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A ópera Parsifal estreou no Teatro


de Bayreuth no dia 26 de julho de 1882,
sob a regência do compositor Richard
Wagner.
O lastro de tão grande nome,
associado ao impacto cênico-musical de
uma obra discutida e admirada no mundo
inteiro, levou a opinião pública à crença
de que o autor da história do Parsifal
fosse o próprio Wagner. Apenas os
musicólogos e literatos sabiam e sabem
que o mago de Bayreuth extraiu o
argumento de sua peça do poema épico
Parsifal, elaborado entre 1200 e 1210
pelo trovador e templário alemão Wolfram
von Eschenbach. Durante quase 800 anos,
essa extensa epopéia de vinte e cinco mil
versos que, ao lado da Divina Comédia, de
Dante, é considerada um dos grandes mitos
2
fundadores do Ocidente, permaneceu
restrita a uns poucos iniciados.
É com absoluta primazia que a
Editora Thot lança agora esse famoso
poema na magistral tradução do Prof. A.
R. Schmidt Patier. Este trabalho
paciente, e quase artesanal, foi
previamente examinado por professores da
Internationes, que o classificaram como
"ein aussergewóhnliches und
forderungswürdiges Buchprojekt" (um
empreendimento extraordinário e digno de
apoio). Dois extensos anexos - um
glossário e um índice onomástico -
complementam o texto, que é precedido de
uma introdução do tradutor. Com o
lançamento do Parsifal, a Thot se integra
no esforço editorial que visa resgatar
para os leitores de expressão portuguesa
os grandes mitos da Idade Média.

3
As lendas do ciclo do Graal são de
elaboração coletiva e remontam a mitos
pagãos antiqüíssimos. Ao passarem ao
domínio literário, já na época dos
trovadores, sofreram uma impregnação
cristã. Apesar disso, Roma nunca aderiu
ao Graal. Instintivamente desconfiava
dessa busca interminável de um
objetivo, que segundo Wolfram von
Eschenbach seria "a quintessência da
perfeição paradisíaca, princípio e fim
de toda a aspiração humana".
As restrições se concentravam
precisamente neste ponto. Se, para a
Igreja, esse ideal era o próprio
Cristo, o Graal representava uma
promessa que, de certo modo, se opunha
às esperanças cristãs. A Igreja não
estava enganada. Na verdade todos os
cavaleiros empenhados na demanda eram
cristãos mas o próprio Graal era pré-
cristão e mesmo supracristão, isto é,
de todos os tempos. Essas lendas
reordenadas em epopéias, como a de Wolf
ram e de outros poetas do ciclo,
falavam de um reino que se tornou
estéril, em virtude do desaparecimento
do Graal. O próprio Graal não estaria
4
PARSIFAL

WOLFRAM VON ESCHENBACH

Tradução ALBERTO RICARDO S. PATIER


5
THOT LIVRARIA E EDITORA ESOTÉRICA

Brasília - DF

1989

UMA PALAVRA DE GRATIDÃO

No decurso deste trabalho longo, árduo e difícil, recebi o apoio de amigos

leais e muito queridos, aos quais devo agradecer. Entre eles, Raquel Ferreira

Martins que soube conciliar seus muitos deveres com o de datilografar e

redatilografar meus rascunhos. Pedro Henriques Angueth de Araújo e Mathias von

Kurnmer tiveram igualmente uma justa participação neste empreendimento. O

primeiro me fez chegar às mãos o texto do século XIII, bem como as versões

modernas do poema; o segundo, submeteu meu trabalho a peritos alemães cujas

apreciações me lisonjearam sobremodo. Sou grato ainda a Abigayl Léa da Silva e

Ana Maria Dagnino Falcão, que revisaram o texto e fizeram uma crítica sobre tudo o

que lhes parecesse obscuro e incorreto. Sou grato, sobretudo, a Osvaldo Rodrigues

Conde Filho, meu parceiro neste empreendimento e que num mundo mais justo

seria mencionado, se não como co-tradutor, ao menos como o mais talentoso dos

editores.

6
O Aqui e o Agora

"O minuto que você está


vivendo agora
é o minuto mais importante
de sua vida,
onde quer que você esteja.
Preste atenção ao que está fazendo.
O ontem já lhe fugiu das mãos.
O amanhã ainda não chegou.
Viva o momento presente,
porque dele depende todo
o seu futuro.
Procure aproveitar ao máximo
o momento que está vivendo,
tirando todas as vantagens que puder,
para seu aperfeiçoamento".

7
“Para David M. que esperou pacientemente 2 anos
para a digitalização deste livro”

S.V.M.

Sumário

INTRODUÇÃO ............................................................................................................1
A Cavalaria e a Literatura ........................................................................................1
O ciclo arturiano ou do Graal ...................................................................................4
O Parsifal .................................................................................................................7
A Tradução ............................................................................................................16
LIVRO I .....................................................................................................................17
PRÓLOGO.............................................................................................................17
A VIAGEM DE GAHMURET À CORTE DO BARUC .............................................21
A VIAGEM DE GAHMURET À CORTE DA RAINHA BELAKANE.........................28
A CHEGADA DE GAHMURET À CORTE DE ZAZAMANC...................................30
GAHMURET É RECEBIDO POR BELAKANE.......................................................33
PREPARATIVOS PARA O COMBATE..................................................................38
GAHUMURET RECEBE A VISITA DE BELAKANE ..............................................40
OS COMBATES DE GAHMURET DIANTE DE PATELAMUNT ............................43
RECOMPENSAS AMOROSAS .............................................................................49
NEGOCIAÇÕES DE PAZ ......................................................................................50
GAHMURET ABANDONA BELAKANE .................................................................57
O NASCIMENTO DE FEIREFIZ ............................................................................59
A CHEGADA DE GAHMURET A SEVILHA...........................................................60
LIVRO II.....................................................................................................................61
A VIAGEM DE GAHMURET A KANVOLEIS .........................................................61
O TORNEIO DE KANVOLEIS ...............................................................................68
GAHMURET ENTRE TRÊS MULHERES..............................................................78
GAHMURET NO CUME DA FAMA .......................................................................91
A MORTE DE GAHMURET ...................................................................................95
LAMENTAÇÕES DE HERZELOYDE ....................................................................98
O NASCIMENTO DE PARSIFAL.........................................................................100
EXCURSO DO POETA........................................................................................101
LIVRO III..................................................................................................................104
A INFÂNCIA DE PARSIFAL NO ERMO DE SOLTANE.......................................104
O PRIMEIRO CONTATO DE PARSIFAL COM A VIDA CAVALEIROSA ............107
O PRIMEIRO CONTATO DE PARSIFAL COM O MUNDO .................................112

8
PARSIFAL E IECHUTE .......................................................................................115
O COMEÇO DA VIA-CRUCIS DE IECHUTE.......................................................119
O PRIMEIRO ENCONTRO COM SIGUNE..........................................................121
PARSIFAL A CAMINHO DA CORTE DO REI ARTUR ........................................125
PARSIFAL NA CORTE DO REI ARTUR .............................................................128
KEYE CASTIGA CUNEWARE.............................................................................130
A MORTE DE ITHER...........................................................................................132
PARSIFAL SE APOSSA DA ARMADURA DE ITHER.........................................134
O LUTO PELA MORTE DE ITHER......................................................................136
O ENCONTRO COM GURNEMANZ ...................................................................138
ACOLHIDA HOSPITALEIRA ...............................................................................140
EDUCAÇÃO CAVALEIROSA ..............................................................................145
PARSIFAL DESPEDE-SE DE GURNEMANZ .....................................................149
LIVRO IV ................................................................................................................152
A CHEGADA DE PARSIFAL A PELRAPEIRE.....................................................152
PARSIFAL E CONDWIRAMURDS ......................................................................157
3. A LUTA ENTRE PARSIFAL E KINGRUN ........................................................163
4. O CASAMENTO DE PARSIFAL E CONDWIRAMURS ...................................167
5. O ASSÉDIO DE PELRAPEIRE........................................................................168
6. CLAMIDE NO ACAMPAMENTO DE ARTUR ..................................................176
7. PARSIFAL ABANDONA CONDWIRAMURS ...................................................180
LIVRO V ..................................................................................................................183
1. PARSIFAL NO CASTELO DO GRAAL ............................................................183
2. PARSIFAL DIANTE DO REI DO GRAAL.........................................................187
3. OS MISTÉRIOS DO GRAAL ...........................................................................189
4. O GRAAL.........................................................................................................191
5. A PERGUNTA POSTERGADA........................................................................193
6. O PERNOITE NO CASTELO DO GRAAL .......................................................196
7. A PARTIDA DE PARSIFAL..............................................................................198
8. O SEGUNDO ENCONTRO COM SIGUNE .....................................................200
9. O SEGUNDO ENCONTRO COM IESCHUTE .................................................205
10. O DUELO ENTRE PARSIFAL E ORILUS......................................................209
11. PARSIFAL RECONCILIA ORILUS COM IESCHUTE ....................................213
12. ORILUS E IESCHUTE NO ACAMPAMENTO DE ARTUR ............................219
LIVRO VI .................................................................................................................223
1. AS TRÊS GOTAS DE SANGUE NA NEVE .....................................................223
2. O DUELO ENTRE PARSIFAL E SEGRAMORS..............................................225
3. EXCURSO SOBRE A NATUREZA DA PAIXÃO..............................................231
4. O DUELO ENTRE PARSIFAL E KEYE ...........................................................233
5. PARSIFAL E GALVÃO ....................................................................................237
6. A ADMISSÃO DE PARSIFAL NA TAVOLA REDONDA ..................................243
7. CUNDRIE AMALDIÇOA PARSIFAL ................................................................246
8. KINGRIMURSEL DESAFIA GALVÃO..............................................................251
9. CLAMIDE E CUNEWARE................................................................................255
10. PARSIFAL ABANDONA A TAVOLA REDONDA ...........................................258
11. EXCURSO DO POETA..................................................................................263
LIVRO VII ................................................................................................................265
1. EXCURSO DO POETA....................................................................................265
2. GALVÃO A CAMINHO DE ASCALUN .............................................................266
3. GALVÃO DIANTE DE BEAROCHE.................................................................273

9
4. OBIE MENOSPREZA GALVÃO ......................................................................274
5. OS PRIMEIROS COMBATES DIANTE DE BEAROCHE ................................275
6. OBIE TENTA HUMILHAR GALVÃO ................................................................278
7. LIPPAUT PEDE APOIO A GALVÃO................................................................284
8. GALVÃO TORNA-SE CAVALEIRO DE OBILOT .............................................286
9. A BATALHA DIANTE DE BEAROCHE ............................................................291
10. OS NOTÁVEIS FEITOS DE GALVÃO ...........................................................294
11. O CAVALEIRO VERMELHO .........................................................................299
12. A RECONCILIAÇÃO DE OBIE E MELJANZ..................................................304
13. GALVÃO SE DESPEDE DE OBILOT ............................................................306
LIVRO VIII ...............................................................................................................307
1. GALVÃO A CAMINHO DE ASCALUN .............................................................307
2. GALVÃO E ANTIKONIE ..................................................................................312
3. O ATAQUE IMPREVISTO ...............................................................................314
4. O ATAQUE À TORRE .....................................................................................315
5. A INTERVENÇÃO DE KINGRIMURSEL .........................................................317
6. NEGOCIAÇÕES DE PAZ ................................................................................319
7. A RECONCILIAÇÃO........................................................................................330
8. A PARTIDA DE GALVÃO ................................................................................331
LIVRO IX .................................................................................................................334
1. O TERCEIRO ENCONTRO COM SIGUNE .....................................................334
2. O COMBATE COM O TEMPLÁRIO DO GRAAL .............................................341
3. ENCONTRO NA SEXTA-FEIRA SANTA .........................................................343
4. OS CONSELHOS DO EREMITA TREVRIZENT .............................................347
LIVRO X ..................................................................................................................381
1. GALVÃO E O CAVALEIRO FERIDO...............................................................381
2. O ENCONTRO COM ORGELUSE ..................................................................385
3. A INSOLÊNCIA DE MALCREATURE..............................................................391
4. AS INFÂMIAS DE URIANS..............................................................................395
5. OS MOTEJOS DE ORGELUSE ......................................................................399
6. EXCURSO DO POETA ACERCA DAS COISAS DO AMOR...........................402
7. GALVÃO DIANTE DO CASTELO ENCANTADO ............................................403
8. O DUELO ENTRE GALVÃO E LISCHOYS .....................................................404
9. HÓSPEDE DO BARQUEIRO ..........................................................................410
LIVRO XI .................................................................................................................416
1. O CASTELO ENCANTADO DE CLINSCHOR.................................................416
2. OS TERRORES DO CASTELO ENCANTADO ...............................................422
LIVRO XII ................................................................................................................435
1. AS AFLIÇÕES AMOROSAS DE GALVÃO ......................................................435
2. A COLUNA MÁGICA .......................................................................................439
3. O COMBATE COM O TURCÓIDE ..................................................................442
4. A TRAVESSIA DO PASSO SELVAGEM .........................................................446
5. A ÁRVORE DE GRAMOFLANZ ......................................................................449
6. O COMBATE APRAZADO...............................................................................452
7. GALVÃO CONQUISTA ORGELUSE ...............................................................454
8. REGRESSO FESTIVO AO CASTELO ENCANTADO .....................................460
LIVRO XIII ...............................................................................................................465
1. A FESTA NO CASTELO ENCANTADO DE CUNSCHOR...............................465
2. SERVIÇOS RECOMPENSADOS ....................................................................473
3. O REGRESSO DO MENSAGEIRO .................................................................476

10
4. A ESTRANHA BIOGRAFIA DE CLINSCHOR .................................................484
5. A CHEGADA DE ARTUR ................................................................................488
6. ARTUR PARTE PARA JOFLANZE .................................................................492
LIVRO XIV...............................................................................................................500
1. A PARTIDA DE GRAMOFLANZ ......................................................................500
2. A LUTA ENTRE PARSIFAL E GALVÃO..........................................................506
3. GRAMOFLANZ NO CAMPO DA LUTA ...........................................................508
4. PARSIFAL NO ACAMPAMENTO DE GALVÃO ..............................................511
5. O COMBATE ENTRE PARSIFAL E GRAMOFLANZ.......................................517
6. GESTÕES DE APAZIGUAMENTO .................................................................520
7. RECONCILIAÇÃO ...........................................................................................533
8. A PARTIDA DE PARSIFAL..............................................................................536
LIVRO XV................................................................................................................538
1. O COMBATE DE PARSIFAL COM FEIREFIZ.................................................538
2. OS IRMÃOS SE RECONHECEM....................................................................545
3. FEIREFIZ E PARSIFAL NO ACAMPAMENTO DE GALVÃO ..........................550
4. A FESTA EM JOFLANZE ................................................................................557
5. PARSIFAL, O ELEITO DO GRAAL .................................................................568
LIVRO XVI...............................................................................................................575
1. OS SOFRIMENTOS DE ANFORTAS ..............................................................575
2. PARSIFAL NO CASTELO DO GRAAL ............................................................578
3. PARSIFAL, O REI DO GRAAL ........................................................................580
4. O REENCONTRO COM TREVRIZENT...........................................................583
5. O REENCONTRO COM CONDWIRAMURS...................................................584
6. KARDEIZ SUCEDE A PARSIFAL....................................................................587
7. A MORTE DE SIGUNE....................................................................................588
8. CONDWIRAMURS, A RAINHA DO GRAAL ....................................................590
9. A FESTA NO CASTELO DO GRAAL ..............................................................590
10. FEIREFIZ E REPANSE DE SCHOYE ...........................................................593
11. O BATISMO DE FEIREFIZ ............................................................................598
12. O REINO DE PRESTE JOÃO........................................................................600
13. A MISSÃO DE LOHERANGRIN ....................................................................604
14. EXCURSO FINAL DO POETA ......................................................................606

11
INTRODUÇÃO

A Cavalaria e a Literatura

A cavalaria foi o evento mais notável da história européia entre a

cristianização e os tempos modernos. O conjunto de ideais e práticas próprios a uma

ordem de pessoas que nela ingressavam mediante educação e ritos determinados

acabou constituindo-se tema de toda uma fase da Literatura.

O acesso ao status de cavaleiro exigia uma formação iniciada desde a

infância. O feudalismo forneceu à cavalaria os seus castelos, feudos, armaduras e

cerimônias de investidura, que consolidavam os laços entre vassalos e suseranos. A

1
instituição não apareceu de repente, nem com todas as características de que se

revestiria já na época dos trovadores. Com exceção do estatuto feudal que se forjou

no bojo da Alta Idade Média, todos os demais aparatos que a distinguiam — os

brasões de nobreza, as ordens de cavalaria e as cerimônias de sagração —

assumiram sua forma definitiva em torno do século XI. Com efeito, o brasão mais

antigo que se conhece1 é de Raul de Beaumont (1087-1110). Naquele século fixou-

se igualmente o hábito de armar o cavaleiro numa solenidade especial: a sagração.

Sob a influência da Igreja essa cerimônia transformou-se aos poucos numa espécie

de sacramento que, via de regra, era precedida de vigília de armas, noite de preces

e bênçãos das armas.

O cavaleiro recém-armado tinha, a partir de então, o privilégio de arriscar

a vida nos torneios e usar as cores da bela a quem dedicava seus serviços. Seu

objetivo maior era buscar a permanência de seus altos feitos na memória coletiva.

Ser imortalizado pêlos serviços prestados ao monarca, à sua dama ou aos fracos e

indefesos era um privilégio diante do qual a sobrevivência física parecia pouco

importante. As obrigações cada vez mais precisas e compulsivas convertiam o

cavaleiro num paladino empenhado em acumular façanhas. Esse estado de coisas

resultou necessariamente num ambiente turbulento e competitivo. A Igreja franzia a

testa, reprovando esses jogos marciais, em especial a participação da mulher como

espectadora entusiasta e não poucas vezes como objeto de disputa entre os

contendores. Mas quando os trovadores passaram a enaltecer essas pugnas como

manifestação meritória a serviço do amor cortês, tais reparos começaram a ser

alegremente ignorados. Os trovadores e as damas venceram.

1
O escudo é conhecido desde a Antiguidade. Na sua Eneida (Canto VIII, 608), Virgílio faz a descrição dos
símbolos do escudo que Vulcano, a pedido de Vênus, forjara para Enéias. Mas essa arma defensiva dos antigos
era coisa diversa do brasão medieval. Este, além de meio de defesa, era peça honorífica elaborada consoante as
normas da Heráldica e cuja concessão e autenticidade eram confirmadas em registros públicos.

2
É oportuno estabelecer aqui a diferença entre a cavalaria, instituição

secular, e as ordens cavaleirosas de caráter religioso. A dignidade de cavaleiro

podia ser conferida por qualquer senhor feudal, com a participação da Igreja. Já as

ordens de cavalaria eram criadas pelo Papa e seus membros eram um misto de

monges e guerreiros que, no ato da sagração, faziam além dos compromissos

normais peculiares à sua condição o voto de castidade.

A primeira dessas organizações militares — a Ordem do Hospital de São

João de Jerusalém — hoje Soberana Ordem Militar de Malta — foi fundada no final

do século XI (1099). Somente no decurso do século seguinte apareceriam em cena

as outras duas grandes ordens cavaleirosas — a dos Templários (1118) e a dos

Teutônicos (1190).

Fica claro, pois, que não havia qualquer ordem de cavaleiros nos tempos

do Rei Artur (século VI) e do Imperador Carlos Magno (742-814). Trata-se de meras

idealizações livrescas. Quando a cavalaria se tornou florescente, no decurso dos

séculos XII e XIII, quis-se enobrecer suas origens, fazendo-as remontar àqueles

tempos heróicos e procuraram-se entre os guerreiros do rei bretão e os paladinos do

monarca do Santo Império Romano-Germânico os paradigmas das virtudes que se

proclamavam. As ordens cavaleirosas instituídas por Artur2 e Carlos Magno são,

portanto, sonhos.

2
Em artigo publicado no Times, de Londres, e reproduzido no Jornal do Brasil, de 3 de janeiro de 1977, Robert
Dervel Evans desvenda o mistério da enorme mesa circular exposta na cidade de Winchester. Aos turistas era
dito que em torno dela se reuniam o Rei Artur e seus cavaleiros. Embora os historiadores nunca acreditassem
seriamente em que a peça datasse de tempos tão recuados (século VI), somente a utilização do radiocarbono
confirmou a suspeita dos pesquisadores, determinando o ano exato de sua construção: 1336. O autor desse
embuste teria sido o esperto Rei Eduardo III que, pretendendo revitalizar os ideais da cavalaria decadente,

3
Esse fato nos leva a fazer outra distinção, desta feita entre a cavalaria

como instituição que de fato existiu e sua posterior reelaboração pelos trovadores,

isto é, quando a cavalaria passou do plano histórico para o domínio literário.

Na literatura trovadoresca que elegeu a cavalaria como tema, podemos

distinguir três fases: o período heróico em que a guerra prevaleceu sobre a

galanteria (La chanson de Roland e El cantar de mio Cid) ; a literatura cortês de

inspirações amáveis e modos urbanos (o ciclo arturiano ou do Graal); o período da

decadência assentado no artifício e no falso (Don Quixote de Ia Mancha).

A imagem lisonjeira que os trovadores nos apresentam do turbulento Cid

e do intrépido Roland não são propriamente falsas mas certamente versões

idealizadas. A realidade era bem outra. A cavalaria era um rude ofício e só poucos

seguiam à risca as solenes promessas feitas no ato da sagração. Duas influências

moderaram em parte a agressividade do cavaleiro militante: a mulher e o

cristianismo. A literatura deu a tudo isso um remate magnífico, apresentando a

instituição cavaleirosa com uma imagem que todos gostariam de que tivesse e não

como de fato era.

O ciclo arturiano ou do Graal

Os germes da cavalaria aparecem mais numerosos entre os povos

germânicos, para os quais as artes marciais e a mulher eram objeto veneração que

fundou a Ordem da Távola Redonda (de efêmera duração), mandou esculpir em carvalho a enorme mesa circular
de 10 metros de diâmetro e divulgou o mito de que datava dos tempos do Rei Artur.

4
se assemelhava a um culto. A despeito disso a cavalaria nunca adquiriu entre os

alemães o refinamento e o esplendor que, depois, os franceses lhe souberam

comunicar.

A cavalaria não é criação de qualquer povo europeu em particular.

Contudo, é certo que ela ganhou maior brilho na França, onde pela primeira vez

recebeu tratamento literário. Esse fato tornou os franceses preponderantes em

matéria de poesia, como em quase tudo o mais. A França é a nossa Grécia

moderna. A lírica trovadoresca foi obra da Provença; a épica ou roman courtois

nasceu no Norte da França. Os franceses só não inventaram o tema predominante

na poesia cortês a chamada matéria bretã -, que foi importada da Inglaterra.

Como personagem histórico e líder político dos bretões, Artur foi mencionado

por primeira vez pelo historiador Nennius de Mércia (c. 800 d.C) em sua Historia

Brittonum. Foi baseado em Nennius que O bispo inglês Geoffrey of Monmouth

(1100-1154) redigiu sua Historia Regum Britanniae, onde o Artur histórico já

aparecia envolto num halo de lenda. Enquanto permaneceu restrito à sua nativa

Inglaterra a figura do rei bretão se movia numa esfera intermediária entre história e

mito. Para se tornar personagem literário Artur teve de emigrar para a França.

Na reelaboração e divulgação internacional do tema, Chrétien de Troyes

tratou a matéria bretã como se fosse assunto nacional. Em seu Perceval ou lê

Comte du Graal apareceu pela primeira vez o Graal, que não constava da primitiva

matéria bretã. Iniciou-se assim um ciclo que ora é chamado arturiano, ora do Graal.

Robert de Baron acresceu à história um novo personagem: o sábio Merlin.

5
Com o Erek, de Hartmann von Aue, o ciclo do Graal se estendeu até a

Alemanha. Wolf ram von Eschenbach, cuja obra será aqui o objeto central de nossa

atenção, ignorou o sábio Merlin e refundiu inteiramente a matéria bretã, dando-lhe

novo sentido. Com a obra tardia Lê Morte Dartur, de Sir Thomas Malory (1408-

1471), Artur voltou à Inglaterra e encerrou o ciclo.

Uma característica do universo arturiano é a intemporalidade. As

personagens da Canção de Roland e da Canção dos Nibelungen - Carlos Magno e

Atila (Etzel) - passam certamente por uma reelaboração poética mas continuam

mantendo um compromisso com a História e a Geografia. Comparados a estes os

personagens do ciclo do Graal pertencem ao domínio da lenda. Aqui não se trata

mais do rei bretão que historicamente existiu mas do Artur, personagem lendário e

literário que, com sua corte e sua Ordem da Távola Redonda, vive liberto da barreira

do tempo. Até a realidade torna-se irreal. Nantes, a capital de Artur, é uma cidade

geograficamente situada na Bretanha francesa. Mas o cavaleiro que sai de seus

portões mergulha logo no mundo irreal da aventura.

Nos diversos poemas do ciclo Artur ocupa uma posição central em

relação à qual todo o restante é considerado. Ele próprio não realiza feito algum. E

um pólo imóvel em torno do qual giram os acontecimentos e florescem as façanhas.

Mas todas as ações são por ele determinadas. O universo arturiano é um mundo de

alegrias e de festas. O herói é envolvido em intrigas, tensões e imprevistos, mas

mantém-se à margem do impasse. Ele é sempre bem-sucedido, bem-parecido e

vencedor. A derrota é a sina do vilão e do adversário. Para o verdadeiro herói

arturiano todas as complicações redundam em alegrias. O itinerário do cavaleiro da

6
Távola Redonda é quase sempre o mesmo. Ele deixa as delícias da corte em busca

de aventuras que sempre parecem desenrolar-se fora do tempo. O acúmulo de

façanhas resulta para ele na conquista da amada. Com ela volta ao convívio da

Távola Redonda. Essa constante permuta entre centro e periferia parece ser o único

fato importante que ocorre nos romances arturianos.

O Parsifal

O presente estudo limita-se à análise comparativa entre o Parsifal de

Chrétien de Troyes e a obra homônima de Wolfram von Eschenbach. Há várias

razões para fazer o cotejo das duas obras: a insistência dos analistas literários em

apontar o poema de Chrétien como fonte principal do Parsifal de Wolfram; a

semelhança entre as duas obras, onde ao lado do círculo arturiano existe o círculo

do Graal e, finalmente, a declaração do próprio Wolfram, admitindo que a história

era a mesma, com a diferença de que ele teria contado a "história verdadeira". O

poeta alemão parece ter alguns motivos que justificam sua afirmação. Chrétien

reelaborou a matéria bretã e com ela construiu a estrutura de uma obra literária que

aparentemente se prestava a uma interpretação psicológica. Wolfram identificou o

Graal com os problemas de sua época e o transformou num dos mitos fundadores

do Ocidente.

O tipo de enredo desenvolvido por Chrétien de Troyes em seu Parsifal

parece prenunciar um gênero hoje definido como Entwicklungs-roman (romance de

formação), precedendo assim cerca de seis séculos ao Wilhelm Meister, de Goethe.

7
Trata-se de uma história exemplar que serve de modelo ao comportamento dos

homens. Nela a discussão sobre o acontecer da História é conscientemente

orientada para um objetivo educacional cujo resultado implica o desenvolvimento

global da personalidade.

Percebendo essa inter-relação Robert A. Johnson, em obra recente3, usa

os conceitos jungueanos para interpretar a obra de Chrétien, na qual Parsifal está

empenhado na busca do Santo Graal.

Nessa análise Johnson identifica o Graal com o self e sua busca Com o

processo de individuação (a demanda do Graal), uma evolução progressiva através

da qual o buscador (Parsifal) vai-se tornando aos poucos um ser humano integral.

Suas buscas terminam quando acha O Graal, isto é, quando atinge o self, tornando-

se "ele mesmo".

Não importa reproduzir aqui toda a história idealizada por Chrétien de

Troyes: o malogro do Rei Pescador, em virtude do qual seu reino se transformou

numa terra estéril (gaste terre), o empenho de Parsifal em restaurar esse reino

decadente mediante a conquista do Graal, etc. Bastaria lembrar que a história

termina quando Parsifal está prestes a achar o Graal, ou seja, quando está na

iminência de se tornar "ele mesmo".

Chrétien não foi além desse ponto, seja porque morreu, seja mesmo

porque não tinha mais o que dizer. Johnson afirma que "em muitos sentidos ele

3
JOHNSON, Robert A. He. São Paulo, Mercuryo, 1987

8
parou onde nos encontramos também". Seria o caso de cada um retomar a busca e

descobrir o Graal (o self) dentro de si mesmo.

Wagner teria aproveitado o original de Wolfram, adaptando-o às

exigências técnicas do seu Bühnenweihfestspiel (festival sacro-cênico). Entretanto,

em virtude das idiossincrasias de Wagner essa reelaboração resultou, de certo

modo, num desvio do texto de Wolfram, fato que levou alguns admiradores do mago

de Bayreuth a uma interpretação que se aproxima bastante daquela feita por

Johnson: o aspirante ao Graal (Parsifal), ao empreender a demanda (busca do

aperfeiçoamento espiritual), vencendo os apelos mundanos (Klingsor) e governando

o corpo físico (Kundry) pode, pela ascese, sublimar o fogo serpentino (Kundalini),

elevando-o para a cabeça (Mont Salvai) e atingir desse modo a perfeição (Nirvana).

A despeito do seu fascínio essas interpretações atribuem aos trovadores

dos séculos XII e XIII intuições que provavelmente jamais tiveram. Não se poderia,

então, lançar contra essas teses uma objeção que as faria desmoronar pela base?

Provavelmente Chrétien de Troyes jamais pensou em individuação, por não estar

consciente desse componente psíquico. Em todo o caso, Wolfram von Eschenbach

tinha a esse respeito uma orientação bastante diferente. Ver, então, na busca do

Graal um processo de individuação que leva o homem ao seu centro, ao self, é uma

interpretação totalmente moderna que, apesar de válida, teria surpreendido

Chrétien, Wolfram e talvez até mesmo Wagner.

Tais versões modernas sucumbem quando submetidas a um último teste.

Elas contam uma história exemplar em que os estados de consciência são

9
considerados do ponto de vista da consciência de quem os experimenta. Não existe,

no caso, qualquer agente externo a impelir o aspirante nessa direção. Existe apenas

uma motivação interior. Tudo se passa em nível psicológico.

O Parsifal, de Wolfram, parece ultrapassar claramente esses modelos.

Existe, no caso, uma força externa - a missão - que se propõe à vontade de Parsifal

e a inclina. Essa vocação - um chamamento indeclinável - é o Reino do Graal, para

o qual Parsifal - e unicamente ele - foi convocado. Por isso ele nasce como avatar,

como herói restaurador.

As doutrinas da Igreja sobre as origens do Poder nos remetem à

Providência, uma espécie de ação pela qual Deus conduz os acontecimentos e as

criaturas para o fim que lhes foi destinado. Lendo nas entrelinhas percebe-se que

Wolfram atribui ao Poder uma origem diferente. Segundo tal concepção tradicional e

supracristã a transmissão do Poder divino não se daria pelo desígnio normal da

Providência mas por um ato pessoal da divindade, encarnando-se em determinado

governante. Essa visão cosmológica, herdada de culturas pré-cristãs, admitia uma

ordem cósmica em analogia à ordem terrena, postulando um relacionamento íntimo

entre esses dois planos, cujo grande mediador era o monarca no seu palácio.

René Guénon, em uma de suas obras4, remonta a origem da noção do

rei-sacerdote ao mítico Melquisedeque que reunia em sua pessoa os poderes do

monarca e do pontífice. Na Roma antiga havia igualmente a figura do imperator et

pontifex máximus. No Ocidente cristão a idéia de um personagem que fosse

4
GUÉNON, René. O Rei do mundo. Lisboa, Edições 70, 1982.

10
simultaneamente sacerdote e rei nunca foi inteiramente aceita. Durante a Idade

Média o Poder supremo estava dividido entre o Papa e o monarca do Santo Império

Romano-Germânico. Na época de Wolfram essa separação insatisfatória resultou

em rivalidades intermitentes entre as duas instâncias, traduzindo a ambição de cada

uma absorver as atribuições da outra. Surgiram, então, dois partidos; os guelfos,

partidários do Papa, e os gibelinos, partidários do Imperador. A atuação de uma

série de imperadores enérgicos da dinastia dos Hohenstaufen fez esse antagonismo

latente degenerar em hostilidade aberta. Frederico l, o Barba-Roxa, teve grandes

dificuldades com o Papa, mas não soube, ao contrário de seus predecessores,

transpor esse antagonismo para o plano das idéias. Frederico II, ao contrário, soube

retomar a via útil. Dotado de grande inteligência, esse inimigo irredutível dos papas

foi iniciado no sufismo islâmico e nos mistérios templários. Falava diversas línguas,

entre as quais o árabe e o grego. Sua guarda pessoal era composta unicamente de

sarracenos que, dada a sua condição de muçulmanos, não podiam ser

excomungados. Tendo organizado a sexta cruzada, firmou um pacto com os

teutônicos e os templários, que o aclamaram Imperador do Mundo. Assim fortalecido

marchou sobre Jerusalém, onde ocorreu um fato insólito em que o Papa custou a

acreditar. Ao invés de oferecer combate, os príncipes muçulmanos entregaram a

Frederico as chaves da Cidade Santa, aclamando-o soberano do Ocidente e do

Oriente. Frederico estava entre irmãos. Mircea Eliade5 atesta que Frederico II foi

provavelmente o único monarca do Ocidente cristão que se julgava divino, não

apenas em virtude de seu cargo mas sobretudo por sua natureza inata - nada

menos que um avatar, um messias imperial.

5
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo, Perspectiva, 1972.

11
Analisando atentamente o texto do Parsifal descobrimos um estranho

paralelo entre o Reino do Graal e o Santo Império da época de Wolfram von

Eschenbach. Mas cercando-se de cuidados o poeta sugere muito mais do que

afirma esse paralelo. Sob o texto do poema que está diante de nós existe um pré-

texto destinado unicamente aos iniciados. Os incultos, entre os quais se incluem os

cultos profanos, verão no poema apenas um convite ao entretenimento.

Em vários trechos da epopéia (livro VIII, 416; livro IX, 453; livro XVI, 827)

Wolfram aponta como fonte de seu Parsifal um certo Kyot, o Provençal. Esse fato

levou seus críticos a sustentar a idéia de que Kyot seria apenas um personagem

fictício atrás do qual se escondia a prodigiosa inventiva do próprio Wolfram. Mas

nenhum desses analistas questiona as fontes de Chrétien. O poeta francês,

apontado como prógono do Wolfram, confessa que recolheu os elementos de seu

Parsifal de um "certo livro" (le livre), sem se dar ao trabalho de explicar que tipo de

livro era esse e qual o seu autor. Como as duas histórias (até o Livro XIII) são

basicamente iguais, não seria o caso de se concluir que Chrétien e Wolfram se

tivessem servido da mesma fonte? E não teria sido essa a razão que levou Wolfram

a acusar o colega francês de ter deturpado a história original de Kyot?

Examinando os dois textos descobrimos, contudo, algumas diferenças

notáveis. Assim, alguns lugares e personagens que, em Chrétien, aparecem sem

nome, recebem um nome em Wolfram, como o castelo do Graal (Munsalvaesche), o

eremita (Trevrizent), a virgem do Graal (Repanse de Schoye). Certos personagens

recebem nomes diferentes (Condwiramurs ao invés de Blanchefleur). Outros nem

sequer existem em Chrétien, como Feirefiz e Gahmuret. Ademais, aparece em

12
Wolfram grande número de nomes célticos e uma rica terminologia científica árabe

que são simplesmente ignorados por Chrétien.

Além disso a corte de Artur e o reino Graal são tratados de modo diverso

nas duas obras. Em Chrétien não fica muito claro qual dos dois centros é o mais

importante. Em Wolfram a prevalência da Comunidade do Graal sobre a Corte de

Artur é indiscutível. Ali a Ordem da Távola Redonda não passa de uma escola

preparatória dos aspirantes ao Graal.

Mas a diferença maior e que leva a todas as outras está na forma pela

qual é tratado o Graal nos diversos poemas do ciclo. Chrétien não se atreve a sair

do convencionalismo litúrgico. Para ele o Graal é o vaso para a guarda da hóstia.

Robert de Boron é ainda mais ortodoxo. Na sua versão o Graal é a um tempo o

cálice da Santa Ceia e o vaso no qual José de Arimatéia recolheu o sangue do

flanco de Cristo, aberto pela lança do centurião Longino. Para Wolfram o Graal é

uma pedra possuidora de virtudes miraculosas, cuja origem, segundo o eremita

Trevrizent, "recuava ao tempo em que o batismo se tornara nosso escudo contra as

penas do inferno" (Livro IX, 453). Ora, sendo o batismo anterior à instituição da

Igreja, o Graal já é cristão mas ignora o primado de Pedro, isto é, do Papa. Como

bom gibelino, Wolfram ignora totalmente a Igreja como instituição. Pela leitura do

poema ficamos sabendo que Parsifal recebe sua educação ética e cavaleirosa de

três fontes leigas: a mãe, o eremita Trevrizent e Gurnemanz, o cavaleiro grisalho.

Pelo mesmo critério o leigo Trevrizent concede a Parsifal a absolvição de seus

pecados. Sigune, a prima de Parsifal, procede do mesmo modo. Piedosamente,

entrega-se a uma vida de recolhimento e de devotamento a Deus, jamais assistindo

13
a uma missa sequer. Na corte do Rei Artur o sacerdote aparece às vezes oficiando a

missa. No batismo de Feirefiz o sacerdote está também presente por um breve

momento. Mas para que a pia batismal se enchesse de água benta foi necessária a

presença do Graal. Esse breve episódio simbólico foi compreendido por poucos

analistas de Wolfram. Ele significa simplesmente que o ato litúrgico da Igreja só teria

força e validade se fosse prestigiado e sancionado pelo Graal que, por sua vez,

representava a autoridade superior do rei sacerdote de Munsalvaesche, isto é, o

Imperador gibelino. Esse quadro revela igualmente a função externa e subalterna da

Igreja, cuja mensagem era dirigida aos não-iniciados, isto é, à massa dos fiéis. O

papel esotérico de grande mediador entre a ordem cósmica e terrena cabia ao Rei

do Graal, o messias imperial.

Outro aspecto importante é a prevalência do estamento cavaleiroso sobre

quaisquer diferenças raciais e religiosas. Foi por ser príncipe e cavaleiro que Feirefiz

teve acesso à confraria da Távola Redonda e ao centro espiritual secreto, o Castelo

do Graal, a despeito de ainda pagão. Mas para efeitos externos o cristianismo faz

sentir sua força. Para casar com Repanse de Schoye, a virgem do Graal, o príncipe

do Oriente teve de abraçar o cristianismo. Com ela, volta à índia que seria

cristianizada. Seu descendente, o misterioso rei-sacerdote Preste João, realizaria

outro objetivo caro ao gibelinismo: estabelecer uma aliança secreta entre o Oriente e

o Ocidente.

Como centro supremo, Munsalvaesche, o Castelo do Graal, estava

situado no coração do Mundo, em algum lugar não sabido. Símbolo da majestade

inacessível de quem era o intermediário supremo entre a ordem divina e a terrena,

14
essa cidadela proibida representava o coração vivo e o segredo do Graal. Ninguém

poderia decifrar os mistérios desse palácio de púrpura e ouro se antes não tivesse

compreendido que, edificado segundo as leis divinas e naturais, simbolizava o

centro do universo no sentido mais literal do termo. Um terror sagrado se apoderava

das pessoas autorizadas a transpor seus portões. Entrar, penetrar! Raramente a

palavra teve um sentido mais preciso. Parsifal experimentou essa sensação ao ali

ingressar pela primeira vez, sem ser convidado. Entrou como "forasteiro

desinformado" porque, consoante afirma Wolfram - "somente aos poucos adquiriu

verdadeira experiência" (Livro l, 4). De lá se retirou frustrado porque deixou de

formular uma pergunta fundamental. Em compensação sua segunda entrada foi

triunfal. Sua presença e sua palavra fizeram reflorescer B terra devastada. Ele

restaurou o Reino e curou Anfortas, o rei enfermo, ao qual sucedeu.

Wolfram desenvolve no seu Parsifal dois temas centrais: a Busca do

Graal e a Restauração do Reino. O reino decaído representa a derrocada do Império

Romano em virtude da penetração do cristianismo e a instituição do Papado. Na

situação anterior o chefe de Estado era igualmente o sumo pontífice (imperator et

pontifex maximus). Ora, retomar essa tradição não implicava necessariamente a

superação do cristianismo mas apenas a abolição do Primado de Pedro. A volta

efetiva à tradição romana ofereceria as condições necessárias para que o "Reino do

Graal", de oculto, se tornasse manifesto, como nas suas origens romanas, o Poder

temporal e a Autoridade espiritual. Tal aspiração engendrou toda uma ideologia - o

Gibelinismo - com cujos objetivos os Teutônicos e os Templários estavam

comprometidos de alguma forma em dado momento de sua história.

15
O Gibelinismo não vingou mas deixou seqüelas. Permaneceu como

movimento subterrâneo, conturbando a esfera sagrada da religião e o mundo

profano da política. Séculos depois veio à tona com o protesto de Lutero. Coube ao

grande reformador realizar, embora em termos mais modestos, o ideal gibelino. Nos

países europeus que aderiram ao protestantismo o chefe de Estado é também chefe

da Igreja.

A Tradução

Wolfram von Eschenbach não quis identificar-se com o ofício de

Minnesãnger (trovador). Chegou a repeli-lo com indignação (Livro II, 115-116).

Preferiu ser conhecido como cavaleiro militante que, em momentos de lazer, se

dedicava à arte do verso. A despeito disso a posteridade o consagrou como

expoente máximo da literatura cortesã. Mais que ao português, ao alto-alemão

medieval se ajusta o qualificativo de Bilac "rude e doloroso idioma". Mas utilizada por

Wolfram a língua alemã nunca foi tão bela.

A presente tradução, feita a partir do texto original atestado por Karl

Lachmann e confrontada com as edições em alto-alemão moderno, teve em vista

três objetivos: 1) ficar o mais possível fiel ao texto original;2) nada dizer além daquilo

que o texto diz ou expressamente sugere; 3) resgatar, sempre que possível, o

sentido de certas passagens do poema que os analistas qualificam como "a sublime

obscuridade de Wolfram".

16
Em que consiste essa obscuridade? Trata-se de uma linguagem oculta

que os provençais chamavam de trobar clus, isto é, uma terminologia simbólica

utilizada por alguns trovadores dos séculos XII e XIII para que sua doutrina não

fosse acessível aos não-iniciados. Limita-mo-nos a dizer não só o quão difícil foi a

tarefa, mas ao mesmo tempo como foi impossível a certeza de ter compreendido de

forma plana alguns desses trechos. Sempre que a barreira se apresentou,

preferimos manter a literalidade do texto e não lhe atribuir um sentido que parecia

insinuar-se sob o véu do símbolo.

LIVRO I
PRÓLOGO

Quando a dúvida vai tomando conta do coração a alma passará por

amargas experiências. Quando se combinam - como nas duas cores da pega - a

intrepidez com o seu oposto, então tudo será, a um tempo, glória e ignomínia. Quem

vacila sempre terá motivo para regozijar-se pois céu e inferno estão nele presentes.

Mas quem perde de todo a estabilidade emocional está na escuridão e fatalmente irá

terminar nas trevas do inferno. Quem, ao contrário, sabe conservar sua integridade

moral, identifica-se com o luminoso colorido do céu.

17
Este exemplo alado6 pode parecer superficial aos tolos que não alcançam

seu sentido. Ele se move diante deles, de um lado para outro, como lebre acuada.

Ele é como o espelho e o sonho dos cegos, que conseguem oferecer apenas uma

imagem fugidia e superficial sem que por trás dela haja algo consistente e palpável.

Seu brilho turvo e mutável apenas consegue alegrias efêmeras. Quem quisesse

agarrar-me pela palma da mão, onde jamais cresceram cabelos, teria que ser muito

atilado e atacar mais de perto. Se eu, então, sobressaltado, me lamentasse em altas

vozes ofereceria uma triste visão de minha inteligência.

É que eu procuro constância exatamente onde ela, por lei natural, está

ausente, como a chama na fonte e o orvalho no sol7.

Ora, não conheço qualquer pessoa inteligente que não quisesse alcançar

o sentido mais profundo desta história e os ensinamentos que ela oferece. Ela por

certo cuidará, a exemplo do destro cavaleiro no torneio, de escapar, correr, recuar,

atacar, humilhar e distinguir-se. Quem não se desnortear em situações de fortuna

tão vária, tem a cabeça no lugar. Ele não se comportará como um borralheiro, não

irá enveredar por falsos caminhos e achará facilmente seu lugar no mundo. A

opinião desonesta em relação ao próximo conduz às chamas do inferno e destrói a

reputação, como chuva de granizo. Sua credibilidade possui cauda tão curta que na

floresta não seria capaz de rechaçar o terceiro ataque das moscas.

6
"Exemplo alado". Referência à plumagem claro-escura da pega para estabelecer o contraste entre
frouxidão e firmeza, embora, a seguir, a velocidade da ave passe a ser o fundamento da comparação.
7
A alusão do poeta à combinação da água (fonte, orvalho) com o fogo (chama, sol) traduz o princípio
alquímico da união dos opostos. Mas, no caso, não cuida de transmutar metais, e sim de otimizar o desempenho
da mente. Tal objetivo seria alcançado mediante a integração dinâmica das potencialidades do hemisfério
cerebral esquerdo, essencialmente lógicas, verbais e seqüenciais, com as do hemisfério cerebral direito,
predominantemente visuais, intuitivas e atemporais. Dessa alquimia mental ou "casamento místico dos
contrários" resultaria um poder cerebral combinado, muito superior ao uso normal da mente. Essa convicção
levaria Wolfram a afirmar num trecho mais adiante que seria capaz de triplicar o poder criador de sua mente. A
aparente falta de modéstia revela apenas sua fé na eficácia de um princípio. N T

18
Estas palavras sobre a necessidade de distinguir as coisas não são

destinadas unicamente aos homens. Para as mulheres estabeleço os seguintes

objetivos:

Aquela que quiser ouvir meu conselho deve analisar objetivamente a

quem pode dispensar encômios e consideração e a quem pode entregar depois seu

amor e sua reputação a fim de que mais tarde não venha a lamentar sua pureza e

fidelidade. Que Deus inspire as mulheres honradas, a fim de que possam achar em

todos os atos de sua vida a medida justa! O pudor é a coroa de todas as virtudes.

Não lhes posso desejar fortuna maior8!

A mulher inautêntica, que não atinge esse equilíbrio interior, não alcança

verdadeira respeitabilidade. Qual a duração da fina camada de gelo, exposta à

canícula de agosto? Tão transitório será seu prestígio! Quanta mulher há cuja beleza

é celebrada em toda parte! Mas se for fingido seu coração, comparo seu valor a um

caco de vidro dourado. Inversamente, não desprezo o nobre rubi com todas as suas

secretas energias9, incrustado em metal sem valor. É com ele que me agradaria

comparar o estofo de uma mulher genuína. Se ela cumprir plenamente sua condição

feminina, não a julgaria nem pela sua aparência nem pelo que é possível perceber

do que lhe vai no íntimo. A nobreza de coração é aval de reputação ilibada.

8
Nesta passagem do "prólogo", uma espécie de doutrina de comportamento para as suas personagens,
Wolfram estabelece uma distinção essencial, quase metafísica e ontológica, entre seres humanos, o que
corresponde visivelmente à componente de uma sociedade de escol em oposição àqueles incapazes de comungar
de tais sentimentos. NT
9
"As secretas energias do rubi". Na Idade Média atribuía-se às pedras preciosas virtudes miraculosas,
benéficas ao homem.

19
Pudesse eu, como gostaria, analisar profundamente o homem e a mulher,

ouviríeis uma longa história. Escutai pois do que trata nossa narrativa. Ela vos dará

notícia de prazeres e de penas, de alegrias e de inquietudes! Suponhamos que, ao

invés de uma, houvesse três pessoas como eu e que cada uma delas tivesse

desempenho correspondente aos meus conhecimentos. Mesmo então seria preciso

uma extraordinária imaginação poética, acrescida de enorme dispêndio de energia

para vos dar notícia daquilo que agora eu, sozinho, me proponho a vos contar.

Pretendo contar-vos à minha maneira uma história que trata da lealdade

inquebrantável e da verdadeira essência do homem e da mulher que nunca se

curvaram diante da prepotência. Onde quer que nosso herói se tenha batido, jamais

arrefeceu sua bravura. Parecia feito de aço, alcançando grande renome em virtude

de suas sucessivas vitórias nos combates que sustentou. Embora destemido, só aos

poucos adquiriu verdadeira experiência. Cumprimento esse herói que

escrupulosamente evitava qualquer tipo de depravação e cuja visão encantava as

mulheres, enchendo-lhes os corações de doce anelo. Entretanto cumpre lembrar

que esse personagem, por mim escolhido como herói e de quem irão tratar todos os

miraculosos acontecimentos desta narrativa, ainda não havia nascido nessa altura

de minha história.

Em França o direito de sucessão10 se aplica hoje da mesma forma como

vinha sendo praticado em remotos tempos. Como, por certo sabeis, em certas

10
Em França prevalecia entre a nobreza o direito da primogenitura que instituía o filho mais velho como
sucessor único da herdade.

20
regiões da Alemanha11 procede-se do mesmo modo. O soberano do país podia

dispor, sem constrangimento, que a totalidade da herança paterna coubesse ao

irmão mais velho. Para os irmãos mais novos era naturalmente uma infelicidade o

fato de a morte do pai lhes arrebatar aquilo que, enquanto vivia, estivera à sua

disposição. Aquilo que antes era de todos, agora passava a pertencer a um só.

Naturalmente um homem muito sábio dispôs as coisas, de modo que na velhice o

homem tivesse uma propriedade pois se a mocidade desfruta de numerosas

vantagens a velhice traz consigo sofrimentos e queixumes. E não há sina mais triste

que a velhice coincidir com a pobreza. Mas que, exceto o filho mais velho, reis,

condes e duques estejam excluídos da herança, é uma ordem de coisas realmente

singular, podeis crer-me.

A VIAGEM DE GAHMURET À CORTE DO BARUC

Foi por força desse princípio jurídico que o intrépido mas conformado

herói Gahmuret perdeu todos os castelos e domínios nos quais, com grande

prestígio e autoridade, o pai havia ostentado o cetro até perder a vida numa justa.

Muito se lamentou sua perda pois sua autoridade e seu estilo de governo haviam

sido exemplares.

Seu filho mais velho determinou por isso que todos os príncipes do reino

se reunissem com ele. Eles se apresentaram como convém a cavaleiros e também

11
O direito francês da primogenitura, cuja origem germânica remota ao "jus francorum" e à sucessão
hereditária borgonhesa, prevalecia em algumas regiões da Alemanha, sobretudo nos condados renanos; mas era
igualmente admitido no sul franco-bávaro, terra de Wolfram.

21
porque esperavam receber dele a concessão de grandes feudos. Ouvi pois o que

fizeram, depois de se verem confirmados na posse dos feudos. Toda a assembléia

de príncipes, dos ricos aos menos aquinhoados, apresentou ao soberano um

pedido, a um tempo respeitoso e enfático, como convinha à sua condição de leais

vassalos. Pediam ao soberano que tratasse Gahmuret com sentimento fraternal, não

o deserdando de todo, o que para o rei resultaria afinal num acréscimo de prestígio;

que, pelo contrário, lhe concedesse em seu reino um domínio rural onde o jovem

fidalgo pudesse viver de acordo com sua ilustre origem e sua categoria social.

O rei, estando com isso inteiramente de acordo, assim falou: "Vós, ao

pedir, o fazeis com modéstia. Pois conceder-vos-ei isto e muito mais. Por que não

chamais meu irmão pelo gentílico de Gahmuret de Anjou? Anjou é o nome do meu

reino e por isso tanto eu quanto ele devemos ostentar esse título." E o nobre rei

prosseguiu: "Meu irmão pode, além disso, estar seguro de minha permanente

disposição de lhe ser útil. Compartilharemos do mesmo teto e diante de todos vós

quero deixar claro que somos filhos da mesma mãe. Se suas posses são modestas,

é excessiva minha fortuna. Dela Gahmuret terá parte considerável a fim de que

minha salvação não seja posta em jogo diante Aquele que, com justiça, dá e tira os

bens, segundo Seus critérios."

Aquele foi um dia de júbilo, posto que todos os poderosos príncipes ali

presentes sentiram que havia sinceridade nas palavras do rei. Cada um deles

inclinou-se profundamente diante dele. Gahmuret, porém, não podendo reprimir por

mais tempo o que lhe ia na alma, dirigiu-se cortesmente ao rei, nestes termos: "Meu

senhor e irmão, cuidasse eu de compartilhar das benesses de vossa corte ou da de

22
outro príncipe, naturalmente estaria preparado para me instalar o mais

comodamente possível na vida. Contudo, meditai, benevolente e judiciosamente

sobre a situação do meu conceito e dai-me ajuda e conselho para melhorá-lo. De

meu, só possuo a armadura. Ah, tivesse eu realizado com ela feitos suficientemente

memoráveis a fim de desfrutar de fama e prestígio onde quer que meu nome fosse

lembrado!"

Gahmuret prosseguiu: "Disponho de dezesseis escudeiros, dos quais

apenas seis possuem armaduras. Dai-me mais quatro pajens bem criados e de

nobre origem. Em tudo que venha a realizar terão eles uma justa participação.

Quero uma vez mais correr mundo. Caso a fortuna me sorria terei a estima de

muitas nobres damas. Se, como cavaleiro, for suficientemente digno para requestar

tais favores eu me empenharei nisso com toda a lealdade. Este é meu objetivo,

sobre o qual demoradamente refleti. Que Deus me guie por caminhos afortunados!

Ao tempo em que nosso pai, Gandin, ainda reinava sobre vossos domínios, saíamos

juntos a cavalo e passávamos por muitas perigosas aventuras visando apenas a

favores femininos. Naquele tempo éreis simultaneamente cavaleiro e ladrão, pois

sabíeis conquistar simpatias e, a um tempo, escondê-las aos olhos de todos. Ah,

pudesse também eu alcançar essas secretas provas de amor! Oxalá tivesse eu

vossa habilidade no trato desses assuntos para também desfrutar de irrestrita

consideração junto ao mundo feminino!"

O rei suspirou e disse: "Ah, quem me dera nunca te ter visto, pois com

esses gracejos tu me dilaceraste o coração e irás dilacerá-lo ainda mais caso te

disponhas a partir efetivamente!

23
Meu pai deixou-nos como herança uma fortuna imensa. Ela será minha e

tua em partes iguais pois eu te estimo sobremodo. Requisita pedras preciosas, ouro

rubro, criados, armas, cavalos e alfaias em quantidade capaz de satisfazer a teus

desejos e bastar à tua generosidade de cavaleiro. Conhecemos, de resto, tua

destacada bravura. Mesmo se tivesses nascido em Gylstram12 ou vindo de

Ranculat13 querer-te-ia sempre ao meu lado porque tu, no sentido verdadeiro, és

meu irmão."

"Ó senhor, vós me exaltais porque assim a boa educação e o costume o

exigem de vós. Concedei-me agora em igual medida vosso apoio. Se vós e minha

mãe quisésseis dividir comigo os bens móveis da herança isso resultaria para mim

num acréscimo de prestígio. Mas as aspirações do meu coração vão além. Não sei

porque ele bate, tão violentamente que quase se parte. Ai de mim, para onde irá

levar-me esta paixão? Se esta sina me foi imposta quero conhecer a causa dessa

inquietude. Mas agora chegou o momento de despedida."

O rei o proveu de tudo, indo sempre além do que fora pedido. Ofereceu-

lhe cinco corajosos, experimentados, vigorosos, seletos e fogosos corcéis, os

melhores de todo o reino, além de toda a sorte de vasos dourados e muitas barras

de ouro. Sem vacilar nem lastimar-se o rei determinou que se enchessem quatro

arcas14 de pedras preciosas. Muitíssimas gemas foram necessárias para recheá-las

até as bordas. Os pajens que realizavam essa tarefa trajavam magnificamente e

12
"Gylstram". Região fictícia, supostamente localizada no Ocidente extremo.
13
"Ranculat". Situado junto ao Eufrates, assume aqui o significado de antípoda, isto é, de ponto situado
no Oriente extremo, em posição diametralmente oposta à de "Gylstram".
14
Arca. Espécie de baú com alças laterais, apropriado para ser conduzido em lombo de besta de carga,
pendurada na albarda, uma de cada lado. NT

24
possuíam montaria. Mas quando Gahmuret foi ter com a mãe, que o estreitou nos

braços, a dor da separação exigiu seu preço pois a bondosa senhora a ele se dirigiu

nestes termos: "Filho do Rei Gandin, não queres tu permanecer por mais tempo em

minha companhia? Ah, eu que te carreguei no ventre sei que também tu és filho de

Gandin. Deus acaso ficou cego e surdo a tal ponto que não ouve meus rogos e me

nega Sua ajuda? Terei que passar, porventura, por novos sofrimentos? A força de

meu coração e o brilho dos meus olhos, eu já os enterrei. Se Ele, o justo Juiz,

persistir em arrebatar-me o que amo, tudo o que se diz acerca de Sua amorosa

solicitude é falso, pois Ele se esqueceu de mim por completo."

A isto respondeu o jovem senhor de Anjou: "Senhora, que Deus vos

console da morte de meu pai. Ambos, vós e eu, lamentamos do fundo do coração

sua perda. Asseguro-vos que jamais mensageiro algum vos trará más notícias a

meu respeito. É por uma questão de prestígio pessoal que parto agora, a fim de

realizar feitos meritórios em terras estranhas. Senhora, esta é a sina que me coube."

A rainha assim falou: "Filho querido, já que é teu desejo dedicar-te de corpo e alma

ao serviço das formas mais elevadas do amor, não me negues agora o prazer de

preparar-te para a viagem com recursos de minha fortuna pessoal. Dá ordem aos

teus camareiros para que apanhem em meus aposentos quatro pesadas arcas.

Nelas estão acondicionadas grandes peças de seda e de precioso veludo. Filho

querido, posso saber quando pretendes voltar? Isso me deixaria muito feliz."

"Senhora, eu não sei para que país a Fortuna irá conduzir-me. Mas

qualquer que seja meu caminho, vossa generosidade me proveu de tudo que é

necessário à categoria de um cavaleiro. O rei, por sua vez, despediu-me de uma

25
forma que poderá contar sempre com minha gratidão e meus préstimos. Estou certo

de que ama-lo-eis, por isso, tanto como a mim."

A história ainda nos dá conta de que, graças à generosa admiração de

uma senhora de sua intimidade, recebeu jóias no valor de mil marcos15. Mesmo hoje

um judeu emprestaria essa quantia, recebendo esses objetos em garantia, sem risco

de prejuízo. Eles lhe foram presenteados por uma admiradora. Seus méritos de

cavaleiro valeram-lhe portanto os favores e a admiração do mundo feminino. A

despeito disso nunca mais estaria livre das penas de amor.

A seguir o herói despediu-se. Na verdade jamais tornaria a ver a mãe, o

irmão e a pátria16. Para muitos foi uma grande perda. Quem em algum tempo lhe

havia prestado favores podia contar com sua gratidão inteira pois supervalorizava

cada serviço que lhe era prestado. Em virtude de sua distinta educação nem lhe

passava pela cabeça que os outros fossem obrigados a isso por dever de ofício. Era

possuído dos mais nobres sentimentos.

Mas quem canta loas a si mesmo merece pouco crédito. Fé merecem,

apenas, os elogios dos companheiros que em terras estranhas foram testemunhas

de suas façanhas.

Gahmuret sempre orientou sua conduta pelo princípio do justo equilíbrio,

nunca se valendo de outros meios. De si mesmo não fazia muito caso. Respeitosos

cumprimentos, ele os recebia com naturalidade e a temeridade irrefletida não se

15
Na Idade Média, medida de peso para metais nobres, que variava consoante a época e a região. O
marco que circulou em Colônia pesava 233,812 gramas, de sorte que 1000 marcos correspondiam a 5 quintais de
ouro ou de prata.
16
A epopeia se compraz em antecipar o que vai acontecer, ao contrário do romance moderno que
sonega ao leitor, até o desenlace, o conhecimento prévio dos fatos. NT

26
coadunava com sua maneira de ser. Entretanto o intrépido jovem mantinha-se fiel a

este princípio: jamais concordaria em fazer parte dos seguidores de uma testa

coroada, quer fosse rei, quer imperatriz ou imperador, ainda que se tratasse do mais

poderoso da terra. Esse firme propósito estava profundamente arraigado em seu

coração. Foi então que soube da existência de um poderoso monarca em Bagdá.

Dizia-se que dois terços ou mais do globo lhe estariam sujeitos. Tamanho era seu

prestígio entre os gentios17 que era chamado de Baruc18. Sua autoridade exercia

tamanha atração, mesmo sobre cabeças coroadas, que muitos reis se punham a

seu serviço. O cargo honorífico de Baruc existe, de resto, até hoje. A exemplo dos

princípios de vida cristã assumidos por nós pelo batismo, que são determinados por

Roma, da mesma forma de lá emanam as normas de vida religiosa para os pagãos.

Sem contestação aceitam eles, em Bagdá, determinações comparáveis às do Papa

e o Baruc lhes concede a absolvição de seus pecados.

Aconteceu então que o Baruc pretendia arrebatar aos dois irmãos da

Babilônia, Pompeu e Ipomidão, o domínio de Nínive que desde sempre estivera na

posse dos antepassados destes. Justo por esse tempo havia chegado ali o jovem

angevino, ao qual o Baruc recebeu amavelmente. O nobre herói Gahmuret pôs-se

portanto a seu serviço. É pois compreensível que, como príncipe, quisesse adotar

símbolos heráldicos diversos daqueles que seu pai Gandin lhe havia legado. Como

emblema de sua futura atuação passou a usar daí em diante, na teliz de seus

arreios, uma âncora de arminho branco. Símbolo idêntico passou a ostentar no

escudo e nos trajes. A gualdrapa era de seda mais verde que a esmeralda,

17
Aqui o termo "gentio" é usado no sentido lato de não-cristão, embora se trate, no caso, de muçulmanos
que, como os cristãos e os judeus, são monoteístas. NT
18
"Baruc". Em hebreu Baruch, o bendito (Referência ao Califa de Bagdá).

27
aproximadamente da cor de achmardi19 e do mesmo tecido, mais precioso que o

veludo, eram feitas a cota de armas e o mantelete. Em tudo era bordada a âncora

arminhada20, guarnecida de cordões de ouro. Mas suas âncoras nunca tocaram o

fundo, nem se firmaram em parte alguma. O nobre forasteiro teve que carregar o

peso de seu brasão, o signo da âncora, através do território de muitos países e em

parte alguma permitiu-se descanso ou permanência. Quantos países atravessou a

cavalo ou costeou de navio? Se fosse preciso reforçar a resposta com um

juramento, assegurar-vos-ia apenas com minha palavra de cavaleiro que foram

tantos quantos constam desta narrativa. Outro testemunho não vos posso

apresentar. Segundo tais fontes sua força heróica manteve-se invicta de forma

honrosa e constante em todo o mundo pagão - do Marrocos à Pérsia. Além disso

seu punho heróico manteve-se também vitorioso mais ao norte, como Damasco,

Alepo, em toda a Arábia e na cidade de Arabie; enfim, em toda a parte onde se

realizavam torneios cavaleirosos. Por fim adquiriu tamanho renome que campeão

nenhum ousava enfrentá-lo. Sua sede de glória acumulava insaciavelmente novos

sucessos, fazendo com que a fama dos demais heróis empalidecesse e se

eclipsasse. Todo aquele que ousava enfrentá-lo em combate singular passava por

essa experiência. Finalmente sua força heróica passou a desfrutar, em Bagdá, da

fama de ser invencível.

A VIAGEM DE GAHMURET À CORTE DA RAINHA BELAKANE

19
"Achmardi". Seda verde da Arábia entretecida de fios de certo ouro.
20
"Âncora arminhada". Ao iniciar suas andanças pelo mundo Gahmuret adotou símbolos que
exprimissem sua condição de cavaleiro da fortuna. Associada ao verde, cor da individuação, elege ele a âncora,
definida por ele próprio no Livro II como símbolo do cavaleiro andante em busca de afirmação. Ao atingir esse
objetivo (firmar sua âncora), tornando-se Rei de Valois por seu próprio valor, renuncia a esses símbolos
transitórios e passa a usar novamente as armas do clã do Anjou: uma pantera de sable. NT

28
Certa feita partiu dali rumo ao Reino de Zazamanc21, onde todos vinham

lamentando a sorte de Isenhart que, no desempenho de seu mister de cavaleiro,

perdera a vida por causa de uma mulher. A doce e virtuosa Belakane o impelira para

a morte. Na verdade sua morte resultara dessa paixão não correspondida. Seus

parentes empreenderam por isso uma guerra de vingança, recorrendo para tanto à

guerra declarada e a operações de emboscada. Assediada por um grande exército a

soberana defendeu-se sem esmorecimento. Sucedeu que, por esse tempo, foi

assinalada a presença de Gahmuret no país que, por cúmulo de desgraça, havia

sido devastado pouco antes pelo escocês Friedebrant e seus marinheiros, antes de

se retirarem dali.

Mas escutai agora o que neste meio tempo sucedeu ao nosso cavaleiro.

Uma tempestade no mar, da qual escapou com vida a duras penas, o havia impelido

às costas desse país. Ele singrou, pois, porto adentro, lançando ferros exatamente

diante do palácio da rainha, de cujas ameias muitos olhos o contemplavam. Olhando

em torno divisou grande número de tendas que, com exceção do lado voltado para o

mar, cercavam inteiramente a cidade. Dois poderosos exércitos haviam armado ali

seus acampamentos. Determinou pois que fossem coletados informes sobre o

governo da cidade fortificada, pois nem ele nem seu piloto haviam ouvido falar

dela. A seus mensageiros foi dito que estariam diante da cidade de Patelamunt22. A

resposta foi dada em tom amistoso e cortês e os sitiados, invocando os seus

deuses, instaram-lhe que os ajudasse. Era de todo imperioso que fossem

socorridos, pois se tratava de uma luta de vida e de morte. Quando o jovem

angevino soube de seus apuros ofereceu-lhes, seguindo a tradição da cavalaria,

seus serviços, mediante um soldo condizente. Mas ele pretendia enfrentar a sanha
21
"Zazamanc". Reino fictício que o autor situa na África.
22
"Patelamunt". Capital fictícia do igualmente imaginário Reino de Zazamanc.

29
dos inimigos da cidade contando ainda com outra recompensa. A resposta veio

unânime da boca dos cavaleiros feridos e dos ainda incólumes, dizendo que nesse

caso entregar-lhe-iam todo o seu ouro e todas as suas pedras preciosas. Tudo

passaria a ser dele e além disso seria recebido com grandes demonstrações de

apreço. Em verdade naquele momento o ouro não estava muito nos seus cálculos,

em virtude das muitas barras desse metal que havia trazido da Arábia. Os habitantes

de Zazamanc eram escuros como a noite, de modo que uma longa permanência não

lhe parecia exatamente sedutora. Á despeito disso decidiu ficar na cidade, onde foi

considerado uma questão de honra oferecer-lhe as melhores acomodações.

Enquanto isso as damas da nobreza permaneciam debruçadas sobre os peitoris das

janelas, acompanhando sua entrada. Atentamente contemplavam elas seus

escudeiros e sua armadura guarnecida de ornatos.

A CHEGADA DE GAHMURET À CORTE DE ZAZAMANC

O magnífico herói determinou que seu escudo de arminho, de um branco

imaculado, fosse ornado de numerosas peles de marta negra, nas quais o marechal

da rainha julgava reconhecer uma grande âncora. Essa impressão o encheu de

confiança pois acreditava já ter visto esse cavaleiro ou seu sósia em algum lugar,

mais precisamente em Alexandria, quando essa cidade fora assediada pelo Baruc.

Naquela oportunidade o guerreiro havia vencido gloriosamente todos os adversários.

Assim nosso eminente cavaleiro vinha entrando lentamente na cidade.

Dez bestas de carga, seguidas de vinte escudeiros, troteavam cidade adentro.

Porém precedendo a estes, podia ser visto seu pessoal de serviço - pajens,

30
cozinheiros e ajudantes de cozinheiro que vinham à testa da coluna. Magnífica era

sua comitiva: doze jovens de nobre origem, distintos e disciplinados - entre eles

alguns sarracenos - seguiam a cavalo na retaguarda dos escudeiros. Vinham depois

oito corcéis ornados de preciosas cobertas de seda. O nono vinha equipado com os

arreios do cavaleiro. Ao lado deste, um vistoso escudeiro carregava o já mencionado

escudo do cavaleiro. Empós esses vinham os indispensáveis corneteiros a cavalo.

Um tamborileiro rufava seu instrumento, lançando-o para o alto, vez por outra. Mas

isso ainda não bastava ao nosso herói pois agora seria a vez dos flautistas e de três

talentosos tocadores de rabeca. Todos vinham marchando sem se dar pressa

alguma. O próprio cavaleiro, com seu piloto mundialmente famoso, vinha na

retaguarda da coluna.

Toda a população da cidade, homens e mulheres, era constituída de

mouros e mouras. Nosso fidalgo via, pendentes das paredes e portas, muitos

escudos retalhados e perfurados por lanças. Lamentos e gritos de dor ouviam-se em

toda parte pois os feridos graves, desenganados pela ciência médica, eram

colocados ao ar fresco junto às janelas. Pelo seu estado percebia-se que haviam

medido forças com o inimigo. Tal se deu com aqueles que se haviam recusado a

recuar. Muitos cavalos feridos a lançaços e golpes de espada eram-lhe

apresentados. Mas de ambos os lados o caminho era ladeado por beldades mouras,

negras como asa de corvo.

Seu anfitrião o recebeu cordialmente, o que mais tarde resultaria para ele

em grata vantagem. Era, de resto, um vigoroso guerreiro que ao defender uma das

portas da cidade havia distribuído muitos golpes e estocadas. Gahmuret viu junto

31
dele numerosos cavaleiros com os braços enfaixados ou feridos na cabeça. Eram os

feridos apenas levemente, ainda com forças suficientes f para combater.

O burgrave23 rogou amavelmente a seu hóspede que dispusesse dele e

de seus bens, segundo seus desejos. Apresentou-lhe então a esposa, à qual

Gahmuret, embora sem muita disposição, saudou com um beijo. A seguir serviu-se-

lhe uma refeição ligeira. Sem tardança o marechal foi ter com a rainha que se

declarou disposta a lhe conceder generosa recompensa caso fosse portador de

boas notícias. Ele disse: "Senhora, todas as nossas aflições transformaram-se em

alegrias. O homem a quem acabo de dar boas-vindas é um guerreiro de tal modo

destacado que devemos agradecer durante toda a vida aos deuses por tê-lo

conduzido até nós."

"Dize-me então por tua fé, quem é esse cavaleiro!"

"Senhora, ele é um guerreiro excepcional, um paladino do Baruc, um

Senhor de Anjou de alta linhagem. Pouco cuida de si quando se engaja em combate

com o inimigo. Empenha-se na luta de forma calculada e se separa do inimigo

somente depois de lhe haver infligido graves danos. Eu o vi brilhar em combate

quando os babilônios evacuaram Alexandria depois de tentar expulsar o Baruc com

o emprego de todas as suas forças. Nesse combate que para os babilônios terminou

em derrota, muitos deles perderam a vida. Naquela oportunidade esse guerreiro

excepcional perpetrou tantas proezas que os inimigos recorreram à fuga como único

meio de salvação. Além disso soube que sua fama de combatente de escol

23
"Burgrave". Título dado, no Santo Império Romano-Germânico, ao comandante militar da cidade ou
cidadela. Mais tarde a dignidade se tornou hereditária tanto como função militar como título nobiliárquico. NT

32
espalhou-se por muitos países, ofuscando a reputação de todos os outros

guerreiros."

"Encaminha as coisas de modo que possa falar-lhe aqui em palácio. Hoje,

aliás, é dia de trégua. Desse modo o herói pode apresentar-se aqui, sem outras

formalidades. Ou conviria talvez descer até ele? A cor de sua pele é sem dúvida

diferente da nossa. Em verdade espero que não vá ficar chocado com isso. Antes,

porém, vou consultar meu conselheiro a fim de decidir sobre a conveniência ou não

de recebê-lo com todas as honras. Como devo comportar-me se ele decidir

apresentar-se diante de mim? Se seu grau de nobreza for igual ao meu, meu beijo

de boas-vindas não ficará desperdiçado."

"Senhora, possa assegurar-vos que ele é de linhagem real. Por isso me

responsabilizo inteiramente. Farei igualmente saber, senhora, a vossos príncipes,

que ponham seus trajes mais suntuosos e permaneçam junto de vós até a nossa

chegada. Rogo-vos ainda que as damas do paço sejam instruídas no mesmo

sentido. Irei descer agora a cavalo a fim de trazer à vossa presença o nobre

hóspede, a quem até agora não tem faltado acolhimento hospitaleiro."

GAHMURET É RECEBIDO POR BELAKANE

As coisas desenrolaram-se precisamente dessa forma. Sem hesitar o

marechal deu cumprimento à solicitação da rainha. Às pressas foi-lhe entregue uma

vestimenta magnífica - e de grande valor, segundo ouvi dizer - que ele pôs em

33
seguida. A seu pedido foram aplicadas ali âncoras ricamente bordadas com fios de

ouro da Arábia. A seguir nosso herói, que sempre soube retribuir as atenções que

lhe eram dispensadas, montou o corcel que fora montaria de um babilônio por ele

vencido em combate singular. A estocada que derrubara o adversário do cavalo fora

tão violenta que resultara em conseqüências fatais. O anfitrião o acompanhou?

Naturalmente e, na verdade, seguido com prazer por toda a sua comitiva de

cavaleiros. Apearam diante do paço real onde, nesse ínterim, haviam chegado

muitos cavaleiros ricamente trajados. Gahmuret era precedido de seus pajens que,

de dois em dois, vinham de mãos dadas. Quando seu amo entrou na sala viu muitas

damas magnificamente vestidas. Ao deparar com o angevino a poderosa rainha

sentiu seu coração tomar-se por ele de ardente anelo. Tão magnífico era seu

aspecto que involuntariamente o coração da soberana, até então contido pelo pudor

feminino, abriu-se para o amor. Ela deu alguns passos em sua direção e pediu-lhe

um beijo de boas-vindas. A seguir tomou-o pela mão e o conduziu à ala voltada para

o acampamento inimigo. Ali, junto a uma ampla janela, sentaram-se sobre uma

coberta de veludo pespontada que recobria uma macia almofada. Na verdade a cor

da rainha não superava a luz do dia. Embora sendo uma presença feminina e

finamente educada não se parecia com uma rosa orvalhada pois era preta retinta.

Sua coroa era feita de um rubi cintilante que entremostrava furtivamente a cabeça. A

anfitriã declarou-se sumamente satisfeita com a sua chegada: “Senhor, fui informada

acerca de vosso alto valor como cavaleiro. É confiada na vossa educação que peço

indulgência para manifestar-vos a angústia que me oprime o coração."

"Podeis estar segura de minha ajuda, senhora. O perigo que vos

ameaçou ou ameaçar será afastado por meu braço. Ele estará a vosso serviço. Sou

34
apenas um cavaleiro solitário mas todo aquele que vos agrediu ou agredir irá

esbarrar no meu escudo. Mas isso pouca impressão irá causar ao inimigo."

Cortesmente um dos príncipes interveio na conversa: "Se tivéssemos

agora um líder experiente os nossos inimigos ficariam em maus lençóis,

considerando que Friedebrant se fez outra vez ao mar. Ele estará ocupado com a

libertação de seu próprio país, já que os parentes do Rei Hernant, morto por ele por

causa de Herlinda, dar-lhe-ão muito trabalho, pois sua sede de vingança é sem

limites. Na verdade deixou aqui alguns combatentes de escol, como o Duque

Hüteger e seus companheiros, cuja atuação nos infligiu muitas perdas. Eles são

combatentes hábeis e enérgicos. Mais adiante estão estacionados Gaschier da

Normandia, o nobre e experiente guerreiro que consigo trouxe numerosa tropa. Mais

numerosos ainda são os cavaleiros de Kaylet de Hoscurast; no meio deles há muitos

estrangeiros ferozes. Todos esses a que me referi, além de outros combatentes,

foram trazidos a este país por Friedebrant, rei da Escócia, e por seus aliados. A

oeste, junto ao mar, está acampado o enlutado exército de Isenhart. Desde que seu

soberano pereceu em combate não se pode identificar um só combatente de seu

exército que não esteja tomado da mais profunda tristeza. As lágrimas rolam

copiosamente do fundo de seus corações partidos."

Com distinção cavaleirosa dirigiu-se então o conviva à anfitriã:

"Esclarecei-me por favor por que estais sendo castigada com tamanho rigor pela

força das armas adversárias. Afinal muitos ousados combatentes estão à vossa

disposição e causa-me pena ver como o ódio do inimigo vos persegue e intenta

prejudicar-vos em toda parte."

35
"Quero, nobre senhor, dar-vos a explicação desejada. Certa vez esteve a

meu serviço um distinto cavaleiro. Ele era um ramo no qual floresciam todas as

qualidades varonis. Era tão corajoso e sábio, tão firme em sua lealdade como uma

jovem árvore solidamente enraizada. Sua distinta educação superava a de todos os

demais cavaleiros, sendo além disso casto como uma mulher. Era dotado de

coragem, vigor e generosidade inigualáveis. O que seria de nós, não sei. Que os

outros julguem a respeito. Era lhe estranho qualquer procedimento menos digno.

Negro de pele, era mouro como eu. Tankanis, seu pai, desfrutava também de

grande reputação. Meu amado chamava-se Isenhart e mal avisada andou minha

intuição feminina ao aceitar seus serviços sem lhe conceder a tão almejada

felicidade. Terei que lamentar esse lapso por toda a minha vida. Seus parentes

acreditam ter sido eu a causadora de sua morte; mas por mais que seu clã me

incrimine sou incapaz de trair a quem quer que seja. Eu o amava mais do que ele a

mim. Tenho até testemunhas com cuja ajuda pretendo provar minhas afirmações.

Os deuses dele e os meus conhecem, com certeza, a verdade inteira. Por causa

dele venho passando por muitos dissabores. Meu recato feminino levou-me a fazê-lo

esperar indefinidamente a concessão das recompensas amorosas e a prolongar

minhas penas. Minha pureza virginal impeliu o herói à obtenção de grande renome

nas pugnas cavaleirosas. Por fim, resolvi pô-lo à prova a fim de determinar se era

digno de se tornar meu amante. Sua disposição tornou-se logo evidente, de vez que

por minha causa doou todo o seu aparato bélico. Isso incluía sua tenda, grande

como um palácio, que foi transportada pelos escoceses a esta planície. De tudo

abriu mão e no seu desgosto nem à vida dava mais importância. Sem armadura

lançou-se em mais de uma aventura até ser colhido pela desgraça. Certa feita um

36
príncipe chamado Prothizilas partiu com seus seguidores em busca de aventuras, o

que iria custar-lhe muito caro. Na floresta de Azagouc24, decidiu enfrentar um varão

destemido em luta singular. Esse encontro foi-lhe fatal mas seu adversário foi

igualmente morto e esse adversário foi Isenhart, meu amado. Na arremetida

transpassaram-se mutuamente escudo e ventre com a lança. Mesmo hoje, deploro

eu, pobre mulher, essa calamidade. A morte dos dois homens me angustia

incessantemente. De minha fidelidade só nasce o lamento. Nunca me entreguei a

homem nenhum."

Naquele momento Gahmuret teve a impressão de que embora fosse pagã,

jamais tamanha dignidade, honesta e fiel, habitara o coração de uma mulher. Sua

virtude, suas lágrimas que, brotando-lhe dos olhos, molhavam suas faces e

escorriam pelo peito coberto de zibelina, eram um batismo plenamente válido. As

constantes rememorações de sua dor haviam-se transformado para ela num

doloroso prazer e numa verdadeira escola de sofrimento. E ela prosseguiu: "Vindo

do mar o rei escocês atacou-me de surpresa com suas forças, por ser primo de

Isenhart. Na verdade não puderam infligir-me dano maior que aquele que já havia

sofrido com a morte de Isenhart."

A soberana soltou ainda muitos suspiros mas em meio às lágrimas lançava

com freqüência olhares furtivos, envergonhados e amistosos a Gahmuret. Não

demorou que seus olhos confidenciassem ao coração que se tratava de um belo

varão. Até mesmo a clara coloração de sua pele não lhe parecia de todo insólita,

pois anteriormente havia conhecido muitos pagãos de pele clara. Sem se darem

conta começou a despertar em ambos um profundo anelo mútuo, a ponto de um não

24
"Azagouc". A exemplo de Zazamanc, um reino africano fictício

37
mais poder desprender os olhos do outro. A seguir ela mandou vir o trago de

despedida. Se fosse possível teria preferido não fazê-lo. Afligia-se com a idéia de

que a despedida não podia ser protelada por mais tempo pois implicava igualmente

a saída dos cavaleiros que teriam preferido prolongar um pouco mais a conversa

que mantinham com as damas. Mas ela já era inteiramente devotada a ele e em via

de lhe consagrar o coração, de modo que suas vidas se entrelaçavam. Foi então

que ele se levantou e disse: "Senhora, devo estar importunando, por vos ter

ocupado em demasia. É um procedimento que depõe contra o bom-senso e a

cortesia. Vossa aflitiva situação. provocou minha solidariedade e o desejo de vos

servir. Disponde de mim, senhora! Meu braço vingador abaterá qualquer alvo que ,

apontardes. Servir-vos-á, prestando qualquer serviço que determinardes." Ela,

então, respondeu: "Acredito no que dizeis, de bom grado."

PREPARATIVOS PARA O COMBATE

Seu anfitrião, o burgrave, esmerou-se a partir de então em encontrar um

passatempo para ele. Perguntou-lhe se estava disposto a dar um passeio: "Podeis,

enquanto isso, examinar as frentes de combate e o esquema de vigilância dos

portões." Gahmuret, o bravo combatente, respondeu-lhe que lhe agradaria examinar

o cenário das pugnas cavaleirosas. Muitos cavaleiros belicosos, entre os quais

homens experimentados e jovens guerreiros calouros, acompanharam o herói a

cavalo. Eles o conduziram a todos os dezesseis portões, informando-o de que

nenhum deles era mantido fechado, "desde que a furiosa vingança do inimigo nos

atingiu por causa da morte de Isenhart. Dia e noite os combates fluíam e refluíam

38
sem definição. Desde então, os portões eram mantidos abertos. Os fiéis

combatentes de Isenhart nos enfrentam diante de oito portões e muitas perdas já

nos infligiram. Os nobres príncipes e as tropas do rei de Azagouc batem-se

obstinadamente . Diante de cada portão tremulava sobre as briosas tropas

envolvida; em combate uma luminosa bandeira. Nela se via um cavaleiro trás

passado por uma lança, lembrando a forma pela qual Isenhart perderá a vida. Seu

exército elegera essa imagem como signo heráldico. Para atenuar as penas de

nossa soberana procedemos do seguinte modo: nossa bandeira mostra sua

imagem com dois dedos levantados, em sinal de juramento a testemunhar que

jamais experimentou tamanho sofrimento como por ocasião da morte de Isenhart -

um acontecimento que, de fato, causou profunda mágoa à nossa soberana. A partir

do momento em que conseguimos captar o sentido do símbolo dos nossos

adversários nossa bandeira passou a ostentar a efígie da rainha, Senhora

Belakane, recortada em tecido negro e guarnecida de veludo branco. Sua dor

apenas reforça sua fidelidade. No alto desses oito portões paira nossa bandeira.

Mas diante dos oito portões restantes acomete-nos o exército do orgulhoso

Friedebrant, uma tropa cristã vinda do além-mar. Cada portão é defendido por um

príncipe, que sob o seu pavilhão empreende investidas e oferece combate. Nessa

ocasião conseguimos aprisionar um dos condes de Gaschier, que nos ofereceu

elevado resgate. Como sobrinho de Kaylet deverá responder por todos os danos

que este nos causar. Na verdade só raramente nos é possível levar a efeito uma

captura tão afortunada. Podeis ver que há entre o fosso da cidade e os

acampamentos deles uma estreita faixa de prado e uma planície arenosa,

correspondendo aproximadamente a trinta lances de arremetida25. Ali são realizadas

25
"Lance de arremetida". No torneio o percurso entre o ponto inicial da arremetida e o local do
entrechoque dos cavaleiros.

39
muitas justas." O anfitrião prosseguiu no seu relato: "Entre nossos adversários há

um cavaleiro que se apresenta regularmente para a justa. Se um dia vier a morrer a

serviço da dama que o enviou, de que lhe terá valido sua audaciosa provocação? E

o orgulhoso Hüteger, sobre o qual devo acrescentar mais alguma coisa. Desde que

começou o assédio o ousado campeão passou a apresentar-se todas as manhãs

diante do portão do palácio, pronto para o combate. Foram recolhidas muitas

prendas26, reputadas como valiosas pelos pregoeiros de torneio27. Elas aderem aos

escudos de muitos dos nossos, ao serem atravessados pela lança desse intrépido

adversário. Muitos dos nossos cavaleiros foram derrubados por ele. De bom grado

exibe-se ele aos olhos do público e até mesmo nossas damas o exaltam. E quem for

exaltado pelas mulheres será exaltado em toda parte. Louvor e prazer lhe estarão

assegurados."

GAHUMURET RECEBE A VISITA DE BELAKANE

Enquanto isso o sol cansado ocultou o esplendor sob o seus cílios e foi

preciso encerrar o passeio. Ao retornar com o anfitrião o hóspede já encontrou o

jantar pronto para ser servido. Sobre o jantar devo relatar-vos mais alguma coisa.

Ele foi servido observando-se rigorosamente a etiqueta da instituição cavaleirosa. A

poderosa rainha, no esplendor de sua beleza, acercou-se inesperadamente da mesa

de Gahmuret, onde o peixe e o assado de garça já haviam sido postos. Ela viera

para pessoalmente certificar-se de que ele vinha sendo bem servido.

26
"Prendas". Era uso, na Idade Média, atar nas lanças as prendas oferecidas pelas damas que, ao ser
perfurado o escudo do adversário, ali ficavam presas.
27
"Pregoeiro de torneio". Ajudante do cavaleiro empenhado numa justa. Ele provia o combatente de
novas armas, substituía as montarias exaustas por outras descansadas e proferia os gritos de guerra.

40
Acompanhavam-na as donzelas de sua corte. Para a consternação de

Gahmuret ela se ajoelhou a seu lado e com as próprias mãos partiu a comida e

preparou-lhe o prato, pois a soberana tinha prazer em receber esse hóspede.

Preocupado com seu bem-estar ofereceu-lhe igualmente a bebida. Ele compreendeu

perfeitamente o alcance de seu gesto e de suas palavras. Mas numa cabeceira da

mesa achavam-se seus músicos e, na outra, o capelão. Encarou por isso a

soberana, cheio de constrangimento e lhe disse um tanto embaraçado: "Senhora,

um tratamento tão honroso como este que me dispensais nunca recebi em toda a

minha vida. Se me fosse dado conhecer antecipadamente vossa disposição, teria

agora uma recepção consoante meu merecimento e vós não teríeis vindo. Se

pudesse formular um pedido, senhora, pediria que não me cumulásseis de honras.

Estas já me destes em demasia."

Isso, porém, não a impediu de estimular seus escudeiros para que se

servissem à vontade. Tal ela fez para honrar o hóspede. Os pajens achavam a

rainha muito simpática. A seguir a soberana não se esqueceu de se dirigir à mesa

do anfitrião, o burgrave, e da esposa deste. Erguendo a taça a rainha assim falou:

"Recomendo-te de modo muito especial nosso hóspede, que honra tua casa. Este

pedido eu o dirijo a vós dois". Ela se despediu e a seguir dirigiu-se uma vez mais a

seu hóspede, cujo coração já estava tomado pelas inquietações de amor. Isso lhe

denunciavam seus olhos e seu coração que, sem dúvida, estavam mais

intensamente envolvidos. Com recatada dignidade disse-lhe a soberana: "Ordenai,

senhor! O que desejais ser-vos-á concedido, pois vós o mereceis. Não obstante,

permiti que me retire. Será motivo de satisfação para mim se tudo correr consoante

41
vossos desejos e preferências". Os candeeiros de quatro velas que a precediam

eram de ouro puro e ela se retirou por um caminho onde havia muitos desses

candeeiros.

Os que haviam permanecido tratavam de terminar a refeição, enquanto

nosso herói se sentia triste e alegre; alegre pela distinção que lhe era conferida; por

outro lado, atormentava-o pela uma dor angustiante. Era o amor que vinha, com

uma força capaz de dobrar o espírito mais orgulhoso.

A anfitriã retirou-se em seguida e para nosso herói foi preparado o leito,

sem tardança. Ao se despedir o anfitrião disse ai hóspede: "Desejo-vos um bom

descanso. Repousai bem para que, possais enfrentar o que vos aguarda amanhã". A

seguir dispensei seus acompanhantes. Consoante os hábitos de Gahmuret as

camas de seus jovens fidalgos haviam sido dispostas em torno da sua com as

cabeceiras voltadas para seu leito. Velas enormes iluminavam intensamente o

ambiente. Entretanto nosso herói se aborrecia com a noite que lhe parecia

interminável. A lembrança da moura de pele escura, a soberana do país, deixou-o

algumas vezes quase fora de si. Sem poder conciliar o sono, virava-se como vara de

um lado para outro, de sorte que em virtude da tensão todos os seus ossos

estalavam. Ansiava ardentemente por luta e amor Fazei, pois, votos para que esses

seus desejos se transformem em realidade. Seu coração, tomado de cavaleiroso

anseio de combater, palpitava com tanta veemência que as batidas eram audíveis,

Tamanha era a paixão que o atormentava que o peito do herói se dilatava e se

retesava como a corda na besta28.

28
"Besta". Arma antiga formada de arco, cabo e corda com que se disparavam setas. NT

42
OS COMBATES DE GAHMURET DIANTE DE PATELAMUNT

Assim ficou o cavaleiro insone até o alvorecer. Sem tardança,

recomendou ao capelão que se paramentasse para a missa matinal, que foi rezada

em louvor a Deus e em intenção à felicidade de Gahmuret. Depois disso foi-lhe

trazida a armadura com a qual deveria partir, sem demora, para o combate. Ele

montou o fogoso corcel que partiu de um salto mas obedecendo à pressão do freio,

virou-se agilmente na direção oposta. Ele foi visto cavalgar rumo ao portão, com a

âncora encimando o elmo. Homens e mulheres asseguravam nunca ter visto tão

magnífico cavaleiro. Ele se assemelhava por demais aos seus deuses. Poderosas

lanças eram levadas empós dele.

E que tal o ornato de suas armas? Seu corcel era coberto de uma barda

para protegê-lo contra golpes de espada. Sobre esta trazia uma coberta leve de

veludo verde. A cota de armas e o mantelete eram igualmente de achmardi verde,

procedente da Arábia. A braçadeira de seu escudo - crede-me - tinha um debrum

multicolorido ornado de pedras preciosas. O dorso29 do escudo era de ouro rubro

temperado em crisol. Da mesma forma os duros combates não se lhe afiguravam

penosos, pois sua missão de cavaleiro visava a recompensas amorosas. A essa

altura a rainha já estava sentada em meio a suas damas, junto à janela. Hüteger

estava à espera no local em que sempre fora vitorioso. Ao ver o desconhecido

cavaleiro galopar em sua direção, pensou consigo mesmo: "Quando e como esse

29
"Dorso". Reforço metálico embutido no centro do escudo.

43
francês chegou ao país? Quem teria enviado esse ousado combatente? Se eu o

tomasse por um mouro seria, na melhor das hipóteses, um tolo."

Avançando um sobre o outro a galope curto, ambos estimulavam suas

montarias, obrigando-as a arremeter a toda a brida.

. Ambos deram um magnífico exemplo de valor cavaleiroso e, ao se

entrechocarem, não fizeram concessões mútuas. A lança do valente Hüteger partiu-

se em pedaços, de sorte que seus fragmentos volteavam pelos ares. Ele próprio foi

arremessado pelo adversário sobre a relva, à retaguarda de seu corcel. Até então

jamais havia passado por uma situação semelhante. Gahmuret arremeteu sobre ele

derribando-o. Na verdade Hüteger tentou várias vezes reerguer-se mas de seu

braço pendia a lança de Gahmuret. Este o intimou a render-se e assim Hüteger

havia finalmente encontrado seu mestre.

"Quem me venceu?" indagou o intrépido combatente. O vitorioso

respondeu: "Sou Gahmuret de Anjou!" Ao que o outro admitiu: "Eu me rendo!"

Gahmuret aceitou seu compromisso de rendição e lhe determinou que se

dirigisse para a cidade. Naturalmente isso lhe valeu os aplausos generalizados das

damas, que tudo haviam presenciado.

Agora se aproximava celeremente Gaschier da Normandia, um vigoroso e

altivo campeão temido pela habilidade no manejo da lança. O magnífico Gahmuret já

estava preparado para esse segundo encontro. Sua lança era constituída de uma

44
haste reforçada com ponta achatada. Quando os dois adversários se entrechocaram

a superioridade de Gahmuret tornou-se logo evidente. No embate Gaschier,

juntamente com sua montaria, foi derribado e - quisesse ou não - obrigado a se

entregar. Gahmuret, o vencedor, disse-lhe então: "Como palavra de honra, dai-me

vossa mão que com tanto valor soube combater! Regressai e determinai ao exército

escocês que daqui por diante se abstenha de nos hostilizar. Depois segui-me para a

cidade." Suas determinações foram cumpridas à risca e os escoceses tiveram que

suspender as hostilidades.

Mas eis que se aproxima Kaylet. Por ser seu primo, Gahmuret recuou

diante dele. Por que razão haveria de lhe causar dano? Na verdade o espanhol não

se cansava de desafiá-lo. Sobre a cimeira do elmo ostentava, como ornamento, um

penacho de plumas. Convém registrar que esse ilustre varão vinha ataviado com um

longo e ondulante manto de seda. Sonoramente retiniam os guizos dos seus arreios,

anunciando de longe a aproximação do guerreiro, que era uma estampa de homem.

De tal florescente graça desfrutariam, mais tarde, apenas Beacurs, filho de Lot, e

Parsifal. Estes na verdade ainda não haviam nascido, mas em seu tempo eram

tidos como particularmente favorecidos pela natureza.

Gaschier agarrou o corcel de Kaylet pelo freio: "Por minha fé, se fordes

competir com o angevino, vossa fúria combativa irá arrefecer de pronto. A ele tive

que render-me incondicionalmente. Caro senhor, levai pois seriamente em

consideração meu conselho e meu pedido. Assumi com ele o compromisso de vos

persuadir a suspender as hostilidades. Obriguei-me a isso por juramento. Desisti,

45
pois, por consideração a mim, de vossa sede de combater, caso contrário também

vós ireis descobrir sua força incontrastável."

A isto o Rei Kaylet respondeu: "Caso esse cavaleiro seja meu primo

Gahmuret, filho do Rei Gandin, então desisto do intento de medir forças com ele.

Soltai o freio!"

"Não vou soltá-lo, enquanto vossa cabeça estiver protegida com o elmo; a

minha ainda está um tanto atordoada." Então Kaylet desatou a presilha do elmo,

descobrindo-se. Mas Gahmuret ainda teria que enfrentar outros combates. A manhã

já ia avançada. Felizes em poder assistir a essas pugnas os habitantes da cidade

subiam apressadamente à plataforma das fortificações. Para eles Gahmuret se

assemelhava a uma armadilha de apanhar pássaros. O que lhe caía nas mãos era

aprisionado. Enquanto isso - consoante me foi informado - o nobre combatente

montara outro cavalo.

Este movia-se com extrema rapidez e apresentava duas vantagens: Ao

arremeter revelava-se agressivo e simultaneamente contido e cauteloso. O que,

montado nele, Gahmuret pôde realizar, devo classificar simplesmente de suprema

audácia. Ele prosseguiu, pois, cavalgando em direção à parte ocidental da cidade

onde junto ao mar o inimigo mouro com seu exército estava acampado. Ali fez alto e

tomou posição.

Um dos príncipes deles chamava-se Razalic. Era um homem poderoso no

país de Azagouc e não havia dia em que não se apresentasse diante da cidade,

46
oferecendo combate. Honrava com isso sua origem, pois descendia de uma estirpe

de reis. Porém o herói de Anjou o pôs rapidamente fora de combate. Isso para o

desgosto da fidalga negra que Razalic havia enviado ao local para presenciar o

combate. Sem que lhe fosse solicitado, um escudeiro entregou ao Senhor Gahmuret

uma lança com haste de bambu. Com ela arremessou o mouro à retaguarda de seu

cavalo, sobre a areia. Sem lhe dar tempo para refletir, obrigou-o a render-se. Com

isto a guerra havia terminado e Gahmuret alcançara grande fama. Quando observou

que, a despeito disso, uma grande formação de tropas precedida de oito bandeiras

desfraldadas avançava sobre a cidade, pediu ao intrépido porém vencido Razalic

que lhe desse ordem de recuar imediatamente e depois o seguisse para a cidade.

Razalic foi obrigado a cumprir tal ordem.

Gaschier também chegou à cidade. Somente com sua chegada o anfitrião

de Gahmuret deu-se conta de que seu hóspede havia partido para o combate. Num

acesso de desgoste ele só não engoliu, como o avestruz, seixos e pedaços de ferro,

pelo fato de não ter tais coisas à mão. Rosnando de raiva e bramindo como leão,

arrancou-se os cabelos e exclamou: "Com que inacreditável estupidez conduzi-me

eu! Os deuses enviaram à minha casa um digno e destemido hóspede. Caso ele,

sozinho, se haja desincumbido do duríssimo encargo dos combates, então minha

reputação estará arruinada de vez. De que me valem agora escudo e espada?

Quem me recordar este dia poderá com boas razões considerar-me desonrado."

Deixando os seus, partiu a todo o galope rumo ao portão da cidade. Eis

que lhe vinha ao encontro um pajem, arrastando um escudo que interna e

externamente ostentava a efígie de um cavaleiro trespassado por uma lança. Esse

47
signo o identificava desde logo como sendo procedente do Reino de Isenhart.

Trazia, além disso, o elmo e a espada que Razalic tão corajosamente havia

manejado em combate singular. Aquilo fora arrebatado ao intrépido pagão de pele

escura, cuja fama corria longe. Caso viesse a falecer sem o sacramento do batismo,

que Aquele cuja onipotência tudo pode se apiedasse desse intrépido herói.

Ao deparar com esses troféus o burgrave teve uma alegria jamais

experimentada antes. Ele identificou esses símbolos heráldicos e irrompeu pelo

portão, onde deparou com seu jovem hóspede, disposto a enfrentar novos desafios.

Foi então que o anfitrião Lachfilirost agarrou seu cavalo de batalha pelo freio,

levando-o à força de volta à cidade a fim de que naquele dia não mais

descavaígasse alguém. Lachfilirost Schahtelacunt30 perguntou-lhe: "Senhor, dizei-

me por favor se efetivamente dominastes o Senhor Razalic. Nesse caso o nosso

país estará doravante ao abrigo de todas as incursões hostis. Ele é o líder de todos

esses mouros, de todos esses partidários do fiel Isenhart. Agora nossas angústias

terminaram. Um deus irado deve tê-los instigado a marchar sobre nós com seu

exército. Agora a derrota deles é completa."

Ele conduziu o hóspede de volta à cidade. Isso não agradou a Gahmuret,

de modo algum. Entretanto a rainha já vinha ao encontro deles. Ela desatou-lhe o

gorjal e segurou seu cavalo pelas rédeas; com isso o anfitrião ficou dispensado de

lhe fazer as honras. Apenas os inarredáveis escudeiros seguiam a seu amo

Gahmuret. Deliberadamente a rainha conduziu esse hóspede, que havia alcançado

vitórias e celebridade diante dos olhos de todos, pelas ruas da cidade. Chegando ao

30
"Schahtelacunt". Corresponde, em francês arcaico, à locução "Cons dei Gastei", que Wolfram
germanizou, invertendo a ordem das palavras e aglutinando-se. Corresponde ao título "Burgrave".

48
destino, desmontou e disse: "Ai de mim, quão lealmente dedicados sois vós, ó

escudeiros! Acaso receais perder este ilustre varão? Doravante ele será bem

cuidado, mesmo sem vossa ajuda. Tomai seu cavalo e o conduzi convosco. Serei

agora a companhia exclusiva de vosso amo."

RECOMPENSAS AMOROSAS

No castelo Gahmuret viu-se rodeado por muitas damas. A rainha em

pessoa, com sua mão escura, retirou-lhe a armadura. A seguir foi conduzido a uma

alcova magnífica, toda guarnecida de pele de zibelina. Com isso procurou

demonstrar a elevada consideração de que seria alvo na intimidade. As donzelas

deixaram o recinto e fecharam a porta. Ali apenas a rainha permaneceu. Embora a

cor da pele de ambos fosse diferente, ela e seu querido Gahmuret entregaram-se

despreocupadamente ao prazer inebriante de uma genuína paixão.

Enquanto isso os habitantes da cidade ofereciam aos deuses copiosos

sacrifícios. As condições que, ao fim do combate, Gahmuret havia imposto ao

valente Razalic, este tratou de cumpri-las com toda a lealdade, embora a dor pela

perda de seu soberano Isenhart o houvesse dominado novamente. Ao deparar com

Razalic o burgrave ouviu intensos gritos de júbilo. Todos os príncipes, vassalos da

Rainha de Zazamanc, afluíram ao local para agradecer a Gahmuret pelos

49
memoráveis feitos por ele realizados. Vinte e quatro cavaleiros haviam sido

derrubados por ele em impressionantes combates singulares e a maioria de seus

cavalos enviada para a cidade como despojos de guerra. Os três príncipes que

haviam caído prisioneiros apresentaram-se agora, seguidos de numerosos

cavaleiros, no pátio do palácio.

NEGOCIAÇÕES DE PAZ

Descansado, revigorado por uma refeição e magnificamente trajado,

Gahmuret reapareceu, já agora investido da autoridade de anfitrião. A virgem de

ontem, agora mulher florescente, o conduzia pela mão. Ela disse: "Eu e meu reino

pertencemos, a partir de agora, a este cavaleiro - ou nossos adversários têm alguma

objeção a fazer?"

Entretanto Gahmuret dirigiu aos que ali estavam aguardando os

acontecimentos um pedido cortês, logo prazerosamente atendido: "Aproximai-vos,

Senhor Razalic, e dai à minha esposa um beijo de boas-vindas; e vós, Senhor

Gaschier, fazei o mesmo!"

Também a Hüteger, o valoroso escocês por ele ferido em combate

singular, ele pediu que a beijasse na boca. A seguir pediu aos cavaleiros que se

sentassem, enquanto ele próprio permaneceu em pé e, em tom deliberado,

50
prosseguiu: "Muito me agradaria ver também diante de mim meu sobrinho, caso

aquele que o aprisionou tivesse a gentileza de permiti-lo. A simples existência

desse, parentesco faz com que me empenhe em sua libertação."

A rainha começou a rir e determinou que fosse trazido à sua presença. Assim

se aproximou o belo e amável conde, marcado por ferimentos recebidos em

combate, já que se havia batido com distinção. Ele vinha sendo conduzido por

Gaschier, o normando.

Era extremamente educado, pois seu pai era francês. Era sobrinho de

Kaylet e chamava-se Killirjacac. Ele partira a serviço de uma senhora e sobrepujava

a todos em aparência. Fisicamente parecia-se com Gahmuret, o que evidenciava o

parentesco existente entre ambos. Ao avistá-lo Gahmuret pediu à rainha que lhe

concedesse o beijo de boas-vindas e o abraçasse. A seguir, disse: "Agora vem

também até mim". E deu-lhe igualmente um beijo. Ambos estavam felizes com o

reencontro e Gahmuret foi logo dizendo: "Ó jovem florescente, tu que ainda não

atingiste plenamente a força da idade viril, o que te trouxe até cá? Dize-me se foi

uma mulher que te deu esta missão!"

"Ó senhor, ainda não cuidei de me pôr a serviço de uma dama. Eu vim

com meu primo Gaschier, que certamente sabe por que estamos aqui. Reforcei seu

exército com mil cavaleiros e estou sempre disposto a lhe dar apoio. Para atendê-lo

parti da Champanha para Ruão, na Normandia, para a junção dos exércitos, pondo

à disposição dele um pugilo de jovens heróis. Agora a fortuna das armas voltou-se

contra ele. Peco-vos, por isso, que façais com que por amor à vossa honra se

51
conforme e que nosso parentesco sirva de argumento para amenizar sua condição

de prisioneiro."

"Deste caso tu mesmo irás tratar. Vai, desde logo, com o Senhor Gaschier

ao encontro de Kaylet e conduze-o até nós." Eles o atenderam, trazendo Kaylet à

sua presença. Também ele foi recebido com cordialidade por Gahmuret e pela

rainha, que o abraçou e lhe deu um beijo sobremodo afetuoso. Nisso nada havia

demais, pois era de sangue real e primo de Gahmuret. Rindo, o anfitrião retomou a

palavra: "Deus sabe, Senhor Kaylet, que eu teria sido pouco leal se para a vantagem

do Rei da Gasconha, cuja cólera já vos causou não poucos embaraços, tivesse

pretendido arrebatar-vos Toledo e vosso reino espanhol. Sois, afinal, meu primo.

Mas vejo que trouxestes convosco os melhores combatentes e a elite de vossa

cavalaria. Quem foi que vos compeliu a participar desta campanha?"

A isto respondeu o jovem e distinto cavaleiro: "Meu primo Schiltunc, sogro

de Friedebrant, pediu insistentemente que o ajudasse. Dado o nosso parentesco

reforcei seu exército com seis mil seletos e aguerridos cavaleiros. Por consideração

a ele trouxe, além disso, mais cavaleiros, dos quais parte já se retirou. Assim, aqui

acamparam essas tropas combativas que acorreram ao chamado dos escoceses.

Posteriormente juntaram-se a ele combatentes oriundos da Groenlândia, dois reis

com tropas numerosas. Para minha satisfação trouxeram eles, em numerosas

embarcações, verdadeira enxurrada de combatentes. Por causa dele aqui também

permaneceu Morholt, que por seu vigor e prudência se havia distinguido em

combate. Todos eles já se retiraram. Porém eu, juntamente com os meus guerreiros,

disponho-me agora a acatar inteiramente as determinações de minha soberana

52
Belakane, que pode dispor de meus serviços. Tu não me deves, por isso, em virtude

de nosso parentesco, qualquer favor, de vez que agora estão sob tuas ordens todos

os intrépidos guerreiros deste país. Se fossem balizados e tivessem pele clara

seriam, como inimigos, uma ameaça para qualquer testa coroada. Dize-me agora,

como e por que tu chegaste a estas paragens?"

"Cheguei ontem e hoje tornei-me soberano deste reino. A rainha cativou-

me tão inteiramente, de sorte que, seguindo o conselho dos sentidos, defendi-me

unicamente com as armas do Amor."

"Acredito que esta maneira gostosa de fazer a guerra fez com que, desde

logo, os exércitos de ambos os lados se submetessem a ti."

"Tu naturalmente apostas na idéia de que recuei diante de ti! Na verdade

não te cansaste em desafiar-me em altas vozes. O que afinal pretendias ganhar com

isso? Seria melhor que aprendêssemos a conviver."

"Não poderia supor que estivesses por trás da âncora daquele escudo,

considerando que meu tio Gandin nunca se apresentou com esse símbolo."

"Eu, ao contrário, reconheci-te logo pelo penacho no elmo e a cabeça de

serpente que carregas no escudo. Teu penacho chegou a empinar-se e percebi,

pelas reações no teu comportamento, teu grande desgosto quando ambos os

combatentes foram compelidos a se render. Foi certamente a melhor coisa que

poderiam ter feito."

53
"Provavelmente eu teria tido a mesma sorte e devo confessar: o demónio

em pessoa, que sempre terá minha antipatia, teria engolido as mulheres como

guloseima, se tivesse, como tu, obtido a vitória sobre tantos guerreiros."

"Tu me elogias demasiadamente!"

"Não, lisonjear não é de meu feitio. Tu te terás que valer de meu apoio de

forma diferente."

A seguir pediram a Razalic que viesse até eles. A ele Kaylet dirigiu-se

cortesmente: "Meu primo Gahmuret vos fez prisioneiro?"

"Assim é, senhor. Tive que prometer a este ilustre varão que o reino de

Azagouc irá permanecer disponível e dócil à disposição dele, de vez que a cabeça

do meu soberano Isenhart já não mais pode carregar a coroa. A serviço dessa

senhora que agora é esposa de vosso primo, perdeu ele a vida. Com meu beijo

concedi-lhe o perdão. Mas perdi simultaneamente meu soberano e meu parente

consangüíneo. Caso vosso primo queira ressarcir-me de modo cavaleiroso dessa

perda, então irei estender-lhe as mãos postas. Terá então posses, honras e tudo o

que mais Tankanis deixara ao seu herdeiro Isenhart, cujo corpo embalsamado acha-

se exposto em nosso acampamento. Desde que esta ponta de lança traspassou seu

coração, tenho contemplado diariamente a ferida."

A seguir o intrépido herói puxou da cava da túnica a ponta de lança, atada

a um cordão de seda, deixando-a depois escorregar de volta ao peito desnudo.

54
"Ainda é cedo. Caso o Senhor Killirjacac esteja disposto a transmitir uma mensagem

minha ao exército, então pediria que todos os príncipes aqui se apresentassem."

Como credencial deu-lhe um anel para o cumprimento da missão. De fato, não muito

depois viu-se cavalgar pela cidade todos os príncipes, negros como a noite. Ali

Gahmuret os investiu na posse de seus feudos31 no reino de Azagouc. Cada qual

declarou-se satisfeito com seu feudo. Como soberano deles, Gahmuret reservou

naturalmente a parte maior para si mesmo.

Depois avançaram, seguidos de luzida comitiva, os príncipes de

Zazamanc. Cada um deles, na forma indicada pela soberana, foi convenientemente

enfeudado em bens vinculados e no respectivo usufruto pois Gahmuret era agora o

detentor de todos os domínios. Constatou-se então que o falecido Prothizilas,

descendente de uma estirpe principesca, havia deixado um ducado. Com ele

Gahmuret recompensou o homem cujo ânimo jamais esmorecera em combate e

que, com mão experiente obtivera muitas vezes honrosas vitórias: o burgrave

Lachfilirost recebeu esse feudo.

Os príncipes de Azagouc trouxeram então o escocês Hüteger e o

normando Gaschier à presença do soberano; a ambos, consoante seu pedido,

concedeu a liberdade. Os príncipes agradeceram-lhe e pediram por isso

insistentemente ao escocês Hüteger: "Deixai ao vosso soberano, como recompensa

por seu desempenho em combate, a tenda de Isenhart, que está armada diante da

cidade. Ele pagou com a vida o gesto de doar a Friedebrant sua armadura, a grande

preciosidade de nosso reino. Toda a sua fortuna se arruinou e agora ele próprio aqui

31
Uma das formas de concessão de feudos. Consistia no ato formal em que o vassalo entregava ao
suserano uma bandeira, a qual este lhe oferecia novamente. Por estar vinculada à jurisdição senhorial e ao direito
de convocar os vassalos para a guerra, a concessão de tais feudos era privilégio exclusivo dos reis.

55
jaz neste ataúde. Um amor não correspondido o precipitou nesta desgraça". Não

havia no mundo coisa mais esplêndida que o elmo de Isenhart, esculpido em um

único, gigantesco e duríssimo diamante, um companheiro de confiança no combate.

Hüteger prometeu solenemente que tão logo regressasse ao reino de seu soberano

Friedebrant resgataria todo o equipamento bélico de Isenhart e o restituiria nas

melhores condições possíveis. Isto ele prometeu espontaneamente. Em seguida

todos os príncipes apresentaram ao rei suas despedidas e deixaram o palácio. Por

mais devastado que estivesse seu país, Gahmuret pode distribuir tais presentes

como se o ouro medrasse nas árvores. Sumamente preciosos eram tais presentes.

Em atenção aos desejos da rainha tanto os seus combatentes quanto seus parentes

foram contemplados e todos aceitaram seu quinhão.

Os numerosos e duros combates que precederam a festa de casamento

tiveram naquele dia como desfecho a reconciliação. Foi-me dito - eu não o inventei -

que a Isenhart foi dado pelos seus um funeral de rei. A seguir, por decisão

espontânea puseram à disposição de Gahmuret a soma total correspondente aos

tributos anuais sobre suas propriedades. Gahmuret porém legou essas riquezas

acumuladas aos seus novos súditos com a recomendação de serem rateadas entre

eles. Na manhã seguinte os exércitos sitiantes levantaram acampamento. Cada

tropa, carregando numerosos equipamentos, partiu em separado. Não tardou que na

planície permanecesse armada apenas a tenda monumental de Isenhart. O rei

determinou que fosse transportada para o seu navio, alegando a seus súditos que

ela seria levada a Azagouc. Com isso os iludiu.

56
O altivo e intrépido cavaleiro ali permaneceu até o ponto em que mal pôde

reprimir sua sede por novas aventuras. Sua alegria de viver redundou em amargura,

pelo fato de não mais poder exercitar-se em pugnas cavaleirosas. A despeito disso

amava a esposa escura mais que a própria vida. Com efeito, nenhuma mulher lhe

parecia mais encantadora que ela, pois seu coração estava sempre em nobre

companhia: recato, discrição e distinção feminina.

GAHMURET ABANDONA BELAKANE

Passado algum tempo Gahmuret pediu ao homem de Sevilha que se

fizesse com ele ao mar. Esse homem, um branco como Gahmuret, já havia

manejado antes o timão de sua nau através de muitas milhas marítimas e fora

igualmente ele que o trouxera a esse lugar. O esperto piloto disse-lhe: "Usai de todo

o cuidado para que os homens de pele escura não saibam de vossas intenções.

Meu navio navega com tamanha rapidez que eles não nos poderão alcançar.

Ganharemos distância à vela larga.”

Gahmuret determinou que todo o seu ouro fosse transportado para o

navio. Devo agora dar-vos notícia sobre a despedida. Sorrateiramente, na calada da

noite, o nobre cavaleiro zarpou. Ao abandonar a esposa esta trazia no ventre um

filho de doze semanas. A ele, porém, o vento arrebatou célere daquelas paragens.

57
A soberana encontrou em sua bolsinha uma carta do marido, escrita em

francês, que lhe era familiar. Ali estava escrito: "Com esta, o amante assegura à

amada seu amor irredutível. Sorrateiramente, como um ladrão, empreendi a viagem,

por pretender poupar a ti e a mim a dor da separação. Ó senhora, não posso

escondê-lo de ti: se tivesses a mesma fé que eu, eu me consumiria em saudades

por ti, de vez que, mesmo assim, a despedida me foi deveras penosa. Se deres à luz

um filho, ele será certamente robusto, pois descende da estirpe de Anjou. O próprio

Amor servir-lhe-á de gênio tutelar, de sorte que será um temível adversário em

combate com seus inimigos e sobre eles cairá como granizo. Meu filho, um dia, terá

de saber que Gandin, morto numa justa, foi seu avô. Ao pai deste, chamado Addanz,

coube a mesma sorte, pois nunca voltava para casa com o escudo intacto. De raça

era bretão. Ele e Utepandragun32 eram filhos de dois irmãos, sobre os quais corria a

seguinte história: Um chamava-se Lazaliez, o outro Brickus. O pai deles, Mazadam,

foi arrebatado para o país de Feimurgan33 pela fada Terdelaschoye34, cujo coração

cativou. Esses dois fundaram minha estirpe que, desde então, ascendeu

progressivamente em esplendor pois todos os seus membros foram testas coroadas

e desfrutaram de grande reputação. Senhora, se tomares o batismo, poderás ter-me

de volta."

Não era outra sua aspiração: "Ai de mim. Isso poderia ter sido feito

imediatamente. Eu concordaria com isso sem titubear, caso ele regressasse. Agora,

32
"Utepandragun". Depois da retirada dos romanos foi restabelecido na Bretanha o governo de clã. Os
bretões, unindo-se numa confederação, instituíram o cargo de "Pendragon" (ou "Pandragun"), cujos étimos "Pen"
(cabeça) e "dragon" (líder) significam literalmente "chefe supremo". O nome do pai do Rei Artur era, portanto,
Ute (ou Uter), seguido do título "Pandragon". NT
33
"Feimurgan". Terra lendária no universo mítico dos celtas.
34
"Terdelaschoye". O próprio nome dessa mulher sobrenatural — (Ter-de-la-Schoye) (terra das delícias)
— remete à "Terra da Alegria", situada no ocidente extremo, "lá onde o sol se põe" que seguidamente aparece no
ciclo arturiano. Foi aliás para lá, depois de morto, que o corpo do Rei Artur teria sido trasladado para o repouso
eterno. N T

58
a quem o herói deixa entregue o fruto de seu amor? Ai de ti, ó terno vínculo

amoroso, pois por tua causa caber-me-á doravante como sorte uma dor desmedida.

Em respeito a seu deus deixaria batizar-me de bom grado e viveria inteiramente

consoante sua vontade." Assim seu coração debatia-se em penas enquanto sua

felicidade se retirava para um ramo seco, como costuma fazer a rola; quando o

amado se ausenta ela elege como paradeiro um ramo seco, como símbolo de sua

fidelidade.

O NASCIMENTO DE FEIREFIZ

Quando chegou sua hora a soberana deu à luz um filho bicolor no qual

Deus havia operado um prodígio. É que sua pele era malhada de branco e preto. A

rainha cobriu de beijos as partes brancas de sua pele. Feirefiz35 de Anjou foi o nome

que a mãe impôs ao filho que se tornaria um demolidor, de tanto quebrar lanças e

perfurar escudos. Sua pele e seus cabelos eram matizados de preto e branco, como

a plumagem da pega36.

Mais de um ano havia transcorrido desde que Gahmuret deixara

Zazamanc, onde havia obtido vitórias e acumulado riquezas. A despeito disso ainda

cruzava os mares, em virtude dos fortes ventos contrários. Mas eis que então

avistou no horizonte distante uma vela de seda vermelha. Era a vela da nau dos

mensageiros que o escocês Friedebrant havia prometido enviar à Senhora

35
"Feirefiz". Significando, literalmente, "filho colorido".
36
"Pega". O autor volta à alegoria da pega, utilizada no "prólogo" do poema (V. Nota n." 1). NT

59
Belakane. Por meio deles apresentava-lhe desculpas por ter invadido seu país

embora por causa dela houvesse perdido um parente. Os embaixadores traziam

consigo o elmo diamantino, uma espada, uma cota de malhas e um par de grevas. O

fato de Gahmuret haver encontrado essa embarcação pode parecer um acaso

sumamente miraculoso; não obstante minha narrativa afiança que os fatos

sucederam exatamente dessa forma. Eles lhe entregaram a armadura. Ele, por sua

vez, prometeu transmitir fielmente a mensagem tão logo regressasse à corte da

rainha.

A CHEGADA DE GAHMURET A SEVILHA

A seguir cada qual retomou seu destino. Segundo soube, as ondas e o

vento conduziram-no finalmente a um porto. De lá partiu para Sevilha. O intrépido

cavaleiro remunerou o piloto largamente com ouro, pelos serviços que lhe prestara.

A seguir separaram-se, o que muito entristeceu o piloto.

60
LIVRO II
A VIAGEM DE GAHMURET A KANVOLEIS

Gahmuret conhecia bem o soberano do reino da Espanha, pois era seu

primo Kaylet. Ele foi à sua procura em Toledo, mas Kaylet havia-se ausentado para

participar de um torneio onde a luta prometia ser áspera. Segundo assegura meu

relato Gahmuret também mandou que fossem feitos preparativos: lanças de torneio

eram cuidadosamente pintadas e providas de listras de tecido verde. Em cada lança

era firmada uma bandeira em cujo campo apareciam três alvíssimas âncoras

arminhadas, um luxo que a todos causou espanto. De fato as bandeiras eram

consideradas um luxuoso desperdício. Atadas um palmo abaixo da ponta,

61
prolongavam-se até o punho. Uma centena de lanças, preparadas desse modo, era

conduzida empós Gahmuret pelos servidores do primo. Estes lhe demonstravam

muito respeito e atenção, o que certamente seria do agrado de seu amo.

Não sei quanto tempo Gahmuret seguiu no encalço do primo. Finalmente

deparou com um acampamento de cavaleiros estranhos, no país de Valois. Muitas

tendas haviam sido armadas na planície diante de Kanvoleis. Não se trata de

fantasia. Eu conto- permiti que o diga - a pura verdade. Gahmuret determinou à sua

tropa que fizesse alto e enviou inicialmente o esperto chefe dos escudeiros à cidade,

onde devia procurar para seu amo um local de pousada. Ele partiu célere que era

seguido por outros que puxavam atrás de si os animais de carga. Mas o escudeiro

não achou casa que já não tivesse como prolongamento um segundo telhado feito

de escudos e cujas paredes não estivessem tomadas pelas lanças ali

dependuradas, a ponto de não mais ser visível a alvenaria. É que a Rainha de Valois

fizera anunciar a realização de um torneio em Kanvoleis, sujeito a tão penosas

condições que mesmo hoje faria muitos poltrões gelar de horror. Claro está que este

não era assunto para maricas. A rainha era ainda solteira e empenhara como prêmio

ao vencedor do torneio sua mão e seus dois reinos. Esse chamariz seria fatal a

muitos cavaleiros pois durante o torneio seriam arremessados à retaguarda de suas

montarias sobre a relva. Para os que assim eram derrubados acabava-se na

verdade qualquer perspectiva de obter o prêmio. Heróis intrépidos davam ali prova

de seu valor cavaleiroso. Muitos corcéis, estimulados pelas esporas, arremetiam em

impetuoso ataque e alto retiniam as espadas.

62
Um portão fechado vedava o acesso a uma ponte de barcas, construída

sobre o rio, que conduzia a uma planície verdejante. Um escudeiro abriu o portão

sem fazer muitas perguntas. Acima da ponte erguia-se o palácio em cujas janelas

podiam ser vistas a rainha e muitas damas da corte. Seus olhares curiosos

observavam o trabalho dos escudeiros. Entrementes estes haviam chegado a um

acordo e armaram a tenda que o Rei Isenhart perdera, depois de Belakane ter-lhe

recusado a recompensa que esperava receber pelos serviços que lhe prestara. A

custo armou-se a magnífica tenda, para cujo transporte foram necessárias trinta

bestas de carga. O espaço livre era suficientemente amplo para ancorar as escoras

de sustentação das cordas. Enquanto isso o nobre cavaleiro Gahmuret fazia uma

refeição ligeira diante da cidade. A seguir tomou todas as providências no sentido de

que sua entrada na cidade fosse distinta e notável. Seus escudeiros armavam

rapidamente as lanças de torneio, de modo que um feixe de cinco lanças ficava

numa mão, enquanto a outra segurava uma sexta, onde se achava firmada uma

bandeira. Desse modo a coluna do luzente cavaleiro punha-se em marcha.

Entrementes a rainha soube que um cavaleiro desconhecido, procedente de um país

distante, estaria entrando na cidade. "Seu séqüito composto de pagãos e franceses

demonstrou estar familiarizado com os hábitos da corte. A julgar por sua língua

alguns pareciam oriundos de Anjou. Seu espírito era altivo e seu vestuário, feito sob

medida, de bom tecido. Entrei em contato com seus escudeiros que se

comportavam de modo distinto. Eles afirmavam que seu amo cuidava dos

necessitados que o procuravam, provendo suas necessidades mediante donativos.

Ao lhes perguntar quem era seu amo responderam que era o Rei de Zazamanc." O

pajem que havia transmitido à rainha esta notícia assim prosseguiu: "Vede que

63
tenda! Vossa coroa e vosso próprio reino não alcançam sequer a metade de seu

valor!"

"Não é necessário tanto elogio. Já me dei conta de que ela deve

pertencer a um rico e nobre cavaleiro", atalhou a rainha. "Mas quando será que ele

próprio fará sua entrada?" Ela determinou ao pajem que tratasse de se informar a

respeito.

Entrementes o herói já cruzava as ruas da cidade com pompa fidalga, de

sorte que os que dormiam despertavam sobressaltados. Gahmuret divisou o brilho

de muitos escudos. Na testa da coluna retumbava o som poderoso das claras

trombetas. Dois tamborins, rufados a toda a força, causavam tamanho alarido que

ecoava por toda a cidade. A isso se misturava o som das flautas tocando uma

marcha. Não devo omitir o relato sobre a forma pela qual se deu a entrada do

próprio Gahmuret. Tocadores de rabeca cavalgavam a seu lado. Negligentemente o

nobre varão colocou diante de si, sobre a sela, uma perna nua, enfiada apenas

numa bota leve. Seus lábios cheios, vermelhos como rubi, brilhavam como se

deitassem labaredas. Toda a sua figura era deslumbrantemente bela. Seus louros

cabelos brotavam em cachos sob a preciosa cobertura. De veludo verde, debruado

de zibelina negra, era seu manto que descia sobre uma vestimenta alvíssima.

Enquanto isso, junto ao caminho, apinhavam-se os curiosos.

Em toda a parte as pessoas mostravam-se vivamente interessadas na

identidade desse cavalheiro imberbe que com tamanha pompa vinha entrando na

cidade pois os acompanhadores de Gahmuret davam sempre informações

64
verdadeiras. Eis que se aproximava da ponte a coluna de Gahmuret, conduzida por

uma multidão de curiosos. Impressionado com a irradiante beleza da rainha,

Gahmuret deixou escorregar bruscamente a perna, posta negligentemente diante de

si, de volta ao estribo. Como um falcão espreitando a presa o nobre varão

empertigou-se na sala. Nosso herói deu-se conta de quanto era convidativo esse

lugar onde a anfitriã, a Rainha de Valois, lhe concedia de bom grado o direito de

hospitalidade.

Cedo chegou ao conhecimento do Rei da Espanha que no Leo-plano37

havia sido armada a tenda que, consoante desejo do valoroso Razalic, permanecera

armada diante de Patelamunt e depois passara a pertencer a Gahmuret.

Ao lhe ser transmitida essa notícia por um cavaleiro, saltou do leito, lesto

como um cervo, e ficou radiante de alegria. O mesmo cavaleiro prosseguiu: "Vi

vosso primo entrar na cidade com o fausto costumeiro. Diante de sua enorme tenda,

cem lanças engalanadas com bandeiras foram fincadas em torno de um escudo.

Eram de sínople os campos do escudo e de todas as bandeiras e neles o destemido

herói ostentava três âncoras arminhadas."

"Ele vem, portanto, preparado para o torneio. Em breve se verá sua

maneira de intervir e como, em seus ataques, consegue desarticular tudo. O ódio

implacável do orgulhoso Rei Hardiz já vem me incomodando por tempo demasiado.

Agora, em combate singular, o vigoroso braço de Gahmuret irá arremessá-lo ao

chão. A sorte ainda não me abandonou."

37
"Leoplano". Grande planície diante de Kanvoleis

65
Sem tardança despachou mensageiros para o local em que Gaschier, o

normando, se achava acampado com numeroso séqüito, o qual incluía o radiante

Killirjakac. Ambos tinham vindo a pedido dele para participar do torneio. Juntos

dirigiram-se a cavalo, acompanhados de numerosos cavaleiros, para a tenda de

Gahmuret, onde apresentaram ao Rei de Zazamanc cordiais boas-vindas.

Asseguraram-lhe que o tempo durante o qual haviam estado privados de seu

convívio lhes parecera demasiadamente longo. A seguir o renomado herói pediu-

lhes informações sobre os cavaleiros que haviam vindo para o torneio. O filho de sua

tia respondeu-lhe: "Muitos audazes e destemidos cavaleiros, oriundos de terras

distantes, apresentaram-se aqui impelidos pela paixão." Ali também estava o Rei

Utepandragun que se fez acompanhar de muitos bretões.

Como um espinho atormentava-lhe a perda da esposa, a mãe de Artur38,

que fugira com um clérigo versado em magia negra39. Artur seguira no encalço

deles. Agora já se haviam escoado quase três anos desde que perdera, de uma só

ver, filho e mulher. Também se encontrava no local seu genro, Lot da Noruega, um

combatente destemido e cauteloso, experimentado nas lides cavaleirosas, leal e

sedento de glória. Com ele viera o filho Galvão, demasiadamente novo para

participar das lides cavaleirosas. O rapazinho avistou-se comigo e me contou40 estar

ansioso por se iniciar na arte do combate singular, de vez que já se sentia

suficientemente vigoroso para quebrar lanças com o adversário. Quão cedo nele

havia despertado a ânsia de combater! O Rei de Patrigalt implantou ali verdadeira

38
"Mãe de Artur". Esposa de Utepandragun, cujo nome, Arnive, é mais adiante mencionado no texto.
39
"Mago versado em arte negra". Refere-se a Clinschor, mencionado mais adiante no texto.
40
"O rapazinho se avistou comigo". Com esta intromissão, entrevistando-se com uma das futuras
personagens-chave do poema — Galvão —, Wolfram pretende fazer crer ao leitor que esteve presente ao evento
como testemunha ocular. NT

66
floresta de lanças. Na verdade essa força representava nada,comparada à dos

portugueses, igualmente presentes no local. Nós os denominamos de valentões, em

virtude de sua mania de perfurar o maior número possível de escudos. Presentes ali

também estavam os provençais com seus escudos magnificamente pintados.

Ademais, fizeram-se naturalmente presentes os cavaleiros de Valois. Como gente

de casa, dispunham de superioridade numérica e podiam, por isso, mais facilmente

impor-se no entrevero do combate. Ainda muitos outros cavaleiros, aos quais nem

todos conheço pelo nome, compareceram para prestigiar suas damas. Como nós,

todos acompanhados de numeroso séqüito, foram alojados na cidade, atendendo

aos desejos da rainha. Agora quero dar-te ainda notícias daqueles que lá fora se

achavam acampados diante da cidade e que não se arreceavam de nos enfrentar.

Estavam ali o nobre Rei de Ascalun, o orgulhoso Rei de Aragão, Cidegast de

Logroys e Brandelidelin, Rei de Punturtoys. Mais adiante achavam-se instalados o

valente Lahelin e Morholt da Irlanda, que já havia aprisionado muitos dos nossos.

Depois vinha o acampamento dos altivos alemães. O Duque de Brabante também

marcou sua presença no reino e isto especificamente por causa do Rei Hardiz. O

soberano da Gasconha havia-lhe dado em casamento sua irmã Alice, de sorte que

seus serviços dedicados ao amor cortês haviam sido premiados antecipadamente.

Todos eles estão impacientes para enfrentar-me no torneio. De minha parte ponho

toda a minha confiança no teu auxílio. Lembra-te de nosso parentesco e me

concede tua ajuda amiga."

A isto respondeu o Rei de Zazamanc: "Pelo que farei em consideração a

ti, não precisas agradecer-me. Nós dois seremos coração e alma. Teu penacho

acaso está sem ninho? Teu elmo encimado pela serpente pode pôr-se

67
tranquilamente em campo contra o meio-grifo dele. Ao arremeter contra mim, minha

âncora atingirá firmemente o fundo, de sorte que Hardiz tratará de achar um lugar

seguro na areia à retaguarda de seu cavalo. Caso venha a defrontar-me com teu

adversário, um de nós dois será descavalgado. Isto eu te asseguro."

O TORNEIO DE KANVOLEIS

Sumamente satisfeito e livre de todas as preocupações Kaylet retornou ao

acampamento. Nesse mesmo instante um grande alarido envolveu dois altivos

combatentes. Schyolarz de Poytou e Gurnemanz de Graharz haviam começado na

liça um combate singular, dando início aos exercícios da véspera de torneio41. Ali

vinham arremetendo seis, acolá três, aos quais logo se juntava um grupo. Num abrir

e fechar de olhos deu-se o entrechoque segundo todas as regras da arte de

torneio42, sem qualquer possibilidade de serem contidos.

Isto aconteceu ao meio-dia, enquanto Gahmuret descansava em sua

tenda. Ao inteirar-se de que os exercícios de arte marcial já estariam em pleno curso

o Rei de Zazamanc dirigiu-se sem pressa para o local dos combates, escoltado por

muitas lanças encimadas de claras flâmulas. É que pretendia antes observar com

41
"Véspera de torneio". Jogos marciais realizados no dia precedente ao do torneio propriamente dito.
42
"Regras de torneio". Na Idade Média os torneios eram exercícios de arte marcial, organizados com o
objetivo de adestrar os membros da nobreza. Para evitar ferimentos decorrentes de excessos, eram previstas
regras de cumprimento obrigatório. Quando se indica Godofredo de Preully como tento inventado os torneios em
1066, deve-se entender que lhes deu ordem e forma, pois Santo Enódio (473-521), Bispo de Pávia, já a eles se
refere em seu "Panegírico de Teodorico". N T

68
toda a calma o rendimento das duas facções em luta. Na planície onde os

combatentes se misturavam em confuso entrevero e onde, sob o estímulo das

esporas, os ginetes relinchavam nervosamente, estendeu-se um tapete. Dispondo-

se em círculo, seus escudeiros estabeleceram em torno dele um anel protetor, pois o

som do entrechoque das espadas vinha de todas as direções. O sonoro tilintar das

espadas dos que desejavam distinguir-se em combate vinha de mistura com o

pesado fragor do entrechoque de lanças. Na verdade Gahmuret julgou não ser

necessário indagar de alguém a origem do alarido pois o tropel dos combatentes

que se entrechocavam o envolvia como sólida muralha erguida pelo punho dos

cavaleiros. A competição desenrolava-se nas imediações do palácio, de modo que o

empenho dos participantes podia ser observado facilmente pelas damas.

Lamentando que o Rei de Zazamanc não estivesse envolvido no tumulto a rainha

disse: "Aonde está aquele de quem ouvi falar tantas maravilhas?"

Mas ela não era a única a perguntar por ele. É que nesse entretempo

havia falecido o Rei da França, cuja esposa se apaixonara perdidamente por nosso

herói bem antes deste haver partido de Valois. Ocorreu que a nobre rainha havia

enviado ao local do torneio um mensageiro a fim de saber se Gahmuret já tinha

regressado da terrados pagãos. Um intenso sentimento amoroso a obrigara a dar

esse passo.

Enquanto isso, no local da pugna cavaleiros bravos, mas pobres, vinham

realizando feitos dignos de atenção. Eles na verdade não se abalançavam a

concorrer ao prêmio estipulado pela rainha - sua mão e seu reino. Aspiravam, por

isso, a outras vantagens.

69
Gahmuret já havia posto a armadura que fora enviada à esposa como

presente de reconciliação. Com ela, Friedebrant da Escócia visava a ressarci-la de

todos os prejuízos que lhe havia causado com suas incursões guerreiras. Não havia

no mundo inteiro armadura semelhante. Gahmuret contemplou o elmo diamantino.

Sim, esse era um elmo e tanto! Sobre ele foi firmada uma âncora ornada de pedras

preciosas graúdas - um peso considerável! Gahmuret estava, além disso,

magnificamente trajado. E que tal a ornamentação de seu escudo? Um dorso

precioso de ouro da Arábia fora fixado no escudo, carga considerável, cujo peso

Gahmuret bem que pode sentir. Sua superfície era tão polida que podia servir de

espelho. Na parte inferior foi aplicada uma âncora de sable. O restante de seu

vestuário eu mesmo bem que gostaria de possuir, pois valia milhares de marcos.

O talhe de sua túnica era de proporções tão suntuosas e era tão

comprida que descia até o tapete. Acredito mesmo que algo tão magnífico nunca

mais, depois dele, havia sido usado em combate. Só posso descrevê-la desse

modo: ela brilhava qual labareda noturna e nela não havia um só lugar que fosse

fosco. Seu brilho atraía sobre si todos os olhares e era tão intenso que chegava a

magoar os olhos doentes. Era urdida de um certo ouro que os grifos43 com suas

garras extraem de uma rocha do Cáucaso e mantêm escondido até hoje. Os árabes

que percorrem a região subtraem-no astuciosamente dos grifos e o transportam para

a Arábia, onde é utilizado na tecedura do achmardi verde e de preciosas peças de

seda. Não havia, em parte alguma, túnica igual. Gahmuret ergueu pois o escudo até

43
"Grifo". Animal fabuloso, misto de leão e águia, possui uma antiguidade de 4 mil anos, pois já figurava
na Sala do Trono do Palácio de Cnossos em Creta. Em nossa era o Cristianismo e a Heráldica conferiram-lhe
novo significado. Reunindo em si o princípio de dois animais reais — o do leão e o da águia — (elemento terra-
ar) o grifo representa, no sentido heráldico, a força e a velocidade e no sentido religioso, a dupla natureza, divina
e humana do Cristo. N T

70
a altura do gorjal. À sua espera estava um magnífico corcel cuidadosamente

aprestado até os cascos, enquanto os escudeiros proferiam os gritos de guerra.

Gahmuret montou e, enquanto o diabo esfregava o olho, nosso herói gastou número

considerável de sólidas lanças. Seguidamente abriu caminho em meio ao confuso

tropel dos combatentes e sua âncora era seguida pelo penacho. Gahmuret

descavalgou Poytwin de Prienlascors e muitos outros nobres cavaleiros. Todos

tiveram que se render a ele. Os cavaleiros portadores da Cruz da Pobreza44 tiraram

proveito dos feitos de nosso herói, pois este lhes doou as montarias tomadas ao

inimigo como presa de guerra, proporcionando-lhes, desse modo, rico despojo.

Mais eis que se aproximam quatro estandartes semelhantes, cada qual

ostentando em seu campo uma cauda de grifo. Uma audaciosa tropa a cavalo

seguia essa insígnia e seu comandante era um homem experimentado na guerra.

Os que seguiam o signo da cauda do grifo eram um verdadeiro granizo de força

combativa. A parte dianteira do grifo figurava no campo do escudo do Rei da

Gasconha, um cavaleiro de atitudes prudentes. Era tão magnificamente ajaezado

que poderia afirmar-se perante os olhos de qualquer mulher. Ao avistar o penacho

sobre o elmo de Kaylet, avançou, adiantando-se aos demais. Mas a âncora de

Gahmuret se interpôs no seu caminho. O nobre Rei de Zazamanc o deitou fora da

sela e o aprisionou. Em torno estabeleceu-se um violento entrevero. O terreno

acidentado foi inteiramente aplanado pelas patas dos cavalos, enquanto as espadas

faziam seu trabalho de devastação. Uma verdadeira floresta de lanças foi consumida

e muitos cavaleiros foram arrancados de suas selas. Consoante eu soube,

44
"Portadores da Cruz da Pobreza". Possível alusão aos templários. NT

71
arrastaram-se, então, para fora do local do combate, permanecendo num canto,

junto aos medrosos.

O combate rugia próximo ao palácio, de sorte que as damas podiam ver

perfeitamente quem estava colhendo os louros na luta. Naquele momento

desprendeu-se da lança quebrada de um cavaleiro desejoso dos favores femininos -

Riwalin, Rei de Lohneis - uma chuva de brancos estilhaços de madeira. Quando ele

arremetia, era só estrondo que se ouvia. Enquanto isso, Morholt arrebatou ao partido

de Gahmuret um cavaleiro- Killirjakac. Ele o descavalgou e o obrigou, contra todas

as normas, a tomar lugar na parte dianteira da sela de seu cavalo. Já antes disso

Morholt havia pago ao Rei Lac o soldo que este, ao cair, teve que catar no chão,

depois de se haver defendido com todas as suas forças. Foi aí que ocorreu ao

gigantesco Morholt a idéia de superar o adversário, sem fazer uso da espada. E foi

assim que o nobre combatente se tornou seu prisioneiro. Entrementes Kaylet havia

derribado do cavalo o Príncipe Lambekin, Duque de Brabante.

E qual foi a reação de seu séqüito? Os combativos heróis protegeram o

soberano com suas espadas. Logo depois o Rei de Aragão arremessou o velho

Utepandragun, rei dos bretões, ao solo, à retaguarda de sua montaria. Ali cresciam

muitas flores. Foi, sem dúvida, uma gentileza de minha parte ter preparado ao nobre

bretão, diante de Kanvoleis, um leito tão aprazível. Eu vos afianço: Se antes o

camponês já evitava esse lugar, muito menos depois teria ele coragem de ali pôr os

pés. Desse modo não houve necessidade de ele ficar por mais tempo sentado em

seu cavalo. Na verdade não ficou desamparado pois os seus, ainda montados, o

defenderam, de sorte que em torno dele se criou um grande tumulto de gente

72
combatendo. Naquele momento vinha avançando o Rei de Puntortoys, mas diante

de Kanvoleis foi tão violentamente varrido de sua montaria que durante muito tempo

permaneceu estatelado no chão. O autor dessa façanha foi o soberbo Gahmuret.

Avançai, Senhores! Avançai, Avançai! E esses desafios eram contestados com

encarniçados entrechoques.

Mas os partidários do Rei de Puntortoys aprisionaram Kaylet, primo de

Gahmuret, e foi a partir desse momento que a luta se tornou mais áspera. Quando o

Rei Brandelidelin foi arrebatado em meio ao seu séqüito e feito prisioneiro, os

partidários deste aprisionaram, num contra-ataque, o rei da facção contrária. Muitos

nobres cavaleiros, revestidos de suas armaduras de ferro, erravam de um lado para

outro, enquanto patadas de cavalos e golpes de maça, vibrados diligentemente

pêlos escudeiros, castigavam-lhes o couro. Muitos desses destemidos heróis

exibiam galos negros, em virtude de estarem gravemente contundidos. Não, as

coisas estavam realmente muito mal paradas e era o amor o acicate que incitava

esses nobres varões à luta. Já agora o pó cobria muitos dos escudos

primorosamente pintados e dos elmos com ornatos magníficos. Quantos nobres

senhores tiveram a honra de ocupar um lugar sobre a grama aparada, depois de sua

queda sobre a relva florida! Confesso que tais distinções não me atraem. Prefiro,

antes, permanecer montado em meu potro.

A essa altura o Rei de Zazamanc conseguiu sair do tumulto a fim de

montar um cavalo descansado. Desatou-se-lhe o elmo diamantino, não porque

73
quisesse exibir-se, mas refrescar-se. Livraram-no igualmente do gorro de malha45; a

curva de seus lábios era rubra e soberba.

Eis que se aproximavam os mensageiros da senhora à qual antes já fiz

menção- um capelão e três pajens, escoltados por robustos escudeiros, que

puxavam empós si duas bestas de carga. A Rainha Amf lise os havia enviado. Num

relance de olhos o arguto capelão identificou em Gahmuret a pessoa procurada e o

cumprimentou, desde logo, em francês: "Nobre senhor, sede por mim e por minha

soberana cordialmente bem-vindo. Ela é a Rainha da França e se tomou de ardente

amor por vós." Com isso passou às mãos de Gahmuret uma carta, na qual este

encontrou saudações e um anelzinho que devia servir de credencial ao mensageiro.

Tratava-se do anelzinho que outrora a nobre dama havia recebido do Angevino. Ao

reconhecer a letra inclinou-se cortesmente diante do mensageiro. Quereis ouvir o

que a carta dizia?

"Envio-te minhas saudações e meus sentimentos de profunda afeição que

nunca estiveram isentos de penas desde que me senti amada por ti. Teu amor é

tranca e cadeia do meu coração e um dia há de matar-me. Enquanto tiver que

renunciar ao teu amor, amar, para mim, será uma fonte de sofrimento. Volta e

recebe de minha mão o cetro e o reino que me couberam por herança. A eles

passas a ter direito, em nome de teu amor. Como doação, aceita esses preciosos

presentes contidos em quatro arcas. Tu deverás também combater como meu

cavaleiro diante de Kanvoleis, capital do Reino de Valois. Importa-me pouco que

Herzeloyde, a rainha desse país, venha a se dar conta da situação, pois isso

45
"Gorro de Malha". Capelo em forma de capuz, feito de malha entrançada, usado sob o elmo.

74
dificilmente virá prejudicar-me. Sou mais bela e mais poderosa e sei, com mais

ternura, receber e conceder amor. Se teu coração corresponder a esse nobre afeto,

recebe, como prémio de amor, minha coroa."

Nada mais, além disso, continha a carta. Quando um escudeiro lhe

recolocou o gorro de malha na cabeça Gahmuret se mostrou bem-humorado.

Colocou-se-lhe e se lhe atou o duro e sólido elmo diamantino pois ele pretendia pôr

sua força novamente à prova. Aos mensageiros ordenou que descansassem. Ele,

porém, tratou de abrir caminho em meio ao tropel dos combatentes. Enquanto um

era derrotado o outro saía vencedor. Aqui cada um podia recuperar o que até então

havia negligenciado em termos de feitos guerreiros pois oportunidade havia de sobra

para combates singulares e ataques de massa. A essa altura já se havia desistido

dos ataques simulados a que se dá o nome de estocadas amistosas46. Aqui não

valiam as intimidades familiares pois o ardor combativo não as permitia. Aos poucos

passou a predominar a confusão e já ninguém mais observava as normas

cavaleirosas de torneio. O que um conseguia apresar mantinha em seu poder, sem

se importar com a raiva do outro. De muitos reinos haviam chegado combatentes

que com seus punhos se esmeravam em cumprir os misteres de cavaleiro sem se

arrecear de qualquer derrota.

Entretanto Gahmuret tratou de atender o pedido que Amflise lhe havia

feito por carta, combatendo como seu cavaleiro. De fato, só a partir daí foi que o

combate se inflamou verdadeiramente. Combatia ele por amor, ou apenas se

comprazia em demonstrar sua própria força? Como quer que seja, seu grande amor

46
"Estocadas amistosas". Golpes de lança desferidos por amigos em exercícios de torneio sem caráter de
competição.

75
e sua imutável lealdade lhe conferiam sempre renovadas energias. Percebendo que

o Rei Lot se protegia penosamente com seu escudo e já se dispunha em pôr sua

salvação na fuga, Gahmuret o impediu de fazê-lo. Arremetendo vigorosamente

varou o tropel confuso dos combatentes e com uma lança de bambu arremessou

para a retaguarda de sua montaria o Rei Shafillor de Aragão. A lança responsável

pela queda do orgulhoso campeão não ostentava insígnia. Ele a trouxera consigo da

terra dos pagãos. A despeito do empenho dos partidários defendendo-o com todas

as forças, Gahmuret aprisionou o nobre cavaleiro. O partido da cidade passou,

então, a empurrar sem demora a facção contrária rumo ao campo aberto. A véspera

de torneio resultou em combates tão movimentados que, sem mais delongas,

passou a ser considerada um torneio plenamente válido. Como prova disso achava-

se espalhado pelo local número considerável de lanças quebradas.

Lahelin encheu-se, então, de viva cólera: "Devemos permitir que nos

inflijam tal desonra? Ó responsável por tudo isso é aquele que tem a âncora no

escudo. Um de nós dois terá que arremessar o outro para aquele local que não

chega a ser um leito macio. Eles quase que nos venceram."

Quando Gahmuret e Lahelin investiram um contra o outro, os demais se

afastaram pois já não se tratava mais de brincadeira de criança. Eles lutaram tão

encarniçadamente que gastaram uma floresta inteira de lanças. "Lanças, senhores!

Lanças! Lanças!" Sem cessar, ouvia-se esse brado da boca de ambos. Mas por fim

Lahelin teve que sofrer ignominiosa derrota pois o Rei de Zazamanc o arremessou,

com uma lança de bambu, a uma distância não menor de um comprimento de lança,

para a retaguarda de uma montaria, e o aprisionou. Na verdade Gahmuret fez com

76
que esses cavaleiros caíssem como frutas maduras; eu mesmo, porém, preferiria a

tarefa mais amena de colher as doces pêras. Muitos dos que deparavam com

Gahmuret exclamavam: "Aí vem chegando o homem da âncora. Para trás, saiam

da frente!"

Eis que vinha cavalgando ao seu encontro um príncipe de Anjou,

visivelmente tomado de profunda tristeza, pois usava o escudo na posição inversa,

com o contrachefe voltado para cima. A despeito disso Gahmuret reconheceu o

brasão. Por que lhe teria voltado as costas? Posso indicar-vos o motivo, se assim o

desejais. Desde tempo esse escudo lhe havia sido dado pelo altivo Galões, filho do

Rei Gandin e portanto irmão de Gahmuret, antes de perder a vida num combate

singular por causa de uma paixão amorosa. Gahmuret desatou a presilha e tirou o

elmo. Uma dor profunda o impediu de continuar pisoteando, em combate, a grama e

o pó. Causava-lhe remorso o fato de não ter indagado do primo Kaylet por que o

irmão também não se havia feito presente no torneio de Kanvoleis. Em virtude disso

continuou ignorando o fato de o irmão haver encontrado a morte diante de Muntori.

Antes desse acontecimento suportara amargas penas por causa da nobre paixão

que nutria por uma poderosa rainha. Esta, ao inteirar-se de sua morte, se tomara de

desespero tamanho que, na sua sincera dor pelo morto, sucumbira a um ataque de

coração.

Embora em sua mágoa Gahmuret tivesse interrompido sua participação

nos combates, já havia quebrado em um meio dia tantas lanças que por certo teria

chegado a consumir uma floresta inteira delas se o torneio propriamente dito tivesse

sido realizado. Nada menos de cem lanças, que lhe haviam sido entregues, foram

77
gastas pelo altivo campeão. Segundo o costume seus luminosos estandartes

couberam aos pregoeiros de torneio. A seguir montou e regressou à sua tenda,

seguido pelo pajem da rainha de Valois. A este foi entregue a túnica de Gahmuret,

dilacerada por golpes e estocadas e ele a apresentou à sua soberana. Bordada a

ouro, era mesmo assim bastante preciosa. Brilhava qual brasa incandescente, o que

revelava a opulência de seu usuário. A essa túnica a rainha se dirigiu alegremente,

nestes termos: "Contigo uma nobre dama enviou ao meu reino um cavaleiro.

Entretanto exige o bom-tom que não sejam menosprezados os outros que para cá

vieram, atraídos pelo gosto da aventura. Quero bem a todos, pois, pela costela de

Adão, tenho com eles vínculo de parentesco. Entretanto acredito que Gahmuret

tenha conquistado o maior prêmio."

Entrementes os outros prosseguiam na luta com tamanho ardor e fúria

que desferiam, incansavelmente, golpes uns nos outros até ao escurecer o dia. No

decorrer da luta o partido da cidade havia empurrado os outros até suas tendas. Só

a intervenção do Rei de Ascalun e de Morholt da Irlanda pôde impedir que

invadissem o acampamento. Houve perda e proveito. Muitos sofreram dano, outros

alcançaram fama e glória. Mas como ninguém tratou de iluminar o local, havia

chegado o momento de apartá-los pois já ninguém mais reconhecia o adversário. E

quem é que iria jogar com a sorte, no escuro? Por isso os contendores exaustos já

deviam estar fartos de luta.

GAHMURET ENTRE TRÊS MULHERES

78
Mas lá, onde Gahmuret tomara assento, não havia treva. Parecia como se

ainda fosse dia claro. Essa claridade, porém, não provinha da luz do dia, mas de

numerosos e compactos feixes de velas afixados sobre ramos de oliveira. Diante

dos amplos tapetes, magníficas almofadas haviam sido dispostas com esmero. Eis

que se aproximava da tenda a rainha, conduzida por damas de sua corte, pois

desejava conhecer o nobre Rei de Zazamanc. Muitos cavaleiros, esgotados pela

luta, seguiam-na. Ao ingressar na tenda, todos já haviam terminado o jantar. O

anfitrião e os reis que este tinha aprisionado levantaram-se apressadamente, no que

foram seguidos pelos numerosos príncipes presentes. Gahmuret recebeu a Rainha

de Valois com cavaleirosa simpatia. Esta simpatizou com ele à primeira vista e

prazerosamente excitada lhe disse: "Embora neste local em que vos visito sejais

anfitrião, neste reino a anfitriã sou eu. Se convierdes aceitar o beijo de boas-vindas,

será ele concedido de bom grado."

Ele respondeu: "Receberei vosso beijo com muita satisfação, se

convierdes concedê-lo também aos fidalgos aqui presentes. Mas se ele for negado a

estes reis e príncipes, atrevo-me a dispensá-lo".

"Tendes razão! Assim será, embora até agora não conheça qualquer

deles."

Consoante o desejo de Gahmuret concedeu ela o beijo de boas-vindas a

todos que poderiam pretendê-lo em função de sua dignidade. A seguir, pediu à

rainha tomar assento. Num fino gesto de cortesia o senhor Brandelidelin sentou a

seu lado. Folhas verdes de junco, ainda molhadas de sereno, haviam sido

79
espalhadassobre o tapete. Ali sentou-se aquele que excitava o encantamento da

rainha, a qual, a essa altura, já se vinha tomando de amor por ele. Sentara tão junto

dela que esta poderia tocá-lo com as mãos e atraí-lo para junto de si. Aquela que

havia reservado para Gahmuret um lugar tão junto de si ainda era virgem. Quereis

agora ouvir seu nome? Chamava-se Herzeloyde e era prima de Richoyde, esposa

do primo de Gahmuret, o Rei Kaylet. Era tal o esplendor que a beleza da Senhora

Herzeloyde irradiava que ainda haveria, na tenda, claridade suficiente, caso fossem

apagadas as velas. Se o amargo pesar não tivesse abafado sua alegria pela visita

de Herzeloyde, certamente já naquele instante Gahmuret se teria tomado de amor

por ela. Mas dado esse fato limitaram-se a cumprimentos e troca de amabilidade.

Decorrido algum tempo entraram os copeiros trazendo objetos preciosos

e de grande valor procedentes de Azagouc. Eram jovens da nobreza que vinham

trazendo essas peças para o interior da tenda. Talhadas em pedra preciosa e sem

ornatos dourados essas taças faziam parte do conjunto de numerosos presentes

que Isenhart oferecera a Belakane a fim de que sua paixão fosse correspondida.

Era nessas taças de esmeralda, calcedônia e rubi, de brilho multicolorido, que se

servia a bebida aos convidados.

Nesse momento aproximavam-se da tenda dois cavaleiros que haviam

sido aprisionados pela facção contrária e estavam em liberdade sob palavra de

honra. Eles entraram na tenda. Um deles era Kaylet. Ao ver o Rei Gahmuret ali

sentado, com a tristeza estampada no rosto, disse-lhe: "O que te falta? Propala-se

em toda a parte que unicamente a ti cabe o prêmio da vitória, tendo em

conseqüência conquistado o reino e a mão da senhora Herzeloyde. Quer seja bretão

80
ou irlandês; quer se exprima em língua românica - francês ou brabantino -, todos

estão concordes em que em matéria de competição cavaleirosa ninguém pode

equiparar-se a ti. O que aqui é-me dado ver é a melhor prova. Força e valor

certamente não te faltaram quando puseste estes fidalgos, que nunca se haviam

dobrado a adversário algum, em situação de tamanho constrangimento. Vejo aqui o

senhor Brandelidelin, o intrépido Lahelin, além de Hardiz e Schafilor. Ah. Lembro

também o mouro Razalic a quem ensinaste diante de Patelamunt a melhor maneira

de render-se. Tua fama irradia-se por toda a parte."

"Minha soberana poderá pensar que perdeste o senso, ao exagerar deste

modo meus méritos. Não devias lançar-me no mercado a preço tão alto pois há

muitos que em mim poderão descobrir defeitos de sobra. Devias antes explicar-me

como conseguiste chegar até aqui."

"Os nobres senhores de Puntortoys liberaram a mim e a este senhor da

Champanha. Morholt, que aprisionou meu sobrinho, deseja pô-lo em liberdade se tu

em troca convieres concedê-la ao senhor Brandelidelin. Caso discordes desta

condição ele reterá a mim e o filho de minha irmã como reféns. Portanto, em relação

a nós devias agir com benevolência. Vivemos uma véspera de torneio de tal modo

penosa que agora o cancelamento do torneio de Kanvoleis se impõe como uma

necessidade. Disto eu tenho certeza. Os campeões mais destacados do outro

partido acham-se detidos em tua tenda. Cabe agora a ti decidir se devemos

permanecer presos. Tu conquistaste grande fama."

A rainha voltou-se então para Gahmuret, dirigindo-lhe este terno e

afetuoso pedido: "Agora não deveis negar-me o direito que tenho sobre vós.

81
Gostaria ainda de recompensar os serviços que me prestastes. Entretanto, se

julgardes que isso virá em prejuízo de vossa celebridade, retirar-me-ei incontinenti."

Foi aí que apressadamente se levantou o capelão da inteligente e bem-

educada Rainha Amflise e exclamou: "Alto lá! Ele, de direito, pertence à minha

soberana, que me enviou a este reino a fim de assegurar-se de seus sentimentos.

Por ele vem-se consumindo em saudades e este amor lhe confere um direito sobre

ele. Unicamente a ela deve pertencer porque o ama mais que todas as demais

mulheres. Estes três jovens fidalgos sem mácula, filhos de príncipes, são seus

embaixadores. Um deles, chamado Lanzidant, descende de nobre estirpe da

Groenlândia. Ele emigrou para a Carolíngia47 e lá aprendeu e adotou a língua do

país. O segundo, denominado Liedarz, é filho do Conde Schyolarz. No que se refere

ao terceiro também sabereis de quem se trata. Sua mãe Beaflurs e seu pai

Pensamurs descendiam das fadas. O filho deles é este, chamado Liahturtelart." Os

três precipitaram-se em direção a Gahmuret, exclamando: "Ó senhor! A Rainha da

França te assegura, sem delongas, as vantagens de um nobre amor. Se fores

esperto, poderás desfrutar sem risco nem demora de uma inalterável felicidade."

Ao ouvir essa mensagem a rainha disse a Kaylet, que estava junto dela e

cujo joelho encobria uma ponta de seu manto: "Dize-me se estás mais machucado

do que me é dado ver. Eu observei como todos caíram sobre ti." A gentil rainha

afagou com as mãos brancas e macias - verdadeira obra-prima de Deus - suas

contusões. É que faces, seu queixo e nariz estavam cobertos de manchas azuis e

gravemente esfolados. Sua condição de marido da prima da rainha explica o fato de

47
"Carolíngia": nome popular com que antigamente era conhecida a França.

82
ela tê-lo distinguido de modo especial, tocando-o com as mãos. A seguir dirigiu

estas graves palavras a Gahmuret: "A nobre francesa não perde tempo em se

oferecer a vós. Demonstrai agora o respeito pelas outras mulheres fazendo-me

justiça. Conservai-vos neutro até que esta causa seja julgada, caso contrário ireis

expor-me à vergonha."

Depois de o nobre varão haver assumido esse compromisso ela se

despediu e partiu. Kaylet, o valoroso cavaleiro, a pôs na sela, de sorte que não foi

preciso servir-se do banquinho para montar. A seguir juntou-se ele aos amigos na

tenda e dirigiu-se a Hardiz nestes termos: "Em outro tempo, vossa irmã Alice

propusera-me seu amor e eu aceitei o que me havia sido oferecido. A seguir casou

com outro e essa união deu-lhe mais do que eu poderia ter-lhe oferecido. Fazei jus à

vossa nobre educação e refreai vossa cólera indomável. O Príncipe Lambekin

tomou-a por esposa. Embora não ostente a coroa real, desfruta, contudo, de

prestígio considerável. Hennegau e Brabante lhe estão sujeitos, além de muitos

bravos cavaleiros. Provai vossa disposição amistosa voltando a cumprimentar-me e

aceitai, em troca, os meus serviços."

O Rei da Gasconha respondeu-lhe com ânimo viril: "Vossas palavras

sempre foram sedutoras. Mas se alguém, a quem muito injuriastes, quisesse em

atenção a vossas palavras reconciliar-se convosco, teria que desistir desse intento

para não ser mal interpretado. Afinal, sou prisioneiro de vosso primo."

"Ele é incapaz de ser injusto com quem quer que seja. Gahmuret

certamente irá restituir-vos a liberdade. Esse será o primeiro pedido que lhe farei.

83
Depois, quando tiverdes recobrado a liberdade, espero através de minha dedicação

alcançar o momento em que ireis chamar-me de amigo. O agravo que sofrestes,

deveis tratar de esquecer. Entretanto, qualquer que seja vossa atitude em relação a

mim, vossa irmã certamente não irá tirar-me a vida." Estas palavras provocaram um

riso generalizado.

Mas esse espírito de descontração ficou obscurecido pois o anfitrião, a

despeito de sua intenção solidária, deixou-se dominar por um saudoso pesar. As

penas do coração são, afinal, um agudo e doloroso espinho. Para cada um dos

presentes tornou-se evidente que ele era oprimido pela dor, sobre a qual nem as

alegrias pela vitória conquistada poderiam prevalecer. Isso provocou a cólera do

primo, que lhe disse: "Tu te mostras, sem dúvida, pouco atencioso."

"Ah, não digas isso! Não consigo reprimir este desgosto. Estou com

saudades da rainha. Dexei em Patelamunt uma mulher afetuosa e de

comportamento irrepreensível. Isto me entristece. Sua compostura reservada, casta

e nobre torna-me saudoso de seu amor. Ela me fez soberano de seu reino e de seu

povo. A Senhora Belakane arrebatou-me aquelas alegrias próprias do varão e por

certo só um caráter viril é capaz de se envergonhar de uma infidelidade no amor. A

preocupação exagerada de minha esposa constituía um obstáculo para que eu

competisse nos torneios.

Enquanto eu desejava superar o sentimento de frustração mediante a

prática de feitos cavaleirosos. Aqui, até que pude realizar alguns. Na verdade muita

gente que não está a par dos fatos acredita que sua pele fez-me arrepiar caminho.

84
Ó, não! Para mim ela era como o sol. A causa de meu grande sofrimento está

precisamente no fato de ela ser uma mulher incomparável. Não há mulher que a ela

se compare em dignidade e nobreza. E há ainda outra coisa que me enche de

aflição: vi como o escudo com as armas de meu irmão vinha sendo usado na

posição inversa, com o contrachefe voltado para cima."

"Ai de tuas palavras, porque essa história é realmente de causar

consternação. Os olhos do nobre espanhol encheram-se de lágrimas. Ai de ti, ó

insensata Rainha Fole, pois por causa de teu amor, perdeu Galões a vida. Todas as

mulheres deveriam sinceramente e de coração chorar sua perda caso pretendessem

recolher encômios por essa atitude. Ai de ti, ó Rainha de Averre. Por pouca

importância que possas dar a esse fato, foi por tua causa que perdi um parente

consanguíneo. Ele encontrou a morte em combate cavaleiroso singular, portando tua

prenda. Os príncipes de seu séqüito demonstram profundo pesar e em sinal de luto

viraram a borda de seus escudos para baixo. O luto fechado os faz entrar na liça

desse modo. A dor os aflige desde o momento em que meu primo Galões não mais

pôde dedicar-se ao amor cortês."

A notícia da morte do irmão foi um acréscimo de dor a atormentar o

coração de Gahmuret, já angustiado por velhas penas. Cheio de mágoa, assim

falou: "Minha âncora, ao tocar o fundo, repousou na dor". Mergulhado em amargo

pesar livrou-se da armadura e disse com genuína e leal solidariedade: "Galões de

Anjou! Que ninguém, de futuro, duvide disso: Nunca, antes de ti, havia nascido na

nobreza rebento mais nobre, nem mais viril. Em teu coração floresciam os frutos da

85
verdadeira magnanimidade". A seguir virou-se para Kaylet e indagou: "Como vai

passando minha desditosa Mãe Schoette?".

"Que desgraça! Quando Gandin e teu irmão Galões lhe foram arrebatados

e também tu já não mais estavas ao seu lado, sucumbiu a um ataque cardíaco."

Então o Rei Hardiz interveio: "Agora deveis mostrar ânimo forte. Se

fordes um homem de fato, não deveis permitir que a dor vos domine."

Contudo a dor foi tão intensa que uma torrente de lágrimas brotou dos

olhos de Gahmuret. A despeito disso tratou de proporcionar comodidade aos

cavaleiros antes de recolher-se a seu quarto de dormir - uma pequena tenda de

veludo -, onde passou a noite debatendo-se na sua dor.

Ao amanhecer os dois exércitos acampados intrae extramuros

concordaram que todos aqueles que vinham aguardando, prontos para o combate, o

início dos exercícios - velhos ou moços, medrosos ou intrépidos - deviam desistir do

restante do torneio. Já na manhã tardia os combatentes estavam tão extenuados e

os cavalos tão esfalfados em virtude da contínua compulsão das esporas que os

intrépidos cavaleiros baqueavam sob o peso da fadiga. Naquele momento apareceu

na praça de torneio a rainha em pessoa e reconduziu os nobres senhores à cidade.

Ali pediu aos mais ilustres dentre eles que comparecessem ao Leoplano. Atendendo

o pedido chegaram ao local onde vinha sendo rezada uma missa a pedido do

enlutado Rei de Zazamanc. Após a bênção apareceu ali também a senhora

Herzeloyde e levantou a questão de seus direitos sobre Gahmuret, o que mereceu a

86
aprovação geral. Este, então, disse: "Senhora, eu já tenho uma esposa, a quem amo

mais que minha vida. Mas ainda que fosse solteiro saberia como subtrair-me de

vossa reivindicação, cuidando para que alguém assumisse meus encargos junto a

vós."

"Por amor a mim deveis afastar-vos da moura. As bênçãos do batismo

exercem um poder mais alto. Apartai-vos dos pagãos e amai-me segundo as normas

do Cristianismo pois vivamente desejo vosso amor. Ou será que a rainha dos

franceses fez com que vosso coração se apartasse de mim? Seus embaixadores

pronunciaram palavras sedutoras e nisso chegaram a extremos."

"Pensando bem, ela é minha verdadeira soberana. Ao regressar a Anjou

trouxe também comigo uma educação cavaleirosa, fruto de seus sábios conselhos.

Ainda hoje desfruto dos benefícios que minha nobre soberana sem mácula me

prestou, educando-me. Ao tempo éramos ainda crianças e o simples fato de nos

contemplarmos mutuamente nos enchia de satisfação. Agora e sempre a Rainha

Amflise desfrutará do conceito de ser uma mulher, no mais alto sentido da palavra.

Essa nobre dama concedeu-me generoso apoio proveniente de recursos de seu

país, pois, ao tempo era muitíssimo mais pobre do que sou agora. Por isso aceitei,

agradecido, sua ajuda. Mas vós, senhora, podeis mesmo agora incluir-me no

número dos pobres. Podeis ter pena de mim, pois perdi meu nobre irmão. Em nome

de vossa distinta educação não insistais mais comigo neste assunto. Dedicai vossos

sentimentos a quem vos pode oferecer alegrias. Em mim só há tristeza."

87
"Não permitais que eu me consuma por mais tempo em ansiedade e

dizei-me de que forma pretendeis subtrair-vos à minha reivindicação."

"Vou responder a vossa pergunta. Aqui foi convocado um torneio que no

entanto não se realizou. Muitas testemunhas podem confirmar esse fato."

"O torneio de véspera o impediu. Até os mais audazes estavam tão

extenuados que o torneio propriamente dito não pôde ser realizado."

"Eu apenas defendi a causa de vossa cidade e isso juntamente com

muitos outros, que também se distinguiram. Por isso não me forceis a vos dar uma

justificação. Aqui há muito cavaleiro que satisfez as exigências mais do que eu.

Vossas pretensões sobre mim não podem ser sustentadas. O reconhecimento que

vos poderia pedir é, pois, igual ao que qualquer um poderia pleitear."

Conforme assegura meu relato o cavaleiro e a jovem escolheram um juiz,

ao qual caberia decidir a questão levantada pela soberana. Já era quase meio-dia /

quando a sentença foi divulgada: "Um cavaleiro que se apresentou para competir em

pugna cavaleirosa, que atou a presilha de seu elmo e obteve o triunfo no torneio,

pertence à rainha48" .

Essa sentença obteve a aprovação geral. A rainha, então, assim falou:

"Senhor cavaleiro, vós me pertenceis agora. Esforçar-me-ei para conquistar vossa

48
Reparemos no caráter singular dessa sentença que traduz igualmente uma lei cavaleirosa: a dama ou
mulher real, objeto da disputa, passou quase automaticamente ao vencedor (Gahmuret), que devia fazê-la sua,
mais por dever que por direito. NT

88
simpatia e vos fazer tão feliz que acabareis esquecendo vossas penas, recobrando a

alegria."

Entretanto ele ainda permaneceu imerso na sua dor. A essa altura já

havia decorrido o mês de abril. As primeiras gramíneas brotavam e a campina se

cobria de relva verdejante, o que animava até mesmo os corações tímidos,

infundindo-lhes bom humor. Os amenos ventos de maio favoreciam o

reflorescimento de muitas árvores e certos pendores herdados de suas ancestrais-

as fadas -, despertaram em Gahmuret o amor e o desejo de realizá-lo. E a mulher

enamorada estava ali mesmo para lhe conceder esse amor. Ele contemplou

Herzeloyde, a bela curva de seus lábios e falou-lhe assim, com nobre distinção:

"Senhora, se quereis que eu me sinta feliz a vosso lado não tolhais minha liberdade

de ação. Quando eu tiver inteiramente superado as minhas penas, certamente serei

atraído pelo desejo de realizar novos feitos cavaleirosos. Se me proibirdes de

competir em torneios, restar-me-á o recurso à antiga malícia de que lancei mão

para me subtrair à vigilância de minha esposa, que também conquistei através de

feitos cavaleirosos. Como ela me manteve distante dos combates, abandonei seu

povo e seu reino."

A isso ela respondeu: "Senhor, vós mesmo ireis decidir sobre vossos

atos. Levai a vida consoante vossa vontade."

"Gostaria de quebrar ainda muitas lanças. Senhora, deveis declarar-vos

de acordo com que eu participe mensalmente de um torneio."

89
Isso ela prometeu e, consoante eu soube, foi desse modo que ele obteve

o reino e a donzela.

Na oportunidade em que foi proferida a sentença e divulgado o acordo

estiveram presentes os três pajens da Rainha Amflise, da mesma forma que o

capelão, ao qual foi dado ouvir e ver tudo. Sorrateiramente, então, cochichou nos

ouvidos de Gahmuret: "Minha soberana foi informada de que obtivestes diante de

Patelamunt o triunfo supremo e lá sois soberano de dois reinos. Ela também possui

um reino e gostaria de oferecer-vos sua mão e seus domínios."

"Considerando que foi ela que me armou cavaleiro, essa investidura me

subordinou a partir de então às leis da cavalaria, as quais cabe-me cumprir sem

restrições. A situação seria diferente se tivesse recebido o escudo de alguém que

não fosse ela. A sentença proferida a partir dos preceitos cavaleirosos compele-me

a permanecer aqui, quer que isso me agrade ou não. Regressai pois e dizei-lhe que

ela pode, sem constrangimento, dispor de meus serviços e que a despeito de tudo

permaneço seu cavaleiro. Mesmo se todos os reinos fossem meus, consumir-me-ia

em saudades por ela."

Ele ofereceu-lhes ricos presentes que, no entanto, foram recusados. Em

conseqüência os mensageiros regressaram sem que esse fato representasse uma

desonra para sua soberana. Aliás, eles não se despediram, como só acontece

quando se é dominado pela ira. Os três pajens principescos estavam quase cegos

de tanto chorar.

90
GAHMURET NO CUME DA FAMA

Enquanto isso, aqueles que haviam invertido seus escudos em sinal de

luto souberam de seus amigos acampados na planície fora da cidade que o senhor

de Anjou coubera à Rainha Herzeloyde.

"De que senhor de Anjou se trata? Infelizmente nosso soberano se

encontra em outras paragens. Em busca de renome, dirigi-se ele para a terra dos

sarracenos, o que é sumamente doloroso para nós."

"O homem que obteve o maior e o mais honroso prêmio e derribou muitos

cavaleiros, que com mão potente perfurou e golpeou e que sobre o elmo usa, como

timbre, a preciosa âncora cravejada de pedras preciosas, é precisamente aquele de

quem falo. Ó Rei Kaylet me assegurou que esse senhor seria Gahmuret. Ele

conquistou, sem dúvida, um enorme sucesso."

Foi aí que os outros se dirigiram imediatamente para seus cavalos e

montaram. Ao reencontrarem seu senhor, suas vestes ficaram molhadas de tanto

chorar. Eles se deram mutuamente boas-vindas e de ambos os lados houve alegria

de mistura com a dor. Gahmuret beijou seus fiéis servidores e lhes disse: "Não vos

entregueis a uma tristeza sem fim por causa do meu irmão. Ocuparei o lugar dele

junto a vós. Passai a usar vossos escudos na posição normal e permiti que a alegria

volte novamente a vossos corações. Doravante passarei a usar as armas de meu

pai, pois minha âncora achou o fundo no seu reino. A âncora é o símbolo do

cavaleiro andante em busca de atividade guerreira. Quem dentre vós assim o

desejar, poderá adotá-la e usá-la doravante. Como conquistei um grande poder terei

91
que dedicar-me aos meus súditos. Se me dispusesse a ser soberano deste povo,

meu pesar o entristeceria. Ajudai-me, pois, Senhora Herzeloyde, e pedi a todos os

reis e príncipes que aceitem meu convite de aqui permanecer até que vos convenha

conceder-me a almejada união."

Ambos insistiram nisso junto aos nobres e estes concordaram sem

demora. Cada um instalou-se da melhor forma possível. Entretanto a rainha disse a

seu amado: "Entregai-vos, agora, aos meus cuidados!" E partiu com ele sem que

alguém se apercebesse disso.

Mesmo na ausência do anfitrião seus hóspedes eram servidos de forma

magnífica. Enquanto a criadagem vinha cumprindo seus misteres, Gahmuret partiu

sozinho, acompanhado apenas de dois pajens. A rainha e suas jovens damas o

conduziram para um local onde encontrou a felicidade e toda a sua tristeza se

dissipou. Ele superou suas penas e readquiriu o gosto pela vida, o que na

companhia da mulher amada não é coisa de se admirar. A Rainha Herzeloyde

perdeu, em virtude disso, sua virgindade. Eles não pouparam seus lábios, mas os

abrasaram em beijos ardentes, mantendo sua felicidade afastada de qualquer

tristeza.

Depois disso Gahmuret praticou um gesto de grande generosidade:

restituiu a liberdade a todos que havia aprisionado e promoveu, além disso, a

reconciliação entre Hardiz e Kaylet. A seguir realizou-se magnífica festa em que todo

aquele que quisesse ombrear-se com Gahmuret teria que dispor de considerável

fortuna. Gahmuret decidiu não poupar suas posses. Todos os cavaleiros comuns

foram aquinhoados com ouro da Arábia, enquanto os reis e príncipes receberam de

92
suas próprias mãos punhados de pedras preciosas. Os músicos saltimbancos

mostraram-se igualmente alegres e à vontade pois todos haviam recebido ricos

presentes. Mas agora deixai partir aqueles que eram seus hóspedes. Ele

apresentou-lhes suas despedidas. Uma pantera de sable - o símbolo heráldico do

pai - foi afixada no seu escudo. Sobre a armadura pôs ele uma camisola de seda,

tênue e branca, que a esposa, a rainha, costumava usar sobre o corpo desnudo.

Dezoito de tais camisolas, dilaceradas por lançaços e golpes de espada, trouxe ele

mais tarde para casa, antes de se despedir da esposa para sempre e ela as usava

sobre o corpo nu, como símbolo de vitoriosos combates, quando seu amado

regressava de tais encontros em que perfurara muitos escudos. Eles se amavam

com inalterável fidelidade.

A esta altura Gahmuret desfrutava de fama mais que suficiente, quando

seu arrojo varonil o impeliu a uma contenda da maior gravidade no além-mar. Essa

expedição encheu-me de tristeza. E que ele havia recebido notícias seguras de que

seu antigo amo, o Baruc, havia sido atacado de surpresa e com superioridade de

forças pelos reis babilônios Ipomidão e Pompeu. Nessa história Pompeu aparece

como homem intrépido e de grande nobreza. Não se trata daquele Pompeu que um

dia, por temor a Júlio49 fugiu de Roma. O irmão de sua mãe fora aquele Rei

Nabucodonosor50 que em escritos facciosos havia lido que ele próprio era um deus,

sendo por isso até hoje motivo de riso. Os dois irmãos que em todos os

empreendimentos arriscavam suas vidas e seus domínios descendiam de

nobilíssima estirpe. Seu ancestral, Nino, que fora soberano da região em época

49
Júlio. Refere-se a Caio Júlio César (17-07-100 +15-03-44- a.C), general, escritor e estadista romano.
50
"Nabucodonosor". Wolfram utiliza a forma grega do nome do Rei da Babilônia Nebukadnezar II (605-
562 a.C.), que em 586 a.C. destruiu Jerusalém e mandou deportar toda a população judaica para a Babilônia. O
profeta Daniel afirma em seu livro (2 e 3) que foi esse rei quem mandou erigir uma estátua com sua imagem,
como se fosse um deus.

93
anterior à fundação de Bagdad, havia sido igualmente construtor de Nínive. Mas

agora, como vassalos do Baruc, tanto o peso do tributo quanto o da humilhação

tornara-se para eles insuportável. Em conseqüência irrompera a guerra, em que as

duas facções alcançavam alternada-mente vitórias e sofriam derrotas enquanto

muitos heróis perpetravam feitos notáveis. Gahmuret atravessou pois o mar e

encontrou o Baruc no acampamento, cercado por suas tropas. Ali foi recebido com

demonstrações de contentamento; eu, porém, lamentei essa sua viagem.

O que aconteceu, como aconteceu e de que forma ali se alternava a sorte

da guerra, isto a Senhora Herzeloyde jamais soube. Ela irradiava beleza e felicidade

e se realizava plenamente no seu amor. Rica e bela, desfrutava de excesso de

felicidade, vendo realizar-se os seus desejos mais ousados. Dedicava-se a obras de

benemerência e ganhou com isso a aprovação de seus semelhantes. Seu

procedimento exemplar mereceu muitos encômios e sua castidade era exaltada. Era

soberana de ires reinos, pois não reinava apenas sobre Valois e Anjou como ainda

ostentava na sua capital Kingrivals a coroa de Norgals51. Amava o esposo de forma

tão extremada que seria de seu agrado que toda a mulher tivesse também um tão

nobre amante. Mas decorrido meio ano após sua partida passou a aguardar

ansiosamente seu regresso, pois vivia unicamente da esperança de tê-lo de volta.

Foi aí, porém, que a lâmina de sua felicidade se partiu junto ao punho. Que

desgraça! Por que a bondade está sujeita a passar por tamanha desgraça e a

felicidade está exposta a culminar em dor tamanha? Sim, de tudo isso é feita a

fortuna vária dos homens: a alegria de hoje pode amanhã ser afogada na dor.

51
"Norgals". Trata-se, provavelmente, de Nordwales.

94
A MORTE DE GAHMURET

Certo dia, durante a sesta, Herzeloyde teve um sonho perturbador.

Intenso pavor apoderou-se dela pois lhe parecia que um meteoro a estivesse

conduzindo pelo espaço sideral onde rutilantes raios a sacudiram violentamente.

Todos se abatiam sobre ela de modo que suas longas tranças crepitavam pipocando

fagulhas. O trovão com terrificante estrondo liberava lágrimas de fogo que se

derramavam sobre ela. Quando recobrou a consciência um grifo puxava sua mão

direita. E de novo mudava a visão: estranhamente via-se investida na função de ama

de leite de um dragão que lhe dilacerava o ventre, sugava-lhe os seios para, a

seguir, alçar vôo e sumir de sua vista. Ele lhe arrancou o coração do peito e o mais

terrificante foi o fato de ela ter que assistir a tudo isso com os próprios olhos e

plenamente consciente. É pouco provável que em algum tempo uma mulher

adormecida tenha passado por aflição tamanha. Se até então Herzeloyde havia sido

uma mulher fulgurante, esse estado de felicidade se alteraria inteiramente, fazendo

com que a angústia empalidecesse esse fulgor. Com a perda irreparável que iria

atingi-la, gravíssimos sofrimentos lhe estavam reservados. Embora jazendo

inicialmente imóvel a nobre dama passou a virar-se, depois, de um lado para outro,

lamentando-se em altas vozes. Foi então que as jovens damas que se encontravam

junto dela acudiram, acordando-a.

Nesse momento chegavam Tampanis, o esperto chefe dos escudeiros do

marido, acompanhado de numerosos jovens fidalgos. Sua felicidade havia chegado

ao fim pois os recém-chegados, em meio a muitos lamentos, anunciaram a morte de

seu amo. A notícia teve sobre Herzeloyde um efeito tão fulminante que caiu sem

95
sentidos. Entretanto os cavaleiros interrogavam-se: "Como foi possível nosso amo

ter encontrado a morte se sua armadura o protegia de forma tão efetiva?"

Embora dominado pela dor o escudeiro fez aos heróis este relato: "Meu

amo perdeu tão cedo a vida porque tirou a touca de malha em virtude do calor

intenso. Uma abominável perfídia dos pagãos arrebatou-nos o valoroso campeão.

Um cavaleiro encheu uma garrafa com sangue de bode e a rebentou sobre o elmo

diamantino de Gahmuret que, desse modo, tornou-se mais mole que esponja. O que

então se passou... que dele Se compadeça Aquele que comumente é representado

como cordeiro, com os pés pregados à cruz! Ah, como ali se combatia quando as

duas facções se entrechocaram! Os cavaleiros do Baruc resistiram heroicamente.

Muitos escudos foram perfurados quando se deu o grande choque na planície diante

de Bagdá. As tropas a cavalo envolveram-se em refrega tão violenta que as

bandeiras se emaranharam umas nas outras e muito altivo campeão tombou ali sem

vida. Meu amo destacou-se por tantos feitos que deslustrou a fama de todos os

demais. Foi aí que Ipomidão arremeteu a toda a brida. Ele se vingou de meu amo,

matando-o, pois o abateu diante dos olhos de milhares de cavaleiros de Alexandria.

Meu amo, isento de qualquer falsidade, havia-se voltado contra o rei cuja lança o

mataria, pois atravessou o elmo e perfurou-lhe o crânio onde, mais tarde, foi

localizada a ponta quebrada. A despeito disso o intrépido combatente conseguiu

sustentar-se na sela e afastar-se do campo de batalha para um lugar desimpedido.

Seu capelão inclinou-se sobre o moribundo, que se confessou com poucas palavras.

Esta camisa e a ponta de lança que o arrebatou de nós, ele recomendou que fossem

entregues aqui. Determinou ainda que seus pajens e escudeiros ficassem sob a

proteção da rainha e a seguir faleceu sem pecado."

96
"Na transladação do corpo para Bagdad o Baruc não mediu despesas.

Seu corpo, irradiando juventude, foi embalsamado e o esquife em que repousava o

herói sem mácula estava ornado com ouro e pedras preciosas. Havia ali muitas

pessoas tomadas de profunda tristeza. A tampa do esquife consistia de um valioso

rubi, o que permitia que fosse visto quem sob ela repousava. A nosso pedido

permitiu-se que fosse erigida sobre sua sepultura uma cruz, o que lembrava o

martírio com que Cristo nos redimiu. Ela devia proporcionar consolo e proteção à

sua alma. A cruz, custeada também pelo Baruc, consistia de uma preciosa

esmeralda. Nós a erigimos sem a ajuda dos pagãos, cuja religião nada sabe sobre a

cruz na qual Cristo morreu e nos redimiu. A partir de então Gahmuret passou a ser

efetivamente venerado pêlos pagãos como deus poderoso, mas não por causa da

cruz, nem da doutrina cristã que nos trarão a redenção no dia do juízo final.

Hombridade e confissão contrita dar-lhe-ão no céu a auréola resplandecente. Nele

não havia falsidade."

"Seu elmo diamantino foi firmado na ponta da cruz. Nele gravou-se um

epitáfio que dizia: Um lançaco perfurou este elmo e atingiu o nobre e valoroso

campeão (que aqui jaz). Chamava-se Gahmuret. Como poderoso monarca reinou

sobre três países e em cada um desses reinos em que cingiu a coroa poderosos

príncipes foram seus vassalos. Era natural de Anjou e perdeu a vida diante de

Bagdad, lutando pela causa do Baruc. Tamanha era sua fama que ninguém podia

comparar-se com ele. Ainda está por nascer aquele cavaleiro com valor igual ao

seu. Com recursos e bom conselho assistia ele incansavelmente aos amigos e para

defender a mulher esteve sempre disposto a enfrentar ásperas contendas. Era

97
batizado e seguidor do Cristianismo. Sua morte foi lamentada também, com sincero

pesar, pêlos sarracenos. Mal se fez homem, passou a buscar ousadamente a fama

e foi cercado de honras até que a morte o surpreendeu. Nele não havia falsidade.

Desejai, pois, bem-aventurança a quem aqui repousa."

LAMENTAÇÕES DE HERZELOYDE

O relato feito pelo pajem correspondeu efetivamente aos fatos. Muitos

habitantes de Valois puseram-se então a chorar, pois tinham bons motivos para

lamentar-se. A soberana, porém, trazia no seu seio um filho que nela já se agitava,

quando ali jazia sozinha e sem socorro. Ele começara a se mover desde dezoito

semanas. Porém agora sua mãe, a Rainha Herzeloyde, agonizava. Os demais

estavam evidentemente fora de si pois ninguém a acudia, considerando que já trazia

dentro de si aquele que poderia vir a ser a suprema glória da Cavalaria, caso

escapasse da morte. Foi então que dela se aproximou um velho sábio para

solidarizar-se com os lamentos da soberana num momento em que ela já vinha

lutando com a morte. Sem perda de tempo separou-lhe os dentes convulsivamente

contraídos, possibilitando que se lhe instilasse água. Foi quando ela voltou a si e

exclamou: "Ai de mim, onde está o meu amado?" E prorrompeu em lamentos de

cortar o coração! "A magnificência de Gahmuret foi a única felicidade de meu

coração. Seu ardor combativo o arrebatou de mim. Embora muito mais nova que ele,

agora devo ser, a um tempo, sua mãe e sua esposa pois trago comigo seu embrião

que nosso amor instilou em mim. Se Deus for conseqüente permitirá que o fruto que

98
tenho dentro de mim amadureça, considerando que já sofri demais com a perda

irreparável de meu querido e nobre marido. Ah, a morte maltratou-me em demasia!

Gahmuret jamais desfrutou dos favores femininos sem que sua mulher participasse

de sua felicidade e sem que ele, por sua vez, compartilhasse de suas penas.

Fidelidade conjugal genuína o levava a agir desse modo pois era homem

profundamente sincero."

Escutai agora o que a soberana fez depois disso. Cingindo com mãos e

braços o ventre que abrigava o nascituro, assim falou: "Permiti-me, Senhor, que eu

traga ao mundo este nobre rebento de Gahmuret; este é meu desejo mais ardente.

Não permitais que eu me exponha imprudentemente a riscos. Seria a segunda morte

de Gahmuret, se eu me autoconsumisse. Protegei-me enquanto trouxer comigo o

que recebi do amor daquele que em todos os instantes me demonstrou verdadeira

fidelidade conjugal."

A seguir arrancou a blusa do peito, sem se importar com os que estavam

em torno dela. Num gesto tipicamente feminino agarrou os brancos e delicados

seios e os comprimiu de encontro aos lábios vermelhos: "Vós sois - exclamou a

mulher segura do que dizia - os recipientes para o sustento de meu filho; eles se

tornaram úmidos desde que ele começou a se mover dentro de mim". Viu assim

realizar-se seu desejo mais vivo pois agora este alimento - o leite de seus seios -

cobria-lhe o coração como um teto. E fazendo-o sair, espremendo os seios,

arrematou: "Tuas nascentes brotaram da felicidade. Se já não fosse batizada, usar-

te-ia para batizar-me. Para chorar a morte de Gahmuret quero inundar-me com este

leite e com minhas lágrimas, tanto às escondidas quanto diante dos olhos de todos."

99
Depois a soberana mandou trazer a camisa borrifada de sangue que

Gahmuret usara quando, animado de ardor combativo e de genuína audácia,

tombara combatendo ao lado do exército do Baruc. Pediu que se trouxesse também

a ponta de lança que o ferira de morte. Ipomidão de Nínive, o nobre e intrépido

babilônio, se vingara dele de tal forma que a camisa se achava inteiramente

esfacelada de golpes. A soberana quis colocá-la, como costumava fazer quando o

esposo regressava dos torneios, no que foi impedida. Os Grandes do reino

inumaram a ponta de lança e a camisa embebida de sangue na catedral, como se

tratasse do funeral do próprio morto. Lamentos generalizados enlutaram todo o

reino.

O NASCIMENTO DE PARSIFAL

Quatorze dias depois a soberana deu luz a uma criança. Era um menino

de constituição física tão robusta que seu nascimento quase lhe custou a vida. É

nesse momento que começa a narrativa propriamente dita pois somente agora

nascia aquele a quem este relato diz respeito. Até aqui ouvistes umas tantas coisas

acerca da boa e má fortuna do pai, sobre sua vida e sua morte. Agora que

conheceis a origem do herói desta história dar-vos-ei igualmente notícia sobre a

forma pela qual era protegido. Foi-me dito que desde a infância ele era mantido

afastado de qualquer atividade própria de um cavaleiro.

100
Já restabelecida e com o filho de volta a seus braços a rainha e as damas

da corte passaram a examinar o membrozinho entre as pernas do menino.

Repetidas vezes era afagado e acariciado, por apresentar a constituição física de

um verdadeiro homem. Mais tarde, manejando a espada, procederia como ferreiro,

fazendo saltar faíscas dos elmos de seus adversários pois tinha coração de homem

intrépido. A rainha comprazia-se em beijá-lo repetidas vezes para dizer-lhe com

ênfase: "Bon fils, crier fils, beau fils52". Cheia de zelo segurou o róseo sinal - quero

dizer, o bico do seio - e o introduziu na sua boquinha. E aquela que o carregou no

ventre foi igualmente sua ama de leite. Contrária a qualquer procedimento pouco

feminino, amamentou-o no próprio peito. Às vezes lhe parecia como se o próprio

Gahmuret tivesse voltado a seus braços. Não era de ânimo leve, mas com toda a

humildade que ela se desincumbia de seus deveres de mãe. Pensativa, dizia a

senhora Herzeloyde de si para si: "Não foi a suprema rainha que alimentou Jesus no

seu seio, o mesmo que, mais tarde, como homem, sofreu na cruz uma morte atroz

só para demonstrar Sua lealdade? A alma daquele que menosprezar Sua ira estará

em situação difícil diante de Seu juízo, por mais pura que seja ou tenha sido. Esta

que é a pura verdade." A soberana do reino inundava-se com as lágrimas que lhe

brotavam do íntimo da alma. Essas lágrimas desciam com chuva sobre o menino,

pois era uma mulher autêntica. Sua boca podia tanto deixar escapar um suspiro

quanto abrir-se num sorriso. Embora feliz com o nascimento do filho, sua alegria

afogava-se numa torrente de sofrimentos.

EXCURSO DO POETA

52
"Bon Fils, Cher Fils, Beau Fils": Meu bom filhinho, meu rico filhinho, meu belo filhinho

101
Pouco se me dá se alguém se revelar mais engenhoso que eu no trato de

assuntos femininos. Ouço de bom grado tudo aquilo que lhes causa satisfação.

Apenas a uma única eu recuso meus leais serviços. A repulsa que lhe tenho vem

aumentando desde que descobri sua deslealdade. Sou Wolfram de Eschenbach e

domino razoavelmente a arte da composição poética. Mas sou, também, qual tenaz,

do que resulta que me aferre ao meu rancor contra essa mulher. Ela foi de tal modo

injusta para comigo que o ressentimento que lhe tinha acabou por se tornar

irremediável. Esta é a razão porque as outras mulheres estão agora de mal comigo.

Ah, por que fariam isso? Na verdade, dói-me esse rancor, mas relevo-lhes o amor

próprio pois certa vez excedi-me e com isso prejudiquei a mim mesmo. Mas é

aconselhável que não se aproximem muito de minhas muralhas pois irão defrontar-

se com uma vigorosa resistência. Suas atitudes e maneiras de ser eu sei muito bem

avaliar. Uma mulher que resguarda sua pureza terá em mim um defensor certo de

sua reputação e suas penas não me serão indiferentes. Mas certamente são

suspeitos os elogios daquele que em consideração a uma mulher determinada

subestima as demais53. A quem quiser ouvir e constatar quem de fato eu sou, posso

informar, sem falsear a verdade, o seguinte: sou cavaleiro por nascimento e

educação. Se uma mulher quisesse conceder-me seu amor apenas em atenção aos

meus dotes de poeta eu duvidaria de sua sanidade mental. Se eu aspirar ao amor

de uma mulher de verdade esta deverá avaliá-lo na medida em que eu souber

merecê-lo pela minha arte no manejo do escudo e da lança. Arrisca um alto lance

quem busca o amor através de feitos cavaleirosos.

53
"Mas certamente são suspeitos os elogios...": Referência à poesia lírica do Reinmar von Hagenau
(1160-1230), na qual a mulher, objeto de seu canto, é colocada muito acima das demais.

102
Se agora me disponho a retomar minha narrativa, contando uma série de

fatos surpreendentes, isto não deve ser interpretado pelas mulheres como

expediente para lisonjeá-las. Mas quem desejar que eu prossiga não deve

considerar esta narrativa como obra de cunho literário. É que eu não sei ler nem

escrever54. Há na verdade muita gente que considera a formação acadêmica e a

erudição como fundamentos necessários ao ofício do poeta55. Esta minha história

não se ajusta aos princípios da sabedoria livresca. Se este livro fosse confundido

com obras desse gênero, preferiria permanecer sentado no banho, sem roupa e sem

toalha, contanto que tivesse um abanador à mão.

54
"Não sei ler nem escrever". Durante muito tempo discutiu-se sobre se este depoimento devia ou não
ser tomado ao pé da letra. Os abrangentes conhecimentos de que Wolfram dá prova em suas muitas obras
fizeram prevalecer a opinião geralmente aceita de que, no caso, tratar-se-ia apenas de um recurso de expressão
levado ao exagero, destinado a ironizar outros autores que se valeram de sua formação acadêmica como pretexto
para alardear uma pretensa superioridade intelectual. Existe, contudo, outra maneira de explicar a atitude de
Wolfram ao se proclamar analfabeto, condição incompatível e inexplicável num poeta de tantos méritos. No seu
"Livro da Tradição" (Trad. de Maria Elisa Mascarenhas, SP/Rio, DIFEL, 1976, p. 174), Jean-Michel
Angebert relaciona esta confissão do épico alemão com a máxima maçônica: "Não sei ler nem escrever". Esta
aproximação parece dar consistência à afirmação dos que sustentam que Wolfram foi templário. Ora, é sabido
que em vários de seus altos graus a Maçonaria retomou a tradição e os ritos secretos da Ordem Militar do
Templo. NT
55
"Há, na verdade, muitas gentes..." Trata-se aqui, possivelmente, de referência a Hartmann von Aue
(1168-1210), um dos clássicos da literatura cortês que exaltou expressamente sua própria erudição. É autor das
epopéias cavaleirosas "Erec" e "Iwein" (compostas a partir do modelo do poeta francês de Chrétien de Troyes),
do conto "Gregório" e da novela "O Pobre Henrique".

103
LIVRO III
A INFÂNCIA DE PARSIFAL NO ERMO DE SOLTANE

Entristece-me o fato de que número tão grande de criaturas sejam

consideradas mulheres. Todas possuem claro timbre de voz mas a maioria tende

para a dissimulação e apenas umas poucas não têm esse defeito. Existem na

realidade dois tipos de mulheres e o fato de se lhes dar indistintamente a mesma

classificação sempre me aborreceu. Ó essência feminina, tua natureza se

caracteriza pela lealdade! Muitos consideram as dificuldades e a renúncia como

desprovidas de qualquer mérito. Mas a alma de quem, por lealdade, resignadamente

as suporta, estará livre das penas do Inferno.

Houve de fato uma mulher que por amor à lealdade tomou a si esse ônus

e terá por isso as eternas recompensas do Céu. Acredito que dificilmente haverá

104
alguém capaz de, ainda na força da idade, renunciar ao poder e às riquezas deste

mundo, visando as glórias celestes. Em todo o caso eu não conheço alguma -e isso

abrange homens e mulheres - capaz de fazer semelhante escolha. Mas a poderosa

Rainha Herzeloyde renunciou aos seus três reinos e assumiu o fardo de uma vida

desprovida de atrativos. Tão purificada estava que nem olhos nem ouvidos podiam

perceber nela qualquer defeito. O sol parecia-lhe apenas um fenômeno nebuloso.

Afastada de todos os prazeres deste mundo, a ronda dos dias e das noites passava-

lhe despercebia pois vivia imersa na tristeza.

A enlutada soberana retirou-se para a floresta, para ser preciso, para a

desabitada região de Soltane. Para ela as flores do prado não tinham qualquer

atrativo pois tamanho era seu desalento que nenhuma grinalda de flores - fosse ela

vermelha ou amarela - era capaz de atrair sua atenção. Para lá conduziu ela o filho

do nobre Gahmuret a fim de resguardá-lo dos perigos do mundo. Seus

acompanhantes tiveram que amainar a terra e cultivar os campos enquanto ela se

esmerava em desvelos pelo filho. Antes de ele começar a entender as coisas, reuniu

em torno de si seu séqüito, homens e mulheres, para lhes determinar que não

fizessem qualquer referência a cavaleiros, caso tivessem amor à vida. "Se o dileto

do meu coração tivesse alguma notícia sobre a vida dos cavaleiros isso implicaria

graves sofrimentos para mim. Sede pois sensatos e não lhe digais coisa alguma

sobre as coisas da cavalaria." Isso, sem dúvida, não seria fácil.

O menino criou-se, pois, inteiramente apartado do mundo, na erma

região de Soltane e privado da educação a que teria direito como príncipe. Em

apenas um aspecto as coisas se comportaram diversamente. Com as próprias mãos

105
preparou arco e flecha e abateu muitas aves. Mas quando abatia um pássaro que

antes cantara sonoramente, então arrancava-se os cabelos e cheio de desespero

punha-se a chorar. Ele próprio era bem parecido e de boa constituição física. Todas

as manhãs lavava-se num regato que corria junto à campina. Ele viveria sem

cuidados se não houvesse o canto dos pássaros, que lhe calava tão fundo no

coração e lhe desatava a alma infantil para estranhas ânsias. Chorando

amargamente voltava então correndo para junto da rainha, que lhe perguntava:

"Alguém te fez alguma coisa? Afinal tu estiveste apenas lá fora na campina." Mas

como sói acontecer com as crianças, ele não conseguia dar uma explicação

satisfatória.

A rainha o seguiu por muito tempo até que um dia o viu parado, com o

olhar cravado na copa das árvores, a escutar o canto dos pássaros. Então notou

como ao som desse canto o filho ficava com a respiração suspensa, dominado por

um impulso atávico e uma ânsia irreprimível. Sem saber exatamente por quê o ódio

da senhora Herzeloyde voltou-se contra os pássaros, deliberando reduzi-los ao

silêncio. Com esse objetivo determinou a seus camponeses e servos que

apanhassem e matassem todos os pássaros. Mas estes mostraram-se mais

expeditos que os esbirros e alguns deles, tendo escapado com vida, puseram-se a

cantar com redobrada disposição.

Foi então que o menino perguntou à rainha: "Que tipo de falta se imputa

aos pássaros?" E exigiu que daquele momento em diante fossem deixados em paz.

Sua mãe beijou-o então, exclamando: “estou eu a transgredir os mandamentos de

Deus Altíssimo. É justo que os pássaros desistam de seu alegre cantar por minha

106
causa?" Mas o menino foi logo perguntando: "Mãe, explica-me o que vem a ser

Deus."

"Meu filho, quero dar-te uma idéia muito precisa a respeito d'Ele. Ele

resolveu assumir forma humana e Seu aspecto é mais fulgurante que o claro dia.

Toma nota desta lição, meu filho: Se um dia te encontrares em situação difícil, deves

implorar Sua ajuda, pois Ele, na Sua lealdade, tem assistido constantemente a

Humanidade. Um outro é denominado o príncipe das trevas. Além de negro, é

invariavelmente desleal. Dele e das vacilações dúbias deves acautelar-te." Era deste

modo que a mãe lhe explicava a diferença entre a treva e a luz. Depois disso o

menino se afastou correndo.

Aos poucos aprendeu a manejar o venábulo e com ele abateu muitos

cervos, o que resultava em benefício da mãe e de seus agregados. No inverno e no

verão empreendia ele caçadas bem-sucedidas e agora ouvi este fato espantoso:

quando matava uma caça graúda, para cujo transporte seria necessário uma mula,

ele colocava-a às costas e a transportava para casa.

O PRIMEIRO CONTATO DE PARSIFAL COM A VIDA CAVALEIROSA

Um dia vinha ele caçando em terreno formado por extensa ladeira. Tinha

acabado de quebrar um ramo com a intenção de servir-se de uma folha para imitar o

pio de chamamento peculiar a certo animal selvagem quando escutou o ruído de

cascos que procedia de uma vereda próxima ao local em que se encontrava.

107
Brandindo o venábulo, exclamou: "Que será? Mas ainda que estivesse a caminho o

próprio demônio, com toda a sua fúria insidiosa, estaria pronto a medir forças com

ele. Na verdade, minha mãe me contou coisas aterradoras a respeito dele mas

acredito que o que lhe faltou, mesmo, foi coragem." E, cheio de ardor combativo,

pôs-se em guarda.

Eis que vinham aproximando-se a galope três cavaleiros magnificamente

ajaezados e cobertos de armadura dos pés à cabeça, de sorte que o jovem foi

levado a acreditar seriamente que se tratava de deuses. Em conseqüência não

titubeou, mas caiu de joelhos no meio do caminho, exclamando: "Deus, ajuda-me,

porque tens o poder de me prestar socorro."

O cavaleiro que ia na dianteira irritou-se ao deparar com o menino

ajoelhado no caminho: "Este rapaz maluco de Valois detém nossa marcha a galope

largo."

As qualidades positivas de nós, bávaros56, distinguem igualmente os

homens de Valois. Se eles são ainda mais obtusos que os bávaros, sabem contudo

ser valentes numa briga. Quem se cria em um desses dois países é um modelo de

retidão e dignidade.

Naquele momento vinha-se aproximando a toda a brida um cavaleiro em

magnífica armadura que estava sem dúvida com muita pressa; cheio de ardor

combativo, vinha ele perseguindo os dois cavaleiros que haviam ganho boa

56
"Nós, bávaros...": Aqui o poeta assume claramente sua naturalidade bávara.

108
dianteira. Eles haviam raptado uma fidalga de seu reino, o que ele considerou uma

ofensa pessoal. Preocupava-o o desespero da moça que, abatida, seguia adiante

com seus captores. Três cavaleiros compunham seu séqüito. Montava um magnífico

castelhano e seu escudo encontrava-se em estado lastimável. Chamava-se

Karnahkarnanz e era Conde de Ulterlec. Ele exclamou: "Quem é que assim me

impede de prosseguir caminho?" E avançou sobre o menino. Mas a este parecia que

estava na presença de um deus. Tamanho fulgor ainda não havia visto. A orla de

seu manto roçava a relva úmida de sereno. Os estribos com loros de comprimento

adequado eram providos de guizos que retiniam. Quando movia o braço direito havia

ali também guizos que retiniam. Ele se comprazia com o sonoro retintim desses

guizos como acompanhamento sonoro dos golpes de sua espada pois agia com

rapidez na defesa de sua reputação de cavaleiro. Foi ajaezado de forma tão

magnífica que se apresentou esse poderoso príncipe.

Karnahkarnanz perguntou então a este que parecia a própria

quintessência da beleza máscula: "Meu jovem, acaso vistes passar por aqui dois

cavaleiros? A rigor eles já não merecem mais tal qualificação pois se acham

envolvidos em raptos de mulheres e atos desonrosos e são, portanto, infames. Eles

têm em seu poder uma jovem que raptaram."

Ao falar desse modo o menino o tomou por uma divindade, pois a

descrição que a senhora Herzeloyde lhe havia feito sobre a aparência de Deus

correspondia exatamente a essa figura luminosa. Por isso, convencido, exclamou

em voz alta: "Ajuda-me, Deus Misericordioso!" E seguidamente o filho do Rei

Gahmuret caiu de joelhos em atitude de adoração.

109
O príncipe replicou: "Não sou Deus, embora cumpra Seus mandamentos

de bom grado. Se tu olhares direito, verás aqui apenas quatro cavaleiros."

O menino tornou a perguntar: "Tu falas de cavaleiros - o que vem a ser

isto? Se não dispões de poder divino, dize-me então quem é que confere a

dignidade de cavaleiro?"

"Esta é uma prerrogativa do Rei Artur. Meu jovem, se conseguires chegar

à sua corte ele fará de vós um cavaleiro, em condições tais que para vós jamais será

motivo de embaraço. Quer-me parecer que sois de ascendência nobre."

Os heróis observaram-no então mais de perto e constataram que Deus

havia feito dele uma verdadeira obra-prima da natureza. Da narrativa fidedigna que

me foi dado consultar,eu deduzo que desde os tempos de Adão não existiu homem

mais bem parecido. Mais tarde seria ele enaltecido por todas as mulheres.

O menino continuou a perguntar e provocou com isso o riso dos

cavaleiros: "Nobre cavaleiro, que tipo de criatura és tu, afinal? Tu envolveste todo o

corpo com malhas." Ele apalpou as partes metálicas da armadura, examinou

atentamente a cota de malhas e opinou: "As jovens damas de minha mãe usam

seus anéis presos a um barbante e não assim, entrançados uns nos outros." E

prosseguiu na sua simplicidade: "Para que serve isto que te assenta tão bem? Não

consigo desprender nenhum deles."

110
O príncipe mostrou-lhe, então, sua espada: "Quando alguém me desafia

para o combate eu me defendo com a espada. E para proteger-me dos golpes do

adversário é necessário que rne vista deste modo. É preciso que esteja protegido

tanto contra golpes quanto contra lançaços."

Animado, o menino prosseguiu: "Se os cervos tivessem uma pele assim

meu venábulo não poderia feri-los. Com ele já abati muitos deles."

Os cavaleiros começaram a se irritar pelo fato de seu amo estar perdendo

tempo com esse jovem simplório. Mas o príncipe disse: "Deus te proteja. Ah, se me

fosse dado ter tua aparência! Deus teria feito de ti uma obra perfeita, se te tivesse

distinguido igualmente com a razão. Que Sua onipotência afaste de ti todos os

males!"

A seguir, afastou-se com os seus, chegando logo depois a um campo

cultivado onde deparou com os agricultores da senhora Herzeloyde. Viu como ali

grande número de pessoas vinha amainando a terra. Não podia ter-lhes sucedido

maior contratempo. Eles semeavam, gradavam e estimulavam os robustos bois com

o chicote. O príncipe cumprimentou-os com um cordial "bom dia" e lhes perguntou

se haviam visto uma jovem em situação e dificuldade. Eles prontamente

responderam a sua pergunta: "Hoje pela manhã passaram por aqui dois cavaleiros

com uma jovem que parecia estar profundamente abatida. Os que a conduziam

esporeavam as montarias afastando-se rapidamente." O raptor era um certo

Meljakanz. Karnahkarnanz o alcançou e lhe arrebatou pela força das armas a jovem

que estava extremamente deprimida. Ela chamava-se Imane de Ia Beafontane.

111
Enquanto os quatro heróis se afastavam rapidamente os servos ficaram

consternados, dizendo uns para os outros: "Que desgraça! Se nosso jovem amo

chegou a ver os elmos dos cavaleiros, marcados por golpes, então fomos muito

descuidados. Com muita razão a rainha nos fará ásperas reprimendas pois ele saiu

conosco hoje pela manhã enquanto ela ainda dormia."

O PRIMEIRO CONTATO DE PARSIFAL COM O MUNDO

Com efeito, a partir daquele momento ao menino não mais interessava a

questão de quem iria abater os cervos grandes ou pequenos. Correndo para junto

da mãe contou-lhe o que havia visto. Ao ouvir o relato do filho, ficou tão abalada que

caiu sem sentidos. Depois de recobrar a consciência e refeita do desmaio,

perguntou: "Meu filho, quem foi que te contou algo a respeito de cavalaria? Onde

soubeste dessas coisas?"

"Mãe, eu vi quatro homens de aspecto ainda mais deslumbrante que

Deus. Foram eles que me fizeram uma descrição da instituição cavaleirosa. É o Rei

Artur que fará de mim um cavaleiro, pois é inerente ao seu poder de soberano a

faculdade de conceder tal dignidade."

A soberana entrou em pânico e, sem sucesso, ficou à cata de algum

argumento inteligente capaz de demovê-lo de seu propósito. O que aumentou ainda

mais a angústia que tomara conta de seu coração foi a insistência do nobre e

insensato menino de pôr um cavalo à sua disposição. Finalmente disse de si para si:

112
"Não convém negar-lhe essa montaria mas será um cavalo bem ordinário." E a

rainha procurou desenvolver este raciocínio: "Os homens estão sempre dispostos a

se divertir à custa do próximo. Meu filho há de envolver sua figura magnífica em

roupa de palhaço. Se ele, vestido assim, for escarnecido e maltratado então

certamente voltará para mim." Ah, quão desmedidos foram seus sofrimentos!

A soberana escolheu, pois, uma peça de linho grosseiro e recortou para

ele calça e camisa. A calça cobria-lhe apenas a metade das pernas. Era a

indumentária característica dos palhaços, à qual não faltava nem mesmo o barrete.

Seus pés, ela os calçou com botinas de camponês, de couro cru. E uma vez mais a

rainha se lamentou em altas vozes, pedindo-lhe que ficasse por mais uma noite, pois

tinha alguma coisa a lhe dizer: "Não deves partir sem receber de mim alguns

conselhos. Se seguires por caminho ínvio, evita ultrapassar as águas turvas,

preferindo a travessia por águas claras e límpidas. Sê atencioso e cumprimenta

todas as pessoas que encontrares. Se algum homem idoso e cheio de experiência

se dispuser a te ensinar boas maneiras, não te irrites, mas segue prontamente seus

conselhos. Se obtiveres de alguma nobre mulher anel e cumprimento cordial, aceita,

pois essas coisas afastam os maus pensamentos. Não hesites em beijá-la e abraçá-

la firmemente. Se for casta e honrada experimentarás a felicidade e a nobreza de

sentimentos. Além disso é preciso que saibas, meu filho, que o orgulhoso e

intrépido Lahelin arrebatou a teus príncipes dois reinos - Valois e Norgals - que

deveriam caber a ti por direito de sucessão. Ele matou Turkentals, um de teus

príncipes, e mandou matar ou pôr a ferros muitos de teus súditos."

113
"Ele pagará por isso, mãe, se Deus o permitir. Meu venábulo fará jorrar

seu sangue a borbotões."

Ao amanhecer o jovem já havia tomado sua decisão: pretendia chegar à

corte do Rei Artur o mais rapidamente possível. A senhora Herzeloyde beijou-o e

correu empós ele. Quando a figura do filho, que tão empolgado se ia, começou a

desaparecer na distância, aconteceu algo sobremodo trágico. A pura e imaculada

senhora Herzeloyde caiu desfalecida e a dor dilacerou-lhe o coração de forma tão

cruel que lhe causou a morte. Sua morte tendo como causa o amor materno punha a

nobre mulher a salvo dos tormentos do Inferno. Que descanse em paz, pois foi uma

verdadeira mãe! Sólida raiz da verdadeira bondade, árvore florescente da modéstia

feminina! Assim iniciou ela a viagem para a outra vida, onde lhe estariam reservadas

as eternas recompensas. Ah, em nossos dias pessoas como ela não as há mais -

nem mesmo no décimo primeiro grau de parentesco. O que mais se vê é a

deslealdade generalizada. Mas uma mulher verdadeiramente fiel, mesmo quando se

vê abandonada pelo filho, deseja que ele siga por caminhos afortunados.

O belo jovem dirigiu-se inicialmente para a floresta de Briziljan57,

chegando a um arroio que mesmo um galo podia tranqüilamente atravessar. Embora

parecesse escuro, apenas em virtude das flores e da vegetação silvestre suspensa

sobre ele, o jovem não o atravessou. Como sua capacidade de raciocínio era

bastante limitada prosseguiu sua marcha ao longo do arroio durante o dia inteiro.

Passou a noite como pôde e ao amanhecer prosseguiu viagem, chegando a um vau

claro e límpido.

57
"Bríziljan": A floresta encantada dos bretões.

114
PARSIFAL E IECHUTE

Na campina que se estendia na margem oposta do arroio achava-se

armada uma magnífica tenda. Feita de veludo de três cores, era alta e espaçosa,

com preciosos galões recobrindo as costuras. Do lado pendia uma capa de couro

destinada a proteger a tenda em caso de chuva. No interior da tenda deparou com a

esposa do Duque Orilus de Lalant. A nobre duquesa jazia ali em sua fascinante

beleza e notava-se que era companheira de algum cavaleiro. A mulher adormecida

chama-se lechute. Sua boca, arma de sedução e causa dos tormentos do cavaleiro

sedento de amor, era de um vermelho muito vivo. Durante o sono entreabriram-se

seus lábios quentes e palpitantes de vida. Assim jazia ela ali, um verdadeiro

monumento de perfeição humana. Seus dentes miúdos, da alvura do marfim,

alinhavam-se perfeitos e sem falhas. Acredito que jamais ser-me-á dado beijar lábios

tão decantados. Em todo o caso, até agora não tive essa sorte. Uma coberta de pele

de marta negra cobria-a apenas até a altura dos delicados quadris. Devido ao calor

reinante, afastou a coberta no momento em que o amante se ausentou. Seu corpo

era bem proporcionado, como modelado por mão de artista que quisesse manifestar

através dela todo o seu talento. Foi Deus em pessoa que criou esse corpo

estonteante. A fascinante mulher deixou à mostra um braço esbelto e uma mão

alvíssima, onde nosso jovem descobriu um anel. O anel o atraiu irresistivelmente

para a cama, onde começou a lutar com a duquesa. É que ele se havia lembrado da

mãe e dos conselhos que esta lhe dera acerca do anel. O belo rapaz voou, portanto,

115
do tapete para a cama num salto. Quando sem percebê-lo, viu-se nos braços de

lechute, a casta e encantadora mulher ergueu-se sobressaltada pois a essa altura já

não era mais possível continuar dormindo. Envergonhada e indignada a nobre e

refinada dama exclamou: "Quem foi que me desonrou? Meu jovem, vós passastes

da conta! É melhor procurar outra!"

Embora a nobre mulher começasse a se lamentar em altas vozes ele

não fez caso de seus apelos, mas colou firmemente seus lábios aos da duquesa,

atraindo-a a si num violento abraço, além de lhe tirar o anel do dedo. Ao notar um

broche na sua camisa, arrancou-o com violência. Embora a fidalga fosse apenas

uma fraca mulher e a força do rapaz, comparada à sua, lhe parecesse a de um

exército inteiro, a luta foi renhida. Às queixas do menino de estar com fome, a

radiante dama reagiu assim: "Espero que não me devoreis. Se soubésseis o que vos

convém, preferiríeis outro alimento. Ali estão pão, vinho e duas perdizes que uma

jovem dama da corte trouxe, sem naturalmente contar com vossa presença."

Sem dar atenção ao que a anfitriã dizia, encheu diligentemente o

estômago e bebeu em longos tragos. Sua permanência ali parecia à dama

eternidade, pois o considerava uma criatura que havia perdido a razão.

Envergonhada, a duquesa suava de todos os poros.

A despeito disso observou-lhe: "Meu jovem, deixai aqui meu anel e meu

broche e parti sem demora. Se meu esposo voltar sereis atingidos por sua ira,

convindo-vos por isso afastar-vos sem demora."

116
Mas o ilustre jovem replicou: "Por que deveria eu temer a ira de vosso

marido? Mas se minha presença resultar em prejuízo para vossa reputação, partirei."

E para o desgosto da duquesa acercou-se da cama, beijou-a uma vez mais e,

montando, partiu sem dela receber uma palavra de despedida. Mas antes de se

afastar, disse: "Deus vos proteja. Foi este conselho que minha mãe me deu."

O jovem estava satisfeito com os frutos de sua pilhagem. Depois de haver

cavalgado durante algum tempo voltou à tenda aquele de quem agora vos quero dar

notícia. Pelas marcas que ficaram na grama molhada de sereno, percebeu que sua

mulher havia recebido visita. Algumas cordas da tenda também haviam sido

rompidas. A grama pisada indicava evidentemente a presença de algum pajem que

por ali havia passado. O distinto e renomado príncipe encontrou sua mulher na

tenda, mergulhada num estado de profunda depressão: "Ai de vós, nobre senhora-

disse o altivo Orilus - acaso não vos tenho servido com toda a lealdade? Vejo,

agora, minha reputação de cavaleiro coberta de vergonha. Vós tendes outro

amante!"

Com lágrimas nos olhos a dama repeliu a insinuação, protestando

inocência. Mas ele não deu crédito às suas palavras. Então, amedrontada, admitiu:

"Um parvo chegou aqui a cavalo. Já vi muita gente em minha vida mas nunca

deparei com pessoa tão bem parecida. Ele se apoderou de meu broche e de meu

anel."

"Ah, então ele vos agradou! Vós vos entregastes a ele." Ela, porém,

replicou: "Deus me livre! Pelos sapatos grosseiros e pelo venábulo, logo vi com

117
quem vinha lidando. Vós vos devíeis envergonhar de vossas palavras. Seria

inimaginável uma princesa entregar-se a um parvo."

O príncipe então respondeu: "Nobre senhora, nunca vos causei qualquer

desprazer. Acredito por isso que estais arrependida por haverdes renunciado, por

minha causa, à dignidade real para serdes apenas duquesa."

"Agora, essa posição de status revela-se para mim por demais onerosa.

Acontece que minha reputação de cavaleiro é tão conhecida que vosso próprio

irmão Erec, meu cunhado, filho do Rei Lac, vos quererá mal por isso. Todos

conhecem minha fama de cavaleiro de escol que ficou apenas ensombrecida

quando Erec me descavalgou em luta singular diante de Prurin. Em compensação

alcancei diante de Karnant58 honrosa vitória, quando numa justa na qual foram

observadas todas as regras de torneio o varri de seu cavalo. Minha lança furou seu

escudo com tamanho ímpeto que até vossa preciosa prenda foi empurrada para o

outro lado do escudo. Naquele tempo, nobilíssima senhora lechute, nem me

passaria pela cabeça que um dia pudésseis preferir outro amante. Podeis crer-me

que o altivo Galões, filho do Rei Gandin, foi igualmente morto por mim em combate

singular. Vós mesma estivestes presente quando Plihopliheri avançou contra mim,

obrigando-me a enfrentá-lo. Meu golpe o arremessou com tamanho ímpeto para a

retaguarda de sua montaria que nunca mais terá contato com a sela. Repetidas

vezes alcancei os louros da vitória, descavalgando muitos cavaleiros. Mas tudo isso

não me trouxe qualquer proveito, como o demonstra a situação do vergonhoso

desprestígio em que fui envolvido. Bem sei que cada um dos cavaleiros da Távola

58
"Karnant": Pátria e Erec e lechute, cujo pai Lac deriva seu nome de uma fonte de virtudes mágicas ali
existente. A história de Erec e lechute é tema da epopéia "Erec", concebido por Hartmann von Aue segundo
modelo homônimo de Chrétien de Troyes.

118
Redonda59 me odeia, desde que no certame pelo gavião60, em Kanedic, abati oito

deles diante dos olhos das muitas jovens damas presentes. Para vós conquistei

esse prêmio, para mim a fama. Vós vistes meu feito, como o viu o próprio Artur, em

cuja corte vive a doce Cuneware, minha irmã. Sua boca não poderá sorrir enquanto

seus olhos não avistarem o homem para quem estão reservadas as distinções da

glória suprema. Se um dia eu deparar com esse homem, então haverá uma luta

como a que sustentei hoje cedo, quando um príncipe me desafiou para combate

singular. Fui eu a causa de seu infortúnio pois meu lançaço causou-lhe a morte."

O COMEÇO DA VIA-CRUCIS DE IECHUTE

"Não é arrebatado pela ira que vos digo que muitos homens castigam

suas mulheres por faltas bem menores. Mas a partir de agora devereis esperar

muito tempo antes que volte a vos prestar meus serviços de cavaleiro ou vos

demonstre consideração. Nos vossos brancos braços em que encontrei amor nos

dias felizes eu nunca mais quero abrasar-me. Vossos lábios perderão a cor, vossos

olhos tornar-se-ão avermelhados, destruirei toda a vossa felicidade e ensinarei

vosso coração a lastimar-se."

A princesa fitou o príncipe e disse-lhe queixosa: "Tomai cuidado para que

vosso prestígio de cavaleiro não seja aniquilado por vosso comportamento. Afinal

59
A Tavola Redonda do lendário Rei Artur representou a aspiração última de numerosos teóricos da
instituição cavaleirosa. Somente os cavaleiros mais destacados e de inegável valor eram admitidos juntamente
com suas damas nesse grêmio seleto. Ali o próprio Rei Artur era apenas o primeiro entre iguais, refletindo a
idéia da igualdade que deve prevalecer entre todos os membros da confraria cavaleirosa. NT
60
"Torneio do Gavião". Na epopéia "Erec" (1185), de Hartmann von Aue, um gavião é instituído como
prêmio para a mais linda dama cujo cavaleiro sustentasse essa sua pretensão ao título em três combates
singulares.

119
sois leal, experiente e me tendes em vosso poder, podendo penalizar-me da forma

mais dolorosa. Antes, porém, ouvi minha justificação: por respeito às mulheres, sede

condescendente. Depois podereis castigar-me o quanto quiserdes. Preferiria apenas

que outro me matasse, a fim de que esse crime vos não pesasse na consciência.

Preferiria morrer, já que me odiais."

Mas o príncipe atalhou: "Vosso comportamento, minha senhora, vem-se

tornando por demais petulante. Mas não perdeis por esperar. A partir de agora não

mais haverá cama e mesa comuns. Não tereis outra vestimenta senão esta que

trazeis no corpo. Vosso freio será uma corda, vosso cavalo passará fome e vossa

sela ricamente ajaezada terá logo mais um aspecto lastimável." Com estas palavras

arrancou o xairel de veludo e partiu sua sela. A seguir reconstituiu os pedaços,

amarrando-os precariamente com uma corda. Apesar de sua pureza de costumes e

autenticidade de seu caráter, teve que suportar sua ira, que sobre ela se abateu

como um raio caído do céu sereno. A seguir ordenou: "Minha senhora, partamos. Se

localizar aquele que se aproveitou de vós, quero rejubilar-me. Enfrentá-lo-ei em

combate, ainda que, qual dragão feroz, expila fogo das narinas."

Abatida e desesperada a nobre mulher prorrompeu em amargo pranto.

Não era sua própria desdita, mas a aflita exasperação do marido que a afligia. Seu

amargor a fazia sofrer tanto que preferia morrer. Lamentai sua fidelidade, pois a

partir de então sua vida seria de tristeza imensa. As penas da senhora lechute me

comovem, ainda que as outras mulheres me venham a odiar por isso.

120
O PRIMEIRO ENCONTRO COM SIGUNE

Eles seguiram no encalço do jovem mas esse igualmente deu-se pressa.

O destemido rapaz nem suspeitava de que vinha sendo seguido. A todos que

encontrava pelo caminho cumprimentava, acrescentando: "Foi este o conselho que

minha mãe me deu."

Nosso parvo jovem vinha descendo uma ladeira quando diante de um dos

flancos do penhasco ecoaram os gritos desesperados de uma mulher, a qual parecia

estar a braços com a maior desgraça de sua vida. Aproximou-se rapidamente e

pôde então ver o que se vinha passando: acometida de supremo desgosto a

senhora Sigune61 arrepelava-se as longas tranças castanhas. Examinando com

maior atenção o quadro com que deparava, viu no regaço da jovem o falecido

príncipe Schionatulander. Esta era a razão de seu desespero.

"Se tristes ou alegres, minha mãe me recomendou que cumprimentasse a

todos. Deus vos proteja", disse o jovem. "Descubro em vosso regaço algo de infundir

pena. Como o cavaleiro ferido veio parar aqui?" Sem se impressionar com o silêncio

continuou perguntando: "Quem o traspassou? Foi com um venábulo? Ele parece

estar morto, nobre senhora. Não quereis dizer-me quem matou vosso cavaleiro?

Bater-me-ei de bom grado com seu matador, se ainda for possível alcançá-lo."

61
"Sigune e Schionatulander". No fragmento do "Titurel" (1215) Wolfram começou a esboçar o destino
desse infeliz casal de amantes, completado, posteriormente por Albrecht von Scharfenberg.

121
Com essas palavras o bravo rapaz pôs a mão na sua aljava que continha

grande número de lanças de arremesso. Estavam ainda em seu poder as prendas

que ele, na sua simplicidade, havia subtraído de lechute a título de lembranças.

Tivesse ele o fino trato do pai, teria buscado objetivos mais altos, ao deparar com a

duquesa solitária. Por sua causa vinha ela passando por duras provações, de vez

que por mais de um ano teria de suportar o desprezo do marido. Por esse motivo, a

mulher foi vítima de grave injustiça.

Agora ouvi o que tenho a vos contar a respeito de Sigune que tinha boas

razões para lamentar-se. Ela disse ao jovem: "Tu tens nobres sentimentos. Quero

louvar tua juventude afável e tua simpática aparência. Certamente terás uma vida

afortunada. Este cavaleiro não foi atingido por venábulo, mas tombou em combate

singular entre cavaleiros. Tu és uma criatura de bom coração, por demonstrares

tanta solidariedade." Antes de deixá-lo partir, perguntou-lhe como se chamava,

afirmando que sua aparência o revelava como obra perfeita do criador.

"Bon fils, cher fils, beau fils - é assim que me chamavam em casa."

Ao ouvir estas palavras, tornou-se claro para ela com quem vinha

tratando. Também a vós ele será apresentado, a fim de que identifiqueis o herói

desta narrativa que, naquele momento, se encontrava na companhia da jovem. Esta

de pronto exclamou: "Tu és Parsifal e teu nome quer dizer aquele que passou pelo

meio. Tal se deu porque tua mãe foi tão fiel que o grande amor abriu-lhe um sulco

no coração, já que teu pai a havia deixado só e prostrada na dor. Eu não te conto

isso para demonstrar conhecimento. Tua mãe é irmã da minha e por isso posso

122
revelar-te sem rodeios a verdade sobre tua origem. Teu pai era angevino, tua mãe

natural de Valois e tu nasceste em Kanvoleis. Posso fazer-te um relato em tudo fiel

aos fatos. Tu és também Rei de Norgals e deverias portar a coroa na capital desse

reino Kingrivais. Este príncipe foi morto por tua causa, porque ali defendia os teus

direitos. Homem gentil e vistoso, manteve-se fiel até o fim. Dois irmãos são os

responsáveis pelas arbitrariedades cometidas e que resultaram em teu prejuízo.

Lahelin te arrebatou dois reinos e Orilus matou em combate singular este cavaleiro,

teu primo. A mim ele lançou no desespero e na angústia. Este príncipe, natural de

teu país onde tua mãe o educou, serviu-me com toda a lealdade. Querido e valoroso

primo, ouve nossa história. Uma coleira de cão62 foi a causa de sua ruína. Ele

morreu em serviço, defendendo nossa causa e agora, saudosa, estou a me

consumir de amor por ele. Fui demasiadamente imprudente ao lhe recusar meu

amor e agora o destino adverso destruiu minha felicidade. Cabe-me, agora, amá-lo

na morte."

Ele respondeu de pronto: "Prima, afligem-me tuas penas e a grande

afronta de que fui alvo. Se puder, vingar-me-ei com satisfação." Ele literalmente

ardia por tirar desforço. Ela porém indicou-lhe uma pista falsa, temendo perdê-lo e,

em conseqüência, assumir o ônus de uma desgraça ainda maior. Seguindo pelo

rumo indicado, alcançou uma estrada real, larga e plana que conduzia à região dos

bretões. Ele cumprimentava a todos que encontrava pelo caminho, se montados ou

a pé, se cavaleiros ou comerciantes, acrescentando sempre que assim procedia

seguindo um conselho materno. Na realidade ela lhe dera um conselho sem

segundas intenções. Ao cair da noite, sentiu-se extenuado. Foi então que o jovem
62
"Coleira de cão". Schionatulander foi morto por Orilus em combate singular quando, atendendo a um
pedido inconsequente de Sigune, vinha seguindo um cão que passava em desabafada carreira, a fim de se apossar
de sua rica coleira e da respectiva trela.

123
inexperiente avistou uma magnífica casa habitada por um avarento, um traço

característico bastante comum entre pessoas de origem humilde. Era um pescador

sem coração. Premido pela fome o jovem acercou-se da casa e pôs seu dono a par

de sua aflitiva situação. Este, porém, lhe disse: "Não vos darei sequer metade de um

pão ainda que o peçais por trinta anos. Quem contar com meu espírito caridoso

perde tempo e acaba se cansando. Eu cuido exclusivamente de mim e de meus

filhos. Vós não tereis acolhida em minha casa. Agora, se tiverdes ouro ou jóias,

nesse caso poderei hospedar-vos." O jovem mostrou-lhe, então, o broche da

senhora lechute. Quando o rude plebeu avistou o mimo sua boca alargou-se num

sorriso acolhedor e disse: "Meiga criança, se quiserdes ficar conosco todos os que

moram nesta casa irão receber-vos com honras."

"Tu terás o ouro se me hospedares hoje e se amanhã me indicares o

caminho que conduz à corte do Rei Artur, que é meu objetivo."

"Farei isso" - replicou o bronco camponês - "pois nunca deparei com um

jovem tão bem parecido. Só por causa de tua beleza incomum, conduzir-te-ei à

Távola Redonda do rei."

O jovem pernoitou ali mas ao raiar do dia se pôs a caminho. Ele havia

aguardado com impaciência o raiar do dia. Seu anfitrião também havia madrugado e

iniciando a jornada tomava a dianteira. Parsifal seguia-o de perto a cavalo e ambos

tinham pressa.

124
PARSIFAL A CAMINHO DA CORTE DO REI ARTUR

Senhor Hartmann von Aue63, a senhora Ginover, vossa soberana, e o Rei

Artur, vosso soberano, à vossa casa se apresentará um hóspede enviado por mim.

Peço-vos por isso que não escarneçais dele pois ele não é violino, nem rata64 nos

quais se pode tocar à vontade. Os cortesãos devem lembrar-se de sua fina

educação e recrear-se com outras coisas. Caso contrário farei passar a nobilíssima

senhora Enite, juntamente com sua mãe Karsnafite65pela roda viva do escárnio de

sorte a nada mais restar de seu prestígio. Se me desafiarem recorrendo ao

sarcasmo será com sarcasmo que irei defender meu pupilo.

O pescador e o bravo rapaz haviam-se aproximado da capital o suficiente

para avistar Nantes à distância. O pescador então lhe disse: "Meu filho, Deus te

proteja! Presta atenção, esta é a direção que deves seguir!"

Mas o jovem matuto replicou: "Vai, prossegue conduzindo-me nesta

direção!"

"Isto vou-te ficar devendo. A sociedade da corte é tão refinada que ali o

aparecimento de um homem de baixa condição social poderá ser considerado como

falta grave." O jovem prosseguiu, pois, sozinho, atravessando uma campina estreita
63
"Senhor Hartmann von Aue". Alusão às epopéias cavaleirosas "Erec" e "Iwein", de autoria de
Hartmann von Aue, cujas figuras centrais são cavaleiros do Rei Artur.
64
"Rata". Instrumento de corda medieval, semelhante à cítara, provida de caixa de ressonância, cujas
cordas se ferem com arco.
65
"Enite e Karsnaflte". Personagens femininas da epopeia "Eric", de Hartmann von Aue. l 420

125
revestida de flores multicoloridas. Ele não havia sido educado por qualquer

Curvenal66 e como toda a criatura bisonha não tinha a mínima idéia sobre os

costumes da corte. Seus arreios eram de fibra de cortiça e seu cavalinho tão mísero

que suas pernas fraquejavam. Rotos e velhos eram seus arreios e nele próprio não

era possível descobrir qualquer vestígio de pele ou veludo. Dispensava as presilhas

para o manto que não tinha e no lugar da sobreveste trazia na mão seu venábulo.

Seu pai, que deixara fama de homem da corte, estava mais bem apresentado

quando sentado num tapete diante de Kanvoleis. Eis que vinha ao encontro desse

jovem, que nunca sentira o frio suor do medo, um guerreiro a cavalo. Ele o

cumprimentou com a expressão habitual: "Deus te proteja! Este foi o conselho que

minha mãe me deu."

"Que Deus retribua esta gentileza a vós e a ela, meu jovem", respondeu o

filho da prima de Artur. Este herói, educado por Utepandragun, vinha reivindicando

direitos de sucessão sobre a Bretanha. Era Ither de Gaheviez e tinha a alcunha de

cavaleiro vermelho. Sua armadura era de um vermelho vivíssimo que ofendia a

vista. Seu cavalo era vermelho e ágil e vermelhos eram seus arreios. Seu xairel era

de veludo vermelho e seu escudo era de um vermelho ainda mais vivo que o da

chama. Inteiramente vermelha era sua sobreveste, cômoda e bem talhada.

Vermelhas eram a haste e a ponta de sua lança e, segundo seu desejo, a lâmina de

sua espada, de têmpera especial, era igualmente vermelha. Este rei de

Kukumerland67 trazia na mão uma taça de ouro rubro com gravações artísticas que

ele havia retirado da Távola Redonda. Sua cútis era branca e seus cabelos

66
Na história de Tristão e Isolda, Curvenal é preceptor de Tristão. A versão mais conhecida dessa lenda é
a epopéia "Tristão e Isolda", de Gottfríed von Strassburg, redigida entre 1205 e 1215.
67
"Kukumerland". Ither de Gaheviez é apresentado como Rei de Kukumerland. Provavelmente o poeta
quis se referir a Cumberland.

126
vermelhos. Tomado de sincera admiração, assim se dirigiu ao jovem: "Quero louvar

tua simpática aparência! Foi certamente uma criatura sem mácula que te trouxe ao

mundo! Salve a mãe que te deu à luz! Jamais me foi dado ver tão máscula beleza.

Tu és o reflexo de uma verdadeira paixão, sua submissão e sua vitória ao mesmo

tempo. A vitória pressupõe uma felicidade plenamente realizada e a submissão à

saudosa angústia de uma mulher. Caro amigo, se teu destino for a capital gostaria

de merecer um favor teu. Dize ao Rei Artur e a seus cortesãos que eu

absolutamente não fugi. De bom grado estarei aqui à espera de todos que estiverem

prontos para o combate singular. Compareci diante da Távola Redonda para

reivindicar direitos sobre meu reino. Por este motivo subtraí a taça da Távola68,

infelizmente de forma tão descuidada que entornei o vinho sobre o regaço da

Senhora Ginover. Desisti de apresentar minha pretensão de forma habitual69 - um

feixe de palha chamuscado em sentido contrário à sua posição normal - temendo

sujar-me com a fuligem." E o intrépido campeão rematou: "Fiz isso não com

intenções predatórias. Uma testa coroada não recorre a tais expedientes. Amigo,

dize à rainha que eu a molhei por descuido e na presença de fidalgos que não

esboçaram sequer um gesto para impedir meu ato. Por que esses reis e príncipes

permitem que seu soberano pereça de sede? Por que não resgatam o cálice de ouro

que está em meu poder? Sua omissão será sua desonra."

68
"Subtrair da távola". A posse simbólica de uma propriedade se realizava quando o reivindicante
subtraía um objeto do adversário
69
"Apresentar minha pretensão". Tomava-se posse de uma terra sem dono acendendo uma fogueira.

127
PARSIFAL NA CORTE DO REI ARTUR

O jovem respondeu: "Transmitirei tua mensagem." A seguir afastou-se,

rumando para Nantes. No seu trajeto até o palácio foi seguido por uma multidão de

pajens curiosos. A corte vivia um de seus dias agitados. Em torno dele estabeleceu-

se logo uma confusão. Foi quando Iwanet, um jovem fidalgo, se apressou em lhe

oferecer amistosa ajuda. Nosso jovem disse-lhe então: "Deus te proteja. Foi este

conselho que minha mãe me deu ao me despedir dela. Mas eu vejo aqui tantos

Artures. Quem deles, afinal, fará de mim um cavaleiro?'' lwanet começou a rir e

disse: "O verdadeiro Artur não é nenhum destes! Mas tu o verás logo!" E sem perda

de tempo introduziu-o no palácio, onde se achava reunida a ilustre sociedade da

corte. Alteando a voz para sobrepujar o vozerio, Parsifal exclamou: "Deus proteja a

vós todos, senhores e, antes de quaisquer outros, o rei e sua esposa! Minha mãe

recomendou-me que saudasse particularmente esses dois e naturalmente a todos

que por seus feitos mereceram um lugar na Távola Redonda. Infelizmente ignoro

quem dentre vós seja o anfitrião. Um cavaleiro inteiramente vermelho mandou dizer-

lhe que o espera lá fora, em campo raso. Acredito que se trata de um desafio. Ele,

contudo, lamenta ter molhado a rainha com vinho. Ah, sentir-me-ia sobremodo feliz

se recebesse das mãos do rei uma armadura! Ela confere um aspecto tão

cavaleiroso!"

O alegre e despreocupado jovem foi envolvido pela multidão, sendo

empurrado de um lado para outro. Depois de observá-lo, firmou-se entre os

presentes a convicção de que nunca havia nascido criatura mais simpática. Deus,

por certo, estivera numa disposição de espírito particularmente feliz quando criara o

128
bravo e intrépido Parsifal. E mais essa obra-prima do criador, a quem ninguém

poderia querer mal, que agora levavam à presença de Artur.

A rainha igualmente o observou atentamente, antes de deixar o palácio,

onde suas vestes haviam sido molhadas com vinho. Artur o observou e assim se

dirigiu ao jovem parvo: "Deus vos pague esta saudação que eu de bom grado,

desejo retribuir com meus bens e minha vida. É com prazer que eu me declaro

disposto a isto."

. "Oxalá que assim fosse! Considero por demais demorado esse

processo que fará de mim um cavaleiro. Esta demora não me agrada de modo

algum. Não me façais, pois, esperar por mais tempo e armai-me cavaleiro!"

"Isso farei com muito prazer", respondeu o anfitrião, "se eu for digno

disso. Tu me agradaste tanto que além disso oferecer-te-ei ricos presentes. Eu o

farei com todo o gosto. Peço-te apenas que esperes por mais um dia a fim de que

possa preparar-te devidamente para esse ato."

Mas ao invés de se retirar o jovem bem-nascido perneteava

impacientemente de um lado para outro, e exclamou: "Eu não estou pedindo nada.

Se não me for concedida a armadura do cavaleiro que eu encontrei, todos os régios

presentes me são indiferentes. Estes minha mãe poderá oferecer-me que, afinal, é

uma rainha."

129
Artur, porém, explicou: "A armadura pertence a um homem de tamanho

valor que não me atreveria a oferecê-la a ti de presente. Ademais estou

profundamente entristecido desde que ele deixou de ser meu amigo sem que eu lhe

desse motivos para isso. Esse homem que ensombreceu minha alegria de viver

chama-se Ither de Gaheviez."

"Vós deixaríeis de ser um rei generoso se este presente vos parecesse

por demais precioso. Não hesiteis em lhe conceder", interveio Keye; "Deixai que

parta para o combate. Se é necessário que alguém recupere para nós o cálice, aqui

está o chicote e lá o pião70. Deixai pois que o rapazinho tome o pião na unha, a fim

de que as mulheres tenham motivos para louvá-lo. Ele terá que lutar muito para

superar prova tão difícil. Pouco se me dá a vida dos dois. Para caçar o javali é

preciso arriscar a vida dos cães."

'”Eu nada lhe recusaria se não temesse arriscar a vida daquele que devo

armar cavaleiro", explicou o benevolente Artur. A despeito disso prevaleceu a

vontade do rapaz, do que resultaria grande desgraça. Precipitadamente retirou-se

ele da presença do rei, seguido por pessoas de todas as idades.

KEYE CASTIGA CUNEWARE

Mas Iwanet o tomou pelo braço, conduzindo-o a uma galeria situada ao

rés-do-chão, onde olhou em torno. A galeria era tão extensa e profunda que pôde

70
Significa que "aqui está o chicote (Parsifal) e ali Ither (o pião)". NT

130
ver, ouvir e entristecer-se com o que iria passar-se a seguir. É que a rainha, cercada

de cavaleiros e damas, havia assomado à janela, donde ele passou a ser examinado

com curiosidade. Entre eles encontrava-se a bela e altiva senhora Cuneware. Ela

havia jurado que só iria rir novamente no dia em que avistasse o homem que tivesse

alcançado ou que iria alcançar a glória suprema. De fato, nunca mais riu até o

momento em que o jovem passou diante dela. Foi então que sua boca mimosa

soltou sonora gargalhada, atitude que resultaria em dano para suas costas. É que

Keye, o Senescal71, agarrou a senhora Cuneware de Lalant pelos cabelos e enrolou

firmemente suas longas tranças louras no seu punho, imobilizando-a. Sem que, pelo

juramento, suas costas estivessem sujeitas aos rigores do juiz, foram elas de tal

modo maltratadas pelo bastão do Senescal que este até se partiu. Enquanto isso o

estúpido Keye gritava: "Perdestes a compostura da forma mais vergonhosa mas eu

a recapturei e a reinstilarei em vós de modo que possais senti-la em todo o corpo. À

corte do Rei Artur compareceram muitos nobres campeões sem que esse fato vos

tivesse induzido ao riso. Agora a presença de um rapaz sem a mínima noção sobre

costumes cavaleirosos provoca vosso riso!"

A ira é causa de muitos males mas a faculdade de disciplinar a jovem

ninguém poderia ter-lhe conferido. Cuneware teve a compassiva solidariedade dos

amigos. Mesmo se o castigo tivesse atingido um homem armado, seria tomado

como acontecimento inacreditável. O fato era tanto mais grave por se tratar de

descendente de estirpe principesca. Certamente não teria sido vítima desse vexame

se ali presentes estivessem seus irmãos Lahelin e Orilus.

71
"Senescal". O Senescal era o supervisor administrativo da corte. Os quatro cargos mais importantes
numa corte medieval eram: o tesoureiro, o copeiro, o senescal e o marechal

131
Ao tempo vivia na corte o mudo Antanor que, dado o fato de não falar, era

tido como demente. Entretanto sua decisão de romper o silêncio estava vinculada ao

riso dela. Ele voltaria a falar quando a jovem que acabava de ser castigada voltasse

a rir. Quando esta efetivamente riu, voltou-se para Keye, dizendo:

"Por Deus, senhor Senescal, para vosso desencanto o jovem por cuja

causa maltratastes Cuneware de Lalant um dia ainda há de desagravá-la. Disso

podeis ter certeza!"

"Já que vossas primeiras palavras são de ameaça, elas vos trarão poucas

alegrias." E, ato contínuo, moeu Antanor com pancadas. Keye cochichou a resposta

nos ouvidos do "parvo" esperto, acompanhada de bofetadas. O jovem Parsifal, que

teve que assistir à humilhação de Antanor e da fidalga, ficou tomado de profunda

compaixão pelos padecimentos de ambos. Mais de uma vez fez menção de agarrar

seu venábulo mas diante da rainha havia-se formado tumulto tal que teve que

desistir do arremesso vingador. Iwanet despediu-se pois, do filho do Rei Gahmuret,

que sozinho partia ao encontro de Ither.

A MORTE DE ITHER

A este contou que não havia achado alguém que quisesse medir-se com

ele: "O rei, além disso, deu-me um presente! Eu lhe disse que derramaste o vinho

por descuido e que lamentas esse ato desastrado. Como ninguém quer medir-se

contigo, dá-me tua montaria e tua armadura. Ambas me foram dadas de presente lá

132
no palácio a fim de que possa tornar-me um cavaleiro. Tua recusa implicará um

combate entre nós dois. Dá-me, pois, voluntariamente, se fores sensato!"

O Rei de Kukumerland respondeu: "Se Artur te ofereceu minha armadura

ele deveria haver-te oferecido igualmente minha vida. Vê lá se és capaz de arrebatá-

la de mim! Como ele é generoso ao presentear os amigos! Na verdade cumulou-te

de favores mas teus serviços só agora serão devidamente recompensados!"

"Saberei merecer o que me pertence. Além disso foi-me dado de boa

vontade. Portanto entrega-me tudo e fim de conversa! Não quero permanecer por

mais tempo como escudeiro! Um cavaleiro quero ser!" E agarrando o corcel de Ither

pelo freio acrescentou: "Suspeito que sejas Lahelin, de quem minha mãe tem

queixas!"

Foi então que o cavaleiro inverteu a lança e com a ponta obtusa golpeou

tão violentamente o jovem que este, juntamente com seu matungo, foram

arremessados ao chão no meio das flores.

O herói em fúria o atingiu com a haste da lança tão rudemente que o

sangue espirrou. Parsifal, o jovem destemido, ergueu-se de um salto, tomado de

intensa fúria. Num abrir e fechar de olhos, agarrou seu venábulo. Pela fenda da

viseira do elmo desprovida de proteção a lança penetrou na órbita, atravessando o

cérebro até a nuca. E assim esse herói avesso a qualquer tipo de falsidade tombou

morto. A morte de Ither de Gaheviez fez muitas mulheres suspirarem, feriu-lhes os

corações e encheu-lhes de pranto os olhos. Aquelas que dele haviam recebido

133
provas de amor viam destruídas sua felicidade e alegria de viver. Para elas a

perspectiva era o sofrimento.

O simplório Parsifal revirou o morto de um lado para outro, sem descobrir

forma pela qual poderia tirar-lhe a armadura. Era uma situação singular. Suas belas

e brancas mãos revelaram-se incapazes de desabotoar a presilha do elmo e de

desatar ou romper os cordões que prendiam as grevas. Foi então que o corcel do

morto e a pileca de Parsifal puseram-se a relinchar tão alto que o som foi ouvido

pelo pajem Iwanet, o parente consangüíneo da senhora Ginover, que se encontrava

junto ao fosso diante da cidade. Ao ouvir o rinchar do corcel e vê-lo sem o seu ginete

o elegante escudeiro acudiu, pois apesar de tudo simpatizava com Parsifal. Ali

encontrou Ither morto e Parsifal em situação de pateta embaraçado. Rapidamente

se aproximou, maravilhando-se com o memorável feito realizado por Parsifal em sua

luta com o Rei de Kukumerland.

PARSIFAL SE APOSSA DA ARMADURA DE ITHER

"Deus te pague! Mas, dize-me o que devo fazer! Sinto-me desnorteado.

Como vou tirar dele a armadura e colocá-la em mim?"

"Isso podes deixar comigo", disse o elegante Iwanet ao filho do Rei

Gahmuret. Diante da planície de Nantes o morto foi despojado de sua armadura que

foi colocada no vivo e ainda inexperiente e alheio ao mundo. Iwanet observou: "As

134
rústicas botas de camponês não combinam com as grevas. A partir de agora terás

que vestir-te como cavaleiro!"

Essas palavras desgostaram Parsifal. O bravo rapaz replicou:

"O que minha mãe me deu eu conservo em qualquer circunstância!"

Embora essa atitude parecesse incompreensível para o refinado Iwanet

ele se conformou sem se melindrar, afivelando sobre as rústicas botinas de Parsifal

as reluzentes grevas de ferro. Foram-lhe postas duas esporas de ouro, firmadas não

com correias de couro mas com galões bordados a ouro. Antes de lhe colocar a

couraça, prendeu-lhe as joelheiras. Foi assim que num abrir e fechar de olhos mãos

hábeis armaram o impaciente Parsifal dos pés à cabeça. Quando pediu sua aljava,

Iwanet explicou-lhe: "Não dou venábulo algum; a um cavaleiro é vedado o uso de

tais armas." Ao invés disso cingiu-lhe uma espada bem afiada e lhe mostrou como

devia desembainhá-la. A seguir entregou-lhe o perni-grande castelhano do herói

morto, que Parsifal, armado de ponto em branco e com a vigorosa agilidade que

ainda teremos oportunidade de admirar muitas vezes, montou de um salto, sem se

utilizar dos estribos. Iwanet não se cansava em instruí-lo de que forma, protegido

pelo escudo, devia dar combate ao adversário, observando todas as normas da arte

marcial. Quando lhe foi entregue a lança Parsifal, visivelmente mal satisfeito,

indagou: "Qual, afinal, é a utilidade desta coisa?"

135
"Se alguém te atacar tu transpassas seu escudo com a lança de modo

que se parta em estilhaços. Se fores repetidamente bem sucedido serás exaltado

diante das damas."

Minha narrativa dá conta de que, entre Colônia e Maastricht72, não havia

pintor capaz de oferecer um quadro convincente daquilo que ele, assim

magnificamente montado, oferecia de fato. Ele disse a Iwanet: "Caro amigo e

companheiro, tenho agora tudo que desejava. Volta agora para a corte, assegura ao

Rei Artur minha dedicação e registra queixa da grande afronta que me foi feita.

Passa-lhe às mãos seu cálice de ouro e dize-lhe que um de seus cavaleiros

ofendeu-me, pois maltratou a jovem que se riu de mim. Seus gritos de dor e sua

desgraça imerecida tocaram-me profundamente. Faze-me esta gentileza e sê

solidário com meu desgosto. Agora devo partir! Que Deus te proteja e que tome a

nós dois sob Sua proteção."

O LUTO PELA MORTE DE ITHER

Ele deixou Ither de Gaheviez assim atirado miseravelmente ao chão.

Ither, que em vida havia sido bafejado pela fortuna, conservou mesmo na morte sua

expressão amável. Se ao menos tivesse perdido a vida em combate regular entre

cavaleiros - fulminado por lança através do escudo -, teria sido mais fácil aceitar a

terrível desgraça. Mas foi morto com um venábulo! Iwanet o cobriu de flores à

72
“Maastricht”. Cidade dos Países-Baixos que serviu de residência aos reis francos e aos duques de
Brabante

136
semelhança de uma coberta. À sua cabeceira fincou o venábulo. O belo e íntegro

jovem havia espetado na ponta da lança um pedaço de madeira, de sorte que o

conjunto servia de cruzeiro. A seguir partiu, divulgando na corte a notícia que fez

com que as damas se desesperassem e os cavaleiros chorassem. Seus lamentos

demonstravam sua solidariedade. Muitos cortesãos externavam sua profunda

tristeza.

O morto foi conduzido em solene cerimonial para a cidade. Fazendo-se

acompanhar de seu ostensório a própria rainha deixou a cidade a cavalo. Diante do

corpo do Rei de Kukumerland que Parsifal havia matado a Rainha Ginover proferiu

estes lamentos: "Ai de nós, esta terrível desgraça virá certamente arruinar a real

reputação de Artur, pois aquele que deveria ser distinguido com a glória suprema da

Távola Redonda jaz agora morto diante de Nantes. Ele reivindicou sua parte na

herança e ao invés de recebê-la foi morto. Como membro do séqüito da corte do

Rei Artur nunca se pôde imputar-lhe qualquer tipo de perversidade. A falsidade e a

arrogância eram inteiramente estranhas ao seu caráter. Prematuramente tenho que

sepultar agora a expressão máxima do prestígio cavaleiroso. Seu coração, escrínio

seguro da verdadeira distinção, foi-lhe constante e bom conselheiro quando tratava

de disputar com bravura e hombridade o amor de uma mulher. Agora foi lançada

nos corações femininos a semente de uma angústia inaliviável. Nossa mágoa brota

de tua ferida. Ah, teus cabelos eram tão rubros que teu próprio sangue não seria

capaz de tornar tão vivo o vermelho luminoso das flores. Tua morte fez emudecer o

riso das mulheres."

137
Ao renomado Ither foi dado funeral de rei. Essa morte foi lamentada pelas

damas. Sua armadura fora causa de sua perdição, pois ela impelira o simplório

Parsifal a atentar contra sua vida. Mais tarde, tornando-se mais sensato, sentiria

remorsos por esse ato condenável.

O ENCONTRO COM GURNEMANZ

O corcel do falecido Ither resistia, sem se cansar, às maiores fadigas.

Cavalgadas sob o frio e o calor, sobre montes e vales, não eram capazes de fazê-lo

suar. Mesmo se a marcha se prolongasse por dois dias ininterruptos, não

necessitaria o cavaleiro estreitar a cincha por um furo. O jovem inexperiente, armado

de ponto em branco, percorreu num único dia uma distância que um homem

desarmado e com a cabeça no lugar não perfaria em dois dias. Como Parsifal não

sabia sofrear a montaria, deixou que ela galopasse o tempo todo e só raras vezes

troteasse. Ao anoitecer avistou a ponta de uma torre. Ao seguir adiante e perceber

no horizonte, como que surgidas do chão, as torres seguintes do edifício, o jovem

simplório acreditava que Artur os havia semeado e feito germinar do chão. Por isso o

jovem parvo disse de si para si: "Os servos de minha mãe nada entendem de

agricultura. O que plantam em meio à floresta não consegue crescer muito,

possivelmente porque ali chove muito."

O senhor desses domínios de que se aproximava chamava-se

Gurnemanz de Graharz. Diante do castelo, numa verde e extensa campina erguia-

se uma frondosa tília. Tanto o caminho quanto o corcel conduziram Parsifal

138
diretamente ao local onde o senhor do castelo e da terra vinha descansando

tranqüilamente. Parsifal, completamente esfalfado, deixava que seu escudo

bamboleasse de um lado para outro, o que não apenas atentava contra todas as

normas como ainda revelava falta de compostura cavaleirosa. O príncipe

Gurnemenz estava sentado ali inteiramente só e a crista da tília lançava sua sombra

sobre esse grande educador da aristocracia. O honrado Gurnemanz recebeu o

hóspede como convém. Como não via junto ao príncipe nem cavaleiros nem servos,

Parsifal correspondeu à saudação de forma tão simplória quanto descuidada: "Minha

mãe recomendou-me que aceitasse os conselhos de um homem de cabeça grisalha.

E, seguindo esse conselho, ofereço-vos meus serviços."

"Se viestes para ser instruído por mim, peço vossa amizade. Esta é a

condição implícita para quem deseja meus conselhos." Com estas palavras o

príncipe lançou ao ar o falcão amestrado que estava pousado em sua mão. A ave

elevou-se aos cimos do castelo e fez tinir um guizo preso às suas garras. Era o

mensageiro do príncipe pois imediatamente saíram do castelo, a toda a pressa,

numerosos jovens fidalgos. O príncipe ordenou-lhes que conduzissem o hóspede ao

castelo e ali o pusessem à vontade.

Este então observou: "Minha mãe tinha razão. Na companhia de um

homem de cabelo grisalho fica-se bem protegido."

139
ACOLHIDA HOSPITALEIRA

Os escudeiros o introduziram no castelo, onde deparou com muitos

nobres cavaleiros. Pediu-se-lhe que desmontasse junto ao amarradouro mas ele, na

sua ingenuidade, explicou: "Foi um rei que me armou cavaleiro e eu não desmonto,

haja o que houver! Entretanto desejo saudar-vos - foi este o conselho que minha

mãe me deu."

Eles agradeceram a ambos. Por mais exaustos que estivessem, cavaleiro

e montaria, após os cumprimentos, foi ainda preciso recorrer a muitos recursos de

persuasão para convencê-lo a desmontar e dirigir-se para um quarto. Foi então que

insistiram com ele: "Permite-nos que te aliviemos da armadura para que te ponhas à

vontade!" Sem demora livraram-no da armadura mas quando sob ela descobriram

as grosseiras botinas de camponês e as vestes de palhaço, recuaram

desorientados. Impressionados, comunicaram ao senhor do castelo a desagradável

descoberta e este, constrangido, não sabia o que fazer. Um dos cavaleiros fez então

esta observação indulgente: "Em verdade nunca me foi dado ver criatura de

tamanha perfeição física. Uma expressão de felicidade irradia de seu rosto, que

revela pureza de alma, simpatia e magnanimidade. No entanto sua roupa é uma

lástima. Indigna-me ver esta obra-prima da natureza envolta em tais andrajos. Salve

a mãe que deu à luz este jovem magnífico. Ricamente ajaezado, dava uma

impressão sobremodo cavalei rosa até que lhe retiramos a armadura. De resto,

descobri nele algumas equimoses, provavelmente resultantes de contusões."

140
O castelão respondeu-lhe: "A história toda parece estar relacionada com

uma promessa feita a alguma dama."

"Não acredito nessa hipótese, senhor! Considerando a maneira de se

comportar, nenhuma dama se atreveria a aceitar seus serviços, apesar de

aparentemente ser sobremodo amável."

"Examinemos então um pouco mais de perto esse jovem vestido de forma

tão singular", decidiu o senhor do castelo. Eles foram ter com Parsifal que, apesar de

ferido, encontrava-se em bom estado físico. Gurnemanz o cercou de cuidados que

um pai zeloso não dispensaria aos próprios filhos. Limpou e pensou-lhe os

ferimentos com suas próprias mãos. A seguir foi servido o jantar, que o jovem

hóspede esfomeado aguardava com visível ansiedade. Ele se havia levantado cedo

e partira com o pescador sem se alimentar. As feridas, a pesada armadura

conquistada diante de Nantes, a longa jornada desde a corte de Artur, o bretão,

onde igualmente nada lhe havia sido oferecido, deixaram-no esfalfado e faminto.

Quando o castelão o convidou para jantar com ele, comeu com muita disposição.

Tão avidamente se serviu dos diversos pratos que num abrir e fechar de olhos os

esvaziou. Gunemanz o observou com ar divertido, concitando-o seguidamente a

servir-se à vontade a fim de recuperar as forças.

Depois de Parsifal se haver saciado todos se levantaram da mesa:

"Presumo que estais cansado", observou o senhor do castelo. "Certamente

iniciastes cedo a jornada."

141
"Por Deus, isso de fato aconteceu. Minha mãe, por certo, ainda estava

dormindo, pois não é de madrugar."

O príncipe riu-se e o conduziu a seu quarto. Ali pediu que se despisse.

Parsifal obedeceu contra a vontade, de vez que não tinha outra alternativa. Sobre o

corpo nu desse jovem tão magnífico - jamais mulher alguma havia dado à luz outro

igual - foi posto um manto de arminho. Extremamente fatigado, Parsifal mergulhou

em sono tão profundo que nenhuma vez sequer mudou de posição; e assim

prosseguiu manhã adentro. Já próximo ao meio-dia o príncipe determinou que se lhe

preparasse, diante do tapete do quarto, o banho matinal, segundo os hábitos da

casa. Rosas desatando agradável aroma foram espalhadas na água da banheira.

Enquanto tais preparativos vinham tendo curso o hóspede despertou sem que fosse

preciso chamá-lo. A seguir o nobre e simpático jovem acomodou-se na banheira.

Embora não saiba quem as tivesse enviado, devo mencionar que ali

apareceu um grupo de jovens belíssimas e magnificamente trajadas, que mantinham

os cílios recatadamente abaixados. Com suas mãos brancas e delicadas lavaram-

lhe os ferimentos, tocando-os apenas de leve. A despeito de sua ingenuidade não

consideraram antipática sua maneira de se comportar. Dessa vez sua candura não

foi objeto de irritação, de modo que pôde fazer do banho um real motivo de prazer. A

atitude das jovens que dele se ocupavam era discreta, embora de jovial desinibição.

Enquanto isso Parsifal, tolhido pelo embaraço, não se dispôs a participar da

conversa despreocupada das moças. Na verdade não podia alegar que o ambiente

estava escuro pois as jovens, a par da luz do dia, irradiavam uma claridade

paralela. Em matéria de luminosidade o dia e a beleza das moças emulavam entre si

142
mas a de Parsifal sobrepujava a ambos. Quando se lhe passou a toalha de banho

não a recebeu, pois um invencível constrangimento o impediu de levantar-se sob o

olhar das jovens. Estas abandonaram o recinto ao perceberem a inconveniência de

permanecer ali. Acredito porém que teriam preferido levar a certeza de que tudo

estava em ordem mais abaixo pois a mulher é extremamente dedicada quando se

trata das necessidades de seu bem-amado.

Nosso hóspede retornou para junto do leito, onde se lhe pôs uma

vestimenta branca com cinto de seda entretecido de fios de ouro. Foram-lhe postas

também calças de cor escarlate. Agora sim, suas pernas bem torneadas ofereciam

um aspecto condizente! De cor escarlate, embora de tom um pouco mais escuro,

eram o casaco e o manto, ambos longos, bem talhados e forrados de arminho

branco com largas guarnições de marta cinza-escura. Tudo isso nosso jovem vestiu.

Prendia-lhe o manto um cinto magnífico, rematado por preciosa fivela. Mais

vermelhos que de hábito, seus lábios ardiam-lhe de excitação.

Eis que vinha chegando o anfitrião acompanhado de luzida comitiva de

cavaleiros. Ele cumprimentou o hóspede e os cavaleiros comentaram entre si nunca

terem visto jovem tão bem parecido, exaltando a mulher que havia brindado o

mundo com tão magnífico rebento. E não foi por mera cortesia mas plenamente

convictos que fizeram este comentário: "Se, como cavaleiro, dedicar-se ao amor

cortês, ver-se-á plenamente bem-sucedido. Sua distinta aparência assegurar-lhe-á

sempre amáveis cumprimentos e sucessos no amor." Antecipou-se assim uma fama

pela qual seria reconhecido por todos que com ele cruzassem.

143
O anfitrião o tomou pela mão, deixando com ele o recinto. O príncipe lhe

perguntou como havia passado a noite. "Senhor, eu certamente teria morrido se

minha mãe, ao se despedir de mim, não me houvesse aconselhado a procurar tua

ajuda."

"Que Deus recompense a ambos por essa opinião lisonjeira, senhor. Sois

sobremodo bondoso."

A seguir nosso herói simplório dirigiu-se à capela do castelo onde, em

homenagem a Deus e ao príncipe, foi celebrada uma missa. Na oportunidade o

anfitrião mostrou-lhe como, pela participação no santo sacrifício da missa, pelo sinal

da cruz e pela rejeição às tentações do demônio os homens se tornam capazes de

melhorar sua sorte. A seguir retornaram ao palácio, onde lhes foi servida a refeição

matinal. O convidado sentou-se ao lado do anfitrião e revelou uma vez mais seu

excepcional apetite. Foi então que o senhor do castelo em tom cortês fez-lhe esta

pergunta: "Meu senhor, não me leveis a mal se agora vos perguntar de onde

vindes."

Parsifal relatou-lhe então como se separara da mãe, a forma pela qual

obtivera o anel e o broche e como conquistara a armadura. O anfitrião, que conhecia

o cavaleiro vermelho, suspirou lamentando sua morte. Deu, por isso, ao seu

hóspede a alcunha de "cavaleiro vermelho".

144
EDUCAÇÃO CAVALEIROSA73

Terminada a refeição o senhor do castelo iniciou a educação do rústico

Parsifal, falando-lhe nestes termos: "Vós pairais como uma criança. Por que não

desistis de uma vez por todas de falar em vossa mãe, ocupando-vos de outros

assuntos? Sereis bem-sucedido se acolherdes meus conselhos. Darei agora início

à vossa instrução: Policiai diligentemente vosso próprio comportamento. Um homem

que fala sem refletir não serve para nada, muda de idéia a toda hora, perde o

prestígio e termina nas trevas do Inferno. Pelo que pude observar tendes aptidões

para liderança. Mas por mais alto que subais na vida não vos esqueçais nunca de

prestar ajuda aos necessitados. Minorai bondosa e generosamente sua miséria.

Sede sempre afável de trato e evitai a arrogância. A pobreza do pobre? é uma

pobreza envergonhada, uma situação duplamente penosa. Amparai-o com

solicitude pois quem minorar suas penas poderá estar seguro da graça de Deus.

Um homem assim encontra-se em situação muito mais difícil do que aquele que

publicamente implora a caridade dos que passam. Deveis saber, por outro lado,

administrar sabiamente as coisas. A prodigalidade insensata não é própria do

verdadeiro governante, da mesma forma que não o é o avaro acúmulo de bens. Em

tudo deveis achar a justa medida. Logo percebi o quanto necessitais de orientação.

Libertai-vos de vosso comportamento inconveniente. Abstende-vos de perguntas

desnecessárias mas quando alguém vos fizer perguntas astuciosas, reagi de pronto

com uma resposta ponderada. Vossos cinco sentidos são, afinal, bem normais.

Usai-os, portanto, e fazei, de vez, uso pleno da razão. Se constantemente aliardes a

73
"Educação cavaleirosa". A educação dos filhos da nobreza incluía o adestramento nas artes marciais,
normas de procedimento na corte. Esses objetivos educacionais, segundo o modelo provençal, podem ser
sintetizados desta forma: "Joi e jovén" (jovialidade e espírito jovem); "pretz e valor" (renome e firmeza de
caráter); "mezura e cortezia" (compostura e fino trato); "franqueza ed onor" (sinceridade e prestígio); "depórt e
solatz" (espírito festivo e sociabilidade); "dompnéi ed amor" (dedicação à dama e amor). N T

145
intrepidez com a misericórdia então estarei seguro de que haveis compreendido

meus ensinamentos. Se um cavaleiro vencido quiser render-se, poupai-o, caso não

vos tenha causado tamanha dor que, mesmo depois, o ressentimento contra ele

subsista. Ireis usar a armadura seguidamente. Ao tirá-la, retirai as manchas de

ferrugem do rosto e das mãos a fim de vos apresentardes de forma condigna. O

mundo feminino repara muito nisso. Se fordes, a um tempo, intrépido e jovial, então

conquistareis renome. Tende sempre as damas em vosso coração. Isso enobrece o

jovem cavaleiro."

"Um homem de verdade não as trai jamais. Se pretenderdes enganá-las

tereis oportunidade de iludir a muitas mas a infidelidade no amor desgasta em breve

tempo a reputação. O malfeitor que perfidamente fica à espreita detesta os galhos

secos na floresta, pois ao se partirem estralam, despertando o vigia. A luta origina-

se muitas vezes em soutos e matas densas. No amor é exata-mente assim. Ele

possui uma aguda sensibilidade para detectar a infidelidade e a perfídia e uma vez

caído em desgraça, a desonra abater-se-á sobre vós. Em conseqüência sereis

atormentado a vida inteira pelo remorso. Tomai a peito este ensinamento! Quero

mencionar aqui mais um detalhe sobre a natureza das mulheres: o homem e a

mulher são tão inseparáveis como o sol e o dia. Ambos brotam da mesma semente

e são inseparáveis. Tende isso sempre em mente."

Grato pelos ensinamentos o hóspede inclinou-se perante o anfitrião. Se

nunca mais fez referência à mãe, guardou-a, contudo, no recesso do coração. O que

o príncipe lhe disse, a seguir, resultaria em seu prestígio: "Aprendereis agora como

146
deve comportar-se um verdadeiro cavaleiro. Lembro vossa postura quando aqui

aparecestes. Conheço muitas paredes em que o escudo ficaria mais bem pendurado

que em vosso pescoço. Ainda há tempo para exercícios ao ar livre. Aprendereis ali a

arte do manejo das armas. Dai-lhe um cavalo! Trazei também o meu e os de todos

os cavaleiros! O jovem virá conosco e todos deverão ter à mão uma lança de torneio

nova e reforçada!"

O príncipe galopou campo afora, onde vinham sendo realizados

exercícios de equitação. Ele ensinou ao hóspede como, mediante o estímulo da

perna e da espora, compelir o cavalo a passar do galope ao ataque, como apontar a

lança e como proteger-se com o escudo do contragolpe do adversário. "Reparai" -

disse -"é assim que deveis fazer." Essa maneira de corrigir os erros de Parsifal

revelou-se mais eficiente que o emprego da vara de salgueiro com que se costuma

castigar o couro das crianças rebeldes.

Depois disso convocou um cavaleiro robusto que deveria entrar na liça

contra Parsifal. Para essa primeira quebra de lanças acompanhou seu protegido até

o local do encontro. Eis que pela primeira vez o jovem enfiou sua lança num

escudo e de forma que a todos surpreendeu pois arremessou simplesmente o

vigoroso cavaleiro à retaguarda de sua montaria. Um segundo combatente foi

mobilizado para enfrentá-lo. Enquanto isso Parsifal, regurgitante de audácia e força

jovens, agarrou outra lança, nova e reforçada. O simpático e imberbe jovem

demonstrou ser digno descendente de Gahmuret ao confirmar sua inata bravura.

Ele lançou o corcel ao ataque a toda a brida e assestou a lança por entre os quatro

147
pregos74 de modo que o cavaleiro do anfitrião não pôde se manter na sela,

estatelando-se ao chão. Logo se viam estilhaços de lança espalhados em toda a

parte, pois Parsifal descavalgou mais cinco adversários até que o príncipe o

reconduziu ao castelo. Mais tarde iria ele confirmar a reputação conquistada nos

exercícios de torneio, em combates reais. Todos os veteranos cavaleiros presentes

aos exercícios confirmaram sua destreza e vigor. Um deles opinou: "Agora nosso

príncipe irá livrar-se de seu desgosto e rejuvenescer uma vez mais. Ele deverá dar-

lhe em casamento sua filha, nossa futura soberana. Se for suficientemente sagaz,

terão fim suas tribulações. Apareceu-lhe o substituto dos três filhos que tombaram

em combate."

Quando, ao cair da noite, o príncipe regressou ao castelo, a mesa do

jantar já estava posta. Ele pediu à filha que participasse da refeição. Agora ouvi o

que o senhor do castelo disse, no momento em que a bela Liaze ingressou no

recinto: "Honra este cavaleiro com um beijo de boas-vindas pois é um protegido da

Fortuna. Quanto a vós, peço que permitais que ela continue na posse do anel, caso

use algum. Ela, aliás, não possui anel ou broche, pois ela não tem, como a fidalga

da floresta, alguém que lhe ofereça essas prendas. Aquela tinha quem lhe desse o

que mais tarde lhe subtraístes. Em todo o caso, convém que não vos aposseis de

nada que pertença a Liaze."

Embora sumamente envergonhado, beijou-lhe a boca, rubra como chama.

Liaze era uma jovem amável e recatada.

74
"Pregos do escudo". O dorso metálico era afixado ao escudo de madeira com quatro pregos, cujo centro
tradicionalmente servia de alvo ao cavaleiro atacante

148
A mesa era baixa e comprida e nela o dono da casa, sentado à cabeceira,

ficava em posição cômoda sem que alguém lhe tolhesse os movimentos. O hóspede

foi convidado a tomar assento entre ele e a filha. A esta determinou que com suas

brancas e delicadas mãos servisse o cavaleiro vermelho daquilo que fosse da

preferência dele. Cuidou de afastar as interferências para que os dois se tornassem

íntimos. A moça cumpriu docilmente tudo o que o pai lhe havia determinado. A

presença de ambos era uma verdadeira festa para os olhos. Terminada a refeição a

moça retirou-se tão discretamente como havia chegado.

PARSIFAL DESPEDE-SE DE GURNEMANZ

Cercado assim de carinhosa atenção, nosso herói passou ali quatorze

dias. Ele, porém, vivia mergulhado em inquietude e isso pelo seguinte motivo:

antes de se abrasar nos braços de uma mulher, pretendia realizar muitos feitos.

Parecia-lhe que tão nobre aspiração era penhor da suprema felicidade nesta e na

outra vida, no que sem dúvida estava certo.

Certa manhã apresentou suas despedidas ao anfitrião e deixou a cidade

de Graharz. O anfitrião o acompanhou até um certo trecho da estrada, com o

coração tomado de renovado sofrimento. Finalmente fez-lhe esta confidência: "Sois

o quarto filho que perco. Eu esperava que através de vós pudesse ressarcir-me da

perda dos três. Antes eram apenas três. Agora, se alguém quisesse cortar meu

coração em quatro pedaços e distribuí-los entre meus três filhos que tombaram

valorosamente e vós que partis, eu me declararia satisfeito com isso. Que no fim das

149
contas estejamos envoltos em luto é a sina da vida de cavaleiro. Dói-me

particularmente a morte de meu filho magnífico Schenteflurs. Ele perdeu a vida em

combate com Clâmide e Kingrun75, protegendo Condwarimurs que recusava a esses

pretendentes tanto sua mão quanto seu reino. Esse acontecimento causou ao meu

coração tantas feridas quantos são os vãos de uma cerca. Cedo demais relegais-me

à mais profunda desesperança. Ah, por que me não é dado morrer, depois que

desprezastes Liaze, a bela jovem, e meu próprio reino? Meu segundo filho era o

Conde Lascoyt, morto por Ider, filho de Noyt, por causa de um falcão. Isto roubou-

me toda a alegria de viver. Finalmente meu terceiro filho chamava-se Gurzgri.

Acompanhava-o nas suas andanças a bela Mahaute, cujo irmão Ehkunat lhe havia

dado em casamento. A caminho da capital Brandigan76 passou por Schoydelacurt77,

onde perdeu a vida. Ali foi morto por Mabonagrin. Por causa dessa desgraça perdeu

Mahaute sua radiante beleza e minha esposa, sua mãe, a vida. A dor inominável

pela perda do último filho causou-lhe a morte."

Parsifal declarou-se solidário com o infortúnio que o anfitrião havia

acabado de lhe contar circunstanciadamente. Apesar disso, objetou: "Senhor, sou

ainda completamente inexperiente. Somente depois que me houver tornado um

cavaleiro de verdade e com algum direito puder aspirar ao amor é que me dareis

vossa filha Liaze, a bela jovem, em casamento. Mas agora chega de lamúrias! Se eu

de fato reúno condições para vos libertar do sofrimento, isso certamente vai

acontecer um dia!" Com isso o jovem despediu-se do fidelíssimo príncipe e de seu

75
"Kingrun". Senescal de Clâmide.
76
"Brandigan": Capital de Iserterre, reino de Clâmide.
77
"Schoydelacurt". "As delícias de Corte", um parque magnífico. Quem nele ingressava sujeitava-se a
uma luta de vida e de morte. A aventura de Schoydelacurt é narrada minuciosamente na epopéia "Erec", de
Hartmann von Aue.

150
séqüito. A tríplice dor do príncipe teria um acréscimo de sofrimento, pois pela quarta

vez teria que suportar uma dolorosa perda.

151
LIVRO IV
A CHEGADA DE PARSIFAL A PELRAPEIRE

Parsifat partiu, pois, dali. Sua postura e seu comportamento eram os de

um verdadeiro cavaleiro mas uma grande inquietação oprimia-lhe a alma. As

distâncias pareciam-lhe por demais restritas, as larguras estreitas, o verde das

árvores e das campinas pálido e o rubro de sua armadura desbotado. As emoções

embaraIhavam-lhe a vista. Depois de libertar-se da candura e da rusticidade, certos

traços característicos herdados de Gahmuret o mantinham sob constante tensão.

Como que compelido por tenaz, sua lembrança fixava-se na bela Liaze, a moça

atraente que o distinguira de todos os modos. Apenas seu amor não lhe havia

concedido. Absorto em pensamentos, deixou que o corcel o levasse na direção e no

ritmo que quisesse, troteando ou galopando. Na floresta pela qual seguia não havia

sinais de cruzamento nem de cercas e de carris. Assim prosseguia, sem caminhos

nem atalhos, por regiões desabitadas e por vales e montes desconhecidos. Mas

como reza o ditado, quem cavalga ao acaso encontra, quando menos espera, a

estrada real. Sinais havia de sobra, na medida em que grandes troncos derrubados

poderiam constituir-se indicativo disso. Mas Parsifal não enveredava por pistas

falsas pois prosseguia sempre em linha reta até atingir, no mesmo dia em que

deixara Graharz e depois de transpor uma região de altas e inóspitas montanhas, o

reino de Brobarz. Já entardecia quando chegou a um rio encachoeirado que, com


152
grande fragor, seguia seu curso de rocha em rocha. Acompanhando seu curso

chegou à cidade de Pelrapeire78. O Rei Tampenteire havia feito da filha sua

sucessora no trono. Ao tempo, os súditos desta vinham passando por grandes

privações. A torrente do rio disparava qual seta bem talhada e emplumada, impelida

por corda de besta. A ponte de madeira, cuja parte superior havia sido remendada

em vários lugares por cavacos de madeira, conduzia a uma elevação na margem

oposta na qual se erguia a cidade. Logo após a ponte o rio desaguava no mar.

Pelrapeire achava-se pois bem protegida. Vede: como um balanço no qual as

crianças - quando se lhes permite - se embalam, assim a ponte oscilava, mesmo

sem estar suspensa por corda. No entanto essa situação extravagante nada tinha a

ver com arroubos juvenis.

Na margem oposta estava estacionado, com elmos afivelados, um grupo

não inferior a sessenta cavaleiros. Todos gritavam: "Alto, recuai!" Ameaçadoramente

brandiam as espadas, embora mal pudessem manter-se de pé, de tão debilitados

que estavam Vendo-o aproximar-se com porte régio pela planície em direção à

ponte, tomavam-no por Clâmide, com cujas visitas estavam acostumados. Ao ser

recebido por tamanho alarido, sua montaria relutava em pisar na ponte combalida,

por mais que a estimulasse a avançar. Mas Parsifal, a quem Deus poupou do

sentimento do medo, desmontou e puxou atrás de si, sobre as pranchas vacilantes,

o cavalo. Um poltrão dificilmente se teria animado a enfrentar luta tão desigual. Ele

teve que se manter atento à atitude ameaçadora dos adversários e ao mesmo

tempo cuidar para que o cavalo não tropeçasse. Inesperadamente as coisas se

acalmaram no outro lado. Com seus elmos, escudos e espadas reluzentes, os

78
Pelrapeire: Capital de Brobarz.

153
cavaleiros desapareceram na cidade e trancaram os portões atrás de si, por

temerem que ele estivesse sendo seguido por um grande exército.

Parsifal transpôs a ponte e cavalgando rumo ao portão atingiu, diante do

palácio altanado, um campo de batalha onde muitos haviam buscado a fama e

perdido a vida. Presa ao portão, descobriu uma argola com a qual bateu

vigorosamente. Ninguém deu atenção às suas pretensões de ingresso, exceto uma

bela jovem que de uma janela observava o intrépido guerreiro que lá em baixo vinha

aguardando ingresso. A recatada beldade gritou: "Se vindes como inimigo não

faremos caso de vossa presença. Mesmo sem vos levar em conta estamos sendo

rudemente assediados pela sanha de um agressivo exército."

Ele gritou em resposta: "Nobre senhora, aqui está um homem disposto a

vos ajudar no que puder. Que vosso cumprimento seja minha recompensa. Cá estou

eu, pronto a vos servir!"

A moça era suficientemente expedita para correr junto à rainha e dela

obter seu ingresso na cidade. Com isso cessariam as grandes tribulações pelas

quais vinha passando a cidade. Ao entrar nesta Parsifal deparou com grande

número de pessoas agrupadas à direita e à esquerda da rua. Prontos para o

combate estavam ali, dispostos em fileiras, fundibulários, tropas a pé e lançadores.

Ademais, viu muitos valentes infantes, os melhores do país, todos armados com

lanças sólidas, afiadas e em bom estado. Eu soube que, a mando dos capitães,

achavam-se ali igualmente reunidos comerciantes armados com machados e

venábulos. Mas todos eram magros e fracos de causar dó. A duras penas o

marechal da rainha abriu caminho em meio à multidão, conduzindo Parsifal ao pátio

154
do castelo transformado em praça de guerra. Em lugar nenhum vira tantas torres

que se alteavam sobre dormitórios, tantas fortificações, caminhos de fuga e bastiões

como ali. De todos os lados convergiam ao local cavaleiros a pé ou a cavalo para

dar-lhe boas-vindas. As faces cinzentas ou amarelecidas nesses homens causavam

uma impressão lastimável. Só a contragosto meu amo, o conde de Wertheim79, se

tornaria um cavaleiro b soldo da soberana local, pois de um soldo assim não teria

condições de viver. Os víveres haviam terminado, de sorte que os habitantes vinham

passando fome. Não havia queijo, nem carne, nem pão. Eles não tinham por que

palitar os dentes e ao beberem, seus lábios não apresentavam quaisquer vestígios

de gordura. Flácidos eram os ventres, os ossos dos quadris salientes e sobre suas

costelas a pele encarquilhava-se como couro-da-hungria. A fome os transformara

em figuras descarnadas. Em suas cozinhas nenhuma gota de gordura caía sobre a

brasa ardente.

O responsável por essa situação era o altivo rei de Brandigan, um varão

mui ilustre. Eles vinham pagando por isso, porque o pedido de casamento de

Clâmide havia sido recusado. Se ali por acaso caísse um barril ou um cântaro, era

inútil pensar que ele deitasse fora alguma gota de cerveja. Nenhuma carpa da

Truhendíngia80 se ouvia crepitar na gordura da panela. Seus ouvidos de muito

haviam sido privados de tão grato ruído. Eu não estaria no meu juízo perfeito se os

quisesse censurar por isso porque, lá onde muitas vezes desmonto, onde sou o

dono da casa, isto é, no meu próprio lar, o rato passa por decepções toda a vez que

tenta afanar sorrateiramente algo para se alimentar. Não adianta esconder algo de

79
Os domínios de Conde de Wertheim, protetor de Wolfram von Eschenbach, situavam-se na região do
Meno.
80
Carpa da Truhendíngia. O autor, por certo, quis referir-se à localidade denominada Wasserrüdingen, a
três milhas de Eschenbach, na Francônia, cujas carpas ainda desfrutavam de fama no século XIX.

155
mim num lugar onde, de resto, nada acho. Com demasiada freqüência eu, Wolfram

von Eschenbach, passo por isso81.

Mas agora chega! Já me queixei demais. Prossigamos nosso relato.

Tristes viviam os habitantes de Pelrapeire, entregues a uma miséria assustadora. Os

leais vassalos curtiam sua pobreza mas sua fibra inquebrantável fê-los persistir até o

fim. Essa aflitiva situação deveria comover-nos! Seus dias estariam contados, caso

Deus Todo-Poderoso não os viesse socorrer. Ouvi, pois, mais acerca da situação

dessa pobre gente, merecedora de compaixão. Penosamente constrangidos deram

boas-vindas ao campeão que regurgitava energia. Consideravam-no suficientemente

generoso para, num caso desses, não contar com grandes demonstrações de

hospitalidade. Com efeito ele não tinha a mínima idéia da extensão das privações

por que vinham passado. Estenderam um tapete sobre a relva, para ser preciso,

debaixo de uma tília cercada por muro, onde sua frondosa copa oferecia sombra

acolhedora. Ali os serviçais da casa aliviaram-no da armadura. Depois de livrar-se

na água do poço dos vestígios de ferrugem, puderam vê-lo surgir na sua verdadeira

aparência. Por um momento parecia-lhes que o sol brilhava menos, tomando por

isso o recém-chegado por um distinto forasteiro. Entregou-se-lhe um manto que era

exatamente igual àquele por ele usado em Graharz. A guarnição de marta tinha

ainda o cheiro de caça recém-abatida. Perguntou-se-lhe então:? “É vosso desejo ser

recebido agora pela rainha, nossa soberana?”

81
O autor faz aqui uma confissão de pobreza efetiva que contrasta com seu altivo comportamento de
"gran seigneur", encarnando um tipo humano que cultiva o código cavaleiroso e hábitos refinados. N T

156
PARSIFAL E CONDWIRAMURDS

Ao responder que era essa sua disposição, subiram com por uma escada

de muitos degraus. No alto da escada aviste uma face radiante, cuja formosura

encantou-lhe os olhos. Mesmo antes de receber boas-vindas a rainha parecia-lhe

um sol radioso Ela vinha sendo conduzida ao encontro do visitante pelos seu tios, os

Duques Kyot da Catalunha e o valoroso Manphilyot. por amor a Deus haviam eles

renunciado à carreira das armas. Os nobres, vistosos e grisalhos príncipes

acompanharam cortesmente a soberana até ao meio da escada. Ali recebeu ela o

nobilíssimo campeão com um beijo de boas-vindas, ocasião em que se tocara dois

pares de lábios rubros e brilhantes. A seguir tomou ela Parsifal pela mão

conduzindo-o para o interior do palácio, onde tomaram assento. As damas e os

cavaleiros que ali se encontravam de pé ou sentados haviam perdido

completamente as forças. A castelã e sua corte não tinham mais alegrias. A despeito

disso a radiante beleza de Condwiramurs sobrepujava a de todas as demais, seja a

de lechute, de Enite, de Cuneware de Lalant ou como quer que se chamassem

todas as mais renomadas beldades. O esplende de sua beleza sobrepujava a de

todas essas, acrescidas a das duas lsoldas82. Num confronto, Condwiramurs levaria

a melhor! já que possuía o "beaucorps" ideal que nós, alemães, chamamos de

"beleza física". Mulheres abençoadas haviam dado a luz aos dois que ali juntos

sentados estavam. Homens e mulheres contemplavam como que fascinados esse

par. Parsifal achava-se, pois em ambiente acolhedor. Quero agora revelar-vos os

pensamento que fervilhavam em sua cabeça: "Vede: Liaze está, simultâneamente, lá

82
“As duas Isoldas”. Referência à lenda de Tristão e Isolda. A primeira Isolda (esposa do rei Marcos) é
amante de Tristão; a segunda e sua mulher, a qual. Após uma separação forçada da amante, reconduz ao lar.

157
e cá. Deus deseja pôr termo às minhas tribulações, Vejo diante de mim, sentada,

Liaze, a filha do nobre Gurnemaz." A beleza de Liaze se reduzia a nada, quando

comparada aos encantos da jovem soberana do país. Deus nada lhe deixara faltar:

ela era qual rosa, úmida de doce orvalho, que irradiava um viço desatado em plena

florescência, a um tempo alvo e rubro, que deixava o hóspede seriamente

perturbado. Durante sua formação cavaleirosa o nobre Gumemanz lhe havia

recomendado abster-se de perguntas desnecessárias. Parsifal estava firmemente

decidido a observar ao pé da letra esses preceitos, de sorte que permaneceu

sentado ao lado da deslumbrante soberana sem dizer palavra. Afinal, por vezes

faltam palavras mesmo àquele homem que em mais de uma oportunidade desfrutou

de companhia feminina.

A rainha, porém, inquiriu de si para si: "Acredito que não caí no seu

agrado, porque emagreci muito. Mas, não! Seu silêncio talvez seja deliberado e

fundado em outros motivos. Afinal, ele meu hospede e cabe a mim como anfitriã

abrir o diálogo. Desde que tomamos assento vem ele contemplando-me com olhar

benevolente. Certamente deseja apenas dar prova de boa educação. Está visto que

me calei por tempo demasiado e devo, pois, usar da palavra." Dirigiu então ao

hóspede estas palavras: "Meu senhor, como anfitriã cabe-me iniciar o diálogo. Vós

retribuístes meu beijo de boas-vindas e, consoante me informou uma jovem,

oferecestes vossos serviços. Nunca recebemos hóspedes que tivessem essa

disposição, embora meu coração esperasse por esse acontecimento. Senhor,

gostaria de vos perguntar donde vindes."

158
"Senhora, deixei hoje os domínios de um homem que de mim se despediu

tomado de profunda tristeza. O príncipe, de lealdade Inalterável, do qual me separei,

chama-se Gurnemanz de Graharz. Em um dia percorri a distância que separa

Graharz de vosso reino." A isso respondeu a nobre soberana: "Não acreditaria se

outro me afirmasse ter vencido uma distância que um mensageiro expresso não

consegue percorrer em dois dias. Conheço vosso anfitrião, pois a irmã dele é minha

mãe. A beleza de sua filha certamente feneceu de tristeza, pois muitos dias

aflitos passamos juntos chorando e lamentando-nos. Se prezais a amizade de

vosso antigo anfitrião peço que vos contenteis com aquilo a que, de há muito, nos

acostumamos. Com isso prestais também a ele um serviço. Agora permiti que vos

relate nossos problemas pois estamos suportando privações assustadoras."

Foi aí que interveio seu tio Kyot: "Senhora, estou em condições de vos

enviar doze pães, três dianteiros, três presuntos, oito queijos e dois barris de vinho;

dada a emergência meu irmão também irá contribuir com qualquer coisa."

E Manphilyot explicou: "Senhora, posso enviar-vos outro tanto”.

Satisfeitíssima a jovem agradeceu a ambos. Os dois se despediram,

dirigindo-se às suas cabanas de caça, situadas nas proximidades. Os dois velhos

viviam num desfiladeiro da montanha, desarmados, sem serem molestados pelo

exército inimigo. Não muito depois apareceu um mensageiro com os víveres

prometidos, de modo que os debilitados pela fome puderam ser alimentados. Ao

tempo os habitantes do castelo não tinham o que comer. Antes da chegada desses

víveres muitos deles haviam perecido de fome. A conselho de Parsifal a rainha

159
fez distribuir aos famintos a carne, o queijo e o pão, sobrando para ela e Parsifal

uma única fatia de pão que repartiram equitativamente entre si. Os víveres

rapidamente consumidos salvaram a vida de muitos que estavam prestes a morrer

de inanição. Quero crer portanto, que se preparou para o hóspede um leito bem

macio. O alimento havia sido escasso e se fossem aves de rapina os habitantes do

castelo não teriam podido encher o papo com uma refeição assim. Tirante o jovem e

vigoroso Parsifal, que se recolheu a seguir, os demais continuavam a apresentar

sinais evidentes de graves privações.

Foi ele precedido de portadores de tochas de palha? Oh, não Ele foi

distinguido com iluminação bem mais adequada. Nosso belo jovem dirigiu-se a uma

alcova real magnificamente ajaezada que não apresentava quaisquer vestígios de

pobreza. Diante de tal leito estendeu-se um tapete. Parsifal não tolerou por mais

tempo a presença dos cavaleiros que o vinham acompanhando, solicitando-lhes por

isso que se retirassem. Aliviado dos sapatos pelos pajens caiu logo em sono

profundo até ser despertado por uma torrente de lágrimas que uma profunda aflição

fez brotar de dois olhos brilhantes. Quero contar-vos como isso aconteceu a fim de

afastar antecipadamente qualquer mal-entendido. No caso, a dignidade feminina não

vinha sendo posta em jogo, pois a jovem rainha — é dela que se tratava - era casta

e recatada. Os horrores da guerra e a morte de tantos vassalos que lhe mereciam

estima a haviam abalado tão profundamente que não pôde conciliar o sono. Para a

rainha não se tratava, pois, daquele amor que transforma virgens em mulheres. Ela

apenas buscava conselho junto a um bom amigo. Ademais vinha excepcionalmente

bem preparada; para ser preciso, vestida de alvíssima camisola de seda. Uma

mulher que vai ao encontro de um homem podia estar mais bem armada? A nobre

160
dama havia posto, além disso, um longo manto de veludo. Tomada de viva aflição,

seguia seu caminho. Deixou que suas damas, seus camareiros e todos os demais

prosseguissem no sono, sem molestá-los. Silenciosa e sorrateiramente deslizou

para dentro do quarto em que Parsifal repousava. O espaço diante do leito estava

profusamente iluminado pela luz das velas. Para lá se dirigiu Condwiramurs,

ajoelhando-se no tapete estendido diante do leito.

Ambos - ele e a rainha - ignoravam tudo acerca daquele amor que unia

fisicamente os corpos. Tal hipótese seria inimaginável, pois a moça era por demais

recatada para sequer pensar em tais gratificações. Ele a atraiu para junto do leito?

Claro que não, pois ele tampouco entendia dessas coisas. E no dia em que a tomou

nos braços isso aconteceu com a maior simplicidade de coração, numa espécie de

armistício, sem que os corpos se acumpliciassem. Nem um nem outro sequer

pensava nisso.

A jovem estava tão desconsolada que vertia copiosas lágrimas sobre o

jovem Parsifal. Ele se apercebeu de seus soluços e quando ao despertar deparou

com ela, sua reação foi a um tempo de alegria e de consternação. Erguendo-se,

disse o jovem à rainha: "Senhora, quereis zombar de mim? De joelhos deveis ficar

unicamente diante de Deus! Sentai no meu leito ou descansai nele e permiti que

procure alhures um local de repouso."

Ela, porém, respondeu: "Se me prometeis não me tratar de modo indigno

e nem vos aproveitar de mim, então gostaria de ir deitar-me a vosso lado."

161
Recebida sua promessa ela se acomodou junto dele na cama. Era ainda

alta noite, cedo demais, portanto, para que os galos se fizessem ouvir. Ademais os

paus do galinheiro estavam vazios. A carestia se encarregara de acabar com todas

as galinhas. A sofrida soberana perguntou-lhe se estava disposto a ouvir suas

queixas. Ela disse: "Temo que meu relato perturbe vosso sono e isso não seria nada

bom. O Rei Clâmide e seu Senescal Kingrun devastaram todos os meus castelos e

domínios, restando-nos apenas Pelrapeire. Meu pai, Tampenteire, deixou a mim,

pobre órfã, em situação de extrema dificuldade. Composto de ricos e pobres,

dispunha eu para pronto emprego de um grande exército de parentes, príncipes e

seguidores; mas a metade deles tombou na guerra defensiva. Como poderia eu

conservar-me alegre em face de tal emergência? A situação chegou a tal ponto que

prefiro perder a vida a entregar minha virgindade e minha liberdade a Clâmide,

tornando-me sua mulher. Ele matou o virtuoso e cavaleiroso Schenteflurs. Esse

irmão de Liaze era a quintessência da beleza máscula e isento de qualquer

falsidade."

A menção do nome de Liaze renovou no solícito Parsifal uma dolorosa

saudade. A afeição que lhe devotava fez emergir em seu espírito tristes lembranças.

Ele perguntou à rainha: "Senhora, acaso não há alguém capaz de vos ajudar?"

"Certamente, senhor! Eu me sentiria segura se não existisse esse

inarredável Senescal Kingrun. Em combate singular já matou muitos de meus

cavaleiros. Amanhã aparecerá novamente, convicto de que meus braços irão

finalmente abrir-se para seu soberano. Vós vistes meu palácio. Prefiro jogar-me da

torre de menagem para encontrar a morte no fosso a cair em poder de Clâmide.

Com isso evito que colha o triunfo final."

162
Sem vacilar Parsifal fez-lhe esta promessa: "Senhora, seja ele francês ou

bretão, ou venha de onde vier, podeis estar segura de que meu braço irá vos

proteger devidamente desse Kingrun."

3. A LUTA ENTRE PARSIFAL E KINGRUN

Entrementes a noite cedia a vez a um novo dia. A nobre dama ergueu-se

e, inclinando-se, agradeceu-lhe de coração. Furtivamente regressou a seu aposento

sem que alguém, exceto Parsifal, o notasse.

Ele próprio não mais conseguiu conciliar o sono. O sol vinha elevando-se

rapidamente no horizonte, irradiando seu fulgor através das nuvens. Parsifal ouvia o

repicar de muitos sinos. A população da cidade, que Clamide havia precipitado em

tamanha miséria, afluía à catedral e às igrejas locais.

O jovem levantou-se. O capelão da corte celebrou missa em homenagem

a Deus e à soberana enquanto ele se comprazia em contemplar a rainha até soar o

"Benedictus". A seguir pediu seu equipamento de combate e armou-se. Armado

assim, de ponto em branco, revelou-se por inteiro o rijo combatente que de fato era.

Entrementes avançava o exército de Clamide, precedido de muitas bandeiras.

Consoante assegura meu relato, Kingrun vinha à testa do exército montando um

corcel oriundo de Iserterre. O filho do Rei Gahmuret já o aguardava diante do portão

da cidade, acompanhado pelas orações de seus habitantes. Este seria seu primeiro

combate singular de importância.

163
Parsifal arremeteu com tamanho ímpeto que no violento entre-choque as

correias dos arreios se romperam e as montarias foram atiradas sobre seus jarretes.

Os contendores saltaram da sela e desembainharam as espadas. Para Kingrun esse

combate resultaria em ferimentos nos braços e no peito, além da perda de sua fama

de campeão que até aquele dia havia ostentado com pretensiosa arrogância.

Atribuía-se-lhe força tão excepcional que seria capaz de vencer simultaneamente

seis cavaleiros atacantes no campo de batalha. Agora, porém o punho de ferro de

Parsifal vinha-lhe dando o troco de tal forma que o consternado Senescal acreditava

que vinha sendo bombardeado incessantemente por projéteis arremessados por

catapulta. Mas era apenas a espada de Parsifal que fazia ressoar seu elmo. Parsifal

o abateu e lhe pôs o joelho sobre o peito. Kingrun admitiu, então, o que nunca havia

admitido antes: confessou-se vencido e prestou voto de submissão. Mas Parsifal

não aceitou esse compromisso, exigindo que o prestasse diante de Gurnemanz.

"Não, senhor; é preferível que me mates agora, pois fui eu o responsável

pela morte do filho dele, chamado Schenteflurs. Que mais queres? Deus te cumulou

de honras. Onde quer que seja relembrada esta tua vitória sobre mim poderás

gratificar-te com as recompensas da fama."

A isso respondeu o jovem Parsifal: "Ofereço-te, então outra alternativa.

Presta voto de submissão à rainha a quem teu soberano, em sua ira, causou

amargo sofrimento."

"Então estaria, mesmo, perdido. Eu seria retalhado pelas espadas e

reduzido a pó, pois sou o responsável pela miséria de muitos bravos dessa cidade."

164
"Então vai à Bretanha e presta teu voto de submissão de cavaleiro a uma

jovem que por minha causa passou por um sofrimento imerecido. Dize-lhe que, o

que quer que ocorra, nunca mais poderei desfrutar de alegria verdadeira / enquanto

não tiver reparado a injúria que lhe foi feita, trespassando um certo escudo com

minha lança. Dize a Artur, à sua esposa e à sua corte que estou sempre pronto a

servi-los. Dize-lhes ademais que não poderei privar da companhia deles enquanto

não houver reparado a afronta de que eu e aquela jovem fomos vítimas. Ela riu-se

de mim e só por isso passou por sérias dificuldades. Assegura-lhe que tem em mim

um dedicado servidor sempre pronto a lhe prestar qualquer serviço."

Desta vez Kingrun aceitou e os dois heróis se separaram. Parsifal, no

qual os habitantes da cidade haviam depositado todas as suas esperanças,

regressou a Pelrapeire, onde vinha sendo esperado com seu cavalo, que

entrementes fora recapturado. Os cidadãos de Pelrapeire seriam de fato libertados,

pois no exército sitiante passou a predominar uma insegurança geral depois de seu

comandante Kingrun ter sido vencido em combate. Parsifal foi levado à presença da

rainha, que o estreitou nos braços, o atraiu para junto de si e exclamou: "Jamais

serei mulher de outro homem senão deste que tenho em meus braços." E, animada,

ajudou-o a se desembaraçar da armadura. Depois do grande esforço não puderam

servir-lhe senão uma refeição modesta. Mas os habitantes da cidade aglomeravam-

se diante do local em que se encontrava, prestaram-lhe homenagens e pediram-lhe

que consentisse em ser seu soberano. A rainha também lhe pediu que se tornasse

seu amado esposo, já que na luta com Kingrun havia conquistado tão grande

reputação.

165
Foi então que do parapeito das ameias se avistaram duas velas pandas

que um forte vento impelia porto adentro. Os porões dos navios continham uma

carga que iria encher de júbilo todos os habitantes da cidade; ela consistia - Que

benevolente desígnio de Deus Onisciente! - unicamente de víveres. A massa faminta

abandonou seus postos nas ameias e se precipitou sobre as embarcações para

saqueá-las. Esses homens emagrecidos, mirrados, descarnados e de ventres

murchos podiam até voar como folhas secas levadas pelo vento. Entretanto o

marechal da rainha protegia as embarcações, ameaçando enviar à forca quem quer

que se apoderasse de alguma coisa. A seguir apresentou os mercadores vindos

com os navios ao seu novo soberano. Parsifal determinou que as mercadorias

fossem pagas pelo dobro de seu preço real. Embora os próprios mercadores

considerassem esse gesto uma liberalidade, assim foi feito. Agora no lar dos

habitantes da cidade gotejava uma vez mais a gordura da carne assada sobre os

carvões em brasa. Agora, mesmo eu aceitaria ser ali um cavaleiro a soldo, pois

ninguém pensava em ter cerveja, mas vinho, regando a mesa farta.

Agora permiti que vos descreva o recurso utilizado por Parsifal nessa

situação. Com as próprias mãos dividiu ele os alimentos em pequenas porções,

servindo os nobres que se achavam em torno dele, pois não desejava sobrecarregar

seus estômagos vazios. Tão judiciosa distribuição dos alimentos resultou para eles

em vantagem. Somente ao cair da tarde o afável e bem-intencionado Parsifal

permitiu-lhes uma segunda refeição.

166
4. O CASAMENTO DE PARSIFAL E CONDWIRAMURS

Foi então que se indagou dele e da rainha se desejavam coabitar, no que

ambos concordaram. Deitado a seu lado ele se comportou de forma tão retraída que

hoje em dia muitas mulheres ficariam mal satisfeitas com um homem assim. Ah,

neste nosso tempo elas tratam unicamente de se enfeitar de forma sedutora para

desse modo renegar a essência da verdadeira educação! Diante de estranhos

tratam de parecer castas, mas sua própria lascívia desmascara esse procedimento

hipócrita. Com maneiras provocantes atormentam elas os apaixonados. Um varão

leal e honrado, com senso de medida, dispensa consideração e respeito à amada.

Acertadamente raciocina ele da seguinte forma: "Servi a esta mulher anos a fio, na

esperança de um dia merecer a recompensa de seu amor. Eis que meu ideal se

realizou. Eu a tenho agora a meu lado. Eu me daria por satisfeito em apenas tocar

seu vestido com a mão. Se sofregamente exigisse mais, meu comportamento seria

injusto e desleal. Por que razão devo eu precipitá-la num drama de consciência e a

nós ambos numa situação de ignomínia? Com mulheres de escol convém manter

apenas um diálogo afetuoso antes de ir para a cama."

Assim permaneceu o jovem de Valois, que tinha o apelido de cavaleiro

vermelho, quieto e satisfeito ao lado dela. Nem sequer tocou a rainha. Ela, porém,

firmou-se na crença de que se havia tornado sua mulher desde então. E por amor a

ele, cingiu a esposa virgem no dia seguinte o toucado característico de mulher

casada e investiu seu bem-amado na suserania do reino com suas cidades e seus

castelos.

167
Dois dias e três noites viveram assim juntos e foram felizes no seu amor.

Ele, porém recordava com freqüência o conselho materno de se manter firmemente

abraçado à mulher e o ensinamento de Gurnemanz, segundo o qual homem e

mulher são uma só realidade inseparável. Eles entrelaçaram, pois, braços e pernas

e já que devo dize-lo: ele descobriu a doçura que havia nela e ambos se exercitaram

nesse jogo tão antigo e eternamente novo. Isso os encheu de euforia, sem sentirem

qualquer tipo de trauma.

5. O ASSÉDIO DE PELRAPEIRE

Ouvi agora o seguinte: Clamide, que se aproximava de Pelrapeire com

um poderoso exército, perturbou-se com as más notícias que chegaram a seus

ouvidos. Um mensageiro, cuja montaria sangrava nos flancos sob o estímulo das

esporas, transmitiu-lhes esta notícia: "No campo de batalha diante de Pelrapeire os

combates de cavalaria foram extremamente árduos. O Senescal Kingrun,

comandante do exército, foi vencido por um cavaleiro em luta singular e está a

caminho da corte de Artur, o bretão. Obedecendo às suas últimas ordens as tropas

suspenderam as hostilidades e se acham estacionadas diante da cidade. O senhor e

seus dois exércitos encontrarão Pelrapeire preparada para resistir. Eis que se

encontra na cidade um nobre cavaleiro desejoso de medir forças conosco. Vossos

combatentes comentam que a rainha teria convocado Ither de Kukumerland - um

dos cavaleiros da Távola Redonda do Rei Artur -, pois os símbolos de seu escudo

foram vistos triunfantes nos combates singulares."

168
O rei atalhou bruscamente o escudeiro: "Condwiramurs será minha, ela e

seu reino. Meu Senescal Kingrun assegurou-me que os sitiados, premidos pela

fome, entregariam a cidade e a rainha iria oferecer-me seu amor."

Como recompensa pela sua mensagem o escudeiro foi repelido com

indignação, enquanto o rei e seu exército retomaram impavidamente sua marcha.

Foi então que veio ao encontro do rei um cavaleiro, com a montaria completamente

esfalfada, confirmando a notícia. Só então o otimismo de Clamide, que acalentava a

certeza da vitória, arrefeceu. A notícia o atingiu duramente. Foi aí que um dos

príncipes de seu séquito observou: "Kingrun lutou unicamente por seus próprios

interesses e não pela causa de todos. Mesmo se tivesse sido morto não se

constituiria motivo suficiente para que os dois exércitos - este e aquele que sitia a

cidade - fossem moralmente afetados no seu ânimo de combater." Ele pediu a seu

soberano que não esmorecesse: "Nós certamente inverteremos a situação. Se nos

engajarmos a fundo faremos numerosos assaltos, até que lhes faleça a vontade de

resistir. Concitai partidários e parentes consangüíneos e investi com ambos os

exércitos sobre a cidade. Desceremos pelo declive do terreno e atacaremos os

portões com tropas a pé. Isso arrefecerá sua combatividade."

Tais conselhos foram dados ao rei por Galogandres, Duque de Gippones.

Ele, com efeito, conseguiu expor a cidade a duras provas, mas ele próprio encontrou

a morte no assalto às fortificações. Sorte idêntica coube ao Conde de Narant, a um

príncipe de Uckerland e a muitos destemidos cavaleiras a soldo do rei, que já

haviam morrido ao serem evacuados. Ouvi agora como os sitiados se defendiam.

Guiados por cordas, arremessavam do alto das muralhas grandes toras de madeira

que terminavam em pontas agudas, causando assim grandes estragos nas hostes

169
inimigas. Isto havia sido treinado antes de Clamide desfechar o ataque de represália

pela derrota sofrida por Kingrun. Além disso navios de abastecimento haviam trazido

o fogo grego83, com o qual os defensores puderam reduzir a cinzas máquinas de

assédio. Torres de assalto sobre rodas, aríetes, catapultas e colubrinas — tudo foi

destruído pelo fogo.

Entrementes o Senescal Kingrun havia chegado à Bretanha, onde

encontrou o Rei Artur em Karminal, seu castelo de caça, situado em Briziljan. Ali

explicou os motivos pelos quais Parsifal o havia enviado como prisioneiro e prestou

seu compromisso de submissão diante da Senhora Cuneware de Lalant. A jovem

ficou gratamente surpreendida com a solidariedade demonstrada pelo cavaleiro

vermelho com seu sofrimento. A novidade espalhou-se logo em toda parte e o gentil-

homem vencido acabou sendo conduzido à presença do rei. A ele e a seus

paladinos deu conta daquilo de que foram incumbido. Keye assustou-se, enrubesceu

e disse: "Es tu esse Kingrun de quem tanto se fala? Ah, muitos bretões foram

vencidos por ti, ó Senescal de Clamide! Embora teu vencedor se mantenha

irredutível, teus encargos aqui na corte ser-te-ão de grande proveito. Nós

administramos os serviços de cozinha - eu aqui, e tu lá, em Brandigan. Ajuda-me,

pois para que a senhora Cuneware se reconcilie comigo com a ajuda de um grande

doce!" Em outras formas de reparação ele nem sequer pensava.

Mas já falamos demais sobre este assunto. Após esta interrupção,

voltemos a Pelrapeire. Entrementes Clamide havia-se apresentado diante da cidade,

83
Fogo grego: líquido pastoso altamente inflamável, resultante da combinação de cal queimada, breu,
resina, nafta e, possivelmente, salitre, inventado por monges gregos do século XI. Na guerra naval contra árabes
e eslavos os bizantinos empregaram o fogo grego com sucesso sob a forma de jato com que borrifavam as
embarcações inimigas, incendiando-as, pois tinha a propriedade de arder na água.

170
desfechando sobre ela um ataque devastador. Os sitiados trataram de resistir com

bravura. Animados pela certeza da vitória e estimulados por novo espírito combativo

os heróis combateram tão obstinadamente que conseguiram rechaçar o ataque. Até

mesmo os portões eles abriram, empreendendo uma sortida com seu soberano

Parsifal liderando o ataque. Seus braços distribuíam golpes devastadores;

sonoramente retinia sua espada ao se abater sobre os elmos forjados de metal

duríssimo e todos os cavaleiros que vencia tombavam mortalmente feridos. Houve

casos em que os combatentes de Pelrapeire exerciam vingança, apunhalando os

inimigos vencidos pelo defeito da couraça84, até que Parsifal proibisse essas práticas

irregulares de combate. Ao perceberem sua irritação aprisionaram ainda vinte

cavaleiros antes de ser suspensa a luta.

Parsifal notou que Clamide com um grupo de cavaleiros se retraíra do

tumulto dos combates diante dos portões, passando a atacar o outro lado da cidade.

O intrépido jovem galopou por terrenos ínvios, contornou o exército e atacou o rei

pela retaguarda. Eis que havia chegado a hora em que já não era mais vantagem

estar a soldo de Clamide. Os defensores da cidade batiam-se tão obstinadamente

que seus escudos ficaram reduzidos a cacos, o mesmo ocorrendo com o de Parsifal,

feito em pedaços por golpes e lançaços. Os próprios inimigos não deixaram de

admirá-lo, ainda que sua combatividade lhes custasse caro. Galogandres, o porta-

bandeira, que repetidas vezes incitava os combatentes para o ataque, tombou

mortalmente ferido ao lado do rei. Quando o próprio Clamide passou a correr perigo,

ele e os seus foram acometidos pelo temor. Clamide determinou então que se

suspendesse o ataque, o que resultou em triunfo e fama para os defensores.

84
Defeito da couraça. O intervalo entra a borda da couraça e as outras peças que se lhe ligam.

171
Parsifal determinou que durante três dias fosse dispensado aos

prisioneiros o melhor tratamento possível. Enquanto isso passou a predominar o

desânimo no exército sitiante. Passados os três dias o jovem, magnífico e talentoso

soberano do país determinou aos prisioneiros que prestassem compromisso de

submissão e a seguir lhes falou: "Ó homens honrados, prometei-me que ireis

apresentar-vos novamente aqui, acatando minha convocação!" Ele permitiu que

levassem consigo suas armaduras e foi assim que voltaram ao acampamento do

exército sitiante. Embora suas faces coradas traíssem generosas libações de vinho,

foram recebidos pelos companheiros com manifestações de pena: "Coitados!

Certamente tivestes de passar fome!"

A isto os cavaleiros que haviam sido feitos prisioneiros responderam:

"Não nos lamenteis! A cidade dispõe de víveres suficientes para alimentar a

população e a vós seguramente por um ano, caso vos apraza permanecer aqui por

tanto tempo. Além disso nunca foi armado cavaleiro um varão tão magnífico quanto

este que agora é marido da rainha. Ao que parece é de nobilíssima estirpe, já que

demonstrou ser fiel depositário da honra cavaleirosa."

Ao ouvir tais palavras Clamide ficou desgostoso com os vãos esforços

que havia feito. Enviou por isso um mensageiro à cidade, anunciando o seguinte:

"Aquele que compartilhou o leito com a rainha deve apresentar-se aqui para um

combate singular, caso a rainha o consinta e ele próprio se anime a defendê-la e a

sua cidade, enfrentando-me. Sob tais condições será observado um armistício entre

os dois exércitos."

172
Ao ouvir tal mensagem de desafio Parsifal ficou satisfeitíssimo. O

destemido jovem replicou: "Asseguro-vos por minha honra que ninguém do nosso

exército virá em meu socorro, caso me veja em situação difícil." Concluiu-se pois um

armistício entre os dois exércitos enquanto os dois campeões se armavam. O Rei de

Brandigan montou seu castelhano chamado Guverjorz, protegido por inteiro por uma

couraça. Esse corcel, juntamente com outros presentes, havia-lhe sido enviado do

Norte, através do lago Ucker, pelo primo Grigorz, Rei de Ipotente. O portador desses

presentes havia sido o Conde de Narant, que se fizera acompanhar de mil

combatentes a pé, aos quais faltavam apenas os escudos. Caso se queira dar

crédito ao relato, vinham eles já com dois anos de soldo pago por antecipação. Além

disso, havia Grigorz enviado ao primo quinhentos cavaleiros veteranos, belicosos e

com os elmos afivelados, que deviam ajudar Clamide a cercar Pelrapeire

inteiramente por terra e por mar do sorte que seus habitantes passassem por maus

momentos. Parsifal cavalgou, pois, rumo ao local em que devia se travar o combate

decisivo e onde Deus devia revelar se lhe havia predestinado ou não a filha do Rei

Tampenteire. Empertigado avançou ele a galope sem obrigar a montaria a

arremeter. Para esse combate o animal havia sido bem equipado. Sobre a cota de

malha pôs-se-lhe uma coberta de veludo vermelho. Parsifal portava um escudo de

um rubro resplandecente e uma cota de armas de igual cor. O combate foi iniciado

por Clamide, que estava armado com uma lança curta sem polimento, com a qual

pretendia derribar o adversário. Tomando um longo impulso seu corcel Guverjorz

arremeteu com impetuosa fúria e foi então que se travou entre os dois jovens

imberbes uma luta singular em que foram observadas todas as regras da arte

marcial. Nunca homens ou animais se haviam empenhado em tão árdua contenda.

Os cavalos ofegavam de cansaço. Os cavaleiros lutaram até o total esgotamento

173
dos animais, que acabaram ruindo sob o peso de seus ginetes. Agora, cada qual

fazia saltar faíscas do elmo do adversário. Pausas não havia, posto que um não

permitia que o outro cobrasse alento. Os escudos foram reduzidos rapidamente a

cacos como se fossem penas atiradas buliçosamente ao vento. Apesar disso, não

deu o filho de Gahmuret qualquer sinal de cansaço, enquanto Clamide passou a

acreditar que os defensores da cidade haviam rompido o armistício. Exigiu por isso

do adversário que resguardasse sua honra, mandando suspender a atividade dos

fundibulários. É que os golpes de espada desferidos por Parsifal se abatiam tão

rápida e vigorosamente sobre ele que lembravam as pedras arremessadas por

fundibulos. O soberano de Brobarz respondeu: "Por minha honra, tu não és alvo de

tiros dos fundibulários. Se eu suspendesse o ataque, nenhum fundibuIo te castigaria

mais o peito, cabeça e pernas."

Clamide fatigou-se mais rapidamente que de costume. A despeito disso a

sorte da luta mantinha-se indecisa até que o Rei Clamido caiu derribado por um

potente golpe de Parsifal. O sangue que lho escorria da boca e dos ouvidos tingiu de

rubro a verde relva. Parsifal arrancou-lhe o elmo e o gorro de malha, enquanto o

vencido, sentado no chão e completamente aturdido, aguardava indefeso o golpe do

misericórdia. O vitorioso exclamou: "Nunca mais irás importunar minha mulher.

Agora poderás familiarizar-te com a idéia da morte!"

"Espera, nobre e intrépido guerreiro! Tu me venceste e com isto

multiplicaste trinta vezes tua fama. Com razão pode Condwiramurs considerar-me o

perdedor infeliz e a ti o afortunado vencedor. Libertaste teu país! Como um navio

que sem lastro perde a estabilidade, assim meu poder perdeu sua importância.

Minha fortuna de campeão se esvaneceu. Que proveito te trará minha morte? A

174
humilhação sofrida se refletirá no último de meus descendentes! Conquistaste a

fama e o sucesso! Não me matarás, pois agora não passo de um morto vivo. Dou

como perdida a mulher que me cativou o coração e sentidos e que indiferente

permaneceu a minhas solicitações. A ela e a seu país eu, desafortunado, devo

abandonar em teu favor!"

Foi então que o vencedor se lembrou de Gurnemanz, que o aconselhara

a aliar a energia máscula com o princípio da misericórdia. Fiel ao ensinamento, disse

a Clamide: "Poupo-te a vida, contanto que prestes ao pai de Liaze teu compromisso

de submissão."

"Não, senhor! Matei seu filho e com isso causei-lhe amargo sofrimento.

Não exijas isto de mim! Por causa de Condwiramurs empenhei-me em luta com

Schenteflurs e ele me teria morto se meu Senescal não me socorresse. Gurnemanz

de Graharz enviou o filho a Brobarz, à frente de um poderoso exército composto de

novecentos aguerridos cavaleiros com seus respectivos cavalos de batalha, bem

como mil e quinhentos infantes aos quais faltavam apenas os escudos. Eles

combateram valorosamente e me deram muito trabalho mas quase todos pereceram

na luta. Mais tarde essa guerra resultou para mim em perda de parte substancial de

meus efetivos, arruinando minha honra e minha fortuna. Em face disso o que mais

poderás exigir de mim?"

"Não desejo intimidar-te por mais tempo. Dirige-te à Bretanha. É onde já

se encontra Kingrun. Ali dize a Artur, o bretão, que pode dispor de meus serviços,

mas que apreciaria sua solidariedade no repúdio à humilhação que sofri no

momento da despedida e que desde então me perturba de forma obsessiva. Uma

175
jovem riu-se de mim e o fato de ter sido maltratada por minha causa atingiu-me

moralmente mais que qualquer outra coisa. A essa jovem prestarás teu

compromisso de submissão. Faze-lhe todas as vontades e dize-lhe que o acontecido

causa-me profundo desgosto. Se recusares, morrerás na hora!"

A isto respondeu o rei de Brandigan: "Entre as duas possibilidades, prefiro

a última. Tratarei de cumpri-la!"

Com esse compromisso despediu-se aquele cujo orgulho foi causa de sua

queda. Enquanto isso o heróico Parsifal encaminhou-se à sua exausta montaria.

Sem se servir do estribo, montou de um salto, de sorte que os restos de seu escudo

retalhado rodopiaram pelos ares.

Os habitantes da cidade estavam felicíssimos, mas no exército sitiante,

que havia assistido à derrota de Clamide, o desânimo era visível. Com os membros

e os músculos doloridos o Rei Clamide foi conduzido pelos seus ao acampamento.

Ali determinou que ou mortos fossem recolhidos em macas e sepultados. O exército

retirou se, mas o nobre Clamide tomou o caminho de Lover85.

6. CLAMIDE NO ACAMPAMENTO DE ARTUR

Em Dianasdrun os cavaleiros da Távola Redonda achavam-se reunidos

em torno de Artur, o bretão. Asseguro-vos que na planície de Dianasdrun havia mais

85
Lover. Território do rei Artur.

176
estacas de tendas que árvores no Spessart86. Em meio a seus numerosos paladinos

e muitas nobres damas vinha ele comemorando a festa de Pentecostes. Ali podiam

ser vista faustosas tendas bem como numerosos estandartes e escudos com seus

respectivos símbolos heráldicos. Uma situação desse tipo seria inimaginável em

nossos dias, pois quem teria condições de tratar do guarda-roupa de viagem de

tantas mulheres? E cada uma delas se consideraria em situação de desprestígio se

não tivesse o apaixonado a seu lado. Na verdade havia ali igualmente muitos

novatos e eu hesitaria em expor minha esposa a semelhante balbúrdia. Eu ficaria

preocupado com tantos desconhecidos em torno dela. Possivelmente um ou outro

se atreveria a lhe declarar sua ardente paixão, alegando que essas penas de amor

vinham toldando sua alegria do viver; dir-se-ia ainda disposto a servi-la sempre,

caso se dispusesse a libertá-lo desse tormento. Antes que tal acontecesse teria

preferido, com ela, arrepiar caminho.

Mas eis-me falando novamente de mim mesmo. Ouvi, pois de que forma

era identificada a tenda de Artur. Diante dela toda n sua corte achava-se

alegremente reunida em torno de uma mesa. Havia ali muitos nobres cavaleiros de

notório renome e número igual de jovens encantadoras que só pensavam em justas

e que usavam seus apaixonados como se fossem setas disparadas contra o inimigo

por corda de besta. Quando estes eram malsucedidos, compensavam-lhes a derrota

sofrida com demonstrações de simpatia.

O jovem Clamide encaminhou-se diretamente para o círculo formado

pelos cavaleiros do rei. A esposa de Artur e as outras damas contemplavam com

86
Spessart. Região montanhosa na Alemanha onde, em virtude da erosão, existem poucas florestas. Na
“Canção dos Niebelungen” é citada como “spehtshart” (Serra do Picapau).

177
espanto o cavalo de batalha e o cavaleiro armado de ponto em branco que, no elmo

e no escudo, exibia marcas visíveis de uma luta. Já estais a par da forma pela qual

havia sido compelido a se apresentar desse modo na corte de Artur. Depois de

desmontar abriu caminho em meio à multidão de curiosos até o local em que se

encontrava a senhora Cuneware de Lalant, à qual se dirigiu nestes termos: "Nobre

senhora, presumo que sois vós a quem devo prestar meus serviços. Na verdade

meu gesto não é inteiramente espontâneo. Por meu intermédio o cavaleiro vermelho

vos assegura que podeis dispor de seus serviços e que pretende reparar a

ignomínia de que fostes vítima. Ademais pediu-me que nesta oportunidade

apresentasse queixa diante do rei Artur. Se não me engano, fostes maltratada por

causa dele. Nobre senhora, desejo prestar-vos voto de submissão, consoante me

determinou o cavaleiro que me venceu. Caso concordeis, servi-vos-ei de bom grado,

já que nisso empenhei minha vida."

Ouvindo isso a senhora Cuneware de Lalant tomou-o pela mão calçada

com a manopla. A senhora Ginover, que na ausência do rei presidia a mesa,

encontrava-se nas proximidades. Keye, igualmente presente, ouvia a novidade. Um

calafrio percorreu-lhe a espinha para a indisfarçável satisfação da senhora

Cuneware. À vista disso, observou: "Nobre senhora, este cavaleiro foi compelido a

tomar este gesto, mas evidentemente foi mal-informado. Procedi consoante as

normas da corte e ao assim agir pretendi apenas corrigir vosso comportamento.

Segui meu conselho e determinai que o prisioneiro seja aliviado de sua armadura. Já

o fizestes esperar por tempo demasiado."

À vista disso a jovem encantadora pediu que se lhe retirasse o elmo e o

gorro de malha. Desatadas as presilhas e retirada a armadura, Clamide foi

178
reconhecido. Kingrun também o reconheceu de pronto. Tomado de desespero,

torceu as mãos até estalarem como achas de lenha seca. Levantando-se de um

salto, empurrou a mesa e perguntou a seu amo o que havia acontecido. Abatido,

Clamide respondeu: "Já nasci com falta de sorte. Perdi um exército magnífico.

Jamais criatura alguma, amamentada por seio materno, teve de suportar tamanha

perda. Entretanto, mais que a perda do meu exército aflige-me o fato de ter de

renunciar ao meu amor. A renúncia a que fui obrigado pesa-me tanto que para mim

já não existe alegria nem felicidade. Por causa de Condwiramurs meus cabelos nas

têmporas se tornaram grisalhos. Eu aceitaria qualquer castigo de Deus, mesmo

aquele que atingiu Pôncio Pilatos e o infame Judas, cujo beijo atraiçoou Nosso

Senhor, contanto que pudesse abraçar a rainha de Brobarz como minha amada

esposa. O que viesse depois me seria indiferente. Mas infelizmente ela desprezou o

rei de Iserterre! Meu país e meu povo jamais irão se conformar com isso. Em

Brandigan, meu primo Mabonagrin87 teve que sustentar também por tempo

demasiado os percalços de uma situação difícil. Vencido pela mão de um cavaleiro,

tive de apresentar-me a ti, ó Rei Artur. Que em meu reino muita coisa má te

sucedeu, tu bem o sabes. Esquece isso, nobre varão! Enquanto for prisioneiro, não

tomes contra mim qualquer medida de represália. Para isso invoco a proteção da

senhora Cuneware, à qual, como prisioneiro, estou subordinado." Mas o magnânimo

Artur concedeu-lhe o perdão sem mais delongas.

Quando as damas e os cavaleiros presentes ao acampamento souberam

da presença do Rei de Brandigan, convergiu ao local um multidão de curiosos pois a

notícia se havia espalhado com a rápido de um raio. O desanimado Clamide pediu

87
Mabonagrin. Esta passagem se refere, possivelmente, aos árduos combates sustentados por Mabonagrin
para defender Schoydelacourt.

179
gentilmente permissão para juntar-se aos demais cavaleiros: "Caso me julgueis

suficientemente digno, nobre senhora, apresentai-me a Galvão! Estou certo de que

ele não recusará vosso pedido. Sua concordância resultará em prestígio para vós e

para o cavaleiro vermelho."

Em vista disso o próprio Artur pediu ao filho de sua irmã que acolhesse

Clamide na roda de seus amigos, o que mesmo sem essa recomendação teria sido

feito. Amistosamente o grupo acolheu esse vencido mas honrado cavaleiro. Kingrun,

porém, disse-lhe em voz baixa: "Com os diabos! Afinal, nenhum bretão te venceu até

agora numa contenda. És mais rico e mais poderoso que Artur e tem sobre ele uma

vantagem a mais - a juventude. E justo que esse Artur se cubra de honra e glória

pelo simples fato de Keye, num acesso de cólera, ter maltratado uma nobre

princesa? Ela apenas obedeceu aos ditames do coração e honrou com seu riso

aquele que inquestionavelmente conquistou a fama suprema. Os bretões estão

agora convictos de que seu prestígio foi solidamente fortalecido. Ademais não

mexeram um dedo quando Ither, o rei de Kukumerland, foi levado morto para Nantes

ou quando meu amo sucumbiu ao golpes do adversário diante de Peirapeire.

Também a mim ele venceu em combate honroso. De fato o que mais ali se viu foram

chispas saltando dos elmos e espadas vibrando no ar." Mas na corte a opinião

unânime era a de que a atitude de Keye fora simplesmente lamentável.

7. PARSIFAL ABANDONA CONDWIRAMURS

Interrompemos aqui o foco narrativo para voltar nossa atenção para a

cena anterior. A terra devastada, na qual Parsifal agora ostentava a coroa, havia

180
sido reconstruída e logo voltaram a reinar, uma vez mais, jovialidade e espírito

festivo. Tampenteire, o sogro falecido, havia deixado a Parsifal reluzentes pedras

preciosas e ouro rubro em quantidade. Tais riquezas ele as repartiu entre os

necessitados do reino, onde era estimado em virtude de sua liberalidade. Uma vez

mais muitas bandeiras e novos escudos passaram a enfeitar os locais onde Parsifal

e os seus participavam de torneios. Em mais de uma oportunidade o jovem e

destemido herói fazia com que as forças estrangeiras que se haviam infiltrado nas

fronteiras do reino sentissem o peso de sua força. Seus feitos eram exaltados como

os mais memoráveis perpetrados em qualquer tempo.

Dar-vos-ei agora notícias da rainha, que desfrutava de uma situação

privilegiada. A nobre e encantadora jovem pôde realizar tudo que desejava neste

mundo. Seu amor era sólido e inabalável e sabia-se amada pelo marido na mesma

medida. Ao agora tratar das circunstâncias que impunham a separação dos dois

devo também dizer alguma coisa sobre os numerosos sofrimentos que para ambos

resultariam dessa atitude. Lamento, sobretudo, a situação da nobre dama. Depois

de Parsifal haver salvo seu povo, seu país e a ela própria de uma situação difícil

havia-lhe concedido seu amor. Certa manhã, na presença de muitos cavaleiros,

dirigiu-se a ela nestes termos: "Nobre senhora, gostaria de ausentar-me com vossa

permissão, a fim de saber o que se passa com minha mãe. Não sei se ela vai bem

ou mal e por isso gostaria de lhe fazer uma breve visita e de permeio, quem sabe,

passar por novas aventuras. Se puder servir-vos através de novos feitos

memoráveis, espero receber mais tarde as recompensas de vosso amor."

Pediu, pois, permissão para ausentar-se e como ela o amava muito,

consoante assegura meu relato, não quis contrariá-lo com uma negativa.

181
Determinou a seus cavaleiros que ali permanecessem e dispensando qualquer

acompanhamento, partiu só.

182
LIVRO V
1. PARSIFAL NO CASTELO DO GRAAL

Quem estiver desejoso de saber para onde Parsifal seria impelido por sua

sede de aventuras ouvirá, sem demora, coisas extraordinárias. Deixai, pois que o

filho de Gahmuret siga seu caminho. Por certo todas as pessoas de boa vontade

hão de desejar que ele siga por caminhos afortunados, pois estava escrito que teria

de passar por muitas situações difíceis antes de conquistar honras e sucesso. O que

mais que qualquer outra coisa lhe confrangia a alma era o fato de ter de separar-se

da esposa, a mulher mais encantadora e magnífica sobre a qual jamais se leu ou se

ouviu falar. A saudade por Condwiramurs o afligia tanto que teria perdido toda a

alegria de viver se não fosse um cavaleiro de muito brio. De rédea solta e sem

intervenção de sua parte o corcel o carregou transpondo troncos de árvores e

terrenos cobertos de liquens. A narrativa nos assegura que teria percorrido, num

único dia, distância igual à que uma ave seria capaz de superar em vôo ininterrupto.

Caso essa afirmação seja correta, venceu ele uma distância ainda maior que a que

teve de cumprir depois de haver fulminado Ither ou da que percorreu ao viajar de

Graharz a Brobarz.

Quereis agora atentar para as novas peripécias pelas quais passou? Ao

cair da tarde atingiu as margens de um lago, onde pescadores haviam ancorado sua

183
embarcação. O lago lhes pertencia. Eles se encontravam suficientemente próximos

da margem para ouvir as palavras de apelo que Parsifal lhes dirigia na medida em

que se vinha aproximando do local. Na embarcação viu um homem usando traje tão

magnífico que um soberano com jurisdição sobre todos os reinos da terra não teria

condições de possuir igual. Seu chapéu com forro confortável era ornado com penas

de pavão. A esse pescador Parsifal se dirigiu, pedindo que ele, como homem bem-

educado, lhe indicasse por amor de Deus onde poderia achar local de pousada.

Esse homem, cujas feições eram marcadas por profundo sofrimento, respondeu:

"Senhor, tanto quanto sei esta região, incluindo suas águas, é desabitada num raio

de trinta milhas, com exceção de um castelo, das proximidades do qual posso dar-

vos seguras notícias. Ademais a que outro lugar pretenderíeis chegar a esta hora do

dia? Ao chegar à base daquele penhasco dobrai à direita. Ao atingir o fosso tereis de

munir-vos de alguma paciência. Pedi ali para que baixem a ponte levadiça e vos

concedam ingresso."

Parsifal seguiu o conselho e, despedindo-se, prosseguiu caminho. O

pescador houve por bem dar-lhe mais um conselho: "Caso acerteis o caminho, eu

mesmo cuidarei hoje à noite de vosso bem-estar. Que vossa gratidão corresponda

ao grau de hospitalidade com qual ali sereis recebido. Mas acautelai-vos! Há ali

muitos descaminho e ao atingirdes a base do penhasco podereis facilmente

enveredar por uma pista falsa — uma situação pela qual não gostaria que

passásseis."

Parsifal partiu e diligentemente persistiu no caminho certo ala atingir o

fosso. Com a ponte levantada, estava o soberbo castelo ali diante dele, como

tivesse emergido repentinamente do chão. Não tinha por que temer ataques vindos

184
de fora a menos que os atacantes tivessem asas ou fossem carregados pelo vento

castelo adetro. Muitas torres e palácios, todos solidamente fortificados, erguiam-se

intramuros. Se todos os exércitos do mundo o atacassem seus defensores não

tinham por que preocupar-se com pão, ainda que o assédio durasse trinta anos.

Um escudeiro notou a presença do recém-chegado, indagando dele o que

desejava e donde vinha. Parsifal respondeu: "Vim enviado pelo pescador. Na

esperança de aqui receber acolhimento, inclinei-me diante dele num gesto de

agradecimento. Ele me instruiu para que me apresentasse aqui e pede que seja

baixada a ponte levadiça."

"Então, sede bem-vindo, senhor! Em consideração às ordem do

Pescador, sereis recebido aqui com respeito e solicitude."

Dizendo isso o escudeiro baixou a ponte levadiça. Parsifal troteou castelo

adentro, chegando a um amplo pátio que não apresentava qualquer sinal de ser

palco de jogos marciais, pois o gramado era verde e bem aparado. Ficou claro que

ali não se promoviam torneios. A exemplo do que ocorre na campina de Abenberg88,

nesse pátio jamais haviam tremulado estandartes conduzidos por participantes de

torneios. Embora de muito ali não se praticassem jogos marciais e todos os

moradores da fortaleza carregassem consigo um profundo pesar, todos se

comportaram como se tudo estivesse na mais perfeita normalidade. Todos os

cavaleiros se haviam reunido para dar boas-vindas ao visitante. Alguns pajens ainda

quase meninos agarravam diligentemente as rédeas de sua montaria pois cada um

88
Abenberg. O Castelo de Klein Amberg está situado a meio caminho entre o Spalt e Schwabach, a cerca
de duas milhas a leste de Eschenbach.

185
se esmerava em ser o primeiro a servi-lo. Eles seguraram seu estribo, de sorte que

teve de desmontar. Convidando-o a entrar os cavaleiros o conduziram ao quarto de

hóspedes. Num abrir e fechar de olhos livraram-no da armadura. Quando então o

imberbe Parsifal surgiu diante deles em todo o seu garbo e sua juventude, não

houve quem o não considerasse o filho dileto da Fortuna. Pedindo água, o jovem

removeu-lhe do rosto as marcas de ferrugem. Quando então o distinto hóspede

tomou assento junto deles a todos parecia que brilhava como um novo dia. Um

manto de preciosa seda árabe foi posto, solto, sobre seus ombros. Todos o

contemplaram com indisfarçada admiração e o camareiro observou em tom

obsequioso: “Este manto foi usado por minha soberana, a Rainha Repanse de

Schoye89 e ela o coloca à vossa disposição até que fiquem prontas as roupas que

vos serão oferecidas. Eu lhe pedi esse favor sem qualquer receio, por presumir que

sois um fidalgo de ilustre estirpe."

"Senhor, que Deus vos retribua as palavras amigas. Se vossa opinião for

correta posso julgar-me feliz por haver sido distinguido por Deus de forma tão

especial."

Eles mandaram servir-lhe um refresco e cuidaram de seu bem-estar. Os

cavaleiros, habitualmente curvados pela dor, mostraram-se em sua companhia

alegres e bem dispostos. Ele era tratado com consideração e servido com

liberalidade, posto que havia ali mais víveres do que Parsifal encontrara na sitiada

Pelrapeire. Sua armadura havia sido guardada em outro lugar o que, depois de

algum tempo, o aborreceu sobremodo. É que o loquaz bobo da corte, com sua

habitual petulância, exigiu em tom rude que o robusto hóspede se apresentasse

89
Repanse de Schoye (o Despontar da Alegria), irmã de Anfortas, Rei do graal, NT

186
incontinenti ao anfitrião, como se Parsifal tivesse provocado sua ira. Por causa

dessa brincadeira o jovem quase o matou. Como não tinha à mão sua espada,

ornada de lavores, cerrou os punhos com tamanho ódio que o sangue espirrou-lhe

dos dedos, molhando as mangas.

"Acalmai-vos, senhor", exclamaram os cavaleiros, procurando aplacar sua

indignação. "Aquele homem tem o direito de fazer suas brincadeiras, por mais tristes

que nós outros estejamos. Perdoai-o! Com isso ele quis dizer apenas que o

Pescador acaba de chegar. Deixai passar vossa ira e ide a seu encontro, pois sois

para ele um hóspede muito bem-vindo."

2. PARSIFAL DIANTE DO REI DO GRAAL

Entraram num palácio onde cem candelabros de muitas velas pendiam

sobre as cabeças dos que ali se achavam reunidos, enquanto nas paredes em torno

haviam sido firmados porta-velas menores. No salão, cem canapés forrados de

edredões haviam sido cuidadosamente dispostos pelos serviçais da casa. Cada um

deles oferecia espaço suficiente para acomodar quatro pessoas. Entre os canapés

havia espaço livre para circulação e diante deles haviam sido colocados tapetes

circulares. Afinal o filho do Rei Frimurtel90 podia permitir-se esse luxo. Ali havia ainda

algo mais que os moradores não consideravam propriamente um luxo: no salão

havia três lareiras de mármore de formato quadrangular em cujas grelhas

90
Filho de Frimurtel, Anfortas.

187
crepitavam achas de pau de áloe. Fogo tão soberbo e ainda por cima alimentado por

madeira tão nobre nunca havia sido visto, nem mesmo em Wildenberg91.

O castelão havia-se instalado num canapé próximo à lareira central.

Privado de todas as alegrias, consumia sua existência num sofrimento sem fim.

Quando o radiante Parsifal entrou no palácio. foi recebido amistosamente pelo

anfitrião. Não o deixando esperar por mais tempo, pediu que se aproximasse e

tomasse assento a seu lado: "Ficai aqui comigo. Temos tanta coisa em comum que

não conviria ocupardes um lugar mais adiante." Assim falava anfitrião,

constantemente atormentado pela dor. O fogo era alimentado ininterruptamente por

causa de sua enfermidade. Pela mesma razão vinha ele agasalhado com roupas

quentes: o casaco e o manto estavam interna e externamente forrados com pele de

marta. As partes mais insignificantes dessa pele de um negro cinza eram

sumamente preciosas. A boina que usava havia sido confeccionada com a mesma

preciosa pele de marta. Uma orla de ouro árabe contornava a boina em cujo centro

resplandecia um rubi.

Em torno dele haviam tomado assento muitos vistosos cavaleirosros, aos

quais foi dado assistir a uma cena comovente. Um escudeiro irrompia pela sala,

carregando consigo uma lança de cuja ponta brotava vá sangue, que escorria pela

haste, manchando a manga e a mão de seu portador. Foi então que se fizeram ouvir

no vasto pé tantos lamentos e choros que nem mesmo trinta povos teriam como

derramar tantas lágrimas. Ó escudeiro, portador da lança, deu uma volta completa

ao salão e se apressou em sair pela mesma porta pela qual havia entrado. Quando

91
Wildenberg. Nome de vários castelos na Francônia. Aqui se trata possivelmente do Castelo de
Wildenberg, situado nas imediações de Amorbach, e que fora sede do feudo dos senhores de Düme, protetores
de Wolfran.

188
o escudeiro e a lança – que tinham como objetivo manifesto lembrar aos cavaleiros

uma terrível desgraça - haviam desaparecido, as lamentações cessaram.

3. OS MISTÉRIOS DO GRAAL

Se assim vos aprouver dar-vos-ei agora notícia do tratamento cortês com

que eram distinguidos os convidados. As portas de aço da fachada principal foram

abertas e por elas entraram no salão duas jovens encantadoras. Eram duas moças

belíssimas que poderiam ser alvo das pretensões amorosas de qualquer varão que

se houvesse distinguido por seus feitos. Grinaldas de flores adornavam seus

cabelos louros que, em longos anéis, lhes desciam aos ombros. Cada uma trazia

nas mãos um castiçal de ouro onde havia um círio aceso. O vestuário com que

ingressaram no recinto não nos deve passar despercebido. O vestido da condessa

de Tenabroc92 e de sua companheira eram de um marrom avermelhado que cintos

mantinham ajustados aos quadris.

As duas jovens eram seguidas por uma duquesa e uma companheira

trazendo dois preciosos pedestais de marfim. Ao se inclinarem os lábios das quatro

damas rebrilharam qual chama rubra. As duas colocaram com consumada elegância

os pedestais de marfim diante do anfitrião. Feito isso as quatro, com vestidos iguais

e com igual donaire, agruparam-se lateralmente.

92
Condessa de Tenabroc. Mais adiante Wolfram menciona seu nome: Clarischanze.

189
Mas reparai que oito outras damas convocadas para esse serviço não se

fizeram de rogadas. Quatro delas traziam grandes tochas enquanto as quatro

restantes vinham carregando uma preciosa lousa que à luz do dia se mostrava

translúcida. Ela fora um único e enorme bloco de pedra granada jacinto tão comprido

quanto largo. Ao ser desbastado e lapidado para servir de tampo de mesa ficara

reduzido a essa fina placa de pedra de peso reduzido. Essa preciosa mesa sobre a

qual comia o senhor da casa dá uma idéia de sua faustosa riqueza.

Consoante exigia o protocolo todas se inclinaram diante dele. Quatro

delas colocaram o tampo de mesa sobre os pedestais de alvíssimo marfim dispostos

a distância conveniente. A seguir as oito damas se retiraram com refinada distinção,

juntando-se ao primeiro grupo composto de quatro jovens. As oito damas do

segundo grupo usavam vestidos de um verde-gaio em cuja confecção tinha-se

utilizado profusamente o precioso veludo de Azagouc. Cintos longos, estreitos e

preciosos acentuavam a linha dos quadris das oito jovens, cujos cabelos estavam

enfeitados com graciosas grinaldas.

Convocadas para os serviços da corte ali também se encontravam - a

muitas milhas distantes da pátria - as filhas dos condes Iwan de Nonel e Jernis de

Ryl. Ambas as princesas apresentavam-se magnificamente trajadas. Cada uma

trazia sobre um guardanapo duas miraculosas e afiadíssimas facas. Essas facas

ricamente trabalhadas eram de brilhante prata temperada e endurecida com tanto

esmero, que com elas poderia cortar-se até mesmo o aço. Elas eram precedidas por

quatro jovens fidalgas que na qualidade de virgens sem mácula haviam sido

igualmente convocadas para os serviços da corte. De velas acesas à mão vinham

acompanhando as guardiãs da prata brilhante. As seis avançaram com passo

190
solene. Atentai agora para o que faziam. Inclinando-se, duas delas colocaram a

prata sobre a mesa de colorido magnífico. A seguir as seis jovens se juntaram às

doze já mencionadas de sorte que - caso minha conta esteja certa - havia ali dezoito

fidalgas. Mas eis que vinham surgindo mais seis damas usando preciosas vestes de

seda de Nínive entretecida de fios de ouro. Seus vestidos, como os das demais,

eram de tecido multicolorido e sumamente precioso93.

4. O GRAAL

Por fim surgiu a rainha. O esplendor que sua face irradiava sugeria aos

presentes o despontar de um novo dia. Seu vestido era de seda árabe e sobre uma

almofada de achmardi verde trazia a quintessência da perfeição paradisíaca,

princípio e fim de toda a aspiração humana. Esse objeto, chamado Graal, era

superior a qualquer ideal terreno94. A nobilíssima dama que tinha o privilegio

exclusivo de ser portadora do Graal chamava-se Repanse de Schoye. É que a

natureza sobremodo sublime do Graal exigia que sua guardiã fosse intocada e sem

mácula. Preciosos candeeiros precediam ao Graal. Eram seis grandes vasos de

vidro translúcido contendo bálsamo que alimentava uma bela chama. Depois de

ingressarem no recinto em cortejo solene a rainha e as jovens portadoras do

bálsamo se inclinaram. A imaculada rainha colocou o Graal diante do anfitrião.

Segundo nosso relato Parsifal teria contemplado demoradamente a portadora do

93
Wolfram nos descreve aqui uma verdadeira Ordem Feminina do Graal, cujas integrantes aparecem
desempenhando funções que na liturgia dos cultos contemporâneos do autor eram privativas de sacerdotes, isto
é, de homens. N.T.
94
O mistério do Graal é revelado a Pasifal só mais adiante (Livro IX, 469-471) pela boca do tio
Trevizent. N.T.

191
Graa, pois sua presença lhe evocava o manto que usava. Com passo lento e grave

as sete se dirigiram ao local onde se achavam reunidas as dezoito. Foi-me dito que

ali se formou novo dispositivo com a mais ilustre ao centro, tendo de cada lado doze

fidalgas, de sorte a realçar ainda mais a beleza da virgem coroada.

Eis que grande número de camareiros com pesados lavabos de ouro se

acercavam dos cavaleiros reunidos em palácio. Cada qual servia a quatro cavaleiros

enquanto um pajem bem parecido lhes entregava alvíssima toalha de mão. Havia ali

motivos de sobra para os convidados se maravilharem com o fausto e o requinte que

os cercava, de vez que a seguir foi posta uma mesa coberta com toalha alvíssima

diante de cada grupo formado por quatro cavaleiros. Havia ao todo cem dessas

mesas. Parsifal e o anfitrião de rosto sofrido lavaram as mãos, enxugando-as numa

toalha de seda multicolorida que o filho de um conde, de joelhos, lhes ofereceu.

Onde não havia mesas os cavaleiros eram servidos atentamente por um grupo de

quatro escudeiros. Dois deles, ajoelhados, serviam os cavaleiros enquanto os dois

outros traziam a comida e a bebida. Ouvi mais sobre o fausto que ali se fazia

presente. Quatro carrinhos destinados a prover cada convidado de peças de

preciosa baixela de ouro eram introduzidos no salão. Os carrinhos circulavam ao

longo das paredes do salão enquanto quatro cavaleiros se desincumbiam da tarefa

de distribuir as peças pelos convidados. Cada carrinho era seguido de um

intendente encarregado de recolher as peça servidas. Agora atentai para mais esta

notícia: cem escudeiros tinham por incumbência erguer o pão diante do Graal em

atitude de respeitosa oferenda, colocá-lo sobre toalhas de alvíssimo linho e a seguir

distribuí-lo entre os presentes. Assegurou-me - e eu vô-lo repito de fé jurada, de

sorte que mentis comigo caso vos falte com a verdade - que diante do Graal

192
apareceu, pronto para o consumo, tudo que pudesse ser desejado. Havia ali rações

frias e quentes, pratos conhecidos e desconhecidos, carne de rês e de caça.

Possivelmente, um ou outro dirá que estou a contar coisas impossíveis. Mas ele

estará sendo injusto. O Graal era, de fato, depositário da Fortuna, uma cornucópia

de felicidades terrenas que, mal comparando, assemelhava-se às delícias do reino

celestial. Em taças de ouro, artisticamente trabalhadas recebiam-se ali temperos e

complementos para os diversos pratos: molho de carne, pimenta e calda de frutas. O

sóbrio e o glutão ficavam ali igualmente à vontade, recebendo ambos obsequioso

tratamento. Donde quer que surgisse um copo, qualquer que fosse a bebida

solicitada - vinho de amora, vinho de uva, rubro sinopel95 - o pedido era atendido de

pronto, enchendo-se os copos consoante o desejo de cada um, graças às virtudes

miraculosas do Graal. Toda essa ilustre comunidade era, pois, conviva do Graal.

5. A PERGUNTA POSTERGADA

Parsifal observou atentamente todo esse esplendor e a manifestação do

miraculoso fenômeno. Mas sua educação cortês fez com que se abstivesse de

qualquer pergunta. Ensimesmado inquiriu de si para si: "Gurnemanz, que me

estimava, recomendou-me de forma inequívoca que me abstivesse de perguntas

desnecessárias. Devo eu uma vez mais provocar uma situação de constrangimento,

95
Sinopel. Vinho encorpado, adocicado com xarope.

193
fazendo perguntas inconvenientes? Mesmo sem perguntar acabarei sabendo o que

esta comunidade cavaleirosa tem de especial96."

Enquanto estava assim a pensar acercou-se dele um escudeiro com uma

espada. Só a bainha devia valer em torno de mil marcos e o punho havia sido

talhado de um enorme rubi. A lâmina era, por certo, predestinada a perpetrar feitos

memoráveis. Oferecendo-a ao hóspede o anfitrião declarou: "Senhor, fiz uso dela

em muitos combates até que Deus me pôs à prova fazendo-me padecer de uma

ferida que resiste a qualquer tratamento. Aceitai-a como ressarcimento, caso a

acolhida não tenha correspondido à vossa expectativa. Guardai-a sempre convosco.

Ao fazer uso dela tereis a prova de que é uma companheira de muita confiança."

Ai dele, pois mesmo assim nada perguntou. Ainda hoje sinto o que lhe

sucedeu. É que, ao lhe pôr a espada nas mãos, quis estimulá-lo a levantar a

questão. Deploro igualmente o amável anfitrião, que vinha consumindo a existência

a padecer de uma chaga incurável quando uma única pergunta poderia tê-lo

redimido.

O banquete terminara. Os serviçais se esmeravam em recolher os

talheres servidos nos quatro carrinhos. Entrementes as fidalgas trataram de

desincumbir-se de suas tarefas, desta vez observando a ordem inversa. Inicialmente

acompanharam a mais ilustre até o local onde se achava exposto o Graal. Com ar

solene e grave a rainha e as jovens inclinaram-se perante o anfitrião e Parsifal e a

seguir recolheram tudo que haviam trazido. Parsifal seguiu-as com a vista enquanto

se afastavam e antes que a porta se fechasse atrás delas avistou sobre a cama num

96
Ao não fazer a pergunta, ficou evidenciada a imaturidade ou insuficiência do herói.

194
quarto contíguo um ancião que irradiava uma dignidade imponente e grave que

nunca antes lhe fora dado ver. Asseguro-vos, sem vislumbre de exagero, que seu

cabelo era mais branco que a neblina./A identidade desse ancião, a narrativa irá

revelar mais adiante97. Da mesma forma e no devido tempo prestar-vos-ei pronto e

detalhado esclarecimento acerca do senhor da casa, de seu castelo e seu reino. É

que minha narrativa se assemelha à corda e não à curva do arco. Isso,

naturalmente, é mero exemplo. A muitos pode parecer que o arco é ágil e flexível

mas ainda mais veloz é a seta disparada pela corda. Caso meu exemplo tenha sido

feliz a corda seria comparável a uma narrativa linear capaz de satisfazer os ouvintes.

Mas o relato que se perda em detalhes assemelha-se à curva do arco, pois vos

obriga a acompanhá-la por muitos caminhos sinuosos. Quem examinar um arco

distendido verá a corda como se fosse uma linha reta. Estica-se, então, a corda e a

seta é disparada. Quem se estende a pormenores a envereda por desvios acaba por

cansar o ouvinte. Sua narrativa não adquire consistência porque segue o caminho

mais cômodo, entrando num ouvido e saindo pelo outro. Se molestasse meus

ouvidos dessa forma, veria baldados todos os meus esforços. Poderia então

apresentar meu poema como se fosse um cavalete ou um toco do madeira.

Pretendo contar-vos agora mais alguma coisa sobre aquela gente sofrida.

No castelo no qual Parsifal era hóspede nunca só ouvia o alegre alarido do torneio

ou da dança. Mergulhados na dor esses homens dispensavam qualquer tipo de

gracejo. Em meio a toda aquela abundância não havia sinal de alegria embora

algum humor faça bem até aos mais deserdados da sorte.

97
O nome do ancião é revelado mais adiante: Titurel, avô de Anfortas e de Pasifal.

195
O anfitrião voltou-se para seu hóspede: "Acredito que vosso leito já esteja

preparado. Se estais cansado, gostaria de aconselhar-vos a repousar."

6. O PERNOITE NO CASTELO DO GRAAL

Essa despedida eu deveria lamentar em altos brados, pois ela

representava para ambos uma sucessão de desgraças. O ilustre Parsifal ergueu-se

do canapé e postando-se sobre o tapete diante do anfitrião desejou a este uma boa

noite. Enquanto isso os cavaleiros se haviam levantado apressadamente. Alguns se

aproximaram de Parsifal para acompanhá-lo à sua kemenate98. Havia ali uma cama

magnífica cuja rica ornamentação me fez sentir mais amargamente minha pobreza.

Uma tal cama estava muito longe da pobreza. Estava guarnecida por uma coberta

de seda colorida, que cintilava como fogo. Quando Parsifal percebeu que no quarto

havia apenas uma cama pediu aos cavaleiros que fossem descansar também.

Desejando-lhe um bom descanso, retiraram-se.

Parsifal passou então a ser servido de outro modo. Enquanto o brilho de

muitas velas emulava com o de sua beleza máscula, de sorte que à luz do dia não

poderia ser mais claro, sentou-se num banco estofado, guarnecido por uma colcha.

Acercaram-se então dele pajens lestos e solícitos tirando-lhe os sapatos. Outros

amáveis e ilustres meninos o ajudaram adespir-se. A seguir apareceram quatro

belíssimas jovens a fim de verificarem se o herói vinha sendo servido a contento e

98
Kemenate. Do latim caminata. Quarto de dormir medieval aquecido por lareira. (caminus: chaminé).
N.T.

196
se o leito oferecia condições ideais de comodidade. Segundo a narrativa cada uma

delas vinha sendo precedida de um escudeiro portando vela acesa. O lesto Parsifal

meteu-se na cama, cobrindo-se às pressas. Elas, porém, pediram: "Ficai acordado

ainda por alguns minutos, por nossa causa". Embora, antes que pudessem

cumprimentá-lo, Parsifal num abrir e fechar de olhos tivesse puxado a coberta até o

queixo a breve visão de seu corpo desnudo já havia encantado seus olhos. Sua

boca rubra em torno da qual nem sequer o buço havia aflorado exercia sobre elas

uma secreta atração. Ouvi agora o que as quatro graciosas jovens haviam trazido.

Três delas traziam em suas brancas mãos vinho de amora, vinho de uva e vinho

tinto temperado. A quarta ofereceu-lhe, sobre um pano de linho branco, frutas de

aparência paradisíaca. Quando a viu ajoelhada, pediu que se sentasse junto dele.

Ela, porém, replicou: "Não me confundais, pois do contrário não vos poderei servir

consoante os desejos de meu amo." Parsifal comeu e bebeu um pouco enquanto

conversava animadamente com as jovens. A seguir retiraram-se. Parsifal se deitou e

quando os pajens notaram que havia adormecido puseram as velas sobre o tapete e

se retiraram sorrateiramente.

Mas Parsifal não permaneceu só. Maus sonhos o atormentaram até alta

madrugada. Seu sono era perturbado por presságios e sofrimentos que haviam de

vir. O jovem teve um sonho pontilhado de angústias, semelhante àquele de sua mãe

quando se vinha consumindo em saudades por Gahmuret. O tapete de seu sonho

era arabescamente orlado de espadas terçadas, mostrando ao centro muitas cenas

de torneio. Nesse estranho sonho teve que defender-se de adversários que o

fustigavam seguidamente com seus ataques. O pesadelo o atormentava sem cessar

de sorte que teria preferido passar trinta vezes pelo transe da morte, mas de olhos

197
abertos. Quando finalmente, banhado de suor, despertou sobressaltado dessa

terrível experiência onírica, já era claro dia. Parsifal disse de si para si: "Que é feito

dos pajens? Por que não estão aqui para vestir-me?" Depois de esperar inutilmente

por algum tempo nosso herói adormeceu novamente. Ninguém o despertou. Todos

se mantinham ocultos de sorte que o jovem despertou quando a manhã já ia alta.

Quando nosso destemido herói se ergueu avistou sobre o tapete sua armadura e as

duas espadas. Uma, recebera do anfitrião, a outra havia sido usada por Ither de

Gaheviez. Ele se pôs a cismar: "Que significa isto? Evidentemente devo pôr a

armadura! Durante o sono passei por tantas angústias que hoje possivelmente me

aguardam novas situações de perigo. Se o senhor da casa estiver em perigo irei de

bom grado acudir a seu chamado. Darei igualmente meu Ieal apoio à dama que tão

bondosamente me deixou seu novo manto, caso lhe convenham meus serviços.

Servir-lhe-ia então sem viam qualquer interesse pessoal ou recompensas amorosas.

Afinal, minha real esposa é tão linda quanto ela, ou mais ainda."

7. A PARTIDA DE PARSIFAL

Ele fez o que não podia deixar de fazer: armou-se dos pés à cabeça,

cingiu as duas espadas e se dirigiu à porta. Para sim satisfação viu junto à porta seu

cavalo amarrado e, encostado ali perto, escudo e lança. Antes de montar, nosso

herói percorreu muitos quartos à procura dos moradores do castelo. Como não

encontrou vivalma, ficou preocupado. Por fim, enfurecido, correu ao pátio onde na

noite de sua chegada havia desmontado. Ali a terra e a grama ainda úmidas de

198
sereno apresentavam evidentes sinais de terem sido pisadas por cascos de cavalos.

Gritando alto, correu para junto de sua montaria e como não viu vivalma montou

xingando. O portão do castelo estava aberto de par em par e também ali havia

largos rastros de cascos de cavalos que se dirigiam para fora. Percebendo isso não

hesitou por mais tempo, atravessando a trota largo a ponte levadiça. Foi então que

um escudeiro, de algum lugar oculto, alçou a extremidade da ponte levadiça antes

que Parsifal a houvesse atravessado completamente, levando por pouco seu animal

à queda. Parsifal virou-se, pois desejava se informar sobre o que havia ocorrido no

castelo. Foi então que o escudeiro o repeliu aos gritos: "Não sois digno da luz da sol!

Afastai-vos deste lugar, poltrão obtuso! Se vos tivesse ocorrido inquirir vosso

anfitrião, teríeis alcançado a distinção suprema!"

Quando Parsifal, em tom exaltado, exigiu explicações, não obteve

resposta. Por mais que chamasse, o escudeiro se comportou como se estivesse

dormindo em pé, fechando bruscamente o portão do castelo. Cedo demais a boa

Fortuna e a alegria de viver se haviam apartado deste que agora iria enveredar por

sombrios caminhos. Tudo ele havia perdido. Quando Parsifal estivera face a face

com o Graal pusera em jogo seu destino, e isso só com o olhar, sem que sua mão

tocasse nos dados da Fortuna. Na verdade não havia sofrido muito até essa parte.

Parsifal seguiu os rastros claramente visíveis e disse lá com seus botões: "Os

cavaleiros cujo rastro estou seguindo deverão por certo combater ainda hoje pela

causa do meu anfitrião. Se concordarem, juntar-me-ei a eles e não farei má figura.

Comigo não há recuo! Combaterei ao lado deles a fim de fazer jus à hospitalidade e

à magnífica espada que recebi do distinto soberano. Nada ainda fiz por merecê-la e

talvez me tenham em conta de um covarde."

199
O jovem, que detestava a falsidade, seguiu os rastros deixados pelos

cavalos. Sinto pena vê-lo partir nessas condições. Na verdade somente agora iria

começar sua grande aventura. Os rastros se tornaram cada vez menos visíveis.

Tornou-se evidente que os cavaleiros em cuja pista seguia haviam-se separado,

pois os rastros, antes nítidos e profusos, se tornavam cada vez mais fracos e

esparsos até - para o desapontamento de Parsifal-, desaparecerem por completo.

8. O SEGUNDO ENCONTRO COM SIGUNE

A seguir o jovem iria deparar com uma cena que o entristeceria

sobremodo. É que os ouvidos do intrépido varão captaram o timbre de uma voz

feminina que se lamentava em altas vozes. Atravessando a campina ainda molhada

de sereno avistou sentada num tronco de tília uma jovem, bem como o objeto de sua

fiel compaixão, pois sustinha nos braços o corpo embalsamado de um

cavaleiro.Quem não se comovesse à vista de tal quadro seria incapaz de qualquer

gesto de solidariedade. Parsifal aproximou-se. Embora fosse sua prima carnal ela

não o reconheceu - ela que era a própria personificação da fidelidade.

Cumprimentando-a, disse-lhe: "Nobre senhora, vosso sofrimento me toca

profundamente. Se vos puder ser útil em alguma coisa, disponde de mim."

Ela agradeceu compungida, perguntando-lhe donde vinha: "É sumamente

estranho que alguém se tenha extraviado neste ermo impraticável. Um forasteiro

200
desinformado99 corre aqui sério risco. Tenho ouvido falar de casos e mesmo visto

com meus próprios olhos as cenas em que muita gente perdeu a vida. Abalai-vos

daqui se tendes amor à vida! Antes, porém, dizei-me onde passastes a noite."

"A cerca de uma milha daqui há um castelo. Nunca vi outro tão altanado e

sobranceiro. Foi de lá que parti há pouco."

Ela, porém, respondeu em tom de censura: “Não devíeis iludir a quem vos

dá crédito. Os símbolos de vosso escudo me dizem que vindes de fora. Mas se sois

oriundo de uma região povoada dificilmente sabereis orientar-vos nesta floresta

impenetrável. Aqui, num raio de trinta milhas, não existe edificação, quer de

madeira, quer de alvenaria, com exceção de um único castelo. Esse na verdade é o

mais magnífico da terra. Mas ele não pode ser encontrado por quem

deliberadamente o procura, embora muitos tenham feito esforços nesse sentido. Só

o avista quem, sem o saber, está predestinado a encontrá-lo. Senhor, não posso

crer que o conheçais. Seu nome é Munsalvaesche· e o reino do senhor desse

castelo se chama Terre de Salvaesche·. O venerável Titurel o legou a seu filho

Frimurtel. Esse nobilíssimo varão arrebatou os louros da vitória em muitos encontros

cavaleirosos até que, a serviço de uma dama a cujo amor aspirava, encontrasse a

morte. Deixou quatro filhos, dos quais três se acham mergulhados, em irremediável

tristeza a despeito da riqueza que os cerca. O quarto, um filho varão, elegeu

99
“Forasteiro desinformado” tem aqui o sentido de “profano”, de “não-iniciado”, pois nas terras do Graal
eram uma região edêmica, geograficamente desvinculadas do resto do mundo. Por isso, ao encontrar o Rei-
Pescador nessas misteriosas paragens, este advertiu Parsifal acerca dos “descaminhos (Livro V) Mas o aspirante
ao Graal seguiu seu “caminho certo” e a certa altura viu diante de si o castelo do Graal como que “brotado do
chão”. N.T.

201
voluntariamente uma vida de pobreza e penitência. Chama-se Trevrizent100. Seu

irmão, Anfortas, passa a vida numa cadeira de amplo espaldar. Não pode andar,

nem montar e tampouco ficar de pé ou deitado. É ele o senhor de Munsalvaesche

mas incorreu na ira de Deus. Senhor, se de fato tivésseis sido admitido nessa

enlutada comunidade o senhor desses domínios teria sido redimido de seu

prolonqado sofrimento."

Mas o jovem de Valois explicou: "Fui ali testemunha de fatos

extraordinários e vi igualmente grande número de mulheres de beleza incomum."

A essa altura, reconheceu ela finalmente a voz e exclamou: "Tu és

Parsifal! Dize-me, agora, se te foi dado ver o Graal e o desditoso senhor do castelo!

Quero ouvir a boa nova! Bendita seja a tua afortunada demanda que o libertou

finalmente de seus terríveis tormentos! Serás agora exaltado sobre todas as

coisas criadas. Todas as criaturas te estarão sujeitas! Obtiveste a forma mais

sublima de poder e riquezas inconcebíveis!"

Mas o heróico Parsifal perguntou: "Como te foi possível reconhecer-me?"

Ela respondeu: "Sou aquela jovem que te revelou suas penas e te

chamou pelo nome! Não precisas envergonhar-te de nosso parentesco. Tua mãe é

minha tia. Ela é a suprema expressão do recato feminino e de pureza sem mácula!

Que Deus te conceda a justa recompensa. Tu te apiedaste de meu amado, que

perdeu a vida em combate. Agora o sustento em meus braços! Podes avaliar dor

100
Trevrizent. Nome simbólico que pode ser traduzido como “Trégua Recente”. Pretende representar uma
solução provisório pela qual o eremita procura aliviar pelo ascese o sofrimento do irmão e protelar a “decadência
do reino do Graal”, enquanto se aguarda a vida do “herói restaurador”. N.T.

202
que Deus me impôs com sua morte? Ele era o portador do todas as virtudes varonis

e sua morte atingiu-me profundamente, Agora, dia após dia, renovo meu lamento

fúnebre."

"Ai de mim! Que é feito da cor de teus lábios? És tu realmente Sigune,

que me revelou quem eu de fato era? És calva! Perdeste a longa cabeleira

castanha! Na floresta de Briziljan, embora tomada de intenso sofrimento, ainda te vi

cheia de encantos. Mas agora estás exaurida de beleza e energia. Sinto-me mal em

tão horrenda companhia. Caber-nos-ia dar sepultura a este morto."

Lágrimas molharam suas vestes. Sigune jamais seguiria o conselho que a

senhora Lunete101 dera à sua ama: "Deixai viver o matador de vosso marido para

que vos possa ressarcir da perda que sofrestes!" Sigune nem pensava em tais

reparações, embora tal prática seja comum a mulheres de caráter vacilante, com as

quais aqui não quero perder tempo. Ouvi mais sobre a fidelidade de Sigune. Ela

disse a Parsifal: "Se alguma coisa neste mundo ainda pudesse constituir-se para

mim motivo de satisfação esta seria a notícia de que o amargurado Anfortas foi

libertado de sua longa agonia. Se tu o redimiste antes de partir, farás jus à suprema

glória. Vejo que portas sua espada. Conhecendo sua miraculosa força secreta

poderás, sem receio, engajar-te em qualquer combate. Sua lâmina é um primoroso

trabalho de artesanato. Quem a forjou foi Trebuchet, descendente de nobre estirpe.

Em Karnant existe uma nascente chamada Lac, nome que perpetua o do soberano

daquele país. No primeiro golpe decisivo a espada permanece incólume; mas no

segundo ela se partirá. Se a levares à fonte, seu jato d'água reconstituirá as partes.

101
Lunete. Personagem da epopéia “Iwen” que Hartmann von Aue elaborou segundo modelos franceses.
Ela deu o exemplo aqui referido a ama Laudine que, seguindo-o, casou-se com Iwen, a despeito de lhe ter morto
o marido.

203
Para tanto deveras, antes do alvorecer, estar junto à fonte Lac, cujo manancial

nasce no declive de uma penha. Se nenhuma parte se perdeu e se cada fragmento

for reposto no seu devido lugar a água da fonte fará com que a espada ressurja

inteiriça. Encaixes e fios terão até mesmo sua tempera reforçada, sem esquecer as

gravações que ressurgirão em sua antiga beleza. É preciso, contudo, conhecer a

correta versão da fórmula mágica e temo que esta não te foi transmitida quando de

tua estada no castelo. Mas se a aprendeste a Fortuna jamais se apartará de ti. Crê-

me, querido primo, todas as coisas singulares que te foi dado ver passam a te

pertencer a partir de agora. Exaltado muito acima dos demais membros da nobreza,

ostentarás o diadema do restaurador. Tudo aquilo que constitui o objetivo da busca

final dos homens tu o terás até o limite do excessivo. Se formulaste adequadamente

a questão não haverá homem sobre a face da terra que possa ombrear-se contigo

em poder e riqueza.”

Ele, porém, respondeu: "Não fiz pergunta alguma."

"Ah, teria sido melhor que meus olhos jamais vos102 tivessem visto",

exclamou a jovem enlutada. "Postergastes a pergunta! Por que não a formulastes?

Não presenciastes a manifestação de muitos eventos miraculosos ao estardes face

a face com o Graal? Vistes muitas damas nobilíssimas, entre elas a distinta

Garschiloye e Repanse de Schoye; vistes as duas afiadíssimas facas de prata e a

lança vertendo sangue! Ai de vós, o que afinal pretendeis de mim, ó homem maldito

e desonrado? Vossa periculosidade é tão funesta como o dente do lobo enraivecido.

102
A brusca mudança de “tu” para “vós” só pode ser explicada como rejeição, em conseqüência da
dolorosa descoberta que consiste no fato de não ter “posto a questão”. Repelindo qualquer intimidade decorrente
dos laços de parentesco, Sigune estabelece uma distância formal como se Parsifal tivesse passado a ser um
“estranho” para ela. N.T.

204
Desde os verdes anos o amargo fel da perfídia sufocou em vós o sentimento da

lealdade! Devíeis ter-vos compadecido de vosso anfitrião a quem Deus castigou de

forma tão terrível e indagado da causa de seus sofrimentos. Escapastes com vida,

mas dissipastes a fortuna maior de vossa existência!"

Consternado,implorou: "Querida prima, não sejas tão dura comigo! Se

incorri em erro quero penitenciar-me de bom grado."

Mas a reação da jovem foi de desprezo: "A penitência vos será concedida

como mercê. Sei muito bem que em Munsalvaesche perdestes de forma

irremediável vossa honra e reputação de cavaleiro. A partir de agora não vos dirigirei

palavra alguma." Amargurado, Parsifal retirou-se.

9. O SEGUNDO ENCONTRO COM IESCHUTE

O fato de não ter formulado pergunta alguma ao ver o anfitrião curvado ao

peso de sua dor, deixou nosso herói profundamente abatido. O remorso e o calor

que haviam aumentado com o perpassar das horas fizeram-no suar por todos os

poros. Para refrescar tirou o elmo, carregando-o na mão. Afrouxou igualmente o

gorjal103 e sua beleza máscula destacou-se então radiante sob as manchas de

ferrugem. Foi aí que descobriu um novo rastro. Ficou claro para ele que à frente

seguiam um animal ferrado e outro não ferrado. O último transportava uma dama

103
Gorjal. Parte da armadura que protege o pescoço

205
que conhecera em outros tempos. O acaso dispôs que seguisse na mesma direção.

A montaria da dama era tão subnutrida que era possível contar o número de

costelas sob a pele. Era um cavalo branco, cujo cabresto era de fibra ordinária, A

crina descia-lhe até os cascos e os olhos jaziam mortiços fundo das órbitas. O

matungo da dama dava a triste impressão de um animal esfalfado e completamente

esgotado. Era seco como palha e de tão esfaimado mal conseguia conciliar o sono.

Era praticamente um milagre o fato de conseguir manter-se em pé e transportar uma

dama que nada entendia de tratamento de cavalos. O arção da sela, além de

partido, era estreito e não oferecia qualquer comodidade, Muitos de seus guizos

haviam sido arrancados. Como arremedo de cilha teve de contentar-se com uma

corda grosseira pouco condizente com sua nobre ascendência. Sua camisa

esfacelada por galhos e espinhos havia sido reduzida a farrapos sob os quais se

destacava na verdade uma pele mais alva que a plumagem do cisne. Na realidade

cobria-se com andrajos mal atados uns aos outros. As partes protegidas da pele

conservavam sua brilhante alvura, mas as expostas a inclemência do tempo

estavam doloridas e avermelhadas. A despeito disso seus lábios frescos e corados

conservavam um rubro intenso que parecia desatar-se em chamas. Vista sob

qualquer ângulo parecia completamente desprotegida. Seria, contudo, injusto

considerá-la vilã104, embora tivesse praticamente nada para se cobrir. Por vossa

honra, podeis crer-me que o ódio que a perseguia não tinha qualquer fundamento

pois sempre conservara intacta sua bondade feminina. Poderíeis agora perguntar-

me por que aqui me detenho a descrevem a pobreza com tantos detalhes. A

resposta é simples. No fundo as pessoas são julgadas pela sua riqueza. Quanto a

104
Vilã. Feminino de vilão, plebeu, camponês.

206
mim prefiro uma mulher assim, mesmo sem roupas, a muitas outras magnificamente

ataviadas..

Quando Parsifal a cumprimentou ela o reconheceu de pronto, pois era o

jovem mais bem parecido sobre a face da terra, eIa assim lhe falou: "Eu já vos vi

certa feita. Devo dizer que essa circunstância acabou se constituindo fonte da

grande desgraça por que venho passando. No que me toca, Deus vos favoreceu

mais que mereceríeis. Cabe-vos a culpa pelo fato de hoje meu vestido ser mais

miserável que aquele que usei quando do nosso último encontro. Se naquela

oportunidade me tivésseis deixado em paz hoje ninguém poria minha honra em

dúvida."

Parsifal respondeu, perplexo: "Nobre senhora, analisai bem a pessoa

contra a qual se volta vossa indignação. Desde que recebi o escudo e me iniciei nas

lides de cavaleiro não mais pratiquei qualquer ato indigno contra vós, nem contra

qualquer outra dama, caso contrário minha honra estaria comprometida. Sinto, de

resto, profunda compaixão por vossa desgraça."

Prosseguindo a marcha a nobre dama prorrompeu em pranto tão

convulsivo que as lágrimas lhe escorriam pelos seios alvissimos, os quais se

alteavam redondos e graciosos como se tivessem sido modelados por mão de

artista. Entretanto nem mesmo o mais hábil dos artesãos poderia ter-lhes dado

forma tão magnífica como a natureza. Embora sensível a esse fascínio o aspecto

da dama confrangeu-lhe a alma, ao ver seu esforço por lhe esconder sua nudez com

mãos e braços. Por isso disse-lhe: "Nobre senhora, aceitai por amor de Deus e

como prova de minha solicitude o meu mantelete e cobri-vos com ele."

207
"Ah, senhor, ainda que todo o meu destino dependesse disso não me

atreveria a tocá-lo! Se quiserdes livrar a mim e a vós próprio da morte certa afastai-

vos daqui o mais longe que puderdes. A idéia de morrer na verdade não me

impressione mas temo pelo que vos possa acontecer."

"Nobre senhora, quem quereria atentar contra nossas vidas? Foi Deus

Onipotente que nô-las deu e ainda que todo um exército se pusesse em marcha

disposto a nos aniquilar estaria pronto para nos defender."

Ela respondeu: "Quem se declara disposto a isso é um renomado

campeão. Tamanha é sua sede de luta que mesmo seis cavaleiros como vós teriam

dificuldade de enfrentá-lo. Só o fato de encontrar-me em vossa companhia já me

enche de temor. Em outros tempos fui sua esposa, mas agora fui reduzida a

tamanha miséria que nem mesmo sirvo para ser sua criada."

Parsifal interrompeu-a novamente: "Qual é o efetivo do séquito de vosso

esposo? Se seguisse vosso conselho e pusesse minha salvação na fuga no fim das

contas vós mesma considerais vergonhosa tal atitude. Prefiro a morte à fuga."

Entretanto a duquesa seminua o advertiu: "Sou sua única companhia!

Mas se esperais levar a melhor sobre esse único adversário estais completamente

equivocado."

As vestes da nobre dama consistiam apenas de farrapos e de uma volta

de rendas. Mas em meio a toda essa miséria, conservava como glória íntima sua

208
condição de mulher ilibada. Sua bondade feminina era genuína e isenta de qualquer

falsidade.

10. O DUELO ENTRE PARSIFAL E ORILUS

Parsifal cingiu o gorjal, pois estava disposto a oferecer combate. Colocou

o elmo e o prendeu firmemente, orientando sua posição de modo a ampliar ao

máximo seu campo de visão. Foi então que seu corcel, estranhando a presença do

matungo de leschute, esticou o pescoço e se pôs a rinchar nervosamente. O

cavaleiro que ia à frente de Parsifal e da dama seminua ouviu o relincho e sem

perda de tempo tratou de saber quem vinha acompanhando a esposa. Encolerizado,

compeliu o cavalo a dar meia volta, mas fê-lo de modo tão brusco que a montaria foi

jogada para fora do leito da estrada. Pronto para o combate, o Duque Orilus seguiu

de lança em riste. Essa lança oriunda de Gaheviez ostentava suas cores herálticas.

Seu elmo era obra artesanal de Trebuchet. O escudo do campeão fora forjado em

Toledo105, país de Kaylet. Os contornos e o dorso do escudo eram

excepcionalmente sólidos. A preciosa seda do mantelete e da cota d'armas do

orgulhoso príncipe procedia de Alexandria, do país dos pagãos. A barda do corcel

havia sido forjada em Tenabroc com malhas de aço sobremodo sólidas. Sobre a

armadura usava orgulhosamente um manto de seda cujo alto valor revelava-se à

primeira vista. Valiosa e leve era sua armadura composta de grevas, couraça e gorro

de malha. O nobre cavaleiro usava ademais, um par de joelheiras forjadas em

105
Toledo. As lâminas de Toledo eram afamadas e possivelmente também os escudos.

209
Bealzenan, capital de Anjou. O que a nobre e desvalida dama, que triste seguia à

sua retaguarda, trazia no corpo, não podia na verdade comparar-se com esse

aparato bélico. Sua armadura havia sido forjada em Soissons. Sou corcel procedia

do lago Brumbane, próximo a Munsalvaesche, donde o seu irmão o Rei Lahelin o

trouxera como despojo de guerra.

Mas Parsifal também estava pronto para combate. A galope largo

arremeteu contra Orilus de Lalant, em cujo escudo aparecia um dragão em tudo fiel

a um dragão de verdade. Orilus exibia sobre o elmo um dragão rampante. Muitas

miniaturas de dragões de jaine com olhos de rubi e salpicados de pedras preciosas

adornavam seu mantelete e a teliz de seu corcel.

Os dois destemidos campeões nem se deram ao trabalho da se desafiar

formalmente, até porque não havia qualquer motivo para isso. Ambos arremeteram

com vigoroso embalo, de sorte que o violento entrechoque arremessou aos ares os

brancos estilhaços das lanças quebradas. Teria preferido assistir pessoalmente aos

lances desse embate, tal como consta da narrativa que aqui reproduzo. Quando os

dois se entrechocaram a senhora leschute teve de admitir que jamais lhe fora dado

assistir a uma justa mais emocionante.

Angustiada, a pobre mulher torcia as mãos, pois no fim das contas

desejava que nenhum dos dois heróis sofresse qualquer dano.

Logo os animais ficaram banhados de suor, pois cada um dos

contendores buscava a vitória a qualquer preço. Intensamente cintilavam as

espadas, as chispas que saltavam dos elmos e as lâminas que desferiam golpes

210
ininterruptamente. Dois combatentes de escol defrontavam-se ali em duríssima

competição, da qual poderia resultar a vitória ou a derrota de qualquer um deles.

Embora os corcéis obedecessem de pronto os combatentes os estimulavam, além

disso, com as esporas, enquanto as espadas retiniam alto. A Parsifal couberam

todos os encômios, pois enfrentava um cavaleiro e cerca de uma centena de

dragões. Nesse combate o dragão acocorado sobre o elmo de Orilus foi golpeado

seguidamente. Muitas pedras preciosas, translúcidas e reluzentes como a luz do dia,

foram arrancadas de seus engastes a golpes de espada. É que eles vinham

combatendo montados e não a pé. Em meio aos golpes de espada desferidos pela

mão de um destemido campeão a senhora leschute reconquistou a simpatia do

marido. Sem cessar os combatentes se entrechocavam com um ímpeto que fez as

joelheiras saltarem aos pedaços. Ambos deram uma notável demonstração de

destreza e habilidade na arte do combate singular.

Agora quero explicar-vos o motivo da grande indignação de um dos

combatentes. Sua nobre esposa havia sido agredida e sendo ele seu legítimo

defensor era natural que a protegesse. Acreditava, ademais, que se havia tornado

infiel e que nos braços de amante malbaratara sua pureza e seu bom nome, o que

considerava um insulto pessoal. Puniu-a por isso com tanta severidade que, exceto

a morte, não há memória de que em algum tempo uma mulher inocente tenha sido

submetida a vexames mais cruéis. Orilus era de opinião que a mulher achava-se

naturalmente sujeita ao homem e por isso podia tratá-la de modo desapiedado,

negando a quem quer que fosse o direito de intervir nesse assunto. Mas Parsifal, o

campeão, intercedeu em favor da mulher com a espada na mão. Consoante minha

experiência uma questão desse tipo é geralmente apresentada de forma simpática.

211
Mas no caso não havia clima para amabilidades. Eu mesmo acredito que nessa

contenda ambos tinham razão embora cada um a seu modo. Se Deus, que sabe

distinguir o certo e o errado, fosse chamado para dirimir a questão, deixaria que

ambos escapassem com vida, pois a essa altura um havia infligido ao outro dano

considerável.

O combate prosseguiu encarniçado, de vez que cada qual pretendia

prevalecer sobre o outro a todo custo. O Duque Orilus de Lalant combatia

observando todas as normas da nobre arte e acredito que em experiência de

combate ninguém podia ombrear com ele. Muitas vezes sagrava-se vencedor em

combates dessa natureza, pois era sobremodo hábil e vigoroso. Confiando na

superioridade de sua força física agarrou repentinamente o jovem e robusto Parsllal,

procurando desalojá-lo da sela. Este, porém, foi mais rápido, arrancando-o da sela.

Sacudindo-o rudemente de um lado para outro como se fosse um feixe de aveia,

saltou com ele da sela e o imprensou contra um tronco de árvore. Orilus, que nunca

havia passado por tais apuros, teve a contragosto de admitir a derrota: "Agora

pagarás pelos vexames a que, em teu ódio cego, expuseste uma nobre dama. Ou a

tratas com distinção ou morrerás!"

"Nada feito!", replicou Orilus. "Ainda não me considero vencido!"

212
11. PARSIFAL RECONCILIA ORILUS COM IESCHUTE

Parsifal, o valoroso campão, comprimiu-lhe então o tórax com tamanha

violência que um jato de sangue esguichou pela viseira.

Desse modo forçou o adversário a transigir, pois a morte não estava nos

cálculos do príncipe. Este apressou-se em indagar de Parsifal: "Ai de mim, poderoso

e intrépido varão! Por que motivo mereceria eu a morte por tua mão?"

Parsifal respondeu: "Poupo-te a vida de bom grado, mas tu terás que

conceder novamente tua simpatia a esta mulher!"

"Não posso! Ela me injuriou gravemente! Em outros tempos desfrutava de

grande consideração mas depois malbaratou sua boa reputação e me precipitou no

desespero. Tudo o mais farei para resgatar minha vida! Deus ma deu; agora está em

tuas mãos. Resta-me confiar em tua generosidade." O príncipe prosseguiu: "Estou

disposto a pagar um alto preço por minha vida. Meu irmão é soberano de dois

reinos. Se me poupares, um deles te pertencerá. Ele me estima tanto que honrará

sem dúvida este meu compromisso. Ademais comprometo-me a receber de tua mão

meu próprio ducado como feudo.

Com esta vitória tu dilataste sobremodo tua fama de campeão. Mas

dispensa-me do encargo, ó nobre verão, de reconciliar-me com esta mulher. Exige

de mim qualquer outra coisa que possa elevar tua fama! O que quer me aconteça,

com essa indigna duquesa não me reconcilio mais."

213
A isso respondeu o magnânimo Parsifal: "Não há homem, reino ou

propriedade que possa salvar tua vida se não assumires o compromisso de ir a

Bretanha e ali ir à procura de uma jovem que por minha causa foi maltratada por um

homem. Caso ela própria não interceda por ele, minha vingança o alcançará. A essa

nobílima jovem prestarás compromisso de obediência e lhe darás conta de minha

disposição de sempre bem servi-la. Uma recusa implicará tua morte! Além disso dize

a Artur e à sua esposa que podem dispor de meus serviços. Como recompensa, me

agradaria que ressarcissem a jovem pela humilhação sofrida. Finalmente insisto em

que aqui e agora te reconcilies sincera e irrestritamente com essa nobre dama. Se

recusares sairás deste lugar morto numa maça. Reflete e decide e agora assume o

compromisso de cumprir todas as minhas exigências."

O Duque Orilus assim respondeu ao Rei Parsifal: "Já que nada consegue

dissuadir-te declaro-me disposto a te obedecer, pois desejo conservar a vida!"

Temendo a reação do marido a encantadora senhora leschute não ousou

separar os combatentes embora deplorasse os apuros por que vinha passando seu

inimigo. Depois de assumir o compromisso de se reconciliar com a senhora leschute

Parsifal consentiu que o adversário se levantasse. O príncipe vencido declarou:

"Nobre senhora, já que por vossa causa tive que amargar uma derrota voltai a meus

braços, pois como sinal de reconciliação quero beijar-vos. Na verdade minha

reputação de cavaleiro foi rudemente desgastada. Mas o que se há de fazer! Tudo

está perdoado e esquecido!"

214
A nobre dama em sua nudez resvalou rapidamente da sela para o chão e

embora o sangue escorresse do nariz do marido, manchando-lhe os lábios, deu-lhe

um beijo conforme pedira.

Sem perda de tempo os dois, acompanhados de leschute, dirigiram-se ao

retiro de um eremita, situado nas faldas de um penhasco. No interior do eremitério

encontrou Parsifal um relicário e, junto deste, uma lança de haste multicolorida. O

eremita que ali vivia chamava-se Trevrizent.

Foi então que Parsifal provou ser um homem honrado. Voluntariamente

pôs a mão sobre a relíquia e fez o seguinte juramento: "Juro agora por minha honra

de cavaleiro. Se eu a possuo ou não, que meus feitos a confirmem. O Cavalaria, teu

nome, no passado, esteve envolto em auréola de glória e ainda hoje manténs intacto

teu inteiro brilho! Se eu jurar falso quero perder meu prestígio e ficar nesta vida

exposto à eterna vergonha. Pela veracidade de minhas afirmações coloco como

penhor meu destino nas mãos do Altíssimo. Quero que Sua onipotência me puna,

cobrindo-me de ignomínia e desgraça nesta e na outra vida se eu feri a honra desta

nobre dama quando lhe subtraí anel e broche. Quando fiz isso não era um cavaleiro,

mas um parvo criado na mais asfixiante ignorância. Quando aconteceu isso ela

chorou lágrimas de desespero. Asseguro-vos que ela não teve a mínima culpa

nesse lamentável episódio. Nesta afirmação empenho minha felicidade e minha

honra. Podeis estar convicto de sua inocência. Tomai de volta o anel e restituí-lho.

Atribuo à minha própria insensatez a responsabilidade por haver desperdiçado o

broche."

215
O príncipe recebeu a jóia e a pôs novamente no dedo da esposa. A seguir

removeu o sangue dos lábios, beijou a amada e cobriu sua nudez, colocando-lhe

sobre os ombros seu próprio mantelete. Este era confeccionado de seda de bom

caimento, agora, na verdade, esfacelado pela espada de Parsifal. Nunca fidalga

alguma usara mantelete mais retalhado em combate que esse, e isso sem participar

de qualquer torneio ou quebrar lança alguma. Um escudeiro competente e Lambekin

teriam mais condições de sair-se bem num combate singular106. As aflições de

leschute haviam terminado.

O Príncipe Orilus disse a Parsifal: "llustre varão teu juramento espontâneo

me alegra e dissipa todas as minhas mágoas. Na verdade sofri uma derrota mas ela

resultou em felicidade. Agora posso ressarcir esta nobre dama pelo tratamento duro

e desumano a que a submeti, sem temer por minha honra. Rejeitei esta mulher

encantadora sem que tivesse a mínima culpa. Na verdade, ao referir-se à tua boa

aparência passei a admitir a existência de uma ligação amorosa. Que Deus

recompense teu gesto que provou sua inocência. Desrespeitei-a grosseiramente

naquela vez em que cavalgava pela campina que se estende diante da floresta de

Briziljan."

Ao deixar o eremitério Parsifal levou consigo a lança de Troyes que o

impetuoso Tauriano, irmão de Dodines, ali havia esquecido. Imaginais onde e como

os dois heróis teriam passado a noite? Seus elmos e escudos esfacelados

encontravam-se em estado lastimável. Embora o atencioso príncipe pusesse seu

acampamento à disposição de Parsifal, este se despediu dele e de leschute,

tomando-se inútil as tentativas de retê-lo ali. Assim cada um seguiu seu caminho.

106
Alusão obscura do poeta, que permanece enigmática.

216
A narrativa nos dá conta do seguinte: Quando o renomado príncipe Orilus

chegou ao acampamento, onde parte de seu séquito o aguardava, todos ficaram

sumamente satisfeitos ao verem a duquesa, irradiando felicidade, reconciliada com o

esposo. Sem perda de tempo aliviaram-no da armadura e ele se livrou das manchas

de ferrugem e sangue. A seguir tomou a bela duquesa pela mão e a conduziu ao

local da reconciliação definitiva, onde mandou preparar dois banhos. Chorando,

deixou-se ficar nos braços do amado, mas como só acontece essas lágrimas eram

de felicidade e não desgosto.Sabe-se que olhos marejados de lágrimas vão bem

com uma boca mimosa. Gostaria de me demorar neste tema. Uma grande paixão é

fonte de felicidade e sofrimento. Quem conhece todas as histórias de amor sabe que

seu desfecho não podia ser outro, leschute e Orilus reconciliaram-se sem reservas.

A seguir dirigiram-se separadamente para o banho. Doze belíssimas jovens

cercaram a senhora leschute de amorosos cuidados. Haviam amparado a ama

inocente durante todo o tempo em que tivera de suportar as iras do homem que

amava. Depois das agruras do dia durante o qual fora compelida a acompanhar

seminua, o marido nas suas andanças, encontrava sempre uma cobertura na sua

cama. Agora, jubilosas, auxiliavam a ama a banhar-se.

Quereis saber como chegou aos ouvidos de Orilus a notícia de que Artur

se havia ausentado da corte? Foi um cavaleiro que lhe transmitiu esta novidade: "Vi,

armadas em campo aberto cerca de mil tendas, ou mais! Não muito longe daqui

acha-se acampado Artur, o nobre e poderoso soberano dos bretões, acompanhado

de numerosas e encantadoras damas e sua corte. Embora distando apenas uma

milha daqui, o terreno é impraticável. Escuta-se ali o alegre e ruidoso alarido dos

217
cavaleiros que se acham acampados no declive do vale em ambas as margens do

Plimizoel."

O Duque Orilus saiu apressadamente do banho, seguido por leschute. A

meiga e doce criatura saiu do banho e se dirigiu à sua alcova, onde todas as suas

penas tiveram fim. Puseram-lhe um vestido magnífico, que de muito não usava.

Abraçando-se ternamente o príncipe e a princesa encontraram nesse amplexo o

máximo em satisfação amorosa. A seguir as damas da corte trataram de vestir sua

ama. Ao marido trouxeram a armadura, enquando leschute vinha sendo ataviada

com uma vestimenta magnífica. Sentados na cama, saboreavam com muito apetite

um assado de aves que haviam sido apanhadas em armadilhas. Enquanto comiam,

Orilus beijava leschute seguida e afetuosamente.

Terminada a refeição trouxeram para a nobre dama um vigoroso e

magnífico cavalo marchador, impecavelmente selado e embridado. A seguir trataram

de acomodá-la na sela, pois ela desejava acompanhar o intrépido marido. O cavalo

do duque foi equipado como se este se dispusesse a partir para o combate. A

espada que naquele dia usava em combate foi firmada na parte dianteira da sela.

Armado de ponto em branco encaminhou-se para o corcel e à vista da duquesa o

montou de um salto. Ao seu séqüito recomendou que regressasse a Lalant e a

seguir pôs-se em marcha com a duquesa. Um único cavaleiro, cujo regresso o

séqüito deveria aguardar no local, o acompanhou a fim de lhe servir de guia.

218
12. ORILUS E IESCHUTE NO ACAMPAMENTO DE ARTUR

Ao se aproximarem do local onde Artur se achava acampado constataram

que suas tendas, armadas às margens, se estendiam por uma milha rio abaixo. O

príncipe determinou ao cavaleiro que lhes havia servido de guia que regressasse.

Sua única acompanhante passou a ser a bela leschute. Naquele preciso instante o

afável e honrado Artur estava ceando ao ar livre, cercado de distintos membros de

sua corte. Eis que deles se aproximava o fiel Orilus, com elmo e escudo tão

retalhados pelos golpes de Parsifal que era impossível reconhecer os ornamentos

que neles havia. O destemido cavaleiro desmontou e a senhora leschute passou a

encarregar-se da montaria, segurando-a pelo freio. Grande número de jovens

fidalgos acorreu então, de sorte que em torno de ambos aglomerou-se grande

número de pessoas com todo exclamando ao mesmo tempo: "Deixai conosco o

encargo de cuidar dos cavalos." Colocando seu escudo mutilado sobre a relva O

nobre campeão perguntou onde poderia encontrar aquela que era a própria razão de

sua vinda. Indicou-se-lhe o local onde se encontrava a celebrada senhora Cuneware

de Lalant. Armado dos pés à cabeça aproximou-se, sendo então cumprimentado

pelos reis da Bretanha. Ele agradeceu e a seguir prestou diante da encantadora irmã

o compromisso de submissão. Ao deparar com o signo do dragão, certificou-se de

que estava diante de um dos dois irmãos, sem ter certeza de qual dos dois se

tratava. Por isso declarou "Tu és um de meus irmãos — ou Orilus ou Lahelin. De

nenhum dos dois aceito compromisso de submissão, pois sempre estivestes,

prontos a acudir-me e atender a qualquer desejo meu. Eu me consideraria indigna e

desleal se compactuasse com vossos inimigos."

219
O príncipe caiu de joelhos diante da jovem e disse: "Tem razão. Sou

Orilus, teu irmão. O cavaleiro vermelho me compeliu a agir desta forma, pois só

assim pude salvar minha vida. Aceita pois meu compromisso, a fim de que

fielmente cumpra o que prometi."

À vista disso estendeu ela sua alva mão e recebeu do portador da

insígnia do dragão o compromisso de lealdade, mas ato continuo o isentou de

quaisquer compromissos. Terminado o ato ele se ergueu e declarou: "Minha

lealdade me obriga a levantar uma queixa! Quem te maltratou? Não poderei

esquecer jamais as pancadas que levaste. Quando soar a hora da vingança todos

poderão compreender a grande humilhação que sofri. Solidário com minha queixa

está o varão mais intrépido que jamais uma mulher trouxe ao mundo. Ele se chama

o cavaleiro vermelho. Ele vos assegura, preclaro rei e ilustre rainha, mas em

especial a ti, minha irmã, que estará sempre pronto a vos servir. Como recompensa

ele vos pede que a jovem receba uma reparação. Certamente eu me teria entendido

melhor com o intrépido herói se ele tivesse sabido que Cuneware era minha irmã e

que por isso seus sofrimentos iriam comover-me mais profundamente."

A indignação das damas e dos cavaleiros acampados às margens do

Plimizoel voltou-se com renovada veemência contra Keye. Galvão, Jofreit, filho de

Ydoel, o captivo Rei Clamide, de cuja triste sorte já vos dei notícia e numerosos

outros fidalgos cujos nomes, por amor à concisão aqui omito, aproximaram-se

solícitos oferecendo seus préstimos, que polidamente foram aceitos. Eis que

conduziram ao local a senhora leschute montada em seu cavalo. O rei Artur e sua

real consorte deram-lhe cordiais boas-vindas e as damas saudaram-se trocando

beijos. Artur dirigiu-se então a leschute nestes termos: "Tenho em alta conta vosso

220
pai Lac, rei de Karnant. Por isso, tão logo soube do acontecido lamentei vossa triste

sorte. Sois tão encantadora que vosso esposo bem que poderia vos ter poupado

esses dissabores. Por vossa graça irradiante merecestes a vitória num concurso de

beleza realizado em Kanedic. Vós recebestes o gavião e o levastes convosco. Por

maior dano que Orilus me tenha causado não pude deixar de sentir profunda pena

de vós, da mesma forma que irá entristecer-me qualquer mal que venha a atingir-vos

de futuro. Daí minha alegria por terdes reconquistado a afeição de vosso esposo e

estardes novamente trajada como convém a uma dama de alto nascimento."

Ela respondeu: "Que Deus recompense vosso gesto. Ele confere brilho

ainda maior a vosso prestígio."

A senhora Cuneware de Lalant partiu em companhia de leschute e do

marido desta. Ao lado da tenda circular do Rei Artur erguia-se sua tenda a cavaleiro

de uma fonte murmurante. As garras de um dragão abarcavam parcialmente o

castão que encimava a tenda. Sob esse signo do dragão convergiam as quatro

cordas de sustentação, o que fortalecia a impressão de estar vivo e carregando a

tenda em seu vôo pelas alturas. Por essa figura heráldica Orilus identificou a tenda

da irmã, pois era esse o símbolo do brasão da família. Na tenda desembaraçaram-

no de sua armadura e a atraente irmã tratou de pô-lo à vontade. O assunto ali era o

cavaleiro vermelho e sua capacidade em somar à força viril os louros do heroísmo.

Keye pediu a Kingrun que tomasse a si o encargo de servir a mesa de

Orilus. Esse trabalho não era novidade para Kingrun, pois era esse o serviço que

prestava a Clamide em Brandigan. Keye tinha lá seus motivos para se esquivar

desse encargo: sua má estrela o havia induzido a castigar o couro da irmã do

221
príncipe com seu bastão. Tratou por isso de respeitar os melindres de Orilus, já que

Cuneware ainda não lhe havia perdoado a ofensa. Na verdade tratou de pôr à

disposição dos comensais enorme quantidade de pratos, mas coube a Kingrun

oferecê-los a Orilus. A digna senhora Cuneware serviu o irmão com suas brancas e

delicadas mãos enquanto a senhora leschute de Karnant comia com graça e

donaire. Enquanto transcorria assim essa refeição íntima o Rei Artur não se

descuidou de aparecer ali e de lhes dizer: "Se não estiverdes sendo servidos a

vosso gosto, não será por minha culpa. Asseguro-vos, todavia que, em parte

alguma, teríeis acolhimento mais afetuoso e hospitaleiro. Senhora Cuneware, tratai

do bem-estar de vosso irmão da melhor forma possível. Que Deus proporcione a

todos uma boa noite."

Com estas palavras Artur recolheu-se, enquanto ali se preparavam os

leitos onde, abraçados um ao outro, Orilus e Ieschute passaram a noite.

222
LIVRO VI

1. AS TRÊS GOTAS DE SANGUE NA NEVE

Quereis agora conhecer os motivos que levaram Artur a acolher o

conselho de seus nobres e deixar seu país e seu castelo em Karidoel? Segundo

consta de nossa narrativa já se haviam passado oito dias desde que ele e seus

paladinos se haviam ausentado do reino para atravessar outros países à procura

daquele que os havia cumulado de honras e que assumira o nome de "cavaleiro

vermelho". Aquele desconhecido havia livrado Artur de graves preocupações ao

traspassar o Rei Ither com seu venábulo e enviar tanto Clamide quanto Kingrun à

sua corte na Bretanha. Era este o motivo pelo qual o rei estava à sua procura.

Pretendia convidá-lo a se incorporar à Távola Redonda. Mas antes de partir

resolvera tomar uma judiciosa medida acauteladora: Todos os integrantes de sua

comitiva tiveram de assumir o compromisso de não se engajar em qualquer combate

singular sem sua permissão. Ele disse-lhes: "Atravessaremos muitos países onde

numerosos cavaleiros irão desafiar-nos. Possivelmente ser-nos-á dado ver muitas

lanças em riste oferecendo combate. Nesse caso não gostaria de que disparásseis

em corrida competitiva qual matilha de selvagens cães de caça à qual o monteiro-

mor houvesse soltado a trela. Se o combate não puder ser evitado podeis contar

223
comigo e com minha capacidade de decidir acerca da conveniência de aceitar o

repto."

Depois de vos inteirardes dessa promessa, talvez quisésseis saber o que

foi feito de Parsifal, o jovem de Valois. Depois dos fatos mencionados nesta

narrativa houve em plena primavera uma nevasca noturna que cobriu Parsifal

inteiramente. Artur é conhecido como "Cavaleiro de Maio", posto que tudo o que se

conta a respeito dele ocorre invariavelmente durante os festejos de Pentecostes ou

as florações de maio. Cuidou-se para que sempre respirasse os amenos ares de

maio. Nesta narrativa nem sempre as coisas acontecem no tempo certo, pois

ocorrem nevadas em pleno mês das flores.

Ao cair da noite os falcoeiros que Artur havia trazido consigo de Karidoel

vinham seguindo em direção ao Plimizoel para uma caçada em que pretendiam

empregar falcões. Foi aí que sofreram uma grande perda, pois seu melhor falcão

caçador se havia extraviado rápido e passara a noite na floresta.

Havia-se empanturrado tanto que desprezou todas as iscas. No decorrer

da noite instalou-se próximo ao local em que se encontrava Parsifal. Ambos sentiam

muito frio numa floresta que lhes era desconhecida. Ao amanhecer Parsifal

constatou que a estrada desaparecera sob uma camada de neve. Assim, pôs-se a

caminho pela ínvia floresta, troteando sobre paus e pedras. Aos poucos a luz do dia

vinha iluminando a floresta. Em meio a uma clareira havia um tronco caído, em cuja

direção Parsifal seguiu a trote lento. Sem que o tivesse percebido o falcão de Artur

seguira sua marcha. Na clareira haviam descido cerca de mil gansos selvagens que

enchiam o ar com suas grasnadas. Foi naquele momento que o falcão arremeteu em

224
célere ataque enterrando suas garras num dos gansos selvagens, que conseguiu

desvencilhar-se do agressor e a duras penas refugiar-se sob a ramagem do tronco

caído, mas já sem possibilidades de alçar vôo novamente. Escorrendo da ferida, três

gotas de sangue haviam caído na neve e agora passavam a se constituir motivo de

aflição para Parsifal. Tal aconteceu porque era fiel no amor. Ao avistar as gotas de

sangue sobre a neve alvíssima, disse de si para si: "Quem criou este deslumbrante

contraste de cores? Ele me faz lembrar de ti, Condwiramurs. Deus deseja minha

felicidade, pois permitiu que aqui encontrasse algo que se assemelha a ti,

Condwiramus. Que Suas mãos sejam louvadas e todas as coisas que Elas criaram!

Diante de mim está tua imagem, Condwiramurs! Tua face encantadora, ó

Condwiramurs, é como a alvissima neve que contrasta com o rubro sangue." Como,

ao caírem, as gotas tivessem assumido a configuração de um triângulo, tomou duas

pelas suas faces e a terceira pelo seu queixo. Isso era indicação segura de que seu

amor se havia conservado de forma inalterável. Absorto em pensamentos passou a

ignorar o mundo em torno, tamanho era o fascínio desse amor. Era a lembrança da

esposa que o havia posto em grande aflição. As cores pareciam as da face da

rainha de Pelrapeire, que se havia apossado por inteiro de seus pensamentos.

Parsifal pemaneceu imóvel como se estivesse adormecido.

2. O DUELO ENTRE PARSIFAL E SEGRAMORS

Mas quem vinha correndo repentinamente naquela direção era um dos

escudeiros de Cuneware, que estava a caminho de Laiant com uma mensagem de

sua ama. Foi quando ele se deparou com um elmo cheio de marcas resultantes de
225
golpes de espada e um escudo maltratado, sem saber que isso ocorrera a serviço

de sua ama. Diante dele achava-se um guerreiro armado dos pés à cabeça e com a

lança em riste, como se estivesse desafiando alguém para a luta. Sem perder tempo

tratou de regressar. Se tivesse descoberto a tempo que se tratava do cavaleiro de

sua ama, certamente não teria proferido seus altos brados de advertência. Ao invés

disso seus gritos fizeram todos os homens do rei saírem alarmados de suas tendas,

como se ele tivesse descoberto algum proscrito. Queria com isso prejudicar Parsifal,

mas na realidade prejudicaria apenas a si mesmo, pois adquiriria com esse

procedimento fama de tolo. Mas não lhe queiramos mal por isso. Afinal sua própria

ama também não passava de uma tonta. Alteando, pois a voz, bradou: "Que eterna

vergonha cubra a vós todos, gente miserável e desacreditada! Quem ainda fará fé

na honra de Galvão, dos outros cavaleiros de Artur e do próprio rei dos Bretões?"

Com gritos como "a Távola Redonda foi ultrajada, o acampamento foi invadido", o

escudeiro alarmou a todos.

Em conseqüência estabeleceu-se um tumulto entre os cavaleiros. Todos

quiseram saber se houvera um desafio e ao ser confirmada a notícia de que lá fora

havia efetivamente um cavaleiro pronto para combate, muitos deles se

arrependeram do compromisso que haviam assumido perante Artur. Segramors,

sempre disposto a combater, saiu correndo, dando grandes saltos. Quando havia

uma luta em perspectiva era preciso amarrá-lo; caso contrário, nela se envolveria

invariavelmente. Se acaso avistasse nas margens opostas do Reno um tumulto de

batalha não indagaria se esse curso de água era largo ou estreito, se a temperatura

da água era fria ou cálida, mas nela mergulharia de cabeça. Em desabalada carreira

dirigiu-se á área circular da tenda de Artur. Embora o nobre rei estivesse dormindo a

226
sono solto, Segramors saltou sobre as cordas de sustentação e penetrou na tenda.

Ali arrancou simplesmente a coberta da pele de marta que cobria o casal real

mergulhado em doce sono. Ao despertarem, sobressaltados, os dois sentiram que o

único remédio era rir desse gesto descarado. Ele, porém dirigiu-se em tom de

súplica à tia: "Senhora Ginover, minha soberana, todo o mundo sabe que somos

parentes e que posso contar com tua boa vontade. Ajuda-me, pois senhora, e dize a

teu esposo Artur: Há aventura à vista nas proximidades. Consegue o consentimento

dele para que seja eu o primeiro a me empenhar em luta singular."

Mas Artur advertiu-o: "Tu me prometeste solenemente que acatarias

minhas determinações e tratarias de refrear tuas atitudes irrefletidas. Se eu te fizer

as vontades outros pedirão meu consentimento para merecer a honra de se

distinguir em combate. Isso enfraqueceria nossos mecanismos de defesa. Estamos

muito próximos do exército de Anfortas que, a partir de Munsalvaesche, promove

incursões na região a fim de defender a floresta que serve de fronteira ao seu reino.

Como não conhecemos a exata posição do castelo podemos encontrar-nos de uma

hora para outra numa situação difícil."

Para satisfação de Segramors, Ginover insistiu com Artur para que

atendesse as pretensões do sobrinho. Quando, ao cabo, obteve permissão de se

lançar nessa aventura ficou tão contente que quase morreu de alegria. Não havia

preço neste mundo que o fizesse abrir mão, em favor de outrem, dos louros que

esperava conquistar nesse encontro. Sem perder tempo o altivo e imberbe Rei

Segramors determinou que o armassem e que igualmente equipassem seu cavalo

de batalha. Lá se ia ele a galope mata adentro, com seu corcel transpondo aos

saltos a vegetação rasteira, de sorte que os muitos guizos dourados presos à

227
armadura e à teliz retiniam sonoramente. Se fosse falcão e tivesse sido posto/= ao

encalço de algum faisão escondido na mata baixa de espinheiras o sonoro tinir dos

guizos teria assinalado de longe sua presença. Bem disposto ia, pois, o fogoso

guerreiro ao encontro do homem que o amor havia mergulhado no mais profundo

alheamento. Contudo não investiu sobre ele a golpes e estocadas sem antes

desafiá-lo formalmente para combate.

Parsifal permaneceu absorto na mesma posição. Achava-se inteiramente

dominado pelo fascínio das gotas de sangue e por uma paixão sem limites, que a

mim próprio, em mais de uma oportunidade, convulsionou o coração até os limites

do desespero. Ah, ralo-me de penas por causa de uma mulher! Mas se ela me levar

a uma situação sem esperanças, assumirá também a responsabilidade pelo fato de

eu lhe voltar as costas. Prossegui pois ouvindo o relato sobre o iminente choque

entre Parsifal e seu adversário.

Segramors exclamou: "Senhor, vós procedeis como se tivésseis um

prazer especial no fato de estarem acampados diante de vós um rei com seus

vassalos. Se isso vos for indiferente, tereis de mudar de atitude ou eu me arrisco a

perder a vida. Postes longe demais em vossa vontade de competir. Faço-vos agora

uma proposta generosa: Rendei-vos de livre e espontânea vontade! Se

discordardes, tereis o que mereceis - uma queda espetacular na neve! Portanto uma

rendição honrosa apresenta-se para vós como a solução mais conveniente."

Apesar das ameaças Parsifal permaneceu imóvel, pois a senhora Paixão

o mantinha imerso em outra ordem de preocupações. Foi então que o bravo

Segramors obrigou a montaria a voltar-se e a se lançar para o ataque. Naquele

228
preciso momento o magnífico castelhano de Parsifal virou-se, assumindo uma

posição de ataque. Com esse movimento as gotas de sangue saíram do campo de

visão de Parsifal. A nova posição da montaria resultaria para o ginete em fator de

sucesso, pois ao perder de vista as gotas de sangue a senhora Razão fê-lo de

pronto recobrar a consciência. O Rei Segramors já vinha avançando sobre ele em

impetuoso ataque. Parsifal ainda teve tempo para colocar em posição horizontal a

lança de Troyes, cuja haste era sólida, flexível e multicolorida. Embora o lançaço do

adversário lhe perfurasse o escudo seu contragolpe atingiu tão certeiramente o

ilustre Segramors que este acabou sendo descavalgado sem nem ao menos ter

quebrado sua lança. Aprendeu assim a arte de ir ao chão. Parsifal, por sua vez, sem

dizer palavra voltou a se concentrar nas gotas de sangue. Tão logo as tivesse

novamente sob sua vista a senhora Paixão voltaria a enleá-lo com seus sortilégios.

Quieto, mergulhou uma vez mais num estado de total alheamento.

O castelhano de Segramors regressou tranqüilamente à sua cocheira.

Seu ginete não teria outra saída senão erguer-se, caso lhe aprouvesse regressar ao

acampamento. Isso se da parte dele houvesse efetivamente vontade de levantar-se.

Afinal ele já estava deitado como sabeis, quando alguém se deita a intenção é

descansar. Mas descansar como e ainda por cima na neve? Se estivesse no lugar

dele essa situação por certo não me agradaria. Mas isso é assim mesmo: quem se

encontra em situação ridícula não precisa cuidar dos motejos que não tardarão em

vir e quem é bem-sucedido recebe cumprimentos.

O exército de Artur achava-se acampado tão próximo ao local do encontro

que os homens do rei puderam observar todo o desenrolar da cena, inclusive a volta

de Parsifal à sua posição anterior. Este não teve outra opção senão render-se aos

229
ditames da paixão, a cujos apelos nem mesmo Salomão107 soube resistir. Não muito

depois Segramors retornou para junto dos companheiros. A indiferença de uns e a

solidariedade de outros ele retribuiu com desaforos, justificando-se com o seguinte

argumento: "Por experiência própria bem sabeis que uma justa é um jogo de dados.

O desfecho de uma luta singular é sempre um indo ao chão. Até mesmo navios de

alto bordo acabam naufragando. Se ele tivesse reconhecido o símbolo que carrego

no escudo teria posto sua salvação na fuga. Disso estou convencido. Para minha

desgraça isso não aconteceu. Agora continua ele postado diante do acampamento

em atitude de desafio. No fim das contas o desempenho dele foi bastante razoável."

O intrépido Keye transmitiu ao rei a notícia de que Segramors havia sido

descalvagado e que lá fora um jovem robusto mantinha-se em atitude de desafio.

"Senhor, jamais perdoaria a mim mesmo se o deixasse partir sem lhe dar uma lição.

Caso me julgueis digno da missão peco-vos permissão para castigá-lo pela

descarada ousadia de desafiar-nos com lança em riste e isso com vossa esposa

presente. Vossa recusa me afastará de vós. Se ele não for compelido a tempo de

mudar de comportamento, a Távola Redonda estará desonrada. Ele se pavoneia às

custas de vossa honra.

Permiti que entre na liça, pois já está em tempo de chamá-lo às falas, a

menos que nós estejamos surdos e cegos."

À vista disso Artur consentiu que Keye combatesse. Enquanto lhe

punham a armadura o senescal se jactava, dizendo-se disposto a quebrar toda uma


107
Salomão. A indicação de que mesmo Salomão com toda a sua sabedoria teve que se dobrar à força do
amor serve freqüentemente de argumento para aqueles que pretendem ver na paixão amorosa uma força
irresistível capaz de subjugar até mesmo os mais experientes. Salomão, que reinou sobre Israel entre 965 e 925
a.C., é tido como o autor dos Cânticos dos Cânticos.

230
floresta de lanças. O desconhecido já vinha suportando o peso ingente da paixão

que o sangue e a neve lhe haviam imposto; incorreria, pois em pecado quem se

dispusesse a sobrecarregá-lo ainda mais. Isso seria uma situação inglória para o

amor que o havia dominado tão completamente.

3. EXCURSO SOBRE A NATUREZA DA PAIXÃO108

Senhora Paixão, por que não concedeis ao saudoso amante senão

momentos efêmeros de felicidade para logo a seguir precipitá-lo inapelavelmente na

danação? Por que atirais ao pó a força viril e a alegria de viver? Quem se dispõe a

enfrentar-vos será vencido, pois Vossa força dominadora é de fato inquebrantável!

Entretanto Vosso sucesso depende única e exclusivamente de Vossa companheira,

a senhora Atração. Sem ela serieis impotente. Vossas práticas são detestáveis

desde que o mundo é mundo. Grande é o número de mulheres que expusestes à

desonra, ao induzi-las a manter relações incestuosas. Abusastes, ademais, de

Vossa força ao conseguir que senhores, vassalos e amigos se enganassem uns aos

108
Paixão é o termo mais adequado para traduzir a “Minne” germânica. Na literatura cortes dos séculos
XII e XIII a “Minne” constitui-se em motivo central dos “Minnesänger” (trovadores) para exprimir as mais
elevadas experiências humanas nos domínios da vida afetiva. Com pequena variação na lírica e na épica ela
passou a traduzir uma relação do tipo muito especial entre o cavaleiro e sua dama. Ao tempo, os poetas
desenvolveram o conceito de “hohe Minne” (paixão sublime) para distingui-la da “niedere Minne” (paixão
comum), sinônimo da simples satisfação dos sentidos. A dama, objeto de culto do poeta, encarnava sempre a
imagem da mulher ideal e, dada a sua elevada posição – princesa, duquesa etc. -, permanecia para sempre
inatingível para o trovador apaixonado. Essa distância entre amante e amada era tão grande que mesmo os versos
mais apaixonados eram considerados simples homenagem. Uma paradigma dessa mulher ideal era Santa Isabel,
esposa de Landgrave Hermann I da Turquia, protetor das Belas Artes e amigo pessoal de Wolfram. No tempo de
Dante o ambiente cortês já estava em decadência. Por isso situou sua amada Beatrice num nível próximo a Nossa
Senhora, brindando-a com epítetos como “benedetta” e “gentilíssima”, até então qualificativos exclusivos da
Virgem Maria. Com o desaparecimento dos trovadores a “Minne sublime” se degradou, dando lugar a um tipo de
literatura vulgar que, em Portugal, seria conhecida como “Cantigas de Escárneo e de Maldizer”. O
neopaganismo renascentista substituiu a “Senhora Minne” pela “Senhora Vênus”. Somente com o advento do
Romantismo a paixão nobre que a “Minne” exprimia será revalorizada. N.T.

231
outros. Com esse procedimento adquiris triste fama. Devíeis corar de vergonha por

instigar os homens à concupiscência e comprometer com isso a salvação de suas

almas. Sois pérfida, senhora Paixão, pois tendes o poder natural de privar a

juventude de seu viço efêmero e envelhecer os homens prematuramente.

Só um homem, ao qual jamais proporcionastes consolação, pode atrever-

se a proferir tais palavras. Se não me tivésseis recusado esse consolo poderíeis

contar agora com meus encômios. Mas me pusestes de quarentena e manipulastes

os dados de modo que sempre perdesse no jogo do amor. Por isso não tenho a

mínima confiança em vós. Minhas aflições Vos foram sempre indiferentes. Situada

muito acima do plano em que me encontro, minha ira impotente não consegue

sequer levantar uma queixa contra Vós. Cuidastes inicialmente para que o amor

deitasse profundas raízes em meu coração para, a seguir, sobrecarregá-lo de

tribulações. O Senhor Heinrich von Veldecke109 procurou descrever Vossa índole

comparando-a simbolicamente a uma árvore. Infelizmente não nos ensinou a arte de

Vos conter. Na verdade sua alegoria nos indica a maneira de Vos conquistar e com

isso conseguiu apenas que muita gente sem juízo desperdiçasse a felicidade de sua

vida. Se eu tiver a mesma sorte, queixar-me-ei de Vós. Sois, todavia, a

quintessência da sabedoria. Não há espada, escudo, corcel veloz ou castelo

altanado de sobranceiras torres capaz de Vos Infligir qualquer dano. Contra Vós não

há defesa. Não há criatura na Terra e no Mar, quer nade ou voe, capaz de sobrepor-

se a Vós. Destes uma demonstração de Vossa força quando Parsifal, o intrépido

varão, passou a Ignorar o mundo à sua volta. Foi essa nobre, encantadora e

109
Heinrich von Veldecke (1140-1210), autor da epopéia “Eneida”, elaborada entre 1170 e 1190 a partir
de uma lenda de São Servácio. A alusão remete a um trabalho que se perdeu, pois as obras do poeta que
sobreviveram à voragem dos séculos não contém qualquer tema que possa ser relacionado à observação de
Wolfram.

232
recatada mulher, a rainha de Pelrapeire, que Vos cometeu o encargo de entrar em

contacto com ele. Não é de esquecer, todavia, que levastes à morte Kardeiz110,

irmão de Condwiramurs, filho de Tampenteire. Ao verificar o alto preço de Vossa

felicidade rendo graças a Deus por não haver recebido de Vós qualquer feudo.

Seria preciso prometer-me algo mais atraente. Penso ter falado em nome de todos.

Atentai agora para o que ali aconteceu logo depois.

4. O DUELO ENTRE PARSIFAL E KEYE

Rijo, bem equipado e disposto, partia Keye para a luta. Mas tenho por

mim que o filho do Rei Gahmuret não irá recuar diante dele. Não há dama com

ascendência sobre um coração masculino que não reze pelo sucesso de Parsifal

porque foi a paixão por uma mulher que o deixou cego, surdo e sem fala. Antes de

dar início à luta Keye dirigiu-se ao jovem de Valois nestes termos:

"Senhor, ofendestes o rei, mas dou-vos um conselho: colocai em vosso

próprio pescoço uma coleira de cão a fim de que vos conduza à presença dele.

Será melhor para vós porque não vos darei oportunidade para fugir. De uma forma

ou de outra sereis conduzido à presença do rei, onde por certo não sereis recebido

com sorrisos e cumprimentos."

110
Kardeiz. Parsifal daria mais tarde o mesmo nome a um de seus filhos. Por outro lado, a História da
Literatura não faz menção a qualquer personagem com esse nome que tinha sido levado à morte em virtude de
uma paixão amorosa.

233
O jovem de Valois permaneceu silencioso, paralisado pela Paixão. Keye

golpeou-o então com violência, fazendo ressoar o elmo do adversário enquanto

berrava: "Acorda, homem, senão acabarás sendo inumado sem lençol! Se não me

falhar o braço rijo, cairás estatelado na neve. Até mesmo a azêmola que transporta a

carga para o moinho se anima quando se lhe castiga o couro."

Agora prestai atenção, senhora Paixão! Acredito que fostes ultrajada, pois

só um rústico campônio seria capaz de afirmar que esse insulto é dirigido ao meu

herói. Ele reagiria, se recuperasse a fala. Senhora Paixão, permiti que o nobre varão

de Valois vá à forra! Livre de Vossos tormentos e de Vossa penosa e asfixiante

opressão, saberá defender-se.

O violento golpe de Keye obrigou a montaria a se deslocar o suficiente

para que o jovem de Valois perdesse de vista aquilo que o enternecia e angustiava.

Quero referir-me ao sangue sob a neve que para ele se havia convertido em signo

alegórico da esposa, a rainha de Pelrapeire. O retorno da senhora Razão fê-lo

recobrar a consciência. Sem conseguir reprimir por mais tempo sua impaciência,

Keye tomou a iniciativa. Com a lança em posição horizontal investiu sobre Parsifal

que a essa altura também vinha avançando a toda a brida. No entrechoque a lança

de Keye abriu certeiramente uma janela no escudo do adversário. Mas o revide

deste foi devastador. Seu contragolpe arremessou o Senescal do Rei Artur

juntamente com sua montaria para o lado oposto do tronco sob o qual o ganso ferido

se havia refugiado. O balanço foi trágico: o cavalo morreu e o cavaleiro ficou

gravemente ferido. Keye fraturou a perna esquerda e o braço direito, que na queda

ficaram presos entre o arção da sela e um enorme bloco de pedra. O choque foi tão

violento que danificou sela, cilha e guizos. Desse modo o desconhecido desagravou

234
de uma só vez duas ofensas uma infligida a Cuneware; outra a ele próprio. Depois

desse episódio o honrado Parsifal deixou que o sentimento de lealdade o

reconduzisse às três gotas de sangue sobre a neve, que o haviam deixado fora de

si. A imagem do Graal e da esposa voltara a atormentá-lo. Mas a saudade pela

esposa sobrepunha-se a todas as inquietações que lhe toldavam o espírito. Uma vez

mais o amor se mostrou capaz de abalar as sólidas estruturas morais do homem.

Portanto a grande questão no caso não era a felicidade, mas a angústia por dela

achar-se privado.

Homens intrépidos iriam lamentar a má sorte de Keye. Sua coragem viril o

havia impelido a se engajar em muitas lutas. Devemos admitir que na opinião da

maioria o Senescal de Artur não passava de um grosseirão. Mas meu relato o

absolve desse defeito. Na realidade era um homem digno e bravo. E ainda que

poucos concordem comigo eu vos asseguro que Keye foi um bravo e leal cavaleiro.

E digo mais: A corte do Rei Artur atraiu sempre toda a sorte de adventícios, nobres

ou aventureiros vulgares. Mas Keye não se deixava enganar, por mais hábil que

fosse o trapaceiro. Os que se revelavam como homens dignos e descendentes de

nobre estirpe podiam sempre contar com sua consideração e pronta ajuda. Entre

suas qualidades devo destacar seu arguto senso crítico. Na sua preocupação por

proteger o soberano de toda a sorte de maus elementos assumia não poucas vezes

atitudes intolerantes. Sabia distinguir muito bem os verdadeiros fidalgos dos

hipócritas e trapaceiros. Sobre esses malfeitores caía qual granizo devastador. Suas

estocadas revelavam-se para eles mais dolorosas que os ferrões das abelhas. Por

isso procuravam denegrir seu bom nome perante os outros e como para ele a

verdadeira honradez era de suprema importância votavam-lhe um ódio mortal. Ó

235
príncipe Hermann da Turíngia111, Tu devias ter junto de ti um Keye, pois teus hábitos

liberais reuniram em torno de ti uma fauna bem variada. Nobres e indignos

aglomeram-se indiscriminadamente em torno de ti. Essa situação levou o senhor

Walther von der Vogelweide112 a Iniciar uma de suas canções com esta invocação:

"Bom dia, bons e maus!" A existência de tal canção é sinal de que os indivíduos

fingidos desfrutam de prestígio excessivo. Se o senhor Keye ou o senhor Helnrlch

von Rlspach113 fosse teu conselheiro o trovador nâo teria motivos para compor esta

canção. Atentai, agora para os fatos extraordinários que ocorreram na campina de

Plimizoel. Inicialmente tratou-se de transportar Keye para a tenda de Artur, onde

seus amigos - muitas damas e numerosos cavaleiros - puseram-se a lamentar sua

falta de sorte. O senhor Galvá[ão também se debruçou sobre ele, dizendo: "Que dia

fatídico! Por que houve esse combate singular do qual resultou a perda deste

amigo?" Suas palavras de pesar foram sinceras, mas Keye o contestou colérico:

"Senhor, acaso tendes pena de mim? O choro é próprio das carpideiras. Mas vós

sois o sobrinho do meu soberano. Sempre estive pronto a vos servir consoante

vossos desejos. Enquanto Deus houve por bem manter-me sadio de corpo, acudi-

vos sem titubear e se pudesse o faria agora. Cessai os lamentos! Saberei suportar

minhas dores. Vosso tio, o nobre Rei Artur, jamais achará outro Keye, mas acredito

que sois suficientemente distinto para vingar-me. Se nesse combate singular

tivésseis perdido um único dedo, podeis crer-me que me teria arriscado a perder a

vida, só para vos vingar. Mas deixai passar estas minhas alfinetadas."

111
Hermann I (1155-1217), Landgrave da Tunísia, Mecenas dos poetas contemporâneos do autor e
patrocinador do Grande Concurso dos Trovadores realizado em 1207 no castelo de Wartburgo.
112
Referência a uma canção de Walther von der Vogelweide (1170-1230), o mais famoso dos poetas
líricos alemães da Idade Média.
113
Heirinch von Rispacho. Fidalgo que se supõe ter sido mordomo-mor na corte bávara. Seu antigo feudo,
a atual Reisbach, acha-se situado junto ao Rio Vils nas imediações de Landshut..

236
5. PARSIFAL E GALVÃO

"Lá fora está à espera um homem que não pensa em se afastar dali

furtivamente a trote ou a galope. Se efetivamente tiverdes ânimo para enfrentá-lo,

correreis o risco de passar por maus momentos. O mais fino e delicado cabelo de

mulher seria suficientemente forte para vos manter distante da luta. A mãe de um

cavaleiro assim tão afável pode orgulhar-se dele, mas o pai pode com alguma razão

esperar dele alguma disposição heróica. Agarrai-vos firme à saia de vossa mãe,

senhor Galvão, ao verdes o cintilar das espadas, revelando fraqueza, ao invés de

tempera viril."

Era com tais observações depreciativas que Keye atacava no seu ponto

mais fraco um respeitável cavaleiro que se sentia tolhido, pela discrição e fidalguia,

de repelir tais ofensas no mesmo tom. Daí ouvi-las calado. Um homem sem

categoria agiria naturalmente de outro modo.

Á vista disso Galvão disse a Keye: "Quem tiver atentado às reações do

meu rosto deve ter-se convencido de que não serão golpes nem lançaços que em

combate me farão perder a cor. Tu me repreendes sem razão, uma vez que sempre

pudeste contar comigo." Dito isso deixou a tenda e determinou que lhe trouxessem

seu cavalo de batalha. Dispensando espada e esporas o nobre paladino montou e

se dirigiu ao local em que o homem de Valois, entregue à sua paixão, permanecia

alheio ao que se passava em derredor. Seu escudo exibia as marcas dos lançaços

de três adversários, sem mencionar os estragos que a espada de Orilus lhe havia

infligido. Galvão não estimulou a montaria ao galope e evitou qualquer gesto que
237
pudesse ser interpretado como intenção hostil. Adotando uma atitude de

transigência procurou descobrir os motivos que teriam desencadeado os combates

anteriores. O estranho não lhe retribuiu o amável cumprimento. Tal atitude não era,

afinal, tão fora do comum, pois esta já era a terceira vez que a senhora Paixão havia

aprisionado o filho de Herzeloyde em seus laços. Em tais momentos certas

características herdadas de antepassados e de ascendentes imediatos, bem como

sentimentos excepcionalmente intensos, tinham o dom de mergulhá-lo numa

espécie de transe durante o qual ignorava o mundo à sua volta. Eis porque as

palavras de Galvão não puderam traze-lo de volta ao estado consciente. O filho do

Rei Lot o advertiu nos seguintes termos: "Senhor, vós desprezais meu cumprimento!

Se ansiais por luta será engano supor que irei recusar-me a dialogar convosco em

outro estilo. Vós insultastes o rei, seus paladinos e seu séquito. A despeito disso

tentarei obter para vós graça e perdão junto ao rei, se estiverdes disposto a seguir

meu conselho e a acompanhar-me." Mas o filho do Rei Gahmuret permaneceu surdo

e indiferente a todos os apelos e ameaças.

Tais estados mórbidos não eram de todo estranhos a Galvão, o mais

renomado cavaleiro da Távola Redonda. Ele certa feita os pôde sentir na própria

pele, quando impelido pela ilimitada paixão por uma mulher perfurara a própria mão

com um punhal114. Em outra oportunidade, quando vencido em rude combate

singular pelo intrépido Lahelin, uma rainha lhe salvara a vida. Para tanto a meiga e

encantadora mulher empenhara sua própria vida. Essa criatura fiel e abnegada era a

Rainha Ignuse de Bachtarliez115. Galváo dizia de si para si: "Quem sabe o amor

imobilizou este cavaleiro, a exemplo do que já ocorreu comigo? A paixão o

114
A produção literária medieval que chegou até nós não faz menção a esse episódio.
115
Ignuse e Bachtarliez. Nenhuma obra medieval conhecida faz menção a esse episódio, nem à
personagem citada por Wolfram.

238
subjugou, talvez, e o deixou fora de si."Observando o local no qual os olhos

fascinados de Parsifal se mantinham fixos, decidiu cobrir as marcas de sangue com

seu mantelete de tecido sírio forrado de seda amarela.

No momento em que o mantelete privou Parsifal da visão desses sinais a

Rainha de Pelrapeire permitiu que recobrasse a consciência, permanecendo,

contudo, senhora de seu coração. Ouvi suas palavras, pois ele então exclamou: "Ah,

senhora e esposa minha! Quem foi que te arrebatou de mim? Com meu

desempenho como cavaleiro acaso não conquistei eu teu rico amor e com ele tua

coroa e teu reino? E não fui também eu quem te libertou de Clamide? Naquela hora

eu só ouvira lamentos daqueles que deviam socorrer-te e gemidos dos corações

mais intrépidos. Não sei o que se passou comigo, pois em pleno dia uma nuvem te

ocultou da minha vista." E prosseguiu lamentando-se: "Ai de mim, que é feito da

lança que trouxe comigo?"

Foi então que Galvão interveio: "Senhor, ela se partiu em combate!"

"Em combate contra quem?" indagou surpreso o nobre campeão. "Vós

próprio não portais escudo nem espada. Que glória teria eu alcançado num combate

convosco? A despeito disso zombai à vontade. Perderíeis talvez a vontade de

escarnecer de mim se soubésseis que me sagrei vencedor em muitos combates

singulares. Se preferirdes não me enfrentar, asseguro-vos que encontrarei alhures

fama, aventura, alegrias e perigos."

Mas o senhor Galvão se manteve conciliador: "Minhas palavras não

apenas correspondem à verdade como ainda foram ditas com a melhor das

239
intenções. O que vos proponho não resultará em vosso prejuízo. Nas proximidades

acha-se acampado um poderoso rei em companhia de muitos cavaleiros e damas

encantadoras. Se minha companhia vos aprouver conduzir-vos-ei à presença do rei

e vos resguardarei de todas as provocações."

"Senhor, eu vos agradeço. Tratais-me com tanta gentileza que gostaria de

demonstrar meu reconhecimento. E já que me ofereceis vossa amizade gostaria de

saber quem sois e quem é vosso soberano."

"Meu soberano é um homem a quem devo muitos favores. Em poucas

palavras, ele sempre me tratou com aquela distinção que normalmente um cavaleiro

pode esperar de seu rei. Sua irmã, esposa do Rei Lot, é minha mãe. Tudo aquilo

que Deus me deu está à disposição dele. Seu nome é Artur. Eu mesmo não sou um

ilustre desconhecido. As pessoas que me conhecem me chamam de Galvão. Se

concordais em acompanhar-me podeis dispor de meus préstimos."

Parsifal então exclamou: "Se tu és Galvão, então a gentileza de que sou

alvo não decorre de meus méritos, pois é sabido que tu tratas a todos com igual

distinção. Entretanto tua gentileza me obriga a ser igualmente gentil. Dize-me pois a

quem pertencem todas essas tendas? Se for efetivamente Artur, então não poderia

encarar de cabeça erguida nem a ele nem a rainha, sem antes tirar vingança de uma

ofensa que me foi infligida e que até hoje me magoa profundamente. O caso

passou-se do seguinte modo: uma jovem dama da corte riu-se de mim e por isso o

Senescal a espancou de forma desapiedada, até seu bastão se quebrar."

240
"Tu podes considerar-te mais que vingado", observou Galvão. "Ele

quebrou o braço direito e a perna esquerda. Aproxima-te e vê aquele cavalo morto

em cima do bloco de pedra. Os estilhaços que vês aqui espalhados na neve são da

lança pela qual ainda há pouco perguntaste."

Ao ver confirmadas as afirmações de Galvão, Parsifal deu-se por

satisfeito: "Galvão, parece tratar-se efetivamente daquele homem que me insultou.

Se assim for irei contigo para onde quiseres."

"Que razão teria eu para enganar-te"? respondeu Galvão. "De resto,

esteve aqui estendido no chão o aguerrido Sagramors, um campeão celebrado por

seus muitos feitos. Tu o descavalgaste, antes de abater Keye. Em ambos os

encontros obtiveste os louros da vitória."

Parsifal e Galvão partiram, pois, dali. No acampamento foram saudados

amável e respeitosamente por numerosas pessoas que a pé e a cavalo haviam ido

ao encontro deles. Galvão dirigiu-se à sua tenda, contígua à de Cuneware de Lalant.

Muito animada, esta deu boas-vindas ao cavaleiro que vingara os agravos que

sofrerá nas mãos de Keye. De mãos dadas com o irmão e a senhora leschute de

Karnant foi ao encontro de Parsifal que, nesse ínterim, havia tirado a armadura.

Embora ainda coberto de manchas de ferrugem mostrava-se radiante qual rosa

molhada pelo sereno. Ao avistar a dama, ergueu-se de pronto. Ouvi o que Cuneware

lhe disse: "Deus e eu vos damos boas-vindas, pois sempre vos conduzistes com

intrepidez exemplar. Evitei o risco até que o coração me revelasse quem sois. Foi

em virtude disso que os maus tratos de Keye me trouxeram dores e mágoas. Mas

241
vós me vingastes de forma exemplar. Se me considerásseis suficientemente digna,

gostaria de vos saudar com um beijo."

"Nada me agradaria mais"- respondeu Parsifal - "se pudesse atrever-me a

tanto. Sinto-me sobremodo feliz com vosso gesto."

Ela o beijou e o convidou a tomar assento. A seguir enviou uma jovem à

sua tenda com a incumbência de trazer de lá alfaias de preciosa seda de Nínive, já

prontas para o uso, pois inicialmente haviam sido destinadas para Clamide, seu real

prisioneiro. A moça as trouxe e se desculpou pelo fato de o manto ainda não estar

provido do respectivo cordão. Cuneware retirou então o cordão de seus próprios

quadris e o enfiou nas alças do manto. Parsifal pediu permissão aos presentes para

retirar as nódoas de ferrugem que ainda lhe aderiam ao rosto. Todos puderam então

admirar não apenas seus lábios vermelhos como ainda seu rosto alvo e sem

mácula. Ataviado assim, assumiu uma aparência bela e vistosa. Quem pôde vê-lo

considerou-o uma estampa de homem e ele bem que fazia jus a esses encômios. As

vestes assentavam-lhe maravilhosamente bem. Uma esmeralda verde, fazendo as

vezes de broche, prendia as abas da gola. Como remate Cuneware ofereceu-lhe um

precioso cinto guarnecido de signos zoomorfos e pedras preciosas, cuja fivela era

constituída de um rubi. Que tal parecia esse jovem imberbe depois de tê-lo posto?

Segundo assegura meu relato, excepcionalmente bem. Quem quer que o

contemplasse não poderia deixar de admirá-lo.

242
6. A ADMISSÃO DE PARSIFAL NA TAVOLA REDONDA

Depois de ouvir missa o nobre Rei Artur e os mais distintos membros da

Távola Redonda apareceram no local, pois foi lhes dito que o cavaleiro vermelho

estaria na tenda de Galvão. Antanor, que havia sido castigado por Keye, corria à

frente, antecipando-se a Artur, o bretão, e ao se deparar com Parsifal indagou: "Sois

vós que reparastes a injúria infligida a mim e a Cuneware de Lalant? Todos cantam

vossa glória e Keye, a essa altura, é uma carta fora do baralho. Suas ameaças

cessaram. Suas pancadas já não mais me infundem temor, pois sua destra está

impotente."

O jovem Parsifal parecia um anjo do Senhor. Faltavam-lhe apenas as

asas. Artur e seus paladinos deram-lhe cordiais boas-vindas e todos os visitantes

demonstraram-lhe amizade. Dada a sua irradiante simpatia, caiu logo no agrado

geral. Artur lhe disse: "Postes para mim motivo de alegrias e de penas. Mas

sopesando bens e males, alargastes meu prestígio mais que qualquer outro sem me

dar oportunidade de me mostrar agradecido. Se vosso mérito ficasse restrito

unicamente à reconciliação da duquesa leschute com seu esposo ainda assim vos

ficaria devendo favores. Uma palavra vossa bastaria para que mesmo sem desforço

pessoal recebésseis cabal reparação pelos malfeitos de Keye." Artur revelou-lhe

então o que esperava dele e o que o induzira a cruzar muitas terras estranhas até

atingir aquele local. Os cavaleiros, por sua vez, instaram com ele que aderisse à

comunidade cavaleirosa da Távola Redonda. Essa solicitação veio ao encontro de

mais caros desejos.Contente e orgulhoso, aceitou logo.

243
Julgai agora por vós mesmos se naquele dia a Távola Redonda tinha

condições de cumprir os preceitos de seus estatutos. É que uma tradição

estabelecida por Artur requeria que os cavaleiros só se congregassem em torno da

mesa se a jornada culminasse com algum acontecimento fora do comum. Para o

prestígio dos membros da confraria essa condição necessária havia sido atendida. A

Távola Redonda permanecera em Nantes. Por isso num prado florido, livre de

arbustos e tendas, tratou-se de criar uma reprodução simbólica daquela Távola.

Com isso o Rei Artur pretendia prestar uma homenagem ao cavaleiro vermelho que

desse modo era recompensado por seus altos feitos. Uma peça de seda de

Acraton116, procedente da distante terra dos pagãos, era cortada de modo que

correspondesse a um círculo para servir de arremedo à Távola Redonda. Seus

estatutos prescreviam que nenhum de seus integrantes poderia reivindicar um lugar

de honra. Disso resultou que todos os lugares fossem igualmente honrosos. Por

ordem de Artur tinham assento ali damas e cavaleiros indistintamente. Na corte

todos comiam juntos - jovens, damas e cavaleiros. A única exigência era possuir

fama dilatada e genuína e inegável distinção.

A senhora Ginover compareceu ao local rodeada de damas

encantadoras, entre as quais havia várias princesas cujas presenças constituíam-se

um espetáculo para os olhos. A magnitude da Távola Redonda era tal que cada

dama tinha lugar assegurado junto a seu bem-amado. Eis que vinha aproximando-se

do local o fidelíssimo Rei Artur, de mãos dadas com Parsifal, a cujo lado vinha

Cuneware de Lalant, já resgatada de todas as penas. O rei encarou Parsifal

firmemente. Ouvi agora o que lhe disse: "Dou meu consentimento para que minha

116
Acraton. Cidade mítica do oriente situada nas imediações da Babilônia, que detinha a primazia sobre as
demais.

244
velha esposa dê a vós, que estais na flor dos anos, um beijo de boas-vindas. Na

verdade aqui não tendes por que pedir beijos a alguém, pois vindes de Pelrapeire

onde vive uma dama cujos beijos representam a suprema ventura. Faço-vos por isso

um pedido: se um dia estiver convosco em Pelrapeire espero que este beijo me seja

retribuído." Assim falou Artur.

"Qualquer pedido vosso, em qualquer lugar, será atendido", disse Parsifal.

A rainha aproximou-se dele então e lhe deu um beijo de boas-vindas.

"Com isso" - declarou - "eu vos perdôo as mágoas que me causastes ao tirar a vida

ao Rei Ither quando da última vez que aqui estivestes." Essa reconciliação fez com

que as lágrimas aflorassem aos olhos da rainha, pois a morte de Ither infundira

tristeza em todos os corações femininos.

O lugar destinado a Clamide dava para as margens do Plimizoel. Ao lado

dele achava-se Jofreit, filho de Ydoel, enquanto Parsifal tomou assento entre

Clamide e Galvão. Segundo novo relato não havia alguém na Távola Redonda que

se lhe avantajasse em distinção e fidalguia. Nele se combinavam vigor e juventude e

quem o contemplasse teria de reconhecer que muito espelho de dama era mais

turvo que seus lábios brilhantes. Seu queixo e suas faces tinham um fascínio

comparável a uma tenaz, que atraía a constância e repelia a dubiedade. Quero

referir-me àquelas mulheres inconstantes no amor. Sua bela aparência inspirava

lealdade e afugentava a volubilidade. Sua imagem insinuava-se nos olhos e se

alojava firmemente nos corações. Caiu no agrado geral conquistando a simpatia de

homens e mulheres. Entretanto não lhe seria dado desfrutar por muito tempo essa

honrosa consideração devido a um incidente de funestas conseqüências.

245
7. CUNDRIE AMALDIÇOA PARSIFAL

Eis que se aproximava aquela da qual agora vos quero dar notícia. Era

uma jovem cuja lealdade merece ser destacada, mas quando tomada de fúria

tornava-se imprevisível, proferindo diatribes que chocavam muitas pessoas. Ouvi

agora a maneira pela qual ela se apresentou ali: vinha montada numa mula, pernuda

como um castelhano, macilenta, de ventas rasgadas, desfigurada por marcas de

queimaduras, parecendo um cavalinho húngaro. Em contraste com isso o freio e os

arreios eram de valioso couro trabalhado. Da mesma forma a andadura do animal

não merecia reparos. Mas sua amazona não usava trajes condizentes com uma

mulher de categoria. Era o caso de perguntar como ela viera parar ali. Mas já que ali

estava nada podia ser feito. Sua chegada traria nada de bom para o exército de

Artur. Tamanha era a erudição da jovem que dominava com perfeição todas as

línguas - o latim, o francês e o idioma dos pagãos117. Tinha igualmente bons

conhecimentos de Dialética, Geometria e Astronomia118. Chamava-se Cundrie e era

conhecida pela alcunha de "feiticeira". Sua boca parecia uma catarata, pois

inexaurível era o fluxo de sua fala.

Na verdade a jovem assim tão douta não era alguma beldade.

Essa desmancha-prazeres usava um manto com capuz à moda francesa,

confeccionado de seda de Gand, de um azul ainda mais ofuscante que o lápis-lazúli.

117
Idioma dos pagãos. O árabe.
118
Dialética, Geometria e Astronomia. Três das sete artes livres da Idade Média. As outras quatro eram
Gramática, Aritmética, Retórica e Música.

246
O vestido era também de seda encorpada. Um chapéu londrino de plumas de pavão,

forrado de seda entretecida de fios de ouro, novo em folha, pendia-lhe das costas,

preso a um cordão igualmente novo. O que ela tinha a dizer era uma espécie de

ponte que a desgraça cruzava para aniquilar a alegria. Com isso ela punha termo a

todos os passatempos. Suas trancas passavam por cima do chapéu e se

prolongavam até as costas da mula. Eram compridas, negras, ásperas, feias e duras

como cerdas de porco. Seu nariz lembrava um focinho de cão. Dois dentes de javali,

de um palmo de comprimento, saíam-lhe lateralmente da boca. Suas pestanas eram

entrançadas e se eriçavam rijas até as fitas que seguravam os cabelos. Se com

essa descrição feri o amor-próprio de alguma dama, isso sucedeu unicamente por

amor à verdade. De resto, o mundo feminino não tem por que censurar-me. Afinal,

com suas orelhas de urso Cundrie não foi criada para inspirar ternos sentimentos a

um hipotético amante. Toda a sua fisionomia era repulsivamente feia. Empunhava

um azorrague com castão de rubi e cordões de seda. Suas mãos, semelhantes às

de um macaco, eram providas de unhas compridas e sujas, lembrando as garras de

um leão. Por ela, sem dúvida, cavaleiro algum quebraria lanças. Entrando no

círculo, essa fonte de tristeza, essa mortalha de todas as alegrias, dirigiu-se ao lugar

ocupado pelo anfitrião. Artur estava tomando a refeição em companhia de Ginover,

Cuneware de Lalant e a Rainha de Janfuse. O Rei Artur estava sentado em sua

cadeira, em atitude respeitosa, quando diante dele Cundrie sofreou a montaria e a

ele se dirigiu em francês. Traduzidas agora para o alemão, suas palavras não soam

menos agressivas: "Ó filho de Utepandragun! O que tu aqui fizeste cobre de opróbrio

a ti e a todos os bretões. Aqui se acham reunidos os mais renomados fidalgos de

todos os países e esse congraçamento estaria sob a égide da dignidade e da honra

se entre eles não estivesse um homem indigno. Arruinado está o prestígio da Távola

247
Redonda, pois dela participa a falsidade. Ó Rei Artur, foste mais celebrado que

todos os cavaleiros teus seguidores; mas agora tua fama, ao invés de ascender,

declina; teu prestígio manqueja, quando devia estar em vigorosa progressão; tua

excelsa dignidade está em declínio e tua honra já não mais está isenta de mancha.

O renome da Távola Redonda foi comprometido no momento em que nela foi

admitido o senhor Parsifal, que apenas parece, mas não é um cavaleiro. Ele

assumiu a alcunha de cavaleiro vermelho pela qual era conhecido o homem que

tombou diante de Nantes. Mas não é possível comparar um com o outro. Não consta

de qualquer gesta heróica o nome de cavaleiro tão sem mácula quanto o do morto."

E apartando-se do rei dirigiu-se a Parsifal nestes termos: "A vós cabe a culpa por

recusar amável cumprimento ao Rei Artur e a seus paladinos. Que a vergonha cubra

vossa esplendente aparência e vossa força viril. Se me fosse dado determinar quem

deveria desfrutar de paz e descanso, eu jamais vô-los concederia. Certamente vos

pareço antipática, mas sois bem mais abominável que eu. Dizei-me, senhor Parsifal,

por que não livrastes o pobre Pescador de seus dolorosos suspiros quando triste e

inerme esteve sentado diante de vós? Ele claramente vos mostrou quanto vinha

sofrendo, ó hóspede desleal! O que devíeis ter feito era compadecer-vos de seus

sofrimentos! Devíeis perder a língua já que vosso coração se apartou de todo o reto

pensar! Deus já vos reprovou e vos reservou as penas de Inferno. E já nesta vida a

mesma sorte irão desejar-vos os fidalgos de bem quando descobrirem vossos

projetos. Ó azar da fortuna, maldição da felicidade, desprezador do verdadeiro

prestígio! Vossa honra se desvanece e vossas energias estão tão combalidas que

médico algum teria condições de vos valer. Se alguém quisesse tomar meu

juramento eu diria em vossa cara que nunca me foi dado ver em homem algum,

como em vós, tamanha falsidade combinada com tão boa aparência. Ó chamariz

248
traiçoeiro e enganador, dente maligno de víbora! Vós não mereceis a espada que

Anfortas vos ofereceu. Ao aceitá-la e permanecer mudo incorrestes em pecado

mortal. Vós sois um instrumento de Satanás, ó abominável senhor Parsifal! Com

indiferença contemplastes o Graal, as facas de prata e a lança coberta de sangue,

quando essas relíquias foram postas diante de vós. Vossa presença faz com que as

alegrias pereçam e as calamidades floresçam. Se tivéssseis posto a questão em

Munsalvaesche vossa recompensa seria maior que receber como feudo a rica e

imensa cidade de Tabronit119 no país dos pagãos. A rainha do reino que tem

Tabronit como capital foi conquistada por Feirefiz de Anjou em duro combate. Ele

tratou de cultivar as nobres qualidades viris que distinguiram vosso pai e que em vós

degeneraram. Vosso irmão Feirefiz, filho da rainha de Zazamanc, tem um aspecto

singular, pois sua pele é malhada de preto e branco."

"Agora mesmo veio-me à memória a inabalável lealdade de Gahmuret.

Fiel às suas origens, conservou o gentílico 'de Anjou' . Ele devia ter-vos legado um

caráter diferente deste que estais revelando. Vossa fama se corrompeu. Caso não

fósseis filho de Gahmuret em virtude de um mau passo de vossa mãe, então vosso

comportamento teria uma explicação. Mas não me atrevo a admitir sequer essa

possibilidade. Ela sofreu demais precisamente por ter sido fiel. Portanto lembrai-vos

sempre dela como tendo sido uma mulher honesta. Quanto a vosso pai podeis estar

seguro de que foi homem de fama dilatada e que tinha um acendrado senso de

honra. De bom grado entregava-se a desinibidas manifestações de alegria. Tinha

bom gênio e um grande coração batia em seu peito. Com intrepidez e viril

determinação buscava a fama, como se apanha peixe em nassa ou em barragens.

119
Tabronit. Cidade lendária, famosa por sua riqueza e esplendor. Mais adiante é citada como a capital dos
domínios da rainha pagã Secundille.

249
Vossa fama converteu-se precisamente no oposto desse ideal. Teria sido melhor

para mim jamais ter sabido que o filho de Herzeloyde tão longe se apartou dos

caminhos da fama."

Cundrie parecia a própria imagem da desolação. Suas mãos crispadas e

as lágrimas que vertia eram demonstrações eloqüentes de sua lealdade e do

desespero que lhe ia na alma. Dirigindo-se uma vez mais ao anfitrião passou a

discorrer sobre outras coisas: "Quem dos bravos cavaleiros, membros desta Távola

Redonda, estará disposto a ir em busca da fama e do amor na sua expressão mais

elevada? Conheço o paradeiro de quatro rainhas e de quatrocentas jovens dignas

de serem vistas. Elas se acham confinadas em Chastel Marveile120. Todas as

aventuras possíveis e imagináveis são irrelevantes, comparadas às conjunturas

perigosas e aflitivas que ali estão à espera do audacioso incursor. Quem passar na

prova de Chastel Marveile serve de modo adequado às formas mais elevadas de

amor! Ainda esta noite lá estarei, embora a jornada esteja pontilhada de

dificuldades."

A jovem partiu, abatida e sem se despedir. Chorando amargamente,

olhou seguidamente para trás. Ouvi suas derradeiras palavras: "Ó Munsalvaesche,

lugar da angústia suprema! Ai de ti, porque agora já ninguém mais virá em teu

socorro."

Cundrie, a orgulhosa e repulsiva feiticeira, havia lançado o jovem de

Valois na maior consternação. Inúteis revelavam-se para ele naquele momento os

120
Chastel (de la) Merveile. Forma arcaica de Chateau de la Merveille – Castelo Maravilhoso que, mais
adiante, aparece seguidamente no texto.

250
conselhos de seu bravo coração, sua educação cavaleirosa e seu ânimo varonil.

Mas a par desses atributos possuía ele o dom de submeter a uma análise crítica

isenta seus próprios atos, o que o tornava capaz de reencontrar no devido tempo

o caminho certo. Uma tal maneira de agir, a mais sublime das virtudes e o mais belo

atributo da alma, valeram-lhe o respeito de seus semelhantes. Cuneware foi a

primeira a cair em prantos. Não se conformava em ver o valoroso Parsifal exposto

aos destemperos dessa extravagante criatura que era a feiticeira Cundrie. O clima

de tristeza contagiou outras damas presentes, do que resultou que ao fim todas

caíssem em pranto.

8. KINGRIMURSEL DESAFIA GALVÃO

Cundrie, causa de toda essa triste depressão, havia acabado de partir

quando veio aproximando-se um altivo cavaleiro. Vinha armado dos pés à cabeça

com um arnês magnífico e sobremodo precioso. Tão bem equipado quanto ele vinha

seu cavalo de batalha. Ao chegar mais perto deparou-se com a comunidade da

Távola Redonda - homens, mulheres e jovens - mergulhados na mais profunda

tristeza. Ouvi o que o trouxe àquele lugar. O orgulho e a tristeza o dominavam. Devo

mencionar aqui que ele vinha dominado por dois sentimentos contraditórios, pois

se o ânimo viril lhe alimentava o orgulho, o coração vinha carregado de

ressentimentos. Teria ele recebido as devidas atenções ao ali chegar?

Naturalmente! Muitos escudeiros acudiram prontamente para dar boas-vindas ao

251
fidalgo, embora tanto ele quanto os símbolos que exibia no campo de escudo lhes

fossem desconhecidos. O ressentido cavaleiro não tirou o elmo nem se desfez da

espada. Logo indagou: "Onde posso encontrar Artur e Galvão?" Instruído pelos

jovens fidalgos acerca do local onde se encontrava o rei, atravessou o amplo círculo.

Sua cota de armas era de seda brilhante e multicolorida. Diante do anfitrião, em

torno do qual se congregava o amplo círculo de cortesãos, ele fez alto e assim falou:

"Deus guarde o Rei Artur, suas damas gentis e seus cavaleiros. Ofereço meus

serviços e saúdo a todos aqui presentes, exceto a um que nada deve esperar de

mim. O que nos separa é um irreconciliável sentimento de inimizade. Se ele me

odeia de todo o coração eu lhe retribuo na mesma moeda. Sabereis agora de quem

se trata! Pobre de mim, pois ele partiu-me cruelmente o coração e me infligiu grave

dano. Trata-se do senhor Galvão, que foi vencedor em muitos combates e adquiriu

grande fama. Mas ele se cobriu de vergonha, pois a cobiça insaciável por glória o

impeliu a matar meu amo num encontro amigável. O beijo traiçoeiro de Judas deve

ter-lhe inspirado a idéia. Milhares de corações enlutados choram o assassinato

horrendo e pérfido do meu amo. Caso ele negue a autoria desse delito, deve

apresentar-se dentro de quarenta dias, a contar de hoje, na capital Schanpfanzun, a

fim de sustentar em combate singular a veracidade de suas palavras perante o Rei

de Ascalun. Com isto o desafio a enfrentar-me em Ascalun num combate singular.

Se ele tiver ânimo para tanto eu o advirto que não se esquive desse encontro, a fim

de resguardar sua honra e dignidade de cavaleiro. Cada cavaleiro possui dois

preciosos dons: o sentimento de honra e a lealdade. Eles constituem desde sempre

os fundamentos do prestígio da cavalaria. Caso o senhor Galvão pretenda continuar

como membro da Távola Redonda, deve pensar bem, antes de desdenhar tais

valores, pois seus estatutos não aceitam a presença de homens desleais. Mas o

252
objetivo de minha presença aqui não é proferir catilinárias. Vós ouvistes o que foi

dito e podeis crer-me: Prefiro a luta às palavras agressivas - uma luta que resultará

em morte ou se a fortuna assim o dispuser em reabilitação da honra."

O rei, até aqui, se havia mantido silencioso e visivelmente contrariado

resolveu dar a seguinte resposta: "Senhor, trata-se do filho de minha irmã. Se

Galvão estivesse morto, preferia eu mesmo enfrentar o desafio a tolerar que se lhe

imputasse a prática de atos desleais. Se a fortuna não lhe for adversa, provará de

armas na mão quanto preza a lealdade e detesta a falsidade. Se outro, que não ele,

vos tiver causado algum mal, estareis insultando Galvão injustamente. Se ele provar

sua inocência, não tereis como negar-lhe vossa estima, caso contrário, os homens

imparciais aos quais o apontastes levianamente como cavaleiro sem honra não mais

vos poderão levar a sério."

Foi então que o altivo Beacurs, irmão de Galvão, se levantou

intempestivamente e exclamou: "Senhor, irei representar a causa de Galvão onde

quer que seja citado para o combate. As falsas incriminações indignam-me

sobremodo. Se não retirardes vossas falsas acusações tereis que vos explicar

comigo. Eu me responsabilizo por ele e irei entrar na liça em seu lugar. O grande

prestígio que Galvão incontestavelmente desfruta não pode ser posto em dúvida

com simples palavras." Voltando-se para o irmão, caiu de joelhos diante dele. Ouvi o

que lhe pediu com insistência: "Reflete bem e lembra-te de que também tu sempre

tiveste como uma de tuas preocupações meu bom nome. Ao invés de tu mesmo

abraçares esta causa permite que eu seja teu representante e fiador nesta luta. Se

eu me sagrar vencedor a glória será tua."

253
Insistentemente pediu ao irmão que lhe desse a oportunidade de se

distinguir em combate. Galvão, porém, argumentou: "Caro irmão, refleti

maduramente sobre esse assunto e concluí que devo recusar teu oferecimento. Na

verdade não sei exatamente por que devo combater, nem encontro um prazer

especial em tratar desse assunto. De bom grado eu te cederia a vez se minha honra

não estivesse em jogo."

Como essa explicação não satisfizesse inteiramente a Beacurs, o

forasteiro, que durante todo esse tempo teimara em permanecer nessa posição, este

tomou a palavra: "Estou sendo desafiado por um homem que não conheço e que

nunca me causou mal algum. Acredito que seja suficientemente vigoroso, intrépido,

belo e leal para como fiador assumir uma causa. Mas nada tenho contra ele.

Levantei a acusação por causa do meu amo, que é também meu parente

consangüíneo. Nossos pais eram irmãos e muito unidos. Não há testa coroada com

nobreza superior à minha e a qual não possa, como vingador, chamar à

responsabilidade. Sou Kingrimursel, Landgrave de Schanpfansun e Príncipe de

Ascalun. Se Galvão tiver amor à sua honra só poderá provar sua inocência

enfrentando-me em combate singular. Tirante eu, não há perigo que possa ameaçar

sua segurança em todo o reino de Ascalun, Dou minha palavra de honra: fora da liça

não será molestado. Deus guarde a todos os que aqui estão presentes, dos quais

agora me despeço. Isso não vale para Galvão e ele conhece sobejamente os

motivos do meu gesto."

Com essas palavras o renomado fidalgo deixou a campina de Plimizoel.

Quando se soube que se tratava de Kingrimursel, todos admitiram que o conheciam,

pois o sisudo príncipe gozava de grande prestígio. Todos achavam que Galvão não

254
devia considerar a luta singular com esse príncipe como coisa fácil. Infelizmente o

luto e consternação reinantes não permitiram que fosse proporcionada ao visitante

uma recepção condizente. Como acabastes de ouvir, nenhum anfitrião sabedor de

tais acontecimentos teria condições psicológicas para receber um visitante com

demonstrações de apreço. Mas através de Cundrie, acabaram sendo conhecidos o

nome de Parsifal, sua condição de filho de uma rainha e as circunstâncias pelas

quais Gahmuret obtivera sua mão. Havia pessoas que diziam: "Eu ainda me lembro

perfeitamente quando, diante de Kanvoleis, empenhava-se em obter a mão de

Herzeloyde mediante seus ataques espetaculares e como afinal a obteve, graças a

seu arrojo heróico. Afinal a distinta Amflise cuidou de sua formação cavaleirosa e

tudo fez para que recebesse uma educação cortês. Todos os bretões devem sentir-

se felizes pelo fato de ter ele aderido à comunidade pois como Gahmuret, seu pai,

possui ele genuína dignidade e adotou um estilo heróico de vida."

9. CLAMIDE E CUNEWARE

Dessa forma o exército de Artur passou por experiências alegres e tristes.

Esses heróis, que haviam compartilhado das alegrias, tiveram que aceitar

igualmente as penas e assim, profundamente abatidos, levantaram-se. Os fidalgos

aproximaram-se de Parsifal, que se encontrava em companhia de Galvão,

procurando consolá-los da melhor forma possível. O distinto Clamide observou que

ele havia sofrido mais que qualquer outro e que vinha passando naquele momento

255
por uma profunda crise de angústia. E voltando-se para Parsifal declarou: "Tenho

por evidente esta verdade. Ainda que estivésseis junto ao Graal, toda a cornucópia

deste mundo — quer seja Tribalibot na Terra do Pagãos, a cordilheira aurífera do

Cáucaso ou ainda a venerável santidade do próprio Graal — seria modesta, se

comparada à carga de sofrimento que sobre mim desabou em Pelrapeire. Ai de mim,

infeliz! Vós me arrebatastes toda a felicidade. Eis aqui a senhora Cuneware de

Lalant! Mas a nobre princesa está ligada demasiadamente a vós para aceitar o

serviço de outros, ainda que fosse propensa a recompensá-los. Quem sabe já se

cansou de considerar-me seu prisioneiro por tanto tempo. Para que pudesse

readquirir o gosto pela vida seria preciso que désseis uma palavra em meu favor!

Em atenção a vós ela talvez se disponha amorosamente a me compensar por aquilo

que perdi por vossa causa, quando vi a almejada felicidade passar ao largo. Eu a

teria agarrado se não ocorresse vossa intromissão. Agora ajudai-me pelo menos a

conquistar essa jovem."

"Isso farei de bom grado", respondeu Parsifal. "Acredito que ela seja por

demais gentil para recusar um tal pedido. Pretendo ressarcir-vos do prejuízo que

sofrestes, pois a bela Conwiramurs, causa de vosso profundo desalento, é e

permanece minha".

A paga de Janfuse, Artur, sua esposa, as senhoras Cuneware de Lalant e

leschute de Karnant aproximaram-se para confortá-lo. Afinal, era a única coisa que

poderiam fazer em tal situação. Eles uniram Cuneware e Clamide, que ansiava por

seu amor. Sem reservas ele se lhe deu para sempre, cingindo-a com a coroa real

diante da paga de Janfuse. Esta disse a Parsifal: "Cundrie referiu-se a um homem

que é bem o irmão que mereceis. Trata-se de um grande monarca. Ele é soberano

256
de dois poderosos reinos onde — em terra e no mar — é reconhecida sua

autoridade. São eles os florescentes e de nenhum modo inexpressivos reinos de

Azagouc e Zazamanc, com os quais, exceto o do Baruc e de Tribalibot, nenhum

outro pode ombrear-se em opulência. Ali é venerado como um deus. Na verdade,

sua pele é singular, bastante diferente da de outras pessoas, pois é malhada de

preto e branco. Na minha vinda para cá, atravessei um de seus dois reinos. Ele

desejava que eu ali permanecesse, um pedido que não me foi possível atender a

despeito de sua insistência. Sou prima desse distinto soberano. Permiti que vos

conte mais algumas coisas notáveis a respeito dele: no torneio seus adversários são

invariavelmente descavalgados. Sua fama resulta da vida faustosa que leva. Nunca

o mundo conheceu varão mais magnânimo. O caráter de Feirefiz de Anjou ignora o

que seja dissimulação. Ademais está sempre pronto a amparar a mulher, mesmo se

isto resulta para ele em complicações."

"Neste país tudo é estranho para mim. Mas o gosto pela novidade e pela

aventura impeliram-me a estas paragens. Eis que agora estais diante de mim dotado

das mais excelsas virtudes que contribuem para o engrandecimento da própria

Cristandade. E com justiça que se enaltece vossa distinção, bela aparência e ânimo

varonil. Em vós estão presentes em igual medida juventude e energia."

257
10. PARSIFAL ABANDONA A TAVOLA REDONDA

A rica e inteligente paga tinha maneiras distintas e se expressava num

francês fluente. Mas Parsifal objetou: "Nobre senhora! Que Deus vos retribua essas

bondosas palavras de consolo. Mas elas não podem resgatar-me de minhas

tribulações e eu vos direi por quê. Ralo-me de penas cuja causa nem todos

conseguem entender. Daí as incompreensões e ironias de que sou alvo e que eu

suporto em silêncio. Daqui em diante serei um órfão da alegria, até que tenha uma

vez mais o Graal diante de meus olhos. Este é meu firme propósito e nele pretendo

persistir pelo resto de minha vida."

"Se agora sou objeto de riso por parte de meus semelhantes, apenas

porque cumpro os preceitos do comportamento cavaleiroso, então devo concluir que

tais preceitos são imperfeitos. O nobre Gurnemanz incutiu-me no espírito o dever de

ser cortês e de me abster de fazer perguntas indiscretas. Aqui se acham reunidos

muitos nobres cavaleiros. Lembrai-vos de vossa distinta educação e dizei-me o que

devo fazer para reconquistar vossa estima. Aqui fui condenado com palavras duras

e ásperas e não censuro quem por esse motivo se afastou de mim. Mas sede justas

comigo quando houver reconquistado fama e consideração. Devo deixar-vos agora,

pois me admitistes em vossa comunidade quando ainda desfrutava de alto conceito.

Eu vos desobrigo de quaisquer compromissos de amizade para comigo até que

tenha reconquistado aquilo que minha imaturidade permitiu que perecesse no

nascedouro. Daqui por diante terei a amargura por companheira; meu coração fará

com que meus olhos chorem pois a exemplo do que ocorre com muitas puras

258
donzelas abandonei em Munsalvaesche aquilo que agora me priva de todas as

alegrias. Todas as maravilhas deste mundo diminuem em importância quando

comparadas com o Graal. No entanto o soberano do Graal vai morrendo aos

poucos, miseravelmente. Ah, indefeso Anfortas! De que te serviu, afinal, o fato de ter

estado contigo?"

Ninguém desejava permanecer ali por mais tempo, pois havia soado a

hora da despedida. Parsifal pediu a Artur, o bretão, bem como a todos os cavaleiros

e damas presentes que concordassem com sua intenção de se ausentar. A decisão

encheu a todos de pesar. Acredito que aquilo que todos mais lamentavam era o fato

de ele partir carregado de tristeza e frustrações. Dado o estado de beligerância que

ainda persistia entre ele e Clamide, Artur prometeu-lhe solenemente que protegeria

seu reino com todo o empenho, como se tratasse de seus próprios domínios.

Lamentava igualmente que Lahelin lhe tivesse arrebatado dois prósperos reinos. A

despeito de se ver assim prestigiado pela solidariedade de todos, o peso da

frustração não permitiu que ali permanecesse por mais tempo. Cuneware, a pura

donzela, tomou-o pela mão e o conduziu para um local afastado do torvelinho da

multidão. Ao se despedir, com um beijo, do vigoroso e intrépido herói, o bravo

Galvão mostrou-se confiante: "Estou certo de que irás superar todas as vicissitudes

que obstacularem teu caminho. Que Deus te conceda boa sorte! A ele peço que,

graças à Sua onipotência me dê oportunidade de logo assistir-te em tudo que for

necessário."

O jovem de Valois desabafou: "Ah, quem tu imaginas que seja Deus? Se

Ele fosse de fato todo-poderoso e tivesse capacidade de manifestar essa

onipotência não nos teria exposto a uma situação tão desmoralizante. Na

259
expectativa de Suas recompensas sempre fui-Lhe leal e pronto para servi-Lo. Por

isso doravante recuso-me a servi-Lo. Se Ele me quer mal, eu arco com as

conseqüências. Amigo, se partires para a luta, não confies em Deus. Confia antes

numa mulher, cuja pureza e bondade feminina estejam acima de qualquer dúvida.

Seu amor será teu escudo e salvaguarda no combate. Não sei quando tornarei a

ver-te, mas meus bons votos te acompanham."

A despedida entristeceu os dois. A senhora Cuneware de Lalant conduziu

Parsifal para sua tenda, determinando que lhe trouxessem a armadura. Com suas

alvas e delicadas mãos ajudou o filho de Gahmuret a armar-se enquanto dizia: "Fico

vos devendo este favor, pois foi graças a vossos estímulos que o Rei de Brandigan

animou-se a pedir minha mão. Compartilho, ademais, a depressão moral em que

vós, nobre varão, estais mergulhado. Não terei alegria enquanto durar vossa

tristeza."

A essa altura seu cavalo de batalha havia sido equipado e só então

compreendeu verdadeiramente sua situação lastimável. O vistoso campeão já

envergava sua armadura de aço polido, bem como a túnica e o mantelete

guarnecidos de pedras preciosas. Apenas não cingira o elmo. Então, segundo me foi

dito, despediu-se da pura donzela Cuneware com um beijo. Foi triste a separação

dos dois, que se estimavam sobremodo. Por fim o filho de Gahmuret montou e

partiu. O que até aqui se contou sobre aventuras miraculosas é irrelevante

comparado com o que se segue. Atentai, pois para os feitos que perpetrou e para os

muitos e variados caminhos de sua peregrinação. Quem não apreciar muito as lides

da vida cavaleirosa poderá voltar sua atenção para assuntos mais amenos, caso seu

orgulho de cavaleiro permita que assuma tal atitude. Por certo Condwiramurs estará

260
recordando em mais de uma oportunidade sua bela figura. Em sua homenagem irá

empenhar-se em aventuras sem conta. Feitos memoráveis irá perpetrar o filho de

Herzeloyde, visando à conquista do Graal, uma vez que por força de sua origem era

seu herdeiro legítimo.

Muitos cavaleiros do Rei Artur partiram, desejosos de vencer a arriscada

prova de Chastel Merveile onde se achavam aprisionadas quatrocentas jovens e

quatro rainhas. Não os invejo, uma vez que me sinto em condições de merecer os

favores femininos sem chegar a tanto. Antes de partir o grego Klias contou à

confraria arturiana suas peripécias: "Eu já me engajei nessa aventura, porém sem

êxito. Para minha vergonha devo confessar que o Turcoíde121me descavalgou com

sua lança. A despeito disso declinou-me os nomes das quatro damas reais

confinadas em Chastel Merveile. Duas delas aparentam ter certa idade, enquanto as

outras duas são extremamente jovens. A primeira chama-se Itonje, a segunda

Cundrie, a terceira Arnive e a quarta Sangive." Foi então que todos se dispuseram

sofregamente a correr o risco da prova. Mas todos foram malsucedidos e sofreram

grandes prejuízos. Entretanto tais insucessos não desejo mais lamentar, pois quem

suporta canseiras por causa de uma mulher pode sentir-se feliz e por fim saberá

como dar a volta por cima. Essa sempre tem sido a compensação dos que amam.

Por sua vez Galvão, o aguerrido cavalheiro, vinha aprestando-se para sua

viagem ao reino Ascalun. Não houve bretão que não deplorasse, nem dama e

donzela que não chorasse sua partida. Assim a Távola Redonda ficara órfã em

121
Turcoíde. Foi esse o título que Wolfram deu ao guarda e acompanhante principesco de Orgeluse. A
designação deriva provavelmente de Turcópolo, arqueiro a cavalo cujo comandante desempenhava altos cargos
públicos. O termo deriva do francês turcoplier, sinônimo de chanceler e governador. Turcópolo era igualmente o
título dado ao criado pessoal do Soberano grão-Mestre da Ordem teutônica e de outras ordens cavaleirosas como
a dos Templários. N.T.

261
matéria de prestígio cava-leiroso. Galvão refletiu demoradamente sobre a melhor

maneira de se assegurar a vitória. Sucedeu que, na oportunidade, mercadores que

ali desenvolviam sua atividade dispunham de escudos excepcionalmente sólidos e

de animais de albarda que não se destinavam propriamente à venda. A despeito

disso arrematou três deles sem se deixar impressionar por sua aparente rusticidade.

O destemido campeão selecionou a seguir sete aguerridos cavalos de batalha. Por

fim considerou útil que doze pontas de lança forjadas em Angram122,

cuidadosamente afiadas, fossem incluídas no seu equipamento. Estas eram

firmadas em hastes de bambu sobremodo rijas e que haviam sido colhidas em

Oraste Gentesin, região pantanosa da Terra dos Pagãos. Imbuído do mais genuíno

ânimo viril Galvão despediu-se e partiu. Antes disso o solícito Artur o havia provido

prodigamente de cintilantes pedras preciosas, ouro rubro e de muitas esterlinas de

prata123. Assim partia ele ao encontro do destino que bem sabia entremeado de

perigos.

A jovem e rica paga Ekuba dirigiu-se outra vez ao local do embarque e

toda a sociedade cortês que confraternizara em Plimi-zoel começou a se dispersar

em todas as direções. Artur também retornou a Karidoel. Antes, porém, tratou de

despedir-se de Cuneware e Clamide. O renomado príncipe Orilus e sua mulher, a

senhora leschute de Karnant, também se haviam despedido de Artur de vez que

pretendiam permanecer naquela campina por mais três dias em companhia de

Clamide. É que Clamide estava celebrando os esponsais. Não era propriamente

uma festa de casamento. Esta seria realizada mais tarde com toda a pompa, quando

estivesse de volta a seu reino. Muitos cavaleiros, muita gente pobre e uma multidão

122
Angram. Trata-se possivelmente da cidade indiana de Agra, cujo aço desfrutava de grande fama
durante a Idade Mèdia.
123
Sterling. Designação que sobreviveu na libra esterlina. Nome da moeda e também de peso da moeda.

262
de pessoas sem pouso certo permaneceram junto a Clamide, pois grande era sua

fama de benfeitor. Todos eles o acompanharam ao seu reino, onde honrosamente

foram aquinhoados com ricos presentes, de modo que ninguém se decepcionou

nem perdeu por esperar. Para lá partiram também a senhora leschute e seu amado

esposo Orilus. Com isso pretendiam prestigiar a Rainha Cuneware, irmã de Orilus,

que iria ser coroada em Brandigan.

11. EXCURSO DO POETA

De uma coisa estou convencido. Qualquer mulher conscienciosa e

inteligente que até aqui seguiu minha narrativa há de convir que neste gênero sinto-

me mais à vontade para me ocupar do mundo feminino do que num poema lírico,

dedicado a uma mulher específica. Para tanto, basta atentar para o seguinte: sitiada

pelo exército de um rei morto a Rainha Belakane emergiu do episódio como criatura

fiel e sem mácula! Num sonho a senhora Herzeloyde, teve de suportar amargos

sofrimentos. E foi com comovente solidariedade que a senhora Ginover chorou a

morte de Ither! No que se refere à senhora leschute, filha do rei de Karnant, não

deixei de manifestar minha solidariedade, quando esta fora compelida a atravessar o

país a cavalo, coberta de vis andrajos. E a senhora Cuneware, quanto não fora

maltratada e puxada pelos cabelos! Mas tanto ela quanto leschute receberam ao

cabo justa reparação e seus sofrimentos resultaram para elas em prestígio.

Que esta narrativa prossiga para quem esteja familiarizado com o enredo

de acontecimentos singulares e com todos os preceitos da teoria do verso. Na

263
verdade gostaria de dar seguimento ao relato. Mas para tanto será preciso que me

seja dado falar pela boca de uma outra personagem, cujos pés já se agitam em

meus estribos.

264
LIVRO VII
1. EXCURSO DO POETA

Agora o fluxo de minha narrativa irá seguir por algum tempo a trajetória de

outro cavaleiro de inalterável honradez. Quero referir-me a Galvão. É que ao lado de

Parsifal, seu herói propriamente dito, minha narrativa prefere apresentar outros

homens, cada qual com seu destino particular. Se alguém quisesse exaltar

unicamente seu herói a sublimes alturas, acabaria sendo injusto com os demais.

Quem distribuir seus encômios, consoante a verdade, entre aqueles que os

mereçam, deveria contar sempre com a entusiástica aprovação do público. Mas o

que quer que um tal poeta conte ou tenha contado não consegue suscitar o

interesse do público. Onde, então, a grande arte deverá procurar seu público,

quando até mesmo homens inteligentes capazes de apreciá-la e julgá-la lhe voltam

as costas? Patranhas deveriam ser deixadas ao relento, expostas aos rigores do

tempo e aquele que lhes desse crédito, obrigado a bater o queixo. Só assim Deus

lhes teria reservado a sorte considerada merecida pelos homens de valor, cujas

obras, embora dignas de atenção, só colhem insucessos. Quando um fidalgo

promove poetas cujas obras deviam merecer críticas, então demonstra reduzida

capacidade de julgamento. Seu amor próprio deveria demovê-lo a de futuro ocupar-

se de tais assuntos.

265
2. GALVÃO A CAMINHO DE ASCALUN

O bravo Galvão jamais agia de modo irrefletido, da mesma forma que

seria impensável atribuir-lhe assomos de covardia. Nas batalhas campais seu

coração era qual castelo forte, inabalável no tumulto da guerra é nos arriscados

combates corpo a corpo. Tanto amigos quanto inimigos conheciam o famoso timbre

de seu grito de guerra e o brilho dessa reputação. Kingrimursel bem que gostaria de

arrebatar-lhe em combate singular. Desde que se despedira de Artur o aguerrido

Galvão havia cumprido várias jornadas, cujo número não saberia precisar. O

intrépido campeão e seu séquito haviam acabado de atravessar uma floresta e uma

baixa de terreno quando, ao atingir o topo da elevação seguinte, deparou com um

quadro que seria intimidador se não tivesse o dom de estimular seu ânimo

combativo. O que ali avistou foi uma tropa considerável, precedida de uma flâmula

que vinha avançando em sua direção. Ele pensou: "Ainda que quisesse fugir a

floresta ficava por demais distante". Por isso determinou que selassem o corcel que

Orilus lhe havia dado. Chamava-se Gringuljete Rotohr e era oriundo de

Munsalvaesche. Lahelin o havia tomado de um cavaleiro ao qual tinha descavalgado

com uma lançada mortífera nas proximidades do Lago Brumbane. Mais tarde

Trevrizent irá contar os pormenores desse caso.

Galvão continuou refletindo: "Quem se deixa dominar pelo desânimo e

entra em pânico sem motivo presta um péssimo serviço à sua reputação. O que quer

que venha a acontecer, vou seguir simplesmente ao encontro do exército em

marcha! De qualquer modo a maioria de seus integrantes já deve ter-se apercebido

266
de minha presença. Saberei safar-me de uma forma ou de outra."Desmontou como

se quisesse fazer alto. Eram de fato formações incontáveis que em grupos

desfilaram diante dele. Viu vestimentas bem talhadas, muitos escudos e bandeiras,

mas nenhum símbolo heráldico conhecido. O nobre Galvão disse de si para si: "Para

esse exército sou sem dúvida um desconhecido, pois não conheço um só desses

cavaleiros. Se me hostilizarem cederei o campo somente depois de haver quebrado

uma lança." Assim Gringuljete, que já o havia carregado através de muitos e

perigosos tumultos de batalha foi selada e aprestada para o combate. Enquanto

isso Galvão pôs-se a observar os ricos e numerosos elmos magnificamente

ajaezados. Jovens fidalgos carregavam grande número de lanças novas e

multicoloridas, encimadas por flâmulas que exibiam o símbolo heráldico de seus

amos. Diante de Galvão, filho do Rei Lot, desfilavam parelhas de mulas que

jungidas umas às outras vinham puxando veículos abarrotados de peças de

armaduras, materiais e víveres. Atrás deles vinha, qual colorido formigueiro, o

comboio de bagagem, inclusive grande número de mulheres, das quais muitas já

haviam abiscoitado a décima segunda bolsa de cavaleiro como prêmio de sua

condescendência amorosa. Naturalmente não se tratava de rainhas; tais mulheres

de vida fácil eram conhecidas como raparigas de casernas. Vadios de todas as

idades, já fatigados pelas muitas andanças, acompanhavam-nas. Muitas delas

mereciam pender da forca ao invés de engrossar as fileiras da tropa e desprestigiar

os fidalgos com sua presença.

Assim desfilou todo o exército diante de Galvão, que se manteve em

atitude de expectativa. Quem o observasse poderia até, por engano, tomá-lo como

integrante daquela tropa. Tanto numa quanto noutra margem do mar, nunca se viu

267
tão magnífico exército de cavaleiros. Ao encalço da tropa vinha a toda pressa um

distinto escudeiro. Estava conduzindo outro cavalo pelo cabresto e tinha um escudo

novo em folha. Impiedosamente esporeava ele a montaria, pois tinha pressa em se

lançar ao combate. Seu traje tinha bom corte. Galvão aproximou-se e,

cumprimentando-o, procurou saber dele que exército era esse que tinha acabado de

passar. O escudeiro respondeu-lhe admirado: "Senhor, por que escarneceis de

mim? Acaso fui descortês para merecer de vossa parte tais agravos? Nesse caso

teria preferido receber outro tipo de admoestação. Refreai, por amor de Deus, vosso

mau humor! Vós, fidalgos, vos conheceis uns aos outros melhor que eu. Por que,

então, perguntais? Vós devíeis conhecê-lo mil vezes melhor que eu!"

Entretanto Galvão assegurou-lhe que positivamente não conhecia o

exército que acabava de desfilar diante deles. E acrescentou: "Encontro-me em

situação deveras constrangedora! Muito andei pelo mundo. Mas onde quer que

meus serviços tenham sido solicitados, em parte alguma foi-me dado conhecer

alguém desse exército!"

A isso o escudeiro respondeu: "Senhor, se assim é estou enganado e

devia ter-vos posto logo a par de tudo. Comportei-me como um tolo e, por isso,

peco-vos perdão. Dar-vos-ei pronto esclarecimento. Mas, antes disso, relevai minha

descortesia."

"Meu jovem, vosso desgosto é bem uma prova de vossa boa educação;

mas dizei-me agora que exército é este!"

268
"Senhor, nada pode deter aquele que vos precedeu. É o Rei

Poydiconjunz, acompanhado do Duque Astor de Lanverunz. Além deles vem

avançando um notório libertino. Jamais obteve o amor de uma só mulher, pois é a

quintessência da imoralidade desenfreada. Chama-se Meljakanz. Quando o instinto

genésico nele se manifesta, violenta simplesmente mulheres e jovens. Devia ser

morto por isso! Ele é filho de Poydiconjunz, um homem bravo e vigoroso que foi bem

sucedido em muitas guerras e que agora gostaria de distinguir-se em novos

combates. Que valor tem sua bravura nestas condições? Até a porca defende seus

leitõezinhos. Cavaleiro nenhum pode contar com a consideração pública, se não

souber conciliar destemer com distinção. Senhor, o que vos direi agora, merece de

vossa parte especial consideração: o impetuoso e bárbaro Rei Meljanz de Liz surgirá

à vossa retaguarda com outro poderoso exército. Sem fundamento justo deixou-se

arrastar por sua orgulhosa indignação a um ato de vingança, por ter sido repelido em

suas pretensões amorosas." O distinto escudeiro prosseguiu: "Senhor, permiti que

vos relate o que vi com meus próprios olhos. Ao se ver agonizante o pai do Rei

Meljanz determinou que seus príncipes vassalos se reunissem em torno de seu leito

de morte. Nesse doloroso momento de despedida suplicou a todos os príncipes

presentes para que se mantivessem fiéis ao belo Meljanz. A um deles se dirigiu

especialmente. Esse príncipe era o primeiro vassalo do reino, de fidelidade

comprovada e incapaz de um ato desleal. A ele cometeu o encargo de educar o

filho, falando nestes termos: "Conserva-te fiel a ele. Ensina-o a respeitar todos os

homens conhecidos ou estranhos. Educa-o para que dê generosa ajuda aos

necessitados que a ele venham a recorrer." Assim o menino foi entregue aos

cuidados do príncipe Lippaut e este cumpriu tudo o que seu suserano, o Rei Schaut,

lhe havia pedido em seu leito de morte. Cumpriu o prometido nos mínimos detalhes,

269
de nada se descuidando. O menino ficou, pois em sua companhia. Ele tinha duas

filhas que amava sobremodo e às quais até hoje se dedica com inteiro desvelo. A

uma delas, belíssima, faltava apenas a idade adequada para ser uma dama.

Chamava-se Obie, e sua irmã, Obilot. Por causa de Obie desabou toda essa

desgraça sobre nós, pois certo dia o jovem rei pediu-lhe que lhe concedesse seu

amor como retribuição de seus serviços. Ela repeliu com desprezo suas pretensões,

perguntando se estava se dando conta do que dizia ou se havia perdido o juízo. E

disse mais: "Vós devíeis antes prestar serviços como cavaleiro, realizar feitos

memoráveis e distinguir-vos vitoriosamente em combate. Se depois voltásseis a mim

com a mesma pretensão e eu a acolhesse ainda assim vos teria atendido

demasiadamente cedo. Não nego que me inspirais simpatia, da mesma forma que

Annore amava Galões. Mas ela se suicidou por causa dele somente depois que

esse havia perdido a vida em combate."

"Senhora", replicou ele, "lamento que me demonstreis vosso amor com

essa animosidade hostil. Afinal o pressuposto para dedicar-se ao serviço de uma

dama é contar com sua simpatia. Senhora, ao repelir meu pedido com tamanho

desdém passastes da conta. Ao menosprezar-me agistes de modo irrefletido, pois

não devíeis ter esquecido que vosso pai é meu vassalo e que seus muitos castelos

fortes e seu próprio país são feudos que lhe concedi."

"Quem de vós recebeu feudos, que vos sirva por isso" - exclamou ela. "Eu

me coloco acima disso! A mim ninguém reduz à dependência mediante concessão

de feudos! Nasci livre e, em conseqüência, dotada de nobreza igual à de qualquer

testa coroada."

270
Ele respondeu: "Alguém deve ter-vos incutido essa atrevida arrogância. E

como não pode ter sido outro que não vosso pai, ela pagará por isso. Porei minha

armadura e aqui na terra de vosso pai farei erriçar as lanças e brandir as espadas!

Não faltarão lanças, quer para luta singular, quer para batalha campal!" Ao deixar a

jovem, cheio de ódio, toda a corte, inclusive Obie, lamentava esse acesso de ira. O

inocente Lippaut, ansioso por superar esse malfadado incidente declarou-se

disposto a provar sua inocência e de pronto atender quaisquer exigências. Tendo ou

não razão, queria ser julgado por um tribunal composto pelos pares do reino, pois foi

posto sob suspeita sem culpa formada. Insistentemente pediu a seu suserano que

não o privasse de seu apoio mas este se achava inteiramente ofuscado pelo ódio."

"Lippaut não queria precipitar as coisas e aprisionar seu suserano, pois

este afinal era seu hóspede e um homem honrado não recorre a tais expedientes.

Mas o rei foi suficientemente precipitado para partir sem se despedir. Seus

escudeiros, todos filhos de príncipes que haviam sido criados com ele, choravam,

dominados pela tristeza. Deles Lippaut nada tinha a temer pois ao educá-los

cuidara para que fossem leais e tivessem uma formação exemplar. Meu amo, na

verdade, é uma exceção, embora também ele tivesse sido objeto da leal dedicação

do príncipe. Ele é o Burgrave Lisavander de Beavoys e é de ascendência francesa.

Quando ele e os outros escudeiros foram armados cavaleiros, obrigaram-se sob

juramento a se engajar na campanha contra Lippaut. Precisamente hoje muitos

filhos de príncipes e outros jovens adquiriram a posição de cavaleiro na corte do rei.

A vanguarda do exército é comandada pelo Rei Poydiconjunz de Gors, um homem

experiente que traz consigo muitos e bem equipados cavalos de batalha. Meljanz é

seu sobrinho e tão orgulhoso quanto o tio. Que o diabo os leve! Ambos os reis se

271
tomaram de rancor tamanho que agora estão a caminho de Bearoche a fim de ali se

engajar em duros combates a serviço de alguma mulher. Naturalmente muitas

lanças serão quebradas de ponta e de talho. Sabe-se que o próprio castelo de

Bearoche é tão solidamente fortificado que não poderíamos destruí-lo, ainda que

tivéssemos a nosso dispor vinte poderosos exércitos."

"Eu me antecipei furtivamente ao segundo exército que vem vindo e

apanhei para meu amo este escudo sem que os outros jovens notassem. Com ele

poderá aparar o lançaco do adversário no seu primeiro combate singular."

O escudeiro olhou para trás e avistou o amo que apressadamente vinha

no seu encalço, levando pelo cabresto três cavalos de batalha e doze lanças

brancas. Seu objetivo era evidentemente antecipar-se aos demais e assegurar-se a

primazia do combate. Em todo o caso esta é a versão de minha narrativa. Foi então

que o escudeiro deu-se pressa e disse a Galvão: "Senhor, permiti que me despeça."

E prontamente voltou-se para seu amo. "Qual é vossa opinião a respeito disso?

Conviria que Galvão se envolvesse mais diretamente nesse assunto?" Ele próprio

vacilou sem chegar a uma conclusão: "Se eu me limitar ao papel de espectador sem

participar de nada, irei deslustrar meu prestígio. Se eu me envolver e em

decorrência disso ultrapassar o prazo estipulado então minha reputação estará

arruinada de vez. Haja o que houver, não vou envolver-me nisso. Devo, antes,

honrar o trato que fiz." Assim titubeava ele acometido de profunda indecisão. Uma

demora em face do choque iminente poderia ser desastrosa. Por outro lado, não

desejava retirar-se sem mais nem menos. Finalmente decidiu-se: "Queira Deus que

ninguém ponha em dúvida minha hombridade." E partiu rumo a Bearoche.

272
3. GALVÃO DIANTE DE BEAROCHE

Quando o castelo e a cidade surgiram diante dele, achou que ninguém

poderia se orgulhar em possuir residência mais bela. Diante dele brilhou em todo o

seu esplendor o mais belo dos castelos, ornado por altivas torres. O exército inimigo

acabara de chegar e naquele momento estava acampado na planície diante da

cidade. Galvão viu em toda parte tendas magníficas e pretensiosa ostentação de

luxo. Com curiosidade observava as muitas bandeiras e toda a sorte de

combatentes estranhos que ali havia. Enquanto atravessava o acampamento,

novamente foi assaltado pela dúvida sobre se havia decidido com acerto. O exército

que cercava a cidade era tão numeroso que as tendas tiveram que ser arrumadas

bem junto umas às outras. Galvão observava o andamento dos trabalhos de

instalação, o que esse ou aquele fazia e quando alguém o cumprimentava retribuía

a saudação. Numa das extremidades do acampamento havia-se instalado grande

número de tropas a pé, oriundas de Semblidac e, logo a seguir, os arqueiros

montados de Kaheti. Ora, é sabido que estranhos nem sempre podem contar com

acolhida hospitaleira e, como ninguém o convidasse a se deter ali, o filho do Rei Lot

prosseguiu rumo à cidade. Galvão disse com seus botões: "Se quiser manter-me

como espectador, estarei mais bem resguardado na cidade que fora dela. Não estou

interessado em pilhagem, mas se a boa fortuna assim o dispuser pretendo pelo

menos conservar o que tenho."

273
4. OBIE MENOSPREZA GALVÃO

Assim pensando partiu rumo ao portão da cidade. Ali deparou com uma

dificuldade inesperada, pois os habitantes da cidade haviam murado a duras penas

todos os portões e bastiões. Todas as ameias estavam guarnecidas por besteiros

que eram mantidos em estado de alerta. Embora não estivesse familiarizado com a

região, seguiu montanha acima, rumo ao castelo. No alto da muralha avistou

algumas damas distintas. Era a castelã que, em companhia de suas duas belas

filhas, estava junto às ameias para observar o que cá embaixo se vinha passando.

Galvão pôde ouvir o que diziam. A digna duquesa começou assim o diálogo: "Que

tipo de gente será essa que vem se aproximando?"

A filha mais velha, sem pensar muito, foi logo dizendo: "Com certeza

trata-se de um mercador, mamãe!"

"E o escudo que segue empós ele?"

"Os mercadores também fazem uso dele."

Mas a filha mais nova objetou: "Mana, tu fazes dele o que ele não é e

devias envergonhar-te por isso! É evidente que não se trata de um mercador. É de

aparência tão magnífica que irei elegê-lo meu cavaleiro. Se ele me requestar,

oferecendo-me seus serviços, eu o aceitarei de bom grado, pois esse homem me

agrada!"

274
Entrementes os escudeiros de Galvão haviam descoberto junto à muralha

uma tília e uma oliveira. Na vossa opinião qual devia ser seu procedimento? O filho

do Rei Lot desmontou no local onde havia mais sombra. Seu camareiro apressou-se

em colocar ali mesmo uma colcha e um canapé. O altivo e distinto herói acomodou-

se nele enquanto lá do alto uma multidão de mulheres o contemplava. Suas roupas

e equipamentos foram descarregados. A seguir os escudeiros acomodaram-se à

sombra das outras árvores. A digna duquesa retomou o fio da conversa: "Filha, dize-

me se um mercador teria condições de se apresentar com essa pompa. Devias

abster-te de menosprezar os outros."

A infantil Obilot intrometeu-se na conversa: "Em mais de uma

oportunidade procedeu ela de modo inconveniente. Ao próprio Rei Meljanz de Liz

tratou com desprezo ao ser requestada por ele. Que vergonha!"

Obie revidou, indignada: "Pouco se me dá sua maneira de proceder! De

qualquer modo quem está sentado lá embaixo é um mercador e ao que tudo indica,

fará bons negócios aqui! Em todo o caso a bagagem de teu cavaleiro, ó tola irmã,

vem sendo devidamente vigiada pois ele próprio resolveu fazer as vezes de olheiro."

5. OS PRIMEIROS COMBATES DIANTE DE BEAROCHE

Galvão ouviu toda a conversa. Mas deixemos, por ora as coisas como

estão. Enquanto isso inteirai-vos sobre a situação da cidade. Ela estava situada ao

275
lado oposto do campo inimigo, junto a um rio navegável onde havia uma grande

ponte de pedra. A margem oposta não estava ocupada pela tropa inimiga. Na

margem de cá, avançou um marechal e determinou que o acampamento fosse

instalado ali, na área livre junto à ponte. Concluídos os trabalhos, compareceu ao

local seu amo, acompanhado de outros cavaleiros. Caso ainda não o conheçais eu

vos direi quem havia vindo para prestar leal ajuda ao senhor do castelo. Era seu

irmão, o Duque Marangliez, que partira de Brevigariez para socorrê-lo. Consigo

trouxera dois bravos e hábeis cavaleiros: o nobre Rei Schirniel, soberano de Lirivoyn

e o irmão deste, senhor de Avendroyn.

Ao avistarem as tropas que haviam vindo socorrê-los os habitantes da

cidade deram-se conta de que as medidas tomadas visando mantê-la incólume não

haviam sido as mais acertadas. O príncipe Lippaut exclamou: "Ah, por que muramos

os portões da cidade de Bearoche? Se eu enfrentar meu próprio rei minha honra

perante a instituição cavaleirosa estará arruinada! Estar de bem com ele seria mais

agradável e mais conveniente que enfrentar sua ferrenha inimizade. Poderíeis

imaginar situação mais infeliz do que sua lança perfurar certeiramente meu escudo,

ou minha espada partir o dele? Nenhuma dama ajuizada consideraria isso correto

sem passar por leviana. Mesmo se meu amo estivesse aprisionado na minha torre,

seria de meu dever libertá-lo e tornar-me seu prisioneiro. Mesmo se me castigasse,

deveria conformar-me. Mas ao pensar que se deixou arrastar pela ira a ponto de pôr

cerco à cidade, então devo ser grato a Deus por não estar em suas mãos. Agora "-

disse, dirigindo-se aos burgueses -" dai-me bom conselho para sair desta difícil

situação."

276
Muitos homens experientes então lhe disseram: "Se fosse apenas uma

questão de culpa ou inocência, não teríamos chegado a esta situação." Eles

insistiram com ele para que abrisse os portões e engajasse os melhores

combatentes em luta singular, argumentando: "Temos condições de nos defender/

muito bem contra os dois exércitos de Meljanz e não vemos por quê devamos

limitar-nos a uma defesa passiva a partir das ameias. Trata-se apenas de jovens que

seguiram o rei; quem sabe poderemos aprisionar alguns deles como reféns! Em

mais de uma oportunidade, desinteligências graves foram resolvidas dessa

maneira." E prosseguiram argumentando: "Se for dada ao rei oportunidade de

perpetrar algumas façanhas, talvez sua ira se aplaque e, em conseqüência nos

poupe de novos embaraços. Ademais, a batalha campal para nós é mais honrosa do

que sermos aprisionados intramuros. Se não estivesse a nos ameaçar a

experimentada tropa de Poydiconjunz haveria até mesmo a possibilidade de tomar

de assalto o acampamento inimigo. Mas os mais perigosos são os bretões

aprisionados que obedecem às ordens do Duque Astor. Ele é sempre o primeiro a

se lançar ao combate. Entre eles está igualmente Meljakanz, filho de Poydiconjunz.

Infelizmente não foi educado por Gurnemanz; caso contrário, sua conduta seria

irrepreensível. Isso não impede que seja um combatente de escol. Mas, como

podeis constatar, nesse entretempo uma tropa numerosa veio em nosso socorro."

Assim acabastes de ouvir a opinião dos burgueses.

Acolhendo o conselho o príncipe determinou que fossem demolidos os

muros que protegiam os portões e os intrépidos burgueses marcharam rumo ao

campo aberto. Cá e lá verificaram-se pequenos choques pois o exército sitiante

avançou corajosamente rumo à cidade. Houve assim um notável torneio

277
vespertino. De um lado e de outro defrontavam-se tropas incontáveis e em toda a

parte ouviam-se gritos de guerra proferidos pelos escudeiros em escocês e gaélico,

enquanto os cavaleiros se empenhavam na luta com denodo. Muitos dos

combatentes juvenis, de que era composto o grosso do exército sitiante, se

distinguiram por seus feitos, mas foram aprisionados e desarmados pelos

burgueses. Quem nunca conquistara prenda alguma a serviço de uma mulher não

podia estar mais bem apresentado. Afirma-se que o timbre de Meljanz era

particularmente precioso. Cheio de empáfia, avançava ele montado num magnífico

castelhano. Essa montaria Meljakanz arrebatara de Keye, depois de havê-lo

desmontado com tamanha violência que ficara preso ao galho de uma árvore.

Realizando feitos notáveis, Meljanz de Liz se exibia agora, montado nessa montaria

conquistada por Meljakanz.

6. OBIE TENTA HUMILHAR GALVÃO

Do alto das ameias Obie observava todo o desenrolar dos combates.

"Veja só, querida irmã" - exclamou -, "como teu cavaleiro e o meu se comportam de

modo tão diferente. O teu seguramente acredita que montanha e castelo serão

conquistados de qualquer modo. Nessa altura dos acontecimentos será necessário

buscar ajuda em outra parte."

278
Embora obrigada a aceitar a ironia, a irmã mais nova replicou: "Ele

certamente irá recuperar o que negligenciou. Estou convencida de que com seu

arrojo fará emudecer teus remoques. Ele se distinguira como meu cavaleiro e eu o

recompensarei por isso. E se for, como dizes, um mercador, terá pelo menos

oportunidade de negociar comigo a recompensa a que faz jus."

Embora escutasse a discussão das duas Galvão suportou o que ouvia da

melhor forma que pôde. Um coração puro mantém-se recatado até o fim.

O grosso da tropa comandada por Poydiconjunz manteve-se distante do

campo de luta. Apenas um jovem fidalgo, o Duque de Lanverunz, e seus

companheiros, se envolveram no tumulto dos combates. Nessa ocasião o

experimentado Poydiconjunz acorreu e os retirou do campo de batalha. Foi assim

que findou esse torneio vespertino em que cada um deu o melhor de si, em

homenagem às nobres damas. Nessa ocasião Poydiconjunz inquiriu rispidamente

o Duque de Lanverunz: "Por que não aguardastes minhas ordens? Ao vos precipitar

na luta de modo tão saliente e impensado, acaso imaginastes ser um combatente

padrão? Vede aqui o nobre Laheduman e meu filho Meljakanz! Quando eles e eu

arremetermos vereis o que é um combate de verdade, caso tenhais a pretensão de

entender alguma coisa desse assunto. Não arredo pé daqui enquanto todos os

nossos não se tiverem saciado de lutar e todos os homens e mulheres da cidade

não se tiverem rendido."

Mas o Duque Astor interveio: "Senhor, vosso sobrinho, o rei, já estava

envolvido num encontro, juntamente com o exército que ele trouxe de Liz. É justo

que vosso exército se entregue a uma tranqüila sesta? Se é esse o bom exemplo

279
que dais então vou estirar-me na cama na hora da luta. A confusão do combate não

irá perturbar meu sono. Podeis crer-me, se eu não interviesse os burgueses teriam

arrebanhado presa e fama. Poupei-vos portanto, de uma situação vergonhosa.

Contende-vos, portanto, por amor de Deus, pois vossa gente ganhou mais que

perdeu. Até a nobre Obie teria que admitir isso."

Poydiconjunz estava indignado com seu sobrinho Meljanz. Mas o nobre

rapaz exibia no escudo os sinais de numerosas escaramuças, o que só poderia ser

útil para um jovem desejoso de construir sua fama.

Agora permiti que volte a me ocupar de Obie. Ela hostilizava Galvão sem

motivo algum e intentava humilhá-lo de qualquer modo. Enviou, por isso seu criado

ao acampamento de Galvão com o seguinte recado: "Indague dele se seus cavalos

estão à venda e se tem na sua bagagem vestidos atraentes. Nós, fidalgas,

estaríamos dispostas a arrematar tudo."

Ao aproximar-se, o criado foi recebido rispidamente. Galvão o fulminou

com um olhar que o fez estremecer, inibindo-o de transmitir o recado da ama. Além

disso Galvão o recebeu aos gritos: "Fora daqui, patife! Se deres mais um passo,

serás corrido daqui a bofetadas!" Com essa recepção o criado tratou de arrepiar

caminho.

Atentai agora para o ardil que Obie urdiu a seguir.

Determinou a um jovem fidalgo que se apresentasse ao Burgrave

Scherules: "Dize-lhe que cumpra fielmente estas minhas determinações: Junto do

280
fosso da cidade, debaixo de uma oliveira, estão parados sete cavalos que serão

dele, juntamente com muitos outros objetos de grande valor. Um mercador deseja

enganar-nos e é do dever dele impedi-lo. Ele por certo é homem bastante para

apreender essas mercadorias sem indenização. Disso não resultará qualquer

complicação para ele." O escudeiro desceu à cidade e tratou de transmitir as

queixas de sua ama. "É do meu dever coibir trapaças", observou Scherules, "E

assim sendo, tratarei desse caso imediatamente." Sem perda de tempo dirigiu-se ao

local onde o bravo e destemido Galvão se achava acampado. Mas ali deparou com

um magnífico e rijo cavaleiro de peito largo e olhar fulgurante. Scherules examinou-o

atentamente, olhou seus braços, suas mãos e toda a sua figura de cima a baixo. A

seguir disse-lhe cortesmente: "Embora não vos conheça, vossa presença nos

chamou a atenção, pois ainda não recebestes acolhida. Considerai isso uma falha

de nossa parte. Eu mesmo, como vosso marechal, tratarei de encontrar

hospedagem para vós. Tudo o que me pertence - homens e bens - está à vossa

disposição. Podeis crer-me que jamais um anfitrião teve hóspede mais bem-vindo."

Galvão respondeu: "Senhor, eu vos agradeço. Na verdade eu ainda nada

fiz para merecer acolhida tão calorosa, mas aceito de bom grado vosso convite."

O honrado Scherules disse-lhe, com toda a lealdade: "Considero-me

responsável por vossa segurança e cuidarei para que nos limites da cidade estejais

ao abrigo de qualquer dano. Caso o exército sitiante pretenda vos assaltar, podeis

contar comigo."Com ar simpático dirigiu-se aos escudeiros: "Carregai os

equipamentos e vamos partir." Galvão partiu, pois em companhia do anfitrião. Mas

Obie não se deu por vencida e enviou a seu pai uma mágica que este conhecia. Ela

queria comunicar-lhe que havia um moedeiro falso na cidade. "O que ele carrega em

281
sua bagagem é suficientemente precioso. Apele para sua coragem de cavaleiro. Ele

deve confiscar os bens do forasteiro e reparti-los entre seus homens, a título de

soldo. Afinal, eles se satisfazem com cavalos, prata e roupa, e pelo menos sete

deles ele poderá equipar dos pés à cabeça com a pilhagem."

A maga pôs o príncipe a par de tudo, na forma pela qual havia sido

instruída pela filha. Quem algum dia foi responsável por operações de guerra sabe

quão necessários são ricos despejos. Além disso, o fiel Lippaut vinha sendo

assediado insistentemente pelos seus mercenários, de sorte que se pôs a refletir: "É

preciso que me apodere dos bens desse homem, por bem ou por mal." Ele

apressou, pois o passo, mas Scherules veio a seu encontro, indagando a razão de

sua pressa. "Estou no encalço de um trapaceiro! Fui informado de que seria um

moedeiro falso."

Está visto que o senhor Galvão nada tinha a ver com o assunto. Apenas

seus cavalos e sua bagagem o haviam tornado suspeito. Scherules pôs-se a rir e

disse: "Fostes enganado. Quem vos afiançou isso, quer seja homem, mulher ou

jovem, mentiu simplesmente. Meu hóspede é inocente e também vós mudareis de

opinião em seguida. Jamais teve alguma coisa a ver com matriz para cunhagem de

moedas e podeis ficar tranqüilo de que em tempo algum teve nas mãos uma bolsa

de cambista. Prestai atenção em suas atitudes e sua linguagem. Ele é hóspede de

minha casa. Se tiverdes uma opinião segura acerca do que seja ou não

comportamento cavaleiroso então chegareis à conclusão de que se trata de um

varão probo e leal. E se alguém o hostiliza r- quer sejam meus filhos, meu pai, meu

irmão ou meus parentes -, então terá que levantar a espada contra mim. Com vosso

apoio e da forma que puder, defendê-lo-ei contra qualquer arbitrariedade. Eu

282
preferiria renunciar à minha condição de cavaleiro e vestir burel de monge penitente,

ou ainda abandonar os meus e abalar-me para um lugar onde ninguém me conheça,

a permitir que procedais de forma iníqua. Andaríeis mais bem avisado se

recebêsseis amistosamente todos aqueles que cientes de vossa difícil situação

acorressem em vosso auxílio, ao invés de assaltá-los. Não vos considero capaz

disso."

Mas o príncipe argumentou: "Permiti que eu o veja. Afinal não há mal

algum nisso." E assim se dirigiu ao local onde se encontrava Galvão, a fim de

conhecê-lo pessoalmente. O coração e os olhos diziam a Lippaut que o hóspede de

Scherules era um vistoso cavaleiro, de quem se podiam esperar atitudes varonis.

Quando o amor nasce de sentimentos autênticos - e ele pode ser

identificado toda a vez que o coração cativo sucumbe a uma paixão verdadeira -,

então esse sentimento é capaz de realizar verdadeiros milagres. Não poucas vezes

a paixão priva homens e mulheres da capacidade de raciocinar claramente.

Também Obie e Meljanz estavam tão intensa e genuinamente apaixonados um pelo

outro que ela acabou lamentando sua explosão de ira que o compelira a se afastar

dela. O desgosto causara a Obie tamanho sofrimento, que seu natural recato se

transformava em rancor agressivo, cujas explosões o inocente Galvão e muitos

outros tiveram que suportar. Sua boa compostura transformava-se, então em furor

cego, de sorte que muitas vezes esquecia aquelas normas que convém a uma

mulher de fino trato. A simples visão de um fidalgo era para ela motivo de

ressentimento. Ela amava unicamente Meljanz. E se pôs a cismar: "Se ele é causa

de todos os meus sofrimentos então quero suportá-los de bom grado."

283
Sede, pois indulgentes com Obie. Afinal, explosões de cólera não são tão

raras nas coisas do amor.

7. LIPPAUT PEDE APOIO A GALVÃO

Ouvi, agora as palavras do pai, ao estar face a face com o nobre Galvão

para dizer-lhe quanto era bem-vindo em seu país: "Senhor, que vossa chegada nos

traga boa sorte! Já vi muitas coisas em minha vida, mas nunca o encontro com um

cavaleiro me proporcionou tanta satisfação. Que vossa vinda nos dê conforto nas

vicissitudes da guerra. Estou convencido de que ireis ajudar-nos." E pediu que como

cavaleiro aderisse à sua causa. "Juntai-vos ao nosso exército. Se vosso

equipamento for insuficiente permiti que o supramos do necessário."

O nobre Galvão objetou: "Eu vos ajudaria de bom grado. Para tanto não

me falta equipamento nem vigor físico. Mas para que possa atender um

compromisso dentro de prazo certo é necessário que não me engaje em qualquer

outra coisa. Com muita satisfação compartilharia convosco vitória ou derrota, mas

isso não será possível. Senhor, antes de tudo terei que enfrentar um combate

singular, no qual minha honra está em jogo. Minha honra cavaleirosa exige que eu a

defenda com as armas na mão ou pereça. Esse é o motivo de minha viagem."

Entristecido, Lippaut declarou: "Senhor, em consideração ao vosso

prestígio e à vossa simpática benevolência devo esclarecer-vos que não me cabe


284
qualquer culpa pela irrupção das hostilidades. Tenho duas filhas que eu amo com

aquela solicitude comum a todo pai. O que Deus me proporcionou através delas

constitui a alegria de minha vida. A par dessas compensações elas são também a

causa das minhas dificuldades, para ser preciso apenas uma delas. Como eu, é ela

vítima dessa situação. Mas essa identidade no sofrimento é apenas aparente pois

meu amo a assedia com sua paixão e a mim com seu ódio. Ao que tudo indica a

atitude dele decorre do fato de eu não ter filho varão. Mas só por isso não quero

menos bem às minhas filhas. Seria essa a razão de minhas dificuldades? Pois quero

fazer dela o sustentáculo de minha felicidade! Quem tem uma filha deve contar com

outro tipo de compensações, pois se lhe é vedado o uso da espada ela incorpora à

família, graças às suas virtudes femininas, um genro vigoroso e intrépido. E nisso

que se fundam minhas esperanças."

"Que Deus realize esse vosso desejo", replicou Galvão.

O príncipe Lippaut tornou a insistir com Galvão sobre a importância de

sua ajuda, mas o filho do Rei Lot argumentou: "Senhor, não mais insistais comigo

nesse assunto, por amor de Deus! Lembrai-vos de vossa distinta educação e não

exijais de mim que eu quebre a palavra empenhada. Apenas uma coisa posso

assegurar-vos: vou repensar tudo uma vez mais e ainda esta noite dar-vos-ei minha

palavra definitiva."

285
8. GALVÃO TORNA-SE CAVALEIRO DE OBILOT

Lippaut agradeceu e partiu. No pátio do castelo encontrou sua filha em

companhia da filha do burgrave. Ambas estavam entretidas no jogo de argolinhas.

Lippaut indagou de Obilot: "Como viestes parar aqui, filhinha?"

"Eu desci, pai, para pedir ao cavaleiro estranho que se ponha a meu

serviço. Estou convencida de que ele irá atender-me!"

"Então fica sabendo que ele acaba de me negar sua ajuda. Quem sabe tu

fazes com que me atenda?"

A menina partiu célere à procura do forasteiro. Quando a viu entrar na sua

kemenate Galvão levantou-se de pronto e depois de cumprimentá-la sentou-se ao

seu lado. Agradeceu-lhe por haver tomado sua defesa quando vinha sendo

destratado, opinando enfim: "Se algum dia um cavaleiro tivesse que experimentar

penas de amor por causa de uma jovem donzela então preferiria que vós fósseis o

alvo desse sentimento."

A isso respondeu a inocente e encantadora menina, sem a menor

inibição: "Tenho Deus por testemunha, senhor, que vós sois o primeiro cavaleiro

com o qual mantenho este tipo de conversa. Se neste diálogo fui capaz de me

manter nos limites da conveniência então posso sentir-me feliz, pois minha

preceptora me disse que é conversando que se revela o bom-senso das pessoas.

286
Senhor, é num momento de grande angústia que me dirijo a vós e, através de vós, a

mim mesma. Permiti que vos descreva essa situação aflitiva mas não façais mau

juízo de mim por causa disso. Peço socorro a mim mesma através de vossa pessoa,

de modo que minha maneira de agir não chegue a ser inconveniente. Ainda que

tenhamos nomes diferentes, somos ligados um ao outro de forma indissolúvel.

Ostentai, pois doravante meu nome e sede a um tempo varão e donzela. Minha

súplica é, portanto, dirigida a ambos nós dois. Caso me repilais e deixeis que me

retire humilhada, vossa honra entrará em conflito com vossa formação cavaleirosa,

pois é uma donzela que procura junto a vós proteção e socorro. Senhor, se vos

convier, tereis minha irrestrita afeição e se fordes homem digno não me recusareis

esse ato de serviço, pois eu o mereço. Na verdade meu pai pediu apoio a muitos

amigos e parentes, mas isso não vos impede de prestar serviço a mim e a ele para,

mais tarde, ser recompensado por mim."

A isso Galvão respondeu: "Senhora, estais fazendo de tudo para eu

quebrar a palavra empenhada, embora a deslealdade seja uma atitude que devíeis

detestar. Empenhei minha palavra e, se não a cumprir serei considerado morto.

Entretanto, ainda que quisesse através de atos de serviço, aspirar ao vosso amor,

devíeis ser no mínimo cinco anos mais velha para que pudesse requestá-la. A

recompensa amorosa é, pois um argumento que não pode ser levado em

consideração." Nesse momento veio-lhe à memória a atitude de Parsifal, que

confiava mais nas mulheres que em Deus e essa lembrança transformou-se em

mensageiro da menina, que acabou abrindo caminho ao coração de Galvão. Ele

prometeu, pois à pequena fidalga defender sua causa com as armas na mão,

acrescentando: "Vossa mão manejará minha espada e se alguém me desafiar

287
partireis para o ataque e lutareis em meu lugar! Na verdade serei eu quem será visto

no tumulto da luta, mas na realidade sereis vós que manejareis minha espada."

Obilot respondeu: "Isto me satisfaz. Vossas palavras removeram do meu

coração os temores da dúvida. Serei doravante vossa salvaguarda e escudo, vosso

coração e consolo, vossa guia e companheira no infortúnio, vossa cobertura

protetora contra as Intempéries e desgraças. Meu amor dar-vos-á segurança e

fortuna nos perigos da guerra a fim de poderdes defender com fibra heróica a cidade

e o castelo. Sou castelão e castelã e estarei convosco na luta. Se tiverdes confiança

não vos faltarão energia e fortuna."

O nobre Galvão arrematou: "Senhora, gostaria de contar com ambas as

coisas: vosso amor e vosso apoio. Minha vida está consagrada ao vosso serviço."

Ao ouvir essas palavras pôs ela suas mãozinhas em suas mãos, dizendo:

"Senhor, permiti que me retire agora a fim de cuidar de minhas obrigações. Estimo-

vos demais para permitir que vos engajeis na luta sem uma prenda minha. Farei de

tudo para confeccionar para vós esse símbolo afetivo. Ao usá-lo vossa fama

ofuscará a dos demais cavaleiros."

A jovem e sua companheira de folguedos agradeceram a Galvão o cordial

acolhimento e se despediram. Galvão, ao lhes agradecer por suas manifestações de

simpatia, declarou: "Quando vós duas tiverdes atingido a maioridade ireis gastar por

certo toda uma floresta de lanças, tendo em conta que já agora, ainda no verdor dos

anos, revelais tamanha ascendência sobre os corações dos homens. Se depois de

288
adultas conservardes essa capacidade, então não poucos cavaleiros fenderão

escudos e quebrarão lanças por amor a vós."

As duas jovens afastaram-se dali com um misto de contentamento e

tristeza. A filhinha do burgrave, não se contendo, perguntou: "Dizei-me, senhora, o

que pretendeis oferecer-lhe? Afinal temos apenas bonecas. Se vos convier podereis

oferecer-lhe uma das minhas, caso seja mais bonita que as vossas. Não vamos

brigar por causa disso."

A meio caminho da subida do castelo encontraram o príncipe Lippaut, a

cavalo. Ao deparar-se com Obilot e Clauditte caminhando à frente montanha acima,

embargou-lhes os passos. A pequena Obilot disse-lhe: "Pai, necessito urgentemente

de teus conselhos e de tua ajuda! Imagina só que o cavaleiro atendeu meu pedido!"

"Filha, terás tudo o que quiseres, na medida em que estiver a meu

alcance! Tua vinda ao mundo foi para nós uma bênção! Por isso o dia do teu

nascimento foi para nós um dia de felicidade."

"Vou abrir-me contigo, pai, e revelar-te-ei minhas preocupações. Sé

bonzinho e procura ajudar-me."

Lippaut determinou que pusessem Obilot à sua frente na sela. Ela, porém

protestou: "E minha amiga, onde irá ficar?" Esse pedido provocou uma alegre

emulação entre os cavaleiros acompanhantes do príncipe acerca de quem deveria

conduzi-la na sela. Nenhum deles considerava essa tarefa indesejável, pois

289
Clauditte era uma menina encantadora. Por fim um dos cavaleiros colocou-a à sua

frente na sela.

Prosseguindo a marcha Lippaut disse a Obilot: "Conta-me agora tuas

preocupações."

"Prometi ao cavaleiro estranho uma prenda. Não devo ter estado muito

boa da cabeça, considerando que nada possuo. Ele se dispôs a servir-me e eu nada

tenho para oferecer-lhe. Isso me faz corar de vergonha e me dá vontade de desertar

da vida, pois nunca uma jovem gostou tanto de um homem!"

Sorrindo, Lippaut tratou de acalmá-la: "Filhinha, confia em mim, pois nada

irá te faltar. Se ele quiser te servir tratarei de achar algo com que possas obsequiá-lo

ainda que tua mãe te desampare. Deus queira que isso resulte em algum proveito

para mim! Ele é um nobre e altivo cavaleiro e muito espero dele. Na noite passada

eu o vi em sonho sem nunca ter trocado com ele uma palavra sequer."

Com a filha Obilot, foi à presença da duquesa e lhe disse: "Nobre

senhora, ajudai-nos! Estou sumamente feliz pelo fato de Deus haver-nos dado esta

menina e com isso remover do meu espírito todas as minhas preocupações."

A velha duquesa respondeu: "Que pretendeis de mim?"

"Nobre senhora, oferecei-lhe um vestido melhor, pois um nobre cavaleiro

que aspira a seu amor deseja dedicar-se inteiramente ao seu serviço e pede uma

prenda."

290
A mãe da menina exclamou então: "Ah! acaso se trata daquele amável e

vistoso cavaleiro? Suponho que vos referis ao hóspede estrangeiro, belo como um

radiante dia de maio?"

A mulher experiente mandou vir veludo de Ethnise. Trouxeram então

cortes de tecido, seda de Tabronit, do país de Tribalibot. Servindo-se de ouro rubro

do Cáucaso e de seda legítima os pagãos haviam produzido toda a sorte de

preciosos tecidos. Para a filha, pela qual faria qualquer coisa, Lippaut mandou

confeccionar vestidos. Obedecendo a seu figurino confeccionou-se um vestido de

seda ricamente entretecido com fios de ouro. Apenas um braço ficou descoberto

pois a manga correspondente destinava-se a Galvão. Nela se resumia a prenda de

Obilot. Era feita de seda de Neuriente, importada do distante país dos pagãos. A

manga foi ajustada a seu braço direito mas sem ser presa ao vestido. Para isso não

se urdira um só fio de linha. Clauditte ofereceu a manga ao magnífico Galvão, que

se mostrou alegre e confiante, pregando a manga num de seus três escudos.

Satisfeito e aliviado das tensões manifestou seu profundo reconhecimento e

bendisse o caminho palmilhado pela jovem quando essa lhe dera cordiais boas-

vindas e o tornara feliz com seu amor.

9. A BATALHA DIANTE DE BEAROCHE

Com isso o dia havia cedido sua vez à noite. Ambos os lados contavam

com poderosos exércitos e com bravos e destemidos cavaleiros. Os sitiados haviam

291
sustentado um duro combate sem a ajuda do gigantesco exército que acorrera em

seu socorro. À clara luz da lua inspecionavam as instalações defensivas e ninguém

tratava de lamentar-se. Até ao amanhecer haviam sido cavadas doze grandes

trincheiras circulares, protegidas por fossos e providas a intervalos regulares de três

baluartes para impedir incursões de cavalaria. O Marechal Kardefablet de Jamor

ocupou quatro portões da cidade onde, ao romper d'alva podiam ser vistos seus

exércitos, aprestados para o combate. O poderoso duque, um dos Irmãos da

castelã, pretendia mostrar ali como se conduz uma guerra. Em combatividade

sobrepujava muitos cavaleiros audazes e provados na luta, o que o faria passar por

grandes apuros no decurso da batalha. Seu exército havia entrado em posição

durante a noite. Kardefablet enfrentara galhardamente a longa marcha e tinha fama

de não ceder terreno ao inimigo mesmo nos combates mais renhidos. A ele

incumbia guarnecer e proteger quatro portões da cidade.

As tropas estacionadas no outro lado da ponte atravessaram-na e fizeram

sua entrada na cidade. Essa providência fora tomada a pedido do príncipe Lippaut.

Antes delas, as tropas de Jamor já haviam cruzado a ponte. Todos os portões foram

guarnecidos, de sorte que ao alvorecer, todos estavam em posição de combate.

Scherules escolhera um portão que pretendia defender de parceria com Galvão. Os

hóspedes recém-chegados lamentaram que as hostilidades houvessem começado

na sua ausência, privando-os da oportunidade de participar da batalha da véspera.

Isso me leva a crer que não sejam necessariamente os piores combatentes. Na

realidade nada havia a lamentar pois quem efetivamente ansiasse por combater e

com essa sofreguidão se internasse no campo de batalha teria seus desejos

amplamente satisfeitos. Nas vielas da cidade podiam ser admiradas muitas tropas a

292
cavalo, vislumbrados, à luz da lua, muitos estandartes e preciosos elmos que seriam

utilizados na luta e vistas muitas lanças multicoloridas conduzidas por combatentes

que em grande número marchavam cidade adentro. Vestimentas de tafetá de

Ratisbona não eram muito apreciadas em Bearoche. O que ali não faltava eram as

preciosas túnicas de combate.

Como sempre, à noite sucedeu um novo dia, cujo despontar dessa vez

não era saudado pelo cântico do sabiá mas com o fragor das armas, que se

intensificava com o início dos combates. Qual rugir da tempestade, ecoava o fragor

das lanças que se partiam quando os jovens cavaleiros de Liz se chocaram com as

tropas de Lirivoyn e as conduzidas pelo Rei de Avendroyn. O vigoroso e violento

embate entre os lanceiros produzia ruído semelhante ao pipocar de castanhas

atiradas às labaredas. Ah, como os cavaleiros vindos de fora se lançavam sobre o

campo de batalha e como os burgueses distribuíam golpes para todos os lados!

Antes do começo da batalha Galvão e o burgrave assistiram à missa que um

sacerdote oficiara para a salvação de suas almas, sua eterna bem-aventurança e

em homenagem a Deus e a eles. Eis que novas honras lhes estariam reservadas.

Eles se dirigiram, pois ao reduto que vinha sendo defendido por muitos nobres e

bravos cavaleiros do séquito de Scherules. O desempenho deles vinha sendo

notável. Que outras notícias devo dar-vos a respeito? O orgulhoso Poydiconjunz

avançou com numerosas forças. Se cada arbusto da Floresta Negra fosse uma

haste de lança não se poderia vislumbrar ali floresta mais densa que a visão de suas

incontáveis fileiras. Ele avançou precedido de seis bandeiras, diante das quais

eclodiu logo furioso combate. Trombetas ecoavam qual trovão assustador, em cujo

alarido se misturava o rufar dos tambores. Não me cabe-culpa alguma de que os

293
colmos tenham sido pisados sem nenhuma consideração. Os vinhedos de Erfurt124

(121) guardam até hoje as marcas da devastação perpetradas pelas patas dos

cavalos. Agora começava o combate entre o Duque Astor e as hostes de Jamor.

Numerosos e rudes combates eram travados e muitos distintos cavaleiros eram

arremessados ao solo à retaguarda de suas montarias. Os combates cresciam em

virulência. Gritos de guerra em língua desconhecida ecoavam de um lado para

outro, corriam montarias soltas, cujos ginetes tratavam de safar-se depois de haver

aprendido a melhor maneira de cair do cavalo.

10. OS NOTÁVEIS FEITOS DE GALVÃO

Ao constatar que, na planície, amigos e inimigos se engalfinhavam em

rude combate corpo a corpo nosso herói Galvão para lá se dirigiu a galope com uma

rapidez que mal permitia que fosse seguido com os olhos. Embora Scherules e os

seus não poupassem suas montarias, tiveram dificuldade em segui-lo. Quantos

guerreiros descavalgou? Quantas sólidas lanças quebrou? É certo que Deus havia

conferido aos membros da Távola Redonda notável energia, de sorte que agora

Galvão pôde colher os louros da glória. Muitas espadas partiu ele junto ao punho e

bateu-se tanto com o exército de Liz quanto com o de Gors! Num abrir e fechar de

olhos apresara numerosas montarias que logo eram postas à disposição do anfitrião.

124
Os vinhedos de Erfurt. O cerco dessa cidade da Turíngia, ocorrido em 1203, teve necessariamente
efeito nefastos sobre seus vinhedos. O motivo do sítio foi a rivalidade entre os guelfos (partidários do Papa) e os
gibelinos (partidários do Imperador|). Naquele ano os guelfos conseguiram cercar em seus muros a facção dos
gibelinos, do que resultou a devastação dos vinhedos. Esse fato histórico é uma das poucas referências para
determinar a data aproximada da elaboração do “Pasifal”, de Wolfram von Eschenbach.

294
Quando indagava se alguém as queria, a resposta de muitos era afirmativa. O fato

de estarem do mesmo lado resultou para seus companheiros de armas em ricos

despojos. Eis que vinha avançando um cavaleiro que decididamente não fazia

economia na utilização das lanças. Quando o Burgrave de Beavoys e o nobre

Galvão se entrechocaram o jovem Lisavander só deu outra vez conta de si depois

que se viu caído atrás de seu corcel no meio das flores. Lamento esse desfecho por

causa do escudeiro que no dia anterior acudira solícito ao chamado de Galvão e lhe

dera as informações solicitadas. Ao desmontar para acudir o amo Galvão o

reconheceu e lhe restituiu o cavalo conquistado. O escudeiro agradeceu, inclinando-

se cortesmente. Mas reparai que também Kardefablet estava ali caído no chão. Um

vigoroso e certeiro lançaço de Meljakanz o havia arremessado ao solo, mas seus

cavaleiros acudiram prontamente, levantando-o. Seguido de vigorosos golpes de

espada ouvia-se incessantemente o grito de guerra "Jamor!" Cada vez mais

acanhado se tornava o espaço onde um ataque se seguia a outro. Golpes de

espada faziam ressoar os elmos e aturdiam os ouvidos. Foi então que Galvão, que

conduzia os companheiros para um vigoroso ataque, pôs o nobre senhor de Jamor

sob a proteção da insígnia do anfitrião. Em meio a tudo Isso muitos cavaleiros eram

descavalgados. Conto com vossa fé no que digo porque outras provas não tenho

senão esta minha narrativa.

Nesse momento Galvão vinha sendo assediado pelo Conde Laheduman

de Muntane. Nesse soberbo duelo de lanças o vigoroso, altivo e renomado

Laheduman foi arremessado ao solo à retaguarda de seu corcel e compelido por

Galvão a se render. À frente de todos o Duque Astor combatia nas imediações das

trincheiras defensivas, provocando violentos entrechoques. Incessantemente era

295
proferido o brado "Nantes", o grito de guerra de Artur. Os bretões cativos e os

mercenários de Destrigleis, o reino de Erec, conhecidos por sua bravura, lutavam

com grande obstinação. Estes últimos eram liderados pelo Duque de Lanverunz.

Como reconhecimento pelo valor demonstrado pelos bretões, Poydiconjunz

pretendia restituir-lhes a liberdade. Eles haviam sido aprisionados num desfiladeiro

durante um ataque e desde então conservavam seu grito de guerra, "Nantes", em

todas as operações em que eram engajados, a despeito de muitos deles haverem

ficado com a barba grisalha ao longo do cativeiro. Da mesma forma muitos bretões

exibiam no elmo ou no campo do escudo, como marca de identidade, a efígie de um

dragão, animal heráldico de Ilinot, o nobre filho de Artur. Galvão suspirou ao avistar

o símbolo! Ao reconhecê-los, ficou com os olhos rasos d'água, pois a lembrança da

morte do primo encheu-lhe o coração de tristeza. Ele não molestou os guerreiros da

Bretanha e evitou envolver-se com eles numa luta, uma atitude que mesmo hoje é

uma forma de demonstrar amizade. Galvão voltou-se contra o exército de Meljanz. O

combate ali sustentado pelos burgueses era digno de elogio, embora não pudessem

manter sua posição diante da superioridade numérica do inimigo, sendo compelidos

a recuar até o fosso da cidade.

Eles haviam sido atacados seguidamente por um cavaleiro que usava

uma armadura vermelha e como ninguém sabia quem era passaram a chamá-lo o

"inominado". Aqui apenas reproduzo o que me contaram: três dias antes aderira à

causa de Meljanz, decidindo apoiá-lo. Isso devia custar caro aos burgueses.

Meljanz pusera à sua disposição doze escudeiros de Semblidac, que deviam dar-lhe

apoio nos combates singulares e nas batalhas campais. Ele gastava todas as lanças

que lhe ofereciam. Os estilhaços de lança estalaram ruidosamente quando

296
aprisionou o Rei Schirniel e o irmão deste. E foi ainda mais longe ao compelir o

Duque de Marangliez à rendição. Embora esses cavaleiros fossem a alma de suas

tropas, estas prosseguiram batendo-se impavidamente. O Rei Meljanz participara

pessoalmente dos combates e tanto amigos quanto inimigos reconheciam que

nenhum jovem de sua idade combatia com igual brilho. Enquanto as tropas em

confronto se batiam furiosamente, ele partia com violentos golpes muitos escudos e

fez com que muitas lanças se partissem ao se chocarem com seu escudo. Seu

jovem coração ansiava por luta e o impelia a se internar na batalha. A situação

havia-se tornado extremamente crítica. Ninguém pôde fazer-lhe frente até que, ao

fim, desafiou Galvão para luta singular. Galvão pediu aos escudeiros que lhe

dessem uma das doze lanças feitas em Angram, que ele havia adquirido em

Plimizoel. O grito de guerra de Meljanz era "Barbigoel", a magnífica capital de Liz.

Galvão apontou certeiramente a sólida haste de bambu de Oraste Gentesin contra

Meljanz, infligindo-lhe doloroso ferimento, pois a lança perfurou o escudo e lhe

atingiu o braço, partindo-se a seguir. Foi um combate duríssimo. Galvão

descalvagou Meljanz em grande estilo, mas no choque partiu-se igualmente o arção

traseiro de sua sela, de sorte que os dois campeões se reencontraram no solo, à

retaguarda de seus cavalos. Ambos reiniciaram a luta com energia recorrendo às

suas espadas. Se dois agricultores tivessem trilhado seus grãos com tal denodo os

resultados teriam sido compensadores. Cada um se ocupava com o feixe de trigo do

outro, tratando de reduzi-lo a cacos. Meljanz lutava com nítida desvantagem, pois a

ponta de lança inserta em seu braço fazia a ferida sangrar e lhe tolhia os

movimentos. Finalmente o senhor Galvão o arrastou pela porta falsa guarnecida

pelos combatentes de Brevigariez e o compeliu a render-se. Se não estivesse ferido

297
o jovem não teria entregue os pontos tão cedo. Teria sido preciso esperar por sua

rendição por mais algum tempo.

Em combate com o Rei de Gors o príncipe Lippaut, soberano do país,

também revelou força de herói. Mas cavaleiros e montarias vinham sendo

ameaçados por armas de arremesso, pois agora os arqueiros de Kaheti e os

infantes de Semblidac mostraram suas habilidades. Os arqueiros mudavam de

posição freqüentemente de sorte que os burgueses só a duras penas podiam manter

o inimigo afastado de suas trincheiras. Engajando agora seus infantes, defenderam

seus bastiões tão bem que mesmo hoje seria difícil atingir a mesma eficiência. Os

nobres cavaleiros que ali perderam a vida tiveram que pagar bem caro as explosões

de cólera de Obie. Sua petulância juvenil deixou muita gente em dificuldade. Afinal

que culpas o príncipe Lippaut devia expiar? Seu falecido suserano, o velho Rei

Schaut, certamente o teria poupado.

Aos poucos os combatentes sucumbiram à fadiga. Apenas Meljakanz

prosseguia infatigavelmente na luta. Estaria seu escudo ainda incólume? O que dele

restava não correspondia à largura de um palmo. Na verdade o Duque de

Kardefablet o havia obrigado a recuar. Mas, a seguir os combatentes se

engalfinharam num prado florido, em luta, tão obstinado corpo a corpo que ninguém

mais quis recuar um passo. Naquele momento o senhor Galvão acorreu ao local e

pôs Meljakanz em tamanha dificuldade que nem mesmo o nobre Lanzilot125 (122),

após cruzar a Ponte das Espadas, pudera mostrar desempenho tão notável.

125
Lanzilot... liberta Ginover. Trata-se aqui de uma referência a episódio da obra “Lancelot ou lê comte de
la Charette”, do épico francês Chrétien de Troyes (1135-1183). Lanzilot é um dos cavaleiros da Távola Redonda,
do Rei Artur.

298
Naquela oportunidade, Lanzilot, tomado de fúria, libertara a senhora Ginover do

cativeiro.

O filho do Rei Lot avançou e a Meljakanz não restou outra saída senão

esporear também sua montaria. Muitos assistiram a esse duelo. Quem, ao cabo,

estava estendido no solo, à retaguarda de seu cavalo? Era o campeão da Noruega

que o arremessou ao chão! O cavaleiro e as damas que haviam assistido ao duelo

elogiaram a atuação de Galvão. As damas puderam assistir a tudo, instaladas

comodamente na plataforma do palácio. Meljakanz foi pisoteado. Muitos cavalos que

nunca mais tornariam a ver seus pastos nativos pisaram com as patas seu

mantelete. O sangue escorria. Nesse dia os cavalos foram vitimados por uma

epidemia e se tornaram pasto dos abutres. Meljakanz teria sido aprisionado pelos

guerreiros de Jamor se o Duque Astor não o tivesse resgatado, arrancando-o dali.

Com isso a batalha terminara.

11. O CAVALEIRO VERMELHO

Quem ali teria combatido por amor à mulher e à fama? Não teria eu

condições de citar os nomes de todos. Se tivesse que identificá-los não faria outra

coisa. Galvão, que estava a serviço da jovem Obilot, foi o que mais se distinguiu

entre os combatentes do exército sitiado. No exército sitiante esse destaque coube

ao Cavaleiro Vermelho. Um e outro alcançaram fama inigualável. Quando o

desconhecido que integrava o exército sitiante percebeu que seu amo havia sido

299
aprisionado e já não mais poderia recompersar seus serviços, voltou para junto dos

seus escudeiros e dirigiu-se aos prisioneiros nestes termos: "Senhores, passastes a

ser meus prisioneiros. Para minha desgraça o Rei de Liz foi também foi aprisionado.

Tratai de resgatá-lo e se puder fazer alguma coisa para solucionar a questão, podeis

contar comigo." Foi nestes termos que ele se dirigiu ao Rei de Avendroyn, a

Schirniel de Lirivoyn e ao Duque de Marangliez. Mas ele consentiria que

regressassem à cidade somente depois de haverem assumido com ele um

compromisso formal. Segundo esse compromisso deveriam obter o resgate de

Meljanz ou conquistar para ele o Graal. Mas ninguém soube dizer-lhe onde o Graal

poderia ser encontrado. Sabia-se apenas que estava sob a guarda de um certo Rei

Anfortas. Depois dessa explicação o Cavaleiro Vermelho arrematou: "Bem caso

minhas condições não sejam aceitas dirigi-vos a Pelrapeire prestai ali voto de

submissão à soberana do país e dizei-lhe que aquele que combateu Kingrun e

Clamide aspira unicamente ao Graal e ao seu amor. Ele tem em mente unicamente

esses dois objetivos. Dizei-lhe ademais que aquele que vos enviou sou eu. Que

Deus vos guarde, nobres varões!"

Despedindo-se, os prisioneiros partiram rumo à cidade. Ele, porém disse

aos escudeiros: "Arrebanhamos um butim considerável. Ficai com os cavalos

conquistados. Para mim deixai apenas um, pois como podeis ver, o meu está

gravemente ferido."

Os bravos escudeiros exclamaram: "Senhor, aceitai nossa profunda

gratidão. Agora estamos feitos."

300
Para prosseguir viagem o Cavaleiro Vermelho escolheu um entre os

cavalos conquistados. Chamava-se Ingliart, um corcel de orelhas pequenas, que

havia escapado a Galvão quando este aprisionara Meljanz. Sua escolha daria mais

tarde condições ao Cavaleiro Vermelho de perfurar muitos escudos.

Despedindo-se, partiu. Deixou aos escudeiros quinze cavalos ou mais,

todos em bom estado, de sorte que tinham sobejas razões para lhe serem gratos.

Instaram com ele que ali permanecesse, mas a meta de sua peregrinação situava-se

na insondável distância. O combate, e não as comodidades, atraía o bravo cavaleiro.

Acredito mesmo que ninguém de seu tempo enfrentou tantos combates.

O exército invasor recolheu-se aos acampamentos para repousar. Na

cidade o príncipe Lippaut soube que Meljanz havia sido aprisionado e procurou

inteirar-se dos detalhes do caso. Esse fato necessariamente foi para ele motivo de

alegria e fê-lo recobrar a confiança. Galvão desprendeu cuidadosamente a manga

de seu escudo e pediu a Clauditte que a devolvesse a Obilot, pois ele tinha outros

combates pela frente. A manga estava completamente esfarrapada e retalhada. Ele

pediu a Obilot que a usasse. Ao avistá-la a jovem ficou radiante de alegria e nela

enfiou o alvo braço desnudo. "Quem terá feito isso por mim?" - perguntava em tom

de gracejo toda a vez que deparava com a irmã. E Obie, despeitada, teve que

engolir o motejo.

Os esgotados cavaleiros necessitavam agora de descanso. Scherules

convidou para sua mesa Galvão, o Conde Laheduman e outros cavaleiros que

durante os rudes combates daquele dia haviam sido aprisionados pelo filho do Rei

Lot. O poderoso burgrave Indicou a cada um o assento que devia ocupar à mesa, de

301
acordo com o respectivo grau de nobreza. Na presença do rei ele próprio e seus

esgotados acompanhantes permaneceram de pé até que Meljanz se tivesse

sentado. Durante todo o tempo mostrou-se atento e solícito, cuidando em nada lhes

faltar. A Galvão tal atitude pareceu um exagero. Seu fino trato o compeliu a fazer

uma cautelosa observação: "Caro anfitrião, vós devíeis sentar-vos com a permissão

do rei." Scherules, porém permaneceu em pé e disse: "Meu amo é paladino do rei e

certamente teria tomado a si esse encargo, caso o rei o tivesse permitido. Enquanto

estiver em desgraça ele se manterá a respeitosa distância. Mas tão logo apraza a

Deus restabelecer entre nós relações amistosas todos nós voltaremos a ser outra

vez seus leais vassalos."

Foi então que o jovem Meljanz observou: "Ao tempo em que eu aqui vivia

sempre me tratastes com toda a consideração e me destes bom conselho. Se

naquela vez vos tivesse ouvido estaria agora mais à vontade. Ajudai-me, Conde

Scherules! Estou convencido de que sois capaz de levar isso a bom termo. Este

cavaleiro de quem sou prisioneiro e Lippaut, que é meu segundo pai, acatarão

certamente vosso conselho. Confio na magnanimidade de Lippaut. Jamais teria eu

posto em jogo sua amizade se sua filha não me tivesse tratado como um tolo. Seu

comportamento foi impróprio para uma dama."

O nobre Gaivão então declarou: "Haverá aqui uma reconciliação que só a

morte dissolverá."

Naquele dia compareceram ao local os prisioneiros do Cavaleiro

Vermelho. Eles se apresentaram ao rei e lhe deram conta das circunstâncias que

resultaram na sua prisão. Ao descreverem a armadura do cavaleiro que enfrentaram

302
e ao qual tiveram que se render e, finalmente, ao mencionarem o Graal, Gaivão

concluiu que pela descrição tratava-se de Parsifal e de ninguém mais. Ele rendeu

graças ao Céu pelo fato de Deus haver impedido que ele e Parsifal se chocassem

naquele dia. Como tanto Parsifal como Gaivão não se houvessem identificado,

permaneceram no anonimato embora fora dali fossem por demais conhecidos.

Scherules disse a Meljanz: "Senhor, procurai Lippaut, eu vos peço. Não o

hostilizeis, mais e acolhei as sugestões dos homem de bom-senso de ambas as

facções." Como todos os presente estivessem de acordo com isso reuniu-se a

convite do marechal do príncipe, na sala em que se encontrava o rei, o exército dos

defensores. Gaivão convenceu o Conde Laheduman e os outros prisioneiros a

fazerem diante de Scherules, o anfitrião, o compromisso de submissão que tinham

sido compelidos a prestar no campo de batalha. À vista disso ninguém teve mais

dúvida em se abalra para o palácio a fim de ali honrar seus compromissos. A esposa

do burgrave enviou a Meljanz trajes magníficos e um pano de seda que serviria de

tipóia ao braço ferido pela lança de Gaivão.

Através de Scherules, Gaivão fez saber à senhora Obilo que gostaria de

revê-la a fim de reafirmar sua disposição de sempre bem servi-la e também para

despedir-se. "Dizei-lhe que entrego o rei em suas mãos. Que ela reflita bem e aja de

ti modo que sua decisão mereça a aprovação geral."

Ao ouvir estas palavras Meljanz opinou: "Obilot será a glória da

verdadeira bondade feminina. Tranqüiliza-me a idéia de me submeter a ela e desse

modo tornar-me seu protegido."

303
"No fundo, foi ela que vos aprisionou" - afirmou o nobre Gaivão. "A glória

pelo que fiz é unicamente dela."

12. A RECONCILIAÇÃO DE OBIE E MELJANZ

Quando Scherules chegou à corte, damas e cavaleiros já se achavam

reunidos e tão magnificamente ataviados que roupas incompletas, que revelassem

pobreza, seriam consideradas inconvenientes. Além de Meljanz outros cavaleiros

que haviam empenhado sua palavra de honra dirigiam-se à corte. Ali já os

esperavam Lippaut, sua mulher e suas filhas. Quando os recém-chegados vinham

subindo pela escadaria o anfitrião apressou-se em ir ao encontro de seu rei. Não

tardou que no palácio se estabelecesse a maior balbúrdia em torno de Lippaut, que

vinha dando boas-vindas a amigos e inimigos. Meljanz caminhava ao lado de

Gaivão. "Com vossa permissão, uma velha amiga gostaria de dar-vos um beijo de

boas-vindas - refiro-me à duquesa, minha esposa."

Meljanz respondeu ao anfitrião: "De duas das damas aqui presentes

aceito de bom grado o beijo de boas-vindas, mas com a terceira eu não me

reconcilio."

Obie e a duquesa puseram-se então a chorar. Obilot, porém, mostrou-se

alegre e bem-disposta. Meljanz, juntamente com dois jovens reis e o Duque de

304
Marangliez foram saudados com um beijo de boas-vindas. Quanto a Gaivão foi ele

distinguido pelo mesmo honroso cumprimento. Porém se viu obrigado a levantar sua

dama e sustê-la nos braços. Carinhosamente estreitou a bela adolescente de

encontro ao peito, como se fosse uma boneca e dirigindo-se a Meljanz disse:

"Assumistes o compromisso de acatar minhas ordens. Eu vos declaro livre com a

condição de assumir esse mesmo compromisso com a dama que sustenho em

meus braços e que agora é a fonte de todas as minhas alegrias. Dela soreis

prisioneiro de agora em diante."

Quando Meljanz se aproximou a menina se abraçou firmemente a Gaivão.

Mesmo assim recebeu às vistas de muitos cavaleiros seu compromisso de

submissão. A seguir lhe disse: "Senhor rei, ao que parece, agistes mal ao vos render

ao meu cavaleiro que alegadamente é um mercador. Pelo menos foi isso que minha

irmã afirmou terminantemente." Depois determinou a Meljanz que transferisse o

compromisso jurado em suas mãos para a irmã Obie. "Empenhais aqui vossa

palavra de cavaleiro de tomá-la como esposa e ela deve ver em vós seu amo e

marido. Esta determinação é imposta a vós dois de forma irrevogável."

O próprio Deus se havia manifestado pela boca da adolescente e ambos

trataram de cumprir o que lhes fora determinado. Foi então que a senhora Paixão

revelou todo o seu poder e constância, ao permitir que o impulso amoroso em

ambos se reacendesse. A mão de Obie deslizou para fora do manto, cingindo o

braço de Meljanz. Soluçando, comprimiu os lábios vermelhos contra a ferida

resultante do duelo em que se envolvera; e sentidas lágrimas brotaram-lhe dos olhos

brilhantes umedecendo o braço do rei.

305
Que motivação a teria impelido a tamanha ousadia à vista de todos? Foi

obra do amor, esse sentimento tão antigo e sempro novo! Lippaut via realizado tudo

o que seu coração desejava. Nunca em sua vida experimentara tamanha alegria.

Deus o distinguira, pois sua filha se havia tornado soberana do país.

13. GALVÃO SE DESPEDE DE OBILOT

A descrição das solenidades do casamento deixo ao encargo de quem

tiver aptidão para essas coisas. E sobre o rumo que depois tomaram os convidados

- se voltaram ao aconchego do lar ou se foram ao encontro de novas aventuras -

pouco saberia dizer-vos. Contaram-me apenas que Gaivão foi despedir-se. Afinal

era esse o único motivo de sua ida ao palácio. Soluçando, Obilot exclamou: "Levai-

me convosco!" Como era de esperar Gaivão não pôde atender o pedido da

encantadora menina e só a muito custo conseguiu a mãe arrancá-la de seus braços.

Ele se despediu, pois de todos. Lippaut, que se havia afeiçoado a Gaivão, não se

cansava em lhe assegurar sua inteira solidariedade. Quanto a Scherules, seu altivo

anfitrião, não o deixou por menos. Acompanhado dos seus escoltou o bravo

guerreiro até a saída da cidade. A seguir determinou que alguns caçadores o

acompanhassem pela floresta que teria que atravessar. Cuidou ademais para que

na longa viagem não lhe faltasse munição de boca. Assim, provido de tudo, o bravo

herói se despediu prosseguindo rumo a novas e arriscadas aventuras.

306
LIVRO VIII

1. GALVÃO A CAMINHO DE ASCALUN

Galvão certamente teria levado a palma a todos os cavaleiros que

combateram nas fileiras de ambos os exércitos diante de Bearoche se não tivesse

aparecido diante da cidade um cavaleiro arnesado de vermelho, cujos feitos eram

ainda mais enaltecidos, Apesar disso Galvão obteve sucesso e fama dilatada. Mas

eis que se aproximava de seu termo o prazo que lhe havia sido dado para se bater

em duelo com Kingrimursel. Caso não quisesse esquivar-se do combate para o qual

havia sido compelido sem qualquer motivo ele teria que atravessar uma extensa

floresta. Por infelicidade havia perdido Ingliart, seu corcel de orelhas curtas. Nem

mesmo os mouros de Tabronit criavam cavalos de batalha que pudessem comparar-

se a ele. Aos poucos a mata se fazia mais rarefeita. Trechos de floresta alternavam-

se com clareiras, algumas de extensão insuficiente para se armar uma tenda.

Finalmente surgiam diante dele regiões habitadas. Era Ascalun. Ele indagava aos

que cruzavam com ele sobre o caminho que devia seguir para chegar a

Schanfanzun. No decurso da viagem teve que atravessar muitas serranias e

depressões pantanosas até que afinal visse surgir diante dele a magnífica cidade.

Em sua direção seguia agora o forasteiro recém-chegado.

307
Agora permiti que vos dê notícias sobre acontecimentos extraordinários e

lamentai comigo os extremos perigos em que Galvão se veria envolvido. Que todos

os meus ouvintes - quer eruditos, quer ignaros - tenham pena dele, caso lhe queiram

bem. Ah, na verdade mais bem avisado andaria eu se me calasse! Mas não! É

mister que sigamos de perto a má sorte desse homem a quem a fortuna

seguidamente favoreceu e que agora seria atingido pela desgraça. A cidade se

alteava ali tão fulgurante que por certo nem mesmo Cartago deve ter parecido mais

magnífica ao recém-chegado Enéias126, aquela mesma Cartago onde uma violenta

paixão impeliu a senhora Dido127 ao suicídio. Quantos palácios e quantas torres

havia ali? Chego a acreditar que seu número satisfaria até mesmo as pretensões de

Acraton que, segundo afirmam os pagãos seria a maior cidade do mundo logo

depois da Babilônia. Em torno dela alteavam-se muros maciços incluindo os flancos

voltados para o mar, de sorte que a cidade não tinha por que arrecear-se de ataques

nem da sanha de seus mais ferozes inimigos. Diante dela estendia-se uma planície

cuja travessia representava para o senhor Galvão nada menos que uma hora de

marcha. Foi então que veio ao seu encontro um grupo composto de pelo menos

quinhentos cavaleiros, envergando trajes magníficos e bem confeccionados, entre

os quais havia um que se destacava dos outros pelo seu aspecto distinto. Segundo

a narrativa seus falcões perseguiam o grou ou qualquer ave que alçasse vôo diante

deles. O Rei Vergulacht montava um pernudo cavalo de batalha de estirpe árabe e o

brilho de sua presença fazia com que a própria noite parecesse claro dia. Em tempo

remoto um antepassado seu havia sido enviado por Mazadan128 à montanha de

126
Enéias. Referência a “Eneida”, de Heinrich von Veldeke (obra homônima da de Virgílio, na qual foi
baseada). Depois da conquista de Tróia, Enéias, figura das lendas greco-romana, consegue escapar da cidade em
chamas e, após longas peripécias e viagens errantes, entre as quais se inclui uma breve estada em Cartago, atual
Tunis, acha uma nova pátria na Itália, tornando-se ancestral do povo romano.
127
Dido. Segundo a “Eneida” a rainha de Cartago, que se suicida ao se ver abandonada por Enéias.

308
Feimurgan. Descendia portanto de uma estirpe de fadas. Quem o contemplasse

acreditaria estar na presença do próprio Maio no esplendor de sua florescência. Ao

avistar a deslumbrante figura do rei, Galvão acreditou estar em presença de outro

Parsifal e de outro Gahmuret quando este - num episódio de que esta narrativa já

tratou - fizera sua entrada na cidade de Kanvoleis. Uma garça, caçada pelo falcão

em ataque de mergulho, se refugiara em terreno alagadiço. O rei foi em socorro do

falcão, mas errou o vau, caindo em águas profundas. Embora resgatasse a ave de

sua situação difícil perdeu montaria e roupas, que passaram a pertencer aos

falcoeiros. Fariam eles jus a isso? Sim, esse direito lhes assistia e não lhes podia ser

negado. O cavalo que o rei perdera foi substituído por outro, o mesmo ocorrendo

com as roupas. O que dispensara passou para os falcoeiros. Entrementes Galvão

vinha se aproximando e o acontecido não os impediu de lhe dar uma recepção ainda

mais amável que aquela de que Erec129 foi alvo ao chegar a Karidoel. Depois do

duelo foi ao encontro de Artur em companhia da senhora Enite, que representava

toda a felicidade de sua vida. Antes acontecera o seguinte: Em presença de Ginover

o anão Maliclisier lhe havia marcado brutalmente o rosto com uma chicotada. Em

Tulmeyn realizara-se em larga praça o torneio pela conquista do gavião, ocasião em

que Iders, o celebrado filho do Rei Noyt, tivera de render-se a ele; caso contrário

teria perdido a vida. Mas já perdi tempo demais com esse assunto. Ouvi agora os

lances seguintes de nossa narrativa. Tenho certeza de que nunca fostes alvo de

recepção tão cortês nem de boas-vindas mais cordiais. Mas isso iria custar muito

caro ao filho do nobre Lot. Caso assim o desejeis interrompo aqui minha narrativa,

considerando os tristes fatos que estão em vias de acontecer. Mas não! Permiti que

vos relate como um caráter ilibado foi induzido ao erro pela perversidade de outros.
128
Mazadan. Ancestral lendário de Parsifal, já mencionado no Livro I.
129
Erec/Iders. Referência a episódios da epopéia “Erec”, de Hartmann von Que, e mais especialmente a
figuras da obra homônima de Chrétien de Troyes.

309
Ao reproduzir agora, aqui, com a maior fidelidade o acontecido, podeis como eu

lamentá-lo.

O Rei Vergulacht disse-lhe: "Senhor, acredito que achareis sozinho o

caminho que leva à cidade. Mas caso prefirais que vos acompanhe, interrompo

agora mesmo a caçada."

O nobre Galvão respondeu: "Senhor, agi da forma que vos parecer

melhor. Acatarei de bom grado e sem reserva vossa decisão!"

O Rei de Ascalun então lhe disse: "Senhor, estais diante de Schanfanzun.

Ali reside minha irmã, uma jovem dotada de todos encantos femininos. Ela irá

entreter-vos até minha volta, caso Isso seja de vosso agrado. Nesse caso tereis a

impressão de que voltei cedo demais pois em companhia de minha irmã não

sentireis o tempo passar e certamente não me levareis a mal se eu me demorar um

pouco mais."

"A companhia dela e a vossa me serão gratas de igual modo. Na verdade,

até esta parte as damas de elevada posição social não me deram muita atenção",

respondeu o altivo Galvão.

O rei enviou um cavaleiro à cidade com a incumbência de pedir à jovem

que cercasse Galvão de atenções, de sorte que mesmo uma permanência

demorada lhe parecesse apenas um instante fugaz. Galvão tratou de cumprir as

instruções do rei. Ainda está em tempo de parar aqui e de simplesmente omitir o

310
episódio da aflitiva situação em que Galvão se veria envolvido caso assim o

prefirais. Mas não! É necessário que vos conte tudo!

Estrada e cavalo conduziram Galvão ao portão externo do palácio. Um

mestre construtor saberia melhor que eu descrever a mole desse conjunto

arquitetônico, pois diante dele surgia um castelo de impressionantes dimensões,

mais grandioso que qualquer outro que tenha sido edificado na terra. Mas não

desperdicemos nossos elogios com o castelo; no caso importa muito mais falar da

irmã do rei, a jovem à qual já nos referimos. Considerando que já se descreveu o

edifício em lodosos seus detalhes, devo descrevê-la com igual minúcia. A

singularidade de sua beleza assentava-lhe bem e a pureza de seu caráter valeu-lhe

a consideração pública. Por seu procedimento e suas qualidades de caráter

assemelhava-se à Marquesa de Heitstein130, que podia ser vista na região da

fronteira quando aparecia nas ameias de seu castelo. Quem chegasse a conhecê-la

de perto - podeis crer-me - acharia junto dela mais entretenimento que em qualquer

outra parte. Quando faço algumas referências a damas de categoria limito-me

unicamente àquilo que vi com meus próprios olhos e quando elogio alguma mulher é

porque ela faz jus a esses encômios. Minha narrativa destina-se a homens honrados

e de boa-fé e não a traidores. Estes, pela prática da falsidade, já comprometeram

sua salvação e sua alma, após à morte, estará destinada às penas do inferno.

130
Heitstein. Heitstein é um altanado castelo em Cham, na Floresta bávara. Trata-se possivelmente da
Marquesa Elisabeth, esposa do Marquês Bertholdo de Vohburg e irmã do Duque Luís da Baviera, falecida em
1204.

311
2. GALVÃO E ANTIKONIE

Atravessando o pátio Galvão parou diante do palácio. Ele se apresentava

ao encontro marcado pelo rei, esse mesmo rei que por sua atitude iria cobrir-se de

vergonha. O cavaleiro que vinha acompanhando Galvão introduziu-o nos aposentos,

onde se deparou com a Rainha Antikonie no esplendor de sua beleza. Se virtude

enriquece, então ela possuía uma grande riqueza, pois lhe era estranho qualquer

tipo de improbidade. Em toda a parte era exaltado seu recato exemplar. É pena que

o talentoso senhor de Veldecke tenha deixado tão cedo o mundo dos vivos. Ele,

melhor que eu, saberia exaltar suas nobres qualidades.

Quando Galvão avistou a jovem o mensageiro aproximou-se dela e lhe

transmitiu os desejos do rei. À vista disso a rainha voltou-se para Galvão com gesto

acolhedor: "Aproximai-vos, senhor, e dizei-me vós mesmo o que gostaríeis que eu

fizesse para vos entreter. Tudo que sirva para vos regalar ser-vos-á concedido. Da

mesma forma não vos recusarei o beijo de boas-vindas já que vindes tão bem

recomendado por meu irmão. Dizei-me, pois se devo ou não ousá-lo."

Galvão declarou à jovem que solicitamente se levantara: "Vossos lábios

parecem-me tão sedutores que não gostaria de renunciar a esse beijo de boas-

vindas!" Seus lábios eram tão rubros e quentes que do toque formal dos lábios

acabou resultando um inesperado e ardente beijo.

312
O nobre hóspede tomou assento ao lado da distinta jovem. Ambos eram

versados na sinuosa arte da galanteria cortês e assim o jogo de palavras ia e vinha

entremeado de súplicas, concessões e brejeiras recusas. Galvão pediu e implorou,

mas a jovem ponderou: "Senhor, como homem de genuína distinção deve bastar-

vos a intimidade que vos concedo. Apenas em virtude dos desejos de meu irmão é

que vos trato com a amabilidade com que Amflise distinguira meu tio Gahmuret.

Mesmo ao subtrair-me a vossas solicitações meu gesto acolhedor - quando

comparada minha atitude com a vossa - deveria ser mais bem valorizado. Senhor,

em tão breve tempo revelais pretensões ao meu amor, quando, até esta parte, nem

mesmo sabia quem sois."

O bravo Galvão respondeu-lhe então: "Senhora, perquirindo minhas

origens posso assegurar-vos que sou filho do irmão de minha tia. Caso pretendais

levar-me efetivamente a sério então minha origem não vos trará qualquer problema,

pois minha posição de nobreza é seguramente igual à vossa."

Uma jovem apareceu trazendo refrescos, retirando-se a seguir. As damas

da corte, presentes no aposento, também se afastaram dali a fim de cuidarem de

seus afazeres, sendo seguidas pelo cavaleiro que acompanhara Galvão. Quando

todos dali se haviam afastado ocorreu a Galvão que não raro uma jovem águia

consegue dominar uma ave de grande porte. De manso deixou que sua mão se

insinuasse sob o manto da jovem. Presumo que tenha chegado a tocar seus

quadris, pois gradativamente seu desejo se havia tornado irrefreável. A paixão se

manifestara na jovem e no cavaleiro de forma tão compulsiva que algo mais sério

teria chegado a consumar-se se um malévolo olheiro os não houvesse surpreendido.

Disposição para tal não lhes faltava. Mas atentai agora para a desagradável

313
surpresa que os aguardava. Um cavaleiro de cabeça branca entreabrira a porta e ao

reconhecer Galvão conclamou os guerreiros a pegarem em armas e a seguir dirigiu-

se a Galvão aos gritos: "Infame! Não vos bastou tirar a vida do meu amo? Intentais,

além disso, violentar sua filha?"

3. O ATAQUE IMPREVISTO

Como é sabido, o brado de pegar em armas é uma convocação à qual

ninguém pode subtrair-se. Também ali esse hábito tinha força compulsiva. Galvão

voltou-se bruscamente à jovem, indagando: "Senhora, o que faremos? Nada temos

à mão com que possamos nos defender. Ah, se tivesse comigo minha espada!"

A jovem reagiu prontamente: "É de todo imperioso que encontremos um

local onde possamos nos defender! Vamos refugiar-nos na torre contígua à minha

kemenate. Talvez seja possível sair deste apuro."

314
4. O ATAQUE À TORRE

Entrementes cavaleiros e mercadores vinham acudindo ao chamado. A

jovem se apercebeu de que, além disso, uma grande massa popular estava

convergindo sobre o castelo. Seguida de Galvão deu-se pressa em alcançar a torre.

A partir daí começaria para o amigo dela uma dura prova, pois embora a jovem

seguidamente concitasse a multidão intrusa a se retirar dali, era tal a intensidade do

alarido e da gritaria que não foi possível fazer-se ouvir. Ávida por lançar-se no

entrevero a multidão avançou rumo à porta da torre, mas Galvão que vinha

defendendo a entrada impediu que ali penetrasse. Ele arrancou a aldrava da porta

da torre e com ela tratou de enxotar dali essa sinistra vizinhança. A rainha revistou

apressadamente a torre, à cata de alguma coisa com que pudessem enfrentar a

pérfida multidão. Mas ali encontrou apenas peças de xadrez e um belo e enorme

tabuleiro que foi logo passando às mãos de Galvão. Este agarrou o pesado objeto

pela argola de ferro que servia para pendurá-lo na parede e com esse escudo

quadrado começou a jogar diligentemente xadrez com seus adversários até que do

tabuleiro restassem apenas cacos. Mas atentai agora para a atitude da nobre dama.

Ela passou a arremessar as peças enormes e pesadas, quer fossem simples torres

ou o próprio rei, contra os inimigos e - assim me foi dito - aquele que era atingido

pelo impacto caía ao solo desfalecido. A destemida rainha combatia lado a lado com

Galvão como se fosse um autêntico guerreiro. Acredito que nem as merceeiras de

315
Dollnstein131 se revelariam mais dispostas na época do carnaval. De resto, estas se

desdobram até a canseira sem outro objetivo que não o dar vazas ao seu espírito

galhofeiro. O critério de julgar o comportamento de uma mulher resume-se na

questão de saber se ela se mantém ou não nos limites do recato feminino. Uma

mulher em armadura de cavaleiro está necessariamente esquecida daquilo que

convém à sua condição. Uma exceção poderia ser admitida se esse gesto de pegar

em armas decorresse de um sentimento de lealdade. Em Schanfanzun a firmeza de

Antikonie foi posta duramente à prova. Ferida em seu amor próprio, verteu sentidas

lágrimas durante o combate. Mas soube demonstrar que um sentimento autêntico é

capaz de superar as mais duras provas. E qual foi a atitude de Galvão naquela

emergência? Nas pausas, entre um combate e outro, pôs-se a contemplar,

extasiado, sua jovem companheira. Examinava seus olhos, seu nariz, sua boca e

seu talhe, esbelto como o da lebre presa ao espeto sobre a brasa. A visão das linhas

de seu corpo despertaria desejos em qualquer homem. Asseguro-vos que jamais

vistes formigas cuja cintura revelasse igual esbeltez e graça. Ao contemplá-la seu

companheiro de lutas sentiu revigorado seu ânimo viril ao constatar que naquela

emergência ela se mantinha solidária e disposta a resistir. Sua impressão era que

apenas a morte poderia resgatá-lo daquela situação, porque outra perspectiva não

havia. Mas um olhar para a jovem bastava para desprezar os inimigos e despachar

muitos deles para o outro mundo.

O Rei Vergulacht, que acabava de chegar, deparou-se com o quadro de

uma multidão enfurecida investindo contra Galvão. O dever de não mentir obriga-me

igualmente a não atenuar sua atitude digna de reprovação, que acabou por

131
Merceeiras de Dolinstein, localidade em Altmühigrunde na Baviera. Wolfram refere-se aqui aos
desinibidos folguedos de carnaval que, ao tempo, eram uma tradição do local.

316
desacreditá-lo perante o digno hóspede. Naquele momento revelou uma faceta de

seu caráter que me leva a ter pena de Gandin, o Rei de Anjou. É o caso de se

perguntar como sua filha, uma dama de genuína distinção, pode dar a luz a um filho

tão sem caráter, pois ele próprio passou a estimular os instintos agressivos de sua

gente. Reduzido à impotência Galvão teve de aguardar que pusessem a armadura

no rei a fim de que este se pudesse apresentar pessoalmente na cena da luta.

5. A INTERVENÇÃO DE KINGRIMURSEL

Em face disso a atitude de Galvão, de recuar até a porta da torre, não

pode ser considerada desonrosa. Mas eis que compareceu ao local o cavaleiro que

na corte do Rei Artur o havia desafiado para a luta. O Landgrave Kingrimursel

arrepelava-se os cabelos e torcia as mãos ao deparar com seu adversário naquela

situação extrema. Afinal ele havia dado a Galvão sua palavra de honra de que ficaria

incólume até o momento em que se defrontasse com ele - e unicamente com ele -

no campo de honra. Tomado de imensa ira expulsou da torre todos que, por ordem

do rei, se dispunham a deitá-la abaixo. A seguir, dirigindo-se a Galvão, gritou:

"Nobre cavaleiro, permite que eu me dirija para junto de ti sem ser hostilizado. Neste

momento de extremo perigo desejo compartilhar dos riscos que enfrentas. O rei terá

que me tirar a vida antes de atentar contra a tua."

317
Tendo recebido de Galvão a promessa de vir em paz o Landgrave saltou

para junto dele. Diante de tal atitude os atacantes ficaram indecisos, pois

Kingrimursel era também o burgrave local. Galvão aproveitou esse momento de

vacilação e seguido de Kingrimursel evadiu-se do local sitiado. Ambos

demonstraram arrojo e reflexo rápido. Mas o rei voltou a instigar sua gente: "Por

quanto tempo devemos aturar esses dois? Meu primo propõe-se a salvar um homem

que tem contas a ajustar comigo. Se tivesse coragem suficiente ele próprio devia

fazer-se agente dessa vingança."

Numerosos combatentes começaram então a refletir sobre seus deveres

de lealdade. Em conseqüência disso elegeram um porta-voz com a incumbência de

transmitir ao rei o seguinte: "Senhor, permiti que revelemos nossa decisão de não

hostilizar o Landgrave. Que Deus inspire vossos atos a fim de que não venham a

merecer censura. Se matardes vosso hóspede vossa reputação perante o mundo

estará arruinada. Ademais o outro homem é vosso parente consangüíneo e aquele a

quem pretendeis punir encontra-se sob a proteção dele. Refreai vossa ira, caso

contrário sereis amaldiçoado. Proclamai para o dia de hoje e para a noite que está

por vir uma trégua. O que decidirdes depois disso - quer vos traga prestígio ou

desonra - ninguém vos impedirá de fazer. Considerai, além disso, que minha ama

Antikonie, que jamais mereceu censura de quem quer que seja, encontra-se

mergulhada em prantos ao lado daquele cavaleiro. Uma mesma mãe carregou a vós

ambos sob o coração! Se uma tal ordem de considerações não for capaz de vos

sensibilizar, então, senhor, será lícito duvidar que vossa atitude seja compatível com

a dignidade de um cavaleiro. Afinal não fostes vós quem o recomendou à jovem?

318
Ainda que ninguém lhe desse guarida e proteção deveria permanecer incólume

unicamente em consideração a ela."

6. NEGOCIAÇÕES DE PAZ

O rei determinou, pois, que se fizesse um trégua para que pudesse dispor

de tempo para refletir sobre a melhor maneira de vingar o pai. Mas o senhor Galvão

era inocente. Um outro - nada menos que o orgulhoso Ehcunat - fora o autor do

crime. Ele matara o pai de Vergulacht com sua lança quando este se dispunha a

conduzir Galvão e Jofreit, o filho de Ydoel, para Barbigoel, como prisioneiros.

Ehcunat fora na realidade o causador de toda essa desgraça. Proclamado o

armistício, toda aquela massa popular se retirou do campo de luta e a maioria

retornou a seus lares. Antikonie abraçou e beijou efusiva e seguidamente o primo

Kingrimursel, por haver salvo Galvão ao se opor a uma prática criminosa. A seguir

exclamou: "Tu és bem o filho do meu tio! Tu não te prestaste ao triste papel de

praticar uma injustiça apenas para agradar aos outros."

Se estiverdes dispostos a ouvir-me sabereis agora por que antes me

referia a um caráter ilibado que se desviou do bom caminho. Maldita seja a atitude

que Vergulacht assumiu em Schanfanzun. Nem seu pai nem sua mãe poderiam ser

acusados de semelhante falta. Envergonhado e perplexo o jovem e bravo cavaleiro

pediu seguidamente desculpas à real irmã quando esta, indignada, passou a

repreendê-lo. É que, tomada de ira, a jovem exclamou: "Senhor Vergulacht, se Deus

319
tivesse feito de mim um homem e se, como cavaleiro, tivesse uma espada à mão, já

teríeis perdido a vontade de brigar. Mas sou apenas uma jovem indefesa. Sou,

contudo, portadora de um honroso escudo. Se vos aprouver passarei a descrever os

símbolos que ornam seu campo: um comportamento que dignifica e um recato

exemplar. Com este escudo protejo o cavaleiro que enviastes à minha casa. Não

disponho de outro meio de defesa. Mesmo se agora reconhecerdes vosso erro ainda

assim estareis em dívida comigo porque atentastes contra a dignidade de uma

dama. É público e notório que o perseguidor mais obstinado está obrigado a desistir

de seu propósito quando o perseguido recorre à proteção de uma mulher, a menos

que ignore o que convém a um homem distinto. Senhor Vergulacht, o fato de vosso

hóspede, em face da morte iminente, ter sido obrigado a se colocar sob minha

proteção é um fato grave que depõe contra vossa honra!"

Neste ponto Kingrimursel tomou a palavra: "Senhor, confiando em vós,

prometi ao senhor Galvão, na planície de Plimizoel, livre acesso a vosso reino.

Vossa palavra de honra também foi empenhada quando em vosso nome assumi o

compromisso de que aqui teria que enfrentar apenas um homem caso tivesse

coragem para tanto. Senhor, no caso minha honra foi ferida. Meus pares são

testemunhas do que estou dizendo. Ocorre que esta ofensa não nos agrada nem um

pouco. Ao tratar os príncipes sem consideração estais quebrando o poder da coroa.

Se tivésseis efetivamente uma educação cortês devíeis saber que nosso parentesco

consangüíneo vos impõe certos deveres. Mesmo considerando que, de meu lado,

esse parentesco está marcado por uma ligação ilegítima ainda assim procedestes

de modo ligeiro e vos permitistes liberdades que não vos dei. Sou, afinal, um

cavaleiro Irrepreensível e sem medo e este bom nome pretendo conservar até a

320
hora de minha morte. No que se refere a isto confio em Deus e na salvação de

minha alma. Quando se souber que o sobrinho do Artur consentira em vir a

Schanfanzun confiando na minha proteção e se depois disso franceses, bretões,

provençais, borgonheses, galegos e os de Prutuntoys souberem dos maus

momentos por que aqui passou, então minha reputação estará arruinada. Os riscos

aos quais aqui me expus não me trouxeram qualquer proveito, mas tão-somente

vergonha. Isto me priva de todas as alegrias da vida e compromete minha honra!"

Para contestar tais afirmações adiantou-se um vassalo do rei, chamado

Liddamus. Foi Kyot132 que lhe deu este nome. O próprio Kyot era conhecido como "o

trovador". Sua arte permitia-lhe cantar e trovar com tanto engenho que suas obras

mesmo hoje oferecem prazer e deleite para muita gente. Kyot é um provençal. Foi

ele que descobriu esta narrativa que originalmente estava redigida em língua

paga133 e tudo aquilo que ele traduziu para francês quero agora - se meu saber

chegar a tanto - transpor para o alemão.

O Príncipe Liddamus foi, pois, dizendo: "O que veio fazer no castelo do

meu amo aquele que lhe matou o pai e que com sua intrusão lhe faz ainda mais

presente a afronta de um crime que ainda está a clamar por vingança? Se meu amo

132
Kyot, o Provençal, apontado por Wolfram nos Livros VIII, IX e XVI, como fonte de seu “Parsifal”, é
objeto de controvérsia ainda não resolvida (as Questão Kyot), em virtude da semelhança de seu nome com a de
Guiot (ou Guyot) de Provins, monde de Clairvaux que viveu no final do século XII. Deixou a “Bíblia de Guyot”,
poema satírico de 2700 versos, onde exercita sua verve agressiva contra o clero e a nobreza. Compôs, além
disso, um poema alegórico intitulado “L’Armeure du Chevalier”. O fato de ter sido contemporâneo de Wolfram
torna a hipótese de certa forma plausível. Entretanto as revelações de Kyot, descritas neste poema, são de
natureza tão insólita que os críticos do poeta passaram a sustentar a idéia que Kyot seria apenas um nome fictício
atrás da qual se escondia a prodigiosa imaginação do próprio Wolfram. Mas Jean-Michel Angebert não tem
qualquer dúvida de que Kyot e Guyot sejam a mesma pessoa. Em um dos seus livros afirma: “Somos obrigados
a seguir a fonte oferecida por von Eschenbach, pois o primeiro tradutor desses escritos, Guyot de Provinis, viu
sua obra destruída pela Igreja: fica na conta da Inquisição e da Ordem de São Domingos”.
133
Cf. Nota 117

321
for fidalgo autêntico então ele deve, aqui e agora, fazer justiça por suas próprias

mãos. Uma morte expia a outra, posto que se igualam em temor e terror."

Como vedes a situação de Galvão era nada boa, pois agora a ameaça

contra sua vida se manifestava de forma concreta. Mas Kingrimursel partiu para a

réplica: "Quem faz ameaças com tanta facilidade devia se dar pressa em transformá-

las em ação. A vós ninguém precisa temer, nem no tumulto da batalha nem no

combate singular. Por isso, senhor Liddamus, não terei qualquer problema em

defender este homem contra vossas ameaças. O que quer que ele vos tenha feito

não tereis coragem em tomar vingança. Vossa jactância ultrapassa vossas

possibilidades. É sabido que jamais alguém vos viu lutar na vanguarda. A guerra vos

repugna tanto que começastes a luta com uma fuga. Mas vós perpetrastes ainda

outra façanha. Enquanto todos investiam contra o inimigo vós entrastes em pânico

como uma mulher. Se o rei confiar em vosso conselho a coroa na sua cabeça estará

em falso. Minha intenção era enfrentar Galvão, o intrépido cavaleiro, no campo de

honra. Esse combate certamente já se teria ferido se meu amo não o tivesse

frustrado com sua intromissão. Mas agora, pesa sobre ele, além do seu pecado, a

minha ira. Eu esperava dele uma atitude bastante diferente. Senhor Galvão, assumi

comigo o compromisso de apresentar-vos daqui a um ano, a fim de medir forças

comigo em combate singular caso aqui se ache uma solução e meu amo vos

conceda a vida. Somente depois disso desejo combater convosco. Eu vos desafiei

em Plimizoel, mas o duelo devo realizar-se em Barbigoel, na presença do Rei

Meljanz. Até o dia em que for vos enfrentar certamente passarei por muitos riscos,

mas somente vosso braço forte irá ensinar-me a medida do verdadeiro perigo."

322
O bravo Galvão concordou com a proposta e assumiu o compromisso que

lhe fora solicitado. Foi então que o Duque Liddamus tomou novamente a palavra e

acariciou os ouvidos de todos com uma torrente de palavras insinuantes visando

remediar a péssima impressão que causara: "Senhor Landgrave, se eu me lançar à

luta ou se para o desapontamento de todos puser minha salvação na fuga; se eu

me comportar como polirão medroso ou herói renomado, isso sempre podereis -

consoante a atitude que eu assumi! - elogiar ou censurar quanto quiserdes. Mas

admitindo que perante vós jamais consiga reabilitar-me, ainda assim pretendo

conservai minha auto-estima." E o influente Liddamus prosseguiu: "Se vós compraz

assumir o papel do senhor Turnus134, permiti que eu me contente com o do senhor

Tranzes e em virtude disso podeis censurar-me sempre que achardes motivo para

tanto. Mas não vós vanglorieis em demasia, pois ainda que sejais entre meus

parente o príncipe mais nobre e mais ilustre não vos esqueçais de que também eu

sou príncipe e senhor de vastos domínios. Em toda a Galiza espanhola até

Vedrun135 possuo numerosos castelos Ali vós, ou qualquer bretão arbitrário,

conseguireis prejudicar-mi tão pouco que não terei necessidade de esconder dele

sequei uma galinha. Vós desafiastes um certo cavaleiro da Bretanha para um

combate singular e ele se apresentou. Vingai, pois vosso amo e parente

consangüíneo e deixai de me importunar com vossas zangas. Exercei vingança

contra aquele que tirou a vida a vosso amo e parente. Afinal não vos causei mal

algum; isto, pelo menos ninguém pode afirmar de mim. Ademais, posso dispensar

perfeitamente vosso tio. O filho dele, que agora cinge a coroa, exerce sobre mim

autoridade suficiente. Sua mãe era a Rainha Flurdamurs, seu pai se chamava

134
Turnus/Tranzes. As duas personagens aparecem na “Eneida”, de Heinrich von Veldecke. Turnus se
caracteriza pelo temperamento arrebatado, enquanto Tranzes é descrito como homem de cauteloso e avesso ao
hábito de resolver pendências pelas armas.
135
Vedrun, a atual Pontevedra, capital da Galiza, Espanha. N.T.

323
Kingrisin e seu avô era o Rei Gandin. Finalmente ficai sabendo que é, além disso,

sobrinho de Gahmuret e de Galões. A ele pretendo servir com lealdade e da mão

dele pretendo receber, com todas as honras, meu país como feudo. Quem se

compraz em combater, que o faça. Eu na verdade não sou fanático por pelejas e

desafios, mas ouço de bom grado as histórias que se contam acerca de tais

proezas. Que se engaje quem quiser na tarefa de conquistar por belos feitos a

gratidão e o reconhecimento das orgulhosas damas. Eu não tenho vocação para

arriscar minha vida sem necessidade, só para agradar aos outros. Por que terei que

ser infalivelmente um segundo Wolfhart136? Prefiro que entre mim e as pelejas

competitivas haja sempre um fosso largo e profundo. Não sinto em mim aquela

decantada sede de combater, ainda que considereis isto um fato lamentável.

Procedo como Rumolt137 ao qual, no momento em que se iniciava a partida de

Worms rumo ao país dos hunos, o Rei Gunther deu o conselho de se deixar ficar ali

a cortar todo um pão em fatias e depois guisar estas na panela em ambos os lados."

O intrépido Landgrave respondeu: "Que vossa retórica corresponde a vossas

atitudes isto é mais que sabido. Para mim vosso conselho tem o mesmo valor dos

avisos dados por um cozinheiro aos bravos nibelungos. Indiferentes a tudo, partiram

eles rumo ao país dos hunos onde os aguardava a vingança pelo assassinato de

Siegfried. Tomá-los-ei como exemplo: ou Galvão me dará morte ou conhecerá todos

os horrores da vingança."

"Muito bem" - rematou Liddamus. "Mesmo se alguém me prometesse

todos os tesouros de Artur, o tio de Galvão, ou do Rei da índia, eu preferiria abrir

136
Wolfhart. Referência à epopéia “A Canção dos Nibelungos” (circa de 1200). Na “Aventura nº38” desse
poema Wolfhart aparece como personagem sempre pronto para o combate.
137
Rumolt/Gunther. Referência a acontecimentos narrados pelo autor anônimo da epopéia “A canção dos
Nibelungos” (Manuscrito “B”, estrofe 1465 e seguintes).

324
mão deles a me precipitar na luta. Zelai por vosso renome! Não sou Segramors, ao

qual é preciso pôr em grilhões para impedir que se envolva em brigas. Obtenho os

favores do rei de outra forma. Sibeche138 jamais desembainhou a espada e sempre

pôde ser visto entre aqueles que mostraram as costas ao inimigo. A despeito disso

todos tratavam de lhe agradar. É que o Rei Ermanrich o enchia de presentes e lhe

concedia ricos feudos e isso sem jamais ter fendido um elmo sequer. Para vós,

senhor Kingrimursel, sempre serei um caso perdido. Mas é esta a atitude que adotei

como norma."

Naquela altura o Rei Vergulacht interveio: "Parai com esta discussão!

Estou farto de vós, porque me aborreceis com vossas Inconveniências. Como vos

atreveis a discutir deste modo na minha presença? Isto não fica bem nem para mim

nem para vós!"

Tudo isso ocorreu no palácio, onde a irmã do rei acabava de chegar.

Galvão e muitos fidalgos a acompanhavam. O rei voltou-se para a irmã: "Conduze

teu protegido e o landgrave para teus aposentos. Aquele que simpatizar comigo

deve permanecer aqui para aconselhar-me acerca da melhor atitude que me

compete tomar no caso."

Ela lembrou: "Não te esqueças de pôr também tua lealdade nos pratos da

balança!"

138
Sibeche/Ermanrich. Referência a antigas florações épicas germânicas. Ermanrich (historicamente
aceito como sendo o rei ostrogodo de igual nome do século IV) é o herói do canto épico “A Morte de
Ermanrich”. Sibeche é seu arguto conselheiro, mas que só pensa em vingança para reparar a honra ultrajada.

325
O rei reuniu-se com seus conselheiros enquanto a rainha entretinha o

primo e o hóspede. Como terceiro elemento, uma preocupação inquietante se fez ali

presente.

Ela tomou Galvão pela mão e o conduziu a seus aposentos. Ali lhe disse:

"Se não tivésseis sido salvo, toda a Humanidade teria que lamentar essa perda." De

mãos dadas com a rainha o filho do Rei Lot caminhava prazerosamente.

Quando a rainha e os dois cavaleiros ingressaram na kemenate os

camareiros cuidaram para que, além de algumas jovens atraentes, ninguém mais

permanecesse no recinto. Solícita e amorosamente tratou de entreter Galvão sem se

deixar constranger com a presença do landgrave. Como me foi dito a valorosa jovem

temia pela vida de Galvão. Galvão e Kingrimursel deixaram-se ficar ali na kemenate

da rainha durante toda a tarde, até o anoitecer. Chegada a hora da refeição

apareceram ali moças de quadris estreitos, trazendo comida e bebida: vinho de uva,

vinho de amora, vinho aromático, pratos finos, tais como faisão, perdiz, peixe

saboroso e pão de trigo. Depois de todos os perigos pelos quais haviam passado,

Galvão e Kingrimursel, estimulados pela rainha, comiam com muita disposição e

quem tinha apetite fazia o mesmo. Antikonie serviu-os pessoalmente embora ambos

declinassem gentilmente da honra que se lhes proporcionava. Na verdade havia ali

dois copeiros ajoelhados, mas nenhum deles precisava temer que seus

suspensórios se rompessem, pois na realidade se tratava de moças na flor da idade.

Eu não me admiraria e tampouco teria algo a dizer se - como acontece aos jovens

falcões - lhes tivesse aflorado a primeira penugem.

326
Ouvi agora as propostas que haviam sido apresentadas ao rei durante a

audiência na qual pedira sugestões a todos os presentes. Todos atenderam a

convocação, muitos deram sua sincera opinião e a seguir sopesou-se tudo

criteriosamente. Finalmente o rei tomou da palavra e pediu que todos o escutassem

com muita atenção: "Certa feita, quando vinha atravessando a floresta de

Lahetamris em busca de aventura, vi-me envolvido inesperadamente num combate.

Um cavaleiro que por certo considerava minha fama imerecida, descavalgou-me

rápida e facilmente e me obrigou a assumir o compromisso de conquistar para ele o

Graal. Terei que cumprir essa promessa que me foi imposta ainda que venha a me

custar a vida. Peco-vos encarecidamente que me aconselheis nessa questão.

Conforme já disse eu só consegui salvar-me empenhando minha palavra de honra.

O vitorioso herói, que com muita razão pode orgulhar-se de sua bravura, impôs-me

ainda outras obrigações: caso não me fosse possível conquistar o Graal deveria,

sem recorrer a subterfúgios, apresentar-me dentro de um ano a certa dama que

detém a coroa em Pelrapeire e cujo pai se chama Tampenteire. A ela deveria prestar

compromisso de submissão. Deveria dizer-lhe, além disso que ele se sentiria

Imensamente feliz se fosse objeto de suas recordações. Segundo consta, teria sido

ele quem a livrara das perseguições do Rei Clamide."

Depois dessa explanação Liddamus usou uma vez mais da palavra: "Com

a permissão dos senhores presentes desejo aqui externar meu pensamento. Depois

disso podereis dizer o que vos parecer melhor. As obrigações que vos foram

impostas deverão ser cumpridas pelo senhor Galvão que, qual pássaro, mantendes

preso em vossa armadilha. Exigi dele que se comprometa perante esta assembléia a

conquistar o Graal para vós. Depois disso deixai-o partir em paz em demanda do

327
Graal. Se ele fosse morto aqui em vossa casa isso resultaria em ignomínia para

todos nós. Conservai, pois a amizade de vossa irmã e perdoai-lhe os malfeitos. Se

aqui passou por maus pedaços, depois terá que mergulhar ainda numa luta de vida

e de morte. Em nenhum país que o mar rodeia existe castelo mais poderoso que

Munsalvaesche. O caminho que conduz a ele está pontilhado de duríssimos

combates. Deixai-o descansar esta noite e amanhã comunicai-lhe a decisão deste

conselho." Os demais integrantes do conselho acolheram a proposta e assim o

senhor Galvão pôde conservar a vida.

Durante aquela noite, consoante me foi dito, o herói sem medo

encontrava-se em boas mãos e pôde desfrutar de descanso reparador. No dia

seguinte, depois da missa, quando a manhã já ia alta o povo e a nobreza se

comprimiam diante do palácio. É que o rei pretendia dar cumprimento à proposta

sugerida por seus conselheiros. Mandou chamar Galvão para pedir-lhe que

assumisse o compromisso a que já se fez menção. Vede agora o que a seguir

aconteceu: Em companhia do primo e de muitos homens do rei a bela Antikonie

conduziu Galvão à presença do irmão. Na cabeça ostentava uma grinalda, mas o

vivo rubor de seus lábios sobrepujava o colorido das flores. Nenhuma flor da

grinalda brilhava mais intensamente que seus lábios. Um beijo dela seria capaz de

estimular qualquer cavaleiro a numerosas façanhas e a gastar verdadeira floresta de

lanças. Temos sobejas razões para exaltar a amável e recatada Antikonie. Seu

comportamento jamais fora objeto de comentários desairosos e quem lhe conhecia o

bom nome naturalmente preferia vê-la resguardada de qualquer trama visando

difamá-la. Clara e diáfana, como o olhar penetrante do falcão e como o precioso

aroma do bálsamo, era sua inquebrantável lealdade. Para afirmar uma vez mais a

328
nobreza de seus propósitos a encantadora e bem-intencionada dama se dirigiu

cortesmente ao rei, falando deste modo: "Irmão, trago-te aqui o ilustre guerreiro que

confiaste aos meus cuidados. Acredito que não deve ser para ti motivo de

desagrado o que tenho a dizer em favor dele. Avalia bem tua fraterna lealdade e

atende sem má vontade o que te peço. Será melhor para ti assumir agora uma

atitude de máscula determinação do que incorrer no desprezo de todos e também no

meu. Não sei se de fato seria capaz de sentir ódio de ti mas, por favor, nada faças

que possa levar-me a alimentar semelhante sentimento."

O nobre e afável varão respondeu: "Irmã, farei qualquer coisa que esteja

a meu alcance. Peço teu conselho. Devido a uma atitude irrefletida perdi, perante

teus olhos, meu prestígio e a boa opinião que tinhas a meu respeito. Como poderei

continuar a ser teu irmão nestas condições? Chegaria ao extremo de abrir mão de

meu reino se fosse esse o preço exigido para obter teu perdão. Para mim não há

desgraça maior do que incorrer em teu indignado desprezo. São vãs as honras e a

felicidade que não mereçam tua aprovação."

"Senhor Galvão, gostaria de fazer-vos um pedido: o objetivo de vossa

vinda é alcançar fama. Fazei, pois com que minha irmã me perdoe e vereis que a

fama a que aspirais não vos faltará. A perdê-la prefiro perdoar-vos o mal que me

causastes. Isto, porém, mediante uma condição: Deveis assumir o compromisso de

com todo o empenho e sem mais tardança conquistar o Graal para mim."

329
7. A RECONCILIAÇÃO

Foi desse modo que a reconciliação pôde efetivar-se: Galvão foi enviado

logo depois para empreender a demanda do Graal. O rei obteve também o perdão

de Kingrimursel que dele se afastara em virtude de quebra de compromissos. Isso

ocorreu na presença de todos os príncipes, na sala onde se haviam recolhido as

espadas pertencentes aos escudeiros de Galvão. Com a irrupção das hostilidades

eles haviam sido desarmados, de sorte que nenhum deles fora ferido na luta. Um

cavaleiro que detinha funções de comando na cidade conseguiu que fossem

deixados em paz e considerados prisioneiros. Escudeiros de diferentes

procedências e idades – foram libertados e conduzidos à presença de Galvão.

Quando os avistou não pôde subtrair-se de suas manifestações de alegria. Todos o

abraçaram e choraram, mas, no caso, tratava-se de lágrimas de alegria. Entre eles

havia Liaz de Curnewals, filho de Tinas, além do nobre Duque Gandiluz, filho de

Gurzgri, que perdera a vida em Shoydelakurt, onde tantas nobres damas haviam

sofrido. Liaze era a tia do rapaz. Ele irradiava tamanha simpatia que todos lhe

queriam bem. Além destes havia mais seis jovens no séqüito de Galvão. Todos os

oito fidalgos eram de nobre estirpe ligados a Galvão por vínculos de parentesco. O

soldo pelo qual lhe serviam era o grande prestígio que essa posição lhes

proporcionava. De resto, Galvão lhes supria todas as necessidades. Ele os saudou

deste modo: "Sede bem-vindos, companheiros de clã! Bem sei quão sinceramente

me teríeis chorado caso aqui tivesse encontrado a morte."Isso de fato teria

acontecido. De todo o modo passavam eles todo esse tempo tomados de grande

330
Inquietação. Galvão prosseguiu: "Muito preocupado estava eu com vossa sorte.

Onde estivestes enquanto aqui se combatia?" Eles lhe contaram tudo sem esconder

qualquer de seus deslizes: “Enquanto estivestes em companhia da rainha escapou-

nos uma fêmea de gavião e fomos então ao encalço dela, visando recapturá-la."

Quem esteve presente na sala assistindo ao reencontro pôde certificar-se do que

Galvão não era apenas um bravo como ainda um cavaleiro distinto, familiarizado

com os hábitos da corte. Ele se despediu rio rei e todos os presentes, mas ao

landgrave só mais tarde iria apresentar despedidas. A rainha conduziu Kingrimursel,

Galvão e seus jovens fidalgos a seus aposentos, onde cuidou para que fossem

servidos por suas damas. Muitas moças atraentes se desdobraram em atenções

pelos hóspedes de Antikonie.

8. A PARTIDA DE GALVÃO

Depois de se ter servido Galvão estava pronto para partir, ludo o de que

aqui vos dou notícia é uma reprodução fiel do texto de Kyot. Foi uma despedida

dolorosa em virtude dos ternos laços que já os uniam. À rainha ele declarou o

seguinte: "Senhora, pretendo - caso Deus haja por bem conservar minha vida-

dedicar a vossa bondade feminina tudo o que venha a fazer durante esta minha

peregrinação. E é essa virtude que não vos permite agir de modo indigno. Por isso é

preciso exaltá-la acima das de outras mulheres. A boa fortuna vos concedeu uma

331
existência venturosa. Senhora, permiti que eu parta. Que vosso nobre caráter seja o

permanente guardião de vosso prestígio!"

A partida de Galvão deixou-a profundamente deprimida e foi para

demonstrar-lhe solidariedade que muitas de suas jovens damas de companhia,

como ela, se puseram a chorar. A rainha declarou-lhe então com o coração nas

mãos: "Eu me sentiria mais feliz se pudesse ter feito algo mais por vós. Mas no pé

em que estavam as coisas não foi possível obter condições de paz mais favoráveis.

Se, porém, no decurso de vossas andanças, enfrentardes alguma situação crítica,

então, senhor Galvão, podeis estar seguro de que meu coração estará participando

de todos os vossos malogres e sucessos."

A nobre rainha beijou-o e não escondeu sua irremediável tristeza por vê-

lo partir. Penso que a separação foi sumamente penosa para ambos. Entrementes

os escudeiros haviam conduzido seu cavalo ao pátio do castelo e posto à sombra de

frondosa tília. A essa altura - consoante eu soube - os acompanhantes do Landgrave

também haviam chegado ao local. Kingrimursel conduziu Galvão até os limites da

cidade. Galvão pediu-lhe encarecidamente que tomasse conta de seus

acompanhantes, fazendo-os chegar até Bearoche. Ali encontrariam Scherules. A

este deviam pedir escolta que os conduzisse a Dianasdrun. Entre os bretões

encontrariam certamente alguém que os apresentasse a seu amo ou à Rainha

Ginover. Kingrimursel prometeu-lhe cuidar desse assunto Depois de se armar e

equipar Gringuljete, seu cavalo de batalha, o guerreiro se despediu beijando os

bravos escudeiros que eram também seus jovens parentes. Conforme havia

prometido, empreendia ele naquele momento a demanda do Graal. Solitário e

332
desacompanhado partiu, disposto a arrostar os ingentes e gravíssimos perigos que

jaziam à sua frente.

333
LIVRO IX
1. O TERCEIRO ENCONTRO COM SIGUNE

- “Abre!

- A quem? Quem sois?

- Quero achegar-me a ti para habitar teu coração!

- Para vós ele seria por demais acanhado!

- Não importa! Ainda que nele penetrasse a duras penas ainda assim minha

chegada te traria alegrias, pois saberias de acontecimentos extraordinários!

- Ah, sois vós, Senhora Aventura? Como vai nosso magnífico paladino? Quero

referir-me a Parsifal, a quem Cundrie com azedas repreensões obrigou a se

engajar na demanda do Graal. Muitas damas lamentaram o fato de não terem

podido demovê-lo desse propósito. Ao tempo, despediu-se de Artur, o bretão,

e partiu. E agora, que é feito dele? Dai-me notícias de seu paradeiro! Persiste

ele ainda, cabisbaixo, nas suas andanças sem rumo ou conquistou novas e

notáveis vitória? Seu prestígio diminuiu ou aumentou? Contai-me, de vez, o

334
que com suas mãos pôde obrar! Reencontrou ele Munsalvaesche e o

bondoso Anfortas, a quem antes relegara ao desespero? Dizei-me, por favor

se agora Anfortas se acha aliviado de suas penas. Revelai-nos se Parsifal -

vosso e meu herói - já passou por ali! Dai-me conta do que houve com ele!

Contai-me o que sucedeu ao filho de Gahmuret e da encantadora Herzeloyde

desde que deixou a corte de Artur! Foi ele bem ou mal sucedido nos

combates? Continua ele, impávido, acorrer mundo ou rendeu-se à indolência?

Descrevei-me todas as suas atividades e projetos!"

Seguindo a Senhora Aventura teria ele percorrido a cavalo e a navio

numerosas terras e mares. Ninguém que com ele competiu pôde manter-se na sela.

Poupava apenas compatriotas e parentes. Esse era o critério com que manipulava a

balança da fama. Enquanto a sua se mantinha em ascensão a dos demais

declinava. Em muitos encontros manteve-se imbatível, de sorte que se dedicava a

uma tarefa ingrata quem intentasse diminuir-lhe o prestígio. Certa feita partiu-se a

lâmina da espada que Anfortas lhe dera no castelo do Graal, mas as virtudes

miraculosas da fonte de Lac, em Karnant, reconstituíram as partes. Foi essa espada

que lhe permitiu dilatar sua fama. Incorre em grave falta quem puser isso em dúvida.

Além do que já foi dito a Aventura nos deu conta de que certa feita

Parsifal, o bravo paladino, vinha atravessando uma floresta onde inesperadamente

deparou com uma ermida. De construção recente, havia sido disposta sobre o

terreno de tal modo que não estorvasse o curso de um riacho que passava sob ela.

Farejando novas aventuras o jovem e destemido guerreiro tratou de se aproximar.

Dessa vez Deus pretendia favorecê-lo. É que ali encontrou uma eremita que por pia

dedicação a Deus conservava-se virgem, renunciando a todas as felicidades deste

335
mundo. No coração mantinha ela sempre vivas suas penas, levada por um antigo

sentimento de lealdade. Era pela terceira vez que Parsifal se via diante de

Schianatulander e Sigune. O herói havia sido exumado na ermida e Sigune,

debruçada sobre o túmulo, consumia-se em tristeza. Embora a Duquesa Sigune não

ouvisse missa toda a sua vida era passada em oração. Desde que renunciara a

todas as alegrias mundanas seus lábios, antes rubros, cheios e quentes, haviam

empalidecido. Jovem alguma fora atingida por tão grande perda. Por isso, para

chorá-la, ela se recolhera à solidão.

Todo o seu amor, que malograra com a morte do príncipe, era agora

dedicado à sua memória. Se tivesse sido sua esposa a senhora Lunete139 não teria

tido a coragem de lhe propor o que tão levianamente aconselhara à ama. Mesmo

hoje não faltam pessoas que como a senhora Lunete, têm sempre à mão sugestões

pouco recomendáveis. Se em vida do marido uma mulher repelir as solicitações de

outro, por recato ou fidelidade conjugal, então, na minha opinião esse homem tem

ao seu lado uma mulher exemplar. Nada lhe assenta melhor que a constância e isso

vos posso provar caso assim o desejeis. Com a perda do marido, poderá tomar a

atitude que mais lhe convier. Caso, mesmo depois, se mantivesse fiel, então

ostentaria grinalda mais magnífica que aquela que lhe orna a testa durante os

deleites da dança. Mas como pude eu comparar alegrias com as penas que

acabaram sendo causa determinante da fidelidade da senhora Sigune? É melhor

não ir além deste ponto. Atravessando terrenos ínvios, Parsifal passou bem rente à

janela, uma atitude que a seguir iria lamentar. Seu objetivo era obter informações

139
Lunete. Personagem da epopéia "Iwein", composta por Hartmann von Aue, segundo um modelo
francês. Ela deu o conselho em questão à sua ama Laudine a qual, aceitando-o, casou com Iwein, embora este lhe
hovesse matado o marido.

336
sobre a floresta e sobre a direção que deveria seguir. Esperando por uma resposta,

gritou: "Há alguém em casa?" Ela respondeu: "Sim"!

Ao ouvir voz feminina, compeliu a montaria a dar meia volta e a se afastar

da ermida atravessando o campo coberto de vegetação rasteira. Pareceu-lhe que

hesitara demasiado e arrependeu-se por não ter apeado logo. Amarrou o cavalo no

galho de uma árvore caída e junto dele pendurou o escudo maltratado. Em gesto

galante o bravo e gentil cavaleiro se desfez da espada antes de se aproximar da

janela onde esperava obter informações. O interior da ermida era carente de

conforto e impregnado de tristeza. À pálida jovem ele pediu que viesse à janela e ela

cortesmente se levantou, interrompendo suas orações. Naquele momento ainda não

sabia quem era. Sob o vestido cinzento uma grosseira camisola de crina envolvia-

lhe o corpo desnudo, pois ela se havia entregue por inteiro à sua grande dor, que lhe

abatera o espírito orgulhoso e lhe arrancara muitos e sentidos ais. Educadamente

aproximou-se da janela e recebeu o estranho com palavras gentis. Na mão trazia um

saltério e num dos dedos o bravo Parsifal notou o anel delgado do qual não abrira

mão a despeito da vida de penitência que impusera a si mesma, por evocar-lhe os

méritos do amor verdadeiro. Engastada no anel via-se uma pedra granada que na

escuridão rebrilhava qual centelha. Em virtude do luto que se impusera não usava

qualquer adereço na cabeça. Ela lhe disse: "Senhor, junto à parede externa há um

banco. Nele tomai assento se tiverdes tempo e disposição para tanto. Que Deus

compassivo e sensível a toda a aspiração honesta vos retribua o amável

cumprimento."

337
Acedendo ao convite o herói sentou-se junto à janela e a concitou a fazer

o mesmo. Ela, porém recusou, argumentando: "Aqui nunca me sentei na presença

de um homem."

O herói começou a lhe fazer perguntas sobre o que ali fazia e quem lhe

provia as necessidades: "O que vos levou a viver nesta selva, afastada do convívio

de nossos semelhantes? Senhora, não consigo entender a causa que vos levou a

abraçar esta vida de privações. Em toda a região circunvizinha não há uma única

habitação." Ela explicou: "O Graal prove meu sustento. Todo o sábado à noite a

maga Cundrie aparece aqui e me abastece de víveres por uma semana. Ela

assumiu o compromisso de cuidar da minhas necessidades." E prosseguindo,

acrescentou: "A alimentação, que de resto não me falta, pouco me preocuparia, se

padecimentos de outra ordem não me afligissem."

Mas Parsifal não deu fé ao que dizia e suspeitando de que ela desejava

enganá-lo em outras coisas, respondeu-lhe ironicamente: "Por amor a quem usais

esse anel? Sempre ouvi dizer que tanto as eremitas quanto os eremitas devem

abster-se das ligações amorosas."

EIa respondeu: "Vossas palavras soam-me como repreensão. Poderíeis

com razão censurar-me se pudésseis provar que fui desonesta. Mas Deus quis

poupar-me desse defeito. Repugna-me qualquer tipo de improbidade." A seguir,

explicou: "Este anel de noivado é recordação de um homem a quem amei

sobremodo, mas cujo amor jamais desfrutei fisicamente embora meu coração de

donzela por ele ansiasse." E ela prosseguiu: "Esse homem cuja prenda jamais me

desfiz está aqui, junto de mim. Foi Orilus quem o matou em combate singular. A

338
despeito disso permaneço saudosa de seu amor e quero passar toda a minha vida

lamentando sua perda. Como verdadeiro cavaleiro aspirou a meu amor com escudo

e lança e foi a meu serviço que perdeu a vida. Embora tenha permanecido virgem e

solteira, perante Deus é meu marido. Se a intenção é o pressuposto da ação então

sinto me ligada a ele por livre escolha. Sua morte abateu-me profundamente e este

anel estará comigo para legitimar nossa união quando eu comparecer perante a face

de Deus. As lágrimas que emanam de minhas penas são bem uma confirmação de

minha lealdade. Ademais, não estou só. Schianatulander está comigo."

Foi quando Parsifal percebeu que estava falando com Sigune, o que o

entristeceu bastante. Antes de prosseguir o diálogo arrancou o gorro de malha que

lhe ocultava as feições e a jovem pôde reconhecer então, sob as manchas de

ferrugem o luminoso semblante do bravo guerreiro. Ela então exclama "Sois vós,

Senhor Parsifal? Dizei-me, pois, qual é vossa situação em relação ao Graal?

Apreendestes finalmente o sentido que ele encerra? Que resultados colhestes ao

longo de vossa busca?”

Ele respondeu à distinta jovem: "Para mim a vida perdeu todos os seus

atrativos. No fundo, o Graal é minha única preocupação. Abandonei reino e coroa,

bem como a criatura mais adorável que nasceu neste mundo. Morro de saudades

por seu amor e pelas nobres qualidades que ornam o seu caráter. Mas fascínio

ainda maior exerce sobre mim esse supremo objetivo. É de todo imperioso que

retorne a Munsalvaesche e reveja o Graal. Até agora isto não me foi possível. Prima

Sigune, tu estás sendo injusta comigo ao me tratares com hostilidade pois estás a

par de minha situação miserável."

339
A isso a jovem respondeu: "Primo, não te censuro mais. De resto, jogaste

fora a grande oportunidade de tua vida ao não pores a magna pergunta que teria

sido a chave de teu sucesso. Quando o bondoso Anfortas te acolheu com simpatia,

esteve com teu destino nas mãos. Se tivesses feito aquela pergunta, teria

conquistado uma situação de privilégio que mal consegues imaginar. Como te

quedaste mudo, tua felicidade se esvaiu, teu ânimo altivo arrefeceu e teu coração

está ralado de desgostos. Estarias resguardado de tudo isso se tivesses procurado

saber a causa daquele clima de tristeza generalizada."

"Sou, com efeito, o artífice de meu próprio infortúnio", respondeu ele.

"Mas não te esqueças, querida prima, de nosso vínculo consangüíneo e dá-me bom

conselho. Põe-me, além disso, a par de tua verdadeira situação. Eu deveria

lamentar tua triste sorte e o estado de desespero em que me encontro não tosse

ainda maior que o experimentado por alguém em qualquer tempo."

Ela respondeu: "Que te ajude Aquele que conhece todas as

necessidades. Talvez venhas a descobrir finalmente o caminho que leva a

Munsalvaesche, onde acreditas poder encontrar a felicidade que procuras. Há pouco

partiu daqui a maga Cundrie e agora lamento não ter indagado dela se pretendia

regressar a Munsalvaesche ou se seu destino seria outro. Sempre que aqui aparece

ela deixa sua mula junto à fonte que nasce naquela rocha. Aconselho-te a seguir em

seu encalço. Caso não se tenha dado pressa talvez consigas alcançá-la."

Sem perda de tempo o herói se despediu e passou a seguir os rastros

ainda frescos. Mas a mula de Cundrie seguira por terreno impraticável, de sorte que

a certa altura os rastros desapareceram. Uma vez mais o Graal ficava fora de seu

340
alcance. Seu entusiasmo arrefeceu. Se dessa vez tivesse conseguido chegar a

Munsalvaesche estou certo de que teria feito a pergunta e evitado passar uma vez

mais, pelo constrangimento que conheceis.

Deixai, pois, que prossiga seu caminho! Por que rumo agora Irá

enveredar?

2. O COMBATE COM O TEMPLÁRIO DO GRAAL

Naquele momento vinha se aproximando dele um cavaleiro de cabeça

descoberta, sob cujo precioso manto via-se uma briIhante armadura e que, tirante o

elmo e o gorro de malha, estava completamente armado. A trote rápido aproximou-

se de Parsifal e lhe disse: "Senhor, não me agrada nem um pouco vossa pretensão

de entrar na floresta que integra os domínios do meu amo. Recebereis por isso uma

lição que sempre ireis lembrar com desprazer. Munsalvaesche não está acostumado

a ver intrusos se aproximarem demasiado de sua sede. Se insistirdes em prosseguir

caminho tereis que enfrentar um duríssimo combate ou aceitar uma pena que na

orla desta floresta, só tem um nome: morte." O cavaleiro trazia na mão um elmo com

cordões de seda e a haste de sua Iança nova em folha era provida de afiadíssima

ponta metálica. Tomado de indignação o herói pôs o elmo na cabeça, atando-o

firmemente. Dessa vez suas ameaças e desafios iriam custar-lhe caro. Apesar disso

tratou de fazer frente ao intruso.

341
Parsifal, que em tais encontros já quebrara muitas lanças, pensou lá com

seus botões: "Serei aniquilado se invadir o território desse homem. Como então

poderei subtrair-me à sua fúria? Até aqui meu cavalo pisoteou apenas a relva

rasteira. Seja lá o que Deus quiser! Se mãos e braços me obedecerem, receberá por

minha incursão um desagravo que o tornará incapaz de esboçar contra mim um

gesto sequer."

Ambos estimularam suas montarias a arremeter a toda a brida para que o

entrechoque ocorresse a galope largo. Parsifal, cujo peito robusto enfrentara

investidas de tantos adversários, manobrou a lança de sorte a atingir o oponente na

altura do nó que unia os cordões do elmo, isto é, ligeiramente acima da borda

superior do escudo. Descavalgado, o templário de Munsalvaesche140 foi

arremessado a um despenhadeiro, onde se despencou em queda livre sem

possibilidade de se agarrar no que quer que fosse. Parsifal prosseguiu na

arremetida. O cavalo a galope pleno não mais pôde ser contido. Assim mergulhou

igualmente no despenhadeiro e estatelou-se fulminado no fundo rochoso. No último

momento Parsifal ainda conseguiu agarrar-se com ambas as mãos ao galho de um

cedro. Não riais dele pelo fato de estar assim a balouçar no ar sem o concurso do

carrasco! Finalmente conseguiu firmar os pés num ressalto de rocha. Seu cavalo

jazia morto no fundo inacessível do despenhadeiro, enquanto o adversário, que

sobrevivera incólume, tratou de galgar às pressas a encosta do lado oposto do

despenhadeiro. Se quisesse repartir os despojes que arrebatara de Parsifal teria que

procurar muito. Teria sido mais prudente se tivesse permanecido em casa junto ao

140
Templário. O autor equipara a comunidade do Graal à Ordem Militar do Templo, fundada em
Jerusalém em 1118, pelo fidalgo francês Hugo de Payns. Essa organização monástica e cavaleirosa atingiu
grande poderio econômico e exerceu considerável influência na vida política européia no decurso dos séculos
XII e XIII.

342
Graal. Parsifal subiu a borda do precipício. As rédeas da montaria do cavaleiro

vencido haviam caído ao chão e esta, inadvertidamente, nelas enredara as pernas,

de sorte que permaneceu ali parada como se tivesse recebido uma ordem. Quando

nela montou, apenas deu falta da lança, cuja perda, no fim das contas, a posse do

cavalo havia largamente compensado. Acredito que nunca o vigoroso Lahelin nem o

orgulhoso Kingrisin e tampouco o Rei Gramof lanz ou o Conde Lascoyt, filho de

Gurnemanz, se viram envolvidos em luta tão exasperante como esta em que Parsifal

apresara o cavalo. Parsifal partiu, pois, sem rumo certo, sem que novamente fosse

hostilizado pelos esquadrões de cavaleiros de Munsalvaesche e triste, porque o

Graal permanecia dele distante e inacessível.

3. ENCONTRO NA SEXTA-FEIRA SANTA

A quem quiser ouvir-me darei, agora, conta do que a seguir lhe sucedeu.

Depois dos fatos aqui narrados. Parsifal vagara semanas a fio, como sempre à cata

de aventuras. Certa manhã internou-se numa extensa floresta enquanto a neve, que

caía profusamente, fazia as pessoas tiritar de frio. Foi quando veio ao seu encontro

um velho cavaleiro. Embora tivesse a barba inteiramente grisalha seu semblante era

viçoso e sem rugas. Grisalha e corada era igualmente a esposa. Ambos vinham

fazendo uma peregrinação e sobre o corpo usavam apenas trajes de tecido

grosseiro e áspero.

343
De Igual tecido eram as roupas das filhas, duas jovens que agradariam a

qualquer pessoa. Descalços e de coração contrito vinham palmilhando o caminho

coberto de neve. Parsifal saudou o cavaleiro grisalho de que, por feliz acaso,

receberia bons conselhos. Sua aparência era a de um varão distinto. Ao seu lado

corriam cãezinhos fraldiqueiros. Seguiam-no nessa caminhada, em atitude modesta

e ordeira, cavaleiros e escudeiros, muitos deles ainda imberbes.

Parsifal, o bravo campeão, estava bem equipado e seu precioso arnês

realçava-lhe o porte cavaleiroso. Na sua brilhante armadura formava ele um notável

contraste com o grisalho cavaleiro tão pobremente vestido. Compelindo a montaria a

sair do caminho que vinha seguindo, indagou daquela piedosa gente o motivo que a

levava a empreender tal caminhada. Embora as explicações lhe fossem dadas em

tom amável o cavaleiro grisalho não deixou de lamentar o fato de ele, naquele dia

santo, não se apresentar desarmado, ou melhor ainda, descalço, como exigia a

ocasião. Parsifal então lhe respondeu: "Senhor, não sei quando este ano começou,

da mesma forma que perdi a noção das semanas e dias que passam. Antigamente

servi a Alguém chamado Deus, até o momento em que permitiu que eu fosse

exposto à execração pública. Até então jamais duvidara Dele, pois me haviam dito

que Sua ajuda Jamais me faltaria. Na realidade, me desamparou."

O grisalho cavaleiro assim lhe falou, então: "Vós vos referis a Deus

nascido da Virgem? Se acreditais na Sua encarnação e no que padeceu por nossa

causa, neste dia que hoje se comemora, então agis mal ao usar essa armadura.

Hoje é Sexta-feira da Paixão, dia em que o mundo deve tanto rejubilar-se quanto

suspirar com reverente temor. Pode haver lealdade maior que essa de que Deus nos

deu prova ao ser crucificado por nós? Senhor, se fordes batizado então levai isso a

344
peito! Ele sacrificou Sua vida sacrosanta para nos redimir da culpa que nos

condenava às penas eternas. Se não fordes pagão, passai este dia como convém!

Segui nosso exemplo. Não muito longe daqui mora um santo homem que vos dará

bom conselho e vos imporá uma penitência para expiardes vossos malfeitos. Se

derdes prova de vosso arrependimento poderá absolver-vos de vossos pecados."

Suas filhas então intervieram: "Pai, por que te mostras tão Inflexível? Por

que o aconselhas a se expor às inclemências deste tempo? Por que não lhe dás

uma oportunidade de aquecer-se? Por mais bem protegidos que estejam seus

braços nessa armadura, devem estar regelados. Ainda que tivesse três vezes a

força que possui, teria que ressentir-se do frio. Afinal tu possuis não muito longe

daqui tendas e albergues para peregrinos. Se o Rei Artur por aqui aparecesse tu o

acolherias e o obsequiarias. Assume, pois a atitude que convém a um anfitrião e

faze dele teu hóspede."

O homem grisalho voltou-se então para Parsifal: "Senhor, minhas filhas

têm razão. Moro bem perto daqui e todos os anos quando transcorre a Paixão do

Senhor, que retribui fiéis serviços com recompensas eternas, empreendo uma

peregrinação por esta floresta bravia, quer chova ou faça sol. De bom grado

compartilharei o que trouxe comigo nesta peregrinação."

As jovens pediram-lhe com amável insistência que se juntasse a eles,

assegurando que isso não resultaria para ele em desprestígio. Parsifal examinou-as

atentamente e notou que a despeito, do frio seus lábios eram cheios e quentes e seu

aspecto não lembrava absolutamente aquela compunção condizente com a

austeridade de um dia de quaresma. Se tivesse que puni-las por algum venial

345
pecadinho, eu lhes daria - e deste intento ninguém me demoveria - um beijo, a título

de penitência, pressupondo naturalmente seu consentimento. Mulheres são e serão

sempre mulheres. Elas subjugam até mesmo homens poderosos, num abrir e fechar

de olhos. Exemplos não faltam para comprovar esta assertiva.

Parsifal foi então assediado pelo pai, pela mãe e pelas filhas, que a uma

só voz concitaram-no amavelmente a ficar. Ele, porém se pôs a refletir: "Se eu me

juntar a eles, vou oferecer um curioso espetáculo. As moças são tão gentis que não

conviria deslocar-me montado ao lado delas e isso sem considerar o fato de todos,

homens e mulheres, virem seguindo a pé. Ademais, estou de mal com Aquele que

eles veneram e de quem esperam ajuda e assistência. Conviria, pois que me

afastasse deles, já que Ele não me ajudou e tampouco me resguardou de

tribulacões."

Em vista disso Parsifal disse-lhes: "Senhor e senhora, permiti que me

despeça. A boa fortuna vos concedeu felicidades e alegrias! Vós, ó gentis donzelas,

demonstrastes nobreza de sentimentos ao oferecer-me amável acolhida. A despeito

disso peco-vos para prosseguir caminho!" Ele inclinou-se em saudação. Eles

corresponderam ao gesto, sem disfarçar suas reações de pesar.

O filho de Herzeloyde partiu. A educação cavaleirosa incutira-lhe

modéstia e sentimentos de solidariedade. Seu coração ensombrou-se de tristeza,

pois herdara da jovem Herzeloyde um coração leal. Finamente voltou os

pensamentos para Aquele que criara o Universo. Evocando o Criador e Sua

onipotência, disse de si para si: "Será Deus capaz de inspirar-me ânimo para

superar minhas tribulações? Será que Deus quer bem aos cavaleiros? Será que

346
algum deles d'Ele recebeu algum dia graça e mercê? Se espada, escudo e ação

honesta e leal forem dignas de Seu apoio para resgatar-me desta prostração então

peço-lhe que me ajude, se tiver poder para tanto. Afinal hoje é o Seu dia de

solidariedade!" Voltando-se, olhou para o local que pouco antes deixara. Ali avistou

os peregrinos na mesma posição, pesarosos com sua partida. As jovens

acompanharam-no igualmente com a vista e naquele momento deu-se conta de que

a beleza das moças lhe causara profunda impressão.

4. OS CONSELHOS DO EREMITA TREVRIZENT

Ele então falou de si para si: "Se Deus for capaz de controlar a vida dos

animais e os atos dos homens então quero louvar Sua onipotência. Se Deus, em

Sua bondade e sabedoria, puder acudir-me, então fará com que, para o meu bem,

este castelhano enverede pelo melhor caminho. Que tome, pois o rumo que Deus

lhe indicar!" Ato contínuo libertou o animal do controle das rédeas e o Incitou com as

esporas a prosseguir a marcha. Este tomou o rumo que conduzia a Fontane Ia

Salvatsche141, onde certa falta Orilus aceitara suas afirmações feitas sob juramento.

Ali vivia o piedoso Trevrizent, que passava os sete dias da semana a jejuar. Ele se

privava de vinho de amora, de uva e até mesmo de pão. Mas sua vida austera lhe

impunha, a par disso, outros sacrifícios, como o de abster-se de carne de gado, de

peixe, de qualquer alimento, enfim, que contivesse sangue. Levava essa vida
141
Fontane Ia Salvatsche. Fonte silvestre.

347
piedoso, pois o Senhor o munira de coragem para se dedicar inteiramente ao

objetivo de pôr-se em condições para integrar as hostes celestiais. O jejum lhe

impunha pesados sacrifícios, mas era com essa vida de renúncia que ele combatia

as tentações do demônio. Através dele é que Parsifal seria iniciado nos mistérios do

Graal. Quem antes me fazia perguntas sobre esse assunto e me censurava por

mantê-lo na ignorância expunha a si mesmo uma situação vexatória. Foi Kyot quem

me pediu que mantivesse esse assunto em segredo, pois a natureza do enredo

requeria tal procedimento até que a narrativa se aproximasse do ponto em que a

revelação se impusesse. Kyot, o renomado mestre, encontrou em Toledo, num

manuscrito pagão, o original desta narrativa, que havia sido posto de lado como

coisa sem valor. Inicialmente teve que aprender o alfabeto, sem contudo assimilar as

sutilezas mágicas de que estava impregnado. Nesse empreendimento foi bem-

sucedido porque era batizado, caso contrário o texto teria permanecido indecifrável

até hoje. Nenhuma ciência paga é capaz de decifrar a natureza do Graal e de

penetrar seus mistérios. Outrora vivia um pagão chamado Flegetanis, afamado por

sua notável sabedoria. Esse naturalista era israelita de raça e descendia de

Salomão. Sua origem recuava ao tempo em que o batismo se tornara nosso escudo

contra as penas do inferno. Foi esse homem que redigiu os originais do Graal. Por

parte de pai Flegetanis era pagão e prestava culto a um bezerro, como se fosse seu

Deus.

Como pôde o demônio induzir um povo inteligente a tão infame prática, a

ponto de nem mesmo a sabedoria e onipotência divina terem podido demovê-lo de

tal propósito? O pagão Flegetanis possuía profundos conhecimentos acerca do

movimento dos astros e de suas revoluções. Sabe-se que o movimento circular dos

348
astros se acha intimamente ligado ao destino dos homens. Foi assim que o pagão

Flegetanis descobriu numa constelação da esfera celeste um segredo ao qual

sempre se referia a tremer. Ele explicou que havia um objeto chamado "o Graal".

Esse nome ele viu claramente inscrito nas estrelas. "Uma legião de anjos142 haviam-

no depositado na terra, antes de regressar ao empíreo celeste, onde talvez tenham

sido absolvidos e readmitidos no Céu. Desde então, pessoas de coração puro

iniciadas pelo batismo viam encarregar-se de sua guarda. Quem for convocado para

o Graal deve ter alcançado elevado grau de perfeição."

Era disso que tratava o manuscrito de Flegetanis. Kyot, mestre de alto

saber, pôs-se então a vasculhar os doutos livros latinos à cata de indícios sobre a

existência de um povo que graças à pureza de seus costumes, poderia ter sido

convoca para a missão de guardar o Graal. Esquadrinhou as crônicas Bretanha,

França, Irlanda e de outros países. Foi em Anjou que finalmente localizou as

informações que procurava. Ali soube de todos os seus detalhes da verdadeira

história de Mazadan e o papel que estava reservado á sua estirpe. Descobriu

através desse texto que Titurel e, a seguir, o filho deste, Frimurtel, haviam

transmitido como bem de herança o Graal a Anfortas, cuja irmã Herzeloyde, tivera

com Gahmuret um filho que é o herói dei narrativa.

Este, porém, vinha diligentemente seguindo os rastros ainda frescos,

deixados pelo cavaleiro grisalho, e reconheceu, a despeito da neve que agora o

cobria, o local que antes lhe fora dado ver no esplendor da estação florida. Diante da

falda do penhasco avistou o local da cena onde, com máscula determinação,

aplacara a ira de Orilus e o compelira a se reconciliar com leschute. Mas os rastros o

142
A história desses anjos é contada mais adiante por Trevrizent.

349
levaram para mais adiante, até uma propriedade chamada Fontane Ia Salvatsche.

Ali encontrou o dono da casa que o recebeu cordialmente.

O eremita exclamou: "Ai de vós! O que vos levou a desrespeitar este dia

santo de guarda? Acaso foi o perigo das lutas que vos obrigou a envergar essa

armadura? Ou o combate já não mais vos apraz? Se for esse o caso devíeis estar

usando outros trajes, para não parecerdes arrogante. Apeai e aquecei-vos ao logo.

Isto certamente será de vosso agrado. Se foi a Aventura que vos enviou a fim de

conquistar as recompensas do amor, então, como amante autêntico deveríeis

infundir ao vosso amor objetivos mais altos! Somente depois poderíeis pensar em

vos engajar a serviço de uma mulher. Mas apeai, por favor!"

Persifal, o paladino, desmontou e se acercou do eremita com requintada

cortesia. Falou-lhe dos peregrinos que lhe haviam exaltado sua rica sabedoria e

incentivado a procurá-lo e concluiu dizendo: "Senhor, aconselhai-me, pois sou um

homem carregado de pecados!"

A isso declarou o bondoso varão: "Tereis meu conselho e minha boa

vontade. Antes, porém, dizei-me quem vos aconselhou a procurar-me."

"Senhor, na floresta encontrei um homem grisalho. Ele e seus

acompanhantes saudaram-me amavelmente. Foi esse homem honrado que me

recomendou procurar-vos e eu persisti na direção indicada até vos encontrar."

O anfitrião, então, exclamou: "Trata-se de Kahenis, um fidalgo dos pés à

cabeça. O príncipe é de Punturtoys. Sua irmã é esposa do poderoso Rei de Kareis.

350
Nunca vieram ao mundo crianças mais puras que as filhas desse príncipe que

encontrastes. Ele próprio é de estirpe real e todos os anos empreende esta

peregrinação até este meu retiro."

Parsifal indagou, então do anfitrião: "Acaso minha aproximação vos

encheu de temor? Naquele momento minha vinda não se vos afigurou indesejável?"

O outro respondeu: "Podeis crer-me, senhor, que cervo e urso me

assustam com mais freqüência que as pessoas. Posso afiançar-vos que criaturas

não me inspiram qualquer preocupação. Minha experiência ensinou-me a forma

adequada de lidar com elas. Senhor, não me considereis presunçoso ao vós

assegurar que tempo houve em que fui tudo, menos tímido no combate e no trato

com mulheres. Nunca fui polirão nem cedi campo ao adversário. Ao tempo em que

assim me exercitava na luta, era um cavaleiro como vós e aspirava às formas mais

elevadas do amor. Não raro, pensamentos pecaminosos turvavam a pureza do meu

coração. Pretendia levar uma vida voltada para a ostentação a fim de atrair a

simpatia de uma dama. Agora tudo isso pertence ao passado. Dai-me as rédeas.

Sob a escarpa vosso cavalo poderá desfrutar de descanso. Enquanto isso iremos

tratar de colher, sem pressa, fetos e brotos para vosso cavalo. Não disponho de

outra forragem, mas acharemos um meio de provê-lo do necessário."

Parsifal ensaiou um gesto de recusa, fazendo menção de agarrar as

rédeas, mas o piedoso eremita atalhou: "Vossa educação cavaleirosa não vos

permite de discordar de mim e caso insistais nesse intento podereis ser censurado

por isso."Em face de tal argumento Parsifal passou as rédeas às mãos do anfitrião.

Esse conduziu a montaria para um desvão da escarpa, onde nunca penetrará um

351
raio de sol. Havia ali uma baia natural, por onde corri uma fonte que brotava da

rocha.

Parsifal aguardava na neve. Um pusilânime não teria suportado do

permanecer por mais tempo na armadura de ferro exposta ao rigores do tempo. A

seguir o anfitrião o conduziu a uma caverna resguardada da ação dos ventos e

onde ardiam carvões em brasa. Isso comprazia ao hóspede. Enquanto o anfitrião

acendia uma vela, o herói tratou de tirar a armadura. Enquanto se entregava a ti

mister achava-se sobre uma camada de palha e feto que recobria o chão. Na

medida em que aquecia os membros entorpecidos pelo frio a cor voltava-lhe às

faces. Estava exausto em virtude de sua prolongada permanência na floresta. Afinal

atravessara terrenos impraticáveis e passara muitas noites ao relento. Agora achava

um anfitrião que lhe queria bem. O eremita entregou-lhe uma roupa e o conduziu a

uma segunda caverna. Ali havia livros que o piedoso varão costumava ler. No

recinto havia um altar que naquele dia especial143 permanecia descoberto. Sobre ele

havia um escrínio que Parsifal de pronto reconheceu. Fora sobre ele que havia posto

a mão enquanto pronunciara o juramento que devolvera à senhora leschute a plena

felicidade, transformando suas penas em alegrias. O fato levou Parsifal a observar

ao anfitrião: "Senhor conheço este escrínio. Certa feita dele me acerquei a fim de

sobre ele proferir um juramento144. Perto dele, senhor, havia uma lança multicolorida

que levei comigo. Soube depois que foi ela o condão das vitórias que alcancei. Certa

feita estava com o pensamento tão profundamente voltado para minha esposa que

não mal atinava o que se passava à minha volta. Nessa situação enfrentei com êxito

dois combates sem que me desse conta disso."

143
Era Sexta-feira Santa.
144
O hábito dos romanos de porem a mão sobre o altar ao proferirem juramentos (aram tenere), parece
indicar que esse gesto ritualístico é anterior ao cristianismo. NT

352
"Ao tempo era ainda um cavaleiro respeitado. Agora, porém vivo

mergulhado numa angústia existencial que homem algum jamais experimentou. Em

nome de vossa distinta educação dizei me quanto tempo decorreu desde que levei

comigo a lança."

O digno varão lhe respondeu: "Meu amigo Tauriano esqueceu-a aqui.

Tempos depois, dando-se conta do fato, falou-me do extravio da lança. Cinco anos,

seis meses e três dias se passara desde que subtraístes daqui a arma. Posso fazer

a conta se assim o desejais." E ele mostrou com exatidão no saltério o número de

anos e até mesmo de semanas que se haviam escoado daquele tempo a essa parte.

"Agora estou-me dando conta do tempo que gastei errando triste e sem

rumo de um lado para outro", observou Parsifal. "A felicidade é para mim um sonho

inatingível. Minha sina é suportar essa carga de sofrimentos. Senhor, permiti que

vos conte mais aIguns fatos a respeito de minha vida. Desde minha passagem

interior por este lugar, nunca mais entrei numa igreja ou catedral onde se entoam

louvores a Deus. Vivi unicamente para o combate e passei a ter ódio de Deus por

considerá-lo responsável pelas tribulações por que venho passando e que Ele tratou

de multiplicar de sorte a comprometer definitivamente minha felicidade. Se Sua

onipotência me tivesse valido minha estrela estaria em ascensão, ao invés de

soçobrar num lodaçal de calamidades. Não poderia da fato permanecer incólume a

partir do momento em que o infortúnio pôs sua coroa de espinhos sobre minha

reputação de cavaleiro que conquistei em memoráveis encontros. Meu coração viril

está ferido. Debito isso à conta d'Aquele que pode remediar todas as situações

difíceis. Tendo tudo para me ajudar não o fez, a despeito das afirmações que se faz

a respeito de Sua solicitude."

353
O anfitrião suspirou e examinou Parsifal atentamente. A seguir disse-lhe:

"Senhor, se fordes pessoa inteligente deveis confiar em Deus sem vacilação. No

devido tempo Sua ajuda virá. Que Ele valha a ambos, nós dois. Sentai-vos e contai-

me de forma simples e direta as circunstâncias que em vós despertaram a ira e a

revolta contra Deus. Mas como homem de coração bem formado permiti que, em

face de vossa queixa, vos possa convencer de Sua Inocência. Ele sempre está

disposto a ajudar. Embora leigo li com muita atenção o texto da Sagrada Escritura e

anotei que cabe ao homem fazer-se merecedor da ajuda de Deus, que está sempre

pronto a acudir a alma prestes a sucumbir às forças das trevas. Sede-lhe fiel e

jamais duvideis Dele, pois sendo a essência da lealdade tem horror a qualquer tipo

de esperteza. Devemos ser-Lhe gratos pelo muito que tem feito por nós. A despeito

de Sua nobre e sublime origem consentiu em assumir forma humana por amor a

nós. Deus é sinônimo da própria verdade e abomina falsidade. Para Ele seria

simplesmente impensável agir de forma desleal. Refleti melhor sobre tudo isso e

parai de duvidar Dele. Não será com rancor que conseguireis extorquir alguma coisa

Dele. Quem souber que O estais agravando com vosso ódio poderá duvidar de

vossa sanidade mental. Refleti sobre a triste sorte que coube a Lúcifer e seus

sequazes. Eles não tinham bílis como nós, humanos. Por Deus, senhor, como

pudestes engendrar dentro de vós esse rancor invejoso que vos compele à rebelião

continuada? Tal prática resultará para vós numa recompensa indesejável no inferno.

Astrioth, Belcimão, Belet, Radamante145 e outros dos quais tive notícia - toda a

rutilante milícia celeste, enfim - tornaram-se, como castigo, negros como o inferno. O

145
Astrioth. Na realidade Astarte aparece na Bíblia como parceira de Baal. Venerada na Síria e
Palestina como deusa da fertilidade, era tida igualmente como entidade demoníaca.
Belcimão. Aparece nos escritos de Santo Agostinho (354-430) sob o nome de Baal.
Belet. Possivelmente a deusa fenícia Baaltis é um dos numerosos nomes de Astarte.
Radamente. Rei de Creta e irmão de Minos. Após sua morte, prosseguiu suas atividades de
legislador, erigindo-se em juiz dos Mundos Inferiores. Personagem das epopéias homéricas, passou a ser
conhecido na Literatura medieval através de Virgílio e Ovídio.

354
lugar de Lúcifer e seu bando, após a descida destes ao inferno, foi ocupado pelo

homem. Deus criou do limo da terra o digno Adão e de uma de suas costelas, Eva,

que seria a causadora de nossa desgraça. Ela não deu atenção aos mandamentos

do Criador, comprometendo desse modo nossa salvação. Os dois tiveram filhos. Um

deles deixou arrastar-se pela cobiça e vangloria, manchando a ilibada inocência de

seu antepassado. Muitos quererão agora uma explicação a fim de captar o sentido

dessas palavras. Ocorre que isso efetivamente aconteceu e, para ser preciso, por

causa do pecado."

Parsifal contestou: "É difícil crer que isso tenha acontecido. Quem afinal

engendrou o homem que arrebatou ao seu ancestral a imaculada inocência? Como

podeis fazer uma afirmação desse tipo?"

Mas o anfitrião prosseguiu inabalável: "Dissiparei vossas dúvidas. Se não

me mantivesse nos estritos limites da verdade poderíeis irritar-vos, com razão. Adão

nasceu da Mãe Terra e de seus frutos tirava o seu sustento. Mas ainda não vos

disse quem lhe maculou a virgindade. Adão era pai de Caim e este matou seu irmão

Abel por motivo irrelevante. Quando o sangue manchou o solo virgem a terra perdeu

sua inocência. Foi o filho de Adão o autor dessa violência e desde então

estabeleceu-se a desunião entre os homens. Não há por certo algo mais puro que

uma virgem, sem mácula. Agora refleti sobre a pureza das virgens. Deus nasceu de

uma virgem. Assim apenas dois homens nasceram de virgens, O próprio Deus

assumiu face humana segundo o modelo adâmico, Foi portanto uma limitação

consentida de Sua sublime grandeza."

355
"Desse modo nossa origem adâmica nos onerou e gratificou ao mesmo

tempo. Fomos gratificados porque ao reconhecer seu parentesco conosco nos

colocou acima dos anjos, e onerados por termos herdado de Adão o estigma do

pecado original. Dessa situação se compadeceu o Todo-Poderoso que ao Se fazer

homem lutou abnegadamente contra a deslealdade. Abstende-vos, portanto de

responsabilizá-LO por qualquer coisa, caso contrário desperdiçareis a salvação de

vossa alma. Expiai vossos pecados e disciplinai vossas palavras e atos. Quem

responde a ofensas com desaforos torna-se por sua vez culpado. Aceitai essa antiga

sabedoria que aqui vos exponho porque é válida para todos os tempos. Platão, o

vidente146, anunciou-a ao seu tempo da mesma forma que a profetisa Sibila147. Já

naquele tempo previu ela que seríamos redimidos de nossos pecados. A mão de

Deus, na Sua infinita misericórdia, resgatou-nos das penas eternas, deixando para

trai apenas os ímpios."

“Essas admiráveis promessas prenunciam o mensageiro do amor. Ele é a

própria luz resplandecente que tudo impregna e é mutável no Seu amor. Quem

recebe a revelação de Seu amor torna-se um bem-aventurado. Os homens podem

ser divididos em duas categorias. Eles podem livremente decidir-se por Seu amor ou

Sua ira. Decidi vós mesmo que mais vos convém! O pecador é impenitente e se

aparta da lealdade divina. Mas quem se penitencia de seus pecados torna-se

merecedor do precioso dom da graça de Deus, para quem nem mesmo

pensamentos constituem segredos. O pensamento humano mantém-se oculto aos

raios do sol. Embora desprovido de fechadura e aldrava, permanece indevassável

para todas as criaturas e inacessível à claridade. Mas a natureza divina, princípio de

146
Platão. Filósofo grego (427-347).
147
Sibila. Profetisa que, sem ser solicitada, anunciava o futuro. A ela são atribuídos os livros sibilinos,
uma coletânea de oráculos conservada no Templo de Júpiter.

356
toda a pureza, devassa, radiante, a barreira das trevas. Sem ser ouvida ou

pressentida penetra qual raio os corações e deles se aparta com a mesma rapidez

silenciosa. Nenhum pensamento, por rápido que seja, é capaz de sair do coração

para a luz do dia sem que Deus o tenha examinado previamente. Ele dá guarida às

idéias positivas. Se a Deus não escapa um só de nossos pensamentos por que

então não nos abstemos das más ações?"

"Se com suas más ações o homem malbarata o dom da graça, de sorte

que Deus sinta vergonha dele, que proveito poderá trazer-lhe sua humana

educação? Aonde sua pobre alma terá guarida? Se ofendeis a Deus, que pode usar

da ira e da benevolência, então estais irremediavelmente perdido. Encarai pois a

realidade, a fim de que Ele possa recompensar vossa boa disposição."

Parsífal disse-lhe então: "Senhor, alegro-me sobremodo pelo fato de me

ter aclarado o entendimento acerca d'Aquele que retribui o bem e o mal na justa

medida. Ocorre que passei toda a minha vida - dos verdes anos a esta parte - em

circunstâncias sumamente penosas."

O anfitrião replicou: "Se pretendeis falar-me sobre as tribulações e

pecados que vos afligem estou disposto a vos ouvir de bom grado. E se me derdes

oportunidade de avaliá-los talvez me venha ao pensamento alguma idéia salvadora

que a vós próprio ainda não ocorreu."

Parsifal retomou a palavra: "Minha suprema aspiração é conquistar o

Graal, mas tenho igualmente saudades de minha mulher, a mais linda criatura que

veio a este mundo. Para ela e para o Graal sinto-me atraído de modo irresistível."

357
O anfitrião admitiu: "O senhor tem razão. Se vos consumis em saudades

pela própria esposa, vossas aflições são compreensíveis e mesmo procedentes. Se

a ela estiverdes unido pelos laços legítimos do matrimônio, não tendes por quê vos

arrecear das penas do inferno. Com a ajuda de Deus sereis em breve aliviado

dessas mazelas e penas. Mas, se bem ouvi, estais igualmente empenhado na busca

do Graal. Ó grande insensato! Essa é uma pretensão que devo lamentar. Conquistar

o Graal é privilégio exclusivo daqueles predestinados para essa missão. No que se

refere ao Graal a questão se resume nisso. E o digo por experiência própria."

Parsifal quis então saber: "Vós próprio estivestes lá?" Ao que o anfitrião

respondeu: "Sim, senhor!"

Parsifal tratou de ocultar cautelosamente do anfitrião o fato de ter visitado

também aquelas paragens. Procurou, ao contrário, descobrir as singularidades que

diziam respeito ao Graal. O anfitrião prosseguiu: "Conheço bem essa questão e sei

que em Munsalvaesche, junto ao Graal, vivem muitos valorosos cavaleiros que com

freqüência de lá se ausentam em busca de aventuras. Esses templários consideram

o combate - quer para eles resulte em fama ou decepção - um ato de expiação de

seus pecados. Ali se concentra uma aguerrida milícia e agora vou vos revelar donde

lhes provém o sustento. Eles são alimentados por uma pedra e se dela nunca

tivestes notícia eu vô-la descreverei agora. Ela é chamada Lapsit exilis148. Suas

148
Lapsit exillis. Nome latino do Graal tal como aparece no texto do "Parsifal", atestado por Lachmann
e que serve de base à presente tradução. É um latim indecifrável que resultou possivelmente de um erro do
copista ao reproduzir o original do poeta. No contexto da narrativa poderiam ser admitidas duas hipóteses para
se chegar à forma que Wolfram usara ou teria querido usar: Ia.) Lápis ex caelis (pedra caída do céu). É uma
possibilidade coerente, por remeter à origem celeste do Graal; 2.") Lápis exilii (pedra do exílio), visto terem sido
seus primeiros guardiães aqueles anjos desterrados por Deus para este mundo, em virtude de terem permanecido
neutros ao eclodir a revolta de Lúcifer. NT

358
virtudes miraculosas permitem que a fênix149, seja reduzida a cinzas e delas renasça

para uma nova vida. É o período de muda da fênix. Depois de produzir tal fenômeno

a pedra continua retendo seu antigo esplendor. Se um moribundo contemplar a

pedra a morte não poderá prevalecer sobre ele nas semanas seguintes. Tampouco

irá envelhecer, porque conservará a aparência que tinha ao tempo em que avistou a

pedra, Quando pessoas na força da idade - quer se trate de mulher jovem ou varão -

contemplarem a pedra no decurso de duzentos anos, apenas seus cabelos

encanecerão. A pedra tem o dom de lhes instilar um vigor capaz de lhes conservar o

viço da juventude, A pedra é chamada também "o Graal". Hoje é o dia assinalado

em que o mensageiro descerá sobre ela, renovando-lhe a força miraculosa. Hoje é

Sexta-feira Santa, dia em que pode ser visto uma pomba descendo dos céus para

depositar sobre a pedra uma pequenina e branca oferenda. Depois de havê-la

depositado ali a alvíssima pomba regressa ao empíreo celeste. Como já disse! toda

a Sexta-feira Santa ela deposita sobre a pedra essa oferenda que lhe infunde o dom

prodigioso de fazer aparecer todas as bebidas e comidas deste mundo em profusão,

da mesma forma que carne de tudo o que sob o céu voa, corre ou nada. Assim, a

força do Graal prove de alimentos essa fraternidade cavaleirosa. Ouvi agora como

se torna conhecida a identidade daqueles convocados para o Graal. Na orla superior

da pedra aparece uma misteriosa inscrição. Esta contém o nome e a estirpe das

moças e rapazes predestinados a empreender a demanda restauradora do Graal.

Não é necessário remover a inscrição, pois tão logo tenha sido lida desaparece

diante dos olhos daqueles que a leram."

149
Fênix. Figura de uma lenda egípcia, que seria uma ave que a cada 500 anos se consome em chamas e
renasce das próprias cinzas para uma nova vida.

359
"Quem hoje vive como pessoa adulta junto ao Graal foi convocado ao seu

serviço quando ainda adolescente. Toda a mãe se sente sobremodo feliz quando um

filho seu é convocado para o Graal. Pobres e ricos sentem-se lisonjeados quando

convidados para enviar seus filhos para integrarem a comunidade do Graal. Seus

membros são recrutados em muitos países e eles permanecem junto ao Graal

durante toda a vida, livres de toda a mancha e pecado. Mais tarde isso resultará

para eles em recompensas no céu. Ali, após a morte, verão realizados seus mais

caros desejos. Aqueles nobres e eminentes anjos que na luta entre Lúcifer e a

Santíssima Trindade haviam permanecido neutros foram, como castigo, condenados

a permanecer na Terra a fim de ali manterem sob sua guarda a pura e imaculada

pedra. Ignoro se Deus os perdoou ou os rejeitou definitivamente. Ressalvado Seu

senso de justiça, é de supor que os tenha readmitido no Seu reino. Desde então a

pedra ficou sob a custódia daqueles homens convocados por Deus para essa

missão e aos quais enviou Seu anjo. Senhor, é nisso que se resumem os fatos

concernentes ao Graal."

Parsifal retomou a palavra: "Se um cavaleiro atuante, usando escudo e

lança, pode alcançar tanto as glórias deste mundo quanto a eterna bem-

aventurança, então posso dizer que sempre fiz o humanamente possível. Nunca me

esquivei de combates e com mão de ferro tratei de adquirir fama. Caso Deus

entenda alguma coisa da arte militar deveria convocar-me para os serviços do Graal

a fim de que ali pudessem saber quem eu sou. Asseguro-vos que minha mão jamais

arrefeceu na luta!"

Mas o piedoso hospedeiro tratou de orientá-lo: "Ali deveis evitar qualquer

tipo de presunção e cultivar sobretudo a modéstia! Com essa vossa exuberância

360
juvenil não será fácil mostrar-vos contido e modesto. Mas o orgulho sempre precede

a queda!" Nessa altura titubeou, refletindo sobre a melhor maneira de expressar seu

pensamento. Enfim prosseguiu: "Senhor, lá vive um rei que se chamava e se chama

Anfortas. Sua situação desesperadora, resultante de uma presunção excessiva,

devia inspirar piedade a vós e a mim, pobres pecadores. Sua juventude, riqueza e

impulso erótico contrário aos bons costumes o precipitaram em amargo sofrimento."

"Tal procedimento atentava contra os estatutos do Graal. É dever de todo

o cavaleiro e serviçal abster-se conscientemente de qualquer leviandade, pois a

modéstia pode mais que a soberba. Junto ao Graal vive uma seleta fraternidade cujo

alto padrão, provado em muitas lutas, tem mantido até esta parte os incursores à

distância. Foi dessa forma que se preservaram até hoje os mistérios do Graal. Deles

comungam unicamente aqueles convocados para Munsalvaesche a fim de ali

integrar a comunidade do Graal. Apenas um homem conseguiu ali introduzir-se sem

ser previamente recrutado. Na realidade tratava-se de um parvo que acabou se

retirando dali carregado de pecados. Ele nem sequei se deu ao trabalho de indagar

do anfitrião a causa de suas penas a despeito de vê-lo sofrer tanto. Não pretendo

censurar ninguém mas considero o fato de não ter procurado se informar acerca da

triste sorte do anfitrião um pecado que terá de expiar, posto que jamais a alguém foi

dado assistir a tamanho sofrimento. Antes dele o Rei Lahelin conseguiu penetrar até

o Lago Brumbane, onde o nobre guerreiro Lybbeals de Prienlascors o compeliu a se

bater com ele. Esse duelo resultou na morte de Lybbeals e Lahelli se apoderou da

montaria do herói. Em conseqüência a pilhagem foi descoberta. Senhor, acaso sois

Lahelin? O animal que encontra nas minhas baias apresenta todas as características

da cavalos que integram o plantei da comunidade do Graal. Com certeza é oriundo

361
de Munsalvaesche, pois exibe na sela a efígie de uma pomba. Esse símbolo

heráldico Anfortas outorgou à comunidade do Graal num tempo em que ainda vivia

feliz e sem preocupações. Sua presença no campo dos escudos é bem antiga.

Titurel, o legou ao seu filho, o Rei Frimurtel. E foi ostentando tal símbolo no escudo

que esse herói perdeu a vida em duelo. Ele amou a esposa tão intensamente como

homem algum jamais amou sua mulher além de lhe devotar uma lealdade imutável.

Tomai-o como exemplo e amai vossa mulher de todo o coração. Ele ademais poderá

vos servir de exemplo, já que sois tão parecidos. Foi ele que antes do atual

soberano reinou sobre o Graal. Ah, donde vindes, afina! Dizei-me, por favor, qual é

vossa estirpe!"

Os dois se entreolharam firmemente. Por fim, Parsifal declarou ao

anfitrião: "Sou filho de um homem que no desempenho do ideal cavaleiroso perdeu a

vida numa justa. Senhor, lembrai-vos dele bondosamente em vossas orações. Meu

pai se chamava Gahmuret e de raça era angevino. Não sou Lahelin, senhor, embora

também eu tenha pilhado um morto num tempo em que era ainda um pobre tolo.

Sim, sou responsável por isso e confesso esse pecado. Minha mão assassina tirou a

vida de Ither de Kukumerland e o despojou de tudo o que parecia de valor."

"Ai de ti, ó mundo! Esta é tua lógica", exclamou o anfitrião abalado com o

que acabara de ouvir. "Tu ofereces aos homens mais motivos para se arrepender do

que para se rejubilar. É quinhão que ofereces. Eis a moral da história!" E prosseguiu:

"Amado filho de minha irmã, que conselho poderia dar-te em tal circunstância? Tu

mataste teu próprio parente! Se carregado com essa culpa comparecesses perante

o tribunal de Deus, tu só resgatarias com tua própria vida, pois ambos são do

mesmo sangue. Como irás expiar a morte de Ither de Gaheviez? Consoante a

362
vontade de Deus encarnava ele a essência da verdadeira distinção, que fazia com

que este mundo fosse mais puro. Para esse homem sumamente leal qualquer tipo

de injustiça era um ato abominável. Os defeitos humanos eram-lhe estranhos mas a

firmeza de caráter se achava firmemente enraizada em seu coração. Por causa

desse amável varão todas as damas deveriam odiar-te pois estava inteiramente

dedicado ao serviço delas e seu garbo lhes enchia os olhos. Que Deus se apiade de

ti por teres causado tamanha aflição! Até mesmo a vida de tua mãe Herzeloyde,

minha irmã, se extinguiu am saudades de ti!"

"Piedoso varão, que estais dizendo?", exclamou Parsifal: "Se eu fosse

soberano do Graal jamais me conformaria com o que estais dizendo! Se de fato sou

vosso parente então dispensai-me consideração e dizei-me com toda a sinceridade

se essas duas notícias são verdadeiras!"

O piedoso varão replicou: "Sou incapaz de enganar a quem quer que

seja! Foi a afeição materna que lhe causou a morte no te ver partir. Eras tu o animal

que lhe sugava os seios; eras tu o dragão que alçou vôo apartando-se dela. Ainda

antes de teu nascimento ela vivenciou esses acontecimentos num sonho

premonitório. Além dela tenho ainda duas irmãs. Uma, Tschoysiane, faleceu ao dar

luz a uma filha. Seu marido era o Duque Kyot da Catalunha que com a morte da

esposa perdeu toda a alegria de viver. Sua filhinha Sigune ficou aos cuidados de tua

mãe. A morte de Tschoysiane abalou-me profundamente. Possuía um nobre

coração de mulher e era qual arca a flutuar num mar de licenciosidade. Minha outra

irmã é uma jovem de costumes irrepreensíveis que observa uma castidade

exemplar. Ela se chama Repanse de Schoye e é guardiã do Graal. Seu peso é de tal

ordem que a força de toda a Humanidade pecadora reunida não seria capaz de

363
movê-lo do lugar. Foi Anfortas, nosso irmão, que a seguir ascendeu ao trono do

Graal. Infelizmente vive sem alegrias e a única esperança que lhe resta é alcançar a

vida eterna através do sofrimento. Essa triste sina resultou de um acontecimento

extraordinário que agora passarei a te relatar, querido sobrinho, e se tiveres um

coração bem formado irás compadecer-te do sofrimento por que ele vem passando.

Depois da morte de Frimurtel seu filho mais velho foi investido no cargo de rei e

protetor do Graal e de sua comunidade. Esse homem era meu irmão Anfortas. Ele

era perfeitamente digno de assumir o poder e cingir a coroa. Ademais, nós, seus

irmãos, éramos todos menores de idade. Ocorre que meu irmão se encontrava

naquela faixa etária em que costumam aparecer os primeiros fios de barba. Nesses

anos de florescência, a libido começou a se manifestar nele e passou a dominar sua

vítima tão completamente que chegou a se constituir em motivo de escândalo. Mas

se um soberano do Graal cortejar outra mulher que não a que lhe foi predestinada e

cujo nome aparece inscrito no Graal, então deve estar preparado para enfrentar

vicissitudes e sofrimentos. Meu soberano e irmão escolheu, pois uma amante que

supunha ser de bons costumes. Quem era, não vem ao caso, A serviço dela

perpetrou muitas façanhas e partiu muitos escudos, O nobre jovem alcançou notável

reputação em todos os países que seguem as normas de vida cavaleirosa. Adotou

como grito de guerra "Amor", embora um tal lema não perfilhasse necessariamente

os princípios da modéstia. Certo dia o rei partiu desacompanhado em busca de

aventuras, decisão que para os seus resultaria em muitos sofrimentos. O impulso

amoroso o impelia a sair à procura de uma experiência amorosa gratificante e bem-

sucedida, Naquela oportunidade teu querido tio foi ferido num combate singular por

uma lança envenenada, nos órgãos genitais e desde então nunca mais teve saúde.

Seu adversário era um pagão natural Ethnise, localidade situada no ponto em que o

364
rio Tigre sai do Paraíso. Esse pagão estava convicto de que poderia conquistar o

Graal à força. Seu nome se achava insculpido na haste de sul lança. Atraído pela

lenda da força miraculosa do Graal cruzou terras e mares a fim de tentar sua fortuna

como cavaleiro andante, Sua lançada destruiu nossa felicidade. Teu tio saiu

vencedor naquele combate, mas a ponta da lança permaneceu alojada em seu

corpo. Quando o bravo jovem regressou junto aos seus, lamentou-se o sucedido em

altas vozes. O pagão ficou estendido, imóvel, no local e nós não tínhamos motivos

para lamentar sua morte. Quando o rei regressou, muito pálido e enfraquecido, um

médico examinou a ferida e nela descobriu a ponta de lança. Havia ali, ademais, um

estilhaço da haste de bambu e o médico tratou de extrair, em seguida, uma e outro.

Naquele momento caí de joelhos e assumi com Deus Todo-Poderoso o

compromisso de renunciar à minha carreira de cavaleiro a fim de que Ele para Sua

própria glória resgatasse meu irmão daquela calamidade. Assumi ainda o

compromisso de me abster de carne, vinho, pão e de tudo o que contivessa sangue.

A partir daquele momento nunca mais tocaria nisso. Devo dizer-te, querido sobrinho,

que o fato de ter posto de lado minha espada foi motivo de novas queixas por parte

da comunidade do Graal. Todos argumentaram: "Quem doravante irá proteger os

mistérios do Graal?" E todos se puseram a chorar. Instalou-se o rei, a toda pressa,

diante do Graal, a fim de que Deus através dele o socorresse. Mas a visão do Graal

apenas aumentava seus tormentos e agora, mais do que nunca, era preciso que

permanecesse vivo. Ele não podia morrer, pois tendo eu abraçado uma vida de

pobreza a manutenção do poder pela estirpe do Graal estava fundada unicamente

nas suas forças combalidas. A ferida do rei segregava grande quantidade de pus e

embora buscássemos diligentemente numerosos tratados de medicina todo o nosso

esforço se revelou infrutífero. Inúteis igualmente revelaram-se todos os

365
medicamentos habitualmente utilizados contra mordedura de traiçoeiras e

venenosíssimas serpentes, tais como a áspide150, ecidemon151, echontius152, lisis153,

jecis154, meatris155 e outros ofídios peçonhentos, bem como todas as ervas

medicinais empregadas pelos médicos mais versados em farmacologia. Resumindo,

todos os esforços revelaram-se inúteis porque Deus não quis que ele se curasse! Na

esperança de conseguir ajuda deslocamo-nos até os rios Geon156, Fison, Eufrates e

Tigris, próximos ao local em que esses cursos de água transpõem a orla do Paraíso

e onde o aroma do Eden agradável e benéfico ainda não se havia dissipado.

Esperávamos encontrar ali ervas com virtudes curativas. Foi um esforço Inútil que

deixou em nossos corações uma mágoa inconsolável. A despeito disso tentamos

muitos outros meios. Foi então que conseguimos colher o mesmo ramo157 que a

Sibila havia recomendado a Enéias como proteção contra as inclemências do

inferno. Após longa e fatigante busca localizamos finalmente o ramo benfazejo, pois

suspeitávamos que a tétrica lança que pusera fim à nossa felicidade tivesse sido

envenenada e endurecida nas forjas infernais. Mas isso felizmente não acontecera.

Existe, ademais, uma ave chamada pelicano158. Quando sua ninhada se liberta da

casca ele a cumula de carinhos tão exagerados que, movido por carinhosa

dedicação, rompe a bicadas o próprio peito, deixando escorrer o sangue no bico dos

filhotes. Ele próprio morre na hora. Na esperança de que semelhante devotamento

150
Áspide. Gênero de ofídio venenoso.
151
Ecidemon. Animal fabuloso, aqui evidentemente tomado como serpente
152
Echontius. Um gênero de serpente, segundo a lenda.
153
Lisis. Trata-se aqui, possivelmente, de uma corruptela do fabuloso basilisco, geralmente imaginado
como serpente alada cujo olhar teria efeito mortífero.
154
Jecis. Um gênero de serpente, segundo a lenda.
155
Meatris. Um gênero de serpente, segundo a lenda.
156
Geon, Fison (algumas versões bíblicas registram Pison), Eufrates e Tigre são os quatro rios do
Éden mencionados no Gênesis (2, 10-14).
157
Ramo. Referência ao episódio da Eneida (VI, 136), de Virgílio, em que Enéias recebe da Sibila um
ramo de ouro de virtudes mágicas, que o protegeria na sua descida aos Infernos.
158
Pelicano. A crença popular, reforçada pelos escritos de Santo Isidoro, doutor da Igreja e arcebispo de
Sevilha (560-636), fez do pelicano símbolo do altruísmo e mais especialmente do Cristo que se sacrificou por
amor aos homens.

366
tivesse o dom da cura obtivemos esse sangue e pincelamo-lo sobre a ferida da

melhor maneira que sabíamos. Mas também isso se revelou inútil. Existe além disso

um animal chamado unicórnio159. É tamanha sua confiança na mulher virgem que

chega a adormecer em seu regaço. Visando a aliviar os tormentos do rei tratamos

de conseguir o coração desse animal, bem como o carbúnculo que se desenvolve

no osso frontal logo abaixo do chifre. Inicialmente apenas passamos o carbúnculo

sobre a ferida e a seguir introduzimo-lo nela. Mas a ferida não mudou seu mau

aspecto e nós continuamos a compartilhar solidariamente o sofrimento do rei.

Depois tratamos de localizar uma raiz chamada bistorta160. Dela se afirma que teria

brotado do sangue de um dragão e teria uma misteriosa vinculação com o

movimento dos astros. Procuramos, pois verificar em que medida a constelação do

dragão poderia ser útil contra os efeitos do planeta ascendente e as mudanças da

lua que intensificavam as dores da ferida. Mas a despeito de sua nobre e sublime

origem a raiz não nos deu o socorro esperado. Finalmente, em atitude de súplica,

caímos de joelhos diante do Graal. Foi então que apareceu na borda do Graal a

inscrição: um cavaleiro viria e se este, tomado de compaixão, perguntasse sobre a

triste sina do rei, todas as tribulações terminariam. Mas ninguém poderia adverti-lo

sobre a importância da pergunta, caso contrário não surtiria efeito. O estado da

ferida não apenas se mantinha inalterado do como provocava dores ainda mais

intensas. E a inscrição prosseguia: "Tomastes boa nota de tudo? Qualquer

explicação feita à ocultas resultará em dano. Caso ele não faça a pergunta logo na

159
Unicórnio. Esse animal fabuloso com aspecto de cavalo, barba de bode, casco fendido e um único
chifre reto no centro da testa era visto como símbolo da pureza e remédio contra mordeduras pela crença
popular da Idade Média. O salmo 22,21 do Antigo Testamento é possivelmente a mais antiga referência ao
Unicórnio. No belíssimo soneto "Das Einhorn" (O Unicórnio), Rainer Maria Rilke (1875-1926) confere
dimensões artísticas a essa antiqüíssima lenda. N T
160
Bistorta. Trata-se, segundo a lenda, de uma planta com virtudes curativas, cuja raiz é duas vezes
retorcida sobre si mesma, donde o nome. Sua conformação retorcida, acrescida da misteriosa vinculação aos
astros, alude à constelação boreal do dragão (a oeste de Cefeu e o Cisne, a leste da Ursa Maior, ao norte de
Hércules e ao sul da Ursa Menor) de cujo sangue a bistorta teria nascido.

367
primeira noite a pergunta perderá sua eficácia. Mas se puser a questão na hora

certa herdará o reino e todas as provações terminarão segundo a vontade do

Altíssimo. Anfortas se restabelecerá mas nunca mais voltará a reinar."

"O que lemos no Graal significava que uma pergunta compassiva poderia

pôr fim às tribulações de Anfortas. Enquanto isso tratávamos a ferida com linimentos

tais como o admirável ungüento de nardo161, o composto de teriaga162 e com fumaça

resultante da queima de pau aloés163. A despeito disso Anfortas continuava a sentir

dores o tempo todo. Foi nesse meio tempo que eu me retirei a este lugar onde me

mantenho em luto estrito. Tempos depois apareceu de fato o anunciado e já

mencionado cavaleiro. Mas teria sido melhor se não tivesse aparecido por lá, pois

apenas se cobriu de ignomínia. Embora assistisse a um sofrimento por demais

evidente, não se animou em indagar do anfitrião: "Senhor, está sentindo alguma

coisa?" Como sua estupidez fê-lo postergar a pergunta, deixou escapar a grande

oportunidade que estava ao alcance de sua mão."

Dito isso, ambos se quedaram cabisbaixos. Entrementes vinha se

aproximando o meio-dia e o anfitrião observou: "É preciso achar algo para comer.

Teu cavalo ainda está de jejum e para nós mesmos nada tenho para oferecer, salvo

se Deus vier obsequiar-nos com alguma coisa. Na minha cozinha o fogo arde raras

vezes. Por hoje, e enquanto aqui permaneceres, terás de contentar-te com isso. Se

não tivesse nevado eu te teria iniciado hoje na ciência da Botânica. Deus queira que

a neve derreta logo. Colhamos, pois os tenros brotos de teixo! Presumo que teu

161
Nardo. Planta originária da Ásia, cujo rizoma aromático foi muito empregado pelos antigos no preparo
de loções e ungüentos.
162
Teriaga. Medicamento de composição complicada que os antigos empregavam contra a mordedura de
qualquer animal venenoso.
163
Aloés. Planta aromática e medicinal.

368
cavalo esteja habituado a receber em Munsalvaesche forragem melhor e mais farta

mas nunca tiveste - tu e tua montaria- um anfitrião mais preocupado em vos

obsequiar se tivesse como gostaria os meios para tal!" Dito isso saíram à cata de

alimentos. Parsifal tratou de reunir forragem para seu cavalo enquanto o anfitrião se

esmerava em arrancar certas raízes que deviam servir-lhes de petisco. O anfitrião

não afrouxava o regime disciplinar164 que se impusera e não ingeria uma única raiz

enquanto não tivesse soado a nona165, embora as recolhesse em abundância.

Cuidadosamente as depositava sobre os arbustos e prosseguia na busca. Havia

dias em que, em homenagem a Deus, regressava sem comer coisa alguma e isso

acontecia quando não conseguia reencontrar ou arbustos em que pusera os

alimentos.

Os dois companheiros não demonstraram qualquer contrariedade por

terem que se deslocar até a fonte murmurante onde lavariam as ervas e raízes.

Raras vezes o sorriso lhes aflorava nos lábios. Finalmente lavaram as mãos. Depois

de lançar ao cavalo os molhos de brotos de teixo, Parsifal e seu companheiro

regressaram ao chão forrado de palha junto ao braseiro. Teria sido Inútil procurar

outros alimentos, pois ali não se cozinhava nem assava coisa alguma e a cozinha

estava permanentemente vazia. Parsifal era suficientemente comedido e se tomara

ademais de grande afeição pelo anfitrião, pelo que se sentia ali mais bem servido

que junto a Gurnemanz ou junto às belíssimas e refulgentes damas quando da vez

em que fora hóspede do Graal em Munsalvaesche. O dono da casa lhe disse sábia

e amistosamente: "Sobrinho, não subestimes esta comida, pois não encontrarás tão

164
Regime disciplinar. Trevrizent observava a regra que regia as atividades diárias das ordens monásticas
medievais.
165
Nona. Uma das horas em que os romanos dividiam o dia e que era correspondente às três horas da
tarde. Os medievais seguiam a hora romana.

369
cedo um anfitrião que prazerosamente gostaria de obsequiar-te com os melhores

pratos." Parsifal respondeu: "Senhor, que Deus me castigue se alguma vez a comida

de outro anfitrião me tenha apetecido mais que esta." O fato de não lavarem as

mãos depois de se haverem servido não poderia constituir motivo para reparos; tal

procedimento somente se imporia se tivessem consumido peixe. No que me

concerne, posso assegurar-vos: se ali me tomassem por falcão a me engajassem

numa altanaria, eu - à vista de tão míseros bocados - despegar-me-ia do punho e

me lançaria à cata de alguma presa. Mas eis-me a escarnecer de gente honrada!

Uma vez mais a velha tendência de me divertir às custas dos outros tomou conta de

mim! Afinal acabastes de ouvir por que não possuíam bens, por que viviam sem

alegria e por que preferiam as inclemências às amenidades do tempo. Suportavam

suas penas com resignação exemplar e receberiam ao termo das mãos do Altíssimo

o prêmio por suas provações. Deus os favoreceu e os favoreceria.

Parsifal e o piedoso varão se ergueram e encaminharam para as baias.

Ali, entristecido, o anfitrião se dirigiu ao cavalo nestes termos: "Pesa-me o fato de

estares a passar fome porque ostentas na sela o símbolo heráldico de Anfortas!"

Enquanto alimentavam o cavalo o diálogo se encaminhava num rumo que

seria objeto de novas e dolorosas surpresas. Parsifal disse ao anfitrião: "Senhor e

querido tio meu, devo confessar-vos meu Infortúnio que por acanhamento vos

ocultei. Em nome de vossa elevada educação, sede tolerante comigo, pois o faço

confiante em vosso apoio. Meu delito é tão grave que mesmo se o julgardes com

imparcialidade continuarei sem esperanças e sem possibilidade de ser resgatado de

minhas penas. Espero de vós leal conselho e compreensão para com minha falta de

experiência. Aquele infeliz que esteve em Munsalvaesche, que viu todo o quadro de

370
infelicidades - que falava por si mesmo - e que a despeito disso não formulou

qualquer pergunta, fui eu. Senhor, foi esse meu pecado!"

O anfitrião exclamou: "Que estás a dizer, sobrinho? Agora temos, com

efeito, sobejas razões para lamentos e tristezas. Não fizeste uso da razão e

desperdiçaste tua grande oportunidade. Os cinco sentidos com que Deus te

aquinhoou falharam. Por que não suscitaram tua solidariedade à vista da ferida de

Anfortas? A despeito disso não quero recusar-te meu conselho. É preciso que não te

lamentes em demasia e mantenhas tua tristeza em certos limites. Os homens são

criaturas muito estranhas. Por vezes são sábios na juventude e na velhice

suficientemente tolos para turvarem a pureza de seus atos. Com isso conspurcam

nobreza de suas intenções iniciais. Fenece então a virtude recém desabrochada que

na idade madura devia vingar, deitar raízes assegurar ao homem o respeito dos

outros. Se me for possível fazer reflorescer em ti a virtude, instilar em teu coração

novo ânimo a fim de que possas firmar teu conceito e voltar a confiar em Deus,

então alcançarás teus elevados objetivos e reconquistaras o que perdeste. Deus não

te abandonou. Ele te aconselhou por meu intermédio. Acaso viste a lança no castelo

de Munsalvaesche? Pelo estado da ferida e também pela neve que cai em pleno

verão percebe-se que Saturno atingiu seu ponto máximo. Naquela oportunidade teu

querido tio foi particularmente atormentado por um frio que o enregelou por dentro.

Foi preciso introduzir a ponta da lança na ferida a fim de que uma dor amortecesse a

outra. Isso explica por que a ponta da lança esteve manchada de sangue. Quando

certas estrelas, que em trajetória irregular se movimentam muito acima dos outros

astros, começam a despontar no horizonte a tristeza dos membros do Graal se

manifesta através de clamor patético. Nas mudanças de lua o estado geral da ferida

371
também se agrava consideravelmente. Nas ocasiões a que me referi o rei não

consegue desfrutar um só momento de paz. Um frio interno o acomete e seu corpo

se torna mais gélido que a neve. Coloca-se então sobre a ferida o ferro da lança

untado com um veneno abrasador, com o qual se extrai a frialdade do corpo. O

metal não demora em se cobrir com uma camada de gelo, semelhante à cor do vidro

claro, que só pode ser removida com duas facas de prata forjadas pelo habilidoso

mestre Trebuchet. Imprimir às lâminas semelhante tempera só lhe foi possível

graças à fórmula mágica que vira insculpida na espada do rei. Do asbesto se afirma

que seria incombustível; no entanto se nele colocarmos um fragmento desse vidro

provocará uma combustão que irá consumir o próprio asbesto. É verdadeiramente

surpreendente a virulência desse veneno."

"O rei não pode montar, andar, deitar-se e tampouco ficar em pé. Mal

consegue sentar-se. Geralmente fica meio encostado, ciente de sua situação

deplorável. Na mudança da lua é acometido de dores terríveis. Nas imediações

existe um lago chamado Brumbane. Muitas vezes para lá é transportado a fim de

que o ar puro do lago dissipe o mau cheiro que a ferida exala. A isso ele chama seu

dia de pesca. No castelo ele necessita, na realidade, de algo mais do que aquilo que

ali consegue apanhar em meio às dores que o atormentam. Foi daí que resultou sua

fama de pescador, com a qual teve de se conformar, embora esse homem triste e

acabrunhado não ponha à venda nem salmões, nem lampreias."

Parsifal observou: "Eu encontrei o rei quando sua embarcação estava

ancorada no lago e o tomei por um pescador de verdade, ou por um homem que ali

estivesse se distraindo de alguma forma. Naquele dia percorri muitas milhas,

embora houvesse deixado Pelrapeire quando a manhã ia alta. Ao cair da tarde saí à

372
procura de um local de pousada. Nesse sentido as indicações do meu tio muito me

ajudaram."

"Tu te aventuraste por um caminho pontilhado de perigos", observou o

dono da casa. "Ele passa por muitos postos de sentinela guarnecidos por pugilos de

cavaleiros e não há notícia de que alguém, valendo-se apenas da astúcia, tenha

furado esse bloqueio. Quem ao progredir no terreno consegue penetrar até as

sentinelas do Graal, arrisca a vida. Ali não se dá quartel. É uma luta de vida ou de

morte. Essa atividade arriscada é imposta aos guardiães do Graal a título de

penitência por seus pecados."

"Naquela oportunidade consegui alcançar o local em que se encontrava o

rei, sem ser molestado", esclareceu Parsifal. "À noite seu palácio se encheu de

lamentos. Será que eles se sentiam à vontade em tal ambiente? Quando um

escudeiro ingressou no recinto, carregando ao longo das quatro paredes da sala

uma lança com a ponta ensangüentada, toda a comunidade presente passou a se

lamentar em altos brados."

O anfitrião explicou: "Sobrinho, naquela oportunidade o rei vinha sendo

atormentado por dores terríveis. Saturno aproximava-se do seu apogeu, provocando

a irrupção de um frio intenso. Inútil teria sido colocar apenas o ferro da lança sobre a

ferida como se fazia costumeiramente; foi preciso introduzi-lo nela. Na sua ferida o

rei sentia antecipadamente a aproximação de Saturno do seu apogeu, embora na

natureza a efetiva queda de temperatura ocorresse somente algum tempo depois. O

frio ainda demoraria a chegar e só na noite seguinte nevaria, embora o verão já

tivesse chegado." E o piedoso Trevrizent prosseguiu: "A comunidade do Graal se

373
lamentava em altas vozes ao constatar a necessidade de se aliviar o frio que corroia

o rei por dentro com métodos tão cruéis. A dor dominou a todos, pois cada um se

sentiu atingido pela ponta da lança e privado de toda a alegria. A sincera compaixão

é bem uma prova de quão vivos neles se mantinham os ideais do cristianismo."

Parsifal disse ao anfitrião: "Vi também postadas diante do rei, em atitude

solene, vinte e cinco donzelas."

O dono da casa esclareceu: "Deus dispôs que donzelas fossem

encarregadas da guarda do Graal. Servir ao Graal é considerado um privilégio. Por

isso somente cavaleiros castos e sóbrios, podem servir ao Graal. Quando as

estrelas estão em fase de ascensão, jovens e velhos são tomados de grande

consternação. Deus vem guardando rancor por tempo demasiado! Em tal situação é

possível conservar a jovialidade?"

"Sobrinho, vou revelar-te agora alguns fatos de cuja veracidade não

deves duvidar. A comunidade do Graal toma e dá, ai mesmo tempo. Assim, se de

um lado ela recruta adolescentes de nobre estirpe e boa aparência, por outro, se

num país a dinastia reinante se extingue e o povo sem amo, vendo nisso a mão de

Deus, pede um soberano oriundo da comunidade do Graal esse desejo é atendido.

A ele todos deverão prestar obediência, pois é o ungido do Senhor. Deus dispôs que

as missões dos homem fossem secretas. As jovens, ao contrário, sempre deixaram

a comunidade do Graal de forma ostensiva. Convém que saibas o seguinte: Há

muito tempo o Rei Castis pediu a mão de Herzeloydi e eles se casaram

formalmente. Tua mãe foi-lhe dada por esposa embora jamais houvesse desfrutado

de seu amor, pois faleceu logo depois. Antes, porém, enfeudara tua mãe nos reinos

374
de Valois e Norgals juntamente com as cidades de Kanvoleis e Kingrivals. Sofrendo

de mal incurável o rei morreu na viagem de regresso ao seu reino. Herzeloyde era,

pois, soberana legítima de dois reinos quando Gahmuret obteve sua mão. Para

cumprirem missões, o homens são pois enviados secretamente do Graal ao mundo

profano e as jovens de forma ostensiva a fim de que seus descendentes possam por

sua vez ser recrutados para o serviço do Graal. Esses filhos deverão expandir o

número de membros da comunidade e servir ao Graal consoante a vontade de

Deus. Mas no momento em que alguém se dispõe a servir ao Graal deve igualmente

renunciar ao amor da mulher. Unicamente ao rei e aos cavaleiros enviados por Deus

como soberanos aos reinos de dinastia extinta permitido o casamento com uma

mulher de reputação ilibada. Eu próprio transgredi essa norma e servi a uma mulher

visando obter seu amor. Impelido pela motivação psicomotora tão própria da

juventude e também estimulado pela preferência que me demonstrava a nobre dama

enfrentei a seu serviço muitos árduos combatentes. Essa vida solta de aventuras me

atraía tanto que só raramente participava de torneios regulares. O amor que lhe

tinha enchia-me do Indomável euforia e fazia com que me distinguisse em muitos

combates. Sua força motivadora induziu-me a percorrer como cavaleiro andante

terras distantes e desconhecidas. Conquistei afinal seu amor na medida em que,

visando essa recompensa, vinha me batendo indiscriminadamente com pagãos e

batizados. Assim percorri pelejando a serviço da nobre dama, os três continentes:

Europa, Ásia e a distante África. Quando pretendia distinguir-me especialmente,

dirigia-me a Gaurion166. Diante da montanha de Feimurgan167 sustentei muitos

combates. Muitos adversários enfrentei igualmente em luta singular ao sopé do

166
Gaurion. O texto parece sugerir que se trata de uma montanha.
167
Feimurgan. Cf. Nota n.° 28.

375
monte Agremuntin168. Ali uma criatura envolta em chamas vinha sendo combatida

por homens imunes ao fogo e que não se queimavam, donde quer que viesse o

desafio. Quando em busca de aventuras vinha seguindo rumo ao Rohas169, fui

interceptado por um grupo de valentes cavaleiros sorábios170. De outra feita fiz-me

ao mar partindo de Sevilha e atingi Aquiléia através de Cilli e Friuli. Ai de mim, por

ter ali encontrado teu pai! Isso ocorreu quando de minha chegada a Sevilha, onde o

nobre angevino já se achava hospedado. Não me canso em lamentar o fato de ele

ter partido para Bagdá, onde encontrou a morte na batalha. Tu já fizeste ilusão a

isso e devo dizer-te que sua perda marcou-me profundamente. Meu irmão, que é

imensamente rico, consentiu que eu partisse secretamente para me dedicar à

atividade de cavaleiro andante. Quando parti de Munsalvaesche levei comigo o

sinete dele e dirigi-me a Karchobra no bispado de Barbigoel, situado no ponto em

que o Plimizoel deságua num lago. Bastava mostrar esse sinete e o burgrave ia-me

provendo de escudeiros, equipamentos e tudo de que necessitava para minhas

pelejas e andanças arriscadas. Ele cuidou para que nada me faltasse. Ali, na

verdade, cheguei desacompanhado e antes de regressar a Munsalvaesche deixei

no local a escolta que me acompanhara."

"Agora, querido sobrinho meu, ouve mais este lance. Quando em Sevilha

teu nobre pai me avistou, foi logo dizendo que eu era o irmão de sua esposa

Herzeloyde e isso sem ter jamais me visto antes. Ao tempo eu era na verdade um

jovem imberbe e de bela estampa. Quando me visitou na hospedaria assegurei-lhe

solenemente que estava enganado. Mas como não se deixasse dissuadir acabei

168
Agremuntin. Trata-se, possivelmente, de Agrimonte, montanha situada a leste de Salerno na Itália
Meridional.
169
Rohas. Montanha na Estíria (província austríaca).
170
Sorábios. O autor utilizou a palavra "Windisch", designação alemã dos sorábios, minoria eslava que
habitava e ainda habita o curso superior do Spree, rio que banha Berlim. N T

376
admitindo entre quatro olhos e para sua grande alegria que ele tinha razão. Ele me

aquinhoou com suas jóias e eu lhe ofereci aquilo que mais lhe pudesse agradar. O

escrínio que tiveste oportunidade de ver foi esculpido da pedra preciosa com que o

irreprochável varão me presenteara. O verde de sua cor ó ainda mais profundo que

o da alfaia. Teu pai confiou além disso, aos meus cuidados, seu sobrinho Ither, Rei

de Kukumerland, para me servir de escudeiro. O coração desse jovem era isento de

qualquer falsidade. Trocamos abraços de despedida somente depois que a

separação não mais podia ser protelada. Ele regressou à corte do Baruc e eu parti

para Rohas. Quando ali cheguei, viní de Cilli, empenhei-me durante três segundas-

feiras em números combates, nos quais acredito ter feito boa figura. Logo depois

parti para Gandin, a grande cidade cujo nome foi dado ao teu avô. A cidade está

situada próximo ao local em que o riacho Grajena171 conflui com as águas auríferas

do rio Drau. Ither era muito conhecido na cidade, pois ali vivia sua amada, tua prima,

que era a soberana do país. Gandin de Anjou a investira no cargo de regente. Seu

nome é Lammire e o do país Estíria. Olha, quem pretende levar vida de cavaleiro se

sujeita a percorrer muitos países."

"A morte do meu escudeiro vermelho entristeceu-me sobremodo. Por

causa dele ela me cercou de grande consideração. Ither é teu parente e tu

desprezaste esse vínculo consangüíneo. Deus não Se esqueceu desse teu crime e

talvez ainda ajuste contas contigo. Se quiseres reconquistar Sua boa vontade é

mister que expies tuas culpas fazendo penitência. Pesa-me dizer-te que cometeste

dois pecados graves. Além de seres responsável pela morte de Ither cabe-te chorar

a morte de tua mãe. O amor que tinha por ti era tão verdadeiro que ela morreu logo

171
Grajena. Riacho que próximo a Pettau (a atual Ptuj) conflui com o rio Drau, cujas areias auríferas
eram exploradas durante a Idade Média.

377
após a tua partida. Segue meu conselho e faze penitência por teus crimes!

Preocupa-te com teu destino, orientando teus esforços de sorte que tudo que fizeres

nesta vida venha a beneficiar a salvação de tua alma”.

Depois de tratar de todas essas questões o anfitrião voltou a lhe fazer

perguntas: "Sobrinho, tu ainda não me explicaste forma pela qual este cavalo veio

parar em tuas mãos!"

"Senhor, eu o conquistei em combate depois de me haver despedido de

Sigune, com a qual conversara em sua ermida. Logo depois, em rápido ataque

derrubei um cavaleiro de Munsalvaesche deste cavalo e o levei comigo."

O anfitrião quis saber: "E seu legítimo dono escapou ileso?

"Senhor, eu o vi regressar. Seu cavalo, ao contrário, ficou parado, imóvel,

ao meu lado."

"Assaltar a comunidade do Graal e continuar acreditam que irá conquistar

sua simpatia são coisas que não fazem muito sentido."

"Senhor, eu o conquistei num combate! Quem pretendes incriminar-me

por isso deveria antes examinar atentamente a questão. Além do mais, perdi no

entrechoque minha própria montaria”. Parsifal prosseguiu:"Quem era a jovem

portadora do Graal eu manto me foi dado?"

378
O anfitrião respondeu: "Meu sobrinho, trata-se de tua tia. Ela não te cedeu

o manto para que te jactasses disso, mas porque chegou a acreditar que te

convertesses em soberano do Graal e, por extensão em soberano meu e dela. Teu

tio deu-te, ademais, uma espada e tu caíste em pecado quando tua boca, sempre

tão pronta para falar nem mesmo assim se abriu para fazer a pergunta. Mas

deixemos agora de lado esse pecado e os outros, pois já é hora de dormir."

Ninguém lhes trouxe cama e coberta. Embora o leito não fosse

condizente com sua nobre origem tiveram que resignar-se com o chão forrado de

palha. Parsifal passou ali quinze dias, durante os quais o anfitrião pôde oferecer-lhe

apenas ervas e raízes. Mas as palavras encorajadoras do anfitrião fizeram com que

Parsifal se habituasse a essa vida de privações. Trevrizent absolveu-o de seus

pecados sem lhe exigir a renúncia à sua vida de cavaleiro.

Certo dia Parsifal perguntou: "Quem era o homem que jazia num leito

perto do Graal? Seu cabelo na verdade já era grisalho, mas seu semblante

conservava o viço da mocidade." O anfitrião respondeu: "Esse homem é Titurel, avô

de tua mãe. Foi ele o primeiro a receber a bandeira do Graal, juntamente com a

missão de protegê-lo. Ele sofre de podagra172, uma paralisia incurável. Conservou,

contudo o viço do rosto porque sempre está face a face com o Graal. Graças a isso

ainda não morreu. Eles mantêm vivo esse ancião preso ao leito porque não podem

dispensar seus conselhos. Na sua mocidade correu mundo, levando vida de

cavaleiro andante."

172
Podagra. Gota nos pés.

379
"Se quiseres enriquecer tua vida e torná-la verdadeiramente digna trata

sempre com muita consideração as damas e os sacerdotes que, como sabes, são

inermes. Os sacerdotes foram abençoados por Deus. Por isso, ao lhes demonstrar

devotamento e lealdade terás assegurado uma morte tranqüila e feliz. Deves sempre

tratá-los com muita simpatia, pois não há no mundo quem possa ombrear-se com

um sacerdote. É sua boca que anuncia o martírio que expiou nossos pecados. E são

igualmente seus dedos abençoados que sustem o supremo penhor oferecido para

resgatar nossas culpas. Se um sacerdote cumprir com unção e pureza o ofício

divino, então não pode haver vida mais santa que a dele."

Para os dois havia finalmente chegado o dia da separação. Atento a essa

circunstância, Trevrizent disse a Parsifal: "Dá-me teus pecados e eu serei perante

Deus teu fiador pelo cumprimento da penitência que te foi imposta. Segue todos os

meus conselhos o persiste firmemente nesse propósito." Dito isso despediram-se e,

se assim vos aprouver deixo-vos livres para imaginar como isso ocorreu.

380
LIVRO X

1. GALVÃO E O CAVALEIRO FERIDO

Eis que estão por acontecer fatos extraordinários, destinados a infundir

temor nos corações e também exaltá-los. Cuidou-se para que experimentassem

ambos esses sentimentos.

O prazo de um ano já se havia escoado, mas o duelo prometido em

Plimizoel ao Landgrave Kingrimursel pôde ser contornado. Ele não deveria se travar

em Schanfanzun, mas em Barbigoel. A morte do Rei Kingrisin permaneceria, pois

impune. Seu filho Vergulacht na verdade ali compareceria a fim de se medir com

Galvão. Soube, entretanto, através da comunidade cavaleirosa local, que eram

parentes e essa descoberta foi motivo mais que suficiente para que a contenda

fosse resolvida amigavelmente. Na realidade o ônus da culpa que se pretendia

atribuir a Galvão cabia ao Conde Ehcunat. Por isso Kingrimursel se reconciliou com

Galvão, o bravo guerreiro. Não muito depois, Galvão e Vergulacht partiram

simultaneamente com o objetivo de cada qual por sua conta e risco descobrir o local

em que se encontrava o Graal. De permeio teriam que pelejar muito, pois quem

pretendesse empreender a demanda do Graal teria que estar preparado para

381
conquistar o almejado prêmio com a espada na mão. Esse o caminho adequado que

conduz ao objetivo.

O que aconteceu ao irrepreensível Galvão desde que partiu de

Schanfanzun? Se ele teve que pelejar muito pelo caminho, é uma questão que deixo

a cargo daqueles que testemunharam o acontecido. Certa manhã o senhor Galvão

vinha atravessando uma planície verdejante quando viu o brilho repentino de um

escudo perfurado por lança, bem como uma montaria ajaezada com magnífico selim

de amazona e precioso freio. Estava amarrado a um galho de árvore, junto ao

escudo. Disse então, de si para si: "Quem será essa dama guerreira armada de

escudo? Se ela resolver atacar-me como poderei livrar-me dela? Num combate a pé

não terei maiores problemas. Mas se o entrechoque for a lança e o embate se

prolongar poderei deparar com a possibilidade de ser descavalgado, quer isso me

agrade ou não. Acaso se trata de Camila173 que segundo as lendas heróicas, se

distinguiu nas lutas diante de Laurente? Se ainda estivesse viva e lesta como

naqueles tempos eu me disporia, caso oferecesse combate, a tentar a sorte

medindo-me com ela."

O escudo estava igualmente marcado por golpes de espada.

Aproximando-se e examinando-o mais de perto Galvão pôde ver a enorme janela

aberta pela lança por ocasião do entrechoque. É assim que os combatentes

praticam as artes plásticas. Que paga teriam os pintores de escudos se usassem

tais cores em seus trabalhos?

173
Camila. Personagem feminina que na “Eneida”, de Heinrich von Veldecke, se destaca na Guerra de
Tróia, onde morre em combate. Seu corpo foi trasladado para Laurente, onde foi exumado.

382
Atrás do grosso tronco de tília, sobre a verde alfafa estava sentada uma

mulher mergulhada em profunda tristeza. Uma grande desgraça lhe roubara todo o

gosto pela vida. Ao aproximar-se viu um cavaleiro pousado em seu regaço e que era

a causa de seus lamentos. Galvão não se esquivou de cumprimentá-la, gesto que a

dama retribuiu inclinando-se. Sua voz enrouquecera de tanto se lamentar. O senhor

Galvão desmontou. Diante dela jazia um homem que fora transpassado por uma

lança e cuja vida corria perigo em virtude de hemorragia interna. Perguntou-lhe

então se ainda vivia ou se já estava agonizante. A dama respondeu: "Senhor, ele

ainda vive mas receio que não seja por muito tempo. Foi Deus que vos enviou para

acudir-me nesta emergência. Dai-me, pois vosso leal conselho. Vós, muito mais que

eu, assististes a situações difíceis. Gostaria por isso de contar com vossa ajuda e

solidariedade."

"Podeis contar comigo, senhora", respondeu-lhe. "Disponho-me a

preservar-lhe a vida e teria condições de salvá-lo se dispusesse de um tubo.

Ouviríeis então outra vez sua voz e tê-lo-íeis de volta são e salvo, pois seu ferimento

não é mortal. Apenas o sangue começa a afogar-lhe o coração."

Galvão, que não era um leigo no mister de pensar feridos, apanhou um

galho de tília e desprendeu-lhe a casca, de sorte a resultar dali um tubo. A seguir

pediu à mulher que com ele sugasse o sangue represado.

Em conseqüência o herói reanimou-se e voltou a falar. Quando se

deparou com Galvão debruçado sobre ele, agradeceu-lhe muito e assegurou-lhe ter

engrandecido sua fama por havê-lo arrancado daquele estado de prostração. A

seguir perguntou-lhe se pretendia afirmar em Logroys seu valor de cavaleiro.

383
"Também eu parti de Punturtoys à cata de aventuras. Agora me arrependo

amargamente por me haver aproximado demasiado da cidade. Evitai-a se fordes

sensato. Nunca imaginei passar por semelhante situação. Ao me chocar com

Lischoys Gwelljus fui descavalgado e gravemente ferido. A lança perfurou-me o

escudo e ventre. Esta bondosa dama me acudiu transportando-me no seu cavalo ao

local em que estamos." Insistentemente pediu a Galvão que ali permanecesse mas

este quis examinar o local onde o cavaleiro fora ferido. "Se Logroys estiver situada

não muito longe daqui e se puder alcançar teu desafeto então terá de ajustar

contas comigo. Ele terá de me explicar o motivo que o levou a se vingar de ti."

"Desiste desse propósito", exclamou o ferido. "Asseguro-te que não se

trata de brincadeira de crianças. É uma questão de vida ou morte."

Galvão envolveu a ferida com o lenço de cabeça da dama, pronunciou

sobre ela uma simpatia e recomendou o homem e a mulher aos cuidados de Deus.

Muitas manchas de sangue encontrou pelo caminho, como se procedessem de

algum cervo ferido. Isso evitou que enveredasse por pistas falsas e fez com que não

muito depois visse elevar-se diante de si o altivo e afamado castelo de Logroys.

384
2. O ENCONTRO COM ORGELUSE

A imponente fortaleza se alteava sobre a montanha e para atingi-la seria

preciso palmilhar um caminho em espiral, o que num simples de espírito poderia

produzir a impressão de a estar vendo girar indefinidamente em círculo em torno de

si mesma. Mesmo hoje o castelo desfruta da fama de ser inconquistável, pois não

tem por que temer intrusões em qualquer de seus flancos. Em torno das encostas da

montanha havia um bosque de árvores frutíferas. Profusamente vicejavam ali

figueiras, romãzeiras, oliveiras, videiras e outras mais. Galvão vinha cavalgando

montanha acima quando a meio caminho avistou aquela que seria a felicidade e o

tormento de sua vida. Junto à nascente que brotava do rochedo avistou uma

belíssima dama, autêntico esplendor da graça feminina, na qual seus olhos se

fixavam como que fascinados. Com exceção de Condwiramurs jamais viera ao

mundo mulher tão bela. Ela era um encanto de pessoa, bem proporcionada de

corpo, tinha formação cortês e se chamava Órgeluse de Logroys. Dela a aventura

afirma que seria uma isca convidando à luxúria, uma festa para os olhos, uma

presença inquietante que fazia o coração bater mais forte./

Galvão saudou-a e lhe disse: "Se me fosse permitido desmontar aqui e

me fosse dada a certeza de que minha presença vos apraz, então proporcionar-me-

íeis alegria genuína e eu me sentiria o mais feliz dos cavaleiros. Juro-vos por minha

vida que nunca mulher alguma me agradou tanto!"

385
"Ora, isso eu mesma sei muito bem", disse ela com desdém, enquanto o

examinava atentamente. E sua boca encantadora prosseguiu zombando: "Não me

exalteis em demasia, pois isso poderá custar-vos caro. Aqui não é qualquer um que

pode manifestar sua opinião a meu respeito. Se todos - o sábio, o tolo, o homem de

bem e o mentiroso - quisessem exaltar-me isso resultaria para mim em nenhum

prestígio, dada a origem do elogio. Prefiro ser elogiada por quem sabe onde tem a

cabeça. Portanto já é tempo de vos abalardes daqui. Antes, porém dar-vos-ei minha

opinião: vós permaneceis do lado de fora e não de dentro do meu coração. Afinal em

troca de quê exigis de mim amor? Explicai-me o que vos levou a semelhante

pretensão. Há pessoas que espraiam seus olhos para mais longe que pedra

arrojada por uma funda. Conviria apartar vossos olhos daquilo que poderá ferir-vos

no coração. Cuidai para que vossa mórbida paixão se fixe em outra pessoa que não

em mim. Pretendeis servir para obter amor. Se a aventura vos enviou com objetivo

de obter recompensas amorosas mediante feitos cavaleirosos então nada tendes a

esperar de mim. Posso assegurar-vos que aqui tereis como única recompensa a

desonra."

Ele, porém replicou: "Senhora, tendes razão! Meus olhos puseram meu

coração em perigo. Asseguro-vos que vossos encantos me enfeitiçaram a ponto de

doravante considerar-me vosso prisioneiro. Como mulher revelai-me, pois vossa

sensibilidade. Ainda que a contragosto pusestes em mim vossas algemas. Agora,

retirando-as ou conservando-as, ver-me-eis perseverar neste propósito até que vos

tenha à minha mercê."

Ela respondeu: "Que seja. Levai-me convosco! Se efetivamente

pretendeis alcançar o objetivo no qual desejais vos engajar por amor a mim então

386
tereis motivos de sobra para vos lamentar. Pagaria para ver se sois homem capaz

de se expor por amor a mim às vicissitudes da luta. Se prezais vossa honra desisti

desse propósito. E se pudesse vos dar um conselho vos concitaria a buscar amor

em outra parte. Se efetivamente aspirais ao meu amor, o amor e a felicidade se

apartarão de vós. Ao me levar convosco tereis pela frente sérios embaraços."

Mas nosso bravo Gaivão respondeu: "Quem pretenderia amor sem

merecê-lo? Tenho por evidente esta verdade: quem o obtém dessa forma tão ligeira

contrai um séria dívida moral. Mas quem aspira às formas mais elevadas do amor se

mantém a serviço de sua dama tanto antes quanto depois."

Ela advertiu: "Se vos colocais a meu serviço escolheis uma vida cheia de

peripécias e tereis como prêmio a ignomínia. No meu serviço poltrões não têm vez.

Enveredai, pois por este caminho - não é um trajeto que pode ser percorrido a

cavalo - e tratai de minha montaria que se encontra num pomar além desse atalho.

Ali ireis deparar com um grande ajuntamento de pessoas dançando, cantando,

tocando flauta e tamborim. Ainda que vos rodeiem em atitude amistosa, abri

caminho na multidão até o local em que se encontra meu cavalo e desamarrai-o. Ele

vos seguirá."

Gaivão desmontou, sem saber onde deixar o cavalo até sua volta. Junto à

fonte não havia qualquer coisa a que pudesse amarrá-Io. Para ele a questão se

resumia em saber se era ou não de bom tom pedir à dama que o segurasse pelas

rédeas até sua volta.

387
"Já percebi o motivo de vosso constrangimento", observou ela. "Deixai o

animal comigo. Vou segurá-lo até que regresseis. Mas esse favor vos trará escasso

benefício."

O senhor Gaivão agarrou então o cavalo pelas rédeas e disse: "Segurai-o

firme, senhora!"

"Acaso perdestes o senso?", reagiu ela. "Deus me livre segurar a rédea

no lugar em que tocou vossa mão!"

"Senhora, eu nunca agarro as rédeas assim pelas pontas", contemporizou

o varão apaixonado.

"Está bem", condescendeu ela. "Sendo assim vou segurá-lo. Mas

apressai-vos. Trazendo-me o cavalo, acompanhar-vos-ei."

Ele se apressou em partir, por interpretar esse gesto como primeira

manifestação amistosa da parte dela. Seguindo pela vereda alcançou o pomar

através de uma porta. Ali deparou com muitas damas formosas e grande número de

jovens cavaleiros dançando e cantando. Quando nosso herói Galvão se apresentou

da maneira que convém a um cavaleiro a alegria cedeu lugar à tristeza, pois esses

zeladores do pomar eram gente proba e leal. Quem ali se encontrava em pé, deitado

ou sentado na tenda deplorava o perigo a que se expunha. Homens e mulheres

lamentavam a situação e diziam animadamente uns para os outros: "Nossa ama, na

sua falsidade, pretende pôr esse cavaleiro em grandes apuros. Ai dele se lhe der

ouvidos. Um triste desfecho será então inevitável." Muitos vinham apressadamente

388
ao seu encontro abraçando-o cordialmente. Galvão, porém abriu caminho em

direção a uma oliveira onde se encontrava o cavalo, cujos arreios eram sobremodo

preciosos. Um cavaleiro de vasta barba grisalha, cuidadosamente entrelaçada,

achava-se perto da montaria apoiado em sua muleta. Quando Galvão se

encaminhava para o cavalo prorrompeu em prantos.

A despeito disso recebeu-o amavelmente. Ele disse: "Se quisésseis ouvir

um bom conselho eu vos sugeriria que deixásseis o cavalo aqui. Ninguém vos

impedirá de levá-lo convosco, mas mais bem avisado andaríeis se o deixásseis onde

está. Maldita seja minha ama, que envia à morte tantos bravos cavaleiros!"

Quando Galvão lhe fez ver que não se deixaria persuadir o cavaleiro

grisalho exclamou: "Ai dos acontecimentos que estão por vir!" Depois de Galvão

haver desamarrado o cabresto, prosseguiu: "Agora não podeis permanecer aqui por

mais tempo. Deixai, pois que o cavalo vos siga. Que o Senhor, cuja mão fez

salgadas as águas do mar, vos assista na hora do perigo! Acautelai-vos para que a

beleza de minha ama não vos exponha à vergonha. A despeito de seus encantos, é

fria e desalmada. Ela é qual granizo que brilha sob o sol."

"Que se cumpra a vontade de Deus", disse Galvão. Ele se despediu do

cavaleiro grisalho e de todos os presentes, que voltaram a se lamentar em altas

vozes. O cavalo seguiu-lhe os passos pelo caminho estreito através da porta e ao

longo da vereda até o local onde a senhora de seu coração e soberana do país o

aguardava. Seu coração, que esperava encontrar solidariedade, colheu ao invés

disso dissabores e desencantos.

389
A dama havia desprendido as fitas da touca sob o queixo e as atara sobre

a cabeça. Uma mulher que age assim parece estar disposta a gracejos e

escaramuças. Que tal a roupa que usava? Ainda que quisesse não saberia

descrevê-la, pois estou ofuscado pela visão de sua radiante beleza. Ao aproximar-se

da dama Galvão ouviu de sua boca mimosa estas palavras: "Sede bem-vindo, ó

idiota! Se ficardes a meu serviço sereis o maior tolo deste mundo. Ah, desisti desse

propósito!"

Ele, porém replicou: "Mesmo indignada como estais conviria ouvir-me,

considerando que depois dessa explosão de ira desagravar-me seria um gesto que

só vos honraria. Eu vos servirei até que vós mesma reconheçais ser preciso

recompensar-me. Permiti que vos ajude a montar."

Ela, porém o repeliu, dizendo: "Nada vos pedi! Vossa mão que ainda nada

realizou deveria estender-se para uma prenda mais modesta." Dito isso ergueu-se

da relva florida e montou de um salto. A seguir ordenou que seguisse à sua

dianteira. "Seria uma pena se tão respeitável companheiro de viagem se extraviasse

inadvertidamente", motejou ela. "Que Deus vos desampare!"

Segui meu conselho e abstende-vos de falar mal de uma mulher!

Ninguém deve fazer julgamentos precipitados. Para começar, devemos fundamentar

nossa reprovação e para tanto seria necessário saber o que lhe ia na alma. Eu

poderia declará-la culpada, sem mais nem menos. Mas não. O que fez e fará a

Galvão não merece reparos, mas compreensão.

390
A dominadora Orgeluse cavalgava em atitude tão hostil e inabordável em

direção a Galvão que a essa altura estou com poucas esperanças de que ela queira

ouvir-me. Juntos vinham eles atravessando um prado florido quando Galvão avistou

uma planta cujas raízes sabia terem virtudes curativas. O fidalgo apeou,

desenterrou-a e tornou a montar. A dama, que lhe vigiara os movimentos, não

perdeu a oportunidade de lhe observar: "Pelo que vejo meu companheiro de viagem

além de cavaleiro é médico. É, quando se vendem caixas para remédios não há por

que se preocupar em como ganhar a vida!"

Sem se amofinar Galvão explicou: "Encontrei um cavaleiro ferido, que

está descansando sob a ramada de uma tília. Caso venha a reencontrá-lo esta raiz

fará com que recupere as forças."

Ela respondeu: "Folgo em saber! Talvez venha a aprender também a arte

de curar."

3. A INSOLÊNCIA DE MALCREATURE

Naquele momento avistaram um escudeiro que se dava pressa em

alcançá-los a fim de transmitir uma mensagem urgente. Galvão resolveu aguardá-lo

e ao examiná-lo mais de perto verificou que era um modelo acabado de fealdade. O

orgulhoso escudeiro chamava-se Malcreature e a maga Cundrie era sua atraente

391
irmã. Tirante o fato de ser varão era um sósia perfeito da irmã. Também ele tinha os

caninos salientes como os de um javali selvagem, o que lhe dava um aspecto não

muito humano. Na verdade seus cabelos não eram tão compridos como os de

Cundrie, que se prolongavam até as costas da mula. Eram antes curtos e eriçados

como cerdas de ouriço. No país de Tribalibot, situado junto às águas do Ganges,

existiam criaturas desse tipo. Adão, nosso ancestral comum, recebera de Deus a

faculdade de dar nome a todas as coisas e criaturas, quer bravias, quer mansas.

Conhecia igualmente a natureza de todas as coisas, sem excluir mesmo a revolução

dos astros e a força de gravidade dos sete planetas. Conhecia, ademais as virtudes

de todas as plantas e sua utilização em cada caso particular. Quando suas filhas

atingiam a idade que as tornava aptas a conceber, ele as advertia contra os perigos

da intemperança. Quando uma filha engravidava dava-lhe conselhos acerca da

conveniência de evitar certas plantas capazes de provocar, nos descendentes,

alterações genéticas desonrosas para a espécie humana. "Elas modificam o padrão

que Deus nos conferiu no momento em que nos criou". E prosseguia, dizendo:

"Sede, pois atentas, queridas filhas, a fim de não comprometerdes vossa felicidade!"

Mas mulheres são sempre mulheres. Algumas esmoreceram e ao se

renderem à concupiscência geraram teratóides. Isso entristeceu Adão sobremodo.

Mas ele próprio se manteve fiel à sua maneira de pensar.

Nos domínios da Rainha Secundille, cuja mão e reino Feirefiz conquistara

mercê do seu valor de cavaleiro, viviam, provadamente desde tempos muito antigos,

numerosas pessoas portadoras de tais atavismos. Suas faces eram horrendamente

deformadas. Certa feita falou-se-lhe do Graal como sendo o bem supremo e cujo

guardião seria um certo rei chamado Anfortas. Isso lhe pareceu deveras estranho,

392
pois os leitos de muitos rios de seu reino eram recobertos de pedras preciosas ao

invés de cascalhos. Havia ali, além disso extensas serras auríferas. Por isso a nobre

rainha se pôs a conjeturar: "De que forma poderei obter informações sobre o homem

que reina sobre o Graal?" Enviou por isso ao rei desconhecido muitos trastes

preciosos, além de duas criaturas de aparência bastante estranha. Tratava-se de

Cundrie e de seu atraente irmão. Ofereceu ainda a Anfortas muitas outras coisas

que, dada a sua raridade, não podiam ser encontradas em parte alguma. O

generoso e afável Anfortas enviou a Orgeluse de Logroys o galante escudeiro

Malcreature. A lascívia feminina fora a responsável pelo fato de haver nascido de

forma tão diversa do restante dos homens. Foi esse rebento espúrio de ervas e

astros que se pôs a invectivar contra Galvão, que o aguardava à beira do caminho.

Malcreature vinha montado num débil matungo que manquejava das quatro pernas e

tropeçava a todo o momento. Até mesmo a senhora leschute vinha montada em

cavalo melhor, no dia em que Parsifal para ela reconquistara a estima de Orilus, que

havia perdido sem que da parte dele houvesse qualquer deslize. O escudeiro

Malcreature encarou Galvão e tomado de cólera dirigiu-se a ele aos gritos: "Se sois

efetivamente um cavaleiro, outro deveria ter sido vosso procedimento! Mas a mim

me pareceis simplório por levardes convosco minha ama assim, sem mais nem

menos. Por isso recebereis uma lição e dareis graças a Deus se conseguirdes

escapulir incólume desta enrascada. Mas se fordes apenas um peão então vosso

couro será castigado a porrete até que qualquer outra coisa vos pareça preferível!"

Galvão respondeu: "Ao longo de minha carreira de cavaleiro jamais

experimentei tais maus tratos. Vá lá que se moa a pancadas a malta vadia de

saltimbancos, que não tem como se defender. Eu, pessoalmente jamais passei por

393
semelhante experiência. Mas se pretenderdes insultar minha ama experimentareis o

que vos poderá parecer uma explosão de cólera. Por terrificante que seja vosso

aspecto, a mim não impressionam vossas ameaças." Ato contínuo agarrou-o pelos

cabelos e o arrancou da sela. Atemorizado, o nobre e precavido escudeiro ergueu

os olhos para Galvão mas suas cerdas vulnerantes de ouriço já o haviam

desagravado da ofensa recebida, pois feriram as palmas das mãos de Galvão,

deixando-as ensangüentadas. Deliciada com o ocorrido a dama motejou: "A mim

me diverte o que fazeis quando tomado de ira." Enquanto retomavam a marcha o

cavalo do escudeiro os seguia.

Eles chegaram ao local em que jazia o cavaleiro ferido. Enquanto Galvão

aplicava cuidadosamente as ervas medicinais à lesão o cavaleiro ferido lhe

perguntou: "Que houve contigo nesse meio tempo? Vejo-te acompanhado de uma

dama que o tempo todo de outra coisa não trata que não tramar tua ruína. A ela

cabe a culpa por me encontrar nesta situação. Em Av'estroit Mavoie174 fez com que

me envolvesse num combate arriscado, pondo em risco minha vida e meus bens. Se

tiveres amor à vida deixa que essa pérfida mulher siga só seu caminho. Aparta-te

dela! Olha para mim e constata do que ela é capaz! Para restabelecer-me

completamente necessito de tratamento e descanso. Para Isso, nobre varão,

gostaria de contar com tua ajuda!"

O senhor Galvão respondeu: "Podes dispor inteiramente de meus

préstimos!"

174
Av’Estroit mavole (Cave estroite malvolée). Francês arcaico, que pode ser traduzido como “grota
estreita e sombria”.

394
4. AS INFÂMIAS DE URIANS

"Existe nas proximidades um hospital", observou o cavaleiro ferido. "Se

conseguisse chegar até lá poderia convalescer com tranqüilidade. Ali está a vigorosa

montaria de minha amiga. Ajuda-a a montar e coloca-me na garupa."

Quando o bem-nascido varão desamarrou o cavalo da dama e tratou de

conduzi-lo ao local onde esta se encontrava o ferido gritou: "Não vos175 aproximeis!

Acaso pretendes atropelar-me de qualquer maneira?" Galvão avançou mais alguns

passos. Foi então que a dama, obedecendo a um gesto do homem, seguiu-os sem

se dar muita pressa. Enquanto Galvão tratava de pô-la na sela o cavaleiro ferido

montou célere no castelhano de Galvão e partiu com sua dama a galope. Na minha

opinião esse foi um procedimento sobremodo criminoso e indigno.

Enquanto Galvão manifestava indignação, sua dama tornou a rir, como se

o ocorrido lhe proporcionasse prazer muito especial. Quando a perda da montaria se

tornara um fato consumado sua boca mimosa voltou a falar-lhe em tom divertido:

"De início vos tomei como um cavaleiro, a seguir revelastes vossos dotes de médico

e agora, qual pajem, estais obrigado a seguir a pé. Se alguém tivesse que viver de

vossa arte então disporia de rendas polpudas. À vista disso vossa paixão por mim

ainda subsiste incólume?"

175
Tu/vós. A fidelidade do texto original exigiu que se mantivesse aqui freqüentes mudanças de
tratamento de “tu” para “vós”, aparentemente inexplicáveis.

395
"Certamente, minha senhora", respondeu Galvão. "Considero vosso amor

como aspiração suprema. Se me fosse dado escolher entre todas as riquezas deste

mundo, o poder sobre todos os suseranos e vassalos, obedeceria à voz do coração

preferindo vosso amor às riquezas. Se não puder conquistá-lo a morte não tardará

em levar-me. Vós aniquilais o que vos pertence. Embora tenha nascido livre, podeis

considerar-me de direito vosso servo. Chamai-me, portanto, consoante vos

aprouver, cavaleiro, escudeiro, pajem ou vilão, mas não esqueçais que incorreis em

pecado ao cobrir de opróbrios meus serviços de cavaleiro. Já que me foi dado servir-

vos devíeis abster-vos de tais sarcasmos. Embora essas atitudes não me

desgostem, elas abalam, contudo, vosso prestígio."

Naquele momento o cavaleiro ferido se aproximou deles e exclamou:

"Então tu és Galvão! Finalmente pude tirar desforra pelo que me fizeste! Tu me

aprisionaste depois de renhido combate e me conduziste ao castelo de teu tio Artur

onde, consoante suas expressas ordens, passei quatro semanas comendo no

mesmo cocho em que comiam os cães."

Galvão respondeu: "Ah, então tu és Urians! Ainda que queiras prejudicar-

me, sabe que não te causei mal algum. Ao contrário. Persuadi o rei para que te

concedesse clemência. Tua própria insensatez foi a responsável pelo fato de teres

sido privado da dignidade de cavaleiro e declarado um fora-da-lei, pois atentaste

contra a paz pública violando uma jovem. O Rei Artur te teria enviado à forca se não

intercedesse em teu favor."

"Isso não modifica o fato de estares a pé! Tu por certo conheces o ditado:

Bondade não protege contra a inimizade. Fiz o que faria qualquer pessoa esperta,

396
pois não seria admissível que um homem de barba crescida choramingasse feito

criança. Doravante o cavalo é meu!" Dito isso esporeou o cavalo e partiu a galope,

deixando para trás o indignado Galvão.

Galvão passou então a explicar à dama o ocorrido: “Os fatos aconteceram

do seguinte modo: Ao tempo o Rei Artur se encontrava em Dianasdrun,

acompanhado de numerosos bretões, quando ali uma dama se apresentou para

fazer uma representação. Esse fato coincidiu com a presença, na região, daquele

monstro que ali se encontrava em busca de aventuras. Embora tanto ele quanto ela

desfrutassem da condição de hóspedes junto a Artur, esse indivíduo repelente

deixou-se arrastar por seus maus instintos, violentando a dama. Quando a notícia

chegou à corte o rei nos convocou para uma expedição punitiva. Isso aconteceu

quando estávamos acampados à orla de uma floresta. Partimos incontinenti.

Adiantei-me aos demais, descobri a pista do culpado, aprisionei-o e o conduzi

perante o rei. Muito abatida a jovem nos acompanhou, pois o malfeitor lhe arrebatara

a virgindade sem antes lhe haver prestado serviços. Mas o que fizera à moça

indefesa trar-lhe-ia escasso proveito. Ele encontrou meu amo sumamente”.

indignado. O fidelíssimo Artur exclamou: O mundo inteiro deve lamentar esse infame

delito! Maldito o dia em que isso aconteceu e justo no meu reino onde sou

mantenedor do Direito. Vejo-me, pois compelido a julgar esse ato de violência! E

voltando para a dama disse: 'Sede precavida! Pedi a palavra e levantai a queixa!"

"A dama não se fez de rogada, seguindo prontamente o conselho do rei.

Quando Urians, o príncipe de Punturtoys, era conduzido perante o ínclito bretão, os

notáveis do reino se achavam reunidos em torno dele. Tratava-se de uma questão

em que estavam em jogo a honra e a vida do acusado. A queixosa adiantou-se. Em

397
voz alta para que todos - pobres e ricos - pudessem ouvir, apresentou ao rei a

queixa, pedindo-lhe que em atenção à sua honra, em particular, e ao mundo

feminino em geral, vingasse o ultraje de que fora vítima. Lembrou-lhe os altos

objetivos da Távola Redonda e os motivos da queixa que ali estava apresentando.

Esperava que como juiz aceitasse sua representação e em atenção à sua causa

fizesse justiça. Dirigiu-se também aos membros da Távola Redonda, concitando-os

a se solidarizarem com ela já que a pureza virginal de que fora espoliada era um

bem para sempre perdido. Todos deveriam unir-se em favor de sua causa e instar

com o rei para que fizesse justiça."

"O acusado, cuja vergonha gostaria de ver multiplicada, escolheu um

representante que o defendeu com denodo sem que esse empenho resultasse para

ele em algum proveito. Foi declarado infame e condenado à morte. Ordenou-se

ademais que se fizesse um baraço no qual deveria morrer sem derramar o sangue.

Premido pela angústia pediu-me que o socorresse sob a alegação de que se

rendera confiando sua integridade física à minha proteção. Temi que com a

execução dele minha honra ficasse comprometida. À vista disso pedi à queixosa que

temperasse sua ira com a bondade feminina, em virtude de ela própria ter sido

testemunha da firmeza viril com que a desagravara. Ademais, seus encantos

poderiam ser apontados como causa determinante desse gesto impulsivo. Se algum

dia alguém, a serviço de uma dama, num assomo de paixão tenha pedido e obtido

seus favores, esse consentimento readquiriria dignidade se agora também vós

demonstrásseis magnanimidade!"

"Pedi então, ao rei e a seus paladinos que em consideração a meus leais

serviços preservassem minha honra de cavaleiro, concedendo clemência ao

398
malfeitor. Apelei igualmente à sua esposa, a rainha. Lembrei-lhe nossos laços

consangüíneos e o fato de ter sido criado pelo rei desde tenra idade. Lembrei-lhe

finalmente, minha imutável lealdade. Ela atendeu-me, conversando a sós com a

jovem. Foi assim, por intervenção pessoal da rainha, que Urians escapou da forca

mas teria que cumprir humilhante pena. Para expiar suas culpas foi condenado a

compartilhar, durante quatro semanas o cocho de comida com ventores e cães de

fila. Foi desse modo que se deu à dama reparação pelo agravo sofrido. Eis, senhora,

os motivos pelos quais se vingou de mim."

Ela disse: "Essa vingança está fadada ao fracasso. Isso não quer dizer

que agora podereis contar com minha simpatia. Antes de transpor as fronteiras de

meu país terá o que merece e isso numa medida que o levará a retirar-se daqui

coberto de ignomínia. Já que o rei, no devido tempo não o puniu, e a questão

passou à minha alçada, passei a ser protetora vossa e daquela dama, sem ao

menos saber quem sois. Na verdade será ele compelido a entrar na liça não por

vossa causa, mas em consideração à jovem desonrada. A golpes e estocadas será

punido esse delito abominável!"

5. OS MOTEJOS DE ORGELUSE

Galvão aproximou-se do cavalo e o apanhou sem qualquer dificuldade.

Enquanto isso sua companheira deu ao escudeiro que os havia seguido uma série

399
de instruções em língua paga. Depois de Malcreature haver partido a pé Galvão iria

se ver a braços com um sério problema.

O senhor Galvão examinou atentamente o rocinante do escudeiro. Estava

por demais combalido para enfrentar um combate. Nas suas andanças o escudeiro o

havia subtraído a um vilão. A Galvão não restou, pois, outra alternativa/ senão

aceitar o matungo como compensação pelo seu cavalo de batalha.

A dama perguntou-lhe com evidente malícia: "Perdestes a disposição

para prossegui caminho?"

O senhor Galvão respondeu: "Disponho-me a reiniciar a marcha

consoante vossos desejos."

Ela replicou: "Então certamente ireis esperar muito tempo até que vos

peça alguma coisa!"

"A despeito disso meus serviços se ajustarão a vossos desejos."

"Tenho a impressão de que estou tratando com um simplório. Se

persistirdes nesse intento não tereis vida fácil, mas um mundo de problemas pela

frente. Saireis de um embaraço para vos enredar em outro."

Mas o apaixonado varão não se deixou dissuadir: "Servir-vos-ei quer isso

resulte para mim em alegrias ou desencantos. O amor que vos tenho me determina

que persevere em vosso serviço, quer seja montado, quer a pé." Ao lado da dama

400
examinou atentamente a montaria. Era débil demais para ser engajada num

combate. Os loros eram de fibra grosseira. Em outros tempos o renomado varão

estivera mais bem equipado. Não se atreveu a montá-lo temendo que os arreios se

desmantelassem. De qualquer modo, se o tentasse, o cavalo desmoronaria sob seu

peso. À vista disso teve que desistir do intento e, contrariado, resignar-se a ele

próprio carregar lança e escudo. A dama se ria de sua penosa e deprimente

situação. Quando finalmente resolveu amarrar o escudo nas costas da montaria ela

observou ironicamente: "Pretendeis dedicar-vos em meu reino à profissão de

mascate? Quem foi capaz de me impingir inicialmente um médico e agora um

mascate como companheiro de viagem? Acautelai-vos a fim de que no decurso da

viagem não vos cobrem tributos. Meus fiscais de impostos talvez vos façam passar

por maus momentos."

Mas esses comentários azedos soavam aos ouvidos de Galvão como se

fossem amabilidades, de sorte que não se deu conta do sentido das palavras.

Bastava contemplá-la para se sentir no melhor dos mundos. Ela lhe parecia como a

florida estação de maio, que lhe enchia os olhos mas lhe ensombreava o coração.

Disso resultou que na sua presença se sentisse a um tempo livre e cativo: livre de

quaisquer preocupações e aprisionado nas algemas da paixão.

401
6. EXCURSO DO POETA ACERCA DAS COISAS DO AMOR

Muitas pessoas que merecem minha consideração afirmam que Amor,

Cupido e a mãe deles, Vênus, despertam nos humanos a paixão com flecha e fogo.

Um amor assim é sempre problemático. Mas daquele em cujo coração habita a

lealdade o amor jamais se aparta, mesmo quando não lhe traz apenas alegrias

como ainda alguns sofrimentos. Amor genuíno é lealdade autêntica. Teu raio, ó

Cupido, e tua flecha, ó senhor Amor, jamais me atingiram! Se vós dois e mais a

senhora Vênus tiverdes efetivamente o dom de abrasar de amor os corações então

devo dizer que jamais conseguistes colocar-me em apuros. Só aceito a noção de

amor verdadeiro se fundada na lealdade. Se minha arte pudesse socorrer alguém

ralado de penas de amor eu ajudaria Galvão sem lhe cobrar coisa alguma, pois

simpatizo com ele. Não considero vergonhoso o fato de ele se achar tão

inteiramente entregue à sua paixão. Mesmo apaixonado e abalado em suas forças,

dispõe ele de reservas morais suficientes para não se deixar dominar nem sucumbir

aos apelos voluptuosos de uma mulher.

Atacai mais de perto, senhor Amor, com vossa capacidade aliciadora.

Atingireis tão duramente a felicidade que esta se prostrará confusa e insegura. A

desgraça terá então o caminho livre para expandir-se. Se o Amor não fizesse caso

dos corações orgulhosos, não teria prestígio algum. Ele parece estar acima daquela

idade em que nos comprazemos com os nossos próprios malfeitos. Ou pretende ele

na sua ingenuidade ferir corações e a seguir desculpar-se, alegando falta de

402
experiência? Quanto a mim prefiro tolerar seus excessos na juventude a acreditar

que a idade lhe faça criar juízo. Muitas ele já aprontou! Devo atribuir isso aos

arroubos juvenis ou à prudência da idade? Seu prestígio estará comprometido se ele

quiser subverter a circunspeção da idade com a imprudência juvenil. Conviria que

fosse melhor esclarecido acerca dessas coisas. Enalteço o amor autêntico e nisso

qualquer mulher ou homem de bom senso concordará comigo. Quando duas

pessoas se amam de fato, quando uma e outra abrem espontaneamente seus

corações com a chave de um sentimento autêntico, então estamos diante de um

verdadeiro caso de amor. Por mais que queira poupar o senhor Galvão dessas

vicissitudes não poderá ele esquivar-se das leis do amor. De resto, que proveito lhe

trará a intromissão de minha retórica? Não convém a um bravo subtrair-se aos

impulsos da paixão, pois estes farão dele um vitorioso.

7. GALVÃO DIANTE DO CASTELO ENCANTADO

O amor traria a Galvão dissabores de toda a sorte. Para começar, ele

vinha a pé e sua dama a cavalo. Orgeluse e o bravo varão atingiram a orla de uma

grande floresta. Galvão continuava seguindo a pé. Foi quando ele conduziu o cavalo

junto a um toco, pendurou ao pescoço o escudo, que até então estivera à garupa do

animal, e montou. O cavalo arrastou-se penosamente até o outro lado da floresta,

onde se deparava uma região habitada. Ali avistou um castelo. Seus olhos e sua

prática da vida o convenceram de que nunca havia visto um castelo de tal

403
magnitude. Era verdadeiramente magnífico, com numerosas torres e palácios.

Observou ainda que nos vãos das janelas havia bem umas quatrocentas damas ou

mais, havendo entre elas quatro de nobilíssima estirpe.

A larga estrada carroçável por que ele e sua dama vinham seguindo

conduzia a um rio caudaloso e navegável. Junto ao cais estendia-se uma campina

que era o local onde costumeiramente eram realizadas as justas. Na margem oposta

do rio erguia-se o castelo.

8. O DUELO ENTRE GALVÃO E LISCHOYS

Galvão, o expedito guerreiro, percebeu que vinham sendo seguidos por

um cavaleiro que tinha fama de incansável no manejo do escudo e da lança. Cheia

de desdém a imponente Orgeluse dirigiu-se a Galvão nestes termos: "Tereis que

admitir que cumpro o que prometo, pois vos preveni seguidamente que aqui

sofreríeis humilhante derrota. Tratai pois de defender vossa pele, pois não há quem

vos possa socorrer. Aquele que célere se aproxima de vós abater-vos-á de forma

tão brutal que tereis sobejos motivos para entrar em pânico. Para vós será motivo de

grande embaraço a presença daquelas damas que lá do alto assistirão à vossa

derrota!"

404
A um chamado de Orgeluse o piloto encostou o barco e para o grande

desgosto de Galvão a dama embarcou com seu cavalo. Colérica, a imponente, a

nobilíssima dama ainda o repeliu aos gritos: "Não pisareis neste barco, pois ali

devereis permanecer como refém!"

Entristecido Galvão exclamou: "Senhora, por que vos dais pressa em

deixar-me? Será que não vos tornarei a ver?"

Ela respondeu: "Se fordes vitorioso no combate, tomareis a me ver. Mas

acredito que esse dia custará a chegar." E dizendo isso partiu.

Entrementes Lischoys Gwelljus vinha-se aproximando. Na verdade

mentiria se dissesse que vinha voando. O certo é que vinha avançando tão

rapidamente através da planície verdejante que o desempenho de sua montaria

mereceria ser louvado. O senhor Galvão avaliou a situação: "Como poderei enfrentar

esse homem - a pé, ou montado neste matungo? Com o ímpeto com que vem

arremetendo, derribar-me-á irremediavelmente. Por outro lado não pode ser

descartada a possibilidade de que seu cavalo venha a tropeçar no meu matungo e,

em conseqüência, sermos descavalgados. Se depois disso ele insistir num combate

a pé, tê-lo-á, embora a essa altura já não mais possa contar com a presença

estimulante da dama que me envolveu nesta situação."

O choque se tornara inevitável - pois o cavaleiro que vinha avançando era

tão bravo e destemido quanto o que o estava aguardando - e Galvão ficou em

guarda. Apoiou deliberadamente a extremidade obtusa da lança no feltro do arção

dianteiro da sela, de sorte que no entrechoque as lanças se partissem e ambos

405
fossem atirados ao chão. O mais bem montado desequilibrou-se e caiu ao lado do

senhor Galvão sobre a relva florida. E qual foi a reação dos dois? Ergueram-se de

um salto e lançaram mão das espadas. Os escudos, que são a efetiva salvaguarda

dos combatentes, foram impiedosamente retalhados, e o que lhes ficou na mão era

pouco mais que nada. As espadas reluziam e os elmos falseavam. Aquele a quem

no fim das contas coubesse a vitória, com a ajuda de Deus, poderia julgar-se um

afortunado, pois o combate se prolongou renhido por muito tempo e com fortuna

vária sobre o amplo espaço da campina. Até mesmo dois robustos ferreiros teriam

aos poucos apresentado sinais de cansaço depois de desferir tantos e tão violentos

golpes. Ambos buscavam obstinadamente a vitória. Mas fariam eles jus a encômios

pelo simples fato de se digladiarem e modo tão insensato e sem motivo, visando

apenas a glória? Entre eles não havia qualquer litígio ou motivo especial para porem

suas vidas em jogo. Nenhum dos dois tinha culpa ou motivo que justificasse o

ataque do outro.

Galvão era um combatente de escol, que entendia como ninguém da arte

de dominar o adversário, lançando-o por terra. Quando conseguia insinuar-se sob a

arma do adversário e agarrá-lo pelo braço, então este ficava à sua mercê. Como

lutava pela vida, tratou de se defender. O nobre e intrépido herói agarrou o bravo e

não menos vigoroso jovem pelos quadris e num rápido impulso o arremessou ao

chão. A seguir, exclamou: "Herói, rende-te se tiveres amor à vida!"

Embora subjugado Lischoys não estava preparado para admitir a derrota.

Parecia-lhe inadmissível que alguém pudesse superá-lo em força física e compeli-lo

à rendição. Até então havia sido ele quem obrigara o adversário a se declarar

vencido. A despeito disso não estava disposto a pagar o preço que tantas vezes

406
exigira dos outros. Preferia morrer a entregar-se. Acontecesse o que lhe

acontecesse, não se submeteria. Para ele a morte parecia o preço a pagar pela

derrota.

O vencido declarou: "Venceste! Enquanto Deus houve por bem conceder-

me bom êxito, fui vencedor. Agora tuas mãos viris derribaram o monumento de

minha fama. Quando correr a nova de que aquele cuja fama resplandecia tão

intensamente foi derrotado, prefiro morrer antes que essa notícia venha a entristecer

meus amigos."

Embora Galvão reiterasse a exigência de submissão persistiu ele na

decisão de perder a vida mediante uma morte rápida. Galvão refletiu: "Por que devo

eu tirar a vida a este homem? Se no mais se ativer às minhas ordens, conviria deixá-

lo partir são e salvo." Por mais que Galvão insistisse na exigência de submissão o

outro se manteve inflexível na negativa. Permitiu, pois que o guerreiro se levantasse

e ambos se sentaram na relva. Galvão ainda não havia esquecido o desgosto que

lhe causara o cavalo doentio. Isso lhe despertou a idéia de montar o cavalo de

batalha do adversário a fim de avaliar seu desempenho. O animal se achava muito

bem equipado para o combate. Sobre a cota de malhas trazia uma coberta de seda

e veludo. Ele o havia conquistado. Por que não haveria de montá-lo se lhe pertencia

por direito de conquista? Ao montá-lo, partiu em tão fogoso galope que seus largos

saltos encheram de alegria o cavaleiro. Ele exclamou: "És tu, Grinjuljete, que Urians

perfidamente me subtraiu para sua desonra, como ele bem o sabe? Quem foi que te

muniu de equipamentos tão diferentes? Se de ti se trata efetivamente, então foi

Deus que na Sua nunca desmentida bondade, te trouxe de volta!" Ele desmontou e

reconheceu o cavalo devido a certa marca característica. É que na sua anca se via,

407
impressa a ferrete, uma pomba- o símbolo heráldico do Graal. Ele pertencera ao

senhor de Prienlascors, morto em combate por Lahelin. Tempos depois passara

para as mãos de Orilus que na campina de Plimizoel o oferecera a Galvão. Seu

desânimo cedeu lugar à expectativa confiante. Entristecia-o apenas a lembrança de

sua dama, a quem se sentia ligado pela lealdade a despeito do tratamento indigno

que lhe era dispensado. Para ela se voltavam todos os seus pensamentos.

Repentinamente o orgulhoso Lichoys se ergueu de um salto e agarrou a

espada que Galvão, o insigne guerreiro, lhe arrebatara. Esse segundo encontro

também se travou com numerosas damas assistindo ao embate. Os escudos

estavam tão despedaçados que ambos os deixaram de lado ao reiniciarem o

combate. Animados e resolutos partiam um sobre o outro. Do alto do palácio -

sentadas junto às janelas -, numerosas damas assistiam ao combate que se

desenrolava ante seus olhos. Ambos eram de nobilíssima estirpe e estavam

dispostos a não permitir que o outro deslustrasse o renome que havia conquistado.

Elmos e espadas eram agora muito mais solicitados, de vez que representavam a

única proteção contra golpes mortais. Tornava-se evidente para quem os

observasse que um e outro se defrontava com adversário à altura.

Lischoys Gwelljus era jovem vistoso. Seu coração sedento por fama o

impelia a perpetrar memoráveis façanhas. Seus golpes coriscavam quais raios.

Agilmente se esquivava de Galvão para, a seguir, retomar a iniciativa do ataque.

Galvão se mantinha imperturbável e dizia com seus botões: "Se conseguir agarrar-te

pagarás todos os teus pecados!" Viam-se faíscas saltar e as espadas conduzidas

por mãos vigorosas relampejavam ao sol. Os combatentes recuavam e avançavam.

No fundo digladiavam-se sem motivo e melhor fariam se desistissem do confronto.

408
Foi então que o senhor Galvão conseguiu agarrar o adversário e o arremessou ao

chão. Quanto a mim, prefiro evitar essas intimidades para não sentir na própria pele

tais experiências.

Galvão exigiu uma vez mais que se rendesse, mas Lischoys, que jazia

sob ele, se recusou, a exemplo do que ocorrera após o primeiro combate. Ele disse:

"Estás perdendo teu tempo comigo! Ao invés de submissão ofereço-te minha vida.

Deixa que tua valente destra aniquile minha fama. Deus me amaldiçoou, pois minha

reputação se desvaneceu. Para obter o amor da nobre Duquesa Orgeluse arrebatei

de muitos bravos guerreiros a fama de que desfrutavam. Engrandecerás tua

reputação se puseres fim aos meus dias!"

O filho do Rei Lot se pôs a pensar: "Isso definitivamente não farei!

Comprometerei meu bom nome se matar esse intrépido guerreiro sem motivo. O

amor, o mesmo sentimento que me domina e entristece, o impeliu a se confrontar

comigo. Por que não poupá-lo por amor a ela? Se for meu fado conquistá-la, nada

poderá ele fazer para impedi-lo. Se ela assistiu ao nosso duelo terá de admitir que

sei servir para merecer amor." E em voz alta exclamou: "Em consideração à

duquesa, eu te concedo a vida!"

409
9. HÓSPEDE DO BARQUEIRO

Ambos estavam exaustos. Ele permitiu que o adversário se levantasse e

ambos se sentaram então, mas bem distantes um do outro. Naquele momento o

proprietário do barco pisou em terra. Sobre o punho trazia uma fêmea de gavião, de

cor acinzentada. A ele assistia o direito de reclamar, como espólio, a montaria do

vencido nas justas realizadas naquela campina. Em troca disso devia inclinar-se

agradecido perante o vencedor e anunciar em voz alta seu triunfo. Esse tributo pelo

uso de sua campina florida era o único e o mais vantajoso rendimento que tirava da

terra, além das cotovias de poupa que sua fêmea de gavião abatia. Era disso que

tirava seu sustento e vivia até razoavelmente. O barqueiro era de estirpe cavaleirosa

e de fino trato. Aproximou-se, pois de Galvão e lhe pediu polidamente o pagamento

do tributo pelo uso da campina. Mas o bravo Galvão declarou: "Senhor, nunca fui

comerciante! Dispensai-me, pois desse tributo!" O proprietário do barco replicou:

"Muitas damas poderão testemunhar que coube a vós a vitória. Não podereis pôr em

dúvida meu direito. Concedei-me pois, senhor, a recompensa a que faço jus. Em

combate honesto conquistastes para mim este cavalo e para vós próprio a vitória.

Vossa mão derribou aquele que até este dia era tido em conta como o campeão

mais famoso do mundo. Vossa vitória foi interpretada por ele como uma intervenção

de Deus e o precipitou no desespero. Com razão podeis considerar-vos um homem

afortunado!"

410
Galvão argumentou: "Foi ele que inicialmente me derribou e só depois lhe

paguei com a mesma moeda. Se for preciso pagar algum tributo pela justa que aqui

se travou cobrai-o dele, senhor, ali está o pangaré que me arrebatou na luta. Ficai

com ele se assim vos aprouver! Mas este cavalo é meu. Montado nele partirei daqui,

mesmo se não mais conseguirdes qualquer cavalo. Invocais vosso direito, mas seria

injusto ficardes com ele e deixar-me partir a pé. Pesar-me-ia sobremodo ver este

cavalo em vosso poder. Ainda hoje pela manhã era minha propriedade incontestável

e já que vos apraz estender tão simplesmente a mão, vos conviria mais um cavalo

de pau. Foi Orilus, o borgonhês, que mo presenteou. A seguir Urians, o príncipe de

Punturtoys mo roubou. Mais fácil seria uma mula parir para vós um potro. Mas eu

ressarcirei de outro modo. Ficai com este cavaleiro que me ofereceu combate, caso

vos pareça uma compensação condigna. Pouco se me dá se essa solução for ou

não do agrado dele."

O barqueiro gostou da proposta e disse, rindo: "Nunca recebi tão rico

presente. Apenas estou em dúvida sobre se convém aceitá-lo. Entretanto, senhor,

se concordardes em ser o fiador desta transação considerarei minha exigência mais

que satisfeita. Na realidade é ele um campeão tão renomado que não o trocaria nem

mesmo por quinhentos velozes e vigorosos cavalos porque não atingiriam a quantia

que ele vale. Mas se de fato pretendeis enriquecer-me então procedei como

cavaleiro e tratai de pô-lo no barco, se puderdes."

Então o filho do Rei Lot assim falou: "Conduzi-lo-ei como vosso prisioneiro

ao barco e de lá à vossa casa!"

411
"Isso me agradaria sobremodo", assegurou-lhe o barqueiro, que

agradecido se esmerava nas mesuras e a seguir rematou: "Meu caro senhor,

descansai esta noite em minha casa. Dispensar-me-íeis uma consideração jamais

recebida por outro homem do meu ofício! Serei considerado um felizardo por me ter

sido permitido hospedar tão digno cavaleiro."

O senhor Galvão respondeu: "O que me ofereceis é o que iria pedir-vos.

Estou deveras exausto e necessito de descanso. Aquela que me fez passar por este

transe é capaz de tornar amarga qualquer doçura, afugentar toda a alegria dos

corações e enchê-los de desalento. Em recompensa nem é bom falar. Onde

esperava ganhar, perdi. Enquanto vivia feliz e seguro do apoio de Deus, meu

coração vendia alegrias. Mas agora arrefeceu e talvez deixou de existir! Aonde

poderei obter apoio? Se ela fosse uma mulher autêntica deveria multiplicar minha

felicidade depois de me haver lançado em tantas aflições."

Ao perceber que Galvão se debatia nas frustrações de um amor não

correspondido, o barqueiro observou: "Senhor, aqui na campina, na floresta e em

toda a parte em que reina Clinschor176 as coisas se passam desse modo: hoje triste,

amanhã alegre. E uma situação que nem a poltronice nem a máscula determinação

conseguem modificar. Pelo visto não sabeis que este país, como um todo, é fruto de

um sortilégio único e que, quer de dia, quer de noite, mesmo o mais intrépido

necessita de um pouco de sorte. Mas o sol já está prestes a se pôr. Embarcai,

senhor!"

176
Clinschor aparece aqui como poderoso feiticeiro, que, em seu “Castelo Encantado”, mas mantém
prisioneiras 400 nobres damas que como adiante se verá – são resgatadas por Galvão. Clinschor existiu de fato.
No concurso de trovadores patrocinado em 1205 pelo Landgrave Hermann da Turíngia e pela esposa desde,
Santa Isabel, no castelo de Wartburgo, Clinschor foi vencido pelo autor deste poema num concurso de enigmas.
Essa experiência levou Wolfram von Eschenbach, a fazer dele uma das personagens de sua epopéia. Na obra
homônima de Wagner aparece com a grafia do nome ligeiramente modificada – Klingsor. N.T.

412
Ao atender ao chamado do barqueiro, Galvão tratou de embarcar também

Lischoys, seu adversário, que obedeceu resignado, sem fazer objeções. O barqueiro

puxou atrás de si o cavalo. Ao desembarcarem na margem oposta o barqueiro disse

a Galvão em tom obsequioso: "Procedei como se estivésseis em vossa casa!" Em

Nantes onde permanecia por mais tempo, Artur não poderia desejar casa mais

vistosa. Galvão introduziu Lischoys e a criadagem tratou de pô-los à vontade. O

anfitrião disse à filha: "Trata deste meu amo de modo que se sinta bem à vontade.

Conduze-o ao seu quarto e serve-o dedicadamente, pois lhe devemos muitos

favores." Ao seu filho determinou que tomasse conta de Gringuljete. Com toda a

docilidade a jovem tratou de cumprir as recomendações paternas. Acompanhado

pela jovem Galvão dirigiu-se à kemenate, cujo assoalho achava-se coberto de flores

e de folhas de junco havia pouco colhidas. Depois de havê-lo aliviado da armadura,

Gaivão disse à atraente jovem: "Deus vos pague, senhora, as atenções que me

dispensastes. Se não fosse vontade expressa de vosso pai teria preferido dispensar

a ajuda que me prestastes."

Ela respondeu: "Eu vos sirvo unicamente para merecer vossa estima e

não por outras razões."

O filho do anfitrião, um escudeiro, trouxe macias almofadas e as encostou

na parede oposta à porta. Diante delas estendeu um tapete. Este devia ser o local

de descanso de Galvão. O solícito escudeiro trouxe, além disso, um forro de tafetá

vermelho. A cama do anfitrião também vinha sendo preparada. Um segundo

escudeiro trouxe pão e um forro de mesa. Tudo que vinha sendo feito decorria de

instruções explícitas do anfitrião. A essa altura chegava a anfitriã dando a Galvão

413
cordiais boas-vindas e dizendo: "Fizestes de nós pessoas abastadas. Senhor, a

sorte nos favoreceu."

Com a chegada do anfitrião, vinha também o jarro para as abluções.

Lavadas as mãos, Galvão pediu por companhia: "Permiti que essa jovem me faça

companhia à mesa."

"Senhor, ela não deveria partilhar a mesa com fidalgos ou sentar-se a

vosso lado. Temo que se torne excessivamente travessa. Mas lhe devemos muitos

favores. Filha, com minha permissão, atende ao pedido que lhe foi feito."

Embora enrubescesse, constrangida, a meiga jovem atendeu à

recomendação do anfitrião. A jovem Bene sentou-se, pois, ao lado de Galvão. Além

dela tinha o anfitrião mais dois filhos vigorosos e bem-criados. Justo naquela tarde, a

fêmea de gavião havia abatido três cotovias de poupa que agora eram servidas a

Galvão regadas ao molho. A jovem não se descurou de lhe preparar, com suas

brancas mãos, sobre uma fatia de pão de trigo cortada em tabletes, saborosos

petiscos. A seguir, observou: "Passai uma dessas aves assadas à minha mãe, pois

ela ainda não se serviu."

Passando a cotovia de poupa à anfitriã ele disse que estaria sempre

pronto a atender qualquer coisa que pedisse. Cortesmente todos se inclinaram

diante de Galvão e o anfitrião não se esqueceu de lhe agradecer.

A seguir o filho do anfitrião trouxe beldroega e salada de alface

temperados com vinagre de vinho. Tais iguarias não são as mais indicadas para

414
conservar as forças e não será seu consumo que fará as faces mais coradas. A cor

sadia do rosto proveniente de uma alimentação adequada é algo evidente por si

mesma. Em compensação os cosméticos que visam ocultar a verdadeira aparência

raramente merecem encômios. Penso que o verdadeiro brilho de uma mulher resulta

de sua autenticidade.

Se Galvão pudesse viver de favores podia declarar-se satisfeito. Mãe

alguma desejaria ver seu filho mais bem alimentado que o anfitrião, seu hóspede.

Depois de levantada a mesa a anfitriã se retirou. Enquanto isso tratou-se de

preparar o leito para que Galvão pudesse repousar. Revestiu-se um travesseiro de

plumas com forro de veludo. Não se tratava de veludo autêntico, mas apenas de

imitação. Para maior comodidade de Galvão muniu-se o leito de um acolchoado de

seda, embora nele não se pudesse vislumbrar qualquer vestígio de bordado a fio de

ouro, um luxo que só podia ser obtido na distante terra dos pagãos. Sobre ele foram

estendidos dois macios lençóis de Unho, além de um travesseiro e do casaco novo

de arminho branco da jovem. O anfitrião se despediu e tratou de se recolher ao leito.

Foi-me dito que a jovem teria ficado com ele a sós. Mas ainda que lhe houvesse

pedido alguma coisa esta dificilmente deixaria de atendê-lo. Contudo fez jus ao

descanso. Que durma, pois e que Deus o guarde, pois o novo dia não tardaria em

nascer.

415
LIVRO XI

1. O CASTELO ENCANTADO DE CLINSCHOR

A grande fadiga fez com que Galvão caísse logo em sono profundo e

dormisse até o amanhecer do dia seguinte. Ao despertar o herói percebeu que um

dos lados da kemenate era provido de numerosas janelas envidraçadas. Uma

dessas janelas estava aberta e dava acesso a um pomar. Entrou no jardim para

conhecer o local mais de perto, respirar o ar puro e deleitar-se com o canto dos

pássaros. Mal se havia sentado quando avistou o castelo que vira na véspera, por

ocasião do combate com Lischoys. Nos cimos do castelo avistou muitas damas,

algumas de marcante beleza. Estranhou o fato de estarem acordadas numa hora em

que era para estarem dormindo, pois não se fizera dia claro. Ele pensou: "Em

homenagem a elas vou voltar para a cama!" Deitou-se e se cobriu com o manto da

jovem, que lhe servia de coberta. Alguém o despertaria? Não, pois isso desagradaria

ao anfitrião.

Entrementes a jovem que dormira ao lado da mãe despertou e subiu de

mansinho para o alojamento do hóspede a fim de lhe fazer companhia. Como este

416
ainda estivesse dormindo, a jovem não se descurou de seus deveres, sentando-se

no tapete, diante da cama.

Decorrido algum tempo Galvão despertou, contemplou-a sorrindo e lhe

disse: "Deus vos pague, senhorita, por haver interrompido vosso sono por minha

causa, um sacrifício que de resto, não mereço."

A atraente jovem lhe disse então: "Não me convém dispor de vossos

serviços. Basta-me a certeza de vossa estima. Disponde de mim, senhor. Farei o

que desejardes. Tendo em conta vossa liberal idade meu pai e todos os seus

dependentes - minha mãe e nós, seus filhos -, acatar-vos-emos como nosso amo."

Ele então perguntou: "Estais aqui há muito tempo? Se tivesse notado

vossa presença ter-vos-ia feito uma pergunta caso vos aprouvesse a ela responder.

Foi-me dado observar ontem e hoje a presença de numerosas damas no alto

castelo. Poderíeis ter a gentileza de me dizer quem são?"

Atemorizada a jovem pediu-lhe: "Senhor, sobre isso não me façais

perguntas. Minha boca permanecerá calada. Sei na verdade de quem se trata, mas

em virtude do sigilo a que estou obrigada nada poderei vos revelar. Não repareis

nisso e perguntai-me sobre outras coisas. Este é o meu conselho, que faríeis bem

em seguir."

Mas Galvão não se deixou persuadir e insistiu em saber o que se passava

com aquelas damas sentadas nos cimos do palácio. A jovem, que lhe queria bem,

começou a chorar e a se lamentar em altas vozes. Embora ainda fosse bastante

417
cedo o pai apareceu inesperadamente. A ele não pareceria coisa reprovável se

Galvão tivesse submetido a jovem às suas vontades. O comportamento dela fazia

supor a ocorrência de algo semelhante, de vez que se achava sentada próximo ao

leito de Galvão. Mas o pai não parecia estar zangado, pois lhe disse: "Não chores,

filha! O que se faz de modo irrefletido deve ser aceito com resignação embora nos

tenha indignado a princípio."

Mas Galvão tratou de explicar as coisas: "Aqui nada aconteceu que

quiséssemos esconder de vós. Apenas fiz à jovem uma pergunta cuja resposta

pareceu-lhe encerrar um perigo para mim. Por isso pediu que a dispensasse de lhe

responder. Daí querer, caso não viesse a vos desgostar, que me explicásseis os

fatos desconcertantes que envolvem as damas lá em cima. Seria uma maneira de

me retribuir os serviços que vos prestei. Em parte alguma foi-me dado ver tantas

damas tão encantadoras e tão bem ataviadas."

O anfitrião torceu as mãos e exclamou: "Senhor, por amor de Deus não

me façais perguntas sobre esse assunto. Não há maneira de descrever a miséria

que reina lá em cima."

"Apesar disso não posso deixar de lamentar a triste situação em que elas

se encontram" exclamou Galvão. "Senhor, dizei-me sem rodeios, por que a pergunta

vos causa tanto embaraço?"

"Senhor, se como homem de notável coragem que sois, persistirdes

nessa indagação, acabareis sabendo de mais alguma coisa a respeito. Mas com

418
isso assumireis uma terrível carga de preocupação e arrebatareis todas as alegrias a

mim e a meus filhos, que nasceram para vos servir."

Galvão disse: "Insisto em sabê-lo. Mas se persistirdes em me ocultar o

que sabeis acharei uma maneira de passar essa história a limpo." O honrado

anfitrião respondeu: "Senhor, pesa-me sobremodo vossa decisão em obter uma

resposta. Armai-vos portanto para o combate. Emprestar-vos-ei um escudo. Estais

em Terre Marveile177. Aqui encontrareis também o Lit Marveile178. Senhor, até agora

ninguém foi bem-sucedido na prova de Schastel Marveile179. Se a tentardes achareis

a morte. Apesar de saber-vos provado em aventuras devo dizer que tudo o que até

agora vos aconteceu não passa de brincadeira de criança."

Galvão declarou: "Jamais perdoaria a mim mesmo se daqui partisse

calmamente, sem ao menos ter procurado informar-me melhor acerca da sorte

daquelas damas. Delas já tinha ouvido falar. Agora que me acho aqui, próximo ao

local em que elas se encontram, estou propenso a quebrar lanças por elas."

O honrado anfitrião, lamentando sinceramente essa decisão, declarou:

"Não há risco comparável aos perigos que se ocultam nessa aventura. Eles são bem

reais e gravíssimos, podeis crer-me, pois não sei mentir."

O renomado Galvão não se deixou atemorizar e disse: "Dai-me, pois

vosso conselho para enfrentar esse combate. Com vossa permissão e com a ajuda

de Deus pretendo realizar aqui um autêntico feito cavaleiroso. Ser-vos-ei sempre

177
Terre Marvele. Francês arcaico. País encantado
178
Lit Marvele. Francês arcaico. Cama encantada.
179
Schastel Marveil. Palavra do francês arcaico germanizada: chateau. Castelo encantado

419
grato por vossos conselhos e instruções. Contudo, senhor anfitrião, seria agir de

modo pouco digno se partisse daqui sem ter feito coisa alguma. Amigos e desafetos

ter-me-iam em conta de um polirão."

Com isso aumentaram ainda mais as lamentações do anfitrião, que nunca

havia passado por tão dolorosa experiência. Ao seu hóspede ele disse: "Se com a

ajuda de Deus escapardes da morte então vos tomareis soberano deste país. Muitas

damas são mantidas ali em cativeiro, arrastadas que foram por poderoso sortilégio.

Muitos escudeiros e dignos cavaleiros tentaram resgatá-las, visando com isso dilatar

sua fama. Mas todos falharam. Se vosso braço forte as libertar, conquistareis fama

extraordinária e podereis com razão agradecer a Deus. Sereis então, o amo

afortunado de todas essas belíssimas damas oriundas de muitos países. Mas ainda

que partísseis sem ter arriscado a perigosa aventura, ninguém poderia vos

subestimar, posto que Lischoys Gwellyus teve que vos entregar sua fama de

cavaleiro. Com razão devo saudar esse jovem simpático como autor de muitas

façanhas. Tirante Ither de Gaheviez, a força divina jamais instilou no coração de um

homem tantas virtudes. Ontem transportei na minha barca aquele que matou Ither

de Gaheviez diante de Nantes. Deixou-me cinco corcéis que haviam sido montarias

de duques e reis. Que Deus lhe conceda boa fortuna. Em Pelrapeire é enaltecida

sua fama de campeão, por haver lutado pela segurança da cidade. Seu escudo

exibia as marcas dos muitos combates que travou. Ele esteve aqui procurando pelo

Graal."

"Que direção tomou ele?", quis saber Galvão. "Já que passou tão perto da

aventura que aqui desafia a quem queira enfrentá-la dizei-me, senhor anfitrião, se

ele se inteirou desses fatos."

420
"Não, senhor, ele de nada soube. Tratei de lhe ocultar esse fato.

Procederia mal se lho dissesse. Se não vos ocorresse indagar a respeito, de mim

jamais teríeis sabido do que aqui se passa - um sortilégio sinistro que envolve

fenômenos de fazer medo em qualquer um. Se não fordes bem-sucedido eu e meus

filhos seremos expostos a um sofrimento que até aqui não experimentamos. Mas se

a vós couber a vitória reinareis sobre este país e minha pobreza terá chegado ao

fim. Espero então ser distinguido por vós com ricas prebendas. Se a morte vos

poupar, gozareis após a vitória de uma ventura imune a qualquer sofrimento. Armai-

vos portanto para uma luta cheia de riscos."

Galvão, que ainda estava desarmado, exclamou: "Trazei minha

armadura!" O anfitrião a trouxe sem mais delongas e a meiga e atraente jovem

tratou então de armá-lo dos pés à cabeça enquanto o pai cuidava do cavalo. Na

parede achava-se pendurado um escudo, sólido e reforçado, que iria ser a salvação

de Galvão. Ao lhe serem entregues escudo e cavalo o anfitrião, que ali também se

achava presente, disse-lhe: "Senhor, permiti que vos aconselhe sobre como agir na

situação do extremo perigo que vos aguarda. Usai este meu escudo! Nunca foi

tocado por lança ou espada, pois trato de me manter distante da luta. Não

apresenta, por isso, qualquer arranhão. Senhor, ao ali chegar deixai o cavalo aos

cuidados do mascate que está sentado diante do portão do castelo. Comprai dele

qualquer coisa. Vosso cavalo será bem cuidado e ficará como penhor da mercadoria

que escolherdes. Se regressardes são e salvo recebê-lo-eis de volta sem mais

delongas."

"Não conviria entrar ali montado?", indagou o senhor Galvão.

421
"Não, senhor! Todas aquelas atraentes damas serão invisíveis para vós.

O perigo far-se-á presente a partir do momento em que penetrardes no castelo.

Encontrareis o palácio deserto e sem vida. Tão logo ponhais o pé na kemenate onde

se encontra o Lit Marveile necessitareis da ajuda de Deus. Toda a riqueza e a

própria coroa do Mahmumelin de Marrocos180 não atingiriam seu peso caso se

quisesse colocar ambos nos pratos da balança. Nele tereis que padecer o que Deus

vos reservou. Que Ele conceda um feliz desfecho à vossa aventura. Senhor, cuidai

para que durante toda a prova este escudo e vossa espada jamais vos escapem das

mãos. É que quando supuserdes que o pior já tenha passado será então que a

verdadeira peleja irá começar."

Quando Galvão montou a tristeza da jovem se tornou evidente. Os

demais presentes também não disfarçaram seu pesar. Galvão disse ao anfitrião: "Se

Deus quiser terei oportunidade para retribuir vossos leais serviços." Despediu-se da

jovem, cujo grande pesar era compreensível. Os demais se deixaram ficar ali, tristes,

vendo-o se afastar.

2. OS TERRORES DO CASTELO ENCANTADO

Se agora vos aprouver ouvir a história de Galvão daqui em diante, terei

prazer ainda maior em vô-la contar e isso do mesmo modo como me foi transmitida.

180
Mahmumelin. (Amir ou Emir-al-Muminin – comendador dos crentes). Título usado por vários califas
árabes e particularmente pelos soberanos de Marrocos que pretendem deter sobre ele um direito histórico.

422
Ao chegar ao portão deparou com o mascate, com sua tenda bem provida. Tanta

coisa se achava posta à venda que muito me agradaria possuir semelhante fortuna.

Galvão desmontou ali. Nunca pusera os olhos em tão rica mercadoria. A tenda era

de veludo, alta, ampla e disposta em quadrado. O que estava ali posto à venda?

Quem quisesse adquirir essas mercadorias a peso de ouro não teria como pagá-las

ainda que fosse o Baruc de Bagdad ou o Patriarca de Ranculat. Se o próprio

Imperador quisesse somar à riqueza desses dois todos os tesouros da Grécia, ainda

assim esse montante ficaria aquém do preço dessas mercadorias.

Galvão saudou o mascate e depois de haver examinado os magníficos

objetos expostos pediu que lhe mostrasse cintos e broches, artigos acessíveis ao

seu orçamento. O mascate lhe disse: "Cá estou eu sentado há anos e ninguém -

exceto as damas daqui - se atreveu a contemplar estas mercadorias. Se em vosso

peito estiver batendo um coração viril, então tudo o que aqui foi reunido, com

procedência dos mais diversos países, será vosso. Se tomastes o honroso propósito

de enfrentar a aventura, então, meu senhor, vencido o desafio chegaremos

rapidamente a um acordo. Tudo o que aqui estou pondo à venda será vosso.

Prossegui, pois, em vosso caminho e deixai que a vontade de Deus se cumpra!

Acaso foi Plippalinot, o barqueiro, que vos indicou o caminho? Muitas damas

bendirão vossa chegada a este país caso tenhais êxito na sua libertação. Se

efetivamente desejais correr o risco da prova então deixai vosso cavalo comigo.

Caso me deis essa prova de confiança comprometo-me a bem cuidar dele."

Galvão lhe disse: "Isso muito me agradaria caso o desempenho deste

mister não venha a vos apoquentar. O que me surpreende é vossa riqueza. Nunca,

desde que este cavalo passou a me pertencer, tive um cavalariço tão rico."

423
O simpático mascate lhe disse: "Senhor, que mais me cabe acrescentar

ao que já disse? Se escapardes incólume passareis a ser meu amo e proprietário de

tudo o que me pertence. Poderíeis imaginar coisa mais razoável?"

Cheio de entusiasmo Galvão seguiu a pé, resoluto e varonil. Consoante

vos relatei o extenso castelo estava cercado de muralhas por todos os lados. Um

ataque, ainda que se prolongasse por trinta anos, seria inútil. Intramuros havia uma

campina quase tão extensa quanto a planície de Lechfeld181. Muitas torres

defensivas dominavam as ameias. A narrativa nos dá conta de que ao contemplar o

palácio Galvão notou que seu telhado brilhava como a colorida plumagem do pavão.

A cor clara das telhas era tão durável que nem mesmo a ação da chuva e da neve

pudera embotá-la.

Rica e vistosa era a decoração interna do palácio. As colunas que

ladeavam as janelas eram caneladas com esmero e rematadas por arcos. Nos

nichos das janelas haviam sido dispostas camas destinadas ao repouso, providas de

preciosas e coloridas cobertas. As camas eram individuais e havia uma em cada

nicho. Ali haviam estado sentadas as damas que Galvão vira e que se tinham

retirado sem dar boas vindas àquele que para elas seria o mensageiro da felicidade,

a personificação do dia de redenção. E isso considerando que para elas não teria

havido algo mais desejável que tê-lo visto. Mas no caso não lhes cabia alguma

culpa, pois embora ele lhes quisesse prestar serviços a ninguém era permitido

encontrar-se com ele. Em conseqüência, o senhor Galvão vagueava de um lado

para outro, contemplando o palácio. Foi quando descobriu numa das paredes - não

181
Lechfeld. Extensa planície de 40 km de extensão e 10 km de largura, situada entre Lech e Wertach.
Começa em Landesberg sobre-o-Lech e termina em Augsburgo. Foi ali que, em 10 de agosto de 955, o
Imperador Otto I destroçou o exercito dos magiares.

424
sei exatamente em qual dos lados - a porta aberta de par em par. Do lado de dentro

espreitava-o a morte ou a fama. Galvão entrou na kemenate, cujo pavimento era liso

e polido como vidro. Ali estava o Lit Marveile, a cama encantada. Os quatro pés da

cama eram munidos de rodas feitas de rubis resplandecentes e que conferiam ao Lit

Marveile uma velocidade superior ao vento. O piso merece todos os meus encômios.

Era revestidos de jaspe, crisólito e sardônica, de acordo com os desejos de

Clinschor, que idealizara tudo e que com previdente sabedoria mandara importar de

vários países tudo o que fosse necessário. O piso era tão escorregadio que Galvão

mal pôde se manter em pé. Impunha-se pois enfrentar risco. Mas mal se aproximava

da cama, esta lhe escapava, mudando de lugar. Ao longo dessa situação que não se

resolvia, o pesado escudo, do qual segundo o insistente conselho do barqueiro.

jamais deveria se separar, começou a se tornar incômodo. Ele pensou: "Como

posso achegar-me a ti se tu me escapas? Será que a solução é saltar sobre ti?"

Quando em dado momento a cama parou diante dele, tomou impulso e se atirou

exatamente sobre o centro do engenho. É difícil imaginar a velocidade com que a

cama resvalava de um lado para outro. Ela nem sequer se desviava da parede,

colidindo com ela com estrondo que ecoava por todo o castelo. Desse modo

enfrentou muitas investidas. Se o ribombar do trovão quisesse emular com todos os

tocadores de trombone do mundo, ainda assim não chegariam a produzir estrondo

maior. Embora deitado na cama Galvão não podia pensar em descanso, mas tinha

de se manter alerta. Qual foi a atitude do herói? Quando o barulho começou a se

tornar excessivo, cobriu-se simplesmente com o escudo.

Assim se manteve deitado e entregou sua sorte Àquele que pode ajudar e

está sempre disposto a socorrer os que em momentos de extremo perigo a Ele

425
recorrem. Em horas tais o homem sábio e prudente põe sua salvação nas mãos do

Altíssimo. Apenas Ele - como Galvão constataria - pode prestar ajuda efetiva e Ele

sempre o faz movido pela mais genuína bondade. Implorou, pois, a proteção de

Deus, a Quem sempre atribuíra o mérito de seus êxitos. O estrondo cessou

abruptamente e a magnífica cama parou exatamente no meio do recinto, num ponto

eqüidistante das quatro paredes. Mas a partir daí manifestar-se-iam fenômenos

ainda mais atemorizantes. Controladas por engenhosos mecanismos estavam ali

quinhentas catapultas apontadas para a cama em que se achava Galvão. Sobre ele

foram então disparados seixos duros e arredondados, que Galvão pouco sentiu pois

o escudo era tão sólido e firme que apenas umas poucas pedras puderam perfurá-

lo.

Desse modo haviam sido desperdiçadas todas as pedras. Galvão jamais

suportara antes impactos tão contundentes. Mal havia passado por esse transe

quando quinhentas ou mais bestas eram armadas e apontadas para ele. Só quem

alguma vez passou por tais apuros pode avaliar os estragos que setas são capazes

de causar. Logo todas as setas haviam sido disparadas. Quem preza sua

comodidade faria bem em evitar camas desse tipo, pois ali não teria vida fácil. Até os

cabelos de um jovem embranqueceriam se tivesse que desfrutar, como Galvão, das

amenidades daquela cama. A despeito disso nem coração nem mãos lhe tremiam.

Contudo os seixos e as setas não o haviam poupado de todo. Embora protegido por

cota de malha, sofreu contusões e ferimentos. Quando supunha que as provações

haviam terminado veio a constatar que teria de resgatar o preço da glória com as

próprias mãos. Naquele momento abriu-se diante dele uma porta e por ela entrou

um indivíduo de compleição hercúlea e hediondo aspecto. Seu gibão, seu gorro e

426
suas calças eram de pele de lontra. Na mão trazia uma maça cuja extremidade era

mais bojuda que um cântaro. Ele tratou de se aproximar, o que não agradou a

Galvão nem um pouco. Pensava: "O homem está sem armadura e por isso

dificilmente poderá me enfrentar." Ergueu-se, por isso da cama e nela permaneceu

sentado como se nada lhe houvesse acontecido. O brutamontes recuou um passo,

como se quisesse fugir. Mas mudou de idéia e berrou enfurecido: "Não me infundis

temor! Cuidei para que vos coubesse um quinhão que pagareis com a vida. Foste

salvo pelas artes do demônio. Mas se até esta parte ele pôde vos salvar a pele

agora chegou a hora de vossa irremediável perdição. Tereis a confirmação disso tão

logo me retire daqui”.

Dito isso o vilão se retirou. Galvão tratou de aparar a golpe de espada as

setas presas no escudo. É que todas haviam perfurado o escudo, esbarrando na

malha do lorigão. Foi então que ouviu um surdo rumor como se vinte tambores

viessem sendo percutidos para marcar o compasso da dança. Sendo homem de

inquebrável coragem e avesso a vacilações, pôs-se a pensar: “Que mais poderia

acontecer-me? Já não fui provado de sobejo? Acaso me aguardam peripécias ainda

mais terrificantes? Em todo caso convém ficar em guarda”!

Eis que irrompe pela porta, que o canhestro indivíduo utilizara, um

vigoroso leão do tamanho de um cavalo. Galvão, que nunca pusera sua salvação na

fuga, agarrou o escudo pela braçadeira e pulou ao chão para se defender. O ingente

e robusto leão estava transtornado pela fome, o que para ele não resultaria em

qualquer vantagem. Enfurecido investiu sobre Galvão, mas este já estava

preparado. Mesmo assim quase lhe arrebatou o escudo, pois logo ao primeiro

ataque suas garras se encravaram no escudo, perfurando-o. As garras de nenhum

427
outro animal poderiam ter perfurado tão sólida estrutura. O leão queria arrancar-lhe

o escudo, mas Galvão reagiu, decepando-lhe uma das patas. Agora o leão dispunha

de apenas três patas. A quarta ficara pendurada no escudo. O sangue jorrava da

ferida, tão copiosamente que Galvão teve que firmar bem os pés. Enquanto isso o

combate se mantinha indeciso. O leão esbravejava de ódio, arreganhava as presas

e investia seguidamente sobre o intruso. Se o propósito era acostumá-lo a devorar

gente honrada, eu dificilmente ficaria por perto. Embora gravemente ferido o animal

se revelou nessa luta um adversário tão temível que, dentro de pouco tempo, a

kemenate estava inteiramente borrifada de sangue. Finalmente, dando um enorme

salto a fera pretendeu lançá-lo por terra. Foi quando Galvão lhe enterrou no peito a

espada, até o punho. A fúria do leão só esmoreceu quando tombou ao chão, morto.

Tendo saído vitorioso do mortífero embate, Galvão pensou: "Que atitude devo eu

tomar nesta situação? Sentar-me no chão ensangüentado não convém. Quanto a

sentar-me ou deitar-me nesta cama que bruscamente dispara de um lado para outro,

nem é bom pensar." De repente foi acometido de extrema fraqueza e seus sentidos

se perturbaram em virtude das pedradas na cabeça e do sangue que vinha

perdendo. O mundo parecia estar girando em torno e acabou caindo sem sentidos.

Ao desmaiar, caiu sobre o escudo, a cabeça sobre o corpo do leão. Tantas haviam

sido as provações que caiu sem forças e sem sentidos, mergulhado em prostração

profunda. Mas sua cabeça não repousava naquele travesseiro mágico que a esperta

e atraente Gymele de Monte Rybele pusera sob a cabeça de Kahenis182 fazendo-o

cair em sono que comprometeria sua reputação. Ao contrário, a esse homem

estariam reservados os louros da fama, pois pelo que acabastes de ouvir sabeis

muito bem por que tonteou e caiu sem sentidos.


182
Gymele/Kahenis. Referencia à epopéia “Tristant”, composta entre 1170 e 1180 por Eilhart von Oberg.
Nessa primeira versão alemã de “Tristão e Isolda”, Kahenis dorme ao lado de Gymele que sorrateiramente
introduz sob sua cabeça um travesseiro mágico.

428
Enquanto isso alguém que furtivamente observava a cena avistou o piso

manchado de sangue e nele estendidos, como se estivessem mortos, o leão e

Galvão. A bela jovem que timidamente vinha espionando do alto de uma janela

empalideceu até a lividez ao deparar com a cena. Amedrontada, retrocedeu e

contou tudo à sábia Arnive, que a ouviu perplexa. Ainda hoje entôo louvores em sua

honra, pois foi graças a seus cuidados que o cavaleiro conseguiu sobreviver.

Inicialmente tratou de avaliar a situação. Mas, pelo que lhe foi dado ver ao se

acercar da janela não podia ter certeza se era prenuncio de dias felizes ou de novas

desgraças. A idéia que a atormentava era a possibilidade de o cavaleiro estar morto,

a julgar pela posição desconfortável em que se encontrava caído sobre o corpo da

fera. Ela disse: "Para mim será motivo de profundo pesar se tua coragem e lealdade

tiverem conspirado contra tua preciosa existência. Se a lealdade te impeliu a

sacrificar tua vida por nós, criaturas dignas de pena, então devo chorar-te pelo valor

de que deste prova, quer sejas velho ou jovem." À vista do herói desfalecido dirigiu-

se às demais damas, dizendo: "Vós, que merecestes os benefícios do batismo

implorai a Deus para que conceda Sua bênção”! A seguir pediu a duas jovens que

descessem cautelosamente e após uma verificação no local, lhe dessem conta se

ainda estava vivo ou se havia morrido. Teriam as jovens caído em pranto ao deparar

com aquele quadro de aflições? Certamente! Ao vê-lo caído sobre o escudo e

coberto de sangue foram acometidas de choro convulsivo. Sua preocupação era

verificar se nele ainda havia algum sinal de vida. Com suas brancas mãos uma
183
delas lhe retirou o elmo e a seguir, o gorjal . Foi então que descobriu sobre sua

boca uma diminuta bolha de ar, o que a levou a auscultá-lo cuidadosamente a fim de

ter certeza de que não se enganava e que ele ainda respirava. Seu mantelete exibia

183
Gorjal. Peça da armadura que protege o pescoço.

429
dois camaleões batalhantes de zibelina, o mesmo signo heráldico que llynot, o

bretão, usara gloriosamente desde a juventude até a morte. A jovem arrancou

alguns pêlos da zibelina, aproximou-os das narinas de Galvão e se manteve atenta

na esperança de que sua respiração os fizesse oscilar. Desse modo descobriu que

ainda estava vivo. Sem demora pediu à companheira para trazer água limpa. Esta a

trouxe prontamente. Foi então que a jovem introduziu os dedos cuidadosamente

entre os dentes do desmaiado e lhe instilou água, de início apenas algumas gotas e

a seguir aumentando gradativamente a quantidade. Prosseguiu nesse mister até

voltar a si, abrindo os olhos. Ele cumprimentou as atraentes jovens e lhes agradeceu

dizendo: "Pesa-me sobremodo o fato de me haverem surpreendido em posição tão

constrangedora. Gostaria de contar com vossa discrição para não propalar esse

fato."

Elas responderam: "A posição em que fostes encontrado e na qual vos

encontrais agora é um título que vos credencia às honras supremas. Conquistastes

uma glória que jamais será esquecida e que irá comprazer-vos até a provecta

idade. A vitória é vossa. Mas permiti a nós, criaturas dignas de pena, verificar se

vossos ferimentos são graves ou não a fim de também podermos compartilhar de

vossa alegria." Ele respondeu: "Se prezardes minha vida, ajudai-me!" E acrescentou:

"Providenciai que alguém iniciado na arte de curar examine meus ferimentos, mas

se tiver pela frente novos combates, ponde-me uma vez mais o elmo na cabeça,

firmai-o bem e afastai-vos daqui. Saberei como me defender."

Elas responderam: "Senhor, para vós os combates terminaram. Permiti

que vos façamos companhia. Pela notícia de que sobrevivestes, uma de nós

ganhará alvíssaras de quatro rainhas. Doravante estareis em boas mãos. Além do

430
medicamento adequado, que não vos faltará, vossas feridas e contusões serão

tratadas com ungüentos sobremodo eficazes que abrandarão vossas dores e vos

restituirão a saúde."

Uma das jovens deu-se pressa em divulgar na corte a notícia de que ele

estava vivo, "tão vivo que, se aprouver a Deus, multiplicará nossas alegrias.

Necessita, contudo, de tratamento especializado!"

Todas então exclamaram: "Deus seja louvado!" A velha e sábia rainha

determinou que junto a um fogo acolhedor fosse preparado um leito e estendido um

tapete. A seguir trouxe ungüentos curativos extremamente preciosos, cientificamente

preparados para o tratamento de ferimentos e contusões, e determinou a quatro

damas que cuidadosamente livrassem Galvão de sua armadura. Nesse mister

deviam poupá-lo de qualquer tipo de vexame. "Levai convosco uma coberta de seda

e com ela protegei-o enquanto o desarmais. Se puder andar, deixai que venha por

seus próprios pés; caso contrário transportai-o para este leito, onde estarei

aguardando o herói. Se seus ferimentos forem leves, farei com que se restabeleça

rapidamente. Mas se tiver sido atingido mortalmente cessarão todas as nossas

alegrias. Nesse caso também nós teremos sido atingidas pelo golpe, porque

transformará nossa existência numa espécie de morte em vida."

Tudo se fez consoante suas instruções. O senhor Galvão foi aliviado da

armadura, retirado daquele local e tratado pelas damas iniciadas na arte de curar.

Ele havia sido ferido em cinqüenta ou mais lugares diferentes do corpo. Mas como

estivera protegido pelo escudo apenas as pontas das setas haviam penetrado a cota

431
de malhas. A velha rainha apanhou dictamno184, vinho quente e um pano de tafetá

azul. Com isso limpou as feridas e o pensou tão bem que logo recobrou as forças.

As pedras da funda haviam achatado em alguns lugares o elmo, o que resultou em

lesões na cabeça do herói. Mas sob a ação benéfica do ungüento da sábia rainha o

inchaço cedeu rapidamente. Ela disse: "Abrandarei vossas dores rapidamente.

Cundrie, a maga, vem visitar-me com alguma freqüência e me dá úteis conselhos

sobre o poder curativo de certos medicamentos. Quando se procurou aplacar as

dores terríveis por que Anfortas vinha passando, foi este ungüento que lhe salvou a

vida. Ele é procedente de Munsalvaesche."

Galvão alegrou-se ao ouvir o nome de Munsalvaesche, por acreditar que

o castelo estivesse situado nas imediações. À rainha ele declarou com simplicidade:

"Senhora, vós me devolvestes o uso dos sentidos que me haviam abandonado e

mitigastes minhas dores. Graças a vós sinto voltarem-me as forças e a boa

disposição. Considerai-me por isso vosso dedicado servidor."

Ela, porém contestou: "Todas nós temos motivos de sobra para estarmos

honestamente empenhadas em conquistar vossa estima. Agora segui minhas

instruções, poupai-vos, falando o menos possível. Dar-vos-ei uma erva de efeitos

tranqüilizantes que vos fará adormecer. Até ao cair da noite devereis abster-vos de

comida e bebida. Uma vez revigorado dar-vos-ei de comer para estardes bem

disposto pela manhã!"

Ela lhe introduziu uma erva na boca, que o fez adormecer prontamente. A

seguir cobriu-o cuidadosamente. Bem agasalhado, rico em honras e pobre em

184
Dictamno. Planta medicinal (dictamnus albus) cujas raízes são utilizadas como remédio caseiro.

432
defeitos, dormiu o dia todo. Vez por outra os efeitos do ungüento o faziam

estremecer e espirrar. Enquanto isso uma multidão de damas movidas pela

curiosidade entrava e saía. Mas a velha Arnive, usando de sua autoridade, proibia

conversas em voz alta para que o repouso do herói não fosse perturbado.

Determinou ainda que fossem fechadas todas as portas do palácio. Para o desgosto

das damas nenhum dos cavaleiros, escudeiros e habitantes do castelo deveria

tomar conhecimento do que ali se passava antes do alvorecer do dia seguinte.

Desse modo o herói dormiu até ao cair da noite. A rainha sempre atenta

retirou-lhe a erva da boca. Ao despertar sentiu sede. A sábia mulher mandou vir

então bebida e comida saborosa. Ele se sentou na cama e comeu com muita

vontade. Numerosas damas rodeavam o leito e serviam Galvão com uma solicitude

que nunca experimentara antes. Embora o senhor Galvão se comprazesse em

examinar atentamente uma ou outra, manteve-se vivo nele a velha saudade pela

deslumbrante Orgeluse. Entre todos os bem ou malsucedidos casos de amor que

tivera na vida, nenhum deles o marcara tão profundamente quanto esse. O intrépido

herói disse então à sua enfermeira, a velha rainha: "Senhora, sinto-me constrangido

em ver todas essas damas de pé ante mim. Se consentisse nisso, poderíeis tomar-

me por presunçoso. Convidai-as, portanto, a tomar assento ou participar comigo da

refeição!"

"Na verdade, ninguém, exceto eu própria, deve sentar-se em vossa

presença. Elas se sentiriam pouco à vontade, senhor, se não pudessem servi-lo

como convém, pois vós sois o artífice de nossa felicidade. Seria, por isso,

inadmissível se não acatassem vossas ordens." A despeito de seu gesto elegante,

preferiram não aceitar o convite. Amavelmente pediram-lhe que as deixasse em pé.

433
Nenhuma delas iria sentar-se enquanto não terminasse a refeição. Depois de se

haver servido todas se retiraram, enquanto Galvão se reclinou na cama para

repousar.

434
LIVRO XII

1. AS AFLIÇÕES AMOROSAS DE GALVÃO

Em minha opinião cometeria um pecado aquele que quisesse perturbar o

descanso de Galvão. Consoante atesta a Aventura empenhou-se ele honestamente

no propósito de multiplicar sua fama expondo-se a gravíssimos perigos. Diante de

tamanha provação as situações imprevistas por que Lanzilot185 passou sobre a

Ponte da Espada ao ali se bater com Meljakanz são evento insignificante. De

somenos importância pode ser considerado também o que se conta a respeito do

poderoso e altivo Rei Garel186 que com destemer digno de um cavaleiro arremessou

um leão fora do palácio de Nantes. Garel envolveu-se ainda em sérias dificuldades

ao arrebatar a faca da coluna de mármore. Se se quisesse pôr às costas de um

muar todas as setas cujos impactos Galvão suportara com viril determinação a carga

seria talvez demasiadamente pesada. Tão arriscados não tinham sido a incursão no

desfiladeiro sombrio nem a aventura de Schoydelacourt187 onde Erec de Mabonagrin

teve que abrir caminho à força. Ainda menos digno de comparação seria o episódio

185
Lanzilot. Cavaleiro da Távola Redonda.
186
Garel. Cavaleiro da Távola Redonda mencionado em diversas epopéias medievais. A referência aqui
feita remete a um original supostamente perdido.
187
Schoydelacourt. Schoye-de-la-court: Delcias da Corte

435
vivido pelo altivo Iwan188 quando molhara a pedra da Aventura. Todas essas

peripécias reunidas não atingiam o grau de periculosidade das provações por que

Galvão passou.

A que espécie de provações quero referir-me? Embora isso não vos

venha proporcionar muito prazer devo dizer de que se trata. É que Orgeluse se

havia instalado definitivamente no coração viril de Galvão. Como pôde uma mulher

tão vistosa esconder-se em espaço tão acanhado? Através de caminho estreito

chegou ao coração de Galvão, o qual esqueceu as aflições que lhe custaram essa

dolorosa penetração. Era na verdade um espaço assaz reduzido, onde agora essa

mulher dominadora vivia, uma situação que o obrigava a consumir seu tempo

pensando nela. Que ninguém se ria dessa estranha situação em que um poderoso

guerreiro foi dominado por frágil mulher! Ah, o que resultaria disso? A senhora

Paixão despejava toda a sua ira sobre um homem que conquistara grande

notoriedade! Afinal, o conhecera como bravo e intrépido combatente e deveria por

isso sentir-se tolhida em exercer sua força enquanto estivesse combalido e

convalescente. Devia bastar-lhe haver dominado o recalcitrante na pujança de sua

força. Senhora Paixão, se isso for para vós uma questão de prestígio então permiti

que vos diga que essa disputa vos trará escasso proveito. Pensando bem, Galvão, a

exemplo de Lot, seu pai, considerou como objetivo de sua vida conquistar vossa

benevolência. Por linha materna sua estirpe esteve a vosso serviço desde que

Mazadan fora arrebatado por Terdelaschoye para Feimurgan, onde vós o

envolvestes em irresistível sortilégio. Numerosas narrativas dão conta que os

descendentes de Mazadan sempre vos prestaram leais serviços. Ither de Gaheviez

188
Iwan. Referência a uma personagem que desempenha o papel título no poema épico “Iwan”, de
Hartmann von Aue.

436
trazia em seu escudo vosso símbolo heráldico. Quando diante de damas se falava

nele ou apenas se lhe mencionava o nome nenhuma delas se envergonhava em vos

render submissão. Agora imaginai o que acontecia àquela que com ele se

encontrava face a face. Esta compreendia então a noção exata do amor. Sua morte

vos privou de muitos serviços que ele vos poderia ter prestado.

Impeli, pois também Galvão à morte a exemplo do que fizestes com seu

primo Ilinot. Arbitrariamente induzistes esse jovem galante a se pôr a serviço da

nobre Florie de Kanedic, que ele amava. Deixara o reino paterno ainda criança. Fora

educado por aquela mesma rainha189 e se tornara um estranho para a Bretanha, sua

terra natal. Tomado de paixão por Florie deixara o reino dela e como já sabeis

morreu a seu serviço.

Para a estirpe de Galvão o amor foi causa de muitas penas. Posso citar

outros parentes de Galvão aos quais o amor fez passar por maus momentos. Esse

foi o caso do fidelíssimo Parsifal. Não fora ele acometido de incontida saudade pela

real esposa ao avistar a neve manchada de sangue? Enredastes, ademais, Galões e

Gahmuret nas malhas de vosso sortilégio e os enviastes à morte. Outra foi a jovem e

nobre Itonje, a deslumbrante irmã de Galvão, que dedicava ao Rei Gramoflanz um

amor fiel e imutável. Surdamur190 conheceu também o peso de vossa nefasta

dominação ao se tomar de paixão por Alexandre. Uma e outra pertenciam à estirpe

de Galvão e ambas, senhora Paixão, tiveram de se submeter à vossa tutela. Agora

desejais engrandecer-vos às custas da submissão de Galvão. Devíeis medir forças

189
Florie de Kanedic.
190
Surdamur. Outra irmã de Galvão que amava Alexandre Magno, o que afinal configura uma estranha
defasagem no tempo. Se as personagens do ciclo arturiano tivessem algum compromisso com a cronologia os
dois amantes estariam separados por um lapso temporal de 800 anos. Ocorre que aqui não se trata do rei bretão
que historicamente existiu, mas de Artur, personagem lendária, que com sua corte e sua ordem da Távola
Redonda viva e vive liberto da barreira do tempo. N.T.

437
com aqueles que gozam de boa saúde. Poupai pois a vida do convalescente Galvão

e submetei os hígidos. Afinal, tantos cantam o amor sem jamais terem sentido seu

apelo compulsivo! Nada mais direi sobre este assunto. Que lamentem as aflições do

norueguês191 aqueles que sofrem do mesmo mal do amor. Galvão, que acabava de

superar os percalços da Aventura, viu-se quase a seguir entregue aos tormentos de

sua paixão impossível. Ele exclamou: "Ai de mim! Preferia não estar estendido sobre

este leito de convalescente, onde desfruto de tudo menos descanso! A aventura

rendeu-me feridas e o leito vem multiplicando minhas penas de amor. Unicamente a

benevolência de Orgeluse, a duquesa, teria o dom de fazer-me uma vez mais alegre

e feliz!"

Inconformado virava-se na cama de um lado para outro até que algumas

ataduras se soltassem. Permaneceu assim preso a essa angústia opressiva até o

alvorecer por ele ansiosamente esperado. Teria preferido sustentar sucessivas lutas

corpo a corpo a esse repouso forçado.

Quem quisesse avaliar os sofrimentos de Galvão deveria deixar-se picar

por setas em todo o corpo. Perceberia então que Galvão estava a sofrer

duplamente: das penas da paixão e da dor resultante dos ferimentos.

191
Norueguês. Galvão.

438
2. A COLUNA MÁGICA

Aos poucos a exuberante luz do dia vinha amesquinhando o brilho das

grandes velas que ali ardiam. O herói se levantou. Junto ao leito haviam sido postas

camisa e calças de resistente tecido de lã. Suas roupas de linho estavam

manchadas de sangue e tão cheias de nódoas de ferrugem resultantes do contacto

com a armadura que a troca lhe agradou sobremodo. Ali encontrou também uma

vestia e um gibão de pele de marta, ambos forrados de seda de Arras. Havia ali

ainda um par de sapatos que se ajustavam comodamente aos pés. Depois de pôr as

novas roupas saiu da kemenate para explorar as redondezas. Vagueou de um lado

para outro até deparar uma vez mais com o magnífico palácio. Seus olhos jamais

haviam vislumbrado conjunto arquitetônico que com ele pudesse se ombrear em

magnificência. Num dos lados do palácio uma estreita escada de caracol conduzia a

uma plataforma. Ali se erguia uma coluna resplandecente. Não era feita de madeira

podre, pois era cintilante, sólida e de diâmetro tal que sobre ela poderia ser colocado

muito bem o ataúde de Camila192. O atilado Clinschor trouxera do reino de Feirefiz a

engenhosa estrutura que ali se erguia. Era circular, como o formato de uma tenda.

Nem o Mestre Geômetras193 teria sido capaz de projetá-la pois obedecia às

especificações de uma técnica que lhe era desconhecida. Segundo a Aventura as

janelas estavam prodigamente decoradas com diamantes, ametistas, topázios,

pedras granada, crisólitas, rubis, esmeraldas e sárdios. As colunas que sustentavam

192
Camila. Segunda descrição feita por Heinrich von Veldecke na sua “Eneida”, o ataúde de Camila fora
armado sobre uma pilastra encimada por uma abóboda.
193
Geômetras. Segundo a “Eneida” de Heinrich von Veldecke, era mestre construtor de notável saber,
autor de renomadas obras arquitetônicas.

439
o teto eram, a exemplo das que ladeavam os vãos das janelas, altas e compactas.

Mas nenhuma delas podia se comparar àquela cujas singularidades a Aventura irá

agora vos revelar.

Para se inteirar das coisas singulares que supunha existirem mais além o

senhor Galvão subiu à torre de menagem, que estava profusamente decorada com

pedras preciosas. Seus olhos não se cansavam de contemplar essa prodigiosa obra

arquitetônica. Parecia-lhe então que todos esses países cujas imagens via surgir na

superfície da grande coluna não lhe eram desconhecidos. Notou ainda que as

paisagens mudavam continuamente, como se esses cenários emoldurando

alterosas montanhas estivessem desfilando diante dele em rápida sucessão. Nessa

coluna avistou ainda pessoas a pé e montadas, umas dando-se pressa, outras

paradas194. Finalmente sentou-se no nicho de uma janela a fim de examinar mais

detidamente o surpreendente fenômeno. Naquele momento vinham chegando a

velha Arnive, acompanhada pela filha Sangive e mais duas netas. Todas as quatro

se aproximaram de Gaivão e este, ao vê-las, levantou-se prontamente.

A Rainha Arnive lhe disse: "Senhor, devíeis ainda estar guardando o leito.

Se insistirdes em vos movimentar sem necessidade vossos ferimentos poderão

piorar."

Ele respondeu: "Senhora e mestra! Graças a vós desfruto novamente de

saúde física e mental. Por isso ser-vos-ei grato pelo resto de minha vida."

194
O engenhoso e insólito processo descrito nessa estrofe e na seguinte por um homem nascido no último
quartel do século XII nos leva considerar o autor do “Parsifal” um remoto precursor de Julio Verne, o pai da
Ficção Científica. Se este, entre outras antecipações, “inventou” em 1890 o submarino “Nautilus”, cujo
homônimo os americanos só e, 1954 fizeram navegar pelos mares do mundo, Wolfram von Eschenbach ainda
mais na paisagem do futuro ao descrever aqui nada menos que um processo que hoje conhecemos como
transmissão em circuito fechado de televisão.

440
A rainha replicou: "Senhor, se eu for, como afirmais, vossa mestra, então

cumprimentai com um beijo estas três damas. Não temais por vossa posição, pois

todas são de real ascendência."

Prazerosamente tratou de cumprir a ordem recebida, beijando as

atraentes damas Sangive e Itonje, bem como a meiga Cundrie195. Galvão se sentou

junto às quatro damas enquanto seu olhar incidia alternadamente sobre uma e outra

das jovens encantadoras. Mas como outra mulher lhe habitava o coração, a beleza

delas, comparada à de Orgeluse, se lhe afigurava como a cinzenta atmosfera de um

dia de neblina. A Duquesa de Logroys, por quem seu coração ansiava, parecia-lhe

tão assinaladamente bela que a formosura das demais ao lado dela empalidecia. De

passagem seja dito que as damas que Galvão acabava de cumprimentar possuíam

tanta graça e donaire que sua visão abalaria qualquer coração, mesmo daquele que

já tivesse sido provado por penas de amor. Galvão perguntou então à sua benfeitora

o que havia de especial com a coluna que se erguia diante deles e para que servia.

Ela respondeu: "Senhor, desde que estou aqui essa pedra brilha dia e

noite e o que acontece em derredor, num raio de seis milhas em terra e na água

pode ser visto nessa coluna. Quer seja pássaro, fera, forasteiro ou natural do lugar,

aparece nela. Seu foco luminoso tem um alcance de seis milhas e ela própria é tão

sólida e inteiriça que nem a ação do ferreiro nem do martelo conseguem prevalecer

contra ela. Foi retirada às escondidas de Tabronit, suponho eu, contra a vontade da

Rainha Secundille."

195
Cundrie. Não se trata aqui da maga Cundrie (geralmente descrita como criatura repelente), mas da neta
de Utepandragon.

441
3. O COMBATE COM O TURCÓIDE

Naquele momento Galvão reconheceu na coluna um cavaleiro e uma

dama que vinham a cavalo. Se a dama lhe pareceu belíssima, o cavaleiro e seu

corcel vinham armados de ponto em branco. Uma rica cimeira ornamentava o elmo

do ginete. Atravessando o desfiladeiro vinham pela campina a galope largo, com o

evidente propósito de provocar Galvão.

Eles enveredaram pelo mesmo caminho através do pântano pelo qual

viera o altivo Lischoys antes de ser vencido por Galvão. A dama agarrara a rédea do

cavalo de batalha do cavaleiro que a seguia, o qual - tudo o indicava - vinha disposto

a se bater com alguém.

Galvão se voltou, enquanto seu mau humor crescia. Se antes tomava a

cena vista na coluna como miragem quimérica agora via de forma iniludível Orgeluse

de Logroys e um cavaleiro da corte na campina que se estendia diante do

ancoradouro. A exemplo da espirradeira, cujo cheiro forte afeta de pronto o olfato,

assim a imagem da duquesa passou célere dos olhos ao coração. Ah, o senhor

Galvão estava de fato preso à sua paixão, de forma Irremediável! Ao ver o cavaleiro

aproximar-se disse à sua mestra: "Aí se aproxima um cavaleiro com a lança erguida

e o que procura terá sem mais tardança! Mas dizei-me, quem é aquela dama?"

442
Ela respondeu: "Trata-se da bela Duquesa de Logroys. A quem pretende

ela provocar desta vez? Ela vem acompanhada do Turcóide196, um homem

conhecido por sua bravura. Em combates com a lança conquistou tanta fama que

encheria três reinos de prestígio. Na situação em que vos encontrais, evitai enfrentar

esse temível combatente. Gravemente ferido como estais, seria cedo demais pensar

nisso. Mesmo depois de restabelecido conviria evitá-lo."

Mas o senhor Galvão argumentou: "Dissestes que passei a ser soberano

deste país. Portanto quem vier agravar-me com um desafio tão ostensivo terá o que

procura. Senhora, mandai vir minha armadura."

As quatro puseram-se então a chorar copiosamente e procuraram

demovê-lo desse propósito, dizendo: "Se for para vós apenas uma questão de

prestígio não combatei, de modo nenhum. Se tombardes morto diante dele nossas

desgraças serão multiplicadas. Bem armado tereis alguma possibilidade de sair com

vida desse encontro mas vossos ferimentos antigos vos levarão à morte, o que

resultará em nossa perdição."

Galvão se encontrava numa situação deveras difícil. Ouvi o que o afligia:

de um lado considerou a aproximação do nobre Turcóide uma afronta e de outro

ainda se ressentia das dores dos ferimentos. Mas o que mais que tudo o afligia era

sua paixão impossível e a tristeza das quatro damas que evidentemente lhe queriam

bem. Pediu-lhes que não chorassem e mandou vir armadura, cavalo e espada. As

quatro mulheres dispunham-se a acompanhá-lo, mas antes pretendiam descer para

juntar-se às demais damas encantadoras. Enquanto vinha sendo equipado para o

196
Turcoíde. Cf. Nota nº

443
combate brotavam furtivas lágrimas de muitos olhos luminosos. Tudo foi feito com a

maior discrição de sorte que, exceto o camareiro que cuidou para que o cavalo de

Galvão fosse almofaçado, ninguém soube do que ali se passava.

Galvão se aproximou lentamente de Grinjuljete, mas ainda estava tão

fraco em virtude dos ferimentos recebidos que só com algum esforço conseguiu

levar o escudo esburacado ao local em que o corcel o aguardava. Galvão montou e

se dirigiu ao portão do castelo à procura do fiel anfitrião sempre disposto a servi-lo.

Este lhe deu uma sólida e rústica lança, uma das muitas que recolhera na campina.

A seguir atendendo pedido do senhor Galvão apressou-se em transportá-lo à

margem oposta onde o nobre e altivo Turcóide o aguardava. Esse homem jamais

sofrerá derrota humilhante. Dele corria a fama de que costumava descavalgar o

adversário logo ao primeiro entrechoque com uma única e certeira lançada. Todos

os que haviam alimentado a pretensão de prevalecer sobre ele haviam amargurado

a derrota. O nobre guerreiro explicou logo de alto e bom tom que não era com a

espada, mas unicamente com a lança que pretendia conquistar ou perder fama e

glória. Se o adversário fosse capaz de descavalgá-lo desistiria do combate e se

entregaria.

Galvão soube dessa singularidade através de Plippalinot, o beneficiário

dos bens empenhados nesses combates. E o benefício consistia no seguinte: se no

entrechoque um dos oponentes fosse derribado, receberia ele sem contestação das

partes o que um perdera e o outro ganhara, ou seja, a montaria do vencido. A

duração da luta, quem venceria ou quem seria vencido, eram questões que não lhe

diziam respeito. Contudo, tratou de avisar às damas interessadas em assistir o

espetáculo. A Galvão ele recomendou manter-se firme na sela. A seguir

444
desembarcou a montaria e entregou-lhe escudo e lança. O Turcóide já vinha

arremetendo a galope largo e pelo modo de segurar a lança, nem muito alto, nem

muito baixo percebia-se que tinha boa pontaria. Galvão tomou posição frente ao

adversário. Ao atravessar a campina Grinjuljete de Munalvaesche obedecia de

pronto a qualquer pressão do freio.

Agora, sus, avançai a toda a brida! E lá vinha arremetendo o filho do Rei

Lot, destemido e varonil. A lançada do Turcóide o atingiu na altura da presilha do

elmo enquanto a de Galvão acertou em cheio a viseira do adversário donde é fácil

concluir quem foi arremessado ao chão. Preso à ponta de sua curta e rústica lança

carregava Galvão consigo o elmo do adversário. Lá se ia o elmo, cá jazia o homem,

até então a quintessência do qarbo cavaleiroso, agora arrojado à relva pela lançada

de Galvão e despojado da auréola da fama. A pompa de seus ornatos guerreiros

parecia querer emular com o colorido das flores carregadas de orvalho. Galvão

impeliu o corcel a investir sobre ele, atropelando-o seguidamente até se declarar

vencido. O barqueiro reivindicou imediatamente seu direito à posse da montaria. Era

um direito seu. Quem iria contestá-lo?

Mas a bela Orgeluse disse a Galvão em tom hostil: "Gostaria de conhecer

os motivos de vossa euforia. Talvez, quem sabe, porque a pata do leão permaneceu

presa ao vosso escudo? Por certo imaginais haver conquistado a consideração

pública apenas porque as damas lá do castelo assistiram a vosso combate? Que

vos seja, pois concedido o prazer de vos regozijar com isso! Pelo visto o Lit Marveile

não conseguiu vos infligir grandes danos embora vosso escudo esteja esburacado.

Chega-se a pensar que apenas realizastes um exercício de combate. Talvez vossos

ferimentos não vos permitam assumir as responsabilidades de um combate de

445
verdade, no qual corrreríeis o risco de decepções. Vosso escudo que a chuva de

setas transformou em peneira converteu-se agora para vós em objeto de estimação

e motivo de jactância. Tendes finalmente um bom motivo para vos esquivar de todos

os riscos. Voltai àquelas damas e deixai que vos acarinhem. Se vosso amor

estivesse de fato a meu serviço correríeis o risco de um combate à minha escolha!"

4. A TRAVESSIA DO PASSO SELVAGEM

Galvão tratou de esclarecer à duquesa: "Senhora, se estive ferido houve

quem me curasse. Se também vós quisésseis demonstrar-me solicitude, aceitando

meus serviços, então não haveria perigo que eu não quisesse arrostar para

transformar em realidade vosso projeto."

Ela disse: "Consinto que me acompanheis e que a meu serviço vos

empenheis em busca de fama."

O nobre e altivo Galvão sentiu-se sumamente feliz com essa

incumbência. Ao Turcóide determinou que em companhia de seu anfitrião Plippalinot

regressasse ao castelo, onde as gentis damas deveriam dispensar ao seu

prisioneiro tratamento condigno. Embora as duas montarias tivessem sido

acicatadas para se lançar ao ataque a lança de Galvão saiu incólume da refrega. E

foi com ela na mão que deixou a luminosa planície. Muitas damas choraram ao vê-lo
446
partir. A Rainha Arnive exclamou: "Nosso libertador escolheu um refrigério para os

olhos e um espinho para o coração. Ai de nós! Lá se vai ele com a duquesa rumo ao

Passo Selvagem! Disso nada de bom resultará para seus ferimentos!" Quatrocentas

damas lamentaram o fato de ele partir em busca de fama.

A deslumbrante formosura de Orgeluse fez com que Galvão se

esquecesse das dores. Ela porém recomendou: "Vossa missão consistirá em me

trazer uma coroa feita dos ramos de certa árvore. Se fordes bem sucedido exaltarei

vosso feito e consentirei em ser cortejada por vós."

Ele respondeu: "Onde quer que esteja o tal ramo cuja conquista resultará

para mim na suprema felicidade, na liberdade de finalmente poder vos confessar

minha atormentada paixão e de ser correspondido, tratarei de colhê-lo ou morrer."

As magníficas flores que recobriam a campina pareciam-lhe

insignificantes quando comparadas à beleza de Orgeluse. Seus pensamentos se

achavam concentrados nela, de sorte que os agravos que sofrerá apagavam-se em

sua lembrança. Ela seguia com seu acompanhante por uma estrada reta e larga até

atingirem um ponto distante cerca de uma milha do castelo. Havia ali uma luminosa

floresta de tamargueiras e de pau-brasil197. Era a floresta de Clinschor.

Galvão, o intrépido guerreiro, perguntou então: "Onde devo eu colher a coroa de

197
Pau-brasil. Não deixa de ser singular a menção do Pau-brasil num poema publicado três séculos antes
da descoberta do Brasil. Adelino José da Silva d’Azevedo em “Este Nome: Brasil” comentado pela
“Enciclopédia Mirador Internacional” no verbete “Brasil”, dá a seguinte explicação a respeito: o pau-brasil teria
sido extraído desde o século VI a.C. por fenícios e gregos de uma certa ilha chamada Brasil, situada no Atlântico
e vendida aos celtas da Irlanda. Os celtas chamaram esses povos navegadores de “Hy Brasil” (“O Brasil para os
irlandeses”), o que significa “descendentes do vermelho” (referência ao corante rubro extraído da madeira que
lhes vendiam). Esse comércio cessou com o ocaso da civilização fenícia e grega. Aos olhos dos celtas, esses
povos – “os descendentes do vermelho” – desapareceram nas brumas do Atlântico, tornando-se povos míticos

447
ramos que me restituirá a felicidade perdida?" Ah, ele devia tê-la lançado ao chão e

feito sua à força, como aconteceu com tantas mulheres atraentes!

Ela respondeu: "Indicar-vos-ei o local onde podereis realizar a proeza."

Dirigiram-se através de campo limpo a um passo donde se avistava uma

árvore que se erguia na margem oposta e de cujos ramos deveria ser feita a coroa.

Ela explicou: "Senhor, aquele tronco vem sendo guardado por um homem que

destruiu minha felicidade. Se me trouxerdes um ramo daquela árvore então pode-se

dizer que em tempo algum qualquer cavaleiro a serviço do amor conquistou prêmio

maior que vós." A duquesa prosseguiu: "Vou poupar-me o trabalho de vos

acompanhar. Que Deus vos ajude! Se estiverdes disposto a prosseguir, não hesitai!

Reuni coragem e fazei com que vosso cavalo transponha de um salto o passo

selvagem!"

Ela se deixou ficar ali na campina enquanto o senhor Galvão prosseguiu a

marcha. Avançando ouviu o fragor de uma queda d'água que no seu curso cavara

um talvegue profundo e impraticável. Galvão, o intrépido guerreiro, chamou a

montaria nas esporas, compelindo-a a dar enorme salto, de sorte a alcançar a

margem oposta com as patas dianteiras. Esse salto teria que resultar forçosamente

numa queda. Ao assistir a essa cena a duquesa não pôde reprimir as lágrimas. O

fluxo da corrente era impetuoso e irresistível. A despeito disso e o peso da armadura

Galvão se salvou valendo-se de sua força hercúlea. Vendo à frente um galho de

que nunca mais voltaram a Irlanda porque viviam felizes na sua misteriosa e afortunada Ilha Brazil, situado no
Ocidente Extremo. Não deve ser esquecido que, segundo a lenda, o corpo do Rei Artur teria sido transportado e
exumado na “Ilha Afortunada” situada no Atlântico – lá onde o sol se põe”. Como o poema “Parsifal”, de
Wolfram von Eschenbach, é uma relaboração cristã de lendas celtas antiqüíssimas, não é, afinal, tão estranho que
nele apareça referência ao pau-brasil. N.T.

448
árvore que emergia das águas o robusto varão o agarrou, pois lutava pela vida.

Recolhendo a lança que boiava ao lado o herói subiu a vertente valendo-se de pés e

mãos. A seguir tratou de safar Gringuljete, que vez por outra emergia das águas.

Mas a montaria vinha sendo arrastada tão velozmente rio abaixo que só a muito

custo pôde segui-la, em virtude do peso da armadura e dos ferimentos de que ainda

se ressentia. Ali onde a erosão das águas pluviais havia transformado a encosta

íngreme em largo remanso o cavalo foi levado para tão perto da margem que

Galvão pôde alcançá-lo com a lança. Com ela conduziu Gringuljete para cada vez

mais perto da margem até conseguir agarrá-lo pelo freio e puxá-lo para terra firme.

Ao se sentir seguro o animal sacudiu-se todo. O escudo também havia sido

resgatado. Ele reapertou-lhe a cincha e agarrou o escudo. Quem não se condoer de

sua situação que se omita. O certo é que o amor o levou a essa situação de extremo

embaraço.

5. A ÁRVORE DE GRAMOFLANZ

A bela Orgeluse o incumbira da tarefa de acolher a coroa de ramos, o que

requeria não pouca coragem. É que a árvore estava tão bem guardada que para

colhê-la dois homens da categoria de Galvão se exporiam ao risco de perder a vida.

Quem guardava a árvore era um certo Rei Gramoflanz. A despeito disso Galvão

colheu a coroa de ramos. O rio se chamava Sabins e Galvão teve de pagar preço

449
sumamente desagradável por se ver compelido a chapinhar nele juntamente com a

montaria. Por mais atraente que Orgeluse pudesse ser, não quereria seu amor por

tal preço. Sei muito bem o que me convém.

Galvão havia acabado de colher o ramo e com ele envolvido o elmo à

feição de uma coroa quando um homem a cavalo, de belas feições e na força da

idade, dele se aproximou. Era tão vaidoso e autoconfiante que mesmo gravemente

ofendido recusava-se a lutar com um homem só, mas sempre com dois ou mais.

Tinha conceito exagerado de seu próprio valor, a ponto de permitir que um homem

isolado partisse sem ser molestado não importando o que lhe tivesse feito. O Rei

Gramoflanz, filho do Rei Irot, cumprimentou Galvão com um "bom dia" e foi logo

dizendo: "Não vos iludais acreditando que abri mão da coroa de ramos. Não haveria

de minha parte saudação alguma se ao invés de vós, dois sequiosos por fama

houvessem tido a ousadia de colher um ramo de minha árvore. Eles teriam de se

bater comigo. Mas, assim o combate não me traria qualquer honra."

Galvão também só a contragosto aceitaria a luta, considerando que o rei

se encontrava desarmado. Na mão bem tratada o renomado campeão segurava

apenas um filhote de gavião que Itonje, a encantadora irmã de Galvão, lhe enviara.

Na cabeça usava chapéu de penas de pavão e sobre os ombros um manto de

veludo verde - capim, cujas orlas chegavam a roçar o chão. O manto tinha

guarnições de arminho branco. Embora não muito alta sua montaria era robusta e

bem proporcionada, originária da Dinamarca e teria sido trazida de lá não se sabe

ao certo se por via marítima ou terrestre. O rei estava desarmado. Não trouxera

sequer espada.

450
"Pelo aspecto de vosso escudo lutastes bravamente", observou o Rei

Gramoflanz. "Está tão esburacado que pelo visto estivestes em contacto com o Lit

Marveile. Sois o autor de uma façanha que a rigor deveria ter sido reservada a mim.

Mas o empenho do sábio Clinschor foi sempre no sentido de viver em paz comigo.

Em conflito vivo apenas com uma mulher, cuja formosura levou a melhor sobre o

amor. É minha inimiga jurada e tem motivos de sobra para isso. É que matei

Cidegast e quatro de seus melhores homens. A seguir raptei Orgeluse e lhe ofereci

minha coroa e meu reino. Mas por mais ofertas que lhe fizesse conservou-se hostil

para comigo. Ao longo de todo um ano requestei seu amor sem resultado. De

coração aberto dou-vos conta de minha triste sorte por saber muito bem que ela vos

prometeu seu amor e por isso estais aqui para matar-me. Se tivésseis vindo em

companhia de mais alguém eu vos teria, ou vós me teríeis morto. Esse teria sido o

preço de vosso atrevimento. Mas agora meu coração anseia pelo amor de outra

dama. Ela vive ali, onde agora minhas aspirações amorosas dependem de vossa

condescendência já que a vitória fez de vós soberano de Terre Marveile. Se for

vossa disposição demonstrar-me benevolência patrocinai minhas pretensões junto à

jovem por quem meu coração anseia. Ela é filha do Rei Lot. Nunca mulher alguma

exerceu sobre mim tamanho fascínio. Na minha mão está a prenda com a qual a

jovem deslumbrante quis externar sua permissão para que lhe prestasse serviços.

Tenho razões para acreditar que ela também me quer bem. Isso me estimulou a

arrostar, por amor a ela, muitas situações penosas. Se a partir do momento em que

fui desdenhosamente repelido pela voluntariosa Orgeluse pude realizar numerosos

feitos, com desprezo à minha própria segurança é porque fui guiado pela força

inspiradora de Itonje. Infelizmente nunca a encontrei em pessoa. Se pudesse contar

com vossa boa vontade gostaria que passásseis às mãos da gentil e suave dama

451
este anelzinho. Não sereis aqui hostilizado, de vez que meus adversários terão que

ser dois, ou mais. Nada acrescentaria à minha fama se vos matasse ou vos

obrigasse a vos declarar vencido. Nunca me bati com um homem só."

O senhor Galvão contestou: "Sou homem consciente de meu próprio

valor. Se matar-me nada acresce a vosso merecimento então o ramo que colhi

também não me engrandece. Ademais, se vos matasse assim desarmado quem o

seria capaz de considerar um grande feito?/ Concordo, contudo, em ser vosso

mensageiro. Dai-me o anelzinho! Comprometo-me a lhe transmitir o oferecimento de

vossos serviços e a não lhe ocultar vossas penas de amor."

6. O COMBATE APRAZADO

O rei agradeceu muito e Galvão prosseguiu: "Já que um combate comigo

vos pareceu um ato sem importância dizei-me, senhor, quem sois."

"Isso não resultará para vós em desprestígio", replicou o rei. "Tampouco

vos ocultarei meu nome. Meu pai se chamava Irote e foi morto pelo Rei Lot. Eu sou

o Rei Gramoflanz. Meu coração é altivo o bastante para recusar o combate com um

homem Isolado, sem levar em consideração o mal que me tenha feito. Abro apenas

uma exceção para um homem chamado Galvão. A ele se atribuem tantos feitos que

aceitaria de bom grado medir-me com ele. Tenho além deste um outro motivo. O pai
452
dele agiu de modo desleal, ao matar o meu no momento em que o cumprimentava.

Tenho, portanto motivos de sobra para acusá-lo. Lot infelizmente morreu. Mas o filho

dele, Galvão, cobriu-se de tanta glória que mesmo fora da Távola Redonda nenhum

cavaleiro pode superá-lo em prestígio. Espero poder um dia medir forças com ele."

O filho do ilustre Lot contestou, dizendo: "A prova de amor que pretendeis

dar à vossa amada- se é que dela se trata efetivamente- acaso consistiria em atribuir

ao pai dela um ato desonroso e desleal e, de quebra, declarar ainda que muito vos

agradaria matar o irmão dela? Seria uma jovem de péssimo caráter se não

condenasse semelhante atitude. Mas se for boa filha e irmã, tratará de defendê-los e

fará com que vosso ódio se aplaque. Qual seria a situação de vosso sogro se ele de

fato tivesse agido de forma desleal? Acaso já não vos vingastes, atribuindo ao morto

uma conduta desleal? Mas o filho dele não irá descurar-se do seu dever e

altivamente por ele responderá como convém. E não desejando tirar qualquer

proveito que a beleza de sua irmã poderá representar, oferece a si próprio como

garantia. Senhor, eu sou Galvão! O que quer que meu falecido pai vos tenha feito

podeis vingá-lo em mim. Não aceito qualquer defeito moral que se lhe impute e

empenho num combate a dois minha vida honrada."

O rei então exclamou: "Se fordes vós aquele a quem tenho ódio

implacável, vossa presença causa-me a um tempo satisfação e desgosto. Satisfação

por finalmente poder me bater convosco. Também para vós o encontro será

sumamente honroso, por aceitá-lo como adversário isolado, ao arrepio de minhas

próprias normas. Nosso prestígio estará multiplicado se o combate se realizar diante

de seleto público feminino. Farei com que quinhentas damas compareçam ao local.

Quanto a vós, podeis contar com a presença da deslumbrante comunidade feminina

453
de Schastel Marveile, isso sem levar em conta aquelas que vosso tio Artur poderá

trazer do reino de Lover. Acaso conheceis a cidade de Bems, na Korcha? É ali que

ele se acha instalado com todo o seu séquito. Dentro de oito dias poderá ele

facilmente estar em grande estilo no local em que se travará a luta. Eu próprio

estarei no prazo de dezesseis dias no campo de Jof lanze para ali reapresentar

minha velha queixa e cobrar de vós o preço pela coroa de ramos."

O rei pediu que o acompanhasse à cidade de Roche Sabbins: "Não

encontrareis, senão lá, uma ponte sobre o rio." Mas o senhor Galvão objetou:

"Voltarei pelo caminho por onde vim. No mais, tratarei de atender tudo que me

pedistes."

Convieram, pois em se deslocar para Jof lanze, acompanhados de

cavaleiros e damas, para ali se baterem em duelo conforme combinado.

7. GALVÃO CONQUISTA ORGELUSE

A seguir Galvão se despediu do renomado cavaleiro e partiu alegre,

porque agora a coroa de ramos se constituía para ele em digno ornamento. Sem

refrear a montaria impeliu-a a esperadas rumo ao Passo Selvagem. Dessa vez

454
Gringuljete tomou impulso no momento certo e sem claudicar transpôs o passo com

um salto gigantesco.

A duquesa veio ao encontro de Galvão, que apeara para reapertar a

cincha do animal. Ao deparar-se com ele resvalou da sela, lançou-se a seus pés e

exclamou: "Nunca mereceria que vós, atendendo a exigências minhas, vos

precipitásseis nessa aventura. As provações por que passastes causaram-me um

tipo de aflição que só uma mulher apaixonada é capaz de sentir por seu amado."

Ele respondeu: "Vosso cumprimento é tão afetuoso que se for genuíno,

chega a ser quase digno de vós. Mas sei por experiência própria que desprezais a

instituição cavaleirosa. Ela é por demais sublime para que um verdadeiro cavaleiro

possa sentir-se atingido por tais motejos. Senhora, permiti que vos diga isso: Quem

quer que me tenha visto em ação terá de reconhecer que sempre agi como genuíno

cavaleiro. Aliás, desde nosso primeiro encontro pusestes isso seguidamente em

dúvida. Mas estou disposto a esquecer tudo. Tomai a coroa de ramos. Mas de futuro

abstende-vos de tratar um cavaleiro com menosprezo. Até mesmo vossa

deslumbrante beleza não vos confere o direito de agir desse modo. Prefiro renunciar

ao vosso amor a ser novamente objeto de vosso escárnio."

Chorando sentidas lágrimas a bela e respeitável Orgeluse desabafou: "Se

eu vos revelar o que me vai na alma reconhecereis a magnitude de minhas penas.

Se agi de forma volúvel e inconseqüente espero de vós o generoso perdão. A perda

dolorosa de Cidegast estava além de minha capacidade de sofrer. Límpido e sem

mácula era o prestígio do meu belo, amável e magnífico amante. Sua vida era um

exemplo de honradez. Em seu tempo era voz geral que ninguém o superava em

455
prestígio. Era um poço de virtudes e sua bondade natural o tornava avesso a

qualquer tipo de procedimento menos digno. Das trevas emergia ele à luz e tanto

dilatou sua fama que ninguém dado a práticas desleais podia se comparar a ele.

Essas qualidades que o distinguiam vinham de algo interior, de seus dotes de

coração, e nisso os demais ficavam muito aquém dele. Cumprindo sua trajetória

Saturno não se ergue muito acima das demais estrelas? Sua lealdade poderia muito

bem ser comparada à do unicórnio. Todas as virgens deveriam solidariamente

deplorar a triste sorte desse animal, cujo amor à pureza resultaria para ele em

fatalidade. Eu era seu coração e ele era meu corpo, esse corpo que o destino

adverso me arrebataria. O Rei Gramoflanz, cuja coroa de ramos me trouxestes, foi

quem o matou. Senhor, se eu vos ofendi com palavras amargas é porque vos quis

pôr à prova a fim de averiguar se sereis digno de meu amor. Senhor, bem sei que

vos ofendi, mas isso fazia parte da prova. Agora que vossa ira se desvaneceu

perdoai o que vos fiz. Sois um homem de escol! Compararia vossa fibra ao ouro

purificado em crisol. Trouxe-vos a este lugar porque pretendia e ainda pretendo

vingar-me desse homem que tanto mal me causou."

O senhor Galvão respondeu: "Senhora, caso a morte não mo impeça,

minha mão há de lhe infligir castigo que o curará de vez de seu orgulho.

Comprometi-me com ele a. dentro de poucos dias enfrentá-lo em luta a dois. Saber-

se-á então, do que cada um de nós é capaz de obrar. Senhora, já vos perdoei.

Gostaria, no entanto, que não menosprezásseis um despretensioso conselho meu.

Ele enriquecerá vosso prestígio como mulher e vos dará verdadeira distinção. Não

há vivalma por perto. Concedei-me, pois senhora vossa estima!"

456
Ela porém, argumentou: "Um braço armado nunca foi capaz de aquecer-

me. Isso não significa que não vos concederei no devido tempo as esperadas

recompensas. Por ora proponho-me a vos dar assistência, tratar de vossos

ferimentos e curar os males de que padeceis. Pretendo agora regressar convosco a

Schastel Marveile."

"Vós acabastes de multiplicar minhas alegrias!", exclamou o varão

apaixonado. A seguir pôs a fascinante mulher na sela, sem descurar de abraçá-la

afetuosamente. Quando a encontrara pela primeira vez naquele sítio junto à fonte e

ela lhe dissera palavras tão estranhas não a havia considerado digna disso.

Galvão partiu felicíssimo, mas Orgeluse não pôde reprimir as lágrimas até

que ele, alarmado, lhe perguntasse acerca dos motivos do choro e procurasse

acalmá-la. Ela então desabafou: "Senhor, não posso esquecer aquele homem que

matou meu nobre Cidegast. Meu coração que exultava de felicidade enquanto seu

carinho me envolvia, agora está profundamente ferido. Para vingar-me lancei mão

de todos os meios, envolvendo o rei em muitos combates que deveriam resultar em

sua perdição. Ah, se pudesse fazer de vós o instrumento daquela vingança capaz de

finalmente resgatar-me dessa dor que me consome! Para levar Gramoflanz à morte

aceitei o serviço de certo rei que possuía muitas coisas singulares. Seu nome é

Anfortas. Como prova de amor ofereceu-me aquelas mercadorias procedentes de

Tabronit que se acham expostas diante do portão de entrada de vosso castelo. A

meu serviço esse rei foi atingido pela desgraça que me precipitou no mais negro

desespero. Ao invés do amor que pretendia dar-lhe foi alvo de novos contratempos.

É que Anfortas foi ferido estando a meu serviço e a aflição que disso resultou para

mim foi tão grande ou talvez ainda maior do que me causou a morte de Cidegast.

457
Agora dizei-me se eu, pobre mulher, em meio a tanta desgraça poderia conservar a

cabeça no lugar, de vez que a autenticidade é minha característica? As vezes

ficava inteiramente fora de mim por ver definhar irremediavelmente aquele que

escolhi depois de Cidegast, sem tê-lo vingado. Senhor, sabereis agora como

Clinschor se apossou da preciosa mercadoria que se encontra diante do portão de

vosso castelo."

"Desde que o magnífico Anfortas, que me enviara essas dádivas, se viu

privado do amor e da alegria de viver, vivo em constante sobressalto temendo novas

humilhações, pois Clinschor é iniciado em magia negra e recorrendo a seus poderes

ocultos submete homens e mulheres à sua vontade. Nenhum homem de bem que

lhe chame a atenção escapa à força de seu sortilégio. Para ser deixada em paz cedi

a Clinschor todo o precioso acervo de mercadorias mediante uma condição: eu

ofereceria minha mão àquele que saísse vitorioso na aventura do castelo. Caso este

a recusasse, o precioso acervo voltaria a ser novamente meu. Esse contrato foi

confirmado mediante juramento de todos os presentes no ato. Agora passou a ser

propriedade comum nossa. Lançando mão de tal expediente intentei a perda de

Gramoflanz no que Infelizmente não fui bem sucedida. Se ele houvesse tentado a

aventura, teria perecido."

"Clinschor tem formação cortês e é muito esperto. Para conservar a boa

reputação consentiu que meus aguerridos cavaleiros competissem com lança e

espada em seu território. Em todos os dias da semana e em todas as semanas do

ano são mobilizados dia e noite, às minhas expensas, novos esquadrões de

combatentes contra o orgulhoso Gramoflanz. Contra eles teve de sustentar muitos

combates. Não é singular que tenha podido manter-se incólume? Fiz de tudo para

458
pôr sua vida em perigo. Quando não havia quem simpatizasse com minha causa

contratava aquele disposto a me servir a soldo, convencendo-o a me servir por amor

embora jamais lhe prometesse tal recompensa. Não havia homem que ao me ver

não se dispusesse a me servir, menos um, que usava armadura vermelha. Quando

chegou a Logroys pôs todos os meus guerreiros em dificuldade, pois para meu

desgosto os pôs em debandada e os abateu. Cinco de meus cavaleiros que o

seguiram ao ancoradouro foram vencidos por ele na campina e seus cavalos

entregues ao barqueiro. Depois de haver vencido meus homens eu própria fui a seu

encontro oferecendo-lhe meu reino e minha mão. Ele porém recusou, alegando que

preferia manter-se fiel à sua própria mulher que, de resto, era mais bonita que eu.

Irritada com suas palavras, quis saber de quem se tratava. “A bela Rainha de

Pelrapeire é minha esposa. Eu próprio me chamo Parsifal. Vosso amor não me atrai,

pois o Graal já me dá preocupações de sobr”a. Com essas palavras o insigne herói

partiu contrariado. Dizei-me agora se agi mal quando em desespero de causa lhe

ofereci minha mão. Se fosse este o caso meu amor não teria valor para vós."

Galvão disse à duquesa: "Considero aquele a quem oferecestes vossa

mão como homem de grandes méritos. Por isso não teríeis deslustrado vossa

reputação caso vosso amor lhe parecesse preferível."

459
8. REGRESSO FESTIVO AO CASTELO ENCANTADO

O nobre Galvão e a Duquesa de Logroys entreolharam-se enternecidos.

Prosseguindo caminho atingiram um ponto em que à distância, avistaram o castelo

em que Galvão saíra vitorioso da aventura. Galvão disse-lhe então: “Senhora,

gostaria que mantivésseis meu nome em segredo. Vós o ouvistes da boca do cava

leiro que me roubou Gringuljete. Fazei-me este favor. Quando alguém vos indagar a

respeito, dizei: Não conheço meu acompanhante pelo nome. Nunca me disse como

se chama." Ela respondeu: "Mantê-lo-ei em segredo com muito prazer e já que

assim o desejais não o mencionarei mais."

Galvão e sua gentil acompanhante prosseguiram na marcha rumo ao

castelo. Enquanto isso os cavaleiros souberam da iminente chegada do vencedor da

aventura, que matara o leão e descavalgara o Turcóide em combate regular.

Atravessando a campina Galvão havia se aproximado o suficiente do ancoradouro

para ser visto das ameias do castelo. Todos se dirigiram então, alegres e

pressurosos, para o portão. Convergiram para o local montados em fogosos corcéis

e portando magníficos estandartes, como se viessem dispostos para o combate.

Vendo-os se aproximar. Galvão perguntou à duquesa: "Estará essa

multidão disposta a um confronto conosco?"

460
Ela respondeu: "Trata-se do exército de Clinschor. Com impaciência

vinham eles aguardando vossa chegada. Na realidade estão se dando pressa para

vos dar boas-vindas. Suponho que esta manifestação de simpatia não vos deva

desagradar."

Entrementes Plippalinot e sua atraente filha vinham chegando na sua

barca. A jovem corria pela campina ao seu encontro para recebê-lo com

manifestações de alegria. Quando Galvão a cumprimentou ela lhe beijou pés e

estribos e também deu boas-vindas à duquesa. Agarrando a montaria pelo freio

pediu-lhe que desmontasse. Galvão e sua dama se dirigiram à proa da embarcação,

onde haviam sido dispostos um tapete e assentos almofadados. A pedido de Galvão

a duquesa sentou a seu lado. A filha do barqueiro não se descuidou de aliviá-lo da

armadura. Segundo ouvi falar, trouxera ela aquele mesmo manto que lhe servira de

coberta na noite em que fora hóspede de sua casa/ e que agora lhe caberia usar

uma vez mais. Galvão vestiu túnica e manto enquanto a jovem tratava de retirar dali

a armadura.

Agora sentados lado a lado, a bela duquesa pôde finalmente contemplar-

lhe o rosto. Entrementes a simpática jovem servia-lhes sobre um pano alvíssimo

duas cotovias de poupa, assadas, além de uma taça de vinho e dois pães brancos.

Fora o gavião que havia tratado de conseguir esse assado. Havia água disponível

caso Galvão e a duquesa quisessem lavar as mãos, o que fizeram em seguida.

Galvão sentia-se feliz por partilhar a mesa com a mulher amada, pela qual faria

qualquer coisa. Se de quando em quando ela lhe passava a taça que antes tocara

com os lábios, seu prazer se renovava sempre que lhe tocava a vez. Sua tristeza se

desvanecia na medida em que se multiplicavam suas alegrias.

461
Os doces lábios e a face radiante da amada faziam-no esquecer

tributações por que passara e o mal-estar que os ferimentos lhe causavam. As

damas do castelo observavam enquanto os dois comiam. Havia ali também

numerosos cavaleiros que em área próxima à margem exibiam suas habilidades em

exercícios de arte marcial. Do lado de cá do rio Galvão e a duquesa agradeceram ao

barqueiro e à filha o acolhimento amigo. A duquesa então perguntou: "Depois de

minha partida o que aconteceu ao cavaleiro que aqui se bateu em duelo? Alguém o

venceu e decidiu sobre sua vida ou morte?"

Plippalinot explicou: "Senhora, ainda hoje o vi vivo e bem disposto. Ele me

foi dado no lugar de um cavalo. Caso pretendais resgatá-lo dai-me a harpa da

Rainha Secundille que Anfortas vos ofereceu. Se receber a harpa o Duque de

Gowerzin estará livre."

Ela replicou: "A harpa e demais bens permutáveis pertencem agora a

quem está sentado a meu lado. Consoante bem lhe pareça pode ele presenteá-los

ou conservá-los para si. Mas caso ele me queira bem, resgatará Lischoys, Duque

de Gowerzin, bem como o outro príncipe, chamado Florand de Itolac. Como meu

Turcóide, zelava por minha segurança e me era tão dedicado que não terei alegria

enquanto estiver nessa triste situação."

Galvão disse-lhe então: "Ainda antes do cair da noite vereis um e outro

em liberdade."

A seguir regressaram à outra margem do rio, onde Galvão ajudou a

duquesa a montar. Ambos foram recebidos ali por numerosos e distintos cavaleiros

462
que os acompanharam até o castelo. Alegres e à vontade iniciaram ali um exercício

de arte marcial que fazia honra a todos. Que mais me resta dizer? Apenas que o

bravo Galvão e a magnífica duquesa tiveram, da parte das damas de Schastel

Marveile uma recepção tão carinhosa que os deixou sumamente felizes. Podeis

agora celebrá-lo por tanta felicidade que lhe foi dado experimentar. A seguir foi

conduzido a um aposento onde Arnive e outras terapeutas passaram a tratar de

seus ferimentos.

Galvão disse então a Arnive: "Necessito de um mensageiro."

A jovem dama incumbida da tarefa de chamar o mensageiro voltou

acompanhada de um escudeiro valoroso e sumamente gentil, um verdadeiro padrão

de sua classe. Galvão fê-lo jurar que exceto o próprio destinatário não revelaria a

vivalma dentro ou fora do castelo o conteúdo da mensagem, quer contivesse boas

ou más notícias. A seguir mandou vir tinta e pergaminho. Com letra firme e elegante

reafirmou ao Rei Artur e à esposa deste, no momento residentes no Reino de Lover,

sua imutável lealdade. Se conquistara notoriedade, esta se desvaneceria, caso em

situação adversa não acorresse em seu auxílio. Em nome dessa leal amizade que

os unia pediu-lhes que se dirigissem com todo o seu séqüito de cavaleiros e damas

para Jof lanze. Ele próprio lá estaria para defender sua honra num combate.

Prosseguindo, disse que o encontro seria o ponto de atração de um grande

acontecimento social. Por fim lançou um apelo a todos os cavaleiros e damas da

corte para que em nome da lealdade recíproca convencessem o rei a seguir para

Joflanze, o que - assegurou-lhes - resultaria em prestígio para todos. Ao se colocar à

disposição dos notáveis do reino advertiu-os para o fato de que o combate que ali se

travaria prometia ser sobremodo árduo.

463
A carta não continha sinete, mas seu texto apresentava certos sinais

característicos que identificavam o signatário. "Parte sem tardança", disse Galvão ao

escudeiro. "No momento, o rei e a rainha se encontram em Bems, na Korcha. Pela

manhã, bem cedo, apresenta-te à rainha e segue suas instruções. Uma

recomendação especial: não reveles a vivalma que sou soberano deste reino nem

tua qualidade de integrante de meu séqüito."

Sem que alguém o percebesse, Arnive seguiu o escudeiro, perguntando-

lhe para onde ia e qual era o conteúdo da mensagem que levava. Ele, porém,

replicou: "Senhora, se meu juramento tiver algum valor, nada poderei revelar-vos.

Que Deus vos guarde! Agora devo partir!" Com estas palavras se pôs a caminho

rumo ao local onde sabia achar-se reunida a seleta comunidade.

464
LIVRO XIII
1. A FESTA NO CASTELO ENCANTADO DE CUNSCHOR

O fato de o escudeiro não lhe haver revelado para onde ia deixou Arnive

sobremodo irritada. Por isso recomendou à sentinela do portão: "Quer regresse ele

durante o dia ou à noite, procede de modo que seja obrigado a esperar até que

tenha falado com ele. Deixo isso por conta de tua habilidade."

Agastada com o escudeiro, procurou a duquesa e começou a lhe fazer

perguntas. Esta, porém não fez qualquer menção ao nome de Galvão. Consoante

prometera ocultou-lhe o nome e a estirpe do novo soberano do país. Entrementes

festivos toques de trombetas e de outros instrumentos ecoavam pelo palácio, onde

artísticos tapetes acolhiam os pés dos visitantes e ornamentavam as paredes. Para

um anfitrião pobre tamanha ostentação seria motivo de constrangimento. Os

assentos dispostos ao longo das paredes eram providos de macias almofadas e

forros sobremodo preciosos.

465
Depois de tantas fadigas e penas Galvão dormiu até altas horas. Suas

feridas haviam sido pensadas de forma tão apropriada que chegou a pensar quão

bom seria se a amada estivesse deitada ao seu lado e pudesse tê-la em doce amor.

Dessa vez dormiu bem melhor que na noite anterior, quando a lembrança

da duquesa o atormentava. Ao despertar à tardinha emergiu de um sonho no qual se

vira envolvido em nova escaramuça erótica com a duquesa. Consoante ouvi dizer,

seu camareiro trouxe-lhe reluzentes vestimentas de seda com preciosas e pesadas

bordaduras de ouro. Foi então que meu senhor Galvão observou: "É mister

providenciar vestes de igual valor para o Duque de Gowerzin e para o vistoso

Florand, que em muitos países deixou a marca de sua bravura. Trata de deixá-las

prontas para o uso."

Ao seu anfitrião Plippalinot determinou que seu escudeiro trouxesse

Lischoys à sua presença. Não muito depois a bela filha do barqueiro ali compareceu

em companhia de Lischoys. A senhorinha Bene veio com ele de mãos dadas, para

agradar a Galvão e também porque este prometera muitas coisas a seu pai no dia

em que mergulhada em prantos o vira partir com ânimo resoluto, disposto a dilatar

sua fama. O Turcóide ali também comparecera e Galvão os recebeu sem

hostilidade. Ambos se sentaram junto dele e a seguir foram trazidas as vestimentas.

Estas eram tão magníficas que poderiam ser consideradas incomparáveis.

Outrora vivera um mestre chamado Sarant, assim denominado porque

descendia dos Seres198. Mas ele próprio era natural de Triande. No reino de

198
Seres. Nomwe sob o qual eram conhecidos, na Antiguidade e na Idade Média, os habitantes da Ásia
Oriental (hoje China), hábeis na confecção de tecido de seda.

466
Secundille existe uma cidade chamada Thasme, maior que Nínive ou a portentosa

Ácraton. Para tornar-se célebre Sarant inventou ali um tecido que chamou muita

atenção e que passou a ser denominado Saranthasme. Não é preciso perguntar se

era agradável à vista. O certo é seu preço deveras elevado.

Galvão e os dois cavaleiros trataram de se engalanar com tais roupas e a

seguir dirigiram-se ao palácio, onde numerosos cavaleiros postados num lado e um

cortejo de belíssimas damas noutro os aguardavam. Quem possuísse algum senso

de observação teria oportunidade em constatar que a Duquesa de Logroys era

dentre todas a mais bela. O anfitrião e seus acompanhantes acercaram-se da

deslumbrante Orgeluse e ali diante dela os dois príncipes da corte - o Turcóide

Florand e o galante Lischoys - obtiveram, em homenagem à Duquesa de Logroys,

liberdade incondicional. Orgeluse agradeceu a Galvão o gesto magnânimo, pois não

sabia fingir e no fundo compreendia muito bem o que convém a uma dama.

Enquanto conversavam Galvão notou que junto à duquesa havia quatro rainhas. Por

isso, em tom obsequioso pediu a Lischoys e Florand que se aproximassem para

serem cumprimentadas com um beijo pelas três damas mais jovens. A senhorita

Bene, que se achava em companhia de Galvão, foi também saudada amavelmente.

O anfitrião, não desejando permanecer de pé por mais tempo, pediu aos

dois que tomassem assento junto às damas da maneira que lhes conviesse, um

convite que ambos aceitaram prazerosamente.

"Qual dessas damas é Itonje? Gostaria de sentar-me junto dela." Foi esta

pergunta que Galvão cochichou nos ouvidos de Bene. Atendendo o pedido,

467
identificou a bela jovem: "É aquela de boca rubra, cabelos castanhos e olhos

brilhantes. Se com ela desejais ter uma conversa em particular, limitai-vos ao que

convém", recomendou a bem-criada senhorinha Bene. Ela estava a par dos

problemas amorosos de Itonje e dos motivos pelos quais o nobre Rei Gramoflanz a

servia com cavaleirosa dedicação.

Reproduzo aqui apenas o que me foi dito. Galvão sentou junto à jovem e

lhe dirigiu palavra em tom gentil. Dialogar era um terreno em que se sentia

perfeitamente à vontade. Mas Itonje, a despeito de pouca idade, demonstrou ser

também hábil no uso da palavra. Ele se arriscou ao lhe perguntar se já estava a par

das coisas do amor. Mas ela demonstrou ser muito senhora de si ao responder:

"Senhor, a quem poderia eu amar? Desde que me conheço como gente nunca

troquei palavra com um cavaleiro. Hoje isso acontece pela primeira vez."

Meu senhor Galvão prosseguiu: "Mas quem sabe já ouvistes falar da

necessidade que o cavaleiro tem de buscar a fama engajando-se em lides

cavaleirosas e de alguém lealmente empenhado a servir por amor?"

A bela jovem respondeu: "Sobre essa questão de servir por amor, nada

sei. Sei apenas que há muitos nobres cavaleiros servindo à Duquesa de Logroys por

amor ou mediante remuneração. Temos visto muitos se baterem em combate mas

nenhum, famoso por seus altos feitos, como vós, tem estado em contato direto

comigo."

468
Ele prosseguiu perguntando à bela jovem: "Quem é o alvo da hostilidade

desses aguerridos esquadrões de cavaleiros da duquesa? Quem caiu no desagrado

de Orgeluse?"

"Trata-se do Rei Gramoflanz", respondeu ela. "Ele tem fama de grande

campeão. Senhor, é isso que sei a respeito dele."

"Então" - observou o senhor Galvão - "caso vos aprouver ouvireis mais

coisas a respeito dele. De sua própria boca ouvi que estava empenhado de corpo e

alma no mister de vos servir e que esperava de vosso amor consolo e ajuda. É de

certo muito natural que um rei se tome de paixão por uma rainha. Senhora, se o

nome de vosso pai for Lot então sois vós por quem seu coração anseia. Se vosso

nome for Itonje então sois vós o objeto de suas penas. Disponho-me a servir aos

dois como mensageiro. Senhora, aceitai este anelzinho. É um mimo que vos envia o

galante Gramoflanz, cuja mensagem aqui transmito sem compromisso. Senhora,

podeis confiar em mim."

As faces dela assumiram o rubor de seus lábios, empalidecendo a seguir.

Timidamente apanhou com mão de fada o anelzinho que conhecia tão bem. A seguir

disse: "Senhor, se me for dado falar com franqueza, devo reconhecer que vindes da

parte do homem por quem meu coração anseia. Se desejais agir consoante as

normas da boa educação não passai adiante o que sabeis. Não é a primeira vez que

o rei me envia este anel. Foi um presente que lhe enviei e serve de sinal de

reconhecimento. Se ele está deprimido não me cabe culpa pois em pensamento

atendi a todos os seus desejos. Se me fosse permitido sair daqui ele teria sabido

469
disso há mais tempo. Quando beijei Orgeluse, que intenta contra a sua vida, dei-lhe,

como se diz, um beijo de Judas. Na realidade reneguei minha lealdade ao consentir

que o Turcóide Florand e o Duque Gowerzin me cumprimentassem com um beijo.

No fundo detesto todos aqueles que hostilizam o Rei Gramoflanz com seu ódio. Mas

minha mãe não pode saber disso e tampouco minha irmã Cundrie!" Foi este o

pedido que Itonje fez a Galvão: "Senhor, vós desejais que receba o beijo desses

homens que eu abomino. É uma situação que me abala profundamente. Só vossa

mão poderosa é capaz de dar a ajuda necessária para que um dia nós dois sejamos

felizes. O rei me ama inegavelmente mais que a todas as demais mulheres e eu

desejo retribuir esse sentimento preferindo-o a todos os outros homens. Que Deus

vos inspire uma solução a fim de que nossa felicidade não seja comprometida."

Ele respondeu então: "Senhora, aconselhai-me sobre como devo

proceder. Afinal estais separados. Ele está lá e vós cá. Se eu encontrasse uma

saída que permitisse a vós dois viverem uma vida honrada e feliz eu faria qualquer

coisa para alcançar esse objetivo."

Ela respondeu: "Eu e o nobre rei depositamos em vós toda a nossa

confiança. Vossa ajuda e a bênção de Deus serão os esteios de nosso amor e com

eles espero poder remi-lo de suas penas. Como represento sua única felicidade

considero meu dever empenhar-me de todo o coração e alma para conceder-lhe

meu amor."

Galvão ouviu, pois da boca da jovem a declaração de que ansiava por

amor e odiava profundamente a duquesa. Em seu coração o amor coabitava com o

470
ódio. Mas ele próprio foi desonesto com a jovem ingênua, que num gesto de

desabafo lhe revelara suas penas, pois lhe ocultara que a mesma mãe os trouxera

ao mundo e que o Rei Lot era o pai de ambos. Depois de haver recebido sua

promessa de ajuda a jovem inclinou levemente ã cabeça num gesto de gratidão pela

solidariedade.

Entrementes havia chegado a hora de mandar vir pão e toalhas de mesa

alvíssimas para o local do palácio onde já se achava reunido um simpático grupo de

damas. Na hora de ocupar lugar à mesa houve uma separação. Apartados das

damas os cavaleiros ocuparam um lado da mesa. O senhor Galvão ditava a ordem

de precedência. A seu lado sentava o Turcóide, enquanto Lischoys comia ao lado da

mãe de Galvão, a simpática Sangive. A bela duquesa partilhava a mesa com a

Rainha Arnive. As duas encantadoras irmãs ele convidou para sentarem a seu lado.

Os lugares eram ocupados de acordo com as indicações de Galvão.

Não sou grande cozinheiro, pois meus conhecimentos nessa arte não

bastariam para identificar sequer a metade dos pratos que ali vinham sendo servidos

com requintada formalidade. O anfitrião e as damas vinham sendo servidos por

amáveis e atraentes moças e os cavaleiros, do outro lado da mesa, por numerosos

escudeiros. Estes observavam uma disciplina tão rígida que no momento de servir

nenhum deles tentava abrir caminho em meio às jovens. Quer servissem comida ou

bebida procuravam sempre manter-se a respeitosa distância, como convém.

De semelhante jantar de gala os cavaleiros e as damas nunca haviam

participado desde o tempo em que tinham sido dominados pelo poderoso sortilégio

471
de Clinschor. Embora confinados no mesmo castelo as damas e os cavaleiros não

se conheciam e nunca haviam trocado uma palavra sequer. Foi por intermédio de

Galvão que puderam viver a gratificante experiência de entrar em contacto uns com

os outros. Galvão se mostrou igualmente eufórico. Mas seu olhar seguia sempre os

movimentos da bela duquesa, senhora de seu coração.

Entrementes o dia ia declinando. Extinto seu brilho, vinham emergindo,

cintilantes, por entre as nuvens, miríades de estrelas que como mensageiras da

noite tratavam de lhe preparar morada. Empós esses porta-estandartes vinha a

própria noite. Nos preciosos candelabros que pendiam do teto eram acesas

numerosas velas, iluminando todo o palácio. Nas mesas eram igualmente colocadas

numerosas velas. Aqui a Aventura sugere que a formosura da duquesa era de tal

modo esplendente que mesmo sem velas a escuridão não teria podido prevalecer na

sua proximidade pois sua beleza era qual claro dia. Era essa a versão que se

propalava a respeito daquela beldade. Certo é que dificilmente tereis visto em

qualquer tempo um anfitrião mais afortunado. O ambiente era de estar à vontade.

Seguida e livremente cavaleiros e damas trocavam olhares carregados de desejos e

promessas. De minha parte não tenho objeções a fazer. Se de início revelavam

certa timidez por não se conhecerem agora se vinham tornando gradualmente mais

íntimos.

A essa altura podeis supor, com razão, que haviam comido o bastante e

que no caso se tratava de pura glutonaria. As mesas eram finalmente retiradas e

nosso senhor Galvão perguntou se alguém dos presentes sabia tocar rebeca. Havia

ali muitos nobres escudeiros iniciados na arte de tocar instrumentos de corda. Mas

472
seus conhecimentos se limitavam à execução de danças tradicionais. Sobre o novo

ritmo oriundo da Turíngia haviam ouvido falar apenas vagamente. Podeis agradecer

ao anfitrião que tudo fez para que não ficásseis privado desse entretenimento.

Muitas distintas damas viu ele ensaiar os passos de dança. O ritmo cresceu em

intensidade e colorido quando os cavaleiros iniciaram um movimento de penetração

nesse grupo feminino. Foi a maneira que acharam para comemorar o término de

suas vicissitudes. Entre duas damas figurava invariavelmente um vistoso cavaleiro.

Essa liberdade era compreensível. Quando um cavaleiro mais afoito se atrevia a

oferecer seus serviços em troca de amor a oferta nunca era recusada. Com risonha

despreocupação gastava-se o tempo a palestrar com os lábios atraentes que ali

sorriam.

2. SERVIÇOS RECOMPENSADOS

Galvão, Sangive e a Rainha Arnive permaneceram sentados observando

o movimento da multidão em compasso de dança. A essa altura a duquesa

aproximou-se de Galvão, sentado a seu lado. Este tomou-lhe as mãos e os dois

passaram a conversar sobre assuntos vários. Ele se sentia feliz pelo fato de ela o ter

procurado. Livre enfim de desgostos, sentia-se imensamente feliz. Todas as suas

penas haviam desaparecido. Se os demais se compraziam no embalo da dança a

satisfação de Galvão não era menor. A Rainha Arnive disse-lhe então: "Senhor, não

vos descuideis de vossa saúde! Tendo em conta vossas feridas conviria repousar

473
agora. Caso a duquesa tenha decidido compartilhar desde hoje o leito convosco e

zelar para vos manter agasalhado não há objeções a fazer. Ela saberá dar-vos

ajuda e conselho."

Galvão respondeu: "Perguntai a ela própria. Conformar-me-ei com o que

vós duas decidirdes."

A duquesa disse então: "Ele ficará entregue a meus cuidados. Fazei com

que os criados da casa se recolham a seus leitos. Cercá-lo-ei de solicitude maior

que qualquer outra seria capaz de proporcionar a seu bem-amado. Florand de Itolac

e o Duque de Gowerzin ficarão encarreqados de acomodar os cavaleiros."

Entrementes cessara a dança. Em vários pontos da sala haviam-se

acomodado diversos grupos de damas jovens e atraentes. Misturados a esses

grupos havia também muitos cavaleiros. Quem proferia galanteios e recebia em

troca palavras ternas e animadoras superava galhardamente as vicissitudes. A essa

altura o anfitrião mandou vir o gole de despedida. Os sedentos por amor

lamentavam naturalmente o fato. Ocorre que não apenas os cavaleiros como

também o anfitrião estavam às voltas com penas de amor. Como se achava

dominado por nobre paixão, parecia-lhe que já se achavam ali por tempo

demasiado. O trago de despedida assinalava o fim da festa. Os escudeiros foram à

dianteira dos cavaleiros portando numerosas velas presas a castiçais. O senhor

Galvão determinou aos escudeiros dar atenção especial a seus dois hóspedes

principescos, uma deferência que ambos receberam com agrado. A duquesa lhes

desejou bom descanso e Lischoys e Florand trataram de se recolher. As damas por

474
sua vez, inclinaram-se cortesmente e se recolheram a seus quartos. Sangive, Itonje

e Cundrie fizeram o mesmo. Enquanto isso Bene e Arnive se ocupavam do bem-

estar do anfitrião. De sua parte a duquesa se prontificou a ajudar em tudo que fosse

necessário. As três conduziram Galvão a seus aposentos. Ali na keme-nate viu ele

duas camas armadas separadamente. Poupar-me-ei o trabalho de descrever sua

aparência magnífica para tratar de outro assunto. É que Arnive disse à duquesa:

"Fazei agora tudo que puderdes pelo cavaleiro que trouxestes para cá. Será honroso

para vós assisti-lo no que for preciso. Conviria dizer-lhe ainda que suas feridas

foram tão habilmente pensadas que poderá envergar a armadura. No mais,

demonstrai compreensão com suas penas de amor. Se puderdes mitigá-las tanto

melhor. Se conseguirdes animá-lo será uma satisfação para todos nós. Não vos

impacienteis com isso!"

A Rainha Arnive se despediu e seguiu a Bene, que ia à frente com o

candeeiro. A seguir Galvão fechou a porta. Embora a contragosto nada direi sobre

como os dois se amaram na intimidade. Se revelar coisas íntimas não fosse

indiscrição bem que gostaria de dar-vos conta do que ali aconteceu. Um tal

comportamento aborreceria, contudo, as pessoas bem-educadas e o próprio

inconfidente se autopuniria com isso. O recato representa a tranca na porta dos

amantes. A onímoda paixão e a formosura da duquesa haviam privado Galvão de

todo o gosto pela vida. Sem a amada seria um homem aniquilado. Os filósofos não

seriam capazes de livrá-lo de tal sorte, nem aqueles homens iniciados nas artes

secretas, como Kancor, Thebit199, Trebuchet200, o ferreiro, que forjou a espada de

199
Kancor/Thebit. Sábios árabes que no século IX floresceram na corte dos kalifas de Bagdá
200
Trebuchet. Ligado às forças telúricas os ferreiros sempre encarados com um misto de respeito e receio.
Os mais antigos depositários desse mito metalúrgico foram os cabiros da tradição grega e os nibelungen da

475
Frimurtel com todas as suas miraculosas propriedades, e tampouco a ciência dos

médicos que, com a melhor das intenções, poderiam preparar-lhe um composto de

ervas curativas. Sem aquela companhia feminina suas penas se agravariam

gradativamente até lhe causar a morte.

Em poucas palavras, ele encontrou a autêntica erva-de-veado201que lhe

restituiria a saúde e o tornaria imune às doenças. Era uma erva escura sobre fundo

claro. Galvão, filho do Rei Lot, bretão por parte de mãe, recebeu da nobre

companheira durante toda a noite até o romper da aurora, o doce consolo que

aplacou suas ansiedades. A natureza desse consolo permaneceu resguardada da

curiosidade pública. Ele depois cuidaria também para que as damas e os cavaleiros

mantivessem boa disposição, visando dissipar em suas mentes as lembranças

tristes.

3. O REGRESSO DO MENSAGEIRO

Ouvi agora o relato do escudeiro que Galvão enviara a Bems, junto à

Korcha, no país de Lover. Ali se encontravam o Rei Artur, sua real consorte, muitas

damas da corte e número considerável de paladinos. Escutai agora o que o

mitologia germânica. Como estes, Trebuchet aparece aqui como nobre mestre ferreiro, iniciado na arte de
manipular o fogo que instilava nas armas que forjava. N.T.
201
Erva-de-veado (ou faxina vermelha). Árvore de pequeno porte da família das sapindáceas (Dodonea
viscosa), dotada de propriedades febrífugas. N.T.

476
escudeiro havia feito. Ele transmitiu sua mensagem ao amanhecer. A rainha se

encontrava na capela, lendo ajoelhada o saltério. O escudeiro caiu de joelhos diante

dela e lhe entregou a mensagem alvissareira. Ela recebeu a carta que lhe era

endereçada e reconheceu o remetente pela letra, antes que o escudeiro declinasse

o nome de seu amo. A rainha disse, como que se dirigindo à carta: "Bendita seja a

mão que te redigiu! Nunca mais estive livre de preocupações desde o dia em que vi

pela última vez a mão que te deu forma." Ela; chorou lágrimas de alegria e indagou

do escudeiro: "És tu servo de Galvão?"

"Sim, senhora! Como fiel cumpridor de seu dever ele reafirma sua

disposição de vos servir com inquebrantável lealdade e declara que unicamente vós

tendes a faculdade de decidir sobre sua desdita ou fortuna. Nunca como agora sua

honra esteve tão ameaçada. Senhora, ele manda vos dizer ainda que se sentiria

imensamente feliz caso pudésseis assegurar-lhe vossa ajuda. Através desta

sabereis muito mais do que poderia vos dizer."

"Compreendo agora perfeitamente por que ele te mandou a meu

encontro", respondeu ela. "Farei o que me pediu. Irei ao encontro dele acompanhada

de numerosas damas de graça e categoria incomparáveis. Entre as damas que

mereceram a graça do batismo não conheço em parte alguma quem pudesse

ombrear-se com elas, salvo a esposa de Parsifal e Órgeluse."

"Desde que Galvão se ausentou da corte de Artur vivo aflita e

preocupada. Meljanz de Liz disse-me que o vira em Barbigoel. Ai de ti, Plimizoel" -

exclamou ela-, "preferia que meus olhos jamais te houvessem visto! Quanta coisa

477
má ali me aconteceu! Desde então nunca mais vi minha meiga e nobre amiga

Cunerware de Lalant e membros da Távola Redonda foram ali declarados infames.

Cinco anos, seis meses e seis semanas se passaram desde que o bravo Parsifal

deixou Plimizoel para empreender a demanda do Graal. Na mesma época Galvão, o

nobre paladino, partiu rumo a Ascalão. Foi também ali que leschute e Ekuba se

despediram de mim. Desde então uma enorme saudade por esses nobres amigos

tem-me privado de todas as alegrias."

Foi assim que a rainha deu vazão a seus sentimentos. A seguir disse ao

escudeiro: "Segue agora, minhas instruções. Mantém-te escondido até que tenha

reunido pouco antes do meio-dia todos os integrantes da corte, entre cavaleiros e

escudeiros. Aí então, tu apareces e te diriges troteando para o pátio. Larga o cavalo

simplesmente e dirige-te às pressas ao local onde deverão estar reunidos muitos

nobres cavaleiros. Eles naturalmente quererão saber de ti notícias sobre os últimos

acontecimentos. Procede por palavras e gestos como se estivesses pisando em

brasas, de sorte a terem pouca esperança de arrancar alguma coisa de ti. Abre

decididamente caminho no meio da multidão até deparares com o soberano, que

não recusará receber-te. Entrega a carta em sua mão. Através dela o rei se inteirará

rapidamente do motivo de tua vinda e do pedido de teu amo. Ele o atenderá de bom

grado. Apenas mais uma recomendação: Dirige-te a mim ostensivamente de modo

que as outras damas te possam ver e ouvir. Apresenta-nos tua mensagem com

palavras convincentes como se a felicidade de teu amo fosse para ti algo precioso a

ser resguardado de qualquer modo. Agora dize-me onde se encontra Galvão!"

478
O escudeiro respondeu: "Isso não posso. É-me vedado revelar o

paradeiro de meu amo. Mas se vos aprouver podereis tornar durável sua felicidade."

Satisfeito com as instruções o escudeiro deixou a rainha da forma que já

o sabeis e reapareceu no momento previsto.

Quando a manhã já ia alta troteou pátio adentro de modo que todos

pudessem vê-lo. Os escudeiros, segundo seu costume, observaram atentamente

sua chegada. Os dois flancos da montaria estavam visivelmente esfolados pelas

esporas. O escudeiro seguiu à risca as instruções da rainha. Embora uma multidão o

cercasse, saltou logo do cavalo e sem se importar com gorro, espada, espora e

cavalo abriu caminho entre os nobres cavaleiros que ali estavam parados. Estes

logo o assediaram perguntando se trazia notícias sobre novos e imprevistos

acontecimentos. É que ali prevalecia a tradição segundo a qual ninguém, quer se

tratasse de dama ou cavaleiro, podia ocupar lugar à mesa sem antes cumprir essa

formalidade da corte e isso implicava o relato de lances estranhos e arriscados que

pudessem ser considerados uma verdadeira aventura. O escudeiro porém reagiu:

"Por falta de tempo nada direi agora! Perdoai-me e me mostrai o local em que possa

encontrar o rei. Terei que encontrar-me com ele antes pois se trata de assunto

urgente. Exigis de mim novidades? Que Deus vos inspire sentimentos de

solidariedade para com as aflições alheias!"

A missão do escudeiro era tão urgente que sem dar atenção a mais

alguém tratou de abrir caminho no meio da multidão até atingir o local em que se

encontrava o rei que ao avistá-lo o saudou. O escudeiro entregou a carta na mão de

479
Artur. Sua leitura resultou em alegrias e tristezas para o rei, pois exclamou: "Bendito

seja este dia feliz, à cuja luz pude receber notícias dignas de fé do bravo filho de

minha irmã. Por sermos parentes consangüíneos e membros da mesma

comunidade cavaleirosa quero atender da melhor forma que puder o pedido de

Galvão se eu estiver, como acredito, animado pelo ideal da lealdade." E dirigindo-se

ao escudeiro, indagou: "Dize-me, agora se Galvão está bem."

"Sim, senhor, mas só vossa decisão será capaz de tornar efetiva essa

felicidade", respondeu judiciosamente o escudeiro. "Se o desamparardes, sua

reputação estará comprometida. Quem depois disso poderá ainda falar em

felicidade? Mas se lhe prometerdes vossa ajuda, não o deixando entregue à própria

sorte, afastareis de seu espírito todas as preocupações. A rainha oferece ele de todo

o coração seus serviços e pede a todos os membros da Távola Redonda não

esquecerem os serviços que prestou, de se lembrarem de seus deveres de lealdade

e de vos aconselharem a acudi-lo a fim de que sua felicidade não seja ameaçada."

Com efeito todos os paladinos pediram ao rei que concordasse.

Artur declarou: "Entrega esta carta à rainha. Ela deverá lê-la e nos

esclarecer sobre o que nos deve alegrar e preocupar. Quem afinal é esse tal Rei

Gramoflanz para desafiar minha estirpe com tamanho orgulho e atrevimento? Ele

acredita, por certo, que pode abater meu sobrinho Galvão tão simplesmente como

fez com Cidegast. Essa maldade trouxe-lhe, aliás aborrecimentos consideráveis.

Estou disposto a multiplicá-los e a compeli-lo a mudar de comportamento."

480
Aproximando-se, o escudeiro entregou a carta à rainha e foi recebido com

muita simpatia. Quando sua boca mimosa começou a ler em voz alta o texto que

revelava as queixas e solicitações de Galvão, lágrimas começaram a brotar

furtivamente de muitos olhos. O escudeiro por sua vez tratou logo de criar um clima

favorável à sua causa, no que foi bem-sucedido.

Artur, o poderoso tio de Galvão, procurou então induzir seus vassalos a

aderir à idéia da viagem. A nobre Ginover também não perdeu tempo, pois tratou de

preparar o espírito de suas damas para a memorável viagem.

Apenas Keye resmungava mal-humorado: "Acaso haverá no mundo varão

mais distinto que Galvão, o norueguês? Pois, então apressai-vos para ir ao encontro

dele! Tratai de segurá-lo antes que resolva mudar de paradeiro! Pois se ele

continuar saltando de um lugar para outro feito esquilo estareis sujeito a perdê-lo

novamente."

O escudeiro disse então à rainha: "Senhora, é preciso que eu regresse

para junto do meu amo. Defendei seu interesse com um empenho que faça jus a

vosso prestígio."

"Cuida deste escudeiro da melhor forma que puderes", disse a rainha a

seu camareiro. "Trata também de sua montaria. Se estiver excessivamente mal-

tratada por esporas dá-lhe o melhor cavalo que puderes achar. Se ele necessitar de

outras coisas, quer seja roupa ou dinheiro, então coloca tudo à disposição dele." E

481
voltando-se para o escudeiro rematou: "Dize a Galvão que pode contar comigo.

Darei ciência ao rei de tua partida. Dize a teu amo que também ele irá apoiá-lo."

O rei desencadeou os preparativos para a viagem. Naquele dia havia sido

cumprida a norma da Távola Redonda pois a notícia de que Galvão estaria vivo

deixou todos de bom-humor. O ritual da Távola Redonda era cumprido com

espontaneidade. O rei partilhou a mesa com os cavaleiros que por sua fama

duramente conquistada mereciam o privilégio de integrar a Távola Redonda.

Deixai, pois que o escudeiro, transmissor da mensagem, siga seu

caminho. Munido pelo camareiro da rainha de numerário, cavalo e roupa nova,

tratou de regressar sem demora. Partiu bem-humorado pois havia conseguido de

Artur aquilo que iria dissipar as preocupações de seu amo. Não saberia precisar o

tempo que levou para voltar a Schastel Marveile. Arnive recobrou as esperanças

quando a sentinela do portão do castelo mandou avisá-la de que o escudeiro

montando um cavalo extenuado estava regressando a toda a pressa. Secretamente

foi a seu encontro, fazendo-lhe perguntas sobre a natureza de sua missão, onde

estivera e o que havia feito. O escudeiro respondeu: "Nada posso revelar-vos, pois

me obriguei mediante juramento a manter segredo. Meu amo se sentiria muito infeliz

e passaria a considerar-me um simplório se violasse o segredo com uma

inconfidência. Senhora, perguntai a ele próprio!"

Como continuasse a assediá-lo com perguntas o escudeiro encerrou a

discussão nestes termos: "Senhora, consumis inutilmente meu tempo. Cumprirei

meu juramento."

482
O escudeiro foi ao encontro de seu amo, que se achava em companhia

da Turcóide, Florand, do Duque de Gowerzin, da Duquesa de Logroys e de

numerosas damas. Quando o escudeiro entrou meu senhor Galvão se ergueu,

chamou-o à parte e lhe deu boas-vindas dizendo: "Meu amigo, dize-me depressa se

és portador de boas ou más notícias. Que novas me trazes da corte? Encontraste o

rei?"

O escudeiro respondeu: "Sim, senhor! Encontrei-me com o rei, sua

esposa e muitos de seus dignos vassalos. Eles prometeram vos apoiar e vos

prestigiarão com suas presenças. Mal se inteiraram do conteúdo da mensagem,

todos - ricos e pobres -, se tomaram de grande euforia, pois foi através dela que se

certificaram de que ainda estais incólume e bem disposto. Número incontável de

pessoas acha-se ali reunido. Vossa mensagem provocou uma reunião dos membros

da Távola Redonda. Se em algum tempo algum cavaleiro ganhou notoriedade, isto

é, um renome cantado em toda a parte em prosa e verso, então vossa fama levou a

palma sobre a de todos os outros." Deu-lhe também conta das circunstâncias em

que pudera falar com a rainha e dos judiciosos conselhos que esta lhe dera. Falou-

lhe finalmente dos membros da corte, dos cavaleiros e das damas com cuja

presença em Joflanze ele podia contar antes de enfrentar o combate. Galvão criou

alma nova e suas preocupações se desvaneceram. Ao escudeiro pediu que

continuasse a guardar segredo. Aliviado retornou a seu lugar. Pretendia deixar-se

ficar ali na alegre roda dos amigos até que o Rei Artur viesse lhe hipotecar seu

apoio.

483
4. A ESTRANHA BIOGRAFIA DE CLINSCHOR

Permiti que vos fale agora de coisas alegres e tristes. Galvão esteve o

tempo todo em lua-de-mel com a vida. Sucedeu então que certa manhã, quando o

magnífico palácio regurgitava de cavaleiros e damas ele chamou Arnive à parte e

sentou-se com ela no nicho de uma janela que dava para o rio. É que ela era

sabedora de muitas coisas estranhas. Galvão disse, então à rainha: "Minha querida

senhora, caso isso não vos venha a aborrecer gostaria de saber de vós todas

aquelas coisas estranhas que permaneceram ocultas para mim. Graças à vossa

ajuda readquiri o gosto pela vida cavaleirosa. A nobre duquesa dominou

completamente meu sentir e meu pensar, mas fui atendido e minhas penas se

aquietaram. Sem vossa generosa ajuda meus ferimentos e minha paixão por

Orgeluse me teriam levado à morte. Graças a vós readquiri a saúde. Mas descrevei-

me agora, ó medianeira de minha ventura, todos os fenômenos miraculosos que

aqui ocorriam e que objetivos o sábio Clinschor tinha em mente ao criar todos esses

inquebrantáveis sortilégios. Sem vós esses feitiços ter-me-iam levado à morte."

A bondosa e experiente senhora, que desde os verdes anos até a

avançada idade soubera cultivar mais que qualquer outra mulher um acendrado

senso de dignidade, respondeu: "Senhor, os prodígios que ele aqui realizou são de

reduzida importância se comparados com os poderosos sortilégios que urdiu em

muitos outros países. Quem nos menospreza pelo fato de termos sido subjugados

por ele incorre em grave erro. Senhor, descreverei agora o feitio moral desse

484
homem que foi causa da desgraça de muita gente. Era natural de Terre de Labur202

e descendia da estirpe de Virgílio, o napolitano, que também fora autor de

numerosos prodígios203. A Clinschor, seu parente, sucedeu o seguinte: Sua capital

era Cápua. Alcançou tão grande e indiscutível notoriedade que homens e mulheres

não falavam senão do Duque de Clinschor até o dia em que a desgraça o atingiu. Ao

tempo reinava sobre a Sicflia um nobre rei chamado Ibert. Ibilis, sua esposa, era

mais bela que qualquer outra mulher que em algum tempo tenha sido posta no

mundo. A ela Clinschor serviu até o dia em que recompensou seus serviços

tornando-se sua amante. O rei o puniu por isso. Se for preciso contar-vos os

pormenores das maquinações secretas de Clinschor terei de pedir vossa

compreensão, pois na realidade não conviria reproduzir aqui com todos os detalhes

os motivos que o induziram à prática da magia. É que ele foi emasculado de um só

golpe." Galvão riu gostosamente, mas Arnive prosseguiu: "Foi em Kalot Enbolot204,

um castelo solidamente fortificado, que lhe foi infligido esse opróbrio. O rei o

surpreendeu dormindo placidamente nos braços de sua esposa. Estava ali bem

acomodado, mas pagaria muito caro por isso, pois as mãos reais extirpariam o que

tinha no meio das pernas. O rei achou que agir desse modo era um direito seu e o

capou tão bem que dali em diante nunca mais poderia entreter-se com mulher

alguma. Isso resultaria em desgraça para muita gente. Não foi na Pérsia, mas numa

cidade chamada Pérsida que foram inventados os primeiros rituais mágicos. Para lá

viajou Clinschor e com o tempo se tornou tão versado em magia negra que na

prática era capaz de produzir os fenômenos que queria. Cheio de rancor pelo
202
Terra de Labur. Terra de Lavoro, grande depressão na Campanha romana a leste de Nápoles. N.T.
203
Virgílio era natural de Mântua e não de Nápoles, como pretende Wolfram, embora escolhesse essa
última cidade como terra de sua eleição espiritual. Conhecido como expoente máximo da Poesia de seu tempo,
sua grande fama de mago originou-se, possivelmente, da leitura de suas obras onde, de fato, pode ser encontrada
a descrição de muitos hábitos estranhos e numerosos rituais de encantamento, próprios dos povos itálicos
daquele tempo. NT
204
Kalot Enbolot. Kalata Bellota (ital), ou Kalath-al-Bellut (árabe) - Castelo dos Carvalhos — praça
fortificada próximo a Sciaccia, cidade situada na costa da Sicília Ocidental.

485
vexame sofrido no próprio corpo nunca mais quis bem a pessoa alguma. Refiro-me

aqui a pessoas importantes. Toda a vez que conseguia aniquilar a felicidade de tais

pessoas exultava de satisfação. Um certo rei chamado Irot, de Rosche Sabbins, foi

também intimidado por Clinschor. Para viver em paz permitiu que escolhesse entre

os seus domínios aquele que mais lhe agradasse. Foi desse modo que Clinschor

recebeu da mão do rei a posse deste penhasco, bem como as terras em torno num

raio de oito milhas. Como vedes, neste penhasco ele erigiu esta engenhosa obra de

arquitetura. Inúmeros objetos de arte de grande valor e de natureza vária existem

aqui. Se alguém quisesse sitiar o castelo haveria aqui provisão de alimentos para

um período de trinta anos. Clinschor dispunha também - de amplos poderes sobre

todos os bons e maus espíritos que habitam entre o Céu e a Terra, salvo sobre

aqueles que se encontram sob a proteção de Deus."

"Senhor, depois de haverdes superado e sobrevivido à grande prova, tudo

que era de Clinschor se tornou propriedade vossa. Ele abriu mão do castelo e do

território circunjacente. Declarou publicamente que aquele que superasse a aventura

receberia tudo Isto e nunca mais seria hostilizado por ele. E o que ele promete,

cumpre. Os numerosos e nobres cristãos - donzelas, mulheres, homens - são agora

vossos súditos. Da mesma forma, muitos pagãos e pagãs foram compelidos a viver

aqui. Deixai-os regressar aquelas paragens em que sua ausência é motivo de

tristeza. A vida em terra estranha arrefeceu minha capacidade afetiva. Que Aquele

que conhece o número de estrelas vos inspire solidariedade e vos restitua a alegria

perdida. Uma mãe deu luz ao seu fruto e esse fruto se tornou mãe por sua vez. O

gelo resultou da água e voltará a ser água. A idéia de que meu nascimento foi

motivo de felicidade me dá a certeza de que voltarei a ser feliz. A vida nasce da vida.

486
Se estiverdes animado por nobreza de sentimentos enveredai por esse caminho.

Vivo sem alegrias há muito tempo. A vela inflada impele rapidamente a embarcação,

porém mais célere ainda é o homem que lhe maneja o leme. Se assimilastes a lição

deste exemplo vossa fama multiplicar-se-á rapidamente e vossa felicidade será

conhecida e divulgada em todos os lugares em que nossa ausência é evocada com

tristeza. Outrora eu vivia feliz e minha testa ostentava uma coroa. Minha filha

também era rainha de um país com muitos príncipes por vassalos. Ambas

desfrutávamos da consideração de todos. Senhor, nunca fiz mal a alguém. Sempre

tratei todos os homens e mulheres como convém. Com a ajuda de Deus sempre fui

considerada e reconhecida como mãe de meus súditos, posto que nunca pratiquei

um ato injusto. Toda a mulher bafejada pela boa fortuna deveria para seu próprio

bem tratar com benevolência todas as pessoas honestas, pois em situação de

extremo perigo até um rapaz de modesta condição social poderá acudir em seu

socorro e devolvê-la à sua vida feliz. Senhor, minha vida aqui tem sido uma longa

espera. Mas ninguém que me conhecesse veio a pé ou a cavalo para pôr fim às

minhas penas."

A isso respondeu o senhor Gaivão: "Senhora, por minha vida asseguro-

vos que voltareis a ser feliz!"

487
5. A CHEGADA DE ARTUR

Naquele dia estava prevista a chegada de Artur, o bretão, filho da

amargurada Arnive, que vinha para cumprir um dever de lealdade devida a seu clã.

Galvão viu se aproximarem muitas bandeiras novas. Numerosas formações de tropa

cobriam aos poucos a campina e na estrada que conduz a Logroys via-se uma

verdadeira floresta de lanças multicoloridas. Sua chegada deixou Galvão aliviado.

Quem combina um encontro e é obrigado a esperar acaba duvidando da vinda

desse auxílio. Artur livrou Galvão do peso dessa incerteza. Ah, e com que pompa

vinha chegando! Galvão voltou-lhes as costas porque lágrimas afloravam a seus

olhos claros. Não serviam de cisterna porque não sabiam represar a água que os

vinha encobrindo. Eram lágrimas de alegria pela chegada de Artur, que o criara

desde a infância. Sua lealdade mútua era tão autêntica e inquebrantável que jamais

fora turvada pela sombra da desconfiança. Arnive se apercebeu da comoção que lhe

ia na alma e observou: "Senhor, essa ajuda atinge a todos nós. Devíeis exultar de

alegria invés de vos comover. Lá vem também o exército da duquesa para vos trazer

apoio."

Arnive e Galvão viram aparecer numerosas bandeiras na planície. A todos

precedia um único porta-bandeira que Arnive reconhecia pelos símbolos heráldicos

que exibia no escudo. Julgava que se tratasse de Isajes, o marechal de

Utepandragun. Mas quem agora carregava esse pavilhão era outro bretão. Tratava-

488
se de Maurin-de-pernas-bonitas, o marechal da rainha. Arnive ignorava que

Utepandragum e Isajes haviam morrido e que por força da tradição a função do pai

havia passado para Maurin. O enorme exército se espalhava pela campina que se

estendia diante do ancoradouro. O pessoal a serviço das damas tratou de armar os

acampamentos às margens de um regato de águas claras e curso rápido, o que a

estas certamente agradou. Num abrir e fechar de olhos haviam sido armadas ali

numerosas barracas. A certa distância e dispostas em círculo vinham sendo

armadas numerosas e amplas tendas para o rei e seus cavaleiros. Era naturalmente

inevitável que a coluna em marcha deixasse ao longo do caminho percorrido as

marcas de sua passagem.

Galvão enviou Bene ao encontro de Plippalinot, seu antigo anfitrião, com

a ordem de prender botes e barcas às amarras a fim de impedir que o exército

transpusesse o rio naquele dia. Por esse serviço a senhorinha Bene recebeu o

primeiro presente que fazia parte do tesouro de Galvão. Tratava-se de "andorinha",

uma pequena e preciosa harpa que na Inglaterra é considerada mesmo hoje um

instrumento de elevado preço. O senhor Galvão determinou a seguir que se

fechassem todas as portas externas e em tom amável dirigiu a todos os moradores

do castelo, jovens e idosos, o seguinte pedido: "Na margem oposta do rio acampou

um grande exército. Nunca vi em terra ou no mar efetivos tão numerosos. Se eles

nos desafiarem com sua superioridade então gostaria de contar com vosso apoio

para enfrentá-los."

Todos se declararam solidários a Galvão, mas dirigindo-se à poderosa

duquesa admitiram a possibilidade de se tratar de seu próprio exército. Ela, porém

489
respondeu: "Podeis crer-me que no meio desses que ali estão, acampados não

consigo identificar nem pessoas nem escudos. É possível que o homem que já me

causou tantos aborrecimentos tenha invadido meu país e se chocado com minhas

tropas. Mas acredito que minha gente tenha reagido à altura e sabido manter-se em

seus redutos e barbacãs205. Se fosse de fato o rancoroso Rei Gramoflanz estaria

evidentemente buscando uma reparação pelo ramo perdido. Mas qualquer que seja

a identidade dos desafiantes serão recebidos pelos defensores com suas lanças em

riste."

Ela de fato não se enganava muito. Artur sofrerá diante de Logroys

perdas consideráveis antes de prosseguir na marcha. Ao quebrarem lanças com os

adversários vários bretões haviam sido descalvagados. Mas Artur pagou-lhes com a

mesma moeda, de sorte que ambos os lados tinham prejuízos a lamentar.

Muitos foram vistos chegar esgotados pela luta e a versão que corria a

respeito deles era que haviam sabido defender muito bem sua pele e eram

combatentes experimentados. Houvera perdas de ambos os lados e antes que a

refrega terminasse, Garel, Gaherjet, o Rei Meljanz de Barbigoel, e Jofreit, filho de

Idoel, haviam sido aprisionados. Os defensores de Logroys podiam lamentar por sua

vez, a perda do Duque Friam de Vermendoys e do Conde Ritschart de Navers que,

habilíssimo no manejo, normalmente descavalgava o adversário com uma única

lançada. Fora Artur em pessoa quem aprisionara o renomado campeão.

Infatigavelmente entrechocavam-se as fileiras adversárias de sorte que uma

verdadeira floresta de lanças era gasta. No entrechoque as lanças se partiam. Os

205
Barbacã. Muro avançado de um castelo, construído diante das muralhas e mais baixo que estas.
Chamado também antemuro. NT

490
nobres bretões reagiram, enfrentando vigorosamente o exército da duquesa, mas a

retaguarda de Artur também não ficou incólume, pois nesse dia foi assediado pelo

inimigo até se juntar ao grosso do exército.

Meu senhor Galvão deveria ter explicado à duquesa que um aliado iria

atravessar suas terras e evitado desse modo o entrechoque das tropas. Mas sobre

esse assunto ela deveria saber tão pouco quanto os outros, pois só devia tomar

conhecimento daquilo que visse com os próprios olhos. Contudo, passou a avaliar

as necessidades e tomou todas as providências para seu encontro com Artur, o

bretão. Mandou vir preciosas tendas e ninguém saiu perdendo pelo fato de Galvão

não o conhecer pessoalmente. Aquinhoou a todos tão pronta e generosamente

como se estivesse a pressentir o fim de seus dias. Escudeiros, cavaleiros e damas

receberam presentes tão valiosos que todos estavam unânimes em afirmar que essa

era uma ajuda de verdade. Em toda a parte viam-se rostos sorridentes. O nobre

varão mandou vir, ademais, vigorosos animais de carga, vistosos palafréns para as

damas e armaduras para os cavaleiros. Estava ali também, equipado, com

armaduras, considerável número de escudeiros prontos para a ação. Por fim, o

senhor Galvão tomou mais uma providência. Selecionou quatro nobres cavaleiros,

nomeando um seu camareiro, o outro seu copeiro, o terceiro seu trinchante e o

quarto seu marechal. Ao consultá-los todos os quatro aceitaram.

Por ora deixai que Artur repouse em sua tenda. Embora a contragosto

Galvão decidiu que naquele dia não haveria qualquer ato de boas-vindas.

491
6. ARTUR PARTE PARA JOFLANZE

Na manhã seguinte, bem cedo, Artur partiu com ruidoso aparato para

Joflanze. A retaguarda permaneceu em estado de alerta, pronta para o combate.

Mas não tendo sido hostilizada enveredou pelo rumo dos demais. À vista disso meu

senhor Galvão convocou os assessores, pois pretendia partir sem demora. Ao

marechal determinou que rumasse para a campina de Joflanze. "Quero um local

próprio onde possa acampar. Ali verás instalado o grande exército que há pouco se

pôs em marcha. Chegou a hora de te dizer quem é seu comandante a fim de

poderes reconhecê-lo. Trata-se do meu tio Artur, em cuja corte e castelo fui criado

desde a infância. Mas não reveles aos moradores do castelo o fato de Artur ter vindo

atendendo a pedido meu."

Eles trataram de cumprir suas ordens e Plippalinot revelou um vez mais

sua operosidade transportando com barcos, barcaças, embarcações ligeiras e

lanchas para a margem oposta do rio a tropa a pé e a cavalo que deveria

acompanhar o marechal. Escudeiros e infantes sob as ordens do marechal de

Gaivão seguiram na pista dos bretões. Na sua bagagem seguia também - é preciso

dize-lo- a tenda que outrora Ibilis oferecera a Clinschor como prova de amor e que

seria identificada afinal como local de seus encontros secretos. Na sua confecção

não se poupara despesa e com a possível exceção daquela que pertencera a

Isenhart nenhuma tesoura deu forma a tenda mais magnífica. Essa tenda seria

agora armada não muito longe do acampamento de Artur. Em torno, formando

492
amplo círculo, erguiam-se as outras tendas, o que dava ao conjunto um aspecto

magnífico.

Artur soube da vinda do marechal de Galvão e que este estaria instalando

seu acampamento na campina. Naquele mesmo dia deveria chegar também o nobre

Galvão. A notícia se espalhou rapidamente entre os componentes da tropa

acampada. Enquanto isso Galvão, o irreprochável guerreiro, deixou o castelo em

companhia de sua tropa. Tão vistosa era sua coluna que poderia contar muitas

coisas surpreendentes a seu respeito. Alguns animais de carga transportavam

relicários e paramentos litúrgicos, outros armaduras, além de magníficos escudos

sobre os quais os elmos se achavam solidamente amarrados. Ao lado das bestas de

carga troteavam magníficos castelhanos. Vinha a seguir o préstito dos cavaleiros e

das damas cavalgando lado a lado. A coluna em marcha tinha aproximadamente

uma milha de comprimento. Gaivão cuidara para que cada uma das atraentes

damas tivesse como acompanhante um guapo cavaleiro e, dado esse fato, seria

puro disparate supor que não falassem de coisas do amor. O Turcóide Florant vinha

ao lado de Sangive da Noruega e o expansivo Lischoys cavalgava ao lado da meiga

Cundrie. Galvão escolheu como companheira a irmã Itonje, enquanto Arnive e a

duquesa preferiram empreender juntas a viagem.

Para atingir os acampamentos de Galvão a coluna em marcha teve de

atravessar o local onde se achava estacionado o exército de Artur, o que

naturalmente foi motivo de espanto. Cumprindo preceitos da vida cortês e visando

conferir também à lua chegada um cunho de grandiosidade Galvão fez com que a

dama que ia à frente se detivesse diante da tenda do Artur. Seu marechal deu

493
instruções à seguinte, no sentido de emparelhar a montaria com a da primeira. As

demais não se fizeram de rogadas, agrupando-se todas, ajuizadas ou tolas, de

modo a formar um amplo círculo. Ao lado de cada dama havia um cavaleiro

encarregado do obsequiá-la. Isso prosseguiu até que o amplo círculo do

acampamento de Artur estivesse rodeado de damas. Finalmente Galvão, o varão

afortunado, pôde ser recebido e essa acolhida, na minha opinião, foi sobremodo

carinhosa. A seguir Galvão, Arnive, sua filha, as filhas desta, a Duquesa de Logroys,

o Duque de Gowerzin e o Turcóide Florant desmontaram. Deixando a tenda Artur foi

ao encontro desse grupo seleto e lhes deu cordiais boas-vindas. O mesmo fez a

rainha, sua esposa. Ela cumprimentou Galvão e seus acompanhantes com grande e

genuína amabilidade. Irradiando simpatia as damas trocaram beijos e Artur indagou

do sobrinho: "Quem são teus acompanhantes?"

Galvão respondeu: "Gostaria que minha real ama os cumprimentasse

com um beijo. Seria pouco amável se não o fizesse já que ambos são de nobilíssima

estirpe."

A vista disso o Turcóide Florand e o Duque de Gowerzin receberam da

Rainha Ginover o beijo de boas-vindas. Em seguida entraram na tenda. A muitos

pareceu como se a ampla campina estivesse repleta de damas. Artur porém deu

uma demonstração de seu trato cortês. Montando seu castelhano passou em revista

o círculo formado pelas damas e seus respectivos cavaleiros dando a todos cordiais

boas-vindas. Cumprindo desejo expresso de Galvão todos deviam aguardar no local

o momento em que se dispusesse a partir com eles. Ao tempo era esse o costume

da corte.

494
Artur desmontou e regressou à sua tenda. Sentando-se junto ao sobrinho

insistiu que lhe fossem apresentadas as cinco damas presentes. Começando pela

mais idosa meu senhor Galvão disse ao bretão: "Vós conhecestes Utepandragun!

Pois esta é Arnive, sua esposa. Vós mesmo sois filho de ambos. Esta aqui é minha

mãe, a Rainha da Noruega e estas duas atraentes jovens são minhas irmãs."

Eles então se beijaram seguidamente e era natural que em tal momento

fossem dominados pela alegria e pela dor, pois riam com os olhos rasos d'água,

como só acontece quando a felicidade é muito grande.

Artur disse então: "Sobrinho, eu ainda não sei quem é esta quinta e

belíssima dama."

"É a Duquesa de Logroys, a senhora do meu coração", respondeu o nobre

Galvão. "Consta que assolastes suas terras. Dizei-me agora o que lucrastes com

isso. Como se trata de uma viúva devíeis, pelo contrário, ter-lhe oferecido vosso

apoio."

"Gaherjet é prisioneiro dela e também Garel, que foi autor de tantas e tão

memoráveis façanhas. O intrépido guerreiro foi aprisionado quando estava a meu

lado. Desfechamos um ataque e conseguimos avançar até os barbacãs206 (202). Ah,

como o bravo Meljanz de Liz campeava! Mas um grupo que combatia sob uma

insígnia exibia uma seta de zibelina negra e mancha rubra de sangue simbolizando

o luto pela morte de um bravo. Lirivoyn era o grito de guerra desse pugilo de

206
Barbacã. Muro avançado de um castelo, construído diante das muralhas e mais baixo que estas. Chamado
também antemuro. NT

495
atacantes que combatiam gloriosamente sob essa insígnia. Infelizmente meu

sobrinho Jofreit foi também aprisionado. Eu mesmo comandei ontem a retaguarda,

tomado de pesar pelas perdas sofridas."

Como o rei não se cansasse em lamentar suas perdas a duquesa lhe disse

cortesmente: "Eu vos isento de qualquer responsabilidade. Afinal a forma pela qual

fostes recebido não foi exatamente cordial mas também vós me infligistes danos

sem qualquer motivo. Que Deus vos inspire a melhor maneira de ressarcir-me dos

danos resultantes dessa vossa incursão guerreira. Enquanto isso aquele a quem

viestes prestigiar também entrou em conflito comigo. Inerme fiquei eu exposta às

suas arremetidas, pois atacou justamente meus pontos fracos. Se ele prosseguir me

assediando acabará me vencendo mesmo desarmado."

Galvão disse então a Artur: "O que me aconselhais? Acaso conviria trazer

para esta planície número ainda maior de cavaleiros? Podeis conquistar as boas

graças da duquesa propondo-lhe em troca da liberdade de vossos homens o livre

acesso a esta planície de seus esquadrões de cavaleiros, acrescidos de muitas

novas lanças."

"Estou de acordo", respondeu Artur. À vista disso, a duquesa enviou

mensagem aos notáveis de sua corte. Acredito que em parte alguma deste planeta

houve encontro de tantas notabilidades.

Entrementes Galvão pedia permissão para se retirar, no que o rei

aquiesceu prazerosamente. Também todos aqueles que com ele haviam vindo

496
dirigiram-se às suas tendas, cujo aspecto requintado e magnífico parecia ter banido

para muito longe dali a pobreza.

Muitos visitantes, saudosos em virtude da longa ausência do amigo

vieram visitá-lo em sua tenda. Keye que, nesse tempo se restabelecera das feridas

resultantes do combate que travara em Plimizoel, também contemplou

demoradamente as grandiosas instalações do acampamento de Galvão e disse em

tom de reprovação: "Por parte de Lot, o cunhado do meu amo, não haveria por que

temermos semelhante emulação e muito menos a ostentação de tanta pompa!" É

que se lembrava com rancor do fato de Galvão não o haver vingado quando

quebrara o braço na queda. "Deus parece querer favorecer certas pessoas. Gostaria

de saber onde Galvão arrumou todo esse bando de mulheres!"

Tratando-se de um amigo as palavras desdenhosas de Keye não eram

exatamente as mais compatíveis. O homem verdadeiramente leal se compraz com o

sucesso do amigo. O invejoso, por sua vez, sempre reclama em altas vozes quando

algo de bom acontece ao próximo. Galvão era querido e prestigiado. Aonde queria

chegar aquele que pretendesse mais que isso? O mesquinho demonstra sempre sua

inveja e malquerença. O companheiro bravo, ao contrário, se compraz quando o

prestígio do amigo se mantém incólume. Galvão era incapaz de desejar mal a quem

quer que fosse. Sempre estivera imbuído de genuína lealdade. Era, pois natural que

a fortuna o favorecesse. Imaginai agora como o norueguês obsequiava os cavaleiros

e as damas de seu séquito. O que Artur e seus paladinos puderam ver no

acampamento do filho do nobre Lot foi algo como o reino da abundância. Mas uma

boa refeição requer a seguir o descanso. Um repouso que considero merecido.

497
Na madrugada seguinte, antes do romper d'alva chegou uma tropa

esplendidamente equipada. Tratava-se dos cavaleiros da duquesa. As cimeiras de

seus elmos resplandeciam ao luar. Eles atravessaram o acampamento de Artur e

marcharam rumo ao amplo círculo de tendas de Galvão. Quem por seus feitos

merecera integrar uma tal tropa de apoio podia orgulhar-se disso. Galvão pediu a

seu marechal que lhes indicasse local adequado onde logo depois, seguindo

instruções do marechal da duquesa, os nobres de Logroys armaram seus

acampamentos em vistoso círculo. Gastaram boa parte da manhã nesse trabalho de

instalação. Mas tal seria o começo de novos problemas.

Artur, o soberano de fama divulgada, enviou mensageiros a Rosche

Sabbins e fez saber ao Rei Gramoflanz o seguinte: "Como insistis no inabalável

propósito de medir forças com meu sobrinho em combate singular este aceita vosso

desafio. Seria preferível que viésseis logo pois conhecendo como conhecemos

vosso caráter arbitrário estamos certos de que não o deixareis por menos. Se

fósseis outra pessoa, não duvidaríamos em classificar essa vossa pretensão como

desejo de vos exibir."

Com esta mensagem os embaixadores partiram.

Foi então que Galvão pediu a Lischoys e Florant que lhe apresentassem

os cavaleiros oriundos de diversos países a fim de convidá-los a servirem a

duquesa. Esta, por sua vez se disporia a retribuir-lhes a dedicação com sua estima.

Ele foi ao encontro deles e os tratou com tamanha gentileza que todos tiveram a

498
impressão de que o nobre Galvão era de fato um homem resoluto e de grande

distinção.

Depois de deixá-los retirou-se secretamente para sua sala de armas e de

contínuo pôs a armadura, pois pretendia certificar-se de que o processo de

cicatrização de suas feridas atingira um estágio que lhe permitisse envergá-la sem

maiores incômodos. Ele apenas queria movimentar-se um pouco. Na certa haveria

lá fora numerosos cavaleiros e damas desejosos de verificar se naquele dia o

destemido campeão seria o vencedor do encontro. Determinou ao escudeiro que

trouxesse Gringuljete e depois de montá-lo permitiu que partisse de rédea solta. Sua

intenção era proporcionar à montaria e a si mesmo um exercício de aquecimento.

Nunca senti tanta pena dele como naquele dia, ao vê-lo partir.

Deixando para trás a tropa acampada meu senhor Galvão partiu só, rumo

ao campo aberto. Que a Fortuna lhe seja propícia! Junto ao rio Sabbins viu um

cavaleiro em atitude de espera. Pelo aspecto nos pareceu um sólido rochedo de

força máscula. No tumulto do combate era qual chuva de granizo mas seu coração

era isento de qualquer falsidade. Sendo cavaleiro sem medo e sem mácula os atos

indignos e desonrosos eram inteiramente estranhos à sua maneira de ser. Nada

disso era próprio dele ainda que fosse do tamanho de meio dedo ou de uma fivela.

Desse insigne varão já ouvistes falar pois se trata do próprio herói deste poema.

499
LIVRO XIV

1. A PARTIDA DE GRAMOFLANZ

Se o nobre Galvão estivesse disposto a um confronto com o estranho eu

deveria estar mais do que nunca preocupado com sua reputação. Talvez devesse

preocupar-me também com o outro. Mas aquele não necessitaria do meu apoio pois

no combate valeria sozinho por um exército inteiro. Cruzando o mar, vindo da

distante terra dos pagãos trouxera ele incólume sua cimeira a essas paragens. Mais

vermelha que o rubi era a cor de sua armadura e do xairel de sua montaria. Que o

herói estava em busca de aventura demonstrava-o eloqüentemente o escudo

maltratado. Tinha colhido ademais um ramo reluzente que só poderia ser procedente

da árvore guardada por Gramoflanz. Galvão tomou-o por isso pelo próprio

Gramoflanz e considerou vergonhoso o fato de o rei estar ali à sua espera. Se esse

de fato estivesse procurando um ajuste de contas com ele tê-lo-ia, ainda que dama

alguma ali estivesse presente para presenciá-lo.

Originários de Munsalvaesche eram ambos os cavalos, que estimulados

pelas esporas arremetiam agora impetuosos um contra o outro. Não era o terreno

500
arenoso mas campina ainda coberta pelo orvalho matutino que servia de cenário a

esse encontro. Deploro sinceramente os maus momentos pelos quais os dois iam

passar. Tanto um quanto o outro parecia ter nascido com aptidões especiais para as

lides bélicas, de modo que ambos se lançaram ao ataque em grande estilo. Quem

ali se sagrasse vencedor ganharia pouco, perderia muito e se arrependeria para o

resto da vida se fosse homem são de juízo. Ali estavam prestes a colidir dois

homens cuja amizade nunca pôde ser posta em dúvida. Ouvi agora como o combate

decorreu. Este se feriu de modo ágil e vigoroso, o que ambos na realidade deveriam

lamentar. Dois homens até então irmanados pela amizade e por laços

consangüíneos se entrechocavam como fossem inimigos e quem ao fim levasse a

melhor sobre o outro teria mais motivos para se mortificar do que regozijar. As mãos

de um e de outro imprimiram às suas lanças tamanho ímpeto que ambos - embora

parentes e amigos - foram derribados juntamente com montarias. Sem perda de

tempo as espadas começaram sua obra de devastação de sorte que não tardaria

muito para o chão se cobrir de estilhaços arrancados do escudo do adversário. O

combate iniciado logo ao alvorecer prometia render muito. Não havia alguém que

pudesse apartá-los pois tirante eles próprios não havia ali vivalma.

Quereis ouvir agora onde entrementes os embaixadores do Rei Artur

localizaram o Rei Gramoflanz e seu exército? Eles se achavam acampados numa

planície à beira-mar, limitada a um lado e outro pelos rios Sabbins e Poynzaclins que

ali desaguavam no mar. No quarto lado, por onde se estendia a planície, havia

fortificações, pois ali se erguia a capital Rosche Sabbins com muitas muralhas,

fossos e torres altanadas. A área na qual as tropas se achavam acampadas tinha

aproximadamente uma milha de comprimento por meia de largura. Os embaixadores

501
de Artur cruzaram com muitos cavaleiros desconhecidos, turcópolos e lanceiros a pé

em armaduras de ferro. Atrás desses vinha com passo firme e altivo o grosso das

tropas portando numerosos estandartes. Era o exército de Gramoflanz que naquele

momento se punha em marcha rumo a Joflanze. Belicosamente ressoavam os

clarins e nas rédeas das damas retiniam sonoramente os guizos, pois o

acampamento do Rei Gramoflanz se achava cercado de damas. Prosseguindo o

relato pretendo agora na medida do possível identificar aqueles que atendendo

ao chamado do rei se haviam apresentado ao acampamento instalado na campina.

Permiti que vos ponha a par desses detalhes caso os ignoreis. De Punt, a cidadela

insular, veio o Rei Brandelidelin, o nobre tio do Rei Gramoflanz, acompanhado de

seiscentas damas belíssimas. Cada uma estava acompanhada do respectivo amigo

armado de ponto em branco, pois esses senhores pretendiam brilhar nas liças207. Os

nobres senhores de Punturtoys também haviam aderido de bom grado a essa

expedição. Havia ali, ademais - caso derdes fé ao que digo - o vistoso Bernout de

Riviers, cujo pai, o poderoso Narant, lhe legara o domínio sobre Uckerland. Cruzara

o mar com vários koggen208 e estava como os demais acompanhado de refulgente

comitiva de damas cuja formosura chamara tanta atenção que não se falava em

outra coisa. Dessas damas, duzentas eram ainda donzelas e outras duzentas tinham

marido. Se minha conta estiver certa, então Bernout, filho do Conde Narant, estava

companhado de quinhentos seletos cavaleiros experimentados nas lides da guerra.

O Rei Gramoflanz estava, pois disposto a obter pelas armas uma

reparação pelo ramo subtraído de sua árvore e à grande assistência presente

207
Liça. Lugar destinado a torneios, justas e competições de arte marcial de um modo geral.
208
Kogge. Veleiro rápido de três mastros utilizado pela Liga Hanseática entre os séculos XIII e XV, quando
foi desbancado pela caravela. Tinha aproximadamente 29 metros de comprimento, 7 de largura e 3 de calado.
Transportava até 300 pessoas entre passageiros e tripulantes. NT

502
caberia aplaudir o vencedor. Os príncipes de seu reino haviam-se apresentado

seguidos de bravos cavaleiros e muitas damas da nobreza, de sorte que havia ali

grande concentração de pessoas notáveis.

Escutai agora o relato sobre o encontro dos embaixadores de Artur com o

rei. Este se achara reclinado sobre amplo canapé forrado de seda de Palmates e

coberto por uma colcha pespontada. Jovens belas e atraentes esmeravam-se em

calçar as grevas209 ao altivo rei. Bem acima dele, propiciando-lhe sombra

acolhedora, pairava arrimado em doze esteios um baldaquino de seda que havia

sido urdida em Ecidemonis. Ao comparecerem perante o rei os enviados de Artur se

dirigiram a essa figura ovante de orgulho nos seguintes termos: "Senhor, somos

embaixadores de Artur, o varão de fama dilatada e magnânimo de índole. A um tal

homem tivestes o atrevimento de insultar. Quem sois vós para tratar com tamanha

arrogância o filho de vossa irmã? Mesmo supondo que vos tivesse causado algum

mal ainda assim o ilustre Galvão poderia contar com o apoio da Távola Redonda

pois todos os seus membros estão com ele irmanados pelos sólidos vínculos da

amizade."

O rei respondeu: "É minha disposição enfrentar com destemer o combate

combinado no qual Galvão será o vencedor ou o derrotado. Já estou informado de

que Artur e sua esposa, aos quais envio minhas saudações de boas-vindas, se

fizeram presentes com um grande exército. Caso a malévola duquesa esteja

empenhada em me intrigar com eles não permiti tal coisa, jovens! O combate é

inevitável e insisto em que seja realizado. Não tenho por que temer um ato de

209
Grevas. Parte da armadura que cobre as pernas do cavaleiro (dos joelhos até os pés).

503
violência de vez que estou cercado de muitos cavaleiros. Quanto aos danos que

possa vir a sofrer nas mãos de um só homem é um risco que devo correr, pois faz

parte do jogo. Se agora tivesse que desistir desse propósito não mais poderia servir

por amor. Deus sabe que Galvão está tirando vantagem do fato de ser parente da

dama em cujas mãos depositei a felicidade de minha vida, pois até esta parte nunca

havia concordado em lutar contra um homem só. Mas considerando que o nobre

Galvão arriscou tão corajosamente a vida terei prazer em lutar com ele. Ao aceitar

esse encontro arrisco-me em ver diminuído meu prestígio, pois até agora nunca me

envolvi em luta tão fácil. É sabido que enfrentei homens que foram levados a me

reconhecer como campeão de méritos inigualáveis. Se vos aprouver, podeis tirar

isso a limpo. Mas nunca concordei em lutar contra um só adversário. Se eu hoje

conquistar a vitória, dispenso os encômios das damas. Fiquei sobremodo satisfeito

com a notícia de que a dama à qual dedico esse combate foi resgatada do cativeiro

em que se encontrava. Artur, o soberano de fama divulgada, reina sobre muitos

países estrangeiros. É possível que de sua comitiva faça parte aquela dama a cujo

serviço estaria disposto se isso lhe conviesse a conhecer a felicidade e o infortúnio

até o fim de meus dias. Poderia haver felicidade maior que tê-la como testemunha

dos serviços que lhe presto?"

Bene, que se achava abraçada ao rei, não tinha objeções a fazer no tocante

ao combate em perspectiva. Vira excepcional desempenho do rei em muitos

encontros e isso a deixava despreocupada. Se soubesse que Galvão era irmão de

sua ama e que essa empresa arriscada envolvia diretamente seu soberano sua

disposição prazenteira se teria desvanecido. Ela havia entregue ao rei o anelzinho

que outrora Itonje, a jovem rainha, lhe enviara como prova de amor e que o famoso

504
irmão lhe restituíra ao regressar de Sabbins. Bene descera o Poynzaclins num barco

com o objetivo de transmitir a seguinte notícia: "Minha ama acaba de deixar Schastel

Marveile acompanhada de grande número de damas." Lembrou-lhe ainda que a ama

o distinguira com sua lealdade e honradez em grau jamais concedido por donzela a

um cavaleiro. Pediu-lhe ademais que não se esquecesse das penas de sua ama,

que pusera seu amor acima de quaisquer outras considerações. Tais palavras

deixaram sumamente envaidecido o rei que de resto vinha tratando Galvão de forma

bastante injusta. Se por causa de uma irmã tivesse de passar por semelhante aperto

preferia não ter irmã.

Eis que se lhe trazia sua magnífica armadura. Ninguém, obediente aos

ditames da paixão e disposto a conquistar os favores de uma mulher, um dia se

ataviou para a amada com maior esmero que ele - nem Gahmuret, nem Galões,

nem o Rei Kilycrates. Seda mais bela do que a que vinha usando jamais fora

importada de Ipopotiticon, da extensa Ácraton, de Kalomidente ou de Agatyrsjente.

Gramoflanz beijou o anelzinho que Itonje, a jovem rainha, lhe enviara como sinal de

apreço. Estava tão seguro de sua lealdade que considerou o amor da jovem um

escudo contra todas as vicissitudes.

Colocou-se pois a armadura no rei. A seguir um simpático grupo de 12

donzelas trouxe um baldaquino de seda. Cada jovem montava magnífico corcel e

segurava uma das 12 hastes que sustentavam o baldaquino. Era cavalgando sob

essa cobertura móvel, propiciadora de sombra, que o rei pretendia entrar na liça.

505
À sua esquerda e direita vinham a cavalo duas jovens vistosas, as mais belas

entre todas, sobre cujos ombros o rei pusera seus braços vigorosos.

2. A LUTA ENTRE PARSIFAL E GALVÃO

Os embaixadores de Artur não quiseram por mais tempo demorar-se

naquelas paragens e no caminho do regresso passaram pelo local onde Galvão

vinha combatendo. Nunca os jovens escudeiros haviam experimentado aflição

tamanha. Consternados com a difícil situação de Galvão e compelidos pela lealdade

puseram-se a gritar, ao vê-lo prestes a sucumbir sob os golpes do adversário. A

superioridade deste era tão evidente que o nobre Galvão teria de amargar a derrota

se os jovens sobressaltados não o tivessem chamado pelo nome ao reconhecê-lo. O

outro desistiu prontamente do combate e jogou fora a espada: "Ai de mim,

desgraçado e indigno", exclamou o estranho, entre prantos. "A Fortuna me traiu

quando minha mão indigna deu início a esta peleja. Nada de pior poderia ter-me

acontecido. Confesso-me culpado. Uma vez mais minha má estrela me induziu ao

erro e me precipitou na desgraça. Novamente, como já ocorreu tantas vezes, minha

antiga sina se manifestou. Ao me voltar contra o nobre Galvão atentei contra mim

mesmo. A desgraça me atingiu. A Fortuna me abandonou no momento de iniciar

este combate!"

506
Ao ver e ouvir essa demonstração de desespero Galvão disse a seu

adversário: "Ah, senhor, quem sois vós? Usais palavras tão conciliatórias que as

teria preferido ouvir antes de me falecerem as forças. Nesse caso teria conservado a

reputação que me arrebatastes. Gostaria de saber com quem ficou minha reputação

pois ainda pretendo recuperá-la. Minha boa estrela me abandonou pois até esta

parte sempre estive à altura de um adversário isolado."

“Primo, tu sempre poderás contar comigo e agora vou identificar-me:

sou teu primo Parsifal!"

"Então tudo está certo!", exclamou Galvão. "Que patética obnubilação!

Dois cândidos corações em fúria a se dilacerarem em violento entrechoque! Como

venceste a nós ambos agora cabe-te também sentir pena de nós dois. Se teu

coração ainda estiver cultivando a lealdade terás de reconhecer que venceste a ti

mesmo."

Ditas estas palavras meu senhor Galvão mal pôde ficar de pé.

Atordoado pelo estrondo dos golpes de espada cambaleou, tropeçou e caiu

estatelado. Um nobre escudeiro de Artur acudiu, amparando-lhe a cabeça. O jovem

solícito desatou-lhe o elmo e o refrescou abanando-o com seu chapéu de plumas de

pavão. O diligente empenho do jovem fidalgo fez com que voltasse a si.

507
3. GRAMOFLANZ NO CAMPO DA LUTA

Os dois cavaleiros não ficariam a sós por muito tempo. De vários lados

surgiam esquadrões do exército adversário que se dirigiam a locais predeterminados

e previamente demarcados por grossas estacas cuidadosamente aparadas. O

desafiante Gramoflanz havia mandado fincar ali, às suas expensas, cerca de cem

estacas aparadas e pintadas. Nesse espaço assim demarcado ninguém devia

entrar. A distância entre as estacas coloridas correspondia, segundo eu soube, a

quarenta passos de cavalo e havia cinqüenta dessas estacas a cada lado. No meio

é que devia se ferir o combate. Os exércitos deveriam manter-se fora desse espaço

demarcado como se dele estivessem separados por altas muralhas ou fossas

profundas. Gramoflanz e Galvão haviam acertado isso mediante um aperto de mão.

Entre ambos os exércitos havia testemunhas desse encontro não previsto e todos

especulavam sobre os possíveis vencedores e participantes. Como nenhum dos

dois exércitos havia conduzido seus combatentes à liça essa situação parecia a

todos bastante estranha.

Não muito depois de haver cessado o combate na planície florida

apareceu no local o Rei Gramoflanz a fim de vingar o ramo subtraído de sua árvore.

Ali soube que acabava de se travar um combate a espada com características de

extrema violência e pelo simples motivo de os contendores não se haverem

reconhecido. Separando-se de sua tropa Gramoflanz se aproximou dos extenuados

combatentes e lamentou sinceramente o ocorrido. Embora ainda tremendo em todo

508
o corpo Galvão se ergueu de pronto e se postou ao lado de Parsifal. A senhora Bene

seguira o rei ao local da luta. Ao deparar com o extenuado Galvão, a quem estimava

mais que a qualquer outra pessoa neste mundo, soltou um grito impregnado de

horror e de pena. Ato contínuo saltou da montaria e abraçando-o firmemente

exclamou: "Maldita seja a mão que infligiu tamanha injúria ao homem que, entre

todos, pode ser apontado como paradigma de bravura!" Ela o compeliu a sentar-se

na relva e enquanto chorava sentidas lágrimas a atraente jovem removeu o sangue

e o suor que lhe inundavam a testa. É que a armadura se tornara para ele quente e

incômoda.

À vista disso Gramoflanz observou: "Galvão, lamento tua má sorte. Na

verdade preferia que minha mão te tivesse reduzido a essa situação. Caso te

convenha iniciar amanhã o combate contra mim nada tenho a opor. Neste momento

preferiria enfrentar uma mulher que a ti, visivelmente carente de forças. Enquanto

não estiveres de todo revigorado um combate contigo nada acrescerá ao meu

prestígio. Trata, pois de repousar. Essa pausa será necessária se efetivamente

pretendes representar a causa do Rei Lot."

Enquanto isso o vigoroso Parsifal estava lépido, não apresentando

qualquer sintoma de abatimento. Com a aproximação do nobre rei tratou de tirar o

elmo e lhe disse em tom cortês: "Senhor, qualquer que tenha sido o motivo pelo qual

meu primo Galvão perdeu vossa consideração, gostaria de representar sua causa.

Minha mão ainda detém vigor suficiente. A ira que lhe tendes irá esbarrar na lâmina

de minha espada."

509
Mas o soberano de Roche Sabbins declinou da oferta, argumentando:

"Senhor, amanhã irá ele pagar o preço combinado pelo meu ramo para que desse

modo readquira o valor que representa ou então irá atirar-me à vala do desprestígio.

Sois possivelmente um combatente de valor, mas esta questão não vos diz

respeito."

Foi então que a boca mimosa de Bene passou a incentivá-lo: "Cão

infiel! Nas mãos do homem a quem odiais repousa vossa felicidade! Acaso

esquecestes a pessoa a quem amais? É dele que depende tudo! Sois o instrumento

de vosso próprio malogro, pois vossa pretensão atenta contra as leis do amor! O

amor que alegais não passa de uma fraude!"

Cessada essa explosão de ira o rei tentou apaziguá-la: "Senhora, não me

incrimineis pelo fato de insistir nesse combate. Ficai do lado desse cavaleiro e dizei

à irmã dele, Itonje, que permaneço seu leal servidor, disposto a por ela fazer tudo

que puder."

Mas quando Bene por sua própria boca soube que seu soberano que

devia bater-se na campina era irmão de sua ama, um inominável desespero lhe

invadiu o coração e fê-la gritar: "Retirai-vos daqui, maldito! Não tendes a mínima

noção do que seja lealdade!"

O rei se retirou juntamente com todos os seus. Os jovens fidalgos de

Artur trataram de apanhar as montarias, tão exaustas quanto os dois ginetes.

Galvão, Parsifal e a encantadora Bene regressaram, pois juntos aos seus. A

510
vigorosa atuação resultou para Parsifal num acréscimo de prestígio, de sorte que

seu regresso foi motivo de alegria generalizada. Todos os que o viram chegar não

se cansaram de enaltecê-lo!

4. PARSIFAL NO ACAMPAMENTO DE GALVÃO

Atentai agora para este episódio que aqui reproduzo da melhor

forma possível. Em ambos os exércitos os peritos em arte militar falavam desse

homem, elogiando seu feito notável. Esses encômios - permiti que o diga - se

referiam a Parsifal que além disso era de tão bela presença que nenhum cavaleiro

ali presente podia ombrear com ele. Era essa a opinião dos homens e mulheres ao

vê-lo se dirigir em companhia de Galvão à tenda onde pretendia mudar de roupa.

Ambos receberam vestes sobremodo preciosas.

No acampamento corria de boca em boca a notícia da chegada de

Parsifal, cujos notáveis e memoráveis feitos eram sobejamente conhecidos. Não

eram poucos os cavaleiros que poderiam confirmar a veracidade do que vinha sendo

relembrado posto que haviam sido testemunhas oculares desses acontecimentos.

511
Galvão disse então a Parsifal: "Se te aprouver conhecer quatro damas

de tua estirpe, além de outras mais, terei prazer em fazer as apresentações."

À vista desse convite o filho de Gahmuret respondeu: "Se aqui houver

damas de alta distinção não as decepciones com minha presença. Qualquer uma

delas que em Plimizoel tenha estado presente na ocasião em que fui declarado

infame deverá sentir-se constrangida ao deparar comigo. Que Deus vele pelo bom

nome dessas damas, as quais sempre merecerão de minha parte a maior

consideração. Todavia sentir-me-ia pouco à vontade se as encontrasse neste

momento."

"Mas é preciso que assim seja", decidiu Galvão. E ato contínuo

conduziu Parsifal à presença das quatro rainhas, que o saudaram com um beijo. Na

realidade a duquesa se sentiu pouco à vontade ao se ver compelida a beijar o

homem que a repelira. Ao tempo, depois de havê-lo visto brilhar nos combates

diante de Logroys, fora ao seu encalço para lhe oferecer sua mão e o domínio sobre

suas terras. Era esse o motivo de seus constrangimento. Com muito tato convenceu-

se também o vitorioso Parsifal a se livrar do acanhamento e a aderir sem reservas à

alegria geral.

Sob pena de perder sua estima Galvão determinou à senhorinha Bene

que sua mimosa boca não revelasse a Itonje que "o Rei Gramoflanz me odeia por

causa de seu ramo e que amanhã, em hora já determinada, acertaremos nossas

diferenças pelas armas. Sobre esse assunto nada digas à minha irmã e trata

também de lhe ocultar tuas lágrimas."

512
Ela respondeu: "Tenho seguramente todos os motivos para chorar

e externar minhas penas. Quem quer que seja derrotado, minha ama lamentará o

vencido e com ele perecerá. Cabe-me pois deplorar a triste sorte de minha ama

e a minha própria. O que vale um irmão que ergue sua espada contra o amado da

irmã e que com isso se volta contra o sentimento dela?"

Entrementes o exército regressara a seus acampamentos. A mesa já

se achava posta para Galvão e seus companheiros. Segundo as instruções de

Galvão, Parsifal devia partilhar a mesa com a duquesa, cabendo a esta o encargo

de cuidar do bem-estar do convidado. Ela então objetou: "Como pudestes pôr ao

meu lado uma criatura que para uma dama não tem outro assunto que não a ironia e

o sarcasmo? Que condições terei eu para servir esse homem? Mas já que é essa a

vossa vontade servi-lo-ei, ignorando suas inconveniências."

O filho de Gahmuret ponderou então: "Senhora, estais sendo injusta

comigo. Tenho suficiente bom-senso para poupar uma dama de situações

constrangedoras." Comida e bebida não faltavam e os convivas eram servidos com

liberalidade e distinção. Donzelas, damas e cavaleiros serviam-se à vontade. Itonje

porém não deixou de notar as lágrimas que Bene procurava reprimir. Esse fato a

impressionou a ponto de nada mais lhe apetecer. Tomada de inquietação pôs-se a

conjeturar: "Como explicar a presença de Bene no recinto? Afinal eu a havia enviado

para o homem por quem meu coração bate em ritmo descompassado. Será que algo

que temo aconteceu? Acaso renunciou ele ao meu serviço e ao meu amor? Se for o

caso; então esse homem bravo e leal só terá conseguido que eu, pobre criatura, me

consuma em saudades por ele!"

513
A refeição terminou quando passava do meio-dia e coincidiu com a

chegada de Artur, sua real consorte Ginover e numerosas damas e cavaleiros.

Parsifal, o vistoso campeão que se achava rodeado de nobres damas, foi

cumprimentado com um beijo por muitas beldades. Artur igualmente o cumprimentou

com muita deferência e não se cansou em lhe exprimir sua estima e reconhecimento

por haver expandido sua reputação de modo que a essa altura já não havia

cavaleiro que com ele pudesse ombrear.

O cavaleiro de Valois disse então a Artur: "Quando da última vez

que estive convosco minha honra foi atacada. Minha reputação foi tão deslustrada

que dela praticamente nada mais restou. Mas acabastes de me declarar apto para

reivindicar novamente alguma consideração. Acredito que seja esse vosso desejo.

Prefiro mesmo dar crédito a vossas palavras e espero que esse vosso juízo

favorável seja compartilhado por aqueles que em Plimizoel. me abandonaram

envergonhados." Os que ali se achavam presentes reagiram, assegurando-lhe que

havia conquistado em diversos países sólido renome cuja consistência ninguém

poderia pôr em dúvida. Parsifal estava sentado ao lado de Artur no momento em que

ali compareceram os cavaleiros de Orgeluse. O nobre rei não se descuidou em lhes

dar cordiais boas-vindas em nome do anfitrião. Embora a tenda de Galvão fosse

bastante espaçosa o sábio e experiente Artur houve por bem acomodar-se na

campina. Os hóspedes seguiram seu exemplo, formando amplo círculo em torno

dele. Não demorou para que ali se congregasse grande número de pessoas que mal

se conheciam. Nessas circunstâncias fazer apresentações individuais ou promover

contatos pessoais entre cristãos e sarracenos seria pedir demais. Quem pertencia

514
ao exército de Clinschor? Quais eram aqueles cavaleiros que vindos de Logroys a

serviço de Orgeluse se haviam apresentado em mais de uma oportunidade com

espírito decidido no campo de luta? Quais aqueles que haviam sido trazidos por

Artur? Quem quisesse citar seus países e castelos esbarraria em sérias dificuldades.

Todos porém estavam unânimes em afirmar que Parsifal irradiava tamanha simpatia

que todas as atenções femininas convergiam sobre ele e que fazia jus à alta

reputação que gozava em virtude de seu valor.

Foi então que o filho de Gahmuret se ergueu e assim falou: "Peço a

todos aqui presentes que me ouçam e me ajudem a reaver um bem de que fui

privado em circunstâncias particularmente dolorosas. Um misterioso acontecimento

me expulsou da confraria da Távola Redonda. Espero que aqueles que ao tempo me

acolheram na comunidade agora me chamem de volta aos seus quadros." Artur

atendeu o pedido de bom grado.

A seguir Parsifal chamou alguns cavaleiros à parte e pediu a Galvão

que na manhã seguinte, à hora aprazada, lhe permitisse combater em seu lugar. "É

meu desejo aguardar o Rei Glamoflanz, pronto para o combate. Hoje cedo colhi um

ramo na árvore dele, criando assim o pretexto para desafiá-lo. Esse foi o motivo

único que me levou ao território de Gramoflanz. Primo, eu não poderia supor que

estivesses neste lugar. Estava convencido de que enfrentaria o rei e quando

constatei meu engano fiquei profundamente decepcionado. Primo, permite que eu o

enfrente. Se o destino lhe reservar as ignomínias de uma derrota cumulá-lo-ei de

agravos até a saciedade. Primo, depois de haver sido reintegrado na comunidade da

Távola Redonda considero-me no direito de chamar a mim esta questão. Em nome

515
de nossa solidariedade de clã deixa a meu encargo esse combate. Forças para tanto

não me faltarão."

A isso respondeu meu senhor Galvão: "Tenho aqui na corte do Rei da

Bretanha muitos parentes e até mesmo irmãos. Mas não consentiria que algum

deles se batesse em meu lugar. Confio que a boa Fortuna favoreça minha causa

concedendo-me a vitória. Que Deus te retribua a intenção de querer bater-te em

meu lugar, mas por ora não necessito de alguém para representar minha causa."

Artur, que ouvira o diálogo, encerrou a discussão levando ambos de

volta ao círculo de amigos. Por ordem do copeiro de Galvão jovens fidalgos trataram

de trazer muitos cálices de ouro de grande valor, cravejados de pedras preciosas

que a seguir circularam com a bebida. Depois do último trago todos os convivas se

recolheram, de vez que havia anoitecido. Antes, porém Parsifal examinou

atentamente a armadura, mandou substituir correias que se haviam rompido e

deixou tudo em ordem. Mandou providenciar além disso um escudo novo e sólido de

vez que o velho estava perfurado e retalhado. Tudo foi providenciado por infantes

que ele pouco conhecia, entre os quais havia alguns franceses. O cavalo que em

combate arrebatara de um templário ficou aos cuidados de um escudeiro, o qual

tratou de almofaçá-lo cuidadosamente.

Era noite e todos se haviam recolhido aos leitos. Parsifal fez o mesmo.

Mas aos pés da cama, ao alcance de sua mão, estava a armadura.

516
5. O COMBATE ENTRE PARSIFAL E GRAMOFLANZ

O Rei Gramoflanz estava indignado com o fato de no dia anterior

outro homem se haver batido por seu ramo. Seus homens não saberiam acalmá-lo e

nem se atreviam a esboçar um gesto sequer nesse sentido. Grande era seu

desgosto pelo fato de haver chegado tarde demais. Qual foi, pois a atitude do

herói? Como sua única preocupação era expandir sua fama determinou que logo ao

amanhecer equipassem sua montaria e a ele próprio. Seria preciso que uma dama

ricamente ataviada carregasse sua armadura? Por certo que não, pois esta era por

si só suficientemente deslumbrante. Ele assim se embelezava por amor a uma

donzela a quem vinha servindo com extrema dedicação. Partiu sem acompanhantes

para reconhecer o terreno e se tomou de grande desgosto ao constatar que o nobre

Galvão não se dera a mesma pressa em comparecer à campina.

Entrementes Parsifal deixara o acampamento sem que alguém o

percebesse. Armado de ponto em branco escolheu uma sólida lança de Angram da

qual retirou a flâmula. Assim o herói partiu rumo à colorida estacaria que delimitava

o espaço onde devia ferir-se o combate. Ali deparou com o rei em atitude de espera.

Sem trocar uma só palavra cada um tratou de perfurar o escudo do adversário

fazendo rodopiar no ar fragmentos das lanças quebradas. Ambos eram mestres

consumados no manejo da lança e nas outras modalidades das artes marciais. Em

torno do local em que o combate se feria eram pisadas as gotas de orvalho que

cobriam a relva e os elmos retumbavam sob o impacto das aguçadas lâminas.

517
Ambos combatiam impavidamente. A relva era esmigalhada e o orvalho

transformado em lama. Muito mais me preocupava a sorte das flores coloridas que a

dos heróis que destemida e deliberadamente buscavam o perigo. Como alguém que

não foi ofendido por qualquer dos dois poderia regozijar-se com tal estado de

coisas?

Enquanto isso o senhor Galvão também vinha se preparando para o

combate que prometia ser árduo. Já era plena manhã quando a ausência do bravo

Parsifal foi notada. Acaso pretendia ele desempenhar o papel de mediador? Não,

muito pelo contrário! Naquela hora ainda vinha se batendo com alguém que também

sabia combater embora já fosse quase meio-dia.

A missa encomendada por Galvão vinha sendo celebrada por um bispo, o

que resultou em princípio de tumulto, pois antes mesmo que se entoassem os

cânticos litúrgicos muitos cavaleiros e damas a cavalo afluíam ao locai onde Artur se

encontrava. O Rei Artur, em pessoa, estava ali onde os sacerdotes celebravam a

missa. Depois da última bênção Galvão tratou de se armar. Já antes da missa o

altivo herói havia posto as grevas nas pernas bem torneadas, fato que enternecera

até as lágrimas as damas presentes. Quando todos haviam deixado o acampamento

rumo à liça ouviram tinido de armas, viram faíscas saltando de elmos e golpes

vibrados com extrema violência. O Rei Gramoflanz, que sempre recusara

desdenhosamente bater-se com um homem só, dessa vez parecia estar sendo

assediado por seis a um só tempo. Mas ali a combatê-lo se achava apenas Parsifal,

que estava lhe dando uma lição ainda hoje lembrada. Nunca mais se atreveria a

enfrentar dois de uma só vez, pois um já vinha sendo demais para ele. Entrementes

518
os exércitos haviam tomado posição na ampla campina junto às estacas que de um

e de outro lado demarcavam a liça e se puseram a observar o combate ali ferido.

Depois do entrechoque as montarias dos intrépidos combatentes

haviam conseguido manter-se em pé enquanto os dois nobres adversários tinham

apeado, prosseguindo a pé uma luta encarniçada. Seguidamente os contendo rés

erguiam os braços desferindo golpes devastadores e sucessivamente viraram a

arma utilizando o outro lado do fio da espada. Desse modo o Rei Gramoflanz vinha

colhendo amarga compensação por seu ramo, mas por outro lado não tratou com

muita amabilidade o parente de sua amada. No fim das contas o parentesco com a

bela Itonje resultou para Parsifal apenas em prejuízo ao invés de benefício. Um e

outro, que tantas vezes partiam em busca de fama, tiveram que amargar algum

desgosto nesse combate - um por seu parentesco, o outro por seu amor. Quando

meu senhor Galvão chegou ao local o altivo e intrépido guerreiro de Valois já havia

praticamente subjugado o adversário. Brandelidelin de Punturtoys, Bernout de

Riviers e Affinamus de Clitiers se aproximaram dos combatentes, de cabeça

descoberta. Artur e Galvão atravessaram por sua vez a campina aproximando-se

dos exaustos combatentes. Os cinco convieram em interromper o combate.

Grannoflanz achou que já era tempo de pôr fim à luta de vez que teria que admitir a

vitória do adversário. Assim também pensavam muitos que ali estavam assistindo o

combate. O filho do Rei Lot declarou então: "Senhor rei, concedo-vos hoje o

benefício que ontem me concedestes ao concordar que eu tivesse uma pausa para

descanso. Recobrai as forças, pois disso bem que necessitais. Neste combate vosso

adversário esgotou tanto vossas forças que agora não tereis condições para me

enfrentar. Considerando que nunca aceitais lutar senão contra dois ao mesmo

519
tempo, hoje, mesmo sozinho, levaria a melhor sobre vós. Amanhã tratarei de vos

enfrentar sozinho. Deus dará a vitória à justa causa!"

O rei regressou junto aos seus depois de haver prometido que na manhã

seguinte estaria ali na campina para medir forças com Gaivão.

Artur disse então a Parsifal: "Sobrinho, na verdade Galvão não

concordou que te batesses por ele e muito te lamentaste por não teres podido dar

uma prova de teu valor. Mas quer isso nos agradasse ou não acabastes por

enfrentar o homem que afinal estava esperando por Gaivão. Sumiste de nossa vista

sorrateiramente qual ladrão, pois de outra sorte te teríamos retido aqui. Espero que

Galvão não te queira mal por teres aumentado tua fama!"

Gaivão porém contestou: "Não estou sequer um pouco aborrecido pelo

fato de meu primo haver conquistado grande renome e tampouco faço questão de

me bater amanhã cedo. Se o rei me desobrigar desse compromisso verei nesse

gesto apenas uma atitude de bom-senso."

6. GESTÕES DE APAZIGUAMENTO

O exército regressou em pequenos grupos. Muitas damas atraentes e

cavaleiros magníficos podiam ali ser vistos. Nunca exército algum se apresentou

520
com tamanha pompa. Os cavaleiros da Távola Redonda e os pertencentes à

comitiva da duquesa usavam magníficas cotas de armas confeccionadas com peles

de Cynidunte e Pelpiunte. Reluzentes eram igualmente as suas telizes. O insigne

Parsifal foi tão enaltecido nos acampamentos dos dois exércitos que seus amigos

podiam se dar por satisfeitos. No exército do próprio Gramoflanz admitia-se que

nunca o sol iluminara cavaleiro mais valoroso. Concordou-se que ambos haviam

lutado com bravura mas unicamente a Parsifal cabiam os louros da vitória. Eles de

resto não conheciam o nome nem a estirpe daquele que tanto vinham louvando.

Aconselhou-se então Gramoflanz que enviasse mensagem pedindo as

ordens de Artur no sentido de que na manhã seguinte não se apresentasse para

competir com Gramoflanz qualquer outro cavaleiro de sua comitiva que não Galvão,

filho do Rei Lot, seu verdadeiro adversário. Unicamente com ele pretendia medir

forças. Como mensageiros foram escolhidos dois pajens prudentes, atilados e com

vivência na corte aos quais o rei deu ainda a seguinte recomendação: "Sem chamar

atenção procurai localizar entre as beldades a mais bela. Atentai especialmente no

comportamento daquela que costuma sentar ao lado de Bene, procurando verificar

se está triste ou bem disposta. Observai-a disfarçadamente e deixai que seus olhos

revelem se está ou não saudosa do amado. Entregai a carta e este anelzinho à

minha amiga Bene. Ela já sabe a quem deve ser entregue. Se tiverdes o tato

necessário, tudo sairá bem."

No outro acampamento Itonje já soubera que o irmão e o mais encantador

dos homens por quem uma donzela poderia apaixonar-se iriam medir forças e que

ambos se mantinham inflexíveis nesse propósito. Diante de aflição tamanha

521
desabavam todas as barreiras do pudor. Não apoio quem se regozijar com

semelhante infelicidade, pois ela não o merecia. Aproximando-se, mãe e avó

retiraram-na dali, conduzindo-a a uma pequena tenda de seda onde Arnive a

repreendeu, classificando seu desalento como comportamento inconveniente. A

essa altura já não havia mais saída e num desabafo acabou confessando o que

escondera por tanto tempo: "É pela mão de meu irmão que irá morrer meu amado?

Ele teria todos os motivos para não agir desse modo!"

Foi então que Arnive convocou um jovem fidalgo e lhe ordenou: "Dize a

meu filho que preciso falar-lhe imediatamente, mas que venha só!"

O escudeiro regressou logo em companhia de Artur. A essa altura Arnive

resolvera revelar a Artur o nome daquele que Itonje amava com tanta paixão e pedir-

lhe que promovesse gestões visando impedir o combate.

Naquele momento acabavam de chegar os jovens fidalgos que o Rei

Gramoflanz enviara ao acampamento de Artur. Ao desmontarem diante da pequena

tenda de seda um deles ainda teve tempo de ouvir o que a dama sentada ao lado de

Bene dizia a Artur: "Acaso considera a duquesa um grande feito se meu irmão,

cedendo às suas pérfidas pressões, vier a matar meu amado? Ele devia considerar

isso um ato criminoso! Afinal que mal lhe causou o rei? Ele devia lembrar que se

trata do amado de sua irmã! Se meu irmão ainda tivesse algum juízo devia saber

que o que me une a Gramoflanz é um amor verdadeiro. Se tiver um coração leal irá

se arrepender desse projeto! No fim das contas, a ele caberá a culpa se eu lhe

522
seguir na morte e então deverá ser responsabilizado perante vós, senhor, por esse

delito!"

E a meiga jovem prosseguiu nas suas queixas: "Lembrai-vos que sois

meu tio. Tratai pois de impedir esse combate de qualquer maneira!"

O sábio Artur respondeu prontamente: "Querida sobrinha minha, pesa-

me sobremodo que tu, tão jovem ainda, tenhas sido capaz de alimentar uma paixão

tão profunda. Lembra-te do que aconteceu à tua irmã Surdamur que tão

intensamente amava o imperador grego210 (206). Querida menina, se estivesse

convencido de que vossos corações estão realmente unidos de forma indissolúvel

trataria de solucionar essa pendência. Mas Gramoflanz, filho de Irot, mostra-se tão

belicoso que o combate se ferirá, a não ser que o amor dele por ti seja

suficientemente grande para fazê-lo desistir. Acaso alguma vez teve ele

oportunidade de te ver no círculo de amigos, admirar tua boca rubra e tua

esplendente beleza?"

Ela admitiu: "Isso nunca aconteceu. Amamo-nos sem que um jamais

tenha visto o outro. Contudo muitos mimos já me enviou como prova de seu amor e

de sua sinceridade. De minha mão também recebeu provas de que o amo, de sorte

que já não duvidamos de nossos sentimentos. O rei me quer bem. Seu coração

abomina a falsidade."

210
CF. Nota nº 190

523
Foi só então que Bene se deu conta da presença dos dois escudeiros

que o Rei Gramoflanz enviara ao acampamento de Artur. À vista disso declarou:

"Ninguém pode ser testemunha do que se passa aqui. Com vossa permissão farei

com que sejam retiradas todas as pessoas que se encontram nas proximidades da

tenda. Se alguém souber o quanto minha ama se preocupa com a sorte de seu

amado tal nova logo estará na boca de todos!"

A senhorinha Bene foi então encarregada de tratar desse assunto e ao

sair, um dos jovens fidalgos lhe entregou furtivamente anel e carta. Ambos

escutaram as queixas de Itonje e ao explicar que haviam vindo para entrevistar-se

com Artur, pediram a Bene que promovesse esse contacto. Ela respondeu: "Retirai-

vos até certa distância e ali permanecei até que vos chame de volta!"

Retornando à tenda a jovem e amável Bene explicou que teriam chegado

os enviados de Gramoflanz perguntando por Artur e acrescentou: "Pareceu contudo

inconveniente permitir que soubessem algo do que aqui se tratou, pois permitir que

vissem as faces de minha ama, ainda úmidas de pranto, poderia constituir para ela

motivo de constrangimento."

Artur então perguntou: "Acaso se trata daqueles pajens que nas

proximidades estiveram à minha procura? Ao que tudo indica trata-se de dois jovens

distintos, talvez até hábeis e por certo suficientemente honrados para participar

desta reunião de consulta. Um deles já deve ter senso suficiente para inteirar-se dos

sentimentos que o amo dele dedica à minha sobrinha."

524
"Isso é que eu não sei", replicou Bene. "Mas permiti dizer-vos, senhor,

que o Rei Gramoflanz enviou este anel acompanhado de uma carta. Um dos jovens

os passou furtivamente às minhas mãos, ao sair do acampamento. Ei-los, senhora!"

Itonje beijou a carta seguidamente, apertou-a ao peito e exclamou: "Agora

comprovai, senhor, o quanto o Rei Gramoflanz anseia por meu amor."

Artur apanhou a carta e admitiu que tinha sido redigida com um

apaixonada linguagem cuja sinceridade não podia ser posta em dúvida. Lida a carta

Artur se convenceu de que em seu tempo nunca se deparara com caso de amor tão

autêntico, pois ali as palavras retratavam exatamente isso: "Saúdo aquela que devo

saudar e cujo assentimento me compele a servi-la. Refiro-me a ti, senhorinha, pois

me dás o conforto de teu consolo. Amamo-nos e na certeza deste amor se arrima

nossa felicidade. Teu consolo me gratifica mais que qualquer outra coisa, por saber-

te inteiramente afeiçoada a mim. Tu simbolizas o ferrolho na porta de minha

lealdade, pois afugentas as penas do meu coração. Teu amor não apenas me

ajuda, mas ainda me aconselha a abster-me de qualquer ato indigno. Bem sei que

tua bondade é inata e inabalável. Da mesma forma inarredável com que o pólo ártico

se opõe ao antártico será a constância do nosso amor, sem nunca experimentar a

menor vacilação. Nobre donzela, lembra-te de minhas penas que te revelei num

gesto de desabafo e concede-me teu apoio. Se alguém me odiar a ponto de querer

nos separar lembra-te que no fim das contas o amor não nos negará suas

recompensas. Conserva incólume a dignidade feminina e permite que eu seja

aquele teu servidor sempre disposto a obsequiar-te."

525
Artur admitiu: "Tu tens razão, sobrinha, o rei te corteja, sem dúvida.

Através desta carta soube do milagre de um caso de amor sem precedentes. Ambos

deveis pôr fim a esse tormento. Deixai esse caso ao meu encargo. Farei com que

esse combate não se realize. Enquanto isso trata de poupar tuas lágrimas. Ao invés

delas seria preferível que me explicasses a maneira pela qual vos afeiçoastes um

ao outro, já que vinhas sendo mantida em cativeiro. Sou de opinião que devias

corresponder às suas pretensões amorosas, sendo esse o motivo pelo qual ele te

serve."

Itonje, a sobrinha de Artur, explicou então: "Aquela que nos pôs em

contacto está bem próxima de nós. Entretanto preferimos manter o caso em

segredo. Caso isso vos convenha, fazei com que meus olhos possam ver aquele por

quem meu coração anseia."

Artur disse: "Dize-me então quem é. Farei tudo que estiver a meu alcance

para que as coisas se conformem aos teus desejos e resultem para vós dois em

felicidade."

Itonje respondeu: "Trata-se de Bene. Mas ali perto de nós encontram-se

dois escudeiros de Gramoflanz. Se minha sorte não vos for indiferente então

procurai saber se o rei, que para mim representa toda a felicidade, deseja ver-me!"

Artur, o sábio e experiente fidalgo, foi ao encontro dos pajens e os

cumprimentou. Um deles a ele então se dirigiu nestes termos: "Senhor, o Rei

Gramoflanz vos pede para que em respeito à vossa própria dignidade determineis

526
que se cumpra o que foi combinado entre ele e Galvão. Ele vos pede ademais para

que nenhum outro cavaleiro se apresente contra ele na liça. Vosso exército é tão

poderoso que não seria justo obrigá-lo a vencer todos os vossos cavaleiros. Deveis

enviar Galvão, pois unicamente com ele o combate foi combinado."

O rei tratou de esclarecer os jovens fidalgos: "Livrá-los-ei do peso dessa

suspeita. Meu sobrinho Galvão se tomou de grande desgosto por não ter sido ele o

cavaleiro que se bateu com Gramoflanz. Ao adversário de vosso amo cabe hoje, por

direito, a vitória. Trata-se do filho de Gahmuret. A nenhum cavaleiro integrante deste

exército jamais foi dado ver tão poderoso guerreiro. O homem que uma vez mais

colheu os louros da vitória é meu sobrinho Parsifal. Vereis esse imbatível campeão

com vossos próprios olhos. Tolhido na minha vontade pela promessa de Galvão

tratarei de cumprir a vontade de vosso amo."

Artur, Bene e os dois escudeiros montaram e percorreram o

acampamento em todas as direções. Desse modo os jovens puderam admirar as

ricas cimeiras dos elmos e as belíssimas damas que encontraram pelo caminho. Tal

gesto mesmo hoje não pareceria incompatível com a dignidade de um poderoso

monarca. Em momento algum pararam para desmontar, pois era intenção de Artur

oferecer aos jovens fidalgos uma oportunidade de contemplar a nobreza de sua

corte - cavaleiros, donzelas e damas - todos de magnífica presença: um mundo que

aos jovens fidalgos deveria parecer desejável. O exército se compunha de três

corpos distintos, cada qual ocupando área nitidamente separada das demais. Depois

de haverem percorrido todas as áreas Artur acompanhou os jovens até a campina.

Ali ele disse: "Querida Bene, tu ouviste as queixas de Itonje, filha de minha irmã, que

527
até agora não pôde dominar inteiramente o choro. Estes meus amigos puderam

certificar-se disso. Sua paixão por Gramoflanz esmaeceu sua beleza deslumbrante.

Por isso ajudai-me, vós dois, e também tu, querida amiga Bene, no que vos irei pedir

agora. Fazei com que o rei me venha ver ainda hoje, sem prejuízo do combate que

irá ferir-se amanhã. Eu próprio irei conduzir meu sobrinho Galvão à campina. Se o

rei vier hoje ao meu acampamento amanhã estará com maior disposição ainda, pois

o amor o armará com um escudo que dará muito trabalho a seu adversário. Ele

multiplicará sua combatividade num grau que irá assombrar seu oponente. Ele deve

fazer-se acompanhar de experientes conselheiros de sua corte, pois é minha

intenção promover gestões conciliatórias entre ele e a duquesa. Meus amigos, tratai

disso com tato e habilidade pois tal resultará em honra para vós. Permiti que vos

revele minhas mágoas: o que eu, homem desditoso, fiz ao Rei Gramoflanz para que

vote a um tempo ódio e amor à minha estirpe? Como rei é meu igual e devia poupar-

me por esse motivo. Mas se ele devotar ódio ao irmão de sua amada devia, como

homem inteligente, perceber que um tal procedimento afasta seu coração dos rumos

do amor."

Um dos jovens argumentou com Artur: "Senhor, certamente cabe a nosso

amo evitar qualquer coisa que vos possa desgostar. Esse é um dever de cortesia.

Mas certamente sabeis da existência de uma antiga inimizade. Por isso seria melhor

que meu amo permanecesse em seu acampamento ao invés de vir vos procurar. A

duquesa se tem mantido na sua posição de inflexível hostilidade e tem levantado

muitas queixas contra ele."

528
"Conviria que viesse acompanhado de poucas pessoas", explicou Artur.

"Entrementes convencerei a ilustre duquesa a converter inimizade em amizade. Ele

terá ademais uma boa escolta. A meio caminho meu sobrinho Beacurs o receberá.

Por essa escolta será ele conduzido à minha presença sem que isso resulte para ele

em qualquer desdouro. Uma vez entre nós terá oportunidade em entrar em contacto

com pessoas notáveis." Despediram-se, pois e partiram em companhia de Bene.

Artur permaneceu sozinho na campina. Bene e os dois jovens atravessaram Rosche

Sabbins, pois o exército se achava acampado no outro lado da cidade. Quando

Bene e os jovens transmitiram a mensagem a Gramoflanz este experimentou

tamanha alegria que considerou aquele dia o mais feliz de sua vida. Parecia-lhe que

a própria Fortuna havia idealizado uma tal notícia para ele. Declarou que iria com

muito prazer e tratou de escolher seus acompanhantes. Três príncipes do seu reino

iriam integrar sua comitiva. O Rei Brandelidelin, seu tio, Bernout de Riviers e

Affinamus de Clitiers tomaram idêntica providência, escolhendo como companheiros

aqueles que lhes pareciam mais indicados para esse evento. Eram ao todo doze.

Além desses foram mobilizados para a viagem jovens fidalgos e vigorosos infantes

em grande número. Que tal eram os trajes dos cavaleiros? Eram de seda, com ricas

e brilhantes bordaduras de ouro! O rei se fez acompanhar também de seu falcoeiro,

como se quisesse ir a uma caçada.

Conforme prometera Artur determinou ao belo Beacurs que esperasse o

rei e sua comitiva a meio caminho e lhes servisse de escolta. Através de extensos

paramos, por vaus de alagadiças e riachos, o rei falcoava, mas dessa vez tinha em

mira uma presa de outro tipo: o amor. A meio caminho Beacurs o recebeu com muita

cordialidade. Beacurs vinha acompanhado de mais de meia centena de pajens, cuja

529
magnífica aparência revelava sua distinta origem. Eram jovens duques e condes,

além de alguns filhos de reis. Os jovens fidalgos das duas comitivas se

cumprimentaram com sincera simpatia. A magnífica aparência de Beacurs chamou

atenção do rei, que logo quis saber de Bene de quem se tratava: "É Beacurs, filho de

Lot", Gramoflanz conjeturava então de si consigo: "Coração meu, trata agora de

identificar aquela que se pareça com esse garboso cavaleiro. Afinal foi a irmã dele

que me mandou seu gavião acompanhado de um chapéu de Sinzester. Se ela me

concedesse seu afeto daria por ele todos os bens terrenos sem me impressionar

com a desmedida extensão deste planeta. Confiante como estou na sua mercê

certamente não irá me decepcionar. Como sempre estimulou minhas pretensões

confio que me fará ainda mais feliz do que tenho sido até agora." Foi então que num

gesto de cavaleirosa simpatia o irmão de Itonje o tomou pela mão e partiu com ele.

Entrementes ocorrera o seguinte: Artur recebera da duquesa a

confirmação de suas intenções conciliatórias, considerando que a perda de

Cidegast, antes tão amargamente chorada, havia sido largamente compensada pelo

amor de Galvão. Sua ira praticamente se dissipara. Nos braços de Galvão

despertara para uma nova vida de sorte que seus planos de vingança estavam

perdendo consistência. Artur, o bretão, tratou, pois de reunir uma centena de damas

de singular beleza e distinção. Eram damas e donzelas de grande encanto pessoal.

Itonje, que fazia parte do grupo, encarou esse encontro com o rei com confiante

expectativa. Tomada de intensa e inalterável euforia tratou contudo de evitar que

seus olhos revelassem as penas de amor que a afligiam. Junto às damas havia

igualmente numerosos e vistosos cavaleiros, mas a bela estampa de Parsifal se

destacava esplendente entre os demais. Eis que Gramoflanz vinha se aproximando

530
da tenda. O impávido rei usava vestimenta de seda bordada a ouro importada de

Gampfassasche e que brilhava, vista à distância.

Os recém-chegados desmontaram. Numerosos pajens precediam o Rei

Gramoflanz, irrompendo tenda adentro. Os camareiros se empenhavam em manter

aberta uma ampla passagem de acesso à rainha dos Bretões. Brandelidelin, o tio do

rei, foi o primeiro a ingressar na tenda, onde Ginover o recebeu com um beijo. O rei,

Bernout e Affinamus foram recebidos por ela com igual atenção. Artur disse então a

Gramoflanz: "Antes de tomar assento olhai em torno. Talvez a visão de uma dessas

damas faça com que o ritmo de vosso coração se acelere. A vós e a ela concedo

permissão de trocar beijos de boas-vindas."

Uma carta que lera ao ar livre continha uma descrição da aparência física

de sua amada. De resto já se encontrara frente a frente com o irmão daquela que o

amava, mais que qualquer outra coisa neste mundo. Gramoflanz foi tomado de

intensa euforia quando seus olhos identificaram quem lhe queria tanto bem e como

Artur consentira que se cumprimentassem sem formalidades, ele beijou Itonje na

boca.

O Rei Brandelidelin tomou assento junto à rainha, enquanto Gramoflanz

sentou ao lado daquela em cujo rosto ainda se notavam algumas lágrimas

remanescentes. De resto as lágrimas tinham sido até aquele momento o único

quinhão desse seu caso de amor. Se Gramoflanz estivesse preocupado em não

desgostá-la teria de confessar-lhe o quanto a amava e oferecer-lhe seus serviços.

Ela por sua vez teria de agradecer-lhe por ter vindo. Na realidade ninguém saberia

531
dizer ao certo de que falavam. O certo é que se contemplavam de modo muito

eloqüente. Se eu algum dia aprender essa linguagem muda saberei interpretar com

acerto esse tipo de Confidencia e se ela implicou um sim ou não.

"Vós já dissestes muitas amabilidades à minha esposa", disse Artur a

Brandelidelin. Com estas palavras conduziu o bravo guerreiro a uma tenda menor,

situada nas proximidades. Gramoflanz e sua companheira acataram a decisão de

Artur, permanecendo imperturbáveis no local onde se achavam sentados. A

estimulante presença das damas contribuiu para que os cavaleiros presentes

também não se aborrecessem por isso. Cultivavam aquele momento de lazer a que

todo homem julga ter direito depois das agruras do dia.

Diante da rainha foi posta a poncheira para o brinde de boas-vindas.

Quanto mais animadamente cavaleiros e damas brindavam mais afogueados se

tornavam seus rostos. Artur e Brandelidelin também foram servidos. Depois de o

copeiro se haver retirado Artur disse a Brandelidelin: "Senhor rei, suponhamos que

seu real sobrinho tivesse morto o filho de minha irmã e quisesse depois disso pedir

em casamento minha sobrinha - aquela que vedes sentada ao lado dele e que deve

estar-lhe confidenciando suas penas. Se estivesse de são juízo não poderia mais

amá-lo, depois disso. Ao contrário, iria detestá-lo, de sorte que o rei veria frustradas

as suas esperanças. Quando o ódio afugenta o amor também subtrai ao coração

leal toda a felicidade."

O Rei de Punturtoys respondeu então a Artur, o bretão: "Senhor, os dois

desafetos são filhos de nossas irmãs. Tratemos, pois em comum acordo de evitar

532
essa solução pelas armas e disso, pela ordem natural das coisas, poderá resultar

que os dois se tornem amigos. Vossa sobrinha Itonje deve exigir de meu sobrinho

que desista do combate, caso efetivamente pretenda seu amor. Evitar-se-á desse

modo o perigoso encontro. Promovei além disso gestões visando reconciliar a

duquesa com meu sobrinho."

Artur tranqüilizou-o: "Isso eu farei com todo o gosto. Meu sobrinho Galvão

fará com que ela, como dama distinta, transfira para mim e para ele o direito de

represália. Tratai pois junto a Gramoflanz da solução desta contenda."

"Disso tratarei eu", garantiu Brandelidelin. Depois desse ajuste ambos

regressaram às suas tendas.

7. RECONCILIAÇÃO

O Rei de Punturtoys sentou novamente ao lado da insigne Ginover. No

outro lado da rainha estava Parsifal. Sua aparência era tão magnífica que nunca

alguém vira homem mais vistoso. Entrementes Artur foi ao encontro do sobrinho

Galvão. Este já se inteirava da presença de Gramoflanz no local e ao saber que

Artur se encontrava na sua tenda foi ao encontro dele na esplanada.

533
Do esforço conjugado dos dois resultou que a duquesa concordasse

com a reconciliação mediante as seguintes condições: ela se reconciliaria com seu

desafeto caso Galvão desistisse de combate por amor a ela. O Rei Gramoflanz

deveria, por sua vez retirar a acusação levantada contra seu sogro Lot. A Artur ela

pediu que comunicasse ao interessado essa decisão e o sábio bretão desincumbiu-

se desse encargo com a habilidade de sempre. Foi desse modo que o Rei

Gramoflanz se viu compelido a renunciar à reparação que exigira pela perda de seu

ramo. A simples visão da encantadora Itonje levara seu rancor contra Lot da

Noruega a se derreter como neve sob o calor do sol. Sentado assim ao lado dela,

foi concordando com todas as propostas. Eis que vinha chegando Galvão com sua

luzida comitiva de cavaleiros, cujos nomes e locais de origem não saberia referir

aqui individualmente. Os espírito conciliador superou naquela hora todas as

diferenças. A altiva Orgeluse apareceu ao lado de Galvão. acompanhada de bravos

guerreiros e dos esquadrões de Clinschor. Na tenda de Artur foram retirados os

tabiques laterais, deixando apenas a cobertura.

Já antes Artur pedira à bondosa Arnive, bem como a Sangive e a Cundrie

que participassem desse encontro de reconciliação. A quem esse gesto parecer

irrelevante terá de considerar significativo o que ele pretendia. Jofreit, companheiro

de armas de Galvão, conduziu pela mão a vistosa duquesa que cortesmente cedeu

o passo às três rainhas. Estas cumprimentaram Brandelidelin com um beijo.

Confiante em obter mercê e reconciliação Gramoflanz aproximou-se de Orgeluse e

esta, de fato, ofereceu ao rei a boca rubra para o beijo de reconciliação embora

estivesse prestes a chorar pois uma vez mais a imagem do falecido Cidegast lhe

aflorara à mente. Como mulher ainda se ressentia daquela perda, o que podeis

534
tomar como prova de lealdade. Galvão e Gramoflanz também selaram sua

reconciliação com um beijo. A seguir Artur uniu Itonje e Gramoflanz em legítimo

matrimônio. Era o coroamento de uma longa e persistente dedicação. Bene ficou

radiante com o acontecimento. A Lischoys, o Duque de Gowerzin, foi dada Cundrie

como esposa já que por ela seu coração ansiava. Sua vida decorrera sem atrativos

até encontrar o amor de Cundrie. Ao Turcóide Florand, Artur propôs que tomasse

Sangive, a viúva do Rei Lot, para esposa, proposta que o príncipe prazerosamente

aceitou, pois uma dádiva como Sangive era digna de sua afeição. Naquele dia Artur

se mostrou particularmente animado em resolver os problemas sentimentais das

mulheres e isso requeria muito tato e operosidade, pois cada caso requeria que

todos os prós e contras fossem examinados antecipadamente com muito escrúpulo.

Concluídas essas gestões a duquesa declarou que em virtude de seus

feitos memoráveis Galvão merecera seu amor e seria a partir daquele momento o

soberano legítimo de seus domínios. Tal declaração deixou contrafeitos muitos

cavaleiros que na esperança de conquistar sua afeição muitas lanças haviam

quebrado.

Galvão e seus companheiros de armas, Arnive e a duquesa, bem como o

nobre Parsifal, Sangive e Cundrie apresentaram despedidas. Apenas Itonje

permaneceu em companhia de Artur. A partir daquele momento ninguém mais podia

afirmar ter visto uma festa de casamento mais magnífica. Ginover cercou de muita

solicitude a Itonje e seu bem-amado, o bravo rei que por amor a ela brilhara em

muitos combates. Mas muitos, aos quais a paixão por uma nobre dama resultará em

535
decepção, regressaram a seus acampamentos. Poupar-me-ei o esforço de

descrever o jantar. Quem cultiva uma paixão genuína prefere a noite ao dia.

O Rei Gramoflanz, motivado por seu gosto pelo grandioso, determinou a

seus vassalos estacionados em Rosche Sabbins que levantassem imediatamente

seus acampamentos junto ao mar e ainda antes de romper d'alva se dirigissem em

marcha forçada ao local onde ele se encontrava. O marechal devia escolher local

adequado onde o exército acamparia. "Para mim providenciai o que há de melhor e

cada príncipe deve ter seu próprio conjunto de tendas!" Ele pretendia exibir todo o

esplendor de sua riqueza. Por isso os mensageiros trataram de se pôr a caminho

embora já houvesse anoitecido. No acampamento viam-se também muitos

cavaleiros cabisbaixos porque uma mulher frustrara suas mais caras esperanças. A

sina de quem serve sem obter alguma recompensa é naturalmente a frustração, a

não ser que alguma mulher resolva consolá-lo.

8. A PARTIDA DE PARSIFAL

Parsifal também evocava a imagem de sua encantadora esposa, sua

graça e recato. Acaso admitia ele a possibilidade de se sentir atraído por outra

mulher a ponto de lhe oferecer seus serviços e assim tornar-se infiel? Não, porque

não fazia caso de tais amores. Seu coração viril e todo o seu ser eram feitos de

sólida lealdade. Na verdade nenhuma outra mulher que não a Rainha

Condwiramurs, a fina flor da feminilidade, era capaz de atrair sua estima. De si para

536
si inquiriu: "Que proveito tive do amor desde que pela primeira vez experimentei

esse sentimento? Afinal não descendo eu de uma estirpe que sempre prestigiou os

sentimentos afetivos? Como, então, pude viver todo este tempo sem amor?

Enquanto andava em busca do Graal consumia-me em saudades por um terno

abraço de minha mulher, da qual me acho separado há tanto. Para mim não está

bem contemplar a felicidade alheia enquanto eu mesmo fico a ver navios. Imerso em

tal clima de desencanto não há quem possa sentir-se motivado. Que a Fortuna me

aconselhe o que cabe fazer!" Ao ver a armadura diante de si hesitou e prosseguiu

em suas elucubrações: "Já que me falta aquilo de que desfrutam os afortunados

(quero referir-me ao amor que reanima tantos corações deprimidos) e estou posto à

parte, pouco se me dá o que irá me acontecer. Deus não quer que eu seja feliz. Se

eu ou a mulher por quem meu coração anseia pudéssemos destruir nosso amor com

a dúvida e a volubilidade então talvez amaria outra. Mas o amor que lhe tenho

extinguiu em mim o desejo de conseguir consolo em outro amor, o que resulta em

frustração. Estou imerso em tristeza. Que Deus conceda felicidade àqueles que por

ela anseiam! A mim cabe deixar a companhia dos felizes." E assim pensando

apanhou o arnês que tantas vezes pusera sobre si, sem a ajuda de alguém e se

armou, pois a inquietude o impelia a arrostar novas aventuras. Quando ele, de quem

toda a alegria se apartara, se havia armado, tratou de selar também a montaria com

as próprias mãos. Lança e escudo estavam ali mesmo. Pela manhã houve quem se

lamentasse ao vê-lo partir. O dia despontava quando se pôs a caminho.

537
LIVRO XV
1. O COMBATE DE PARSIFAL COM FEIREFIZ

Muita gente se aborreceu com o fato de lhe terem sido sonegados certos

detalhes desta narrativa pelos quais indagou em vão. É minha intenção não vos

esconder por mais tempo o desfecho da história que só eu conheço. Sabereis agora

com todos os detalhes a forma pela qual o amável e simpático Anfortas recuperou a

saúde. A narrativa nos mostra ainda como a Rainha de Pelrapeire conservou sua

condição de mulher honesta até ver recompensada sua lealdade, pois finalmente

havia chegado o tempo em que experimentaria a suprema felicidade. Disso Parsifal

trataria e caso o estro não me desampare sabereis como atingiu tal objetivo.

Inicialmente tratarei de descrever as novas fadigas que teve de suportar.

Comparado a essas provas tudo aquilo em que até aqui se envolvera não passava

de brincadeira de criança. Se pudesse mudar o curso da narrativa resguardá-lo-ia

dos riscos que a mim próprio fazem medo. A saída que me resta é confiar seu

sucesso a seu coração puro e destemido. Ele lhe dá forças para sobreviver. Quis o

fado que enveredasse por ásperos caminhos onde se defrontaria com quem, como

combatente, se lhe mostraria superior. Esse perfeito cavaleiro era pagão e nunca

ouvira falar nas virtudes do batismo.

538
Parsifal se internou numa grande floresta, a trote largo, e numa clareira

avistou rico estrangeiro que vinha em sentido contrário. Parece um sonho que eu,

homem sem posses, vos deva descrever a verdadeira fortuna que esse pagão trazia

na armadura como mero adorno. Muita coisa havia nele digna de nota mas seria

muito pouco para vos dar idéia de todas as coisas preciosas que trazia consigo.

Tudo que Artur possuía na Bretanha e na Inglaterra não atingiria o valor das

genuínas e preciosas pedras que adornavam a cota de armas do guerreiro e que a

tornavam sobremodo preciosa. Com rubis e calcedônias jamais se pagaria o preço

dessa cota de armas. Ela brilhava e reluzia pois fora urdida no fogo pelas

salamandras na montanha Agremuntin. Magníficas pedras preciosas claras e

escuras,cujas propriedades não saberia definir, a adornavam. Quem assim

envergava essa cota de armas buscava o amor e a fama, pois quase todas as

preciosidades que ostentava lhe haviam sido presenteadas por damas. Um

sentimento sublime que só o amor consegue instilar nos que amam enchia-lhe o

coração. Como símbolo de seus feitos notáveis ostentava sobre o elmo, como

cimeira, o Ecidemon211, um animalejo portador de uma energia letal capaz de dar

morte a todos os ofídios venenosos. Seda tão magnífica como a que servia de

teliz212 ao seu corcel não havia em Thopedissimonte, Assigarzionte, Thasme ou

Arabie. Esse fidalgo não batizado requestava uma dama. Daí a razão de se

apresentar de forma tão magnífica. Seu coração altivo o impelia a postular as

mercês de uma dama de nobilíssima estirpe. O jovem guerreiro havia lançado

âncora em porto natural próximo àquela floresta. Vinte e cinco exércitos, todos

falando línguas diferentes, retratavam de forma eloqüente o enorme poder que

detinha, pois reinava sobre muitos países habitados por mouros e sarracenos de

211
Ecidemon. Animal quimérico.
212
Teliz. Manto que na Idade Média cobria a sela dos cavalos de batalha.

539
várias origens. Em seu enorme exército havia armas muito estranhas. Sem

acompanhantes e sem outro objetivo que não fosse a aventura partira internando-se

na floresta. Como ambos os reis se permitiram essa liberdade decidi deixá-los

campear e lutar solidariamente em busca de fama. A rigor, Parsifal não estava só.

Com ele ia sua notável coragem que imprimia ímpeto viril a tudo que fazia, de sorte

que as damas eram obrigadas a enaltecê-lo a não ser que quisessem levianamente

inventar patranhas. Ali iriam enfrentar-se dois homens que tinham a pureza do

cordeiro e a audácia do leão. Ah, acaso o mundo não é suficientemente vasto? Por

que os dois teriam de se encontrar e sem qualquer motivo entrar em choque? Na

verdade deveria preocupar-me com a sorte de Parsifal. Contudo, confio que as

forças do Graal e do amor o protejam, pois a ambos sempre serviu

incansavelmente.

Meu estro poético não basta para descrever o combate em todos os seus

detalhes. Os olhos de ambos se iluminavam ao se ver frente à frente e embora o

ritmo dos corações se acelerasse, ambos experimentavam sentimento próximo ao

pesar. É que cada um desses homens probos e leais trazia no peito o coração do

outro. Embora estranhos um ao outro havia em ambos algo que os aproximava.

Unicamente pelo fato de se acharem numa situação de confronto consigo distinguir

o pagão do cristão. O embate deveria entristecer todas as damas de coração

generoso, pois ambos arriscaram pela amada a própria pele. Que a boa fortuna

conduza esse combate a um desfecho sem mortes.

540
O filhote de leão nasce morto213 e unicamente o rugido do pai o desperta

para a vida. Os dois vieram ao mundo em meio ao tumulto da batalha e os louros da

vitória lhes serviram de padrinhos. Quando intervinham na luta podia-se contar como

certo que muitas lanças seriam quebradas. Ambos trataram de se precaver:

puseram-se a jeito na sela, fizeram meia-volta e ganhando espaço para arremeter

chamaram os corcéis nas esporas. No entrechoque as sólidas lanças dilaceraram

os gorjais de ambos, quebrando-se enfim sem se arquear e lançando aos ares os

fragmentos das hastes. O pagão se tomou de viva indignação pelo fato de seu

adversário se haver mantido incólume na sela. Homem nenhum que o enfrentara

jamais obtivera semelhante êxito. Acaso partiram eles para o combate a espada?

Certamente! Em abrir e fechar de olhos sacaram longas e afiadíssimas espadas e

deram uma demonstração de bravura e habilidade. Ecidemon, o estupendo

animalzinho, foi golpeado seguidamente e o elmo sob ele tinha motivos para

lamentá-lo. As montarias cobertas de suor começaram a dar evidentes sinais de

cansaço. Mas os combatentes tentaram com manobras sempre renovadas acercar-

se um do outro. Finalmente saltaram dos cavalos e foi então que as espadas

começaram a tinir verdadeiramente. Aí foi a vez do pagão de pôr o cristão em

dificuldade. "Thasme214"era seu grito de guerra e toda a vez que gritava

"Thabronit215", avançava um passo. Mas nos avanços e recuos da luta o cristão

também se revelou combatente notável. Nesse ponto o combate atingiu fase tão

crítica que não mais devo me omitir. Devo lamentar sinceramente esse confronto,

pois ali estavam dois homens unidos por laços consangüíneos a se digladiarem

213
Filhote de leão. A lenda do filhote de leão natimorto e que o pai desperta para a vida originou-se do
"Physiologus", obra que teria surgido em Alexandria no século II d.C. Seu autor seria um intelectual grego
anônimo versado em ciências naturais. O "Physiologus" é uma coletânea de alegorias sobre a vida de certos
animais (leão, pelicano, fênix, unicórnio, hiena, pantera, etc.) que, consoante sua natureza, são identificados
com o Cristo ou com o demônio. Dessa lenda existem versões em grego, etíope, armênio e árabe.
214
Thasme. Cidade situada no Reino de Feireflz.
215
Thabronit. País da Rainha Secundille.

541
ferozmente. Ambos eram filhos de um homem que fora um monumento de lealdade.

O pagão estava sempre a serviço do amor e retemperava o espírito para o combate.

Ele vinha construindo sua fama a serviço da Rainha Secundille que lhe doara o

Reino de Tribalibot. Ela representava seu escudo nos momentos difíceis e a

evocação da imagem da amada multiplicava as forças do pagão. Mas o que posso

eu fazer pelo cristão? Se ele não depositar sua fé nas virtudes do amor morrerá

neste combates pelas mãos do pagão. Impede tal desgraça, ó Graal todo-poderoso

e tu, ó encantadora Condwiramurs! O homem que serve a vós ambos deve superar

a prova mais difícil de sua vida. Os golpes do pagão eram desferidos com grande

violência e alguns com ímpeto tão devastador que Parsifal fraquejou, caindo de

joelhos. Pode-se dizer que ambos revelaram notável desempenho, se no caso for

possível falar em dois. No fundo tratava-se de uma só entidade. Meu irmão e eu

somos tão inseparáveis como marido e mulher.

O pagão pôs o cristão em grandes apuros. Seu escudo era feito de pau

de asbesto216 que além de incombustível não apodrecia. Podeis estar certos de que

a mulher que lhe dera esse escudo o amava de fato. Em torno do dorso do escudo

havia guarnições de pedras preciosas de diversas cores: turquesas, crisoprasas,

esmeraldas e rubis. No centro do escudo, sobrepujando as demais, achava-se

engastada uma gema que os pagãos chamam de antrax e que entre nós é

conhecida como carbúnculo. A Rainha Secundille, cuja lembrança condicionava

todas as suas ações, havia-lhe dado como amuleto e símbolo heráldico o estupendo

animalejo Ecidemon, que ele usava atendendo a seu expresso desejo.

216
Pau de asbesto. Descrição fantasiosa da madeira de uma árvore que apresentava as propriedades do mineral
denominado asbesto.

542
Ali combatia a quintessência da lealdade. Lealdade defrontava lealdade.

Ambos arriscavam a vida por amor. O combate ditaria a sentença pela qual cada um

dos contendores se tornava fiador. O cristão confiava em Deus, seguindo os

ensinamentos de Trevrizent, que na despedida o aconselhara insistentemente a

implorar a ajuda daquele que nos momentos de perigo nos presta socorro de boa

vontade.

O pagão era dotado de extraordinário vigor físico. Quando gritava

"Thabronit" - nome do país situado na cordilheira do Cáucaso onde Secundille

reinava- criava nova coragem e arremetia contra aquele que até essa parte não

enfrentara combate tão encarniçado, mas que a muitos derrotara permanecendo

invicto. Ambos se batiam observando as normas da arte marcial. As espadas

sibilavam no ar, arrancando chispas dos elmos. Que Deus proteja os filhos de

Gahmuret! Esse desejo valia para os dois, para o cristão e para o pagão, de vez que

como disse antes ambos compartilhavam da mesma natureza. E ambos certamente

se ajustariam a esse desiderato caso se conhecessem melhor. Eles então não

teriam empenhado nesse combate preço tão alto, pois ali arriscavam numa só

cartada a alegria, a felicidade e a honra. Quem quer que saia vencedor nessa luta

terá perdido - caso a lealdade tenha para ele algum sentido - a alegria de viver, para

sempre, e escolhido como companheiro inseparável o remorso.

Por que titubeias, Parsifal? Se pretendes conservar a vida deveras evocar

a imagem de tua bela e recatada esposa! O pagão pode contar com dois aliados que

constantemente lhe renovam as forças. O primeiro era o amor que o dominava

inteiramente; o segundo era o poder das gemas, cujas nobres e benéficas virtudes

543
lhe instilavam ânimo e lhe multiplicavam as forças. Pesa-me assistir ao progressivo

esgotamento do cristão face aos vigorosos ataques do adversário. Se nessa

emergência não lhe puderam valer nem Condwiramurs nem o Graal, que lhe dê

estímulo a lembrança dos dois vistosos e amáveis meninos Kardeiz e Loherangrin.

Seria uma pena vê-los órfãos em tão tenra idade. A ambos Condwiramurs

concebera quando pela última vez estivera em seus braços. Filhos de amor tão

elevado constituem a suprema felicidade do homem.

O cristão retemperou as forças. Já estava na hora de dirigir pensamentos

à real consorte e àquele amor tão valioso que outrora conquistara com a espada na

mão enfrentando Clamide diante de Pelrapeire.

"Thabronit" e "Thasme" eram agora questionadas por "Pelrapeire", o grito

contestador de Parsifal. No momento certo Condwiramurs transpôs os confins de

quatro reinos e o protegeu com as forças do amor. Agora saltavam aos ares

fragmentos do escudo do pagão que por certo valiam centenas de marcos. Mas o

violento golpe vibrado sobre o elmo do adversário fez com que a sólida espada de

Gaheviez se partisse. O vigoroso estrangeiro cambaleou e caiu de joelhos. Era a

vontade de Deus que a espada de Parsifal, que na sua ingenuidade subtraíra ao

falecido Ither, não lhe servisse por mais tempo. O pagão que até aqui golpe nenhum

derribara ergueu-se de um salto. O combate ainda não estava decidido. Unicamente

o juízo de Deus poderia salvá-los da morte.

544
2. OS IRMÃOS SE RECONHECEM

O bem-intencionado pagão dirigiu-se cortesmente a Parsifal em francês

bastante razoável embora com indisfarçável sotaque árabe: "Bravo cavaleiro,

constato que terás de prosseguir combatendo sem espada. Uma situação tão

desigual resultará para mim em nenhuma glória! Pára, bravo guerreiro, e dize-me

quem és. Embora invicto até aqui acabarias sem dúvida vencendo-me se tua

espada não se tivesse partido. Permite que entre nós haja paz até que tenhamos

recobrado as forças."

Os dois sentaram-se na relva. Ambos eram homens bravos, distintos e

estavam na força da idade, nem velhos demais nem jovens demais para as lides

cavaleirosas. O pagão disse então ao cristão: "Podes crer-me, herói, que nunca

conheci em toda a minha vida alguém que pudesse contar antecipadamente com os

louros da vitória disputados num combate. Dize-me teu nome e o de tua estirpe! Só

o fato de ter conhecido um tal homem terá dado sentido à minha viagem!"

A isso respondeu o filho de Herzeloyde: "Ninguém pode esperar de mim

uma resposta face a uma intimidação. Devo eu curvar-me diante de uma

imposição?"

545
O pagão de Thasme respondeu: "Prefiro então correr o risco de ser mal

interpretado, identificando-me em primeiro lugar. Sou Firefiz de Anjou, um monarca

tão poderoso que muitos reinos me pagam tributo!"

Tão logo ouviu tal declaração, Parsifal interpelou o pagão: "Com que

direito assumis o título de senhor de Anjou, que me pertence por direito? Detenho a

suserania hereditária sobre Anjou e sobre todas as suas províncias, cidades e

castelos. Senhor, vós devíeis a meu pedido adotar outro nome. Cometeríeis um ato

de violência se eu tivesse de perder meu reino e minha magnífica capital Bealzenan.

Se um de nós dois é senhor de Anjou então esse título cabe a mim, por direito de

nascimento. Contudo devo admitir que sempre me foi dito que na Terra dos Pagãos

viveria um destemido guerreiro que com sua força e habilidade nas artes marciais

conquistou amor e fama. Esse homem, cujos feitos são celebrados em toda a parte,

seria meu irmão consangüíneo, Senhor" - prosseguiu Parsifal - "permiti que veja

vossa face para certificar-me se sois vós aquele cuja aparência me foi descrita.

Senhor, concedei-me um crédito de confiança e descobri vossa cabeça! Crede-me

que não vos tocarei até que o elmo novamente proteja vossa cabeça."

O pagão disse-lhe então: "Não receio um ataque de tua parte. Mesmo se

eu estivesse sem armadura estarias à minha mercê, pois ainda me resta a espada,

enquanto a tua está quebrada. Todos os teus recursos de hábil combatente não te

salvariam da morte a menos que resolvesse poupar-te. E antes que te dispusesse a

tentar a sorte numa luta corpo a corpo minha espada transpassaria tua armadura e

teu peito." Foi então que o vigoroso e destro pagão deu um exemplo de máscula

546
generosidade. Com as palavras "esta espada não deve servir a qualquer de nós

dois" o destemido guerreiro arremessou a arma ao matagal e a seguir declarou: "Se

acaso a luta prosseguir teremos oportunidades iguais." O robusto Feirefiz rematou:

"Herói, se tiveres de fato um irmão então dize-me, por tua honra, como te

descreveram sua aparência física!"

O filho de Herzeloyde respondeu sem vacilar: "A aparência de sua pele

seria semelhante a um códice, isto é, manchada de preto e branco. Foi assim que

Ekuba m'o descreveu."

O pagão exclamou: "Então trata-se de mim, efetivamente!"

Os dois arrancaram simultaneamente o elmo e gorro de malha e foi

quando Parsifal fez a mais valiosa e a mais alegradora descoberta de sua vida. De

pronto reconheceu o pagão pela coloração da pele, semelhante à da pega. Feirefiz e

Parsifal encerraram as diferenças com um beijo, pois a essa altura a amizade lhes

convinha muito mais que a hostilidade. Lealdade e afeição puseram fim ao confronto

e o pagão exclamou, visivelmente satisfeito: "Sinto-me sobremodo feliz por ter

finalmente ante meus olhos o filho de Gahmuret. Que sejam louvados todos os meus

deuses, mas especialmente minha deusa Juno e meu poderoso Deus Júpiter, que

me concederam semelhante felicidade. Deuses e deusas, vossa onipotência desejo

sempre amorosamente exaltar! Louvado seja igualmente o brilho do planeta sob cujo

signo empreendi minha viagem, pois ele me conduziu a teu encontro, ó guerreiro

terrível e amável cuja valorosa destra por pouco me deixou em dúvida se fiz bem

em ter saído de casa. Louvados sejam ainda o ar e o orvalho que nesta madrugada

547
me envolveram ao partir. Chave do amor cortês. Quão feliz deve julgar-se a mulher

que teve a ventura de te conhecer!"

A isso respondeu o guerreiro de Kanvoleiz: "Tendes o dom da palavra. Eu

mesmo gostaria de todo o coração de possuir todos esses recursos de expressão.

Infelizmente a natureza não me aquinhoou com o dom de multiplicar pela magia da

palavra vossa fama de grande combatente. Deus sabe que seria o meu desejo. Meu

coração e meus olhos me impelem a entoar um cântico de louvor à vossa fama, pois

só eu sei que, exceto vós, jamais cavaleiro algum me deixou em semelhante

situação de dificuldades!"

O poderoso Feirefiz disse-lhe então: "Nobre guerreiro, Júpiter se

esmerou, sem dúvida, quando te criou. Mas não me trates mais com esse

cerimonioso “vós” . Afinal, somos filhos do mesmo pai." Com fraternal afeição insistiu

em que deixasse de lado o "vós" e o tratasse como íntimo "tu". Constrangido com a

proposta Parsifal objetou: "Irmão, com certeza sois tão poderoso como o Baruc e

além disso o mais velho de nós dois. Tendo na devida conta minha juventude e

pobreza não me atreveria a transgredir as normas da cortesia tratando-vos com um

indevido “tu” “.

O pagão de Tribalibot enalteceu com palavras eloqüentes seu deus

Júpiter e rendeu graças à deusa Juno pelo fato de o mau tempo o ter obrigado a

tocar em terra e desse modo criado a possibilidade de conhecê-lo. Os irmãos

sentaram-se novamente na relva e continuaram a trocar amabilidades. O pagão

explicou: "Pretendo abrir mão, em teu favor, de dois poderosos reinos. Tu reinarás

548
sobre eles. Trata-se dos reinos de Zazamanc e Azagouc que nosso pai conquistou

em conseqüência da morte do Rei Isenhart. Ele era um homem corajoso e

irrepreensível. Na verdade não posso deixar de lembrar o fato de ele me haver

relegado à orfandade. Esse ressentimento contra ele ainda não pude superar.

Depois de haver partido, sua esposa que me deu à luz acabou finando-se em

saudades pelo amado. A despeito disso gostaria de conhecê-lo. É que tenho ouvido

falar que não haveria melhor cavaleiro que ele. A dispendiosa expedição em que

estou empenhado tem precisamente esse objetivo."

Tomando a palavra, Parsifal objetou: "Como vós, também eu nunca o vi

em pessoa. Mas muita coisa que me tem sido dita a respeito dele o revela como

homem de bem. Nas numerosas cidades pelas quais passei era descrito como

combatente de escol que conquistou grande renome por suas muitas vitórias. Seria

impossível imaginá-lo cometendo ato indigno. Tirante as criaturas volúveis sempre

teve o apoio do mundo feminino, de cuja causa era ardente defensor. O que o

distinguia era aquilo que mesmo hoje constitui o apanágio do cristão: a lealdade

inabalável. Seu coração sem falsidade sempre o guiava pelo bom caminho. É isso

que me tem sido dito por quem teve a oportunidade de conhecer o homem que

gostaríeis de encontrar. Acredito mesmo que se ainda vivesse não lhe recusaríeis

vossa consideração pois sempre esteve em busca de fama. Mas quis a fatalidade

que no desempenho de seus misteres, esse que as damas consideravam o ideal

masculino se chocasse com o Rei Ipomidão, diante de Bagdá. Foi ali que a serviço

do amor chegou ao termo sua gloriosa existência. Em combate singular nós dois

perdemos o autor de nossos dias."

549
"Que perda irreparável!", exclamou o gentio. "Meu pai está morto? Eis que

fui surpreendido por notícia que me entristece e alegra a um só tempo. Perdi a

alegria para em seguida reencontrá-la. Já não tenho mais qualquer dúvida que nós -

tu, eu e nosso pai - embora possamos parecer três criaturas distintas, constituímos

na realidade uma só entidade e qualquer pessoa de bom senso se refletir com

imparcialidade admitirá que os laços consangüíneos entre pais e filhos são de

longe mais estreitos que quaisquer outros vínculos de parentesco. Aqui tu

combateste contra ti mesmo e eu vim disposto a lutar contra mim próprio. Pretendi

matar a mim mesmo, mas tu defendeste corajosamente minha vida. Júpiter, tu

operaste um milagre! Tua força veio em nosso socorro e salvou nossas vidas!"

Ele chorava e ria ao mesmo tempo. Dos olhos do gentio escorriam

lágrimas como se fossem uma homenagem ao batismo. Como é sabido o batismo

pretende antes de mais nada ensinar-nos a lealdade e essa nova aliança é

denominada cristã porque Cristo é a própria lealdade.

3. FEIREFIZ E PARSIFAL NO ACAMPAMENTO DE GALVÃO

O gentio prosseguiu: "Não nos detenhamos aqui por mais tempo. Vem

comigo até local situado não muito longe, onde farei desembarcar e acampar o

exército mais poderoso que Juno jamais consentiu que se fizesse avela. Terás a

550
confirmação do que estou te dizendo quando eu apresentar os inumeráveis fidalgos

que estão a meu serviço. Vem comigo até o ancoradouro."

Parsifal perguntou-lhe então: "Tendes sobre vossas tropas suficiente

autoridade para que permaneçam nos navios por um dia ou mais, à espera de

vossas ordens?"

"Sim, sem tugir nem mugir", explicou o gentio. "Ainda que delas

permanecesse afastado durante meio ano esse exército - do primeiro ao último

homem - permaneceria à minha espera sem arredar pé. As embarcações estão

providas de víveres em abundância. Nem cavalos nem homens têm necessidade de

desembarcar, salvo para fazer aguada ou espairecer."

Parsifal disse então ao irmão: "Se for assim, então tereis o prazer de

conhecer damas encantadoras e muitos distintos cavaleiros de vossa estirpe. Artur,

o bretão, acha-se acampado nas proximidades em companhia de numerosos

fidalgos que ali deixei hoje cedo. Teremos oportunidade de encontrar também

muitas damas amáveis e atraentes."

Quando soube da presença de damas (que o gentio prezava tanto quanto

a própria vida), decidiu logo: "Irei contigo! Antes porém me responde esta pergunta:

Encontraremos de fato nossos parentes na comitiva de Artur? Dele ouvi falar que

estaria levando uma vida gloriosa e cheia de prestígio."

551
Parsifal confirmou: "Encontraremos ali damas encantadoras. Nossa

viagem não será inútil. Teremos oportunidade de conhecer parentes próximos, todos

membros de nossa estirpe e entre eles várias testas coroadas."

Os dois não se deixaram ficar ali por mais tempo. Parsifal tratou de

encontrar a espada do irmão e a repôs na respectiva bainha. Esquecidas as

diferenças os dois partiram em clima de sã camaradagem.

Bem antes de se avistarem com Artur a notícia do choque entre os irmãos

se espalhara no acampamento. Naquele dia todo o exército lamentou

profundamente a decisão do bravo Parsifal de se afastar dele. Depois de ouvir a

opinião de seus conselheiros Artur decidiu permanecer por mais oito dias,

aguardando o regresso de Parsifal. Entrementes também chegara o exército de

Gramoflanz, que tratou de armar magníficas tendas em locais previamente

demarcados a fim de alojar os altivos e bravos fidalgos de seu séquito. As quatro

noivas não poderiam desejar ambiente mais acolhedor. Entrementes chegara

mensageiro de Schastel Marveile com a notícia de que se havia visto na tela da

coluna mágica um combate que reduzia qualquer feito realizado com espada a

acontecimento de pouca expressão. Ele transmitiu notícia a Galvão no momento em

que este se achava em companhia de Artur. Muitos cavaleiros começaram a fazer

suposições sobre a identidade dos combatentes. Sem pensar muito o Rei Artur

explicou: "Um dos combatentes eu conheço bem. Trata-se do meu sobrinho de

Kanvoleis, que nos deixou hoje cedo." Naquele momento os dois vinham chegando.

552
Seus escudos e elmos exibiam sinais bem visíveis do renhido combate

que haviam travado. As mãos de ambos estavam naturalmente bem adestradas nas

artes que um verdadeiro combate requer. Ao passar pela tenda de Artur os

magníficos ornatos que o gentio ostentava na armadura chamavam muita atenção.

Embora a vasta planície estivesse apinhada de tendas os dois se dirigiram

diretamente à tenda que se altanava no centro do acampamento de Galvão. Ali

foram eles logo introduzidos e cordialmente recebidos? Acredito que tal tenha

acontecido. Galvão, que da tenda de Artur havia acompanhado com os olhos a

direção que os dois vinham seguindo apressou-se em ir ao encontro deles e os

recebeu com manifestações de alegria. Como ambos estavam armados o solícito

Gaivão determinou que de pronto fossem aliviados de suas armaduras. O combate

deixara o animalejo Ecidemon em estado lastimável. O manto do gentio também

exibia os sinais da luta. Guarnecido de pedras preciosas procedia ele de

Saranthasme.

Sob o manto usava rica e alvíssima cota de armas inteiramente

guarnecida de pedras preciosas. As salamandras a haviam urdido na chama viva.

Esse magnífico equipamento lhe fora dado pela Rainha Secundille que na sua

onímoda paixão por ele lhe oferecera além disso corpo, alma e reino. Depois de

haver conquistado seu coração com o brilho de seus altos feitos cumulá-lo de

riquezas passou a ser para a rainha uma necessidade psicológica. Ele por sua vez,

quer estivesse no maior abatimento ou na melhor disposição, tratara de lhe fazer

todas as vontades.

553
Galvão determinou que tudo fosse guardado com o maior cuidado a fim

de que os preciosos ornatos no manto, no elmo e no escudo não sofressem

qualquer dano. Para uma nobre mulher a cota de armas já teria sido uma riqueza

demasiada. Agora imaginai o valor das pedras preciosas que recamavam as quatro

peças (manto, cota de armas, elmo e escudo). A boa vontade é capaz de criar

maravilhas quando combinada à riqueza e bom gosto. Uma das preocupações do

rico e poderoso Feirefiz era estar nas boas graças do mundo feminino, no que

sempre fora bem-sucedido.

Depois de haver sido aliviado da armadura a singular coloração da pele

de Feirefiz foi motivo de espanto mesmo para os mais viajados e experientes.

Galvão apressou-se a pedir a Parsifal: "Primo, apresenta-me teu companheiro. Seu

aspecto é tão fora do comum que não se assemelha a algo que eu tenha visto."

Parsifal disse então ao anfitrião: "Se eu sou teu parente ele também o é.

Para tanto invoco o testemunho de Gahmuret. Trata-se do Rei de Zazamanc.

Através de gloriosos feitos meu pai conquistou o amor de Belakane, que é mãe

deste cavaleiro."

Alegremente surpreendido com a notícia Galvão beijou o gentio repetidas

vezes. Toda a pele do poderoso Feirefiz era uma mistura de preto e branco, com

exceção da boca que era de cor rosa pálida. Para ele e Feirefiz, Galvão mandou vir

de seu guarda-roupa vestes de veludo sobremodo preciosas. Naquele momento

apareceu na tenda um simpático grupo de damas. A duquesa permitiu que Cundrie e

Sangive dessem ao forasteiro o beijo de boas-vindas antes que Arnive e ela própria

554
o cumprimentassem com um beijo. Feirefiz parecia estar deveras satisfeito ao ver as

damas chegar e estou certo que se comprazia com sua presença.

Dirigindo-se a Parsifal, Galvão observou: "Primo, o aspecto de teu elmo e

escudo me fazem supor que tiveste alguns contratempos. Parece evidente que tu e

teu irmão tiveram de defender a pele. Quem vos infligiu tamanhos danos?"

"Nunca se feriu combate mais exasperado", explicou Parsifal. "Foi meu

irmão que me pôs em situação de grave dificuldade e me obrigou a defender-me.

Reagir com decisão é possivelmente o melhor remédio para escapar da morte. Um

violento golpe vibrado contra esse estranho parente fez minha sólida espada se

partir. Foi então que ele revelou toda a grandeza de seu coração destemido, pois

jogou fora sua arma a fim de os lados em confronto ficarem em igualdade de

condições. Só mais tarde descobrimos que éramos parentes. Ele me concedeu a

seguir sua amizade. Eu por minha vez tudo farei para merecê-la."

"Falaram-me de um combate sobremodo áspero", esclareceu Galvão. "É

que na tela da coluna mágica existente em Schastel Marveile pode-se observar tudo

que acontece num raio de seis milhas. Ao se inteirar do fato meu tio Artur chegou à

conclusão de que um dos dois desafetos só poderia ser seu sobrinho de Kingrivals.

Agora acabas de confirmar sua suposição de que tu terias sido um dos envolvidos

no confronto. De resto posso afiançar-te que teríamos esperado tua volta durante

oito dias. Esse tempo teria sido consumido em folguedos e festas de grande estilo.

Lamento sinceramente o fato de terem chegado a uma situação de confronto.

Descansai, pois na minha tenda. Depois dessa avaliação mútua certamente vos

555
conheceis melhor. Façamos votos que desse choque equivocado resulte uma

grande amizade."

Como o primo de Thasme, Feirefiz de Anjou e o irmão deste ainda não

tivessem ingerido qualquer alimento naquele dia Galvão mandou servir o jantar mais

cedo. Extensos almofadões foram dispostos em círculo e cobertos com encorpadas

colchas de fibra vegetal recamadas de preciosa seda. Promoveu-se igualmente uma

exposição do tesouro de Clinschor para ser visto e admirado. Eu soube também que

se dispôs ao longo dos quatro lados da tenda almofadas revestidas de seda para

servirem de encosto. Na parte inferior, ocultos sob as colchas havia macios

travesseiros e neles se havia firmado as almofadas que serviam de encosto. O

interior da tenda era tão espaçoso que nela caberiam seis tendas de tamanho

normal e isso sem embaralhar os respectivos estais. Mas não estou sendo coerente

ao me deter nesses detalhes, pois o que importa mesmo é prosseguir na narrativa.

Entrementes meu senhor Galvão enviara mensageiro a Artur dando-lhe

conta da presença dos dois. Um deles seria aquele poderoso gentio o qual a gentia

Ekuba - ao tempo em que haviam estado acampados em Plimozoel - não se cansara

de elogiar.

O portador da mensagem que resultou em alegria generalizada foi Jofreit,

filho de Ydoel. Jofreit sugeriu a Artur que mandasse servir o jantar mais cedo e a

seguir se dirigisse com seleto cortejo de cavaleiros e damas e a pompa necessária à

sua condição ao acampamento de Galvão para ali dar cordiais boas-vindas ao filho

do ilustre Gahmuret.

556
"Todos os fidalgos aqui presentes acompanhar-me-ão", decidiu o bretão.

Jofreit esclareceu: "Trata-se de fidalgo tão encantador que todos se sentirão

alegrados ao entrar em contato com ele. Além disso vereis nele muita coisa fora do

comum, pois ele gosta de se apresentar em grande estilo. As peças que constituem

sua armadura são de valor tão incalculável que ninguém teria condições de dar por

elas o preço que valem. Se alguém quisesse oferecer por elas o país de Lover, a

Bretanha, a Inglaterra e todos os territórios situados entre Paris e Wizsant217 não

teria conseguido reunir o preço que elas efetivamente valem."

4. A FESTA EM JOFLANZE

Depois de haver dado a Artur as necessárias instruções sobre a maneira

mais conveniente de apresentar as boas-vindas ao sobrinho gentio, Jofreit

regressou. Enquanto isso no acampamento de Galvão se estabelecera a ordem de

precedência à mesa, atendendo às normas do cerimonial da corte. Os integrantes

da duquesa e os cavaleiros que lhe haviam prestado serviços ocuparam os lugares

à direita de Galvão. No outro lado banqueteavam-se alegremente os cavaleiros do

exército de Clinschor. As damas libertadas, entre as quais havia muitas beldades,

ocupavam o lado oposto da mesa defronte a Galvão. Junto delas tomaram lugar

217
Wizsant. Pequeno ancoradouro situado entre Calais e Boulogne, muito utilizado na época dos Anjous para
travessias do canal.

557
Feirefiz e Parsifal. Beldades para serem vistas e admiradas não faltavam. O

Turcóide Florand, a nobre Sangive, o Duque de Gowerzin e sua mulher Cundrie

sentavam-se frente a frente. Dada à sua velha amizade Galvão e Jofreit comiam

lado a lado. Enquanto isso a Duquesa Orgeluse com seus olhos brilhantes fazia

companhia à Rainha Arnive. Entre as duas se estabelecera uma sólida amizade e

por pura gentileza uma tratava de servir a outra. Arnive, a avó de Galvão, achara

pois um lugar cativo entre o neto e Orgeluse.

Em tal ambiente não havia clima para atitudes inconvenientes. Cavaleiros

e damas eram servidos como convinha. O bravo Feirefiz disse então ao irmão

Parsifal: "Júpiter quis me alegrar engajando-me nesta viagem que me pôs em

contacto com todos os meus nobres parentes. Tenho sobejos motivos para enaltecer

a pessoa do meu pai, que infelizmente perdi. Ele de fato descende de uma estirpe

gloriosa."

O homem de Valois observou então: "Na companhia de Artur, nosso líder

supremo, vereis ainda muitos cavaleiros dignos de vossa consideração. Não muito

depois de terminada esta refeição assistireis a chegada de fidalgos de genuína e

inegável distinção. Presentes aqui estão apenas três membros da Távola Redonda:

o anfitrião, Jofreit e eu, pois como eles soube eu conquistar tanto renome que

acabei sendo convocado para a Távola Redonda, um convite que naturalmente

aceitei."

Terminada a refeição tirou-se a mesa com damas e cavaleiros ainda

presentes. O anfitrião, não desejando se demorar ali por mais tempo, levantou-se.

558
Dirigindo-se à avó e à duquesa pediu-lhes que juntamente com Sangive e a atraente

Cundrie tratassem de se aproximar do gentio de pele colorida e lhe dessem alguma

atenção. Quando Feirefiz, o angevino, notou a aproximação das damas, levantou-se

e seu irmão Parsifal fez o mesmo. A encantadora duquesa tomou Feirefiz pela mão

e pediu às damas e aos cavaleiros que à sua chegada se puseram de pé, se

sentassem novamente. Era naquele justo momento que ao som de compassos

musicais Artur e sua comitiva vinham se aproximando. Ouvia-se o soar de

trombetas, o rufar de tambores e as suaves notas de flautas e avenas. A retumbante

chegada do filho de Arnive em meio a manifestações de alegria impressionou

vivamente o gentio. Artur e sua esposa acabavam de chegar ao acampamento de

Galvão acompanhados de belas damas e vistosos cavaleiros. O gentio notou que

também entre esses recém-chegados havia muitas pessoas importantes e jovens na

flor da idade. Entre eles estava o Rei Gramoflanz, que continuava hóspede de Artur.

Ao lado dele cavalgava sua amada Itonje, encantadora e recatada como sempre.

Os cavaleiros da Távola Redonda e as damas que tinham vindo com eles

trataram de desmontar. Ginover fez com que Itonje fosse a primeira a beijar o

sobrinho pagão. A seguir ela própria aproximou-se de Feirefiz e lhe concedeu o beijo

de boas-vindas. Artur e Gramoflanz cumprimentaram o gentio com autêntica

cordialidade. Ambos o distinguiram sobremodo ao se colocar à sua inteira

disposição. Os demais parentes também lhe asseguraram sua estima. Feirefiz, o

angevino, não demorou a perceber que se encontrava em ambiente de bons amigos.

Homens e mulheres trataram, pois de sentar-se e se algum cavaleiro

tivesse propensão a dizer galanteies, teria oportunidade de ouvir muitas amenidades

559
vindas de bocas brejeiras. Caso dominasse a arte de fazer a corte nenhuma das

beldades ali presentes se teria melindrado com isso. Uma verdadeira dama jamais

revidaria com palavras ríspidas os rogos de um fidalgo. No fim das contas caberia a

ela esquivar-se ou consentir. O amor autêntico é e permanece como fonte da

verdadeira felicidade. Servir sempre resulta em alguma recompensa. Tanto quanto

sei é assim que pensavam os homens de verdadeira distinção. Palavras animadoras

são aquelas que concedem ao apaixonado atenção e esperança.

Artur sentou ao lado de Feirefiz e entre os dois se travou então amável

diálogo. Artur lhe disse: "Agradeço a Deus por nos haver distinguido com a honra de

tua presença. Nunca apareceu em país cristão gentio a quem quisesse mais

prazerosamente obsequiar e lhe atender todos os desejos!"

Retribuindo a gentileza Feirefiz declarou: "Todos os meus desgostos se

desvaneceram desde que os bons ventos de Juno me conduziram a este reino

ocidental. Tua maneira de proceder denota um homem de fama dilatada. Se tu fores

Artur posso afiançar-te que a fama de teu nome alcançou os países mais distantes."

Artur respondeu: "Quem quer que te tenha dito coisas lisonjeiras a meu

respeito honrou, antes de mais nada, a si próprio. Suas palavras revelam muito mais

um coração generoso do que eventuais méritos que eu possa ter. Meu nome é de

fato Artur, e gostaria de conhecer o conjunto de circunstâncias que te conduziram a

estas paragens. Se alguma amiga te incumbiu dessa tarefa deve ser uma criatura de

muitos encantos para que, por amor a ela buscasses aventuras em terras tão

distantes. Se ela te conceder por isso justa recompensa, terá valorizado tua

560
dedicação. Mas se ela recusar qualquer tipo de prêmio então a paixão do cavaleiro

que lhe serve pode transformar-se em amargo ressentimento."

"Não é de se esperar que ocorra tal possibilidade", respondeu o gentio.

"Mas permite que te conte como cheguei a estas paragens. Estou à testa de tão

poderoso exército que até mesmo os defensores e atacantes de Tróia se veriam

compelidos a oferecer-me livre passagem. Se os combatentes daqueles dois

exércitos ainda vivessem e resolvessem enfrentar-me não teriam qualquer chance

de vitória pois sucumbiriam diante de mim e dos meus. Em muitos renhidos

combates consegui através de feitos memoráveis conquistar a benevolência da

Rainha Secundille. O que ela deseja, eu desejo. Ela é a boa estrela de minha vida.

Ela me ensinou a cultivar a generosidade e a privar da companhia de nobres

cavaleiros. Para alegrá-la segui todos os seus ensinamentos. Assim ,admiti muitos

bravos cavaleiros em meu séquito e ela retribuiu minha docilidade concedendo-me

sua afeição. A seu pedido ostento no campo do meu escudo um Ecidemon. Sempre

que em combate me encontrava em situação difícil a lembrança de seu amor vinha

em meu socorro. Para dizer a verdade ela me proporciona mais satisfação e ajuda

do que meu deus Júpiter."

Artur disse-lhe então: "Tuas longas andanças a serviço do amor cortês

correspondem ao modo de ser e agir do teu pai Gahmuret, meu sobrinho. Mas

permite descrever-te agora uma façanha que por sua magnitude não pode ser

comparada a qualquer outra que em qualquer tempo tenha sido realizada por amor a

uma mulher. Refiro-me à duquesa que aí está, sentada bem perto de nós. Por causa

561
dela florestas de lanças foram quebradas. A paixão que inspirava abateu os brios de

muitos bravos cavaleiros, precipitando-os na mais profunda depressão moral."

Prosseguindo falou-lhe da guerra da duquesa contra Gramoflanz, do

exército de Clinschor, cujos integrantes estavam ali sentados e dos dois combates

que o irmão dele, Parsifal, sustentara na planície de Joflanze. "Ó que lhe aconteceu

além disso, os riscos de vida a que se expôs, eu deixo que ele mesmo te conte.

Ademais acha-se empenhado em elevada missão. Ele pretende conquistar o Graal.

Mas agora gostaria de pedir a vós dois que me descrevêsseis os povos e países que

conhecestes ao longo de vossas andanças."

O gentio respondeu solícito: "Citar-vos-ei os nomes daqueles que se

tornaram líderes dos meus esquadrões de cavaleiros. São eles o Rei Papiris de

Tragodjente, o Conde Behantis de Kalomidente, o Duque Farjelastis de Affrique, o

Rei Liddamus de Agrippe, o Rei Tridanz de Tinodonte, o Rei Amaspartins de

Schipelpjonte, o Duque Lippidins de Agremuntin, o Rei Milon de Nomadjetesin, o

Conde Gabarins de Assigarzionte, o Rei Transalpins de Rivigitas, o Conde Filones

de Hiberborticon, o Rei Killicrates de Centriun, o Conde Lysander de Ipopotiticon, o

Duque Tiride de Elixadjon, o Rei Thoaris de Orastegentesin, o Duque Alamis de

Satarchjonte, o Rei Amincas de Sotofeititon, o Duque de Duscontemedon, o Rei

Zaroaster de Arabie, o Conde Possizonjus de Thiler, o Duque Sennes de Narjoclin, o

Conde Edisson de Lauzesardin, o Conde Fristines de Janfuse, o Duque Meiones de

Atropfangete, o Duque Archeinor de Nourgente, o Conde Astor de Panfatis, os Reis

de Azagouc e Zazamanc, o Rei Jetakranc de Gampfassasche, o Conde Jurans de

Blemunzin e o Duque Affjnamus de Amantasin."

562
"Contudo considero humilhante o fato de que nenhum cavaleiro do meu

reino em condições de se manter na sela pudesse comparar-se a Gahmuret de

Anjou. Assim, fiel aos ditames de minha vontade e à minha maneira de ser resolvi

sair à sua procura. Deixei meus dois reinos e com um poderoso exército me fiz à

vela com o objetivo de realizar feitos memoráveis. Onde quer que chegasse tratava

de submeter os reinos que encontrava ao longo do meu caminho, por mais bem

armados e poderosos que fossem. As poderosas Rainhas Olímpia e Clauditte

concederam-me sua estima e Secundille foi a terceira a me oferecer seu amor.

Realizei, pois grandes feitos a serviço do amor cortês. Somente hoje soube que meu

pai Gahmuret havia morrido. Agora gostaria que meu irmão nos descrevesse os

ingentes e gravíssimos perigos pelos quais passou."

O nobre Parsifal então falou: "Desde que deixei a sede do Graal realizei

aqui e acolá uma série de feitos notáveis e obscureci a fama de muitos guerreiros

invictos cujos nomes conhecereis agora: o Rei Schirniel de Lirivoyn e o irmão deste,

Mirabel de Avendroyn, o Rei Serabil de Rosokarz, o Rei Plibesun de Lorneparz, o

Rei Senilgorz de Sirnegunz, Strangedorz de Villegarunz, o Conde Rogedal de

Mirnetalle, Laudunal de Pleyedunze, o Rei Onipriz de Itolac, o Rei Zirolan de

Semblidac, o Duque Jerneganz de Jeroplis, o Conde Plineschanz de Zambron, o

Conde Longefiez de Tutelunz, o Duque Marangliez de Privegarz, o Duque

Strennolas de Pictacon, o Conde Parfoyas de Lambregun, o Rei Vergulacht de

Ascalun, o Conde Bogudacht de Pranzile, Postefar de Laudundrehte, o Duque

Leidebron de Redunzehte, Colleval de Leterbe, o provençal Jovedast de Ari e o

Conde Karfodyas de Tripparun. Tudo isso realizei combatendo, enquanto buscava o

Graal. Se tivesse de enumerar um por um os combates em que me envolvi não

563
saberia vos dizer os nomes de todos os meus adversários. Por isso vejo-me

obrigado a omitir o nome de muitos. Os nomes daqueles que me afloraram à

memória eu os citei."

O gentio ficou satisfeitíssimo ao saber que o irmão ilustrara tanto seu

nome através de memoráveis feitos. Agradeceu-lhe muitíssimo, pois ele próprio se

sentia honrado com isso. Entrementes Galvão mandou mostrar aos presentes, como

se fosse por acaso, a rica armadura do gentio, reputada como sendo sobremodo

preciosa. Cavaleiros e damas contemplavam maravilhados a cota de armas, o

escudo e o manto. O elmo havia sido feito sob medida. Mas ninguém me faça

perguntas sobre as propriedades dessas pedras pequenas e grandes. Eraclius ou

Ercules218, o grego Alexandre219 ou ainda o sábio Pitágoras220, que foi astrônomo,

teriam condições de se pronunciar sobre esse assunto com mais autoridade. Este

último, que sem dúvida foi o mais sábio dos homens desde a criação de Adão,

certamente saberia explicar-vos todas as virtudes secretas dessas pedras.

Entre as damas presentes correu um cochicho versando sobre a

possibilidade de Feirefiz comprometer todo o seu prestígio caso traísse uma mulher

que o ataviara dessa maneira. A despeito disso algumas dentre elas simpatizavam

tanto com ele que de bom grado teriam aceito seus serviços. Possivelmente sua

estranha aparência as havia impressionado. Gramoflanz, Artur, Parsifal e Galvão, o

dono da casa, se afastaram dali um pouco deixando o poderoso gentio aos cuidados

218
"Eraclius". Nome do herói (entendido em cavalos, mulheres e pedras preciosas) da epopéia do mesmo
nome, de Gauthier d'Arras que, para compô-la, baseou-se por sua vez na epopéia "Eraclius", do poeta
alemão Otte (circa 1210 d.C.). Ercules (ou Hércules) é simples variação do nome Eraclius (ou Heraclius).
219
Alexandre Magno, Rei da Macedônia, teria (segundo a lenda) recebido no Paraíso uma pedra de virtudes
miraculosas.
220
Pitágoras (circa 580-Í96 a.C.), filósofo e matemático grego.

564
das damas. Artur propôs que a chegada de seu sobrinho Feirefiz fosse

condignamente comemorada no dia seguinte com uma grande festa a se realizar na

campina. "Estudai a melhor maneira para poder sentar-se conosco à Távola

Redonda." Eles prometeram tratar do assunto caso o convite conviesse ao

interessado. Com efeito o poderoso Feirefiz se declarou disposto a aderir à

comunidade. Depois do último trago todos se recolheram.

Muitos acontecimentos felizes marcaram a manhã do dia seguinte que foi

- se assim posso chamá-la - o prenuncio de um dia maravilhoso.

Artur, o filho de Utepandragun, determinou que fosse reconstituída uma

suntuosa Távola Redonda com o precioso tecido de Drianthasme. Já ouvistes como

a Távola Redonda havia sido armada na campina de Plimizoel. A nova toalha de

mesa obedeceu ao mesmo desenho - circular e bela de se ver. Em torno dela foram

dispostos assentos sobre a relva ainda úmida de orvalho de sorte que entre os

assentos e a Távola Redonda houvesse o espaço correspondente a um lance de

arremetida221. A própria Távola situada no centro não foi usada pois servia apenas

de símbolo. Ao indigno era vedado sentar-se junto a essas pessoas de escol pois

seria considerado um ato sacrílego se participasse do banquete.

O perímetro da Távola já havia sido demarcado durante a noite clara e

houve muito empenho para imprimir a tudo um cunho magnífico. Quando a manhã já

ia alta o círculo estava pronto e oferecia visão tão bela que um rei pobre ao deparar

221
Cf. nota n.° 23

565
com ela poderia sentir-se humilhado. Gramoflanz e Galvão ratearam entre si as

despesas. Artur, embora hóspede, fez questão de contribuir.

Como após toda a noite o sol volta a brilhar também dessa vez seguiu-

se ao período de escuridão um dia esplendoroso. Os cavaleiros se penteavam e

enfeitavam as frontes com grinaldas. Se Kyot disse a verdade, então havia ali muitas

damas cujas bocas rubras dispensavam qualquer tipo de maquilagem. Cavaleiros e

damas usavam os traje típicos de seus países. Dependendo da moda do, país de

origem os toucados das damas eram altos ou baixos. É que para ali haviam

confluído pessoas de países muito diversos que se distinguiam tanto pela

indumentária quanto pelos usos e costumes. Toda a dama que tivesse um amigo

podia participar da Távola Redonda. Ali também eram admitidas aquelas que haviam

aceito os serviços de algum cavaleiro em troca de recompensa futura. Os demais

não tiveram outra alternativa senão permanecer em suas tendas.

Artur havia acabado de ouvir a missa quando Gramoflanz, o Duque de

Goverzin e o companheiro deste vieram a seu encontro solicitando-lhe admissão na

Távola Redonda, com o que Artur concordou de pronto. Se algum cavaleiro ou dama

vos perguntasse quem era o mais rico e poderoso dentre os fidalgos que em algum

tempo tenham pertencido a Távola Redonda a resposta poderia ser uma só: Feirefiz

de Anjou. Mas conviria não insistir mais nesse assunto.

Todos afluíram festivamente ao local onde havia sido armada a Távola

Redonda. Isso resultou em certo tumulto. Muitas damas foram empurradas com

tamanha violência que teriam caído das montarias caso a cilha que prendia a sela

566
ao ventre do animal não tivesse sido suficientemente apertada. De todos os lados

surgiam magníficos estandartes. Os jogos marciais vinham sendo realizados a

respeitosa distância da Távola Redonda pois segundo as normas da corte ninguém

podia dela se aproximar montado. Afinal o espaço em derredor era suficientemente

amplo, de sorte que os participantes ficavam à vontade para adestrar suas

montarias ou mostrar numa justa suas habilidades às damas que a tudo assistiam.

Entrementes os fidalgos vinham ocupando os assentos no local em que

seria realizado o banquete. Cabia aos camareiros, trinchantes e copeiros zelar para

que tudo fosse feito consoante o cerimonial da corte. Tanto quanto sei todos foram

regiamente servidos.

Sentadas em círculo, cada qual ao lado de seu respectivo admirador,

havia ali damas de grande notoriedade. Muitas delas haviam levado seus

apaixonados a realizar grandes feitos. Feirefiz e Parsifal saciavam os olhos

contemplando demoradamente as damas ali presentes como se quisessem

manifestar preferências entre essa ou aquela. Nunca campo ou campina havia sido

enfeitado por faces mais luminosas, por lábios mais rubros. Da mesma forma nunca

se havia visto tantas beldades reunidas num só lugar. Para o gentio a visão de tal

quadro era como uma festa para seus olhos.

567
5. PARSIFAL, O ELEITO DO GRAAL

Salve o dia de sua vinda! Louvada seja a ditosa mensagem proferida por

seus lábios! Eis que se aproximava a jovem usando vestuário confeccionado de

acordo com o mais recente modelo francês. No seu precioso manto de veludo negro,

mais negro que a pelagem do cavalo preto, aparecia bordado a fio de reluzente ouro

árabe o signo heráldico do Graal - um grupo de rolinhas. Identificado o brasão este

passou a ser alvo da curiosidade geral.

Mas deixai que ela se aproxime um pouco mais. Usava toucado branco e

altanado e a par disso um véu compacto que lhe ocultava a face ao olhar de todos.

Seu palafrém vinha atravessando a campina a passo largo e compassado. O freio, a

sela e a própria montaria eram sem dúvida de aspecto magnífico. Ninguém impediu

que transpusesse o círculo externo do acampamento que a seguir a sábia mulher

tratou de percorrer em toda a sua extensão. Indicou-se-lhe o local onde Artur se

encontrava e ela, detendo-se, saudou o rei amistosamente. A seguir dirigiu-se aos

presentes em francês, pedindo-lhes relevar o castigo que ela bem merecia e

ouvissem com atenção a mensagem que lhe cabia transmitir.

Ao rei e à rainha pediu ela o necessário apoio para o que tinha a dizer.

Desviando-se deles abruptamente dirigiu-se a Parsifal que estava sentado perto de

Artur. Saltou do cavalo e à moda da corte ajoelhou-se diante de Parsifal. Caindo em

568
prantos pediu que não se negasse a saudá-la, que enterrasse seus rancores e a

perdoasse ainda que fosse sem o beijo formal de reconciliação. Artur e Feirefiz

apoiaram imediatamente sua pretensão e embora Parsifal a detestasse deveras, em

consideração aos amigos concordou em perdoá-la sinceramente e sem reservas. A

seguir a dama, seguramente nobre mas não necessariamente bela, se pôs

novamente de pé, inclinou-se perante o filho de Gahmuret e agradeceu a todos que

embora sabendo - a culpada com ela se solidarizaram visando reconciliá-la com

Parsifal. Ato contínuo tirou o véu, desatou as fitas que prendiam o toucado e o atirou

juntamente com as fitas ao chão. Foi então que todos reconheceram a feiticeira

Cundrie e passaram a examinar, surpresos, o brasão do Graal que ostentava no

manto. Suas feições não haviam mudado desde que pela última vez fora vista em

Plimizoel. Deveis estar lembrados da descrição que vos fiz de sua aparência. Seus

olhos continuavam amarelos da cor do topázio, os dentes eram salientes como

outrora e os lábios conservavam ainda aquele roxo peculiar à violeta. Naquele seu

aparecimento na campina de Plimizoel usava ela por pura vaidade o chapéu ao

qual me referi. Afinal esse cuidado era perfeitamente dispensável, pois os raios do

sol jamais conseguiriam tostar uma tez densamente recoberta de pelos.

Procurando ser cortês dirigiu-se à seleta assistência anunciando uma

nova cujo alcance foi de pronto percebido por todos.

Eis o que disse: "Salve, ó filho de Gahmuret, pois Deus pretende mostrar-

se indulgente contigo! Dirijo-me especialmente ao filho de Herzeloyde, mas é-me

bem -vindo também o colorido Feirefiz, em consideração à minha ama Secundille e

à justa fama de que desde os verdes anos ele se fez merecedor." E voltando-se

para Parsifal assim falou: "Agora toma teu coração nas mãos e rejubila-te! Salve teu

569
alto destino, ó apanágio da ventura humana! Leu-se na pedra que tu serás o novo

soberano do Graal. Juntamente contigo foram convocados Condwiramurs, tua

esposa e Loherangrin, teu filho. Ao deixares o reino de Brobarz já vinha ela


222
esperando dois filhos teus. Ali (no reino paterno), Kardeiz terá um rico quinhão.

Mesmo que não te coubesse outra ventura que não a cura de Anfortas ainda assim

serias considerado o mais feliz dos homens. Tua boca que não sabe mentir deverá

saudar o nobre e amável rei. Tua pergunta devolver-lhe-á a saúde e o resgatará

dessa situação digna de pena a que a enfermidade o reduziu."

A seguir citou os sete astros pelos seus nomes pagãos e que o nobre,

poderoso e colorido Feirefiz, sentado à sua frente, conhecia muito bem.

Prosseguindo, disse: "Presta atenção, Parsifal: Zval223, o mais elevado dos planetas,

o célere Almustri224, Almaret225 e o brilhante Samsi226 te trazem boa sorte. O quinto

chama-se Alligafir227, o sexto Alkiter228 e o seguinte Alkamer229. O que digo não é

ilusório. Eles são os esteios do firmamento, pois com seu movimento retrógrado

impedem que sua rotação seja demasiadamente rápida230. Tuas privações

terminaram. Tudo aquilo que está contido na trajetória dos planetas e iluminado por

sua luz estará a teu alcance. Tuas penas desvanecer-se-ão. Mas evita excessos.

Eles te excluiriam da seleta comunidade, pois o Graal e sua força miraculosa

rejeitam as pessoas sem autenticidade. Os sofrimentos ensombreceram tua

222
Kardeiz. Irmão gêmeo de Loherangrin, mas nascido depois dele.
223
Zval (Zuhal). Saturno, "Senhor do Carma".
224
Almustri (Al Muchtari). Júpiter.
225
Almaret (Al Mirrih). Marte.
226
Samsi (Chams). Sol.
227
Alligaflr (Al Zuhari). Vênus.
228
Alkiter (Al Utarid). Mercúrio.
229
Alkamer (Al Qamar). Lua.
230
Segundo os astrólogos medievais as planetas influenciavam o destino humano. Ao tempo, a Astrologia
ocidental era fortemente influenciada pelas teorias orientais, o que explica a presença dos muitos nomes árabes
no texto.

570
juventude, mas a felicidade que agora está à tua espera afugenta-os para sempre.

Tu conquistaste a paz interior e aguardaste a vinda da felicidade em meio a toda a

sorte de sofrimentos."

Parsifal rejubilou-se com tal notícia. Tão feliz ficou que lágrimas - essa

água viva que brota do coração - lhe afloraram aos olhos. A seguir disse: "Senhora,

se Deus me conceder efetivamente tudo aquilo que dissestes e se além de mim,

pobre pecador, minha mulher e meus filhos puderem participar de minha felicidade

então Deus quis de fato conceder-me Sua graça. Ao ressarcir-me dos agravos

sofridos dais-me uma prova de lealdade. Vossa ira certamente me teria poupado se

não tivesse caído em falta. Ao tempo não tinha maturidade suficiente para o

relevante papel que me fora destinado. Mas agora me cumulais de privilégios que

afugentam todas as minhas penas. Vosso traje confirma o que dizeis. Quando em

Munsalvaesche me encontrei com o desventurado Anfortas, vi em todos os escudos

pendentes das paredes o mesmo símbolo heráldico que ostentais em vosso manto:

um bando de rolas. Dizei-me agora, senhora, quando e como poderei chegar ao

local de minha felicidade. Não me deixeis esperar por mais tempo."

Ela respondeu: "Amado senhor meu, um único homem pode te

acompanhar. Escolhe-o. Eu própria te servirei de guia. Não vaciles e decide logo!"

Em todo o acampamento soube-se logo da presença da maga Cundrie e

do teor de sua mensagem. Orgeluse chorou de alegria ao saber que a pergunta de

Parsifal iria finalmente pôr termo aos sofrimentos de Anfortas. Artur, sempre

preocupado em aumentar seu prestígio, dirigiu-se cortesmente a Cundrie dizendo:

571
"Senhora, recolhei-vos à tenda e descansai. Dizei-me, além disso em que vos posso

ser útil."

Ela respondeu: "Arnive está entre nós. O que ela puder oferecer-me até a

partida do meu amo deve bastar-me. Como foi libertada do cativeiro gostaria de

revê-la, bem como as outras damas que Clinschor manteve reclusas durante muitos

anos."

Dois cavaleiros a ajudaram a se pôr na sela e a seguir a nobre jovem

tomou a direção da tenda de Arnive.

Entrementes havia chegado a hora da refeição. Parsifal, que comia ao

lado do irmão, pediu-lhe que servisse de companheiro de viagem e Feirefiz se

declarou disposto a acompanhá-lo a Munsalvaesche. Depois da refeição todos os

que ali estavam sentados em torno da mesa se levantaram. Mas Feirefiz tinha em

mente um plano grandioso. Dirigindo-se a Gramoflanz disse-lhe que poderia

comprovar o grande amor que devotava à sua prima prestando-lhe um favor: "Ajudai

a mim e ao meu primo Galvão a convencer a todos esses reis, príncipes, barões e

modestos cavaleiros a permanecer neste local até que tenha presenteado a todos.

Para mim seria humilhante deixá-los partir sem lhes ter oferecido alguma coisa. Os

saltimbancos também deverão ser contemplados. A ti, Artur, eu peço que persuadas

os ilustres fidalgos a não recusar meus presentes. Convence-os de que aceitá-los

não os diminui, pois nunca encontraram um homem rico igual a mim. Além disso

coloca à minha disposição mensageiros com a incumbência de apanhar esses

presentes no local onde se acha ancorada minha frota."

572
Eles prometeram ao gentio permanecer ali por mais quatro dias, prazo

que segundo eu soube foi por ele considerado satisfatório. Artur pôs à sua

disposição os mensageiros que deviam cumprir a missão. Feirefiz, o filho de

Gahmuret, apanhou pena e pergaminho. À sua carta foram dadas todas as

necessárias características de autenticidade. Tanto quanto sei nunca carta alguma

abriu a porta de acesso a tão rico tesouro.

Fiéis aos seus deveres os mensageiros puseram-se a caminhar.

Entrementes Parsifal tomou da palavra e falando em francês relatou aos presentes

os fatos singulares de que soubera através da boca de Trevrizent. Nunca homem

algum seria capaz de conquistar o Graal a não ser que para tanto fosse

predestinado pela Providência Divina. A notícia de que o Graal não poderia ser

conquistado pela força das armas se espalhou por todos os países, convencendo os

cavaleiros empenhados em sua demanda a suspender as buscas. Desde então o

Graal permaneceu oculto.

Para as damas a partida de Parsifal e de Feirefiz foi motivo de grande

tristeza. Os dois percorreram os acampamentos dos quatro exércitos despedindo-se

dos fidalgos que ali se achavam alojados. A seguir puseram-se a caminho, alegres,

bem dispostos e tão bem armados como se partissem para uma guerra. No terceiro

dia chegaram a Joflanze, enviados pelo exército do gentio, os presentes que

ninguém ousaria imaginar mais ricos e magníficos. Cada rei considerou o presente

que lhe coube sobremodo útil a seu país. Considerando a posição social dos

aquinhoados nenhum deles jamais recebera tão precioso presente. As damas

receberam igualmente valiosos presentes que o gentio trouxera de Triande e de

573
Nourient. Não saberia dizer como os exércitos ali acampados se separaram e

partiram. Sei apenas que Cundrie e seus dois acompanhantes se puseram a

caminho rumo a Munsalvaesche.

574
LIVRO XVI
1. OS SOFRIMENTOS DE ANFORTAS

Entrementes Anfortas e os seus continuavam mergulhados em sua dor

inarredável. O sentimento de lealdade impedia que os membros do Graal pusessem

fim a seus sofrimentos embora em mais de uma oportunidade lhes houvesse

implorado a morte. Esta já o teria levado se não o tivessem posto seguidamente

diante do Graal a fim de que sua visão direta o mantivesse vivo.

Anfortas disse então aos seus cavaleiros: "Estou convencido que teríeis

pena de mim se efetivamente me fósseis leais. Por quanto tempo devo ainda

suportar isto? Se um dia fordes julgados segundo os princípios da verdadeira Justiça

então sereis responsabilizados perante Deus por tudo que venho passando. Desde

o dia em que fui armado cavaleiro procurei adivinhar vossos desejos. Caso tivesse

cometido algum ato vergonhoso sem que o soubésseis, ainda assim meu castigo

seria demasiado. Se efetivamente me quereis bem então resgatai-me destes

sofrimentos. Fazei isso em consideração à dignidade cavaleirosa. Se tivésseis

algum interesse nisso poderíeis ter observado que para prestigiar a instituição

cavaleirosa realizei notáveis feitos. Atravessei vales e montanhas e em muitas lutas

singulares soube usar a espada de modo a colocar meus adversários em situação

575
crítica. Por tudo isso recebi de vossa parte apenas ingratidão. No dia do Juízo Final

eu, órfão da alegria, levantarei esta queixa contra vós. Se não me deixardes morrer

arriscais a vossa salvação. Meus sofrimentos deveriam despertar vossa

solidariedade. Estais muito bem informados e vistes com os vossos próprios olhos

como a desgraça sobre mim se abateu. Acaso sirvo ainda para ser vosso soberano?

Seria uma leviandade de vossa parte se por minha causa quisésseis arriscar a

salvação de vossas almas. O que então vos impele a me tratar deste modo?"

Eles certamente teriam posto fim ao sofrimento dele se não subsistisse

uma esperança de salvação, à qual Trevrizent se referira ao ler a mensagem que

aparecera no Graal. Eles vinham por isso aguardando o regresso daquele homem

que doutra vez deixara escapar a grande oportunidade de sua vida: estavam à

espera do momento propício em que ele faria a pergunta que restituiria a saúde ao

rei. Este não poucas vezes permanecia de olhos fechados durante quatro dias

seguidos. Quando isso acontecia era colocado diante do Graal, mesmo contra a sua

vontade. Acometido dos tormentos da enfermidade, abria finalmente os olhos. Desse

modo era mantido vivo contra a sua própria vontade. E não conseguia morrer.

A comunidade do Graal cuidou da saúde de Anfortas da forma aqui

descrita até o dia em que Parsifal e o colorido Feirefiz vieram se aproximando de

Munsalvaesche. Era precisamente o período em que Marte e Júpiter, na fase inicial

de suas trajetórias, haviam atingido suas ameaçadoras constelações, de sorte que

Anfortas começou a passar mal. Sua ferida lhe causava dores terríveis. As jovens e

os cavaleiros ouviam seguidamente seus gritos de dor e podiam ver em seus olhos

os sofrimentos por que passava. Ninguém tinha condições de tratar com êxito dessa

576
ferida incurável. Mas segundo nos dá conta a Aventura estava finalmente a

caminho a única ajuda eficaz. Enquanto isso a comunidade do Graal continuava

mergulhada na dor.

Quando no decurso de sua amarga e interminável enfermidade o rei era

acometido de violenta crise, espargia-se por todo o aposento aromas agradáveis

visando afugentar o mau cheiro que a ferida exalava. Diante dele, sobre o tapete,

havia especiarias, drogas, raízes e ervas aromáticas. Em virtude de suas qualidades

odoríferas haviam sido postas ali também a teriaga e o precioso âmbar que

difundiam agradável perfume.

Quando se alcançava o tapete pisava-se sobre cardamomo, cravo-da-

índia e noz moscada que haviam sido espalhados no local por causa de seu aroma

agradável. Ao pisar nessas especiarias liberava-se sua fragrância neutralizando

desse modo o mau cheiro que contaminava o ambiente. O fogo que crepitava no

aposento era alimentado - como já foi dito - com pau aloé. Os pés da cama eram

revestidos de pele de víbora. Para banir do ambiente o cheiro incômodo espalhava-

se sobre as almofadas pós aromáticos. Os travesseiros revestidos de seda da

Nourient, nos quais o rei se achava recostado, não eram costurados mas

pespontados. O colchão era de seda de Palmates. Sua cama decorada unicamente

com pedras preciosas era articulada com cordas feitas de pele de salamandra que

serviam também para transformar a cama em maCa. A despeito de se ver assim

cercado de opulência o rei não fazia caso desse fausto todo. Jamais alguém havia

visto cama igual. Era ao mesmo tempo artística e preciosa. Para tanto contribuíam

sobretudo as virtudes benéficas das pedras preciosas que agora vou especificar. Ali

577
se achavam engastados carbúnculos, selenites, balaches, gagatromes, ônix,

calcedônias, corais, bestion, pérolas, optálias, ceráunias, epistitas, hieraquitas,

heliotrópios, panthers, androdragmas, crisoprasos, saddas, hematitas, dionísias,

ágatas, celidônias, sardônicas, calcofônias, cornalinas, jaspes, vetitas, iris, gágatas,

ligures, asbestos, cegoütas, galacti-tas, jacintos, orites, enidrus, absistos, alabandas,

crisalecter, hiênias, esmeraldas, magnetitas, safiras e piritas. Além disso havia cá e

lá turquesas, lipárias, crisólitas, rubis, poleises, sárdios, diamantes, malaquitas,

diadocos, peanitas, medus, berilos e topázios.

Algumas dessas pedras instilavam ânimo prazenteiro; outras, graças às

suas propriedades, traziam boa sorte ou serviam de medicamentos. O iniciado no

estudo das pedras sabia manipular suas poderosas virtudes. Recorrendo a tais

meios a comunidade do Graal conseguia conservar a vida de Anfortas, pois todos

lhe queriam bem.

2. PARSIFAL NO CASTELO DO GRAAL

Depois de haver causado tantos dissabores aos que o rodeavam Anfortas

seria afinal motivo de satisfação. Vindo de Joflanze e livre agora de tudo que o

afligia Parsifal, seu irmão e uma jovem vinham aproximando-se de Terre de

578
Salvaesche. Nada me fora dito sobre o rumo que seguiram e a distância que

percorreram. Graças a Cundrie os dois não foram envolvidos num combate. Quando

atingiram o posto de fronteira vinha ao encontro deles um esquadrão bem equipado

de templários a cavalo. Mas ao reconhecerem aquela que vinha servindo de guia

aos dois, desfizeram-se em gentilezas na esperança de que trouxesse boas notícias.

Quando o comandante do esquadrão viu brilhar no manto de Cundrie o

bando de pombas em revoada, exclamou: "Nossas tribulações terminaram

finalmente! Sob o emblema do Graal aproxima-se aquele que todos vínhamos

aguardando desde o dia em que a desgraça sobre nós se abateu. Detei-vos!

Estamos às vésperas de felizes acontecimentos!"

Ao deparar com os cavaleiros estranhos Feirefiz, o angevino, recomendou

ao irmão que se precavesse e ele próprio se dispôs a iniciar imediatamente o

combate. Mas, Cundrie segurou seu corcel pelas rédeas impedindo desse modo que

consumasse seu intento. Ato contínuo a jovem disforme preveniu seu soberano

Parsifal: "Certamente já identificastes os escudos e a insígnia. Ali está um

esquadrão de cavaleiros do Graal dispostos a cumprir vossas ordens." À vista disso

o nobre gentio reconsiderou sua atitude, dizendo: "Nesse caso não se fala mais em

confronto!"

Parsifal pediu a Cundrie que fosse ao encontro dos cavaleiros do Graal.

Atendendo-o, comunicou aos templários os felizes acontecimentos que jaziam à

frente. Os templários desmontaram então tiraram os elmos e de pé receberam

Parsifal, cujo afetuoso cumprimento se lhes afigurava uma bênção. A seguir com os

579
olhos rasos d'água e muita esperança no coração rumaram todos para

Munsalvaesche.

A essa altura uma grande massa de gente se reunira para recebê-los:

muitos cavaleiros respeitáveis e de venerando aspecto, pajens e numerosos

infantes. A abatida comunidade do Graal tinha todos os motivos para regozijar-se

com a chegada de Parsifal. Feirefiz, o angevino, e Parsifal, foram amavelmente

recebidos ao pé da escadaria e a seguir introduzidos no palácio. Segundo o

costume estendera-se junto às paredes cem grandes tapetes circulares e sobre

cada qual deles uma almofada tendo como complemento uma colcha de veludo. Os

dois acharam mais conveniente sentar-se e aguardar ali até serem aliviados de

suas armaduras. Os camareiros apareceram trazendo magníficos trajes

confeccionados com tecido idêntico. Depois de todos os cavaleiros se haverem

acomodado cada um recebeu um cálice de ouro (não de vidro). Feirefiz e Parsifal

serviram-se e a seguir foram ao encontro do sofrido Anfortas.

3. PARSIFAL, O REI DO GRAAL

Já vos foi dito anteriormente que Anfortas passava o tempo todo

recostado e só raramente podia sentar-se em posição normal. Da mesma forma

tomastes conhecimento da pródiga decoração da alcova. Embora seu rosto

580
apresentasse evidentes sinais de sofrimento recebeu os dois com muita

cordialidade, dizendo: "Imerso em dores aguardei vossa volta na esperança de

recuperar a felicidade com vossa ajuda. Quando daqui partistes, ao cabo de vossa

última visita, vós me deixastes num estado que deveria ter despertado vossa

solidariedade caso fósseis efetivamente um homem solícito e compassivo. Se vossa

fama e prestígio forem capazes de conferir autoridade a vossas palavras então

empenhai-vos junto aos cavaleiros e damas para que consintam que a morte ponha

fim às minhas penas. Se fordes Parsifal, então privai-me simplesmente durante sete

noites e oito dias de visão direta do Graal. Disso resultará o fim de minhas penas.

Outra coisa não me atrevo a esperar de vós. Isso resultará para vós em prestígio

pois por essa intervenção sereis exaltado como homem providencial. Vosso

companheiro é um estranho para mim. Não me agrada vê-lo de pé diante de mim.

Por que não o convidais a tomar assento?"

Parsifal respondeu com voz entrecortada de soluços: "Dizei-me, onde

está o Graal? Vossa comunidade saberá agora se Deus está propenso a manifestar

através de mim a Sua bondade."

De joelhos prosternou-se três vezes diante do Graal, em homenagem à

Santíssima Trindade, pedindo ajuda para o homem tão duramente atingido pelo

sofrimento. A seguir ergueu-se e perguntou em tom solene: "Tio, o que te aflige?"

Deus, que a pedido de São Silvestre231 restituiu a vida a um touro, permitindo que

231
São Silvestre (Papa no período de 314 a 335 d.C.), na presença do Imperador Constantino, teria, segundo a
lenda, vencido seus adversários judeus numa disputa doutrinária, ao ressuscitar em nome de Cristo um touro
que seus adversários haviam conseguido que caísse morto sussurrando-lhe no ouvido o nome de Javé.

581
seguisse lépido o seu caminho; que determinou a Lázaro232 que se levantasse,

consentiu igualmente que Anfortas se curasse e readquirisse sua plena saúde. Seu

rosto readquiriu aquele brilho que os franceses chamam de "flori". Comparada a

Anfortas a bela estampa de Parsifal se desvanecia. Em matéria de boa aparência

ninguém podia ombrear com o restabelecido Anfortas - nem Absalão, filho de Davi,

nem Vergulacht de Ascalun, nem aqueles homens que já nasceram favorecidos pela

natureza e tampouco Gahmuret quando na flor da idade entrou em Kanvoleis

cercado de pompa. Fica evidente que Deus é de fato todo-poderoso.

Como a mensagem aparecida no Graal indicasse que ele seria o novo

soberano do Graal não havia margem para qualquer dúvida e assim Parsifal foi

elevado à dignidade de rei de Munsalvaesche. Se em matéria de fausto e riqueza

me for dado avançar uma opinião devo dizer que nunca se viu lado a lado dois

homens mais ricos e poderosos que Parsifal e Feirefiz. Por seu turno a comunidade

do Graal tudo fez para demonstrar solicitude e dedicação ao novo soberano e à

hóspede deste.

Não saberia dizer quantas vezes Condwiramurs parou para descansar

durante sua esperançosa viagem rumo à Munsalvaesche. A essa altura já lhe havia

sido transmitida a notícia de que todas as suas penas haviam chegado ao fim. O

Duque Kyot e muitos eminentes fidalgos conduziram-na à Terre de Salvaesche,

situada na floresta onde Segramors havia sido descavalgado e onde as gotas de

sangue na neve haviam aflorado na mente de Parsifal a imagem da esposa amada.

Era ali que Parsifal deveria encontra-se com ela para conduzi-la a

232
Lázaro, irmão de Maria e de Marta, teria sido ressuscitado por Cristo, segundo consta do Evangelho de São
João (11, 41-45).

582
Munsalvaesche - uma viagem que ele certamente empreenderia com especial

prazer. Um templário lhe havia transmitido essa notícia: "Um grupo de distintos

cavaleiros acaba de conduzir a rainha, com o devido respeito ao local combinado."

4. O REENCONTRO COM TREVRIZENT

Parsifal decidiu dirigir-se com uma fração de cavaleiros do Graal ao

eremitério de Trevrizent. Este foi tomado de grande satisfação íntima ao saber que

Anfortas não perecera das mazelas resultantes do funesto duelo e que a pergunta

compassiva lhe havia restituído a saúde. Ele exclamou: "Inescrutáveis são os

desígnios do Senhor. Quem pode prever Suas decisões? Quem pode estimar os

limites de Sua onipotência? A própria comunidade dos Anjos não saberia avaliá-la.

Deus, além de Homem, é o Verbo do Pai. É Pai e Filho numa só Pessoa e o

Espírito Santo tem a faculdade de manifestar o Poder divino através de curas

miraculosas”. E dirigindo-se a Parsifal, declarou: "Nunca se soube da ocorrência de

semelhante milagre. Vós conseguistes que Deus, através da Santíssima Trindade,

cumprisse vossa vontade. Devo confessar que ao procurar vos dissuadir de vosso

propósito não vos revelei todos os pormenores que dizem respeito ao Graal. Por

esse pecado, imponde-me uma penitência. De futuro acatarei vossas ordens já que

sois meu soberano e filho de minha irmã. Naquela oportunidade vos disse que,

consoante determinação de Deus, os anjos repudiados passaram a guardar o Graal

583
até novamente merecerem a graça divina. Mas em se tratando de semelhante delito

Deus é inflexível, pois não se reconciliou com aqueles que consoante aleguei teriam

merecido Seu perdão. Quem pretende contar com Seu apoio não pode mudar de

opinião a respeito d'Ele. Eles estão condenados por toda a eternidade, pois foram

artífices de sua própria perdição. Pesava-me ver-vos empenhado naquilo que eu

julgava ser esforço vão de vossa parte. Até agora nunca houve o caso de alguém

conquistar o Graal pela força. Essa foi a razão por que, de boa fé, procurei dissuadir-

vos de semelhante propósito. Mas eis que tudo sucedeu de modo diverso.

Conquistastes o Bem Supremo. Mas não esqueçais de em meio a todo esse êxito

cultivar a virtude da modéstia!"

5. O REENCONTRO COM CONDWIRAMURS

Parsifal disse então a seu tio: "Desejo ir ao encontro da mulher que não

vejo há cinco anos. Amo-a hoje como a amava ao tempo de nossa vida em comum.

A despeito da informação errônea que me deste num momento decisivo desejo,

doravante, seguir teus conselhos até que a morte nos separe. Na hora da maior

dificuldade tu me assististe com conselho prudente. Agora pretendo ir ao encontro

de minha mulher. Segundo soube ela estaria vindo ao meu encontro e neste

momento estaria nas proximidades de Plimizoel."

584
Ao se despedir o piedoso varão o recomendou à proteção de Deus. Como

seus companheiros de viagem conhecessem bem a floresta Parsifal viajou a noite

inteira e ao alvorecer teve agradável surpresa: diante deles surgia um conjunto de

tendas. Consoante ouvi dizer, fincaram-se ali as numerosas bandeiras do reino

Brobarz, que haviam sido escoltadas pelos escudeiros. Ali estavam portanto

acampados os príncipes do reino de Parsifal. Este procurou saber se a rainha se

achava alojada ali ou se ocupava tenda à parte. Indicou-se-lhe o local onde ela,

cercada de muitas outras tendas, se achava magnificamente instalada.

O Duque Kyot da Catalunha havia levantado cedo. Parsifal e sua comitiva

foram ao encontro dele. Embora ainda não fosse dia claro Kyot reconheceu de

pronto o símbolo heráldico do Graal - um grupo de pombas - que todos os

integrantes do esquadrão ostentavam nos escudos. O velho cavaleiro suspirou ao

lhe aflorar à mente a lembrança de Tschoysiane, a fiel esposa, com a qual vivera

momentos felizes em Munsalvaesche antes de falecer, ao dar à luz a Sigune.

Aproximando-se Kyot cumprimentou Parsifal e seus acompanhantes com muita

cordialidade. A seguir enviou ao marechal da rainha um pajem com a incumbência

de providenciar acomodações para os cavaleiros recém-chegados. Ele próprio

tomou Parsifal pela mão e o conduziu ao arsenal da rainha, instalado em pequena

tenda feita de Unho engomado. Ali tirou-se-lhe a armadura.

A rainha ainda não fora avisada de sua chegada. Dominado pela emoção

Parsifal encontrou, numa tenda alta e espaçosa, Loherangrin e Kardeiz, deitados ao

lado da rainha e em torno dela muitas damas atraentes. Kyot bateu na cobertura,

concitando a rainha a sair do sono e a rejubilar-se. Abrindo os olhos viu o marido.

585
Como estivesse apenas de camisola enrolou-se na própria coberta e pulou da cama.

Ela envolveu Parsifal e, consoante me disseram, os dois se beijaram afetuosa e

demoradamente. A seguir Condwiramurs exclamou: "A felicidade te enviou, ó amado

meu!" Depois de lhe dar boas-vindas sussurrou-lhe no ouvido: "Pensando bem,

deveria estar zangada contigo, mas não posso. Louvados o dia e a hora que te

trouxeram de volta a meus braços. Minhas tristezas se desvaneceram. Tenho agora

tudo o que meu coração desejava. Meus desgostos terminaram!"

A essa altura os meninos Kardeiz e Loherangrin haviam despertado.

Ambos estavam nus mas Parsifal não deu importância ao pormenor, beijando um e

outro carinhosamente. O nobre e compreensivo Kyot pediu que os meninos fossem

conduzidos a outro local e que as damas deixassem a tenda. Elas se retiraram, não

sem antes cumprimentarem afetuosamente o amo que acabava de voltar de longa

viagem. A seguir Kyot deixou Parsifal aos cuidados da rainha e se retirou, seguido

pelas damas. Como ainda fosse cedo os camareiros fecharam as aberturas de

acesso à tenda.

Outrora a visão do sangue na neve fizera Parsifal perder a noção do que

se passava à volta. Agora Condwiramurs o compensaria das dificuldades passadas,

pois dispunha dos meios para tanto. Embora muitas nobres mulheres lhe

houvessem oferecido seu afeto, jamais procurara tirar proveito de semelhante

situação. Tanto quanto sei desfrutou o amor que a esposa lhe oferecia até perto de

meio-dia. A essa altura todo o exército de Brobarz estava a postos, observando os

templários e as visíveis marcas de combate que ostentavam em seus magníficos

equipamentos. Seus escudos estavam perfurados por numerosas lançadas e

586
retalhados por golpes de espada. Sob o manto usavam apenas as grevas porque já

se haviam livrado das demais peças da armadura.

6. KARDEIZ SUCEDE A PARSIFAL

Em meio a toda essa movimentação ninguém mais conseguia dormir. O rei e a

rainha se levantaram, pois, e foram assistir à missa que um sacerdote celebrava. No

acampamento estabeleceu-se uma grande balbúrdia entre os aguerridos veteranos

que outrora se haviam batido na guerra contra Clamide. Depois da última bênção os

bravos cavaleiros ali presentes deram a Parsifal cordiais boas-vindas, reafirmando-

lhe sua inquebrantável lealdade.

Depois de haverem sido retiradas as paredes laterais da tenda o rei

lançou aos seus vassalos esta pergunta: "Qual dos dois meninos será vosso futuro

soberano?" A seguir fez saber o seguinte aos príncipes presentes: "Kardeiz, como

meu sucessor legítimo, deverá herdar Valois, Norgals, Kanvoleis e Kingrivals. Tão

logo tenha atingido a maioridade conduzi-o a Anjou e Bealzenan que meu pai me

legou por ser seu herdeiro legítimo. Como afortunadamente sucedi ao Rei do Graal,

então, caso possa contar com vossa lealdade recebei vossos feudos da mão deste

meu filho."

587
Como todos de bom grado concordassem com essa proposta instalou-se

ali grande número de bandeiras233. Duas pequenas mãos concederam-lhes então

extensos domínios em diversos países. Em conseqüência Kardeiz foi coroado rei.

Mais tarde lhe caberia conquistar, além de Kanvoleis, outros domínios hereditários

de Gahmuret.

Na planície de Plimizoel foram dispostos assentos em amplo círculo para

uma refeição rápida. A seguir o exército de Brobarz levantou acampamento e com o

jovem rei pôs-se em marcha regressando a seu país. As jovens damas e os demais

integrantes da corte choraram sentidas lágrimas ao se despedirem da rainha. Os

templários por sua vez puseram Loherangrin e sua bela genito-ra ao centro da

coluna e regressaram a Munsalvaesche.

7. A MORTE DE SIGUNE

"Há muito tempo" disse Parsifal "ao atravessar esta floresta deparei com

um eremitério pelo qual corria um claro e célere riacho. Caso o conheçais, conduzi-

me àquele local." Pelos seus lhe foi dito que a descrição correspondia ao eremitério

que conheciam: "Ali mora uma jovem que permanece em luto permanente ao pé do

233
Cf. nota nº 29

588
ataúde de seu amado. Ela é um modelo de dedicação pois todos que por ali passam

a encontram mergulhada em sua tristeza. Nosso caminho passa perto daquele

local."

À vista disso o rei decidiu: "Rumemos para o local para ver como ela está

passando." Como seus acompanhantes concordassem com a proposta

prosseguiram a trote largo até ao anoitecer acharem Sigune. A morte a

surpreendera na posição em que costumava ficar, isto é, em atitude de oração. Á

visão daquela cena provocou na rainha uma crise de choro. Demoliu-se o muro do

eremitério para se chegar ao local onde se encontrava a morta e Parsifal determinou

que se abrisse também o sarcófago. Ali repousava Schianatulander,

cuidadosamente embalsamado, belo como sempre e sem qualquer sinal de

decomposição. Aquela que em vida se conservara virgem por amor a ele foi

colocada a seu lado para o descanso eterno. A seguir cerraram o túmulo. Como já

foi dito, Condwiramurs lamentou profundamente o destino de sua prima pois havia

sido criada por Tschoysiane, a mãe da morta e tia de Parsifal. Esta era a razão de

sua inominável tristeza, caso o Provençal234 não se tenha enganado na leitura.

234
Provençal. Kyot, o Provençal (que não deve ser confundido com Kyot, Duque da Catalunha), traduziu
para o francês os originais do Graal de autoria de Flegentanis. Segundo alega Wolfram von Eschenbach, o
presente poema seria apenas a tradução alemã do texto de Kyot. NT

589
8. CONDWIRAMURS, A RAINHA DO GRAAL

O Duque Kyot, preceptor do Rei Kardeiz, não sabia que a filha morrera.

Mas o curso desta narrativa é linear e não curvo como um arco. Eles reiniciaram,

pois sem mais tardança a marcha, chegando a Munsalvaesche ao cair da noite. À

espera deles estava Feirefiz, que nesse entretempo não achara motivo para o tédio.

Para recebê-los foram acesas tantas velas que dava a impressão de a floresta estar

em chamas. Ao lado da rainha cavalgava um templário de Patrigalt, armado de

ponto em branco. Em torno do pátio de dimensões monumentais achava-se alinhada

uma tropa numerosa para dar boas-vindas à rainha, ao castelão e ao filho destes.

Loherangrin foi apresentado ao tio Feirefiz, mas dada à coloração alvinegra de sua

pele o menino relutou em beijá-lo. Ainda hoje as crianças - mesmo as bem dotadas

-, relutam em aceitar situações incomuns. O pagão riu, achando graça da situação.

9. A FESTA NO CASTELO DO GRAAL

Depois de a rainha haver descido de sua montaria a multidão reunida no

pátio se dispersou. Com a chegada de Condwiramurs a felicidade voltou a reinar em

Munsalvaesche e esse estado de espírito não tardou a contagiar a seleta


590
comunidade. Inicialmente foi apresentada a um simpático grupo de nobres damas.

Ao lado delas, junto à escadaria, Feireiiz a aguardava em respeitosa atitude.

Repanse de Schoye, Garschiloye de Gruonlant e Florie de Lunel se destacavam não

apenas pelo brilho de seus olhos como ainda por uma fama de imaculada

virgindade. Ao lado destas, esguia como um pinheiro achava-se a bela e boníssima

jovem Amflise, filha de Jernis de Ryl e Clarischanze de Tenabroc, uma jovem

recatada, encantadora e curvilínea como uma formiga. Feirefiz foi ao encontro da

castelã, que lhe deu o beijo de boas-vindas. Ao beijar Anfortas declarou-se feliz por

vê-lo recuperado da longa enfermidade. Feirefiz tomou Condwiramurs pela mão e a

conduziu junto a Repanse de Schoye, tia do castelão. Embora seus lábios fossem

rubros por natureza Condwiramurs teve que distribuir ainda muitos beijos. A

quantidade de beijos distribuídos cansou-a tanto que tive pena dela, a ponto de

lamentar não poder substituí-la nessa cansativa atividade. Exausta, além disso, em

virtude da cansativa viagem, foi conduzida pelas jovens damas a seus aposentos

enquanto os cavaleiros permaneceram no palácio feericamente iluminado pelas

velas. Era o momento em que vinham sendo feitos preparativos para a recepção do

Graal que só em ocasiões festivas era exibido diante da comunidade. Naquela noite

em que a visão da lança coberta de sangue deixara todos imersos em profunda

tristeza o Graal havia sido exibido na esperança de Parsifal ser capaz de

proporcionar consolo e ajuda. Porém este partira deixando todos mergulhados no

maior desalento. Mas desta vez o Graal seria exibido em meio a manifestações da

mais genuína alegria, considerando que aquelas tributações eram coisas do

passado.

591
Depois de se haver livrado das roupas de viagem e do toucado a rainha,

agora magnificamente ataviada, regressou ao salão onde 808 Feirefiz a recebeu na

porta. Todos convieram então em nunca ter visto em qualquer tempo mulher mais

vistosa. Ela usava um vestido urdido em seda pelas mãos de hábil artesão, segundo

modelo criado pela requintada arte de Sarant, residente na cidade de Thasme.

Assim esplendidamente ataviada, Feirefiz, o angevino, a conduziu para o centro do

palácio, onde três lareiras monumentais eram alimentadas por achas do aromático

pau aloé. Agora havia quarenta tapetes e assentos a mais que na ocasião em que

Parsifal vira o Graal pela primeira vez. Os assentos, ladeando o do castelão,

destinados a Feirefiz e Anfortas, eram especialmente preciosos. Uma vez mais cada

servidor do Graal havia recebido determinado encargo que no momento da exibição

do Graal devia cumprir com zelo e dedicação.

Vós já tivestes uma minuciosa descrição do cerimonial que devia ser

cumprido a partir do momento em que o Graal fosse introduzido no recinto. Naquela

vez fora exibido diante de Anfortas, agora era exposto diante do filho de Gahmuret e

da filha de Tampenteire. As 25 virgens ingressaram sucessivamente no salão. A

primeira a entrar no esplendor de seus louros cabelos parecia belíssima aos olhos

do gentio mas a seguinte se lhe afigurava ainda mais bela no seu deslumbrante

vestido. Todas essas jovens graciosas e atraentes eram uma festa para os olhos.

Por fim apareceu Repanse de Schoye, a mais deslumbrante dessa constelação de

virgens. Conforme me foi dito o Graal consentia em ser carregado unicamente por

ela. Seu coração era dotado de imaculada pureza e sua face irradiava esplendor

peculiar.

592
Será necessário fazer uma descrição sobre a seqüência em que os

convidados eram servidos? Devo eu reproduzir a cena dos camareiros apresentando

bacias para as abluções; relatar como as mesas em número bem superior ao da

primeira vez eram instalados; expor como tudo sucedeu consoante exigiam o

costume e o bom tom; precisar quantos carrinhos trazendo os cálices de ouro eram

introduzidos? Se ademais tivesse que descrever os assentos em que os cavaleiros

se achavam instalados, acabaria contando uma longa história. Por isso prefiro

resumir tudo em poucas palavras. Respeitosamente recebeu-se do Graal assados

de carne de caça e de animais de criação; cerveja para esse, vinho para aquele -

tudo consoante o desejo de cada um. Além disso recebeu-se do Graal vinho de

amora, vinho tinto e vinho aromático. Ao se iniciar na vida da corte o filho de

Gahmuret conhecera/em Pelra-peire um estado de coisas bastante diferente.

10. FEIREFIZ E REPANSE DE SCHOYE

O gentio quis saber como era possível que o vaso de ouro diante da mesa

de banquete estivesse sempre cheio. Esse miraculoso fenômeno o impressionou

sobremodo. Anfortas, que comia ao seu lado disse-lhe então: "Senhor, acaso não

vistes o Graal que está bem à vossa frente?" O gentio alvinegro respondeu: "Vejo ali

apenas um pano de seda verde. Foi a virgem coroada postada ali à nossa frente que

o trouxe ao ingressar no recinto. Seu olhar me impressionou profundamente.

593
Considero-me de ânimo suficientemente forte para não me perturbar com a simples

visão de uma jovem ou mulher. Mas agora, sem mais nem menos, os favores das

nobres damas que conheci me parecem insípidos. Eu sei que não fica bem

importunar com meus problemas amorosos uma pessoa a quem nunca prestei favor.

Que valor podem ter para mim agora meu poder, minha riqueza, meus feitos

realizados a serviço do amor cortês e meus atos de caridade se estou condenado a

uma vida de penas? Ó poderoso deus Júpiter, por que me trouxestes a este lugar,

onde o sofrimento é meu único quinhão?"

A força da paixão e as penas de amor que vinham crescendo em

intensidade fizeram com que as partes claras de seu rosto empalidecessem. Por

pouco a deslumbrante jovem comprometia a primazia de beleza da encantadora

Condwiramurs. Enquanto isso Feirefiz, o nobre forasteiro, enveredava cada vez mais

nas malhas da paixão. Sem esboçar sequer uma reação, consentiu que seu amor

por Secundille se extinguisse em seu coração. O que representavam para ele agora

o amor de Secundille e seu país Tribalibot? Uma jovem despertara no filho de

Gahmuret de Zazamanc paixão tamanha que o amor de Clauditte, Olímpia,

Secundille e outras damas (que o haviam distinguido por seus feitos e

recompensado seus serviços) se lhe afigurava agora inexpressivo.

O belo Anfortas não deixou de notar a inquietação amorosa de seu

companheiro de mesa e ao ver que seu bom-humor se ensombrava e as manchas

brancas de seu rosto empalideciam, disse-lhe: "Senhor, pesa-me sobremodo o fato

de cultivardes por minha irmã um sentimento que nunca homem algum por ela

experimentou. Jamais cavaleiro algum esteve a seu serviço. Nunca alguém dela

594
recebeu recompensas por serviços prestados. Com aflita solicitude permanecera

sempre a meu lado e raras vezes alguém a viu sorrir. Até aqui atravessou uma fase

pouco favorável para realçar sua beleza. Vosso irmão, que é filho da irmã dela,

poderá dar-vos ajuda e bom conselho."

"Se a virgem coroada for vossa irmã"- exclamou Feirefiz, o angevino-

"então indicai-me a maneira pela qual possa conquistar seu afeto. Nela estão

concentrados todos os anseios do meu coração. Se todos os louros que colhi com

minha lança tivessem sido conquistados a seu serviço, poderia dela esperar alguma

recompensa. Adestrei-me nos cinco golpes de lança permitidos na arte do torneio.

Um deles é o “Puneiz235”, o outro é o “triviers236” e o terceiro consiste na

habilidade de defender-se de vários adversários ao mesmo tempo. Além disso

pratiquei o golpe empregado por dois adversários em rota de colisão e, por fim, o

golpe de perseguição. Mas hoje estou passando pela crise mais séria desde que

me cobri com o escudo pela primeira vez237. Em Agremuntin enfrentei um cavaleiro

envolto em chamas. Nesse embate certamente teria sido reduzido a cinzas caso não

tivesse usado um manto de pele de salamandra e escudo feito de pau de asbesto.

Oxalá vossa amável irmã me houvesse enviado a esse combate, que venci a duras

penas. Por amor a ela estaria disposto a correr qualquer risco. Vou ficar de mal com

meu deus Júpiter, caso não me liberte destes terríveis sofrimentos!"

Anfortas e sua irmã tinham os mesmos traços fisionômicos e as mesmas

faces coradas do pai Frimurtel. Por isso o gentio olhava ora para ele, ora para ela.

235
Puneiz. Um dos cinco golpes permitidos nos torneios e que deve ser praticado com lança em riste.
236
Triviers. Ataque dirigido contra o flanco direito do adversário.
237
"Desde que me cobri com o escudo". Quando foi armado cavaleiro, isto é, a partir do momento em que se
iniciou na carreira das armas.

595
Embora parecesse participar do banquete nem tocava na comida a despeito da

quantidade de pratos postos à sua frente. À vista disso Anfortas disse a Parsifal:

"Senhor, acredito que vosso irmão ainda não tenha visto o Graal!" Feirefiz confirmou

essas palavras, dizendo ao anfitrião que de fato não conseguia vislumbrá-lo. Tal

constatação surpreendeu a todos os cavaleiros. Quando o venerável Titurel,

permanentemente preso ao leito em virtude de paralisia, soube do fato, foi logo

dizendo: "Caso se trate de um pagão ele não pode esperar que sem o batismo seus

olhos possam vislumbrar o Graal, a exemplo do que ocorre com os membros desta

comunidade. Para ele o Graal é invisível." Foi essa mensagem que ele enviou ao

palácio. À vista disso Anfortas e o anfitrião explicaram a Feirefiz que nenhum pagão

estava em condições de enxergar a comida da qual todos os presentes se serviam

até a saciedade. Aconselharam-no, por isso a aceitar o batismo a fim de assegurar a

salvação de sua alma.

O filho pagão de Gahmuret perguntou então: "Se para vos ser agradável

me deixasse batizar isso me aproximaria do objeto do meu amor? Nada do que até

aqui passei em matéria de penas de amor e dificuldades na guerra se compara a

esta provação. Desde que o escudo me cobriu pela primeira vez nunca havia

passado por aflição tamanha. Na verdade deveria dissimular esse sentimento mas

isso não se ajusta à minha maneira de ser."

"Quem é o alvo do teu amor?", indagou Parsifal.

596
"É aquela belíssima jovem, irmã deste meu companheiro de mesa. Se me

ajudares a conquistá-la, cumulá-la-ei de riquezas e fá-la-ei soberana de poderosos

reinos."

O anfitrião tratou logo de esclarecê-lo: "Caso consintas em seres batizado

terás permissão de desposá-la. Doravante sinto-me autorizado a te tratar de tu,

graças ao poder do Graal, que me concede opulência comparável à tua."

Feirefiz, o angevino, insistiu: "Irmão, usa tua influência visando fazer de

mim e de tua tia um par. Se o batismo puder ser conquistado de arma na mão, então

envia-me à liça sem perda de tempo a fim de que possa fazer jus ao seu amor de

forma cavaleirosa. Desde que me conheço como gente o fragor das lanças

quebradas e o som do impacto da espada no elmo soam como música a meus

ouvidos."

O anfitrião riu muito e Anfortas mais ainda. Parsifal tratou de esclarecê-lo

uma vez mais: "Embora persistas na crença errônea de poder conquistar o batismo

pela força das armas consentirei que te aproximes da jovem somente depois de

regularmente batizado. Além disso terás que abjurar a teu deus Júpiter e renunciar a

Secundille. Amanhã cedo dir-te-ei a forma pela qual teu desejo pode ser satisfeito."

Anfortas, antes de padecer daquela moléstia interminável, realizara feitos

memoráveis a serviço do amor cortês. Fora ademais generoso e liberal. Ali se

encontravam diante do Graal os três combatentes mais destacados daquele tempo,

que no desempenho de seu mister de cavaleiro sempre tinham dado prova de um

597
valor excepcional. A essa altura heis de convir que todos estavam saciados. As

toalhas e mesas eram discretamente retiradas. Com distinção formal as jovens se

inclinaram e para o pesar de Feirefiz, o angevino, Repanse de Schoye deixou a sala.

Ao retirar-se a senhora de seu coração levava consigo o Graal. À vista disso Parsifal

despediu-se dos convidados.

11. O BATISMO DE FEIREFIZ

Muita coisa teria eu para contar caso quisesse descrever como a anfitriã

se recolheu, como se preparou para Feirefiz um leito confortável - onde, de resto,

permaneceu insone - e como os templários se entregaram a um repouso

despreocupado. Mas em vez disso prefiro voltar minha atenção ao que iria acontecer

no dia seguinte.

Quando a manhã surgiu luminosa, Parsifal e Anfortas decidiram pedir ao

apaixonado gentio de Zazamanc que fosse com eles ao Templo e se colocasse

diante do Graal. Parsifal dera instruções para que ali se fizessem presentes os mais

eruditos templários. Em conseqüência havia grande número de infantes e cavaleiros

no momento em que o gentio compareceu. A pia batismal de rubi assentava sobre

um pedestal de Jaspe, obra de arte encomendada por Titurel. Dirigindo-se ao irmão,

Parsifal assim falou: "Caso persistas no propósito de desposar minha tia terás que

598
renunciar a teus deuses, combater os que se opõem a Deus Altíssimo e observar

fielmente Seus mandamentos”.

"Tratarei de cumprir fiel e escrupulosamente tudo que for necessário para

conquistar a jovem", prometeu o gentio. A seguir inclinou-se a pia batismal na

direção em que se achava o Graal e a pia batismal se encheu imediatamente de

água, que não era nem fria nem quente. Junto à pia batismal se achava postado um

velho e grisalho sacerdote que já removera de muitas crianças a condição de

gentias, mergulhando-as ali. Dirigindo-se a Feirefiz, disse: "Se pretendeis arrebatar

ao demônio vossa alma é preciso crerdes doravante apenas em Deus Altfssimo,

cuja Unidade Trina se manifesta em toda a parte. Deus se fez homem e Sua palavra

é a mesma do Pai. Ele, a um só tempo, é Pai e Filho e um e outro são venerados na

unidade do Espírito Santo. Esta água, graças ao poder da Santíssima Trindade,

remove de vós a condição de pagão. Deus, que criou Adão à Sua imagem e

semelhança, quis caminhar na água para receber o batismo. É da água que as

árvores retiram sua seiva. Ela torna fértil toda a criação. A água confere aos olhos o

dom de ver as coisas e à alma um esplendor comparável ao dos anjos."

Mas Feirefiz disse ao sacerdote: "Se isso solucionar o meu problema

acreditarei no que quiserdes. Se ela corresponder aos meus sentimentos cumprirei

prazerosamente os mandamentos de Deus. Irmão, creio no Deus de tua tia e nela

também. Abjuro todos os meus deuses, pois nunca passei por aflição tamanha. Da

mesma forma Secundille não mais participará doravante de meu prestígio. Por amor

ao Deus de tua tia manda batizar-me!"

599
À vista disso seguiu-se a tradição cristã pronunciando sobre ele a bênção

do batismo. Depois de batizado pôs-se nele a camisa batismal e deu-se-lhe em

matrimônio a filha de Frimurtel por quem seu coração ansiava. Antes do batismo o

Graal permanecera invisível a seus olhos mas agora se lhe manifestava claramente.

Depois da solenidade do batismo apareceu no Graal a seguinte

mensagem: "Se, mercê de Deus, um senhor do Templo for convocado para reinar

sobre uma nação estrangeira, será do seu dever impor nesse país o Direito e a

Justiça. Deverá contudo proibir qualquer pergunta sobre seu nome e o de sua

estirpe. Mas se a despeito disso a questão for levantada não poderá permanecer

por mais tempo no país." Tendo em conta o precedente do amável Anfortas, que em

meio a dores terríveis tivera de esperar longamente pela pergunta redentora os

membros da comunidade do Graal passaram a detestar qualquer tipo de perguntas.

Evitavam mesmo aquelas que lhes diziam respeito diretamente.

12. O REINO DE PRESTE JOÃO

O recém-batizado Feirefiz pediu insistentemente ao cunhado que o

acompanhasse a seu reino e ali participasse de sua riqueza e de seu poder.

Anfortas, porém tratou de demovê-lo amavelmente desse propósito. "É minha

intenção" - ponderou - "dedicar-me inteiramente ao serviço de Deus. A coroa do

600
Graal é comparável ao que me ofereceis. Perdi-a por meu orgulho. Agora pretendo

dedicar-me a uma vida de humildade. Desejo afastar de minha mente qualquer idéia

que lembre poder e amor cortês. Ao regressar à pátria levareis convosco uma

esposa de genuína e inegável distinção, que será para vós companheira fiel e

dedicada. É preciso que cumpra meu dever aqui mesmo, onde a serviço do Graal

terei de enfrentar muitos combates. Mas nunca mais quebrarei lança por uma mulher

pois uma delas foi a causa de minha desgraça. Isto não significa que passei a

detestar as mulheres de forma indiscriminada. Embora me proporcionassem apenas

sofrimentos reconheço que podem fazer a felicidade de um homem."

A despeito disso Feirefiz continuou insistindo com Anfortas que o

acompanhasse, em consideração à irmã, mas ele se manteve irredutível. Por fim

pediu que pelo menos Loherangrin os acompanhasse, mas Condwiramurs recusou.

O Rei Parsifal também declinou do convite, argumentando: "Meu filho deverá se

dedicar ao serviço do Graal. Se Deus o guiar pelo caminho certo seu destino será

servir ao Graal."

Feirefiz permaneceu ali ainda por onze dias em meio a alegres festas e

entretenimentos. No décimo segundo dia o poderoso príncipe apresentou

despedidas pois pretendia em companhia da esposa juntar-se a seu exército. Suas

palavras de despedida encheram de tristeza o coração do fidelíssimo Parsifal.

Acolhendo orientação de seus conselheiros determinou que grande comitiva de

cavaleiros escoltasse o irmão até a orla da floresta. O bravo e belo Anfortas

concordou em fazer parte da escolta. A separação foi motivo de muitas lágrimas

entre as damas da corte.

601
Por ínvios caminhos seguiram eles rumo a Carcobra. Anfortas enviou

mensagem à cidade, lembrando ao burgrave os ricos presentes que dele recebera.

Teria agora oportunidade de retribuir a essa prova de consideração escoltando o

cunhado e a esposa deste, sua irmã, através da Floresta Laeprisin até o distante

porto natural onde a esquadra os aguardava.

Chegara o momento de despedida, pois os cavaleiros da escolta haviam

recebido instruções de não ir além daquele ponto. Cundrie, a maga, fora

encarregada de transmitir a mensagem ao burgrave. Despedindo-se dos templários

o poderoso príncipe prosseguiu viagem.

O burgrave atendeu a solicitação que Cundrie lhe transmitira. O poderoso

Feirefiz foi recebido ali com grande pompa e consideração e não precisou esperar

muito, pois pôde sem tardança prosseguir viagem acompanhado de magnífica

escolta. Não saberia nomear os numerosos países que atravessaram antes de

atingir a extensa planície de Joflanze. Como Feirefiz encontrasse ali apenas umas

poucas pessoas, quis saber o rumo que tomara o exército que lá se achava

acampado. Foi-lhe dito então que todos haviam regressado a seus países de

origem. O próprio Artur teria seguido para Schamilot. Ó senhor de Tribalibot não

tinha, pois razões em ali se deter por mais tempo. Regressou portanto a seu exército

que, embarcado, aguardava com grande ansiedade o regresso do soberano. Sua

volta restituiu-lhe a boa disposição. Ao regressarem a Carcobra o burgrave e os

seus foram agraciados com ricos presentes. Cundrie soube ali de uma importante

novidade: mensageiros vindos do Oriente haviam transmitido ao exército a notícia da

602
morte de Secundille. Desse modo pôde Repanse de Schoye prosseguir viagem sem

constrangimento.

Tempos depois, já instalada na índia, deu à luz um filho chamado João e

que passou a ser conhecido como Preste João. Desde então os sucessivos reis da

índia passaram a ostentar esse nome como título dinástico. Feirefiz tratou de

propagar na Índia a fé cristã que até então tivera poucos adeptos. O país que

conhecemos como Índia é ali chamado de Tribalibot. Feirefiz enviou, através de

Cundrie, notícias a Munsalvaesche informando o irmão sobre a vida que levava e

que Secundille havia falecido. Anfortas rejubilou-se com o fato de que a irmã seria

doravante a soberana inconteste de muitos e extensos reinos.

De minha parte tivestes aqui notícias fidedignas sobre os cinco filhos de

Frimurtel. Soubestes que levaram vida exemplar e que dois deles haviam morrido.

Uma era Tschoysian, na qual Deus não pôde descobrir a menor falta. A outra,

chamada Herzeloyde, sempre detestara a falsidade. Trevrizent, que renunciara à

espada e à dignidade de cavaleiro, vivia agora desfrutando da inefável amizade de

Deus enquanto aguardava a eterna recompensa reservada aos justos. O belo e

bravo Anfortas, manso e puro de coração, enfrentava com ânimo viril muitos

combates a serviço do Graal mas nunca mais consentiu em se pôr a serviço de uma

mulher.

603
13. A MISSÃO DE LOHERANGRIN

Loherangrin crescera, tornando-se um jovem vigoroso e destemido.

Depois de haver sido armado cavaleiro realizou memoráveis feitos a serviço do

Graal.

Quereis ouvir o desenlace desta história? Ao tempo dos fatos aqui

narrados reinava num país uma mulher nobre e irrepreensível. De estirpe tão ilustre

quanto poderosa, levava vida casta e apartada das frivolidades mundanas. Muitos

ilustres fidalgos, entre os quais muitas testas coroadas e numerosos príncipes,

pediam sua mão; mas era tamanho seu desprendimento que recusava

sistematicamente a pretensão desses príncipes. Tal atitude desagradou a muitos

condes de seu reino. Por que relutava ela em escolher um esposo que sobre eles

poderia reinar como digno soberano? Mas por mais que fosse hostilizada e

incriminada persistiu em entregar seu destino inteiramente a Deus. Por fim convocou

uma assembléia de notáveis do reino, à qual também compareceram representantes

de países estrangeiros. Ali fez o solene juramento de jamais se casar com um

homem a menos que se tratasse de algum predestinado por Deus para desposá-la.

Nesse caso aceitaria e prezaria sobremodo seu amor.

Tratava-se da princesa de Brabante. Eis que Munsalvaesche enviou o

cavaleiro que lhe fora destinado por Deus. Trazido por um cisne desembarcou em

604
Antuérpia. A princesa encontrou nele o esposo de que necessitava, pois se tratava

de pessoa irrepreensível, reputado por todos que chegaram a conhecê-lo de perto

como cavaleiro intrépido e bem parecido. Finamente educado, culto e isento de

fraquezas morais mostrava-se sempre acessível e generoso para todos.

Depois de ter sido recebido ali com honras dirigiu-se à bela soberana do

país em tom de voz que todo o povo ali reunido também pudesse ouvir: "Senhora

duquesa, se hoje aqui assumo o cargo de soberano deste país podeis estar certa de

que antes renunciei a outro não menos honroso. Agora ouvi o que gostaria de vos

pedir: Jamais indagai acerca de minha identidade. Enquanto não for feita tal

pergunta poderei permanecer convosco. Mas se a despeito disso vierdes a fazer um

dia semelhante indagação com-prometereis nossa felicidade. Caso não levardes a

sério esta advertência dia virá em que, cumprindo a vontade de Deus, terei de vos

deixar."

Ela lhe assegurou que levaria a sério sua advertência e cumpriria suas

recomendações enquanto Deus houvesse por bem iluminar-lhe a inteligência.

Naquela noite fê-la sua e se tornou príncipe de Brabante. Durante a festa

de núpcias, realizada em grande estilo, confirmou ele muitos fidalgos na posse de

seus feudos. Tratava-se não apenas de um magistrado íntegro como ainda de um

combatente de grande categoria que graças ao seu valor e sua força conquistava

sucessivas vitórias. Tiveram alguns filhos bem parecidos. Em Brabante muita gente

sabe contar até hoje como os dois se conheceram, quanto tempo ali permaneceu e

como, constrangido com suas perguntas, acabou partindo. Ele se tirou dali a

605
contragosto, pois não havia outra alternativa. Não muito depois de haver sido

formulada a funesta pergunta seu parceiro, o cisne, apareceu puxando empós si um

gracioso bote no qual o príncipe embarcou. Como lembrança deixou alguns objetos

pessoais: uma espada, uma trompa de caça e um anel. Dali partiu, pois Loherangrim

que, conforme foi dito, era filho de Parsifal. Cruzando terras e mares retornou a

Munsalvaesche, onde se pôs novamente a serviço do Graal.

14. EXCURSO FINAL DO POETA

Por que a nobre dama teve de perder seu belo e valoroso companheiro?

Deveis estar lembrados de que no momento de desembarcar o estranho lhe pediu

que jamais procurasse saber quem era. Neste ponto o comportamento de

Loherangrin foi diferente do de Erec238, cujas ameaças nunca foram além das

palavras.

Se Mestre Chrétien de Troyes não se mostrou muito fiel ao contar esta

mesma história então Kyot pode zangar-se com ele com razão, pois nos ofereceu a

versão autêntica desta narrativa. Concluindo, o Provençal conta como o filho de

Herzeloyde seguiu sua vocação conquistando a coroa do Graal que Anfortas

238
Erec. Refere-se às recriminações que a personagem "Erec" (na epopéia homônima de Hartmann von Aue) faz
a Enite por esta, preocupada com ele, haver transgredido o voto de silêncio. Embora a quebra desse voto
implicasse a morte, Enite continuou tranqüilamente viva.

606
perdera por não ter sabido honrá-la como devia. Foi oriunda da Provença que

chegou à Alemanha a versão autêntica da história, com o desenlace verdadeiro.

Tendo isso em boa consideração eu, Wolfram von Eschenbach, nada quero

acrescer às palavras daquele Mestre.

Fiel a esse texto contei-vos a história da estirpe e dos filhos de Parsifal,

cuja biografia desenvolvi até o ponto em que o personagem atingiu o ápice de sua

notável carreira. Quem no fim da vida pode dizer que se manteve fiel a Deus e

conservou sua alma livre do pecado e quem ademais soube, mediante um

comportamento digno, conservar o respeito de seus semelhantes, não se terá

esforçado em vão. Ao me ver concluir esta obra, haverá mulheres propensas a me

conceder um acréscimo de prestígio e se ela houver sido escrita para uma mulher

determinada, posso por certo dela esperar palavras de estímulo e de gratidão.

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