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ISSN ELETRÔNICO 2316-3828


DOI - 10.17564/2316-3828.2015v3n3p9-21

A CRÍTICA ANARQUISTA DE PIOTR KROPOTKIN E ELISEÉ RECLUS


À GEOGRAFIA ESCOLAR NO FINAL DO SÉCULO XIX
Amir El Hakim de Paula1

RESUMO
Piotr Kropotkin (1842-1921) e Elisée Reclus (1830- ropa. Ao analisarmos esses autores, procuramos
1905) foram geógrafos e anarquistas com impor- apontar que as críticas ao ensino de Geografia, pos-
tantes trabalhos nas áreas de geomorfologia, geo- tuladas por Reclus e Kropotkin, ainda são válidas,
grafia urbana e ensino de geografia, sendo, ambos, muito embora se referenciassem ao século XIX, e
agraciados com importantes distinções acadêmi- não tenham vivenciadas as mudanças trazidas pela
cas. Muito embora Kropotkin e Reclus ainda sejam geografia radical norte-americana ou pela geogra-
quase desconhecidos na Geografia brasileira, ten- fia crítica francesa.
do-se, inclusive, pouquíssimas citações a respeito
deles em artigos sobre ensino, no final do século Palavras chave
XIX eram constantemente convidados para encon-
tros nas principais sociedades geográficas da Eu- Geografia. Anarquismo. Educação.

Interfaces Científicas - Educação • Aracaju • V.3 • N.3 • p. 11 - 21 • Jun. 2015


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ABSTRACT
Piotr Kropotkin (1842-1921) and Elisée Reclus (1830- By analyzing these authors , we try to point out that
1905) were anarchists and geographers with impor- the criticism of the teaching of Geography Reclus and
tant works in the areas of geomorphology, urban Kropotkin postulated by , are still valid , although it
geography and teaching on geography, being both had reference to the nineteenth century , and it has
honored with important academic distinctions.Al- not experienced the changes brought by the american
though Kropotkin and Reclus are still almost unkno- radical geography or the french critical geography.
wn in the Brazilian Geography , having even very few
quotes about them in articles on education, in the late Keywords
nineteenth century were constantly invited to mee-
tings in important geographic societies of Europe. Geography. Anarchism. Education.

RESUMEN
Piotr Kropotkin (1842-1921) y Elisée Reclus (1830- Mediante el análisis de estos autores, tratamos de
1905) eran anarquistas y geógrafos con impor- señalar que allá crítica de la enseñanza de la Geo-
tantes obras en las áreas de la geomorfología, la grafía que Reclus y Kropotkin postulan siguen vi-
geografía urbana y la enseñanza de la geografía, gentes, aunque hacia referencia al siglo XIX, y no
siendo ambos galardonados con importantes dis- ha experimentado los cambios provocados por la
tinciones académicas. Aunque Kropotkin y Reclus geografía radical americana o la geografía crítica
siguen siendo casi desconocido en la geografía francésa.
brasileña, teniendo incluso muy pocas citas sobre
ellos en artículos sobre la educación, en el siglo XIX Palabras clave
eran constantemente invitados a las reuniones de
las sociedades geográficas importantes de Europa. Geografía. El Anarquismo. La Educación.

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1 INTRODUÇÃO No caso de Kropotkin, apresentaremos as discus-


sões que esse cientista, e reconhecido internacional-
O presente artigo tem como objetivo compreender mente empreendeu, buscando a superação de uma
as críticas que Eliseé Reclus e Piotr Kropotkin realiza- Geografia enciclopédica, pouca afeita aos alunos do
ram acerca da Geografia ministrada nas escolas pri- ensino básico e que tinha como intenção afirmar os
márias do final do século XIX. anseios patrióticos e eurocêntricos predominantes na
segunda metade do século XIX às salas de aula.
Muito embora a chamada Geografia crítica reali-
zasse, desde a década de 1970, um pequeno resgate As principais argumentações de Kropotkin, sobre o
da imensa obra desses autores, ainda são escassos os que deveria ser a Geografia, encontram-se num texto
trabalhos que procuram compreender as principais escrito em 1885 e publicado originalmente na revista
obras desses pensadores anarquistas, principalmente The Nineteen Century, fruto de um debate com Halford
as análises que ambos empreenderam na tentativa de Mackinder na Royal Geographical Society (RGS), então
se destacar o papel que a disciplina de Geografia de- uma das principais entidades geográficas da Europa.
veria ter no ensino básico.
Além de questionar a prática docente do professor
Reclus, ainda que nunca tenha sido professor pri- de Geografia, Kropotkin propugnava uma escola na qual
mário, nem mesmo concluído o curso de Geografia a relação entre professor e alunos estivesse largamente
(embora sendo aluno de Karl Ritter e companheiro baseada em princípios autogestionários, defendendo a
de Karl Marx na Universidade), possui uma obra com autonomia do discente e a importância dos estudantes
mais de 30.000 laudas, incluindo os 19 volumes de na construção de uma educação mais humanizada.
sua Nova Geografia Universal e os seis volumes da co-
leção O Homem e a Terra. Como forma de se contrapor ao modelo estatal ou
religioso, anarquistas do mundo todo, ligados princi-
Especificamente na coleção O Homem e a Terra, palmente ao movimento operário, criaram várias es-
Reclus empreendeu uma crítica ao ensino regular, de- colas autogestionadas, pautadas na experiência dis-
clarando-se contrário à educação mnemônica, auto- cente, onde os valores nacionais ou religiosos eram
ritária, religiosa ou estatal, que incutia nos alunos o substituídos por valores universais, científicos, pos-
respeito aos valores nacionais ou mesmo a submissão sibilitando a formação de um indivíduo que capaz de
aos imperativos da Igreja Católica. criticar a sociedade vigente, propiciasse a construção
de uma sociedade menos desigual.
A importância de Eliseé Reclus na construção de
um projeto educacional diferenciado é patente. Gra- Essas escolas, surgidas na Espanha no início do
ças às críticas do geógrafo francês, o ensino de ciên- século XX, tiveram repercussão internacional, sendo
cias naturais e de Geografia postulado por ele, tinha que no Brasil apareceu por volta de 1903, grande parte
uma feição totalmente adverso daquela dominante capitaneada por sindicatos revolucionários, mas tendo
nas escolas religiosas e oficiais, sendo inclusive, es- também o apoio de alguns intelectuais e maçons.
timulado às análises de campo, quando jovens estu-
dantes deveriam sair das salas de aula e com um pro- Nelas vigorava um método de ensino racionalista,
fessor realizariam pesquisas de botânica, geografia antiautoritário, laico e de formação integral, no qual
física e humana. se buscava a superação da divisão entre o trabalho

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manual e o intelectual, e que a personalidade do alu- Reclus, recebido com extrema admiração pela
no fosse a todo o momento levada em consideração. Sociedade de Geografia do Rio de janeiro em 18932,
Além disso, questionava-se a aplicação de provas ou quase ficou esquecido do pensamento geográfico do-
punições aos alunos como método de avaliação, pro- minante das principais universidades brasileiras até
pondo em contrapartida que o professor avaliasse o recentemente e, por isso, teve uma reduzida parte de
aluno a partir de uma evolução pessoal. sua obra traduzida, certamente, pelo único interesse,
de abnegados editores anarquistas3.
Esperamos que esse artigo possa propiciar
um novo olhar sobre dois geógrafos raramente Não é nossa intenção “retirar” todo esse véu que,
estudados na academia (e quando citados quase de certa forma, encobre a sua obra. Seria uma estúpi-
sempre ligados a um passado marginal dentro da da intenção, inclusive.
ciência geográfica), demonstrando a riqueza das
considerações que eles apontaram para a forma- Desta forma, procuramos nesse trabalho apresen-
ção de uma ciência social a serviço da maioria da tar algumas discussões realizadas pelo geógrafo fran-
população e não de poucos homens de Estado ou cês sobre como deveria ser o ensino de Geografia nas
defensores do Capital. salas de aula do ensino primário. Uma das principais
experiências educacionais do início do século XX foi
a Escola Moderna. Criada na Espanha em 1901, con-
2 ELISEÉ RECLUS E A CRÍTICA tou com o apoio de importantes pensadores da época,
AO ENSINO DE GEOGRAFIA tendo Eliseé Reclus um de seus maiores entusiastas.

As aulas de Geografia, na educação básica, vêm Francisco Ferrer y Guardia, pedagogo catalão e amigo
se transformando durante os últimos anos, principal- de Reclus, criou essa escola com o intuito de se contrapor
mente depois do surgimento de uma crítica à forma ao dominante ensino católico espanhol, baseando-a, lar-
mnemônica que essa ciência estava sendo ministrada gamente, em princípios racionalistas e libertários.
nos bancos escolares de grande parte do país.
Devido ao caráter diferenciado desse estabeleci-
Muito embora o movimento de renovação da mento, Francisco Ferrer, pensando na possibilidade
ciência geográfica exista desde a emergência da
2. Como aponta Cardoso (2006, p.53) “Élisée Réclus foi recebido na Socieda-
Geografia radical norte-americana, na década de de de acordo o ritual de consagração das academias oitocentistas: o home-
1950, poucos expoentes desse importante seg- nageado tomou assento à direita do presidente da associação, José Lustosa
mento realizaram um resgate histórico aprofunda- da Cunha Paranaguá, Marquês de Paranaguá. Aberta a sessão, Paranaguá
dirigiu-lhe uma breve saudação, sublinhando sua contribuição para o apri-
do acerca da gênese desses processos de crítica moramento dos estudos geográficos. Referiu-se, sobretudo, à Nouvelle Gé-
da Geografia tradicional, obliterando, por exem- ographie Universelle, obra de caráter enciclopédico, bastante apreciada no
Brasil, e que vinha sendo publicada desde 1876. Salientou a importância do
plo, os vários questionamentos que geógrafos trabalho de campo que Réclus pretendia desenvolver durante ao longo da
anarquistas realizavam acerca da Geografia nas sua permanência no país: [...] o seu espírito penetrante e o seu gênio inves-
tigador, a par de uma imaginação brilhante, saberá devassar os segredos e
escolas no final do século XIX. reproduzir, ao vivo, as cenas esplêndidas da natureza desta parte da América,
para patenteá-la ao mundo. Concluiu que a jornada deveria concorrer para o
Os mais proeminentes geógrafos anarquistas des- alargamento dos horizontes geográficos, além de fortalecer as relações cul-
turais franco-brasileiras. Como se vê, Paranaguá demonstrava partilhar de
se momento são o russo Piotr Kropotkin e o francês uma ideia muito cara a Réclus, a de que universalidade da ciência superava
Eliseé Reclus. as diversidades naturais e culturais entre os povos”.
3. Entretanto não podemos esquecer-nos do artigo de Aroldo de Azevedo so-
bre a Geografia francesa, no qual faz inúmeros elogios ao pensador francês
(AZEVEDO, 1976, p. 7-28).

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de um ensino de Geografia mais humano e ligado ao em discussão e na formação do espírito crítico sobre o
meio circundante, ou seja, o contexto social do entor-
cotidiano discente, indagou Reclus se ele, por ser uma
no da escola ao qual pertenciam os alunos.
das maiores referência da Geografia europeia, pode-

ria indicar um livro didático.
Embora no final do século XIX predominasse qua-
se que totalmente um ensino descolado da realidade
Embora o pensador francês já tivesse escrito li-
do aluno, centrado exclusivamente nas observações
vros tão importantes e de forma tão simples, como El
do professor, o que tornava essa disciplina enfadonha
Arroyo, sobre a dinâmica dos rios, abordando desde
para a maioria dos pupilos, Reclus (2009) já alertava
a origem até a formação das cidades, respondeu ao
qual deveria ser a postura do mestre perante seus
pedagogo catalão da seguinte forma:
alunos quando fosse ministrar as aulas de Geografia:
Sr Ferrer Guardia
Se tivesse a fortuna de ser professor de criança, sem
Querido Amigo
ver-me fechado em um estabelecimento oficial ou
Em meu conceito não há texto para o ensino de geo-
particular, precaveria-me de começar a colocar livros
grafia nas escolas primárias. Não conheço um só que
e mapas nas mãos dos meus companheiros infantis;
não esteja infeccionado do veneno religioso, do patrio-
talvez nem pronunciaria ante eles a palavra grega Ge-
tismo ou o que é ainda pior da rotina administrativa.
ografia, mas sim os convidaria para longos passeios
(RECLUS, 2009, p. 27).
comuns, feliz de aprender em sua companhia.[...] De
fato a Geografia pode ensinar à criança russa que
Reclus embora negue indicar um livro didático, existem países cujos habitantes não obedecem ao czar
foi sua a sugestão de que Ferrer contatasse Odón de da mui santíssima Rússia, que aqui e acolá estalam ás
vezes revoluções libertadoras e que certos loucos pro-
Buen4 para a tarefa de redigir um livro de Geografia,
clamaram em alguma parte os Direitos dos Homens.
posteriormente fazendo a introdução do mesmo. (RECLUS, 2009, p.16; 32).

A partir desse relacionamento, entre Reclus e Fer- A influência, dessa pedagogia e das palavras de
rer, surgiram inúmeras experiências de ensino geo- Reclus, mostra-se clara quando analisamos trabalhos
gráfico não mnemônico, inclusive no Brasil. No caso sobre essa metodologia de ensino nas escolas operá-
brasileiro, essas experiências foram organizadas pelo rias. Florentino de Carvalho, anarquista e professor
movimento operário de tendência anarquista, que de um desses estabelecimentos, declara a sua visão
nessa época travava intensa correspondência com al- de Geografia:
guns expoentes dessa pedagogia.
Quando estudamos um simples compendio de ge-
Um dos métodos de trabalho que as escolas mo- ografia que nos descreve a flora e a fauna e outras ri-
dernas organizadas no país se utilizavam para ofere- quezas dos diversos países, dando a entender que são
cer um ensino de Geografia mais dinâmico eram os desfrutados por todos os seus habitantes, poderemos
estudos de meio. racionalmente deixar de explicar que essas riquezas
beneficiam exclusivamente determinados indivíduos
Sobre o surgimento dos estudos de meio nas aulas e que a imensa maioria definha de miséria, ao pé de
de Geografia, diz Pontuschka (2009, p. 176): grandes depósitos, que produziram com seu trabalho.
(CALSAVARA, 2004, p.154).
As escolas criadas pelos militantes do movimento
anarquista tinham como princípio oferecer um ensino
racional, fundamentado em observações de campo, Para o geógrafo francês, mais do que educar as
crianças em preceitos nacionalistas e estatais, a Geo-
4. Foi um grande oceanógrafo espanhol, introdutor das ideias de Darwin na
Península Ibérica.
grafia deveria formar indivíduos conscientes de sua po-

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sição na sociedade de classes existentes, negando esse menos desenvolvidas, ao relegar a um segundo plano
superficialismo igualitário que a noção de nacionalida- os países de alta latitude, só foi construída em 1973
de tenta desenvolver nas crianças desde tenra idade. por Arno Peters.

Um das expressões principais na obra de Re- Analisando os questionamentos de Reclus sobre o


clus sobre a educação é a possibilidade de se ensino ministrado nas escolas primárias do final do
educar geograficamente os estudantes a partir de século XIX, percebemos que após mais de um século,
estudos ao campo, demonstrando a transformação o professor de Geografia só em raríssimas situações
da natureza pelos homens a partir de uma visão conseguiu plenamente superar a Geografia tradicio-
comparativa, apontando as diferentes formas de nal e seus métodos e/ou técnicas de aula, incorporan-
apropriação humana. Diz: do muito pouco do que se convencionou chamar de
Geografia crítica.
A escola verdadeiramente liberada da antiga servi-
dão só pode ter franco desenvolvimento na nature-
za. O que em nossos dias é considerado nas escolas
Como demonstra Kaercher, falta muito ainda para
como festas excepcionais, passeios, cavalgadas pe- que o ambiente escolar supere a estruturação conserva-
los campos, landas (charcos) e florestas, nas mar- dora predominante nas escolas públicas e/ou privadas,
gens dos rios e nas praias, deveria ser a regra, pois inclusive na forma de se ministrar aulas de Geografia:
é apenas ao ar livre que se conhece a planta, o ani-
mal, o trabalhador e que se aprende a observá-los,
[...] é justamente, andando por aí que vem essa ideia
a fazer-se uma ideia precisa e coerente do mundo
de que a Geografia crítica (seja lá o que for isso) não
exterior. (RECLUS, 2009, p. 25).
chegou às escolas. Ou chegou muito pouco. Mas con-
tinuando a produzir verdades cristalizadas e, o que é
Nesse sentido, nega a apresentar os mapas esco- pior, mantendo a Geografia como algo chato e distante
lares como fonte informacional fidedigna, já que essa do cotidiano dos alunos. (KAERCHER, 2002, p. 222).
técnica esconde sutilmente a valorização do espírito
patriótico, bem como potencializa por meio de uma As palavras acima parecem comprovar o que Re-
distorção dos territórios, a presença dos países eu- clus, no início do século XX alertava: a necessidade da
ropeus sobre as nações africanos, asiáticos e latino- Geografia, enquanto ciência que relaciona o homem e
-americanas. Diz o geógrafo: a natureza transformar-se em algo que auxilie nas dis-
cussões que são prementes na vida das pessoas, como
Aparecem os livros e com eles a primeira lição oficial as enchentes das cidades, com suas causas e conse-
de geografia que pronuncia o professor aos seus alu- quências, a destruição da biodiversidade e seu impacto
nos; chegou o momento de submeter-se à rotina e de
colocar nas mãos das crianças um atlas selado pelo
no homem etc. Caso contrário, como o próprio Reclus
Conselho de Instrução Pública. De minha parte evi- asseverou: “O professor pede ao aluno um ato de fé,
tarei tocá-lo; acima de tudo desejo ser perfeitamente pronunciado, além disso, em termos cujos sentidos não
lógico em minhas explicações: depois de haver dito domina; recita prontamente. [...] sem referir-se a uma
que a Terra é redonda, que é uma bola que roda no es-
paço como o Sol e a Lua, não havia de apresentar sua
realidade precisa” (RECLUS, 2009, p. 16).
imagem em forma de uma folha de papel quadrangular
com figuras coloridas que representam Europa, Ásia, Ao resgatarmos essa faceta tão pouca conhecida
África, Austrália, as duas metades do Novo Mundo. deste importante geógrafo, procuramos apontar a im-
(RECLUS, 2009, p. 20).
portância de suas análises, asseverando que esse autor
antecipou em mais de 50 anos o que seria conhecido
Interessante anotar que a projeção mais próxima como “Geografia Crítica”, movimento de renovação que
da realidade e que acentua a presença das nações optou ser quase que norteado pelas ideias marxistas.

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2 KROPOTKIN E A CRÍTICA AO PAPEL mitivas apontavam que era a colaboração e o associa-


tivismo que predominava entre as espécies animais e
SOCIAL DA GEOGRAFIA grupos humanos pesquisados.

Piotr Kropotkin (1842-1921) foi um importante Mais ainda, demonstrou historicamente de que
cientista russo no século XIX, reconhecido interna- forma a cidade medieval, com a presença de espaços
cionalmente por seus trabalhos sobre geomorfologia, de convivência comuns entre as classes, foi sendo aos
geologia e sociologia urbana. poucos transformada em local segregado, ou seja, de
que forma o capital foi destruindo as relações sociais
Oriundo de uma família nobre (Rurik-antiga famí- mais comunais.
lia real da Rússia), desde cedo abandonou os precei-
tos da alta sociedade e abraçou efusivamente a luta Kropotkin, com isso, empreendeu um grande
pela emancipação das classes menos abastadas. esforço teórico buscando questionar uma lógica
predominante em todo o século XIX, apontando
Embora reconhecido como um importante intelec- seus equívocos e limites, e em contrapartida de-
tual, Kropotkin tem nos dias de hoje pouco interesse monstrou que mais afeito ao Homem era a cola-
da ciência geográfica, ainda que realizasse estudos boração e a solidariedade, que aos poucos tinham
importantíssimos, como a crítica que realiza ao mode- sido dilapidados pela emergência de uma socieda-
lo alpino de Humboldt. Além disso, foi um dos princi- de desigual.
pais colaboradores de Reclus na formulação da “Nova
Geografia Universal”, principalmente no tomo que se Ainda que a obra tivesse grande interesse histó-
refere à Rússia. rico e territorial, é praticamente desconhecida da
maior parte da comunidade geográfica, sendo que
É importante frisar que sua obra sempre uma tradução ao português somente ocorreu graças
relacionou os preceitos anarquistas que defendia com ao trabalho de militantes anarquistas.
as discussões científicas dominantes, procurando
apontar incoerências ou preconceitos que eram
sobrevalorizados como forma de manter um tipo de 3 A IMPORTÂNCIA DE KROPOTKIN NA
status social. CRÍTICA DA GEOGRAFIA ESCOLAR
Nesse sentido é que compreendemos uma das Um dos temas centrais na obra de Kropotkin e
suas principais obras O Apoio Mútuo, visto que no fi- pouco comentado no meio acadêmico é a crítica que
nal do século XIX alguns intelectuais ligados a teoria o mesmo realiza contra a Geografia tradicional, pre-
darwinista, caso de Huxley, pretendiam impor uma dominante no final do século XIX, seja nas escolas
visão totalizante aos seres vivos, inclusive ao gênero religiosas ou nas escolas laicas estatais.
humano, na qual a competição se transformava em
uma lei universal. Para tal empreitada, o geógrafo russo escreve, a
pedido da Real Sociedade Geográfica, um artigo em
Já reconhecidamente anarquista, Kropotkin pro- que destaca qual seria o papel do ensino da Geografia
cura refutar tais afirmações demonstrando que, em- na sociedade moderna. Em tal empreitada, demons-
bora a competição aparecesse mais ferozmente, seus tra quais seriam as possibilidades e os limites de uma
trabalhos realizados na Sibéria e as análises que em- estrutura escolar ainda largamente calcada em prin-
preendeu acerca das sociedades humanas ditas pri- cípios extremamente hierarquizados.

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Nesse sentido, Kropotkin compreende que era ur- timento de crítica com aqueles que apoiavam a for-
gente naquele momento não só uma reforma do ensi- mação de uma geografia mnemônica, centrada quase
no de Geografia, mas também das disciplinas ensina- que exclusivamente na figura do professor.
das na educação básica. Diz:
Incluir o homem no debate geográfico, em uma
Nada interessa tanto ás crianças como as viagens, e nada época marcada pelo neocolonialismo europeu na Áfri-
é mais chato e menos atrativo na maioria das escolas do
que aquilo que ali se batiza de geografia. É claro que o
ca e Ásia, principalmente, era também uma forma de
mesmo se poderia dizer, quase com as mesmas palavras questionar os valores dominantes dessa época, quan-
e com escassas exceções, a respeito da física e da quími- do dilapidar grandes regiões do planeta justificava-se
ca, da botânica e da geologia, da história e das matemá- como um pretenso processo civilizatório.
ticas. Uma profunda reforma do ensino de todas as ciên-
cias é tão absolutamente necessária como uma reforma
da educação geográfica. (RECLUS, 2009, p. 35). Sendo anarquista e por isso defensor das classes
mais exploradas, no contexto do capitalismo monopo-
Escrito em 1885, quando a Geografia era ainda lista do século XIX, Kropotkin torna-se um perscruta-
muito influenciada pelas pesquisas de Humboldt e dor ferrenho dessa política expansionista das várias
de Ritter, o artigo de Kropotkin demonstra em alguns nações europeias. E, por conseguinte, critica também
momentos defender uma visão ritteriana de Geogra- a imposição dessa visão dominante ao ensino de Ge-
fia nas escolas de então, ou seja, despertar nos alu- ografia.
nos a curiosidade sobre as diferenças e semelhanças
entre as feições físicas do planeta. Mais do que uma disciplina ideologizada, permea-
da de preconceitos de todos os tipos (nacionais, raciais,
Embora aponte a importância de uma geografia sociais, entre outros) o nobre geógrafo russo propug-
comparada nas escolas, entende que esse interesse nava a formação de uma disciplina escolar a serviço da
só ocorreria quando, concomitantemente às análises construção de uma sociedade mais fraterna.
físicas (climáticas, geológicas, vegetacionais etc,) o
Em uma época como a nossa, de guerras, de senti-
Homem fosse o eixo central da discussão. Caso con- mento nacionalista, de indolência nacionalista e ódio
trário, os alunos teriam que guardar nomes de rios e habilmente alimentado por gente que persegue seus
de vegetações, sem se importarem com a relação en- próprios interesses de classe, egoístas ou pessoais, a
tre o gênero humano e o meio que o circunda. geografia deve ser- na medida em que a escola possa
fazer algo para contrabalançar as influências hostis -
Como aponta Kropotkin: um meio para dissipar esses preconceitos e para criar
outros sentimentos mais dignos da humanidade. (RE-
Pode-se inspirar muito facilmente na criança a pai- CLUS, 2009, p. 38).
xão do colecionismo e transformar seus quartos em
tendas de curiosidades, mas com pouca idade não é
fácil inspirar-lhes o desejo de se aprofundar nas leis Interessante observar que os questionamentos
da natureza; enquanto que nada é mais fácil que des- que Kropotkin fazia sobre a estrutura do ensino de
pertar os poderes de comparação de uma mente jovem Geografia na educação básica era uma preocupação
contando-lhe histórias de países distantes, de suas
plantas e animais, de sua paisagem e fenômenos, des-
corrente na Sociedade Geográfica Real.
de que plantas e animais, ventanias e furacões, erup-
ções vulcânicas e tempestades estejam conectadas ao Outros autores apresentavam proposições nos inú-
homem. (RECLUS, 2009, p. 37-38). meros encontros ocorridos nessa entidade, procurando
formular quais seriam as temáticas que propiciariam a
Ao demonstrar que a Geografia é também uma ci- formação de uma Geografia escolar independente das
ência humana, o geógrafo russo denota um forte sen- ciências constantes do currículo educacional.

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Uma proposta levantada por Kropotkin era definir Sabedor das dificuldades desse campo científico,
metodologicamente qual o objetivo que a Geografia Kropotkin analisa que a Geografia, por suas particula-
teria no ensino básico, preocupando-se em destacar, ridades, deveria ter o papel de harmonizar as várias ex-
também, a relação que essa ciência teria com as ou- periências científicas existentes. Diz o geógrafo russo:
tras. Ou seja, qual a contribuição que a ciência geo-
gráfica teria na construção de uma interdisciplinari- Nascerão muitas especialidades, algumas delas inti-
mamente relacionadas coma história e com as outras
dade ou transdisciplinaridade. ciências físicas; mas a autêntica obrigação da Geogra-
fia é a de cobrir de uma vez todo esse amplo campo e
Para isso, Kropotkin expõe como entendia a cons- combinar em um quadro vivo todos os elementos se-
tituição da Geografia enquanto ciência: parados desse conhecimento: representá-lo como um
conjunto harmonioso, cujas partes são consequência
de uns poucos princípios gerais e estão unidas entre si
Se déssemos um significado como esse à geogra-
por suas mútuas relações. (RECLUS, 2009, p. 56).
fia, esta compreenderia, tanto nas escolas primárias
como nas universidades, quatro grandes ramos do co-
nhecimento, suficientemente amplos para constituir Para Kropotkin, a Geografia na escola deveria des-
no nível mais alto da educação quatro especialidades pertar nas crianças a afeição pela ciência natural em
distintas, ou inclusive mais, mas todas intimamente
conectadas entre si (grifo nosso). Três desses ramos
seu conjunto; ensinar-lhes que todos os homens são
– orogênese, climatologia e zoofitogeografia – cor- partes de uma mesma família e que as nacionalidades
responderiam, falando em linhas gerais, ao que se não podem separá-los e, por fim, demonstrar que as
descreve agora como geografia física; enquanto que a chamadas ”raças inferiores” podem ajudar-nos a me-
quarta, que incluiria algumas partes da etnologia, cor-
responderia ao que se ensina parcialmente agora sob
lhor compreender a riqueza cultural da humanidade.
a denominação de geografia política; mas difeririam
tanto do que hoje se ensina sob essas duas denomina- Caso a Geografia escolar não se preocupasse com
ções, tanto no que se refere a seus conteúdos como no esses pré-requisitos tornar-se-ia uma matéria enfado-
que se refere a seus métodos, que logo esses nomes
seriam substituídos por outros mais adequados. (RE-
nha, além de ser um veículo de dominação e genocídios.
CLUS, 2009, p. 50).
Não se tratava de alçar a Geografia a um patamar
Nesse pequeno trecho, vislumbramos algo de acima de outros domínios científicos, mas de valorizar
extrema importância para o geógrafo russo: que a esse componente intrínseco a ela: a ciência que por
Geografia era uma importante ciência de interface. meio das relações entre o Homem e a Natureza propi-
Ou seja, na escola a Geografia deveria contemplar cia a explicação de uma específica área de estudo.
quatro ramos do conhecimento científico:
Ao propor uma formulação unitária da Geografia
1) Estudar quais as são as leis naturais que interfe- e que esse conhecimento conectava-se aos outros,
rem na superfície terrestre; rompia com as clássicas divisões científicas que o po-
2) Estudar de que forma o clima é influenciado sitivismo tinha legado ao pensamento humano. Como
pela distribuição dos continentes e dos oceanos, das o próprio autor aponta:
altitudes e depressões, das reentrâncias e das gran-
À geografia se tem negado frequentemente o
des massas de água; autêntico direito a ser considerada como uma ciência
3) Abordar a geografia dos animais e compreender separada... Não obstante, inclusive aqueles que for-
a distribuição pelo planeta; mulam essas objeções sem dúvida reconhecerão que
4) Abordar a distribuição do que ele chama das existe um ramo separado do conhecimento - essa que
a mentalidade sistemática francesa descreve como fí-
“famílias humanas”. sica do globo e que, incorporando uma variedade de

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temas intimamente relacionados com outras ciências, Kropotkin entende que isso só seria possível se a
deve ser cultivada e ensinada de forma separada para
divisão tradicional entre trabalho intelectual e traba-
benefício tanto próprio como das outras ciências ir-
mãs. (RECLUS, 2009, p. 50). lho manual fosse superada. Isso porque a divisão da
sociedade em dois princípios antagônicos promoveria
Mesmo sendo tratada separadamente, a Geografia ad infinitum a supremacia de alguns poucos sobre
deveria procurar abarcar os quatro ramos do conheci- uma extensa maioria.
mento humano citados anteriormente, e a partir das
suas especificidades trans(inter)disciplinares, ocupar Para tanto apresenta a necessidade de um ensino
as inúmeras vacâncias irrompidas da falta de uma integral, baseado em uma acumulação de saberes,
maior interação científica. sejam eles ligados a vida mais prática ou mesmo na
construção de teorias importantes para a evolução
Ciente das dificuldades em defender uma área do humana como um todo.
conhecimento com o perfil acima apresentado, Kro-
potkin postulava que a Geografia teria a partir des- Ao propor isso, apresenta à sociedade de então de que
sas inter-relações as suas próprias particularidades, forma os seus principais fundamentos obstaculizam uma
como se combinasse as várias experiências científi- maior integração social, gerando inclusive aquilo que ela
cas existentes. Diz o geógrafo russo: supostamente abomina: custos desnecessários. Diz:

Nascerão muitas especialidades, algumas delas in- Em último termo haverá de se recorrer ao ensino inte-
timamente relacionadas coma história e com as ou- gral; ao ensino que por exercício da mão sobre a ma-
tras ciências físicas; mas a autêntica obrigação da deira, apedra e os metais falam ao cérebro e o ajudam
Geografia é a de cobrir de uma vez todo esse amplo a desenvolver-se. [...] Dever-se-á chegar à integração
campo e combinar em um quadro vivo todos os ele- do trabalho manual com o trabalho cerebral que já
mentos separados desse conhecimento: representá- predicavam o operário e a Internacional, e então se
-lo como um conjunto harmonioso, cujas partes são verá a imensa economia de tempo e de pensamento
consequência de uns poucos princípios gerais e es- que se realizará com os jovens. (RECLUS, 2009, p. 77).
tão unidas entre si por suas mútuas relações. (RE-
CLUS, 2009, p. 56). Embora esse escrito tenha mais de cem anos, os
trabalhos de Kropotkin parecem se conectar com a rea-
Nesse momento formativo de grandes áreas do lidade atual brasileira, marcada por uma defesa, quase
pensamento humano, quando a distinção entre o sa- que unânime, dos ensinos técnicos e tecnológicos.
ber intelectual e o saber prático era interpretada por
um viés hierárquico, delegando quase que totalmente É como se o filho do mais pobre devesse ir à esco-
as classes trabalhadoras a uma posição subalterna na la aprender uma profissão, muito embora a educação
escala social, o geógrafo russo destaca a necessidade clássica, também, fosse um direito seu. Mas para que
de uma ampla reforma do ensino. aprender questões de interesse científico, se a situa-
ção econômica exige a aprendizagem profissional en-
Essa reforma teria a incumbência de facilitar a quanto antídoto a uma condição de penúria social?
transmissão do conhecimento, quando então os pro-
fessores agiriamm, buscando a universalização das Essa discussão, ainda que não tão presente na
ideias, quase que ainda circunscritas ao meio acadê- época de Kropotkin alerta sobre a incapacidade das
mico, e logo, grande parcela da sociedade se apro- classes dirigentes em perceber o equívoco em man-
priariam dos vários saberes humanos. ter-se uma educação diferenciada, no sentido de
acentuar, ainda mais, uma separação entre as classes.

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A mudança social deve ser seguida por uma re- ideias, seus exemplares de minerais, plantas e ani-
mais. Escrevem sobre a paisagem do Canadá a amigos
forma educacional. E, quando se reforma a educação
do Texas. Seus amigos suiços enviam edelweiss dos
sem se preocupar com uma mudança social, apenas Alpes e os amigos ingleses explicam coisas sobre a ge-
transformações parciais ocorrem, e os aspectos fun- ologia da Inglaterra. (RECLUS, 2009, p. 62).
dantes de uma sociedade desigual continuam a traba-
lhar na promoção do aumento do abismo econômico. Ainda que não fosse uma instituição de cunho li-
bertário, a Agassiz parece fugir enormemente das
Sendo anarquista e cientista, não consegue sepa- comuns relações entre as disciplinares escolares,
rar o aspecto político do pedagógico: são dois lados de buscando uma maior interação entre os saberes esco-
um mesmo processo de emancipação humana. Oblite- lares e a realidade do aluno.
rar um deles dificulta a expansão do outro. Como ele
mesmo diz: Outra escola, muito comemorada por Kropotkin,
era a escola moderna e racionalista espanhola.
Tudo está por fazer na escola atual. Sobretudo a edu-
cação propriamente dita: isto é, a formação do ser
moral, ou seja, o indivíduo ativo, cheio de iniciativa,
Ao contrário da Agassiz Association, as escolas
empreendedor, valente, livre dessa timidez do pen- modernas nasceram dentro de um forte contexto de
samento que caracteriza o homem educado em nos- crítica ao sistema educacional vigente, organizada,
sa época; e ao mesmo tempo sociável, igualitário, de principalmente, por membros da classe operária e ho-
instinto comunista, e capaz de sentir sua unidade com
todos os homens do universo inteiro e, portanto, des-
mens ligados a maçonaria, que, embora, divergentes
pojado das preocupações religiosas, estritamente indi- na defesa de vários aspectos da sociedade espanhola,
vidualistas, autoritárias etc. que nos inculca a escola. concordavam em combater a enorme influência que a
(RECLUS, 2009, p. 73). igreja católica tinha nesse período.

Ao propor um ensino científico, comunista-liber- Ao aproximar-se do principal idealizador do
tário e composto por práticas escolares horizontali- projeto educacional libertário, Francisco Ferrer Y
zadas, o geógrafo russo não descarta a formação de Guardia, Kropoktin saúda a formação de uma ex-
escolas autônomas, baseadas em princípios autoges- periência educacional verdadeiramente libertária,
tionários e, por conseguinte, fora do sistema laico ou organizada a partir de princípios integrais de for-
religioso da época. mação humana.

Embora os sistemas oficiais (religioso, estatal ou Ao comentar, em uma carta direcionada ao ideali-
privado) apresentassem em seus currículos escola- zador das escolas modernas espanholas, sobre o pa-
res raras condições de implementação de práticas pel desse novo ensino, integral porque une o trabalho
pedagógicas libertárias, como aquelas defendidas manual com o intelectual, diz o pensador anarquista:
anteriormente por Kropotkin, quando isso ocorria era
saldado com grande entusiasmo. Um dos casos era a Para isto se necessita evidentemente criar pouco a
Agassiz Association, associação escolar com mais de pouco novas exposições de todas as ciências: concre-
tas, em lugar dos tratados metafísicos atuais; socie-
7.000 alunos e presente em vários países da Europa e
tárias -”associacionistas”, permita-me a palavra - em
América do Norte: lugar de individualistas; e dos tratados “populistas”,
feitos desde o ponto de vista do povo, no lugar do pon-
As crianças dessa associação estão acostumadas to de vista das classes acomodadas, que domina em
a estudar as ciências naturais no campo, em meio à toda a ciência atual e sobretudo nos livros de ensino.
própria natureza.[...] Escrevem a outras sessões da (RECLUS, 2009, p. 74).
Associação, trocam com elas suas observações, suas

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Desta forma fica evidente que Kropotkin acredita Ao propugnarem uma transformação radical da
numa nova proposta de ensino, incluso o de Geografia. sociedade, os geógrafos anarquistas se preocuparam
em demonstrar os equívocos existentes, seja na ma-
Demonstra a importância dessa ciência e o verdadei- nutenção de uma educação centralizada no professor
ro papel que ela pode ter no esclarecimento das tensões ou da fragmentação disciplinar, o que provocava, en-
envolvidas nas relações entre os homens e destes com a tre outras coisas, uma grande dificuldade aos alunos
Natureza, fonte esgotável de recursos de uso comum e da compreensão dos principais fatos científicos.
não como na sua época (e ainda hoje) para serem dilapi-
dados a serviço de uns poucos homens de poder. Nesse sentido, a Geografia, ciência que congrega-
va os aspectos científicos de várias áreas do conhe-
A educação enquanto meio de transformação hu- cimento humano, teria um papel importantíssimo:
mana. A Geografia enquanto disciplina não apenas de apontar e preencher as diversas lacunas científicas
compreensão científica, mas uma arma de interven- existentes.
ção social.
Enquanto uma tarefa hercúlea, aos geógrafos ca-
Para Kropotkin, não se atentar a essa díade é cor- beria, segundo ambos autores, demonstrar aos alunos
rer o risco de reafirmar uma educação transformado- da educação básica a riqueza de detalhes que essa
ra, sem os mecanismos científicos necessários para a ciência propicia, incentivando a curiosidade enquan-
consumação de uma radical mudança societária. to estratégia de aprofundamento didático.

Quase 80 anos antes do despontamento de uma Ainda que já se tenha passado mais de cem anos
renovação crítica da Geografia, o geógrafo russo já das intervenções literárias ou acadêmicas descritas
demonstrava o verdadeiro caráter dessa ciência: com- anteriormente, muito daquilo proposto por ambos
preender que as relações humanas alienadas pelo sis- geógrafos permanece atual e merece uma maior preo-
tema produtor de mercadorias só podem ser rompidas cupação da academia.
pela implementação de um questionamento fulmi-
nante na base que a estrutura. E sobre isso a Geogra- Sendo um texto introdutório, esse artigo não con-
fia tem muito a nos ensinar. seguiu apresentar todas as ideias desses pensadores
acerca da educação como um todo, devido à vultosa
obra de ambos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cabe então aos leitores desse artigo ampliarem
O presente artigo procurou apresentar uma faceta esse debate apontando outros questionamentos. As-
pouquíssima conhecida do público acadêmico geo- sim, deslidaremos inquietantes questionamentos que
gráfico brasileiro. Reclus e Kropotkin inserem-se entre ambos delegaram aos estudos pedagógicos e geográ-
aqueles que realizaram críticas ao ensino de Geografia ficos da atualidade.
e a forma mnemônica que essa disciplina era ministra-
da nos bancos escolares do final do século XIX. Em pleno século XXI, marcado pelo individualismo ex-
tremo que grassa a academia brasileira, quando professo-
Embora os autores não tenham sido professores res universitários cada vez mais são obrigados a publicar
da educação básica, as análises por eles empreendi- desmesuradamente, Kropotkin e Reclus podem funcionar
das demonstram o total envolvimento que ambos tive- como um contraponto ao marcante fracionamento das
ram para uma completa reforma desse ensino. ciências como um todo, e em especial, à Geografia.

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de (Org.). Geografia em Perspectiva: ensino e pesqui-
sa. São Paulo: Contexto, 2002. p.221-231.

1. Possui graduação em Geografia pela Universidade de São Paulo (1999) e


mestrado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo
(2005) e doutorado em Geografia (2011). Tem experiência na área de Geografia,
Recebido em: 8 de Maio de 2014 com ênfase em Geografia Urbana, atuando principalmente nos seguintes temas:
Avaliado em: 9 de Maio de  2014 história, trabalho, geografia, anarquismo, território e imprensa operária. Pro-
Aceito em: 21 de Maio de 2014 fessor da Universidade Estadual Paulista – Campus de Ourinhos. E-mail: amir@
ourinhos.unesp.br

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