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ACERVO ONLINE | BRASIL

por Hélio Alexandre da Silva

junho 8, 2019

Imagem por Divulgação

De acordo com o Banco Mundial, o aumento da pobreza no


Brasil foi de 3%. Por menos impactante que possa parecer à
primeira vista, esse aumento atesta que 7,3 milhões de
brasileiros desceram alguns degraus na escala social e
passaram a sobreviver com até US$ 5,50 por dia, algo em
torno de R$ 22,00.
De Rousseau a Marx, de Kant a Rancière, a pobreza tem sido tema da
Filosofia, ainda que um tanto marginal. Sempre tida, ao menos na
aparência, como filha bastarda do processo civilizatório, a experiência
da falta e da privação não deixa de ser compreendida como um
problema de real grandeza, em boa medida graças às consequências
sociais que ela traz. Uma das formas de pensar filosoficamente o social é
compreender que ele qualifica as relações humanas nas quais os
mecanismos de reprodução e as experiências normativas estão
estreitamente imbricados.

Essas experiências normativas podem ser positivas (quando contribuem


para algum nível de cooperação social) ou negativas (quando aparecem
como fonte de sofrimento). Na medida em que alinham-se às formas de
sofrimento, fenômenos como a pobreza ganham particular interesse
filosófico.

Em documento recentemente publicado pelo Banco Mundial, “Efeitos


dos ciclos econômicos nos indicadores sociais da América Latina:
quando os sonhos encontram a realidade”, o órgão atualiza dados sobre
a pobreza no Brasil. O resultado trazido pelos pesquisadores é que, no
último período, o aumento da pobreza por aqui foi de 3%. Por menos
impactante que possa parecer à primeira vista, esse aumento atesta que
7,3 milhões de brasileiros desceram alguns degraus na escala social e
passaram a sobreviver com até US$ 5,50 por dia, o que a preço de hoje
significa algo em torno de R$ 22,00.

De fato, esse movimento não reflete exatamente um ponto fora da


De fato, esse movimento não reflete exatamente um ponto fora da
curva, ao contrário, as carências e o sofrimento social a que boa parte
dos brasileiros estão sistematicamente submetidos cimentam a história
de construção desse país. Já se atribuiu, inclusive, a um velho
mandatário nacional, quando questionado sobre as formas de lidar com
a questão social, uma frase que mal se equilibra entre o deboche e o
autoritarismo: “para mim, teria dito Washington Luís, a questão social é
um caso de polícia”. Assim, respeitando um traço já secular, poucas
vezes a equação entre o político e o social foi encaminhada fora dessa
métrica. No entanto, a regressão política dos últimos meses aprofundou
de tal modo esse cenário que nosso presente nunca foi tão capaz de
estender a mão ao que de pior houve em nosso passado.

Vista pelo ângulo das formas de crítica e de resistência ao


recrudescimento político que vem aprofundando o sofrimento social no
último período, é possível notar que, apesar dos recentes pesares, entre
nós não há abismo insuperável ou dominação sem resto. Tanto as
experiências históricas de resistência e luta popular quanto a boa
literatura produzida entre nós ajudam a ilustrar esse movimento, como
bem testemunha, por exemplo, o clássico Auto da Compadecida.

A pobreza, o descaso social e formas de autoritarismo são traços que


ajudam a compor o pano de fundo que ilumina a saga em que Chicó e
João Grilo costuram sua vida. A busca incessante por formas de lidar
com os limites e a opressão dramática produzida por um ambiente de
profunda privação é um dos modos de compreender a trama que
envolve esses personagens. Pobres e menosprezados socialmente,
tratados como vagabundos, vivem numa pequena vila com traços de
urbanidade rústica no Nordeste do Brasil.

O pouco obediente João Grilo se desdobra em artimanhas para lidar


O pouco obediente João Grilo se desdobra em artimanhas para lidar
com os poderosos da cidade – o padeiro e a esposa, que são seus
patrões, o major (que poderia ser capitão) Antônio Morais e os religiosos
que constam na peça, os quais vão do baixo ao alto clero, do sacristão ao
bispo. Esse rol de personagens configura uma metáfora social –
caricaturizada para o efeito de comicidade da encenação – dentro da
qual as ações de Chicó e João Grilo expõem seu funcionamento. Todos
os personagens envolvidos, exceto eles dois, agem conforme um amplo
e difuso conjunto de valores morais que se cristalizam em normas
sociais; no entanto, ao protagonizarem a cena, não apenas se recusam a
se subordinar a tais normas, como, cientes delas e se sabendo excluídos,
põem a nu a hipocrisia que a estrutura.

Os vagabundos Chicó e João Grilo têm na recusa aberta à opressão um


modo de vida. Ainda que fragilizados pelo lugar social que ocupam, eles
resistem, contrafactualmente, em ocupar o papel de oprimidos. Ante a
recusa do padre em abençoar a cachorra do patrão, Grilo inventa, cria,
arrisca o novo; diz que o animal pertence ao major. Como a paróquia e,
simbolicamente, toda a sociedade, está sob o poder do militar, o padre
muda o discurso repulsivo e de franca reprovação para o de cristão
comovido, numa clara revelação de que o poder da terra suplanta o
poder religioso, sendo inclusive capaz de modular a moral cristã de
acordo com a conveniência.

Entretanto, a contingência nem sempre é uma aliada, e a cachorra


morre antes da bênção. João Grilo, rápido, muda de planos e inventa,
cria e arrisca o novo, de novo. Dizendo que a cachorra era cristã e tinha
um testamento, no qual deixará dez contos de réis para a igreja,
convence o padre a realizar seu enterro com missa rezada em latim.
Mais uma vez o padre negará, mas ao saber da existência de um também
inventado testamento, mudará o discurso. Sim, mudará o discurso tendo
em vista exclusivamente o interesse privado e a manutenção de certo
ordenamento normativo.

A potencialidade crítica da imaginação de João Grilo mostra o que, de


fato, determina as ações dos moralmente frágeis e hipervalorizados
chefes religiosos e políticos; se antes era uma “besteira”, algo “ridículo”
ou mesmo proibido pelo código canônico, após a revelação do
testamento, a cachorra se torna merecedora inata das honras religiosas:
“que animal inteligente, que sentimento nobre!”.

João Grilo é o pobre que não adere aos favores dos poderosos; a seu
modo, ele sempre resiste. Por outro lado, é pelo favor que se pautam as
relações entre o clero e os ricos donos da padaria. Quando ele revela
que o padre teria abençoado a cachorra de Antônio de Morais, mas não
a deles, a mulher do padeiro argumenta que seu marido é “presidente da
Irmandade das Almas”, uma espécie de fiador último da justiça, da moral
e dos bons costumes das famílias de bem. Assim, se o padre não
abençoar a cachorra, o marido não só se demitirá do cargo como não
enviará um só pão para a irmandade; acresce à isso que não contribuirá
com as obras da igreja e confiscará até mesmo a vaquinha, emprestada à
igreja para fornecer leite. Essas justificativas reunidas terminam por
convencer o padre de que é preciso enterrar a cachorra – nessa altura já
morta sem ser abençoada – para que se faça cumprir o testamento do
“nobre animal”.

Ao enredar os poderosos em suas artimanhas João Grilo põe a nu a


hipocrisia das normas que orientam a sociedade em que vive, por isso é
tratado como “safado” e “vagabundo” como todos de sua laia.

No texto de Ariano Suassuna, João Grilo é referido por várias


No texto de Ariano Suassuna, João Grilo é referido por várias
personagens como um sujeito “amarelo”. O primeiro a fazê-lo é o padre
João, religioso de moral titubeante, ao explicar para o bispo de quem se
trata o tal moço que o fez confundir a esposa do major com uma
cachorra: “é um canalhinha amarelo” (poderia ser um “idiota útil”) e,
quando briga pelo mesmo motivo com João Grilo, afirma sentencioso:
“você não passa de um amarelo muito safado” quase um comunista,
arriscariam alguns viciados na hiper-interpretação própria dos nossos
dias.

Alguém já disse que, no Brasil, é o favor que instiga e orienta, ponto por
ponto, a incestuosa prática do compadrio, da exceção à regra e da
cultura que fomenta e remunera o interesse privado. Na obra de
Suassuna, ainda que relações dessa natureza sejam reproduzidas pelo
bispo, pelo padre e pelo padeiro, ela não é integralmente aceita e
reproduzida por João Grilo. Ao contrário, ele se insurge contra o major e
leva o religioso da vez a ofender sua esposa. Ao invés de “praticar a
dependência” ao representante do poder naquele momento, Grilo o
enfrenta. Ele não reproduz “a cultura do interesse privado” de
subserviência aos poderosos, mas alinhava atos de resistência como
recurso político praticado por um pobre que, a seu modo, é crítico do
poder dominante.

O espírito amarelo do pobre personagem vagabundo não se dobra ao


poder do representante da justiça que oprime os mais fracos, nem das
forças regressivas da religião. A pobreza o define tanto quanto a
imaginação e a insubmissão.
Um tanto combalida por não mais ocupar o trono de “mãe das ciências”
nem gozar de amplo reconhecimento social, a filosofia tem algo de João
Grilo. Insubmissa, imaginativa, crítica, está sempre às voltas com os
problemas sociais mais dramáticos, não necessariamente para resolvê-
los, mas certamente para evitar a naturalização de normas sociais que
aprofundam o sofrimento. Sempre haverá um esforço de reflexão, de
imaginação que estende a mão, dessa vez olhando para o futuro, aos que
são privados de tudo. A filosofia é capaz de procurar nos obscuros
subterrâneos sociais não a verdade, mas o resultado, o produto e o
reflexo dos acontecimentos que se desenvolvem na superfície.

Entre capitães, bispos e padres de um lado, e a miséria, o sofrimento e a


pobreza de outro, a filosofia nos capacita a perguntar, com sua
insubmissão, imaginação e crítica, qual expectativa de vida boa está no
horizonte de um projeto político que, diante da inconteste ampliação da
pobreza, da miséria e do desemprego, preocupa-se com o controle das
formas de manifestação afetiva não hegemônicas ou com a
universalização do porte de armas de fogo? Que modelo de sociedade
defende quem mostra maior preocupação com as formas de
manifestação de afeto do que com as formas de sofrimento social
causadas pelo abismo que marca o distanciamento crescente entre
ricos e pobres?

Diante de um major (ou de um capitão, tanto faz), de um mambembe


guardião da justiça ou de falsos religiosos de moral duvidosa, a filosofia,
com auxílio luxuoso de outras áreas do saber como a literatura e
personagens como João Grilo, sempre caminhará lado a lado com a
astúcia, a crítica, a imaginação e ordinariamente incomodará.

Professor Doutor de Filosofia da UNESP/Franca - Agradeço os


comentários sempre pertinentes de Heurisgleides Teixeira, mas assumo
a responsabilidade integral pelo texto.

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