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R. Museu Arq. Etn.

, 26: 42-61, 2016

Terras, ouro e cativeiro: a ocupação do aldeamento dos Guarulhos nos


séculos XVI e XVII1

José Carlos Vilardaga*

VILARDAGA, J. Terras, ouro e cativeiro: a ocupação do aldeamento dos Guarulhos nos


séculos XVI e XVII. R. Museu Arq. Etn., 26: 42-61, 2016

Resumo: Neste texto – apoio documental e do campo da história social


ao trabalho de investigação arqueológica da região de Guarulhos (PIPAG) –,
analisa-se a expansão e ocupação colonial no território que configuraria mais
tarde o município guarulhense. Centrada nos séculos XVI e XVII, a pesquisa
busca acompanhar o assentamento de colonos em datas e sesmarias, e as formas
de transmissão dessas propriedades entre algumas poucas famílias. Investiga as
formas de beneficiamento dessas terras, dentre elas a produção agrícola, criação
pastoril e principalmente a mineração de ouro, essa última, atividade fundamental
na exploração do território e pouco analisada na historiografia. Por fim, o texto
discute as interações estabelecidas entre os colonos e os índios, assentados no
aldeamento de Nossa Senhora da Conceição dos Guarulhos e imediações, pro-
blematizando as formas de agência indígena.

Palavras-chave: Expansão colonial; Agência indígena; Mineração de ouro;


Nossa Senhora da Conceição dos Guarulhos.

Introdução dos do casal, percebe-se que não se tratava de


uma família de muitas posses. Alguns tecidos
básicos, como cobertores, fronhas e anáguas,

E m abril de 1652, o casal João Sutil de


Oliveira e Maria Ribeira foram mortos
por índios Guarulhos no sítio que possuíam na
um colchão usado de lã e outros poucos objetos
constituíam o grosso dos bens do casal. A
atividade agrícola também é insondável, já que
região que hoje tem o nome dos índios, seus sabemos que apenas existiam alguns cavalos,
algozes. Deixaram dois filhos pequenos, Bastião, “sal de angola” e um tear, esse na casa da vila.
de 4 anos, e Izabel, de 6, que não foram atin- A presença desse objeto era muito comum
gidos pela fúria dos “gentios”. Isso ou porque nas casas dos moradores de São Paulo, pois o
os índios os pouparam ou porque estavam em cultivo do algodão era muitíssimo praticado nas
outro lugar, como a casa de taipa de pilão e terras do planalto. Apesar do uso de técnicas
telha de barro que seus pais tinham na vila de europeias, grande parte dos tecelões era indíge-
São Paulo de Piratininga. Pelos bens inventaria- na. Quando, anos depois, em 1661, o genro do
defunto João Sutil, Sebastião das Pontes, reivin-
dicou sua parte no inventário, fez referência a
1 Parte da pesquisa para a elaboração deste texto foi feita pela um índio chamado Lucas Tecelam.
bolsista PIBIC-UNIFESP, Juliana Marques do Nascimento.
Contudo, a presença de um gibão de
(*) Historiador, Professor do Departamento de História da armas, além de quatro escopetas, uma velha
UNIFESP. espada de “uso antigo” e três correntes de três

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braças (6,60 m), com seus colares, revela um A morte do casal nessa década de 1650 não
“caçador” de índios, típico personagem que pode ser considerada como um fato isolado
ajudaria a configurar o mal-afamado “bandei- nem fortuito. Nesse mesmo ano, na proprieda-
rante”. A atividade de apresamento indígena de de Antônio Pedroso de Barros, uma revolta
da qual participava João envolvera também seu levou à morte esse rico proprietário e sertanis-
irmão, Simão Sutil, que falecera no sertão em ta. Suas terras, para as bandas de Juqueri, nas
1650, deixando dois filhos pequenos. João teria proximidades do atual município de Mairiporã,
tomado parte da companhia de homens em produzia trigo em abundância e tinha cerca de
armas que Salvador Correia de Sá e Benevides 500 índios em seu plantel. Pedroso de Barros
organizou para enfrentar os holandeses em ainda teve tempo de fazer seu testamento, mas
Pernambuco no ano de 1639. Os registros da já “no artigo da morte”. Entre seus índios,
Câmara de São Paulo mostram como muitos existiam muitos “sem nome” e que não sabiam
homiziados por crimes de entrada no sertão falar o português ou a língua geral de origem
e apresamento indígena barganharam perdão tupi. Eram, também, índios recém-descidos
enviando filhos ou parentes para lutarem nesse de alguma expedição ao sertão. (Inventários e
conflito. Talvez tenha sido este o caso de João, Testamentos, v. 20) O evento parece ter sido
filho que era de um notório sertanista, Francis- tão traumático que, em 1662, Leonor Siqueira,
co Sutil de Oliveira. viúva do irmão de Antonio, chegou a vender 60
Seja como for, o plantel de escravos de de seus índios das suas terras em Juqueri para
João, apresentados eufemisticamente como o outro cunhado, Fernão Pedroso de Barros,
“gente forra”, era composto de 12 casais e quase temerosa de um levante, já que Fernão sugeriu
duas dezenas de solteiros, entre homens e mu- que os índios andavam amotinados.
lheres. John Monteiro (1998), que analisou bre- Ainda na década de 1660, as revoltas nas
vemente esse caso, entende que era um plantel terras de Manuel de Morais, Ascenso Morais
de índios recém-descidos do sertão, já que gran- Dantas, Fernão Bicudo Tavares e Francisco
de parte dos casais apresentavam nomes duplos, Coelho da Cruz revelam um clima de conflito
como Simão e Simoa, Luis e Luisa, Ambrósio duradouro. Nesses casos, conforme uma Ata
e Ambrósia, o que denotaria uma sucessão de da Câmara relata, os índios andavam alvoro-
batismos e casamentos rápidos e apressados. çados por causa de algumas notícias de que o
Além desses, 11 estavam fugidos, provavelmente governador Salvador Correa de Sá e Benevides
aproveitando o incidente, ou dele participan- estava apregoando a liberdade de todos os
do ativamente. Anos depois, quando o pai de gentios. (Atas da Câmara da Vila de São Paulo,
João prestou contas do inventário do filho, ele v. VI, 02/11/1660)
afirmou que somente quatro dos casais ainda As terras ao longo dos rios Juqueri e Jagua-
eram vivos, e que “ao tempo que mataram a seu ri, bem como as que iam na direção de Mogi,
filho e nora os Guarulhos matadores levaram margeando o Tietê, eram todas de ocupação
alguns moços os quais até agora se não sabia colonial relativamente tardia em relação ao
delas e os mais eram mortos”. Pela declaração, núcleo planaltino. Elas tornaram-se gradativa-
pode-se deduzir que índios Guarulhos de fora mente permeadas de plantações de trigo, milho
da propriedade atacaram e resgataram eventuais e algodão, e tinham na mão de obra indígena,
parentes cativos. De qualquer forma, a violência apresada continuamente nos sertões, a fonte
do evento deve ter sido grande, já que somente principal de trabalhadores. Não à toa, portanto,
em agosto conseguiu-se entrar na propriedade ali foi um dos principais focos de revolta, e local
para lançar os bens do sítio onde o casal foi de tensões permanentes entre indígenas e colo-
morto. Ali viu-se uma casa bem simples, de nos. Nas proximidades de Mogi, por exemplo,
taipa de mão, coberta com palha e com apenas em 1660, os índios de Bartolomeu Nunes do
uma porta, e constatou-se a presença de um Passo mataram-no e destruíram todos os seus
cavalo moribundo, em função de uma flechada bens, ao ponto de a viúva não ter o que declarar
(I&T, v. 42: 127-171). por ocasião do inventário.

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Ainda para John Monteiro (1998), a série de 1640 e 1650 protagonizarão os maiores con-
de revoltas desses anos encontra alguma expli- flitos e revoltas. A maioria desses indígenas era
cação numa determinada conjuntura, pensada automaticamente distribuída entre os colonos
por esse autor como uma espécie de crise que armavam as expedições – como o caso dos
geral. A sucessão de expedições de apresa- Sutil de Oliveira –, mas alguns eram direcio-
mento indígena teria provocado uma elevação nados para os aldeamentos que cercavam São
alarmante dos níveis populacionais. Ele indica Paulo (Monteiro, 1998).
a média de oito índios para cada branco nas Dentre esses, destacavam-se os pioneiros
zonas rurais. Tal densidade pressupunha uma jesuíticos de São Miguel e Pinheiros, o ainda
mistura étnica de grupos muito variados e quinhentista Nossa Senhora da Conceição
uma dificuldade sistêmica de abastecimento. dos Guarulhos, e os seiscentistas de Barueri,
Tal crise alimentar seria evidenciada pelos pre- Itaquaquecetuba, Cotia, Embu e Carapicuíba.
ços das plantações de milhos nesses anos, que Eles foram, desde os finais do século XVI,
subiram muitíssimo (Monteiro, 1998). Além pontos de discórdia e conflito entre jesuítas
disso, havia um clima de revolta em toda a e colonos. Os três primeiros, em especial,
região, já que duas grandes famílias haviam eram vistos como de ação exclusiva dos padres
retomado uma guerra aberta. Os Pires e os jesuítas, sobre as quais os colonos guardaram
Camargo deram início, em 1641, a uma luta ainda um pudor inicial, o que não necessaria-
de famílias depois que Fernando de Camargo mente acontecia com as outras, como revela o
matou Pedro Taques com uma facada na porta caso da invasão armada da aldeia de Barueri
da igreja matriz da vila de São Paulo. A rinha pelos colonos em 1633, e as queixas contra a
duraria muitos anos, com momentos de tré- presença dos padres em Cotia e Carapicuíba
gua, mas só se encerraria depois de um acordo na década de 1620 (Vilardaga, 2014). De todo
em torno dos cargos da Câmara na década de modo, depois da expulsão dos jesuítas da vila
1670 (Pinto, 1980). de São Paulo em 1640, no episódio conhecido
A maioria das revoltas de cunho indígena como “botada para fora dos padres”, as antigas
desses anos teve como protagonistas ou os aldeias da Companhia de Jesus passaram a ser
índios Guarulhos ou os chamados Guaianases. totalmente administradas pelas autoridades
Ambos eram bem conhecidos e historicamente coloniais da vila e suas terras – algumas, como
presentes nos inventários desde o final do sécu- São Miguel, grandes sesmarias doadas na
lo XVI. Contudo, nas primeiras décadas do década de 1580 –, passaram a ser “aforadas”
século XVII, os Carijós (Guaranis) passaram e ocupadas pelos colonos (Petrone, 1995). A
a ser hegemônicos entre os donos de escravos linha que seguia das terras de São Miguel,
indígenas de São Paulo. Até a grande derrota na margem sul – e provavelmente também a
dos bandeirantes de São Paulo em M’Bororé, norte – do Anhembi (Tietê), passando pelas
em 1641, o Guairá paraguaio foi livre palco da terras de Nossa Senhora da Conceição, mais
ação bandeirante que, de lá, desceu milhares ao norte, foram gradativamente distribuídas a
de Guaranis e Temiminós (esses Tupis). Depois partir da década de 1610, com doações de ses-
da década de 1640, com o acesso aos Guaranis marias nas franjas das terras das aldeias. Mas
cada vez mais dificultado, os bandeirantes de foi na década de 1640 que as áreas propria-
São Paulo teriam se voltado novamente aos tra- mente indígenas passaram a ser efetivamente
dicionais grupos que viviam nas proximidades – e continuamente – ocupadas e beneficiadas.
da vila, a esmagadora maiores deles de grupos Os índios acabaram expulsos ou incorpora-
Jê, caçadores e coletores. É assim, portanto, dos aos plantéis escravistas dos proprietários
que novas levas de Guaianases e Guarulhos, locais. Como exemplo, citemos um relatório
refugiados desde a década de 1590 na Serra de 1679 que denunciava que a aldeia de Nossa
da Mantiqueira ou para além da Cantareira, Senhora da Conceição havia passado de 800
voltaram a ser capturados em grandes quanti- índios, na década de 1640, para 70 em 1679
dades. Esses índios recém-descidos nas décadas (Petrone, 1995).

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Expansão agrícola e terras do aldeamento reforçaria os evidentes vínculos que existiriam


entre a fundação de capelas rurais – feita por
A região ocupada pelo antigo aldeamento grandes proprietários-sertanistas – e a chega-
de Nossa Senhora da Conceição de Guarulhos da de grandes levas de indígenas descidos do
deveria compreender as terras conhecidas como sertão. É o caso de Afonso Sardinha e a capela
Caucaia (que mais tarde darão a base da fregue- de Carapicuíba, de Fernão Pais de Barros e a
sia de Guarulhos) e a área ao longo do rio Jagua- Capela de Santo Antônio, em São Roque; e a
ri. Os primeiros ocupantes desses territórios fo- capela de Nossa Senhora da Expectação do Ó,
ram Miguel de Almeida Miranda e seu sobrinho vinculada a Manoel Preto.
Jerônimo da Veiga (Monteiro, 1998). Nos anos Dentre os personagens que ocuparam
1650, a área será importante ponto de produção gradativamente as terras onde estavam alocados
de trigo, e três genros de Miguel serão proprietá- os índios chamados de Maromomis ou Guaru-
rios ali, em especial Henrique da Cunha Gago lhos, mais tarde aldeamento de Nossa Senhora
(I&T, v. 1, 207-280). Miguel, já proprietário de da Conceição, estava João Sutil de Oliveira,
sesmaria nas terras da aldeia desde 1625, oficia- nosso bandeirante assassinado. Em verdade,
lizou a posse de um outro pedaço de terra em grande parte da ascendência de João já havia
1639, “aonde um índio marumumin por nome participado da ocupação das terras da região.
Pedro com outros parentes seus tiveram suas Seu pai, Francisco Sutil de Oliveira, foi um dos
roças”, subindo rumo ao rio Atibaia e fazendo primeiros donos de sesmarias nas “bandas do
fronteira a leste com o rio Jaguari (Sesmarias, v. além” Anhembi, que configuram áreas hoje
1: 318-322). Essa informação parece já denotar pertencentes ao município de Guarulhos.
uma expropriação direta de terras indígenas. A mãe, Izabel da Costa, era filha de João da
Mais ao sul, a ocupação foi desencadeada Costa e Inês Camacho. Izabel, quando faleceu,
sob o pretexto da exploração mineral. Geraldo em 1623, encomendou duas missas a Nossa
Correa exploraria o ouro ao longo do rio Baqui- Senhora da Conceição na aldeia de Guarulhos
ruvu em região que, até hoje, guarda a toponí- e apresentou uma carta de terras de meia légua
mia das Lavras Velhas do Geraldo. Geraldo foi “onde estavam os guarumemins” e outras terras
nomeado capitão branco da aldeia, o que sacra- herdadas de seu pai (I&T, v. 12: 331-347). O avô
mentaria o processo de ocupação dos colonos materno de João Sutil, João da Costa, casado
das terras de Nossa Senhora da Conceição de com Inês Camacho, foi homem de confiança do
Guarulhos. Na outra margem do rio Tietê, nas governador geral do Brasil, D. Francisco de Sou-
terras pertencentes à sesmaria da aldeia de São za, que se estabeleceu em São Paulo entre 1599
Miguel, o processo será bastante semelhante. Os e 1603, num primeiro momento, e entre 1609
colonos brancos começaram a ocupar a outra e 1611, numa segunda oportunidade. O gover-
margem do rio, teoricamente fora dos limites da nador, movido pela missão de encontrar ouro e
sesmaria, ainda na década de 1620, no entorno prata nas terras da colônia, mudara-se pra São
da Capela do Bonsucesso, em terras de Francis- Paulo atrás das notícias de descobertas minerais
co Cubas, sertanista e plantador.2 feitas pelos Sardinhas. Na vila do planalto, D.
A região hoje pertence ao município de Francisco organizou uma estrutura administra-
Guarulhos, mas sua história é efetivamente tiva e econômica para beneficiar as supostas
muito mais vinculada a São Miguel que a Nossa minas e dinamizar sua exploração, o que incluía
Senhora da Conceição. Para John Monteiro o fomento de uma economia agrícola comple-
(1998), o exemplo da Capela de Bonsucesso só mentar ancorada na produção de trigo, milho
e algodão (Vilardaga, 2014). O território hoje
ocupado pelo município de Guarulhos foi,
2 Os limites da sesmaria de São Miguel são controversos. juntamente com São Miguel, uma das fronteiras
Para alguns estudiosos, como John Monteiro, ela deveria
cobrir áreas nas duas margens do Anhembi, em território
fundamentais dessa expansão.
que hoje configura os bairros dos Pimentas e Bonsucesso, João da Costa foi parte desse esforço na
em Guarulhos. montagem de uma “jurisdição das minas” em

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São Paulo, na qual foi inicialmente mampos- pegar arbitrariamente qualquer índia das aldeias
teiro dos cativos, função criada em Portugal no do planalto, o que incomodou os oficiais da Câ-
século XIV e que tinha o objetivo de arrecadar mara de São Paulo, que imediatamente notifica-
recursos para “libertar” cativos. Nascido para ram que ninguém deveria “bulir com os índios
atender, especialmente, aos prisioneiros feitos forros”, pois eles já estavam “muito escandali-
pelos árabes na Península Ibérica e no norte da zados e se poderão agravar mais”. O aviso tinha
África, nas Américas ele se adaptou ao cativeiro um destino certo: os índios “guaramemis”, de
indígena. Formalmente, cumpria a função de onde o Carvoeiro prometera sacar sua “dívida”
salvaguardar os índios capturados em guerra (ACVSP, 1967, v. 1, 31/07/1593).
justa e promover sua alforria. Por isso mesmo, De fato, os anos de 1590 até 1595 foram
Costa era o possuidor de um exemplar das anos bastante tumultuados na vila de São Paulo
Ordenações do Reino, como consta do inven- e seus arredores. Um levante indígena na aldeia
tário de sua mulher. Foi também repartidor de Pinheiros resultou, para horror dos padres,
de terras e avaliador dos órfãos, mas depois na destruição da imagem de Nossa Senhora
da morte da esposa, foi se desfazendo de seus do Rosário. Além disso, os índios de “Mogi”
bens e acabou se recolhendo à ermida de Santo haviam trucidado uma expedição de colonos
Antônio, na vila de São Paulo, onde se tornou brancos e índios Tupis na região e o clima de
ermitão. Tinha conhecimentos de física e atuava pânico espalhara-se pela vila (Monteiro, 2004).
como “barbeiro”, legando em seu inventário de Assim, com os ânimos todos sobressaltados, não
1639 vários objetos relacionados a essa atividade convinha permitir que algum colono fosse se
(I&T, v. 12: 348-370) Suas terras em Guarulhos apropriar de uma indígena das aldeias. Em agos-
eram muito provavelmente herança e/ou dote to do mesmo ano, em nova sessão, os oficiais
de seu sogro, Domingos Luiz, conhecido como reforçaram a proibição de não se ir à terra dos
o Carvoeiro, um dos pioneiros da “coloniza- Guaramimis e Goianazes, “por haver para isso
ção” do Planalto de Piratininga. O apelido era muitas razões, e por se não alevantarem com os
uma referência à Santa Maria de Carvoeira, do sertão que estavam alevantados”. O clima
freguesia onde ficava Marinhota, terra natal de turbulento fora atestado por Afonso Sardinha,
Domingos. Ele fora eleito “capitão do gentio” que enviara um de seus índios, um “guaramimi
em 1563, quando a vila vinha de um período de cristão”, para averiguar o nível da revolta. A
grave conflito indígena que quase resultou em sessão ainda recomendou que não se fizessem
sua destruição, e casou-se com uma das filhas de entradas nas terras dos Guaramimis (ACVSP, v.
João Ramalho, Ana Camacho, defensor da vila 1, 15/08/1593).
ao lado do chefe Tibiriçá nos conflitos de 1562 Além do Carvoeiro, outra das primeiras
(Monteiro, 2004). famílias a possuir terras na região que hoje
O Carvoeiro era carpinteiro e participou corresponde ao território de Guarulhos foi a
da construção da igreja dos jesuítas e da igreja Pires. João Pires era filho de Salvador Pires e
do Guaré, mais tarde Nossa Senhora da Luz Mécia Fernandes, esta neta de Piquerobi, antigo
(Franco, 1954). Podemos vislumbrar algo de sua cacique de Ururaí, origem do que viria a ser o
personalidade pelo depoimento do Padre José aldeamento de São Miguel. Não à toa, um dos
de Anchieta que comenta, em carta de 1579, genros de Salvador, Bartolomeu Bueno, foi
ao capitão-mor Jerônimo Leitão, que a obra da um dos pioneiros na apropriação das terras do
igreja estava atrasada pois os índios andavam aldeamento da margem sul do rio Tietê (Bon-
amotinados por “medo do carvoeiro” (Cartas, tempi, 1970).
1933). Sujeito aparentemente irascível, em 1593 A viúva de João Pires, Méssia Rodrigues,
entrou em conflito com o capitão-mor da Capi- legou em testamento uma légua de terras na
tania de São Vicente, Jorge Correa. Domingos “paragem serro das minas de Geraldo Correa
acusou-o de roubar uma índia e levá-la para a até Juquery-mirim” e mais três datas anexas,
vila litorânea (Ferreira, 1971). Diante das acu- além de outra terra em Urubuapira, que corria
sações, o capitão-mor autorizou o querelante a pelo “serro arriba para o sertão”. Sua fazenda se

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estendia até o rio Baquiruvu e foi concedida em Francisco Nunes da Siqueira, como genro
sesmaria no ano de 1619. Ali, os Pires criavam de João Pires, também se estabeleceu ao longo
gado e plantavam trigo e cereais, avançando cla- do rio Baquirivu, e possuía terras por um “cami-
ramente sobre as terras que deveriam pertencer nho que vai dar na aldeia de Nossa Senhora da
à aldeia de Nossa Senhora da Conceição (I&T, Conceição”, em direção ao Juqueri. Seu vizinho
v. 17: 113-158). O fenômeno de dilapidação era Francisco Rodrigues Sapateiro, que ganhou
das terras indígenas, concedidas em sesmarias terras ali juntamente com seu sogro, Luis Furta-
no começo do século XVII, atingiu primeiro as do (Sesmarias, v. 1: 301-304). Sapateiro faleceu
terras de São Miguel, no qual os Bueno cumpri- em 1652, mesmo ano de João Sutil, e tinha mui-
ram um papel decisivo, e depois as de Concei- tas ferramentas e instrumentos para o plantio e
ção dos Guarulhos, já na segunda década do beneficiamento de trigo, algodão e mandioca.
mesmo século, na qual os Pires, ligados forte- Possuía três teares e alguns fardos de algodão
mente aos Bueno, seriam um dos protagonistas em seu inventário (I&T, 42: 37-54). Um de seus
essenciais. genros, Domingos Fernandes, que era dono de
O irmão de João, Salvador Pires de Medei- 3.000 braças de terra na própria “tapera dos
ros, tinha terras um pouco mais além, para as guarumumis”, ajudava a configurar ainda mais a
bandas de Juqueri. Ali ele foi um dos pionei- explícita invasão do núcleo de terras indígenas
ros de ocupação ao lado de sua mulher, Inês (Sesmarias, v. 1: 356-359).
Monteiro de Alvarenga, figura em torno da O algodão foi provavelmente uma das
qual teria se desenrolado alguns dos episódios principais bases produtivas da região, ao lado do
mais dramáticos da chamada luta entre Pires e gado e do trigo. Um dos grandes produtores e
Camargo, conforme as narrativas dos cronistas comerciantes de algodão em São Paulo, inclusi-
setecentistas de São Paulo. Depois do assassina- ve com mercadoria posta no porto de Buenos
to de Fernão Taques ainda em 1641, um novo Aires, foi Antonio Pedroso de Alvarenga, cunha-
episódio da contenda seria a morte de Alberto do de Salvador Pires. Pedroso possuía terras no
Pires, filho de Salvador e Inês. Alberto, casado Cabuçu (I&T, 4: 49-75), e foi também sertanista
com uma Camargo, teria assassinado a esposa e capitão de uma grande bandeira que percor-
num arroubo de ciúmes. Preso e arrastado para reu o Guairá entre 1615 e 1618, de onde trouxe
a Bahia, as crônicas contam que ele foi joga- muitos Carijós.
do no mar pelos seus vigilantes, alguns deles Por fim, outro personagem significativo na
aliados dos Camargo. A mãe, Inês, movida pelo ocupação colonial do território foi Henrique da
espírito de vingança, teria mantido a luta contra Cunha, alcunhado o Velho, falecido em pleno
os desafetos Camargo por muitos anos ainda sertão em 1623. Para Afonso Taunay, era um
(Pinto, 1980). Seja como for, a documentação homem “opulento” e grande apresador de ín-
mostra como João Pires, cunhado de Inês e dios (Taunay, 1975). Quando de seu inventário,
um dos principais líderes dos Pires, foi um dos em 1624, possuía 150 braças de terras no Uru-
grandes articuladores da paz entre as famílias, buapira, mesma região dos Pires. Em seu sítio,
estabelecida uma primeira vez em 1655. Ao lado deixou sua casa e uma “casa de negros”. Legou
de Francisco Nunes Siqueira, seu genro e lem- muitas roupas, ferramentas, arreteis de fio de
brado pelas crônicas como “redentor da pátria”, algodão, gado, e lavouras de feijão e mandioca,
costuraram o acordo que estabeleceu a paridade além de um roçado de milho no Baquirivu.
entre Camargos e Pires na Câmara de São Pau- Tinha vários índios “forros”, inclusive um “gua-
lo. Pires teria sido ainda um dos responsáveis tumimim” que legou ao genro, e Tememinós,
pelo acordo que permitiu o retorno dos jesuítas Carijós, Pés-largos e diversos sem nome, o que
a São Paulo em 1653. Dessa forma, importantes também pode indicar índios recém-chegados do
eventos relacionados a esse conflito familiar em sertão. Henrique ainda possuía uma negra da
São Paulo ocorreram em torno das terras e pro- Guiné com um filho de peito, casada com um
priedades que os Pires possuíam para as bandas índio, e mãe de dois “mulatos”. Henrique da
do Baquirivu e Juqueri. Cunha deixou em testamento duas varas de al-

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godão à igreja de Nossa Senhora da Conceição, possuía terras em Caucaia e era cunhado de
entregues para Francisco Borges, que deveria Miguel de Almeida, um dos primeiros a ocupar
gerir os bens da casa de Conceição, pois ele o que viria a ser Guarulhos, com terras ao longo
mesmo devia uma sela “da casa do padre João do rio Jaguari (I&T, 10: 367).
Alves” a um dos filhos de Henrique. Esse padre O cunhado de Henrique, Matheus Leme,
é o provável construtor da Igreja de Conceição falecido em 1633, legou em seu inventário uma
(I&T, v. 1: 207-280). Borges era casado com alavanca e dois almocafres. Além disso, tinha
uma das filhas de Sebastião Gil, dono de ses- entre seus bens muito ferro bruto e instrumen-
maria na região, com sítio em ibutiratim, e dono tos de ferro. Sua dívida com o provedor das
de diversos Carijós e Guaianases, alguns deles minas e responsável pelos engenhos de ferro,
fugidos (I&T, 39: 87-122). Diogo de Quadros, mostram que Leme estava
É possível acompanhar o desenvolvimento também envolvido nas atividades siderúrgicas,
patrimonial de Henrique da Cunha através além da mineração de ouro. Matheus era, além
dos inventários de suas duas primeiras esposas. disso, boticário e leitor de obras consideradas
A primeira mulher, Izabel Fernandes, falecida heréticas, como o Livro dos Segredos da Natureza,
em 1599, era filha de Salvador Pires e irmã de de Cesare Vanini, autor queimado vivo em 1619
João Pires, o Velho. Através do dote da esposa, e pensador da linhagem de Giordano Bruno.
Henrique ficou com terras na “banda de além”, Suas terras, dedicadas à criação de gado e ao
em Urubuapira, e já tinha nessa ocasião algum plantio de trigo, ficava na até agora insondável
gado, algumas poucas roupas e uma “canoa de Toboapú. Pelo padrão de moradia de parentes
casca”. Os vínculos entre os Bueno e os Pires, próximos, bem como pelas atividades minerais,
controlando as duas bandas do rio, fica já evi- não seria excessivamente arriscado sugerir que
dente na dívida do carpinteiro e cunhado, Bar- tais terras estavam nas imediações do Baquirivu
tolomeu Bueno, de “umas cadeiras de presente ou de Caucaia (I&T, 9).
de casamento”. Na altura da morte da segunda
esposa, Catarina de Unhate, em 1613, o gado se
ampliou, os algodoais e teares surgem e também Mineração e ocupação regional
os escravos indígenas, inclusive alguns Pés-largos
de uma entrada de Afonso Sardinha pelo ser- As atividades de mineração na região de
tão. Já nesse inventário, surge uma “alavanca”, Guarulhos foram um grande impulsionador de
objeto fundamental na remoção de rochas e cas- sua ocupação e da consequente expropriação
calho nos trabalhos de mineração e garimpagem das terras e do trabalho indígenas. Afonso Sar-
no leito dos rios e córregos. Quando de seu pró- dinha teria descoberto oficialmente algum ouro
prio inventário, em 1624, surge a tal alavanca, na serra do Itaberaba, na Cantareira, ainda
mas surgem também três almocafres velhos, um em fins do século XVI. Essas descobertas, de
“marco de quarta com sua balança” (para pesar Jaguamimbaba (Cantareira), Jaraguá, Voturuna
ouro) e sete bateias de lavar ouro. Henrique da (Santana de Parnaíba) e Caativa (até hoje sem
Cunha, entre os anos de 1613 e 1624, investiu localização definida) é que teriam atraído o
na mineração ao longo de suas propriedades e governador geral do Brasil, Dom Francisco de
ainda transmitiu a atividade aos filhos, deixando Souza, a São Paulo (Franco, 1964). Até hoje não
três bateias ao filho Henrique e três ao outro se sabe ao certo quanto de ouro se retirou des-
filho, Manoel, este morador vizinho de seu tio, sas áreas minerais que, em trabalho recente de
Salvador Pires. De fato, seus netos participariam, Nestor Goulart Reis (2013), fica-se sabendo que
inclusive, das descobertas de ouro nas minas cobriram vastas extensões territoriais e um largo
geraes já no final do século XVII (I&T, 1: 207- período de tempo. Configurou o que esse autor
280). Afonso Taunay afirma ter sido Henrique mesmo chamou de “Primeiro Ciclo do Ouro”,
da Cunha um dos descobridores de ouro em e que teve em Guarulhos uma de suas áreas im-
São Paulo, juntamente com os Sardinha (Tau- portantes de extração. Durante muito tempo, a
nay, 1975). Um seu irmão, João Gago da Cunha, historiografia minimizou essa atividade setecen-

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tista na Capitania de São Vicente, relegando-a “montes guarimunis ou marumimins” onde ti-
a funções secundárias estritamente ligadas à nha minas de ouro (RIHGSP, v. VI, 1900-1901);
garimpagem eventual e de pouca monta. Mais e o de João de Laet, que tenta precisar as minas
recentemente, a mineração em São Paulo do sé- de São Paulo e seus arredores (Reis, 2013).
culo XVII tem despertado uma maior atenção, A principal personagem relacionada à his-
sendo considerada uma atividade importante tória da mineração em Guarulhos foi Geraldo
na lógica econômica da vila e imediações, o que Correa. Tanto seu inventário quanto o de sua
permitiu algum nível de acumulação e troca, esposa, Maria Soares, não sobreviveram ao tem-
assim como servindo como baliza de expansão po, restando apenas uma petição feita por dois
territorial (Vilardaga, 2013). de seus netos em 1672 (I&T, 18: 261). Nessa,
No caso da área coberta pelo atual muni- os dois reivindicam de seu tio, Estevão Sanches
cípio de Guarulhos, estudos geológicos vêm de Pontes, alguns índios, uma gargantilha de
detalhando seu solo, sua composição mineral e ouro de valor considerável (11$000) e cortes de
mapeando suas áreas de extração, revelando a tafetá, legados pela avó.
amplitude e importância da atividade minera- Ao que parece, Geraldo Correa fora
dora na história da região (Juliani et al., 1995). homem ligado ao governador geral Francisco
Além disso, pode-se reconstituir as formas de Souza, pois foi provisionado como avaliador
de garimpagem e de trabalho ao longo dos e medidor de terras em São Paulo quando da
rios, córregos e ribeirões. As principais áreas chegada do mandatário à vila, em 1600 (RG-
de extração teriam sido próximas aos atuais CSP, 20/04/1600). De todo modo, sabemos
“ribeirões das Lavras e Tomé Gonçalves e dos que Geraldo Correa esteve na bandeira de
córregos Tanque Grande e Guaraçau” (Juliani et Nicolau Barreto, que percorreu o sertão entre
al., 1995: 6), além do rio Baquirivu-Guaçu, que 1602 e 1604, e que teria avançado sobre terras
compunham um amplo território permeado de paraguaias, chegando aos contrafortes do Alto
lavras e envolvendo uma série de mineradores e Peru. Essa bandeira, ordenada pelo governador
trabalhadores. A presença abundante de água, Francisco de Souza, tinha a tarefa de pesquisar
e seu aproveitamento através de galerias, dutos, minerais pelo sertão, mas trouxe uma outra
aquedutos e canais para lavagem, foi um fator riqueza: índios. Além disso, normatizou os traje-
preponderante para o sucesso de tais garimpos e tos interiores que interligavam o litoral vicenti-
lavras (Pérez-Aguilar et al., 2012). A presença da no ao Guairá, já no rio Paraná. Na expedição de
mineração na história regional ainda é percep- Barreto, Geraldo aparece como fiador do inven-
tível nas marcas e vestígios materiais deixados tário de Brás Gonçalves, morto no sertão, e no
na paisagem, compostos de galerias, escavações qual aparecem muitos índios Temiminós, um
em encostas, desvios de rios e ribeirões, obras dos mais abundantes nas listas de “gente forra”
de drenagem, paredões, montes de rejeitos e dos inventários paulistas das quatro primeiras
entulhos. As lavras tiveram ainda um intenso décadas do XVII (I&T, 26: 5-39).
desenvolvimento no século XVIII, e funciona- Para Francisco de Assis de Carvalho
ram seguramente até o início do século XIX Franco, Geraldo teria descoberto ouro no rio
(Pinheiro in Omar, 2008). Baquirivu em 1612 (Franco, 1954). A riqueza
Dentre as fontes coevas que apontam para a dessas minas é ainda um mistério. Um docu-
exploração mineral em Guarulhos, estão: o livro mento anônimo, e sem data, publicado no Livro
de Anthony Knivet, que faz referências a depósi- Segundo do Governo do Brasil, intitulado “treslado
tos de ouro em Mutinga, a uma aldeia indígena da carta que veio de Sam Paulo sobre as minas
próxima ao rio Jaguari na qual existiam vasos de ouro que se am descuberto”, relata a ida do
de cerâmica com pepitas de ouro, e a uma serra responsável por uma das chaves da arca dos
próxima a São Paulo, “onde havia boa quanti- quintos conferir certo ouro trazido por Clemen-
dade de ouro”, e que bem poderia ser a serra do te Alvares – notório minerador de São Paulo
Itaberaba (Knivet, 2007); o relato de Guilher- colonial. Nesta averiguação, o ourives Claudio
me Glimmer, inserido em Marcgrave, fala dos Furquim sentenciou que aquele ouro tinha

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José Carlos Vilardaga

“ventagem do de Seraldo”, provavelmente a ria da Cunha, fez seu testamento em 1670, no


grande referência mineral no planalto (Livro 2º, sítio que era da filha, em Caucaia, “no bairro de
2001). Geraldo Correia, mais tarde chamado de Nossa Senhora da Conceição”, onde um outro
o velho, ainda estava vivo em 1648, servindo de filho também tinha terras (I&T, 17: 459-501).
procurador de Catarina Cubas, filha do defunto O termo bairro, de alguma forma, demonstra
Gaspar Cubas (I&T, 37: 47-79). já um nível de ocupação sistemático, no qual as
Independente do ano preciso da desco- terras indígenas praticamente desapareciam no
berta, as minas do Geraldo ao longo do rio universo de referências espaciais.
Baquirivu se tornaram referências e marcos Apesar da ocupação da região, das fazendas
definidores de limites de sesmarias na década de de trigo e gado que devem ter trazido alguma
1630, e nos ajudam a demarcar as novas levas de prosperidade ao território, e dos empreendi-
colonos que avançaram sobre as terras indígenas mentos minerais, ainda na década de 1630, a
sob o pretexto da extração e beneficiamento mi- imagem daquelas bandas, para além da aldeia,
neral. João Nogueira de Pazes, Gonçalo Mendes parecia não ser das mais alvissareiras. No inven-
Peres e Balthazar Correa, por exemplo, ganha- tário de Francisco Rodrigues de Beja, falecido
ram meia légua de terra cada um – em 1639 em 1634, e dono de um sítio em Caucaia, seu
–, nas “cabeceiras” dos irmãos Costa – Simão, filho, Pedro Rodrigues, move ação contra a mãe
Álvaro e João – nas “minas de Geraldo Correa”. de Estácia, Maria da Cunha, pois seu marido,
As minas referenciaram também a sesmaria de Jerônimo, já falecido, teria levado um “negro da
Álvaro Costa, concedida nesse mesmo ano de terra” que lhe pertencia ao sertão dos Guaru-
1639 (Sesmarias, 1: 294-296). Um ano antes, lhos, onde o negro morreu “em sertão esteril
Gregório Fagundes e Álvaro Rebello ganharam que de contínuo morre gente de fome” (I&T,
uma légua de terras nas “cabeceiras dos índios 9: 227).
de Guarupiranga”, correndo pelo sertão do rio Assim, apesar de largamente ocupado,
Baquirivu, “ribeiro das minas que Geraldo Cor- o território ainda guardava certa imagem de
rea descobriu” (Sesmarias, 1: 248-250). Rebello sertão longínquo e estéril. A aldeia, de fato,
era genro de Simão da Costa, proprietário local, não havia sumido, pois Pedro Vaz Muniz, por
e quando de sua morte, um ano depois de sua exemplo, fez seu testamento, em 1670, na
concessão, Geraldo Correa foi o curador de seus própria “aldeia de nossa senhora da conceição”
órfãos. Os Costa e os Correa, e seus cunhados (AESP, I&T não publicados), mas já em 1685, o
e genros, passaram a monopolizar a posse de lugar era chamado de freguesia, como denota o
terras em torno das minas. registro de aforamento de terras passada a Pedro
Os filhos de Geraldo, dentre eles Geraldo de la Guarda. Nesse registro, que pretende
Correa, o moço, dariam continuidade às ativida- autorizar a criação de uma “casa de paragem”,
des do pai. No inventário de sua esposa, Estácia para a “conservação dos ditos Guarulhos”, se faz
da Veiga, de 1674, aparece um sítio, com benfei- referência a “um capão que está pegado à fregue-
torias, “nas terras dos índios em São Miguel”, sia de Nossa Senhora da Conceição, indo para
chamado Maquerubu, o que denota – e reforça Hibitiratim”, este um local pouco mais ao norte,
– alguma confusão em torno da jurisdição ao já na direção do rio Juqueri, como demonstra a
qual pertenciam aquelas terras, se aos índios de sesmaria dada a Antonio Madureira, em 1638.
São Miguel ou de Nossa Senhora da Conceição. O registro de aforamento faz ainda referência a
Além disso, há alguns poucos objetos de prata e umas minas “de Camacho que por nome não
instrumentos para garimpagem de ouro, como perca”. Antonio Camacho tinha uma sesmaria
os velhos almocafres e alavancas, que ficariam no Cabuçu, concedida em 1610, e provavelmen-
para o neto do velho Geraldo, também homôni- te seja uma referência às suas terras ou a de um
mo. O casamento de Geraldo, o moço, com Es- seu descendente (Datas, doc. LXVIII).
tácia, selava a união entre os Correa e os Veiga, Além do rio Baquirivu, um outro ribeirão,
também antigos ocupantes de terras naquelas conhecido como Parati, atraiu a atenção dos
bandas (I&T, 19: 95-97). A mãe de Estácia, Ma- moradores e mineradores. Geraldo Correa, o

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moço, e seu cunhado, Estevão Sanches de Pon- de Souza, Diogo de Quadros, provedor das
tes, ganharam sesmaria ali em 1638, cobrindo as minas, chegou a pedir ao Conselho da Índia
duas margens do rio (Sesmarias, 1: 271-274). Fa- em 1606 que pudesse repartir algo em torno de
ziam divisa com João Raposo Bocarro, que será, mil escravos negros entre os moradores de São
dentre outras coisas, provedor das minas de São Paulo para beneficiar as minas, mas teve seu
Paulo; e também com os irmãos Gil, Antonio e pedido recusado pelo próprio governador, que
Sebastião, toponímia, aliás, presente atualmente deu um parecer ao Conselho, dizendo que o
no Pico do Gil (Sesmarias, 1: 280-282). trabalho poderia ser feito por “índios naturais
Assim, configura-se uma ocupação sistemá- da terra que estão afastados de nós, se houver
tica que se espraiava ao longo dos rios Baquiri- modo para os atraírem...” (Archivo General de
vu e Jaguari; do ribeirão Parati, mais ao sul, e Simancas; Secretarias Provinciales, Libro 1476,
do rio Juqueri, desde suas cabeceiras, mais ao f. 164); por outro, ainda no começo do século
norte. Além disso, os assentamentos coloniais XVII, mais precisamente em 1604, uma certidão
cobriam os sítios chamados de Caucaia, Cabuçu feita pelo mineiro-mor do Brasil, Manoel Pi-
e Bananal, e as terras da própria aldeia. A explo- nheiro Azurara relata que faltavam índios para
ração desse território, nítida região de fronteira o trabalho nas minas e que mesmo assim elas
em expansão, foi inicialmente centrada nas ati- estavam sendo beneficiadas a partir do trabalho
vidades agrícolas e pastoris, em especial o trigo, de alguns poucos índios, dos próprios morado-
algodão e gado, e mais tarde na mineração, que res e de forasteiros com “escravos da guine” (Ar-
se tornou destacada atividade. chivo Nacional de Assuncion, Civil y Criminal,
É importante frisar, todavia, que a minera- 1549, 4, 1606). Duas décadas depois, em 1630,
ção em Guarulhos nunca se constituiu como o sacerdote português Lourenço de Mendonça,
uma atividade isolada, mas foi sempre acompa- que desejava explorar as minas de São Paulo,
nhada por culturas agrícolas e outras formas de dizia que era possível beneficiar as minas com
exploração econômica. Nesse sentido, os Costa, o trabalho dos muitos índios “de paz e conquis-
os Correa, os Veiga, os Cunha, Leme, dentre tados” que existiam na vila, mas também dos
outros, não tinham a mineração como atividade “muchos negros de Angola” que lá chegavam
exclusiva, mas parte de um rol de beneficiamen- todos os anos (Biblioteca Nacional do Rio de
tos em suas propriedades essencialmente diver- Janeiro, Castelo Melhor, 01, 02, 035, doc 16).
sificadas. Desnecessário dizer que, para essas De qualquer forma, os inventários disponíveis
funções de exploração mineral – ademais para dos mineradores da região de Guarulhos apre-
as outras –, a mão de obra foi principalmente a sentam muito poucos “negros da Guiné”, como
indígena, angariada dos sertões ou das aldeias. o de Henrique da Cunha.
Pela proximidade, as minas do Geraldo, bem Ainda em relação à presença de interesses
como outras adjacentes, serviram-se primordial- minerais na região, cabe ressaltar que um dos
mente dos índios Guarulhos de Nossa Senhora mais famosos mineradores de São Paulo, Cle-
da Conceição. mente Alvares, parceiro dos Sardinha e homem
De todo modo, não se pode descartar com- envolvido com ouro e ferro, não chegou, por
pletamente a presença de escravos negros nos exemplo, a ser personagem importante na re-
trabalhos nas minas no século XVII. A presença gião dos Guarulhos, mas assim mesmo possuía
deles na documentação seiscentista, intitulados duas datas de terras ali, mais precisamente em
como “negros da Guiné” ou “tapanhumos”, Caucaia (I&T, 14). Cláudio Furquim, ourives,
é mais rara e constitui importante fonte de aparece recorrentemente nos inventários da
riqueza nos inventários. Eram, muitas vezes, região como credor de dívidas. A presença de
moedas de troca no comércio com o interior gargantilhas, anéis, brincos e outros objetos
da América espanhola. Todavia, alguns poucos de ouro e prata, nos inventários, pode sugerir
indícios sugerem uma presença diminuta no uma parte da origem das dívidas que cabiam a
trabalho mineral. Se, por um lado, um dos Furquim (I&T, 5). Luiz Fernandes Folgado, no
importantes aliados do governador Francisco outro extremo dos termos da vila de São Paulo,

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José Carlos Vilardaga

em Santo Amaro, de onde tocava o Engenho ao planalto tanto pelos descaminhos atlânticos
de Ferro, chegou a pedir uma romaria a “Nos- do Rio da Prata quanto pelos descaminhos
sa Senhora da Conceição dos Maromemis”, interiores do Paraguai. A prisão de Jerônimo da
talvez indicando alguma devoção predileta dos Veiga é um indício destas conexões (Vilardaga,
mineradores e dos que trabalhavam os miné- 2014).
rios (I&T, 7: 449-493). A presença de Geraldo De todo modo, algumas pistas podem refor-
Correa, Henrique da Cunha e Matheus Leme çar a importância dessa extração mineral. Uma
naquelas paragens sugere que ali congregou-se delas é a presença efetiva – que totalizou cerca
uma comunidade de personagens envolvidos, de sete anos –, do governador geral Francisco
familiarmente, nos negócios do ouro. de Souza em São Paulo. Em 1601, este mesmo
Jerônimo da Veiga, sertanista e um dos pri- mandatário proibiu a circulação de ouro em pó,
meiros a se assentar em Guarulhos via casamen- o que em si denota uma prática que necessitou
to com Maria da Cunha, aparece em 1609 num ser coibida (RGCSP, 11/02/1601). A instalação
processo movido em Assunção, no Paraguai, de uma Casa de Fundição, atuante desde a
contra o mineiro-mor do Brasil, Manoel Pi- primeira década do século XVII, é outro dado
nheiro. Preso com cestas de erva mate contra- importante. Por fim, em 1603, alguns mineiros
bandeadas, Veiga acompanhou Pinheiro numa trouxeram para São Paulo, diretamente de Es-
viagem considerada suspeita, pois se acreditava panha, um Regimento Mineral que duraria até
que com o mineiro vinham escravos negros e 12 1618, quando um novo regimento, inteiramente
quilos de ouro em contrabando (ANA, Civil y voltado para as “minas de São Vicente”, foi
Judicial, 1549). registrado (Leme, 1980).
O ouro efetivamente retirado é somente O Regimento de 1603 não especifica as
especulado. Não há registro dele em inventários formas de exploração do trabalho, resumindo-
nem nas cobranças de quintos, afora alguns se à organização e ao regramento da ocupação
objetos de ouro esparsos e que poderiam servir das minas. Define tamanho das áreas, tempo
para mascarar o mineral. Lourenço de Siqueira, para declarar e registrar as descobertas, liber-
também dono de terras em Guarulhos, e pa- dade de descobrimento, marcos de limites,
triarca da linhagem que se tornaria proprietária instaura Casa de Fundição, reforça o papel
da amplíssima Fazenda Bananal, na Guarulhos da experiência das atividades mineradoras do
oitocentista, plantava trigo, criava gado, mas Peru e Nova Espanha e define as funções do
tinha também entre seus bens uma gargantilha, provedor das minas. Já o de 1618, direcionado
brincos e anéis de ouro, além de um “marco para São Vicente, abre a exploração para índios
de pesar ouro”, arrolado no inventário de sua e estrangeiros, desde que tivessem licença;
mulher, Margarida Rodrigues (I&T, 17: 25-29 e limita as posses de minas para três por pes-
I&T, 13: 45-93). A serra do Bananal foi também soa, vincula o provedor à Relação da Bahia;
importante ponto de mineração, onde ficavam torna o provedor o repartidor dos índios nas
as lavras conhecidas como Tanque Grande. minas e o responsável pelo regramento dessa
Os registros minerais, de eventuais quintos, exploração do trabalho, que implicava em: não
são quase inexistentes, o que dificulta uma permitir que se trabalhasse nas minas mais que
aproximação dos níveis legais de extração. Os o necessário, com limite de dias e pagamento
inventários só apresentam objetos em metal, acertado; seguir a lei de 1611, deixar gente nas
nunca o mineral amoedado ou puro. Um levan- aldeias para o plantio, enviar os índios para as
tamento feito pela pesquisadora Miriam Ellis minas próximas das aldeias, e visitar as minas
(1950) identificou 200 quilos de prata e 19 de a cada três meses para fiscalização. Ainda em
ouro. A ausência de prata nas minas regionais, 1644, um novo regimento demarcaria o poder
bem como a enorme desproporção, indica uma sobre as minas em torno da pessoa de Salvador
sonegação sistemática do mineral aurífero mas Correia de Sá e Benevides, pessoa não muito
sugere, por outro lado, uma provável intensa bem vista em São Paulo. Em relação à mão de
troca com a prata americana, passível de chegar obra, trazia a ressalva de não se utilizar “índios

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não domesticados nas minas” (Leme, 1980). abrir como alternativo. Lourenço era já fora-
Independentemente da quantidade de mineral gido da justiça, e parecia participar da invasão
extraído em São Paulo neste período – incluin- das terras indígenas, denunciadas pelo mesmo
do as minas de Guarulhos –, é fundamental procurador, na mesma sessão, que mandava os
levar em conta que grande parte da expertise moradores tirarem as próprias criações de ani-
que os paulistas aplicarão nas Minas Gerais e mais das terras dos índios Guaramimis (ACVSP,
no Centro-Oeste ao longo do século XVIII foi v. 3, 12/08/1623). Curioso ressaltar que Garcia
adquirida exatamente nessas áreas minerais do Rodrigues era filho bastardo, mameluco, de An-
planalto e também em Iguape e Paranaguá. tonio Rodrigues Velho, comprado ainda garoto
e alforriado somente quando da morte do pai,
em 1616 (I&T, 11: 47-53).
Os índios e os capitães de aldeia De todo modo, o abuso, a violência e a
apropriação das terras indígenas era uma prática
Para além da mineração, uma outra fonte corrente entre os moradores de São Paulo e não
de riqueza altamente disputada na região, e em seria diferente na aldeia de Nossa Senhora da
toda a Capitania, foi a população indígena. O Conceição. Algumas leis e provisões tentavam
próprio Lourenço da Siqueira é um caso exem- colocar algum freio na voracidade com a qual
plar. Siqueira foi sertanista, participando com- os moradores avançavam sobre as terras indíge-
provadamente da bandeira de Lázaro da Costa, nas e sobre os próprios índios, um fenômeno
de 1615, que devassou o chamado “sertão conjunto. Vimos como a Câmara tentou fazer
dos carijós”, nas proximidades do rio Paraná. isso em 1625, mas desde o final do século XVI
Nessa expedição, cumpria a função de alferes o capitão-mor da Capitania, Jerônimo Leitão,
mor. Quando de seu testamento, em 1633, fez tentara proteger as terras indígenas, concedendo
questão de pedir perdão por ter gentios da terra as sesmarias de São Miguel e Carapicuíba, e
mantidos como escravos, mesmo sabendo-os prevendo punições. Foi somente em 1622 que
livres. Pediu perdão ainda por ter praticado a Câmara registrou uma provisão de Felipe III,
qualquer injustiça e não ter pago pelos serviços de 1604, para que “nenhuma pessoa roce terras
prestados pelos indígenas. Em seu inventário, dos índios” (RGCSP, I, 26/08/1622). De todo
aparecem nomeados 69 índios, entre homens, modo, aos poucos as regras foram simplesmente
mulheres e crianças (I&T, 13: 5-44). refletindo a prática de apropriação. Em 1682, os
Lourenço de Siqueira, de fato, não pa- oficiais da Câmara solicitam que os “moradores
rece ter sido muito flexível com seu plantel que lavrassem nas terras dos índios fossem até a
de indígenas, como sugere o procurador do Câmara para fazerem aforamento” (RGCSP, II,
Conselho de São Paulo, em 1623, Luis Fur- 20/04/1682).
tado, ele mesmo morador e proprietário nas Ao longo do século XVII, uma certa
proximidades de Nossa Senhora da Conceição. decadência, como lembrou Pasquale Petrone,
Furtado denunciou Garcia Rodrigues, o moço, atingiu praticamente todos os aldeamentos do
que impedia o livre trânsito no antigo caminho planalto. Segundo ele, havia uma concordância
real, que era utilizado pelos Guaramimis e pelos entre colonos, jesuítas e autoridades quanto à
moradores da vila que negociavam com eles. apropriação do trabalho indígena, mas a discor-
Além disso, a via era usada para a romaria a dância vinha quanto aos meios e as formas. Em
Nossa Senhora da Conceição, o que denota já a verdade, ocorreu uma verdadeira “sangria” das
força do culto religioso reservado àquela capela. aldeias em função das demandas por mão de
Segundo a denúncia, o dito Rodrigues tratava obra nas plantações de trigo, algodão e milho,
mal os índios e confiscava os bens trazidos pelas atividades mineradoras e pelas próprias
por eles. O pior é que parecia um negócio de expedições de apresamento de outros indígenas.
família. O cunhado de Garcia era justamente A expulsão dos padres jesuítas em 1640 pratica-
Lourenço Siqueira, que praticava os mesmos mente abriu as portas para a espoliação comple-
atos em outro caminho que os índios tentaram ta das aldeias (Petrone, 1995).

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José Carlos Vilardaga

A legislação indigenista também não aju- forros, que foi ao Conselho com os principais
dava muito. Para Petrone, elas nunca formaram das aldeias, para reclamar da nomeação de João
um todo coerente. A lei de 1570, por exemplo, Soares – sogro de Geraldo – como capitão dos
definia que só se cativassem indígenas em guer- índios. No requerimento, os indígenas diziam
ra justa, com licença do rei ou do governador. que não obedeceriam ao dito e prometiam
Essa, por sinal, foi a lei levada a cabo em São desordens. A razão alegada era que João Soares
Paulo pelo governador Francisco de Souza, pois fazia “muitos agravos” aos índios, mandando-os
lhe dava nítidos poderes jurisdicionais sobre ao caminho do mar sem lhes pagar, recolhia
as expedições de apresamento e o destino dos órfãos em sua própria casa, os proibiam de te-
cativos. Seja como for, em 1605 eliminou-se rem plantação de mandioca e criação, e que os
qualquer possibilidade de cativeiro e, em 1609, filhos de Soares pegavam as mulheres da aldeia
todos os índios foram considerados livres, mas e as levavam por onde queriam (ACVSP, II,
com os jesuítas exercendo um protetorado 20/01/1607). Em verdade, João Soares – assim
exclusivo. Dois anos depois, contudo, em 1611, como Geraldo – faziam parte dos agraciados
nova lei separou as funções clericais e secula- com mercês e ofícios do governador geral, pois
res no trato sobre as aldeias. A liberdade foi fora ainda em 1600 nomeado capitão da aldeia
reforçada, mas se estabeleceu a figura do capitão de São Miguel (RGCSP, 25/05/1600) e, em
de aldeia, um senhor branco que deveria residir 1607, como “capitão dos índios e da aldeia de
na aldeia, atuar como juiz e como organizador Guarapiranga e da aldeia de Nova Eguanga e
do trabalho dos índios, vivendo, em “troca” Jaguaporecuba”. Essa última fronteiriça com
disso, à custa dos próprios indígenas. A aldeia São Miguel, conforme se depreende dos limites
deveria concentrar indígenas descidos do sertão, da sesmaria de São Miguel concedida em 1580
que ficariam a serviço de um “capitão” e sob os (RGCSP, 16/11/1607).
cuidados espirituais de um padre secular, que Não sabemos os efeitos práticos do requeri-
atuava junto à igreja, mais comumente uma mento, mas as práticas de Soares não deveriam
capela, erguida no centro da comunidade aldeã. ser tão surpreendentes. No ano seguinte, em
Claro que tal lei não agradou aos jesuítas que, 1608, o procurador ainda dava notícias de que
em muitos casos, recusaram a lei de 1611 pela os moradores iam às aldeias dos Maramomis
de 1609 (Petrone, 1995). É Azevedo Marques, “e lhes tomavam suas filhas e filhos contra suas
por exemplo, que relata como o próprio vontades”. Para o procurador, isso espantava os
Geraldo Correia assinou um documento com índios que vinham voluntariamente instalar-se
Henrique da Cunha Gago questionando os ao redor da vila. O medo subjacente dos mem-
padres jesuítas que, muito provavelmente, tei- bros da Câmara era sempre o de um levante
mavam em manter alguma jurisdição temporal indígena, como aqueles que sacudiram a região
sobre a aldeia de Nossa Senhora da Conceição nas décadas de 1560, 1590 e mais tarde, em
(Marques, 1980). Os padres representavam um 1650 (ACVSP, II, 05/10/1608).
entrave aos potentados locais no usufruto da Os casos parecem se repetir. Em outubro
mão de obra indígena. de 1617, Gonçalo Correia de Sá, capitão-mor
A figura do capitão dos índios dava, em da Capitania de São Vicente, nomeou Manuel
realidade, grandes poderes aos senhores de Pinto como capitão das “aldeais dos Guarami-
terras das áreas adjacentes às aldeias. O mesmo mis” (RGCSP, 07/10/1617). No ano seguinte,
Geraldo Correa, minerador e proprietário de o próprio Gonçalo avisava que “a mim vieram
grandes extensões – junto com seus parentes fazer queixa os índios gouamimis da aldeia de
– das áreas do Baquirivu, foi capitão de aldeia, la vila de São Paulo que eles eram vexados e
o que lhe deu livre trânsito sobre a população molestados por muitos homens brancos...”.
indígena. Antes dele, seu sogro também o fora Para sanar as agressões, nomeou Gaspar Manoel
e as suspeitas sobre ele não foram poucas. Ata Salvago, “procurador e advogado da Capitania”,
da Câmara de 1607 fala de um requerimento como capitão da aldeia, com poder de prisão
feito por Gaspar Nunes, procurador dos índios (RGCSP, 08/1618).

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Outro proprietário local, que se tornou O resultado foi um novo clamor da Câmara
capitão de índios, foi João Raposo Bocarro, para que os índios fossem devolvidos à aldeia
que em 1638 ganhou seis léguas de sesmarias (RGCSP, II, 27/07/1660). Como já dissemos, a
nas duas margens do rio Paraty, que corria prática era antiga. Pedro de Moraes Dantas, em
sertão adentro em direção ao rio Jaguari. Na seu testamento de 1648, confessou ter em seu
concessão, as terras são localizadas na “banda poder alguma “gente do gentio do Brasil”, em
dos Guarulhos”, e são chamadas de “devolutas especial Maria e Antonio guaninemis, da aldeia
e desaproveitadas”, um subterfúgio para a mera de Nossa Senhora da Conceição, onde tinham
apropriação das terras (Sesmarias, I: 271-274). seus parentes. Dantas afirma, justificando-se,
Bocarro, genro de Francisco de Siqueira, foi, que eles eram livres para irem à aldeia quando
além de capitão de aldeia e proprietário de quisessem, levando suas coisas e ferramentas
terras, também provedor das minas que, pelos (I&T, 14: 287-297).
regimentos minerais de 1603 e 1618, tinha No documento de nomeação de Lopes de
grandes poderes sobre toda a jurisdição mine- Medeiros se faz referência ao fato de que Fran-
ral, o que incluía distribuir datas, concessões, cisco Rodrigues Velho já havia sido capitão de
fiscalizar mineradores e distribuir a mão de aldeia. Esse fato só corrobora a ideia de que efe-
obra indígena, conforme algumas regras. Mo- tivamente as aldeias indígenas eram entregues
rador de Guarulhos, capitão de aldeia e oficial aos grandes proprietários das terras adjacentes
das minas, Bocarro deve ter exercido largos que, invariavelmente, usavam de sua função
poderes sobre toda a região. Seu genro, falecido para alocar os índios conforme suas conveniên-
em 1698, ainda mantinha entre seus bens o cias. Francisco Rodrigues Velho, assim como
“sítio em Guarapiranga em terras dos índios” seu irmão, Antonio Rodrigues Velho, foram
(I&T, 24: 175-192). potentados locais. Francisco era dono de uma
Foi possível localizar outros capitães da al- sesmaria ganha em 1638 nas terras chamadas de
deia de Nossa Senhora da Conceição. João Mar- Jaropebica, “taperas dos garomemis”, seguindo
tins Heredia, vereador em São Paulo em 1641, até o rio Juqueri. Essas somavam-se às antigas
foi “capitão da aldeia dos Maramimis”. Aleixo terras de Francisco no Cabuçu, concedidas ain-
Leme registrou provisão para ser capitão dos da em 1610 (Sesmarias, I: 255-257). Totalmente
índios da “aldeia de Nossa Senhora da Concei- vinculado aos Siqueira e aos Cunha, Rodrigues
ção”, em 1638 (RGCSP, II, 09/04/1638). Nos Velho compunha o cenário de controle familiar
tumultuosos anos de 1652 e 1653, nos quais os do espaço guarulhense. Seu irmão, Antônio
Guarulhos andavam alevantados, os capitães Rodrigues, era o pai do filho “bastardo” Garcia
foram Martim da Costa, “dos índios guaromi- Rodrigues, que andava perturbando a vida dos
mis da aldeia de Nossa Senhora da Conceição”, índios pelos caminhos dos Guarulhos. O pró-
em 1652 (RGCSP, II, 09/11/1652), e Antonio prio Antônio foi capitão dos índios em 1609,
Lopes de Medeiros, “capitão da aldeia dos Gua- conforme se conclui a partir de um requeri-
rulhos”, em 1653. Lopes de Medeiros tinha a mento feito pelo provedor das minas, Diogo de
função de tirar os índios “das casas dos morado- Quadros, em 1609. Esse, queixoso, protestava
res donde estiverem”, visto que a aldeia esvazia- que há quatro anos estava na vila cuidando de
va a passos largos (ACVSP, VI, 25/08/1653). desenvolver a mineração e o engenho de ferro,
As ações de Lopes de Medeiros devem mas que no último ano “não tivera das aldeias
ter sido inócuas, já que, em 1660, poucos anos mais que oito índios”, esses dados por Antonio
depois, os oficiais da Câmara foram visitar a Rodrigues, “capitão dos marmemis dos índios”
aldeia de Nossa Senhora da Conceição e “não (ACVSP, II, 15/02/1609). Antonio, quando
encontraram nenhum gentio”. O capitão da faleceu em 1616, deixou registrado em seu tes-
aldeia na ocasião, Estevão Ribeiro, e o único tamento que possuía uma “vaca preta de Nossa
índio ali presente, o “maioral da aldeia”, o índio Senhora da Conceição dos Goaromimis”, e sua
guarulho Diogo Martins, alegaram que todos esposa, Joana de Castilhos, falecida em 1633,
se encontravam “nas casas dos moradores”. devia duas arrobas de cera a Nossa Senhora da

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José Carlos Vilardaga

Conceição (I&T, 8, 335-357). De fato, além das “grande prejuízo deste povo e seus moradores”
terras e dos índios, todos os bens pertencentes (ACVSP, VI, 13/05/1669). De fato, desde
à aldeia devem ter sido partilhados e usufruí- 1666, o capitão Lopes de Medeiros já pedia à
dos conforme os mais diversos interesses. Os Câmara, através de uma petição, que ajudasse a
tentáculos dessa família chegariam ainda mais colocar freio nos moradores que “molestavam”
longe. O genro de Antonio Rodrigues, Henri- os índios de Nossa Senhora da Conceição “em
que da Cunha Lobo, venderia, em 1667, umas se pedindo suas terras”. As petições, as fugas e
terras em “ururahy” ao padre Jacinto Nunes de a revolta violenta configuraram recursos claros
Siqueira, que fundaria a igreja de Nossa Senho- de resistência e de imposição de limites aos
ra da Penha nos anos posteriores. colonos brancos por parte dos índios.
O irmão do padre Jacinto, outro padre, A reação dos moradores em relação à posse
Matheus Nunes Siqueira, esteve envolvido em de “seus” índios sempre foi rápida. Em 1633,
outra fundação: a de Atibaia. Matheus desceu, chegaram a invadir Barueri por causa de um
“por seus meios”, índios Guarulhos do sertão conflito de jurisdição com os jesuítas e com a
em 1665, com o intuito de promover a “sal- nova vila de Santana de Parnaíba, criada em
vação do dito gentio”, sem nenhum interesse 1625. Em 1624, todos regiram negativamente à
maior, dizia ele, que seu “fervor cristão”. Os ordem do governador geral do Brasil de que 1/5
ditos índios foram alocados em Atibaia, onde de todos os índios descidos do sertão deveriam
o padre sugeria aos oficiais de São Paulo que se ser distribuídos entre as aldeias do Planalto e o
criasse uma aldeia, o que o Conselho pareceu envio à Bahia, para repovoar as zonas açucarei-
acenar positivamente, apesar das graves notícias ras. O oficial responsável por colocar em prática
que davam conta de que alguns índios de um tal medida, Manoel João Branco, era provedor
certo Manoel de Moraes tinham sido mortos das minas e chegou a fazer uma cena patética
pelos recém-chegados. Contudo, pouco mais na frente da igreja de São Bento, lendo sua
de um ano depois, os oficiais ainda não haviam provisão para algumas telhas, já que ninguém
tomado posse da dita aldeia. (ACVSP, VI, o ouvia. Em 1640, os jesuítas foram expulsos
03/07/1665) O fato é que em 1669, os oficiais da vila de São Paulo depois de tentarem fazer
da Câmara já reclamavam que os índios de valer uma bula papal de excomunhão aos que
Nossa Senhora da Conceição dos Guarulhos escravizassem indígenas. Em 1652, os oficiais
andavam abandonando a antiga aldeia e mi- da Câmara se negaram a cumprir uma provisão
grando para a de Atibaia. Mandaram notificar para que os índios de São Miguel fossem tras-
ao capitão de Guarulhos, o já reincidente ladados para Bertioga, pois consideravam uma
Antonio Lopes Medeiros (que voltara à função desnaturalização dos índios (RGCVSP, II).
desde 1661)3, que “pusesse cobro nos índios”
(ACVSP, VI, 05/05/1669). Pelas discussões
na Câmara, um certo frei “capuchinho bar- Aldeia de Nossa Senhora da Conceição
bado”, de nome Gabriel, andava atraindo e
acolhendo os “índios e índias goarulhos de As aldeias indígenas, em forma de al-
sua majestade”, muitos provenientes de Nossa deamentos tocados por jesuítas ou colonos,
Senhora da Conceição. Conforme os oficiais, tornaram-se base de administração do trabalho,
o tal frei amotinava os índios, estimulando a e de defesa, da ocupação colonial em São Paulo.
fuga de muitos deles de “seu senhor”, causando Implantadas em momentos, e circunstâncias dis-
tintas, desde a segunda metade do século XVI,
os aldeamentos eram o manancial fundamental
3 Conforme provisão e termos de juramento registrados na de onde os proprietários sacavam trabalhadores
Câmara em 02/02/1661. A provisão foi dada por Salvador mais ou menos disponíveis. Era também o local
Correa de Sá e recomendava que Medeiros deveria “conser-
onde se instalavam os indígenas que eram atraí-
var os índios na aldeia não consentindo que se ausente nem
que estejam espalhados em casas dos brancos para que assim dos, ou apresados violentamente, nos sertões a
possam servir a Republica pelas vias costumadas”. partir das bandeiras.

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No conjunto, quer concentrado em O pesquisador Benedito Prezia, que inves-


aldeamentos ou fazendas dos jesuítas, quer tigou mais a fundo os Maromomis, defende a
trabalhando nas aldeias do padroado real, tese de que eles viviam, ainda em 1630, na baía
quer arregimentado na grande propriedade de Caraguatatuba, conforme indica um mapa
rural, em verdadeiras aldeias particulares, de Albernaz desse ano que identifica essa baía
quer, ainda, distribuídos em pequenos con- como “Enseada dos Maromomis”. Uma grande
tingentes pelas casas dos moradores como expansão Tupi do século XIV teria expulsado do
administrados, dispunham-se esses indíge- litoral, e mesmo das zonas do planalto de São
nas espacialmente dentro de um cinturão Paulo, grupos Puri, Guaianases e Maromomis,
em torno do núcleo paulistano, verdadeira que teriam se refugiado na região da Mantiquei-
reserva de motores animados a serviço dos ra, conhecida como “Monte dos Guarimunis ou
moradores europeus do núcleo ou dos Maruminis”, conforme relato do perito mineral
arredores (Petrone, 1995: 202). Glimmer, no começo do século XVII. Ainda
para Prezia, os Maromomis passaram gradativa-
Com a aldeia de Nossa Senhora da Con- mente a serem chamados de Guarulhos, nome
ceição não seria diferente. Ela foi organizada que esses indígenas recebiam no Rio de Janeiro,
a princípio para abrigar os índios da categoria onde também viviam perto de Cabo Frio (Prezia
colonial guarulhos, identificados nas fontes in Omar, 2008). O extermínio dos Tupinambás,
comumente como maromomis, e outras tantas quase completo no final do século XVI, teria
variáveis na estropiada grafia dos documentos permitido uma reocupação dos Maromomis
quinhentistas e seiscentistas, como: marumumis, que, antes refugiados na Mantiqueira, come-
guarumemis, maramimis, marmemis, goaromimis, çaram a descer as encostas e ocupar o litoral
guanimemis, dentre outras formas. Vale ressaltar paulista, chegando até o Espírito Santo. Isso
que o termo muitas vezes definia mais os indí- talvez explique o nome da enseada de Caragua-
genas que estavam num determinado lugar do tatuba em 1630, e a suspeita de que os duzentos
que um grupo étnico bem definido. Na situação índios enviados por Francisco de Souza a São
instável dos descimentos forçados de indígenas Paulo, do Espírito Santo, para acompanhar
pelos sertanistas, as aldeias abrigavam quase Diogo Arias de Aguirre em suas demandas
sempre uma diversidade grande de grupos. minerais, eram Maromomis (Noronha, 1960).
A própria aldeia dos Maromomis abrigava De todo modo, não deve passar despercebido
também os controvertidos Guaianases, conside- o fato de que as primeiras investidas minerais
rados um dos primeiros grupos de habitantes do do governador-geral em São Paulo tenham se
território que corresponde ao atual município dado com a previsão do uso da mão de obra dos
de Guarulhos. Esses foram, desde o século XIX, Maromomis.
alvo de intensa polêmica (Monteiro, 2001). No Conforme as descrições de Anchieta,
início, os historiadores e genealogistas paulistas Jacome Monteiro e Simão de Vasconcelos, todos
consideraram que eles eram pertencentes ao eles jesuítas, os Maromomis eram considerados
grupo Tupi, o que os qualificava positivamente amigáveis aos portugueses, tinham apenas uma
aos olhos dos linhagistas de muitas famílias mulher, praticavam jogos, dormiam no chão,
paulistas, visto que muitas delas eram resul- não eram antropófagos e possuíam uma língua
tados de casamentos com índias Guaianases. fácil de aprender. Essas generalizações e classifi-
Capistrano de Abreu, no começo do século cações muito pouco dinâmicas, bastante comuns
XX, inspirado nos relatos de Gabriel Soares de em documentos da época, mais nos atrapalham
Souza e Anthony Knivet, passou a defender que do que ajudam nas tentativas de compreensão
os Guaianases eram, como os Maromomis com da cultura dos grupos indígenas. De qualquer
quem compartilhavam territórios, grupos Jês, modo, a facilidade de apreensão linguística teria
caçadores coletores. Eram, ambos, chamados impulsionado o padre jesuíta Manoel Viegas, se-
de “gente andante” nos documentos de época guindo os passos de seu mestre José de Anchieta,
(Abreu, 1988). que elaborara um catecismo tupi, a fazer uma

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José Carlos Vilardaga

versão Maromomi para lhe servir na tarefa de cialmente para atender os maromomis em 1595,
aldear esse grupo. Esse padre de origem portu- e que o Padre Viegas teria aldeado os maromomis
guesa veio ao Brasil como órfão, e entrou para não na aldeia dos guarús, onde haveria uma casa
a companhia inaciana da Bahia em 1556, onde inaciana, mas no sertão, onde hoje é o bairro
se ordenou em 1562. Em 1567 já estava em São de Tapera Grande. Assim, defende a existência
Paulo, atuando ao lado de Anchieta, e foi um de dois lugares distintos. Um, onde se construiu
defensor da tese de que a catequese deveria ser a igreja de Nossa Senhora da Conceição, e no
feita a partir da língua do gentio. O trabalho de qual funcionava uma residência dos padres, e
Viegas foi bem-sucedido, visto que ficou conheci- outro, onde os índios se instalaram e montaram
do como o “pai dos maromomis” ou, nos dizeres sua aldeia, com uma capela.
de seu mestre Anchieta, em 1596, o “apóstolo Uma boa igreja teria sido construída pelo
dos maromomis” (Viotti, 1984). padre João Alvares, provavelmente na década
Entretanto, ainda existem muitas contro- de 1620. A identidade desse padre também é
vérsias sobre a data do início do aldeamento do controvertida. Quer-se recusar que esse padre é o
Maromomis de Nossa Senhora da Conceição. mesmo que construiu a capela de Nossa Senhora
A autorização formal da Companhia para que da Ajuda, de Itaquaquecetuba, e a de São Miguel,
esses índios fossem aldeados no planalto é de esta última com o carpinteiro espanhol Fernão
1604, o que contraria a tese sustentada por Munhoz, em 1622. Isso pelo fato de que o padre
importantes historiadores regionais de que o foi também sertanista, dono de sesmaria em
aldeamento seria dos primeiros criados em Mogi e acusado de ser “armador” de entradas,
São Paulo, ainda da década de 1560 (Prezia in atividades pouco cristãs e virtuosas para um pa-
Omar, 2008). De fato, tanto o relato de Fernão dre fundador. No nosso entender, a probabilida-
Cardim, de 1585, quanto uma carta do próprio de desse padre, meio carpinteiro, ter participado
Padre Viegas do mesmo ano, na qual relata que da fundação das capelas desses três aldeamentos,
“se há de abrir agora aqui em São Vicente uma contíguos, é efetivamente bastante alta.
porta nova de um gentio que se chama maro- A população indígena do aldeamento de
memin e com eles se junta goiana, goianases e Nossa Senhora da Conceição foi, ao largo de
carijó, ibirabaquayra, e toda essa gente tem uma grande parte do século XVII, predominante-
língua, de que eu já sei muito”, indicam que o mente de Guarulhos ou Maromomis. Alguns
aldeamento é posterior a 1585 (Viotti, 1984: indícios sugerem a presença também de Guaia-
388). Como Gabriel Soares de Souza, em 1587, nases, todos descidos violentamente ou atraídos
já fala em quatro aldeias em torno de São Paulo, ao aldeamento. Para John Monteiro (1988), os
uma das possibilidades é a de que o aldeamento Guaianases e Maromomis foram alvos da sanha
teria surgido por volta de 1586. sistemática dos bandeirantes em pelo menos
O Padre Simão Vasconcelos o cita como três momentos. Na primeira grande ofensiva
existente em 1609, ao lado de Pinheiros, São da década de 1580, levada a cabo pelo capitão-
Miguel e Barueri, o que coincidiria em parte mor Jerônimo Leitão. Uma segunda, na onda
com as referências documentais presentes em repressiva dos anos de 1592-1595, na esteira das
testamentos, inventários e atas e registros da revoltas indígenas de Pinheiros e dos ataques de
Câmara. Lembremos que desde 1607, quando Mogi. Essas expedições, muito mais voltadas aos
se queria nomear João Soares como capitão Tupiniquins, teriam empurrado os Guaianá e
dos índios, os Maromomis de Nossa Senhora os Guarulhos para o Vale do Paraíba e Serra da
da Conceição já aparecem reagindo. Por outro Cantareira. Por fim, depois da crise do abaste-
lado, ao longo das tensões em torno de Domin- cimento de índios guaranis na década de 1640,
gos Luiz, o Carvoeiro, em 1593, a respeito de expedições de captura de Guaianases e Guaru-
uma índia Maromomi, fala-se somente em terras lhos foram organizadas em 1645, 1650 e 1661.
dos índios, não em aldeia. A presença de Guarulhos e Maromomis
Noronha (1960), estudioso da história de em inventários paulistas foi contabilizada por
Guarulhos, defende que a aldeia foi criada ofi- Ernani da Silva Bruno, se bem que ele separou

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os dois grupos. Na sua amostragem, pequena, passou a ser sistematicamente distribuída entre
visto que a maioria, cerca de 11.000 índios, não os moradores, em núcleos familiares, a partir
são identificados nos inventários, revela que: da segunda década daquele mesmo século. De
os Carijós vinham em primeiro lugar, com 371 fato, a ocupação iniciada nas cabeceiras vai
índios em 53 documentos; os Temiminós em gradativamente atingindo o cerne da aldeia a
segundo, com 142 indígenas em 43 documen- partir da década de 1660. As cartas de datas de
tos; os Pés-largos em terceiro, com 38 índios em terras revelam isso de forma direta. Um pedaço
18 documentos; os Guaianases com 30 índios, de terra “dos ditos índios”, que corria até a
em 7 documentos; e os Guarulhos (27 em dois aguada da aldeia, foi concedido aos irmãos
documentos) e os Maromomis (16 em 12). Se Pedroso em 1660 (Datas, doc. XII). No mesmo
somarmos os dois como representantes de um ano, Mathias Lopes oficializou uma posse de
único grupo, a soma de 43 índios os colocam na “7 anos de uso” de um pedaço de “terras dos
terceira posição nos inventários, o que reforça índios goaramimis”. Em 1679, Miguel Francis-
a importância desse grupo no plantel escravista co Velho ganhou uma “terra de samambaias
dos moradores de São Paulo. (Bruno, 1976) A pertencentes aos índios da aldeia de Nossa
presença deles não se restringia, obviamente, Senhora da Conceição”, consideradas eufemis-
aos inventários de moradores do entorno de ticamente de devolutas e que corriam “além da
Guarulhos, como bem mostra o rol de bens de igreja velha” (Datas, doc. XL). Os índios, cada
Afonso Sardinha, de 1615, que legou alguns vez mais raros, misturados e espalhados pelas
“guaramumins” aos padres da Companhia na propriedades, perdiam suas terras e sua base de
aldeia de Carapicuíba (Marques, 1980). reprodução cultural.
Ao longo do século XVII, o território da O plantio de trigo, algodão e milho, assim
aldeia de Nossa Senhora da Conceição de Gua- como a criação de gado, em Guarulhos, acom-
rulhos foi sendo gradativamente espoliado, tanto panharam a produção colonial do planalto de
em seu manancial humano, quanto nas terras São Paulo, configurando os padrões de riqueza
propriamente ditas. De sertão, passou a aldeia, regional e representando apenas mais uma zona
a bairro, e, finalmente, à freguesia, num curto de expansão agrícola. A especificidade esteve
espaço de tempo no qual os indígenas foram os presente na riqueza mineral. Nos veios de ouro
grandes perdedores. Não sem lutar! Não assis- e nos ribeirões auríferos que atraíram e for-
tiram impassíveis à exploração e expropriação. mataram caminhos de ocupação e exploração.
Reclamaram pelos canais oficiais, fugiram con- Apesar das riquezas minerais não terem gerado
tinuamente, negociaram com proprietários em uma “febre de ouro” na região, ela mobilizou
detrimento de outros, e passaram eventualmente instituições, dinamizou leis e regramentos,
para a luta aberta, gerando morte e destruição justificou cargos e ofícios, e permitiu razoáveis
de várias famílias e propriedades escravistas. níveis de riqueza. Como base de sustentação
A região, cobiçada e ocupada nas franjas dessa economia regional: os Maromomis aldea-
das terras da aldeia no começo do século XVII, dos em Nossa Senhora da Conceição.

VILARDAGA, J. Land, gold and captivity: the indigenous village’s of the Guarulhos occu-
pation in the sixteenth and seventeenth centuries. R. Museu Arq. Etn., 26: 42-61, 2016

Abstract: This text – documental support and from the field of social history
by archaeological research work of Guarulhos region (PIPAG) – analyzes the ex-
pansion and colonial occupation in the territory that would later constitute the
municipality of Guarulhos. Focused on the sixteenth and seventeenth centuries,
the research seeks to track the settlement of tenant farmers on dates and land
grants and the modes of transmission of these properties among a few families.

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José Carlos Vilardaga

The text investigates ways of processing these lands, among them agricultural,
pastoral setting and especially gold mining, the latter fundamental activity in the
exploration of territory and little analyzed in the historiography. Finally, the pa-
per discusses the interactions established between the colonists and the Indians,
settled in the village of Nossa Senhora da Conceição of Guarulhos and vicinity,
questioning the forms of indigenous agency.

 Keywords: colonial expansion; indigenous agency; gold mining; Nossa


Senhora da Conceição dos Guarulhos.

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