Você está na página 1de 16

Teatro

Na prisão
dialética do
desejo

Rogério Viana

Curitiba – Paraná – Janeiro de 2010


(todos os direitos reservados)

1
Personagens

Martha – Mulher jovem. Ela é o que é. Ou o que imagina ser.

Solano – Homem jovem. Ele é o que é. Ou o que imagina ter.

©Rogério Viana
Rua Padre Anchieta, 2690 – apto. 1301
Bigorrilho – Curitiba – Paraná
CEP 80730 – 000

Fones 41 8803 7626 – 3078 8647

2
Na prisão dialética do desejo (Martha retira outro véu, suavemente)

A dúvida me consome. Consumo-me em mim


Cenário com sugestão de iluminação ou vice mesma. Quando penso ter alcançado um passo
versa – O palco deve ser dividido em três adiante qualquer, qualquer simples movimento
pernas de passagem (paralelas e bem próximas me faz balançar e a dúvida vem e se instala
à boca de cena) que são passarelas de luz que novamente. Consumida assim não me deixo
devem estar bem próximas entre si. Entre as fluir. Não permito corporificar nada além do
três pernas de passagem, dois espaços onde véu que cobre um semblante que se caracteriza
objetos de cena serão colocados. A luz que vai em nada ser, nada sendo, nada é. Nada sendo,
iluminar os objetos de cena deve ser não tenho capacidade de conquistar o tempo,
perpendicular à luz das pernas, das passagens. nem o espaço. Enfim, não consigo mesmo
Um quadrilátero no piso (com mais largura que existir ou viver. Não me permito ter desejos,
profundidade) delimita o espaço (e o tempo) nem posso me proporcionar um gozo a mais.
onde acontecem as ações. É sugestão, sugestão. Ah... como deve ser bom gozar um gozo a
mais! Sim, gozar... Um gozo a mais! Sim, como
1 – Os véus que escondem o nada deve ser bom...!

(Martha entra, na primeira perna, com a Símbolo do que poderia efetivamente ser, o real
cabeça coberta por finos e transparentes véus em mim é irrepresentável. O simbólico ganha
brancos. Veste uma roupa fluida, quase contornos trágicos, não se realizando. Nem na
inexistente. Cabelos longos e soltos, em imaginação permanece. Em que instância em
desalinho, livres) mim está o sonho, o desejo, o gozar, um gozar a
mais, um mais gozar?
Martha – Onde está esta mulher que em mim
teima em não se revelar? Serei eu ou outra (Martha retira mais um véu, suavemente)
serei? Que perigos corro se deixar-me revelar?
Posso perder-me nessa revelação? Ou a (os véus caídos no chão são levados pelo vento
revelação vai mostrar que o que se esconde que assola o espaço. Martha fica com sua
nada é? roupa fluida, quase inexistente)

(Martha retira um véu, suavemente) (entra Solano com uma impaciente calma)

Há tempos venho tentando me revelar. Mas o Solano – Você ainda não escolheu qual roupa
tempo, ah!... o tempo! Justamente ele é que faz vai usar? Mulher tem tanta dificuldade para
perder-me nessa dúvida diária que me consome, escolher uma simples roupa, não é, Martha?
que se materializa em dívida impagável, que
não me dá créditos para resgatar-me, nem hoje, Uma simples roupa para ser escolhida significa
nem amanhã, em nenhum prazo qualquer mais uma longa batalha entre você, seu guarda roupa
adiante... talvez, nunca... imenso, impensável e seu espelho cúmplice,
não é? Mas hoje ele está cúmplice de quem?
Onde estou em mim? Onde está essa mulher, Seu ou do guarda roupa onde nem um simples
translúcida, fluida, vazia? Essa mulher que véu consegue espaço para ser guardado?
deseja ser, desejando ter a si mesma.
Não precisa responder, eu entendo... sim, eu
Objeto de desejo de quem eu sou? Teimaria em entendo... Afinal, sou o único a quem você
dizer que desejaria ser a desejada de mim permitiria uma pergunta dessas, não é? Você
mesma. Teimaria em dizer que o desejo vai sabe que a festa tem horário para começar, não
além do ter. Suportaria ter sem ser? Teria sabe? A sua festa, por sinal...
suporte para ir além do ser?

3
(Martha afasta-se para a segunda perna em que foram desejados, comprados, pagos e
iluminada. A luz se apaga em Solano) empacotados? Talvez a diferença esteja aí. No
momento da compra. Apenas aí.
(uma arara com vários vestidos e acessórios Tem certas horas que não consigo entender
femininos é iluminada) como é que você consegue tomar decisões
importantes em seu trabalho sem que tenha que
Martha - Ainda não sei qual será o modelo que aumentar o custo delas, sem ter que elevar este
vou usar na festa do meu aniversário de 25 anos custo a um patamar impensável. Sim, estou
que aconteceu há quase um ano. Não sei qual falando no tempo que você demora para tomar
modelo vou usar. uma decisão... Como consegue ser eficaz,
produtiva e dar lucro à sua empresa se, em sua
Talvez eu use dois, diferentes. Um para o vida, você é tão insegura, lenta, demorada
começo da festa. Este deverá ser bem quando tem que fazer suas escolhas?
sofisticado, de grife, que tenha a minha cara.
Que expresse minha personalidade. Minha mãe sempre diz que, no tempo dela, um
vestido novo era motivo de muita festa. Você
O outro, já para o meio da festa, deve ser usaria um só vestido numa festa, pensa em dois
também de grife, claro, mas será uma peça mais diferentes e compra quatro.
despojada, para me dar mais liberdade para
dançar muito, para abraçar muito meus amigos Já escolheu, querida?
e amigas, para eu tirá-lo com mais facilidade
quando chegar a hora de ficar sozinha ao lado Martha – Ainda não sei...
dele.
Solano – Foi sempre assim?
Esta dúvida está comigo há quase um ano.
Ainda não sei qual será o modelo que vou usar Martha – Ainda não sei...
no começo da festa. Qual será o outro que vou
trocar para a parte final da festa do meu Solano – Foi sempre assim?
aniversário de 25 anos, o que se passou há um
ano. Ainda estou em dúvida. Martha – Quer fazer o favor de não encher a
minha paciência, o meu saco! Não tenho tempo
Meu desejo sempre aumenta minha dúvida. para discutir com você o que sua mãe – aquela
Mas, na dúvida, busco um desejo maior, que me pobre coitada – vive falando sobre a pouca
complete. roupa que ela tinha...

(Solano vai para a segunda perna iluminada Solano – Não consigo entender isso em você...
onde está Martha)
Martha – Que isso, isso o quê? O quer dizer?
Solano – Foi com essa motivação que você teve
que comprar quatro vestidos diferentes, quatro Solano – Foi sempre assim?
sapatos diferentes e quatro bolsas diferentes,
além dos brincos diferentes – enormes, sempre, Martha – Ainda não sei...
por sinal – das pulseiras, colares, cintos
diferentes? E sem contar as lingeries Solano – Foi sempre assim, insegura?
extravagantes, sim aqueles quatro conjuntos
diferentes? Para mim, todos eles, Martha – Não é uma questão de insegurança,
indistintamente, parecem ser apenas um. Um só. você sabe que sou muito segura. Sei tomar
Nada, aos meus olhos, os diferenciam entre si. decisões. Mas elas têm um tempo para
Nenhuma das peças parece ser diferente. Será acontecerem. Não aparecem como num passe
que a diferença entre eles possa ser o momento de mágica. Preciso de tempo para tomar a

4
decisão acertada. No meu trabalho tenho um (som de celular tocando. Solano vai para a
“timing” preciso para isso. No meu trabalho, última - p3 - perna da luz. Martha permanece
tenho. na p2, sem luz. A cada fala a luz acende sobre
os personagens em cada posição onde estão)
Solano – Mas quatro vestidos? Todos são muito
parecidos com as centenas – tem vezes que me Solano – Alô... desculpe, não ouvi você ligar...
parecem milhares - que você tem no seu Estava aqui distraído, absorto em pensamentos.
closet... Eu diria que todos são exatamente Claro, todos eles com você, claro... Você vai?
iguais. Sem mínimas diferenciações. Todos… Passo a que horas para pega-la, querida?

Martha – Você pode esperar mais um pouco, Martha – Ainda não sei... mas você pode me
meu amor? Só mais um pouco. A moça foi ver pegar às 21, pode ser?
se tem um do meu número. Adorei este modelo
lindíssimo, este belo e sensual vestido Solano – Vou chegar um pouco mais cedo.
vermelho... Assim tomo um uisquinho antes, combinado?

Solano – Outro vestido vermelho? Você tem (Martha vai para a primeira perna – p1 – e a
tantos parecidos com esse. Quem olha para luz a ilumina. Ela está com duas bolsas iguais
você pensa que você tem só um vestido nas mãos)
vermelho...
Martha – Que prazer me dá fazer compras! É
Eu não vejo diferença entre eles. Nenhuma um prazer que não consigo explicar. Um prazer
diferença. imenso, indescritível mesmo. Entre tantos
apelos, perco-me em quase todos. Tento manter
Não, não... não precisa me explicar. Eu sei, eu um foco sobre questões essenciais, mas o apelo
sei... não é a cor, é o modelo em si, o tecido, a daquele objeto sempre desvia minha atenção e
marca, o estilista... isso sim é o que tem me conduz até ele de um modo que não tenho
importância, não é? como resistir. Quero aquele objeto como se ele
fosse vital para a minha serenidade. Não...
Martha – Não sei por que você fica assim com muito mais, para minha felicidade. Também,
essa cara quando vai ao shopping comigo. não... quero para minha saciedade... Tenho
Devia disfarçar um pouco melhor e não dar ganas de prazer só ao olhar para alguma coisa
tanto na cara que está comigo só por... que me desperta a atenção. Ganas... sim... As
bolsas, ah! As bolsas! Como elas me atraem.
Solano – Você acha que é apenas por...? Como!

Martha – Lembre-se: o dinheiro é meu, o cartão Eu nem te conto, querida... Essa bolsa, simples
de crédito é meu. As minhas contas sou eu você vai dizer, bem simples, não é? Pois bem,
quem consegue pagar. Se esqueceu? essa simples bolsa custou-me, no mínimo, três
orgasmos a menos... Sim, três orgasmos...
Solano – Mas eu preciso entender como é que Or...gas...mos... Acha pouco só três? Mas os
você consegue investir tanto dinheiro em coisas meus são orgasmos múltiplos, minha querida...
que não terão mais valor daqui a uma semana... Múltiplos. Correspondem a pelos menos a
Tanto dinheiro por coisas tão iguais. dezoito dos seus bem simples, dos seus simples
orgasmos fisiológicos, infantis, clitoridianos...
Martha – Os meus vestidos e as minhas coisas,
eu pago. Você cuida dos seus brinquedinhos (simula um orgasmo fugaz)
eletrônicos, está bem? Seu smart-phone parece
estar tocando... Essa outra, sim essa outra, com design especial,
já custou bem mais, muito mais... Custou-me

5
doze orgasmos a menos... Sim, doze... entendeu (Solano vai para a segunda perna e beija o
bem? Doze, sim, doze orgasmos a menos. rosto de Martha)

Perdeu a conta... vou ajudá-la a entender a Martha – Como estou?


quantidade, comparando aos seus orgasmos
mínimos, infantis, desinteressantes... Na sua Solano – Linda como sempre... Não demorou
contabilidade seriam setenta e dois orgasmos nada, desta vez! Onde vamos?
dos seus... Perto de quatro anos de orgasmos
seus, querida... Perto de quatro anos! Acha que Martha – Pensei em ir ao cinema. Ou ao teatro.
é exagero? Você sabe que gosto de ser surpreendida por
programas não programados com antecedência.
Pois eu lhe digo: não é! São mais excitantes...

(simula outro orgasmo, desta vez menos fugaz) Solano – Está bem... Sei onde vou levá-la...

Você entende o que é e o que vale um orgasmo (cai a luz)


a menos? Consegue entender a dimensão do que
seja isso? Um orgasmo a menos, na minha 2 – Nada muda, permuta
regra, ou padrão, como queira, é o prazer
supremo, o gozo máximo, a completude que me (Martha vai para a primeira perna. Solano fica
invade a cada objeto que consigo comprar na terceira perna. Os diálogos se desenvolvem
depois de ter desejado apenas com um simples no dinamismo da luz que acende e que apaga
olhar, num simples momento de desejo. O em cada espaço-tempo do cenário)
objeto exerce em mim um fascínio que as
simples mortais – como a infeliz mãe daquele Martha – Como você me vê?
um – não conseguem entender, muito menos
avaliar. Solano – Fraca...

Por me darem tanto prazer, por me Martha – Apenas?


proporcionarem gozos indescritíveis é que, cada
vez mais, eu quero me fascinar por objetos tão Solano – E a mim?
especiais quanto essas duas incomparáveis
bolsas. Martha – Corajoso...

Elas sempre valem os orgasmos a menos que eu Solano – Só?


pago!
Martha – Ativo e forte...
(Martha vai para a segunda perna, mas ainda
sem iluminação. Solano entra e fica na Solano – Passível de fazer de tudo para agradar
primeira perna e tem um copo de uísque na um homem quando ele a interessa...
mão)
Martha – Você tem um senso de justiça...
Solano – Ainda bem que o uísque pode me
fazer companhia nesta espera. Como ela demora Solano – Você aceita as injustiças sem
para decidir qual vestido vai usar! Bem, o questioná-las.
dezoito anos, rótulo azul, faz valer a pena
esperar! Martha – A inteligência não é seu forte. Seu
físico, sim.
(Martha veste um vestido vermelho que estava
na arara) Solano – Você tem uma inteligência prática.

6
Martha – Temos que ser diferentes para nos pretensamente diz como sua fala mesmo.
completarmos.
Solano – Nenhum vento mais forte conseguirá
Solano – Eu amo. Mas você faz do amor um retirar sua real máscara. Tenho que reconhecer.
desejo todo próprio. Todo seu. Nenhum vento, vendaval, furacão moverá sua
real máscara, neste semblante de impávida
Martha – Não sei atacar. Tenho preferência por deusa. Nada é real em você. Nem o disfarce da
estabelecer estratégias de defesa bem timidez que esconde a fraca força que
articuladas. pretensamente apresenta em público.

Solano – Sua audácia é ser extremamente Martha – Então minha força é ser fraca?
tímida.
Solano – A mim, isso é uma verdade.
Martha – Acredita que eu sempre esteja
mentindo? Martha – Você está subestimando algo que a
mim é muito caro.
Solano – Manipula muito bem alguns
sentimentos. Não entendo muito bem como isso Solano – O que seria?
se dá, mas...
Martha – Eu sou a senhora dos meus desejos.
Martha – Você, pelo que sei, também
manipula... Mas isso é com você... sabe, Solano – Não... você é senhora das suas
manipula o que lhe parece um troféu, seu pau, carências e inseguranças.
por exemplo. Sempre pronto para mostrar
presença. Faço assim, estalo os dedos e ele já Martha – Apenas?
está a postos. Pronto para servir-me.
Solano – Mas creio que elas possam ajudá-la a
Solano – O que você fala sempre tem um certo atingir alguns dos seus objetivos.
ar do que não é mesmo sua fala. Como se a fala
escondesse o que não sabe dizer. Ou pode dizer. Martha – Quais? Consegue apontar algum?

Martha – Como você me vê? Só assim? Solano – Ter completo domínio sobre seu
pensamento.
Solano – Você é a dona da casa. A casa do seu
desejo. Ele sim, o desejo, é o senhor que Martha – Mas eu tenho. Não preciso de
comanda sua vida. Suas ações. Seu tímido jeito artifícios para atingir esse objetivo primário.
de ser agressiva e manipuladora.
Solano – Você se esquece que não domina
Martha – É a mim que você vê assim? nada. Eu disse que você é senhora das suas
carências e inseguranças. Sendo assim, não tem
Solano – Fraca... que esconde uma força como dominar seu pensamento. Talvez finja.
inexistente que me causa estranhamento. Talvez simule. Talvez imagine. Mas no real,
nada disso pode acontecer. Um pensamento
Martha – Como você me vê? fugidio. Inseguro, insistente, mas inseguro. Não
se sustenta no que é mesmo real. Apenas
Solano – Fraca... por ser forte. Só nas fulgura no campo do sonho, da imaginação.
aparências e contradições.
Martha – Eu o desejei e você veio a mim como
Martha – Não é um paradoxo o que vê em uma simples bolsa azul.
mim? Ou o paradoxo está na sua fala? No que

7
Solano – Imagina ter tido o poder de me atrair? 3 – Eu não a sinto, eu não tenho respostas...
Esquece que foi você quem olhava
insistentemente para mim naquele bar? (Solano vai para a primeira perna. Martha vai
para a segunda e fica mexendo nos vestidos da
Martha – Não precisei de mais nada. Só um arara. Uma luz azul forte lateral ilumina
olhar. E você veio senhor de si. Como um Solano)
cavalheiro medieval com sua lança em riste!
(Solano está com um comando de vídeo-game
Solano – Você foi uma presa fácil demais para nas mãos, jogando, jogando)
eu contabilizar como uma mulher a mais
conquistada. Solano – Sou louco por jogos, mas esse aqui
está me deixando maluco! Coisa insana, rapaz!
Martha – Apenas como mais uma mulher? Insana! A primeira coisa a me surpreender é que
não vem com nenhum manual de instruções. Os
Solano – Não conto mais mulheres como você comandos parecem ser os mesmos a outros
na relação de minhas conquistas. jogos. Mas não são. Não consigo descobrir
como devo fazer para atingir um estágio acima
Martha – Como você não enxerga mesmo o do que é apenas o começo do jogo. Como devo
que a mim deva ser creditado... fazer para avançar? Ver melhor os resultados.
Enxergar isso ao meu comando. Como? Minha
Solano – Acredita que a conquistadora tenha resposta é: Não sei! E o pior, não sei e não
sido você? Tem consciência disso como irreal? consigo encontrar uma explicação, nem uma
dica, muito menos uma instrução segura. Vá por
Martha – Eu sei, do meu modo, exercer aqui, faça isso, faça aquilo. Sem orientação,
fascínio sobre os homens. E você deixou-se estou tentando descobrir como devo fazer. Mas
abater imaginando ter sido o conquistador, não tenho que confessar minha absoluta
a cidadela a ser conquistada. Eu sou a dona da incapacidade para descobrir algo além do
casa. Está em sua fala, no que disse antes. básico, do primeiro estágio desse jogo. Insano,
jogo insano, rapaz! Quem poderá me ajudar?
Solano – Não vou perder tempo em uma Em minhas mãos, parece que nem ajuda
discussão estéril como essa. Nem vou prender- funciona. Tentei ler. Não encontrei nada a dar
me a questões meramente semânticas. uma orientação segura. Tentei conversar com
jogadores mais vividos e experientes. Ninguém
Martha – Tenho a impressão que seus nem sabia que pudesse haver uma orientação
argumentos se esgotaram ou você perdeu-se em para esse tipo de desafio. Sobre o jogo mesmo,
seu arrazoado. o máximo que me disseram foi: investigue, crie,
arrisque, bote a cara para bater, experimente,
Solano – Não perco mais meu tempo em não tenha medo, siga seu instinto.
discutir essas razões sem importância. Eu a tive
quando quis, como quis. Você veio, entregou-se. Funcionou? Funcionou?
Gemeu, gritou... deixou-se dominar pela lança
do cavalheiro negro! Que nada! Não funciona! E eu fico com o
abacaxi na mão, pois não obtenho respostas,
Martha – Pobre cavalheiro negro! Eu gozo embora, confesso, seja muito interessante tentar
mais, muito mais, muito mais mesmo quando descobrir algo além do primeiro estágio.
compro uma bolsa. Quando compro duas... ou
três, ou quatro... Pode avaliar isso, cavalheiro O pior de tudo é que o jogo não fala comigo,
negro? Você custou um orgasmo a menos! não me dá respostas claras, tudo é muito
cifrado, misterioso, as mensagens sempre
(cai a luz bruscamente) aparecem em horas inapropriadas e quando

8
parecem ser claras, não são. Quando penso: Vamos, repita, repita...
acertei! Desta vez, acertei! Que nada, rapaz!
Deu tudo errado, funcionou ao contrário. O que você disse?
Pensei, agora vai. E não foi. Quando pensava
que não ia. A coisa ia. Mas, por um descuido, (Escuta em silêncio e joga o controle do jogo
uma falta de atenção. Tudo voltava ao estágio no chão. Faz uma cara de espanto e desliga o
inicial. Que coisa! Tenho pensado seriamente celular)
em desistir. Sim, desistir mesmo. Não me vejo
conseguindo vencer esse desafio que parece ser Não teve jeito. Ela disse que fui reprovado. Que
simples e que, eu sei, eu sei, está em minhas não tenho a mínima habilidade para entende-la.
mãos, apenas em minhas mãos. Nem consigo faze-la feliz. Que não tenho como
faze-la mais feliz. Pois falta-me uma habilidade
Estou tendo uma impressão que este jogo não se essencial: tenho que aprender a apertar os
assemelha em nada com outros jogos, com os comandos certos. Certo botãozinho que eu não
sistemas aparentemente parecidos de outros sei como funciona direito. E que todos os meus
jogos. Ou eu estava muito equivocado com os esforços foram em vão, pois, ao contrário de eu
outros jogos, ou esse aqui é mesmo especial. lhe dar prazer, eu só consegui irritá-la com
Mas cheio de armadilhas, de desvios, de falsas minha inabilidade em conhecer o incrível jogo
pistas. Certeza disso tudo não tenho. Aliás, tudo do corpo dessa mulher insana, insana, rapaz!
é incerto. Até quando eu tinha achado que a
coisa estava indo muito bem, estava, muito pelo Ah, se ela fosse um vídeo game!
contrário, indo pra baixo, regredindo.
Mas ela me disse que não é um jogo. Disse-me
O que devo fazer? Será que desisto ou insisto que não é mulher. Disse-me e repetiu: Não sou
um pouquinho mais! mulher. Eu sou uma mulher. Eu sou uma
mulher, você entendeu? Você tem que descobrir
(som de um celular tocando) qual é a misteriosa chave que vai me fazer mais
feliz, mais bonita, mais desejada, mais única,
(Solano fica movimentando o comando do vídeo menos inconfundível com outras. Você vai ter
game e não fala nada) que aprender a me fazer gozar mais, ter mais
desejo e aceitar isso de um jeito natural.
(o som de um celular volta a tocar mais vezes)
Confesso. Não tenho mesmo capacidade de
Detesto esta porcaria! É tudo muito fácil. Sou fazer o jogo com essa mulher, essa mulher que
mesmo imbatível neste jogo. Imbatível... diz não ser mulher, mas sim, uma mulher!!!

(som de um celular tocando) Afinal, o que quer uma mulher?

É ela! Como demorou para me chamar! Eu tentei, tentei mesmo, insisti, insisti, fui além
dos meus limites, muito além, mas a resposta
(atende ao celular) para essa simples pergunta continua sem
resposta. Afinal, o que quer uma mulher?
Oi... (fica em silêncio)
Não sei o que responder. Não sei dar nenhuma
O quê? (silêncio maior, preocupado) resposta.

Pode repetir? O que foi mesmo que você disse? Será que um dia eu vou saber? O que quer uma
Pode repetir? Vamos, diga... repita. Mas não mulher? O que uma mulher quer?
precisa ficar tão brava assim. Eu pedi para você
repetir, apenas repetir. Vamos, repita... Repita... (cai a luz em resistência, suavemente)

9
4 – A misteriosa chama da rainha Loana É uma afirmação tão verdadeira que acabei,
agorinha mesmo, de me questionar se é isso
(Martha e Solano vão para a primeira perna de mesmo o que eu deveria ter dito. Será que não
mãos dadas. A luz foca apenas Martha sei o que quero ou será que sei o que não quero?

Martha – Sei que é difícil entender, muitas Espera... espera... vou tentar reformular a
vezes, o que quero. Parece, do meu lado, que questão: será que não sei o que quero ou será
dou todas as informações precisas para que me que não sei o que não quero? Em resumo, não
entendam. Exijo que me entendam, mas sei que sei mesmo o que quero, como também, não sei
é difícil entender o que quero. mesmo o que não quero. É uma dúvida perversa
essa... Que atormenta!
E você sabe por quê?
Entre não saber o que quero e saber o que não
É porque eu não sei exatamente o que quero! quero, só sei que esse trânsito me leva sempre a
uma só saída: sempre desejar mais, mais, mais
Simples assim: Não sei o que quero! e, no desejo, não ter, nunca, nunca mesmo,
nenhuma resposta confortável para realizar isso
Se quero comprar um novo vestido e me ou aquilo.
aparece um lindo modelo de cor azul, eu quero
aquele vestido a todo custo. Mas na hora de Sei que não deveria estar aqui apresentando,
provar, de experimentar, de avaliar diante do publicamente, essa dúvida em que se encerra a
espelho, já não era bem aquilo, o tecido não é questão do que representa o desejo em mim.
tão gostoso ao toque e a cor, ah, o azul não fica
nada bem. A solução é pedir: tem um igual na Revelar, assim, o que o desejo é em mim não
cor vermelha? me agrada nada, até porque torna-me frágil,
vulnerável, um telhado enorme de vidro para
Mas esse “não sei o que quero” não diz respeito que atirem maledicências, críticas infundadas,
apenas para questões de produtos, de objetos observações preconceituosas, olhares
que despertam o meu desejo mais intenso, indiscretos e, sobretudo, muita inveja. Sim,
minha pulsão por comprar, comprar, comprar... inveja. Sabe o que é inveja?
O “não sei o que quero” é constante em outros
aspectos de minha vida. Não sei se quero amar Sei que desperto inveja em muitas pessoas. Em
desse jeito ou se prefiro de outro. Não sei se mulheres, sobretudo. Mas, ao mesmo tempo,
vou ligar para minha mãe ou se prefiro esperar como eu invejo outras! Como eu queria ter,
para que ela me ligue. Que coisa! Será que dessas mulheres, o que não consigo com
sempre sou eu a tomar a iniciativa para tudo? nenhuma forma de esforço. Eu invejo, sim. E
Estou com o saco cheio de ser responsável por essa inveja não é aquele desejo violento de
todas as iniciativas, por todos os sim e os não. possuir o bem alheio, mas sim o de querer ser
Gostaria muito, muito mesmo, de nem dizer não aquela pessoa e ter a felicidade que ela parece
sempre, nem dizer sim sempre. Quero ter o ter. Sabe, ter e ser ao mesmo tempo...
poder de olhar, de ouvir uma indagação e dizer
apenas: talvez. Ou, quem sabe. Melhor ainda, Vira o espelho para lá. Chega de me ver repetir
pode ser. Será que vou conseguir isso? Meu essa mesma cena centenas, milhares de vezes...
desejo é poder trafegar com mais calma, com
mais tranqüilidade e menos afobação entre o Sim, por favor, quero o modelo igual ao azul,
sim e o não. Sem esperar, de mim mesma, mas apenas se for vermelho. Um vermelho bem
outros tipos de cobranças ou de dúvidas. intenso. Chega de cores sem calor. Se é para
provocar inveja que todas morram de inveja
Não sei o que quero! com o sucesso vermelho que meu desejo
proporciona, provoca.

10
5 – Vermelho pra que te quero vermelho mulheres me invejarem. E a inveja leva à raiva.
E a raiva injeta nelas a cor vermelha. Nos olhos,
(Solano traz a arara e a coloca entre ele e na face. Sei que há mulheres que são tão
Martha, como se fosse um biombo, uma parede. invejosas, mas tão invejosas, se encontram com
Solano fala entre as roupas, escondendo-se) alguém a quem invejam, mas detestam, podem
ficar, instantaneamente menstruadas...
(A luz acende e apaga, e alternadamente, na
fala de um e na fala do outro. Solano fala no Solano – Que viagem!
escuro. Martha está com luz. Martha fala no
escuro. Solano está com luz. Nunca a Martha – É sim... já ouvi alguém comentando
iluminação mostra quem está falando, nunca, é isso...
um pedido embora possa ser uma regra, afinal
não sou o diretor, nem o iluminador, não é?) Solano – Pessoas assim merecem cuidados
especiais... devem se tratar...
Solano – Será que você gosta de vestidos
vermelhos apenas pelo fato deles serem Martha – Cuidado com o que você fala...
vermelhos?
Solano – Mas é mesmo. Pessoas assim devem
(Martha não percebe a pergunta) consultar de cara um psiquiatra.

Será que você gosta de vestidos vermelhos Martha – Cuidado... indicar um psiquiatra para
apenas pelo fato deles serem vermelhos? alguém pode ser, ao contrário de mostrar
cuidado, uma afronta, uma agressão muito
(Martha reage fisicamente à pergunta, grande.
inquietando-se)
Solano – Mas você já consultou algum?
Martha – Você falou alguma coisa?
Martha – O quê?
Solano – O que o vermelho representa para
você? Solano – Sim... você já consultou algum
psiquiatra?
Martha – Antes de mais nada, para dar uma
resposta bem simples, que você já sabe qual é, o Martha – Sabia que você ia vir com esse tipo
vermelho representa sucesso. de agressão...

Solano – Está falando sério? Solano – Mas não é agressão. É cuidado. Estou
muito preocupado com sua fixação pela cor
Martha – Como sempre. vermelha de seus vestidos.

Solano – Não parece. Martha – Mas eu tenho tão poucos vestidos


vermelhos? Conheço mulheres que tem mais de
Martha – Falo sim. cem vestidos azuis. Outras, mais de cem verdes.
Há uma colega de trabalho que só se veste de
Solano – Uma coisa não tem a ver com outra. cor de rosa...
Não dá para representar o sucesso por uma cor
que tem por característica representar a guerra, Solano – Mas, responda: você já consultou um
a cólera, a vergonha... ou uma falida doutrina psiquiatra? Vamos, responda.
política que não se concebe mais entre nós...
Martha – A bem da verdade, ainda não.
Martha – Meu sucesso sempre faz muitas

11
Solano – Ainda não? Então passou por sua relação acaba afrouxando. Não se sustenta,
cabeça consultar um? assim. O amante deve ter seus segredos e
guarda-los muito bem para que a relação não se
Martha – Como assim? torne promíscua. A relação fica mais saudável
assim. Um não invade a fortificação do outro
Solano – Ainda... você disse ainda... ainda onde determinado segredo está alojado.
não...
Você poderá dizer que certos segredos podem
Martha – Acha mesmo que eu devo? sofrer de uma relativa toxicidade. Você sabe:
certos segredos são tóxicos mesmo, pois com o
Solano – Não fará mal se consultar. Pode ajudar passar do tempo podem contaminar as paredes
em outras questões suas... onde estão guardados. E o que foi apenas
sussurrado, lá, naquele tempo, se intoxica; o
Martha – O quê? Meu querido, acho que você que foi abafado antes tem vontade de trovejar
passou dos limites... agora, não se contenta apenas em berrar mais
alto, tornar-se evidente, mas quer atordoar além
Solano – Não, não passei mesmo... do ouvido, da consciência.

Martha – Não estou gostando do rumo em que Eu tento defender o espaço onde certos
nossa conversa está tomando... segredos meus estão muito bem escondidos. É a
zona necessária de preservação deles. Se foram
Solano – Nossa conversa? Que raios de nossa para lá, lá ficarão. Não posso permitir que
conversa? invadam como um cavalo-de-tróia, como um
presente que é uma armadilha. Tenho
Martha – Sim, esse nosso diálogo, aqui... consciência de que a pressão possa ser
insuportável, mas determinada a não ceder,
Solano – Dona... dona... a senhora está falando simplesmente não cedo. E mantenho
sozinha... resguardados os segredos que há tempos me
foram balbuciados inadvertidamente.
(cai a luz, bruscamente)
Não tente invadir essa zona. Não tente. Será
6 – Zona de segredos necessária pura perda de tempo. Além do que, certos
segredos só valem mesmo para quem os guarda.
(a arara será colocada paralela à boca de
cena) Vá com calma, sim? Não tente desvendar-me
por inteiro. Vá que os véus retirados possam
Martha – Nem tudo é o que parece ser. Guardar revelar apenas o nada. Ao contrário do que você
certos segredos numa dimensão mística e não esperava, imaginando o todo.
permitir que eles, uma só vez, possam ser
compartilhados dá a eles uma dimensão maior Não pretendo, no meu turno, penetrar em seus
do que realmente são. Maiores os segredos, segredos. Não vale a pena o esforço. Pode dar
maiores os cuidados. Mas o espaço mútuo de mais trabalho e não resultar em nada. Está
quem se ama deve ser preservado, respeitado, combinado assim?
sobretudo. Não se pode permitir que certos
segredos saiam daquela zona segura onde os Você com seus segredos. Os meus guardados
segredos devem permanecer. O mistério é um estão, guardados ficarão. Nada além. Nada.
bom combustível para o amor, para a paixão.
Por esse motivo é que entre as pessoas que se (Solano troca de lugar com Martha. Vai para
amam não se deve ir abrindo seus pequenos onde ela estava. Martha passa por trás da
segredos a torto e a direito. Não se deve. A arara)

12
Solano – Quando você divaga – e isso você faz inicial fora de nossa conversa. É sobre esse
seguidas vezes – não expõe meio que sem mesmo tema que estamos dialogando desde o
querer, um pouco do que você é? início. Você concorda?

Martha – Não havia pensado nisso. Mas, quem Martha – Ficar mastigando assim não vai levar
sabe... a nada.

Solano – E, fala aqui, fala lá, fala um pouco, Solano – O mesmo vestido vermelho, seguidas
hoje, depois amanhã acrescenta algo... e a vezes sendo comprado, comprado, comprado...
revelação de alguns segredos começa a ganhar
forma... contornos mais ou menos nítidos. Martha – Um equívoco seu, querido.

Martha – Não... não mesmo... Solano – Mas você só compra o mesmo vestido
vermelho, sempre.
Solano – O tal segredo guardado lá naquele
lugar inacessível se mostra. Claro, nem todas as Martha – Não, querido. Eu desejo sempre um
pessoas têm capacidade de ir formando esse mesmo padrão de vestido. Por uma
entendimento, ligando um ponto aqui, um coincidência, um vestido vermelho. Mas não é o
pouco ali mais adiante e nos poucos pontos vestido vermelho. É um vestido vermelho. O
forma-se uma imagem mais delineada, visível. vestido vermelho é uma coisa. Um vestido
vermelho é outra completamente diferente.
Martha – Será? Pensando assim... bem, talvez o
segredo queira se revelar como num enigma. Solano – O vestido ou um vestido, para mim é a
Indica um caminho que pode ou não ser o mesma coisa.
verdadeiro. Mas o verdadeiro, já sabemos,
nunca é o real. Não é um truque de palavras, Martha – Não, meu amor. Tenho que adotar
mas uma comprovação. Pense sob esse aspecto. uma postura bem maternal para lhe explicar. O
vestido é genérico. Um vestido reveste-se de
Solano – Pode ser. Mas, voltando... Quer me singularidades. Não procuro o genérico. O e
parecer que você tem entranhado em si um somente o. Busco, pelo meu desejo, um... um...
segredo que não é tão misterioso assim. um mais... um além... um interminável. Dá para
entender?
Martha – Você quer reduzir tudo a um só
aspecto muito simplista. Nem tudo é o que Solano – Não consigo enxergar, ainda, essa
parece ser, já foi colocado isso. diferença. Parece-me que é sutil, eu sei, eu sei...
mas essa diferença só tem força pelo que você
Solano – Não é querer ser reducionista. Síntese diz, não pelo modo como você tem agido.
não é redução. Síntese é ampliar esse fator
simplista para algo mais abrangente. Mas nada Martha – Percebe, então, que sua teoria de que
de teoria, ok? Sejamos práticos, pode ser? os meus segredos poderão ser revelados
juntando-se aspectos daqui e dali, de nossas
Martha – Sempre fui. Você sabe disso. Seja. conversas, não se sustenta?

Solano – Se quer dizer que ao escolher só Solano – Mas ainda não juntei todos os pontos.
vestidos vermelhos você mostra-se muito Estou formulando ainda essa junção, na síntese
prática, quem sabe... que você me permite produzir.

Martha – De novo a questão dos vestidos? Martha – Pode amarrar pontos equivocados.

Solano – De novo? Não deixamos o tema Solano – Nada é equivocado se tiver um

13
método. Discutir o método, agora, creio não ser mais adequada? Posso avaliar sob os aspectos
oportuno. Até porque cada um faz o seu. Tem o do simbólico. Só vermelho, só vermelho... pode
seu. Há um método que permeia os métodos ser um símbolo a ser interpretado, não é?
individuais, eu sei, eu sei... mas os métodos são
sempre próprios, de cada um. Martha – Meu amor, não tente. Não tente ir por
esse caminho. Ele é muito mais complexo ainda
Martha – Você acabou de encontrar uma chave e você, meu querido, não está capacitado para
para a discussão. Se há um método e se ele avançar. Lembre-se: mulher nenhuma vem com
passa pelos métodos de cada um, então, entra manual de instrução. Mulher não é um jogo
em cena a questão da singularidade. O que é eletrônico desses que você aperta um botão aqui
genérico – talvez o tal método aludido – torna- e dá uma resposta. Aperta dois, tem novas
se singular pela inserção de fatores individuais. respostas, aperta dez e cem respostas aparecem,
Eu havia colocado a questão. Não é o vestido. É magicamente pela programação feita. Mulher
um vestido. O vestido é genérico. Um vestido é nenhuma é programada por bits, bytes... Mulher
singular. Lembre-se, o que quer a mulher? é jogo que não se vence. Nem por esforço, nem
Genericamente falando, não se sabe. E o que por dedicação, nem por amor, sim... amor.
quer uma mulher? A singularidade se estabelece
e a resposta que você quer obter se amplia para Mulher é bicho esquisito e todo mês sangra...
uma complexidade que dificilmente o levará a
responder com exatidão. E o sangue é vermelho, meu querido. O sangue
é vermelho...
Solano – Estou cético ainda em relação a essas
questões. Minha curiosidade se ampliou porque 7 – O desejo que aprisiona. O que liberta
pretendia saber mais sobre você. Mas, pelo
visto, sempre encontra uma maneira de dar a (a arara vai para o espaço entre as duas pernas
volta, de desviar-se, de não entregar o mapa da iluminadas. Martha e Solano estão lado a lado,
mina. Mas será que ele existe? na primeira perna. A iluminação abraça os dois
que sempre estarão no foco)
Martha – Mapa da mina? Você leu muita
literatura romântica e de aventura na infância e Solano – Reconheço que você nasceu da
juventude, não foi? Sejamos realistas. Não há palavra, cresceu entre frases, se formou entre
mapa da mina nenhum. Não há. Nunca houve. verbos, adjetivos e complementos e que é
Anotações esparsas, orientações aqui, mesmo fruto precioso da linguagem. Mas onde
indicações ali, nada disso somados pode você está, neste instante, não pode ser lido, pois
construir um mapa. E tem a questão crucial de pode estar dissipada em pontos, vírgulas,
que nenhum mapa é território. O território não reticências, nas entre linhas de um discurso
se mapeia. Esse, o da discussão, não mesmo. qualquer.

Solano – Sou tentado a insistir ainda na questão Em você o tom da fala importa menos que o
do porque do vestido vermelho. Bem, como som que fala. Em você uma palavra sempre vale
queira, a questão de um vestido vermelho, está mais que um gesto. Que um sussurro abala mais
bem? que um toque pretensamente preciso entre suas
pernas. Está em você ser mais abraçada por uma
Martha – Não tente entender. Nem tente invadir palavra, mesmo pequena, que ser tocada mais
um território desconhecido tendo apenas como por um abraço real, mesmo grande. Mas ainda
instrumento um mapa mal traçado e sem me inquieta um aspecto em você: qual a
referências reais. O real não é verdadeiro. similaridade entre você e outras mulheres que
conheci?
Solano – E se eu passar pelo que seja
simbólico? Serei levado a alguma conclusão No que você é igual a tantas Lyas, Clarices,

14
Fernandas, Alices, Polianas, Lenizas, Mas é difícil conseguir alcançar desejos
Dulcinéias, Efigênias, Marias, Paolas, Elisas, originais e primitivos tão abrangentes, já que se
Marcelas, Santinhas, Salomés ou outras pode estender seus significados para além dos
devotadas cortesãs e uma infindável galeria de entendimentos comuns. Você pode não exigir
raparigas abusadas? No que você é diferente? um príncipe medieval, um cavalheiro negro.
No que você é mais Maria e menos Martha? No Mas, quem sabe não espere um príncipe
que você é menos Maria e mais Martha? Ajude- sarraceno? Ele que traz sua espada reluzente,
me a entendê-la, Martha? mas que tenha escondida aquela mortífera
adaga com um cabo incrustado de rubis. Estaria
Como posso resgatar quem você realmente é, você em segurança com um homem assim? O
neste ser intrigante que se oculta entre desejos cavalheiro ou o sarraceno? Não estaria mais
que não conheço e faces que não reconheço? segura se ele fosse um contador, um torneiro
Você pode me sinalizar se devo agir como seu mecânico, um diplomata ou um simples
carrasco poeta ou seu sedutor de mil dedos e contador de histórias? Quais seriam os afetos
artimanhas? Devo usar uma boca imprecisa na que se encerram em seus desejos? São amplas
palavra ou uma língua precisa em seus seios? as possibilidades desse afeto. Ter liberdade. O
que é ser livre, Martha? Ser livre... O que é ter
Martha – Talvez você não tenha se dado conta essa falsa sensação de ter asas e poder voar a
de que meus desejos são básicos. Comuns a cada vontade?
todas as mulheres. Nada originais, nem
diferentes, muito menos são desejos que possam Martha – Inquieta-me, aqui, essa sensação de
causar surpresa ou levantar suspeitas, muito não me sentir pertencente ao espaço onde
menos provocar indignações. Sentir-me em habito. Revolta-me, muito mais, o sentimento
segurança. Ter e responder aos afetos. Poder de não habitar o tempo atual.
expressar-me sem restrições ou senões. Enfim,
ter liberdade. Ser parceira na jornada. Não O aqui e o agora, o instante de alegria e de
responder sozinha pelo piano que deva ser terror. O desejo e o gozo. A surpresa e o
levado até o décimo terceiro andar de um encantamento dissipam-se nas tênues tramas do
edifício que não tem elevadores. Sentir-me véu original. Trafegam pelo cenário iluminado
integrada, ser mais reconhecida que conhecida teias fortíssimas de um emaranhado de
no meio social onde trafego. Ter na vida de histórias, sentimentos, afetos reais,
pessoas ou de uma única pessoa o respeito e a conquistados e que se perderam ao longo da
importância que sei ser merecedora. Meu amor colcha de retalhos que teci como Penélope e
não precisa ser um príncipe, um cavalheiro que destruí ao rolar-me com ela em calçadas
medieval com armas, armaduras, elmos e pálios frias de noites mal dormidas. Sinto-me só,
esvoaçantes. Precisa ter-me apenas como seu embora o calor de alguém me dê uma falsa
amor e que faça-me sentir apreciada e aceita. sensação de cumplicidade.

É muito isso? Conviver, como disse aquela sábia mulher lá do


Sul, não se torna diálogo ou parceria, mas um
Solano – Para a mulher que deseja, não! frustrante monólogo a dois.
A questão que não quer calar ainda impera: mas
que mulher é essa? Quem é essa mulher? Estou cansada de monologar num falso diálogo
comigo mesma. Você, meu querido Solano, é
Os desejos básicos dessa personagem não são um vento que sopra cálido quando necessário.
originais, claro. Originais, são, porém. Parece Mas, vez ou outra, quase sempre, vem gélido,
ser um paradoxo da semântica? São, sim, cortante. Fazendo sons que me aterrorizam e
originais. Estão na sua origem, são primitivos, que invadem recônditos de minha alma, mas
primordiais, iniciais em você. São originais, que, ainda assim, me fazem sentir-me viva.
portanto. Desejo uma convivência diferente, viva, audaz.

15
Nada que me faça sentir-me a mesma. Mas a resplandecer a força do encontro irrealizável.
mesma sensação de me revelar nova, distinta a Você, minha doce e sempre surpreendente
cada novo olhar que me permito no espelho. Martha tem algo a me dizer?

Você é o companheiro que se completa em mim Martha – Tenho, sim, meu querido Solano...
mesma? Ou só se completa quando me sinto Tenho sim e vou dizer com toda a força da
usada, cedendo meu corpo como um cálice que minha emoção: Retire-me, nem que seja pelos
vai guardar a seiva do seu prazer que será meus cabelos, desse poço onde caí e que me
sorvida num festim onde se celebra o encontro deixou sentir presa a sensações e descobertas
das contradições com a falsa alegria de estar que somente seriam reveladas caso fossem
liberto das palavras? extintas todas as formas de prisão, de dor, de
sofrimento e de angústia.
Se pensa que é assim que se dará essa
convivência, arrefeça seus ânimos, embainhe Volto ao ponto original, primordial,
sua espada, monte novamente seu corcel fundamental de minha existência.
selvagem e aponte um novo norte em seu
destino. Onde está esta mulher que em mim teima em
não se revelar? Serei eu ou outra serei? Que
Solano – Martha, Martha... minha querida e perigos corro se deixar-me revelar? Posso
sempre surpreendente Martha...! Atendi ao seu perder-me nessa revelação? Ou a revelação vai
chamado. Não para confrontar posições, ideias mostrar que o que se esconde nada é?
ou contradições. Voei, vim de muito longe para
comungar com você não meras sensações Mas, meu inestimável Solano, reverso de mim
fugazes e insignificantes. Transformei-me neste mesma. Tire-me daqui. Resgate-me. Abrande
novo ser, neste homem com feições míticas, meu sofrimento. Aqui, na prisão dialética do
para simplesmente revelar o que em mim, tudo desejo eu ainda não sei com que palavras posso
é você. Tento, no entanto, ter que reconhecer a dar novos significados para o sexo que tenho, o
enorme dificuldade que é ser esse homem sexo que perdi e o sexo que desejo ter e que
desejado, sem ter que desejar-me ser outro. sempre aparecem com seus gozos efêmeros que
Você, filha dileta da contradição, símbolo me viciaram em desejar apenas e tão somente
hermético do desejo que nunca se satisfaz ou se vestidos vermelho, bolsas azuis e sapatos, todos
completa, deixa-me, neste instante num dilema eles que nenhum de nós consegue calçar...
homérico. Mais que isso. Um dilema ancestral.
(cai a luz em resistência com todas as cores
Dialogar com sua verdade, é uma enorme possíveis do cenário)
mentira. Mentir, aqui, diante de você, é a
verdade cristalina com todas as exatas palavras.

Não somos termos opostos, seres adversários,


mentes divergentes. Não sou o antônimo do seu ©Rogério Viana
prazer, nem você é o sinônimo da minha
Curitiba (PR), 9 de janeiro de 2011.
tristeza. Somos eu. Você é nós. Você é eu, sendo
nós o que em mim este meu eu representa. Um domingo de meio sol, de um falso calor, de um
verão que não aparece verdadeiramente como verão.
Não há incompatibilidade entre nós, nem entre
o que afirmamos ao longo de um inaudito
discurso. O desacordo que será visível entre a
Martha que sou e o Solano que você é não passa
a ser uma mera figura retórica. Ela é real, não
existindo. Ela é mentira, deixando-se

16

Você também pode gostar