” exprimia será revalorizada. N.T.
231
outros. Com esse procedimento adquiris triste fama. Devíeis corar de vergonha por
almas. Sois pérfida, senhora Paixão, pois tendes o poder natural de privar a
os dados de modo que sempre perdesse no jogo do amor. Por isso não tenho a
mínima confiança em vós. Minhas aflições Vos foram sempre indiferentes. Situada
muito acima do plano em que me encontro, minha ira impotente não consegue
sequer levantar uma queixa contra Vós. Cuidastes inicialmente para que o amor
Vos conter. Na verdade sua alegoria nos indica a maneira de Vos conquistar e com
isso conseguiu apenas que muita gente sem juízo desperdiçasse a felicidade de sua
altanado de sobranceiras torres capaz de Vos Infligir qualquer dano. Contra Vós não
há defesa. Não há criatura na Terra e no Mar, quer nade ou voe, capaz de sobrepor-
varão, passou a Ignorar o mundo à sua volta. Foi essa nobre, encantadora e
109
Heinrich von Veldecke (1140-1210), autor da epopéia “Eneida”, elaborada entre 1170 e 1190 a partir
de uma lenda de São Servácio. A alusão remete a um trabalho que se perdeu, pois as obras do poeta que
sobreviveram à voragem dos séculos não contém qualquer tema que possa ser relacionado à observação de
Wolfram.
232
recatada mulher, a rainha de Pelrapeire, que Vos cometeu o encargo de entrar em
contacto com ele. Não é de esquecer, todavia, que levastes à morte Kardeiz110,
felicidade rendo graças a Deus por não haver recebido de Vós qualquer feudo.
Seria preciso prometer-me algo mais atraente. Penso ter falado em nome de todos.
Rijo, bem equipado e disposto, partia Keye para a luta. Mas tenho por
mim que o filho do Rei Gahmuret não irá recuar diante dele. Não há dama com
ascendência sobre um coração masculino que não reze pelo sucesso de Parsifal
porque foi a paixão por uma mulher que o deixou cego, surdo e sem fala. Antes de
próprio pescoço uma coleira de cão a fim de que vos conduza à presença dele.
Será melhor para vós porque não vos darei oportunidade para fugir. De uma forma
ou de outra sereis conduzido à presença do rei, onde por certo não sereis recebido
110
Kardeiz. Parsifal daria mais tarde o mesmo nome a um de seus filhos. Por outro lado, a História da
Literatura não faz menção a qualquer personagem com esse nome que tinha sido levado à morte em virtude de
uma paixão amorosa.
233
O jovem de Valois permaneceu silencioso, paralisado pela Paixão. Keye
berrava: "Acorda, homem, senão acabarás sendo inumado sem lençol! Se não me
falhar o braço rijo, cairás estatelado na neve. Até mesmo a azêmola que transporta a
Agora prestai atenção, senhora Paixão! Acredito que fostes ultrajada, pois
só um rústico campônio seria capaz de afirmar que esse insulto é dirigido ao meu
herói. Ele reagiria, se recuperasse a fala. Senhora Paixão, permiti que o nobre varão
para que o jovem de Valois perdesse de vista aquilo que o enternecia e angustiava.
Quero referir-me ao sangue sob a neve que para ele se havia convertido em signo
recobrar a consciência. Sem conseguir reprimir por mais tempo sua impaciência,
Keye tomou a iniciativa. Com a lança em posição horizontal investiu sobre Parsifal
que a essa altura também vinha avançando a toda a brida. No entrechoque a lança
juntamente com sua montaria para o lado oposto do tronco sob o qual o ganso ferido
gravemente ferido. Keye fraturou a perna esquerda e o braço direito, que na queda
ficaram presos entre o arção da sela e um enorme bloco de pedra. O choque foi tão
violento que danificou sela, cilha e guizos. Desse modo o desconhecido desagravou
234
de uma só vez duas ofensas uma infligida a Cuneware; outra a ele próprio. Depois
reconduzisse às três gotas de sangue sobre a neve, que o haviam deixado fora de
esposa sobrepunha-se a todas as inquietações que lhe toldavam o espírito. Uma vez
Portanto a grande questão no caso não era a felicidade, mas a angústia por dela
achar-se privado.
absolve desse defeito. Na realidade era um homem digno e bravo. E ainda que
poucos concordem comigo eu vos asseguro que Keye foi um bravo e leal cavaleiro.
E digo mais: A corte do Rei Artur atraiu sempre toda a sorte de adventícios, nobres
ou aventureiros vulgares. Mas Keye não se deixava enganar, por mais hábil que
nobre estirpe podiam sempre contar com sua consideração e pronta ajuda. Entre
suas qualidades devo destacar seu arguto senso crítico. Na sua preocupação por
proteger o soberano de toda a sorte de maus elementos assumia não poucas vezes
hipócritas e trapaceiros. Sobre esses malfeitores caía qual granizo devastador. Suas
estocadas revelavam-se para eles mais dolorosas que os ferrões das abelhas. Por
isso procuravam denegrir seu bom nome perante os outros e como para ele a
235
príncipe Hermann da Turíngia111, Tu devias ter junto de ti um Keye, pois teus hábitos
Walther von der Vogelweide112 a Iniciar uma de suas canções com esta invocação:
"Bom dia, bons e maus!" A existência de tal canção é sinal de que os indivíduos
von Rlspach113 fosse teu conselheiro o trovador nâo teria motivos para compor esta
falta de sorte. O senhor Galvá[ão também se debruçou sobre ele, dizendo: "Que dia
fatídico! Por que houve esse combate singular do qual resultou a perda deste
amigo?" Suas palavras de pesar foram sinceras, mas Keye o contestou colérico:
"Senhor, acaso tendes pena de mim? O choro é próprio das carpideiras. Mas vós
sois o sobrinho do meu soberano. Sempre estive pronto a vos servir consoante
vossos desejos. Enquanto Deus houve por bem manter-me sadio de corpo, acudi-
vos sem titubear e se pudesse o faria agora. Cessai os lamentos! Saberei suportar
minhas dores. Vosso tio, o nobre Rei Artur, jamais achará outro Keye, mas acredito
tivésseis perdido um único dedo, podeis crer-me que me teria arriscado a perder a
vida, só para vos vingar. Mas deixai passar estas minhas alfinetadas."
111
Hermann I (1155-1217), Landgrave da Tunísia, Mecenas dos poetas contemporâneos do autor e
patrocinador do Grande Concurso dos Trovadores realizado em 1207 no castelo de Wartburgo.
112
Referência a uma canção de Walther von der Vogelweide (1170-1230), o mais famoso dos poetas
líricos alemães da Idade Média.
113
Heirinch von Rispacho. Fidalgo que se supõe ter sido mordomo-mor na corte bávara. Seu antigo feudo,
a atual Reisbach, acha-se situado junto ao Rio Vils nas imediações de Landshut..
236
5. PARSIFAL E GALVÃO
"Lá fora está à espera um homem que não pensa em se afastar dali
correreis o risco de passar por maus momentos. O mais fino e delicado cabelo de
mulher seria suficientemente forte para vos manter distante da luta. A mãe de um
cavaleiro assim tão afável pode orgulhar-se dele, mas o pai pode com alguma razão
esperar dele alguma disposição heróica. Agarrai-vos firme à saia de vossa mãe,
tempera viril."
Era com tais observações depreciativas que Keye atacava no seu ponto
mais fraco um respeitável cavaleiro que se sentia tolhido, pela discrição e fidalguia,
de repelir tais ofensas no mesmo tom. Daí ouvi-las calado. Um homem sem
meu rosto deve ter-se convencido de que não serão golpes nem lançaços que em
combate me farão perder a cor. Tu me repreendes sem razão, uma vez que sempre
pudeste contar comigo." Dito isso deixou a tenda e determinou que lhe trouxessem
alheio ao que se passava em derredor. Seu escudo exibia as marcas dos lançaços
de três adversários, sem mencionar os estragos que a espada de Orilus lhe havia
infligido. Galvão não estimulou a montaria ao galope e evitou qualquer gesto que
237
pudesse ser interpretado como intenção hostil. Adotando uma atitude de
anteriores. O estranho não lhe retribuiu o amável cumprimento. Tal atitude não era,
afinal, tão fora do comum, pois esta já era a terceira vez que a senhora Paixão havia
espécie de transe durante o qual ignorava o mundo à sua volta. Eis porque as
Rei Lot o advertiu nos seguintes termos: "Senhor, vós desprezais meu cumprimento!
Se ansiais por luta será engano supor que irei recusar-me a dialogar convosco em
outro estilo. Vós insultastes o rei, seus paladinos e seu séquito. A despeito disso
tentarei obter para vós graça e perdão junto ao rei, se estiverdes disposto a seguir
renomado cavaleiro da Távola Redonda. Ele certa feita os pôde sentir na própria
pele, quando impelido pela ilimitada paixão por uma mulher perfurara a própria mão
singular pelo intrépido Lahelin, uma rainha lhe salvara a vida. Para tanto a meiga e
encantadora mulher empenhara sua própria vida. Essa criatura fiel e abnegada era a
Rainha Ignuse de Bachtarliez115. Galváo dizia de si para si: "Quem sabe o amor
114
A produção literária medieval que chegou até nós não faz menção a esse episódio.
115
Ignuse e Bachtarliez. Nenhuma obra medieval conhecida faz menção a esse episódio, nem à
personagem citada por Wolfram.
238
subjugou, talvez, e o deixou fora de si."Observando o local no qual os olhos
contudo, senhora de seu coração. Ouvi suas palavras, pois ele então exclamou: "Ah,
senhora e esposa minha! Quem foi que te arrebatou de mim? Com meu
desempenho como cavaleiro acaso não conquistei eu teu rico amor e com ele tua
coroa e teu reino? E não fui também eu quem te libertou de Clamide? Naquela hora
mais intrépidos. Não sei o que se passou comigo, pois em pleno dia uma nuvem te
próprio não portais escudo nem espada. Que glória teria eu alcançado num combate
apenas correspondem à verdade como ainda foram ditas com a melhor das
239
intenções. O que vos proponho não resultará em vosso prejuízo. Nas proximidades
palavras, ele sempre me tratou com aquela distinção que normalmente um cavaleiro
pode esperar de seu rei. Sua irmã, esposa do Rei Lot, é minha mãe. Tudo aquilo
que Deus me deu está à disposição dele. Seu nome é Artur. Eu mesmo não sou um
alvo não decorre de meus méritos, pois é sabido que tu tratas a todos com igual
distinção. Entretanto tua gentileza me obriga a ser igualmente gentil. Dize-me pois a
quem pertencem todas essas tendas? Se for efetivamente Artur, então não poderia
encarar de cabeça erguida nem a ele nem a rainha, sem antes tirar vingança de uma
ofensa que me foi infligida e que até hoje me magoa profundamente. O caso
passou-se do seguinte modo: uma jovem dama da corte riu-se de mim e por isso o
240
"Tu podes considerar-te mais que vingado", observou Galvão. "Ele
em cima do bloco de pedra. Os estilhaços que vês aqui espalhados na neve são da
Muito animada, esta deu boas-vindas ao cavaleiro que vingara os agravos que
sofrerá nas mãos de Keye. De mãos dadas com o irmão e a senhora leschute de
Karnant foi ao encontro de Parsifal que, nesse ínterim, havia tirado a armadura.
molhada pelo sereno. Ao avistar a dama, ergueu-se de pronto. Ouvi o que Cuneware
lhe disse: "Deus e eu vos damos boas-vindas, pois sempre vos conduzistes com
intrepidez exemplar. Evitei o risco até que o coração me revelasse quem sois. Foi
em virtude disso que os maus tratos de Keye me trouxeram dores e mágoas. Mas
241
vós me vingastes de forma exemplar. Se me considerásseis suficientemente digna,
prontas para o uso, pois inicialmente haviam sido destinadas para Clamide, seu real
prisioneiro. A moça as trouxe e se desculpou pelo fato de o manto ainda não estar
quadris e o enfiou nas alças do manto. Parsifal pediu permissão aos presentes para
retirar as nódoas de ferrugem que ainda lhe aderiam ao rosto. Todos puderam então
admirar não apenas seus lábios vermelhos como ainda seu rosto alvo e sem
mácula. Ataviado assim, assumiu uma aparência bela e vistosa. Quem pôde vê-lo
considerou-o uma estampa de homem e ele bem que fazia jus a esses encômios. As
precioso cinto guarnecido de signos zoomorfos e pedras preciosas, cuja fivela era
constituída de um rubi. Que tal parecia esse jovem imberbe depois de tê-lo posto?
242
6. A ADMISSÃO DE PARSIFAL NA TAVOLA REDONDA
Távola Redonda apareceram no local, pois foi lhes dito que o cavaleiro vermelho
estaria na tenda de Galvão. Antanor, que havia sido castigado por Keye, corria à
vós que reparastes a injúria infligida a mim e a Cuneware de Lalant? Todos cantam
vossa glória e Keye, a essa altura, é uma carta fora do baralho. Suas ameaças
cessaram. Suas pancadas já não mais me infundem temor, pois sua destra está
impotente."
geral. Artur lhe disse: "Postes para mim motivo de alegrias e de penas. Mas
sopesando bens e males, alargastes meu prestígio mais que qualquer outro sem me
unicamente à reconciliação da duquesa leschute com seu esposo ainda assim vos
ficaria devendo favores. Uma palavra vossa bastaria para que mesmo sem desforço
então o que esperava dele e o que o induzira a cruzar muitas terras estranhas até
atingir aquele local. Os cavaleiros, por sua vez, instaram com ele que aderisse à
243
Julgai agora por vós mesmos se naquele dia a Távola Redonda tinha
prestígio dos membros da confraria essa condição necessária havia sido atendida. A
Távola Redonda permanecera em Nantes. Por isso num prado florido, livre de
Com isso o Rei Artur pretendia prestar uma homenagem ao cavaleiro vermelho que
desse modo era recompensado por seus altos feitos. Uma peça de seda de
Acraton116, procedente da distante terra dos pagãos, era cortada de modo que
de honra. Disso resultou que todos os lugares fossem igualmente honrosos. Por
todos comiam juntos - jovens, damas e cavaleiros. A única exigência era possuir
um espetáculo para os olhos. A magnitude da Távola Redonda era tal que cada
dama tinha lugar assegurado junto a seu bem-amado. Eis que vinha aproximando-se
do local o fidelíssimo Rei Artur, de mãos dadas com Parsifal, a cujo lado vinha
firmemente. Ouvi agora o que lhe disse: "Dou meu consentimento para que minha
116
Acraton. Cidade mítica do oriente situada nas imediações da Babilônia, que detinha a primazia sobre as
demais.
244
velha esposa dê a vós, que estais na flor dos anos, um beijo de boas-vindas. Na
verdade aqui não tendes por que pedir beijos a alguém, pois vindes de Pelrapeire
onde vive uma dama cujos beijos representam a suprema ventura. Faço-vos por isso
um pedido: se um dia estiver convosco em Pelrapeire espero que este beijo me seja
"Com isso" - declarou - "eu vos perdôo as mágoas que me causastes ao tirar a vida
ao Rei Ither quando da última vez que aqui estivestes." Essa reconciliação fez com
que as lágrimas aflorassem aos olhos da rainha, pois a morte de Ither infundira
dele achava-se Jofreit, filho de Ydoel, enquanto Parsifal tomou assento entre
Clamide e Galvão. Segundo novo relato não havia alguém na Távola Redonda que
quem o contemplasse teria de reconhecer que muito espelho de dama era mais
turvo que seus lábios brilhantes. Seu queixo e suas faces tinham um fascínio
homens e mulheres. Entretanto não lhe seria dado desfrutar por muito tempo essa
245
7. CUNDRIE AMALDIÇOA PARSIFAL
Eis que se aproximava aquela da qual agora vos quero dar notícia. Era
uma jovem cuja lealdade merece ser destacada, mas quando tomada de fúria
agora a maneira pela qual ela se apresentou ali: vinha montada numa mula, pernuda
não merecia reparos. Mas sua amazona não usava trajes condizentes com uma
mulher de categoria. Era o caso de perguntar como ela viera parar ali. Mas já que ali
estava nada podia ser feito. Sua chegada traria nada de bom para o exército de
Artur. Tamanha era a erudição da jovem que dominava com perfeição todas as
conhecida pela alcunha de "feiticeira". Sua boca parecia uma catarata, pois
117
Idioma dos pagãos. O árabe.
118
Dialética, Geometria e Astronomia. Três das sete artes livres da Idade Média. As outras quatro eram
Gramática, Aritmética, Retórica e Música.
246
O vestido era também de seda encorpada. Um chapéu londrino de plumas de pavão,
forrado de seda entretecida de fios de ouro, novo em folha, pendia-lhe das costas,
preso a um cordão igualmente novo. O que ela tinha a dizer era uma espécie de
ponte que a desgraça cruzava para aniquilar a alegria. Com isso ela punha termo a
prolongavam até as costas da mula. Eram compridas, negras, ásperas, feias e duras
como cerdas de porco. Seu nariz lembrava um focinho de cão. Dois dentes de javali,
essa descrição feri o amor-próprio de alguma dama, isso sucedeu unicamente por
amor à verdade. De resto, o mundo feminino não tem por que censurar-me. Afinal,
com suas orelhas de urso Cundrie não foi criada para inspirar ternos sentimentos a
um leão. Por ela, sem dúvida, cavaleiro algum quebraria lanças. Entrando no
círculo, essa fonte de tristeza, essa mortalha de todas as alegrias, dirigiu-se ao lugar
ele se dirigiu em francês. Traduzidas agora para o alemão, suas palavras não soam
menos agressivas: "Ó filho de Utepandragun! O que tu aqui fizeste cobre de opróbrio
se entre eles não estivesse um homem indigno. Arruinado está o prestígio da Távola
247
Redonda, pois dela participa a falsidade. Ó Rei Artur, foste mais celebrado que
todos os cavaleiros teus seguidores; mas agora tua fama, ao invés de ascender,
declina; teu prestígio manqueja, quando devia estar em vigorosa progressão; tua
excelsa dignidade está em declínio e tua honra já não mais está isenta de mancha.
admitido o senhor Parsifal, que apenas parece, mas não é um cavaleiro. Ele
assumiu a alcunha de cavaleiro vermelho pela qual era conhecido o homem que
tombou diante de Nantes. Mas não é possível comparar um com o outro. Não consta
de qualquer gesta heróica o nome de cavaleiro tão sem mácula quanto o do morto."
E apartando-se do rei dirigiu-se a Parsifal nestes termos: "A vós cabe a culpa por
recusar amável cumprimento ao Rei Artur e a seus paladinos. Que a vergonha cubra
vossa esplendente aparência e vossa força viril. Se me fosse dado determinar quem
pareço antipática, mas sois bem mais abominável que eu. Dizei-me, senhor Parsifal,
por que não livrastes o pobre Pescador de seus dolorosos suspiros quando triste e
inerme esteve sentado diante de vós? Ele claramente vos mostrou quanto vinha
sofrendo, ó hóspede desleal! O que devíeis ter feito era compadecer-vos de seus
sofrimentos! Devíeis perder a língua já que vosso coração se apartou de todo o reto
pensar! Deus já vos reprovou e vos reservou as penas de Inferno. E já nesta vida a
prestígio! Vossa honra se desvanece e vossas energias estão tão combalidas que
médico algum teria condições de vos valer. Se alguém quisesse tomar meu
juramento eu diria em vossa cara que nunca me foi dado ver em homem algum,
como em vós, tamanha falsidade combinada com tão boa aparência. Ó chamariz
248
traiçoeiro e enganador, dente maligno de víbora! Vós não mereceis a espada que
quando essas relíquias foram postas diante de vós. Vossa presença faz com que as
Munsalvaesche vossa recompensa seria maior que receber como feudo a rica e
imensa cidade de Tabronit119 no país dos pagãos. A rainha do reino que tem
Tabronit como capital foi conquistada por Feirefiz de Anjou em duro combate. Ele
tratou de cultivar as nobres qualidades viris que distinguiram vosso pai e que em vós
Fiel às suas origens, conservou o gentílico 'de Anjou' . Ele devia ter-vos legado um
caráter diferente deste que estais revelando. Vossa fama se corrompeu. Caso não
fósseis filho de Gahmuret em virtude de um mau passo de vossa mãe, então vosso
comportamento teria uma explicação. Mas não me atrevo a admitir sequer essa
possibilidade. Ela sofreu demais precisamente por ter sido fiel. Portanto lembrai-vos
sempre dela como tendo sido uma mulher honesta. Quanto a vosso pai podeis estar
seguro de que foi homem de fama dilatada e que tinha um acendrado senso de
bom gênio e um grande coração batia em seu peito. Com intrepidez e viril
119
Tabronit. Cidade lendária, famosa por sua riqueza e esplendor. Mais adiante é citada como a capital dos
domínios da rainha pagã Secundille.
249
Vossa fama converteu-se precisamente no oposto desse ideal. Teria sido melhor
para mim jamais ter sabido que o filho de Herzeloyde tão longe se apartou dos
caminhos da fama."
desespero que lhe ia na alma. Dirigindo-se uma vez mais ao anfitrião passou a
discorrer sobre outras coisas: "Quem dos bravos cavaleiros, membros desta Távola
perigosas e aflitivas que ali estão à espera do audacioso incursor. Quem passar na
dificuldades."
olhou seguidamente para trás. Ouvi suas derradeiras palavras: "Ó Munsalvaesche,
lugar da angústia suprema! Ai de ti, porque agora já ninguém mais virá em teu
socorro."
120
Chastel (de la) Merveile. Forma arcaica de Chateau de la Merveille – Castelo Maravilhoso que, mais
adiante, aparece seguidamente no texto.
250
conselhos de seu bravo coração, sua educação cavaleirosa e seu ânimo varonil.
Mas a par desses atributos possuía ele o dom de submeter a uma análise crítica
isenta seus próprios atos, o que o tornava capaz de reencontrar no devido tempo
o caminho certo. Uma tal maneira de agir, a mais sublime das virtudes e o mais belo
aos destemperos dessa extravagante criatura que era a feiticeira Cundrie. O clima
de tristeza contagiou outras damas presentes, do que resultou que ao fim todas
caíssem em pranto.
quando veio aproximando-se um altivo cavaleiro. Vinha armado dos pés à cabeça
com um arnês magnífico e sobremodo precioso. Tão bem equipado quanto ele vinha
tristeza. Ouvi o que o trouxe àquele lugar. O orgulho e a tristeza o dominavam. Devo
mencionar aqui que ele vinha dominado por dois sentimentos contraditórios, pois
251
fidalgo, embora tanto ele quanto os símbolos que exibia no campo de escudo lhes
espada. Logo indagou: "Onde posso encontrar Artur e Galvão?" Instruído pelos
jovens fidalgos acerca do local onde se encontrava o rei, atravessou o amplo círculo.
torno do qual se congregava o amplo círculo de cortesãos, ele fez alto e assim falou:
"Deus guarde o Rei Artur, suas damas gentis e seus cavaleiros. Ofereço meus
serviços e saúdo a todos aqui presentes, exceto a um que nada deve esperar de
odeia de todo o coração eu lhe retribuo na mesma moeda. Sabereis agora de quem
se trata! Pobre de mim, pois ele partiu-me cruelmente o coração e me infligiu grave
dano. Trata-se do senhor Galvão, que foi vencedor em muitos combates e adquiriu
grande fama. Mas ele se cobriu de vergonha, pois a cobiça insaciável por glória o
impeliu a matar meu amo num encontro amigável. O beijo traiçoeiro de Judas deve
horrendo e pérfido do meu amo. Caso ele negue a autoria desse delito, deve
Se ele tiver ânimo para tanto eu o advirto que não se esquive desse encontro, a fim
como membro da Távola Redonda, deve pensar bem, antes de desdenhar tais
valores, pois seus estatutos não aceitam a presença de homens desleais. Mas o
252
objetivo de minha presença aqui não é proferir catilinárias. Vós ouvistes o que foi
dito e podeis crer-me: Prefiro a luta às palavras agressivas - uma luta que resultará
Galvão estivesse morto, preferia eu mesmo enfrentar o desafio a tolerar que se lhe
imputasse a prática de atos desleais. Se a fortuna não lhe for adversa, provará de
armas na mão quanto preza a lealdade e detesta a falsidade. Se outro, que não ele,
vos tiver causado algum mal, estareis insultando Galvão injustamente. Se ele provar
sua inocência, não tereis como negar-lhe vossa estima, caso contrário, os homens
imparciais aos quais o apontastes levianamente como cavaleiro sem honra não mais
sobremodo. Se não retirardes vossas falsas acusações tereis que vos explicar
comigo. Eu me responsabilizo por ele e irei entrar na liça em seu lugar. O grande
prestígio que Galvão incontestavelmente desfruta não pode ser posto em dúvida
com simples palavras." Voltando-se para o irmão, caiu de joelhos diante dele. Ouvi o
que lhe pediu com insistência: "Reflete bem e lembra-te de que também tu sempre
tiveste como uma de tuas preocupações meu bom nome. Ao invés de tu mesmo
abraçares esta causa permite que eu seja teu representante e fiador nesta luta. Se
253
Insistentemente pediu ao irmão que lhe desse a oportunidade de se
maduramente sobre esse assunto e concluí que devo recusar teu oferecimento. Na
verdade não sei exatamente por que devo combater, nem encontro um prazer
especial em tratar desse assunto. De bom grado eu te cederia a vez se minha honra
forasteiro, que durante todo esse tempo teimara em permanecer nessa posição, este
tomou a palavra: "Estou sendo desafiado por um homem que não conheço e que
nunca me causou mal algum. Acredito que seja suficientemente vigoroso, intrépido,
belo e leal para como fiador assumir uma causa. Mas nada tenho contra ele.
Levantei a acusação por causa do meu amo, que é também meu parente
consangüíneo. Nossos pais eram irmãos e muito unidos. Não há testa coroada com
Ascalun. Se Galvão tiver amor à sua honra só poderá provar sua inocência
enfrentando-me em combate singular. Tirante eu, não há perigo que possa ameaçar
sua segurança em todo o reino de Ascalun, Dou minha palavra de honra: fora da liça
não será molestado. Deus guarde a todos os que aqui estão presentes, dos quais
agora me despeço. Isso não vale para Galvão e ele conhece sobejamente os
pois o sisudo príncipe gozava de grande prestígio. Todos achavam que Galvão não
254
devia considerar a luta singular com esse príncipe como coisa fácil. Infelizmente o
quais Gahmuret obtivera sua mão. Havia pessoas que diziam: "Eu ainda me lembro
seu arrojo heróico. Afinal a distinta Amflise cuidou de sua formação cavaleirosa e
tudo fez para que recebesse uma educação cortês. Todos os bretões devem sentir-
se felizes pelo fato de ter ele aderido à comunidade pois como Gahmuret, seu pai,
9. CLAMIDE E CUNEWARE
Esses heróis, que haviam compartilhado das alegrias, tiveram que aceitar
ele havia sofrido mais que qualquer outro e que vinha passando naquele momento
255
por uma profunda crise de angústia. E voltando-se para Parsifal declarou: "Tenho
por evidente esta verdade. Ainda que estivésseis junto ao Graal, toda a cornucópia
Lalant! Mas a nobre princesa está ligada demasiadamente a vós para aceitar o
cansou de considerar-me seu prisioneiro por tanto tempo. Para que pudesse
readquirir o gosto pela vida seria preciso que désseis uma palavra em meu favor!
que perdi por vossa causa, quando vi a almejada felicidade passar ao largo. Eu a
teria agarrado se não ocorresse vossa intromissão. Agora ajudai-me pelo menos a
"Isso farei de bom grado", respondeu Parsifal. "Acredito que ela seja por
demais gentil para recusar um tal pedido. Pretendo ressarcir-vos do prejuízo que
permanece minha".
leschute de Karnant aproximaram-se para confortá-lo. Afinal, era a única coisa que
poderiam fazer em tal situação. Eles uniram Cuneware e Clamide, que ansiava por
seu amor. Sem reservas ele se lhe deu para sempre, cingindo-a com a coroa real
que é bem o irmão que mereceis. Trata-se de um grande monarca. Ele é soberano
256
de dois poderosos reinos onde — em terra e no mar — é reconhecida sua
preto e branco. Na minha vinda para cá, atravessei um de seus dois reinos. Ele
desejava que eu ali permanecesse, um pedido que não me foi possível atender a
despeito de sua insistência. Sou prima desse distinto soberano. Permiti que vos
conte mais algumas coisas notáveis a respeito dele: no torneio seus adversários são
invariavelmente descavalgados. Sua fama resulta da vida faustosa que leva. Nunca
que seja dissimulação. Ademais está sempre pronto a amparar a mulher, mesmo se
"Neste país tudo é estranho para mim. Mas o gosto pela novidade e pela
aventura impeliram-me a estas paragens. Eis que agora estais diante de mim dotado
Cristandade. E com justiça que se enaltece vossa distinção, bela aparência e ânimo
257
10. PARSIFAL ABANDONA A TAVOLA REDONDA
francês fluente. Mas Parsifal objetou: "Nobre senhora! Que Deus vos retribua essas
tribulações e eu vos direi por quê. Ralo-me de penas cuja causa nem todos
suporto em silêncio. Daqui em diante serei um órfão da alegria, até que tenha uma
vez mais o Graal diante de meus olhos. Este é meu firme propósito e nele pretendo
"Se agora sou objeto de riso por parte de meus semelhantes, apenas
devo fazer para reconquistar vossa estima. Aqui fui condenado com palavras duras
e ásperas e não censuro quem por esse motivo se afastou de mim. Mas sede justas
nascedouro. Daqui por diante terei a amargura por companheira; meu coração fará
com que meus olhos chorem pois a exemplo do que ocorre com muitas puras
258
donzelas abandonei em Munsalvaesche aquilo que agora me priva de todas as
poucos, miseravelmente. Ah, indefeso Anfortas! De que te serviu, afinal, o fato de ter
estado contigo?"
Ninguém desejava permanecer ali por mais tempo, pois havia soado a
hora da despedida. Parsifal pediu a Artur, o bretão, bem como a todos os cavaleiros
encheu a todos de pesar. Acredito que aquilo que todos mais lamentavam era o fato
ainda persistia entre ele e Clamide, Artur prometeu-lhe solenemente que protegeria
seu reino com todo o empenho, como se tratasse de seus próprios domínios.
Lamentava igualmente que Lahelin lhe tivesse arrebatado dois prósperos reinos. A
frustração não permitiu que ali permanecesse por mais tempo. Cuneware, a pura
Galvão mostrou-se confiante: "Estou certo de que irás superar todas as vicissitudes
que obstacularem teu caminho. Que Deus te conceda boa sorte! A ele peço que,
necessário."
259
expectativa de Suas recompensas sempre fui-Lhe leal e pronto para servi-Lo. Por
conseqüências. Amigo, se partires para a luta, não confies em Deus. Confia antes
numa mulher, cuja pureza e bondade feminina estejam acima de qualquer dúvida.
Seu amor será teu escudo e salvaguarda no combate. Não sei quando tornarei a
Parsifal para sua tenda, determinando que lhe trouxessem a armadura. Com suas
alvas e delicadas mãos ajudou o filho de Gahmuret a armar-se enquanto dizia: "Fico
vos devendo este favor, pois foi graças a vossos estímulos que o Rei de Brandigan
vós, nobre varão, estais mergulhado. Não terei alegria enquanto durar vossa
tristeza."
guarnecidos de pedras preciosas. Apenas não cingira o elmo. Então, segundo me foi
dito, despediu-se da pura donzela Cuneware com um beijo. Foi triste a separação
dos dois, que se estimavam sobremodo. Por fim o filho de Gahmuret montou e
comparado com o que se segue. Atentai, pois para os feitos que perpetrou e para os
muitos e variados caminhos de sua peregrinação. Quem não apreciar muito as lides
da vida cavaleirosa poderá voltar sua atenção para assuntos mais amenos, caso seu
orgulho de cavaleiro permita que assuma tal atitude. Por certo Condwiramurs estará
260
recordando em mais de uma oportunidade sua bela figura. Em sua homenagem irá
Herzeloyde, visando à conquista do Graal, uma vez que por força de sua origem era
quatro rainhas. Não os invejo, uma vez que me sinto em condições de merecer os
favores femininos sem chegar a tanto. Antes de partir o grego Klias contou à
confraria arturiana suas peripécias: "Eu já me engajei nessa aventura, porém sem
êxito. Para minha vergonha devo confessar que o Turcoíde121me descavalgou com
sua lança. A despeito disso declinou-me os nomes das quatro damas reais
confinadas em Chastel Merveile. Duas delas aparentam ter certa idade, enquanto as
Cundrie, a terceira Arnive e a quarta Sangive." Foi então que todos se dispuseram
grandes prejuízos. Entretanto tais insucessos não desejo mais lamentar, pois quem
suporta canseiras por causa de uma mulher pode sentir-se feliz e por fim saberá
como dar a volta por cima. Essa sempre tem sido a compensação dos que amam.
Por sua vez Galvão, o aguerrido cavalheiro, vinha aprestando-se para sua
viagem ao reino Ascalun. Não houve bretão que não deplorasse, nem dama e
donzela que não chorasse sua partida. Assim a Távola Redonda ficara órfã em
121
Turcoíde. Foi esse o título que Wolfram deu ao guarda e acompanhante principesco de Orgeluse. A
designação deriva provavelmente de Turcópolo, arqueiro a cavalo cujo comandante desempenhava altos cargos
públicos. O termo deriva do francês turcoplier, sinônimo de chanceler e governador. Turcópolo era igualmente o
título dado ao criado pessoal do Soberano grão-Mestre da Ordem teutônica e de outras ordens cavaleirosas como
a dos Templários. N.T.
261
matéria de prestígio cava-leiroso. Galvão refletiu demoradamente sobre a melhor
disso arrematou três deles sem se deixar impressionar por sua aparente rusticidade.
Oraste Gentesin, região pantanosa da Terra dos Pagãos. Imbuído do mais genuíno
ânimo viril Galvão despediu-se e partiu. Antes disso o solícito Artur o havia provido
prata123. Assim partia ele ao encontro do destino que bem sabia entremeado de
perigos.
uma festa de casamento. Esta seria realizada mais tarde com toda a pompa, quando
estivesse de volta a seu reino. Muitos cavaleiros, muita gente pobre e uma multidão
122
Angram. Trata-se possivelmente da cidade indiana de Agra, cujo aço desfrutava de grande fama
durante a Idade Mèdia.
123
Sterling. Designação que sobreviveu na libra esterlina. Nome da moeda e também de peso da moeda.
262
de pessoas sem pouso certo permaneceram junto a Clamide, pois grande era sua
nem perdeu por esperar. Para lá partiram também a senhora leschute e seu amado
esposo Orilus. Com isso pretendiam prestigiar a Rainha Cuneware, irmã de Orilus,
inteligente que até aqui seguiu minha narrativa há de convir que neste gênero sinto-
me mais à vontade para me ocupar do mundo feminino do que num poema lírico,
dedicado a uma mulher específica. Para tanto, basta atentar para o seguinte: sitiada
pelo exército de um rei morto a Rainha Belakane emergiu do episódio como criatura
fiel e sem mácula! Num sonho a senhora Herzeloyde, teve de suportar amargos
morte de Ither! No que se refere à senhora leschute, filha do rei de Karnant, não
país a cavalo, coberta de vis andrajos. E a senhora Cuneware, quanto não fora
maltratada e puxada pelos cabelos! Mas tanto ela quanto leschute receberam ao
Que esta narrativa prossiga para quem esteja familiarizado com o enredo
263
verdade gostaria de dar seguimento ao relato. Mas para tanto será preciso que me
seja dado falar pela boca de uma outra personagem, cujos pés já se agitam em
meus estribos.
264
LIVRO VII
1. EXCURSO DO POETA
Agora o fluxo de minha narrativa irá seguir por algum tempo a trajetória de
Parsifal, seu herói propriamente dito, minha narrativa prefere apresentar outros
homens, cada qual com seu destino particular. Se alguém quisesse exaltar
unicamente seu herói a sublimes alturas, acabaria sendo injusto com os demais.
que quer que um tal poeta conte ou tenha contado não consegue suscitar o
interesse do público. Onde, então, a grande arte deverá procurar seu público,
quando até mesmo homens inteligentes capazes de apreciá-la e julgá-la lhe voltam
tempo e aquele que lhes desse crédito, obrigado a bater o queixo. Só assim Deus
lhes teria reservado a sorte considerada merecida pelos homens de valor, cujas
promove poetas cujas obras deviam merecer críticas, então demonstra reduzida
se de tais assuntos.
265
2. GALVÃO A CAMINHO DE ASCALUN
coração era qual castelo forte, inabalável no tumulto da guerra é nos arriscados
combates corpo a corpo. Tanto amigos quanto inimigos conheciam o famoso timbre
de seu grito de guerra e o brilho dessa reputação. Kingrimursel bem que gostaria de
Galvão havia cumprido várias jornadas, cujo número não saberia precisar. O
intrépido campeão e seu séquito haviam acabado de atravessar uma floresta e uma
quadro que seria intimidador se não tivesse o dom de estimular seu ânimo
combativo. O que ali avistou foi uma tropa considerável, precedida de uma flâmula
que vinha avançando em sua direção. Ele pensou: "Ainda que quisesse fugir a
floresta ficava por demais distante". Por isso determinou que selassem o corcel que
com uma lançada mortífera nas proximidades do Lago Brumbane. Mais tarde
entra em pânico sem motivo presta um péssimo serviço à sua reputação. O que quer
266
de minha presença. Saberei safar-me de uma forma ou de outra."Desmontou como
desfilaram diante dele. Viu vestimentas bem talhadas, muitos escudos e bandeiras,
mas nenhum símbolo heráldico conhecido. O nobre Galvão disse de si para si: "Para
esse exército sou sem dúvida um desconhecido, pois não conheço um só desses
amos. Diante de Galvão, filho do Rei Lot, desfilavam parelhas de mulas que
atitude de expectativa. Quem o observasse poderia até, por engano, tomá-lo como
integrante daquela tropa. Tanto numa quanto noutra margem do mar, nunca se viu
267
tão magnífico exército de cavaleiros. Ao encalço da tropa vinha a toda pressa um
distinto escudeiro. Estava conduzindo outro cavalo pelo cabresto e tinha um escudo
cumprimentando-o, procurou saber dele que exército era esse que tinha acabado de
mim? Acaso fui descortês para merecer de vossa parte tais agravos? Nesse caso
teria preferido receber outro tipo de admoestação. Refreai, por amor de Deus, vosso
mau humor! Vós, fidalgos, vos conheceis uns aos outros melhor que eu. Por que,
então, perguntais? Vós devíeis conhecê-lo mil vezes melhor que eu!"
situação deveras constrangedora! Muito andei pelo mundo. Mas onde quer que
meus serviços tenham sido solicitados, em parte alguma foi-me dado conhecer
devia ter-vos posto logo a par de tudo. Comportei-me como um tolo e, por isso,
peco-vos perdão. Dar-vos-ei pronto esclarecimento. Mas, antes disso, relevai minha
descortesia."
"Meu jovem, vosso desgosto é bem uma prova de vossa boa educação;
268
"Senhor, nada pode deter aquele que vos precedeu. É o Rei
morto por isso! Ele é filho de Poydiconjunz, um homem bravo e vigoroso que foi bem
combates. Que valor tem sua bravura nestas condições? Até a porca defende seus
souber conciliar destemer com distinção. Senhor, o que vos direi agora, merece de
vossa parte especial consideração: o impetuoso e bárbaro Rei Meljanz de Liz surgirá
à vossa retaguarda com outro poderoso exército. Sem fundamento justo deixou-se
arrastar por sua orgulhosa indignação a um ato de vingança, por ter sido repelido em
vos relate o que vi com meus próprios olhos. Ao se ver agonizante o pai do Rei
Meljanz determinou que seus príncipes vassalos se reunissem em torno de seu leito
filho, falando nestes termos: "Conserva-te fiel a ele. Ensina-o a respeitar todos os
necessitados que a ele venham a recorrer." Assim o menino foi entregue aos
cuidados do príncipe Lippaut e este cumpriu tudo o que seu suserano, o Rei Schaut,
lhe havia pedido em seu leito de morte. Cumpriu o prometido nos mínimos detalhes,
269
de nada se descuidando. O menino ficou, pois em sua companhia. Ele tinha duas
filhas que amava sobremodo e às quais até hoje se dedica com inteiro desvelo. A
uma delas, belíssima, faltava apenas a idade adequada para ser uma dama.
Chamava-se Obie, e sua irmã, Obilot. Por causa de Obie desabou toda essa
desgraça sobre nós, pois certo dia o jovem rei pediu-lhe que lhe concedesse seu
amor como retribuição de seus serviços. Ela repeliu com desprezo suas pretensões,
disse mais: "Vós devíeis antes prestar serviços como cavaleiro, realizar feitos
demasiadamente cedo. Não nego que me inspirais simpatia, da mesma forma que
Annore amava Galões. Mas ela se suicidou por causa dele somente depois que
dama é contar com sua simpatia. Senhora, ao repelir meu pedido com tamanho
não devíeis ter esquecido que vosso pai é meu vassalo e que seus muitos castelos
"Quem de vós recebeu feudos, que vos sirva por isso" - exclamou ela. "Eu
testa coroada."
270
Ele respondeu: "Alguém deve ter-vos incutido essa atrevida arrogância. E
como não pode ter sido outro que não vosso pai, ela pagará por isso. Porei minha
armadura e aqui na terra de vosso pai farei erriçar as lanças e brandir as espadas!
Não faltarão lanças, quer para luta singular, quer para batalha campal!" Ao deixar a
jovem, cheio de ódio, toda a corte, inclusive Obie, lamentava esse acesso de ira. O
não razão, queria ser julgado por um tribunal composto pelos pares do reino, pois foi
posto sob suspeita sem culpa formada. Insistentemente pediu a seu suserano que
não o privasse de seu apoio mas este se achava inteiramente ofuscado pelo ódio."
este afinal era seu hóspede e um homem honrado não recorre a tais expedientes.
Mas o rei foi suficientemente precipitado para partir sem se despedir. Seus
escudeiros, todos filhos de príncipes que haviam sido criados com ele, choravam,
dominados pela tristeza. Deles Lippaut nada tinha a temer pois ao educá-los
cuidara para que fossem leais e tivessem uma formação exemplar. Meu amo, na
verdade, é uma exceção, embora também ele tivesse sido objeto da leal dedicação
experiente que traz consigo muitos e bem equipados cavalos de batalha. Meljanz é
seu sobrinho e tão orgulhoso quanto o tio. Que o diabo os leve! Ambos os reis se
271
tomaram de rancor tamanho que agora estão a caminho de Bearoche a fim de ali se
Bearoche é tão solidamente fortificado que não poderíamos destruí-lo, ainda que
apanhei para meu amo este escudo sem que os outros jovens notassem. Com ele
no seu encalço, levando pelo cabresto três cavalos de batalha e doze lanças
primazia do combate. Em todo o caso esta é a versão de minha narrativa. Foi então
que o escudeiro deu-se pressa e disse a Galvão: "Senhor, permiti que me despeça."
E prontamente voltou-se para seu amo. "Qual é vossa opinião a respeito disso?
Conviria que Galvão se envolvesse mais diretamente nesse assunto?" Ele próprio
vacilou sem chegar a uma conclusão: "Se eu me limitar ao papel de espectador sem
arruinada de vez. Haja o que houver, não vou envolver-me nisso. Devo, antes,
honrar o trato que fiz." Assim titubeava ele acometido de profunda indecisão. Uma
demora em face do choque iminente poderia ser desastrosa. Por outro lado, não
desejava retirar-se sem mais nem menos. Finalmente decidiu-se: "Queira Deus que
272
3. GALVÃO DIANTE DE BEAROCHE
poderia se orgulhar em possuir residência mais bela. Diante dele brilhou em todo o
seu esplendor o mais belo dos castelos, ornado por altivas torres. O exército inimigo
novamente foi assaltado pela dúvida sobre se havia decidido com acerto. O exército
que cercava a cidade era tão numeroso que as tendas tiveram que ser arrumadas
montados de Kaheti. Ora, é sabido que estranhos nem sempre podem contar com
acolhida hospitaleira e, como ninguém o convidasse a se deter ali, o filho do Rei Lot
prosseguiu rumo à cidade. Galvão disse com seus botões: "Se quiser manter-me
como espectador, estarei mais bem resguardado na cidade que fora dela. Não estou
273
4. OBIE MENOSPREZA GALVÃO
Assim pensando partiu rumo ao portão da cidade. Ali deparou com uma
que eram mantidos em estado de alerta. Embora não estivesse familiarizado com a
algumas damas distintas. Era a castelã que, em companhia de suas duas belas
filhas, estava junto às ameias para observar o que cá embaixo se vinha passando.
Galvão pôde ouvir o que diziam. A digna duquesa começou assim o diálogo: "Que
A filha mais velha, sem pensar muito, foi logo dizendo: "Com certeza
Mas a filha mais nova objetou: "Mana, tu fazes dele o que ele não é e
aparência tão magnífica que irei elegê-lo meu cavaleiro. Se ele me requestar,
agrada!"
274
Entrementes os escudeiros de Galvão haviam descoberto junto à muralha
uma tília e uma oliveira. Na vossa opinião qual devia ser seu procedimento? O filho
do Rei Lot desmontou no local onde havia mais sombra. Seu camareiro apressou-se
em colocar ali mesmo uma colcha e um canapé. O altivo e distinto herói acomodou-
sombra das outras árvores. A digna duquesa retomou o fio da conversa: "Filha, dize-
qualquer modo quem está sentado lá embaixo é um mercador e ao que tudo indica,
fará bons negócios aqui! Em todo o caso a bagagem de teu cavaleiro, ó tola irmã,
vem sendo devidamente vigiada pois ele próprio resolveu fazer as vezes de olheiro."
Galvão ouviu toda a conversa. Mas deixemos, por ora as coisas como
estão. Enquanto isso inteirai-vos sobre a situação da cidade. Ela estava situada ao
275
lado oposto do campo inimigo, junto a um rio navegável onde havia uma grande
ponte de pedra. A margem oposta não estava ocupada pela tropa inimiga. Na
local seu amo, acompanhado de outros cavaleiros. Caso ainda não o conheçais eu
vos direi quem havia vindo para prestar leal ajuda ao senhor do castelo. Era seu
trouxera dois bravos e hábeis cavaleiros: o nobre Rei Schirniel, soberano de Lirivoyn
cidade deram-se conta de que as medidas tomadas visando mantê-la incólume não
haviam sido as mais acertadas. O príncipe Lippaut exclamou: "Ah, por que muramos
perante a instituição cavaleirosa estará arruinada! Estar de bem com ele seria mais
imaginar situação mais infeliz do que sua lança perfurar certeiramente meu escudo,
ou minha espada partir o dele? Nenhuma dama ajuizada consideraria isso correto
sem passar por leviana. Mesmo se meu amo estivesse aprisionado na minha torre,
deveria conformar-me. Mas ao pensar que se deixou arrastar pela ira a ponto de pôr
cerco à cidade, então devo ser grato a Deus por não estar em suas mãos. Agora "-
disse, dirigindo-se aos burgueses -" dai-me bom conselho para sair desta difícil
situação."
276
Muitos homens experientes então lhe disseram: "Se fosse apenas uma
muito bem contra os dois exércitos de Meljanz e não vemos por quê devamos
limitar-nos a uma defesa passiva a partir das ameias. Trata-se apenas de jovens que
seguiram o rei; quem sabe poderemos aprisionar alguns deles como reféns! Em
poupe de novos embaraços. Ademais, a batalha campal para nós é mais honrosa do
Infelizmente não foi educado por Gurnemanz; caso contrário, sua conduta seria
irrepreensível. Isso não impede que seja um combatente de escol. Mas, como
podeis constatar, nesse entretempo uma tropa numerosa veio em nosso socorro."
277
vespertino. De um lado e de outro defrontavam-se tropas incontáveis e em toda a
burgueses. Quem nunca conquistara prenda alguma a serviço de uma mulher não
podia estar mais bem apresentado. Afirma-se que o timbre de Meljanz era
desmontado com tamanha violência que ficara preso ao galho de uma árvore.
Realizando feitos notáveis, Meljanz de Liz se exibia agora, montado nessa montaria
"Veja só, querida irmã" - exclamou -, "como teu cavaleiro e o meu se comportam de
modo tão diferente. O teu seguramente acredita que montanha e castelo serão
278
Embora obrigada a aceitar a ironia, a irmã mais nova replicou: "Ele
certamente irá recuperar o que negligenciou. Estou convencida de que com seu
arrojo fará emudecer teus remoques. Ele se distinguira como meu cavaleiro e eu o
recompensarei por isso. E se for, como dizes, um mercador, terá pelo menos
melhor forma que pôde. Um coração puro mantém-se recatado até o fim.
que findou esse torneio vespertino em que cada um deu o melhor de si, em
o Duque de Lanverunz: "Por que não aguardastes minhas ordens? Ao vos precipitar
padrão? Vede aqui o nobre Laheduman e meu filho Meljakanz! Quando eles e eu
entender alguma coisa desse assunto. Não arredo pé daqui enquanto todos os
envolvido num encontro, juntamente com o exército que ele trouxe de Liz. É justo
que vosso exército se entregue a uma tranqüila sesta? Se é esse o bom exemplo
279
que dais então vou estirar-me na cama na hora da luta. A confusão do combate não
irá perturbar meu sono. Podeis crer-me, se eu não interviesse os burgueses teriam
Contende-vos, portanto, por amor de Deus, pois vossa gente ganhou mais que
Agora permiti que volte a me ocupar de Obie. Ela hostilizava Galvão sem
motivo algum e intentava humilhá-lo de qualquer modo. Enviou, por isso seu criado
com um olhar que o fez estremecer, inibindo-o de transmitir o recado da ama. Além
disso Galvão o recebeu aos gritos: "Fora daqui, patife! Se deres mais um passo,
serás corrido daqui a bofetadas!" Com essa recepção o criado tratou de arrepiar
caminho.
280
fosso da cidade, debaixo de uma oliveira, estão parados sete cavalos que serão
dele, juntamente com muitos outros objetos de grande valor. Um mercador deseja
enganar-nos e é do dever dele impedi-lo. Ele por certo é homem bastante para
queixas de sua ama. "É do meu dever coibir trapaças", observou Scherules, "E
assim sendo, tratarei desse caso imediatamente." Sem perda de tempo dirigiu-se ao
local onde o bravo e destemido Galvão se achava acampado. Mas ali deparou com
atentamente, olhou seus braços, suas mãos e toda a sua figura de cima a baixo. A
seguir disse-lhe cortesmente: "Embora não vos conheça, vossa presença nos
chamou a atenção, pois ainda não recebestes acolhida. Considerai isso uma falha
hospedagem para vós. Tudo o que me pertence - homens e bens - está à vossa
disposição. Podeis crer-me que jamais um anfitrião teve hóspede mais bem-vindo."
fiz para merecer acolhida tão calorosa, mas aceito de bom grado vosso convite."
responsável por vossa segurança e cuidarei para que nos limites da cidade estejais
ao abrigo de qualquer dano. Caso o exército sitiante pretenda vos assaltar, podeis
Obie não se deu por vencida e enviou a seu pai uma mágica que este conhecia. Ela
queria comunicar-lhe que havia um moedeiro falso na cidade. "O que ele carrega em
281
sua bagagem é suficientemente precioso. Apele para sua coragem de cavaleiro. Ele
soldo. Afinal, eles se satisfazem com cavalos, prata e roupa, e pelo menos sete
A maga pôs o príncipe a par de tudo, na forma pela qual havia sido
instruída pela filha. Quem algum dia foi responsável por operações de guerra sabe
quão necessários são ricos despejos. Além disso, o fiel Lippaut vinha sendo
assediado insistentemente pelos seus mercenários, de sorte que se pôs a refletir: "É
preciso que me apodere dos bens desse homem, por bem ou por mal." Ele
apressou, pois o passo, mas Scherules veio a seu encontro, indagando a razão de
moedeiro falso."
Está visto que o senhor Galvão nada tinha a ver com o assunto. Apenas
seus cavalos e sua bagagem o haviam tornado suspeito. Scherules pôs-se a rir e
disse: "Fostes enganado. Quem vos afiançou isso, quer seja homem, mulher ou
opinião em seguida. Jamais teve alguma coisa a ver com matriz para cunhagem de
moedas e podeis ficar tranqüilo de que em tempo algum teve nas mãos uma bolsa
minha casa. Se tiverdes uma opinião segura acerca do que seja ou não
varão probo e leal. E se alguém o hostiliza r- quer sejam meus filhos, meu pai, meu
irmão ou meus parentes -, então terá que levantar a espada contra mim. Com vosso
282
preferiria renunciar à minha condição de cavaleiro e vestir burel de monge penitente,
disso."
identificado toda a vez que o coração cativo sucumbe a uma paixão verdadeira -,
então esse sentimento é capaz de realizar verdadeiros milagres. Não poucas vezes
outro que ela acabou lamentando sua explosão de ira que o compelira a se afastar
dela. O desgosto causara a Obie tamanho sofrimento, que seu natural recato se
outros tiveram que suportar. Sua boa compostura transformava-se, então em furor
cego, de sorte que muitas vezes esquecia aquelas normas que convém a uma
mulher de fino trato. A simples visão de um fidalgo era para ela motivo de
ressentimento. Ela amava unicamente Meljanz. E se pôs a cismar: "Se ele é causa
283
Sede, pois indulgentes com Obie. Afinal, explosões de cólera não são tão
Ouvi, agora as palavras do pai, ao estar face a face com o nobre Galvão
para dizer-lhe quanto era bem-vindo em seu país: "Senhor, que vossa chegada nos
traga boa sorte! Já vi muitas coisas em minha vida, mas nunca o encontro com um
cavaleiro me proporcionou tanta satisfação. Que vossa vinda nos dê conforto nas
vicissitudes da guerra. Estou convencido de que ireis ajudar-nos." E pediu que como
O nobre Galvão objetou: "Eu vos ajudaria de bom grado. Para tanto não
me falta equipamento nem vigor físico. Mas para que possa atender um
outra coisa. Com muita satisfação compartilharia convosco vitória ou derrota, mas
isso não será possível. Senhor, antes de tudo terei que enfrentar um combate
singular, no qual minha honra está em jogo. Minha honra cavaleirosa exige que eu a
aquela solicitude comum a todo pai. O que Deus me proporcionou através delas
constitui a alegria de minha vida. A par dessas compensações elas são também a
causa das minhas dificuldades, para ser preciso apenas uma delas. Como eu, é ela
vítima dessa situação. Mas essa identidade no sofrimento é apenas aparente pois
meu amo a assedia com sua paixão e a mim com seu ódio. Ao que tudo indica a
atitude dele decorre do fato de eu não ter filho varão. Mas só por isso não quero
menos bem às minhas filhas. Seria essa a razão de minhas dificuldades? Pois quero
fazer dela o sustentáculo de minha felicidade! Quem tem uma filha deve contar com
outro tipo de compensações, pois se lhe é vedado o uso da espada ela incorpora à
sua ajuda, mas o filho do Rei Lot argumentou: "Senhor, não mais insistais comigo
nesse assunto, por amor de Deus! Lembrai-vos de vossa distinta educação e não
exijais de mim que eu quebre a palavra empenhada. Apenas uma coisa posso
assegurar-vos: vou repensar tudo uma vez mais e ainda esta noite dar-vos-ei minha
palavra definitiva."
285
8. GALVÃO TORNA-SE CAVALEIRO DE OBILOT
"Eu desci, pai, para pedir ao cavaleiro estranho que se ponha a meu
"Então fica sabendo que ele acaba de me negar sua ajuda. Quem sabe tu
seu lado. Agradeceu-lhe por haver tomado sua defesa quando vinha sendo
destratado, opinando enfim: "Se algum dia um cavaleiro tivesse que experimentar
penas de amor por causa de uma jovem donzela então preferiria que vós fósseis o
inibição: "Tenho Deus por testemunha, senhor, que vós sois o primeiro cavaleiro
com o qual mantenho este tipo de conversa. Se neste diálogo fui capaz de me
manter nos limites da conveniência então posso sentir-me feliz, pois minha
286
Senhor, é num momento de grande angústia que me dirijo a vós e, através de vós, a
mim mesma. Permiti que vos descreva essa situação aflitiva mas não façais mau
juízo de mim por causa disso. Peço socorro a mim mesma através de vossa pessoa,
de modo que minha maneira de agir não chegue a ser inconveniente. Ainda que
Ostentai, pois doravante meu nome e sede a um tempo varão e donzela. Minha
súplica é, portanto, dirigida a ambos nós dois. Caso me repilais e deixeis que me
retire humilhada, vossa honra entrará em conflito com vossa formação cavaleirosa,
pois é uma donzela que procura junto a vós proteção e socorro. Senhor, se vos
convier, tereis minha irrestrita afeição e se fordes homem digno não me recusareis
esse ato de serviço, pois eu o mereço. Na verdade meu pai pediu apoio a muitos
amigos e parentes, mas isso não vos impede de prestar serviço a mim e a ele para,
quebrar a palavra empenhada, embora a deslealdade seja uma atitude que devíeis
Entretanto, ainda que quisesse através de atos de serviço, aspirar ao vosso amor,
devíeis ser no mínimo cinco anos mais velha para que pudesse requestá-la. A
prometeu, pois à pequena fidalga defender sua causa com as armas na mão,
287
partireis para o ataque e lutareis em meu lugar! Na verdade serei eu quem será visto
no tumulto da luta, mas na realidade sereis vós que manejareis minha espada."
fortuna nos perigos da guerra a fim de poderdes defender com fibra heróica a cidade
coisas: vosso amor e vosso apoio. Minha vida está consagrada ao vosso serviço."
Ao ouvir essas palavras pôs ela suas mãozinhas em suas mãos, dizendo:
"Senhor, permiti que me retire agora a fim de cuidar de minhas obrigações. Estimo-
vos demais para permitir que vos engajeis na luta sem uma prenda minha. Farei de
tudo para confeccionar para vós esse símbolo afetivo. Ao usá-lo vossa fama
simpatia, declarou: "Quando vós duas tiverdes atingido a maioridade ireis gastar por
certo toda uma floresta de lanças, tendo em conta que já agora, ainda no verdor dos
288
adultas conservardes essa capacidade, então não poucos cavaleiros fenderão
que pretendeis oferecer-lhe? Afinal temos apenas bonecas. Se vos convier podereis
oferecer-lhe uma das minhas, caso seja mais bonita que as vossas. Não vamos
de teus conselhos e de tua ajuda! Imagina só que o cavaleiro atendeu meu pedido!"
alcance! Tua vinda ao mundo foi para nós uma bênção! Por isso o dia do teu
Lippaut determinou que pusessem Obilot à sua frente na sela. Ela, porém
protestou: "E minha amiga, onde irá ficar?" Esse pedido provocou uma alegre
289
Clauditte era uma menina encantadora. Por fim um dos cavaleiros colocou-a à sua
frente na sela.
preocupações."
"Prometi ao cavaleiro estranho uma prenda. Não devo ter estado muito
boa da cabeça, considerando que nada possuo. Ele se dispôs a servir-me e eu nada
irá te faltar. Se ele quiser te servir tratarei de achar algo com que possas obsequiá-lo
ainda que tua mãe te desampare. Deus queira que isso resulte em algum proveito
para mim! Ele é um nobre e altivo cavaleiro e muito espero dele. Na noite passada
eu o vi em sonho sem nunca ter trocado com ele uma palavra sequer."
senhora, ajudai-nos! Estou sumamente feliz pelo fato de Deus haver-nos dado esta
que aspira a seu amor deseja dedicar-se inteiramente ao seu serviço e pede uma
prenda."
290
A mãe da menina exclamou então: "Ah! acaso se trata daquele amável e
vistoso cavaleiro? Suponho que vos referis ao hóspede estrangeiro, belo como um
preciosos tecidos. Para a filha, pela qual faria qualquer coisa, Lippaut mandou
seda ricamente entretecido com fios de ouro. Apenas um braço ficou descoberto
Obilot. Era feita de seda de Neuriente, importada do distante país dos pagãos. A
manga foi ajustada a seu braço direito mas sem ser presa ao vestido. Para isso não
bendisse o caminho palmilhado pela jovem quando essa lhe dera cordiais boas-
Com isso o dia havia cedido sua vez à noite. Ambos os lados contavam
291
sustentado um duro combate sem a ajuda do gigantesco exército que acorrera em
ocupou quatro portões da cidade onde, ao romper d'alva podiam ser vistos seus
sobrepujava muitos cavaleiros audazes e provados na luta, o que o faria passar por
de não ceder terreno ao inimigo mesmo nos combates mais renhidos. A ele
sua entrada na cidade. Essa providência fora tomada a pedido do príncipe Lippaut.
Antes delas, as tropas de Jamor já haviam cruzado a ponte. Todos os portões foram
realidade nada havia a lamentar pois quem efetivamente ansiasse por combater e
amplamente satisfeitos. Nas vielas da cidade podiam ser admiradas muitas tropas a
292
cavalo, vislumbrados, à luz da lua, muitos estandartes e preciosos elmos que seriam
Ratisbona não eram muito apreciadas em Bearoche. O que ali não faltava eram as
Como sempre, à noite sucedeu um novo dia, cujo despontar dessa vez
não era saudado pelo cântico do sabiá mas com o fragor das armas, que se
intensificava com o início dos combates. Qual rugir da tempestade, ecoava o fragor
das lanças que se partiam quando os jovens cavaleiros de Liz se chocaram com as
em homenagem a Deus e a eles. Eis que novas honras lhes estariam reservadas.
Eles se dirigiram, pois ao reduto que vinha sendo defendido por muitos nobres e
avançou com numerosas forças. Se cada arbusto da Floresta Negra fosse uma
haste de lança não se poderia vislumbrar ali floresta mais densa que a visão de suas
incontáveis fileiras. Ele avançou precedido de seis bandeiras, diante das quais
eclodiu logo furioso combate. Trombetas ecoavam qual trovão assustador, em cujo
293
colmos tenham sido pisados sem nenhuma consideração. Os vinhedos de Erfurt124
(121) guardam até hoje as marcas da devastação perpetradas pelas patas dos
outro, corriam montarias soltas, cujos ginetes tratavam de safar-se depois de haver
rude combate corpo a corpo nosso herói Galvão para lá se dirigiu a galope com uma
rapidez que mal permitia que fosse seguido com os olhos. Embora Scherules e os
guerreiros descavalgou? Quantas sólidas lanças quebrou? É certo que Deus havia
conferido aos membros da Távola Redonda notável energia, de sorte que agora
Galvão pôde colher os louros da glória. Muitas espadas partiu ele junto ao punho e
bateu-se tanto com o exército de Liz quanto com o de Gors! Num abrir e fechar de
olhos apresara numerosas montarias que logo eram postas à disposição do anfitrião.
124
Os vinhedos de Erfurt. O cerco dessa cidade da Turíngia, ocorrido em 1203, teve necessariamente
efeito nefastos sobre seus vinhedos. O motivo do sítio foi a rivalidade entre os guelfos (partidários do Papa) e os
gibelinos (partidários do Imperador|). Naquele ano os guelfos conseguiram cercar em seus muros a facção dos
gibelinos, do que resultou a devastação dos vinhedos. Esse fato histórico é uma das poucas referências para
determinar a data aproximada da elaboração do “Pasifal”, de Wolfram von Eschenbach.
294
Quando indagava se alguém as queria, a resposta de muitos era afirmativa. O fato
despojos. Eis que vinha avançando um cavaleiro que decididamente não fazia
que se viu caído atrás de seu corcel no meio das flores. Lamento esse desfecho por
causa do escudeiro que no dia anterior acudira solícito ao chamado de Galvão e lhe
se cortesmente. Mas reparai que também Kardefablet estava ali caído no chão. Um
espada faziam ressoar os elmos e aturdiam os ouvidos. Foi então que Galvão, que
sob a proteção da insígnia do anfitrião. Em meio a tudo Isso muitos cavaleiros eram
descavalgados. Conto com vossa fé no que digo porque outras provas não tenho
Galvão a se render. À frente de todos o Duque Astor combatia nas imediações das
295
proferido o brado "Nantes", o grito de guerra de Artur. Os bretões cativos e os
com grande obstinação. Estes últimos eram liderados pelo Duque de Lanverunz.
ficado com a barba grisalha ao longo do cativeiro. Da mesma forma muitos bretões
dragão, animal heráldico de Ilinot, o nobre filho de Artur. Galvão suspirou ao avistar
Bretanha e evitou envolver-se com eles numa luta, uma atitude que mesmo hoje é
combate ali sustentado pelos burgueses era digno de elogio, embora não pudessem
uma armadura vermelha e como ninguém sabia quem era passaram a chamá-lo o
"inominado". Aqui apenas reproduzo o que me contaram: três dias antes aderira à
causa de Meljanz, decidindo apoiá-lo. Isso devia custar caro aos burgueses.
Meljanz pusera à sua disposição doze escudeiros de Semblidac, que deviam dar-lhe
apoio nos combates singulares e nas batalhas campais. Ele gastava todas as lanças
296
aprisionou o Rei Schirniel e o irmão deste. E foi ainda mais longe ao compelir o
nenhum jovem de sua idade combatia com igual brilho. Enquanto as tropas em
confronto se batiam furiosamente, ele partia com violentos golpes muitos escudos e
fez com que muitas lanças se partissem ao se chocarem com seu escudo. Seu
havia-se tornado extremamente crítica. Ninguém pôde fazer-lhe frente até que, ao
fim, desafiou Galvão para luta singular. Galvão pediu aos escudeiros que lhe
dessem uma das doze lanças feitas em Angram, que ele havia adquirido em
suas espadas. Se dois agricultores tivessem trilhado seus grãos com tal denodo os
outro, tratando de reduzi-lo a cacos. Meljanz lutava com nítida desvantagem, pois a
ponta de lança inserta em seu braço fazia a ferida sangrar e lhe tolhia os
297
o jovem não teria entregue os pontos tão cedo. Teria sido preciso esperar por sua
seus bastiões tão bem que mesmo hoje seria difícil atingir a mesma eficiência. Os
nobres cavaleiros que ali perderam a vida tiveram que pagar bem caro as explosões
de cólera de Obie. Sua petulância juvenil deixou muita gente em dificuldade. Afinal
que culpas o príncipe Lippaut devia expiar? Seu falecido suserano, o velho Rei
prosseguia infatigavelmente na luta. Estaria seu escudo ainda incólume? O que dele
engalfinharam num prado florido, em luta, tão obstinado corpo a corpo que ninguém
mais quis recuar um passo. Naquele momento o senhor Galvão acorreu ao local e
pôs Meljakanz em tamanha dificuldade que nem mesmo o nobre Lanzilot125 (122),
após cruzar a Ponte das Espadas, pudera mostrar desempenho tão notável.
125
Lanzilot... liberta Ginover. Trata-se aqui de uma referência a episódio da obra “Lancelot ou lê comte de
la Charette”, do épico francês Chrétien de Troyes (1135-1183). Lanzilot é um dos cavaleiros da Távola Redonda,
do Rei Artur.
298
Naquela oportunidade, Lanzilot, tomado de fúria, libertara a senhora Ginover do
cativeiro.
O filho do Rei Lot avançou e a Meljakanz não restou outra saída senão
esporear também sua montaria. Muitos assistiram a esse duelo. Quem, ao cabo,
nunca mais tornariam a ver seus pastos nativos pisaram com as patas seu
mantelete. O sangue escorria. Nesse dia os cavalos foram vitimados por uma
epidemia e se tornaram pasto dos abutres. Meljakanz teria sido aprisionado pelos
Quem ali teria combatido por amor à mulher e à fama? Não teria eu
condições de citar os nomes de todos. Se tivesse que identificá-los não faria outra
coisa. Galvão, que estava a serviço da jovem Obilot, foi o que mais se distinguiu
desconhecido que integrava o exército sitiante percebeu que seu amo havia sido
299
aprisionado e já não mais poderia recompersar seus serviços, voltou para junto dos
ser meus prisioneiros. Para minha desgraça o Rei de Liz foi também foi aprisionado.
Tratai de resgatá-lo e se puder fazer alguma coisa para solucionar a questão, podeis
contar comigo." Foi nestes termos que ele se dirigiu ao Rei de Avendroyn, a
Meljanz ou conquistar para ele o Graal. Mas ninguém soube dizer-lhe onde o Graal
poderia ser encontrado. Sabia-se apenas que estava sob a guarda de um certo Rei
minhas condições não sejam aceitas dirigi-vos a Pelrapeire prestai ali voto de
Clamide aspira unicamente ao Graal e ao seu amor. Ele tem em mente unicamente
esses dois objetivos. Dizei-lhe ademais que aquele que vos enviou sou eu. Que
conquistados. Para mim deixai apenas um, pois como podeis ver, o meu está
gravemente ferido."
300
Para prosseguir viagem o Cavaleiro Vermelho escolheu um entre os
havia escapado a Galvão quando este aprisionara Meljanz. Sua escolha daria mais
todos em bom estado, de sorte que tinham sobejas razões para lhe serem gratos.
Instaram com ele que ali permanecesse, mas a meta de sua peregrinação situava-se
cidade o príncipe Lippaut soube que Meljanz havia sido aprisionado e procurou
inteirar-se dos detalhes do caso. Esse fato necessariamente foi para ele motivo de
de seu escudo e pediu a Clauditte que a devolvesse a Obilot, pois ele tinha outros
pediu a Obilot que a usasse. Ao avistá-la a jovem ficou radiante de alegria e nela
enfiou o alvo braço desnudo. "Quem terá feito isso por mim?" - perguntava em tom
de gracejo toda a vez que deparava com a irmã. E Obie, despeitada, teve que
engolir o motejo.
convidou para sua mesa Galvão, o Conde Laheduman e outros cavaleiros que
durante os rudes combates daquele dia haviam sido aprisionados pelo filho do Rei
Lot. O poderoso burgrave Indicou a cada um o assento que devia ocupar à mesa, de
301
acordo com o respectivo grau de nobreza. Na presença do rei ele próprio e seus
sentado. Durante todo o tempo mostrou-se atento e solícito, cuidando em nada lhes
faltar. A Galvão tal atitude pareceu um exagero. Seu fino trato o compeliu a fazer
uma cautelosa observação: "Caro anfitrião, vós devíeis sentar-vos com a permissão
certamente teria tomado a si esse encargo, caso o rei o tivesse permitido. Enquanto
estiver em desgraça ele se manterá a respeitosa distância. Mas tão logo apraza a
Deus restabelecer entre nós relações amistosas todos nós voltaremos a ser outra
Foi então que o jovem Meljanz observou: "Ao tempo em que eu aqui vivia
naquela vez vos tivesse ouvido estaria agora mais à vontade. Ajudai-me, Conde
Scherules! Estou convencido de que sois capaz de levar isso a bom termo. Este
cavaleiro de quem sou prisioneiro e Lippaut, que é meu segundo pai, acatarão
posto em jogo sua amizade se sua filha não me tivesse tratado como um tolo. Seu
morte dissolverá."
Vermelho. Eles se apresentaram ao rei e lhe deram conta das circunstâncias que
302
e ao qual tiveram que se render e, finalmente, ao mencionarem o Graal, Gaivão
concluiu que pela descrição tratava-se de Parsifal e de ninguém mais. Ele rendeu
graças ao Céu pelo fato de Deus haver impedido que ele e Parsifal se chocassem
naquele dia. Como tanto Parsifal como Gaivão não se houvessem identificado,
sido compelidos a prestar no campo de batalha. À vista disso ninguém teve mais
dúvida em se abalra para o palácio a fim de ali honrar seus compromissos. A esposa
revê-la a fim de reafirmar sua disposição de sempre bem servi-la e também para
despedir-se. "Dizei-lhe que entrego o rei em suas mãos. Que ela reflita bem e aja de
303
"No fundo, foi ela que vos aprisionou" - afirmou o nobre Gaivão. "A glória
Gaivão. "Com vossa permissão, uma velha amiga gostaria de dar-vos um beijo de
reconcilio."
304
Marangliez foram saudados com um beijo de boas-vindas. Quanto a Gaivão foi ele
distinguido pelo mesmo honroso cumprimento. Porém se viu obrigado a levantar sua
meus braços e que agora é a fonte de todas as minhas alegrias. Dela soreis
submissão. A seguir lhe disse: "Senhor rei, ao que parece, agistes mal ao vos render
ao meu cavaleiro que alegadamente é um mercador. Pelo menos foi isso que minha
compromisso jurado em suas mãos para a irmã Obie. "Empenhais aqui vossa
palavra de cavaleiro de tomá-la como esposa e ela deve ver em vós seu amo e
trataram de cumprir o que lhes fora determinado. Foi então que a senhora Paixão
305
Que motivação a teria impelido a tamanha ousadia à vista de todos? Foi
obra do amor, esse sentimento tão antigo e sempro novo! Lippaut via realizado tudo
o que seu coração desejava. Nunca em sua vida experimentara tamanha alegria.
tiver aptidão para essas coisas. E sobre o rumo que depois tomaram os convidados
pouco saberia dizer-vos. Contaram-me apenas que Gaivão foi despedir-se. Afinal
era esse o único motivo de sua ida ao palácio. Soluçando, Obilot exclamou: "Levai-
Ele se despediu, pois de todos. Lippaut, que se havia afeiçoado a Gaivão, não se
cansava em lhe assegurar sua inteira solidariedade. Quanto a Scherules, seu altivo
anfitrião, não o deixou por menos. Acompanhado dos seus escoltou o bravo
acompanhassem pela floresta que teria que atravessar. Cuidou ademais para que
na longa viagem não lhe faltasse munição de boca. Assim, provido de tudo, o bravo
306
LIVRO VIII
ainda mais enaltecidos, Apesar disso Galvão obteve sucesso e fama dilatada. Mas
eis que se aproximava de seu termo o prazo que lhe havia sido dado para se bater
em duelo com Kingrimursel. Caso não quisesse esquivar-se do combate para o qual
havia sido compelido sem qualquer motivo ele teria que atravessar uma extensa
floresta. Por infelicidade havia perdido Ingliart, seu corcel de orelhas curtas. Nem
se a ele. Aos poucos a mata se fazia mais rarefeita. Trechos de floresta alternavam-
Finalmente surgiam diante dele regiões habitadas. Era Ascalun. Ele indagava aos
que cruzavam com ele sobre o caminho que devia seguir para chegar a
depressões pantanosas até que afinal visse surgir diante dele a magnífica cidade.
307
Agora permiti que vos dê notícias sobre acontecimentos extraordinários e
lamentai comigo os extremos perigos em que Galvão se veria envolvido. Que todos
os meus ouvintes - quer eruditos, quer ignaros - tenham pena dele, caso lhe queiram
bem. Ah, na verdade mais bem avisado andaria eu se me calasse! Mas não! É
alteava ali tão fulgurante que por certo nem mesmo Cartago deve ter parecido mais
havia ali? Chego a acreditar que seu número satisfaria até mesmo as pretensões de
Acraton que, segundo afirmam os pagãos seria a maior cidade do mundo logo
voltados para o mar, de sorte que a cidade não tinha por que arrecear-se de ataques
nem da sanha de seus mais ferozes inimigos. Diante dela estendia-se uma planície
cuja travessia representava para o senhor Galvão nada menos que uma hora de
marcha. Foi então que veio ao seu encontro um grupo composto de pelo menos
os quais havia um que se destacava dos outros pelo seu aspecto distinto. Segundo
a narrativa seus falcões perseguiam o grou ou qualquer ave que alçasse vôo diante
brilho de sua presença fazia com que a própria noite parecesse claro dia. Em tempo
126
Enéias. Referência a “Eneida”, de Heinrich von Veldeke (obra homônima da de Virgílio, na qual foi
baseada). Depois da conquista de Tróia, Enéias, figura das lendas greco-romana, consegue escapar da cidade em
chamas e, após longas peripécias e viagens errantes, entre as quais se inclui uma breve estada em Cartago, atual
Tunis, acha uma nova pátria na Itália, tornando-se ancestral do povo romano.
127
Dido. Segundo a “Eneida” a rainha de Cartago, que se suicida ao se ver abandonada por Enéias.
308
Feimurgan. Descendia portanto de uma estirpe de fadas. Quem o contemplasse
Parsifal e de outro Gahmuret quando este - num episódio de que esta narrativa já
tratou - fizera sua entrada na cidade de Kanvoleis. Uma garça, caçada pelo falcão
falcão, mas errou o vau, caindo em águas profundas. Embora resgatasse a ave de
sua situação difícil perdeu montaria e roupas, que passaram a pertencer aos
falcoeiros. Fariam eles jus a isso? Sim, esse direito lhes assistia e não lhes podia ser
negado. O cavalo que o rei perdera foi substituído por outro, o mesmo ocorrendo
vinha se aproximando e o acontecido não os impediu de lhe dar uma recepção ainda
mais amável que aquela de que Erec129 foi alvo ao chegar a Karidoel. Depois do
o anão Maliclisier lhe havia marcado brutalmente o rosto com uma chicotada. Em
que Iders, o celebrado filho do Rei Noyt, tivera de render-se a ele; caso contrário
teria perdido a vida. Mas já perdi tempo demais com esse assunto. Ouvi agora os
lances seguintes de nossa narrativa. Tenho certeza de que nunca fostes alvo de
recepção tão cortês nem de boas-vindas mais cordiais. Mas isso iria custar muito
caro ao filho do nobre Lot. Caso assim o desejeis interrompo aqui minha narrativa,
considerando os tristes fatos que estão em vias de acontecer. Mas não! Permiti que
vos relate como um caráter ilibado foi induzido ao erro pela perversidade de outros.
128
Mazadan. Ancestral lendário de Parsifal, já mencionado no Livro I.
129
Erec/Iders. Referência a episódios da epopéia “Erec”, de Hartmann von Que, e mais especialmente a
figuras da obra homônima de Chrétien de Troyes.
309
Ao reproduzir agora, aqui, com a maior fidelidade o acontecido, podeis como eu
lamentá-lo.
caminho que leva à cidade. Mas caso prefirais que vos acompanhe, interrompo
Ali reside minha irmã, uma jovem dotada de todos encantos femininos. Ela irá
entreter-vos até minha volta, caso Isso seja de vosso agrado. Nesse caso tereis a
impressão de que voltei cedo demais pois em companhia de minha irmã não
pouco mais."
até esta parte as damas de elevada posição social não me deram muita atenção",
310
episódio da aflitiva situação em que Galvão se veria envolvido caso assim o
mais grandioso que qualquer outro que tenha sido edificado na terra. Mas não
desperdicemos nossos elogios com o castelo; no caso importa muito mais falar da
fronteira quando aparecia nas ameias de seu castelo. Quem chegasse a conhecê-la
de perto - podeis crer-me - acharia junto dela mais entretenimento que em qualquer
unicamente àquilo que vi com meus próprios olhos e quando elogio alguma mulher é
porque ela faz jus a esses encômios. Minha narrativa destina-se a homens honrados
sua salvação e sua alma, após à morte, estará destinada às penas do inferno.
130
Heitstein. Heitstein é um altanado castelo em Cham, na Floresta bávara. Trata-se possivelmente da
Marquesa Elisabeth, esposa do Marquês Bertholdo de Vohburg e irmã do Duque Luís da Baviera, falecida em
1204.
311
2. GALVÃO E ANTIKONIE
ao encontro marcado pelo rei, esse mesmo rei que por sua atitude iria cobrir-se de
enriquece, então ela possuía uma grande riqueza, pois lhe era estranho qualquer
tipo de improbidade. Em toda a parte era exaltado seu recato exemplar. É pena que
o talentoso senhor de Veldecke tenha deixado tão cedo o mundo dos vivos. Ele,
transmitiu os desejos do rei. À vista disso a rainha voltou-se para Galvão com gesto
fizesse para vos entreter. Tudo que sirva para vos regalar ser-vos-á concedido. Da
mesma forma não vos recusarei o beijo de boas-vindas já que vindes tão bem
parecem-me tão sedutores que não gostaria de renunciar a esse beijo de boas-
vindas!" Seus lábios eram tão rubros e quentes que do toque formal dos lábios
312
O nobre hóspede tomou assento ao lado da distinta jovem. Ambos eram
mas a jovem ponderou: "Senhor, como homem de genuína distinção deve bastar-
vos a intimidade que vos concedo. Apenas em virtude dos desejos de meu irmão é
que vos trato com a amabilidade com que Amflise distinguira meu tio Gahmuret.
comparada minha atitude com a vossa - deveria ser mais bem valorizado. Senhor,
em tão breve tempo revelais pretensões ao meu amor, quando, até esta parte, nem
origens posso assegurar-vos que sou filho do irmão de minha tia. Caso pretendais
levar-me efetivamente a sério então minha origem não vos trará qualquer problema,
seus afazeres, sendo seguidas pelo cavaleiro que acompanhara Galvão. Quando
todos dali se haviam afastado ocorreu a Galvão que não raro uma jovem águia
consegue dominar uma ave de grande porte. De manso deixou que sua mão se
insinuasse sob o manto da jovem. Presumo que tenha chegado a tocar seus
manifestara na jovem e no cavaleiro de forma tão compulsiva que algo mais sério
Disposição para tal não lhes faltava. Mas atentai agora para a desagradável
313
surpresa que os aguardava. Um cavaleiro de cabeça branca entreabrira a porta e ao
se a Galvão aos gritos: "Infame! Não vos bastou tirar a vida do meu amo? Intentais,
3. O ATAQUE IMPREVISTO
ninguém pode subtrair-se. Também ali esse hábito tinha força compulsiva. Galvão
à mão com que possamos nos defender. Ah, se tivesse comigo minha espada!"
local onde possamos nos defender! Vamos refugiar-nos na torre contígua à minha
314
4. O ATAQUE À TORRE
jovem se apercebeu de que, além disso, uma grande massa popular estava
A partir daí começaria para o amigo dela uma dura prova, pois embora a jovem
alarido e da gritaria que não foi possível fazer-se ouvir. Ávida por lançar-se no
entrevero a multidão avançou rumo à porta da torre, mas Galvão que vinha
defendendo a entrada impediu que ali penetrasse. Ele arrancou a aldrava da porta
da torre e com ela tratou de enxotar dali essa sinistra vizinhança. A rainha revistou
pérfida multidão. Mas ali encontrou apenas peças de xadrez e um belo e enorme
tabuleiro que foi logo passando às mãos de Galvão. Este agarrou o pesado objeto
pela argola de ferro que servia para pendurá-lo na parede e com esse escudo
quadrado começou a jogar diligentemente xadrez com seus adversários até que do
tabuleiro restassem apenas cacos. Mas atentai agora para a atitude da nobre dama.
Ela passou a arremessar as peças enormes e pesadas, quer fossem simples torres
ou o próprio rei, contra os inimigos e - assim me foi dito - aquele que era atingido
pelo impacto caía ao solo desfalecido. A destemida rainha combatia lado a lado com
315
Dollnstein131 se revelariam mais dispostas na época do carnaval. De resto, estas se
desdobram até a canseira sem outro objetivo que não o dar vazas ao seu espírito
questão de saber se ela se mantém ou não nos limites do recato feminino. Uma
convém à sua condição. Uma exceção poderia ser admitida se esse gesto de pegar
Antikonie foi posta duramente à prova. Ferida em seu amor próprio, verteu sentidas
capaz de superar as mais duras provas. E qual foi a atitude de Galvão naquela
extasiado, sua jovem companheira. Examinava seus olhos, seu nariz, sua boca e
seu talhe, esbelto como o da lebre presa ao espeto sobre a brasa. A visão das linhas
vistes formigas cuja cintura revelasse igual esbeltez e graça. Ao contemplá-la seu
companheiro de lutas sentiu revigorado seu ânimo viril ao constatar que naquela
emergência ela se mantinha solidária e disposta a resistir. Sua impressão era que
apenas a morte poderia resgatá-lo daquela situação, porque outra perspectiva não
havia. Mas um olhar para a jovem bastava para desprezar os inimigos e despachar
uma multidão enfurecida investindo contra Galvão. O dever de não mentir obriga-me
igualmente a não atenuar sua atitude digna de reprovação, que acabou por
131
Merceeiras de Dolinstein, localidade em Altmühigrunde na Baviera. Wolfram refere-se aqui aos
desinibidos folguedos de carnaval que, ao tempo, eram uma tradição do local.
316
desacreditá-lo perante o digno hóspede. Naquele momento revelou uma faceta de
seu caráter que me leva a ter pena de Gandin, o Rei de Anjou. É o caso de se
perguntar como sua filha, uma dama de genuína distinção, pode dar a luz a um filho
tão sem caráter, pois ele próprio passou a estimular os instintos agressivos de sua
5. A INTERVENÇÃO DE KINGRIMURSEL
pode ser considerada desonrosa. Mas eis que compareceu ao local o cavaleiro que
situação extrema. Afinal ele havia dado a Galvão sua palavra de honra de que ficaria
incólume até o momento em que se defrontasse com ele - e unicamente com ele -
no campo de honra. Tomado de imensa ira expulsou da torre todos que, por ordem
"Nobre cavaleiro, permite que eu me dirija para junto de ti sem ser hostilizado. Neste
momento de extremo perigo desejo compartilhar dos riscos que enfrentas. O rei terá
317
Tendo recebido de Galvão a promessa de vir em paz o Landgrave saltou
para junto dele. Diante de tal atitude os atacantes ficaram indecisos, pois
demonstraram arrojo e reflexo rápido. Mas o rei voltou a instigar sua gente: "Por
quanto tempo devemos aturar esses dois? Meu primo propõe-se a salvar um homem
que tem contas a ajustar comigo. Se tivesse coragem suficiente ele próprio devia
transmitir ao rei o seguinte: "Senhor, permiti que revelemos nossa decisão de não
hostilizar o Landgrave. Que Deus inspire vossos atos a fim de que não venham a
quem pretendeis punir encontra-se sob a proteção dele. Refreai vossa ira, caso
contrário sereis amaldiçoado. Proclamai para o dia de hoje e para a noite que está
por vir uma trégua. O que decidirdes depois disso - quer vos traga prestígio ou
desonra - ninguém vos impedirá de fazer. Considerai, além disso, que minha ama
Antikonie, que jamais mereceu censura de quem quer que seja, encontra-se
mergulhada em prantos ao lado daquele cavaleiro. Uma mesma mãe carregou a vós
ambos sob o coração! Se uma tal ordem de considerações não for capaz de vos
sensibilizar, então, senhor, será lícito duvidar que vossa atitude seja compatível com
318
Ainda que ninguém lhe desse guarida e proteção deveria permanecer incólume
6. NEGOCIAÇÕES DE PAZ
O rei determinou, pois, que se fizesse um trégua para que pudesse dispor
de tempo para refletir sobre a melhor maneira de vingar o pai. Mas o senhor Galvão
era inocente. Um outro - nada menos que o orgulhoso Ehcunat - fora o autor do
crime. Ele matara o pai de Vergulacht com sua lança quando este se dispunha a
Kingrimursel, por haver salvo Galvão ao se opor a uma prática criminosa. A seguir
exclamou: "Tu és bem o filho do meu tio! Tu não te prestaste ao triste papel de
referia a um caráter ilibado que se desviou do bom caminho. Maldita seja a atitude
que Vergulacht assumiu em Schanfanzun. Nem seu pai nem sua mãe poderiam ser
319
tivesse feito de mim um homem e se, como cavaleiro, tivesse uma espada à mão, já
teríeis perdido a vontade de brigar. Mas sou apenas uma jovem indefesa. Sou,
exemplar. Com este escudo protejo o cavaleiro que enviastes à minha casa. Não
disponho de outro meio de defesa. Mesmo se agora reconhecerdes vosso erro ainda
dama. É público e notório que o perseguidor mais obstinado está obrigado a desistir
que ignore o que convém a um homem distinto. Senhor Vergulacht, o fato de vosso
hóspede, em face da morte iminente, ter sido obrigado a se colocar sob minha
Vossa palavra de honra também foi empenhada quando em vosso nome assumi o
compromisso de que aqui teria que enfrentar apenas um homem caso tivesse
coragem para tanto. Senhor, no caso minha honra foi ferida. Meus pares são
testemunhas do que estou dizendo. Ocorre que esta ofensa não nos agrada nem um
Se tivésseis efetivamente uma educação cortês devíeis saber que nosso parentesco
consangüíneo vos impõe certos deveres. Mesmo considerando que, de meu lado,
esse parentesco está marcado por uma ligação ilegítima ainda assim procedestes
de modo ligeiro e vos permitistes liberdades que não vos dei. Sou, afinal, um
cavaleiro Irrepreensível e sem medo e este bom nome pretendo conservar até a
320
hora de minha morte. No que se refere a isto confio em Deus e na salvação de
momentos por que aqui passou, então minha reputação estará arruinada. Os riscos
aos quais aqui me expus não me trouxeram qualquer proveito, mas tão-somente
Liddamus. Foi Kyot132 que lhe deu este nome. O próprio Kyot era conhecido como "o
trovador". Sua arte permitia-lhe cantar e trovar com tanto engenho que suas obras
mesmo hoje oferecem prazer e deleite para muita gente. Kyot é um provençal. Foi
ele que descobriu esta narrativa que originalmente estava redigida em língua
paga133 e tudo aquilo que ele traduziu para francês quero agora - se meu saber
O Príncipe Liddamus foi, pois, dizendo: "O que veio fazer no castelo do
meu amo aquele que lhe matou o pai e que com sua intrusão lhe faz ainda mais
presente a afronta de um crime que ainda está a clamar por vingança? Se meu amo
132
Kyot, o Provençal, apontado por Wolfram nos Livros VIII, IX e XVI, como fonte de seu “Parsifal”, é
objeto de controvérsia ainda não resolvida (as Questão Kyot), em virtude da semelhança de seu nome com a de
Guiot (ou Guyot) de Provins, monde de Clairvaux que viveu no final do século XII. Deixou a “Bíblia de Guyot”,
poema satírico de 2700 versos, onde exercita sua verve agressiva contra o clero e a nobreza. Compôs, além
disso, um poema alegórico intitulado “L’Armeure du Chevalier”. O fato de ter sido contemporâneo de Wolfram
torna a hipótese de certa forma plausível. Entretanto as revelações de Kyot, descritas neste poema, são de
natureza tão insólita que os críticos do poeta passaram a sustentar a idéia que Kyot seria apenas um nome fictício
atrás da qual se escondia a prodigiosa imaginação do próprio Wolfram. Mas Jean-Michel Angebert não tem
qualquer dúvida de que Kyot e Guyot sejam a mesma pessoa. Em um dos seus livros afirma: “Somos obrigados
a seguir a fonte oferecida por von Eschenbach, pois o primeiro tradutor desses escritos, Guyot de Provinis, viu
sua obra destruída pela Igreja: fica na conta da Inquisição e da Ordem de São Domingos”.
133
Cf. Nota 117
321
for fidalgo autêntico então ele deve, aqui e agora, fazer justiça por suas próprias
mãos. Uma morte expia a outra, posto que se igualam em temor e terror."
Como vedes a situação de Galvão era nada boa, pois agora a ameaça
contra sua vida se manifestava de forma concreta. Mas Kingrimursel partiu para a
réplica: "Quem faz ameaças com tanta facilidade devia se dar pressa em transformá-
las em ação. A vós ninguém precisa temer, nem no tumulto da batalha nem no
combate singular. Por isso, senhor Liddamus, não terei qualquer problema em
defender este homem contra vossas ameaças. O que quer que ele vos tenha feito
possibilidades. É sabido que jamais alguém vos viu lutar na vanguarda. A guerra vos
repugna tanto que começastes a luta com uma fuga. Mas vós perpetrastes ainda
outra façanha. Enquanto todos investiam contra o inimigo vós entrastes em pânico
como uma mulher. Se o rei confiar em vosso conselho a coroa na sua cabeça estará
honra. Esse combate certamente já se teria ferido se meu amo não o tivesse
frustrado com sua intromissão. Mas agora, pesa sobre ele, além do seu pecado, a
minha ira. Eu esperava dele uma atitude bastante diferente. Senhor Galvão, assumi
comigo em combate singular caso aqui se ache uma solução e meu amo vos
conceda a vida. Somente depois disso desejo combater convosco. Eu vos desafiei
Meljanz. Até o dia em que for vos enfrentar certamente passarei por muitos riscos,
mas somente vosso braço forte irá ensinar-me a medida do verdadeiro perigo."
322
O bravo Galvão concordou com a proposta e assumiu o compromisso que
lhe fora solicitado. Foi então que o Duque Liddamus tomou novamente a palavra e
admitindo que perante vós jamais consiga reabilitar-me, ainda assim pretendo
Tranzes e em virtude disso podeis censurar-me sempre que achardes motivo para
tanto. Mas não vós vanglorieis em demasia, pois ainda que sejais entre meus
parente o príncipe mais nobre e mais ilustre não vos esqueçais de que também eu
conseguireis prejudicar-mi tão pouco que não terei necessidade de esconder dele
contra aquele que tirou a vida a vosso amo e parente. Afinal não vos causei mal
algum; isto, pelo menos ninguém pode afirmar de mim. Ademais, posso dispensar
perfeitamente vosso tio. O filho dele, que agora cinge a coroa, exerce sobre mim
autoridade suficiente. Sua mãe era a Rainha Flurdamurs, seu pai se chamava
134
Turnus/Tranzes. As duas personagens aparecem na “Eneida”, de Heinrich von Veldecke. Turnus se
caracteriza pelo temperamento arrebatado, enquanto Tranzes é descrito como homem de cauteloso e avesso ao
hábito de resolver pendências pelas armas.
135
Vedrun, a atual Pontevedra, capital da Galiza, Espanha. N.T.
323
Kingrisin e seu avô era o Rei Gandin. Finalmente ficai sabendo que é, além disso,
dele pretendo receber, com todas as honras, meu país como feudo. Quem se
compraz em combater, que o faça. Eu na verdade não sou fanático por pelejas e
desafios, mas ouço de bom grado as histórias que se contam acerca de tais
proezas. Que se engaje quem quiser na tarefa de conquistar por belos feitos a
arriscar minha vida sem necessidade, só para agradar aos outros. Por que terei que
competitivas haja sempre um fosso largo e profundo. Não sinto em mim aquela
Worms rumo ao país dos hunos, o Rei Gunther deu o conselho de se deixar ficar ali
a cortar todo um pão em fatias e depois guisar estas na panela em ambos os lados."
atitudes isto é mais que sabido. Para mim vosso conselho tem o mesmo valor dos
avisos dados por um cozinheiro aos bravos nibelungos. Indiferentes a tudo, partiram
eles rumo ao país dos hunos onde os aguardava a vingança pelo assassinato de
os horrores da vingança."
136
Wolfhart. Referência à epopéia “A Canção dos Nibelungos” (circa de 1200). Na “Aventura nº38” desse
poema Wolfhart aparece como personagem sempre pronto para o combate.
137
Rumolt/Gunther. Referência a acontecimentos narrados pelo autor anônimo da epopéia “A canção dos
Nibelungos” (Manuscrito “B”, estrofe 1465 e seguintes).
324
mão deles a me precipitar na luta. Zelai por vosso renome! Não sou Segramors, ao
qual é preciso pôr em grilhões para impedir que se envolva em brigas. Obtenho os
pôde ser visto entre aqueles que mostraram as costas ao inimigo. A despeito disso
todos tratavam de lhe agradar. É que o Rei Ermanrich o enchia de presentes e lhe
concedia ricos feudos e isso sem jamais ter fendido um elmo sequer. Para vós,
senhor Kingrimursel, sempre serei um caso perdido. Mas é esta a atitude que adotei
como norma."
Estou farto de vós, porque me aborreceis com vossas Inconveniências. Como vos
atreveis a discutir deste modo na minha presença? Isto não fica bem nem para mim
teu protegido e o landgrave para teus aposentos. Aquele que simpatizar comigo
Ela lembrou: "Não te esqueças de pôr também tua lealdade nos pratos da
balança!"
138
Sibeche/Ermanrich. Referência a antigas florações épicas germânicas. Ermanrich (historicamente
aceito como sendo o rei ostrogodo de igual nome do século IV) é o herói do canto épico “A Morte de
Ermanrich”. Sibeche é seu arguto conselheiro, mas que só pensa em vingança para reparar a honra ultrajada.
325
O rei reuniu-se com seus conselheiros enquanto a rainha entretinha o
primo e o hóspede. Como terceiro elemento, uma preocupação inquietante se fez ali
presente.
Ela tomou Galvão pela mão e o conduziu a seus aposentos. Ali lhe disse:
"Se não tivésseis sido salvo, toda a Humanidade teria que lamentar essa perda." De
camareiros cuidaram para que, além de algumas jovens atraentes, ninguém mais
deixar constranger com a presença do landgrave. Como me foi dito a valorosa jovem
temia pela vida de Galvão. Galvão e Kingrimursel deixaram-se ficar ali na kemenate
apareceram ali moças de quadris estreitos, trazendo comida e bebida: vinho de uva,
vinho de amora, vinho aromático, pratos finos, tais como faisão, perdiz, peixe
saboroso e pão de trigo. Depois de todos os perigos pelos quais haviam passado,
quem tinha apetite fazia o mesmo. Antikonie serviu-os pessoalmente embora ambos
dois copeiros ajoelhados, mas nenhum deles precisava temer que seus
Eu não me admiraria e tampouco teria algo a dizer se - como acontece aos jovens
326
Ouvi agora as propostas que haviam sido apresentadas ao rei durante a
Graal. Terei que cumprir essa promessa que me foi imposta ainda que venha a me
O vitorioso herói, que com muita razão pode orgulhar-se de sua bravura, impôs-me
ainda outras obrigações: caso não me fosse possível conquistar o Graal deveria,
detém a coroa em Pelrapeire e cujo pai se chama Tampenteire. A ela deveria prestar
Imensamente feliz se fosse objeto de suas recordações. Segundo consta, teria sido
Depois dessa explanação Liddamus usou uma vez mais da palavra: "Com
a permissão dos senhores presentes desejo aqui externar meu pensamento. Depois
disso podereis dizer o que vos parecer melhor. As obrigações que vos foram
impostas deverão ser cumpridas pelo senhor Galvão que, qual pássaro, mantendes
preso em vossa armadilha. Exigi dele que se comprometa perante esta assembléia a
conquistar o Graal para vós. Depois disso deixai-o partir em paz em demanda do
327
Graal. Se ele fosse morto aqui em vossa casa isso resultaria em ignomínia para
aqui passou por maus pedaços, depois terá que mergulhar ainda numa luta de vida
e de morte. Em nenhum país que o mar rodeia existe castelo mais poderoso que
sugerida por seus conselheiros. Mandou chamar Galvão para pedir-lhe que
vivo rubor de seus lábios sobrepujava o colorido das flores. Nenhuma flor da
grinalda brilhava mais intensamente que seus lábios. Um beijo dela seria capaz de
lanças. Temos sobejas razões para exaltar a amável e recatada Antikonie. Seu
aroma do bálsamo, era sua inquebrantável lealdade. Para afirmar uma vez mais a
328
nobreza de seus propósitos a encantadora e bem-intencionada dama se dirigiu
cortesmente ao rei, falando deste modo: "Irmão, trago-te aqui o ilustre guerreiro que
confiaste aos meus cuidados. Acredito que não deve ser para ti motivo de
desagrado o que tenho a dizer em favor dele. Avalia bem tua fraterna lealdade e
atende sem má vontade o que te peço. Será melhor para ti assumir agora uma
meu. Não sei se de fato seria capaz de sentir ódio de ti mas, por favor, nada faças
O nobre e afável varão respondeu: "Irmã, farei qualquer coisa que esteja
a meu alcance. Peço teu conselho. Devido a uma atitude irrefletida perdi, perante
teus olhos, meu prestígio e a boa opinião que tinhas a meu respeito. Como poderei
continuar a ser teu irmão nestas condições? Chegaria ao extremo de abrir mão de
meu reino se fosse esse o preço exigido para obter teu perdão. Para mim não há
desgraça maior do que incorrer em teu indignado desprezo. São vãs as honras e a
vinda é alcançar fama. Fazei, pois com que minha irmã me perdoe e vereis que a
fama a que aspirais não vos faltará. A perdê-la prefiro perdoar-vos o mal que me
com todo o empenho e sem mais tardança conquistar o Graal para mim."
329
7. A RECONCILIAÇÃO
Foi desse modo que a reconciliação pôde efetivar-se: Galvão foi enviado
logo depois para empreender a demanda do Graal. O rei obteve também o perdão
eles haviam sido desarmados, de sorte que nenhum deles fora ferido na luta. Um
havia Liaz de Curnewals, filho de Tinas, além do nobre Duque Gandiluz, filho de
Gurzgri, que perdera a vida em Shoydelakurt, onde tantas nobres damas haviam
sofrido. Liaze era a tia do rapaz. Ele irradiava tamanha simpatia que todos lhe
queriam bem. Além destes havia mais seis jovens no séqüito de Galvão. Todos os
oito fidalgos eram de nobre estirpe ligados a Galvão por vínculos de parentesco. O
soldo pelo qual lhe serviam era o grande prestígio que essa posição lhes
deste modo: "Sede bem-vindos, companheiros de clã! Bem sei quão sinceramente
acontecido. De todo o modo passavam eles todo esse tempo tomados de grande
330
Inquietação. Galvão prosseguiu: "Muito preocupado estava eu com vossa sorte.
Onde estivestes enquanto aqui se combatia?" Eles lhe contaram tudo sem esconder
nos uma fêmea de gavião e fomos então ao encalço dela, visando recapturá-la."
Galvão não era apenas um bravo como ainda um cavaleiro distinto, familiarizado
com os hábitos da corte. Ele se despediu rio rei e todos os presentes, mas ao
Galvão e seus jovens fidalgos a seus aposentos, onde cuidou para que fossem
8. A PARTIDA DE GALVÃO
Depois de se ter servido Galvão estava pronto para partir, ludo o de que
aqui vos dou notícia é uma reprodução fiel do texto de Kyot. Foi uma despedida
dolorosa em virtude dos ternos laços que já os uniam. À rainha ele declarou o
seguinte: "Senhora, pretendo - caso Deus haja por bem conservar minha vida-
dedicar a vossa bondade feminina tudo o que venha a fazer durante esta minha
peregrinação. E é essa virtude que não vos permite agir de modo indigno. Por isso é
preciso exaltá-la acima das de outras mulheres. A boa fortuna vos concedeu uma
331
existência venturosa. Senhora, permiti que eu parta. Que vosso nobre caráter seja o
como ela, se puseram a chorar. A rainha declarou-lhe então com o coração nas
mãos: "Eu me sentiria mais feliz se pudesse ter feito algo mais por vós. Mas no pé
em que estavam as coisas não foi possível obter condições de paz mais favoráveis.
então, senhor Galvão, podeis estar seguro de que meu coração estará participando
A nobre rainha beijou-o e não escondeu sua irremediável tristeza por vê-
lo partir. Penso que a separação foi sumamente penosa para ambos. Entrementes
bravos escudeiros que eram também seus jovens parentes. Conforme havia
332
desacompanhado partiu, disposto a arrostar os ingentes e gravíssimos perigos que
333
LIVRO IX
1. O TERCEIRO ENCONTRO COM SIGUNE
- “Abre!
- Não importa! Ainda que nele penetrasse a duras penas ainda assim minha
- Ah, sois vós, Senhora Aventura? Como vai nosso magnífico paladino? Quero
e partiu. E agora, que é feito dele? Dai-me notícias de seu paradeiro! Persiste
ele ainda, cabisbaixo, nas suas andanças sem rumo ou conquistou novas e
334
que com suas mãos pôde obrar! Reencontrou ele Munsalvaesche e o
vosso e meu herói - já passou por ali! Dai-me conta do que houve com ele!
desde que deixou a corte de Artur! Foi ele bem ou mal sucedido nos
numerosas terras e mares. Ninguém que com ele competiu pôde manter-se na sela.
Poupava apenas compatriotas e parentes. Esse era o critério com que manipulava a
uma tarefa ingrata quem intentasse diminuir-lhe o prestígio. Certa feita partiu-se a
lâmina da espada que Anfortas lhe dera no castelo do Graal, mas as virtudes
que lhe permitiu dilatar sua fama. Incorre em grave falta quem puser isso em dúvida.
Além do que já foi dito a Aventura nos deu conta de que certa feita
deparou com uma ermida. De construção recente, havia sido disposta sobre o
terreno de tal modo que não estorvasse o curso de um riacho que passava sob ela.
Dessa vez Deus pretendia favorecê-lo. É que ali encontrou uma eremita que por pia
335
mundo. No coração mantinha ela sempre vivas suas penas, levada por um antigo
sentimento de lealdade. Era pela terceira vez que Parsifal se via diante de
ouvisse missa toda a sua vida era passada em oração. Desde que renunciara a
todas as alegrias mundanas seus lábios, antes rubros, cheios e quentes, haviam
empalidecido. Jovem alguma fora atingida por tão grande perda. Por isso, para
Todo o seu amor, que malograra com a morte do príncipe, era agora
dedicado à sua memória. Se tivesse sido sua esposa a senhora Lunete139 não teria
tido a coragem de lhe propor o que tão levianamente aconselhara à ama. Mesmo
hoje não faltam pessoas que como a senhora Lunete, têm sempre à mão sugestões
outro, por recato ou fidelidade conjugal, então, na minha opinião esse homem tem
ao seu lado uma mulher exemplar. Nada lhe assenta melhor que a constância e isso
vos posso provar caso assim o desejeis. Com a perda do marido, poderá tomar a
atitude que mais lhe convier. Caso, mesmo depois, se mantivesse fiel, então
ostentaria grinalda mais magnífica que aquela que lhe orna a testa durante os
deleites da dança. Mas como pude eu comparar alegrias com as penas que
não ir além deste ponto. Atravessando terrenos ínvios, Parsifal passou bem rente à
janela, uma atitude que a seguir iria lamentar. Seu objetivo era obter informações
139
Lunete. Personagem da epopéia "Iwein", composta por Hartmann von Aue, segundo um modelo
francês. Ela deu o conselho em questão à sua ama Laudine a qual, aceitando-o, casou com Iwein, embora este lhe
hovesse matado o marido.
336
sobre a floresta e sobre a direção que deveria seguir. Esperando por uma resposta,
hesitara demasiado e arrependeu-se por não ter apeado logo. Amarrou o cavalo no
galho de uma árvore caída e junto dele pendurou o escudo maltratado. Em gesto
conforto e impregnado de tristeza. À pálida jovem ele pediu que viesse à janela e ela
sabia quem era. Sob o vestido cinzento uma grosseira camisola de crina envolvia-
lhe o corpo desnudo, pois ela se havia entregue por inteiro à sua grande dor, que lhe
saltério e num dos dedos o bravo Parsifal notou o anel delgado do qual não abrira
méritos do amor verdadeiro. Engastada no anel via-se uma pedra granada que na
escuridão rebrilhava qual centelha. Em virtude do luto que se impusera não usava
qualquer adereço na cabeça. Ela lhe disse: "Senhor, junto à parede externa há um
banco. Nele tomai assento se tiverdes tempo e disposição para tanto. Que Deus
cumprimento."
337
Acedendo ao convite o herói sentou-se junto à janela e a concitou a fazer
de um homem."
O herói começou a lhe fazer perguntas sobre o que ali fazia e quem lhe
provia as necessidades: "O que vos levou a viver nesta selva, afastada do convívio
de nossos semelhantes? Senhora, não consigo entender a causa que vos levou a
abraçar esta vida de privações. Em toda a região circunvizinha não há uma única
habitação." Ela explicou: "O Graal prove meu sustento. Todo o sábado à noite a
maga Cundrie aparece aqui e me abastece de víveres por uma semana. Ela
Mas Parsifal não deu fé ao que dizia e suspeitando de que ela desejava
esse anel? Sempre ouvi dizer que tanto as eremitas quanto os eremitas devem
com razão censurar-me se pudésseis provar que fui desonesta. Mas Deus quis
sobremodo, mas cujo amor jamais desfrutei fisicamente embora meu coração de
donzela por ele ansiasse." E ela prosseguiu: "Esse homem cuja prenda jamais me
desfiz está aqui, junto de mim. Foi Orilus quem o matou em combate singular. A
338
despeito disso permaneço saudosa de seu amor e quero passar toda a minha vida
lamentando sua perda. Como verdadeiro cavaleiro aspirou a meu amor com escudo
e lança e foi a meu serviço que perdeu a vida. Embora tenha permanecido virgem e
sinto me ligada a ele por livre escolha. Sua morte abateu-me profundamente e este
anel estará comigo para legitimar nossa união quando eu comparecer perante a face
de Deus. As lágrimas que emanam de minhas penas são bem uma confirmação de
Foi quando Parsifal percebeu que estava falando com Sigune, o que o
ferrugem o luminoso semblante do bravo guerreiro. Ela então exclama "Sois vós,
Ele respondeu à distinta jovem: "Para mim a vida perdeu todos os seus
bem como a criatura mais adorável que nasceu neste mundo. Morro de saudades
por seu amor e pelas nobres qualidades que ornam o seu caráter. Mas fascínio
ainda maior exerce sobre mim esse supremo objetivo. É de todo imperioso que
retorne a Munsalvaesche e reveja o Graal. Até agora isto não me foi possível. Prima
Sigune, tu estás sendo injusta comigo ao me tratares com hostilidade pois estás a
339
A isso a jovem respondeu: "Primo, não te censuro mais. De resto, jogaste
fora a grande oportunidade de tua vida ao não pores a magna pergunta que teria
sido a chave de teu sucesso. Quando o bondoso Anfortas te acolheu com simpatia,
esteve com teu destino nas mãos. Se tivesses feito aquela pergunta, teria
quedaste mudo, tua felicidade se esvaiu, teu ânimo altivo arrefeceu e teu coração
"Mas não te esqueças, querida prima, de nosso vínculo consangüíneo e dá-me bom
lamentar tua triste sorte e o estado de desespero em que me encontro não tosse
partiu daqui a maga Cundrie e agora lamento não ter indagado dela se pretendia
regressar a Munsalvaesche ou se seu destino seria outro. Sempre que aqui aparece
ela deixa sua mula junto à fonte que nasce naquela rocha. Aconselho-te a seguir em
seu encalço. Caso não se tenha dado pressa talvez consigas alcançá-la."
ainda frescos. Mas a mula de Cundrie seguira por terreno impraticável, de sorte que
a certa altura os rastros desapareceram. Uma vez mais o Graal ficava fora de seu
340
alcance. Seu entusiasmo arrefeceu. Se dessa vez tivesse conseguido chegar a
Munsalvaesche estou certo de que teria feito a pergunta e evitado passar uma vez
Deixai, pois, que prossiga seu caminho! Por que rumo agora Irá
enveredar?
descoberta, sob cujo precioso manto via-se uma briIhante armadura e que, tirante o
se de Parsifal e lhe disse: "Senhor, não me agrada nem um pouco vossa pretensão
de entrar na floresta que integra os domínios do meu amo. Recebereis por isso uma
lição que sempre ireis lembrar com desprazer. Munsalvaesche não está acostumado
caminho tereis que enfrentar um duríssimo combate ou aceitar uma pena que na
orla desta floresta, só tem um nome: morte." O cavaleiro trazia na mão um elmo com
cordões de seda e a haste de sua Iança nova em folha era provida de afiadíssima
firmemente. Dessa vez suas ameaças e desafios iriam custar-lhe caro. Apesar disso
341
Parsifal, que em tais encontros já quebrara muitas lanças, pensou lá com
seus botões: "Serei aniquilado se invadir o território desse homem. Como então
poderei subtrair-me à sua fúria? Até aqui meu cavalo pisoteou apenas a relva
rasteira. Seja lá o que Deus quiser! Se mãos e braços me obedecerem, receberá por
gesto sequer."
arremetida. O cavalo a galope pleno não mais pôde ser contido. Assim mergulhou
cedro. Não riais dele pelo fato de estar assim a balouçar no ar sem o concurso do
carrasco! Finalmente conseguiu firmar os pés num ressalto de rocha. Seu cavalo
procurar muito. Teria sido mais prudente se tivesse permanecido em casa junto ao
140
Templário. O autor equipara a comunidade do Graal à Ordem Militar do Templo, fundada em
Jerusalém em 1118, pelo fidalgo francês Hugo de Payns. Essa organização monástica e cavaleirosa atingiu
grande poderio econômico e exerceu considerável influência na vida política européia no decurso dos séculos
XII e XIII.
342
Graal. Parsifal subiu a borda do precipício. As rédeas da montaria do cavaleiro
de sorte que permaneceu ali parada como se tivesse recebido uma ordem. Quando
nela montou, apenas deu falta da lança, cuja perda, no fim das contas, a posse do
cavalo havia largamente compensado. Acredito que nunca o vigoroso Lahelin nem o
Gurnemanz, se viram envolvidos em luta tão exasperante como esta em que Parsifal
apresara o cavalo. Parsifal partiu, pois, sem rumo certo, sem que novamente fosse
A quem quiser ouvir-me darei, agora, conta do que a seguir lhe sucedeu.
Depois dos fatos aqui narrados. Parsifal vagara semanas a fio, como sempre à cata
de aventuras. Certa manhã internou-se numa extensa floresta enquanto a neve, que
caía profusamente, fazia as pessoas tiritar de frio. Foi quando veio ao seu encontro
um velho cavaleiro. Embora tivesse a barba inteiramente grisalha seu semblante era
viçoso e sem rugas. Grisalha e corada era igualmente a esposa. Ambos vinham
grosseiro e áspero.
343
De Igual tecido eram as roupas das filhas, duas jovens que agradariam a
coberto de neve. Parsifal saudou o cavaleiro grisalho de que, por feliz acaso,
receberia bons conselhos. Sua aparência era a de um varão distinto. Ao seu lado
sair do caminho que vinha seguindo, indagou daquela piedosa gente o motivo que a
tom amável o cavaleiro grisalho não deixou de lamentar o fato de ele, naquele dia
ocasião. Parsifal então lhe respondeu: "Senhor, não sei quando este ano começou,
da mesma forma que perdi a noção das semanas e dias que passam. Antigamente
servi a Alguém chamado Deus, até o momento em que permitiu que eu fosse
exposto à execração pública. Até então jamais duvidara Dele, pois me haviam dito
O grisalho cavaleiro assim lhe falou, então: "Vós vos referis a Deus
causa, neste dia que hoje se comemora, então agis mal ao usar essa armadura.
Hoje é Sexta-feira da Paixão, dia em que o mundo deve tanto rejubilar-se quanto
suspirar com reverente temor. Pode haver lealdade maior que essa de que Deus nos
deu prova ao ser crucificado por nós? Senhor, se fordes batizado então levai isso a
344
peito! Ele sacrificou Sua vida sacrosanta para nos redimir da culpa que nos
condenava às penas eternas. Se não fordes pagão, passai este dia como convém!
Segui nosso exemplo. Não muito longe daqui mora um santo homem que vos dará
bom conselho e vos imporá uma penitência para expiardes vossos malfeitos. Se
Suas filhas então intervieram: "Pai, por que te mostras tão Inflexível? Por
que o aconselhas a se expor às inclemências deste tempo? Por que não lhe dás
uma oportunidade de aquecer-se? Por mais bem protegidos que estejam seus
braços nessa armadura, devem estar regelados. Ainda que tivesse três vezes a
força que possui, teria que ressentir-se do frio. Afinal tu possuis não muito longe
daqui tendas e albergues para peregrinos. Se o Rei Artur por aqui aparecesse tu o
têm razão. Moro bem perto daqui e todos os anos quando transcorre a Paixão do
Senhor, que retribui fiéis serviços com recompensas eternas, empreendo uma
peregrinação por esta floresta bravia, quer chova ou faça sol. De bom grado
assegurando que isso não resultaria para ele em desprestígio. Parsifal examinou-as
atentamente e notou que a despeito, do frio seus lábios eram cheios e quentes e seu
345
pecadinho, eu lhes daria - e deste intento ninguém me demoveria - um beijo, a título
sempre mulheres. Elas subjugam até mesmo homens poderosos, num abrir e fechar
Parsifal foi então assediado pelo pai, pela mãe e pelas filhas, que a uma
juntar a eles, vou oferecer um curioso espetáculo. As moças são tão gentis que não
conviria deslocar-me montado ao lado delas e isso sem considerar o fato de todos,
homens e mulheres, virem seguindo a pé. Ademais, estou de mal com Aquele que
tribulacões."
despeça. A boa fortuna vos concedeu felicidades e alegrias! Vós, ó gentis donzelas,
onipotência, disse de si para si: "Será Deus capaz de inspirar-me ânimo para
superar minhas tribulações? Será que Deus quer bem aos cavaleiros? Será que
346
algum deles d'Ele recebeu algum dia graça e mercê? Se espada, escudo e ação
honesta e leal forem dignas de Seu apoio para resgatar-me desta prostração então
peço-lhe que me ajude, se tiver poder para tanto. Afinal hoje é o Seu dia de
solidariedade!" Voltando-se, olhou para o local que pouco antes deixara. Ali avistou
Ele então falou de si para si: "Se Deus for capaz de controlar a vida dos
animais e os atos dos homens então quero louvar Sua onipotência. Se Deus, em
Sua bondade e sabedoria, puder acudir-me, então fará com que, para o meu bem,
este castelhano enverede pelo melhor caminho. Que tome, pois o rumo que Deus
lhe indicar!" Ato contínuo libertou o animal do controle das rédeas e o Incitou com as
Salvatsche141, onde certa falta Orilus aceitara suas afirmações feitas sob juramento.
Ali vivia o piedoso Trevrizent, que passava os sete dias da semana a jejuar. Ele se
privava de vinho de amora, de uva e até mesmo de pão. Mas sua vida austera lhe
peixe, de qualquer alimento, enfim, que contivesse sangue. Levava essa vida
141
Fontane Ia Salvatsche. Fonte silvestre.
347
piedoso, pois o Senhor o munira de coragem para se dedicar inteiramente ao
impunha pesados sacrifícios, mas era com essa vida de renúncia que ele combatia
as tentações do demônio. Através dele é que Parsifal seria iniciado nos mistérios do
Graal. Quem antes me fazia perguntas sobre esse assunto e me censurava por
mantê-lo na ignorância expunha a si mesmo uma situação vexatória. Foi Kyot quem
manuscrito pagão, o original desta narrativa, que havia sido posto de lado como
coisa sem valor. Inicialmente teve que aprender o alfabeto, sem contudo assimilar as
sucedido porque era batizado, caso contrário o texto teria permanecido indecifrável
penetrar seus mistérios. Outrora vivia um pagão chamado Flegetanis, afamado por
Salomão. Sua origem recuava ao tempo em que o batismo se tornara nosso escudo
contra as penas do inferno. Foi esse homem que redigiu os originais do Graal. Por
parte de pai Flegetanis era pagão e prestava culto a um bezerro, como se fosse seu
Deus.
movimento dos astros e de suas revoluções. Sabe-se que o movimento circular dos
348
astros se acha intimamente ligado ao destino dos homens. Foi assim que o pagão
sempre se referia a tremer. Ele explicou que havia um objeto chamado "o Graal".
Esse nome ele viu claramente inscrito nas estrelas. "Uma legião de anjos142 haviam-
iniciadas pelo batismo viam encarregar-se de sua guarda. Quem for convocado para
saber, pôs-se então a vasculhar os doutos livros latinos à cata de indícios sobre a
existência de um povo que graças à pureza de seus costumes, poderia ter sido
através desse texto que Titurel e, a seguir, o filho deste, Frimurtel, haviam
transmitido como bem de herança o Graal a Anfortas, cuja irmã Herzeloyde, tivera
cobria, o local que antes lhe fora dado ver no esplendor da estação florida. Diante da
142
A história desses anjos é contada mais adiante por Trevrizent.
349
levaram para mais adiante, até uma propriedade chamada Fontane Ia Salvatsche.
O eremita exclamou: "Ai de vós! O que vos levou a desrespeitar este dia
santo de guarda? Acaso foi o perigo das lutas que vos obrigou a envergar essa
armadura? Ou o combate já não mais vos apraz? Se for esse o caso devíeis estar
usando outros trajes, para não parecerdes arrogante. Apeai e aquecei-vos ao logo.
Isto certamente será de vosso agrado. Se foi a Aventura que vos enviou a fim de
infundir ao vosso amor objetivos mais altos! Somente depois poderíeis pensar em
cortesia. Falou-lhe dos peregrinos que lhe haviam exaltado sua rica sabedoria e
350
Nunca vieram ao mundo crianças mais puras que as filhas desse príncipe que
encheu de temor? Naquele momento minha vinda não se vos afigurou indesejável?"
assustam com mais freqüência que as pessoas. Posso afiançar-vos que criaturas
assegurar que tempo houve em que fui tudo, menos tímido no combate e no trato
com mulheres. Nunca fui polirão nem cedi campo ao adversário. Ao tempo em que
assim me exercitava na luta, era um cavaleiro como vós e aspirava às formas mais
coração. Pretendia levar uma vida voltada para a ostentação a fim de atrair a
simpatia de uma dama. Agora tudo isso pertence ao passado. Dai-me as rédeas.
Sob a escarpa vosso cavalo poderá desfrutar de descanso. Enquanto isso iremos
tratar de colher, sem pressa, fetos e brotos para vosso cavalo. Não disponho de
rédeas, mas o piedoso eremita atalhou: "Vossa educação cavaleirosa não vos
permite de discordar de mim e caso insistais nesse intento podereis ser censurado
por isso."Em face de tal argumento Parsifal passou as rédeas às mãos do anfitrião.
351
raio de sol. Havia ali uma baia natural, por onde corri uma fonte que brotava da
rocha.
mister achava-se sobre uma camada de palha e feto que recobria o chão. Na
um anfitrião que lhe queria bem. O eremita entregou-lhe uma roupa e o conduziu a
uma segunda caverna. Ali havia livros que o piedoso varão costumava ler. No
recinto havia um altar que naquele dia especial143 permanecia descoberto. Sobre ele
havia um escrínio que Parsifal de pronto reconheceu. Fora sobre ele que havia posto
ao anfitrião: "Senhor conheço este escrínio. Certa feita dele me acerquei a fim de
sobre ele proferir um juramento144. Perto dele, senhor, havia uma lança multicolorida
que levei comigo. Soube depois que foi ela o condão das vitórias que alcancei. Certa
feita estava com o pensamento tão profundamente voltado para minha esposa que
não mal atinava o que se passava à minha volta. Nessa situação enfrentei com êxito
143
Era Sexta-feira Santa.
144
O hábito dos romanos de porem a mão sobre o altar ao proferirem juramentos (aram tenere), parece
indicar que esse gesto ritualístico é anterior ao cristianismo. NT
352
"Ao tempo era ainda um cavaleiro respeitado. Agora, porém vivo
nome de vossa distinta educação dizei me quanto tempo decorreu desde que levei
comigo a lança."
Tempos depois, dando-se conta do fato, falou-me do extravio da lança. Cinco anos,
seis meses e três dias se passara desde que subtraístes daqui a arma. Posso fazer
anos e até mesmo de semanas que se haviam escoado daquele tempo a essa parte.
"Agora estou-me dando conta do tempo que gastei errando triste e sem
rumo de um lado para outro", observou Parsifal. "A felicidade é para mim um sonho
inatingível. Minha sina é suportar essa carga de sofrimentos. Senhor, permiti que
vos conte mais aIguns fatos a respeito de minha vida. Desde minha passagem
interior por este lugar, nunca mais entrei numa igreja ou catedral onde se entoam
louvores a Deus. Vivi unicamente para o combate e passei a ter ódio de Deus por
considerá-lo responsável pelas tribulações por que venho passando e que Ele tratou
partir do momento em que o infortúnio pôs sua coroa de espinhos sobre minha
está ferido. Debito isso à conta d'Aquele que pode remediar todas as situações
difíceis. Tendo tudo para me ajudar não o fez, a despeito das afirmações que se faz
353
O anfitrião suspirou e examinou Parsifal atentamente. A seguir disse-lhe:
devido tempo Sua ajuda virá. Que Ele valha a ambos, nós dois. Sentai-vos e contai-
revolta contra Deus. Mas como homem de coração bem formado permiti que, em
face de vossa queixa, vos possa convencer de Sua Inocência. Ele sempre está
disposto a ajudar. Embora leigo li com muita atenção o texto da Sagrada Escritura e
anotei que cabe ao homem fazer-se merecedor da ajuda de Deus, que está sempre
pronto a acudir a alma prestes a sucumbir às forças das trevas. Sede-lhe fiel e
jamais duvideis Dele, pois sendo a essência da lealdade tem horror a qualquer tipo
de esperteza. Devemos ser-Lhe gratos pelo muito que tem feito por nós. A despeito
de Sua nobre e sublime origem consentiu em assumir forma humana por amor a
nós. Deus é sinônimo da própria verdade e abomina falsidade. Para Ele seria
simplesmente impensável agir de forma desleal. Refleti melhor sobre tudo isso e
parai de duvidar Dele. Não será com rancor que conseguireis extorquir alguma coisa
Dele. Quem souber que O estais agravando com vosso ódio poderá duvidar de
vossa sanidade mental. Refleti sobre a triste sorte que coube a Lúcifer e seus
sequazes. Eles não tinham bílis como nós, humanos. Por Deus, senhor, como
pudestes engendrar dentro de vós esse rancor invejoso que vos compele à rebelião
continuada? Tal prática resultará para vós numa recompensa indesejável no inferno.
Astrioth, Belcimão, Belet, Radamante145 e outros dos quais tive notícia - toda a
rutilante milícia celeste, enfim - tornaram-se, como castigo, negros como o inferno. O
145
Astrioth. Na realidade Astarte aparece na Bíblia como parceira de Baal. Venerada na Síria e
Palestina como deusa da fertilidade, era tida igualmente como entidade demoníaca.
Belcimão. Aparece nos escritos de Santo Agostinho (354-430) sob o nome de Baal.
Belet. Possivelmente a deusa fenícia Baaltis é um dos numerosos nomes de Astarte.
Radamente. Rei de Creta e irmão de Minos. Após sua morte, prosseguiu suas atividades de
legislador, erigindo-se em juiz dos Mundos Inferiores. Personagem das epopéias homéricas, passou a ser
conhecido na Literatura medieval através de Virgílio e Ovídio.
354
lugar de Lúcifer e seu bando, após a descida destes ao inferno, foi ocupado pelo
homem. Deus criou do limo da terra o digno Adão e de uma de suas costelas, Eva,
que seria a causadora de nossa desgraça. Ela não deu atenção aos mandamentos
seu antepassado. Muitos quererão agora uma explicação a fim de captar o sentido
dessas palavras. Ocorre que isso efetivamente aconteceu e, para ser preciso, por
causa do pecado."
Parsifal contestou: "É difícil crer que isso tenha acontecido. Quem afinal
me mantivesse nos estritos limites da verdade poderíeis irritar-vos, com razão. Adão
nasceu da Mãe Terra e de seus frutos tirava o seu sustento. Mas ainda não vos
disse quem lhe maculou a virgindade. Adão era pai de Caim e este matou seu irmão
Abel por motivo irrelevante. Quando o sangue manchou o solo virgem a terra perdeu
sua inocência. Foi o filho de Adão o autor dessa violência e desde então
estabeleceu-se a desunião entre os homens. Não há por certo algo mais puro que
uma virgem, sem mácula. Agora refleti sobre a pureza das virgens. Deus nasceu de
uma virgem. Assim apenas dois homens nasceram de virgens, O próprio Deus
assumiu face humana segundo o modelo adâmico, Foi portanto uma limitação
355
"Desse modo nossa origem adâmica nos onerou e gratificou ao mesmo
colocou acima dos anjos, e onerados por termos herdado de Adão o estigma do
vossa alma. Expiai vossos pecados e disciplinai vossas palavras e atos. Quem
responde a ofensas com desaforos torna-se por sua vez culpado. Aceitai essa antiga
sabedoria que aqui vos exponho porque é válida para todos os tempos. Platão, o
naquele tempo previu ela que seríamos redimidos de nossos pecados. A mão de
Deus, na Sua infinita misericórdia, resgatou-nos das penas eternas, deixando para
própria luz resplandecente que tudo impregna e é mutável no Seu amor. Quem
ser divididos em duas categorias. Eles podem livremente decidir-se por Seu amor ou
Sua ira. Decidi vós mesmo que mais vos convém! O pecador é impenitente e se
146
Platão. Filósofo grego (427-347).
147
Sibila. Profetisa que, sem ser solicitada, anunciava o futuro. A ela são atribuídos os livros sibilinos,
uma coletânea de oráculos conservada no Templo de Júpiter.
356
toda a pureza, devassa, radiante, a barreira das trevas. Sem ser ouvida ou
pressentida penetra qual raio os corações e deles se aparta com a mesma rapidez
silenciosa. Nenhum pensamento, por rápido que seja, é capaz de sair do coração
para a luz do dia sem que Deus o tenha examinado previamente. Ele dá guarida às
"Se com suas más ações o homem malbarata o dom da graça, de sorte
que Deus sinta vergonha dele, que proveito poderá trazer-lhe sua humana
educação? Aonde sua pobre alma terá guarida? Se ofendeis a Deus, que pode usar
ter aclarado o entendimento acerca d'Aquele que retribui o bem e o mal na justa
medida. Ocorre que passei toda a minha vida - dos verdes anos a esta parte - em
pecados que vos afligem estou disposto a vos ouvir de bom grado. E se me derdes
Graal, mas tenho igualmente saudades de minha mulher, a mais linda criatura que
veio a este mundo. Para ela e para o Graal sinto-me atraído de modo irresistível."
357
O anfitrião admitiu: "O senhor tem razão. Se vos consumis em saudades
a ela estiverdes unido pelos laços legítimos do matrimônio, não tendes por quê vos
arrecear das penas do inferno. Com a ajuda de Deus sereis em breve aliviado
dessas mazelas e penas. Mas, se bem ouvi, estais igualmente empenhado na busca
do Graal. Ó grande insensato! Essa é uma pretensão que devo lamentar. Conquistar
Parsifal quis então saber: "Vós próprio estivestes lá?" Ao que o anfitrião
diziam respeito ao Graal. O anfitrião prosseguiu: "Conheço bem essa questão e sei
que em Munsalvaesche, junto ao Graal, vivem muitos valorosos cavaleiros que com
seus pecados. Ali se concentra uma aguerrida milícia e agora vou vos revelar donde
lhes provém o sustento. Eles são alimentados por uma pedra e se dela nunca
tivestes notícia eu vô-la descreverei agora. Ela é chamada Lapsit exilis148. Suas
148
Lapsit exillis. Nome latino do Graal tal como aparece no texto do "Parsifal", atestado por Lachmann
e que serve de base à presente tradução. É um latim indecifrável que resultou possivelmente de um erro do
copista ao reproduzir o original do poeta. No contexto da narrativa poderiam ser admitidas duas hipóteses para
se chegar à forma que Wolfram usara ou teria querido usar: Ia.) Lápis ex caelis (pedra caída do céu). É uma
possibilidade coerente, por remeter à origem celeste do Graal; 2.") Lápis exilii (pedra do exílio), visto terem sido
seus primeiros guardiães aqueles anjos desterrados por Deus para este mundo, em virtude de terem permanecido
neutros ao eclodir a revolta de Lúcifer. NT
358
virtudes miraculosas permitem que a fênix149, seja reduzida a cinzas e delas renasça
para uma nova vida. É o período de muda da fênix. Depois de produzir tal fenômeno
pedra a morte não poderá prevalecer sobre ele nas semanas seguintes. Tampouco
irá envelhecer, porque conservará a aparência que tinha ao tempo em que avistou a
pedra, Quando pessoas na força da idade - quer se trate de mulher jovem ou varão -
encanecerão. A pedra tem o dom de lhes instilar um vigor capaz de lhes conservar o
viço da juventude, A pedra é chamada também "o Graal". Hoje é o dia assinalado
Sexta-feira Santa, dia em que pode ser visto uma pomba descendo dos céus para
depositado ali a alvíssima pomba regressa ao empíreo celeste. Como já disse! toda
a Sexta-feira Santa ela deposita sobre a pedra essa oferenda que lhe infunde o dom
da mesma forma que carne de tudo o que sob o céu voa, corre ou nada. Assim, a
força do Graal prove de alimentos essa fraternidade cavaleirosa. Ouvi agora como
da pedra aparece uma misteriosa inscrição. Esta contém o nome e a estirpe das
Não é necessário remover a inscrição, pois tão logo tenha sido lida desaparece
149
Fênix. Figura de uma lenda egípcia, que seria uma ave que a cada 500 anos se consome em chamas e
renasce das próprias cinzas para uma nova vida.
359
"Quem hoje vive como pessoa adulta junto ao Graal foi convocado ao seu
serviço quando ainda adolescente. Toda a mãe se sente sobremodo feliz quando um
filho seu é convocado para o Graal. Pobres e ricos sentem-se lisonjeados quando
convidados para enviar seus filhos para integrarem a comunidade do Graal. Seus
durante toda a vida, livres de toda a mancha e pecado. Mais tarde isso resultará
para eles em recompensas no céu. Ali, após a morte, verão realizados seus mais
caros desejos. Aqueles nobres e eminentes anjos que na luta entre Lúcifer e a
a permanecer na Terra a fim de ali manterem sob sua guarda a pura e imaculada
senso de justiça, é de supor que os tenha readmitido no Seu reino. Desde então a
pedra ficou sob a custódia daqueles homens convocados por Deus para essa
missão e aos quais enviou Seu anjo. Senhor, é nisso que se resumem os fatos
concernentes ao Graal."
lança, pode alcançar tanto as glórias deste mundo quanto a eterna bem-
aventurança, então posso dizer que sempre fiz o humanamente possível. Nunca me
esquivei de combates e com mão de ferro tratei de adquirir fama. Caso Deus
entenda alguma coisa da arte militar deveria convocar-me para os serviços do Graal
a fim de que ali pudessem saber quem eu sou. Asseguro-vos que minha mão jamais
arrefeceu na luta!"
360
juvenil não será fácil mostrar-vos contido e modesto. Mas o orgulho sempre precede
a queda!" Nessa altura titubeou, refletindo sobre a melhor maneira de expressar seu
devia inspirar piedade a vós e a mim, pobres pecadores. Sua juventude, riqueza e
modéstia pode mais que a soberba. Junto ao Graal vive uma seleta fraternidade cujo
alto padrão, provado em muitas lutas, tem mantido até esta parte os incursores à
distância. Foi dessa forma que se preservaram até hoje os mistérios do Graal. Deles
retirando dali carregado de pecados. Ele nem sequei se deu ao trabalho de indagar
do anfitrião a causa de suas penas a despeito de vê-lo sofrer tanto. Não pretendo
censurar ninguém mas considero o fato de não ter procurado se informar acerca da
triste sorte do anfitrião um pecado que terá de expiar, posto que jamais a alguém foi
dado assistir a tamanho sofrimento. Antes dele o Rei Lahelin conseguiu penetrar até
bater com ele. Esse duelo resultou na morte de Lybbeals e Lahelli se apoderou da
Lahelin? O animal que encontra nas minhas baias apresenta todas as características
361
de Munsalvaesche, pois exibe na sela a efígie de uma pomba. Esse símbolo
heráldico Anfortas outorgou à comunidade do Graal num tempo em que ainda vivia
feliz e sem preocupações. Sua presença no campo dos escudos é bem antiga.
Titurel, o legou ao seu filho, o Rei Frimurtel. E foi ostentando tal símbolo no escudo
que esse herói perdeu a vida em duelo. Ele amou a esposa tão intensamente como
homem algum jamais amou sua mulher além de lhe devotar uma lealdade imutável.
Tomai-o como exemplo e amai vossa mulher de todo o coração. Ele ademais poderá
vos servir de exemplo, já que sois tão parecidos. Foi ele que antes do atual
soberano reinou sobre o Graal. Ah, donde vindes, afina! Dizei-me, por favor, qual é
vossa estirpe!"
vida numa justa. Senhor, lembrai-vos dele bondosamente em vossas orações. Meu
pai se chamava Gahmuret e de raça era angevino. Não sou Lahelin, senhor, embora
também eu tenha pilhado um morto num tempo em que era ainda um pobre tolo.
Sim, sou responsável por isso e confesso esse pecado. Minha mão assassina tirou a
"Ai de ti, ó mundo! Esta é tua lógica", exclamou o anfitrião abalado com o
que acabara de ouvir. "Tu ofereces aos homens mais motivos para se arrepender do
que para se rejubilar. É quinhão que ofereces. Eis a moral da história!" E prosseguiu:
"Amado filho de minha irmã, que conselho poderia dar-te em tal circunstância? Tu
mataste teu próprio parente! Se carregado com essa culpa comparecesses perante
o tribunal de Deus, tu só resgatarias com tua própria vida, pois ambos são do
362
vontade de Deus encarnava ele a essência da verdadeira distinção, que fazia com
que este mundo fosse mais puro. Para esse homem sumamente leal qualquer tipo
desse amável varão todas as damas deveriam odiar-te pois estava inteiramente
dedicado ao serviço delas e seu garbo lhes enchia os olhos. Que Deus se apiade de
ti por teres causado tamanha aflição! Até mesmo a vida de tua mãe Herzeloyde,
soberano do Graal jamais me conformaria com o que estais dizendo! Se de fato sou
seja! Foi a afeição materna que lhe causou a morte no te ver partir. Eras tu o animal
que lhe sugava os seios; eras tu o dragão que alçou vôo apartando-se dela. Ainda
premonitório. Além dela tenho ainda duas irmãs. Uma, Tschoysiane, faleceu ao dar
luz a uma filha. Seu marido era o Duque Kyot da Catalunha que com a morte da
esposa perdeu toda a alegria de viver. Sua filhinha Sigune ficou aos cuidados de tua
coração de mulher e era qual arca a flutuar num mar de licenciosidade. Minha outra
exemplar. Ela se chama Repanse de Schoye e é guardiã do Graal. Seu peso é de tal
ordem que a força de toda a Humanidade pecadora reunida não seria capaz de
363
movê-lo do lugar. Foi Anfortas, nosso irmão, que a seguir ascendeu ao trono do
Graal. Infelizmente vive sem alegrias e a única esperança que lhe resta é alcançar a
coração bem formado irás compadecer-te do sofrimento por que ele vem passando.
Depois da morte de Frimurtel seu filho mais velho foi investido no cargo de rei e
protetor do Graal e de sua comunidade. Esse homem era meu irmão Anfortas. Ele
era perfeitamente digno de assumir o poder e cingir a coroa. Ademais, nós, seus
irmãos, éramos todos menores de idade. Ocorre que meu irmão se encontrava
naquela faixa etária em que costumam aparecer os primeiros fios de barba. Nesses
se um soberano do Graal cortejar outra mulher que não a que lhe foi predestinada e
cujo nome aparece inscrito no Graal, então deve estar preparado para enfrentar
vicissitudes e sofrimentos. Meu soberano e irmão escolheu, pois uma amante que
supunha ser de bons costumes. Quem era, não vem ao caso, A serviço dela
perpetrou muitas façanhas e partiu muitos escudos, O nobre jovem alcançou notável
como grito de guerra "Amor", embora um tal lema não perfilhasse necessariamente
sucedida, Naquela oportunidade teu querido tio foi ferido num combate singular por
uma lança envenenada, nos órgãos genitais e desde então nunca mais teve saúde.
Seu adversário era um pagão natural Ethnise, localidade situada no ponto em que o
364
rio Tigre sai do Paraíso. Esse pagão estava convicto de que poderia conquistar o
Graal à força. Seu nome se achava insculpido na haste de sul lança. Atraído pela
lenda da força miraculosa do Graal cruzou terras e mares a fim de tentar sua fortuna
como cavaleiro andante, Sua lançada destruiu nossa felicidade. Teu tio saiu
corpo. Quando o bravo jovem regressou junto aos seus, lamentou-se o sucedido em
altas vozes. O pagão ficou estendido, imóvel, no local e nós não tínhamos motivos
para lamentar sua morte. Quando o rei regressou, muito pálido e enfraquecido, um
médico examinou a ferida e nela descobriu a ponta de lança. Havia ali, ademais, um
compromisso de renunciar à minha carreira de cavaleiro a fim de que Ele para Sua
A partir daquele momento nunca mais tocaria nisso. Devo dizer-te, querido sobrinho,
que o fato de ter posto de lado minha espada foi motivo de novas queixas por parte
diante do Graal, a fim de que Deus através dele o socorresse. Mas a visão do Graal
apenas aumentava seus tormentos e agora, mais do que nunca, era preciso que
permanecesse vivo. Ele não podia morrer, pois tendo eu abraçado uma vida de
nas suas forças combalidas. A ferida do rei segregava grande quantidade de pus e
365
medicamentos habitualmente utilizados contra mordedura de traiçoeiras e
todos os esforços revelaram-se inúteis porque Deus não quis que ele se curasse! Na
Tigris, próximos ao local em que esses cursos de água transpõem a orla do Paraíso
Esperávamos encontrar ali ervas com virtudes curativas. Foi um esforço Inútil que
muitos outros meios. Foi então que conseguimos colher o mesmo ramo157 que a
inferno. Após longa e fatigante busca localizamos finalmente o ramo benfazejo, pois
suspeitávamos que a tétrica lança que pusera fim à nossa felicidade tivesse sido
envenenada e endurecida nas forjas infernais. Mas isso felizmente não acontecera.
Existe, ademais, uma ave chamada pelicano158. Quando sua ninhada se liberta da
casca ele a cumula de carinhos tão exagerados que, movido por carinhosa
dedicação, rompe a bicadas o próprio peito, deixando escorrer o sangue no bico dos
150
Áspide. Gênero de ofídio venenoso.
151
Ecidemon. Animal fabuloso, aqui evidentemente tomado como serpente
152
Echontius. Um gênero de serpente, segundo a lenda.
153
Lisis. Trata-se aqui, possivelmente, de uma corruptela do fabuloso basilisco, geralmente imaginado
como serpente alada cujo olhar teria efeito mortífero.
154
Jecis. Um gênero de serpente, segundo a lenda.
155
Meatris. Um gênero de serpente, segundo a lenda.
156
Geon, Fison (algumas versões bíblicas registram Pison), Eufrates e Tigre são os quatro rios do
Éden mencionados no Gênesis (2, 10-14).
157
Ramo. Referência ao episódio da Eneida (VI, 136), de Virgílio, em que Enéias recebe da Sibila um
ramo de ouro de virtudes mágicas, que o protegeria na sua descida aos Infernos.
158
Pelicano. A crença popular, reforçada pelos escritos de Santo Isidoro, doutor da Igreja e arcebispo de
Sevilha (560-636), fez do pelicano símbolo do altruísmo e mais especialmente do Cristo que se sacrificou por
amor aos homens.
366
tivesse o dom da cura obtivemos esse sangue e pincelamo-lo sobre a ferida da
melhor maneira que sabíamos. Mas também isso se revelou inútil. Existe além disso
sobre a ferida e a seguir introduzimo-lo nela. Mas a ferida não mudou seu mau
Depois tratamos de localizar uma raiz chamada bistorta160. Dela se afirma que teria
lua que intensificavam as dores da ferida. Mas a despeito de sua nobre e sublime
origem a raiz não nos deu o socorro esperado. Finalmente, em atitude de súplica,
caímos de joelhos diante do Graal. Foi então que apareceu na borda do Graal a
triste sina do rei, todas as tribulações terminariam. Mas ninguém poderia adverti-lo
ferida não apenas se mantinha inalterado do como provocava dores ainda mais
explicação feita à ocultas resultará em dano. Caso ele não faça a pergunta logo na
159
Unicórnio. Esse animal fabuloso com aspecto de cavalo, barba de bode, casco fendido e um único
chifre reto no centro da testa era visto como símbolo da pureza e remédio contra mordeduras pela crença
popular da Idade Média. O salmo 22,21 do Antigo Testamento é possivelmente a mais antiga referência ao
Unicórnio. No belíssimo soneto "Das Einhorn" (O Unicórnio), Rainer Maria Rilke (1875-1926) confere
dimensões artísticas a essa antiqüíssima lenda. N T
160
Bistorta. Trata-se, segundo a lenda, de uma planta com virtudes curativas, cuja raiz é duas vezes
retorcida sobre si mesma, donde o nome. Sua conformação retorcida, acrescida da misteriosa vinculação aos
astros, alude à constelação boreal do dragão (a oeste de Cefeu e o Cisne, a leste da Ursa Maior, ao norte de
Hércules e ao sul da Ursa Menor) de cujo sangue a bistorta teria nascido.
367
primeira noite a pergunta perderá sua eficácia. Mas se puser a questão na hora
"O que lemos no Graal significava que uma pergunta compassiva poderia
pôr fim às tribulações de Anfortas. Enquanto isso tratávamos a ferida com linimentos
dores o tempo todo. Foi nesse meio tempo que eu me retirei a este lugar onde me
mencionado cavaleiro. Mas teria sido melhor se não tivesse aparecido por lá, pois
coisa?" Como sua estupidez fê-lo postergar a pergunta, deixou escapar a grande
aproximando o meio-dia e o anfitrião observou: "É preciso achar algo para comer.
Teu cavalo ainda está de jejum e para nós mesmos nada tenho para oferecer, salvo
se Deus vier obsequiar-nos com alguma coisa. Na minha cozinha o fogo arde raras
vezes. Por hoje, e enquanto aqui permaneceres, terás de contentar-te com isso. Se
não tivesse nevado eu te teria iniciado hoje na ciência da Botânica. Deus queira que
a neve derreta logo. Colhamos, pois os tenros brotos de teixo! Presumo que teu
161
Nardo. Planta originária da Ásia, cujo rizoma aromático foi muito empregado pelos antigos no preparo
de loções e ungüentos.
162
Teriaga. Medicamento de composição complicada que os antigos empregavam contra a mordedura de
qualquer animal venenoso.
163
Aloés. Planta aromática e medicinal.
368
cavalo esteja habituado a receber em Munsalvaesche forragem melhor e mais farta
obsequiar se tivesse como gostaria os meios para tal!" Dito isso saíram à cata de
alimentos. Parsifal tratou de reunir forragem para seu cavalo enquanto o anfitrião se
não afrouxava o regime disciplinar164 que se impusera e não ingeria uma única raiz
dias em que, em homenagem a Deus, regressava sem comer coisa alguma e isso
alimentos.
terem que se deslocar até a fonte murmurante onde lavariam as ervas e raízes.
Raras vezes o sorriso lhes aflorava nos lábios. Finalmente lavaram as mãos. Depois
regressaram ao chão forrado de palha junto ao braseiro. Teria sido Inútil procurar
outros alimentos, pois ali não se cozinhava nem assava coisa alguma e a cozinha
ademais de grande afeição pelo anfitrião, pelo que se sentia ali mais bem servido
em que fora hóspede do Graal em Munsalvaesche. O dono da casa lhe disse sábia
e amistosamente: "Sobrinho, não subestimes esta comida, pois não encontrarás tão
164
Regime disciplinar. Trevrizent observava a regra que regia as atividades diárias das ordens monásticas
medievais.
165
Nona. Uma das horas em que os romanos dividiam o dia e que era correspondente às três horas da
tarde. Os medievais seguiam a hora romana.
369
cedo um anfitrião que prazerosamente gostaria de obsequiar-te com os melhores
pratos." Parsifal respondeu: "Senhor, que Deus me castigue se alguma vez a comida
de outro anfitrião me tenha apetecido mais que esta." O fato de não lavarem as
mãos depois de se haverem servido não poderia constituir motivo para reparos; tal
Uma vez mais a velha tendência de me divertir às custas dos outros tomou conta de
mim! Afinal acabastes de ouvir por que não possuíam bens, por que viviam sem
suas penas com resignação exemplar e receberiam ao termo das mãos do Altíssimo
querido tio meu, devo confessar-vos meu Infortúnio que por acanhamento vos
ocultei. Em nome de vossa elevada educação, sede tolerante comigo, pois o faço
confiante em vosso apoio. Meu delito é tão grave que mesmo se o julgardes com
minhas penas. Espero de vós leal conselho e compreensão para com minha falta de
experiência. Aquele infeliz que esteve em Munsalvaesche, que viu todo o quadro de
370
infelicidades - que falava por si mesmo - e que a despeito disso não formulou
efeito, sobejas razões para lamentos e tristezas. Não fizeste uso da razão e
aquinhoou falharam. Por que não suscitaram tua solidariedade à vista da ferida de
Anfortas? A despeito disso não quero recusar-te meu conselho. É preciso que não te
suficientemente tolos para turvarem a pureza de seus atos. Com isso conspurcam
nobreza de suas intenções iniciais. Fenece então a virtude recém desabrochada que
na idade madura devia vingar, deitar raízes assegurar ao homem o respeito dos
novo ânimo a fim de que possas firmar teu conceito e voltar a confiar em Deus,
então alcançarás teus elevados objetivos e reconquistaras o que perdeste. Deus não
te abandonou. Ele te aconselhou por meu intermédio. Acaso viste a lança no castelo
de Munsalvaesche? Pelo estado da ferida e também pela neve que cai em pleno
verão percebe-se que Saturno atingiu seu ponto máximo. Naquela oportunidade teu
querido tio foi particularmente atormentado por um frio que o enregelou por dentro.
Foi preciso introduzir a ponta da lança na ferida a fim de que uma dor amortecesse a
outra. Isso explica por que a ponta da lança esteve manchada de sangue. Quando
certas estrelas, que em trajetória irregular se movimentam muito acima dos outros
manifesta através de clamor patético. Nas mudanças de lua o estado geral da ferida
371
também se agrava consideravelmente. Nas ocasiões a que me referi o rei não
se torna mais gélido que a neve. Coloca-se então sobre a ferida o ferro da lança
metal não demora em se cobrir com uma camada de gelo, semelhante à cor do vidro
claro, que só pode ser removida com duas facas de prata forjadas pelo habilidoso
graças à fórmula mágica que vira insculpida na espada do rei. Do asbesto se afirma
"O rei não pode montar, andar, deitar-se e tampouco ficar em pé. Mal
que o ar puro do lago dissipe o mau cheiro que a ferida exala. A isso ele chama seu
dia de pesca. No castelo ele necessita, na realidade, de algo mais do que aquilo que
ali consegue apanhar em meio às dores que o atormentam. Foi daí que resultou sua
fama de pescador, com a qual teve de se conformar, embora esse homem triste e
ancorada no lago e o tomei por um pescador de verdade, ou por um homem que ali
embora houvesse deixado Pelrapeire quando a manhã ia alta. Ao cair da tarde saí à
372
procura de um local de pousada. Nesse sentido as indicações do meu tio muito me
ajudaram."
dono da casa. "Ele passa por muitos postos de sentinela guarnecidos por pugilos de
sentinelas do Graal, arrisca a vida. Ali não se dá quartel. É uma luta de vida ou de
rei, sem ser molestado", esclareceu Parsifal. "À noite seu palácio se encheu de
a irrupção de um frio intenso. Inútil teria sido colocar apenas o ferro da lança sobre a
ferida como se fazia costumeiramente; foi preciso introduzi-lo nela. Na sua ferida o
373
lamentava em altas vozes ao constatar a necessidade de se aliviar o frio que corroia
o rei por dentro com métodos tão cruéis. A dor dominou a todos, pois cada um se
sentiu atingido pela ponta da lança e privado de toda a alegria. A sincera compaixão
consternação. Deus vem guardando rancor por tempo demasiado! Em tal situação é
um lado ela recruta adolescentes de nobre estirpe e boa aparência, por outro, se
num país a dinastia reinante se extingue e o povo sem amo, vendo nisso a mão de
A ele todos deverão prestar obediência, pois é o ungido do Senhor. Deus dispôs que
formalmente. Tua mãe foi-lhe dada por esposa embora jamais houvesse desfrutado
de seu amor, pois faleceu logo depois. Antes, porém, enfeudara tua mãe nos reinos
374
de Valois e Norgals juntamente com as cidades de Kanvoleis e Kingrivals. Sofrendo
de mal incurável o rei morreu na viagem de regresso ao seu reino. Herzeloyde era,
pois, soberana legítima de dois reinos quando Gahmuret obteve sua mão. Para
profano e as jovens de forma ostensiva a fim de que seus descendentes possam por
sua vez ser recrutados para o serviço do Graal. Esses filhos deverão expandir o
Deus. Mas no momento em que alguém se dispõe a servir ao Graal deve igualmente
renunciar ao amor da mulher. Unicamente ao rei e aos cavaleiros enviados por Deus
como soberanos aos reinos de dinastia extinta permitido o casamento com uma
mulher de reputação ilibada. Eu próprio transgredi essa norma e servi a uma mulher
visando obter seu amor. Impelido pela motivação psicomotora tão própria da
enfrentei a seu serviço muitos árduos combatentes. Essa vida solta de aventuras me
atraía tanto que só raramente participava de torneios regulares. O amor que lhe
166
Gaurion. O texto parece sugerir que se trata de uma montanha.
167
Feimurgan. Cf. Nota n.° 28.
375
monte Agremuntin168. Ali uma criatura envolta em chamas vinha sendo combatida
por homens imunes ao fogo e que não se queimavam, donde quer que viesse o
ao mar partindo de Sevilha e atingi Aquiléia através de Cilli e Friuli. Ai de mim, por
ter ali encontrado teu pai! Isso ocorreu quando de minha chegada a Sevilha, onde o
ter partido para Bagdá, onde encontrou a morte na batalha. Tu já fizeste ilusão a
isso e devo dizer-te que sua perda marcou-me profundamente. Meu irmão, que é
que o Plimizoel deságua num lago. Bastava mostrar esse sinete e o burgrave ia-me
pelejas e andanças arriscadas. Ele cuidou para que nada me faltasse. Ali, na
"Agora, querido sobrinho meu, ouve mais este lance. Quando em Sevilha
teu nobre pai me avistou, foi logo dizendo que eu era o irmão de sua esposa
Herzeloyde e isso sem ter jamais me visto antes. Ao tempo eu era na verdade um
solenemente que estava enganado. Mas como não se deixasse dissuadir acabei
168
Agremuntin. Trata-se, possivelmente, de Agrimonte, montanha situada a leste de Salerno na Itália
Meridional.
169
Rohas. Montanha na Estíria (província austríaca).
170
Sorábios. O autor utilizou a palavra "Windisch", designação alemã dos sorábios, minoria eslava que
habitava e ainda habita o curso superior do Spree, rio que banha Berlim. N T
376
admitindo entre quatro olhos e para sua grande alegria que ele tinha razão. Ele me
aquinhoou com suas jóias e eu lhe ofereci aquilo que mais lhe pudesse agradar. O
escrínio que tiveste oportunidade de ver foi esculpido da pedra preciosa com que o
irreprochável varão me presenteara. O verde de sua cor ó ainda mais profundo que
o da alfaia. Teu pai confiou além disso, aos meus cuidados, seu sobrinho Ither, Rei
separação não mais podia ser protelada. Ele regressou à corte do Baruc e eu parti
para Rohas. Quando ali cheguei, viní de Cilli, empenhei-me durante três segundas-
feiras em números combates, nos quais acredito ter feito boa figura. Logo depois
parti para Gandin, a grande cidade cujo nome foi dado ao teu avô. A cidade está
situada próximo ao local em que o riacho Grajena171 conflui com as águas auríferas
do rio Drau. Ither era muito conhecido na cidade, pois ali vivia sua amada, tua prima,
que era a soberana do país. Gandin de Anjou a investira no cargo de regente. Seu
nome é Lammire e o do país Estíria. Olha, quem pretende levar vida de cavaleiro se
desprezaste esse vínculo consangüíneo. Deus não Se esqueceu desse teu crime e
talvez ainda ajuste contas contigo. Se quiseres reconquistar Sua boa vontade é
mister que expies tuas culpas fazendo penitência. Pesa-me dizer-te que cometeste
dois pecados graves. Além de seres responsável pela morte de Ither cabe-te chorar
a morte de tua mãe. O amor que tinha por ti era tão verdadeiro que ela morreu logo
171
Grajena. Riacho que próximo a Pettau (a atual Ptuj) conflui com o rio Drau, cujas areias auríferas
eram exploradas durante a Idade Média.
377
após a tua partida. Segue meu conselho e faze penitência por teus crimes!
Preocupa-te com teu destino, orientando teus esforços de sorte que tudo que fizeres
perguntas: "Sobrinho, tu ainda não me explicaste forma pela qual este cavalo veio
Sigune, com a qual conversara em sua ermida. Logo depois, em rápido ataque
ao meu lado."
por isso deveria antes examinar atentamente a questão. Além do mais, perdi no
378
O anfitrião respondeu: "Meu sobrinho, trata-se de tua tia. Ela não te cedeu
o manto para que te jactasses disso, mas porque chegou a acreditar que te
tio deu-te, ademais, uma espada e tu caíste em pecado quando tua boca, sempre
tão pronta para falar nem mesmo assim se abriu para fazer a pergunta. Mas
condizente com sua nobre origem tiveram que resignar-se com o chão forrado de
palha. Parsifal passou ali quinze dias, durante os quais o anfitrião pôde oferecer-lhe
apenas ervas e raízes. Mas as palavras encorajadoras do anfitrião fizeram com que
Certo dia Parsifal perguntou: "Quem era o homem que jazia num leito
perto do Graal? Seu cabelo na verdade já era grisalho, mas seu semblante
de tua mãe. Foi ele o primeiro a receber a bandeira do Graal, juntamente com a
contudo o viço do rosto porque sempre está face a face com o Graal. Graças a isso
ainda não morreu. Eles mantêm vivo esse ancião preso ao leito porque não podem
cavaleiro andante."
172
Podagra. Gota nos pés.
379
"Se quiseres enriquecer tua vida e torná-la verdadeiramente digna trata
sempre com muita consideração as damas e os sacerdotes que, como sabes, são
inermes. Os sacerdotes foram abençoados por Deus. Por isso, ao lhes demonstrar
devotamento e lealdade terás assegurado uma morte tranqüila e feliz. Deves sempre
tratá-los com muita simpatia, pois não há no mundo quem possa ombrear-se com
um sacerdote. É sua boca que anuncia o martírio que expiou nossos pecados. E são
igualmente seus dedos abençoados que sustem o supremo penhor oferecido para
divino, então não pode haver vida mais santa que a dele."
Deus teu fiador pelo cumprimento da penitência que te foi imposta. Segue todos os
se assim vos aprouver deixo-vos livres para imaginar como isso ocorreu.
380
LIVRO X
Plimizoel ao Landgrave Kingrimursel pôde ser contornado. Ele não deveria se travar
impune. Seu filho Vergulacht na verdade ali compareceria a fim de se medir com
parentes e essa descoberta foi motivo mais que suficiente para que a contenda
atribuir a Galvão cabia ao Conde Ehcunat. Por isso Kingrimursel se reconciliou com
simultaneamente com o objetivo de cada qual por sua conta e risco descobrir o local
em que se encontrava o Graal. De permeio teriam que pelejar muito, pois quem
381
conquistar o almejado prêmio com a espada na mão. Esse o caminho adequado que
conduz ao objetivo.
Schanfanzun? Se ele teve que pelejar muito pelo caminho, é uma questão que deixo
escudo perfurado por lança, bem como uma montaria ajaezada com magnífico selim
escudo. Disse então, de si para si: "Quem será essa dama guerreira armada de
escudo? Se ela resolver atacar-me como poderei livrar-me dela? Num combate a pé
distinguiu nas lutas diante de Laurente? Se ainda estivesse viva e lesta como
173
Camila. Personagem feminina que na “Eneida”, de Heinrich von Veldecke, se destaca na Guerra de
Tróia, onde morre em combate. Seu corpo foi trasladado para Laurente, onde foi exumado.
382
Atrás do grosso tronco de tília, sobre a verde alfafa estava sentada uma
mulher mergulhada em profunda tristeza. Uma grande desgraça lhe roubara todo o
gosto pela vida. Ao aproximar-se viu um cavaleiro pousado em seu regaço e que era
Galvão desmontou. Diante dela jazia um homem que fora transpassado por uma
ainda vive mas receio que não seja por muito tempo. Foi Deus que vos enviou para
acudir-me nesta emergência. Dai-me, pois vosso leal conselho. Vós, muito mais que
eu, assististes a situações difíceis. Gostaria por isso de contar com vossa ajuda e
solidariedade."
Ouviríeis então outra vez sua voz e tê-lo-íeis de volta são e salvo, pois seu ferimento
deparou com Galvão debruçado sobre ele, agradeceu-lhe muito e assegurou-lhe ter
383
"Também eu parti de Punturtoys à cata de aventuras. Agora me arrependo
local em que estamos." Insistentemente pediu a Galvão que ali permanecesse mas
este quis examinar o local onde o cavaleiro fora ferido. "Se Logroys estiver situada
não muito longe daqui e se puder alcançar teu desafeto então terá de ajustar
contas comigo. Ele terá de me explicar o motivo que o levou a se vingar de ti."
sobre ela uma simpatia e recomendou o homem e a mulher aos cuidados de Deus.
algum cervo ferido. Isso evitou que enveredasse por pistas falsas e fez com que não
384
2. O ENCONTRO COM ORGELUSE
si mesma. Mesmo hoje o castelo desfruta da fama de ser inconquistável, pois não
tem por que temer intrusões em qualquer de seus flancos. Em torno das encostas da
montanha acima quando a meio caminho avistou aquela que seria a felicidade e o
tormento de sua vida. Junto à nascente que brotava do rochedo avistou uma
mundo mulher tão bela. Ela era um encanto de pessoa, bem proporcionada de
afirma que seria uma isca convidando à luxúria, uma festa para os olhos, uma
me fosse dada a certeza de que minha presença vos apraz, então proporcionar-me-
íeis alegria genuína e eu me sentiria o mais feliz dos cavaleiros. Juro-vos por minha
385
"Ora, isso eu mesma sei muito bem", disse ela com desdém, enquanto o
exalteis em demasia, pois isso poderá custar-vos caro. Aqui não é qualquer um que
pode manifestar sua opinião a meu respeito. Se todos - o sábio, o tolo, o homem de
prestígio, dada a origem do elogio. Prefiro ser elogiada por quem sabe onde tem a
cabeça. Portanto já é tempo de vos abalardes daqui. Antes, porém dar-vos-ei minha
opinião: vós permaneceis do lado de fora e não de dentro do meu coração. Afinal em
troca de quê exigis de mim amor? Explicai-me o que vos levou a semelhante
pretensão. Há pessoas que espraiam seus olhos para mais longe que pedra
arrojada por uma funda. Conviria apartar vossos olhos daquilo que poderá ferir-vos
no coração. Cuidai para que vossa mórbida paixão se fixe em outra pessoa que não
em mim. Pretendeis servir para obter amor. Se a aventura vos enviou com objetivo
esperar de mim. Posso assegurar-vos que aqui tereis como única recompensa a
desonra."
Ele, porém replicou: "Senhora, tendes razão! Meus olhos puseram meu
pretendeis alcançar o objetivo no qual desejais vos engajar por amor a mim então
386
tereis motivos de sobra para vos lamentar. Pagaria para ver se sois homem capaz
de se expor por amor a mim às vicissitudes da luta. Se prezais vossa honra desisti
desse propósito. E se pudesse vos dar um conselho vos concitaria a buscar amor
merecê-lo? Tenho por evidente esta verdade: quem o obtém dessa forma tão ligeira
contrai um séria dívida moral. Mas quem aspira às formas mais elevadas do amor se
Ela advertiu: "Se vos colocais a meu serviço escolheis uma vida cheia de
peripécias e tereis como prêmio a ignomínia. No meu serviço poltrões não têm vez.
Enveredai, pois por este caminho - não é um trajeto que pode ser percorrido a
cavalo - e tratai de minha montaria que se encontra num pomar além desse atalho.
tocando flauta e tamborim. Ainda que vos rodeiem em atitude amistosa, abri
caminho na multidão até o local em que se encontra meu cavalo e desamarrai-o. Ele
vos seguirá."
Gaivão desmontou, sem saber onde deixar o cavalo até sua volta. Junto à
fonte não havia qualquer coisa a que pudesse amarrá-Io. Para ele a questão se
resumia em saber se era ou não de bom tom pedir à dama que o segurasse pelas
387
"Já percebi o motivo de vosso constrangimento", observou ela. "Deixai o
animal comigo. Vou segurá-lo até que regresseis. Mas esse favor vos trará escasso
benefício."
firme, senhora!"
o varão apaixonado.
através de uma porta. Ali deparou com muitas damas formosas e grande número de
da maneira que convém a um cavaleiro a alegria cedeu lugar à tristeza, pois esses
zeladores do pomar eram gente proba e leal. Quem ali se encontrava em pé, deitado
sua falsidade, pretende pôr esse cavaleiro em grandes apuros. Ai dele se lhe der
388
ao seu encontro abraçando-o cordialmente. Galvão, porém abriu caminho em
direção a uma oliveira onde se encontrava o cavalo, cujos arreios eram sobremodo
um bom conselho eu vos sugeriria que deixásseis o cavalo aqui. Ninguém vos
impedirá de levá-lo convosco, mas mais bem avisado andaríeis se o deixásseis onde
está. Maldita seja minha ama, que envia à morte tantos bravos cavaleiros!"
Quando Galvão lhe fez ver que não se deixaria persuadir o cavaleiro
grisalho exclamou: "Ai dos acontecimentos que estão por vir!" Depois de Galvão
haver desamarrado o cabresto, prosseguiu: "Agora não podeis permanecer aqui por
mais tempo. Deixai, pois que o cavalo vos siga. Que o Senhor, cuja mão fez
salgadas as águas do mar, vos assista na hora do perigo! Acautelai-vos para que a
beleza de minha ama não vos exponha à vergonha. A despeito de seus encantos, é
longo da vereda até o local onde a senhora de seu coração e soberana do país o
389
A dama havia desprendido as fitas da touca sob o queixo e as atara sobre
a cabeça. Uma mulher que age assim parece estar disposta a gracejos e
escaramuças. Que tal a roupa que usava? Ainda que quisesse não saberia
descrevê-la, pois estou ofuscado pela visão de sua radiante beleza. Ao aproximar-se
da dama Galvão ouviu de sua boca mimosa estas palavras: "Sede bem-vindo, ó
idiota! Se ficardes a meu serviço sereis o maior tolo deste mundo. Ah, desisti desse
propósito!"
considerando que depois dessa explosão de ira desagravar-me seria um gesto que
só vos honraria. Eu vos servirei até que vós mesma reconheçais ser preciso
Ela, porém o repeliu, dizendo: "Nada vos pedi! Vossa mão que ainda nada
realizou deveria estender-se para uma prenda mais modesta." Dito isso ergueu-se
nossa reprovação e para tanto seria necessário saber o que lhe ia na alma. Eu
poderia declará-la culpada, sem mais nem menos. Mas não. O que fez e fará a
390
A dominadora Orgeluse cavalgava em atitude tão hostil e inabordável em
direção a Galvão que a essa altura estou com poucas esperanças de que ela queira
ouvir-me. Juntos vinham eles atravessando um prado florido quando Galvão avistou
uma planta cujas raízes sabia terem virtudes curativas. O fidalgo apeou,
perdeu a oportunidade de lhe observar: "Pelo que vejo meu companheiro de viagem
além de cavaleiro é médico. É, quando se vendem caixas para remédios não há por
está descansando sob a ramada de uma tília. Caso venha a reencontrá-lo esta raiz
de curar."
3. A INSOLÊNCIA DE MALCREATURE
391
irmã. Tirante o fato de ser varão era um sósia perfeito da irmã. Também ele tinha os
caninos salientes como os de um javali selvagem, o que lhe dava um aspecto não
muito humano. Na verdade seus cabelos não eram tão compridos como os de
Cundrie, que se prolongavam até as costas da mula. Eram antes curtos e eriçados
existiam criaturas desse tipo. Adão, nosso ancestral comum, recebera de Deus a
faculdade de dar nome a todas as coisas e criaturas, quer bravias, quer mansas.
dos astros e a força de gravidade dos sete planetas. Conhecia, ademais as virtudes
de todas as plantas e sua utilização em cada caso particular. Quando suas filhas
atingiam a idade que as tornava aptas a conceber, ele as advertia contra os perigos
que Deus nos conferiu no momento em que nos criou". E prosseguia, dizendo:
"Sede, pois atentas, queridas filhas, a fim de não comprometerdes vossa felicidade!"
mercê do seu valor de cavaleiro, viviam, provadamente desde tempos muito antigos,
deformadas. Certa feita falou-se-lhe do Graal como sendo o bem supremo e cujo
guardião seria um certo rei chamado Anfortas. Isso lhe pareceu deveras estranho,
392
pois os leitos de muitos rios de seu reino eram recobertos de pedras preciosas ao
invés de cascalhos. Havia ali, além disso extensas serras auríferas. Por isso a nobre
rainha se pôs a conjeturar: "De que forma poderei obter informações sobre o homem
que reina sobre o Graal?" Enviou por isso ao rei desconhecido muitos trastes
Cundrie e de seu atraente irmão. Ofereceu ainda a Anfortas muitas outras coisas
que, dada a sua raridade, não podiam ser encontradas em parte alguma. O
forma tão diversa do restante dos homens. Foi esse rebento espúrio de ervas e
astros que se pôs a invectivar contra Galvão, que o aguardava à beira do caminho.
Malcreature vinha montado num débil matungo que manquejava das quatro pernas e
cavalo melhor, no dia em que Parsifal para ela reconquistara a estima de Orilus, que
havia perdido sem que da parte dele houvesse qualquer deslize. O escudeiro
Malcreature encarou Galvão e tomado de cólera dirigiu-se a ele aos gritos: "Se sois
efetivamente um cavaleiro, outro deveria ter sido vosso procedimento! Mas a mim
me pareceis simplório por levardes convosco minha ama assim, sem mais nem
menos. Por isso recebereis uma lição e dareis graças a Deus se conseguirdes
escapulir incólume desta enrascada. Mas se fordes apenas um peão então vosso
couro será castigado a porrete até que qualquer outra coisa vos pareça preferível!"
saltimbancos, que não tem como se defender. Eu, pessoalmente jamais passei por
393
semelhante experiência. Mas se pretenderdes insultar minha ama experimentareis o
que vos poderá parecer uma explosão de cólera. Por terrificante que seja vosso
aspecto, a mim não impressionam vossas ameaças." Ato contínuo agarrou-o pelos
perguntou: "Que houve contigo nesse meio tempo? Vejo-te acompanhado de uma
dama que o tempo todo de outra coisa não trata que não tramar tua ruína. A ela
cabe a culpa por me encontrar nesta situação. Em Av'estroit Mavoie174 fez com que
me envolvesse num combate arriscado, pondo em risco minha vida e meus bens. Se
tiveres amor à vida deixa que essa pérfida mulher siga só seu caminho. Aparta-te
dela! Olha para mim e constata do que ela é capaz! Para restabelecer-me
préstimos!"
174
Av’Estroit mavole (Cave estroite malvolée). Francês arcaico, que pode ser traduzido como “grota
estreita e sombria”.
394
4. AS INFÂMIAS DE URIANS
conseguisse chegar até lá poderia convalescer com tranqüilidade. Ali está a vigorosa
conduzi-lo ao local onde esta se encontrava o ferido gritou: "Não vos175 aproximeis!
passos. Foi então que a dama, obedecendo a um gesto do homem, seguiu-os sem
se dar muita pressa. Enquanto Galvão tratava de pô-la na sela o cavaleiro ferido
montou célere no castelhano de Galvão e partiu com sua dama a galope. Na minha
tornara um fato consumado sua boca mimosa voltou a falar-lhe em tom divertido:
"De início vos tomei como um cavaleiro, a seguir revelastes vossos dotes de médico
e agora, qual pajem, estais obrigado a seguir a pé. Se alguém tivesse que viver de
vossa arte então disporia de rendas polpudas. À vista disso vossa paixão por mim
175
Tu/vós. A fidelidade do texto original exigiu que se mantivesse aqui freqüentes mudanças de
tratamento de “tu” para “vós”, aparentemente inexplicáveis.
395
"Certamente, minha senhora", respondeu Galvão. "Considero vosso amor
como aspiração suprema. Se me fosse dado escolher entre todas as riquezas deste
preferindo vosso amor às riquezas. Se não puder conquistá-lo a morte não tardará
em levar-me. Vós aniquilais o que vos pertence. Embora tenha nascido livre, podeis
aprouver, cavaleiro, escudeiro, pajem ou vilão, mas não esqueçais que incorreis em
pecado ao cobrir de opróbrios meus serviços de cavaleiro. Já que me foi dado servir-
me, sabe que não te causei mal algum. Ao contrário. Persuadi o rei para que te
concedesse clemência. Tua própria insensatez foi a responsável pelo fato de teres
contra a paz pública violando uma jovem. O Rei Artur te teria enviado à forca se não
"Isso não modifica o fato de estares a pé! Tu por certo conheces o ditado:
Bondade não protege contra a inimizade. Fiz o que faria qualquer pessoa esperta,
396
pois não seria admissível que um homem de barba crescida choramingasse feito
criança. Doravante o cavalo é meu!" Dito isso esporeou o cavalo e partiu a galope,
fazer uma representação. Esse fato coincidiu com a presença, na região, daquele
monstro que ali se encontrava em busca de aventuras. Embora tanto ele quanto ela
deixou-se arrastar por seus maus instintos, violentando a dama. Quando a notícia
chegou à corte o rei nos convocou para uma expedição punitiva. Isso aconteceu
perante o rei. Muito abatida a jovem nos acompanhou, pois o malfeitor lhe arrebatara
a virgindade sem antes lhe haver prestado serviços. Mas o que fizera à moça
indignado. O fidelíssimo Artur exclamou: O mundo inteiro deve lamentar esse infame
delito! Maldito o dia em que isso aconteceu e justo no meu reino onde sou
voltando para a dama disse: 'Sede precavida! Pedi a palavra e levantai a queixa!"
397
voz alta para que todos - pobres e ricos - pudessem ouvir, apresentou ao rei a
Esperava que como juiz aceitasse sua representação e em atenção à sua causa
a se solidarizarem com ela já que a pureza virginal de que fora espoliada era um
bem para sempre perdido. Todos deveriam unir-se em favor de sua causa e instar
representante que o defendeu com denodo sem que esse empenho resultasse para
ademais que se fizesse um baraço no qual deveria morrer sem derramar o sangue.
rendera confiando sua integridade física à minha proteção. Temi que com a
execução dele minha honra ficasse comprometida. À vista disso pedi à queixosa que
temperasse sua ira com a bondade feminina, em virtude de ela própria ter sido
poderiam ser apontados como causa determinante desse gesto impulsivo. Se algum
dia alguém, a serviço de uma dama, num assomo de paixão tenha pedido e obtido
demonstrásseis magnanimidade!"
398
malfeitor. Apelei igualmente à sua esposa, a rainha. Lembrei-lhe nossos laços
consangüíneos e o fato de ter sido criado pelo rei desde tenra idade. Lembrei-lhe
jovem. Foi assim, por intervenção pessoal da rainha, que Urians escapou da forca
mas teria que cumprir humilhante pena. Para expiar suas culpas foi condenado a
fila. Foi desse modo que se deu à dama reparação pelo agravo sofrido. Eis, senhora,
Ela disse: "Essa vingança está fadada ao fracasso. Isso não quer dizer
que agora podereis contar com minha simpatia. Antes de transpor as fronteiras de
meu país terá o que merece e isso numa medida que o levará a retirar-se daqui
passou à minha alçada, passei a ser protetora vossa e daquela dama, sem ao
menos saber quem sois. Na verdade será ele compelido a entrar na liça não por
5. OS MOTEJOS DE ORGELUSE
Enquanto isso sua companheira deu ao escudeiro que os havia seguido uma série
399
de instruções em língua paga. Depois de Malcreature haver partido a pé Galvão iria
por demais combalido para enfrentar um combate. Nas suas andanças o escudeiro o
havia subtraído a um vilão. A Galvão não restou, pois, outra alternativa/ senão
Ela replicou: "Então certamente ireis esperar muito tempo até que vos
persistirdes nesse intento não tereis vida fácil, mas um mundo de problemas pela
resulte para mim em alegrias ou desencantos. O amor que vos tenho me determina
que persevere em vosso serviço, quer seja montado, quer a pé." Ao lado da dama
400
examinou atentamente a montaria. Era débil demais para ser engajada num
estivera mais bem equipado. Não se atreveu a montá-lo temendo que os arreios se
peso. À vista disso teve que desistir do intento e, contrariado, resignar-se a ele
situação. Quando finalmente resolveu amarrar o escudo nas costas da montaria ela
viagem não vos cobrem tributos. Meus fiscais de impostos talvez vos façam passar
fossem amabilidades, de sorte que não se deu conta do sentido das palavras.
Bastava contemplá-la para se sentir no melhor dos mundos. Ela lhe parecia como a
florida estação de maio, que lhe enchia os olhos mas lhe ensombreava o coração.
Disso resultou que na sua presença se sentisse a um tempo livre e cativo: livre de
401
6. EXCURSO DO POETA ACERCA DAS COISAS DO AMOR
Cupido e a mãe deles, Vênus, despertam nos humanos a paixão com flecha e fogo.
lealdade o amor jamais se aparta, mesmo quando não lhe traz apenas alegrias
como ainda alguns sofrimentos. Amor genuíno é lealdade autêntica. Teu raio, ó
Cupido, e tua flecha, ó senhor Amor, jamais me atingiram! Se vós dois e mais a
ralado de penas de amor eu ajudaria Galvão sem lhe cobrar coisa alguma, pois
simpatizo com ele. Não considero vergonhoso o fato de ele se achar tão
dispõe ele de reservas morais suficientes para não se deixar dominar nem sucumbir
desgraça terá então o caminho livre para expandir-se. Se o Amor não fizesse caso
dos corações orgulhosos, não teria prestígio algum. Ele parece estar acima daquela
idade em que nos comprazemos com os nossos próprios malfeitos. Ou pretende ele
402
experiência? Quanto a mim prefiro tolerar seus excessos na juventude a acreditar
que a idade lhe faça criar juízo. Muitas ele já aprontou! Devo atribuir isso aos
fosse melhor esclarecido acerca dessas coisas. Enalteço o amor autêntico e nisso
verdadeiro caso de amor. Por mais que queira poupar o senhor Galvão dessas
vicissitudes não poderá ele esquivar-se das leis do amor. De resto, que proveito lhe
vinha a pé e sua dama a cavalo. Orgeluse e o bravo varão atingiram a orla de uma
grande floresta. Galvão continuava seguindo a pé. Foi quando ele conduziu o cavalo
junto a um toco, pendurou ao pescoço o escudo, que até então estivera à garupa do
onde se deparava uma região habitada. Ali avistou um castelo. Seus olhos e sua
403
magnitude. Era verdadeiramente magnífico, com numerosas torres e palácios.
Observou ainda que nos vãos das janelas havia bem umas quatrocentas damas ou
A larga estrada carroçável por que ele e sua dama vinham seguindo
que era o local onde costumeiramente eram realizadas as justas. Na margem oposta
admitir que cumpro o que prometo, pois vos preveni seguidamente que aqui
sofreríeis humilhante derrota. Tratai pois de defender vossa pele, pois não há quem
vos possa socorrer. Aquele que célere se aproxima de vós abater-vos-á de forma
tão brutal que tereis sobejos motivos para entrar em pânico. Para vós será motivo de
derrota!"
404
A um chamado de Orgeluse o piloto encostou o barco e para o grande
nobilíssima dama ainda o repeliu aos gritos: "Não pisareis neste barco, pois ali
mentiria se dissesse que vinha voando. O certo é que vinha avançando tão
mereceria ser louvado. O senhor Galvão avaliou a situação: "Como poderei enfrentar
esse homem - a pé, ou montado neste matungo? Com o ímpeto com que vem
a pé, tê-lo-á, embora a essa altura já não mais possa contar com a presença
405
fossem atirados ao chão. O mais bem montado desequilibrou-se e caiu ao lado do
senhor Galvão sobre a relva florida. E qual foi a reação dos dois? Ergueram-se de
um salto e lançaram mão das espadas. Os escudos, que são a efetiva salvaguarda
dos combatentes, foram impiedosamente retalhados, e o que lhes ficou na mão era
pouco mais que nada. As espadas reluziam e os elmos falseavam. Aquele a quem
no fim das contas coubesse a vitória, com a ajuda de Deus, poderia julgar-se um
afortunado, pois o combate se prolongou renhido por muito tempo e com fortuna
vária sobre o amplo espaço da campina. Até mesmo dois robustos ferreiros teriam
aos poucos apresentado sinais de cansaço depois de desferir tantos e tão violentos
golpes. Ambos buscavam obstinadamente a vitória. Mas fariam eles jus a encômios
pelo simples fato de se digladiarem e modo tão insensato e sem motivo, visando
apenas a glória? Entre eles não havia qualquer litígio ou motivo especial para porem
suas vidas em jogo. Nenhum dos dois tinha culpa ou motivo que justificasse o
ataque do outro.
arma do adversário e agarrá-lo pelo braço, então este ficava à sua mercê. Como
lutava pela vida, tratou de se defender. O nobre e intrépido herói agarrou o bravo e
não menos vigoroso jovem pelos quadris e num rápido impulso o arremessou ao
à rendição. Até então havia sido ele quem obrigara o adversário a se declarar
vencido. A despeito disso não estava disposto a pagar o preço que tantas vezes
406
exigira dos outros. Preferia morrer a entregar-se. Acontecesse o que lhe
acontecesse, não se submeteria. Para ele a morte parecia o preço a pagar pela
derrota.
me bom êxito, fui vencedor. Agora tuas mãos viris derribaram o monumento de
minha fama. Quando correr a nova de que aquele cuja fama resplandecia tão
intensamente foi derrotado, prefiro morrer antes que essa notícia venha a entristecer
meus amigos."
decisão de perder a vida mediante uma morte rápida. Galvão refletiu: "Por que devo
eu tirar a vida a este homem? Se no mais se ativer às minhas ordens, conviria deixá-
lo partir são e salvo." Por mais que Galvão insistisse na exigência de submissão o
e ambos se sentaram na relva. Galvão ainda não havia esquecido o desgosto que
lhe causara o cavalo doentio. Isso lhe despertou a idéia de montar o cavalo de
bem equipado para o combate. Sobre a cota de malhas trazia uma coberta de seda
e veludo. Ele o havia conquistado. Por que não haveria de montá-lo se lhe pertencia
por direito de conquista? Ao montá-lo, partiu em tão fogoso galope que seus largos
saltos encheram de alegria o cavaleiro. Ele exclamou: "És tu, Grinjuljete, que Urians
perfidamente me subtraiu para sua desonra, como ele bem o sabe? Quem foi que te
Deus que na Sua nunca desmentida bondade, te trouxe de volta!" Ele desmontou e
reconheceu o cavalo devido a certa marca característica. É que na sua anca se via,
407
impressa a ferrete, uma pomba- o símbolo heráldico do Graal. Ele pertencera ao
sua dama, a quem se sentia ligado pela lealdade a despeito do tratamento indigno
que lhe era dispensado. Para ela se voltavam todos os seus pensamentos.
espada que Galvão, o insigne guerreiro, lhe arrebatara. Esse segundo encontro
dispostos a não permitir que o outro deslustrasse o renome que havia conquistado.
Elmos e espadas eram agora muito mais solicitados, de vez que representavam a
Lischoys Gwelljus era jovem vistoso. Seu coração sedento por fama o
Galvão se mantinha imperturbável e dizia com seus botões: "Se conseguir agarrar-te
408
Foi então que o senhor Galvão conseguiu agarrar o adversário e o arremessou ao
chão. Quanto a mim, prefiro evitar essas intimidades para não sentir na própria pele
tais experiências.
Galvão exigiu uma vez mais que se rendesse, mas Lischoys, que jazia
sob ele, se recusou, a exemplo do que ocorrera após o primeiro combate. Ele disse:
"Estás perdendo teu tempo comigo! Ao invés de submissão ofereço-te minha vida.
Deixa que tua valente destra aniquile minha fama. Deus me amaldiçoou, pois minha
Comprometerei meu bom nome se matar esse intrépido guerreiro sem motivo. O
comigo. Por que não poupá-lo por amor a ela? Se for meu fado conquistá-la, nada
poderá ele fazer para impedi-lo. Se ela assistiu ao nosso duelo terá de admitir que
sei servir para merecer amor." E em voz alta exclamou: "Em consideração à
409
9. HÓSPEDE DO BARQUEIRO
proprietário do barco pisou em terra. Sobre o punho trazia uma fêmea de gavião, de
vencido nas justas realizadas naquela campina. Em troca disso devia inclinar-se
agradecido perante o vencedor e anunciar em voz alta seu triunfo. Esse tributo pelo
uso de sua campina florida era o único e o mais vantajoso rendimento que tirava da
terra, além das cotovias de poupa que sua fêmea de gavião abatia. Era disso que
tirava seu sustento e vivia até razoavelmente. O barqueiro era de estirpe cavaleirosa
do tributo pelo uso da campina. Mas o bravo Galvão declarou: "Senhor, nunca fui
"Muitas damas poderão testemunhar que coube a vós a vitória. Não podereis pôr em
dúvida meu direito. Concedei-me pois, senhor, a recompensa a que faço jus. Em
combate honesto conquistastes para mim este cavalo e para vós próprio a vitória.
Vossa mão derribou aquele que até este dia era tido em conta como o campeão
mais famoso do mundo. Vossa vitória foi interpretada por ele como uma intervenção
afortunado!"
410
Galvão argumentou: "Foi ele que inicialmente me derribou e só depois lhe
paguei com a mesma moeda. Se for preciso pagar algum tributo pela justa que aqui
se travou cobrai-o dele, senhor, ali está o pangaré que me arrebatou na luta. Ficai
com ele se assim vos aprouver! Mas este cavalo é meu. Montado nele partirei daqui,
mesmo se não mais conseguirdes qualquer cavalo. Invocais vosso direito, mas seria
injusto ficardes com ele e deixar-me partir a pé. Pesar-me-ia sobremodo ver este
cavalo em vosso poder. Ainda hoje pela manhã era minha propriedade incontestável
e já que vos apraz estender tão simplesmente a mão, vos conviria mais um cavalo
Punturtoys mo roubou. Mais fácil seria uma mula parir para vós um potro. Mas eu
ressarcirei de outro modo. Ficai com este cavaleiro que me ofereceu combate, caso
que satisfeita. Na realidade é ele um campeão tão renomado que não o trocaria nem
mesmo por quinhentos velozes e vigorosos cavalos porque não atingiriam a quantia
que ele vale. Mas se de fato pretendeis enriquecer-me então procedei como
Então o filho do Rei Lot assim falou: "Conduzi-lo-ei como vosso prisioneiro
411
"Isso me agradaria sobremodo", assegurou-lhe o barqueiro, que
recebida por outro homem do meu ofício! Serei considerado um felizardo por me ter
Estou deveras exausto e necessito de descanso. Aquela que me fez passar por este
transe é capaz de tornar amarga qualquer doçura, afugentar toda a alegria dos
esperava ganhar, perdi. Enquanto vivia feliz e seguro do apoio de Deus, meu
coração vendia alegrias. Mas agora arrefeceu e talvez deixou de existir! Aonde
poderei obter apoio? Se ela fosse uma mulher autêntica deveria multiplicar minha
toda a parte em que reina Clinschor176 as coisas se passam desse modo: hoje triste,
amanhã alegre. E uma situação que nem a poltronice nem a máscula determinação
conseguem modificar. Pelo visto não sabeis que este país, como um todo, é fruto de
um sortilégio único e que, quer de dia, quer de noite, mesmo o mais intrépido
senhor!"
176
Clinschor aparece aqui como poderoso feiticeiro, que, em seu “Castelo Encantado”, mas mantém
prisioneiras 400 nobres damas que como adiante se verá – são resgatadas por Galvão. Clinschor existiu de fato.
No concurso de trovadores patrocinado em 1205 pelo Landgrave Hermann da Turíngia e pela esposa desde,
Santa Isabel, no castelo de Wartburgo, Clinschor foi vencido pelo autor deste poema num concurso de enigmas.
Essa experiência levou Wolfram von Eschenbach, a fazer dele uma das personagens de sua epopéia. Na obra
homônima de Wagner aparece com a grafia do nome ligeiramente modificada – Klingsor. N.T.
412
Ao atender ao chamado do barqueiro, Galvão tratou de embarcar também
Lischoys, seu adversário, que obedeceu resignado, sem fazer objeções. O barqueiro
Nantes onde permanecia por mais tempo, Artur não poderia desejar casa mais
anfitrião disse à filha: "Trata deste meu amo de modo que se sinta bem à vontade.
favores." Ao seu filho determinou que tomasse conta de Gringuljete. Com toda a
pela jovem Galvão dirigiu-se à kemenate, cujo assoalho achava-se coberto de flores
Gaivão disse à atraente jovem: "Deus vos pague, senhora, as atenções que me
dispensastes. Se não fosse vontade expressa de vosso pai teria preferido dispensar
Ela respondeu: "Eu vos sirvo unicamente para merecer vossa estima e
na parede oposta à porta. Diante delas estendeu um tapete. Este devia ser o local
escudeiro trouxe pão e um forro de mesa. Tudo que vinha sendo feito decorria de
413
cordiais boas-vindas e dizendo: "Fizestes de nós pessoas abastadas. Senhor, a
Lavadas as mãos, Galvão pediu por companhia: "Permiti que essa jovem me faça
companhia à mesa."
vosso lado. Temo que se torne excessivamente travessa. Mas lhe devemos muitos
favores. Filha, com minha permissão, atende ao pedido que lhe foi feito."
dela tinha o anfitrião mais dois filhos vigorosos e bem-criados. Justo naquela tarde, a
fêmea de gavião havia abatido três cotovias de poupa que agora eram servidas a
Galvão regadas ao molho. A jovem não se descurou de lhe preparar, com suas
brancas mãos, sobre uma fatia de pão de trigo cortada em tabletes, saborosos
petiscos. A seguir, observou: "Passai uma dessas aves assadas à minha mãe, pois
temperados com vinagre de vinho. Tais iguarias não são as mais indicadas para
414
conservar as forças e não será seu consumo que fará as faces mais coradas. A cor
raramente merecem encômios. Penso que o verdadeiro brilho de uma mulher resulta
de sua autenticidade.
alguma desejaria ver seu filho mais bem alimentado que o anfitrião, seu hóspede.
plumas com forro de veludo. Não se tratava de veludo autêntico, mas apenas de
seda, embora nele não se pudesse vislumbrar qualquer vestígio de bordado a fio de
ouro, um luxo que só podia ser obtido na distante terra dos pagãos. Sobre ele foram
Foi-me dito que a jovem teria ficado com ele a sós. Mas ainda que lhe houvesse
pedido alguma coisa esta dificilmente deixaria de atendê-lo. Contudo fez jus ao
descanso. Que durma, pois e que Deus o guarde, pois o novo dia não tardaria em
nascer.
415
LIVRO XI
A grande fadiga fez com que Galvão caísse logo em sono profundo e
dessas janelas estava aberta e dava acesso a um pomar. Entrou no jardim para
conhecer o local mais de perto, respirar o ar puro e deleitar-se com o canto dos
pássaros. Mal se havia sentado quando avistou o castelo que vira na véspera, por
ocasião do combate com Lischoys. Nos cimos do castelo avistou muitas damas,
que era para estarem dormindo, pois não se fizera dia claro. Ele pensou: "Em
homenagem a elas vou voltar para a cama!" Deitou-se e se cobriu com o manto da
jovem, que lhe servia de coberta. Alguém o despertaria? Não, pois isso desagradaria
ao anfitrião.
mansinho para o alojamento do hóspede a fim de lhe fazer companhia. Como este
416
ainda estivesse dormindo, a jovem não se descurou de seus deveres, sentando-se
disse: "Deus vos pague, senhorita, por haver interrompido vosso sono por minha
que desejardes. Tendo em conta vossa liberal idade meu pai e todos os seus
dependentes - minha mãe e nós, seus filhos -, acatar-vos-emos como nosso amo."
vossa presença ter-vos-ia feito uma pergunta caso vos aprouvesse a ela responder.
perguntas. Minha boca permanecerá calada. Sei na verdade de quem se trata, mas
em virtude do sigilo a que estou obrigada nada poderei vos revelar. Não repareis
nisso e perguntai-me sobre outras coisas. Este é o meu conselho, que faríeis bem
em seguir."
com aquelas damas sentadas nos cimos do palácio. A jovem, que lhe queria bem,
417
cedo o pai apareceu inesperadamente. A ele não pareceria coisa reprovável se
leito de Galvão. Mas o pai não parecia estar zangado, pois lhe disse: "Não chores,
filha! O que se faz de modo irrefletido deve ser aceito com resignação embora nos
quiséssemos esconder de vós. Apenas fiz à jovem uma pergunta cuja resposta
pareceu-lhe encerrar um perigo para mim. Por isso pediu que a dispensasse de lhe
responder. Daí querer, caso não viesse a vos desgostar, que me explicásseis os
me retribuir os serviços que vos prestei. Em parte alguma foi-me dado ver tantas
"Apesar disso não posso deixar de lamentar a triste situação em que elas
se encontram" exclamou Galvão. "Senhor, dizei-me sem rodeios, por que a pergunta
nessa indagação, acabareis sabendo de mais alguma coisa a respeito. Mas com
418
isso assumireis uma terrível carga de preocupação e arrebatareis todas as alegrias a
que sabeis acharei uma maneira de passar essa história a limpo." O honrado
em Terre Marveile177. Aqui encontrareis também o Lit Marveile178. Senhor, até agora
a morte. Apesar de saber-vos provado em aventuras devo dizer que tudo o que até
daquelas damas. Delas já tinha ouvido falar. Agora que me acho aqui, próximo ao
local em que elas se encontram, estou propenso a quebrar lanças por elas."
"Não há risco comparável aos perigos que se ocultam nessa aventura. Eles são bem
vosso conselho para enfrentar esse combate. Com vossa permissão e com a ajuda
177
Terre Marvele. Francês arcaico. País encantado
178
Lit Marvele. Francês arcaico. Cama encantada.
179
Schastel Marveil. Palavra do francês arcaico germanizada: chateau. Castelo encantado
419
grato por vossos conselhos e instruções. Contudo, senhor anfitrião, seria agir de
modo pouco digno se partisse daqui sem ter feito coisa alguma. Amigos e desafetos
havia passado por tão dolorosa experiência. Ao seu hóspede ele disse: "Se com a
ajuda de Deus escapardes da morte então vos tomareis soberano deste país. Muitas
damas são mantidas ali em cativeiro, arrastadas que foram por poderoso sortilégio.
Muitos escudeiros e dignos cavaleiros tentaram resgatá-las, visando com isso dilatar
sua fama. Mas todos falharam. Se vosso braço forte as libertar, conquistareis fama
afortunado de todas essas belíssimas damas oriundas de muitos países. Mas ainda
que partísseis sem ter arriscado a perigosa aventura, ninguém poderia vos
subestimar, posto que Lischoys Gwellyus teve que vos entregar sua fama de
cavaleiro. Com razão devo saudar esse jovem simpático como autor de muitas
homem tantas virtudes. Ontem transportei na minha barca aquele que matou Ither
de Gaheviez diante de Nantes. Deixou-me cinco corcéis que haviam sido montarias
de duques e reis. Que Deus lhe conceda boa fortuna. Em Pelrapeire é enaltecida
sua fama de campeão, por haver lutado pela segurança da cidade. Seu escudo
exibia as marcas dos muitos combates que travou. Ele esteve aqui procurando pelo
Graal."
"Que direção tomou ele?", quis saber Galvão. "Já que passou tão perto da
aventura que aqui desafia a quem queira enfrentá-la dizei-me, senhor anfitrião, se
420
"Não, senhor, ele de nada soube. Tratei de lhe ocultar esse fato.
Procederia mal se lho dissesse. Se não vos ocorresse indagar a respeito, de mim
jamais teríeis sabido do que aqui se passa - um sortilégio sinistro que envolve
filhos seremos expostos a um sofrimento que até aqui não experimentamos. Mas se
a vós couber a vitória reinareis sobre este país e minha pobreza terá chegado ao
fim. Espero então ser distinguido por vós com ricas prebendas. Se a morte vos
poupar, gozareis após a vitória de uma ventura imune a qualquer sofrimento. Armai-
tratou então de armá-lo dos pés à cabeça enquanto o pai cuidava do cavalo. Na
parede achava-se pendurado um escudo, sólido e reforçado, que iria ser a salvação
de Galvão. Ao lhe serem entregues escudo e cavalo o anfitrião, que ali também se
achava presente, disse-lhe: "Senhor, permiti que vos aconselhe sobre como agir na
situação do extremo perigo que vos aguarda. Usai este meu escudo! Nunca foi
tocado por lança ou espada, pois trato de me manter distante da luta. Não
apresenta, por isso, qualquer arranhão. Senhor, ao ali chegar deixai o cavalo aos
cuidados do mascate que está sentado diante do portão do castelo. Comprai dele
qualquer coisa. Vosso cavalo será bem cuidado e ficará como penhor da mercadoria
delongas."
421
"Não, senhor! Todas aquelas atraentes damas serão invisíveis para vós.
Encontrareis o palácio deserto e sem vida. Tão logo ponhais o pé na kemenate onde
quisesse colocar ambos nos pratos da balança. Nele tereis que padecer o que Deus
vos reservou. Que Ele conceda um feliz desfecho à vossa aventura. Senhor, cuidai
para que durante toda a prova este escudo e vossa espada jamais vos escapem das
mãos. É que quando supuserdes que o pior já tenha passado será então que a
demais presentes também não disfarçaram seu pesar. Galvão disse ao anfitrião: "Se
Deus quiser terei oportunidade para retribuir vossos leais serviços." Despediu-se da
jovem, cujo grande pesar era compreensível. Os demais se deixaram ficar ali, tristes,
vendo-o se afastar.
prazer ainda maior em vô-la contar e isso do mesmo modo como me foi transmitida.
180
Mahmumelin. (Amir ou Emir-al-Muminin – comendador dos crentes). Título usado por vários califas
árabes e particularmente pelos soberanos de Marrocos que pretendem deter sobre ele um direito histórico.
422
Ao chegar ao portão deparou com o mascate, com sua tenda bem provida. Tanta
coisa se achava posta à venda que muito me agradaria possuir semelhante fortuna.
Galvão desmontou ali. Nunca pusera os olhos em tão rica mercadoria. A tenda era
de veludo, alta, ampla e disposta em quadrado. O que estava ali posto à venda?
Quem quisesse adquirir essas mercadorias a peso de ouro não teria como pagá-las
Imperador quisesse somar à riqueza desses dois todos os tesouros da Grécia, ainda
objetos expostos pediu que lhe mostrasse cintos e broches, artigos acessíveis ao
seu orçamento. O mascate lhe disse: "Cá estou eu sentado há anos e ninguém -
peito estiver batendo um coração viril, então tudo o que aqui foi reunido, com
procedência dos mais diversos países, será vosso. Se tomastes o honroso propósito
rapidamente a um acordo. Tudo o que aqui estou pondo à venda será vosso.
Acaso foi Plippalinot, o barqueiro, que vos indicou o caminho? Muitas damas
bendirão vossa chegada a este país caso tenhais êxito na sua libertação. Se
efetivamente desejais correr o risco da prova então deixai vosso cavalo comigo.
mister não venha a vos apoquentar. O que me surpreende é vossa riqueza. Nunca,
desde que este cavalo passou a me pertencer, tive um cavalariço tão rico."
423
O simpático mascate lhe disse: "Senhor, que mais me cabe acrescentar
vos relatei o extenso castelo estava cercado de muralhas por todos os lados. Um
ataque, ainda que se prolongasse por trinta anos, seria inútil. Intramuros havia uma
palácio Galvão notou que seu telhado brilhava como a colorida plumagem do pavão.
A cor clara das telhas era tão durável que nem mesmo a ação da chuva e da neve
pudera embotá-la.
ladeavam as janelas eram caneladas com esmero e rematadas por arcos. Nos
nichos das janelas haviam sido dispostas camas destinadas ao repouso, providas de
nicho. Ali haviam estado sentadas as damas que Galvão vira e que se tinham
retirado sem dar boas vindas àquele que para elas seria o mensageiro da felicidade,
a personificação do dia de redenção. E isso considerando que para elas não teria
havido algo mais desejável que tê-lo visto. Mas no caso não lhes cabia alguma
culpa, pois embora ele lhes quisesse prestar serviços a ninguém era permitido
para outro, contemplando o palácio. Foi quando descobriu numa das paredes - não
181
Lechfeld. Extensa planície de 40 km de extensão e 10 km de largura, situada entre Lech e Wertach.
Começa em Landesberg sobre-o-Lech e termina em Augsburgo. Foi ali que, em 10 de agosto de 955, o
Imperador Otto I destroçou o exercito dos magiares.
424
sei exatamente em qual dos lados - a porta aberta de par em par. Do lado de dentro
espreitava-o a morte ou a fama. Galvão entrou na kemenate, cujo pavimento era liso
e polido como vidro. Ali estava o Lit Marveile, a cama encantada. Os quatro pés da
cama eram munidos de rodas feitas de rubis resplandecentes e que conferiam ao Lit
Marveile uma velocidade superior ao vento. O piso merece todos os meus encômios.
Clinschor, que idealizara tudo e que com previdente sabedoria mandara importar de
vários países tudo o que fosse necessário. O piso era tão escorregadio que Galvão
mal pôde se manter em pé. Impunha-se pois enfrentar risco. Mas mal se aproximava
da cama, esta lhe escapava, mudando de lugar. Ao longo dessa situação que não se
Quando em dado momento a cama parou diante dele, tomou impulso e se atirou
cama resvalava de um lado para outro. Ela nem sequer se desviava da parede,
colidindo com ela com estrondo que ecoava por todo o castelo. Desse modo
maior. Embora deitado na cama Galvão não podia pensar em descanso, mas tinha
Assim se manteve deitado e entregou sua sorte Àquele que pode ajudar e
425
recorrem. Em horas tais o homem sábio e prudente põe sua salvação nas mãos do
Altíssimo. Apenas Ele - como Galvão constataria - pode prestar ajuda efetiva e Ele
sempre o faz movido pela mais genuína bondade. Implorou, pois, a proteção de
quinhentas catapultas apontadas para a cama em que se achava Galvão. Sobre ele
foram então disparados seixos duros e arredondados, que Galvão pouco sentiu pois
o escudo era tão sólido e firme que apenas umas poucas pedras puderam perfurá-
lo.
suportara antes impactos tão contundentes. Mal havia passado por esse transe
quando quinhentas ou mais bestas eram armadas e apontadas para ele. Só quem
alguma vez passou por tais apuros pode avaliar os estragos que setas são capazes
de causar. Logo todas as setas haviam sido disparadas. Quem preza sua
comodidade faria bem em evitar camas desse tipo, pois ali não teria vida fácil. Até os
amenidades daquela cama. A despeito disso nem coração nem mãos lhe tremiam.
Contudo os seixos e as setas não o haviam poupado de todo. Embora protegido por
haviam terminado veio a constatar que teria de resgatar o preço da glória com as
próprias mãos. Naquele momento abriu-se diante dele uma porta e por ela entrou
426
suas calças eram de pele de lontra. Na mão trazia uma maça cuja extremidade era
mais bojuda que um cântaro. Ele tratou de se aproximar, o que não agradou a
Galvão nem um pouco. Pensava: "O homem está sem armadura e por isso
como se quisesse fugir. Mas mudou de idéia e berrou enfurecido: "Não me infundis
temor! Cuidei para que vos coubesse um quinhão que pagareis com a vida. Foste
salvo pelas artes do demônio. Mas se até esta parte ele pôde vos salvar a pele
agora chegou a hora de vossa irremediável perdição. Tereis a confirmação disso tão
malha do lorigão. Foi então que ouviu um surdo rumor como se vinte tambores
vigoroso leão do tamanho de um cavalo. Galvão, que nunca pusera sua salvação na
fuga, agarrou o escudo pela braçadeira e pulou ao chão para se defender. O ingente
e robusto leão estava transtornado pela fome, o que para ele não resultaria em
preparado. Mesmo assim quase lhe arrebatou o escudo, pois logo ao primeiro
427
outro animal poderiam ter perfurado tão sólida estrutura. O leão queria arrancar-lhe
o escudo, mas Galvão reagiu, decepando-lhe uma das patas. Agora o leão dispunha
ferida, tão copiosamente que Galvão teve que firmar bem os pés. Enquanto isso o
gente honrada, eu dificilmente ficaria por perto. Embora gravemente ferido o animal
se revelou nessa luta um adversário tão temível que, dentro de pouco tempo, a
salto a fera pretendeu lançá-lo por terra. Foi quando Galvão lhe enterrou no peito a
espada, até o punho. A fúria do leão só esmoreceu quando tombou ao chão, morto.
Tendo saído vitorioso do mortífero embate, Galvão pensou: "Que atitude devo eu
sentar-me ou deitar-me nesta cama que bruscamente dispara de um lado para outro,
nem é bom pensar." De repente foi acometido de extrema fraqueza e seus sentidos
perdendo. O mundo parecia estar girando em torno e acabou caindo sem sentidos.
Ao desmaiar, caiu sobre o escudo, a cabeça sobre o corpo do leão. Tantas haviam
sido as provações que caiu sem forças e sem sentidos, mergulhado em prostração
profunda. Mas sua cabeça não repousava naquele travesseiro mágico que a esperta
estariam reservados os louros da fama, pois pelo que acabastes de ouvir sabeis
428
Enquanto isso alguém que furtivamente observava a cena avistou o piso
Galvão. A bela jovem que timidamente vinha espionando do alto de uma janela
contou tudo à sábia Arnive, que a ouviu perplexa. Ainda hoje entôo louvores em sua
honra, pois foi graças a seus cuidados que o cavaleiro conseguiu sobreviver.
Inicialmente tratou de avaliar a situação. Mas, pelo que lhe foi dado ver ao se
acercar da janela não podia ter certeza se era prenuncio de dias felizes ou de novas
fera. Ela disse: "Para mim será motivo de profundo pesar se tua coragem e lealdade
sacrificar tua vida por nós, criaturas dignas de pena, então devo chorar-te pelo valor
de que deste prova, quer sejas velho ou jovem." À vista do herói desfalecido dirigiu-
implorai a Deus para que conceda Sua bênção”! A seguir pediu a duas jovens que
ainda estava vivo ou se havia morrido. Teriam as jovens caído em pranto ao deparar
verificar se nele ainda havia algum sinal de vida. Com suas brancas mãos uma
183
delas lhe retirou o elmo e a seguir, o gorjal . Foi então que descobriu sobre sua
boca uma diminuta bolha de ar, o que a levou a auscultá-lo cuidadosamente a fim de
ter certeza de que não se enganava e que ele ainda respirava. Seu mantelete exibia
183
Gorjal. Peça da armadura que protege o pescoço.
429
dois camaleões batalhantes de zibelina, o mesmo signo heráldico que llynot, o
na esperança de que sua respiração os fizesse oscilar. Desse modo descobriu que
ainda estava vivo. Sem demora pediu à companheira para trazer água limpa. Esta a
entre os dentes do desmaiado e lhe instilou água, de início apenas algumas gotas e
voltar a si, abrindo os olhos. Ele cumprimentou as atraentes jovens e lhes agradeceu
constrangedora. Gostaria de contar com vossa discrição para não propalar esse
fato."
uma glória que jamais será esquecida e que irá comprazer-vos até a provecta
idade. A vitória é vossa. Mas permiti a nós, criaturas dignas de pena, verificar se
vossa alegria." Ele respondeu: "Se prezardes minha vida, ajudai-me!" E acrescentou:
"Providenciai que alguém iniciado na arte de curar examine meus ferimentos, mas
se tiver pela frente novos combates, ponde-me uma vez mais o elmo na cabeça,
que vos façamos companhia. Pela notícia de que sobrevivestes, uma de nós
430
medicamento adequado, que não vos faltará, vossas feridas e contusões serão
tratadas com ungüentos sobremodo eficazes que abrandarão vossas dores e vos
restituirão a saúde."
Uma das jovens deu-se pressa em divulgar na corte a notícia de que ele
estava vivo, "tão vivo que, se aprouver a Deus, multiplicará nossas alegrias.
deviam poupá-lo de qualquer tipo de vexame. "Levai convosco uma coberta de seda
e com ela protegei-o enquanto o desarmais. Se puder andar, deixai que venha por
seus próprios pés; caso contrário transportai-o para este leito, onde estarei
aguardando o herói. Se seus ferimentos forem leves, farei com que se restabeleça
alegrias. Nesse caso também nós teremos sido atingidas pelo golpe, porque
armadura, retirado daquele local e tratado pelas damas iniciadas na arte de curar.
Ele havia sido ferido em cinqüenta ou mais lugares diferentes do corpo. Mas como
estivera protegido pelo escudo apenas as pontas das setas haviam penetrado a cota
431
de malhas. A velha rainha apanhou dictamno184, vinho quente e um pano de tafetá
azul. Com isso limpou as feridas e o pensou tão bem que logo recobrou as forças.
lesões na cabeça do herói. Mas sob a ação benéfica do ungüento da sábia rainha o
dores terríveis por que Anfortas vinha passando, foi este ungüento que lhe salvou a
o castelo estivesse situado nas imediações. À rainha ele declarou com simplicidade:
Ela, porém contestou: "Todas nós temos motivos de sobra para estarmos
tranqüilizantes que vos fará adormecer. Até ao cair da noite devereis abster-vos de
comida e bebida. Uma vez revigorado dar-vos-ei de comer para estardes bem
Ela lhe introduziu uma erva na boca, que o fez adormecer prontamente. A
184
Dictamno. Planta medicinal (dictamnus albus) cujas raízes são utilizadas como remédio caseiro.
432
defeitos, dormiu o dia todo. Vez por outra os efeitos do ungüento o faziam
curiosidade entrava e saía. Mas a velha Arnive, usando de sua autoridade, proibia
conversas em voz alta para que o repouso do herói não fosse perturbado.
Determinou ainda que fossem fechadas todas as portas do palácio. Para o desgosto
Desse modo o herói dormiu até ao cair da noite. A rainha sempre atenta
retirou-lhe a erva da boca. Ao despertar sentiu sede. A sábia mulher mandou vir
então bebida e comida saborosa. Ele se sentou na cama e comeu com muita
vontade. Numerosas damas rodeavam o leito e serviam Galvão com uma solicitude
examinar atentamente uma ou outra, manteve-se vivo nele a velha saudade pela
tivera na vida, nenhum deles o marcara tão profundamente quanto esse. O intrépido
herói disse então à sua enfermeira, a velha rainha: "Senhora, sinto-me constrangido
em ver todas essas damas de pé ante mim. Se consentisse nisso, poderíeis tomar-
refeição!"
como convém, pois vós sois o artífice de nossa felicidade. Seria, por isso,
433
Nenhuma delas iria sentar-se enquanto não terminasse a refeição. Depois de se
repousar.
434
LIVRO XII
poderoso e altivo Rei Garel186 que com destemer digno de um cavaleiro arremessou
muar todas as setas cujos impactos Galvão suportara com viril determinação a carga
seria talvez demasiadamente pesada. Tão arriscados não tinham sido a incursão no
teve que abrir caminho à força. Ainda menos digno de comparação seria o episódio
185
Lanzilot. Cavaleiro da Távola Redonda.
186
Garel. Cavaleiro da Távola Redonda mencionado em diversas epopéias medievais. A referência aqui
feita remete a um original supostamente perdido.
187
Schoydelacourt. Schoye-de-la-court: Delcias da Corte
435
vivido pelo altivo Iwan188 quando molhara a pedra da Aventura. Todas essas
peripécias reunidas não atingiam o grau de periculosidade das provações por que
Galvão passou.
venha proporcionar muito prazer devo dizer de que se trata. É que Orgeluse se
havia instalado definitivamente no coração viril de Galvão. Como pôde uma mulher
chegou ao coração de Galvão, o qual esqueceu as aflições que lhe custaram essa
dolorosa penetração. Era na verdade um espaço assaz reduzido, onde agora essa
mulher dominadora vivia, uma situação que o obrigava a consumir seu tempo
pensando nela. Que ninguém se ria dessa estranha situação em que um poderoso
guerreiro foi dominado por frágil mulher! Ah, o que resultaria disso? A senhora
Paixão despejava toda a sua ira sobre um homem que conquistara grande
força. Senhora Paixão, se isso for para vós uma questão de prestígio então permiti
que vos diga que essa disputa vos trará escasso proveito. Pensando bem, Galvão, a
exemplo de Lot, seu pai, considerou como objetivo de sua vida conquistar vossa
benevolência. Por linha materna sua estirpe esteve a vosso serviço desde que
188
Iwan. Referência a uma personagem que desempenha o papel título no poema épico “Iwan”, de
Hartmann von Aue.
436
trazia em seu escudo vosso símbolo heráldico. Quando diante de damas se falava
render submissão. Agora imaginai o que acontecia àquela que com ele se
encontrava face a face. Esta compreendia então a noção exata do amor. Sua morte
vos privou de muitos serviços que ele vos poderia ter prestado.
Impeli, pois também Galvão à morte a exemplo do que fizestes com seu
nobre Florie de Kanedic, que ele amava. Deixara o reino paterno ainda criança. Fora
educado por aquela mesma rainha189 e se tornara um estranho para a Bretanha, sua
terra natal. Tomado de paixão por Florie deixara o reino dela e como já sabeis
Para a estirpe de Galvão o amor foi causa de muitas penas. Posso citar
outros parentes de Galvão aos quais o amor fez passar por maus momentos. Esse
foi o caso do fidelíssimo Parsifal. Não fora ele acometido de incontida saudade pela
Gahmuret nas malhas de vosso sortilégio e os enviastes à morte. Outra foi a jovem e
189
Florie de Kanedic.
190
Surdamur. Outra irmã de Galvão que amava Alexandre Magno, o que afinal configura uma estranha
defasagem no tempo. Se as personagens do ciclo arturiano tivessem algum compromisso com a cronologia os
dois amantes estariam separados por um lapso temporal de 800 anos. Ocorre que aqui não se trata do rei bretão
que historicamente existiu, mas de Artur, personagem lendária, que com sua corte e sua ordem da Távola
Redonda viva e vive liberto da barreira do tempo. N.T.
437
com aqueles que gozam de boa saúde. Poupai pois a vida do convalescente Galvão
e submetei os hígidos. Afinal, tantos cantam o amor sem jamais terem sentido seu
apelo compulsivo! Nada mais direi sobre este assunto. Que lamentem as aflições do
norueguês191 aqueles que sofrem do mesmo mal do amor. Galvão, que acabava de
sua paixão impossível. Ele exclamou: "Ai de mim! Preferia não estar estendido sobre
benevolência de Orgeluse, a duquesa, teria o dom de fazer-me uma vez mais alegre
e feliz!"
alvorecer por ele ansiosamente esperado. Teria preferido sustentar sucessivas lutas
por setas em todo o corpo. Perceberia então que Galvão estava a sofrer
191
Norueguês. Galvão.
438
2. A COLUNA MÁGICA
grandes velas que ali ardiam. O herói se levantou. Junto ao leito haviam sido postas
com a armadura que a troca lhe agradou sobremodo. Ali encontrou também uma
vestia e um gibão de pele de marta, ambos forrados de seda de Arras. Havia ali
ainda um par de sapatos que se ajustavam comodamente aos pés. Depois de pôr as
para outro até deparar uma vez mais com o magnífico palácio. Seus olhos jamais
magnificência. Num dos lados do palácio uma estreita escada de caracol conduzia a
uma plataforma. Ali se erguia uma coluna resplandecente. Não era feita de madeira
podre, pois era cintilante, sólida e de diâmetro tal que sobre ela poderia ser colocado
engenhosa estrutura que ali se erguia. Era circular, como o formato de uma tenda.
192
Camila. Segunda descrição feita por Heinrich von Veldecke na sua “Eneida”, o ataúde de Camila fora
armado sobre uma pilastra encimada por uma abóboda.
193
Geômetras. Segundo a “Eneida” de Heinrich von Veldecke, era mestre construtor de notável saber,
autor de renomadas obras arquitetônicas.
439
o teto eram, a exemplo das que ladeavam os vãos das janelas, altas e compactas.
Mas nenhuma delas podia se comparar àquela cujas singularidades a Aventura irá
Para se inteirar das coisas singulares que supunha existirem mais além o
senhor Galvão subiu à torre de menagem, que estava profusamente decorada com
pedras preciosas. Seus olhos não se cansavam de contemplar essa prodigiosa obra
arquitetônica. Parecia-lhe então que todos esses países cujas imagens via surgir na
superfície da grande coluna não lhe eram desconhecidos. Notou ainda que as
velha Arnive, acompanhada pela filha Sangive e mais duas netas. Todas as quatro
A Rainha Arnive lhe disse: "Senhor, devíeis ainda estar guardando o leito.
piorar."
saúde física e mental. Por isso ser-vos-ei grato pelo resto de minha vida."
194
O engenhoso e insólito processo descrito nessa estrofe e na seguinte por um homem nascido no último
quartel do século XII nos leva considerar o autor do “Parsifal” um remoto precursor de Julio Verne, o pai da
Ficção Científica. Se este, entre outras antecipações, “inventou” em 1890 o submarino “Nautilus”, cujo
homônimo os americanos só e, 1954 fizeram navegar pelos mares do mundo, Wolfram von Eschenbach ainda
mais na paisagem do futuro ao descrever aqui nada menos que um processo que hoje conhecemos como
transmissão em circuito fechado de televisão.
440
A rainha replicou: "Senhor, se eu for, como afirmais, vossa mestra, então
cumprimentai com um beijo estas três damas. Não temais por vossa posição, pois
atraentes damas Sangive e Itonje, bem como a meiga Cundrie195. Galvão se sentou
junto às quatro damas enquanto seu olhar incidia alternadamente sobre uma e outra
das jovens encantadoras. Mas como outra mulher lhe habitava o coração, a beleza
dia de neblina. A Duquesa de Logroys, por quem seu coração ansiava, parecia-lhe
tão assinaladamente bela que a formosura das demais ao lado dela empalidecia. De
passagem seja dito que as damas que Galvão acabava de cumprimentar possuíam
tanta graça e donaire que sua visão abalaria qualquer coração, mesmo daquele que
já tivesse sido provado por penas de amor. Galvão perguntou então à sua benfeitora
o que havia de especial com a coluna que se erguia diante deles e para que servia.
Ela respondeu: "Senhor, desde que estou aqui essa pedra brilha dia e
noite e o que acontece em derredor, num raio de seis milhas em terra e na água
pode ser visto nessa coluna. Quer seja pássaro, fera, forasteiro ou natural do lugar,
aparece nela. Seu foco luminoso tem um alcance de seis milhas e ela própria é tão
sólida e inteiriça que nem a ação do ferreiro nem do martelo conseguem prevalecer
contra ela. Foi retirada às escondidas de Tabronit, suponho eu, contra a vontade da
Rainha Secundille."
195
Cundrie. Não se trata aqui da maga Cundrie (geralmente descrita como criatura repelente), mas da neta
de Utepandragon.
441
3. O COMBATE COM O TURCÓIDE
dama que vinham a cavalo. Se a dama lhe pareceu belíssima, o cavaleiro e seu
corcel vinham armados de ponto em branco. Uma rica cimeira ornamentava o elmo
viera o altivo Lischoys antes de ser vencido por Galvão. A dama agarrara a rédea do
cavalo de batalha do cavaleiro que a seguia, o qual - tudo o indicava - vinha disposto
cena vista na coluna como miragem quimérica agora via de forma iniludível Orgeluse
assim a imagem da duquesa passou célere dos olhos ao coração. Ah, o senhor
Galvão estava de fato preso à sua paixão, de forma Irremediável! Ao ver o cavaleiro
aproximar-se disse à sua mestra: "Aí se aproxima um cavaleiro com a lança erguida
e o que procura terá sem mais tardança! Mas dizei-me, quem é aquela dama?"
442
Ela respondeu: "Trata-se da bela Duquesa de Logroys. A quem pretende
conhecido por sua bravura. Em combates com a lança conquistou tanta fama que
encheria três reinos de prestígio. Na situação em que vos encontrais, evitai enfrentar
esse temível combatente. Gravemente ferido como estais, seria cedo demais pensar
deste país. Portanto quem vier agravar-me com um desafio tão ostensivo terá o que
demovê-lo desse propósito, dizendo: "Se for para vós apenas uma questão de
prestígio não combatei, de modo nenhum. Se tombardes morto diante dele nossas
desgraças serão multiplicadas. Bem armado tereis alguma possibilidade de sair com
vida desse encontro mas vossos ferimentos antigos vos levarão à morte, o que
ainda se ressentia das dores dos ferimentos. Mas o que mais que tudo o afligia era
sua paixão impossível e a tristeza das quatro damas que evidentemente lhe queriam
bem. Pediu-lhes que não chorassem e mandou vir armadura, cavalo e espada. As
196
Turcoíde. Cf. Nota nº
443
combate brotavam furtivas lágrimas de muitos olhos luminosos. Tudo foi feito com a
maior discrição de sorte que, exceto o camareiro que cuidou para que o cavalo de
fraco em virtude dos ferimentos recebidos que só com algum esforço conseguiu
Este lhe deu uma sólida e rústica lança, uma das muitas que recolhera na campina.
margem oposta onde o nobre e altivo Turcóide o aguardava. Esse homem jamais
adversário logo ao primeiro entrechoque com uma única e certeira lançada. Todos
a derrota. O nobre guerreiro explicou logo de alto e bom tom que não era com a
espada, mas unicamente com a lança que pretendia conquistar ou perder fama e
entregaria.
entrechoque um dos oponentes fosse derribado, receberia ele sem contestação das
duração da luta, quem venceria ou quem seria vencido, eram questões que não lhe
444
desembarcou a montaria e entregou-lhe escudo e lança. O Turcóide já vinha
arremetendo a galope largo e pelo modo de segurar a lança, nem muito alto, nem
muito baixo percebia-se que tinha boa pontaria. Galvão tomou posição frente ao
concluir quem foi arremessado ao chão. Preso à ponta de sua curta e rústica lança
até então a quintessência do qarbo cavaleiroso, agora arrojado à relva pela lançada
parecia querer emular com o colorido das flores carregadas de orvalho. Galvão
os motivos de vossa euforia. Talvez, quem sabe, porque a pata do leão permaneceu
vos seja, pois concedido o prazer de vos regozijar com isso! Pelo visto o Lit Marveile
não conseguiu vos infligir grandes danos embora vosso escudo esteja esburacado.
445
verdade, no qual corrreríeis o risco de decepções. Vosso escudo que a chuva de
e motivo de jactância. Tendes finalmente um bom motivo para vos esquivar de todos
os riscos. Voltai àquelas damas e deixai que vos acarinhem. Se vosso amor
meus serviços, então não haveria perigo que eu não quisesse arrostar para
foi com ela na mão que deixou a luminosa planície. Muitas damas choraram ao vê-lo
446
partir. A Rainha Arnive exclamou: "Nosso libertador escolheu um refrigério para os
olhos e um espinho para o coração. Ai de nós! Lá se vai ele com a duquesa rumo ao
Passo Selvagem! Disso nada de bom resultará para seus ferimentos!" Quatrocentas
trazer uma coroa feita dos ramos de certa árvore. Se fordes bem sucedido exaltarei
Ele respondeu: "Onde quer que esteja o tal ramo cuja conquista resultará
sua lembrança. Ela seguia com seu acompanhante por uma estrada reta e larga até
atingirem um ponto distante cerca de uma milha do castelo. Havia ali uma luminosa
197
Pau-brasil. Não deixa de ser singular a menção do Pau-brasil num poema publicado três séculos antes
da descoberta do Brasil. Adelino José da Silva d’Azevedo em “Este Nome: Brasil” comentado pela
“Enciclopédia Mirador Internacional” no verbete “Brasil”, dá a seguinte explicação a respeito: o pau-brasil teria
sido extraído desde o século VI a.C. por fenícios e gregos de uma certa ilha chamada Brasil, situada no Atlântico
e vendida aos celtas da Irlanda. Os celtas chamaram esses povos navegadores de “Hy Brasil” (“O Brasil para os
irlandeses”), o que significa “descendentes do vermelho” (referência ao corante rubro extraído da madeira que
lhes vendiam). Esse comércio cessou com o ocaso da civilização fenícia e grega. Aos olhos dos celtas, esses
povos – “os descendentes do vermelho” – desapareceram nas brumas do Atlântico, tornando-se povos míticos
447
ramos que me restituirá a felicidade perdida?" Ah, ele devia tê-la lançado ao chão e
árvore que se erguia na margem oposta e de cujos ramos deveria ser feita a coroa.
Ela explicou: "Senhor, aquele tronco vem sendo guardado por um homem que
dizer que em tempo algum qualquer cavaleiro a serviço do amor conquistou prêmio
acompanhar. Que Deus vos ajude! Se estiverdes disposto a prosseguir, não hesitai!
Reuni coragem e fazei com que vosso cavalo transponha de um salto o passo
selvagem!"
marcha. Avançando ouviu o fragor de uma queda d'água que no seu curso cavara
margem oposta com as patas dianteiras. Esse salto teria que resultar forçosamente
numa queda. Ao assistir a essa cena a duquesa não pôde reprimir as lágrimas. O
que nunca mais voltaram a Irlanda porque viviam felizes na sua misteriosa e afortunada Ilha Brazil, situado no
Ocidente Extremo. Não deve ser esquecido que, segundo a lenda, o corpo do Rei Artur teria sido transportado e
exumado na “Ilha Afortunada” situada no Atlântico – lá onde o sol se põe”. Como o poema “Parsifal”, de
Wolfram von Eschenbach, é uma relaboração cristã de lendas celtas antiqüíssimas, não é, afinal, tão estranho que
nele apareça referência ao pau-brasil. N.T.
448
árvore que emergia das águas o robusto varão o agarrou, pois lutava pela vida.
Recolhendo a lança que boiava ao lado o herói subiu a vertente valendo-se de pés e
mãos. A seguir tratou de safar Gringuljete, que vez por outra emergia das águas.
Mas a montaria vinha sendo arrastada tão velozmente rio abaixo que só a muito
custo pôde segui-la, em virtude do peso da armadura e dos ferimentos de que ainda
se ressentia. Ali onde a erosão das águas pluviais havia transformado a encosta
íngreme em largo remanso o cavalo foi levado para tão perto da margem que
Galvão pôde alcançá-lo com a lança. Com ela conduziu Gringuljete para cada vez
mais perto da margem até conseguir agarrá-lo pelo freio e puxá-lo para terra firme.
sua situação que se omita. O certo é que o amor o levou a essa situação de extremo
embaraço.
5. A ÁRVORE DE GRAMOFLANZ
requeria não pouca coragem. É que a árvore estava tão bem guardada que para
Quem guardava a árvore era um certo Rei Gramoflanz. A despeito disso Galvão
colheu a coroa de ramos. O rio se chamava Sabins e Galvão teve de pagar preço
449
sumamente desagradável por se ver compelido a chapinhar nele juntamente com a
montaria. Por mais atraente que Orgeluse pudesse ser, não quereria seu amor por
idade, dele se aproximou. Era tão vaidoso e autoconfiante que mesmo gravemente
ofendido recusava-se a lutar com um homem só, mas sempre com dois ou mais.
Tinha conceito exagerado de seu próprio valor, a ponto de permitir que um homem
isolado partisse sem ser molestado não importando o que lhe tivesse feito. O Rei
Gramoflanz, filho do Rei Irot, cumprimentou Galvão com um "bom dia" e foi logo
dizendo: "Não vos iludais acreditando que abri mão da coroa de ramos. Não haveria
de minha parte saudação alguma se ao invés de vós, dois sequiosos por fama
apenas um filhote de gavião que Itonje, a encantadora irmã de Galvão, lhe enviara.
veludo verde - capim, cujas orlas chegavam a roçar o chão. O manto tinha
guarnições de arminho branco. Embora não muito alta sua montaria era robusta e
ao certo se por via marítima ou terrestre. O rei estava desarmado. Não trouxera
sequer espada.
450
"Pelo aspecto de vosso escudo lutastes bravamente", observou o Rei
Gramoflanz. "Está tão esburacado que pelo visto estivestes em contacto com o Lit
Marveile. Sois o autor de uma façanha que a rigor deveria ter sido reservada a mim.
Mas o empenho do sábio Clinschor foi sempre no sentido de viver em paz comigo.
Em conflito vivo apenas com uma mulher, cuja formosura levou a melhor sobre o
amor. É minha inimiga jurada e tem motivos de sobra para isso. É que matei
Cidegast e quatro de seus melhores homens. A seguir raptei Orgeluse e lhe ofereci
minha coroa e meu reino. Mas por mais ofertas que lhe fizesse conservou-se hostil
para comigo. Ao longo de todo um ano requestei seu amor sem resultado. De
coração aberto dou-vos conta de minha triste sorte por saber muito bem que ela vos
prometeu seu amor e por isso estais aqui para matar-me. Se tivésseis vindo em
companhia de mais alguém eu vos teria, ou vós me teríeis morto. Esse teria sido o
preço de vosso atrevimento. Mas agora meu coração anseia pelo amor de outra
dama. Ela vive ali, onde agora minhas aspirações amorosas dependem de vossa
jovem por quem meu coração anseia. Ela é filha do Rei Lot. Nunca mulher alguma
exerceu sobre mim tamanho fascínio. Na minha mão está a prenda com a qual a
jovem deslumbrante quis externar sua permissão para que lhe prestasse serviços.
Tenho razões para acreditar que ela também me quer bem. Isso me estimulou a
arrostar, por amor a ela, muitas situações penosas. Se a partir do momento em que
feitos, com desprezo à minha própria segurança é porque fui guiado pela força
com vossa boa vontade gostaria que passásseis às mãos da gentil e suave dama
451
este anelzinho. Não sereis aqui hostilizado, de vez que meus adversários terão que
ser dois, ou mais. Nada acrescentaria à minha fama se vos matasse ou vos
valor. Se matar-me nada acresce a vosso merecimento então o ramo que colhi
6. O COMBATE APRAZADO
vos ocultarei meu nome. Meu pai se chamava Irote e foi morto pelo Rei Lot. Eu sou
o Rei Gramoflanz. Meu coração é altivo o bastante para recusar o combate com um
homem Isolado, sem levar em consideração o mal que me tenha feito. Abro apenas
uma exceção para um homem chamado Galvão. A ele se atribuem tantos feitos que
aceitaria de bom grado medir-me com ele. Tenho além deste um outro motivo. O pai
452
dele agiu de modo desleal, ao matar o meu no momento em que o cumprimentava.
Tenho, portanto motivos de sobra para acusá-lo. Lot infelizmente morreu. Mas o filho
dele, Galvão, cobriu-se de tanta glória que mesmo fora da Távola Redonda nenhum
cavaleiro pode superá-lo em prestígio. Espero poder um dia medir forças com ele."
O filho do ilustre Lot contestou, dizendo: "A prova de amor que pretendeis
dar à vossa amada- se é que dela se trata efetivamente- acaso consistiria em atribuir
ao pai dela um ato desonroso e desleal e, de quebra, declarar ainda que muito vos
agradaria matar o irmão dela? Seria uma jovem de péssimo caráter se não
condenasse semelhante atitude. Mas se for boa filha e irmã, tratará de defendê-los e
fará com que vosso ódio se aplaque. Qual seria a situação de vosso sogro se ele de
fato tivesse agido de forma desleal? Acaso já não vos vingastes, atribuindo ao morto
uma conduta desleal? Mas o filho dele não irá descurar-se do seu dever e
altivamente por ele responderá como convém. E não desejando tirar qualquer
proveito que a beleza de sua irmã poderá representar, oferece a si próprio como
garantia. Senhor, eu sou Galvão! O que quer que meu falecido pai vos tenha feito
podeis vingá-lo em mim. Não aceito qualquer defeito moral que se lhe impute e
O rei então exclamou: "Se fordes vós aquele a quem tenho ódio
por finalmente poder me bater convosco. Também para vós o encontro será
de seleto público feminino. Farei com que quinhentas damas compareçam ao local.
453
de Schastel Marveile, isso sem levar em conta aquelas que vosso tio Artur poderá
trazer do reino de Lover. Acaso conheceis a cidade de Bems, na Korcha? É ali que
ele se acha instalado com todo o seu séquito. Dentro de oito dias poderá ele
estarei no prazo de dezesseis dias no campo de Jof lanze para ali reapresentar
encontrareis, senão lá, uma ponte sobre o rio." Mas o senhor Galvão objetou:
"Voltarei pelo caminho por onde vim. No mais, tratarei de atender tudo que me
pedistes."
porque agora a coroa de ramos se constituía para ele em digno ornamento. Sem
454
Gringuljete tomou impulso no momento certo e sem claudicar transpôs o passo com
um salto gigantesco.
cincha do animal. Ao deparar-se com ele resvalou da sela, lançou-se a seus pés e
tipo de aflição que só uma mulher apaixonada é capaz de sentir por seu amado."
chega a ser quase digno de vós. Mas sei por experiência própria que desprezais a
instituição cavaleirosa. Ela é por demais sublime para que um verdadeiro cavaleiro
possa sentir-se atingido por tais motejos. Senhora, permiti que vos diga isso: Quem
quer que me tenha visto em ação terá de reconhecer que sempre agi como genuíno
dúvida. Mas estou disposto a esquecer tudo. Tomai a coroa de ramos. Mas de futuro
deslumbrante beleza não vos confere o direito de agir desse modo. Prefiro renunciar
mácula era o prestígio do meu belo, amável e magnífico amante. Sua vida era um
exemplo de honradez. Em seu tempo era voz geral que ninguém o superava em
455
prestígio. Era um poço de virtudes e sua bondade natural o tornava avesso a
qualquer tipo de procedimento menos digno. Das trevas emergia ele à luz e tanto
dilatou sua fama que ninguém dado a práticas desleais podia se comparar a ele.
coração, e nisso os demais ficavam muito aquém dele. Cumprindo sua trajetória
Saturno não se ergue muito acima das demais estrelas? Sua lealdade poderia muito
deplorar a triste sorte desse animal, cujo amor à pureza resultaria para ele em
fatalidade. Eu era seu coração e ele era meu corpo, esse corpo que o destino
quem o matou. Senhor, se eu vos ofendi com palavras amargas é porque vos quis
pôr à prova a fim de averiguar se sereis digno de meu amor. Senhor, bem sei que
vos ofendi, mas isso fazia parte da prova. Agora que vossa ira se desvaneceu
perdoai o que vos fiz. Sois um homem de escol! Compararia vossa fibra ao ouro
minha mão há de lhe infligir castigo que o curará de vez de seu orgulho.
Comprometi-me com ele a. dentro de poucos dias enfrentá-lo em luta a dois. Saber-
se-á então, do que cada um de nós é capaz de obrar. Senhora, já vos perdoei.
Ele enriquecerá vosso prestígio como mulher e vos dará verdadeira distinção. Não
456
Ela porém, argumentou: "Um braço armado nunca foi capaz de aquecer-
me. Isso não significa que não vos concederei no devido tempo as esperadas
Schastel Marveile."
afetuosamente. Quando a encontrara pela primeira vez naquele sítio junto à fonte e
ela lhe dissera palavras tão estranhas não a havia considerado digna disso.
Galvão partiu felicíssimo, mas Orgeluse não pôde reprimir as lágrimas até
que ele, alarmado, lhe perguntasse acerca dos motivos do choro e procurasse
acalmá-la. Ela então desabafou: "Senhor, não posso esquecer aquele homem que
matou meu nobre Cidegast. Meu coração que exultava de felicidade enquanto seu
carinho me envolvia, agora está profundamente ferido. Para vingar-me lancei mão
sua perdição. Ah, se pudesse fazer de vós o instrumento daquela vingança capaz de
finalmente resgatar-me dessa dor que me consome! Para levar Gramoflanz à morte
aceitei o serviço de certo rei que possuía muitas coisas singulares. Seu nome é
meu serviço esse rei foi atingido pela desgraça que me precipitou no mais negro
desespero. Ao invés do amor que pretendia dar-lhe foi alvo de novos contratempos.
É que Anfortas foi ferido estando a meu serviço e a aflição que disso resultou para
mim foi tão grande ou talvez ainda maior do que me causou a morte de Cidegast.
457
Agora dizei-me se eu, pobre mulher, em meio a tanta desgraça poderia conservar a
ficava inteiramente fora de mim por ver definhar irremediavelmente aquele que
escolhi depois de Cidegast, sem tê-lo vingado. Senhor, sabereis agora como
vosso castelo."
ocultos submete homens e mulheres à sua vontade. Nenhum homem de bem que
lhe chame a atenção escapa à força de seu sortilégio. Para ser deixada em paz cedi
ofereceria minha mão àquele que saísse vitorioso na aventura do castelo. Caso este
a recusasse, o precioso acervo voltaria a ser novamente meu. Esse contrato foi
Gramoflanz no que Infelizmente não fui bem sucedida. Se ele houvesse tentado a
combates. Não é singular que tenha podido manter-se incólume? Fiz de tudo para
458
pôr sua vida em perigo. Quando não havia quem simpatizasse com minha causa
embora jamais lhe prometesse tal recompensa. Não havia homem que ao me ver
não se dispusesse a me servir, menos um, que usava armadura vermelha. Quando
chegou a Logroys pôs todos os meus guerreiros em dificuldade, pois para meu
entregues ao barqueiro. Depois de haver vencido meus homens eu própria fui a seu
encontro oferecendo-lhe meu reino e minha mão. Ele porém recusou, alegando que
preferia manter-se fiel à sua própria mulher que, de resto, era mais bonita que eu.
Irritada com suas palavras, quis saber de quem se tratava. “A bela Rainha de
Pelrapeire é minha esposa. Eu próprio me chamo Parsifal. Vosso amor não me atrai,
partiu contrariado. Dizei-me agora se agi mal quando em desespero de causa lhe
ofereci minha mão. Se fosse este o caso meu amor não teria valor para vós."
mão como homem de grandes méritos. Por isso não teríeis deslustrado vossa
459
8. REGRESSO FESTIVO AO CASTELO ENCANTADO
gostaria que mantivésseis meu nome em segredo. Vós o ouvistes da boca do cava
leiro que me roubou Gringuljete. Fazei-me este favor. Quando alguém vos indagar a
respeito, dizei: Não conheço meu acompanhante pelo nome. Nunca me disse como
para ser visto das ameias do castelo. Todos se dirigiram então, alegres e
460
Ela respondeu: "Trata-se do exército de Clinschor. Com impaciência
vinham eles aguardando vossa chegada. Na realidade estão se dando pressa para
vos dar boas-vindas. Suponho que esta manifestação de simpatia não vos deva
desagradar."
barca. A jovem corria pela campina ao seu encontro para recebê-lo com
armadura. Segundo ouvi falar, trouxera ela aquele mesmo manto que lhe servira de
coberta na noite em que fora hóspede de sua casa/ e que agora lhe caberia usar
uma vez mais. Galvão vestiu túnica e manto enquanto a jovem tratava de retirar dali
a armadura.
duas cotovias de poupa, assadas, além de uma taça de vinho e dois pães brancos.
Fora o gavião que havia tratado de conseguir esse assado. Havia água disponível
Galvão sentia-se feliz por partilhar a mesa com a mulher amada, pela qual faria
qualquer coisa. Se de quando em quando ela lhe passava a taça que antes tocara
com os lábios, seu prazer se renovava sempre que lhe tocava a vez. Sua tristeza se
461
Os doces lábios e a face radiante da amada faziam-no esquecer
minha partida o que aconteceu ao cavaleiro que aqui se bateu em duelo? Alguém o
quem está sentado a meu lado. Consoante bem lhe pareça pode ele presenteá-los
ou conservá-los para si. Mas caso ele me queira bem, resgatará Lischoys, Duque
de Gowerzin, bem como o outro príncipe, chamado Florand de Itolac. Como meu
Turcóide, zelava por minha segurança e me era tão dedicado que não terei alegria
em liberdade."
duquesa a montar. Ambos foram recebidos ali por numerosos e distintos cavaleiros
462
que os acompanharam até o castelo. Alegres e à vontade iniciaram ali um exercício
de arte marcial que fazia honra a todos. Que mais me resta dizer? Apenas que o
Marveile uma recepção tão carinhosa que os deixou sumamente felizes. Podeis
agora celebrá-lo por tanta felicidade que lhe foi dado experimentar. A seguir foi
seus ferimentos.
de sua classe. Galvão fê-lo jurar que exceto o próprio destinatário não revelaria a
ou más notícias. A seguir mandou vir tinta e pergaminho. Com letra firme e elegante
situação adversa não acorresse em seu auxílio. Em nome dessa leal amizade que
os unia pediu-lhes que se dirigissem com todo o seu séqüito de cavaleiros e damas
para Jof lanze. Ele próprio lá estaria para defender sua honra num combate.
corte para que em nome da lealdade recíproca convencessem o rei a seguir para
disposição dos notáveis do reino advertiu-os para o fato de que o combate que ali se
463
A carta não continha sinete, mas seu texto apresentava certos sinais
recomendação especial: não reveles a vivalma que sou soberano deste reino nem
lhe para onde ia e qual era o conteúdo da mensagem que levava. Ele, porém,
replicou: "Senhora, se meu juramento tiver algum valor, nada poderei revelar-vos.
Que Deus vos guarde! Agora devo partir!" Com estas palavras se pôs a caminho
464
LIVRO XIII
1. A FESTA NO CASTELO ENCANTADO DE CUNSCHOR
O fato de o escudeiro não lhe haver revelado para onde ia deixou Arnive
sobremodo irritada. Por isso recomendou à sentinela do portão: "Quer regresse ele
durante o dia ou à noite, procede de modo que seja obrigado a esperar até que
tenha falado com ele. Deixo isso por conta de tua habilidade."
perguntas. Esta, porém não fez qualquer menção ao nome de Galvão. Consoante
465
Depois de tantas fadigas e penas Galvão dormiu até altas horas. Suas
feridas haviam sido pensadas de forma tão apropriada que chegou a pensar quão
bom seria se a amada estivesse deitada ao seu lado e pudesse tê-la em doce amor.
Dessa vez dormiu bem melhor que na noite anterior, quando a lembrança
vira envolvido em nova escaramuça erótica com a duquesa. Consoante ouvi dizer,
bordaduras de ouro. Foi então que meu senhor Galvão observou: "É mister
Florand, que em muitos países deixou a marca de sua bravura. Trata de deixá-las
Lischoys à sua presença. Não muito depois a bela filha do barqueiro ali compareceu
em companhia de Lischoys. A senhorinha Bene veio com ele de mãos dadas, para
agradar a Galvão e também porque este prometera muitas coisas a seu pai no dia
em que mergulhada em prantos o vira partir com ânimo resoluto, disposto a dilatar
descendia dos Seres198. Mas ele próprio era natural de Triande. No reino de
198
Seres. Nomwe sob o qual eram conhecidos, na Antiguidade e na Idade Média, os habitantes da Ásia
Oriental (hoje China), hábeis na confecção de tecido de seda.
466
Secundille existe uma cidade chamada Thasme, maior que Nínive ou a portentosa
Ácraton. Para tornar-se célebre Sarant inventou ali um tecido que chamou muita
sabia fingir e no fundo compreendia muito bem o que convém a uma dama.
Enquanto conversavam Galvão notou que junto à duquesa havia quatro rainhas. Por
serem cumprimentadas com um beijo pelas três damas mais jovens. A senhorita
dois que tomassem assento junto às damas da maneira que lhes conviesse, um
"Qual dessas damas é Itonje? Gostaria de sentar-me junto dela." Foi esta
467
identificou a bela jovem: "É aquela de boca rubra, cabelos castanhos e olhos
brilhantes. Se com ela desejais ter uma conversa em particular, limitai-vos ao que
problemas amorosos de Itonje e dos motivos pelos quais o nobre Rei Gramoflanz a
Reproduzo aqui apenas o que me foi dito. Galvão sentou junto à jovem e
lhe dirigiu palavra em tom gentil. Dialogar era um terreno em que se sentia
também hábil no uso da palavra. Ele se arriscou ao lhe perguntar se já estava a par
das coisas do amor. Mas ela demonstrou ser muito senhora de si ao responder:
"Senhor, a quem poderia eu amar? Desde que me conheço como gente nunca
troquei palavra com um cavaleiro. Hoje isso acontece pela primeira vez."
A bela jovem respondeu: "Sobre essa questão de servir por amor, nada
sei. Sei apenas que há muitos nobres cavaleiros servindo à Duquesa de Logroys por
nenhum, famoso por seus altos feitos, como vós, tem estado em contato direto
comigo."
468
Ele prosseguiu perguntando à bela jovem: "Quem é o alvo da hostilidade
de Orgeluse?"
coisas a respeito dele. De sua própria boca ouvi que estava empenhado de corpo e
alma no mister de vos servir e que esperava de vosso amor consolo e ajuda. É de
certo muito natural que um rei se tome de paixão por uma rainha. Senhora, se o
nome de vosso pai for Lot então sois vós por quem seu coração anseia. Se vosso
nome for Itonje então sois vós o objeto de suas penas. Disponho-me a servir aos
dois como mensageiro. Senhora, aceitai este anelzinho. É um mimo que vos envia o
Timidamente apanhou com mão de fada o anelzinho que conhecia tão bem. A seguir
disse: "Senhor, se me for dado falar com franqueza, devo reconhecer que vindes da
parte do homem por quem meu coração anseia. Se desejais agir consoante as
normas da boa educação não passai adiante o que sabeis. Não é a primeira vez que
o rei me envia este anel. Foi um presente que lhe enviei e serve de sinal de
atendi a todos os seus desejos. Se me fosse permitido sair daqui ele teria sabido
469
disso há mais tempo. Quando beijei Orgeluse, que intenta contra a sua vida, dei-lhe,
No fundo detesto todos aqueles que hostilizam o Rei Gramoflanz com seu ódio. Mas
minha mãe não pode saber disso e tampouco minha irmã Cundrie!" Foi este o
pedido que Itonje fez a Galvão: "Senhor, vós desejais que receba o beijo desses
mão poderosa é capaz de dar a ajuda necessária para que um dia nós dois sejamos
desejo retribuir esse sentimento preferindo-o a todos os outros homens. Que Deus
vos inspire uma solução a fim de que nossa felicidade não seja comprometida."
proceder. Afinal estais separados. Ele está lá e vós cá. Se eu encontrasse uma
saída que permitisse a vós dois viverem uma vida honrada e feliz eu faria qualquer
confiança. Vossa ajuda e a bênção de Deus serão os esteios de nosso amor e com
eles espero poder remi-lo de suas penas. Como represento sua única felicidade
meu amor."
470
ódio. Mas ele próprio foi desonesto com a jovem ingênua, que num gesto de
desabafo lhe revelara suas penas, pois lhe ocultara que a mesma mãe os trouxera
ao mundo e que o Rei Lot era o pai de ambos. Depois de haver recebido sua
promessa de ajuda a jovem inclinou levemente ã cabeça num gesto de gratidão pela
solidariedade.
damas. Na hora de ocupar lugar à mesa houve uma separação. Apartados das
Rainha Arnive. As duas encantadoras irmãs ele convidou para sentarem a seu lado.
Não sou grande cozinheiro, pois meus conhecimentos nessa arte não
bastariam para identificar sequer a metade dos pratos que ali vinham sendo servidos
escudeiros. Estes observavam uma disciplina tão rígida que no momento de servir
nenhum deles tentava abrir caminho em meio às jovens. Quer servissem comida ou
participado desde o tempo em que tinham sido dominados pelo poderoso sortilégio
471
de Clinschor. Embora confinados no mesmo castelo as damas e os cavaleiros não
se conheciam e nunca haviam trocado uma palavra sequer. Foi por intermédio de
Galvão que puderam viver a gratificante experiência de entrar em contacto uns com
os outros. Galvão se mostrou igualmente eufórico. Mas seu olhar seguia sempre os
própria noite. Nos preciosos candelabros que pendiam do teto eram acesas
numerosas velas, iluminando todo o palácio. Nas mesas eram igualmente colocadas
numerosas velas. Aqui a Aventura sugere que a formosura da duquesa era de tal
modo esplendente que mesmo sem velas a escuridão não teria podido prevalecer na
sua proximidade pois sua beleza era qual claro dia. Era essa a versão que se
certa timidez por não se conhecerem agora se vinham tornando gradualmente mais
íntimos.
A essa altura podeis supor, com razão, que haviam comido o bastante e
nosso senhor Galvão perguntou se alguém dos presentes sabia tocar rebeca. Havia
ali muitos nobres escudeiros iniciados na arte de tocar instrumentos de corda. Mas
472
seus conhecimentos se limitavam à execução de danças tradicionais. Sobre o novo
ritmo oriundo da Turíngia haviam ouvido falar apenas vagamente. Podeis agradecer
ao anfitrião que tudo fez para que não ficásseis privado desse entretenimento.
Muitas distintas damas viu ele ensaiar os passos de dança. O ritmo cresceu em
nesse grupo feminino. Foi a maneira que acharam para comemorar o término de
oferecer seus serviços em troca de amor a oferta nunca era recusada. Com risonha
sorriam.
2. SERVIÇOS RECOMPENSADOS
passaram a conversar sobre assuntos vários. Ele se sentia feliz pelo fato de ela o ter
satisfação de Galvão não era menor. A Rainha Arnive disse-lhe então: "Senhor, não
vos descuideis de vossa saúde! Tendo em conta vossas feridas conviria repousar
473
agora. Caso a duquesa tenha decidido compartilhar desde hoje o leito convosco e
zelar para vos manter agasalhado não há objeções a fazer. Ela saberá dar-vos
ajuda e conselho."
A duquesa disse então: "Ele ficará entregue a meus cuidados. Fazei com
que qualquer outra seria capaz de proporcionar a seu bem-amado. Florand de Itolac
dominado por nobre paixão, parecia-lhe que já se achavam ali por tempo
Galvão determinou aos escudeiros dar atenção especial a seus dois hóspedes
principescos, uma deferência que ambos receberam com agrado. A duquesa lhes
474
sua vez, inclinaram-se cortesmente e se recolheram a seus quartos. Sangive, Itonje
estar do anfitrião. De sua parte a duquesa se prontificou a ajudar em tudo que fosse
necessário. As três conduziram Galvão a seus aposentos. Ali na keme-nate viu ele
aparência magnífica para tratar de outro assunto. É que Arnive disse à duquesa:
"Fazei agora tudo que puderdes pelo cavaleiro que trouxestes para cá. Será honroso
para vós assisti-lo no que for preciso. Conviria dizer-lhe ainda que suas feridas
melhor. Se conseguirdes animá-lo será uma satisfação para todos nós. Não vos
candeeiro. A seguir Galvão fechou a porta. Embora a contragosto nada direi sobre
indiscrição bem que gostaria de dar-vos conta do que ali aconteceu. Um tal
todo o gosto pela vida. Sem a amada seria um homem aniquilado. Os filósofos não
seriam capazes de livrá-lo de tal sorte, nem aqueles homens iniciados nas artes
199
Kancor/Thebit. Sábios árabes que no século IX floresceram na corte dos kalifas de Bagdá
200
Trebuchet. Ligado às forças telúricas os ferreiros sempre encarados com um misto de respeito e receio.
Os mais antigos depositários desse mito metalúrgico foram os cabiros da tradição grega e os nibelungen da
475
Frimurtel com todas as suas miraculosas propriedades, e tampouco a ciência dos
restituiria a saúde e o tornaria imune às doenças. Era uma erva escura sobre fundo
claro. Galvão, filho do Rei Lot, bretão por parte de mãe, recebeu da nobre
companheira durante toda a noite até o romper da aurora, o doce consolo que
curiosidade pública. Ele depois cuidaria também para que as damas e os cavaleiros
tristes.
3. O REGRESSO DO MENSAGEIRO
Korcha, no país de Lover. Ali se encontravam o Rei Artur, sua real consorte, muitas
mitologia germânica. Como estes, Trebuchet aparece aqui como nobre mestre ferreiro, iniciado na arte de
manipular o fogo que instilava nas armas que forjava. N.T.
201
Erva-de-veado (ou faxina vermelha). Árvore de pequeno porte da família das sapindáceas (Dodonea
viscosa), dotada de propriedades febrífugas. N.T.
476
escudeiro havia feito. Ele transmitiu sua mensagem ao amanhecer. A rainha se
dela e lhe entregou a mensagem alvissareira. Ela recebeu a carta que lhe era
o nome de seu amo. A rainha disse, como que se dirigindo à carta: "Bendita seja a
mão que te redigiu! Nunca mais estive livre de preocupações desde o dia em que vi
pela última vez a mão que te deu forma." Ela; chorou lágrimas de alegria e indagou
"Sim, senhora! Como fiel cumpridor de seu dever ele reafirma sua
disposição de vos servir com inquebrantável lealdade e declara que unicamente vós
tendes a faculdade de decidir sobre sua desdita ou fortuna. Nunca como agora sua
honra esteve tão ameaçada. Senhora, ele manda vos dizer ainda que se sentiria
encontro", respondeu ela. "Farei o que me pediu. Irei ao encontro dele acompanhada
exclamou ela-, "preferia que meus olhos jamais te houvessem visto! Quanta coisa
477
má ali me aconteceu! Desde então nunca mais vi minha meiga e nobre amiga
Cinco anos, seis meses e seis semanas se passaram desde que o bravo Parsifal
nobre paladino, partiu rumo a Ascalão. Foi também ali que leschute e Ekuba se
despediram de mim. Desde então uma enorme saudade por esses nobres amigos
Foi assim que a rainha deu vazão a seus sentimentos. A seguir disse ao
escudeiro: "Segue agora, minhas instruções. Mantém-te escondido até que tenha
brasas, de sorte a terem pouca esperança de arrancar alguma coisa de ti. Abre
não recusará receber-te. Entrega a carta em sua mão. Através dela o rei se inteirará
rapidamente do motivo de tua vinda e do pedido de teu amo. Ele o atenderá de bom
que as outras damas te possam ver e ouvir. Apresenta-nos tua mensagem com
palavras convincentes como se a felicidade de teu amo fosse para ti algo precioso a
478
O escudeiro respondeu: "Isso não posso. É-me vedado revelar o
paradeiro de meu amo. Mas se vos aprouver podereis tornar durável sua felicidade."
cercasse, saltou logo do cavalo e sem se importar com gorro, espada, espora e
cavalo abriu caminho entre os nobres cavaleiros que ali estavam parados. Estes
tratasse de dama ou cavaleiro, podia ocupar lugar à mesa sem antes cumprir essa
"Por falta de tempo nada direi agora! Perdoai-me e me mostrai o local em que possa
encontrar o rei. Terei que encontrar-me com ele antes pois se trata de assunto
A missão do escudeiro era tão urgente que sem dar atenção a mais
alguém tratou de abrir caminho no meio da multidão até atingir o local em que se
479
Artur. Sua leitura resultou em alegrias e tristezas para o rei, pois exclamou: "Bendito
seja este dia feliz, à cuja luz pude receber notícias dignas de fé do bravo filho de
"Sim, senhor, mas só vossa decisão será capaz de tornar efetiva essa
felicidade? Mas se lhe prometerdes vossa ajuda, não o deixando entregue à própria
sorte, afastareis de seu espírito todas as preocupações. A rainha oferece ele de todo
e de vos aconselharem a acudi-lo a fim de que sua felicidade não seja ameaçada."
Artur declarou: "Entrega esta carta à rainha. Ela deverá lê-la e nos
esclarecer sobre o que nos deve alegrar e preocupar. Quem afinal é esse tal Rei
Gramoflanz para desafiar minha estirpe com tamanho orgulho e atrevimento? Ele
acredita, por certo, que pode abater meu sobrinho Galvão tão simplesmente como
480
Aproximando-se, o escudeiro entregou a carta à rainha e foi recebido com
muita simpatia. Quando sua boca mimosa começou a ler em voz alta o texto que
furtivamente de muitos olhos. O escudeiro por sua vez tratou logo de criar um clima
aderir à idéia da viagem. A nobre Ginover também não perdeu tempo, pois tratou de
mais distinto que Galvão, o norueguês? Pois, então apressai-vos para ir ao encontro
dele! Tratai de segurá-lo antes que resolva mudar de paradeiro! Pois se ele
continuar saltando de um lugar para outro feito esquilo estareis sujeito a perdê-lo
novamente."
para junto do meu amo. Defendei seu interesse com um empenho que faça jus a
vosso prestígio."
tratada por esporas dá-lhe o melhor cavalo que puderes achar. Se ele necessitar de
outras coisas, quer seja roupa ou dinheiro, então coloca tudo à disposição dele." E
481
voltando-se para o escudeiro rematou: "Dize a Galvão que pode contar comigo.
Darei ciência ao rei de tua partida. Dize a teu amo que também ele irá apoiá-lo."
cumprida a norma da Távola Redonda pois a notícia de que Galvão estaria vivo
espontaneidade. O rei partilhou a mesa com os cavaleiros que por sua fama
Artur aquilo que iria dissipar as preocupações de seu amo. Não saberia precisar o
tempo que levou para voltar a Schastel Marveile. Arnive recobrou as esperanças
foi a seu encontro, fazendo-lhe perguntas sobre a natureza de sua missão, onde
estivera e o que havia feito. O escudeiro respondeu: "Nada posso revelar-vos, pois
me obriguei mediante juramento a manter segredo. Meu amo se sentiria muito infeliz
meu juramento."
482
O escudeiro foi ao encontro de seu amo, que se achava em companhia
chamou-o à parte e lhe deu boas-vindas dizendo: "Meu amigo, dize-me depressa se
rei?"
esposa e muitos de seus dignos vassalos. Eles prometeram vos apoiar e vos
todos - ricos e pobres -, se tomaram de grande euforia, pois foi através dela que se
pessoas acha-se ali reunido. Vossa mensagem provocou uma reunião dos membros
é, um renome cantado em toda a parte em prosa e verso, então vossa fama levou a
que pudera falar com a rainha e dos judiciosos conselhos que esta lhe dera. Falou-
lhe finalmente dos membros da corte, dos cavaleiros e das damas com cuja
presença em Joflanze ele podia contar antes de enfrentar o combate. Galvão criou
ficar ali na alegre roda dos amigos até que o Rei Artur viesse lhe hipotecar seu
apoio.
483
4. A ESTRANHA BIOGRAFIA DE CLINSCHOR
Permiti que vos fale agora de coisas alegres e tristes. Galvão esteve o
tempo todo em lua-de-mel com a vida. Sucedeu então que certa manhã, quando o
sentou-se com ela no nicho de uma janela que dava para o rio. É que ela era
sabedora de muitas coisas estranhas. Galvão disse, então à rainha: "Minha querida
senhora, caso isso não vos venha a aborrecer gostaria de saber de vós todas
aquelas coisas estranhas que permaneceram ocultas para mim. Graças à vossa
completamente meu sentir e meu pensar, mas fui atendido e minhas penas se
aquietaram. Sem vossa generosa ajuda meus ferimentos e minha paixão por
Orgeluse me teriam levado à morte. Graças a vós readquiri a saúde. Mas descrevei-
aqui ocorriam e que objetivos o sábio Clinschor tinha em mente ao criar todos esses
avançada idade soubera cultivar mais que qualquer outra mulher um acendrado
senso de dignidade, respondeu: "Senhor, os prodígios que ele aqui realizou são de
muitos outros países. Quem nos menospreza pelo fato de termos sido subjugados
por ele incorre em grave erro. Senhor, descreverei agora o feitio moral desse
484
homem que foi causa da desgraça de muita gente. Era natural de Terre de Labur202
era Cápua. Alcançou tão grande e indiscutível notoriedade que homens e mulheres
não falavam senão do Duque de Clinschor até o dia em que a desgraça o atingiu. Ao
tempo reinava sobre a Sicflia um nobre rei chamado Ibert. Ibilis, sua esposa, era
mais bela que qualquer outra mulher que em algum tempo tenha sido posta no
mundo. A ela Clinschor serviu até o dia em que recompensou seus serviços
tornando-se sua amante. O rei o puniu por isso. Se for preciso contar-vos os
compreensão, pois na realidade não conviria reproduzir aqui com todos os detalhes
golpe." Galvão riu gostosamente, mas Arnive prosseguiu: "Foi em Kalot Enbolot204,
um castelo solidamente fortificado, que lhe foi infligido esse opróbrio. O rei o
surpreendeu dormindo placidamente nos braços de sua esposa. Estava ali bem
acomodado, mas pagaria muito caro por isso, pois as mãos reais extirpariam o que
tinha no meio das pernas. O rei achou que agir desse modo era um direito seu e o
capou tão bem que dali em diante nunca mais poderia entreter-se com mulher
alguma. Isso resultaria em desgraça para muita gente. Não foi na Pérsia, mas numa
cidade chamada Pérsida que foram inventados os primeiros rituais mágicos. Para lá
viajou Clinschor e com o tempo se tornou tão versado em magia negra que na
prática era capaz de produzir os fenômenos que queria. Cheio de rancor pelo
202
Terra de Labur. Terra de Lavoro, grande depressão na Campanha romana a leste de Nápoles. N.T.
203
Virgílio era natural de Mântua e não de Nápoles, como pretende Wolfram, embora escolhesse essa
última cidade como terra de sua eleição espiritual. Conhecido como expoente máximo da Poesia de seu tempo,
sua grande fama de mago originou-se, possivelmente, da leitura de suas obras onde, de fato, pode ser encontrada
a descrição de muitos hábitos estranhos e numerosos rituais de encantamento, próprios dos povos itálicos
daquele tempo. NT
204
Kalot Enbolot. Kalata Bellota (ital), ou Kalath-al-Bellut (árabe) - Castelo dos Carvalhos — praça
fortificada próximo a Sciaccia, cidade situada na costa da Sicília Ocidental.
485
vexame sofrido no próprio corpo nunca mais quis bem a pessoa alguma. Refiro-me
aqui a pessoas importantes. Toda a vez que conseguia aniquilar a felicidade de tais
pessoas exultava de satisfação. Um certo rei chamado Irot, de Rosche Sabbins, foi
também intimidado por Clinschor. Para viver em paz permitiu que escolhesse entre
os seus domínios aquele que mais lhe agradasse. Foi desse modo que Clinschor
recebeu da mão do rei a posse deste penhasco, bem como as terras em torno num
raio de oito milhas. Como vedes, neste penhasco ele erigiu esta engenhosa obra de
aqui. Se alguém quisesse sitiar o castelo haveria aqui provisão de alimentos para
todos os bons e maus espíritos que habitam entre o Céu e a Terra, salvo sobre
que era de Clinschor se tornou propriedade vossa. Ele abriu mão do castelo e do
receberia tudo Isto e nunca mais seria hostilizado por ele. E o que ele promete,
vossos súditos. Da mesma forma, muitos pagãos e pagãs foram compelidos a viver
tristeza. A vida em terra estranha arrefeceu minha capacidade afetiva. Que Aquele
que conhece o número de estrelas vos inspire solidariedade e vos restitua a alegria
perdida. Uma mãe deu luz ao seu fruto e esse fruto se tornou mãe por sua vez. O
gelo resultou da água e voltará a ser água. A idéia de que meu nascimento foi
motivo de felicidade me dá a certeza de que voltarei a ser feliz. A vida nasce da vida.
486
Se estiverdes animado por nobreza de sentimentos enveredai por esse caminho.
Vivo sem alegrias há muito tempo. A vela inflada impele rapidamente a embarcação,
porém mais célere ainda é o homem que lhe maneja o leme. Se assimilastes a lição
tristeza. Outrora eu vivia feliz e minha testa ostentava uma coroa. Minha filha
também era rainha de um país com muitos príncipes por vassalos. Ambas
tratei todos os homens e mulheres como convém. Com a ajuda de Deus sempre fui
considerada e reconhecida como mãe de meus súditos, posto que nunca pratiquei
um ato injusto. Toda a mulher bafejada pela boa fortuna deveria para seu próprio
extremo perigo até um rapaz de modesta condição social poderá acudir em seu
socorro e devolvê-la à sua vida feliz. Senhor, minha vida aqui tem sido uma longa
espera. Mas ninguém que me conhecesse veio a pé ou a cavalo para pôr fim às
minhas penas."
487
5. A CHEGADA DE ARTUR
amargurada Arnive, que vinha para cumprir um dever de lealdade devida a seu clã.
cobriam aos poucos a campina e na estrada que conduz a Logroys via-se uma
desse auxílio. Artur livrou Galvão do peso dessa incerteza. Ah, e com que pompa
olhos claros. Não serviam de cisterna porque não sabiam represar a água que os
vinha encobrindo. Eram lágrimas de alegria pela chegada de Artur, que o criara
desde a infância. Sua lealdade mútua era tão autêntica e inquebrantável que jamais
fora turvada pela sombra da desconfiança. Arnive se apercebeu da comoção que lhe
ia na alma e observou: "Senhor, essa ajuda atinge a todos nós. Devíeis exultar de
alegria invés de vos comover. Lá vem também o exército da duquesa para vos trazer
apoio."
Utepandragun. Mas quem agora carregava esse pavilhão era outro bretão. Tratava-
488
se de Maurin-de-pernas-bonitas, o marechal da rainha. Arnive ignorava que
Utepandragum e Isajes haviam morrido e que por força da tradição a função do pai
havia passado para Maurin. O enorme exército se espalhava pela campina que se
estas certamente agradou. Num abrir e fechar de olhos haviam sido armadas ali
armadas numerosas e amplas tendas para o rei e seus cavaleiros. Era naturalmente
transpusesse o rio naquele dia. Por esse serviço a senhorinha Bene recebeu o
do castelo, jovens e idosos, o seguinte pedido: "Na margem oposta do rio acampou
nos desafiarem com sua superioridade então gostaria de contar com vosso apoio
para enfrentá-los."
489
respondeu: "Podeis crer-me que no meio desses que ali estão, acampados não
consigo identificar nem pessoas nem escudos. É possível que o homem que já me
causou tantos aborrecimentos tenha invadido meu país e se chocado com minhas
tropas. Mas acredito que minha gente tenha reagido à altura e sabido manter-se em
evidentemente buscando uma reparação pelo ramo perdido. Mas qualquer que seja
a identidade dos desafiantes serão recebidos pelos defensores com suas lanças em
riste."
adversários vários bretões haviam sido descalvagados. Mas Artur pagou-lhes com a
Muitos foram vistos chegar esgotados pela luta e a versão que corria a
respeito deles era que haviam sabido defender muito bem sua pele e eram
Idoel, haviam sido aprisionados. Os defensores de Logroys podiam lamentar por sua
205
Barbacã. Muro avançado de um castelo, construído diante das muralhas e mais baixo que estas.
Chamado também antemuro. NT
490
nobres bretões reagiram, enfrentando vigorosamente o exército da duquesa, mas a
retaguarda de Artur também não ficou incólume, pois nesse dia foi assediado pelo
Meu senhor Galvão deveria ter explicado à duquesa que um aliado iria
atravessar suas terras e evitado desse modo o entrechoque das tropas. Mas sobre
esse assunto ela deveria saber tão pouco quanto os outros, pois só devia tomar
conhecimento daquilo que visse com os próprios olhos. Contudo, passou a avaliar
bretão. Mandou vir preciosas tendas e ninguém saiu perdendo pelo fato de Galvão
receberam presentes tão valiosos que todos estavam unânimes em afirmar que essa
era uma ajuda de verdade. Em toda a parte viam-se rostos sorridentes. O nobre
varão mandou vir, ademais, vigorosos animais de carga, vistosos palafréns para as
senhor Galvão tomou mais uma providência. Selecionou quatro nobres cavaleiros,
Por ora deixai que Artur repouse em sua tenda. Embora a contragosto
Galvão decidiu que naquele dia não haveria qualquer ato de boas-vindas.
491
6. ARTUR PARTE PARA JOFLANZE
Na manhã seguinte, bem cedo, Artur partiu com ruidoso aparato para
Mas não tendo sido hostilizada enveredou pelo rumo dos demais. À vista disso meu
próprio onde possa acampar. Ali verás instalado o grande exército que há pouco se
poderes reconhecê-lo. Trata-se do meu tio Artur, em cuja corte e castelo fui criado
desde a infância. Mas não reveles aos moradores do castelo o fato de Artur ter vindo
Gaivão seguiram na pista dos bretões. Na sua bagagem seguia também - é preciso
dize-lo- a tenda que outrora Ibilis oferecera a Clinschor como prova de amor e que
seria identificada afinal como local de seus encontros secretos. Na sua confecção
Isenhart nenhuma tesoura deu forma a tenda mais magnífica. Essa tenda seria
492
amplo círculo, erguiam-se as outras tendas, o que dava ao conjunto um aspecto
magnífico.
seu acampamento na campina. Naquele mesmo dia deveria chegar também o nobre
companhia de sua tropa. Tão vistosa era sua coluna que poderia contar muitas
uma milha de comprimento. Gaivão cuidara para que cada uma das atraentes
damas tivesse como acompanhante um guapo cavaleiro e, dado esse fato, seria
puro disparate supor que não falassem de coisas do amor. O Turcóide Florant vinha
conferir também à lua chegada um cunho de grandiosidade Galvão fez com que a
dama que ia à frente se detivesse diante da tenda do Artur. Seu marechal deu
493
instruções à seguinte, no sentido de emparelhar a montaria com a da primeira. As
afortunado, pôde ser recebido e essa acolhida, na minha opinião, foi sobremodo
carinhosa. A seguir Galvão, Arnive, sua filha, as filhas desta, a Duquesa de Logroys,
ao encontro desse grupo seleto e lhes deu cordiais boas-vindas. O mesmo fez a
rainha, sua esposa. Ela cumprimentou Galvão e seus acompanhantes com grande e
com um beijo. Seria pouco amável se não o fizesse já que ambos são de nobilíssima
estirpe."
pareceu como se a ampla campina estivesse repleta de damas. Artur porém deu
uma demonstração de seu trato cortês. Montando seu castelhano passou em revista
o círculo formado pelas damas e seus respectivos cavaleiros dando a todos cordiais
o momento em que se dispusesse a partir com eles. Ao tempo era esse o costume
da corte.
494
Artur desmontou e regressou à sua tenda. Sentando-se junto ao sobrinho
insistiu que lhe fossem apresentadas as cinco damas presentes. Começando pela
mais idosa meu senhor Galvão disse ao bretão: "Vós conhecestes Utepandragun!
Pois esta é Arnive, sua esposa. Vós mesmo sois filho de ambos. Esta aqui é minha
mãe, a Rainha da Noruega e estas duas atraentes jovens são minhas irmãs."
fossem dominados pela alegria e pela dor, pois riam com os olhos rasos d'água,
Artur disse então: "Sobrinho, eu ainda não sei quem é esta quinta e
belíssima dama."
Galvão. "Consta que assolastes suas terras. Dizei-me agora o que lucrastes com
isso. Como se trata de uma viúva devíeis, pelo contrário, ter-lhe oferecido vosso
apoio."
"Gaherjet é prisioneiro dela e também Garel, que foi autor de tantas e tão
como o bravo Meljanz de Liz campeava! Mas um grupo que combatia sob uma
insígnia exibia uma seta de zibelina negra e mancha rubra de sangue simbolizando
o luto pela morte de um bravo. Lirivoyn era o grito de guerra desse pugilo de
206
Barbacã. Muro avançado de um castelo, construído diante das muralhas e mais baixo que estas. Chamado
também antemuro. NT
495
atacantes que combatiam gloriosamente sob essa insígnia. Infelizmente meu
Como o rei não se cansasse em lamentar suas perdas a duquesa lhe disse
cortesmente: "Eu vos isento de qualquer responsabilidade. Afinal a forma pela qual
fostes recebido não foi exatamente cordial mas também vós me infligistes danos
sem qualquer motivo. Que Deus vos inspire a melhor maneira de ressarcir-me dos
danos resultantes dessa vossa incursão guerreira. Enquanto isso aquele a quem
suas arremetidas, pois atacou justamente meus pontos fracos. Se ele prosseguir me
Galvão disse então a Artur: "O que me aconselhais? Acaso conviria trazer
para esta planície número ainda maior de cavaleiros? Podeis conquistar as boas
novas lanças."
mensagem aos notáveis de sua corte. Acredito que em parte alguma deste planeta
aquiesceu prazerosamente. Também todos aqueles que com ele haviam vindo
496
dirigiram-se às suas tendas, cujo aspecto requintado e magnífico parecia ter banido
vieram visitá-lo em sua tenda. Keye que, nesse tempo se restabelecera das feridas
tom de reprovação: "Por parte de Lot, o cunhado do meu amo, não haveria por que
que se lembrava com rancor do fato de Galvão não o haver vingado quando
quebrara o braço na queda. "Deus parece querer favorecer certas pessoas. Gostaria
sucesso do amigo. O invejoso, por sua vez, sempre reclama em altas vozes quando
algo de bom acontece ao próximo. Galvão era querido e prestigiado. Aonde queria
chegar aquele que pretendesse mais que isso? O mesquinho demonstra sempre sua
prestígio do amigo se mantém incólume. Galvão era incapaz de desejar mal a quem
quer que fosse. Sempre estivera imbuído de genuína lealdade. Era, pois natural que
acampamento do filho do nobre Lot foi algo como o reino da abundância. Mas uma
497
Na madrugada seguinte, antes do romper d'alva chegou uma tropa
marcharam rumo ao amplo círculo de tendas de Galvão. Quem por seus feitos
merecera integrar uma tal tropa de apoio podia orgulhar-se disso. Galvão pediu a
seu marechal que lhes indicasse local adequado onde logo depois, seguindo
propósito de medir forças com meu sobrinho em combate singular este aceita vosso
desafio. Seria preferível que viésseis logo pois conhecendo como conhecemos
vosso caráter arbitrário estamos certos de que não o deixareis por menos. Se
fósseis outra pessoa, não duvidaríamos em classificar essa vossa pretensão como
Foi então que Galvão pediu a Lischoys e Florant que lhe apresentassem
duquesa. Esta, por sua vez se disporia a retribuir-lhes a dedicação com sua estima.
Ele foi ao encontro deles e os tratou com tamanha gentileza que todos tiveram a
498
impressão de que o nobre Galvão era de fato um homem resoluto e de grande
distinção.
cicatrização de suas feridas atingira um estágio que lhe permitisse envergá-la sem
trouxesse Gringuljete e depois de montá-lo permitiu que partisse de rédea solta. Sua
Nunca senti tanta pena dele como naquele dia, ao vê-lo partir.
Deixando para trás a tropa acampada meu senhor Galvão partiu só, rumo
ao campo aberto. Que a Fortuna lhe seja propícia! Junto ao rio Sabbins viu um
força máscula. No tumulto do combate era qual chuva de granizo mas seu coração
era isento de qualquer falsidade. Sendo cavaleiro sem medo e sem mácula os atos
disso era próprio dele ainda que fosse do tamanho de meio dedo ou de uma fivela.
Desse insigne varão já ouvistes falar pois se trata do próprio herói deste poema.
499
LIVRO XIV
1. A PARTIDA DE GRAMOFLANZ
deveria estar mais do que nunca preocupado com sua reputação. Talvez devesse
preocupar-me também com o outro. Mas aquele não necessitaria do meu apoio pois
distante terra dos pagãos trouxera ele incólume sua cimeira a essas paragens. Mais
vermelha que o rubi era a cor de sua armadura e do xairel de sua montaria. Que o
maltratado. Tinha colhido ademais um ramo reluzente que só poderia ser procedente
da árvore guardada por Gramoflanz. Galvão tomou-o por isso pelo próprio
Gramoflanz e considerou vergonhoso o fato de o rei estar ali à sua espera. Se esse
de fato estivesse procurando um ajuste de contas com ele tê-lo-ia, ainda que dama
pelas esporas arremetiam agora impetuosos um contra o outro. Não era o terreno
500
arenoso mas campina ainda coberta pelo orvalho matutino que servia de cenário a
esse encontro. Deploro sinceramente os maus momentos pelos quais os dois iam
passar. Tanto um quanto o outro parecia ter nascido com aptidões especiais para as
lides bélicas, de modo que ambos se lançaram ao ataque em grande estilo. Quem
resto da vida se fosse homem são de juízo. Ali estavam prestes a colidir dois
homens cuja amizade nunca pôde ser posta em dúvida. Ouvi agora como o combate
decorreu. Este se feriu de modo ágil e vigoroso, o que ambos na realidade deveriam
lamentar. Dois homens até então irmanados pela amizade e por laços
melhor sobre o outro teria mais motivos para se mortificar do que regozijar. As mãos
tempo as espadas começaram sua obra de devastação de sorte que não tardaria
combate iniciado logo ao alvorecer prometia render muito. Não havia alguém que
pudesse apartá-los pois tirante eles próprios não havia ali vivalma.
planície à beira-mar, limitada a um lado e outro pelos rios Sabbins e Poynzaclins que
ali desaguavam no mar. No quarto lado, por onde se estendia a planície, havia
fortificações, pois ali se erguia a capital Rosche Sabbins com muitas muralhas,
501
de Artur cruzaram com muitos cavaleiros desconhecidos, turcópolos e lanceiros a pé
em armaduras de ferro. Atrás desses vinha com passo firme e altivo o grosso das
Permiti que vos ponha a par desses detalhes caso os ignoreis. De Punt, a cidadela
armado de ponto em branco, pois esses senhores pretendiam brilhar nas liças207. Os
expedição. Havia ali, ademais - caso derdes fé ao que digo - o vistoso Bernout de
Riviers, cujo pai, o poderoso Narant, lhe legara o domínio sobre Uckerland. Cruzara
comitiva de damas cuja formosura chamara tanta atenção que não se falava em
outra coisa. Dessas damas, duzentas eram ainda donzelas e outras duzentas tinham
marido. Se minha conta estiver certa, então Bernout, filho do Conde Narant, estava
207
Liça. Lugar destinado a torneios, justas e competições de arte marcial de um modo geral.
208
Kogge. Veleiro rápido de três mastros utilizado pela Liga Hanseática entre os séculos XIII e XV, quando
foi desbancado pela caravela. Tinha aproximadamente 29 metros de comprimento, 7 de largura e 3 de calado.
Transportava até 300 pessoas entre passageiros e tripulantes. NT
502
caberia aplaudir o vencedor. Os príncipes de seu reino haviam-se apresentado
seguidos de bravos cavaleiros e muitas damas da nobreza, de sorte que havia ali
rei. Este se achara reclinado sobre amplo canapé forrado de seda de Palmates e
dirigiram a essa figura ovante de orgulho nos seguintes termos: "Senhor, somos
homem tivestes o atrevimento de insultar. Quem sois vós para tratar com tamanha
arrogância o filho de vossa irmã? Mesmo supondo que vos tivesse causado algum
mal ainda assim o ilustre Galvão poderia contar com o apoio da Távola Redonda
pois todos os seus membros estão com ele irmanados pelos sólidos vínculos da
amizade."
que Artur e sua esposa, aos quais envio minhas saudações de boas-vindas, se
empenhada em me intrigar com eles não permiti tal coisa, jovens! O combate é
inevitável e insisto em que seja realizado. Não tenho por que temer um ato de
209
Grevas. Parte da armadura que cobre as pernas do cavaleiro (dos joelhos até os pés).
503
violência de vez que estou cercado de muitos cavaleiros. Quanto aos danos que
possa vir a sofrer nas mãos de um só homem é um risco que devo correr, pois faz
parte do jogo. Se agora tivesse que desistir desse propósito não mais poderia servir
por amor. Deus sabe que Galvão está tirando vantagem do fato de ser parente da
dama em cujas mãos depositei a felicidade de minha vida, pois até esta parte nunca
havia concordado em lutar contra um homem só. Mas considerando que o nobre
Galvão arriscou tão corajosamente a vida terei prazer em lutar com ele. Ao aceitar
esse encontro arrisco-me em ver diminuído meu prestígio, pois até agora nunca me
envolvi em luta tão fácil. É sabido que enfrentei homens que foram levados a me
com a notícia de que a dama à qual dedico esse combate foi resgatada do cativeiro
países estrangeiros. É possível que de sua comitiva faça parte aquela dama a cujo
até o fim de meus dias. Poderia haver felicidade maior que tê-la como testemunha
Bene, que se achava abraçada ao rei, não tinha objeções a fazer no tocante
sua ama e que essa empresa arriscada envolvia diretamente seu soberano sua
que outrora Itonje, a jovem rainha, lhe enviara como prova de amor e que o famoso
504
irmão lhe restituíra ao regressar de Sabbins. Bene descera o Poynzaclins num barco
com o objetivo de transmitir a seguinte notícia: "Minha ama acaba de deixar Schastel
o distinguira com sua lealdade e honradez em grau jamais concedido por donzela a
um cavaleiro. Pediu-lhe ademais que não se esquecesse das penas de sua ama,
que pusera seu amor acima de quaisquer outras considerações. Tais palavras
deixaram sumamente envaidecido o rei que de resto vinha tratando Galvão de forma
bastante injusta. Se por causa de uma irmã tivesse de passar por semelhante aperto
Eis que se lhe trazia sua magnífica armadura. Ninguém, obediente aos
ataviou para a amada com maior esmero que ele - nem Gahmuret, nem Galões,
nem o Rei Kilycrates. Seda mais bela do que a que vinha usando jamais fora
Gramoflanz beijou o anelzinho que Itonje, a jovem rainha, lhe enviara como sinal de
apreço. Estava tão seguro de sua lealdade que considerou o amor da jovem um
segurava uma das 12 hastes que sustentavam o baldaquino. Era cavalgando sob
essa cobertura móvel, propiciadora de sombra, que o rei pretendia entrar na liça.
505
À sua esquerda e direita vinham a cavalo duas jovens vistosas, as mais belas
entre todas, sobre cujos ombros o rei pusera seus braços vigorosos.
superioridade deste era tão evidente que o nobre Galvão teria de amargar a derrota
quando minha mão indigna deu início a esta peleja. Nada de pior poderia ter-me
antiga sina se manifestou. Ao me voltar contra o nobre Galvão atentei contra mim
este combate!"
506
Ao ver e ouvir essa demonstração de desespero Galvão disse a seu
adversário: "Ah, senhor, quem sois vós? Usais palavras tão conciliatórias que as
teria preferido ouvir antes de me falecerem as forças. Nesse caso teria conservado a
reputação que me arrebatastes. Gostaria de saber com quem ficou minha reputação
pois ainda pretendo recuperá-la. Minha boa estrela me abandonou pois até esta
venceste a nós ambos agora cabe-te também sentir pena de nós dois. Se teu
mesmo."
Ditas estas palavras meu senhor Galvão mal pôde ficar de pé.
pavão. O diligente empenho do jovem fidalgo fez com que voltasse a si.
507
3. GRAMOFLANZ NO CAMPO DA LUTA
Os dois cavaleiros não ficariam a sós por muito tempo. De vários lados
desafiante Gramoflanz havia mandado fincar ali, às suas expensas, cerca de cem
quarenta passos de cavalo e havia cinqüenta dessas estacas a cada lado. No meio
é que devia se ferir o combate. Os exércitos deveriam manter-se fora desse espaço
Entre ambos os exércitos havia testemunhas desse encontro não previsto e todos
dois exércitos havia conduzido seus combatentes à liça essa situação parecia a
apareceu no local o Rei Gramoflanz a fim de vingar o ramo subtraído de sua árvore.
508
o corpo Galvão se ergueu de pronto e se postou ao lado de Parsifal. A senhora Bene
seguira o rei ao local da luta. Ao deparar com o extenuado Galvão, a quem estimava
mais que a qualquer outra pessoa neste mundo, soltou um grito impregnado de
exclamou: "Maldita seja a mão que infligiu tamanha injúria ao homem que, entre
todos, pode ser apontado como paradigma de bravura!" Ela o compeliu a sentar-se
e o suor que lhe inundavam a testa. É que a armadura se tornara para ele quente e
incômoda.
verdade preferia que minha mão te tivesse reduzido a essa situação. Caso te
convenha iniciar amanhã o combate contra mim nada tenho a opor. Neste momento
preferiria enfrentar uma mulher que a ti, visivelmente carente de forças. Enquanto
elmo e lhe disse em tom cortês: "Senhor, qualquer que tenha sido o motivo pelo qual
meu primo Galvão perdeu vossa consideração, gostaria de representar sua causa.
Minha mão ainda detém vigor suficiente. A ira que lhe tendes irá esbarrar na lâmina
de minha espada."
509
Mas o soberano de Roche Sabbins declinou da oferta, argumentando:
"Senhor, amanhã irá ele pagar o preço combinado pelo meu ramo para que desse
modo readquira o valor que representa ou então irá atirar-me à vala do desprestígio.
Sois possivelmente um combatente de valor, mas esta questão não vos diz
respeito."
infiel! Nas mãos do homem a quem odiais repousa vossa felicidade! Acaso
esquecestes a pessoa a quem amais? É dele que depende tudo! Sois o instrumento
de vosso próprio malogro, pois vossa pretensão atenta contra as leis do amor! O
incrimineis pelo fato de insistir nesse combate. Ficai do lado desse cavaleiro e dizei
à irmã dele, Itonje, que permaneço seu leal servidor, disposto a por ela fazer tudo
que puder."
Mas quando Bene por sua própria boca soube que seu soberano que
devia bater-se na campina era irmão de sua ama, um inominável desespero lhe
invadiu o coração e fê-la gritar: "Retirai-vos daqui, maldito! Não tendes a mínima
510
vigorosa atuação resultou para Parsifal num acréscimo de prestígio, de sorte que
seu regresso foi motivo de alegria generalizada. Todos os que o viram chegar não
se cansaram de enaltecê-lo!
homem, elogiando seu feito notável. Esses encômios - permiti que o diga - se
referiam a Parsifal que além disso era de tão bela presença que nenhum cavaleiro
ali presente podia ombrear com ele. Era essa a opinião dos homens e mulheres ao
eram poucos os cavaleiros que poderiam confirmar a veracidade do que vinha sendo
511
Galvão disse então a Parsifal: "Se te aprouver conhecer quatro damas
damas de alta distinção não as decepciones com minha presença. Qualquer uma
delas que em Plimizoel tenha estado presente na ocasião em que fui declarado
infame deverá sentir-se constrangida ao deparar comigo. Que Deus vele pelo bom
momento."
conduziu Parsifal à presença das quatro rainhas, que o saudaram com um beijo. Na
homem que a repelira. Ao tempo, depois de havê-lo visto brilhar nos combates
diante de Logroys, fora ao seu encalço para lhe oferecer sua mão e o domínio sobre
suas terras. Era esse o motivo de seus constrangimento. Com muito tato convenceu-
alegria geral.
que sua mimosa boca não revelasse a Itonje que "o Rei Gramoflanz me odeia por
diferenças pelas armas. Sobre esse assunto nada digas à minha irmã e trata
512
Ela respondeu: "Tenho seguramente todos os motivos para chorar
e externar minhas penas. Quem quer que seja derrotado, minha ama lamentará o
vencido e com ele perecerá. Cabe-me pois deplorar a triste sorte de minha ama
e a minha própria. O que vale um irmão que ergue sua espada contra o amado da
Galvão, Parsifal devia partilhar a mesa com a duquesa, cabendo a esta o encargo
meu lado uma criatura que para uma dama não tem outro assunto que não a ironia e
o sarcasmo? Que condições terei eu para servir esse homem? Mas já que é essa a
porém não deixou de notar as lágrimas que Bene procurava reprimir. Esse fato a
para o homem por quem meu coração bate em ritmo descompassado. Será que algo
que temo aconteceu? Acaso renunciou ele ao meu serviço e ao meu amor? Se for o
caso; então esse homem bravo e leal só terá conseguido que eu, pobre criatura, me
513
A refeição terminou quando passava do meio-dia e coincidiu com a
com muita deferência e não se cansou em lhe exprimir sua estima e reconhecimento
por haver expandido sua reputação de modo que a essa altura já não havia
que estive convosco minha honra foi atacada. Minha reputação foi tão deslustrada
que dela praticamente nada mais restou. Mas acabastes de me declarar apto para
reivindicar novamente alguma consideração. Acredito que seja esse vosso desejo.
Prefiro mesmo dar crédito a vossas palavras e espero que esse vosso juízo
poderia pôr em dúvida. Parsifal estava sentado ao lado de Artur no momento em que
dele. Não demorou para que ali se congregasse grande número de pessoas que mal
contatos pessoais entre cristãos e sarracenos seria pedir demais. Quem pertencia
514
ao exército de Clinschor? Quais eram aqueles cavaleiros que vindos de Logroys a
espírito decidido no campo de luta? Quais aqueles que haviam sido trazidos por
Artur? Quem quisesse citar seus países e castelos esbarraria em sérias dificuldades.
Todos porém estavam unânimes em afirmar que Parsifal irradiava tamanha simpatia
que todas as atenções femininas convergiam sobre ele e que fazia jus à alta
todos aqui presentes que me ouçam e me ajudem a reaver um bem de que fui
que na manhã seguinte, à hora aprazada, lhe permitisse combater em seu lugar. "É
meu desejo aguardar o Rei Glamoflanz, pronto para o combate. Hoje cedo colhi um
ramo na árvore dele, criando assim o pretexto para desafiá-lo. Esse foi o motivo
único que me levou ao território de Gramoflanz. Primo, eu não poderia supor que
515
de nossa solidariedade de clã deixa a meu encargo esse combate. Forças para tanto
não me faltarão."
Bretanha muitos parentes e até mesmo irmãos. Mas não consentiria que algum
deles se batesse em meu lugar. Confio que a boa Fortuna favoreça minha causa
meu lugar, mas por ora não necessito de alguém para representar minha causa."
volta ao círculo de amigos. Por ordem do copeiro de Galvão jovens fidalgos trataram
que a seguir circularam com a bebida. Depois do último trago todos os convivas se
deixou tudo em ordem. Mandou providenciar além disso um escudo novo e sólido de
vez que o velho estava perfurado e retalhado. Tudo foi providenciado por infantes
que ele pouco conhecia, entre os quais havia alguns franceses. O cavalo que em
Era noite e todos se haviam recolhido aos leitos. Parsifal fez o mesmo.
516
5. O COMBATE ENTRE PARSIFAL E GRAMOFLANZ
outro homem se haver batido por seu ramo. Seus homens não saberiam acalmá-lo e
nem se atreviam a esboçar um gesto sequer nesse sentido. Grande era seu
desgosto pelo fato de haver chegado tarde demais. Qual foi, pois a atitude do
herói? Como sua única preocupação era expandir sua fama determinou que logo ao
amanhecer equipassem sua montaria e a ele próprio. Seria preciso que uma dama
ricamente ataviada carregasse sua armadura? Por certo que não, pois esta era por
donzela a quem vinha servindo com extrema dedicação. Partiu sem acompanhantes
qual retirou a flâmula. Assim o herói partiu rumo à colorida estacaria que delimitava
o espaço onde devia ferir-se o combate. Ali deparou com o rei em atitude de espera.
torno do local em que o combate se feria eram pisadas as gotas de orvalho que
517
Ambos combatiam impavidamente. A relva era esmigalhada e o orvalho
transformado em lama. Muito mais me preocupava a sorte das flores coloridas que a
dos heróis que destemida e deliberadamente buscavam o perigo. Como alguém que
não foi ofendido por qualquer dos dois poderia regozijar-se com tal estado de
coisas?
combate que prometia ser árduo. Já era plena manhã quando a ausência do bravo
Parsifal foi notada. Acaso pretendia ele desempenhar o papel de mediador? Não,
muito pelo contrário! Naquela hora ainda vinha se batendo com alguém que também
cânticos litúrgicos muitos cavaleiros e damas a cavalo afluíam ao locai onde Artur se
altivo herói havia posto as grevas nas pernas bem torneadas, fato que enternecera
rumo à liça ouviram tinido de armas, viram faíscas saltando de elmos e golpes
desdenhosamente bater-se com um homem só, dessa vez parecia estar sendo
assediado por seis a um só tempo. Mas ali a combatê-lo se achava apenas Parsifal,
que estava lhe dando uma lição ainda hoje lembrada. Nunca mais se atreveria a
enfrentar dois de uma só vez, pois um já vinha sendo demais para ele. Entrementes
518
os exércitos haviam tomado posição na ampla campina junto às estacas que de um
arma utilizando o outro lado do fio da espada. Desse modo o Rei Gramoflanz vinha
colhendo amarga compensação por seu ramo, mas por outro lado não tratou com
muita amabilidade o parente de sua amada. No fim das contas o parentesco com a
outro, que tantas vezes partiam em busca de fama, tiveram que amargar algum
desgosto nesse combate - um por seu parentesco, o outro por seu amor. Quando
meu senhor Galvão chegou ao local o altivo e intrépido guerreiro de Valois já havia
Grannoflanz achou que já era tempo de pôr fim à luta de vez que teria que admitir a
vitória do adversário. Assim também pensavam muitos que ali estavam assistindo o
combate. O filho do Rei Lot declarou então: "Senhor rei, concedo-vos hoje o
benefício que ontem me concedestes ao concordar que eu tivesse uma pausa para
descanso. Recobrai as forças, pois disso bem que necessitais. Neste combate vosso
adversário esgotou tanto vossas forças que agora não tereis condições para me
enfrentar. Considerando que nunca aceitais lutar senão contra dois ao mesmo
519
tempo, hoje, mesmo sozinho, levaria a melhor sobre vós. Amanhã tratarei de vos
O rei regressou junto aos seus depois de haver prometido que na manhã
concordou que te batesses por ele e muito te lamentaste por não teres podido dar
uma prova de teu valor. Mas quer isso nos agradasse ou não acabastes por
enfrentar o homem que afinal estava esperando por Gaivão. Sumiste de nossa vista
sorrateiramente qual ladrão, pois de outra sorte te teríamos retido aqui. Espero que
fato de meu primo haver conquistado grande renome e tampouco faço questão de
6. GESTÕES DE APAZIGUAMENTO
cavaleiros magníficos podiam ali ser vistos. Nunca exército algum se apresentou
520
com tamanha pompa. Os cavaleiros da Távola Redonda e os pertencentes à
Parsifal foi tão enaltecido nos acampamentos dos dois exércitos que seus amigos
nunca o sol iluminara cavaleiro mais valoroso. Concordou-se que ambos haviam
lutado com bravura mas unicamente a Parsifal cabiam os louros da vitória. Eles de
resto não conheciam o nome nem a estirpe daquele que tanto vinham louvando.
competir com Gramoflanz qualquer outro cavaleiro de sua comitiva que não Galvão,
filho do Rei Lot, seu verdadeiro adversário. Unicamente com ele pretendia medir
forças. Como mensageiros foram escolhidos dois pajens prudentes, atilados e com
vivência na corte aos quais o rei deu ainda a seguinte recomendação: "Sem chamar
se está triste ou bem disposta. Observai-a disfarçadamente e deixai que seus olhos
minha amiga Bene. Ela já sabe a quem deve ser entregue. Se tiverdes o tato
dos homens por quem uma donzela poderia apaixonar-se iriam medir forças e que
521
desabavam todas as barreiras do pudor. Não apoio quem se regozijar com
essa altura já não havia mais saída e num desabafo acabou confessando o que
escondera por tanto tempo: "É pela mão de meu irmão que irá morrer meu amado?
Foi então que Arnive convocou um jovem fidalgo e lhe ordenou: "Dize a
meu filho que preciso falar-lhe imediatamente, mas que venha só!"
resolvera revelar a Artur o nome daquele que Itonje amava com tanta paixão e pedir-
tenda de seda um deles ainda teve tempo de ouvir o que a dama sentada ao lado de
Bene dizia a Artur: "Acaso considera a duquesa um grande feito se meu irmão,
cedendo às suas pérfidas pressões, vier a matar meu amado? Ele devia considerar
isso um ato criminoso! Afinal que mal lhe causou o rei? Ele devia lembrar que se
trata do amado de sua irmã! Se meu irmão ainda tivesse algum juízo devia saber
que o que me une a Gramoflanz é um amor verdadeiro. Se tiver um coração leal irá
se arrepender desse projeto! No fim das contas, a ele caberá a culpa se eu lhe
522
seguir na morte e então deverá ser responsabilizado perante vós, senhor, por esse
delito!"
me sobremodo que tu, tão jovem ainda, tenhas sido capaz de alimentar uma paixão
tão profunda. Lembra-te do que aconteceu à tua irmã Surdamur que tão
trataria de solucionar essa pendência. Mas Gramoflanz, filho de Irot, mostra-se tão
belicoso que o combate se ferirá, a não ser que o amor dele por ti seja
suficientemente grande para fazê-lo desistir. Acaso alguma vez teve ele
esplendente beleza?"
tenha visto o outro. Contudo muitos mimos já me enviou como prova de seu amor e
de sua sinceridade. De minha mão também recebeu provas de que o amo, de sorte
que já não duvidamos de nossos sentimentos. O rei me quer bem. Seu coração
abomina a falsidade."
210
CF. Nota nº 190
523
Foi só então que Bene se deu conta da presença dos dois escudeiros
"Ninguém pode ser testemunha do que se passa aqui. Com vossa permissão farei
com que sejam retiradas todas as pessoas que se encontram nas proximidades da
tenda. Se alguém souber o quanto minha ama se preocupa com a sorte de seu
sair, um dos jovens fidalgos lhe entregou furtivamente anel e carta. Ambos
com Artur, pediram a Bene que promovesse esse contacto. Ela respondeu: "Retirai-
vos até certa distância e ali permanecei até que vos chame de volta!"
inconveniente permitir que soubessem algo do que aqui se tratou, pois permitir que
vissem as faces de minha ama, ainda úmidas de pranto, poderia constituir para ela
motivo de constrangimento."
proximidades estiveram à minha procura? Ao que tudo indica trata-se de dois jovens
distintos, talvez até hábeis e por certo suficientemente honrados para participar
desta reunião de consulta. Um deles já deve ter senso suficiente para inteirar-se dos
524
"Isso é que eu não sei", replicou Bene. "Mas permiti dizer-vos, senhor,
que o Rei Gramoflanz enviou este anel acompanhado de uma carta. Um dos jovens
apaixonada linguagem cuja sinceridade não podia ser posta em dúvida. Lida a carta
Artur se convenceu de que em seu tempo nunca se deparara com caso de amor tão
autêntico, pois ali as palavras retratavam exatamente isso: "Saúdo aquela que devo
nossa felicidade. Teu consolo me gratifica mais que qualquer outra coisa, por saber-
lealdade, pois afugentas as penas do meu coração. Teu amor não apenas me
ajuda, mas ainda me aconselha a abster-me de qualquer ato indigno. Bem sei que
tua bondade é inata e inabalável. Da mesma forma inarredável com que o pólo ártico
menor vacilação. Nobre donzela, lembra-te de minhas penas que te revelei num
nos separar lembra-te que no fim das contas o amor não nos negará suas
525
Artur admitiu: "Tu tens razão, sobrinha, o rei te corteja, sem dúvida.
Através desta carta soube do milagre de um caso de amor sem precedentes. Ambos
deveis pôr fim a esse tormento. Deixai esse caso ao meu encargo. Farei com que
esse combate não se realize. Enquanto isso trata de poupar tuas lágrimas. Ao invés
delas seria preferível que me explicasses a maneira pela qual vos afeiçoastes um
ao outro, já que vinhas sendo mantida em cativeiro. Sou de opinião que devias
corresponder às suas pretensões amorosas, sendo esse o motivo pelo qual ele te
serve."
segredo. Caso isso vos convenha, fazei com que meus olhos possam ver aquele por
Artur disse: "Dize-me então quem é. Farei tudo que estiver a meu alcance
para que as coisas se conformem aos teus desejos e resultem para vós dois em
felicidade."
dois escudeiros de Gramoflanz. Se minha sorte não vos for indiferente então
procurai saber se o rei, que para mim representa toda a felicidade, deseja ver-me!"
Gramoflanz vos pede para que em respeito à vossa própria dignidade determineis
526
que se cumpra o que foi combinado entre ele e Galvão. Ele vos pede ademais para
que nenhum outro cavaleiro se apresente contra ele na liça. Vosso exército é tão
poderoso que não seria justo obrigá-lo a vencer todos os vossos cavaleiros. Deveis
suspeita. Meu sobrinho Galvão se tomou de grande desgosto por não ter sido ele o
cavaleiro que se bateu com Gramoflanz. Ao adversário de vosso amo cabe hoje, por
exército jamais foi dado ver tão poderoso guerreiro. O homem que uma vez mais
colheu os louros da vitória é meu sobrinho Parsifal. Vereis esse imbatível campeão
com vossos próprios olhos. Tolhido na minha vontade pela promessa de Galvão
ricas cimeiras dos elmos e as belíssimas damas que encontraram pelo caminho. Tal
monarca. Em momento algum pararam para desmontar, pois era intenção de Artur
corpos distintos, cada qual ocupando área nitidamente separada das demais. Depois
Ali ele disse: "Querida Bene, tu ouviste as queixas de Itonje, filha de minha irmã, que
527
até agora não pôde dominar inteiramente o choro. Estes meus amigos puderam
certificar-se disso. Sua paixão por Gramoflanz esmaeceu sua beleza deslumbrante.
Por isso ajudai-me, vós dois, e também tu, querida amiga Bene, no que vos irei pedir
agora. Fazei com que o rei me venha ver ainda hoje, sem prejuízo do combate que
irá ferir-se amanhã. Eu próprio irei conduzir meu sobrinho Galvão à campina. Se o
rei vier hoje ao meu acampamento amanhã estará com maior disposição ainda, pois
o amor o armará com um escudo que dará muito trabalho a seu adversário. Ele
multiplicará sua combatividade num grau que irá assombrar seu oponente. Ele deve
intenção promover gestões conciliatórias entre ele e a duquesa. Meus amigos, tratai
disso com tato e habilidade pois tal resultará em honra para vós. Permiti que vos
revele minhas mágoas: o que eu, homem desditoso, fiz ao Rei Gramoflanz para que
vote a um tempo ódio e amor à minha estirpe? Como rei é meu igual e devia poupar-
me por esse motivo. Mas se ele devotar ódio ao irmão de sua amada devia, como
homem inteligente, perceber que um tal procedimento afasta seu coração dos rumos
do amor."
amo evitar qualquer coisa que vos possa desgostar. Esse é um dever de cortesia.
Mas certamente sabeis da existência de uma antiga inimizade. Por isso seria melhor
que meu amo permanecesse em seu acampamento ao invés de vir vos procurar. A
528
"Conviria que viesse acompanhado de poucas pessoas", explicou Artur.
terá ademais uma boa escolta. A meio caminho meu sobrinho Beacurs o receberá.
Por essa escolta será ele conduzido à minha presença sem que isso resulte para ele
em qualquer desdouro. Uma vez entre nós terá oportunidade em entrar em contacto
tamanha alegria que considerou aquele dia o mais feliz de sua vida. Parecia-lhe que
a própria Fortuna havia idealizado uma tal notícia para ele. Declarou que iria com
muito prazer e tratou de escolher seus acompanhantes. Três príncipes do seu reino
iriam integrar sua comitiva. O Rei Brandelidelin, seu tio, Bernout de Riviers e
aqueles que lhes pareciam mais indicados para esse evento. Eram ao todo doze.
Além desses foram mobilizados para a viagem jovens fidalgos e vigorosos infantes
em grande número. Que tal eram os trajes dos cavaleiros? Eram de seda, com ricas
rei e sua comitiva a meio caminho e lhes servisse de escolta. Através de extensos
paramos, por vaus de alagadiças e riachos, o rei falcoava, mas dessa vez tinha em
mira uma presa de outro tipo: o amor. A meio caminho Beacurs o recebeu com muita
529
magnífica aparência revelava sua distinta origem. Eram jovens duques e condes,
atenção do rei, que logo quis saber de Bene de quem se tratava: "É Beacurs, filho de
identificar aquela que se pareça com esse garboso cavaleiro. Afinal foi a irmã dele
concedesse seu afeto daria por ele todos os bens terrenos sem me impressionar
com a desmedida extensão deste planeta. Confiante como estou na sua mercê
confio que me fará ainda mais feliz do que tenho sido até agora." Foi então que num
gesto de cavaleirosa simpatia o irmão de Itonje o tomou pela mão e partiu com ele.
Cidegast, antes tão amargamente chorada, havia sido largamente compensada pelo
despertara para uma nova vida de sorte que seus planos de vingança estavam
perdendo consistência. Artur, o bretão, tratou, pois de reunir uma centena de damas
Itonje, que fazia parte do grupo, encarou esse encontro com o rei com confiante
seus olhos revelassem as penas de amor que a afligiam. Junto às damas havia
530
da tenda. O impávido rei usava vestimenta de seda bordada a ouro importada de
aberta uma ampla passagem de acesso à rainha dos Bretões. Brandelidelin, o tio do
rei, foi o primeiro a ingressar na tenda, onde Ginover o recebeu com um beijo. O rei,
Bernout e Affinamus foram recebidos por ela com igual atenção. Artur disse então a
Gramoflanz: "Antes de tomar assento olhai em torno. Talvez a visão de uma dessas
damas faça com que o ritmo de vosso coração se acelere. A vós e a ela concedo
Uma carta que lera ao ar livre continha uma descrição da aparência física
de sua amada. De resto já se encontrara frente a frente com o irmão daquela que o
amava, mais que qualquer outra coisa neste mundo. Gramoflanz foi tomado de
intensa euforia quando seus olhos identificaram quem lhe queria tanto bem e como
boca.
Ela por sua vez teria de agradecer-lhe por ter vindo. Na realidade ninguém saberia
531
dizer ao certo de que falavam. O certo é que se contemplavam de modo muito
eloqüente. Se eu algum dia aprender essa linguagem muda saberei interpretar com
Brandelidelin. Com estas palavras conduziu o bravo guerreiro a uma tenda menor,
também não se aborrecessem por isso. Cultivavam aquele momento de lazer a que
copeiro se haver retirado Artur disse a Brandelidelin: "Senhor rei, suponhamos que
seu real sobrinho tivesse morto o filho de minha irmã e quisesse depois disso pedir
em casamento minha sobrinha - aquela que vedes sentada ao lado dele e que deve
estar-lhe confidenciando suas penas. Se estivesse de são juízo não poderia mais
amá-lo, depois disso. Ao contrário, iria detestá-lo, de sorte que o rei veria frustradas
desafetos são filhos de nossas irmãs. Tratemos, pois em comum acordo de evitar
532
essa solução pelas armas e disso, pela ordem natural das coisas, poderá resultar
que os dois se tornem amigos. Vossa sobrinha Itonje deve exigir de meu sobrinho
que desista do combate, caso efetivamente pretenda seu amor. Evitar-se-á desse
Artur tranqüilizou-o: "Isso eu farei com todo o gosto. Meu sobrinho Galvão
fará com que ela, como dama distinta, transfira para mim e para ele o direito de
7. RECONCILIAÇÃO
outro lado da rainha estava Parsifal. Sua aparência era tão magnífica que nunca
alguém vira homem mais vistoso. Entrementes Artur foi ao encontro do sobrinho
533
Do esforço conjugado dos dois resultou que a duquesa concordasse
desafeto caso Galvão desistisse de combate por amor a ela. O Rei Gramoflanz
deveria, por sua vez retirar a acusação levantada contra seu sogro Lot. A Artur ela
se desse encargo com a habilidade de sempre. Foi desse modo que o Rei
Gramoflanz se viu compelido a renunciar à reparação que exigira pela perda de seu
ramo. A simples visão da encantadora Itonje levara seu rancor contra Lot da
Noruega a se derreter como neve sob o calor do sol. Sentado assim ao lado dela,
foi concordando com todas as propostas. Eis que vinha chegando Galvão com sua
luzida comitiva de cavaleiros, cujos nomes e locais de origem não saberia referir
de armas de Galvão, conduziu pela mão a vistosa duquesa que cortesmente cedeu
esta, de fato, ofereceu ao rei a boca rubra para o beijo de reconciliação embora
estivesse prestes a chorar pois uma vez mais a imagem do falecido Cidegast lhe
aflorara à mente. Como mulher ainda se ressentia daquela perda, o que podeis
534
tomar como prova de lealdade. Galvão e Gramoflanz também selaram sua
como esposa já que por ela seu coração ansiava. Sua vida decorrera sem atrativos
até encontrar o amor de Cundrie. Ao Turcóide Florand, Artur propôs que tomasse
Sangive, a viúva do Rei Lot, para esposa, proposta que o príncipe prazerosamente
aceitou, pois uma dádiva como Sangive era digna de sua afeição. Naquele dia Artur
mulheres e isso requeria muito tato e operosidade, pois cada caso requeria que
feitos memoráveis Galvão merecera seu amor e seria a partir daquele momento o
quebrado.
afirmar ter visto uma festa de casamento mais magnífica. Ginover cercou de muita
solicitude a Itonje e seu bem-amado, o bravo rei que por amor a ela brilhara em
muitos combates. Mas muitos, aos quais a paixão por uma nobre dama resultará em
535
decepção, regressaram a seus acampamentos. Poupar-me-ei o esforço de
descrever o jantar. Quem cultiva uma paixão genuína prefere a noite ao dia.
marcha forçada ao local onde ele se encontrava. O marechal devia escolher local
cada príncipe deve ter seu próprio conjunto de tendas!" Ele pretendia exibir todo o
cavaleiros cabisbaixos porque uma mulher frustrara suas mais caras esperanças. A
8. A PARTIDA DE PARSIFAL
graça e recato. Acaso admitia ele a possibilidade de se sentir atraído por outra
mulher a ponto de lhe oferecer seus serviços e assim tornar-se infiel? Não, porque
não fazia caso de tais amores. Seu coração viril e todo o seu ser eram feitos de
Condwiramurs, a fina flor da feminilidade, era capaz de atrair sua estima. De si para
536
si inquiriu: "Que proveito tive do amor desde que pela primeira vez experimentei
esse sentimento? Afinal não descendo eu de uma estirpe que sempre prestigiou os
sentimentos afetivos? Como, então, pude viver todo este tempo sem amor?
abraço de minha mulher, da qual me acho separado há tanto. Para mim não está
bem contemplar a felicidade alheia enquanto eu mesmo fico a ver navios. Imerso em
tal clima de desencanto não há quem possa sentir-se motivado. Que a Fortuna me
(quero referir-me ao amor que reanima tantos corações deprimidos) e estou posto à
parte, pouco se me dá o que irá me acontecer. Deus não quer que eu seja feliz. Se
eu ou a mulher por quem meu coração anseia pudéssemos destruir nosso amor com
a dúvida e a volubilidade então talvez amaria outra. Mas o amor que lhe tenho
frustração. Estou imerso em tristeza. Que Deus conceda felicidade àqueles que por
ela anseiam! A mim cabe deixar a companhia dos felizes." E assim pensando
apanhou o arnês que tantas vezes pusera sobre si, sem a ajuda de alguém e se
armou, pois a inquietude o impelia a arrostar novas aventuras. Quando ele, de quem
toda a alegria se apartara, se havia armado, tratou de selar também a montaria com
as próprias mãos. Lança e escudo estavam ali mesmo. Pela manhã houve quem se
537
LIVRO XV
1. O COMBATE DE PARSIFAL COM FEIREFIZ
Muita gente se aborreceu com o fato de lhe terem sido sonegados certos
detalhes desta narrativa pelos quais indagou em vão. É minha intenção não vos
esconder por mais tempo o desfecho da história que só eu conheço. Sabereis agora
com todos os detalhes a forma pela qual o amável e simpático Anfortas recuperou a
saúde. A narrativa nos mostra ainda como a Rainha de Pelrapeire conservou sua
condição de mulher honesta até ver recompensada sua lealdade, pois finalmente
trataria e caso o estro não me desampare sabereis como atingiu tal objetivo.
Comparado a essas provas tudo aquilo em que até aqui se envolvera não passava
dos riscos que a mim próprio fazem medo. A saída que me resta é confiar seu
sucesso a seu coração puro e destemido. Ele lhe dá forças para sobreviver. Quis o
fado que enveredasse por ásperos caminhos onde se defrontaria com quem, como
combatente, se lhe mostraria superior. Esse perfeito cavaleiro era pagão e nunca
538
Parsifal se internou numa grande floresta, a trote largo, e numa clareira
avistou rico estrangeiro que vinha em sentido contrário. Parece um sonho que eu,
homem sem posses, vos deva descrever a verdadeira fortuna que esse pagão trazia
na armadura como mero adorno. Muita coisa havia nele digna de nota mas seria
muito pouco para vos dar idéia de todas as coisas preciosas que trazia consigo.
Tudo que Artur possuía na Bretanha e na Inglaterra não atingiria o valor das
dessa cota de armas. Ela brilhava e reluzia pois fora urdida no fogo pelas
envergava essa cota de armas buscava o amor e a fama, pois quase todas as
sentimento sublime que só o amor consegue instilar nos que amam enchia-lhe o
coração. Como símbolo de seus feitos notáveis ostentava sobre o elmo, como
morte a todos os ofídios venenosos. Seda tão magnífica como a que servia de
Arabie. Esse fidalgo não batizado requestava uma dama. Daí a razão de se
âncora em porto natural próximo àquela floresta. Vinte e cinco exércitos, todos
detinha, pois reinava sobre muitos países habitados por mouros e sarracenos de
211
Ecidemon. Animal quimérico.
212
Teliz. Manto que na Idade Média cobria a sela dos cavalos de batalha.
539
várias origens. Em seu enorme exército havia armas muito estranhas. Sem
acompanhantes e sem outro objetivo que não fosse a aventura partira internando-se
campear e lutar solidariamente em busca de fama. A rigor, Parsifal não estava só.
Com ele ia sua notável coragem que imprimia ímpeto viril a tudo que fazia, de sorte
que as damas eram obrigadas a enaltecê-lo a não ser que quisessem levianamente
inventar patranhas. Ali iriam enfrentar-se dois homens que tinham a pureza do
cordeiro e a audácia do leão. Ah, acaso o mundo não é suficientemente vasto? Por
incansavelmente.
Meu estro poético não basta para descrever o combate em todos os seus
pesar. É que cada um desses homens probos e leais trazia no peito o coração do
generoso, pois ambos arriscaram pela amada a própria pele. Que a boa fortuna
540
O filhote de leão nasce morto213 e unicamente o rugido do pai o desperta
vitória lhes serviram de padrinhos. Quando intervinham na luta podia-se contar como
fragmentos das hastes. O pagão se tomou de viva indignação pelo fato de seu
jamais obtivera semelhante êxito. Acaso partiram eles para o combate a espada?
animalzinho, foi golpeado seguidamente e o elmo sob ele tinha motivos para
também se revelou combatente notável. Nesse ponto o combate atingiu fase tão
crítica que não mais devo me omitir. Devo lamentar sinceramente esse confronto,
pois ali estavam dois homens unidos por laços consangüíneos a se digladiarem
213
Filhote de leão. A lenda do filhote de leão natimorto e que o pai desperta para a vida originou-se do
"Physiologus", obra que teria surgido em Alexandria no século II d.C. Seu autor seria um intelectual grego
anônimo versado em ciências naturais. O "Physiologus" é uma coletânea de alegorias sobre a vida de certos
animais (leão, pelicano, fênix, unicórnio, hiena, pantera, etc.) que, consoante sua natureza, são identificados
com o Cristo ou com o demônio. Dessa lenda existem versões em grego, etíope, armênio e árabe.
214
Thasme. Cidade situada no Reino de Feireflz.
215
Thabronit. País da Rainha Secundille.
541
ferozmente. Ambos eram filhos de um homem que fora um monumento de lealdade.
Ele vinha construindo sua fama a serviço da Rainha Secundille que lhe doara o
eu fazer pelo cristão? Se ele não depositar sua fé nas virtudes do amor morrerá
neste combates pelas mãos do pagão. Impede tal desgraça, ó Graal todo-poderoso
e tu, ó encantadora Condwiramurs! O homem que serve a vós ambos deve superar
a prova mais difícil de sua vida. Os golpes do pagão eram desferidos com grande
violência e alguns com ímpeto tão devastador que Parsifal fraquejou, caindo de
joelhos. Pode-se dizer que ambos revelaram notável desempenho, se no caso for
O pagão pôs o cristão em grandes apuros. Seu escudo era feito de pau
de asbesto216 que além de incombustível não apodrecia. Podeis estar certos de que
a mulher que lhe dera esse escudo o amava de fato. Em torno do dorso do escudo
engastada uma gema que os pagãos chamam de antrax e que entre nós é
todas as suas ações, havia-lhe dado como amuleto e símbolo heráldico o estupendo
216
Pau de asbesto. Descrição fantasiosa da madeira de uma árvore que apresentava as propriedades do mineral
denominado asbesto.
542
Ali combatia a quintessência da lealdade. Lealdade defrontava lealdade.
Ambos arriscavam a vida por amor. O combate ditaria a sentença pela qual cada um
implorar a ajuda daquele que nos momentos de perigo nos presta socorro de boa
vontade.
reinava- criava nova coragem e arremetia contra aquele que até essa parte não
sibilavam no ar, arrancando chispas dos elmos. Que Deus proteja os filhos de
Gahmuret! Esse desejo valia para os dois, para o cristão e para o pagão, de vez que
teriam empenhado nesse combate preço tão alto, pois ali arriscavam numa só
cartada a alegria, a felicidade e a honra. Quem quer que saia vencedor nessa luta
terá perdido - caso a lealdade tenha para ele algum sentido - a alegria de viver, para
a imagem de tua bela e recatada esposa! O pagão pode contar com dois aliados que
inteiramente; o segundo era o poder das gemas, cujas nobres e benéficas virtudes
543
lhe instilavam ânimo e lhe multiplicavam as forças. Pesa-me assistir ao progressivo
emergência não lhe puderam valer nem Condwiramurs nem o Graal, que lhe dê
Seria uma pena vê-los órfãos em tão tenra idade. A ambos Condwiramurs
concebera quando pela última vez estivera em seus braços. Filhos de amor tão
à real consorte e àquele amor tão valioso que outrora conquistara com a espada na
quatro reinos e o protegeu com as forças do amor. Agora saltavam aos ares
fragmentos do escudo do pagão que por certo valiam centenas de marcos. Mas o
violento golpe vibrado sobre o elmo do adversário fez com que a sólida espada de
falecido Ither, não lhe servisse por mais tempo. O pagão que até aqui golpe nenhum
544
2. OS IRMÃOS SE RECONHECEM
constato que terás de prosseguir combatendo sem espada. Uma situação tão
desigual resultará para mim em nenhuma glória! Pára, bravo guerreiro, e dize-me
quem és. Embora invicto até aqui acabarias sem dúvida vencendo-me se tua
espada não se tivesse partido. Permite que entre nós haja paz até que tenhamos
recobrado as forças."
estavam na força da idade, nem velhos demais nem jovens demais para as lides
cavaleirosas. O pagão disse então ao cristão: "Podes crer-me, herói, que nunca
conheci em toda a minha vida alguém que pudesse contar antecipadamente com os
louros da vitória disputados num combate. Dize-me teu nome e o de tua estirpe! Só
o fato de ter conhecido um tal homem terá dado sentido à minha viagem!"
imposição?"
545
O pagão de Thasme respondeu: "Prefiro então correr o risco de ser mal
Tão logo ouviu tal declaração, Parsifal interpelou o pagão: "Com que
direito assumis o título de senhor de Anjou, que me pertence por direito? Detenho a
castelos. Senhor, vós devíeis a meu pedido adotar outro nome. Cometeríeis um ato
Se um de nós dois é senhor de Anjou então esse título cabe a mim, por direito de
nascimento. Contudo devo admitir que sempre me foi dito que na Terra dos Pagãos
viveria um destemido guerreiro que com sua força e habilidade nas artes marciais
conquistou amor e fama. Esse homem, cujos feitos são celebrados em toda a parte,
seria meu irmão consangüíneo, Senhor" - prosseguiu Parsifal - "permiti que veja
vossa face para certificar-me se sois vós aquele cuja aparência me foi descrita.
que não vos tocarei até que o elmo novamente proteja vossa cabeça."
eu estivesse sem armadura estarias à minha mercê, pois ainda me resta a espada,
enquanto a tua está quebrada. Todos os teus recursos de hábil combatente não te
tentar a sorte numa luta corpo a corpo minha espada transpassaria tua armadura e
teu peito." Foi então que o vigoroso e destro pagão deu um exemplo de máscula
546
generosidade. Com as palavras "esta espada não deve servir a qualquer de nós
"Herói, se tiveres de fato um irmão então dize-me, por tua honra, como te
seria semelhante a um códice, isto é, manchada de preto e branco. Foi assim que
quando Parsifal fez a mais valiosa e a mais alegradora descoberta de sua vida. De
Parsifal encerraram as diferenças com um beijo, pois a essa altura a amizade lhes
convinha muito mais que a hostilidade. Lealdade e afeição puseram fim ao confronto
finalmente ante meus olhos o filho de Gahmuret. Que sejam louvados todos os meus
deuses, mas especialmente minha deusa Juno e meu poderoso Deus Júpiter, que
sempre amorosamente exaltar! Louvado seja igualmente o brilho do planeta sob cujo
signo empreendi minha viagem, pois ele me conduziu a teu encontro, ó guerreiro
terrível e amável cuja valorosa destra por pouco me deixou em dúvida se fiz bem
em ter saído de casa. Louvados sejam ainda o ar e o orvalho que nesta madrugada
547
me envolveram ao partir. Chave do amor cortês. Quão feliz deve julgar-se a mulher
palavra vossa fama de grande combatente. Deus sabe que seria o meu desejo. Meu
coração e meus olhos me impelem a entoar um cântico de louvor à vossa fama, pois
situação de dificuldades!"
esmerou, sem dúvida, quando te criou. Mas não me trates mais com esse
cerimonioso “vós” . Afinal, somos filhos do mesmo pai." Com fraternal afeição insistiu
em que deixasse de lado o "vós" e o tratasse como íntimo "tu". Constrangido com a
proposta Parsifal objetou: "Irmão, com certeza sois tão poderoso como o Baruc e
além disso o mais velho de nós dois. Tendo na devida conta minha juventude e
indevido “tu” “.
Júpiter e rendeu graças à deusa Juno pelo fato de o mau tempo o ter obrigado a
explicou: "Pretendo abrir mão, em teu favor, de dois poderosos reinos. Tu reinarás
548
sobre eles. Trata-se dos reinos de Zazamanc e Azagouc que nosso pai conquistou
relegado à orfandade. Esse ressentimento contra ele ainda não pude superar.
Depois de haver partido, sua esposa que me deu à luz acabou finando-se em
saudades pelo amado. A despeito disso gostaria de conhecê-lo. É que tenho ouvido
falar que não haveria melhor cavaleiro que ele. A dispendiosa expedição em que
em pessoa. Mas muita coisa que me tem sido dita a respeito dele o revela como
homem de bem. Nas numerosas cidades pelas quais passei era descrito como
combatente de escol que conquistou grande renome por suas muitas vitórias. Seria
teve o apoio do mundo feminino, de cuja causa era ardente defensor. O que o
distinguia era aquilo que mesmo hoje constitui o apanágio do cristão: a lealdade
inabalável. Seu coração sem falsidade sempre o guiava pelo bom caminho. É isso
que me tem sido dito por quem teve a oportunidade de conhecer o homem que
gostaríeis de encontrar. Acredito mesmo que se ainda vivesse não lhe recusaríeis
vossa consideração pois sempre esteve em busca de fama. Mas quis a fatalidade
masculino se chocasse com o Rei Ipomidão, diante de Bagdá. Foi ali que a serviço
do amor chegou ao termo sua gloriosa existência. Em combate singular nós dois
549
"Que perda irreparável!", exclamou o gentio. "Meu pai está morto? Eis que
alegria para em seguida reencontrá-la. Já não tenho mais qualquer dúvida que nós -
tu, eu e nosso pai - embora possamos parecer três criaturas distintas, constituímos
combateste contra ti mesmo e eu vim disposto a lutar contra mim próprio. Pretendi
operaste um milagre! Tua força veio em nosso socorro e salvou nossas vidas!"
O gentio prosseguiu: "Não nos detenhamos aqui por mais tempo. Vem
comigo até local situado não muito longe, onde farei desembarcar e acampar o
exército mais poderoso que Juno jamais consentiu que se fizesse avela. Terás a
550
confirmação do que estou te dizendo quando eu apresentar os inumeráveis fidalgos
autoridade para que permaneçam nos navios por um dia ou mais, à espera de
vossas ordens?"
"Sim, sem tugir nem mugir", explicou o gentio. "Ainda que delas
Parsifal disse então ao irmão: "Se for assim, então tereis o prazer de
fidalgos que ali deixei hoje cedo. Teremos oportunidade de encontrar também
a própria vida), decidiu logo: "Irei contigo! Antes porém me responde esta pergunta:
Encontraremos de fato nossos parentes na comitiva de Artur? Dele ouvi falar que
551
Parsifal confirmou: "Encontraremos ali damas encantadoras. Nossa
viagem não será inútil. Teremos oportunidade de conhecer parentes próximos, todos
Os dois não se deixaram ficar ali por mais tempo. Parsifal tratou de
opinião de seus conselheiros Artur decidiu permanecer por mais oito dias,
coluna mágica um combate que reduzia qualquer feito realizado com espada a
suposições sobre a identidade dos combatentes. Sem pensar muito o Rei Artur
Kanvoleis, que nos deixou hoje cedo." Naquele momento os dois vinham chegando.
552
Seus escudos e elmos exibiam sinais bem visíveis do renhido combate
que haviam travado. As mãos de ambos estavam naturalmente bem adestradas nas
foram eles logo introduzidos e cordialmente recebidos? Acredito que tal tenha
Saranthasme.
Esse magnífico equipamento lhe fora dado pela Rainha Secundille que na sua
onímoda paixão por ele lhe oferecera além disso corpo, alma e reino. Depois de
haver conquistado seu coração com o brilho de seus altos feitos cumulá-lo de
riquezas passou a ser para a rainha uma necessidade psicológica. Ele por sua vez,
todas as vontades.
553
Galvão determinou que tudo fosse guardado com o maior cuidado a fim
qualquer dano. Para uma nobre mulher a cota de armas já teria sido uma riqueza
demasiada. Agora imaginai o valor das pedras preciosas que recamavam as quatro
peças (manto, cota de armas, elmo e escudo). A boa vontade é capaz de criar
rico e poderoso Feirefiz era estar nas boas graças do mundo feminino, no que
aspecto é tão fora do comum que não se assemelha a algo que eu tenha visto."
Parsifal disse então ao anfitrião: "Se eu sou teu parente ele também o é.
Através de gloriosos feitos meu pai conquistou o amor de Belakane, que é mãe
deste cavaleiro."
vezes. Toda a pele do poderoso Feirefiz era uma mistura de preto e branco, com
exceção da boca que era de cor rosa pálida. Para ele e Feirefiz, Galvão mandou vir
Sangive dessem ao forasteiro o beijo de boas-vindas antes que Arnive e ela própria
554
o cumprimentassem com um beijo. Feirefiz parecia estar deveras satisfeito ao ver as
escudo me fazem supor que tiveste alguns contratempos. Parece evidente que tu e
teu irmão tiveram de defender a pele. Quem vos infligiu tamanhos danos?"
violento golpe vibrado contra esse estranho parente fez minha sólida espada se
partir. Foi então que ele revelou toda a grandeza de seu coração destemido, pois
seguir sua amizade. Eu por minha vez tudo farei para merecê-la."
que na tela da coluna mágica existente em Schastel Marveile pode-se observar tudo
que acontece num raio de seis milhas. Ao se inteirar do fato meu tio Artur chegou à
conclusão de que um dos dois desafetos só poderia ser seu sobrinho de Kingrivals.
Agora acabas de confirmar sua suposição de que tu terias sido um dos envolvidos
no confronto. De resto posso afiançar-te que teríamos esperado tua volta durante
oito dias. Esse tempo teria sido consumido em folguedos e festas de grande estilo.
Descansai, pois na minha tenda. Depois dessa avaliação mútua certamente vos
555
conheceis melhor. Façamos votos que desse choque equivocado resulte uma
grande amizade."
tivessem ingerido qualquer alimento naquele dia Galvão mandou servir o jantar mais
exposição do tesouro de Clinschor para ser visto e admirado. Eu soube também que
se dispôs ao longo dos quatro lados da tenda almofadas revestidas de seda para
interior da tenda era tão espaçoso que nela caberiam seis tendas de tamanho
normal e isso sem embaralhar os respectivos estais. Mas não estou sendo coerente
conta da presença dos dois. Um deles seria aquele poderoso gentio o qual a gentia
de elogiar.
filho de Ydoel. Jofreit sugeriu a Artur que mandasse servir o jantar mais cedo e a
sua condição ao acampamento de Galvão para ali dar cordiais boas-vindas ao filho
do ilustre Gahmuret.
556
"Todos os fidalgos aqui presentes acompanhar-me-ão", decidiu o bretão.
alegrados ao entrar em contato com ele. Além disso vereis nele muita coisa fora do
comum, pois ele gosta de se apresentar em grande estilo. As peças que constituem
sua armadura são de valor tão incalculável que ninguém teria condições de dar por
elas o preço que valem. Se alguém quisesse oferecer por elas o país de Lover, a
4. A FESTA EM JOFLANZE
ocupavam o lado oposto da mesa defronte a Galvão. Junto delas tomaram lugar
217
Wizsant. Pequeno ancoradouro situado entre Calais e Boulogne, muito utilizado na época dos Anjous para
travessias do canal.
557
Feirefiz e Parsifal. Beldades para serem vistas e admiradas não faltavam. O
sentavam-se frente a frente. Dada à sua velha amizade Galvão e Jofreit comiam
lado a lado. Enquanto isso a Duquesa Orgeluse com seus olhos brilhantes fazia
por pura gentileza uma tratava de servir a outra. Arnive, a avó de Galvão, achara
e damas eram servidos como convinha. O bravo Feirefiz disse então ao irmão
contacto com todos os meus nobres parentes. Tenho sobejos motivos para enaltecer
a pessoa do meu pai, que infelizmente perdi. Ele de fato descende de uma estirpe
gloriosa."
supremo, vereis ainda muitos cavaleiros dignos de vossa consideração. Não muito
inegável distinção. Presentes aqui estão apenas três membros da Távola Redonda:
o anfitrião, Jofreit e eu, pois como eles soube eu conquistar tanto renome que
aceitei."
presentes. O anfitrião, não desejando se demorar ali por mais tempo, levantou-se.
558
Dirigindo-se à avó e à duquesa pediu-lhes que juntamente com Sangive e a atraente
e seu irmão Parsifal fez o mesmo. A encantadora duquesa tomou Feirefiz pela mão
flor da idade. Entre eles estava o Rei Gramoflanz, que continuava hóspede de Artur.
Ao lado dele cavalgava sua amada Itonje, encantadora e recatada como sempre.
trataram de desmontar. Ginover fez com que Itonje fosse a primeira a beijar o
sobrinho pagão. A seguir ela própria aproximou-se de Feirefiz e lhe concedeu o beijo
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vindas de bocas brejeiras. Caso dominasse a arte de fazer a corte nenhuma das
beldades ali presentes se teria melindrado com isso. Uma verdadeira dama jamais
revidaria com palavras ríspidas os rogos de um fidalgo. No fim das contas caberia a
diálogo. Artur lhe disse: "Agradeço a Deus por nos haver distinguido com a honra de
tua presença. Nunca apareceu em país cristão gentio a quem quisesse mais
Artur posso afiançar-te que a fama de teu nome alcançou os países mais distantes."
Artur respondeu: "Quem quer que te tenha dito coisas lisonjeiras a meu
respeito honrou, antes de mais nada, a si próprio. Suas palavras revelam muito mais
um coração generoso do que eventuais méritos que eu possa ter. Meu nome é de
estas paragens. Se alguma amiga te incumbiu dessa tarefa deve ser uma criatura de
muitos encantos para que, por amor a ela buscasses aventuras em terras tão
distantes. Se ela te conceder por isso justa recompensa, terá valorizado tua
560
dedicação. Mas se ela recusar qualquer tipo de prêmio então a paixão do cavaleiro
"Mas permite que te conte como cheguei a estas paragens. Estou à testa de tão
Rainha Secundille. O que ela deseja, eu desejo. Ela é a boa estrela de minha vida.
cavaleiros. Para alegrá-la segui todos os seus ensinamentos. Assim ,admiti muitos
sua afeição. A seu pedido ostento no campo do meu escudo um Ecidemon. Sempre
em meu socorro. Para dizer a verdade ela me proporciona mais satisfação e ajuda
correspondem ao modo de ser e agir do teu pai Gahmuret, meu sobrinho. Mas
permite descrever-te agora uma façanha que por sua magnitude não pode ser
comparada a qualquer outra que em qualquer tempo tenha sido realizada por amor a
uma mulher. Refiro-me à duquesa que aí está, sentada bem perto de nós. Por causa
561
dela florestas de lanças foram quebradas. A paixão que inspirava abateu os brios de
exército de Clinschor, cujos integrantes estavam ali sentados e dos dois combates
que o irmão dele, Parsifal, sustentara na planície de Joflanze. "Ó que lhe aconteceu
além disso, os riscos de vida a que se expôs, eu deixo que ele mesmo te conte.
Mas agora gostaria de pedir a vós dois que me descrevêsseis os povos e países que
tornaram líderes dos meus esquadrões de cavaleiros. São eles o Rei Papiris de
562
"Contudo considero humilhante o fato de que nenhum cavaleiro do meu
Anjou. Assim, fiel aos ditames de minha vontade e à minha maneira de ser resolvi
sair à sua procura. Deixei meus dois reinos e com um poderoso exército me fiz à
vela com o objetivo de realizar feitos memoráveis. Onde quer que chegasse tratava
de submeter os reinos que encontrava ao longo do meu caminho, por mais bem
Realizei, pois grandes feitos a serviço do amor cortês. Somente hoje soube que meu
pai Gahmuret havia morrido. Agora gostaria que meu irmão nos descrevesse os
O nobre Parsifal então falou: "Desde que deixei a sede do Graal realizei
aqui e acolá uma série de feitos notáveis e obscureci a fama de muitos guerreiros
invictos cujos nomes conhecereis agora: o Rei Schirniel de Lirivoyn e o irmão deste,
563
saberia vos dizer os nomes de todos os meus adversários. Por isso vejo-me
memória eu os citei."
sentia honrado com isso. Entrementes Galvão mandou mostrar aos presentes, como
se fosse por acaso, a rica armadura do gentio, reputada como sendo sobremodo
escudo e o manto. O elmo havia sido feito sob medida. Mas ninguém me faça
teriam condições de se pronunciar sobre esse assunto com mais autoridade. Este
último, que sem dúvida foi o mais sábio dos homens desde a criação de Adão,
possibilidade de Feirefiz comprometer todo o seu prestígio caso traísse uma mulher
que o ataviara dessa maneira. A despeito disso algumas dentre elas simpatizavam
tanto com ele que de bom grado teriam aceito seus serviços. Possivelmente sua
dono da casa, se afastaram dali um pouco deixando o poderoso gentio aos cuidados
218
"Eraclius". Nome do herói (entendido em cavalos, mulheres e pedras preciosas) da epopéia do mesmo
nome, de Gauthier d'Arras que, para compô-la, baseou-se por sua vez na epopéia "Eraclius", do poeta
alemão Otte (circa 1210 d.C.). Ercules (ou Hércules) é simples variação do nome Eraclius (ou Heraclius).
219
Alexandre Magno, Rei da Macedônia, teria (segundo a lenda) recebido no Paraíso uma pedra de virtudes
miraculosas.
220
Pitágoras (circa 580-Í96 a.C.), filósofo e matemático grego.
564
das damas. Artur propôs que a chegada de seu sobrinho Feirefiz fosse
mesa obedeceu ao mesmo desenho - circular e bela de se ver. Em torno dela foram
dispostos assentos sobre a relva ainda úmida de orvalho de sorte que entre os
arremetida221. A própria Távola situada no centro não foi usada pois servia apenas
de símbolo. Ao indigno era vedado sentar-se junto a essas pessoas de escol pois
houve muito empenho para imprimir a tudo um cunho magnífico. Quando a manhã já
ia alta o círculo estava pronto e oferecia visão tão bela que um rei pobre ao deparar
221
Cf. nota n.° 23
565
com ela poderia sentir-se humilhado. Gramoflanz e Galvão ratearam entre si as
Como após toda a noite o sol volta a brilhar também dessa vez seguiu-
enfeitavam as frontes com grinaldas. Se Kyot disse a verdade, então havia ali muitas
damas usavam os traje típicos de seus países. Dependendo da moda do, país de
origem os toucados das damas eram altos ou baixos. É que para ali haviam
indumentária quanto pelos usos e costumes. Toda a dama que tivesse um amigo
podia participar da Távola Redonda. Ali também eram admitidas aquelas que haviam
Távola Redonda, com o que Artur concordou de pronto. Se algum cavaleiro ou dama
vos perguntasse quem era o mais rico e poderoso dentre os fidalgos que em algum
tempo tenham pertencido a Távola Redonda a resposta poderia ser uma só: Feirefiz
Redonda. Isso resultou em certo tumulto. Muitas damas foram empurradas com
tamanha violência que teriam caído das montarias caso a cilha que prendia a sela
566
ao ventre do animal não tivesse sido suficientemente apertada. De todos os lados
montarias ou mostrar numa justa suas habilidades às damas que a tudo assistiam.
seria realizado o banquete. Cabia aos camareiros, trinchantes e copeiros zelar para
que tudo fosse feito consoante o cerimonial da corte. Tanto quanto sei todos foram
regiamente servidos.
havia ali damas de grande notoriedade. Muitas delas haviam levado seus
manifestar preferências entre essa ou aquela. Nunca campo ou campina havia sido
enfeitado por faces mais luminosas, por lábios mais rubros. Da mesma forma nunca
se havia visto tantas beldades reunidas num só lugar. Para o gentio a visão de tal
567
5. PARSIFAL, O ELEITO DO GRAAL
Salve o dia de sua vinda! Louvada seja a ditosa mensagem proferida por
acordo com o mais recente modelo francês. No seu precioso manto de veludo negro,
mais negro que a pelagem do cavalo preto, aparecia bordado a fio de reluzente ouro
Mas deixai que ela se aproxime um pouco mais. Usava toucado branco e
altanado e a par disso um véu compacto que lhe ocultava a face ao olhar de todos.
sela e a própria montaria eram sem dúvida de aspecto magnífico. Ninguém impediu
Ao rei e à rainha pediu ela o necessário apoio para o que tinha a dizer.
568
prantos pediu que não se negasse a saudá-la, que enterrasse seus rancores e a
perdoasse ainda que fosse sem o beijo formal de reconciliação. Artur e Feirefiz
Parsifal. Ato contínuo tirou o véu, desatou as fitas que prendiam o toucado e o atirou
juntamente com as fitas ao chão. Foi então que todos reconheceram a feiticeira
manto. Suas feições não haviam mudado desde que pela última vez fora vista em
Plimizoel. Deveis estar lembrados da descrição que vos fiz de sua aparência. Seus
outrora e os lábios conservavam ainda aquele roxo peculiar à violeta. Naquele seu
qual me referi. Afinal esse cuidado era perfeitamente dispensável, pois os raios do
Eis o que disse: "Salve, ó filho de Gahmuret, pois Deus pretende mostrar-
à justa fama de que desde os verdes anos ele se fez merecedor." E voltando-se
para Parsifal assim falou: "Agora toma teu coração nas mãos e rejubila-te! Salve teu
569
alto destino, ó apanágio da ventura humana! Leu-se na pedra que tu serás o novo
Mesmo que não te coubesse outra ventura que não a cura de Anfortas ainda assim
serias considerado o mais feliz dos homens. Tua boca que não sabe mentir deverá
A seguir citou os sete astros pelos seus nomes pagãos e que o nobre,
Prosseguindo, disse: "Presta atenção, Parsifal: Zval223, o mais elevado dos planetas,
ilusório. Eles são os esteios do firmamento, pois com seu movimento retrógrado
terminaram. Tudo aquilo que está contido na trajetória dos planetas e iluminado por
sua luz estará a teu alcance. Tuas penas desvanecer-se-ão. Mas evita excessos.
222
Kardeiz. Irmão gêmeo de Loherangrin, mas nascido depois dele.
223
Zval (Zuhal). Saturno, "Senhor do Carma".
224
Almustri (Al Muchtari). Júpiter.
225
Almaret (Al Mirrih). Marte.
226
Samsi (Chams). Sol.
227
Alligaflr (Al Zuhari). Vênus.
228
Alkiter (Al Utarid). Mercúrio.
229
Alkamer (Al Qamar). Lua.
230
Segundo os astrólogos medievais as planetas influenciavam o destino humano. Ao tempo, a Astrologia
ocidental era fortemente influenciada pelas teorias orientais, o que explica a presença dos muitos nomes árabes
no texto.
570
juventude, mas a felicidade que agora está à tua espera afugenta-os para sempre.
sorte de sofrimentos."
Parsifal rejubilou-se com tal notícia. Tão feliz ficou que lágrimas - essa
água viva que brota do coração - lhe afloraram aos olhos. A seguir disse: "Senhora,
pobre pecador, minha mulher e meus filhos puderem participar de minha felicidade
então Deus quis de fato conceder-me Sua graça. Ao ressarcir-me dos agravos
sofridos dais-me uma prova de lealdade. Vossa ira certamente me teria poupado se
não tivesse caído em falta. Ao tempo não tinha maturidade suficiente para o
relevante papel que me fora destinado. Mas agora me cumulais de privilégios que
afugentam todas as minhas penas. Vosso traje confirma o que dizeis. Quando em
pendentes das paredes o mesmo símbolo heráldico que ostentais em vosso manto:
Parsifal iria finalmente pôr termo aos sofrimentos de Anfortas. Artur, sempre
571
"Senhora, recolhei-vos à tenda e descansai. Dizei-me, além disso em que vos posso
ser útil."
Ela respondeu: "Arnive está entre nós. O que ela puder oferecer-me até a
partida do meu amo deve bastar-me. Como foi libertada do cativeiro gostaria de
revê-la, bem como as outras damas que Clinschor manteve reclusas durante muitos
anos."
que ali estavam sentados em torno da mesa se levantaram. Mas Feirefiz tinha em
comprovar o grande amor que devotava à sua prima prestando-lhe um favor: "Ajudai
a mim e ao meu primo Galvão a convencer a todos esses reis, príncipes, barões e
modestos cavaleiros a permanecer neste local até que tenha presenteado a todos.
Para mim seria humilhante deixá-los partir sem lhes ter oferecido alguma coisa. Os
saltimbancos também deverão ser contemplados. A ti, Artur, eu peço que persuadas
não os diminui, pois nunca encontraram um homem rico igual a mim. Além disso
572
Eles prometeram ao gentio permanecer ali por mais quatro dias, prazo
que segundo eu soube foi por ele considerado satisfatório. Artur pôs à sua
algum seria capaz de conquistar o Graal a não ser que para tanto fosse
predestinado pela Providência Divina. A notícia de que o Graal não poderia ser
conquistado pela força das armas se espalhou por todos os países, convencendo os
dos fidalgos que ali se achavam alojados. A seguir puseram-se a caminho, alegres,
bem dispostos e tão bem armados como se partissem para uma guerra. No terceiro
ninguém ousaria imaginar mais ricos e magníficos. Cada rei considerou o presente
que lhe coube sobremodo útil a seu país. Considerando a posição social dos
573
Nourient. Não saberia dizer como os exércitos ali acampados se separaram e
574
LIVRO XVI
1. OS SOFRIMENTOS DE ANFORTAS
Anfortas disse então aos seus cavaleiros: "Estou convencido que teríeis
pena de mim se efetivamente me fósseis leais. Por quanto tempo devo ainda
então sereis responsabilizados perante Deus por tudo que venho passando. Desde
o dia em que fui armado cavaleiro procurei adivinhar vossos desejos. Caso tivesse
cometido algum ato vergonhoso sem que o soubésseis, ainda assim meu castigo
algum interesse nisso poderíeis ter observado que para prestigiar a instituição
575
crítica. Por tudo isso recebi de vossa parte apenas ingratidão. No dia do Juízo Final
eu, órfão da alegria, levantarei esta queixa contra vós. Se não me deixardes morrer
solidariedade. Estais muito bem informados e vistes com os vossos próprios olhos
como a desgraça sobre mim se abateu. Acaso sirvo ainda para ser vosso soberano?
Seria uma leviandade de vossa parte se por minha causa quisésseis arriscar a
salvação de vossas almas. O que então vos impele a me tratar deste modo?"
aparecera no Graal. Eles vinham por isso aguardando o regresso daquele homem
que doutra vez deixara escapar a grande oportunidade de sua vida: estavam à
espera do momento propício em que ele faria a pergunta que restituiria a saúde ao
rei. Este não poucas vezes permanecia de olhos fechados durante quatro dias
seguidos. Quando isso acontecia era colocado diante do Graal, mesmo contra a sua
modo era mantido vivo contra a sua própria vontade. E não conseguia morrer.
Anfortas começou a passar mal. Sua ferida lhe causava dores terríveis. As jovens e
os cavaleiros ouviam seguidamente seus gritos de dor e podiam ver em seus olhos
os sofrimentos por que passava. Ninguém tinha condições de tratar com êxito dessa
576
ferida incurável. Mas segundo nos dá conta a Aventura estava finalmente a
mergulhada na dor.
visando afugentar o mau cheiro que a ferida exalava. Diante dele, sobre o tapete,
odoríferas haviam sido postas ali também a teriaga e o precioso âmbar que
índia e noz moscada que haviam sido espalhados no local por causa de seu aroma
desse modo o mau cheiro que contaminava o ambiente. O fogo que crepitava no
aposento era alimentado - como já foi dito - com pau aloé. Os pés da cama eram
Nourient, nos quais o rei se achava recostado, não eram costurados mas
com pedras preciosas era articulada com cordas feitas de pele de salamandra que
cercado de opulência o rei não fazia caso desse fausto todo. Jamais alguém havia
visto cama igual. Era ao mesmo tempo artística e preciosa. Para tanto contribuíam
sobretudo as virtudes benéficas das pedras preciosas que agora vou especificar. Ali
577
se achavam engastados carbúnculos, selenites, balaches, gagatromes, ônix,
estudo das pedras sabia manipular suas poderosas virtudes. Recorrendo a tais
seria afinal motivo de satisfação. Vindo de Joflanze e livre agora de tudo que o
578
Salvaesche. Nada me fora dito sobre o rumo que seguiram e a distância que
percorreram. Graças a Cundrie os dois não foram envolvidos num combate. Quando
combate. Mas, Cundrie segurou seu corcel pelas rédeas impedindo desse modo que
consumasse seu intento. Ato contínuo a jovem disforme preveniu seu soberano
o nobre gentio reconsiderou sua atitude, dizendo: "Nesse caso não se fala mais em
confronto!"
Parsifal, cujo afetuoso cumprimento se lhes afigurava uma bênção. A seguir com os
579
olhos rasos d'água e muita esperança no coração rumaram todos para
Munsalvaesche.
cada qual deles uma almofada tendo como complemento uma colcha de veludo. Os
dois acharam mais conveniente sentar-se e aguardar ali até serem aliviados de
580
apresentasse evidentes sinais de sofrimento recebeu os dois com muita
recuperar a felicidade com vossa ajuda. Quando daqui partistes, ao cabo de vossa
última visita, vós me deixastes num estado que deveria ter despertado vossa
empenhai-vos junto aos cavaleiros e damas para que consintam que a morte ponha
fim às minhas penas. Se fordes Parsifal, então privai-me simplesmente durante sete
noites e oito dias de visão direta do Graal. Disso resultará o fim de minhas penas.
Outra coisa não me atrevo a esperar de vós. Isso resultará para vós em prestígio
pois por essa intervenção sereis exaltado como homem providencial. Vosso
está o Graal? Vossa comunidade saberá agora se Deus está propenso a manifestar
Santíssima Trindade, pedindo ajuda para o homem tão duramente atingido pelo
Deus, que a pedido de São Silvestre231 restituiu a vida a um touro, permitindo que
231
São Silvestre (Papa no período de 314 a 335 d.C.), na presença do Imperador Constantino, teria, segundo a
lenda, vencido seus adversários judeus numa disputa doutrinária, ao ressuscitar em nome de Cristo um touro
que seus adversários haviam conseguido que caísse morto sussurrando-lhe no ouvido o nome de Javé.
581
seguisse lépido o seu caminho; que determinou a Lázaro232 que se levantasse,
consentiu igualmente que Anfortas se curasse e readquirisse sua plena saúde. Seu
ninguém podia ombrear com o restabelecido Anfortas - nem Absalão, filho de Davi,
nem Vergulacht de Ascalun, nem aqueles homens que já nasceram favorecidos pela
soberano do Graal não havia margem para qualquer dúvida e assim Parsifal foi
me for dado avançar uma opinião devo dizer que nunca se viu lado a lado dois
homens mais ricos e poderosos que Parsifal e Feirefiz. Por seu turno a comunidade
hóspede deste.
durante sua esperançosa viagem rumo à Munsalvaesche. A essa altura já lhe havia
sido transmitida a notícia de que todas as suas penas haviam chegado ao fim. O
Era ali que Parsifal deveria encontra-se com ela para conduzi-la a
232
Lázaro, irmão de Maria e de Marta, teria sido ressuscitado por Cristo, segundo consta do Evangelho de São
João (11, 41-45).
582
Munsalvaesche - uma viagem que ele certamente empreenderia com especial
prazer. Um templário lhe havia transmitido essa notícia: "Um grupo de distintos
eremitério de Trevrizent. Este foi tomado de grande satisfação íntima ao saber que
Anfortas não perecera das mazelas resultantes do funesto duelo e que a pergunta
desígnios do Senhor. Quem pode prever Suas decisões? Quem pode estimar os
limites de Sua onipotência? A própria comunidade dos Anjos não saberia avaliá-la.
cumprisse vossa vontade. Devo confessar que ao procurar vos dissuadir de vosso
propósito não vos revelei todos os pormenores que dizem respeito ao Graal. Por
esse pecado, imponde-me uma penitência. De futuro acatarei vossas ordens já que
sois meu soberano e filho de minha irmã. Naquela oportunidade vos disse que,
583
até novamente merecerem a graça divina. Mas em se tratando de semelhante delito
Deus é inflexível, pois não se reconciliou com aqueles que consoante aleguei teriam
merecido Seu perdão. Quem pretende contar com Seu apoio não pode mudar de
opinião a respeito d'Ele. Eles estão condenados por toda a eternidade, pois foram
julgava ser esforço vão de vossa parte. Até agora nunca houve o caso de alguém
conquistar o Graal pela força. Essa foi a razão por que, de boa fé, procurei dissuadir-
vos de semelhante propósito. Mas eis que tudo sucedeu de modo diverso.
Conquistastes o Bem Supremo. Mas não esqueçais de em meio a todo esse êxito
Parsifal disse então a seu tio: "Desejo ir ao encontro da mulher que não
vejo há cinco anos. Amo-a hoje como a amava ao tempo de nossa vida em comum.
doravante, seguir teus conselhos até que a morte nos separe. Na hora da maior
de minha mulher. Segundo soube ela estaria vindo ao meu encontro e neste
584
Ao se despedir o piedoso varão o recomendou à proteção de Deus. Como
Brobarz, que haviam sido escoltadas pelos escudeiros. Ali estavam portanto
achava alojada ali ou se ocupava tenda à parte. Indicou-se-lhe o local onde ela,
foram ao encontro dele. Embora ainda não fosse dia claro Kyot reconheceu de
lhe aflorar à mente a lembrança de Tschoysiane, a fiel esposa, com a qual vivera
A rainha ainda não fora avisada de sua chegada. Dominado pela emoção
lado da rainha e em torno dela muitas damas atraentes. Kyot bateu na cobertura,
585
Como estivesse apenas de camisola enrolou-se na própria coberta e pulou da cama.
deveria estar zangada contigo, mas não posso. Louvados o dia e a hora que te
Ambos estavam nus mas Parsifal não deu importância ao pormenor, beijando um e
conduzidos a outro local e que as damas deixassem a tenda. Elas se retiraram, não
viagem. A seguir Kyot deixou Parsifal aos cuidados da rainha e se retirou, seguido
acesso à tenda.
pois dispunha dos meios para tanto. Embora muitas nobres mulheres lhe
situação. Tanto quanto sei desfrutou o amor que a esposa lhe oferecia até perto de
586
retalhados por golpes de espada. Sob o manto usavam apenas as grevas porque já
que outrora se haviam batido na guerra contra Clamide. Depois da última bênção os
lançou aos seus vassalos esta pergunta: "Qual dos dois meninos será vosso futuro
soberano?" A seguir fez saber o seguinte aos príncipes presentes: "Kardeiz, como
meu sucessor legítimo, deverá herdar Valois, Norgals, Kanvoleis e Kingrivals. Tão
logo tenha atingido a maioridade conduzi-o a Anjou e Bealzenan que meu pai me
legou por ser seu herdeiro legítimo. Como afortunadamente sucedi ao Rei do Graal,
então, caso possa contar com vossa lealdade recebei vossos feudos da mão deste
meu filho."
587
Como todos de bom grado concordassem com essa proposta instalou-se
Mais tarde lhe caberia conquistar, além de Kanvoleis, outros domínios hereditários
de Gahmuret.
jovem rei pôs-se em marcha regressando a seu país. As jovens damas e os demais
templários por sua vez puseram Loherangrin e sua bela genito-ra ao centro da
7. A MORTE DE SIGUNE
"Há muito tempo" disse Parsifal "ao atravessar esta floresta deparei com
um eremitério pelo qual corria um claro e célere riacho. Caso o conheçais, conduzi-
me àquele local." Pelos seus lhe foi dito que a descrição correspondia ao eremitério
que conheciam: "Ali mora uma jovem que permanece em luto permanente ao pé do
233
Cf. nota nº 29
588
ataúde de seu amado. Ela é um modelo de dedicação pois todos que por ali passam
local."
À vista disso o rei decidiu: "Rumemos para o local para ver como ela está
visão daquela cena provocou na rainha uma crise de choro. Demoliu-se o muro do
decomposição. Aquela que em vida se conservara virgem por amor a ele foi
colocada a seu lado para o descanso eterno. A seguir cerraram o túmulo. Como já
foi dito, Condwiramurs lamentou profundamente o destino de sua prima pois havia
sido criada por Tschoysiane, a mãe da morta e tia de Parsifal. Esta era a razão de
234
Provençal. Kyot, o Provençal (que não deve ser confundido com Kyot, Duque da Catalunha), traduziu
para o francês os originais do Graal de autoria de Flegentanis. Segundo alega Wolfram von Eschenbach, o
presente poema seria apenas a tradução alemã do texto de Kyot. NT
589
8. CONDWIRAMURS, A RAINHA DO GRAAL
O Duque Kyot, preceptor do Rei Kardeiz, não sabia que a filha morrera.
Mas o curso desta narrativa é linear e não curvo como um arco. Eles reiniciaram,
espera deles estava Feirefiz, que nesse entretempo não achara motivo para o tédio.
Para recebê-los foram acesas tantas velas que dava a impressão de a floresta estar
uma tropa numerosa para dar boas-vindas à rainha, ao castelão e ao filho destes.
Loherangrin foi apresentado ao tio Feirefiz, mas dada à coloração alvinegra de sua
pele o menino relutou em beijá-lo. Ainda hoje as crianças - mesmo as bem dotadas
apenas pelo brilho de seus olhos como ainda por uma fama de imaculada
castelã, que lhe deu o beijo de boas-vindas. Ao beijar Anfortas declarou-se feliz por
conduziu junto a Repanse de Schoye, tia do castelão. Embora seus lábios fossem
rubros por natureza Condwiramurs teve que distribuir ainda muitos beijos. A
quantidade de beijos distribuídos cansou-a tanto que tive pena dela, a ponto de
lamentar não poder substituí-la nessa cansativa atividade. Exausta, além disso, em
virtude da cansativa viagem, foi conduzida pelas jovens damas a seus aposentos
velas. Era o momento em que vinham sendo feitos preparativos para a recepção do
Graal que só em ocasiões festivas era exibido diante da comunidade. Naquela noite
maior desalento. Mas desta vez o Graal seria exibido em meio a manifestações da
passado.
591
Depois de se haver livrado das roupas de viagem e do toucado a rainha,
porta. Todos convieram então em nunca ter visto em qualquer tempo mulher mais
vistosa. Ela usava um vestido urdido em seda pelas mãos de hábil artesão, segundo
palácio, onde três lareiras monumentais eram alimentadas por achas do aromático
pau aloé. Agora havia quarenta tapetes e assentos a mais que na ocasião em que
destinados a Feirefiz e Anfortas, eram especialmente preciosos. Uma vez mais cada
vez fora exibido diante de Anfortas, agora era exposto diante do filho de Gahmuret e
primeira a entrar no esplendor de seus louros cabelos parecia belíssima aos olhos
do gentio mas a seguinte se lhe afigurava ainda mais bela no seu deslumbrante
vestido. Todas essas jovens graciosas e atraentes eram uma festa para os olhos.
virgens. Conforme me foi dito o Graal consentia em ser carregado unicamente por
ela. Seu coração era dotado de imaculada pureza e sua face irradiava esplendor
peculiar.
592
Será necessário fazer uma descrição sobre a seqüência em que os
primeira vez eram instalados; expor como tudo sucedeu consoante exigiam o
costume e o bom tom; precisar quantos carrinhos trazendo os cálices de ouro eram
se achavam instalados, acabaria contando uma longa história. Por isso prefiro
de carne de caça e de animais de criação; cerveja para esse, vinho para aquele -
tudo consoante o desejo de cada um. Além disso recebeu-se do Graal vinho de
O gentio quis saber como era possível que o vaso de ouro diante da mesa
sobremodo. Anfortas, que comia ao seu lado disse-lhe então: "Senhor, acaso não
vistes o Graal que está bem à vossa frente?" O gentio alvinegro respondeu: "Vejo ali
apenas um pano de seda verde. Foi a virgem coroada postada ali à nossa frente que
593
Considero-me de ânimo suficientemente forte para não me perturbar com a simples
visão de uma jovem ou mulher. Mas agora, sem mais nem menos, os favores das
nobres damas que conheci me parecem insípidos. Eu sei que não fica bem
importunar com meus problemas amorosos uma pessoa a quem nunca prestei favor.
Que valor podem ter para mim agora meu poder, minha riqueza, meus feitos
uma vida de penas? Ó poderoso deus Júpiter, por que me trouxestes a este lugar,
intensidade fizeram com que as partes claras de seu rosto empalidecessem. Por
Condwiramurs. Enquanto isso Feirefiz, o nobre forasteiro, enveredava cada vez mais
nas malhas da paixão. Sem esboçar sequer uma reação, consentiu que seu amor
por Secundille se extinguisse em seu coração. O que representavam para ele agora
de cultivardes por minha irmã um sentimento que nunca homem algum por ela
experimentou. Jamais cavaleiro algum esteve a seu serviço. Nunca alguém dela
594
recebeu recompensas por serviços prestados. Com aflita solicitude permanecera
sempre a meu lado e raras vezes alguém a viu sorrir. Até aqui atravessou uma fase
pouco favorável para realçar sua beleza. Vosso irmão, que é filho da irmã dela,
"então indicai-me a maneira pela qual possa conquistar seu afeto. Nela estão
concentrados todos os anseios do meu coração. Se todos os louros que colhi com
minha lança tivessem sido conquistados a seu serviço, poderia dela esperar alguma
pratiquei o golpe empregado por dois adversários em rota de colisão e, por fim, o
golpe de perseguição. Mas hoje estou passando pela crise mais séria desde que
envolto em chamas. Nesse embate certamente teria sido reduzido a cinzas caso não
Oxalá vossa amável irmã me houvesse enviado a esse combate, que venci a duras
penas. Por amor a ela estaria disposto a correr qualquer risco. Vou ficar de mal com
faces coradas do pai Frimurtel. Por isso o gentio olhava ora para ele, ora para ela.
235
Puneiz. Um dos cinco golpes permitidos nos torneios e que deve ser praticado com lança em riste.
236
Triviers. Ataque dirigido contra o flanco direito do adversário.
237
"Desde que me cobri com o escudo". Quando foi armado cavaleiro, isto é, a partir do momento em que se
iniciou na carreira das armas.
595
Embora parecesse participar do banquete nem tocava na comida a despeito da
quantidade de pratos postos à sua frente. À vista disso Anfortas disse a Parsifal:
"Senhor, acredito que vosso irmão ainda não tenha visto o Graal!" Feirefiz confirmou
essas palavras, dizendo ao anfitrião que de fato não conseguia vislumbrá-lo. Tal
dizendo: "Caso se trate de um pagão ele não pode esperar que sem o batismo seus
olhos possam vislumbrar o Graal, a exemplo do que ocorre com os membros desta
comunidade. Para ele o Graal é invisível." Foi essa mensagem que ele enviou ao
palácio. À vista disso Anfortas e o anfitrião explicaram a Feirefiz que nenhum pagão
O filho pagão de Gahmuret perguntou então: "Se para vos ser agradável
me deixasse batizar isso me aproximaria do objeto do meu amor? Nada do que até
esta provação. Desde que o escudo me cobriu pela primeira vez nunca havia
passado por aflição tamanha. Na verdade deveria dissimular esse sentimento mas
596
"É aquela belíssima jovem, irmã deste meu companheiro de mesa. Se me
reinos."
mim e de tua tia um par. Se o batismo puder ser conquistado de arma na mão, então
envia-me à liça sem perda de tempo a fim de que possa fazer jus ao seu amor de
forma cavaleirosa. Desde que me conheço como gente o fragor das lanças
ouvidos."
uma vez mais: "Embora persistas na crença errônea de poder conquistar o batismo
pela força das armas consentirei que te aproximes da jovem somente depois de
regularmente batizado. Além disso terás que abjurar a teu deus Júpiter e renunciar a
Secundille. Amanhã cedo dir-te-ei a forma pela qual teu desejo pode ser satisfeito."
597
valor excepcional. A essa altura heis de convir que todos estavam saciados. As
Ao retirar-se a senhora de seu coração levava consigo o Graal. À vista disso Parsifal
Muita coisa teria eu para contar caso quisesse descrever como a anfitriã
despreocupado. Mas em vez disso prefiro voltar minha atenção ao que iria acontecer
no dia seguinte.
diante do Graal. Parsifal dera instruções para que ali se fizessem presentes os mais
Parsifal assim falou: "Caso persistas no propósito de desposar minha tia terás que
598
renunciar a teus deuses, combater os que se opõem a Deus Altíssimo e observar
água, que não era nem fria nem quente. Junto à pia batismal se achava postado um
cuja Unidade Trina se manifesta em toda a parte. Deus se fez homem e Sua palavra
remove de vós a condição de pagão. Deus, que criou Adão à Sua imagem e
árvores retiram sua seiva. Ela torna fértil toda a criação. A água confere aos olhos o
também. Abjuro todos os meus deuses, pois nunca passei por aflição tamanha. Da
mesma forma Secundille não mais participará doravante de meu prestígio. Por amor
599
À vista disso seguiu-se a tradição cristã pronunciando sobre ele a bênção
matrimônio a filha de Frimurtel por quem seu coração ansiava. Antes do batismo o
Graal permanecera invisível a seus olhos mas agora se lhe manifestava claramente.
mensagem: "Se, mercê de Deus, um senhor do Templo for convocado para reinar
sobre uma nação estrangeira, será do seu dever impor nesse país o Direito e a
Justiça. Deverá contudo proibir qualquer pergunta sobre seu nome e o de sua
estirpe. Mas se a despeito disso a questão for levantada não poderá permanecer
por mais tempo no país." Tendo em conta o precedente do amável Anfortas, que em
600
Graal é comparável ao que me ofereceis. Perdi-a por meu orgulho. Agora pretendo
dedicar-me a uma vida de humildade. Desejo afastar de minha mente qualquer idéia
que lembre poder e amor cortês. Ao regressar à pátria levareis convosco uma
esposa de genuína e inegável distinção, que será para vós companheira fiel e
dedicada. É preciso que cumpra meu dever aqui mesmo, onde a serviço do Graal
terei de enfrentar muitos combates. Mas nunca mais quebrarei lança por uma mulher
pois uma delas foi a causa de minha desgraça. Isto não significa que passei a
dedicar ao serviço do Graal. Se Deus o guiar pelo caminho certo seu destino será
servir ao Graal."
Feirefiz permaneceu ali ainda por onze dias em meio a alegres festas e
601
Por ínvios caminhos seguiram eles rumo a Carcobra. Anfortas enviou
cunhado e a esposa deste, sua irmã, através da Floresta Laeprisin até o distante
Feirefiz foi recebido ali com grande pompa e consideração e não precisou esperar
atingir a extensa planície de Joflanze. Como Feirefiz encontrasse ali apenas umas
poucas pessoas, quis saber o rumo que tomara o exército que lá se achava
acampado. Foi-lhe dito então que todos haviam regressado a seus países de
origem. O próprio Artur teria seguido para Schamilot. Ó senhor de Tribalibot não
tinha, pois razões em ali se deter por mais tempo. Regressou portanto a seu exército
seus foram agraciados com ricos presentes. Cundrie soube ali de uma importante
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morte de Secundille. Desse modo pôde Repanse de Schoye prosseguir viagem sem
constrangimento.
que passou a ser conhecido como Preste João. Desde então os sucessivos reis da
índia passaram a ostentar esse nome como título dinástico. Feirefiz tratou de
propagar na Índia a fé cristã que até então tivera poucos adeptos. O país que
que Secundille havia falecido. Anfortas rejubilou-se com o fato de que a irmã seria
Frimurtel. Soubestes que levaram vida exemplar e que dois deles haviam morrido.
Uma era Tschoysian, na qual Deus não pôde descobrir a menor falta. A outra,
bravo Anfortas, manso e puro de coração, enfrentava com ânimo viril muitos
combates a serviço do Graal mas nunca mais consentiu em se pôr a serviço de uma
mulher.
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13. A MISSÃO DE LOHERANGRIN
Graal.
narrados reinava num país uma mulher nobre e irrepreensível. De estirpe tão ilustre
quanto poderosa, levava vida casta e apartada das frivolidades mundanas. Muitos
pediam sua mão; mas era tamanho seu desprendimento que recusava
condes de seu reino. Por que relutava ela em escolher um esposo que sobre eles
poderia reinar como digno soberano? Mas por mais que fosse hostilizada e
incriminada persistiu em entregar seu destino inteiramente a Deus. Por fim convocou
homem a menos que se tratasse de algum predestinado por Deus para desposá-la.
cavaleiro que lhe fora destinado por Deus. Trazido por um cisne desembarcou em
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Antuérpia. A princesa encontrou nele o esposo de que necessitava, pois se tratava
Depois de ter sido recebido ali com honras dirigiu-se à bela soberana do
país em tom de voz que todo o povo ali reunido também pudesse ouvir: "Senhora
duquesa, se hoje aqui assumo o cargo de soberano deste país podeis estar certa de
que antes renunciei a outro não menos honroso. Agora ouvi o que gostaria de vos
pedir: Jamais indagai acerca de minha identidade. Enquanto não for feita tal
sério esta advertência dia virá em que, cumprindo a vontade de Deus, terei de vos
deixar."
Ela lhe assegurou que levaria a sério sua advertência e cumpriria suas
combatente de grande categoria que graças ao seu valor e sua força conquistava
sucessivas vitórias. Tiveram alguns filhos bem parecidos. Em Brabante muita gente
sabe contar até hoje como os dois se conheceram, quanto tempo ali permaneceu e
como, constrangido com suas perguntas, acabou partindo. Ele se tirou dali a
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contragosto, pois não havia outra alternativa. Não muito depois de haver sido
gracioso bote no qual o príncipe embarcou. Como lembrança deixou alguns objetos
pessoais: uma espada, uma trompa de caça e um anel. Dali partiu, pois Loherangrim
que, conforme foi dito, era filho de Parsifal. Cruzando terras e mares retornou a
Por que a nobre dama teve de perder seu belo e valoroso companheiro?
Loherangrin foi diferente do de Erec238, cujas ameaças nunca foram além das
palavras.
mesma história então Kyot pode zangar-se com ele com razão, pois nos ofereceu a
238
Erec. Refere-se às recriminações que a personagem "Erec" (na epopéia homônima de Hartmann von Aue) faz
a Enite por esta, preocupada com ele, haver transgredido o voto de silêncio. Embora a quebra desse voto
implicasse a morte, Enite continuou tranqüilamente viva.
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perdera por não ter sabido honrá-la como devia. Foi oriunda da Provença que
Tendo isso em boa consideração eu, Wolfram von Eschenbach, nada quero
cuja biografia desenvolvi até o ponto em que o personagem atingiu o ápice de sua
notável carreira. Quem no fim da vida pode dizer que se manteve fiel a Deus e
conceder um acréscimo de prestígio e se ela houver sido escrita para uma mulher
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