ESPORTE EEPOLÍTICA

POLÍTICAINTERNACIONAL
INTERNACIONAL

COOPERAÇÃO E CONFLITO
DENTRO E FORA DA RODA DE CAPOEIRA
A CAPOEIRA E A DIPLOMACIA POSSUEM VÁRIOS PONTOS DE CONTATO QUE VÃO
MUITO ALÉM DA INCLUSÃO DESSE ESPORTE NO PACOTE DE ATIVOS DO SOFT
POWER BRASILEIRO

Ernesto Batista Mané Júnior

FOTO: Alice Pozzoli e Mestre Baixinho

Roda de Capoeira Angola nas ruas

de Gênova, Itália.

O Brasil é considerado pela comuni-
dade internacional como um interlocu-
tor confiável e construtor de consensos.
Com efeito, o país procura agregar valor
ao processo de construção de uma ordem
internacional mais justa e equilibrada
alavancando-nos exatamente nestes e
em outros predicados que caracterizam a
diplomacia brasileira. Indubitavelmente,
a forma de agir do Brasil no plano exter-
no está intimamente relacionada com a
identidade nacional, para cujo processo
de formação a capoeira contribuiu de
maneira decisiva. Há, portanto, muitos
pontos de contato entre a capoeira e a
diplomacia; explorá-los para além do dis-
curso correntemente propalado de que a
capoeira faz parte do pacote de ativos que
fundamentam o soft power do Brasil é o
objetivo deste ensaio.
Na teoria das relações internacio-
nais, a cooperação ocorre quando os
atores ajustam seus comportamentos às
preferências reais ou antecipadas, por
meio de um processo de coordenação
política. Esse processo geralmente leva
a recompensas para todas as partes en-
volvidas, mesmo que estas não sejam
igualmente compartilhadas. O conflito,
por outro lado, é caracterizado por um
comportamento individual, orientado a
resultados, que busca reduzir os ganhos
disponíveis para os adversários ou impe-
dir a satisfação de suas necessidades. A
No universo cultural
da capoeira, a
conformidade é um
fenômeno que está na
superfície, enquanto a
resistência é subjacente
às aparências.
capoeira, vista sob essa ótica, é, simulta-
neamente, cooperativa e conflitiva. Essa
dualidade está presente na capoeira des-
de sua origem, cujas bases estão assen-
tadas na dicotomia conformidade com
o establishment versus resistência cul-
tural, ambas dimensões fundamentais
para a sobrevivência dessa expressão
única de cultura popular.
Nem tudo que reluz é ouro, nem tudo
que balança cai
No universo cultural da capoeira, a
conformidade é um fenômeno que está
na superfície, enquanto a resistência é
subjacente às aparências. Analogamen-
te, a dualidade cooperação/conflito
presente na capoeira transborda para
outros ambientes. No plano externo, a
capoeira se difundiu como um símbolo
inequívoco da cultura brasileira – nes-
se plano, destacam-se suas raízes bra-
sileiras ou sua inserção no mercado de
consumo de bens culturais como pro-
duto “Made in Brazil”. O conflito, en-
tretanto, é estabelecido na medida em
que surgem narrativas de assimilação
da capoeira não mais como puramente
brasileira, mas compreendida como fe-
nômeno que passou a pertencer à cultu-
ra global. Além disso, nos planos inter-
no e externo, há, também, uma disputa
pelo reconhecimento da ancestralidade
africana da capoeira em oposição à afir-
mação de sua brasilidade. Nesse plano,
busca-se enfatizar os elementos de sua
ancestralidade africana, com o objetivo
de valorizar essas raízes e de constituir
um contraponto à cultura ocidental.
A capoeira possui características que
a diferenciam, em várias dimensões, das
práticas ocidentais. Por possuir heran-
ça africana, oferece outras bases epis-
têmicas. Mais precisamente, a capoeira
está circunscrita em fundamentos não-
cartesianos, de modo que nela não há a
hipótese ontológica, ou seja, a de uma
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verdade preexistente que precisa ser
trazida à luz por meio de uma formu-
lação abstrata. As verdades da capoeira
circulam “no ar” e são apreendidas pela
prática constante. Na perspectiva tem-
poral, o tempo da capoeira não é linear, é
circular. O ensino integrado de elemen-
tos de música, de dança, de luta, de tea-
tro e de canto é comum em manifesta-
ções culturais africanas, em oposição ao
ensino atomizado dessas disciplinas no
mundo ocidental. Essa forma de ensino
é tributária da “pedagogia do africano”,
cujo método de ensino é personalizado -
na capoeira, o tempo de aprendizado é o
tempo de cada um. Outra marca africana
fundamental encontrada no ensino de
capoeira é que o mestre de capoeira não
ensina apenas o movimento, ele trans-
mite o sentimento. A capoeira é uma ex-
pressão cultural transmitida pelo mestre
para os alunos eminentemente pela ora-
lidade. Por essa razão, cada mestre é um
“museu vivo”, sendo a tradição oral ine-
rente à forma de educar encontrada nas
tradições africanas. O aprendizado pos-
sui um caráter profundamente comuni-
tário, na roda de capoeira, uma vez que o
indivíduo se encontra conectado com o
microcosmo da realidade representado
naquele contexto.
Verifica-se que a capoeira abarca inú-
meras realidades coexistentes e, muitas
vezes, contraditórias, consubstanciadas
em uma multiplicidade de narrativas
construídas para atender a interesses di-
versos. Há, no entanto, duas macro narra-
tivas contemporâneas que se sobressaem,
a da capoeira “Made in Brazil” versus a
da capoeira como manifestação de re-
sistência cultural de origem africana. O
ponto de intercessão desses dois planos
se situa no encontro do eixo diacrônico,
das sucessões históricas, com o eixo sin-
crônico, no qual se sucedem os eventos
do presente. Na perspectiva da historio-
grafia contemporânea, a capoeira tem
ESPORTE E POLÍTICA INTERNACIONAL
sido lida como um fenômeno do Atlânti-
co Negro, e, consequentemente, um fenô-
meno global que andou pari passo com o
processo de colonização do novo mundo,
tendo como epicentro o Brasil. Esses dois
planos também marcam a principal cliva-
gem no mundo da capoeira, representada
pelas escolas de Bimba e Pastinha.
Sem querer buscar uma ontologia
para a capoeira, nem tampouco achatar
essas macro-narrativas em simplifica-
ções grosseiras, pode-se afirmar que a
capoeira é um fenômeno cultural afro-
-brasileiro. O Brasil foi notoriamente um
dos principais destinos da diáspora afri-
cana, portanto a prática universalizada
da capoeira em todas as regiões do país
é uma celebração da colaboração negra
para a formação identitária brasileira.
Além disso, à medida que a capoeira se
globaliza, estabelecendo uma verdadei-
ra cultura em rede, favorece a possibili-
dade de reparação no terreno da memó-
ria histórica e no campo simbólico das
relações raciais. Esse processo consti-
tui-se num mecanismo importante que
age em relação às ideias e às concepções
dos grupos racialmente distintos, e que
tem o potencial de, no longo prazo, reco-
nhecer o papel dos povos negros como
fonte de saberes e reduzir a discrimi-
nação racial não apenas no Brasil, mas
também no mundo.
A capoeira e suas metáforas
Todo capoeirista iniciante apren-
de, por intermédio da capoeira, muitas
metáforas. À medida que o capoeirista
avança em sua formação, alcança o nível
mais abstrato de compreensão de que
sua arte é, na verdade, uma grande metá-
fora. Incontestavelmente, a mais famosa
delas é a de que roda de capoeira pode
ser vista como um simulacro do mundo.
Os capoeiristas e espectadores se reú-
nem em um círculo - a roda de capoeira
-, dentro do qual dois capoeiristas fazem
o “jogo”, simulando e explorando todas
as facetas e artimanhas dos indivíduos.
A roda de capoeira é também um ri-
tual, no qual se invocam as forças ances-
trais. A roda traz elementos que ajudam
a compreender a cosmologia africana -
ela é um rito de passagem entre o mundo
daqui e o mundo de lá. É a travessia da
kalunga. Por essa razão, a roda e os jogos
possuem um protocolo próprio, com co-
meço, meio e fim. Em que pese a aparen-
te inexistência de regras fixas, já que a
subversão das regras parece ser a regra,
a capoeira é, em verdade, um jogo com
fundamentos sólidos e normas estritas
de conduta. Nesse sentido, o capoeiris-
ta é um cerimonialista, pois organiza
a roda e os jogos segundo esses funda-
mentos.
A roda de capoeira é uma alegoria
da própria roda da vida, representando
bem a dinâmica das relações interesta-
tais, uma vez que pulsa em cada capoei-
rista a propensão para a cooperação ou
para o conflito, assim como nas relações
entre Estados. Cada capoeirista é sobe-
rano em sua arte, pois a capoeira é difusa
e descentralizada, tal qual a ordem in-
ternacional. Por essa razão, a capoeira é
facilmente apropriável, porque lida com
a singularidade dos jogadores. Ou seja, a
prática da capoeira preconiza o respei-
to à territorialidade corporal de cada
um, constituindo uma espécie de ordem
westafaliana capoeirística. No entanto,
por mais anárquica que essa ordem pos-
sa parecer, ela pode ser tanto cooperati-
va quanto conflitiva, dependendo neces-
sariamente da forma de interação entre
os agentes.
A capoeira permite a seus pratican-
tes desenvolverem novas estratégias de
pertencimento, que redundam em for-
mações identitárias capazes de mobi-
lizar as forças de cooperação e conflito
para a formação de uma comunidade
internacional de capoeristas. Essa seja
talvez a principal razão para a capoeira
ter conquistado tantos adeptos mundo
afora. Filosoficamente, um dos prin-
cipais objetivos de cada capoeirista é
buscar dosar essas duas forças por meio
do autocontrole e da autocontenção, de
modo que o uso da violência na capoeira
é amplamente desencorajado. O capoei-
rista deve utilizar da força apenas em si-
tuações extremas, para salvar a própria
vida. Isso se coaduna com a centenária
tradição pacifista do povo brasileiro e
com o princípio cogente do não-uso da
força consagrado nas relações interesta-
tais contemporâneas.
Os capoeiristas são ilusionistas, ar-
tífices da arte da dissimulação. Como o
jogo de capoeira reflete as armadilhas
do cotidiano, dominar a falsidade se
torna fundamental para lidar com o im-
ponderável. Dessa forma, a malandra-
gem passa então a ser visto como uma
forma de equalizar assimetrias, para se
conseguir, dinamicamente, criar ordem
a partir do caos. A malandragem na ca-
poeira deriva, portanto, de uma carac-
terística arquetípica do brasileiro. Ela é
essencialmente uma tecnologia para li-
dar com um mundo de incertezas, sendo
assimilada e encarada com naturalidade
pelos capoeristas.
O jogo da capoeira é um jogo de cor-
pos, mas é, sobretudo, um jogo mental. É
um diálogo, um debate, um jogo de per-
guntas e respostas feitas a partir de movi-
mentos corporais. Perde quem não con-
Como o jogo de capoeira
reflete as armadilhas
do cotidiano, dominar
a falsidade se torna
fundamental para lidar
com o imponderável.

segue dar uma resposta a uma pergunta,
quem fica sem argumento no debate. É
algo difícil, complicado, embolado, com-
plexo, com reentrâncias e sutilezas que
não são identificáveis à primeira vista,
requerendo atenção extraordinária dos
jogadores, assim como os Estados e seus
agentes precisam estar atentos no grande
tabuleiro das relações interestatais.
A música tocada pela bateria de ca-
poeira, composta por três berimbaus,
um atabaque, dois pandeiros, um agogô
e um reco-reco, serve para criar uma es-
trutura temporal intrincada a partir da
qual os capoeiristas se movem na tex-
tura do espaço-tempo. Os mestres de
capoeira afirmam que um capoeirista
deve esquecer o passado e o futuro para
poder estar presente no diálogo. O tem-
po sentido dentro do jogo é instantâneo,
não é Cronos, mas Aeon, o instante infi-
nitamente dividido da ocasião efêmera.
A música possui uma cadência própria
- sustentada por alguns dos instrumen-
tos, enquanto outros ficam livres para
improvisações. Com efeito, a dinâmica
de uma bateria de capoeira obedece a
um código próprio, com elementos de
cooperação e conflito transpostos para a
temporalidade musical. Ao mesmo tem-
po, os jogadores improvisam seus movi-
mentos, muitas vezes no contratempo
da música. O berimbau dá o tom, e capo-
eiristas experientes sabem quando esses
momentos-surpresa deverão ser execu-
tados durante o jogo.
Não há ganhadores ou perdedores
explícitos. O diálogo entre os corpos é
permanente e pode ter vários desdobra-
mentos, dependendo da música, do es-
pírito do jogo, ou das relações pessoais
entre os capoeiristas. O jogo de capoeira
pode ser alegre, eloquente e cooperati-
vo; pode ser provocador ou de deboche,
ou, ocasionalmente, conflitivo. Esse di-
namismo confere toda a beleza e vita-
lidade à arte. Capoeiristas experientes
A capoeira ensina que
encontrar o equilíbrio
– confiar desconfiando
– é o objetivo de um
jogo bem jogado. Nesse
sentido, a capoeira é
bem pragmática.
desenvolvem a capacidade de mudar a
direção no meio da execução de um mo-
vimento, enganando seu parceiro, tudo
feito a partir do estabelecimento de um
fluxo conversacional aparentemente
despretensioso. Durante o jogo, essas
demonstrações de quebra de expecta-
tivas, a quebra de regras dentro das re-
gras, são altamente valorizadas. Um
bom capoeirista é considerado aquele
que não possui movimentos previsíveis.
Os movimentos de capoeira podem
ser realizados com a intenção de manter
uma interação cooperativa e fluida com
o parceiro, ou como ataques declarados,
de modo a integrar um conjunto de pa-
drões que geram alta expectativa com a
surpresa temporal. A modulação tem-
poral dentro do jogo de capoeira causa
alterações no estado de percepção dos
jogadores, pois estão no âmago das es-
tratégias de quebra de confiança. Essa é
uma poderosa imagem que pode ser uti-
lizada para compreender a aceleração da
história, em que uma sucessão de novos
eventos chaves surge a cada dia, gerando
perplexidade entre os atores. Adicional-
mente, a dualidade cooperação/conflito
na capoeira ocorre em um cenário de
informações imperfeitas, o que torna
essa dinâmica ainda mais rica do ponto
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de vista analítico, oferecendo novos insi-
ghts para compreensão do jogo.
O jogo possui um começo, meio e fim,
mas o jogo não acaba na roda – o diálo-
go é eterno e se estende a outras rodas,
alargando o horizonte temporal dos par-
ticipantes. Essa característica do jogo
de capoeira pode ser analisada a partir
da perspectiva da teoria dos jogos repe-
tidos, que estabelece as condições para
a cooperação em relacionamentos em
curso. Consequentemente, pressupos-
tos epistêmicos sobre as estratégias de
jogo de cada capoeirista são construídos
após anos de experiência jogando e as-
sistindo os jogos de outros capoeiristas,
analogamente às tentativas de estudo do
comportamento dos Estados nos planos
bilateral e multilateral.
Todo o exposto sobre a capoeira
pode parecer contraditório com pressu-
postos básicos da ordem internacional
que se tenta, de maneira claudicante,
construir - alicerçadas em instituições e
no Direito Internacional, cujos objetivos
é conferir estabilidade e previsibilidade
às relações entre os entes estatais. No
entanto, não é isso o que ocorre - o am-
biente externo é pautado por incertezas
e o comportamento dos atores está longe
de ser previsível. Com a emergência de
novos atores e novas ameaças à paz e à
segurança internacionais, explicita-se
um estado de coisas que é conhecido do
capoeirista, que tem de saber lidar com
as incertezas na roda de capoeira para
preservar sua integridade física e psico-
lógica.
A roda de capoeira é um espelho do
ambiente estratégico internacional. Po-
de-se criar, por um lado, tamanha at-
mosfera de tensão dentro da roda, que a
polarização do espaço de jogo torna-se
extrema, assim como, no plano inter-
nacional, configuram-se os conflitos
armados abertos. Por outro lado, a coo-
peração é necessária para tonar o jogo
ESPORTE E POLÍTICA INTERNACIONAL
fluido - nesse outro extremo, perde-se a
individualidade dos capoeiristas, que se
fundem em um amálgama. No plano in-
ternacional, os extremos de cooperação
acabam por levar à erosão das barreiras
entre os Estados, por meio de inúmeros
processos de integração. No entanto, a
capoeira ensina que encontrar o equilí-
brio - confiar desconfiando - é o objetivo
de um jogo bem jogado. Nesse sentido, a
capoeira é bem pragmática.
No ambiente interno, os brasileiros
são, desde cedo, ensinados a compreen-
der que não há dualismo simplista em
um meio sócio-cultural tão multifaceta-
do, de multiplicidades e hierarquizações
assimétricas e não lineares como a socie-
dade brasileira. Fundamentalmente, essa
é também a configuração do ambiente ex-
terno, composto por uma miríade de Es-
tados dotados de características distintas:
nuclearmente armados e desarmados,
Estados que são membros permanentes
do CSNU e aqueles que não o são, Esta-
dos-baleias e microestados, Estados me-
diterrâneos, Estados-ilhas, Estados com
economias de mercado maduras e cujas
relações produtivas se caracterizam por
forte intervencionismo estatal, Estados
liberais e não liberais, Estados democrá-
ticos e não democráticos. O Brasil, por ter
sido plasmado em meio a um ambiente de
incertezas extremas no plano doméstico,
sabe navegar com maestria no ambiente
externo, transpondo para este ambiente
a dicotomia conformidade/resistência
presente no âmago de nossa sociedade, o
que nos ajuda a compreender o agir ex-
terno brasileiro. Com efeito, o Brasil se
comporta no plano multilateral como um
Somos ambíguos
e somos precisos,
sobretudo, para
acomodar interesses.
player que joga de acordo com as regras,
mas resiste aos processos de assimilação
e tenta mudar o sistema estando dentro
dele.
Negociações e ambiguidades
Na roda de capoeira, a tensão se
acomoda desde o inicio do ritual. Essa
tensão pode ser dissipada ou exacerba-
da ao longo dos jogos, por meio de um
processo negociado entre os capoeiris-
tas. O jogo de capoeira é, portanto, uma
negociação; nesse sentido, bons capoei-
ristas são, ipso facto, bons negociadores
que saberão utilizar as melhores técni-
cas negociadoras a fim de se chegar a
um acordo satisfatório. Exemplo dessas
técnicas é a manipulação da ambiguida-
de e da precisão. Movimentos precisos,
tanto de ataque quanto de defesa podem
ser necessários em momentos decisivos.
Do mesmo modo, a ambiguidade revela-
se o refúgio do capoeirista que está em
desvantagem negociadora. Assim como
na dualidade partícula-onda da mecâni-
ca quântica, na qual objetos expressam
diferentes aspectos de sua natureza de-
pendendo de como interage com o am-
biente, um capoeirista se comportará de
maneira precisa ou difusa dependendo
da interação com o outro capoeirista.
Um capoeirista deve conhecer bem
seus limites e suas alternativas diante
das perguntas realizadas pelo adversá-
rio para poder saber dizer sim ou dizer
não. No limite, o jogo ideal é aquele que
almeja ser uma negociação integrativa,
ou seja, um equilíbrio entre competição
e cooperação. Assim como na diploma-
cia, a forma como a negociação é trata-
da na capoeira torna-se tão importante
quanto aquilo que está sendo negociado.
Além disso, os capoeiristas costumam
construir relações permanentes entre si,
de modo a afetar positivamente (ou ne-
gativamente) o jogo em curso. Por essa
razão, é comum capoeiristas buscarem
no presente compensar algo de negativo
que ocorreu em um jogo passado. Obser-
vadores externos frequentemente ficam
sem compreender certos comportamen-
tos dos jogadores; mas, quem conhece a
história daqueles que estão na roda, terá
melhor condições de encontrar os nexos
causais e fará uma leitura mais correta
do jogo.
Os Estados exploram bastante a am-
biguidade e a precisão na linguagem
diplomática, utilizando uma técnica co-
nhecida como ambiguidade construtiva.
Com efeito, o nível de fluidez com que
o Brasil navega no plano multilateral re-
vela que o domínio dessas ferramentas
é um lócus de excelência da diplomacia
brasileira. Somos ambíguos e somos pre-
cisos, sobretudo, para acomodar interes-
ses. O padrão de participação do Brasil
da construção de normas revela, portan-
to, a utilização de estratégias de confor-
midade e resistência em nível prático.
Todo o exposto nos leva a crer que
há um isomorfismo entre o capoeirista
e o diplomata brasileiro. Analisando-se
um, é possível compreender aspectos do
outro. Ora, se um diplomata brasileiro
apresenta traços como preparo técnico,
circunspeção, gravidade, apego às regras
de conduta, delicadeza de modos, finu-
ra e astúcia nas relações com os outros,
esses traços também são encontrados no
capoeirista. Este, por sua vez, é, sobretu-
do, uma pessoa que divulga a cultura e os
valores do povo brasileiro, no Brasil e no
exterior; é, também, um cerimonialista,
pois lida com símbolos e com a encena-
ção de rituais; é, ainda, um negociador,
sabendo utilizar o melhor da ambigui-
dade e da precisão para atingir seus ob-
jetivos. Para realizar bem essas funções,
os capoeiristas fazem uso do refino e da
educação. Afinal, Mestre Pastinha dizia
que a capoeira “é amorosa, não é perver-
sa. É um hábito cortês que criamos den-
tro de nós, é uma coisa vagabunda”. — J
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FOTO: Divulgação

Membros do Conselho de Segurança das Nações

Unidas em votação, em 8 de junho de 1994, para
passar resolução sobre a crise em Ruanda.