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O COMBATE DO SÉCULO

Numa entrevista recente, a propósito de Murder Most Foul, diz Bob Dylan:
«Definitivamente, há muito mais ansiedade e nervosismo agora do que costumava existir.
Mas isso só se aplica a pessoas de uma certa idade como eu e você, Doug. Temos a
tendência de viver no passado, mas isso somos nós. Os jovens não têm essa tendência. Eles
não têm passado, então tudo que sabem é o que vêem e ouvem, e acreditam em qualquer
coisa. Daqui a 20 ou 30 anos, eles estarão na vanguarda. Quando você vê alguém com 10
anos, ele estará no controle em 20 ou 30 anos, e ele não terá ideia do mundo que
conhecíamos. Os jovens que estão na adolescência agora não têm memórias suficientes
para se lembrar. Então provavelmente é melhor entrar nessa mentalidade o mais rápido
possível, porque essa será a realidade. (...) O nosso mundo já está obsoleto.»
Gosto do diagnóstico, mas não da resignação do artista; mas talvez seja típico de um
americano.
Sim, os jovens hoje crescem num meio ambiente em que as ciências humanas foram
desvalorizadas e preteridas pelos saberes técnicos e vivem sob a redoma de “eterno
presente” da esfera mediática. Trump é o exemplo de quem é fruto de uma educação
temperada pelos inputs das indústrias culturais, sem qualquer filtragem de uma cultura
humanística que coloque o presente e os seus valores em perspectiva.
Trump é um espelho das patologias da sociedade de consumo e da equívoca relação do
mercado - hipervalorizado como única instância reguladora - com os princípios da
democracia, porque, afinal (e isto tem sido esquecido), talvez uma democracia seja mais do
que um sistema financeiro.
A surpresa de Boris Johnson - um cínico, mas beneficiou ainda de uma educação
aristocrática e assente nos referenciais de uma cultura humanista – sobre a motivação dos
que vandalizaram a estátua de Churchill é genuína, daí ter explicado que apesar de algumas
das ideias defendidas pelo seu histórico antecessor serem "inaceitáveis para nós hoje",
«Churchill continua a ser uma figura heróica que salvou o país de uma "tirania racista e
fascista"». Indesmentível e isso torna delirante a situação dos anti-racistas tomarem a figura
de Churchill como alvo da sua ira e furor e da estátua do estadista ser defendida por milícias
e holligans de extrema-direita.
Assistimos aos sintomas da desordem mental que resulta de sermos expostos há décadas a
um avassalador fluxo informativo sem filtro, sem a mediação do pensamento crítico, ou a
ambição de articular essa amálgama informativa sob o guarda-chuva de um sistema
cognitivo que re--ligue os padrões e nos possa orientar no seio de Babel. A educação como
grande projecto iluminista pulverizou-se. O efeito disto não se traduz num mundo mais
igualitário.
A facilidade com que hoje os líderes convencem os seus fanáticos de que quem se lhes opõe
é “comunista” ou “fascista” assinala o triunfo do slogan contra qualquer possibilidade de
reflexão. O eleitorado prefere a velocidade e a suposta adrenalina à ponderação, ao juízo.
Um verdadeiro líder democrático é quem nos ensina como a contingência habita o cerne do
poder – mais cabal não há que o exemplo de Churchil, derrotado à boca das urnas logo a
seguir a ter ganho a guerra: perdeu e retirou-se. Hoje, com Trump e Bolsonaro, assiste-se ao
contrário: napoleonicamente, apresentam-se como providenciais, e, grotescamente, estão
convencidos disso.
A democracia, mais do que o exercício da alternância democrática (que apela ainda a uma
disputa entre os diferentes sentimentos de pertença que se cristalizam nos partidos), deve
antes promover um sentimento de não-pertença e de distância analítica que se reforça pela
persuasão com que novos direitos e novas sensibilidades emergentes ganham plataformas de
mediação e impõem as suas razões narrativas. O movimento social é como um tecido
corrompido que só se sara quando se instauram novas mediações, novas vozes.
Socorramo-nos de Alain Badiou:
«... chame-se movimento a uma acção colectiva que obedece a duas condições: em primeiro
lugar, esta acção não está prevista nem regulada pela potência ou o poder dominante.
Logo, esta acção pressupõe algo imprevisível, que rompe com a repetição. Chamamos
movimento a algo que rompe com a repeticão colectiva, social. É a primeira condição.»
O que tivémos com as espontâneas reacções à morte de George Floyd. E o movimento, deve
romper com a unanimidade mimética - é condição.
Embora, para se tornar fecundo, a sua segunda condição seja «que se proponha dar um
passo mais, adiante, no que respeita à igualdade. A consigna de um movimiento, o que diz,
o que propõe, vai, de una maneira geral, no sentido de uma maior igualdade».
O seu efeito é a emergência de um novo “intermediário”, de uma nova sensibilidade em
relação às decisões políticas e às instâncias de mediação.
A validade e inteligência deste segundo momento do movimento ficam enfraquecidas com
os gestos demagógicos de vandalizar as estátuas. Restituir ao social a dignidade que aponta
para uma “maior igualdade” supõe simultaneamente respeitar os símbolos da ideologia
adversária e mobilizar a energia para a mudança política, posto estar o debate lançado.
A explosão e a fúria sem a reflexão redundam numa oportunidade perdida. Pichar as
estátuas, mutilá-las, censurar filmes ou livros, só mostra como o colectivo é sempre
permeável à estupidez e intolerância que germinou nos regimes autoritários e
discriminatórios e como a educação volta a ser o combate do século.

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