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O RISO FEMINISTA NA IMPRENSA ALTERNATIVA (1970-1980)

Cíntia Lima Crescêncio1

Resumo: Há séculos o riso tem sido objeto de estudos, principalmente por parte de filósofos e
psicanalistas que o encararam como gesto social (Henri Bergson), como ferramenta destruidora de
ideologias (Quentin Skinner), como melancolia travestida (Sigmund Freud). Em meio a inúmeros
usos, o riso feminista, que subverte em função de não explorar estereótipos de maneira
convencional, categoria muito lembrada na conceituação do riso, não tem sido objeto de análise,
seja por décadas de perseguição debochada às feministas, seja pela prevalência do binômio
sério/divertido. A partir dessa constatação o presente texto tem como objetivo refletir sobre os usos
do riso explorados por feministas, analisando, para isso, charges e tirinhas publicadas em periódicos
feministas que circularam nos países do Cone Sul durante o que se convencionou chamar de
Segunda Onda Feminista (segunda metade do século XX). Com a exploração dessas fontes pretendo
responder alguns questionamentos: O riso feminista enquadra-se nos sentidos do cômico e do risível
até então estabelecidos? O uso de estereótipos é função obrigatória na provocação do riso? Pode o
riso feminista, com evidentes intenções transformadoras, servir de instrumento de revolução e
reflexão?
Palavras-chave: Riso feminista. Periódicos feministas. Instrumento de revolução.

O riso, esse signo que designa um comportamento para além de qualquer objetividade, como
estado de comunicação não discursivo, como fuga do domínio lógico e como ingresso no domínio
afetivo (DELIGNE, 2011, 30), é notoriamente apontado como um instrumento muito eficiente na
destruição das pretensões feministas ao longo das décadas de 70 e 80 no Brasil. A imprensa
alternativa, um dos principais meios de atacar o regime então vigente, a ditadura civil-militar, ao
contrário do que poderíamos prever, atuou como protagonista nessa perseguição às feministas:
feias, homossexuais, mal-amadas, burras; eram apenas alguns dos adjetivos dedicados às mulheres
que se engajaram na causa feminista. Através de entrevistas debochadas, piadas misóginas, charges
e tirinhas com conteúdo nitidamente machista, essa imprensa uniu-se ao conservadorismo da
ditadura para ridicularizar e atacar as reivindicações feministas, bem como as próprias feministas. O
movimento feminista, portanto, via-se mediante um regime autoritário e uma imprensa alternativa
que, ao invés de acolher um movimento que também questionava o status quo, optou por afirmar-se
em detrimento de milhares de mulheres organizadas.
O pessimismo que essa perspectiva salienta, ao ressaltar que até mesmo os revolucionários –
integrantes da imprensa alternativa – eram conservadores no que se refere aos movimentos
feministas emergentes do Brasil, no entanto, não deve permitir que a cegueira tome conta e nos
impeça de perceber uma série de estratégias, resistências, instrumentos e, por que não, armas que

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Doutoranda em História Cultural – UFSC (Florianópolis/Brasil). Bolsista CNPq.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
foram apropriadas por essas mulheres sempre consideradas alvos da zombaria e da piada. Refiro-me
especificamente ao extensivo uso de charges e tirinhas por parte de periódicos feministas, também
integrantes do que se convencionou chamar de imprensa alternativa. Se o uso do riso pelos
revolucionários da imprensa alternativa é motivo de rancor entre o movimento feminista, o riso
feminista que emergia periodicamente nos impressos feministas deve ser motivo de orgulho e,
inevitavelmente, de reflexão, visto que ao contrário do riso machista já muito problematizado por
estudiosas, o riso feminista ainda aguarda uma análise atenta e cuidadosa.
Essa modalidade de riso, embora eu tenha focado no caso brasileiro nessas primeiras linhas,
não é uma especificidade da imprensa alternativa feminista do Brasil. Bem como os impressos
brasileiros, impressos argentinos, bolivianos, uruguaios, entre outros, exploraram o riso como um
meio de reflexão genuinamente feminista. Essa aproximação não é acidental. Ana Alice Alcântara
Costa (2005, 13) aponta a América Latina, de maneira geral, como palco de emergência de
movimentos de oposição a governos autoritários, ai inclusos estão os movimentos feministas.
Baseada nessas constatações, de que o riso machista não era a única forma de riso desse
período e de que os feminismos da América Latina e, mais especificamente, do Cone Sul 2,
constituíram-se de maneira bastante específica, que elaboro algumas questões iniciais para esse
artigo3: O riso feminista enquadra-se nos sentidos do cômico e do risível até então estabelecidos? O
uso de estereótipos é função obrigatória na provocação do riso? Pode o riso feminista, com
evidentes intenções transformadoras, servir de instrumento de revolução e reflexão?
Inspirada por essas perguntas pretendo explorar 4 charges/tiras dos seguintes periódicos:
Mulherio4 e Brasil Mulher5 do Brasil; La Cacerola6 do Uruguai, Persona7 da Argentina8. Todos eles

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"Do feminismo ao gênero - circulação de teorias e apropriações no Cone Sul (1960-2008)", projeto desenvolvido no
Laboratório de Estudos de Gênero e História da UFSC, coordenado pela professora Drª Joana Maria Pedro, vem
demonstrando inúmeras ligações e relações que constituíram os feminismos do Cone Sul.
3
Esse artigo compõe algumas reflexões que integram os questionamentos iniciais de meu projeto de doutoramento
iniciado no primeiro semestre de 2012 junto ao Programa de Pós-Graduação em História Cultural da Universidade
Federal de Santa Catarina, intitulado: “Quem ri por último, ri melhor: O humor na imprensa feminista do Cone Sul
durante as ditaduras civil-militares (segunda metade do século XX)”.
4
"Na década de 80, pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas envolvidas com o estudo da condição feminina no Brasil
preocuparam-se em sistematizar informações sobre o assunto. No início, a proposta era compor um boletim de notícias
que fizesse o intercâmbio entre as diversas instituições e estudiosos do tema. [...] Em sua edição número zero, o grupo
constituído de pesquisadoras e jornalistas deixa entrever o fio condutor que permeará o jornal quando anunciam o
compromisso em tratar as matérias veiculadas "de uma maneira séria e conseqüente, mas não mal-humorada, sisuda ou
dogmática..." Assim, declarada de público a intenção, levam a letra impressa à risca e transformam, claro, que entre
altos e baixos, o singular boletim de março/abril de 1981 em um tablóide efervescente e precursor de tendências, até
1988." Disponível em: http://www.fcc.org.br/conteudosespeciais/mulherio/historia.html Acesso em 24/07/2012.
5
Jornal produzido entre 1975 e 1980, primeiramente em Londrina, e mais tarde em São Paulo, publicado por grupo
denominado Sociedade Brasil Mulher, composto por militantes do Partido Comunista do Brasil (PcdoB), da Ação
Popular Marxista Leninista (APML) e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8), entre outras.

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são periódicos alternativos feministas que circularam durante as ditaduras civil-militares em seus
respectivos países, bem como por outros países do Cone Sul9. A seleção das imagens foi movida
pela força temática de cada uma delas.
Nesse sentido, o presente texto, está dividido em 2 eixos: o primeiro deles tem como
objetivo fazer uma breve reflexão sobre o riso machista e misógino que, historiograficamente, teve
n’O Pasquim o seu principal representante; no segundo eixo pretendo trazer alguns exemplos de
charges e tirinhas feministas que circularam nos diferentes países do Cone Sul, divulgando uma
modalidade de riso bastante peculiar.

O riso destruidor

Inúmeros estudos já se dedicaram a refletir sobre décadas de antifeminismo na imprensa


que, por meio do humor, do riso, da chacota e da piada, ocuparam-se de desqualificar tudo e
todas/todos que estariam vinculas/os a um dos movimentos sociais mais importantes do século XX.
A imprensa alternativa, mais especificamente O Pasquim (1969-1991), foi acusado por Rachel
Soihet (2005, 609) de promover uma espécie de violência simbólica, através de suas charges e
entrevistas, contra mulheres que buscavam a transformação social; a grande imprensa, teoricamente,
pouco teria se esforçado para publicizar a causa feminista. Já a imprensa feminista do Cone Sul,
incluída a brasileira, de maneira geral, ainda não foi alvo de reflexão no que se refere a sua
exploração do riso, do humor e da piada como instrumentos políticos válidos de transformação.
Embora muitas charges e tirinhas sejam localizadas em variadas publicações, do ponto de
vista teórico o humor é costumeiramente levado em consideração em vista de seu potencial danoso,
capaz de construir estereótipos e fortalecer-se sobre eles, fazendo rir por meio da chacota, da piada,
da ridicularização de algo ou alguém. Quentin Skinner (2002, 9) destaca que por meio do riso

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Sediado em Montevidéu, Uruguai, este periódico foi uma publicação do Grupo de Estudios Sobre la Condición de la
Mujer en el Uruguay (GRECMU). Temos notícia de que se manteve ativo entre 1984 e 1988, com tiragem e
periodicidade irregulares.
7
A revista feminista Persona circulou na Argentina em momentos distintos e com periodicidades diferentes, com edições
mensais a partir de outubro de 1974, as quais mais tarde perderam a periodicidade, sendo publicada até meados da
década de 1980. Persona foi editada pelo grupo MLF (Movimiento de Liberación Femenina), cuja líder era María Elena
Oddone. Em 1973, o grupo inaugurou um escritório, formaram uma biblioteca, organizaram conferências e debates
sobre temas feministas e iniciaram contato com importante grupo do período, a UFA – Unión Feminista Argentina.
8
Esses são alguns dos impressos que integram minha pesquisa. Conto ainda com material dos seguintes periódicos: Nós
Mulheres (Brasil), Nosotras (França), Cotidiano Mujer (Uruguai), Ser Mujer (Uruguai), Enfoques de Mujer (Paraguai),
Lamarafona (Paraguai), La Escoba (Bolívia), Mujeres (Argentina), ISIS (Roma). Ainda não foram localizados
periódicos chilenos.
9
Todos os periódicos consultados estão disponíveis em formato digital no Laboratório de Estudos de Gênero e História
– LEGH - da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC - em Florianópolis. O LEGH é coordenado pelas
professoras Drª. Joana Maria Pedro e Drª. Cristina Scheibe Wolff.

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podemos arruinar a causa do adversário e persuadir a audiência por meio do insulto. Nessa
perspectiva o humor é compreendido como ferramenta eficaz no combate a certas posturas políticas,
sociais, culturais e etc. Henri Bergson (1978, 98) destaca que o riso é um gesto com significação e
alcance sociais, mas que ao final serve como castigo que se estabelece por meio da humilhação.
Apesar de estar considerando a segunda metade do século XX como referente, destaco que o humor
que tinha como alvo os feminismos já era produzido desde as primeiras décadas, durante o que se
convencionou chamar de Primeira Onda feminista10.
A imprensa alternativa, compreendida nesse texto como o fenômeno de jornais surgidos
durante as ditaduras em oposição aos regimes políticos vigentes 11, segundo Anne Marie-Smith,
tinha alguns interesses de cobertura: “Entre as matérias cobertas pela imprensa alternativa contam-
se a política, cultura, humor, ficção, questões raciais, feminismo, direitos dos homossexuais e
assuntos comunitários” (SMITH, 2000, 58-59). Apesar dos temas inovadores que ocupavam as
páginas das mais diferentes publicações alternativas, boa parte destes impressos abandonava o
humor politicamente desafiador em benefício do humor absurdamente racista e sexista (SMITH,
2000, 64). Contudo, essa assertiva desconsidera uma informação importante.
Elizabeth Cardozo, inserindo a imprensa feminista nesse universo alternativo, averiguou em
sua pesquisa a existência de nada menos que 75 periódicos feministas no Brasil (CARDOZO, 2004,
11), número bastante significativo se levarmos em consideração que a obra de Bernardo Kucinski
(1991) listou o número de 6 periódicos. Essas informações são preciosas para pensarmos a
importância da imprensa feminista nesse momento, não só de oposição ao governo, o que a vincula
à esquerda, mas como evidência da organização dos movimentos feministas e, notadamente, como
exploradora do riso como ferramenta de subversão. O riso, nesses periódicos, é explorado
politicamente, como gesto subversor.
Em tempos de discussão sobre os politicamente corretos, neste trabalho em que pretendo
mapear e compreender a exploração do humor como gesto político, o riso assume uma
performatividade transgressora, caráter que pode apontar para a construção de novos caminhos a
serem trilhados pelos movimentos feministas atuais. Pensar o humor como marcador de
subjetividades, como aponta Joana Maria Pedro (2009, 11), talvez, seja uma das maneiras de
perceber sua eficácia política, na medida em que o riso povoa memórias de forma singular.

10
Ver, a esse respeito, SOARES, Ana Luiza Timm. Inventando Gênero: feminismo, imprensa e performatividades
sociais na Rio Grande dos “Anos Loucos” (1919-1932). Dissertação de mestrado em história. Programa de Pós
Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, 2010.
11
Ver, a esse respeito, WOITOWICZ, Karina Janz. Recortes da Mídia Alternativa: histórias & memórias da
comunicação no Brasil. Ponta Grossa: Editora da UEPG, 2009.

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O riso feminista

Mikhail Bakhtin afirma que o riso “[...] jamais poderia ser um instrumento de opressão e
embrutecimento do povo. Ninguém jamais conseguiu torná-lo inteiramente oficial. Ele permaneceu
sempre uma arma de liberação [...]” (BAKHTIN, 2002: 81). Nessa lógica, penso que os periódicos
feministas, combatentes de uma ordem social e cultural estabelecida, ao contrário de muitas outras
publicações, fizeram uso do riso como instrumento de liberação, de reflexão e não como castigo e
insulto a serem imputados a adversários. Nas charges e tirinhas feministas, o riso assume seu
potencial político e é esse potencial que denuncia seu amplo uso como ferramenta mobilizadora. A
partir dessa premissa que selecionei 4 charges/tiras que demonstram a propensão feminista de
entregar-se ao riso, contrariando a lógica do riso que o supõe sempre como instrumento de
ridicularização.
Do ponto de vista temático, as charges e tirinhas publicadas em periódicos feministas são
muito diversas. Temas muito comuns a causa feminista são frequentes, exemplos: trabalho
feminino, contracepção, maternidade, casamento, educação feminina, violência, igualdade entre os
sexos. Mas outros motes também são bastante comuns, exemplos: democracia, saúde, carestia,
pobreza. Apesar da riqueza de possibilidades, selecionei imagens de temas específicos, são eles:
igualdade, trabalho doméstico, aborto e democracia. Pretendo dissertar brevemente sobre cada
charge/tira, no intuito de mostrar como o riso reflexivo foi apropriado pelas feministas
produtoras/leitoras dessas publicações como instrumento de revolução.
Em tirinha do periódico feminista Mulherio, assinada por Ciça12, um/uma pintinho/pintinha
questiona: “Mãe, qual é o feminino de ser humano?” Após uma breve reflexão, ao final, a galinha
responde: “Pra muita gente, o homem é “ser humano” e a mulher “será humana””?”...13. Em
expressivo diálogo com o contexto dos movimentos feministas brasileiros do período, o riso que
busca ser promovido não só pelo texto, mas pela imagem reproduzida a seguir, surge articulado a
uma discussão relevante, da inumanidade das mulheres.

12
Ciça publicou em jornais como O Pasquim e Folha de S. Paulo. A personagem Bia Sabiá, muito famosa, foi criada
exclusivamente para circular em publicações feministas (GOIDANICH & KLEINERT, 2011, 95).
13
CIÇA. Mulherio. Brasil. Junho/Julho de 1981, edição 2. p. 12.

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CIÇA. Mulherio. Brasil. Junho/Julho de 1981, edição 2. p. 1214.

A constatação de que “a mulher será humana” sinaliza mais do que um jogo de palavras bem
humorado, e sim o vislumbre de mudanças, mudanças que vinham sendo reivindicadas pelos
feminismos de segunda onda15, não só brasileiros. A tirinha, portanto, faz uso do desenho, da
metáfora com animais e de uma linguagem simples para provocar o riso e a reflexão. Em um
universo dominado pelos homens, Ciça, autora da referida tirinha, é uma das raras mulheres
atuantes e de talento reconhecido no cartunismo brasileiro.
A segunda tira que trago em destaque é também de autoria de Ciça. Nela, um dos principais
temas de discussão feminista entre as década de 70 e 80, é colocado em pauta: o trabalho
doméstico. Como pode ser observado na imagem da tira bastante conhecida de Bia-Sabiá, o diálogo
é colocado como conflito a partir do momento em que a representante “mulher” informa ao
personagem “masculino” sua intenção de aproveitar o final de semana para o descanso, descanso
cujo custo “masculino” é: “Arrumar minha própria bagunça, preparar meu lanche?”.

14
- Mãe, qual é o feminino de ser humano? – Ser humano é uma expressão que parece não ter feminino... Se bem que
haja controvérsias... Existem dúvidas... Por exemplo: Pra muita gente, o homem é “ser humano” e a mulher “será
humana””?”...
15
Didaticamente o feminismo é dividido em duas ondas: a primeira refere-se às manifestações que reivindicavam a
ampliação dos direitos civis de mulheres no final do século XIX e início do século XX; a segunda faz referência as
manifestações iniciadas na década de 1960 em que as bandeiras de luta estavam articuladas a questões de sexualidade e
de subjetividade. Apesar dessa estrutura de ondas ser funcional, é importante pensarmos o feminismo como um
acontecimento e que, portanto, se desenvolve de diferentes maneiras em variados espaços.

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CIÇA. Brasil Mulher. Brasil. Edição 11, 1978. P.1116.

A tira, nitidamente, procura desconstruir o trabalho doméstico como naturalmente feminino,


libertando-se de estereótipos convencionais que vinculam a mulher ao lar. Em um esforço de
reflexão, a autora coloca em suspensão as diferenças que demarcam a distribuição de tarefas
domésticas. O tema do trabalho doméstico é frequente em charges e tirinhas de todos os periódicos
até agora levantados e oscilam entre a questão do trabalho doméstico gratuito, desempenhado por
mães e esposas, e o trabalho doméstico desempenhado por mulheres pobres que, sem oportunidades
de empregos mais valorizados, fazem uma jornada dupla. O tema trabalho, de maneira geral, foi um
grande mote de debate dos feminismos de Segunda Onda.
A tirinha da sequência, extraída de periódico feminista argentino, colabora no reforço da
tese de que as feministas exploraram o humor como ferramenta de intervenção e reflexão mesmo
em temas difíceis. O aborto, representado como um problema moral nos debates de ordem política,
na imagem reproduzida apresentou-se como uma questão de classe. O riso, nesse caso como em
outros, serve a uma causa e em nada contribui para desqualificar uma proposta de transformação
social.

16
Título Bia Sabiá: – Ah, que jóia! Adoro domingos... Hoje vou pescar na represa... – Eu não... Estou cansada. A
fábrica essa semana estava uma dureza! Vou aproveitar para ler um pouco... Ver televisão. Não fazer nada... – Depois
que você arrumar a casa? – Não... Hoje é domingo... Cada um pode arrumar sua própria bagunça. – E o almoço quem
faz? E o lanche? – Cada um prepara o seu, uai... – Arrumar minha bagunça? Preparar meu lanche? Quer dizer que vou
ter que trabalhar num domingo?

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Autoria ilegível. Persona. Argentina: Setembro/Outubro de 1986, edição 16. p. 617.

O debate sobre aborto e a concernente discussão sobre o direito do corpo, foi outra bandeira
levantada pelos movimentos feministas, no entanto com muitas ressalvas. No Brasil nomes como
Marta Suplicy e Branca Moreira Alves defendiam abertamente a legalização do aborto, contudo, o
assunto permanece um tabu na sociedade brasileira. Na Argentina, em que circulou a tirinha em
destaque, o aborto é ainda hoje apontado como um problema de classe18.
A próxima tira em destaque, retirada do periódico uruguaio La Cacerola, articula o tema
eleições e trabalho doméstico. É importante destacar que inicialmente, ou seja, no primeiro quadro,
o que é salientado é a igualdade de direitos sugerida pelos balões de fala em que mulher e homem
cumprimentam-se e acentuam a alegria de poder votar no dia das eleições. Na sequência, contudo, a
mulher dedica-se a funções domésticas, com quadrinhos silenciosos em que apenas a imagem
comunica a rotina de cozinhar, limpar, cuidar das crianças. No final do dia, quando o homem já está
acomodado na sua poltrona, sugerindo a hora do descanso, a mulher dirige-se à porta sob a
afirmação: “Las mujeres siempre dejando lo importante para ultimo momento”.

17
Preguntas que debe contestar uma mujer pobre para se le hasa um aborto: ¿Fue violada? ¿Sufrió um incesto? ¿É dió
cuenta del hecho dentro de los 60 días? ¿Tuvo uma entrevista para ser aconsejada? ¿É hecho los informes? ¿Sufrió
danos físicos graves? ¿Sin el consentimiento de sus padres? Etc... Etc... Etc... Preguntas que debe contestar uma mujer
rica para que se le hasa um aborto: ¿É contado o cheque?
18
Ver, a esse respeito, CHANETON, July & VACAREZZA, Nayla. La intemperie y lo intempestivo: experiencias del
aborto voluntario en el relato de mujeres e varones. 1ª ed. – Buenos Aires: Marea, 2011.

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Autoria ilegível. La Cacerola. Uruguai, nº. 3, novembro de 1984. P 519.

Assim, a tira que teve um início promissor, quando homem e mulher festejavam a
possibilidade do voto, um direito igual, é finalizada com a assimetria de direitos que permanecia no
espaço privado, representada pela desvalorização do trabalho doméstico feminino, visto como "não
importante".
As charges e tiras trazidas em destaque nesse texto são apenas uma pequena amostra de um
conjunto composto por centenas de charges, tirinhas e quadrinhos que circularam em periódicos
feministas do Brasil, Paraguai, Argentina, Bolívia e Uruguai. Por meio delas, feministas de todo o
Cone Sul procuraram refletir sobre angústias de mulheres, feministas ou não. A opção pelo uso
desse tipo de linguagem é a demonstração do esforço de divulgação da causa feminista que
procurou promover sua visão de mundo para além dos textos teóricos.

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Título: Dia de Elecciones. – Me voy a votar temprano ¡Estoy tan emocionado! – ¡ Yo tambien! Me apurare todo lo
que pueda. – Las mujeres siempre dejando lo importante para el ultimo momento.

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Considerações finais

A historiografia que tem focado no papel fundamental do humor no ataque aos movimentos
feministas tem desempenhado uma função essencial para que possamos compreender a
complexidade que constituiu os feminismos no Brasil e nos demais países do Cone Sul. Na medida
em que identifica o conservadorismo dos alternativos de esquerda, expressados pelo riso machista e
misógino, esses escritos apontam a luta dupla que era enfrentada por essas mulheres, além de
acentuar o conflito existente dentro da própria esquerda, lugar em que, notadamente, a maioria das
feministas militava. As centenas de charges e tirinhas publicadas em periódicos feministas,
problematizando causas e bandeiras dos feminismos, bem como outras preocupações, vem
enriquecer esse debate.
A constatação da existência de um riso feminista que escapa dos modos convencionais do
riso, com nítidas preocupações sociais, abre novos caminhos de pesquisa e inaugura outras formas
de compreensão dos feminismos daquele período. Além de questionar a fama de feministas,
historicamente chamadas de mal-humoradas, o riso feminista anuncia não só o esforço de
divulgação pleno do feminismo, visto que não se prende a textos teóricos e de leitura limitada, mas
também a apropriação do riso como um instrumento de reflexão e, consequentemente, de revolução.
Ao mostrarem que o riso não necessariamente precisa estar baseado em estereótipos e que este pode
ter uma função política eficaz, as feministas (re)criam uma forma própria de fazer rir.
Os caminhos assumidos pelo riso feminista hoje, de certo modo, ressaltam a funcionalidade
dessa modalidade de riso. Um exemplo disso pode ser visto nos inúmeros cartazes e palavras de
ordem escritas e gritadas ao redor do país no mês de maio, momento em que acontecem a maioria
das Marchas das Vadias no Brasil. A irreverência e o bom humor de dizeres e palavras de ordem é
inegável, denunciando que, talvez, mesmo sem querer, esse riso tenha feito escola.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de


François Rabelais. São Paulo: Editora HUCITEC, 2002.
BERGSON, Henri. O riso – Ensaio sobre o significado do cômico. Rio de Janeiro: Guanabara,
1978.
CARDOZO, Elizabeth. Imprensa feminista brasileira pós-1974. Dissertação de mestrado defendida
na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2004.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
COSTA, Ana Alice Alcântara. O movimento feminista no Brasil: dinâmicas de uma intervenção
política. In: Gênero. Niterói, v. 5, n. 2, p. 9-35, 1 sem, 2005. Disponível em:
http://www.ieg.ufsc.br/admin/downloads/artigos/01112009-115122costa.pdf Acesso em 20 de maio
de 2011.
DELIGNE, Allan. “De que maneira o riso pode ser considerado subversivo? In: LUSTOSA, Isabel
(org). Imprensa, humor e caricatura: a questão dos estereótipos culturais. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2011.
GOIDANICH, Hiron Cardoso & KLEINERT, André. Enciclopédia dos Quadrinhos. Porto Alegre,
RS: L&PM, 2011.
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. São
Paulo: Scritt, 1991.
PEDRO, Joana Maria. Memória, Gênero e “Artes” do Feminismo. Texto apresentado no II SIGAM
– Simpósio Internacional Gênero Arte e Memória, na Universidade de Pelotas, entre 2 e 4/12/2009.
pp. 1-14.
SKINNER, Quentin. Hobbes e a teoria clássica do riso. São Leopoldo: Editora da Unisinos, 2002.
SMITH, Anne Marie. Um acordo Forçado: o consentimento da imprensa à censura no Brasil. Rio
de Janeiro: FGV, 2000.
SOIHET, Rachel. Zombaria como arma anti-feminista: instrumento conservador entre libertários.
In: Revista Estudos Feministas, vol. 13, n; 3, setembro-dezembro, 2005, pp. 591-611.

Sites consultados
http://www.fcc.org.br/conteudosespeciais/mulherio/historia.html Acesso em 24/07/2012.

The feminist laughter in the alternative press (1970-1980)


Abstract: For centuries the laughter has been studied mainly by phylosophers and psychoanalysts,
who faced it as a social gesture (Henri Bergson), as a tool for destruction of ideologies (Quentin
Skinner), as a masked melancholy (Sigmund Freud). Amid countless uses, the feminist laughter,
that subverts over the function of not to exploit stereotypes in a conventional way, which is a huge
focused gender for laughter conceptuation, has not been object of analysis, either by decades of
persecution of feminists, either for the low character of the binomy serious/fun. From this
perspective, this paper aims to reflect on the uses of laughter explored by feminists, analysing, for
that, cartoons and comic strips published in feminist journals that circulated in the Southern Cone
during the so-Called second feminist wave (second half of 20th Century). Exploring this sources, I
seek to answer some questions: Does the feminist laughter picture the sense of comic and laughable
stablished until then? Is the use of stereotypes a mandatory function to provoke laughter? Is the
feminist laughter, full of clear transformative intentions, able to work as an instrument for
revolution and reflection?
Keywords: Feminist laughing. Feminist periodicals. Instruments for revolution.

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