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Categorias sociais e espaciais produzidas pelo recenseamento de homens de

Curitiba de 1765 ∗

Maria Luiza Andreazza♣

Palavras-chave: população; categorias sócio-espaciais; política pombalina.

Resumo
A comunicação se ocupa em detalhar um exercício de identificação das palavras
utilizadas na lista de 1765 para identificar de que forma elas serviram para categorizar e
estabelecer diferenças entre as pessoas e os lugares, no termo da vila de Curitiba. É de
conhecimento geral a ampla variação dos indicadores coletados pelos primeiros
recenseamentos coloniais, parte devido à falta de orientação homogênea e parte devido ao
arbítrio dos responsáveis localmente por sua elaboração. É nessa relativa autonomia das
autoridades locais que, creio eu, o pesquisador pode identificar as categorias sociais que
estavam ativas. Já que as autoridades da capitania não enviaram critérios para enquadrar a
população, é legitimo supor que os recenseadores rotularam as pessoas no interior de
categorias que, a eles, detinham significados para demarcar as singularidades dos integrantes
daquele corpo social. Longe de ser um treinamento de positivismo histórico, a intenção foi
colher as categorias ‘vivas’, que construíram os sujeitos sociais presentes na lista de 1765.
Subjaz essa intenção a crença de ser a taxionomia poderoso instrumento de análise social.
Com efeito, da atenção aos elementos presentes nas fontes documentais, pode resultar uma
multiplicação de atores sociais que, sob critérios exclusivos de sexo, idade e condição, correm
o risco de se manterem na opacidade.


Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, realizado em Caxambu- MG –
Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008.

Professora e pesquisadora da UFPR/ Cnpq.

1
Categorias sociais e espaciais produzidas pelo recenseamento de homens de
Curitiba de 1765 ∗

Maria Luiza Andreazza♣

Introdução
A contagem sistemática da população da colônia integrou a política ilustrada
pombalina dada a crença de que o sucesso da nova ordem incluía um conhecimento efetivo
dos povos dispersos na América Portuguesa. Seguindo as ordens de Lisboa, Dom Luiz
Antonio de Botelho Souza e Mourão, em 1765, logo que assumiu o governo de São Paulo,
promoveu o primeiro recenseamento na capitania de São Paulo. Nesse momento, a “intenção
– parece – era de se conhecer a distribuição espacial dos habitantes pelas vilas então
existentes e, sobretudo, os que poderiam ser úteis, imediatamente, para a produção, defesa
militar, ocupação da terra, para o governo e administração local.”2 O sentido dessa contagem
foi entendido perfeitamente pelo capitão-mor da vila de Curitiba à época, Miguel Ribeiro
Ribas que, inclusive, inscreveu o dito arrolamento no “Livro da Ordenança da Vª de
Corettiba”3.
De forma geral, os pesquisadores que se valem das listas nominativas de habitantes, ao
mesmo tempo que exaltam suas virtualidades, apontam que, apesar das ordens, modelos e
instruções minuciosas enviadas a cada capitão-mor das vilas, as primeiras não foram
elaboradas com a riqueza de informações solicitadas pela administração portuguesa.
Tampouco foram compostas de modo padronizado, dado que, em algumas vilas, escravos,
agregados e ocupações dos chefes dos domicílios não foram descriminadas. Essa situação
sofrerá alterações substantivas a partir da Ordem Régia de 21 de outubro de 1797 que alterou
as técnicas censitárias, conferindo-lhes maior precisão e caráter universal. Desde então, cada
distrito recebeu modelos de formulários e de mapas gerais, tornando essas listagens
documentos preciosos para os pesquisadores que investigam áreas de boa parte do Sul e do
Sudeste brasileiro.
Dentre os pioneiros a explorar esse potencial consta Maria Luiza Marcílio que se valeu
do corpus para empreender uma análise demográfica geral que reconstrói o crescimento da
população paulista entre 1765 e 1836, destacando em sua composição a crescente entrada de
escravos e de populações livres e de cor conferindo atenção particular às modalidades de
ocupações e suas mudanças no tempo. Para fins de seu estudo, ela dividiu o território da
capitania em cinco regiões, fundadas em critérios histórico-econômicos de ocupação da terra:


Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, realizado em Caxambu- MG –
Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008.

Professora e pesquisadora da UFPR/ Cnpq.

2
MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista. 1700-1836. São Paulo:
EDUSP/Hucitec, 2000. p. 45.
3
A consulta para esse estudo foi realizada nas cópias dessa lista pertencentes ao CEDOPE/UFPR. Os originais
integram o acervo do Arquivo Público de São Paulo.

2
1. Vilas do Vale do Paraíba; 2. Capital de São Paulo e vilas circunvizinhas; 3. Litoral; 4.
Estrada da Boiada, rota do Sul; 5. Oeste paulista.4
Meu interesse é observar um pouco mais de perto uma área específica da região
quatro, a dita Estrada da Boiada, rota Sul. Conforme a tipologia empregada por Marcílio, no
conjunto, essa região parte
da vila de Sorocaba até os confins do município de Curitiba (a chamada Rota do Viamão), que se
prolongava além da capitania paulista, até os campos de criação de Vacaria e de Santana do Sacramento
(hoje Uruguai), região de povoamento iniciado no século XVIII e predominantemente de criação de
gado vacum e muar, para abastecer as vilas paulistas e mineiras.5
Evidentemente, quando o foco do estudo é correlacionar aspectos econômicos e
demográficos de todo o espaço da capitania de São Paulo, o que sobreleva na região 4 é sua
lida com o gado. Foi ele, sem dúvida, que criou o imenso ‘corredor’ que integrou as áreas
remotas do extremo meridional aos centros da pecuária paulista. O gado ‘curitibano’, mesmo
antes de 1730 − abertura da Estrada do Viamão − já abastecia São Paulo. Era criado nas
partes norte e central dos Campos Gerais e ali dominava os interesses de latifundiários que
habitavam em São Paulo do Piratininga, Santos, Itú, Paranaguá e outras localidades distantes
da vila de Curitiba. Muito em função da pecuária, entre 1614 a 1736, foram concedidas 64
sesmarias no território paranaense6 e, com a estrada do Viamão, o movimento se intensifica
especificamente nos Campos Gerais. Entre 1725 e 1744, mais de noventa sesmarias foram aí
requeridas7. Por deterem o monopólio do comércio de gado que abastecia o mercado interno,
principalmente da região mineradora, esses pecuaristas não viram com bons olhos a intenção
da Coroa portuguesa de buscar alternativas que facilitassem acesso ao gado chucro da
província do Rio Grande. Os interesses régios prevaleceram e, com a abertura do Caminho do
Viamão, teve início um sutil movimento migratório em direção ao espaço sul dos Campos
Gerais, que, até então, mostrara poucos atrativos à fixação.
Essas pessoas se fixavam nas proximidades dos pousos de tropas ou do posto de
arrematação de impostos que a Coroa estabeleceu na passagem do Rio Grande de Curitiba. O
que atraía as pessoas comuns, certamente, era as possibilidades abertas pelo fluxo de
caravanas de gado que, vindas do sul, passavam pela localidade com destino a cidades
paulistas como Sorocaba, onde ocorriam as grandes feiras de comércio pecuarista.
Realizavam um movimento populacional recorrente em diferentes tempos e espaços do
período colonial, qual seja, acompanharam a dispersão dos grandes senhores. Esses, por sua
vez, agilizavam-se em demandar sesmarias na região do Campo do Tenente e do Registro de
Santo Antonio da Lapa, promovendo o estabelecimento de fazendas nos Campos Gerais do
Sul, ultima área ocupada pela pecuária na primeira metade do século XVIII, pois os Campos
de Palmas e de Guarapuava ingressarão na geografia das fazendas nos inícios do XIX.
De fato a prevalência da ocupação e a importância dos Campos Gerais na rede de
abastecimento interno se expressam na lista de ‘Curitiba’ de 1765. Sem duvida, ali se
concentram grande parte dos domicílios e dos cativos do Paraná naquele momento.
Igualmente é verdade que se ampliarmos o foco para toda a região ‘desses sertões’
encontraremos variações nas modalidades de ocupação dos habitantes dos diferentes bairros,

4
MARCÍLIO, ML. op. cit. p.p. 49-51.
5
MARCÍLIO, ML. ibidem, p. 51.

6 WESTHEPHALEN, Cecília Maria. Um modelo de história social: o de Gilberto Freyre. Biblioteca Virtual
Gilberto Freyre. <http://bvgf.fgf.org.br/portugues/critica/palestras/1980modelo_historia.html >
7
PINHEIRO MACHADO, Brasil. Formação histórica dos campos Gerais. IN: BALHANA, A. P. et al. Campos
Gerais : Estruturas Agrárias. Curitiba : Imprensa da UFPr., 1968. p. 29.

3
identificando haver determinados lugares que insistiam na mineração e outros envolvidos tão
somente com a lavoura de subsistência. Nesses termos, mesmo que a maior parte da
população arrolada de fato se ocupasse com o gado, os indicadores da lista de 1765 dizem
muito mais a respeito da população que ocupava os bairros circunvizinhos à vila.
Ao arrolar os ‘homens livres e seus filhos” em 1765 a administração local reconheceu
a existência de dezoito bairros, além da vila de Curitiba.8 Neles habitavam ‘mais ou menos’
2.096 homens, em idades dispersas entre zero e cem anos.
Estimar a população total, conhecendo apenas o número de homens, é tarefa arriscada,
pois implica a inclusão de inúmeras variáveis que marcavam a composição da sociedade
colonial. Mas, a título de exercício, uma primeira tentativa pode ser efetuada idealizando uma
razão de sexos de 100, o que nos daria um efetivo de 4.192 habitantes. Algo mais próximo da
realidade pode ser sugerido a partir da estrutura da população livre de São Paulo em 1765 que,
sem incluir os moradores da capital, era formada por 23.936 homens e 21.720 mulheres.9
Esses totais permitem estabelecer 110 como razão de sexos o que, e supondo-se equivalência
dessa composição na população curitibana, permitiria fixá-la em 3.995 pessoas. Fixar em que
medida isso se aproxima da população ‘real’ é uma questão que fica em aberto, até porque,
esse total considera apenas a população livre.

Algumas questões que precisam ser consideradas antes de prosseguir

Se a lista de 1765 não se presta a objetivos estritamente demográficos, ela baliza, com
propriedade, estudos dedicados à população. É certo que a história das populações inclui no
seu âmbito a história demográfica mas a ela não se reduz; ela abarca, simultânea ou
isoladamente, “uma história antropológica das populações, uma demografia econômica
retrospectiva, uma etno-demografia histórica.”10 Tendo isso em vista, é importante reiterar
que essa lista em particular tem muito a nos dizer do ponto de vista da etnografia social e da
produção espacial. Ao mesmo tempo em que as autoridades civis arrolaram os homens de
‘Curitiba’ elas nos legaram as categorias com que designavam os lugares sociais e territoriais
naquele momento.
Já foram indicadas anteriormente as variações entre as primeiras listas nominativas de
habitantes, parte devido à falta de orientação homogênea e parte devido ao arbítrio dos
responsáveis localmente por sua elaboração. É nessa relativa autonomia das autoridades locais
que, creio eu, o pesquisador pode identificar as categorias sociais que estavam ativas. Já que
as autoridades da capitania não enviaram critérios para enquadrar a população, é legitimo
supor que os recenseadores rotularam as pessoas no interior de categorias que, a eles,
detinham significados para demarcar as singularidades dos integrantes daquele corpo social.
Com base nesse pressuposto, esse estudo conferiu a essa lista de habitantes o estatuto
de ‘discurso’ qual seja de um conjunto de enunciados por meio dos quais se pretende entrever
sujeitos sociais. Tais sujeitos serão apreendidos num determinado tecido social, num
determinado coletivo e, portanto, produzidos pelas condições específicas daquela
temporalidade. Desse ponto de vista, pode-se supor, todas as discriminações presentes na lista
nominativa estão revelando (ou, melhor, produzindo) ‘sujeitos’ constituídos pelo discurso e

8
Eram eles: Rocio, Atuba, Barigui, Passaúna, Boa Vista, Tatuaquara, Botiatuva, Palmital, Arraial Queimado,
Campo Largo, Rio Verde, Tindiquera, São José, Minas do Itambé, Descoberto da Conceição, Registro e Campos
Gerais.
9
MARCÍLIO, op. cit., 215.
10
NADALIN, Sérgio O. A demografia numa perspectiva histórica. Belo Horizonte. ABEP, 1994. p. 47-49

4
que, de forma alguma, são anteriores a ele, pois é o discurso quem cria os espaços
representacionais em que os sujeitos estão inscritos.11
Em outras palavras, esse exercício se ocupa com as palavras utilizadas na lista de 1765
para identificar de que forma elas estabeleciam as diferenças entre as pessoas e os lugares, no
termo da vila de Curitiba. Nesse caso, o que está sendo proposto é um exercício de
identificação de categorias sociais e espaciais presentes na linguagem do documento. Longe
de ser um treinamento de positivismo histórico, a intenção é colher as categorias ‘vivas’, que
construíram os sujeitos sociais presentes na lista de 1765. Subjaz essa intenção a crença de
ser a taxionomia poderoso instrumento de análise social. Com efeito, da atenção às categorias
presentes nas fontes documentais, pode resultar uma multiplicação de atores sociais que, sob
critérios exclusivos de sexo, idade e condição, correm o risco de se manterem na opacidade.

A população feminina: uma categoria que insiste em aparecer na lista de 1765

A princípio, em relação à população livre, o censo de 1765 destinava-se a identificar


unicamente os homens. É fato, porém, que as mulheres casadas são nomeadas não o sendo
suas filhas. Também o são um bom número de mulheres que por razões diversas são chefes
de domicílios.
Um primeiro motivo pelo qual as mulheres são referenciadas é o de identificar o
pertencimento doméstico de homens filhos de mães-solteiras. Para essa situação são bons
exemplos, no bairro do Barigui, os fogos de Anna Maria das Neves, mãe de Paulo de
Almeida, de 38 anos, e o de Maria Alves de Assunção, mãe de João Leonardo de Assunção,
de 28 anos. A nomeação dessas mulheres parece expressar um reconhecimento social de que
seus domicílios foram estabelecidos e eram movidos por seu esforço, até porque seus filhos já
teriam idade adequada para assumir o comando. É uma situação peculiar, se considerarmos
que as representações daquela sociedade eram patriarcais.
A banalidade das estruturas domiciliares chefiadas por mulheres, portanto, deveria
corresponder uma classificação diferenciada das mulheres que não se atinha aos limites das
classificações religioso-morais presentes, por exemplo, nos registros paroquiais. A
legitimidade dessas chefias deveria saltar aos olhos dos recenseadores, pois o texto fornece
pistas de haver uma representação positiva a chefia masculina. Isso se depreende na presença
de tantos homens, já falecidos, a quem se atribuía a referência domiciliar. Por exemplo:
Ignácio Rodrigues da Silva já tinha 30 anos mas consta como “filho de Martinho Pereira da
Rocha, ja deffunto” e Antonio da Silva Magalhães estava com 64 anos e foi designado como
“filho de Antonio da Silva, ja deffunto”. Como explicar que pessoas que inclusive já tinham
maioridade civil tinham um morto a definir a identidade de sua moradia? Ou, invertendo a
pergunta: quais os fatores que ativavam a permanência desse falecido como autoridade a
comandar a família?
Essa questão se abre a investigações quando constata-se que a segunda situação que
levou os recenseadores a nomear mulheres também se deve à sua condição de chefes de
domicílios, porém na condição de viúvas. Foi ela que justificou a presença Joanna Pereira da
Silva, mãe de José dos Santos Faria, Amaro Alves Faria e Salvador José, cujas idades se
distribuíam entre 12 e 22 anos, na lista de homens de 1765.
Conferir chefia a uma viúva correspondia apenas à viuvez ou outros critérios estariam
presentes? Dentre eles, é possível perceber que viúvas de ‘boa condição’ eram nomeadas. Por
exemplo, Bruno da Costa Filgueira e seus irmão Bernardo da Costa Filgueira e João da Luz

11
ORLANDI, Eni. Análise do discurso: princípios e procedimentos. São Paulo: Pontes, 2005, pp. 10-12.

5
Costa integram um domicílio na condição de filhos da viúva Custódia de França. Eram
homens de 25, 22 e 19 anos respectivamente e já exerciam, inclusive, cargos na administração
municipal e militar.
Intriga, e incita à pesquisa, a nomeação dessas mulheres, haja vista que na grande
maioria dos domicílios em que o chefe morreu, como foi comentado acima, ele se mantém
como referência daquele grupo doméstico. Buscar respostas a essas situações específicas pode
nos abrir caminho para entender os jogos de poder daquela sociedade, particularmente no que
se refere às razões que oportunizavam ascendência feminina no agregado doméstico.

Ausentes

Se o universo feminino é velado, o masculino aparece com ampla gama de detalhes.


Analiticamente, então, essa categoria pode ser decomposta em diversas classes de homens. É
certo que eles estarão presentes em listas posteriores, mas, é possível pensar que foi exigido
dos recenseadores de 1765 um esforço de diferenciação entre os homens com quem
partilhavam o cotidiano, obrigando-os a classificá-los sob critérios minimamente consensuais.
Uma primeira situação que motivou os recenseadores a efetuar apontamentos foi a
ausência de determinadas homens de suas casas, por motivo de trabalho ou por estarem a
serviço régio. Chama atenção a raridade de homens ‘ausentes’: apenas quatro deles estariam
em viagem. Essa situação pode parecer inusitada ao pesquisador, pois boa parte de população
se situava na área de atividades tropeira o que, a princípio, os levaria constantemente a
percorrer a estrada da boiada. Resta clara, porém, a intenção dos recenseadores em inscrever
os ‘ausentes’ na lista de homens do planalto, pois sua tarefa, evidentemente, era a de fornecer
às autoridades da capitania um quadro de todos os homens aptos às armas.

Reinóis

Outra classe de homens que mereceu distinção foi a daqueles que nasceram em
Portugal, mesmo compondo um grupo tão diminuto quanto o dos ausentes. Esses indivíduos
mais frequentemente aparecem morando na Vila, pois dos sete qualificados como ‘do Reyno’,
cinco residiam na vila e os outros dois nas Minas do Itambé.
No Itambé estavam João Barros de Araújo, que possuía onze escravos dedicados a
explorar sua lavra de ouro, e Francisco Linhares. Esse era comerciante e contava com o
serviço de dois cativos. Mas, pode-se pensar, que os empregava nas minas pois em 1772
menciona-se que ele ‘abandonou o sonho do ouro nas lavras e passou a residir na vila’.
Com atividades mercantis também estavam envolvidos outros dois portugueses
fixados na vila (Antonio Teixeira Alves e Bento Gonçalvez Coutinho), cada qual ajudado por
dois escravos. Já Domingos Dias Braga, com seu escravo, exercia o ofício de sapateiro e se
ocupava com a criação de algumas poucas cabeças de gado. Distante das atividades
mecânicas estava João de Abreu Guimarães que ‘vivia de suas agências nos auditórios’,
desempenhando a função de procurador nas causas jurídicas.
Aparentemente, os reinóis mais prósperos eram João Barros de Araújo (minerador no
Itambé) e Francisco Xavier Pinto (morador na vila). Esse possuía apenas três escravos mas, na
lista, foi distinguido por possuir ‘mil cruzados’, situação que partilhava com poucos homens
no planalto. Ainda obtivera duas sesmarias onde, em pequena escala, havia ‘gado’ e ‘éguas e
se plantava feijão e milho. Passados alguns anos, em 1772, é provável que tenha sido o parco
rendimento da mineração que motivou a diminuição do plantel de João de Barros, pois nesse
momento ele era senhor de apenas nove e ‘todos penhorados por dívidas’. Diferentemente,
Francisco Xavier Pinto aumentou sua posse de escravos para 18, sendo 11 homens e sete

6
mulheres. Decerto foi essa prosperidade que o motivou a casar com Rita Ferreira quando já
havia entrado nos quarenta anos.
A distinção desses sete homens “do reyno” não corresponde a efetiva presença de
portugueses na sociedade curitibana. Se cruzarmos os nomes dessa lista de 1765 com os
registros de casamento, por exemplo, encontraremos um conjunto bem maior de reinóis que se
fixaram por ali. A partir desse procedimento podemos saber que no bairro do Registro, apesar
de a lista de 1765 não acusar presença de nenhum reinól, todos os genros de João Pereira
Braga, primeiro sesmeiro daquela região, eram homens nascidos em Portugal: Manoel
Simões, em Barcellos, José dos Santos Pacheco, em Ponte do Lima e João Gonçalvez
Barreiros em Santa Olália do Cerdal, todos do arcebispado de Braga. Esses homens detinham
projeção social e política no planalto e, é muito provável, que suas origens fossem
amplamente conhecidas.
Por isso, creio eu, o fato deles não aparecerem como ‘homens do reyno’, além de
sugerir que já estavam amplamente integrados à sociedade local, encaminha a investigar quais
os fatores presentes nos processo de inserção/distinção de reinóis nas sociedades da América
portuguesa. Em contrapartida, saber desse sub-registro impõe atenção quanto a impropriedade
de se apoiar exclusivamente das listas nominativas de habitantes para o uso de movimentação
populacional no interior da América Portuguesa.

Criminosos

Outra classe de homens produzida pela lista nominativa de 1765 é a dos criminosos.
Ela é composta por dez homens dispersos nos bairros do rocio e de São José. Apenas de um
deles há indicação de ser “criminozo de morte”, caso do Manoel Preto Bueno, sendo que, dos
demais, não se indica a natureza do delito. Uma característica desse grupo é ser formado
majoritariamente por homens casados. Somente dois criminosos do rocio da vila eram
solteiros: Manoel Cardozo de Siqueira, 25 anos, e Sebastião Tavares, 20 anos.
A seguir, pode-se apontar que aparentam ser homens pobres pois, dentre eles, apenas
Victoriano João Baptista, casado com Margarida Pereira possuía três escravos. Mais
frequentemente moravam ‘de favor’ em terras alheias ou em domínios da Coroa. Victoriano,
por exemplo, tinha seus sítio “em terras realengas” na mesma situação de Vicente Dias
Bicudo que residia na ‘Campina Grande pertencente a El Rey’. Ali, vivia “apenas de sua
agência e nada mais”.
Ressalta-se, porém, que esses sujeitos, mesmo singularizados como criminosos,
aparentemente, não foram retirados do convívio social. Nas listas nominativas subseqüentes,
pude encontrá-los (não todos, é certo) vivendo suas vidas na maior normalidade. Mesmo
assim, pode-se colocar a hipótese de que seus ‘crimes’ lhes retiraram a oportunidade de
participarem das tropas auxiliares locais. Tomando o caso dos criminosos de São José, pude
constatar que na lista de recrutas de 1766 não consta o nome de nenhum deles12.

Incapazes

Dadas as intenções militares dessa lista, os recenseadores se ocuparam em indicar


como precisão os homens não aptos a tal serviço, produzindo uma relação dos incapazes. Eles
totalizam 37 pessoas, residentes em grande parte nos Campos Gerais, São José dos Pinhais e

12
Companhia de São Joze, Pertencente a regimento de Paranaguá. Anno de 1766. Capitão Estevão Ribeiro
Bayao. (originais no Arquivo Publico de São Paulo).

7
Tindiquera. Não há descrição do motivo incapacitante, ficando, a princípio, em aberto saber
se suas limitações eram de ordem física ou mental.
O mais jovem dos “incapazes” tinha 12 anos: se chamava Ignácio Alves e morava no
Barigui, com seus pais. A inclusão desse jovem numa lista presumidamente destinada a fins
militares estaria justificada pela proximidade com os 14 anos, idade em que se entrava para o
serviço de defesa militar. Porém, o jovem Ignácio deveria possuir alguma característica que
efetivamente o excluísse do serviço com as armas, pois um exame da lista nominativa
evidencia que houve a preocupação em arrolar todos os ‘homens’, independentemente de sua
‘capacidade’ ou idade. Disso é prova os inúmeros bebês presentes naquele censo: o mais novo
tinha quatro dias, era filho de Jorge Soares que morava no Registro. Sequer tinha nome, posto
ser ‘rezenacido, ainda por batizar”, mesma situação do filho de Fernando Fernandez de Faria,
de 8 dias, morador nas Minas do Itambé.13 A particularidade da situação dessas crianças
merece destaque pois dimensiona o peso do batismo na vida daquela época, sugerindo que a
nomeação passava, necessariamente, pela pia batismal.
Já, o ‘incapaz’ mais idoso era Gaspar Teixeira, de 96 anos, morador em São José. De
fato sua idade avançada sugere uma dispensa compulsória das atividades militares. Porém,
não parece ter sido esse o critério dos recenseadores, pois Antonio de Lara, o Moço, que
morava no Rocio, indicou estar com 100 anos e não foi discriminado como incapaz. Se de
fato Antonio de Lara, o Moço, alçou os 100 anos não sabemos, mas é possível observar que
em seu avanço nos anos ele tinha com quem partilhar memórias. No conjunto, quase uma
vintena de homens com mais de 80 anos foram arrolados sem distinção de incapacidade. Se
somados aos ‘incapazes’ com mais de 65 anos ofereceriam farta escolha para se formar um
pelotão da Companhia de Ordenanças.
Evidentemente a burocracia não tinha interesse em convocar ‘rezenacidos’ ou
octogenários para as atividades bélicas. A partir disso é possível, em primeiro lugar, pensar
que efetivamente eram as limitações físico-mentais, e não a etária, o critério para considerar
incapacidade. Por exemplo: João Teixeira Costa, morador de São José, que assim foi
qualificado, em outro documento é citado como ‘aleijado das pernas’. Sua limitação ao
serviço militar não se estendia à atividade laboral, pois ganhava seu sustento exercendo o
ofício de sapateiro.
A seguir, pode-se sugerir que, ao recensearem todos os integrantes masculinos de um
determinado ‘fogo’, as autoridades poderiam estar mapeando os domicílios que teriam sua
sobrevivência comprometida pela ausência de um de seus filhos. Um certo olhar paternalista
das autoridades para com sua população justificaria a presença dos idosos e das crianças sem
o epíteto da incapacidade pois, tanto uns como outros, podem desempenhar inúmeras
atividades do ponto de vista da economia doméstica. Porém, nas ocasiões adequadas,
poderiam ter servido, ou vir a servir aos interesses d’El Rey.
Na historiografia, e na documentação oficial, afirma-se que teria sido uma estratégia
dos grandes senhores subtrair o número real dos filhos varões ou declará-los como incapazes
com vista a obterem dispensa do serviço militar. Mas, é certo, não foi o recenseamento de
1765 que ativou essa estratégia.

Demarcando os não-brancos: gentios da terra, pardos e negros

Em grande parte, a população formada na área paulista foi produzida pela intensa
miscigenação com as indígenas. Assim, era de se esperar que o arrolamento de 1765

13
Essas crianças receberam os nomes de Pedro e de Ignácio e, por coincidência, foram criados apenas por suas
mães, pois antes de completarem 5 anos seus pais já haviam falecido.

8
expressasse essa presença, apresentando uma fatia significativa de população indígena ou
parda. Mas, isso não ocorre.
O ‘gentio da terra’, conforme as informações da lista, estaria praticamente ausente da
sociedade curitibana, pois apenas sete pessoas foram destacadas nessa situação. Sua maior
parte era jovem ou mesmo criança, do que se infere a raridade de casais indígenas no convívio
com a sociedade ‘branca’ que se formara na região.
Dois jovens, Estevão e Ignocencio, moradores no rocio da vila foram assinalados
como “administrados” de Luzia da Cunha e, nos Campos Gerais, são arroladas duas crianças,
Salvador de 5 e Manoel de 4 anos, que moravam com sua mãe, Anna Índia. Esse grupo
familiar vivia agregado à casa de Antonio de Lima. A princípio, é evidente a diferença de
situação entre esses ‘curumins’: dois deles estariam fadados a, de algum modo, se integrarem
ao universo dos códigos ocidentais; contudo, os filhos da índia Anna teriam a oportunidade
de manterem referências ancestrais, o que poderia orientá-los a uma convivência mais estreita
com o (suposto inexistente) segmento indígena daquela sociedade. Já os três adultos eram um
casal de “índios” no Tindiquera, bairro à oeste de Curitiba 14, e Manoel, de 30 anos,
especificado como índio ‘pareci’.
Finalmente, cumpre destacar que todos os indígenas estão devidamente nomeados e
incluídos na listagem dos homens livres; o que os diferencia dos demais é a falta de um
sobrenome.
Em diferente situação estavam os casais ou indivíduos destacados como ‘pardos’. Com
essa designação constam 10 casais moradores nos bairros Barigui, Passaúna, Tatuquara,
Itambé, Registro e Campos Gerais. Todos eles, e quando foi o caso, suas mulheres, tem nome
e sobrenome. Esses pardos seriam descendentes de antigos ‘administrados’ em pleno processo
de integração com a sociedade luso-brasileira? Ou, dentre eles havia descendentes de escravos
africanos? Essas são outras das inúmeras questões que as ‘classes de homens’ da lista de 1765
deixa em aberto. Sabe-se, porém, que ao menos um desses pardos já compreendera que, além
de um nome de família, naquela sociedade era necessário ser senhor, e portanto já possuía seu
escravo.
Além de assinalar os ‘pardos’, essa lista se ocupou em especificar a cor dos cônjuges
de casais de negros livres, situação de apenas dois casais (um em Campo Largo e outro em
São José). Nenhum homem solteiro foi distinguido como ‘negro’. Disso decorre pensar se,
naquele momento, negro era cor ou condição atribuída, quiçá, a um casal alforriado....
Outra situação que não passou desapercebida aos recenseadores foi a união mista, de
homem ‘branco’ com escrava. De fato, cinco deles casaram com mulheres designadas apenas
como ‘escravas’. Qual teria sido o motivo que levou aos recenseadores a indicar a
especificidade dessa conjugalidade, em uma listagem com fins militares, é outro aspecto a ser
ponderado, até porque são casos raros e isolados. Buscando em listas posteriores, observa-se
que nem sempre é ressaltada a condição desigual dos cônjuges, pois esse indicador é mais
facilmente encontrado nas atas paroquiais. 15

Uma categoria clássica: os escravos

14
Francisco, 60 anos, casado com Anna.

15
As uniões mistas nessa região ocupam parte dos estudos de Cacilda Machado que estabeleceu correlações
importantes a esse respeito. Aqui, interessa apontar que uma de suas observações diz respeitoà recorrência de
migrantes estabelecendo casamentos desiguais, o que reitera o papel do casamento no interior das estratégias de
inserção social. (cf. MACHADO, C. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na produção da hierarquia
social. São José dos Pinhais - PR, passagem do XVIII para o XIX. Tese, UFRJ, 2006. Em particular, capitulo 5.)

9
A lista de 1765 informa que, naquele ano, os cativos compunham um conjunto de
1.022 pessoas, o que elevaria para 5.017 o universo dos moradores do planalto. Esse total,
porém, deve ser considerado com muita cautela, pois não há como saber se a contagem dos
escravos incluiu cativos de ambos os sexos ou apenas os escravos homens.
Nesse sentido, vale uma comparação com o contingente de cativos da lista nominativa
de 1772, que aponta a presença de 792 escravos, 16,21% da população naquele momento.
Esse percentual, por sua vez, indica uma diminuição do número de escravos, pois em 1765
eles seriam 25,58% da população total. Nesse caso, é evidente, não se pode esquecer que a
população feminina de 1765 foi estimada para fins desse exercício e que esse cálculo pode
estar contribuindo para sobrelevar o percentual de escravos em 1765.
De fato, os investigadores apontam que o Paraná tradicional foi um universo pequeno
escravista com algumas exceções para a área dos Campos Gerais.16 Alem disso, é recorrente a
observação de que os cativos integram a sociedade do planalto mais frequentemente entre as
últimas décadas do século XVIII e as primeiras do século XIX.
Tendo isso em vista não se pode considerar com seriedade o peso percentual de 25%
de escravos na população de 1765: certamente essa participação seria menos significativa, o
que não equivale sugerir que a base do trabalho estivesse assentada em mão-de-obra livre.
Mesmo que, na área de expansão paulista, os africanos tenham dividido sua situação escrava
com o gentio da terra, a documentação informa presença de escravos negros desde os
primórdios da ocupação do planalto.
Reconhecer a precocidade da presença de escravos de origem africana não permite,
todavia, aceitar que eles conformassem 25% da população do planalto em 1765. O que sugere
pensar que no interior desse grupo tenham sido, ‘por costume’, contabilizados o grupo de
administrados. Inadvertidamente sim, posto que desde 1755 o Reino expedia normas e
regulamentos que objetivavam a inserção dos ameríndios na sociedade civil, reservando
apenas aos africanos a condição de subalternidade.
Outro fator que concorre para se pensar que no total de escravos estava contabilizada a
mão-de-obra indígena é a pífia presença de ‘gentio da terra’ no arrolamento dos homens
livres.

Espaços da desigualdade

Ao se analisar a repartição dos homens pelos ‘sertões de Curitiba’, na lista de 1765,


não se pode perder de vista que o censo integra os atos administrativos que permitiram D.
Luiz Antonio Botelho de Souza Mourão promover, em toda a capitania de São Paulo, intenso
movimento de criação de freguesias e vilas. Neste período, a noção de território estava sendo
reavaliada, e mesmo os pontos fronteiriços, conforme as concepções da nova ordem política,
passaram a representar pontos avançados da civilidade portuguesa, perdendo a conotação de
sertões vazios e bestiais. Ao contrário, a integração de tudo e de todos ao domínio régio
passou a ser função prioritária da administração, dada a concepção de responsabilidade do
Estado para com os territórios e os povos que estavam sob seu domínio.
Portanto, se as vilas, até meados do século XVIII, eram constituídas pela confluência
dos interesses de seus habitantes com os da Coroa Portuguesa, a partir das Instruções do rei
Dom José I, de 26 de janeiro de 1765, foi

16
COSTA, I.;GUTIERREZ, H. Paraná, mapas de habitantes 1798-1830. São Paulo : IPEA, 1985; MOTTA, J.
F. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-1829). SÃO Paulo:
Fapesp/Annablume, 1999 (conferir particularmente o capitulo 1);

10
“servido ordenar que nas povoações e partes desta Capitania se levantem e erijam vilas, congregando a
elas todos os vadios, dispersos e que vivam em sítios volantes, para morarem civilmente, ministrando-
se-lhes os sacramentos, e estarem prontos nas ocasiões do real serviço, por ser assim conveniente ai
mesmo aumento e bem dos povos” (apud BORBA : 1997:17)

Por essa concepção, tornava-se imperioso congregar ‘o povo disperso e vadio’ ao


controle jurídico-adminstrativo lusitano, fracionando o território em maior número de
jurisdições civis e religiosas. E assim, se entre 1705 e 1767 nenhuma vila fora criada em
território paulista, apenas na administração do Morgado de Mateus foram criadas onze vilas e
sete povoados. No início desse processo foi realizado o censo de 1765 em que, é suposto, as
autoridades se valeram de designações seculares. É certo que, no caso de Curitiba, a
toponímia usada para situar os espaços foi produzida no século XVII. Desde então o único
território que recebeu identificação nova parece ter sido o “Registro”, corruptela do Registro
do Rio Grande, pois essa área foi incorporada ao espaço curitibano após a criação do posto de
arrematação do imposto do gado, que passou a transitar depois de 1730.

GRÁFICO 1 – Distribuição dos domicílios nos bairros de Curitiba em 1765

Vila
Atuba
5%
Campos Gerais Rocio 2%
19% 7%
Barigui
3%
Passaúna
2% Boa Vista
2%

Tatuquara
Registro
6% 3%

Botiatuva Palmital
3% 2%
Descoberto da Conceiçao
3%
Arraial Queimado
1%
Minas do Itambé Borda do Campo
2% 2%
Campo Largo
5%

Rio Verde
São José 3%
21%
Tindiquiera
11%

Os diversos autores que já se ocuparam com a formação da sociedade paranaense


‘serra acima’ concordam que ela foi formada pela confluência de dois movimentos
migratórios distintos, havidos ainda no século XVII.17 Um deles, associado à mineração na
região de Paranaguá que ativou no Reino a esperança de ali se situar um Eldorado. Disso é
prova, inclusive, a autorização do governo do Rio de Janeiro18 de criar, em 1655, uma casa de

17
Nessa linha, o trabalho mais recente é NADALIN, Sérgio Odilon. Paraná: ocupação do território, população e
migrações. Curitiba: SEED, 2001. No interior dessa obra há uma síntese e eventuais correções a estudos anteriores.
18
O governador era Salvador Correa de Sá e Benevides.

11
fundição em Paranaguá, evitando com isso o deslocamento dos mineradores para a vila de
Iguape para quintar o ouro que garimpassem.19 Nesse contexto, inúmeras expedições, oficiais
e particulares, se dirigiram ao planalto com vistas a buscar riquezas. As rotas mais freqüentes
seguiam a montante dos rios Cubatão (atual Nhundiaquara) e do Ribeira do Iguape. Os
faiscadores se valiam também das antigas trilhas do Peabiru20 e, por elas, espalharam
pequenos pontos de apoio às suas atividades, inicialmente mais próximos à Serra do Mar e
rapidamente se espraiando em direção ao interior do primeiro planalto.
Expressa bem esse movimento a localização do Arraial Queimado, no atual município
de Bocaiúva do Sul, em área contígua à Serra do Mar. Ele foi um dos lugarejos criados pelos
faiscadores, ainda em meados do século XVII, e, portanto, é provável que seu surgimento
tenha sido coevo, ou até anterior, ao de Nossa Senhora da Luz, antiga denominação de
Curitiba. Era local de certo movimento pois ficava no caminho dos que transitavam para o
litoral mas, já na primeira década do oitocentos, estaria em plena decadência. Nesse período,
em 1710, ali foi concedida sesmaria a Domingos Fernandes Grosso, que alegava “não ter
terras para agasalhar sua família”. De qualquer forma, a mineração naquela região não se
extinguiu de todo e, ao longo do XVIII, seguiu-se explorando as Lavras Velhas do Putunã21 e,
pelas noticias que se tem, a exploração pode ter concentrado uma população mais expressiva
do que a encontrada em 1765. Nesse ano, a localidade já estava em plena decadência,
contando apenas com seis domicílios, sendo assim o bairro com menor concentração
populacional.
Em contrapartida, as áreas ligadas à pecuária eram pujantes, pois entre os amplos
limites dos Campos Gerais, São José dos Pinhais, Campo Largo e Registro estavam a maioria
da população e dos escravos.

Tabela 1
Distribuição dos domicílios e dos escravos nos bairros de Curitiba, 1765.
escravo % no
c/escravo
Localidade Domicilio % planalto % com escravo p/bairro planalto
Vila 35 4,55% 19 54,29% 88 8,61%
Rocio 53 6,89% 8 15,09% 29 2,84%
Atuba 13 1,69% 1 7,69% 5 0,49%
Barigui 21 2,73% 6 28,57% 17 1,66%
Passaúna 18 2,34% 9 50,00% 53 5,19%
Boa Vista 12 1,56% 3 25,00% 3 0,29%
Tatuquara 26 3,38% 5 19,23% 14 1,37%
Botiatuva 24 3,12% 1 4,17% 1 0,10%
Palmital 16 2,08% 2 12,50% 2 0,20%
Arraial Queimado 6 0,78% 1 16,67% 4 0,39%
Borda do Campo 14 1,82% 3 21,43% 44 4,31%
Campo Largo 39 5,07% 9 23,08% 14 1,37%
Rio Verde 20 2,60% 2 10,00% 12 1,17%
Tindiquiera 81 10,53% 3 3,70% 5 0,49%
São José 161 20,94% 42 26,09% 341 33,37%
Minas do Itambé 15 1,95% 5 33,33% 27 2,64%

19
WACHOWICZ, Rui. Historia do Paraná. Curitiba : Imprensa Oficial do Paraná, 2002. p. 57-59.
20
O trânsito de portugueses por essas trilhas resultou em nomeá-las como Caminhos da Graciosa, de São Tome
do Itupava e do Arraial.
21
LOPES, Jose Carlos Veiga. Aconteceu nos Pinhais: subsídios para as historias dos municípios de Paraná
tradicional do planalto. Curitiba: Editora Progressiva, 2007.

12
Descoberto da Conceiçao 20 2,60% 9 45,00% 72 7,05%
Registro 49 6,37% 10 20,41% 43 4,21%
Campos Gerais 146 18,99% 39 26,71% 248 24,27%
TOTAL 769 100,00% 177 23,02% 1022 100,00%

Esses dados ressaltam a concentração dos escravos nas mãos de poucos senhores e em
determinados bairros, com ampla vantagem para o de São Jose dos Pinhais e os Campos
Gerais. Portanto, não restam dúvidas de que na segunda metade do século XVIII a pecuária
absorvia a maioria dos escravos já que, em números absolutos, 589 dos 1.022 cativos da
região estavam ali. A seguir, em outros quatro bairros (Descoberto da Conceição, Passaúna,
Borda do Campo e Registro) estavam mais 140 escravos, grosso modo, se ocupando em
fazendas de gado.
No extremo oposto estavam os bairros em que a mão-de-obra livre predominava: o
Atuba, Botiatuva e Arraial Queimado, cada qual possuindo apenas um domicilio com
escravos. Mesmo assim, esses domicílios escravistas possuíam diferenças que não permitem
equiparações. No Atuba, o domicílio dos jovens Bruno da Costa Filgueira, Bernardo da Costa
Filgueira e João da Luz Costa contava com o serviço de cinco cativos; já em Botiatuva, o de
Francisco Luiz de Ramos, casado com Maria Leme da Silva, e no Arraial Queimado, o de
Sifronio (sic) Cardozo eram servidos por um apenas.
Na verdade, a grande maioria dos bairros, como pode ser observado na tabela 1, era
povoado por homens livres, mas pobres, pois se ocupavam de suas lavouras sem auxilio de
cativos. No rocio da Vila, por exemplo, os 29 escravos do bairro estavam em oitos dos seus
53 domicílios. Disso resulta afirmar que naquele momento, em todo o planalto, a posse de
escravos ainda não se disseminara pela sociedade. Eles se concentravam nas mãos de poucos
senhores e, até certo ponto, eram poucos os ‘pequenos patriarcas’.22

A política pombalina refina a definição dos espaços

Anteriormente, já ficou esclarecido que o cálculo da população total apresentado nesse


texto corresponde a uma aproximação do que ela efetivamente deveria ser. E, como vem
sendo argumentado, a sua estrutura do ponto de vista da cor e condição permite que se
coloquem sérias dúvidas quanto a corresponderem ao efetivo populacional.
Essas mesmas dúvidas se destacam quando se observa que os bairros arrolados, a
princípio, não correspondem à área que o município de Curitiba abarcava naquele momento.
Em 1755 seu termo foi remarcado, fixando-se que ao norte, esse limite seria dado pelas terras
do município de Sorocaba, a leste, pelo de Paranaguá e, ao sul, esse limite chegava a Lages,
pois era dado pelo rio Pelotas. Mas, essa questão permanece quando se constata que, na lista
nominativa de habitantes de 1772, a população curitibana se distribui em mais oito bairros.

Tabela 2
Relação dos bairros curitibanos nas listas nominativas de 1765 e 1772
1765 1772

1. Vila 1. Vila
2. Rocio 2. Rocio

22
Com essa expressão, Cacilda Machado (op. cit.) caracteriza os pequenos escravistas, recorrentes no bairro de
São Jose dos Pinhais, na virada do XVIII até a primeira metade do século XIX.

13
3. Atuba 3. Bacacheri e Atuba
4. Barigui 4. Barigui
5. Passaúna 5. Tatuquara
6. Boa Vista 6. Palmital
7. Tatuquara 7. Arraial Queimado
8. Botiatuva 8. Campina Grande e Borda do Campo
9. Palmital 9. Rio Verde
10. Arraial Queimado 10. Tindiquera
11. Borda do Campo 11. Campo Largo
12. Campo Largo 12. Itambé
13. Rio Verde 13. Botiatuba
14. Tindiquiera 14. Descoberto da Conceição
15. São José 15. Patrocinio de São José
16. Minas do Itambé 16. "Freguesia"
17. Descoberto da Conceição 17. Piraquara
18. Registro 18. Mandirituba
19. Campos Gerais 19. Campo dos Ambrósios

20. Santo Antonio da Lapa

21. Campos Gerais

22. Carrapatos até Santa Quitéria

23. Catanduva até Tingui


24. Taiacoca, Ponta Grossa até a Guarda
de São Bento

25. Pitangui até o Iapó

26. Iapó até Pirati

27. Piraí até Morungaba

É impensável sugerir que, nas condições específicas daquela sociedade, em apenas


sete anos ocorresse um aumento demográfico tão significativo que encaminhasse a
constituição de novos espaços sociais. Até onde já se sabe, em meados do século XVIII, o
planalto curitibano não foi atingido por nenhum movimento migratório cujo efeito tenha sido
a intensificação das áreas povoadas.
A explicação para o aumento do número dos bairros no planalto curitibano não pode
ser encontrada no âmbito populacional. Também concorre para isso observar que, naquela
população, não houve aumento substantivo: em 1765 a estimativa efetuada anteriormente
aponta para um contingente de 3.995 pessoas livres. Em 1772, esse total era de 4.097 pessoas
e, portanto, o mínimo que se pode inferir é que o contingente populacional não recebeu
oscilação. Ao contrário, se manteve no patamar de sete anos atrás apresentando, inclusive,
pífio crescimento vegetativo. Em suma, parece que nesse intervalo de sete anos tudo se
manteve no interior da normalidade do antigo regime demográfico: população equilibrada
pela alta mortalidade e alta fecundidade.
Dado o exposto, creio que a explicação para o aumento do número dos bairros pode
ser encontrada, com maior propriedade, na esfera política, geopolítica, se quisermos. Isso
porque, como vem sendo apontado, naquele momento havia grande preocupação das

14
autoridades em identificar a efetiva localização dos agrupamentos sociais sulinos e, disso
decorreu, como também foi dito anteriormente, a criação de vilas e freguesias nessa região.
Assim, a crescente capilaridade dos aparelhos administrativos, civil e religioso,
favoreceu a essa burocracia conhecer – e, portanto, discriminar – com maior precisão as
unidades sociais que passaram a conformar os novos bairros. A luz dessa explicação, pode-se
entender porque as populações das duas listas são basicamente as mesmas. De fato, a
população não se alterou entre 1765 e 1772; o que sofreu ampla modificação foi o
conhecimento do espaço em que ela se distribuía. Estaria em processo um refinamento do
conhecimento do território que se refletiu em nomeações mais precisas dos espaços sociais.
Portanto, a mesma população que em 1765 se distribuía em 19 bairros, em 1772 passa a estar
alocada em 27 deles apenas por efeito de um conhecimento mais detalhado dos locais em que
ela estava fixada. O caso mais flagrante, e interessante, é o território dos Campos Gerais que
passa a ser discriminado como se fosse – o que de fato era – um caminho: “Pitangui até o
Iapó”; “Iapó até Pirati” e “Pirai até Morungaba”.23

Para encerrar

Todos sabem que a produção historiográfica fundada na exploração de listas


nominativas de habitantes já descortinou aspectos da vivência colonial que, é possível, não
seriam acessíveis com documentação diversa. Essa fonte é de tal forma utilizada como
fundamento dos estudos dos historiadores que seu potencial já é canônico: ela nos permite
observar a estrutura da população e dos domicílios, num determinado momento. Espera-se,
portanto, extrair delas indicadores de categorias analíticas clássicas de sexo, cor e condição
social que estariam presentes por toda a sociedade.
O exercício que empreendi não visou questionar esse cânone. Apenas se prendeu a
observar como as autoridades da região detalharam as pessoas e os espaços em que viviam.
Nesse caso, conferi a essa lista o estatuto de um sistema de classificação dos homens e dos
lugares. Deste ponto de vista, foi curioso constatar que eles perceberam poucas diferenças
entre si. O que não deixa de ser notável, haja vista a historia social demonstrar com insistência
o quanto aquela sociedade se hierarquizava a partir de filigranas, associados evidentemente ao
nascimento, a cor e a condição de seus integrantes.
A raridade de índios e pardos, a total ausência de mulatos, a ínfima presença de
homens negros sugere pensar que a eles seria pouco significativa a variedade de cores que
hierarquizavam o homem colonial. O que aparece com clareza é a clivagem entre livres e
escravos, pois desses apenas pode-se saber se estavam sós ou acompanhados por outros de sua
condição em um determinado domicílio. Cativos ficaram reduzidos a números, situação pior
que a dos indígenas, pessoas sem sobrenome, muito pior que a dos ‘rezenacidos’, que tinham
nome de família.
O que se destaca na lista de 1765 é uma sociedade de população ‘branca’ em que
poucos detinham diferenças tão agudas que impusessem a necessidade de demarcar sua
especificidade étnica. A improbabilidade dessa conformação social nos mostra a aparente
incapacidade dos recenseadores de 1765 de criarem um campo de alteridade social em que ‘as
pessoas de cor’ fossem devidamente incluídas. O exame das distinções presentes em
recenseamentos posteriores mostra que essa dificuldade foi superada. Em contrapartida,
mostra o quanto elas acabaram sendo produto de demandas exteriores à sociedade local que,
num primeiro momento − caso da classificação presente na lista de 1765 − não percebia o
potencial político de uma miríade de distinções sociais.

23
Lages foi alçada a condição de vila em 1766.

15
Esse exercício de ‘retorno à fonte’, portanto, foi muito específico por ser conduzido
pelo pressuposto de que a confecção da lista nominativa de 1765 foi momento que
oportunizou a expressão de uma etnografia. Dele, o mínimo que se pode concluir é que as
autoridades regionais foram míopes ao demarcarem os tipos sociais presentes naquela
sociedade. Para entender essa atitude, aparentemente inclusiva, valeria à pena observar com
mais afinco como essas categorias de pessoas serão trabalhadas nos anos seguintes. E,
conclamar por investigações das variações regionais e temporais das classes de pessoas que
estão presentes nas listas de habitantes. A quem o fizer, aqui fica minha contribuição.

16

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