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Bom Retiro, meu amor

A ópera da diversidade
Luiz Alberto Sanz
Fotos: Graciela Rodriguez

O novo espetáculo do Teatro Popular União e Olho Vivo é, de todo o seu


repertório, o mais identificado com a concepção brechtiana de um teatro
épico, não aristotélico. As façanhas e desventuras de seus personagens e
das gentes que simbolizam são relatadas pelos atores e avivadas por
primorosos figurinos, adereços, objetos de cena, música, direção e
interpretações. Um mosaico no qual interagem os 53 anos da História
construída pelo grupo, a experiência de profissionais que a ele somaram
sua técnica e uma nova geração de intérpretes, muitos enfrentando o
público pela primeira vez neste domingo 16. Não-aristotélico,
contemporâneo e bem brasileiro.
Epopeia dos desvalidos
À medida que conta a história de Neriney Moreira e do TUOV, o
espetáculo descortina a vida dos migrantes que contribuíram para tornar o
bairro e a capital paulistana referências cosmopolitas, onde se enraizaram e
enraízam trabalhadores, artistas, educadores e esportistas, das mais
diferentes origens, e de seus descendentes. A marca cosmopolita está
expressa em cena, mas também na composição do elenco, sem ter sido
intencional. Basta ler a ficha técnica para encontrar nomes e sobrenomes
eslavos, judaicos, italianos, italianos, castelhanos e aqueles adotados pela
imensidão de escravos trazidos para dar conforto e fazer o trabalho sujo e
pesado para os primeiros colonizadores, fugidos da pobreza em Portugal e
tornados senhores na terra brasilis.
A cruel exploração da mão de obra começou com a captura, servidão e,
finalmente, dizimação dos orgulhosos e resilientes tupis e guaranis, seus
habitantes originais, lembrada cirurgicamente pelo Saci, boneco que se
torna um dos protagonistas continuou e continua com os africanos,
imigrantes forçados, judeus, turcos, árabes, bolivianos, italianos, coreanos,
refugiados econômicos e políticos que vieram “fazer a América”, aqui
descobriram que a vida não era tão acolhedora quanto esperavam.
Mas esta epopeia é contada e cantada à brasileira, com canções e palavras
fortes e belas, que nos fazem pensar e refletir. O público das duas sessões
de domingo (teatro à “antiga”, atores estreantes enfrentando duas sessões
“de cara”) evidenciava estar refletindo sobre o que se passava na
“passarela” da rua Newton Prado 766. Compenetrado, aplaudiu algumas
vezes em cena aberta e foi até o final pendente do que lhe diziam as vozes,
os olhares, a expressão corporal, as peças de vestuário e adereços, os
instrumentos musicais, a iluminação, o cenário minimalista, os objetos de
cena variados e de um refinamento notáveis, em contraste e, ao mesmo
tempo, dialogando com o velho galpão em que “mora” o TUOV. Fechado
portão, na escuridão do final, explodiu em aplausos. Não foram submetidos
à catarse aristotélica, mas levantaram-se para aplaudir de pé o chamado
para retomar a vida e agir para mudá-la.

Mosaico da Liberdade
A linha condutora da dramaturgia do TUOV é contar e fazer refletir sobre
as lutas de nosso povo pela Liberdade. É uma linha que, pelo caminho, foi
adotando métodos libertários e avançou no processo de criação coletiva,
presenteando-nos com este espetáculo pesquisado no bairro, nos livros, em
documentos e entrevistando quem pudesse contribuir para formar tal
mosaico, pois como diz o narrador, “tempo não é dinheiro, é o tecido de
nossas vidas”, criado e costurado em cena, ensaio por ensaio, para só virar
texto quando amadurecido como pedras que ferem a boca e só se tornam
palavras quando definitivamente ditas.

O filósofo Ued Maluf, meu colega e mestre, na sua Teoria das Estranhezas
formulou o conceito de “mosaico de isomorfos”, muito próximo às teorias
de Proudhon, que, simplificando, estabelece que um mosaico de isomorfos
apreciado no seu conjunto é uma “unidade diferenciada de alta
complexidade”, mas os isomorfos, que se modificam na mútua interação,
não perdem sua individualidade e podem ser apreciados como os
fragmentos que são. “Bom Retiro, meu amor” é um perfeito exemplo de
um mosaico de isomorfos. Seus fragmentos interagem e formam uma
unidade complexa, mas podem ser recombinados sem que o conjunto se
perca. O que eu quero dizer?

Quase todas as cenas podem ser mudadas de lugar, sem que a coerência da
história se perca, os atores, se necessário podem dizer as falas de outros,
acrescentando um elemento novo, uma “quebra dramática” à narrativa. E o
elenco não é homogêneo, não sofre dessa doença que infecta as artes e a
vida, a pasteurização. Eles são um coletivo, criam em conjunto, mas
mantêm sua individualidade: olham em nossos olhos com olhares pessoais
e intransferíveis; fazem suas coreografias e movem-se, mesmo em grupo,
com seus toques próprios, revelando, no “subtexto” o notável trabalho de
Marilda Alface, a preparadora corporal. É um teatro coletivo feito por
indivíduos, em um grupo teatral autogestionário.
A pergunta de uma imigrante, logo ao começo, “Quem é dono aqui” não
tem resposta possível e este espetáculo mostra isto. Provavelmente, não
seria o que Cesar Vieira teria escrito só, mas é o que grupo pôs em cena,
como queria pôr e que ele aclamou. Ali, naquele galpão, encenado como
Teatro de Cortejo, está o passado do União e Olho Vivo e do Bom Retiro,
mas está também seu presente e seu futuro, nos corpos e nos sentimentos
dos jovens que se somaram aos veteranos em busca de uma nova vida.

Ficha Técnica
Coordenação Geral: César Vieira (Idibal Pivetta), Graciela Rodriguez e Neriney
Moreira
Direção Teatral e Dramaturgia: César Vieira (Idibal Pivetta)
Co-Direção Teatral: Rogerio Tarifa
Comissão de Dramaturgia: Mei Hua Soares, Rogerio Guarapiran
Coordenação Artística, Cenografia e Figurino: Graciela Rodriguez
Direção Musical: Rogerio Guarapiran
Coordenação Musical: Cesinha Pivetta, Rogerio Guarapiran
Elenco: Ana Elisa, Angelita Alves, Babi Pacini, Danila Gonçalves, Dante Kanenas,
Edson Rocha, Flávia Sztutman, Juma Tanaka, Leandro Soussa, Lívia Loureiro, Lucas
Cruz, Mei Hua Soares, Neriney Moreira, Oswaldo Ribeiro, Pedro Fraga, Rogerio
Guarapiran|Músicos: Babi Pacini, Oswaldo Ribeiro, Pedro Fraga, Rogerio Guarapiran
Preparação corporal: Marilda Alface
Iluminação: Gil Teixeira
Assistência de Cenografia e Figurino: Lívia Loureiro
Ajudantes de Cenografia e Figurino: Juma Tanaka, Edson Rocha
Treinamento de Atuação: Luís Mármora Treinamento Vocal: Ester Freire
Colaboração na Pesquisa: Walter Quaglia e Luiz Alberto Sanz
Direção de Produção: Maria Tereza Urias
Produção: Natasha Karasek
Assistência de Produção: Renê Costanny
Assessoria de Imprensa: Luciana Gandelini
Registro Fotográfico: Graciela Rodriguez
Registro Audiovisual: Nana Ribeiro, Pedro Cortese
Design Gráfico: Julia Pinto

Temporada 12 a 20 de janeiro de 2019 - Sextas às 21h


Sábados e Domingos às 16h30 e 20h
Classificação: Livre - Ingressos: Gratuitos
Onde:
Teatro Popular União e Olho Vivo
Rua Newton Prado, 766, Bom Retiro – São Paulo-SP
Informações: (011) 33311001 / teatropopularuniaoeolhovivo@gmail.com
www.facebook.com/tuovivo

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