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REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA

GOVERNO REGIONAL
SECRETARIA REGIONAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA
Escola Básica e Secundária de Machico
Código do Estabelecimento de Ensino 3104-201

Área de Competência CULTURA, LÍNGUA E COMUNICAÇÃO


Núcleo Gerador 7 – Fundamentos de Cultura, Língua e Comunicação Ano letivo 2020-2021

DR 1 – Contexto privado Tema – O Elemento - Indivíduo e Projeto


Formando: _________________________________________ N.º ____ Turma ____ Data _____ / _____ /2020

Critérios de Evidência
▪ Identificar os diversos contextos que podem afetar a configuração das trajetórias individuais (família, escola, locais de trabalho, redes de sociabilidades).
▪ Compreender de que modo as oportunidades/contextos de formação não formal (aquelas que não conferem títulos escolares) constituem uma das fontes da
aprendizagem ao longo da vida e podem contribuir para o reforço de recursos culturais.
▪ Atuar adequadamente face aos textos orais e/ou escritos, desenvolvendo a capacidade de autoanálise, conhecimento e aceitação do outro.

Um texto autobiográfico
Quando eu era pequena havia um mistério chamado Infância. Nunca tínhamos ouvido falar de coisas aberrantes como
educação sexual, política e pedofilia. Vivíamos num mundo mágico de princesas imaginárias, príncipes encantados e animais
que falavam. A pior pessoa que conhecíamos era a Bruxa da Branca de Neve. Fazíamos hospitais para as formigas onde as
camas eram folhinhas de oliveira e não comíamos à mesa com os adultos. Isto poupava-nos a conversas enfadonhas e
incompreensíveis, a milhas do nosso mundo tão outro, e deixava-nos livres para projectos essenciais, como ir ver oscilar os
agriões nos regatos e fazer colares e brincos de cerejas. Baptizávamos as árvores, passeávamos de burro, fabricávamos
grinaldas de flores do campo. Fazíamos quadras ao desafio, inventávamos palavras e entoávamos melodias nunca aprendidas.
Na Infância as escolas ainda não tinham fechado. Ensinavam-nos coisas inúteis como as regras da sintaxe e da ortografia,
coisas traumáticas como sujeitos, predicados e complementos directos, coisas imbecis como verbos e tabuadas. Tinham a
infeliz ideia de nos ensinar a pensar e a surpreendente mania de acreditar que isso era bom. Não batíamos na professora,
levávamos-lhe flores.
E depois ainda havia infância para perceber o aroma do suco das maçãs trincadas com dentes novos, um rasto de hortelã nos
aventais, a angústia de esperar o nascer do sol sem ter a certeza de que viria (não fosse a ousadia dos pássaros só visíveis na luz
indecisa da aurora), a beleza das cantigas límpidas das camponesas, o fulgor das papoilas. E havia a praia, o mar, as bolas de
Berlim. (As bolas de Berlim são uma espécie de ex-libris da Infância e nunca mais na vida houve fosse o que fosse que nos
soubesse tão bem).
Aos quatro anos aprendi a ler; aos seis fazia versos, aos nove ensinaram-me inglês e pude alargar o âmbito das minhas
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leituras infantis. Aos treze fui, interna, para o Colégio. Ali havia muitas raparigas que cheiravam a pão, escreviam cartas às
escondidas, e sonhavam com os filmes que viam nas férias. Tínhamos a certeza de que o Tyrone Power havia de vir buscar-
nos, com os seus olhos morenos, depois de nos ter visto fazer uma entrada espampanante no salão de baile onde o Fred Astaire
já nos teria escolhido para seu par ideal.
Chamava-se a isto Adolescência, as formas cresciam-nos como as necessidades do espírito, música, leitura, poesia, para
mim sobretudo literatura, história universal, história de arte, descobrimentos e o Camões a contar aquilo tudo, e as professoras
a dizerem, aplica-te, menina, que vais ser escritora. Eram aulas gloriosas, em que a espuma do mar entrava pela janela, a
música da poesia medieval ressoava nas paredes cheias de sol, “ay eu coitada, como vivo em gran cuidado, e ay flores, se
sabedes novas, vai-las lavar alva”, e o rio corria entre as carteiras e nele molhávamos os pés e as almas.
Além de tudo isto, que sorte, ainda havia tremas e acentos graves. Mas também tínhamos a célebre aula de Economia
Doméstica de onde saíamos com a sensação de que a mulher era uma merdinha frágil, sem vontade própria, sempre a obedecer

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ao marido, fraca de espírito que não de corpo, pois, tendo passado o dia inteiro a esfregar o chão com palha de aço, a espalhar
cera, a puxar-lhe o lustro, mal ouvia a chave na porta havia de apresentar-se ao macho milagrosamente fresca, vestida de Doris
Day, a mesa posta, o jantarinho rescendente, e nem uma unha partida, nem um cabelo desalinhado, lá-lá-lá, chegaste, meu
amor, que felicidade! (A professora era uma solteirona, mais sonhadora do que nós, que sabia todas as receitas do mundo para
tirar todas as nódoas do mundo e os melhores truques para arear os tachos de cobre que ninguém tinha na vida real).
Mas o que sabíamos nós da vida real? Aos 17 anos entrei para a Faculdade sem fazer a mínima ideia do que isso fosse. Aos
19 casei-me, ainda completamente em branco (e não me refiro só à cor do vestido). Só seis anos, três filhos e centenas de livros
mais tarde é que resolvi arrumar os meus valores como quem arruma um guarda-vestidos. Isto não, isto não se usa, isto não
gosto, isto sim, isto seguramente, isto talvez. Os preconceitos foram os primeiros a desandar, assim como todos os itens que à
pergunta porquê só me tinham respondido porque sim, ou, pior, porque sempre foi assim. E eu, tumba, lixo, se sempre foi
assim é altura de deixar de ser e começar a abrir caminho às gerações futuras (ainda não sabia que entre os meus 12 netos se
contariam nove mulheres). Ouvi ontem uma jovem a dizer, a revolução que nós fizemos nos últimos anos. Não meu amor: a
revolução que NÓS fizemos nos últimos 50 anos. Mas não interessa quem fez o quê. É preciso é que tenha sido feito. E que
seja feito. E eu fiz tudo, quando ainda não era suposto. Quando descobri que ser livre era acreditar em mim própria, nos meus
poucos, mas bons, valores pessoais.
Depois foram as circunstâncias da vida. A alegria de mais um filho, erros, acertos, disparates, generosidades, ingenuidades,
tudo muito bom para aprender alguma coisa. Tudo muito bom. Aprender é a palavra - chave e dou por mal empregue o dia em
que não aprendo nada. Ainda espero ter tempo de aprender muita coisa, agora que decidi que a Bíblia é uma metáfora da vida
humana e posso glosar essa descoberta até, praticamente, ao infinito.
Pois é. Eu achava, pobre de mim, que era poetisa. Ainda não sabia que estava só a tirar apontamentos para o que havia de
fazer mais tarde. A ganhar intimidade, cumplicidade com as palavras. Também escrevia crónicas e contos e recados à mulher-
a-dias. E de repente, aos 63 anos, renasci. Cresceu-me uma alma de romancista e vá de escrever dez romances em 12 anos,
mais um livro de contos (Os Linhos da Avó) e sete ou oito livros infantis. (Esta não é a minha área, mas não sei porquê,
pedem-me livros infantis. Ainda não escrevi nenhum que me procurasse como acontece com os romances para adultos, que
vêm de noite ou quando vou no comboio e se me insinuam nos interstícios do cérebro, e me atiram para outra dimensão e me
fazem sorrir por dentro o tempo todo e me tornam mais disponível, mais alegre, mais nova).
Isto da idade também tem a sua graça. Por fora, realmente, nota-se muito. Mas eu pouco olho para o espelho e esqueço-me
dessa história da imagem. Quando estou em processo criativo sinto-me bonita. É como se tivesse luzinhas na cabeça. Há 45
anos, com aquela soberba muito feminina, costumava dizer que o meu espelho eram os olhos dos homens. Agora são os olhos
dos meus leitores, sem distinção de sexo, raça, idade ou religião. É um progresso enorme.
Se isto fosse uma autobiografia teria que dizer que, perto dos 30, comecei a dizer poesia na televisão e pelos 40 e tais pus-me
a fazer umas maluqueiras em novelas, séries, etc. Também escrevi algumas destas coisas e daqui senti-me tentada a escrever
para o palco, que é uma das coisas mais consoladoras que existem (outra pessoa diria gratificantes, mas eu, não sei porquê,
embirro com essa palavra). Não há nada mais bonito do que ver as nossas palavras ganharem vida, e sangue, e alma, pela voz e
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pelo corpo e pela inteligência dos atores. Adoro atores. Mas não me atrevo a fazer teatro porque não aprendi.
Que mais? Ah, as cantigas. Já escrevi mais de mil e quinhentas e é uma das coisas mais divertidas que me aconteceu. Ouvir a
música e perceber o que é que lá vem escrito, porque a melodia, como o vento, tem uma alma e é preciso descobrir o que ela
esconde. Depois é uma lotaria. Ou me cantam maravilhosamente bem ou tristemente mal. Mas há que arriscar e, no fundo, é só
uma cantiga. Irrelevante.
Se isto fosse uma autobiografia teria muitas outras coisas para contar. Mas não conto. Primeiro, porque não quero. Segundo,
porque só me dão este espaço que, para 75 anos de vida, convenhamos, não é excessivo.
Encontramo-nos no meu próximo romance.

Rosa Lobato Faria


Publicada no Jornal de Letras 2008
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1. Partindo da leitura que fez, identifique os momentos da vida da protagonista enumerados no texto.
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2. Preencha a tabela com informação referente às vivências da escritora.

Vivências (na infância e juventude; na fase adulta)

Pessoais

Profissionais

Sociais
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Oportunidades de aprendizagem

Formal Informal

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Aprendizagem formal – aprendizagem tradicionalmente dispensada por um estabelecimento de ensino ou de formação.

Aprendizagem informal – aprendizagem decorrente das atividades da vida quotidiana, relacionadas com o trabalho, a família
e o lazer.

3. Tendo como modelo o texto de Rosa Lobato Faria, elabore a sua autobiografia (divida a sua história nas seguintes partes:
infância, adolescência, adulto, atualidade).

A Formadora ____/____/____ O Formando ____/____/____


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