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ADVOCACIA PÚBLICA
EM FOCO
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
NA ESFERA ADMINISTRATIVA: ENFRENTAMENTO
À CORRUPÇÃO, À BURLA A SANÇÕES, AO ABUSO
DE FORMA E FRAUDE À LEI DE LICITAÇÕES
1. INTRODUÇÃO
FRANCO, Renata Tatiana Nunes Junqueira. Desconsideração da personalidade jurídica na esfera administrativa: enfrentamento à corrupção, à
burla a sanções, ao abuso de forma e fraude à lei de licitações. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; SACCHETTO,Thiago Coelho (Orgs.). Advocacia
pública em foco. Belo Horizonte: IDDE, 2017. p. 91-128. ISBN 978-85-67134-03-1. Disponível em: <http://bit.ly/2mmm20G>
2. PROIBIÇÕES DE PARTICIPAR DE LICITAÇÕES E DE CONTRATAR COM A ADMI-
NISTRAÇÃO PÚBLICA
2 Art. 37, caput, da Constituição Federal que prevê expressamente que a Administração Pública obe-
decerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e artigo 3º
da Lei nº 8.666/1993 que assegura que a licitação destina-se a garantir a observância do princípio da
isonomia e será processada e julgada em conformidade estrita com os princípios da legalidade, da im-
pessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação
ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.
[...] violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A de-
satenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento
obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É ainda a mais grave forma de
ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido,
porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valo-
res fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão
de sua estrutura mestra.
3 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32. ed., rev. e atual. até a EC 84,
de 02.12.2014, São Paulo: Malheiros, 2015, p. 54.
I – advertência;
O artigo 88 do mencionado texto legal dispõe que “as sanções previstas nos
incisos III e IV do artigo anterior poderão também ser aplicadas às empresas ou aos
profissionais que, em razão dos contratos regidos” pela Lei de Licitações:
Art. 7º. Quem, convocado dentro do prazo de validade da sua proposta, não
celebrar o contrato, deixar de entregar ou apresentar documentação falsa exi-
gida para o certame, ensejar o retardamento da execução de seu objeto, não
mantiver a proposta, falhar ou fraudar na execução do contrato, comportar-se
de modo inidôneo ou cometer fraude fiscal, ficará impedido de licitar e contratar
com a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios e, será descredenciado
no Sicaf, ou nos sistemas de cadastramento de fornecedores a que se refere o
Art. 38. Sem prejuízo das penas cominadas no art. 37 desta Lei, quando assim
exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público geral, poderão ser impostas
as seguintes penas, isolada ou cumulativamente:
[...]
I – multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do
faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo
administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem au-
ferida, quando for possível sua estimação; e
[...]
Art. 19. Em razão da prática de atos previstos no artigo 5º desta Lei, a União,
os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por meio das respectivas Ad-
vocacias Públicas ou órgãos de representação judicial, ou equivalentes, e o
Ministério Público, poderão ajuizar ação com vistas à aplicação das seguintes
sanções às pessoas jurídicas infratoras:
[...]
Art. 30. A aplicação das sanções previstas nesta Lei não afeta os processos de
responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de:
Art. 16. Caso os atos lesivos apurados envolvam infrações administrativas à Lei
nº 8.666, de 1993, ou a outras normas de licitações e contratos da administra-
ção pública e tenha ocorrido a apuração conjunta prevista no art. 12, a pessoa
jurídica também estará sujeita a sanções administrativas que tenham como
efeito restrição ao direito de participar em licitações ou de celebrar contratos
com a administração pública, a serem aplicadas no PAR.
O rol adrede descrito ainda pode vir a ser ampliado. Há iniciativas em debate
para alargar as hipóteses restritivas, dentre as quais, está o Projeto de lei (PLS
80/2009), que incluiria na Lei nº 8.666/1993 norma impeditiva à participação em
licitação e contratação com o Poder Público, de entidades empresariais condenadas
judicialmente por prática de assédio moral contra empregados nos últimos cinco
anos. A proposta também sugere a criação do Cadastro Nacional de Proteção contra
a Coação Moral no Emprego, a ser gerido por órgão do Poder Executivo. O cadastro
4 Precedente: AgRg na RCDESP no MS 15.267-DF, DJe 1º/2/2011. MS 17.431-DF, Rel. Min. Castro Meira,
julgado em 26.09.2012.
5 O Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006, promulga a Convenção das Nações Unidas contra a
Corrupção, adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada
pelo Brasil em 09 de dezembro de 2003.
6 Decreto nº 4.410, de 07 de outubro de 2002, promulga a Convenção Interamericana contra a Corrup-
ção, de 29 de março de 1996, com reserva para o artigo XI, parágrafo 1º, inciso “c”, considerando que
o Congresso Nacional aprovou por meio do Decreto Legislativo nº 152, de 25 de junho de 2002, o texto
da Convenção Interamericana contra a Corrupção, adotada em Caracas, em 29 de março de 1996, com
reserva para o artigo XI, parágrafo 1º, inciso “c”.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem,
fica obrigado a repará-lo.
Aparentemente, a Lei quis dar aos entes privados o mesmo tratamento que a
Constituição, no artigo 37, § 6º dá ao Estado e seus agentes: o Estado respon-
de objetivamente pelos danos causados a terceiros, porém os agentes causa-
dores do ato lesivo respondem subjetivamente.
3. o ato lesivo seja praticado por pessoas jurídicas (art. 1º, caput);
Em sentido contrário, Justen Filho9 afirma que as sanções previstas na lei anti-
corrupção apenas serão consumadas se a pessoa física agir com dolo:
8 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 28. ed., São Paulo: Atlas, 2015, p. 1000.
9 JUSTEN FILHO, Marçal. A “Nova” Lei Anticorrupção Brasileira (Lei Federal nº 12.846). Informativo
Justen, Pereira, Oliveira e Talamini. Curitiba, n. 82, dez. 2013. Disponível em: <http://www.justen.
com.br//informativo.php?&informativo=82&artigo=1110&l=pt >. Acesso em: 20 jan. 2017.
I – a gravidade da infração;
10 CAMPOS, Patrícia Toledo de. Comentários à Lei nº 12.846/2013 – Lei anticorrupção. Revista Digital
de Direito Administrativo USP, v. 2, n. 1, 2015. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/
default/files/80943-127259-2-pb.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2017.
IX – o valor dos contratos mantidos pela pessoa jurídica com o órgão ou enti-
dade pública lesados.
11 3ª Seção do STJ reconheceu a nulidade do ato sancionador por não observar o princípio da proporcio-
nalidade e pela decisão administrativa não encontrar respaldo no conjunto probatório colhido no pro-
cesso. (MS nº 13.091/DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 27.02.2008, v.u., DJU 07.03.2008).
[...]
12 PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; DOTTI, Marinês Restelatto. A Desconsideração da personalidade jurí-
dica em face de impedimentos para participar de licitações e contratar com a Administração Pública:
Limites Jurisprudenciais. Revista da Virtual da AGU, ano XI, n. 109, fev. 2011. Disponível em: <www.
agu.gov.br/page/download/index/id/3667152>. Acesso em: 20 jan. 2017.
Art. 4º. Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua perso-
nalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do
meio ambiente.
Na doutrina brasileira, ingressa a teoria no final dos anos 1960, numa confe-
rência de Rubens Requião (1977:67/86). Nela, a teoria é apresentada como
superação do conflito ente as soluções éticas, que questionam a autonomia
patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar sempre os sócios, e as téc-
13 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo 732 do STF – 2013. Transcrições: MS 32.494-MC/
DF. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/informativo-tribunal,informativo-732-do-s-
tf-2013,46346.html>. Acesso em: 20 jan. 2017.
14 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial – Direito de Empresa. Volume 2. 15. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 57.
Ainda assim, inexistindo norma legal expressa no direito positivo brasileiro sobre
a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito dos
processos administrativos, era frequente a discussão sobre a legitimidade da aplica-
bilidade da teoria a licitações e contratações administrativas por possível ofensa ao
princípio da legalidade.
A Lei nº 8.666/1993 não prevê a desconsideração da personalidade jurídica. É
certo que a aplicabilidade desta no âmbito das licitações e contratos da Administração
visa atender aos princípios da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos
interesses públicos. Desse modo, considerando a concepção moderna de legalidade,
que não está adstrita à literalidade formal da norma, mas a compreensão do ordena-
mento jurídico enquanto sistema, não há afronta ao princípio da legalidade15.
No entendimento de Ricardo Watanabe16:
15 Vide Acórdão RMS 15.166/BA, Rel. Min. Castro meira, Segunda Turma, DJ 07.08.2003.
16 WATANABE, Ricardo. Desconsideração da personalidade jurídica no âmbito das licitações. Dispo-
nível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/31461-35563-1-PB.pdf>. Acesso em:
20 jan. 2017.
Não por outra razão, o princípio da legalidade tem sido tratado numa concepção
moderna, que não exige tão somente a literalidade formal, mas a análise siste-
mática do ordenamento jurídico vigente.
Ora, até com base no próprio princípio da legalidade, não parece razoável per-
mitir o abuso de direitos e a validade de ato praticados com manifesto intuito
de fraudar a lei.
[...]
Tanto que, no âmbito do Direito Tributário, a Fazenda Pública tem como costu-
me desconsiderar atos jurídicos praticados com o intuito de dissimular a ocor-
rência do fato gerador, de modo que a tributação incida numa situação diversa
da realidade fática.
Assim, não há como negar que as informações carreadas aos autos pelo Es-
tado da Bahia militam, inegavelmente, em desfavor da sociedade Recorrente.
Uma empresa constituída com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios
e com sede no mesmo endereço, dificilmente conseguirá provar que não agiu
em fraude à lei, para furtar-se dos efeitos danosos de uma sanção administra-
tiva. Parece claro, no presente caso, que a Recorrente valeu-se [sic] do “véu
da pessoa jurídica” – para usar de metáfora já consagrada –, com o evidente
intuito de fraudar a lei e descumprir uma punição administrativa que lhe havia
sido imposta.
Assim, permitir-se que uma empresa constituída com desvio de finalidade, com
abuso de forma e em nítida fraude à lei, venha a participar de processos lici-
tatórios, abrindo-se a possibilidade de que a mesma [sic] tome parte em um
contrato firmado com o Poder Público, afronta aos mais comezinhos princípios
de Direito Administrativo, em especial, ao da Moralidade Administrativa e ao da
Indisponibilidade dos Interesses Tutelados pelo Poder Público.
Convém registrar, por oportuno, que a aplicação desta teoria deve estar prece-
dida de processo administrativo, em que se assegure ao interessado o contradi-
tório e a mais ampla defesa, exatamente como realizado no caso dos autos. Ao
prejudicado restará sempre aberta a porta do Judiciário, para que então possa
provar, perante um órgão imparcial, a ausência de fraude à lei ou de abuso de
forma, afastando, por conseguinte, a aplicação da teoria da desconsideração
da personalidade jurídica. No presente caso, a Recorrente não se desincumbiu
desse ônus probatório.
[...]
***
Por conceito legal a pessoa jurídica é ente diverso de seus membros. Na maior
parte das modalidades societárias previstas no direito positivado pátrio, a regra é a
separação patrimonial do ente social das pessoas físicas que o compõe. O fomento ao
desenvolvimento econômico passa pela criação de facilidades na atuação empresarial,
objetivando o favorecimento à circulação de riquezas e geração de empregos.
No entanto, o enfoque no progresso social e econômico não pode encobrir
fraudes e deturpações do uso abusivo da pessoa jurídica, com desvio de finalidade e
confusão patrimonial.
O Ministro Celso de Mello, no MS 32.494-MC/DF enfatiza que:
Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utili-
zada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos
atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo
estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus
administradores e sócios com poderes de administração, observados o contra-
ditório e a ampla defesa.
21 MARRARA, Thiago; NOHARA, Irene Patrícia. Processo administrativo. Lei nº 9784/99 comentada. São
Paulo: Atlas, 2009, p. 438.
Art. 22. Fica criado no âmbito do Poder Executivo federal o Cadastro Nacional
de Empresas Punidas – CNEP, que reunirá e dará publicidade às sanções aplica-
das pelos órgãos ou entidades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário
de todas as esferas de governo com base nesta Lei.
22 CAMPOS, Patrícia Toledo de. Comentários à Lei nº 12.846/2013 – Lei Anticorrupção. Revista Digital de
Direito Administrativo USP, v. 2, n. 1, 2015. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rdda/article/
download/80943/pdf_10>. Acesso em: 01 abr. 2015, p. 20.
II – tipo de sanção; e
Art. 44. Poderão ser registradas no CEIS outras sanções que impliquem res-
trição ao direito de participar em licitações ou de celebrar contratos com a
administração pública, ainda que não sejam de natureza administrativa.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Texto constitucional promulgado em
05 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nos 1/1992
a 91/2016, pelo Decreto Legislativo nº 186/2008 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão
nos 1 a 6/1994. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui-
caoCompilado.htm>. Acesso em: 19 jan. 2017.
BRASIL. Decreto nº 3.678, de 30 de novembro de 2000, promulga a Convenção sobre o Combate
da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais,
concluída em Paris, em 17 de dezembro de 1997. Diário Oficial [da] República Federativa do
Brasil, Brasília, DF, 01 dez. 2000, p. 3. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto/D3678.htm>. Acesso em: 19 jan. 2017.
BRASIL. Decreto nº 4.410, de 7 de outubro de 2002 promulga a Convenção Interamericana
contra a Corrupção, de 29 de março de 1996, com reserva para o art. XI, parágrafo 1º, inciso
“c”, considerando que o Congresso Nacional aprovou por meio do Decreto Legislativo nº 152,
de 25 de junho de 2002, o texto da Convenção Interamericana contra a Corrupção, adotada em
Caracas, em 29 de março de 1996, com reserva para o art. XI, parágrafo 1º, inciso “c”. Diário
Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 08 out. 2002, p. 1. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4410a.htm>. Acesso em: 19 jan. 2017.
BRASIL. Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006, promulga a Convenção das Nações Unidas
contra a Corrupção, adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de
2003 e assinada pelo Brasil em 09 de dezembro de 2003. Diário Oficial [da] República Fede-
rativa do Brasil, Brasília, DF, 01 fev. 2006, p. 1. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/D5687.htm>. Acesso em: 19 jan. 2017.
BRASIL. Decreto nº 8.420, de 18 de março de 2015, que regulamenta a Lei nº 12.846/2013, que
dispõe sobre a responsabilização administrativa de pessoas jurídicas pela prática de atos contra
a administração pública, nacional ou estrangeira e dá outras providências. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 19 mar. 2015, p. 3. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Decreto/D8420.htm>. Acesso em: 20 jan. 2017.