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TITULOS DE CR~DITO·

ELZA MARIA DE SoUZA MARTINS··

1. Introdução; 11. Títulos de crédito - parte geral; lIl.


Letra de câmbio; IV. Institutos cambiais; V. Nota pro-
missória; VI. Cheque; VII. Duplicata de mercadorias e
de prestações de serviços; VIII. Conhecimento de depó-
sito e warrant; IX. Conhecimento de frete ou de trans-
porte.

I. INTRODUÇÃO

1. Importância dos títulos de crédito


~ um instrumento extraordinário para a atividade negociaI. A compreensão
sobre esta parte é de fundamental importância à assessoria empresarial.
Ressaltava Tullio Ascarelli que nos encontramos em uma economia credit6-
ria e nela os títulos de crédito constituem a construção mais importante do di-
reito comercial moderno. A importância do crédito para o desenvolvimento da
economia tem sido destacada unanimemente, tanto por economistas como pelos
juristas, que vêem nele o responsável pelo crescimento da economia das nações,
em geral, e das empresas e suas operações, em particular.
Comenta Rubens Requião (1977) que a "ilusão de que o crédito multiplica
o capital se deve precisamente à criação dos títulos de crédito. Não fossem
estes, o capital emprestado, saindo das mãos do mutuante, não seria mais sus-
cetível de mobilização. O título ou cártula, o papel, enfim, que contém o valor
do empréstimo, toma-se negociável. ~ um capital, de certa forma, pois o deten-
tor pode transformá-lo novamente em dinheiro. Mas não constitui dinheiro para
a massa de capitais globais de um país. Permite, o título de crédito, a possibili-
dade de se obter, em sua troca, outro capital em substituição àquele que se ti-
nha emprestado anteriormente. Sem dúvida, devido à criação dos títulos de cré-
dito, os capitais, pela rápida circulação, tomam-se mais úteis e, portanto, mais
produtivos, permitindo que deles melhor se disponha a serviço da produção de
riqueza. Compreende-se, assim, a enorme importância que adquiriram os
títulos de crédito na economia atual, tomando seu estudo um dos pontos mais
altos do moderno direito comercial".

* O presente trabalho, apresentado ao Curso de Direito Empresarial promovido pelo Centro


de Atividades D!dá~cas do In~ipo, mer~u. nota ,máxima e está sendo publicado por decisão
do Conselho Edltonal da Revista de ClenCIQ Polltica .
.. Advogada.

R. C. poI., Rio de Janeiro, 29(3):35-83, jul./set. 1986


2. Crédito

2.1 Conceito de crédito

Gide, em seu Compêndio de economia política, tão divulgado didaticamente


em nosso país, conceitua o crédito como o alargamento da troca. A troca no
tempo, em lugar de ser no espaço, escrevia o economista francês, acrescentando
que a venda a prazo e o empréstimo constituem precisamente as duas formas
essenciais. E são caracteres essenciais do crédito, primeiro, o consumo da coisa
vendida ou emprestada e, segundo, a espera da coisa nova destinada a substi-
tuí-la.
O crédito importa um ato de fé, de confiança, do credor. Daí a origem etimo-
lógica da palavra - creditum, credere.
Não configura o crédito um agente de produção, pois consiste apenas em
transferir a riqueza de A para B. Ora, transferir, evidentemente, não é só criar,
nem produzir. "O crédito não cria capitais, como a troca não cria mercadorias",
sustentava Stuart MilI. "O crédito não é mais do que a permissão para usar do
capital alheio."

2.2 Crédito na prática comercial

Em nossa prática comercial, as operações de crédito passaram a ser efetuadas


em massa, concentrando-se, basicamente, nos bancos e instituições financeiras
que mantêm o monopólio de fato e de direito da captação, guarda e aplicação
do dinheiro do público. As operações de crédito, que são extremamente variá-
veis, apresentando inúmeras modalidades, hoje praticamente exaurem-se nas
operações ditas de financiamento, tanto em relação às empresas como ao pú-
blico consumidor. Sob tal aspecto, pode-se dizer que a principal operação pro-
cessada é a de financiamento, que se desdobra em empréstimos e para a aquisi-
ção de bens a prazo. Portanto, do mútuo e da compra e venda a prazo decorrem
a grande massa dos créditos, surgindo então os títulos de crédito como desdo-
bramento desses contratos, assegurando o meio de fazer circular os créditos
com rapidez e certeza.

2.3 Elementos do crédito: a confiança e o tempo

A confiança, pois ao entregar um bem ao devedor, o credor demonstra con-


fiar que o devedor o pague ou devolva, no prazo acertado. Não obstante, hoje,
com a aplicação do crédito em massa, principalmente por intermédio dos ban-
cos, que praticamente centralizam as operações de crédito, a confiança possa
parecer abalada pelas exigências de garantias - tais como as pessoais (ou fide-
jussórias), ou seja, aval, fiança, e as reais, tais como hipoteca e penhor - a
verdade é que são procedimentos decorrentes justamente da intensidade da con-
cessão de crédito, o que implica a adoção de certas normas de garantia, prees-
tabelecidas.
O tempo, havendo sempre um período de tempo mediando entre a entrega
do bem e sua devolução ou pagamento. Portanto, o crédito pressupõe prazo.

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2.4 O sisterp.a de crédito e a moeda no Brasil

Waldírio Bulgarelli (1984) tece considerações sobre este tema analisando o


sistema de crédito e da moeda, no Brasil:
"A regra geral no Brasil foi, durante anos, a predominância dos créditos co-
merciais sobre os créditos de produção. A explicação, em parte, dessa escassez
de crédito para investimento é sobretudo de ordem histórica, pois os primeiros
bancos se achavam mais ligados ao comércio internacional, enfrentando o pro-
blema da colocação dos produtos nos mercados externos. Hoje, contudo, o pro-
blema deslocou-se mais dessa área, e está representado pela inflação monetária,
que dificulta a concessão de crédito de vulto a longo prazo.
O fato é que às atividades produtoras do país sempre foram concedidos cré-
ditos em bases comerciais, emprestando-se sob garantias hipotecárias de imóveis
rurais e urbanos, warrant, avais etc., a juros elevados e a prazos mínimos, o
que lhes dificultava a expansão, sobretudo da agricultura. Principalmente esta
última, já que o anco do Brasil, que é o grande propulsor do crédito, estava im-
pedido por suas disposiçes estatutárias de conceder crédito agrícola espedi-
cado, muito embora financiasse, dentro de suas possibilidades monetárias, for-
çado pela necessidade de movimentar suas reservas, os agricultores, criadores e
indústrias conexas, mas sempre em bases comerciais.
Em decorrência disso a lavoura permanecia sem créditos específicos, sendo
obrigada a competir no mesmo pé de igualdade com a indústria e o comércio
para obter financiamentos, permanecendo em condições precárias, sem qual-
quer possibilidade de desenvolvimento. Do que resultou em 1930 - quando
do grande crack da Bolsa de Nova Iorque, de efeitos terríveis para a econo-
mia de todas as nações - o completo colapso da nossa economia agrícola, pois
esta não estava em condições de resistir àquele impacto, em virtude dos inú-
meros erros acumulados, como a falta de racionalização da cultura, imprevidên-
cia dos agricultores, ausência de qualquer planejamento oficial de fomento de
produção, padronização de produtos, política de retenção de café etc.
Datam daí as primeiras tentativas de reerguimento da lavoura nacional, vindo
inicialmente o Decreto n.O 23.533, de 1 de dezembro de 1933 (que, derrogado,
foi posteriormente revigorado em 12 de maio de 1934), o qual continha disposi-
ções benéficas aos agricultores, reduzindo suas dívidas contraídas até 30 de ju-
nho de 1933 em 50%, desde que tivessem garantia real. Reduzia também em
50% os débitos de qualquer natureza (não as de fim estranho à atividade agríco-
la) contraídos com bancos e casas bancárias, quando o patrimônio do devedor
fosse inferior ao total do seu passivo. Concedia indenização aos credores, me-
diante a entrega de apólices da dívida pública federal, que venciam juros de
5% ao ano; autorizava a emissão de Cr$500.000.000 em apólices para esse
fim e criava a Câmara de Reajustamento Econômico, como órgão encarregado
da supervisão referente aos benefícios concedidos pelo decreto.
A par dessas medidas, outra destinada a ter certa repercussão foi tomada
com a criação, por meio da Lei n.O 454, de 9 de julho de 1937, da Carteira de
Crédito Agrícola e Industrial do Banco do Brasil, cuja função, devidamente es-
pecificada pela lei de 20 de setembro de 1937, era a de conceder crédito à agri-
cultura, pecuária e indústria.
Títulos de crédito 37
Para a agricultura e pecuária, os empréstimos seriam feitos sob penhor agrí-
cola para a aquisição de sementes, adubos, gado, criação e melhoramentos de re-
banhos e custeio de entressafra.
Para as indústrias de transformação, os critérios destinavam-se à aquisição
de matérias-primas, reforma ou aperfeiçoamento da maquinaria existente, ou
aquisição de máquinas novas em empresas já estabelecidas.
Contava inicialmente a Carteira com recursos irrisórios para o seu ambicioso
objetivo, pois dispunha de Cr$100.000.000 obtidos através de bônus até o
montante das operações financeiras, os quais seriam obrigatoriamente aceitos
pelos institutos de seguro e previdência social. Como se vê, tais recursos decor-
riam das reservas do próprio banco, mas dos referidos institutos que se desen-
volviam à época com a política trabalhista.
Como essas, outras tentativas de solução da crise agrária brasileira continua-
ram sendo feitas pelo governo, baseadas sempre no sistema bancário existente,
que continuava operando desarmonicamente, sem estrutura articulada nos se-
tores básicos da indústria, agricultura e comércio.
Foi somente durante a 11 Guerra Mundial que a situação do crédito agrícola
começou a melhorar, surgindo em 1945 como o setor mais amparado em rela-
ção à indústria e ao comércio. Esta situação levou o governo de 1942, influen-
ciado pela Missão Cooke, que recomendavam a organização do crédito indus-
trial, a planejar uma reforma bancária geral, e por intermédio do seu Ministro
da Fazenda, Corrêa e Castro, a elaborar um anteprojeto de reforma do sistema
bancário que, após ser debatido e revisado por comissão técnica, foi enviado à
Câmara em 21.06.47 (Mensagem n.O 296/47).
O projeto previa ampla reforma com a criação de um banco central (Título
11), e de bancos semi-estatais (Título 111), que seriam o Banco Hipotecário do
Brasil, Banco Rural do Brasil, Banco Industrial do Brasil, Banco de Investimen-
tos do Brasil, Banco de Exportação e Importação e, em conclusão, a regulamen-
tação dos bancos de economia privada, incluídos aí os bancos estrangeiros.
Como conseqüência da nova orientação governamental criou-se, a título pre-
cário, com a incumbência de controlar o mercado monetário e preparar a orga-
nização do Banco Central, a Superintendência da Moeda e do Crédito, pelo De-
creto-lei n.O 7.293, de 2 de fevereiro de 1945, orientada por um conselho com-
posto de elementos de confiança imediata do chefe do governo.
Outros organismos foram criados paralelamente, na mesma linha do projeto
(enquanto este não se convertia em lei), face às necessidades do país, e até por
injunção de acordos internacionais, como foi o caso do Banco Nacional de De-
senvolvimento Econômico. Finalmente, em 31 de dezembro de 1964 foi pro-
mulgada a Lei n.O 4.595.
Era a seguinte a estrutura do sistema bancário brasileiro antes da Lei n.O 4.595
de 1964:

1. Sumoc - Superintendência da Moeda e do Crédito


2. Banco do Brasil - Carteira de Redesconto
3. Caixa de mobilização bancária - BNDE - Banco do Nordeste
4. Bancos de investimentos - Banco de Crédito da Amazônia - Banco Na-
cional de Crédito Cooperativo
5. Bancos particulares.

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2.5 Estrutura atual do sistema financeiro nacional

A Lei n.O 4.595, de 31 de dezembro de 1964, modificou totalmente a estrutura


do sistema financeiro nacional com a criação do Conselho Monetário Nacional,
órgão colegiado ao qual competirá ditar toda a política de crédito no país; ex-
tinta a Superintendência da Moeda e do Crédito, foi substituída pelo Banco
Central do Brasil (que já fora previsto no Decreto-Iei n.O 7.293. de 2 de fevereiro
de 1945), para o qual foram transferidas também as funções exercidas pela Caixa
de Mobilização Bancária e a Carteira de Redescontos do Banco do Brasil SIA,
que também foram extintas, incorporados seus bens, direitos e obrigações àquele
Banco Central - alterando as funções do Banco do Brasil, que passou a executor
de várias atividades próprias e outras por delegação do Banco Central do Brasil;
e ainda modificações gerais no regime das instituições financeiras públicas e
privadas.
Ficou, portanto, assim constituído o sistema financeiro nacional (art. 1.0):

• Conselho Monetário Nacional


• Banco Central do Brasil
• Banco do Brasil S.A.
• Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
• Banco Nacional da Habitação (§ 7.°, art. 4.°)
• demais instituições financeiras públicas e privadas.

11. T1TULOS DE CR~DITO - PARTE GERAL

1. Conceito dos titulos de crédito

o capítulo do direito comercial que trata dos títulos de crédito é, geralmente,


denominado direito cambiário devido a que, cronologicamente falando, a letra
de câmbio foi o primeiro título de crédito. Foi também o primeiro a ter uma
regulamentação nas diversas legislações. Quando diversos outros títulos de cré-
dito começaram a receber regulamentação análoga, surgiu o "direito dos títulos
de crédito" ou, como mais comumente passou a ser chamado, como se disse
anteriormente, direito cambiário.
O jurista germânico Brunner havia definido o título de crédito como o
"documento de um direito privado que não se pode exercitar, se não se dispõe
do título". Cesare Vivante, grande comercialista italiano, achou a definição
insuficiente, pois lhe faltavam elementos essenciais, que são os verdadeiros fun-
damentos dos títulos de crédito, isto é, o caráter literal e o caráter aut6nomo
de que eles se revestem. Acrescentando ao enunciado de Brunner esses dois
conceitos, Vivante formulou a sua célebre definição, geralmente considerada
perfeita: "Título de crédito é um documento necessário para o exercício do
direito literal e autônomo nele mencionado." Essa definição, concisa e precisa,
foi adotada pelo Projeto de Código Civil, em nosso país, cujo art. 923 propõe:

Títulos de c~ito 39
"O título de crédito, documento necessano ao exerClClO do direito literal e
autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos
da lei."

2 . Características dos títulos de crédito

A justificativa principal da elaboração do direito cambiário é que na circula-


ção dos títulos de crédito exista um cerco de segurança e certeza.
Por isso, os títulos de crédito são documentos característicos, cujos principais
requisitos os distinguem do documento comum, que, como assinala Eunápio Bor-
ges, se apresenta com outras características. O direito, no documento comum:

a) existe sem o documento que, embora útil e às vezes necessário como prova,
não é imprescindível para a existência do direito;
b) pode transmitir-se o documento, que pode acompanhar ou não a cessão
do direito nele mencionado;
c) pode ser exigido sem a exibição do documento, valendo a quitação dada pelo
credor como prova oponível erga omnes da extinção do direito;
d) a respectiva cessão transmite um direito derivado de acordo com a regra
clássica: nemo plus jus ad allium transferri potest quam habet. O direito do
cessionário é o mesmo do cedente, podendo o devedor alegar contra aquele
as mesmas exceções que poderia opor a este.

No título de crédito, ao contrário, o direito materializa-se no documento, pas-


sando este a representar assim um direito, normalmente distinto do que lhe deu
causa, suscetível de ser transferido, portanto de circular, de forma simples ou
diretamente pela simples entrega (tradição) ou por meio da assinatura do seu
proprietário (endosso), valendo pelo que nele contém, de forma autônoma e
às vezes independente.
Essa materialização do direito no documento, que o convola por isso mesmo
em título de crédito, é tão importante que:

a) o direito não existe sem o documento;


b o direito não se transmite sem a transferência do documento;
c) o direito não pode ser exigido sem a exibição do documento;
d) o adquirente do título, pela autonomia característica dos títulos de crédito,
toma-se credor originário, sem ser considerado sucessor do cedente. Daí tam-
bém a inoponibilidade das exceções pessoais do devedor contra ele e seus su-
cessores.

3 . Circulação cios títulos de crédito

A propósito da circulação dos créditos comuns e daqueles incorporados em


títulos de crédito, não é despiciendo insistir sobre as particularidades de cada
um.
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A cessão de crédito é regulada pelo Código Civil nos arts. 1.065 e segs .•
dispondo esse primeiro artigo que o credor pode ceder o seu crédito, se a isso
não se opuser a natureza da obrigação, a lei ou a convenção com o devedor.
Portanto, não será qualquer credor que se poderá utilizar da cessão.
Essa cessão fica subordinada, ainda, a uma série de requisitos e formalidades,
como, por exemplo:

1. Na cessão, salvo disposição em contrário, estão abrangidos todos os seus aces-


sórios (art. 1.066), e o devedor pode opor, tanto ao cessionário como ao cedente,
as exceções que lhe competirem no momento em que tiver conhecimento da ces-
são, embora não possa opor ao cessionário de boa fé a simulação do cedente (art.
1.072). Disto decorre, em princípio, que a cessão se faz a título derivado e não
em caráter autônomo e independente, como ocorre com os títulos de crédito. l!
o que dispõe a Lei n.O 2.044, de 31 de dezembro de 1908, no art. 43, a saber:
"As obrigações cambiais são autônomas e independentes umas das outras. O sig-
natário da declaração cambial fica por ela vinculado e solidariamente respon-
sável pelo aceite e pelo pagamento da letra, sem embargo da falsificação ou da
nulidade de qualquer outra assinatura." Também a ação cambial é sempre exe-
cutiva; e somente a defesa fundada no direito pessoal do réu contra o autor, em
defeito de forma do título e na falta de requisito necessário ao exercício da ação
(arts. 49 e 51).
2. A cessão do crédito deve ser necessariamente comunicada ao devedor
(art. 1.069) e não vale em relação a terceiros se não for celebrada por inter-
mediário público ou particular revestido das solenidades do art. 135.

Ora, a cessão dos títulos de crédito faz-se por via da mera tradição, ou do
endosso; e para a validade deste é suficiente a simples assinatura do próprio
punho do endossador ou do mandatário especial, no verso da letra (art. 8.0 da
Lei n. O 2.044 de 1908), dispensando-se assim qualquer outra formalidade.

4. Títulos de crédito como coisa móvel


Cabe destacar que o título de crédito é considerado coisa móvel (arts. 47 e
48 do Código Civil), constituindo verdadeiro direito ob rem ou propter rem, a
favor do possuidor do documento. A incorporação do direito no documento,
considerado este como coisa móvel, o faz refugirda cessão de direito e cair
na regra da circulação das coisas móveis.

5. Requisitos essenciais do~ titulos de crédito


Dessa definição ressaltam os requisitos essenciais dos títulos de crédito, que
são:

a) cartularidade
b) ~utonQmia.

c) literalidade '
Títulos de crédito 41
também chamados requisitos ordinários, aos quais se devem acrescer outros de-
nominados extraordinários, não essenciais, a saber:

d) independência
e) abstração

acrescentando, outros autores, em relação principalmente ao direito positivo de


cada país, o da
f) legalidade ou tipicidade

A cartularidade, também chamada incorporação, notadamente pelos autores


espanhóis modernos, como Broseta Dont e Rodrigo Uria, e pelo nosso Eunápio
Borges, consiste em última análise na materialização do direito, no documento.
Daí se dizer que o direito se incorpora ao documento, expressão empregada
até mesmo por Cesare Vivante. A expressão cartularidade ou direito cartular
(de chartula, do baixo latim) é empregada para significar tanto a incorporação
do direito ao documento, como o direito decorrente do título em relação ao negó-
cio subjacente, de relação extracartular (na Espanha, extracartacea).
Assim, deve-se ter presente que um negócio qualquer, quando gera a emissão
de título de crédito, passa a ser, perante o título, negócio ou relação extracar-
tular, enquanto o título se apresenta como cártula.
Pelo direito cartular, o documento toma-se essencial à existência do direito
nele mencionado, e necessário para a sua exigência, tornando-se legítima a co-
brança pelo titular que o adquiriu regularmente (função de legitimação). Por-
tanto, em decorrência da incorporação do direito no título:

a) quem detém o título, legitimamente, pode exigir a prestação;


b) sem o documento, o devedor não está obrigado, em princípio, a cumprir a
obrigação.

A literalidade é a medida do direito contido no título. Vale assim o docu-


mento pelo que nele se contém, exprimindo, portanto, a sua existência, o seu
conteúdo, a sua extensão, e a modalidade do direito nele mencionado. Em con-
seqüência, assinala Ascarelli que a literalidade atua tanto em favor do credor,
que pode exigir o que nele está mencionado, insuscetível de discussão, assim o
valor, o prazo etc., como também em favor do devedor, pois o credor não po-
derá pedir mais do que está estabelecido no título. Daí se dizer que "o que não
está no título não está no mundo".
Resumindo a função da literalidade, Ascarelli assinala que ela:

a) toma o direito cartular distinto da relação fundamental, tendo assim valor


constitutivo;
b) atribui à declaração cartular, como declaração da vontade, condição de fonte
de direito autônomo, cujo exercício e transmissão estão em função~ respectiva-
mente, da apresentação e transferência do título.

A autonomia é requisito fundamental para a circulação dos títulos de crédito.


Por ela, o seu adquirente passa a ser titular de direito autônomo, independente
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da relação anterior entre os possuidores. Em conseqüência, não podem
ser oponíveis ao cessionário de boa fé as excessões decorrentes da relação extra-
cartular, que eventualmente possam ser opostas ao credor originário.
:E. de lembrar, a propósito, que a Lei Saraiva, Decreto n° 2.044, de 1908, con-
sagra a autonomia, dispondo em seu art. 43:

"As obrigações cambiais são autônomas e independentes uma das outras. O


signatário da declaração cambial fica, por ela, vinculado e solidariamente respon-
sável pelo aceite e pelo pagamento da letra, sem embargo da falsidade, da fal-
sificação ou da nulidade de qualquer outra assinatura."

Como possuidor legitimado do título, o credor, como terceiro de boa fé, está
imune às exceções decorrentes da relação fundamental, entre o seu cessionário
e o devedor. Esse fato, como é evidente, dá ampla garantia ao credor de boa fé,
permitindo assim a circulação dos títulos, com ampla aceitação.
A independência não é um requisito essencial aos títulos de crédito. Dela dizia
Vivante que não é nem essencial nem co-natural aos títulos de crédito, podendo
ou não ocorrer.
O título basta-se a si mesmo, sem necessidade de outro documento para com-
pletá-lo. Enquanto, por exemplo, a letra de câmbio e a nota promissória são,
em princípio, títulos independentes, pois não se remetem a qualquer documento
para completá-las, já outros títulos dependem de documentos ou, se não depen-
dem, estão estreitamente vinculados a outros documentos, inclusive, por dispo-
sição legal.
A dependência do título pode, segundo nosso parecer, decorrer:

a) da vontade das partes - quando referem no corpo do título a existência de


outro documento, insertando-o na cártula por via da literalidade;
b) de imposição legal, ou seja, quando é determinada por lei a ligação do título
com outro documento, como ocorre, por exemplo, na cédula de crédito rural que
a lei vincula ao orçamento (Decreto-Iei n.o 167, de 14 de fevereiro de 1967);
c) resultar da própria substância e conformação do negócio e do título, como
ocorre, por exemplo, com as ações, as quais, como títulos de participação, são
oomplementadas necessariamente pelo estatuto da sociedade de emissora.

Todos os títulos de crédito são emitidos por alguma razão; têm por isso uma
causa, a qual, na generalidade dos casos, decorre de um negócio como compra
e venda, mútuo etc. Essa causa poderá ou não ser declarada no título. Em alguns
casos ela não é mencionada no título de crédito, tomando-o completamente
abstrato em relação ao negócio fundamental que lhe deu origem. Exemplo tí-
pico são as letras de câmbio e a nota promissória, nas quais não é necessário
mencionar-se a razão, a causa da sua emissão ou criação, não podendo, por isso
mesmo, serem opostas exceções ao credor com base nelas. Não obstante, a abs-
tração não é essencial aos títulos de crédito, contrapondo-se os chamados títu-
los causais aos títulos abstratos, estes, basicamente, a letra de câmbio e a nota
promissória.
Em nosso direito são considerados títulos abstratos a cambial (nas suas duas
variantes, a letra de câmbio e a nota promissória), em que é dispensável a enun-
ciação da causa, e como títulos causais, uma série grande, como a duplicata (que

Títulos de crédito 43
só pode ser emitida em decorrência de uma entrega efetiva de mercadorias, ou
de efetivo serviço prestado, de acordo com a Lei n.O 5.474, de 18 de julho de
1968), e outros.
A abstração, como nota a doutrina moderna, foi construída não em favor do
credor de boa fé, mas para garantir a segurança da circulação. Ela atua basica-
mente, pois, em favor do terceiro que não foi parte da relação fundamental (o
negócio que deu origem à emissão ou criação do título). Entre as partes, obvia-
mente, a causa dessa emissão ou criação do título poderá ser invocada, proces-
sualmente, por via do direito pessoal do réu contra o autor ou em decorrência
da lei que os criou.
Necessário é, a propósito, distinguir-se a causa da relação fundamental (o
negócio jurídico entre as partes, ou seja, mútuo, compra e venda, doação etc.)
da causa da emissão ou criação do título (esta chamada pela doutrina, de con-
venção executiva, ou seja, negócio distinto da relação fundamental embora de-
corrente dele, como: pagamento, garantia, crédito, declaração etc.), daí por que
o negócio abstrato se caracteriza como um negócio de segundo grau, conseqüên-
cia de um negócio causal entre as mesmas partes.
:\. legalidade ou tipicidade consiste na impossibilidade, pela lei, de se emiti-
rem títulos de crédito que não estejam previamente definidos e disciplinados
por lei. Entre nós tem-se admitido essa orientação, e o projeto do Código Civil,
ora em trâmite no Congresso Nacional, dispõe que o título de crédito somente
produz efeito quando preencha os requisitos da lei (art. 923).

C. Teorias gerais dos títulos de crédito

6.1 Teoria de Vivante

Começa Vivante por indagar como se explica a posição jurídica diversa en-
tre o devedor que emite o título de crédito e o credor que lhe está à frente, e
aquele a quem este transferiu o título.
Se se considera, comenta o autor, como fundamento da obrigação (do deve-
dor versus credor originário) o contrato, não se explica como o devedor perde
a faculdade de opor ao terceiro possuidor do título os vícios que suprimem a
obrigação; se for explicado como resultante da vontade unilateral do devedor,
não se explica por que pode opor ao seu credor todas as exceções procedentes
do contrato que deu origem ao crédito ...
Não é possível, pois, estabelecer critério unitário para dar explicação a ques-
tão tão complexa. Por isso Vivante desdobra a relação jurídica em duas partes,
formulando sua teoria baseada em um duplo sentido da vontade, o que lhe va-
leu a crítica de Bonelli. Mas tomamos de Vivante as suas próprias palavras:
"Para explicar ~ posição distinta do devedor, há que penetrar nos motivos de
sua vontade, fazer a análise desta vontade, que é o fundamento da obrigação, e
reconhecer que se ele, para obter o benefício do crédito, quis dar à outra parte,
seja vendedor ou mutuante, um título apto para a circulação, quis também, não
obstante, conservar intatas contra ele as defesas que o direito comum propor-
ciona. Mas a disciplina do título deve adaptar-se a essa diferente direção da
vontade que lhe deu origem, devendo a condição de devedor regular-se confor-
me a relação jurídica total que deu origem ao título, quando se encontra ante
aquele com quem o negociou; e deve, em troca, ajustar-se à sua vontade unHa-

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teral, tal como se manifestou no título,quando se encontra frente aos subse-
qüentes portadores de boa fé."
Assim, em relação ao seu credor, o devedor do título se obriga por uma rela-
ção contratual, motivo por que contra ele mantém intatas as defesas pessoais
que o direito comum lhe assegura; em relação a terceiros, o fundamento da
obrigação está na sua forma (do emissor), que expressa sua vontade unilateral
de obrigar-se, e essa manifestação não deve defraudar as esperanças que desper-
ta em sua circulação.
Essa teoria foi saudada como definitiva para a ciência por Bolaffio Segre.
Bonelli, como já enunciamos, a contestou, considerando-a ilógica - contrária
à lógica jurídica - devido a admitir o duplo sentido da vontade. Mas Vivante,
com vantagem, contraditou, demonstrando que na sociedade comercial e na re-
presentação é comum esse duplo sentido da vontade.

6.2 Outras teorias

Pelas simples anotações já apresentadas, podemos perceber como é fascinante


o estudo dos títulos de crédito na sua essência. Convém conhecer· outras teorias,
de diferentes juristas, que tentam desvendar-lhes os mistérios.

• Einnert - o grande jurista alemão considerava a cambial como papel-moeda


dos comerciantes (Papier-Geldstheorie). Emitida a promessa ao público, cria-se
neste a fé no pagamento, de acordo com as cláusulas apostas no título, e daí a
existência do direito autônomo. Se houvesse contrato, expressa Einnert, não se
poderia conceber a autonomia. Kuntze aprofundou a teoria incutindo-lhe um
pouco do pensamento moderno no sentido de que o título não é simples docu-
mento probatório:

a) é veículo de promessa;
b) a promessa de pagamento é abstrata; independe da relação fundamental;
c) não se trata de contrato, mas de promessa unilateral. O título para esses
autores surge de uma promessa unilateral.

• Savigny - seguido por Jolly, Goldschmidt e Unger. Parte Savigny da idéia


de que quem emite o título geralmente o faz em massa; o emissor visa o con-
trato com incerta persona e incorpora a dívida no papel. Como verdadeiro cre-
dor, diz o jurista, "é preciso considerar, em todos os casos, o proprietário do
papel. A posse de fato está sempre unida à presunção de propriedade".
• Schweppe - cria esse autor a teoria da personificação do título. ~ curiosa.
O titular do direito é o título mesmo, que se personifica no momento da criação.
O título emitido não é coisa, mas pessoa. Foi seguida por Bekker. Saleilles a
combateu, porque "as coisas materiais não podem ser sujeitos de direito, por
si próprias, e não pode haver crédito sem credor".
• Von Ihering - enunciou o famoso jurista a teoria do germe. O credor
é o último portador. A declaração de vontade do emissor produz imediatamente
um vínculo passivo da obrigação, porém não o direito de crédito correspon-
dente; durante a circulação este existe em germe, em potencial, não pertence,

TífUlos de crédito 45
porém, ao patrimônio de ninguém. Amadurece quando deixa de circular. Vi-
vante a classificou como artificiosa, e pergunta: os milhões de títulos nas Bolsas,
objeto do comércio, não existem?

Diante destas análises pequenas das teorias, duas são das mais expressivas e
dividem as preferências da legislação dos países modernos: "a teoria da criação
e a teoria da emissão."

6.3 Teoria da criação

Essa teoria tem como paladinos Siegel e Kuntze, seguidos por Brauschettinni,
Bonelli, Navarrini e outros. O direito deriva da criação do título. O subscritor
dispõe de um elemento de seu patrimônio; fez para a vida o que, por testamen-
to, faria para efeitos post mortem: dispor dos próprios bens. O título é como
o testamento: tem valor próprio, dispensa e lhe repugna o acordo de vontades.
O emissor fica ligado à sua assinatura, e obrigado para o futuro portador, cre-
dor eventual e indeterminado. Mas só com o aparecimento desse futuro deten-
tor é que nasce a obrigação. Otávio Mendes criticou essa teoria, por confundir
criação do título com nascimento da obrigação. Assim, para Kuntze, com a en-
trada em circulação do título nasce a obrigação; com a concepção do escrito
nasce, apenas, o título.
A conseqüência da teoria da criação é severa e grave. O título roubado ou
perdido, antes da emissão, mas após a criação, leva consigo a obrigação do subs-
critor.
Essa teoria foi adotada em grande parte pelo Código Civil alemão. Como
comentou Pontes de Miranda, em mãos do subscritor, o título, segundo essa teo-
ria, já é um valor patrimonial e prestes a se tomar de direito de crédito. A von-
tade do devedor já não importa para tal efeito obrigacional: o título é que o
produz... É o título que cria a dívida. A única condição que se impõe à sua
eficácia é a posse pelo primeiro portador, qualquer que seja ela.

6.4 Teoria da emissão

Foi defendida por Stobbe e Windscheid. Sustenta essa teoria que do ato da
criação, isto é, da assinatura do título, não pode surgir vínculo algum, porque
a redação e subscrição não patenteiam ainda a vontade de se obrigar. Só após
o abandono voluntário da posse, seja por ato unilateral, seja por tradição, é que
nasce a obrigação do subscritor. Sem emissão voluntária não se forma o vínculo.
Se o título foi posto fraudulentamente em circulação, não subsiste a obrigação.

6.5 Teoria adotada pelo direito brasileiro

Muito embora as teorias estudadas sobre títulos de crédito digam respeito


a todas as suas formas, mais se acentuam e aproveitam em relação aos títulos
de crédito ao portador. O Código Civil brasileiro disciplinou os títulos de cré-
dito ao portador, embora fosse muito criticada a inclusão dessa matéria em seu
âmbito. Considerou-os não como resultantes de relação contratual, mas de de-

46 R.C.P. 3/86
daração unilateral da vontade. Por isso alinha-os sob o título Das obrigações
por declaração unilateral da vontade, ao lado do capítulo Da promessa de re-
compensa.
A esse respeito Clóvis Beviláqua comentou: "Depois de longas, eruditas e
acaloradas discussões, chegou afinal a doutrina jurídica a fixar-se na explica-
ção do mecanismo do título ao portador pela eficácia da declaração unilateral
da vontade. Somente ela explica a relação direta entre devedor e o portador
do título, fazendo-se tábula rasa de todos os precedentes possuidores, de modo
a poder-se dizer que o direito de todos os portadores é igual e simultâneo, para
significar que a obrigação da parte do emissor permanece íntegra a todo o mo-
mento, perante quem quer que apresente o documento onde ela se incorpora;
ou para exprimir que a vontade do subscritor, depois de assumir obrigação, se
conserva em passividade receptiva, à espera de quem se lhe apresente a exigir-
lhe o cumprimento da promessa; ou para dar a entender que entre o obrigado
e o primeiro detentor do título não há vínculo obrigatório pessoal, nem tam-
pouco entre eles e os sucessivos portadores. O credor é uma pessoa incerta, que
se determina pela apresentação do título."
Não é fácil, por outro lado, situar a doutrina do Código entre as teorias da
criação ou da emissão. Clóvis, ao estudar a reivindicação dos títulos ao por-
tador, revela que "fundiram-se em nosso direito doutrinas divergentes". Em
face aos diversos dispositivos legais, com efeito, ora aparece-nos a teoria da
emissão, ora da criação. Tomemos como exemplo o dispositivo no art. 1.506,
que diz que "a obrigação do emissor subsiste ainda que o título tenha entrado
em circulação contra a sua vontade". Isso é pura teoria da criação, na qual
se integra a obrigação pela simples assinatura do subscritor no título, pouco
importando que o tenha feito circular. Os autores indicam o art. 794 do Código
Civil alemão, inspirado nessa teoria, como fonte do dispositivo de nossa lei:
"O emissor de um título ao portador se acha obrigado, ainda se lhe foi roubado,
se lhe foi extraviado ou de qualquer outro modo foi posto em circulação contra
sua vontade( ... )."
Mas, se assim é, a lei civil não impede o subscritor ou portador de reavê-lo
das mãos desonestas, o que lhe faculta o art. 1.509, embora nada possa intentar
contra terceiro de boa fé, a cujas mãos veio ter o título. A possibilidade de
reaver o título, posto a circular indevidamente nos aproxima da teoria da emis-
são ...
A conclusão a tirar é que o Código não se filiou puramente a nenhuma das
duas teorias, temperando os rigores da teoria da criação com nuanças da teoria
da emissão.

7. Inoponibilidade das exceções


O interesse social visa, no terreno do crédito, proporcionar ampla circulação
dos títulos de crédito, dando aos terceiros de boa fé plena garantia e segurança
na sua aquisição. ~ necessário que na circulação do título aquele que o adqui-
riu, mas que não conheceu ou participou da relação fundamental ou da relação
anterior que ao mesmo deu nascimento ou circulação, fique assegurado de que
nenhuma surpresa lhe venha perturbar o seu direito de crédito por quem com-
ele não esteve em relação direta. O título deve, destarte, passar-lhe às mãos pu-
rificado de todas as questões fundadas em direito pessoal, que porventura os
Títulos de crédito 47
antecessores tivessem entre si, de forma a permanecer límpido e cristalino nas
mãos do novo portador.
A segurança do terceiro de boa fé é essencial na negociabilidade dos títulos
de crédito. O direito, em diversos preceitos legais, realiza essa proteção, impe-
dindo que o subscritor ou devedor do título se valha, contra o terceiro adqui-
rente, de defesa que tivesse contra aquele com quem manteve relação direta
e a favor de quem dirigiu a sua declaração de vontade. Por conseguinte, em
toda a fase da circulação do título, o emissor pode opor ao seu credor direto
as exceções de direito pessoal que contra ele tiver, tais como, por exemplo, a
circunstância de já lhe ter efetuado o pagamento do mesmo título, ou pretender
compensá-lo com crédito que contra ele possuir. Mas, se o mesmo título hou-
ver saído das mãos do credor direto e for apresentado por um terceiro, que já
esteja de boa fé, já nenhuma exceção de defesa ou oposição poderá usar o de-
vedor contra o novo credor, baseado na relação pessoal anterior. Este, ao rece-
ber o título, houve-o purificado de todas as relações pessoais anteriores que
não lhe dizem respeito.
Esse princípio que resulta do conceito já exposto da "autonomia das rela-
ções cartulares", pois o portador de boa fé exercita um direito próprio e não
derivado de relação anterior, está consagrado em algumas normas de lei. O Có-
digo Civil, ao regular os títulos ao portador, consagra no art. 1.507 o princípio
da inoponibilidade das exceções, expressando que "ao portador de boa fé, o su-
bscritor, ou emissor, não poderá opor outra defesa além da que assente em nuli-
dade interna ou externa do título, ou em direito pessoal ao emissor, ou subs-
critor, contra o portador". O Decreto n.O 2.044, de 31 de dezembro de 1908,
também regula a matéria no setor cambiário, dispondo, no art. 51, que "na
ação cambial somente é admissível defesa fundada no direito pessoal do réu
contra o autor, em defeito de forma do título e na falta de requisito necessário
ao exercício da ação". Esse preceitQ ressurge no art. 17 da Lei Uniforme, de Ge-
nebra, segundo o qual "as pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem
opor ao portador as exceções fundadas sobre as relações pessoais delas com o
sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador, ao adquirir a
letra, tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor".
Afora a oponibilidade de defesa resultante de relação pessoal direta entre o
subscritor ou transmitente do título e o novo portador, podem ser opostos a
qualquer portador os vícios formais ou falta de requisito necessário ao exercí-
cio da ação. Uma letra de câmbio, por exemplo, a que falte um requisito essen-
cial, não configura título cambiário, e qualquer pessoa que nele apareça em
posição de devedor pode opor ao credor esse vício fundamental, elidindo a
ação fundada no título de crédito. O mesmo ocorre quando o emissor do título
for incapaz, não podendo o credor dele exigir o crédito ilegalmente reconhecido
pelo menor. Os interesses sociais de proteção ao incapaz superam os interesses
sociais de segurança da circulação dos títulos de crédito.
Se, todavia, o adquirente do título agir de má fé, estando, por exemplo, con-
luiado com o portador anterior, a fim de frustrar o princípio da inoponibilidade
da exceção de defesa que contra ele tivesse o devedor, este tem o direito de
opor-Ihe a defesa que teria o antecessor.
A inoponibilidade das exceções fundadas em direito pessoal do devedor con-
tra o credor constitui a mais importante afinnação do direito moderno em fa-
vor da segurança da circulação e negociabilidade dos títulos de crédito.

48 R.C.P. 3/86
8. Título de crédito não opera novação do crédito anterior

Um dos aspectos mais curiosos do direito relativo aos títulos de crédito re-
sulta da debatida questão de se saber se, incorporado um direito de crédito ao
título, esse direito se extingue pela novação, ou se subsiste de forma latente.
Essa questão, como observam os professores franceses Hamel, Lagarde e
Jauffret, apresenta diversos interesses práticos. E assim é, de fato, pois se o
crédito originário desaparecer, isso ocorrerá por efeito da novação da dívida;
o título substituirá o crédito antigo, que desaparecerá ao mesmo tempo que
suas garantias; e mais, se o crédito antigo desaparecesse, não poderia renascer
na hipótese de o título não ser pago ou em conseqüência de decadência ou
prescrição. Esses autores invocam a jurisprudência dos tribunais franceses, que
admitem que as garantias do crédito originário passam ao portador regular e
asseguram o crédito, e, ao mesmo tempo, permitem ao credor agir em virtude
do antigo crédito quando o título sobre ele emitido desaparecer pela decadên-
cia ou prescrição. E concluem que é forçoso, então, reconhecer que o crédito
antigo não desaparece pelo fato de sua incorporação no título.
Em nosso direito estabeleceu-se séria controvérsia. Sustenta Magarinos Tor-
res que a nota promissória - título de crédito a que dedica sua obra pelo seu
caráter de título de crédito completo - desempenhe as funções de dinheiro e
paga, como este, para os efeitos jurídicos, conquanto seja na realidade um adi-
antamento. "Ela leva o dinheiro", prossegue o autor, "representado apenas no
crédito das assinaturas, de um lugar para outro, de um mesmo ou de países di-
versos; e realiza por aí a extinção de uma dívida, quer seja o preço de uma com-
pra, ou de um serviço, ou o débito de uma conta, ou um empréstimo; ao mes-
mo tempo que retarda a entrega efetiva do dinheiro." O título de crédito, em
conseqüência, opera a novação do crédito antigo, pois a novação é a conser-
vação de uma obrigação em outra, que absorve a primitiva. O título de crédito
extingue, em virtude dessa doutrina, o crédito que lhe deu causa, novando-o;,
o crédito primitivo extingue-se, mas ressurge sob a roupagem e forma de título
de crédito. Como observa Inglez de Souza, que perfilha a mesma opinião, "o
indivíduo devedor de uma conta, e que emite uma nota promissória, deixa de
dever aquela conta que se considera paga pela novação operada com a emissão
do título".
Não é essa, porém, a corrente vitoriosa em nosso direito. J. X. Carvalho de
Mendonça, por exemplo, é conclusivo quando compara a moeda corrente aos
títulos de crédito, afirmando que "os pagamentos feitos com a primeira são
imediatamente operativos e extintos de débito, enquanto que os pagamentos
realizados com os segundos não extinguem absolutamente a obrigação; a extin-
ção fica dependente do pagamento no vencimento, da execução da prometida
prestação, causa única do valor desses títulos. Por outra, tais títulos só recebem
pro solvendo e não pro soluto.
Desse lado se alinham Paulo de Lacerda, Saraiva e Arruda. Para eles, o tí-
tulo de crédito não opera novação da obrigação subjacente, que lhe deu ori-
gem. E assim, com efeito parece ser o correto. Se o título de crédito engen-
drasse novação de crédito antigo, extiguind<K>, não se poderia cogitar da ação
de locupletamento ou de enriquecimento sem causa, a que expressamente alude
o art. 48 do Decreto n.O 2.044, quando permite que "sem embargo da desone-
ração da responsabilidade cambial, o sacador ou o aceitante' fica obrigado a res-
tituir ao portador, com os juros legais, a soma com a qual se locupletou à custa

Títulos de crédito 49
deste"; nem se admitiria a oponibilidade das exceções fundadas em direito pes-
soal do devedor contra o portador, que, como se estudou, podem ser opostas
nas relações diretas entre um e outro (Decreto n.O 2.044, art. 51). A inclinação
do Supremo Tribunal Federal é considerar o pagamento feito por título de cré-
dito como pro solvendo, como vê no julgamento do Recurso Extraordinário n.O
14.065, de 1951, relatado pelo Ministro Nélson Hungria (Revista Forense,
140/175).

9. Classificação dos títulos de crédito


O título de crédito é um documento que exerce função de legitimação, pois
seu possuidor de boa fé está apto a exercer o direito nele mencionado, e como
existem outros documentos que, embora tendo tal função, não são títulos de
crédito, convém distingui-los. Destarte diferenciam-se, na doutrina, os compro-
vantes de legitimação e os títulos de legitimação; sendo os primeiros aqueles
em que o direito do titular não deriva do documento, mas de um contrato, cons-
tituindo-se em simples prova (como, por exemplo, as passagens de ônibus, os
recibos de depósito, as fichas entregues nos guichês dos bancos etc.) devendo
ser apresentados para o cumprimento da obrigação; os segundos, documentos
também meramente probatórios, caracterizam-se por serem transferíveis, ope-
rando a cessão independente de notificação, ficando, portanto, o devedor obri-
gado a cumprir a obrigação, como no caso dos vales postais, e outros. Em sín-
tese apropriada, mostra Eunápio Borges (1983) as diferenças entre os três: "as-
sim, pois, nos comprovantes de legitimação, provado que o possuidor não é o
titular originário, o devedor não é obrigado à prestação; nos títulos de legitima-
ção, a obrigação só inexistirá se for provada a falta da cessão do credor originá-
rio ao possuidor. Em resumo: nos comprovantes de legitimação, o possuidor se
legitima como contraente originário; nos títulos de legitimação, como contraente
ou cessionário, e, nos títulos de crédito, como proprietário do título."

9.1 Títulos de crédito quanto ao conteúdo

Para Cesare Vivante, os títulos de crédito classificam-se, segundo seu conteú-


do, em quatro grupos:
a) títulos de crédito propriamente ditos - que dão direito a uma prestação
de coisa fungível em mercadoria ou em dinheiro (letra de câmbio etc.);
h) títulos que servem para adquirir direito real sobre coisa determinada (cé-
dula pignoratícia);
c) títulos que atribuem a qualidade de sócio (ação);
d) títulos que dão direito a serviços (bilhete de passagem).

J. X. Carvalho de Mendonça distinguiu duas ordens de títulos de crédito


(quanto ao conteúdo da declaração cartular):
1. Os títulos de crédito propriamente ditos, nos quais se atesta uma operação
de crédito, figurando entre eles os títulos da dívida pública, as letras de câm-
bio, os warrants, as debêntures etc.

50 R.C.P. 3/86
2. Os títulos de crédito impropriamente ditos, nos quais, ainda que não repre-
sentem uma operação de crédito, se encontram, a par da sua literalidade e auto-
nomia, id quod quacumque causa debetur.

Entre eles enumerou os seguintes:

a) os que permitem a livre disponibilidade de certas mercadorias, tais como:


conhecimento de depósitos emitidos por armazéns gerais; os conhecimentos de
carga;
b) o título que permite ao emissor retirar, em favor próprio, ou de terceiro, a
totalidade dos fundos disponíveis em poder do comerciante; este título é o
cheque, o qual não é instrumento de crédito propriamente dito; representa
antes um título de exação, destinado aos pagamentos e liquidações;
c) os títulos atributivos do complexo de direitos conexos à qualidade de sócio
(direitos societários e tais são as ações das sociedades anônimas e das em coman-
dita por ações).

Como se vê, tal classificação distancia-se bastante substancialmente da apre-


sentada por Vivante.
O que se procura acentuar na classificação dos títulos de crédito, em razão
do conteúdo da declaração cartular, é a natureza e extenção do direito mencio-
nado, pois que na variedade dos títulos de crédito existentes esse direito varia
também. Assim ocorre com os chamados representativos, com o conhecimento
de depósito, que representam mercadorias; os de participação, como as ações
de sociedade anônima, e os de direito de crédito (a bem dizer, monetário), como
as letras de câmbio etc.
Entretanto, como bem acentua Vivante, essa distinção não tem maior impor-
tância para a teoria dos títulos de crédito que se ocupa, desde que foram emi-
tidos, da sua circulação.
Cumpre acentuar, a propósito, que não tem sentido denominar-se alguns
títulos de propriamente ditos e outros de impropriamente ditos, de vez que ou
são títulos de crédito (conformados ao conceito vivantiano) ou então seriam tí-
tulos impróprios (terminologia característica da doutrina italiana) e, portanto,
como tais, não seriam títulos de crédito, mas apenas documentos de legitima-
ção ou títulos de legitimação.

9 . 2 Títulos de crédito quanto ao modo de circulação

Desta classificação destaca Vivante, como a mais importante, a que se re-


fere à circulação, ou seja:

• nominativos
• à ordem e
• ao portador
observando que cada título nasce com a sua lei de circulação, dependente da
vontade da lei ou de seu emitente.
Titulas de crédito 51
9.2.1 Títulos ao portador

São emitidos sem nome do beneficiário, transferindo-se pela simples tradição.


Em contraposição aos títulos nominativos, sua circulação, conquanto seja fácil e
ágil, é, por outro lado, perigosa, como ao caso de furto ou perda. Transferindo-
se pela simples entrega, presume-se proprietário quem estiver na sua posse.
Emitidos com a cláusula ao portador ou simplesmente com o preenchimento do
nome do beneficiário, não encontraram muita guarida em nosso meio, salvo
aqueles emitidos em massa.

9.2.2 Títulos nominativos

São títulos em que a transferência se opera cabalmente com o registro no livro


próprio. São emitidos em nome de pessoa determinada e sua transferência, con-
forme acentua Vivante, só é perfeita quando se registra nos livros do devedor.
Um exemplo são as ações nominativas, que se transferem por termo de transfe-
rência no livro da sociedade assinado pelo cedente e pelo cessionário. Pressu-
põe, portanto, a entrega do título e a inscrição no livro próprio. Tais títulos são
de circulação segura, porém difícil, pela formalidade a que está obrigado para
tomar perfeita sua transferência.

9.2.3 Títulos à ordem

São emitidos em favor de pessoa determinada e transferíveis por endosso.


Constituem, assim, meio-termo entre os nominativos e os ao portador, sendo
sua circulação mais fácil do que a dos nominativos, pois independe de qualquer
termo, e mais difícil do que a dos ao portador, pois exige o endosso (simples
assinatura lançada no próprio documento).

10. Conversibilidade dos títulos de crédito

Os títulos podem, em princípio, ser convertidos de uma forma em outra se,


é claro, a sua lei de circulação depende apenas dá vontade do emitente; se,
ao contrário, for determinada pela lei, então não será possível sua conversão.
Exemplo: a letra de câmbio, sendo título tipicamente à ordem, pode ser trans-
ferida por endosso, pois a lei previu essa hipótese no art. 11 da Lei Uniforme
de Genebra; porém o sacador ou o endossante pode impedir a circulação pelo
endosso, mediante a inserção da cláusua não à ordem (arts. 11 e 15 da Lei
Uniforme de Genebra).

11. Relação dos títulos de crédito existentes no Brasil

Bulgarelli elaborou uma relação dos títulos de crédito existentes no Brasil,


com a indicação das -leis que os· regem, destacando algumas características nota-
damente em relação à sua função econômica ou do seu emitente.

52 R.C.P. 3/86
• Decreto n Q 2.044, de '31 de dezem-

{
Cambiais • 'Letra de câmbio
bro de 1908, alterado pelo Decreto n Q
57.603, de 24 de janeiro de 1966 -.Lei
{ Uniforme de Genebra
• Nota promissória

Bancários • Certificado de • simples (art. 30) Lei n Q 4.728, de 14


depósito bancário
{ • em garantia (art.
31)
de julho de 1965

{
• Cheque • Decreto nQ 2,591', de 7 de agosto de
1912, alterado pelo Decreto n Q 57.595,
{ de 7 de janeiro de 1966 - Lei Unifor-
me de Genebra

Instituições • Certificado de investimento - Resolução n Q 145, de 14 de abril


Financeiras de 1970, do Banco Central do Brasil
• Letras de câmbio de aceite de financeiras - art, 27 da Lei n Q
4,728, de 14 de julho de 1965

Imobiliários • Letra hipotecária - Decreto n Q 169-A, de 19 de janeiro de 1890


• Letra imobiliária - Lei n Q 4.380, de 21 de agosto de 1964
• Cédula hipotecária - Decreto-Iei n Q 70, de ·21 de novembro de
1966 e Resolução n9 228, de 4 de julho de 1972, do Banco Central
do Brasil

• Cédula rural pignoratícia {


• Cédula rural hipotecária' • Decreto·lei n 9 167, de 14 de
fevereiro de 1967
• Cédula rural pignoratícia e hi-
Rurais potecária • Lei nQ 6,754, de 17 de dezem-
bro de 1979
• Nota de crédito rural

• Duplicata rural • Lei n 9 165-A, de 1890, art. 25


• Bilhete de mercadoria da Lei n Q 4.829, de 5 de no-
( vembro de 1965

• :Warrants cooperativos • Lei n 9 5,764, de 16 de dezem-


Cooperativo$ • Conhecimento de depósito bro de 1971
{ cooperativo. { Ar!. 82

• Cédula de crédito à exportação ( • Lei nQ 6.31l, de 16 de de-


Exportação
{ • Nota de crédito à exportação
zembro de 1975
• Decreto·lei n 9 413, de 9 de
janeiro de 1969

• Conhecimento de transporte • Decreto n 9 19.473, de 10 de


Representativos dezembro de 1930
de mercadorias { • Conhecimento de depósito ( • Decreto n 9 1,102, de 21 de
novembro de 1903

Penhor
{ • Warrants - Decreto nQ 1.102, de 21 de. novembro de 1903

(Continua)
(Conclusão)

·
I
Cédula de crédito industrial - Decreto-Iei nQ 413, de 9 de janeiro
Industriais de 1969
• Nota de crédito industrial

Comerciaís
! • Cédula de crédito comercial -

.
• Nota de crédito comercial

Mercadorias
Lei nQ 6.840, de 4 de novembro
de 1969

• Lei nQ 5.474, de 18 de ju-


Contrato de
compra e venda
e serviços
( • Duplio,"
! • Serviços
{
lho de 1968, alterada pelo
Decreto-lei nQ 436, de 27
de janeiro de 1969, Lei nQ
6.458, de 1 de novembro
de 1977

• Ações
• Certificado de depósito de ações
• Partes beneficiárias
• Certificado de depósito de
Sociedade por partes beneficiárias • Lei nQ 6.104, de 15 de de-
ações • Debêntures zembro de 1976
• Certificado de dep6sito de \
debêntures
• Cédula pignoratícia de debênture
• Bônus de subscrição de ações

,( • Federais • Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional


Públicos - Lei nQ 4.357, de 16 de julho de 1964
( • Letras do Tesouro Nacional - Lei nQ 1.079,
• Estaduais de 29 de janeiro de 1970

IH. LETRA DE CÂMBIO

1. Origem hist6rica

A origem da letra de câmbio, segundo vários autores, é incerta, mas sem


dúvida que a difusão da letra de câmbio se verificou na Idade Média, sendo nas
comunas italianas onde encontramos, historicamente documentados, os primeiros
casos práticos, as primeiras disposições legislativas e os primeiros rudimentos
doutrinais sobre a letra de câmbio.
Hoje, quase à unanimidade, é que se comenta a procedência da letra de câm-
bio como realmente desenvolvida e consolidada na Idade Média, intensificando
o seu uso, principalmente nas feiras e mercados.
Salienta Valery que não há uma s6 das instituições mercantis modernas cuja
fonte não se encontre no jus mercatorum firmado nas corporações medievais
italianas.
Dois fatores básicos contribuíram para a disseminação intensa das letras de
câmbio, nessa época:

54 R.C.P. 3/86
1. A diversidade de moedas existentes, tanto nas repúblicas italianas como
nas várias regiões da Europa;
2. As dificuldades e os perigos para o transporte de moedas de uma região
para outra.

Neste caso a Igreja não pôde opor-se à letra de câmbio, embora proibisse
com penas severas a usura (juros exorbitantes vedados pela lei ou pela moral),
inclusive o ganho decorrente da troca de moedas na mesma praça.
Nos seus inícios, portanto, a cambial está estreitamente ligada ao contrato de
câmbio, servindo como seu instrumento.
Genericamente, câmbio significa troca, e mais especificamente, troca de di-
nheiro realizada pelos banqueiros (cambiadores, campsores).
Dois tipos de câmbio eram utilizados:

a) o manual (ou real), consistente na troca de moedas diferentes, imediata-


mente;
b) trajecticium, que implica a distância loci, pois o banqueiro obrigava-se a res-
tituir o dinheiro recebido, em lugar diverso e na moeda desse lugar. Trocava-se,
assim, moeda presente (pecunia praesentl) por moeda ausente (pecunia absenti),
realizada essa operação através do contrato de câmbio, que, quando por escrito,
chamava-se cambium per Iitteras, cujo instrumento era a cautio, formalizado
por notário, e cujo conteúdo era composto de:

• reconhecimento da dívida proveniente da moeda recebida (valuta):


• e a obrigação de pagá-la em moeda e local diferentes.

Eunápio Borges (1983) bem explica o surgimento da letra de câmbio com


base no contrato de câmbio, afirmando:

"Ao instrumento do contrato de câmbio - a cautio - que continha, em


substância, a promessa do banqueiro de efetuar o pagamento da soma recebida,
veio juntar-se, provavelmente no séc. XIII, uma carta particular do banqueiro
a seu correspondente, no lugar do pagamento, encarregando-o de pagar a res-
pectiva soma ao apresentante da carta, da lettera di pagamento.
A cautio teria sido a origem da nota promissória (a cambiale própria do di-
reito italiano) e a lettera di pagamento di cambio (também denominada de trac-
ta) constitui a primitiva letra de câmbio (a cambiale tratta) , cuja denominação
littera cambii foi expressamente consagrada em 1368 nos Estatutos dos Comer-
ciantes de Pavia.
Ao contrário da letra de câmbio, a nota promissória (cambiale propria, eige-
ner Wechsel) - derivada da cautio - teve sua evolução paralisada durante
muito tempo e só modemamente adquiriu importância, precisamente por ser
o instrumento do condenado câmbio seco.
Se o sacado (o correspondente do banqueiro) deixasse de atender à solici-
tação contida na tracta, a ação do portador contra o banqueiro não se baseava,
a princípio, na Iittera cambii, mas na cautio, no instrumento público do contrato
de câmbio.
Títulos de crédito 55
Aos poucos, porém, à medida que as operações de câmbio se tomaram mais
freqüentes, sentiram os interessados que o instrumento público, dispendioso e
demorado, era todo supérfluo. E a cautio suplantada pela littera cambii, caiu
em inteiro desuso, passando a littera, a tracta entregue pelo banqueiro ao toma-
dor a ser considerada prova suficiente do contrato de câmbio; a promessa de
pagamento em determinado lugar, contra a entrega ao banqueiro pelo tomador
da letra, da importância (valuta) nela mencionada.
Daí o nome - letra de câmbio - que se conservou o mesmo através dos
tempos e em todos os lugares. Porque letra de câmbio era primitivamente uma
carta (littera) dirigida por um banqueiro a outro, contendo a ordem de pagar
determinada quantia que o primeiro havia recebido do tomador da letra, em
virtude do contrato de câmbio.

2. Os períodos históricos: italiano, francês, alemão

Costuma-se dividir o estudo histórico da letra de câmbio, em três períodos


distintos (italiano, francês e alemão), o que não é de ser criticado, pois foram
sendo fixadas, nesse período, as características da letra de câmbio, permitindo,
assim, uma visão em conjunto da sua evolução.
No período italiano (que se convencionou terminar em 1650), a letra de
câmbio é considerada como mero instrumento do contrato de câmbio, meio de
troca de moeda; no período francês (de 1650 até 1848) passa a ser meio de
pagamento (inclusive de mercadorias a crédito), tanto que a Ordenação de
Comércio Terrestre Francesa, de 1673, consagrou as principais características
da cambial, nessa época, a saber: o endosso sem restrições; a letra de câmbio
representando valor fornecido em mercadoria; a letra ao portador; a inoponi-
bilidade de exceções ao terceiro possuidor de boa fé; a exigência da provisão
e a distantia loei. Finalmente, o período alemão (cujo início, data de 1848,
que é a data da Ordenação de 26.11.1848, Algemeine Deutsche Wechsel Ord-
nung), em que a cambial passa a ser um título abstrato, portanto um valor por
si mesmo, tomando as características como a encontramos em nossa legislação
hoje.

3. Noções e características gerais

A letra de câmbio (lettre de change, bill 01 exchange, wechselordnung, ge-


zogener ou trassierter Wechsel, cambiale tratta) é uma coisa - objeto jurídico
que contém uma obrigação; daí decorrem os princípios e normas que confor-
mam o direito cambial.
É a letra de câmbio um titulo eminentemente à ordem, onde o sacador pro-
mete fazer pagar por terceiro, pelo sacado, a soma cambial, obrigando-se a pa-
gar pessoalmente, se não for cumprida a ordem de pagamento dada ao sacado.
Assim, inicialmente, e enquanto s6 contiver a assinatura do sacador, todo o
valor da letra, toda a garantia de seu pagamento, estará contido não propria-
mente na ordem dada pelo sacador, mas na promessa indireta de pagamento
de que se reveste aquela ordem. Acolhendo a ordem do sacador, lançando na
letra o seu aceite, o sacado passará a ser o aceitante e a se responsabilizar cam-
bialmente pela letra de câmbio, fazendo ele ao portador, a promessa direta de
pagar a soma cambial.

56 R.C.P. 3/86
o direito da letra de câmbio derivado tem caráter:
a) real - só quem tenha a posse legítima do título:
b) formal - sua validade depende rigorosamente de uma forma determinada;
c) autônomo - porque subsiste por si, sem ligação necessária com qualquer
outro contrato.

o ato cambiário principal, em relação à letra de câmbio, é o saque, que con-


siste em uma ordem de pagamento; os atos seguintes, como o endosso, o aceite
e o aval, são acessórios. Vale apenas destacar que a letra de câmbio se cria
pelo sa.que, transfere-se pelo endosso, completa-se pelo aceite e garante-se pelo
aval.

4. Conceito
A letra de câmbio é uma ordem de pagamento à vista ou a prazo. Sendo uma
ordem de pagamento que alguém dirige a outrem para pagar a terceiro, importa
numa relação entre pessoas que ocupam três posições no título: a de sacador,
a de sacado e a de tomador ou beneficiário da ordem.

A (sacador) .......... B (sacado)

C (tomador)

A trilogia de sacador, sacado e tomador é uma triologia formal.


Sacador: é conhecido como subscritor ou emitente da letra; ele é quem emite
ou saca a ordem de pagamento; o ato de criar a letra, quando o sacador a as-
sina para ser submetida ao sacado, se chama emissão ou f'aque;
Sacado: é a pessoa a quem a ordem de pagamento é dirigida, recebendo em
suas mãos a letra e se dispondo a cumprir a ordem nela contida;
Tomador: é o credor originário do título.
A letra de câmbio é um título de crédito que envolve os princípios jurídicos.
Vale o que nela está escrito, e isto é chamado literalidade. Assim os signatá-
rios se obrigam por aquilo que nela está escrito.
A letra de câmbio é um título abstrato por excelência, pois pode ser emiti-
da independente de qualquer causa.
A letra de câmbio é autônoma - princípio da autonomia, arts. 7.° e 17 da
Lei n.O 2.044 de 1908.

5. Requisitos comerciais
A Lei n.O 2.044, de 1908, em seu art. 1.0, diz o que a letra deve conter como
requisitos, mas o art. 2.° permite que algumas menções sejam suprimidas. Assim,

Títulos de crédito 57
os requisitos básicos, combinando as normas do Decreto n.O 2.044 com os da
Lei Uniforme de Genebra, que as letras de câmbio deve conter são seis:

1. a palavra letra inserida no próprio texto;


2. o mandato puro e simples de pagar a quantia determinada;
3. o nome daquele que deve pagar (sacado);
4. o nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga;
5. a data e o lugar onde a letra é sacada;
6. a assinatura de quem emite a letra (sacador).

Item 1. A lei enfatiza que figure a expressão letra de câmbio; assim, qualquer
pessoa, por mais despercebida que seja, verifica que se trata de um título de
crédito com rigor cambiário.

Item 2. Na letra de câmbio deve constar ou vir expresso o que e quanto deve
ser pago. O objeto da ordem é o pagamento em dinheiro, não podendo ser em
outra espécie de riqueza. Portanto, deve designar a moeda e sua quantidade
em forma clara e precisa. No caso de existir alguma divergência entre a indi-
cação numérica e a alfabética do valor a pagar, prevalece a alfabética, que é
feita por extenso. Porém se a indicação alfabética e numérica divergem, pre-
valecer a que se achar com menor quantia (art. 6.° da Lei Uniforme). A letra de
câmbio que foi sacada por devedor ou credor que resida fora do Brasil pode
determinar o pagamento em moeda nacional ou estrangeira. O art. 5.° da lei ad-
mite a cláusula de juros, porém só se limita às letras de câmbio pagáveis à vis-
ta ou a um certo tempo de vista.

Item 3. Sendo a letra de câmbio uma ordem de pagamento, é lógico que o


nome daquele a quem é endereçada a ordem deve constar completo e por ex-
tenso, apto a identificá-lo. E ao sacado que se endereça a ordem, sendo ele a
assinar o seu aceite, ou não, na letra. Caso o sacado aceite, passará a ser acei-
tante, obrigado principal da letra, e que deverá pagá-la em seu vencimento.

Item 4. Neste caso, trata-se de indicar o nome do beneficiário. Pode ser emi-
tida à ordem do próprio sacador e, antes do reconhecimento da vigência entre
nós da Lei Uniforme de Genebra, permitia a Lei Saraiva a emissão ao portador.
Pode ser também emitida em favor de dois ou mais tomadores, caso em que
terão de agir conjuntamente. Sendo a letra de câmbio um título eminentemente
à ordem, dispensa-se, por inútil, a inserção de tal cláusula.

Item 5. O art. 4.° do Decreto n.O 2.044 estatui mandato ao portador para inse-
rir a data e o lugar do saque, na letra que não os contiver; o art. 20, § 1.° dis-
põe que será pagável à vista a letra que não indicar a época do vencimento, e
que será no lugar mencionado ao pé do nome do sacado a letra que não indicar
o lugar do pagamento. Esclarece ainda o citado § 1.° do art. 20, na sua segunda
alínea, que "é facultada a indicação alternativa de lugares de pagamento, tendo
o portador o direito de opção. A letra pode ser sacada sobre uma pessoa, para
ser paga no domicílio de outra, indicada pelo sacador ou pelo aceitante".

58 R.C.P. 3/86
Item 6. Para que se verifique efetivamente o saque, é indispensável a assi-
natura do sacador; esta deverá ser lançada abaixo do contexto, pois se enten-
de que os requisitos lançados o foram no momento da emissão, e que, portanto,
o sacador os subscreveu ou ratificou. Por ela, garante o sacador tanto o aceite
como o pagamento.

6. Falta de requisitos

A falta de um dos requisitos essenciais à letra de câmbio, constitui defesa


oponível ao portador (art. 51 da Lei n.O 2.044). Assim, o título não seria letra
de câmbio e não daria direito ao uso da ação cambial.
Se o título perde seu caráter cambiário, não é juridicamente ineficaz. O tí-
tulo continua valendo como quir6grafo, como prova de uma obrigação escrita,
destituída do rigor cambiário. Está fora do direito cambiário, porém tutelada
pelo direito comum. Logicamente, não serviria como fundamento de uma ação
cambiária, nem poderia ser transmissível por endosso ou garantido por aval. Em
conseqüência, poderia o devedor usar de exceções de defesa contra o credor,
com quem não esteve em relação direta.
No direito brasileiro não se exige que a letra surja completa das mãos do
sacador, no ato da emissão, porém tem que estar integrada de todos os seus
componentes legais, quando é apresentada para pagamento. Assim, o portador
tem a faculdade de preenchê-la, desde que atue de boa fé.
Quando a letra de câmbio é emitida e há uma assinatura de um incapaz, ou
um vício de consentimento, como no caso da adulteração ou falsificação de uma
assinatura, seja a do sacador ou a do aceitante, isto não toma nula a letra de
câmbio. Tal caso está regulado no art. 7.° da Lei Uniforme, que dispõe: "Se a le-
tra contém assinaturas de pessoas incapazes de se obrigarem por letras, assina-
turas falsas, assinaturas de pessoas fictícias, ou assinaturas que por qualquer
(outra razão não poderiam obrigar as pessoas que assinaram a letra, ou em nome
das quais ela foi assinada, as obrigações dos outros signatários, nem por isso
deixam de ser válidas."
O art. 8.° da Lei Uniforme é bem claro para quem assina uma letra de câm-
bio sem poderes suficientes, pois todo aquele que apuser a sua assinatura
numa letra, representando uma pessoa, e que não tenha de fato poderes, fica
obrigado em virtude da letra.
Na cambial não existem assinaturas inúteis, pois se alguém, arrogando-se pro-
curador, assinar uma letra sem que para tanto tenha mandato expresso, este
fica vinculado pessoalmente. No caso do analfabeto, este não se pode obrigar na
letra, a não ser por um procurador especial, em mandato lavrado em notas
públicas, para maior segurança do título. Não é válida a aposição a suas im-
pressões digitais ou assinaturas em rogo. A convenção de Genebra permite que
a lei nacional determine a maneira de suprir a falta de assinatura do próprio
obrigado no título (ver Anexo 2, art. 2.° da Convenção).

7. Letra a favor e sobre o pr6prio sacador

Permite o art.3.0 da Lei Uniforme (2.a alínea) que a letra possa ser sacada
contra o próprio sacador. Como alude Rubens Requião (1977), "o sacador pode,
Títulos de crédito S9
vale repisar, indicar-se como sacado ou como beneficiário. No primeiro caso,
a letra de câmbio assume o efeito de nota promissória, pois o aceite por parte
do sacador o toma devedor direto do beneficiário, como ocorreria se se tivesse
obrigado por nota promissória, prometendo ao beneficiário efetuar o pagamento
em determinada época. Pode ocorrer, por outro lado, que o sacador deseja
desde logo assegurar-se de que o sacado aceitará a ordem, sem que ele, sacador,
tenha decidido a favor de quem irá expedi-la. Por isso, admite-se ao sacador
indicar-se, a ele próprio, como beneficiário, e obtendo o aceite, transmitir pos-
teoriormente a letra a favor de terceiro, por meio de endosso".

8. Letra incompleta ou em branco

Permite o art. 10 da Lei Uniforme, a letra incompleta ou em branco. Nossa


Lei n.O 2.044 já considerava, no art. 3.°, que os requisitos por ela exigidos para
a cambial tivessem sido lançados ao tempo da emissão da letra. Evidentemente
que, afora os requisitos da data e do lugar do saque - que a mesma Lei Sa-
raiva presume, no art. 5.°, mandato ao portador para inscrevê-los - os demais
requisitos faltantes devem ser preenchidos no momento da exigência da obriga-
ção. Pode assim circular, validamente, a letra incompleta ou em branco; con-
tudo, o portador, ao preenchê-la ou completá-la, deverá levar em conta o chama-
do contrato de preenchimento (muitas vezes, como cláusula do contrato de que
se originou a cambial), sob pena de responder por perdas e danos, pelo excesso
de preenchimento.
A propósito, muito bem ensina Eunápio Borges (1983) que, "quem adquire
um título em branco, adquire naturalmente o direito de preenchê-lo. Mas ad-
quire um direito limitado e um direito derivado, não autônomo. Limitado 110
sentido de que o preenchimento do título há de fazer-se rigorosa e estrita-
mente nos termos do acordo (contrato de preenchimento) havido entre o subs-
critor do título em branco e seu tomador. Derivado, no sentido de que o adqui-
rente não é amparado pela autonomia dos direitos cambiais. Assim, o título em
branco é arma de dois gumes e de manejo perigosíssimo para todos, uma vez
que a subscrição e a circulação dos títulos em branco, atuando em terreno que
Giorgio Oppo denomina de 'pré-cambiário' expõe subscritores e portadores a
graves riscos, deixando-os ao desamparo das normas rigorosas do direito cam-
bial. Daí a presunção da lei de que os requisitos - sem os quais o título não
é letra de câmbio - foram lançados à data da emissão. Em face de um título
completo, formalmente válido, é, pois, indiferente - quanto aos direitos do
portador de boa fé e quanto à defesa oponível pelos devedores - o fato origi-
nário da subscrição em branco".
"Mas, acautelem-se todos, subscritores e tomadores, contra os graves riscos
que podem advir dos títulos incompletos, ou em branco; nunca assiná-los, nem
recebê-los sem a plena e documentada certeza de que o seu preenchimento é fei-
to rigorosamente de acordo com o pactuado entre o criador do título (sacador ou
emitente) e o tomador."
Não tenha receio, assim, de preencher o título, se não cometem abusos den-
tro dos limites convencionados, pois, sem estar devidamente preenchido, o tí-
tulo não será legível.
Não tem em si, pois, maior importância, preencher ou completar o título com
tipo de máquina diferente, ou parte à tinta e parte à máquina; a lei presume

60 R.C.P. 3/86
todos os requisitos lançados ao tempo da sua etnlssao, e só eventualmente, se
houver fraude ou abuso, é que essa circunstância poderá ser relevante.

9. Capacidade cambial

Sendo as declarações cambiais vinculatórias, obviamente só poderá obrigar-


~e quem tenha capacidade jurídica para tanto; é o que dispõe o art. 42 da Lei
n.O 2.044, de 1908.
Um dos problemas que vêm agitando nossa prática comercial é o referente
à mulher casada, notadamente após o advento do chamado estatuto da mulher
O
casada, a Lei n. 4.121, de 1962. Vem bem a propósito, pois, a lição de Rubens
Requião (1917): "A mulher é plenamente capaz de se obrigar pela meação de
seu patrimônio, ocorrendo o mesmo com o marido. A regra vigente, expressa
pelo art. 3.° da Lei n.O 4.121, de 27 de agosto de 1962, é de que pelos títulos de
dívida de qualquer natureza firmados por um só dos cônjuges, ainda que casa-
dos pelo regime de comunhão universal, somente responderão os bens particu-
lares do signatário e os comuns até o limite de sua meação. A mulher casada,
todavia, como já tivemos oportunidade de sustentar em outra ocasião, pode obri-
gar o patrimônio do casal, pois se presume autorizada pelo marido para a com-
pra, o crédito das coisas necessárias à economia doméstica, e para obter, por
empréstimo, as quantias que a aquisição dessas coisas possa exigir (Código Ci-
vil, art. 247)."

IV. INSTITUTOS CAMBIAIS

1. O aceite

1.1 Noção

O aceite é a declaração cambial, unilateral, facultatIva, pela qual o sacado


assume a obrigação de realizar o pagamento da soma indicada no título, dentro
do prazo ali especificado, tornando-se assim responsável direto pela execução
de obrigação incondicional. Aceitar um título de crédito é, portanto, assiná-lo,
representando essa assinatura a responsabilidade pelo pagamento do valor nele
consignado. Não existe aceite compulsório: ele é, por natureza, facultativo. O
sacado não pode ser compelido, contra sua vontade, a aceitar o título, mesmo
na hipótese líquida e certa de encontrar-se na posição de devedor. Recusando
o aceite, não assumirá a obrigação cambial.
A lei exige, como requisito fundamental para a validade de um título, que
seja mencionado o nome do sacado; mas este não assumirá nenhuma obrigação
em relação ao título caso se negue a aceitar, e, por esta negativa, ele torna-se
estranho à obrigação cambial, mas nunca à própria letra.

1.2 A disciplina legal brasileira

No Brasil regulam o aceite tanto o Decreto n.O 2.044, de 31 de dezembro de


1908 (arts. 9.° a 13), como a Lei Uniforme de Genebra, cuja vigência entre n6s,

Títulos de crédito 61
como se sabe, foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (Proc. n.O 71.154/
77) e se contém no bojo do Decreto n.O 57.633, sobre letras de câmbio e notas
promissórias. Com respeito ao aceite da duplicata (de mercadorias ou de ser-
viços), rege a Lei n.O 5.474, de 18 de julho de 1968 (com as modificações do
Decreto-lei n.O 436, de 27 de janeiro de 1969). Menção também deve ser feita
ao aceite das chamadas letras de câmbio das financeiras, previstas na Lei n.O
4.727, de 1965.

1.3 A noção do aceite na Lei Uniforme

A noção da Lei Uniforme de Genebra sobre o aceite é bem mais incisiva do


que o Decreto n.O 2.044, de 1908, ao dispor no art. 28 que: "O sacado obriga-se
pelo aceite a pagar a letra à data do vencimento. Na falta de pagamento, o por-
tador, mesmo no caso de ser ele o sacador, tem contra o aceitante um direito
de ação resultante da letra, em relação a tudo que pode ser exigido, nos termos
dos arts. 48 e 49."

1.4 O aceite na letra

O aceite deve ser dado na própria letra. E o que dispõe o art. 25 da Lei Uni-
forme de Genebra, aliás, disposição encontrada também no Decreto n.O 2.044,
de 1908. (Art. 11: "Para a validade do aceite é suficiente a simples assinatura do
próprio punho do sacado ou do mandatário especial no anverso da letra.")
Não há, em nosso direito, aceite em ato ou papel separado que, lançado,
terá os efeitos de obrigação ordinária.

1.5 Quem pode aceitar

Somente o sacado pode aceitar por si ou através de mandatário especial


(art. 11, Decreto n.O 2.044, de 1908), o que implica que no mandato se con-
tenham poderes expressos para isso, pois de acordo ainda com a nossa lei
cambiária (art. 46 do Decreto n.O 2.044, de 1908), "aquele que assina com a
declaração cambial, como mandatário, ou representante legal de outrem sem es-
tar devidamente autorizado, fica por ela pessoalmente obrigado".
As regras sobre a capacidade em relação à pessoa do sacado são dadas -
como, aliás, para todos que se obrigam nas cambiais - pela lei civil e co-
mercial.
A doutrina admite, em caso de falecimento do sacado, que o inventariante
possa aceitar em nome dos sucessores. Também tendo falido o sacado, poderá
o síndico, se assim o quiser, no interesse da massa, dar o aceite.
Em caso de dois ou mais sacadores, a letra deve ser apresentada ao primeiro
nomeado (art. 10 do Decreto n.O 2.044, de 1908); na falta ou recusa do aceite,
ao segundo, se estiver domiciliado na mesma praça; e assim sucessivamente,
sem embargo da forma da indicação na letra dos nomes dos sacados.

62 R.C.P. 3/86
1 . 6 Aceite por intervenção

A falta de recusa ou de aceite pode ensejar o aceite por parte de um ter-


ceiro. ~ o aceite por intervenção. Implica, obviamente, tal aceite, a aquies-
cência do portador, dado que a falta ou recusa do aceite pelo sacado acarreta
o vencimento extraordinário da letra, permitindo ao portador, desde que pro-
teste o título em tempo útil, ação contra os coobrigados.
Parte da doutrina brasileira entende que perante nossa lei não há dúvida
de que a letra pode ser aceita por qualquer dos coobrigados da letra, ou por
estranho, aliás, de acordo com o art. 55, 111 da Lei Uniforme de Genebra.
O nosso Decreto n.O 2.044, de 1908, dispunha no seu art. 34 que o aceite
por intervenção deveria dar-se no ato do protesto, mas entende-se que com
a Lei Uniforme de Genebra, consoante o disposto no art. 56, o aceite por
intervenção só pode ocorrer depois do protesto, pois o referido dispositivo dis-
põe que "o aceite por intervenção pode realizar-se em todos os casos em que o
portador de uma letra aceitável tem direito de ação antes do vencimento".

1 . 7 Direitos sobre a recusa do aceite

O sacado não está obrigado, como ]a vimos, a aceitar o título, conquanto


possa ter-se comprometido junto ao sacador a fazê-lo. Neste caso, poderá ter
de responder ao sacador, mas isto ocorrerá pelo direito obrigacional comum
e não pela via cambiária, posto que o princípio geral da autonomia privada,
implica que ninguém pode ser obrigado a firmar uma declaração cambial.
Pode assim manifestar a sua recusa em aceitar. No caso das duplicatas (de
mercadorias e de serviços) essa recusa só poderá ser dada validamente nos
casos previstos no art. 8.° da Lei n.O 5.474, de 1968.
Com relação à cambial, recusado o aceite, o portador, para garantir o seu
direito de regresso contra os coobrigados (sacador e avalistas, endossadores e
avalistas), deverá tirar o protesto em tempo útil, de vez que a recusa do aceite
acarreta o vencimento antecipado do título.

1 . 8 Aceite sob condições

O aceite poderá ser dado, contudo, com modificações. Para Pontes de Mi-
randa, trata-se afinal de aceite sob condição, tanto o limitado como o modifi-
cado, ambos equivalentes à recusa, pois o aceite deve ser incondicionado.

1.9 Aceite limitado

O aceite limitado é aquele em que o sacado aceita, mas por quantia menor
do que aquela indicada no título.
Neste caso há um duplo efeito: para o portador do título, esse tipo de
aceite equivale a uma recusa (art. 11 do Decreto n.O 2.044; art. 43, I e art. 51
da Lei Uniforme), sendo eficaz, porém, em relação ao credor, que poderá
exigir a soma pela qual se responsabilizou o aceitante; todavia, como equi-
vale a uma recusa, deverá o portador do título protestá-lo para assegurar o

Titulas de crédito 63
direito de regresso contra os demais coobrigados, exigindo desde logo (mesmo
antes do vencimento normal do título, pois já ocorreu o vencimento extraordi-
nário em relação à diferença da quantia aceita e da que consta do título) dos
coobrigados a importância não-aceita.

1 . 10 A irretratabilidade do aceite

o aceite, uma vez dado, não comporta arrependimento, sendo, portanto,


irretratável.
Segundo Eunápio Borges (1983), "mesmo, pois, que seja riscada a firma do
aceitante e se esta continuar legível, poderá ser proposta contra ele a ação
cambial. Se, porém, for completa a eliminação da firma do aceitante, somente
será possível contra ele a ação de direito comum; a não ser que, em ação pró-
pria, se obtenha a reconstituição do aceite cancelado, hipótese em que será
igualmente cabível o executivo cambial".
A Lei Uniforme em seu art. 29, permite ao aceitante cancelar o aceite antes
da restituição da letra, equiparando esse cancelamento a recusa.

1 . 11 Prazo para apresentação do aceite

o aceite, para que se efetive, implica a apresentação da letra ao sacado;


essa apresentação é em geral facultativa (a respeito, dispunha o art. 9.° do De-
creto n.o 2.044, de 1908: "a apresentação da letra ao aceite é facultativa
quando certa a data do vencimento. A letra a tempo certo de vista deve ser
apresentada ao aceite do sacado dentro do prazo nela marcado; na falta de
designação, dentro de seis meses contados da data da emissão do título, sob
pena de perder o portador o direito regressivo contra o sacador, endossadores
e avalistas"), mas pode tomar-se obrigatória quando o seu vencimento é a
tempo certo de vista, pois só após o aceite poder-se-á contar o prazo para o
vencimento. Já a letra à vista dispensa a apresentação para aceite, pois o ven-
cimento ocorre no momento em que é apresentada ao sacado; convém, con-
tudo, ter em vista que a Lei Uniforme estipula o prazo de um ano (contraria-
mente à lei brasileira, que fixava o prazo de seis meses) para a apresentação
da letra à vista, prazo que poderá ser reduzido ou ampliado pelo sacador (art.
34), e podendo ainda o sacador estipular que uma letra pagável à vista não
deverá ser apresentada a pagamento antes de certa data, contando-se dessa
data o prazo para a apresentação.
As regras gerais da apresentação a aceite são dadas pela Lei Uniforme nos
arts. 21 a 24.

1 . 12 Aceite datado

Nas letras a tempo certo de vista o aceite deve ser datado, pois é a partir
da data do aceite que se contará o prazo do vencimento (art. 25, alínea 2 da
Lei Uniforme).

64 R.C.P. 3/86
1.13 O aceite nas duplicatas

O aceite dado nas duplicatas (de mercadorias ou de serviço) cujos títulos


são causais pode ser feito em separado consoante permite expressamente o
art. 7.° da Lei n.O 5.474, de 1968, que dispõe:

"Art. 7.° A duplicata, quando não for à vista, deverá ser devolvida pelo
comprador ao apresentante dentro do prazo de 10 (dez) dias, contado da data
de sua apresentação, devidamente assinada ou acompanhada de declaração por
escrito, contendo as razões da falta do aceite.
§ 1.° Havendo expressa concordância da instituição financeira cobradora,
o sacado poderá reter a duplicata em seu poder até a data do vencimento, desde
que comunique à apresentante o aceite e a retenção.
§ 2.° A comunicação de que trata o parágrafo anterior substituirá, quando
necessário, no ato do protesto ou na ação executiva de cobrança,a duplicata
a que se refere."

1 . 14 A recusa do aceite nas duplicatas

À duplicata (mercadoria ou serviço), a negativa do aceite por parte do sa-


cado s6 poderá ser feita com base nas razões relacionadas no art. 8.°, da Lei
n.O 5.474, de 1968, ou seja:

"I. avaria ou não-recebimento das mercadorias, quando não expedidas ou


não entregues por sua conta e risco;
11 . vícios, defeitos e diferenças na qualidade ou na quantidade das merca-
dorias, devidamente comprovadas;
IH . divergência nos prazos ou nos preços ajustados."

Neste caso, segundo a Lei n.O 6.458, de 1 de novembro de 1971, que ajus-
tou a cobrança das duplicatas ao sistema do C6digo de Processo Civil de 1973,
caberá ação ordinária para o credor ilidir as razões invocadas pelo devedor
para o não-aceite do título, nos casos previstos no art. 8.° (art. 16).

1.15 A devolução do título pelo sacado

O sacado, ao receber a letra para o aceite, deve devolvê-la imediatamente.


Aliás, a Lei Uniforme dispõe no seu art. 24 que o portador não é obrigado a
deixar nas mãos do aceitante a letra apresentada ao aceite.
Pode, contudo, o sacado, pedir que a letra lhe seja apresentada uma segunda
vez no dia seguinte ao da primeira apresentação. Os interessados somente
podem ser admitidos a pretender que não foi dada satisfação a este pedido
no caso de ele figurar no protesto.
A letra pode ser enviada ao sacado até mesmo pelo correio, e tem ele a
obrigação de devolvê-Ia em seguida. Na falta de um prazo fixado pela lei,
os usos e costumes o estipularam em 24 horas.
Titulos de crédito 65
A recusa do sacado em devolver o título que lhe foi enviado para aceite
poderá acarretar a prisão administrativa do sacado (art. 31, parágrafo único,
Decreto n.O 2.044, de 1908), além da ação penal prevista no art. 168 do Có-
digo Penal.
Em relação às duplicatas, o prazo para apresentação ao sacado é de 30 dias,
contados da data da sua emissão (§ 2.°, art. 6.° da Lei n.o 5.474, de 1968) e o
sacado deverá devolvê-las dentro do prazo de 10 dias da data da apresentação,
com o aceite ou com a recusa por escrito, com as razões decorrentes. O ina-
dimplemento do sacado ensejará a prisão administrativa prevista no parágrafo
único do art. 31 do Decreto n.O 2.044, aplicada às duplicatas por força do
art. 25 da Lei n.O 5.474. Esta medida, contudo, é dispensável porque se per-
mite a extração de triplicata, que, emitida regularmente, terá o mesmo valor
da duplicata

2. O endosso

2.1 Noção

A letra de câmbio é endossável pela sua própria natureza, ainda que não
conste essa exigência na cláusula desse título de crédito.
A8sim, o endosso é nada mais que o ato unilateral de declaração de vontade
que impõe forma escrita, ou seja, o endosso é materializado pela assinatura
da própria pessoa (art. 11 da Lei Uniforme).
O endosso não pode ser lavrado em documento à parte, pois, como é um
meio cambiá rio de transferência do título, há de constar, de ser inserido, no
documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele cons-
tante. Porém, se falta espaço no verso do título, pode ser escrito numa folha
de extensão, ligada ao corpo do título (isto é admitido no direito brasileiro).
A Lei Uniforme, no art. 3.°, faz referência a isto. A folha da extensão é cha-
mada alongue ou folha de alongamento.
O endosso deve ser puro e simples; não pode ser, uma vez concedido, res-
tringido por quaisquer condições, pois a cláusula restritiva será considerada
inexistente, não-escrita. Segundo o art. 12 da Lei Uniforme, o endosso parcial
é vedado.

2 . 2 Modalidades

Não existe a modalidade de letra de câmbio ao portador, isto é, no momento


original da sua emissão ela não pode ser ao portador, porém os acidentes que
ela vier a sofrer transformam-na em letra ao portador.
O endosso pode ser em branco ou em preto. O endosso em branco apenas
consiste na assinatura da letra, enquanto o endosso em preto deve conter o
nome do endossatário.
Quando se recebe uma letra de câmbio com endosso em branco, esta letra
circula como se fosse ao portador, e pode ser transmitida 8 outra pessoa da
mesma forma em que foi recebida. Na letra de câmbio endossada em branco
também se pode fazer endosso em preto.

66 R.C.P. 3/86
No endosso em branco, o endossatário, para se assegurar contra a perda
ou roubo, pode inserir acima da assinatura do endossante o seu nome, ou da
pessoa a quem deseje transferir o título, não ficando, por isso, vinculado à
obrigação cambiária como endossante, pois nesta hipótese não apôs sua assi-
natura.
O endossante, como o sacado, está vinculado cambiariamente ao endossatário;
que pode dirigir contra ele a ação cambial. Como expressa a Lei Uniforme,
o endossante é garantia tanto da aceitação como do pagamento (art. 15).

2 . 3 Espécies
Existem várias espécies de endosso.

2 . 3 . 1 Endosso-procuração
E a inserção no endosso de cláusula que expresse a sua finalidade. Exem-
plo: por procuração, valor a cobrar, para cobrança. Transmite-se ao manda-
tário endossatário, assim investido de mandato e da posse do título, o poder
de efetuar a cobrança, dando quitação de seu valor. Assim se transfere a
posse da letra, mas não a disponibilidade de seu valor, cujo crédito pertence
ao endossante.
O endossatário mandatário pode exercer todos os direitos emergentes da
letra, mas só pode endossá-la na qualidade de procurador, de vez que ele não
tem disponibilidade do valor do crédito.

2 . 3 . 2 Endosso-caução
O art. 19 da Lei Uniforme permite o endosso com a cláusula valor em
garantia, valor em penhor, ou qualquer outra menção que implique uma cau-
ção. Nesse caso, o portador pode exercer todos os direitos emergentes da letra,
mas o endosso feito por ele vale apenas como endosso-procuração. O endosso-
caução pode ser utilizado, por exemplo, no caso em que o endossante deseje
transferir a letra de câmbio ao endossatário apenas como garantia de outra
obrigação assumida.

2. 3 . 3 Endosso fiduciário
A Lei n. 4.728, de 1965, que regula o mercado de capitais, no seu art. 66
O

diz: "seja alienação fiduciária em garantia, que se refere aos bens móveis,
quando o credor tem o domínio da coisa alienada, até a liquidação da dívida
garantida." E como a letra de câmbio é uma coisa, e se inscreve entre os bens
móveis, ela pode ser objeto de alienação fiduciária em garantia. E o endosso
pode se revestir, intrinsecamente, do aspecto de endosso fiduciário.

2.3.4 Endosso tardio


O art. 20 da Lei Uniforme disciplina o endosso tardio. Assim, o endosso
posterior ao vencimento tem os mesmos efeitos que o endosso anterior. Ape-
Títulos de crédito 67
nas o endosso posterior ao protesto por falta de pagamento, ou feito depois de
expirado o praxo fixado para se fazer o protesto, produz os efeitos de uma
cessão ordinária de crédito.

3. O aval

3.1 Noção

o aval é forma específica de garantia cambial. Por ele o avalista (o dador


por aval) fica obrigado e responsável pelo pagamento do título, nas mesmas
condições do seu avalizado (a quem o avalista garantiu).
Portanto, o aval é declaração cambiária, feita por terceiro, estranho ao
título ou por quem já está obrigado, consistente na assinatura, no próprio
título.

3 .2 Modalidades

3.2. 1 Simples, preto e branco

o aval pode ser simples, consistente apenas na assinatura do avalista, ou


precedido de declaração formal. Indicando o nome do avalizado, será em
preto, ou omitindo-o, será em branco.
O aval pode ser dado no verso como no anverso da letra (art. 14, do De-
creto n.O 2.044, de 1908); quando constituído de declaração formal e indi-
cando o nome do avalizado, dúvida nenhuma ficará em relação a que se trata
de aval e sobre a extensão da responsabilidade assumida pelo avalista, pois
que ela é medida pela responsabilidade do avalizado.
Quando o aval for simples em branco, tem-se de indagar então a natureza
da declaração cambial e a extensão da responsabilidade assumida. Portanto,
não designando o nome do avalista, considera-se avalizado o da assinatura
imediatamente superior à do avalista, e na falta desta, o devedor principal
(sacador se ainda não aceita, ou aceitante se já aceita), é o que dispõe o art. 15
do Decreto n.O 2.044, de 1908. Contudo, a Lei Uniforme, em seu art. 31,
restringiu essa inferência apenas ao sacador.
O aval, como as demais declarações cambiais, não admite limitação, e tem
de ser dado na própria letra (podendo também ser dado na duplicata ou no
alongamento) .
O aval deve também ser dado antes do vencimento, pois se for posterior
ao vencimento - já que o título cessou o seu ciclo cambial - não valerá
como aval, podendo ser considerado, quando muito, fiança (se tiver as con-
dições exigidas pela lei civil ou comercial para isso).
O aval pode também ser dado antecipadamente, ou seja, antes de ser fir-
mado o aceite ou o endosso, e apesar das discussões a respeito na doutrina
brasileira, é inegável a validade de tal aval em face da autonomia das obri-
gações cambiais. Há, entretanto, que observar que, se a assinatura a que o
aval está destinado a garantir não for firmada no título (por exemplo, não
se verifique o endosso), obviamente não haverá responsabilidade para o ava-
lista, mas somente no caso de aval em preto, pois se for em branco, dever-se-á
68 R.C.P. 3/86
à Lei Uniforme, que, como vimos, determina que seja considerado avalizado o
sacador.

4. Vencimento e pagamento

4.1 Vencimento - noção e tipos

Vencimento como conceitua Pontes de Miranda, é a "data em que o paga-


mento da letra de câmbio, por prévia fixação da declaração unilateral de von-
tade cambiária, ou por disposição da lei, possa ser exigido". A letra pode
ser realizada a qualquer momento por intermédio do desconto ou outra nego-
ciação. Entretanto, só se toma exigível com o vencimento.
Dois tipos de vencimentos são previstos para a cambial:

1. Ordinário - com a expiração do termo normal previsto (por exemplo:


nas letras a dia certo, no dia indicado; à vista, na apresentação; a tempo
certo de vista, no prazo indicado ap6s o aceite; a tempo certo de data, no
último dia referente ao .término do período assinalado);
2. Extraordinário - com a interrupção por fato anormal e imprevisto (que
se verifica, nos dois casos enumerados pelo art. 19 do Decreto n.o 2.044, de
1908, ou seja, pela falta ou recusa do aceite e pela falência do aceitante).

4.2 Efeitos do vencimento

Acarreta os seguintes efeitos:


a) toma exigível a soma cambiária;
b) marca o momento em que o título perde os requisitos de circulação (depois
do vencimento, o endosso tem efeitos de cessão civil) e de garantia (o aval
póstumo é ineficaz, como tal);
c) fixa o dia em que começa a correr o prazo de prescrição para o portador
comum (pois, pelo endosso e pelo aval, a prescrição s6 começa a correr no
dia do pagamento - art. 52, do Decreto n.O 2.044 de 1908);
d) fixa o dia em que começa a correr o prazo da letra extraviada pelo even-
tual portador (art. 36, § 1.0, do Decreto n.o 2.044, de 1908).

Para que ocorra o vencimento normal, é necessária, se a letra não tem ven-
cimento em data previamente fixada, a apresentação ao sacado (letra à vista
e a tempo certo de vista). A falta de apresentação ao sacado ou ao aceitante
(ou sendo feriado no primeiro dia útil imediato) acarreta a perda do direito
de regresso do portador contra o sacador, endossadores e avalistas (art. 2.°,
Decreto n.O 2.044, de 1908).
Já para que ocorra o vencimento extraordinário, é indispensável que a letra
seja levada a protesto. Se o portador da letra de câmbio quiser exigir o pa-
gamento de qualquer dos coobrigados, deverá fazer o protesto (por motivos
ou de recusa do aceite ou de falência do aceitante) provocando assim o seu
vencimento antecipado e tomando-a legível de todos os devedores.

Títulos de crédito 69
4.3 Pagamento - noção, apresentação

o pagamento é o resgate da letra, como forma normal de extinção das obri-


gações.
Para que este ocorra, é indispensável a apresentação da letra como verda-
deira condição para o exercício do direito. I! que, tratando-se de título apto
a circular, o devedor, que em muitos casos nem saberá quem é o último por-
tador da letra, aguardará em seu domicílio, ou no convencionado, para efetuar
o pagamento. Trata-se, portanto, de dívida quérable e não portable.
A apresentação, em caráter particular, pelo portador ao sacado ou ao acei-
tante, faz-se no dia do vencimento (art. 20 do Decreto n.O 2.044, de 1908 -
uso da reserva do art. 5.0 , Anexo 11 da Lei Uniforme), porém nem sempre
ocorre, preferindo-se os avisos bancários, ou então diretamente enviado ao
portador - no dia útil seguinte ao vencimento - a letra a protesto, consti-
tuindo este, verdadeiramente, a apresentação oficial, pois pelo protesto se
prova a recusa do pagamento.
A letra pode ser apresentada, havendo recusa do aceitante ou do sacado,
a qualquer coobrigado cambiário.
A apresentação será feita no lugar designado (se se tratar de letra domici-
liada), naquele indicado ao pé do sacado (art. 2.°, alínea 2, da Lei Uniforme),
ou no domicílio do sacado.
A apresentação prova-se pelo protesto; a não-apresentação para pagamento,
como vimos, acarreta a perda do direito de regresso contra o sacador, endos-
santes e avalistas. Hoje não persistem as dúvidas referentes à perda de re-
gresso contra os avalistas do sacador e dos endossantes.
O proteto portanto é necessário para garantir o direito de regresso contra os
coobrigados (sacador, endossantes e seus avalistas) e dispensável contra o obri-
gado principal (aceitante e seus avalistas).

4.4 Efeitos do pagamento

Existem dois tipos de efeitos básicos em termos de responsabilidade:


1. o pagamento chamado extinto (que encerra o ciclo cambiário desobrigando
todos os responsáveis);
2. o pagamento recuperatório (que desonera apenas os coobrigados posteriores,
ensejando ao coobrigado que pagou voltar-se regressivamente contra os demais).

Quanto aos efeitos do pagamento da letra, em relação àquele que paga:

1. pelo aceitante - desonera todos os coobrigados;


2. pelo avalista do aceitante - tem ação cambial para receber o que pagou
do aceitante;
3. pelo sacador, endossantes e respectivos avalistas - desonera os coobrigados
posteriores.

I! de notar, ainda, que o endossante ou avalista que paga ao endossatário


ou avalista posterior pode riscar o próprio endosso ou aval e o dos posteriores
(art. 24, Decreto n.O 2.044, de 1908).

70 R.C.P. 3/86
5. A ação cambial

5.1 Noção

A ação executiva é de verdadeiro benefício concedido ao credor por título


cambial, e nessa conformidade, inclusive, pode ele abrir mão, optando pela
ação ordinária.
O Decreto n.O 2.044 conferiu a ação executiva às cambiais no seu art. 49
e restringiu as defesas oponíveis ao credor, substituindo a ação decendiária
que até então era a utilizada para cobrança das cambiais.
O Código do Prccesso Civil atual trata da execução nos arts. 583 e segs., con-
ferindo-a aos títulos executivos judiciais e extrajudiciais. Por efeito do art. 585,
entram na categoria de títulos executivos judiciais e extrajudiciais; e por efeito
do art. 585, entram a categoria de títulos executivos extrajudiciais a letra de
câmbio, a nota promissória, a duplicata e o cheque, além de outros que enumera.

6. A prescrição

6.1 Noção

Cuida o Decreto n.O 2.044, de 1908, da prescrição, nos art:;. 52 e 53, e a Lei
Uniforme, nos arts. 70 e 71. A prescrição, na tradicional definição de Clóvis
Beviláqua, "é a perda da ação atribuída a um direito, e de toda a sua capacidade
defensiva, em conseqüência do não-uso delas durante um determinado espaço
de tempo".
A Lei Uniforme reduziu os prazos de prescrição previstos no Decreto n.O
2.044. Assim é que:

1. Ação contra aceitante: segundo o art. 7.°, 1.a alínea da Lei Uniforme, pres-
creve em três anos a contar do vencimento (o art. 52, do Decreto n.O 2.044, fi-
xava-o em cinco anos).
2. Ação do portador contra o endossante e sacador: pe!o art. 70, 2.a alínea, da
Lei Uniforme, prescreve em um ano, a contar da data do protesto ou da data do
vencimento, se contiver a cláusula sem despesas ou sem protesto.
3. Ação do endossante contra endossante ou sacador; pelo art. 70, 3.a alínea
da Lei Uniforme, prescreve em seis meses a contar do dia em que o endossante
pagar a letra ou em que ele próprio foi acionado, enquanto o art. 52 do Decre-
to n.O 2.044, previa o prazo de um ano.

v. NOTA PROMISSORIA

1. Noção

Apesar de hoje, no nosso comércio interno, a nota promissória ter um lugar


de destaque, historicamente verificamos que o seu lugar era subalterno (como
nos eifâ Etinápio Borges) em relação à letra de câmbio. No desenvolviméilto
histórico· da letra de cAmbio, desapareceram praticamente as referências à nobt
Títúlos de'· crédito 'H
promlssona, apesar de comum origem de ambas. É que a cautio (que continha
a promessa de pagar e de que nasceu a nota promissória) foi logo suplantada
pela littera cambii e considerada como instrumento do câmbio seco ou impuro,
no qual 5e disfarçaria um empréstimo usuário. A promissória teve o seu uso e o
seu desenvolvimento cercados pelas leis repressoras da usura, e permaneceu
durante séculos em estado embrionário, ao contrário da letra de câmbio, cuja
evolução e ampla difusão foram verificadas.
A nota promissória é uma promessa de pagamento, como, aliás, enfatiza o
art. 54 do Decreto n° 2.044, de 31 de dezembro de 1908, pela qual alguém se
obriga a pagar a outrem certa quantia em dinheiro.
Reveste-se, em princípio, das mesmas características da letra de câmbio -
ambas são títulos de crédito. Título cambial, já que à semelhança da letra de
câmbio pode ensejar o ágio (troca de papéis de crédito por dinheiro), é de na-
tureza eminentemente comercial, ainda que esta não seja a qualidade de quem
por ele se obrigue, a ela aplicando-se, outrossim, as disposições sobre a letra
de câmbio (arts. 56 do Decreto n.O 2.044 de 1908 e 77 da Lei Uniforme).
Todavia, não obstante tais pontos comuns, distingue-se a nota promissória
da letra de câmbio por conter uma promessa em lugar de uma ordem. Ademais
disto, envolve somente duas partes - emitente e beneficiário - em lugar das
três figuras intervenientes da letra de câmbio: sacador, sacado e tomador.

2. Requisitos essenciais

Os requisitos essenciais da nota promissória estão mencionados no art. 54


da Lei Uniforme, quase os mesmos que o art. 1.° rege para a letra de câmbio.
Lançados por extenso no contexto, conterá a promissória:

1. a denominação de nota promiss6ria, ou termo correspondente, na língua em


que for emitida;
2. a soma em dinheiro a pagar;
3. o nome da pessoa a quem deve ser paga;
4. a assinatura do próprio punho do emitente ou mandatário especial.

A lei presume ainda:

a) que o portador tenha mandato para inserir a data e o lugar da emissão da


nota promissória que não contiver estes requisitos;
b) considera pagamento à vista quando a nota promissória não citar a data do
pagamento;
c) a nota promissória é pagável no domicüio do emitente quando não indicar
o lugar do pagamento;
d) que o portador tenha direito de opção quando a nota promissória indicar
mais de um lugar de pagamento.

Quanto às divergências entre as indicações da soma - em algarismos e por


extenso - constantes da nota promissória (§ 3° do art. 54), a solução será igual

72 R.C.P. 3/86
à que estabelece o art. 5.° para a letra de câmbio. E a nota promiss6ria incom-
pleta ou em branco estará sujeita à mesma disciplina da letra em branco ou
incompleta, presumindo-se em favor do terceiro de boa fé, que a nota pro-
missória nasceu completa, isto é, com os requisitos comerciais lançados ao tempo
da emissão, admitindo-se prova em contrário no caso de má fé do portador
(art. 54, § 4.° Lei Uniforme). "Quem emite nota promissória em branco celebra
o que se costuma chamar de 'contrato de preenchimento'" (Revista dos Tribu-
nais, 270/350).
A Lei Uniforme dedica apenas quatro artigos à nota promissória (54 a 57).
É que, quanto aos institutos cambiais em geral, manda que os da letra de câm-
bio (endosso, aval, protesto, vencimento, execução etc.) sejam aplicáveis à nota
promissória. ..
A exemplo do saque da letra de câmbio, a emissão de nÇ>ta promissória está
sujeita a registro, na forma do Oecreto-Iei n.O 427/69.

3. Figuras intervenientes

·Na letra de câmbio fi~ram originariamente. três pessoas: o sacador. o to-


mador e o sacado, ainda qüe~ó -Sacador se designe' ele próprio como tomador;
na nota promissória existe some)1te duas pessoas se obrigando çambialmente,
que são: o emissor ou 'erÍlitente, que se obriga sob o rigor cambial eo benefi-
ciário ou portador, pessOa a' ciúêrií- deve ser paga a soma lndicadà. ~: - ,

4._ Vencimento

Além do vencimento regular, a nota promissória: 'pÓde-vencer~se'~tilÍnbém po;~


antecipação,: chamado vencimento extraordinário, que ocorre com a declaração
de falência do devedor ou da sua declaraç.ão, como insolvente.

5. Prbséf~ção ~

Prescrição do portador contra o emitente ou avalista em três anos~ cio por-


tador -contra endossante(s) em um ano; does) endossante(s) 'umcontra
o(s) oiltros(s) em Seis Íl1eses._

VI. CHEQUE

1. Conceito e características
o cheque é uma ordem de pagamento à vista sobre -um banqueiro. COnfun-
dido no passado com a letra de câmbio, hoje o cheque distingue-se em razão
do sacado ser sempre uma instituição financeira; requer provisão de fundos
no momento da emissão, só podendo ser emitido à vista e .não comportando
o aceite.
J. X. Carvalho de Mendonça conceitUou como sendo "título provido de rigor
cambial na sua forma. no seu conteúdo -e na sua execUção íudicial".
Tem éonio característica principal ser por natureza pagável à vista~

Títilfos de crédito
2. Utilidade

Possui bastante utilidade prática, pois:

- serve como instrumento de pagamento e de compensação, substituindo a


moeda, podendo-se desse modo falar de uma verdadeira moeda escriturai, exis-
tindo ao lado da moeda fiduciária;
- permite a retirada de fundos que encontram-se em poder do banqueiro,
pelo próprio depositante ou por terceiro;
- permite pagamentos a distância;
- oferece vantagem sob aspecto de redução da circulação da moeda, pelo
pagamento mediante cheques.

3. Legislação

Foi promulgado no Brasil o Decreto n.O 2.591, de 7 de agosto de 1912, que


vige até hoje com alterações de disposições complementares como:

- Decreto n.O 22.924, de 12 de julho de 1933, que alterou os prazos de apre-


sentação dos cheques para 30 dias, para a mesma praça;
- Decreto n.O 24. 777, de 14 de julho de 1934, que permite a emissão de che-
ques contra a própria caixa;
- Decreto n.O 22.393, de 25 de janeiro de 1933, dispondo que somente o mês
deve ser escrito por extenso;
Lei n.O 4.728, de 14 de julho de 1965, sobre mercado de capitais;
- Lei n.O 4.595, de 31 de dezembro de 1964, sobre a reforma bancária.

Além de várias resoluções do Conselho Monetário Nacional, portarias e cir-


culares do Banco Central, também refere-se ao cheque o Código Penal Vigente
(art. 171).
Atualmente, o cheque tomou conotação de título bancário, somente podendo
ser emitido sobre bancos, e entre nós, regulado pelo Conselho Monetário Na-
cional que, entre outras disposições, estabeleceu o modelo padrão de cheque
(Circular n.O 131, de 17 de outubro de 1969, do Banco Central do Brasil).

4. Natureza jurldica

Eunápio Borges (1983) aduz argumentos que mostram a tendência da doutri-


na moderna, a de ser o cheque um título de crédito. Diz ele:

"Como a letra de câmbio, o cheque é formalmente uma ordem de pagamento


contendo 0$ requisitos exigidos pela lei. Mas, como aauela, o cheque é substan-
cialmente uma promessa de pagamento feita pelo emitente; promessa indireta,
promessa de fato de terceiro, promessa de que o sacado cumprirá a ordem cons-
tante do cheque cujo emitente - do mesmo modo que o sacador da letra de

74 R.C.P. 3/86
câmbio - se responsabiliza pessoalmente pelo pagamento que o sacado deixar
de efetuar.
Pouco importa que o sacado seja o Banco do Brasil ou modesta casa bancá-
ria: quem garante o pagamento do cheque é o seu emitente.
eassim, de extrema simplicidade, o mecanismo do cheque, que na prática
bancária, na doutrina e nas legislações adquiriu feição própria, que o toma in-
confundível com outros contratos - mandato, cessão de crédito, delegação,
estipulação em favor de terceiro etc. - nos quais os velhos autores costuma-
vam vislumbrar a natureza jurídica do cheque.
Como a letra de câmbio, é o cheque título formal ~ abstrato, não se refletindo
nele a causa determinante de sua emissão - pagamento, empréstimo, doação
etc. E, na emissão e no pagamento do cheque, concorrem, -permanecendo incon-
fundíveis, duas séries de relações.

5. Requisitos essenciai8 e suprlvei8


Os requisitos essenciais, indicados pelo Decreto n.O 2.591, de 1912, são
OI seguintes:

1. denominação cheque ou outra equivalente, se for escrito em língua estran-


geira;
2. indicação, em cifra e por extenso, da soma a pagar;
3. data, compreendendo o lugar, dia, mês e ano da emissão, sendo o dia e o mês
por extenso (alterada, a parte final, pelo Decreto n.O 22.393, de 1933, que exige
somente o mês por extenso);
4. a assinatura do emitente;
5. o nome da firma social ou pessoa que deve pagar;
6. indicação do lugar onde o pagamento deve ser feito.

O projeto da Lei do Cheque segue estritamente a Lei Uniforme, dispondo


que o cheque deve conter (art. 1.0): "I - a denominação 'cheque' inscrita no
título e expressa na língua em que é redigido; 11 - a ordem incondicional
(traduzida a expressão 'mandato puro e simples') de pagar quantia determinada;
111 - o nome de quem deve pagar a quantia (sacado); IV - a indicação do
lugar de pagamento; V - a indicação da data e do lugar de emissão; VI -
a assinatura do emitente (sacador) ou de seu mandatário com poderes especiais."
A assinatura do emitente é o requisito mais importante do cheque; inclusive
a Lei Uniforme, no Anexo 11, art. 2.0 , considerou matéria de competência nacio-
nal dos países, a faculdade de determinar de que maneira pode ser suprida a
falta da assinatura, desde que por uma declaração autêntica escrita no cheque
se possa constar a vontade daquele que deveria ter assinado. Nos diz o art. 10
da Lei Uniforme, que a assinatura falsa não anula o cheque; a propósito dis-
põe o parágrafo único do art. 12 do Projeto da Lei do Cheque, que A assina-
li

tura de pessoa capaz cria obrigações para O signatário, mesmo que o cheque
contenha assinaturas de pessoas incapazes de se obrigarem por cheque, ou as-
sinaturas falsas, ou assinaturas de pessoas fictícias, ou assinaturas que, por
Títulos de crédito 75
qualquer outra razão, não poderiam obrigar as pessoas que assinaram o cheque,
ou em nome das quais ele foi assinado".
A responsabilidade pelo pagamento do cheque com assinatura falsa, em prin-
cípio, é do sacado (banqueiro), mas o Supremo Tribunal Federal vem abran-
dando esse entendimento para admitir a concorrência de culpa (Súmula n.O 28
do STF).
Consideram-se supríveis o local do pagamento e o local onde o cheque é pas-
sado. A data é requisito necessário, mas não indispensável, punindo a lei a
omissão, com pena de multa de 10% sobre o respectivo montante.

6. Cheque irregular

Bem explica Eunápio Borges (1983) sobre a diferença entre a validade e irre-
gularidade do cheque: "Não se confunda, porém, a regularidade com a validade
do cheque ou com a eficácia das obrigações de seus subscritores. Como a letra
de câmbio, a nota promissória, o cheque é um documento formal que há de
conter necessariamente todos os requisitos exigidos pela lei. A falta de qualquer
desses requisitos essenciais desnatura o cheque, ao contrário da irregularidade
de sua emissão que, podendo acarretar penalidades para os seus subscritores,
não afeta o título nas relações cambiais que dele derivam." Dispõem os arts.
2.° e 3.° da Lei Uniforme, respectivamente: "O título a que faltar qualquer dos.
requisitos enumerados no artigo. precedente não produz efeito como cheque,
salvo nos casos determinados nas alíneas seguintes etc." "O cheque é sacado
sobre um banqueiro que tenha fundos à disposição do sacador e em harmonia
com uma convenção expressa ou tácita, segundo a qual o sacador tem o direito
de dispor desses fundos por meio de cheque. A validade do título como cheque
não fica, todavia, prejudicada no caso de inobservância destas prescrições."

7. Cheque pós-datado

o cheque pós-datado, como qualquer outro cheque, existe, porém é tido


como pagável à vista, mesmo que se alegue e se prove a pós-data. ~ vedada por
lei a data falsa; a Lei Uniforme dispõe que será pagável na data da apresen-
tação o cheque apresentado a pagamento antes do dia indicado como data da
emissão (art. 28, 2.a alínea); assim, a data futura ou ps-data é considerada
como não-escrita

8. Cheque quanto à circulação

O cheque, pelo Decreto n.O 2.591, de 1912, pode ser:

1. ao portador;
2. nominativo com a cláusula à ordem;
3. nominativo sem a cláusula à ordem;
4. sem cláusula à ordem.

76 RC.P. 3/86
Dispõe o art. 3.° do Decreto n.O 2.591, de 1912: "O cheque pode ser ao por-
tador, nominativo, com ou sem a cláusula à ordem. O cheque ao portador,
transfere-se pela simples tradição e é pagável a quem o apresentar. O nomina-
tivo com a cláusula à ordem é transmissível por via de endosso, que pode ser
em branco, contendo somente a assinatura do endossante. Se o cheque não in-
dicar o nome da pessoa a quem deve ser pago, considerar-se-á ao portador."
Em conclusão, tem-se, pois, que o cheque nominativo à ordem é transmissível
por endosso (em branco ou em preto); o que contiver a cláusula não à ordem
(ou equivalente) não se transfere por endosso, e se este for lançado, valerá
apenas como cessão civil.
Se no cheque for lançada a; cláusula ao portador, ou se for deixado em branco
o espaço reservado para lançar o nome do beneficiário ou tomador, tem-se o
cheque ao portador.

9. Prazo para apresentação


Segundo orientação da doutrina, o Brasil fez uso da reserva (art. 14, anexo
11, Lei Uniforme), sendo que o prazo de apresentação para pagamento vem
prescrito no Decreto n.O 2.591, de 1912 (art. 4.°, modificado pelo Decreto n.O
22.924, de 1933), que é de um mês na praça onde foi emitido e de 120 dias
quando em outra praça. Portanto, o cheque é sempre pagável à vista; mas o
portador tem o prazo de 30 dias - se na mesma praça - para apresentá-lo
e de 120 dias - se outra praça.

10. Endosso

O Decreto n.O 2.591, de 1912, silenciou sobre as peculiaridades do endosso,


fazendo remissão genérica ao Decreto n.O 2.044, de 1908. A Lei Uniforme, no
entanto, cuida do endosso do cheque nos arts. 15 e segs.
Resumiu Antonio Mercado Jr., o endosso nos cheques, excetuando a cláusula
não à ordem em função de sua pr6pria desnecessidade:

1. Endosso do sacado, endosso ao sacado e endosso ao portador. No art. 15,


a Lei Uniforme declara nulo o endosso do sacado. Diz que o endosso tem
apenas a eficácia de quitação, salvo se, tendo ele vários estabelecimentos, for
feita a favor de estabelecimento diverso daquele contra o qual foi sacado o
cheque. Dispõe, ainda, que o endosso ao portador tem a eficácia de endosso
em branco.
2. Endosso com a cláusula não endossável, endosso com a cláusula sem garantia.
Segundo o art. 18 da Lei Uniforme, o endossante pode proibir novo endosso.
Nesse caso, ele não será garantido com relação às pessoas a que o cheque for
ulteriormente endossado. O mesmo artigo permite que o endossante exclua sua
garantia do pagamento mediante cláusula expressa.
3. Endosso do cheque ao -portador. O art. 20 da Lei Uniforme diz que o en-
dosso de um cheque ao portador toma o endossante obrigado de regresso, p0-
rém não converte o título em cheque à ordem.

Títulos de crédito 77
4. Endosso posterior ao protesto ou após findo o prazo de apresentação. Se-
gundo o art. 24 da Lei Uniforme, tal endosso não produz senão os efeitos de
cessão civil; mas, salvo prova em contrário, presume-se lançado antes do pro-
testo ou de expirado o prazo de apresentação.

11. Aval

o Decreto n.O 2.591, de 1912, ao dispor que é aplicável ao cheque tudo o que
for cabível às disposições do Decreto n.O 2.044, de 1908, admitiu o aval nos
cheques. A Lei Uniforme cuida do aval, especificamente nos arts. 25 a 27, re-
produzindo as normas estabelecidas na Lei Uniforme sobre cambiais (arts.
30-32).
Por seu turno, o Projeto da Lei ao Cheque, na esteira da Lei Uniforme, tam-
bém disciplina especificamente o aval, dispondo:

.. Art. 26 O pagamento do cheque pode ser garantido, no todo ou em parte,


por aval prestado por terceiro, exceto o sacado, ou mesmo por signatário do
título.
Art. 27 O aval é lançado no cheque ou na folha de alongamento. Exprime-se
pelas palavras 'por aval', ou fórmula equivalente, com a assinatura do avalista.
Considera-se como resultante da simples assinatura do avalista, oposta no anver-
so do cheque, salvo quando se tratar da assinatura do emitente."

12. Cheque sem fundos

O cheque sem provimento de fundos é punido por várias formas:

- com multa de 10% sobre o valor da emissão (arts. 6.° e 7.° do Decreto n.O
2.591, de 1912);
- com sansão penal (art. 171, § 2.°, VI, do Código Penal);
- e com sanções administrativas e fiscais (Circular n.O 58, de 12 de novembro
de 1965, revogada pela Circular n.O 162, de 26 de agosto de 1971, cancelamento
de conta por uso indevido do cheque, na segunda apresentação; e ainda multa
de 3% do maior salário mínimo vigente no país por cheque devolvido; Carta
Circular n.O 68, de 31 de agosto de 1972, que faz cessar o impedimento, após
seis meses de encerramento. Circular n.O 237, de 19 de novembro de 1974, sobre
cobertura pelo banco de saque a descoberto).

f: ampla a bibliografia sobre o cheque sem fundos, mas a propósito da ine-


ficácia das medidas administrativas, acentua Rubens Requião (1977): "Tentou
o Conselho Monetário Nacional amenizar o problema da emissão de cheques
a descoberto (sem provisão de fundos) instituindo, pela Circular n.O 201, de
12 de fevereiro de 1973, o sistema de empréstimo a depositantes, pessoas fí-
sicas ou jurídicas, facultando aos bancos acolher saques sobre contas de depó-
sitos sem fundos ou com insuficiente provisão. Essa circular teve sua entrada
em vigor sucessivamente prorrogada e, por fim, foi revogada pelo Conselho
Monetário Nacional, conforme a Circular n.O 227 do Banco Central do Brasil,
expedida em 21 de junho de 1974 a qual revigorou a Circular n.O 83, de 20 de

78 R.C.P. 3/86
março de 1967. Segundo essa circular, eventuais saldos devedores em contas
de depósitos, que perdurem sem regularização até quatro dias úteis após sua
ocorrência, estarão sujeitos à multa de 10% do respectivo montante; igual inci-
dência será derivada em cada período subseqüente de cinco dias úteis, sobre
o maior saldo devedor. A Circular n.O 237, de 19 de novembro de 1974, no fim,
regulou o assunto ao admitir a concessão, pelos bancos comerciais, de adianta-
mento ao seus depositantes, por saques a descoberto, na forma que anuncia."

13. Modalidades

São inúmeros os tipos, modalidades, espécies de cheque e tanto mais con-


forme o critério de arrolamento.
O Decreto n.O 2.591, de 1912, já dispunha (além da classificação quanto à
circulação, admitindo-os ao portador, nominativos, à ordem etc) sobre:

1. O cheque marcado (art. 11).


2. O cheque cruzado (art. 12).

Posteriormente, o Decreto n.O 24.777, de 14 de julho de 1934, veio admitir


o cheque contra o próprio emitente ou cheque comprado, cheque de caixa (cas-
hier's check), cheque de direção (manager's check), cheque delevré que atual-
mente ficou conhecido, entre nós, como cheque bancário.
A partir de certa época passaram também os bancos a emitir os cheques de
viagem ou traveller's check (regulados pela Instrução n.O 237, de 26 de março
de 1963, da antiga Sumoc).
Os usos e costumes deram guarida ao cheque visado, cujos assentamentos
no Registro de Comércio, a ver da doutrina, chegaram a violar a lei, ao impe-
dir a contra-ordem, e considerando o visto como verdadeiro aceite.

14. Cheque marcado

O art. 11 do Decreto n.O 2.591, de 1912, dispõe:

"Se o portador consentir que o sacado marque o cheque para certo dia, exo-
nera todos os outros responsáveis."
Caracteriza-se assim, plenamente, a concessão pelo portador de um prazo
ao banco para que pague o cheque, o que, tratando-se de uma ordem de paga-
mento à vista, como é o cheque, acarreta a desoneração dos demais responsá-
veis, ficando apenas como responsável.
Não confundir, contudo, a marcação como aceite, o que perante a Lei Uni-
forme é inadmissível (art. 4.°).
Apesar do sacadó, na marcação, passar a ser responsável pelo pagamento,
vai diferir do aceite porque enquanto este transforma o sacado no devedor prin-
cipal do títUlo, mantém íntegra a responsabilidade dos devedores de regresso,
e
e 'a' marcação libera totalmente o eniitente demais signatários do cheque, fican-
do 'somente o sacado como único responsável pelo pagamento.
15. Cheque cruzado

o art. 12 do Decreto n.O 2.591, de 1912, dispõe: "isto é, atravessado por dois
traços paralelos só poderá ser pago a um banco, e se o cruzamento contiver o
nome de um banco, só a este poderá ser feito o pagamento."
O cheque cruzado derivou do crossed check, prática costumeira das clearing
houses, inscrevendo-se o nome dos bancos entre as linhas paralelas para per-
muta na compensação. Foi este cheque reconhecido entre nós pela Lei n.O
2 . 591, o qual apresenta duas modalidades: geral (ou em branco), apenas com
as duas linhas paralelas, podendo ser pago em qualquer banco; especial (ou em
preto), com o nome do banco inscrito entre as linhas paralelas, só pagável ao
banco mencionado.
Se entre os dois traços for escrita a frase para levar em conta, o numerário
passará de conta a conta, sendo vedado pagamento direto, nos termos do art.
39 da Lei Uniforme.

16. Cheque de viagem

Este tipo de cheque admite o nome de cheque de viagem (em português),


ou como é internacionalmente conhecido traveller's chek (inglês).
O cheque não é sacado pelo correntista e sim pelo próprio banco. Como regra
geral, a quantia a ser paga vem impressa no cheque e é pagável em agências
do banco dentro ou fora do país ou ainda em outro banco com o qual o banco
sacador mantenha convênio.
Esse cheque não é negociável, cumprindo ao portador procurar a agência
bancária e não endossá-lo em pagamento, na certeza de que seu aval será
aceito pelas agências sacadas. Como se trata de serviço prestado ao cliente,
os bancos cobram um preço por seu saque. A matéria encontra-se regulamen-
tada pela Instrução do Banco Central n.O 237/63.

17. Protesto

No caso de recusa de pagamento do cheque sacado por falta ou insuficiên-


cia de fundos, o governo brasileiro usou de reservas à Lei Uniforme e a ques-
tão está regulada na Circular n.O 162, do Banco Central do Brasil, que desse
modo evidenciou a desnecessidade do protesto; irá bastar a declaração de
recusa, por falta de insuficiente provisão de fundos, após a segunda apresenta-
ção.

18. Prescrição

A prescrição se consuma decorrido o prazo de seis meses, contados do termo


do prazo de apresentação. Dispõe o art. 52 da Lei UDÜorme:

"Toda a ação do portador contra os endossantes, contra o sacador ou contra


os demais coobrigados prescreve decorridos que sejam seis meses, contados
do termo do prazo da apresentação. Toda a ação de um dos coobrigados no

80 R.C.P. 3/86
pagamento de um cheque contra os demais prescreve no prazo de seis meses,
contados do dia em que ele tenha pago o cheque ou do dia em que ele pro-
prio foi acionado." E a interrupção da prescrição s6 produz efeito em relação
à pessoa para a qual a interrupção foi feita.

VII. DUPLICATA DE MERCADORIAS E DE PRESTAÇOES DE SERVIÇOS

1. Noção geral

A duplicata é um título de criação genuinamente brasileiro com caracteres


próprios, .a qual representa o crédito pelo fornecimento de mercadorias ou
prestação de serviços, aplicando-se normas de direito cambiário, e que substi-
tuiu a letr.a qe câmbio, e. a notapromiss6ria como documento representativo
do saque aplicado exclusivamente à entrega efetiva •de mercadorias ou pres-.
tação de serviços. .'
A duplicata é, pois, um título de crédito formal causal, suscetível de cir-
cular por endosso (à ordem), dotada de ação executiva, 'admitindo o aval eo
aceite.
A maioria da doutrina entende a duplkata comO sendo um "título forinal;,
circulante por meio de-endúSro, coostituindo um saque fundado sobre ó cré-
dito proveniente do contrato de compra e :venda mercantil". ., i '
. A. dupliçata é, ,assim, um título de crédito à ordem, sujeita ao rigor, formal
face'aOs t'eqüisitos' essenéÍaÍs fixados pela. Ui n." '5 .~71, de 1968. .
A nova í.eL de_ Ouplicaws, .á~ei n.o 5.474, de 18 de julho de 1968, foi.
logo modificádiCpélo'Déàeto-léf fi:" 436;de 27' dejaneiró de 1969, e, final-o
m:ente~ façe às' controvérsia,i; 'despéitadas com a promulgação do novo, Código;
de ProCe'sso Civil (Lei n.O 5.869, de. 11 de. jarieirode 1973), principalmente no;
q~.e ,se referia àéxecutividade da' diiplicatà sem aceite, acompanhada,' dos '
comprõvãrifes' de entrega das mercadorias, foi promulgada a Lei n.O 6.458, de.
1 de, novembro de 1977. que ajustou a sistemática da duplicata, conforme
disciplina na Lei n.O 5.474, de 1968, ao Código de Processo Civil e à Lei
Falimentar. "
A duplicata é facultativamente emitida com base em fatura (esta obrigatória
e discrilninando as mercadorias vendidas) representativa de contrato com pra-,
zo não inferior a 30 dias (podendo emitir-se duplicata de fatura emitida para
prazo não inferior a 30 dias, consoante o § 2.° do art. 2.° da Lei n.O 5.474.
de 1968), não podendo ser emitida outra espécie de título de crédito para
documentar o saque do vendedor pela importância faturada ao comprador.
A duplicata, como título de crédito a que se aplicam as disposições do De-
creto n.O 2.044, de 1908, é suscetível de ser garantida por aval.
As duplicatas de serviços, que devem obedecer ao modelo padronizado, po-
dem ser emitidas por empresas individuais ou coletivas, fundações ou soci~
dades civis que sé dediquem fi prestação dé serviços, e deverão discriminar a
natureza dos serviços prestados e a soma a pagai correspondente ao preço dos
serviços prestados.
Ao lado da duplicata de mercadorias,forarit admitidas também a duplicata
de nrestações de serviços e a fatura ou conta de prestações de serviços de
profissionais liberais.

Títulos de Crédito 81
VIII. CONHECIMENTO DE DEPÓSITO E WARRANT

1. Noção geral

O conhecimento de depósito e o wa"ant constituem os chamados por Wal-


demar Ferreira de títulos armazeneiros, sendo emitidos pelas empresas de ar-
mazéns gerais e entregues ao depositante, que com eles fica habilitado a ne-
gociar as mercadorias em depósito, passando assim a circular, não as merca-
dorias, mas os títulos que as representam.
Carvalho de Mendonça conceituou como sendo títulos à ordem emitidos
sobre gêneros ou mercadorias em depósitos: trata-se, o conhecimento de de-
pósito, de título de representação e de legitimação, enquanto o warrant é título
causal, consistente em promessa de pagamento.
Carvalho de Mendonça, arrlmando-se na Exposição de Motivos da Lei n.o
1.102, de 1903, de sua autoria, explica com muita clareza as funções desses
dois títulos:
"Os dois títulos, se reunidos nas mãos de um s6 portador, conferem a este o
direito de dispor, com toda a liberdade, da mercadoria depositada. O ces-
sionário, no caso de transferência, terá o mesmo direito do cedente, direito
de livre disposição, compreendendo-se nesta frase não somente o direito de
propriedade, como o mandato para vender ou para receber a mercadoria."

O wa"ant, separado do conhecimento de depósito, é destinado a conferir


ao portador um direito real de penhor sobre a mercadoria nele especificada
até a concorrência da quantia enunciada no seu primeiro endosso.
O conhecimento de depósito confere ao seu portador o direito de disponibi-
lidade da mercadoria com a limitação pelo direito de penhor, constituído s0-
bre esta mercadoria pelo endosso do warrant correspondente.
O conhecimento de depósito separado do wa"ant - escreve Navarrini -
transfere a disponibilidade das mercadorias, diminuída, porém, na sua eficá-
cia concreta, pelo fato de o armazém geral deter as mercadorias também por
conta do possuidor do warrant ou do credor pignoratício, para tutelar o di-
reito de crédito deste.
O endosso do s6 conhecimento de depósito nas operações que, por seu in-
termédio, se realizam entre o endossador e o endossatário, representa, na frase
de Goldschmidt, a chave do armazém que os endossadores passam sucessiva-
mente uns aos outros: o conhecimento de depósito assemelha-se ao conheci-
mento de frete, como o armazém ao navio do porto.
Como se vê, o warrant serve de instrumento de crédito sobre mercadorias; o
conhecimento de depósito, de meio de circulação das mercadorias.
Esses títulos representam as mercadorias que mencionam: quem possui
aqueles, costuma-se dizer, possui estas; quem as transfere, entrega as merca-
dorias por eles representadas.
A empresa do armazém geral é a depositária das mercadorias: guarda-as
por conta do legítimo possuidor do título. Ela não reconhece, como proprie-
tário das mercadorias, senão aquele que tem na sua posse legítima os títulos,
pois, emitind<H>5, assume a obrigação literal de somente a este entregá-la.
~ a confiança nos armazéns gerais sob rigorosa tutela legal que imprime
a força de que gozam aqueles títulos.
82 R.C.P. 3/86
IX. CONHECIMENTO DE FRETE OU DE TRANSPORTE

1. Noção geral

O conhecimento de transporte permite que sejam negociadas as mercado-


rias mesmo em trânsito.
O conhecimento de transporte está ligado estreitamente à disciplina das
estradas de ferro, não obstante se admita também o transporte por água ou
por ar.
Foi com o Decreto n.O 19.473, de 10 de dezembro de 1930, que efetiva-
mente se introduziu o conhecimento de transporte como título de crédito.
Como autor do anteprojeto que se converteria no Decreto n.O 19.473, o
Prof. Waldemar Ferreira bem explica as transformações que esse decreto in-
troduziu na sistemática obri.gacional dos transportes.
Diz o mestre: "( ... ) a natureza jurídica do conhecimento. Era - e essa
função ainda lhe pertence - simples documento comprobatório da recepção,
por empresas de transporte de mercadorias. como carga. a fim de se entregar
no lugar de seu destino."
O conhecimento de frete, original - diz o art. 1.° - , emitido por empresas
de tranaporte por terra, água ou ar prova:

a) o recebimento da mercadoria;
b) a obrigação de entregá-la no lugar do destino.

Re/erêncÍ1J3 bibliográficas

Borges, João Eunápio. Títulos de crédito. 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1983.
8ulgarelli, Waldírio. Títulos de crédito. 3. ed. rev. e atual. São Paulo, Atlas, 1984.
Requião, Rubens. Curso de direito. 8. ed. São Paulo, Saraiva, 1977.

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