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REFLEXÃO

A CRIMINALIDADE É ALGO EXCEPCIONAL


OU INTEGRA A SOCIEDADE DE CLASSES
DE FORMA ORGÂNICA?
(desmistificando alguns conceitos tradicionais da esquerda utópica)

UMA VISÃO EQUIVOCADA

O fracasso no enfrentamento da criminalidade nas sociedades modernas deve-se


em grande parte à falta de clareza das instituições quanto à natureza, gênese e dinâmica
do fenômeno e sua verdadeira inserção na sociedade.
Não há uma abordagem científica ou minimamente objetiva da questão. Predomina
até hoje, o subjetivismo romântico do século XIX, pelo qual o crime seria um fenômeno
marginal à sociedade, provocado, ora por indivíduos anormais (teoria de Lombroso), ora
por injunções econômicas que levariam os pobres a optarem pela criminalidade (Vitor
Hugo).
Reforçando essa linha, pode-se citar o otimismo ingênuo herdado do Iluminismo
francês (século XVIII), segundo o qual o progresso humano seria unidirecional e infinito,
conduzindo inevitavelmente à felicidade e à harmonia social, uma vez que o homem
seria bom por natureza, sendo corrompido por seu meio (Jean-Jacques Rousseau).
Na época (e ainda hoje), desprezava-se a evidência de que o ambiente humano é
criação do próprio homem, e, portanto, carrega junto suas características, por mais
contraditórias que sejam, como é o caso do gregarismo e do individualismo, num
conflito sempre irresolvido.

GÊNESE INDIVIDUAL

A mera observação da realidade desmente as interpretações subjetivas: a


criminalidade se dá em todas as camadas sociais, sem distinção de cor ou credo, ainda
que com aparências diferenciadas e papéis diferenciados para ricos e pobres, como em
qualquer outra atividade humana.
Também é verdade que, embora haja indivíduos delituosos com graves desvios
congênitos de personalidade, eles estão longe de constituir a maioria ou sequer uma
parte significativa da massa delinqüente. Na maior parte dos casos, tais desvios são
conseqüência da prática reiterada de ações anti-sociais, uso de drogas, e um estilo de
vida desregrado, sem limites, sem normas de conduta, sem responsabilidades, sob a

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égide da insegurança e do medo, disfarçados por uma truculência crescente e


incontrolável.
Recentemente, em Serra Leoa, na África, toda uma geração de crianças foi treinada
para cometer crimes de guerra. Sucesso total. Crianças de 10, 11 e 12 anos cometeram
atrocidades semelhantes às praticadas por adultos em situações semelhantes (ditaduras
sangrentas, guerras, ocupações de território estrangeiro, etc.)
O adestramento em atividades anti-sociais é mais fácil que o adestramento em
normas sociais de convivência, porque lida com emoções primárias: medo, raiva,
desejo, enquanto o adestramento em normas sociais pressupõe o auto-controle e a
racionalização dos comportamentos – atividades inteligentes e voluntárias.
Outra crença sem base real, é de que qualquer comportamento indesejado pode
ser modificado, seja pela força, seja pela persuasão. Ignora-se aí que o fator
escolha/opção (antigamente chamado de livre arbítrio) é próprio do ser humano,
decorrendo de sua inteligência e capacidade de abstração. Daí decorre tanto o raciocínio
lógico como o pensamento simbólico e os juízos valorativos, estes formados em época
precoce.
A escola behaviourista de psicologia comportamental, por muito tempo quis
transpor suas pesquisas com animais ao específico humano. Isto é, o comportamento
dos homens, como o dos animais, se guiaria pela relação direta custo/benefício: as
ações com bons resultados seriam sempre as escolhidas, e as ações com maus
resultados, seriam evitadas.
Não é preciso refletir dois minutos para perceber que isso não se sustenta a não
ser nos primeiros anos de vida: as motivações humanas são muito mais complexas que
as animais, e se ligam prioritariamente aos valores que as pessoas foram adquirindo em
sua formação e experiência de vida, à auto-imagem que se fazem, e à sua aceitação pelo
grupo.
É assim que se explica que uma adolescente se deixe morrer de fome para
tornar-se magra e elegante; e um jovem seja arrastado a desafios idiotas que lhe podem
custar a vida, apenas para exibir-se à turma. Nenhum animal é capaz de desempenhos
tão contrários a seus verdadeiros interesses.

CRIMINALIDADE ORGÂNICA

Isso posto, é tempo de compreender que a criminalidade é inerente a qualquer


sociedade estamental ou de classes, isto é, quando não há igualdade entre seus
membros.
Qualquer agrupamento humano precisa de regras e sanções para subsistir, e, para
tal, estabelece um código de conduta com suas respectivas sanções em caso de
descumprimento.
Esse código limita necessariamente a ação dos indivíduos e dos grupos internos.
Assim, quando alguns adquirem maior força ou poder que os outros, tratam logo de
montar esquemas paralelos aptos a burlar regulamentos e restrições, a fim de obter
maiores vantagens (ainda o individualismo contra o ser coletivo).
Não lhes interessa quebrar publicamente o regimento oficial da comunidade, pois
assim estariam proporcionando aos outros as mesmas vantagens que pretendem e, na
disputa que se seguiria, a comunidade implodiria, e cada um iria para seu lado.

A atividade criminosa necessita da atividade produtiva normal e do trabalho


regular, pois se nutre deles – uma vez que nada produz, apenas faz circular os produtos
e serviços.

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Sua situação de excepcionalidade – fora das regras estabelecidas – é condição


sine qua non para que o crime tenha rendimentos superiores às demais atividades. Sem
pagar impostos, sem se submeter a regras de convivência, sem assinar carteiras de
trabalho a seus asseclas (em teoria, seus assalariados), usando a força como fator de
disciplina interna e entre grupos análogos, a flexibilidade, rapidez e lucratividade da
economia ilegal mostram-se muito superiores às da economia formal.
Como do nada, nada se tira, a base financeira e material da atividade ilegal é
fornecida pelos bastidores da atividade legal: sistema financeiro, sonegações (caixas 2),
verbas públicas desviadas, etc.
Em 1995, eram l trilhão de dólares que asseguravam os circuitos do narcotráfico,
do contrabando de armas, da prostituição feminina, homossexual e infantil, das redes de
pornografia virtual e impressa, do turismo sexual, dos jogos de azar, do tráfico de
órgãos humanos e de crianças para a retirada desses órgãos ou prática de pedofilia, e
outras proezas inventadas pelo homem, complementadas por um amplo e diversificado
sistema de “lavagem de dinheiro”.

PRECONCEITOS
O ciclo das ditaduras latino-americanas dos anos ’70, além do adiamento indefinido da solução
dos problemas continentais, deixou algumas seqüelas psicológicas até hoje não resolvidas.
Como o preconceito e/ou superstição relativos às Forças Armadas, isto é, a recusa a analisar de
forma objetiva a questão militar e a defesa armada da soberania, embora qualquer um reconheça
facilmente o papel dos canhões, mosquetes e trabucos na derrota dos povos indígenas da América,
e os exemplos recentes do Afeganistão e do Oriente Médio mostrem quanto estrago podem fazer
o mais armado contra o menos armado.
Essa atitude “não me falem disso”, emocional e supersticiosa, levou até o momento, a que não se
tentasse equacionar a inserção social daquele segmento de servidores públicos, como se eles
fossem elementos estranhos à própria sociedade e ao conceito de cidadania, assimilados como
fetiches de um Poder Mágico e Totêmico (viu-se isso há pouquíssimo tempo nas eleições peruanas,
quando o mito superpôs-se ao real.
Um segundo preconceito refere-se à palavra “repressão”, reflexo condicionado adquirido no
mesmo período. Isto é, antes de considerar o mérito, razões e natureza objetiva de tal fenômeno
em cada momento e/ou instância da vida social, reage-se emocionalmente pela negação,
desconsiderando a obviedade de que a organização estatal é inevitavelmente coercitiva; que o
poder de normatização, fiscalização e punição relativos à observância dos regramentos civis e
legais, são claramente repressivos, embora variados, como o corte de serviços por dívida, multas,
interdições, remoções, arrestos, confiscos, cassações, desapropriações, demolições, suspensão de
direitos, detenções ou reclusões, tanto por ordem administrativa como por sentença judicial.
O terceiro preconceito (na acepção de um pré-julgamento de uma situação) é a visão romântica
do sociopata, veiculada pela cultura norte-americana de mass media, em que o “bandido”
aparece, ora como o rebelde, inconformado com as regras sociais, ora como o pobre coitado
pressionado pela necessidade numa sociedade cruel, também favorece uma visão distorcida do
fenômeno do marginalismo criminal, como inerente às classes desfavorecidas, numa evidente
manifestação de preconceito elitista e pequeno burguês, que simplesmente ignora a realidade dos
fatos.
Apenas uma sociedade total e plenamente auto-gestionária (anarquista), com um alto
grau de civismo e auto-disciplina, poderá dispensar o poder coercitivo de leis e
instituições, no momento em que os cidadãos forem o bastante educados e
generosos para respeitar espontaneamente os direitos de seu semelhante.

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CONDIÇÃO HUMANA
O comportamento egoísta, por vezes prepotente (quando apoiado na força),por
vezes desleal e traiçoeiro, faz parte do repertório comum ao ser humano. Eva acusou
Adão, e Adão acusou Eva, cada um procurando defender-se pela delação e incriminação
do outro. Caim matou Abel por ciúme, despeito ou inveja, e nenhuma dessas
personagens era favelada ou passava fome.
É através de uma formação precoce e uma educação voltada para a solidariedade,
as atitudes afetivas, a colaboração e o reconhecimento dos direitos do outro, que o ser
humano se torna um SER ÉTICO.
Essa formação precoce vem não apenas da família nuclear, como da cultura
dominante vigente. E, certamente, também das peculiaridades individuais e subgrupais.
Igreja, escola, hábitos familiares e de vizinhança, meios de comunicação, estabelecem
escalas de valores – nem sempre coincidentes – que influenciarão o indivíduo a montar
seu próprio código de comportamento, e a valorizar, a mais ou a menos, atitudes e
ações.
No mundo globalizado, temos assistido a uma progressiva e ininterrupta
degradação dos valores éticos e das relações humanas, com a glorificação oposta da
permissividade total, da banalidade, da violência gratuita, da sexualidade grotesca, do
narcisismo, e de todos os anti-valores caros tanto ao capitalismo selvagem como ao
neo-colonialismo, que necessitam da desintegração social e moral das populações
parasitadas (pouco pão, muito circo; muita competição, pouca colaboração), em direção
ao triunfo universal da conhecida “Lei de Gérson” (levar vantagem em tudo).
Não é correto atribuir os altos índices de criminalidade às populações pobres.
Pelo contrário, é junto delas que melhor se conservam os valores tradicionais dos laços
de sangue (familiares), da religião, dos costumes, justamente por estarem elas menos
expostas aos sofismas da amoralidade modernosa, em que caem tanto a direita
pragmática, como a esquerda utópica (que se esforça em amalgamar e digerir uma
mistura de contra-cultura dos anos “beat”, com franciscanismo e estruturalismo –
conceitos antes de realidades).
Diferente do que se divulga, a criminalidade por atacado é (e sempre foi)
patrocinada por instituições legais e organizações sócio-político-econômicas, que nada
têm de pobrezinhas, desvalidas ou ignorantes.

A BANDIDAGEM ARISTOCRÁTICA

A pirataria dos séculos XVI e XVIII não foi obra de infelizes desesperados, mas
parte de uma estratégia política e econômica bancada pelas grandes casas reais e a alta
burguesia européia (os eventuais free lancers sempre foram devidamente enforcados). O
narcotráfico se tornou um negócio internacional e altamente lucrativo sob a égide da
impoluta Rainha Vitória, da Grã Bretanha, que desencadeou três sangrentas Guerras do
Ópio (século XIX) para obrigar o imperador chinês a descriminalizar o tóxico, e permitir
o consumo livre da mercadoria, então produzida na Pérsia (atual Irã) e comercializada
pelos ingleses.
Nos anos ’70 do século XX, as contas numeradas suíças financiavam o mesmo
tráfico, com pleno conhecimento das autoridades, e os laboratórios industriais europeus
refinavam a pasta de ópio, produzindo sais de morfina e heroína, embarcados para o
mundo pela conexão de Marselha, na França.

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Foi por decisão política de cúpulas do Primeiro Mundo, que se instituiu a


juventude como principal público-alvo da droga, no propósito de desmantelar sua
incipiente organização política, de inspiração anarquista e social-utópica, com algumas
pitadas de espartaquismo (vertente socialista de Rosa Luxemburgo e Lübneckt). Ao final
dos anos ’60, tivemos a rebelião dos jovens na França , em maio de 1968; a revolta
contra a guerra do Vietnã e a sociedade de consumo, nos Estados Unidos; a revolução
cultural chinesa contra o burocratismo e o fisiologismo político; e, no Brasil, o último
congresso da UNE militante.

MÁFIAS
No Brasil, a Máfia tradicional começou a instalar-se mais efetivamente nos anos
’60, através dos cassinos clandestinos (todas as propostas para liberar os jogos de azar
têm por base esses interesses) e o tráfico de cocaína, ainda em pequena escala e
concentrado em áreas de turismo, com distribuição voltada à alta classe média.
Na época, a cocaína não tinha a importância atual, pois a Pérsia do Xá Rheza
Pahlevi, um grande amigo dos Estados Unidos, fornecia a morfina e heroína que o
mundo ocidental consumia (é interessante lembrar o uso de tóxicos entre os recrutas da
guerra do Vietnã com o beneplácito de seus superiores).
Com a revolução islâmica no Irã (ex-Pérsia), em 1979, e a execução em massa de
bandidos e traficantes, os ocidentais foram obrigados, não apenas a renunciar ao
petróleo baratinho daquele país, como aos frutos de suas papoulas.
Deu-se o boom da cocaína e dos cartéis colombianos. Convém não esquecer que
a planta coca foi considerada medicinal, dela retirando-se princípios ativos importantes
para a Medicina, como analgésicos e anestésicos, e até fórmulas de refrigerantes. De
uso tradicional entre as populações andinas, que mascava (e masca) suas folhas, não
passava (não passa) de um estimulante como o café (cafeína), o chá e o chimarrão
(teína), um tanto mais potente.
Foi necessária a intervenção de capitalistas interessados em investir na produção
em escala com tecnologia específica, para que dessas folhinhas se extraísse uma droga
concentrada capaz de provocar dependência química e psíquica e alteração da
percepção e do comportamento humanos.
Posteriormente, com o desmantelamento da União Soviética, formou-se a Máfia
russa, composta por funcionários veteranos e ex-militares do velho regime, que se
apropriaram dos arsenais desmobilizados pelo fim da Guerra Fria, numa rede de
contrabando de armas, tão agressiva como a norte-americana, mais antiga no ramo.
Bem antes disso, a Máfia norte-americana já investia pesado na pornografia e na
prostituição, tanto adulta como infantil. Pornoshops, revistas de pedofilia e outras
variações sexuais (hoje sites eletrônicos), turismo sexual, espalharam-se pelo mundo de
forma articulada, na esteira da derrota dos sonhos socialistas. Tais atividades foram
assumidas pelo crime organizado sob diversas capas e disfarces, com muito bom
dinheiro, fornecido pelos caixas 2 de grandes empresas. Somaram-se a isso, práticas
mais modernas, como o tráfico de órgãos humanos e de crianças para os mesmos fins.
Em meados da década de ’90, como foi dito antes, um trilhão de dólares
escriturais financiava a festa. Escriturais, quer dizer, virtuais, como é de praxe no
capitalismo especulativo pós-industrial.
BRASIL

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O Brasil, com sua corrupção endêmica, sua grande extensão e população, a


brandura de suas leis penais, a fragilidade de seu Judiciário, a inexpugnabilidade de
algumas de suas regiões, só podia tornar-se um pólo de atração para todos esses
negócios. Nos últimos anos, vêm sendo estruturados os comandos regionais das várias
máfias, que elegem seus representantes, inclusive para o Congresso Nacional. Hoje, o
Brasil, em escala infinitamente maior, repete Cuba na época de Fulgêncio Batista.
É essa realidade que precisamos encarar para compreender as razões da violência
desatada que hoje enfrentamos nas cidades brasileiras.
Há pobres trabalhando para os senhores do crime, pretendendo “enricar” e viver
na gandaia, sem freios? Há. Assim como há pobres trabalhando em empresas normais
do setor produtivo e de serviços, que não se iludem com “enricar” e só almejam
condições razoáveis de vida e trabalho, e o respeito da comunidade.
Neste mundo, quem pode, manda; quem não pode, serve.
O crime organizado, afinal, é uma atividade econômica de cunho capitalista, isto
é, objetiva lucros crescentes através da ampliação dos mercados e redução dos custos,
com total desregulamentação legal. Não paga impostos (as propinas saem mais baratas),
não assina carteiras de trabalho, e disciplina sua mão-de-obra mediante coação física
(também sai mais barato).
A esquerda utópica, em seu preconceito elitista, não considera criminosos os
delitos da classe média alta e os delitos de colarinho branco, mas apenasmente
corruptos, quando os identifica. No entanto, sem eles para o financiamento, receptação,
capacidade de organização e direção, redes de distribuição e tráfico de influência, os
criminosos pobres ficariam restritos a bater carteiras e assaltar galinheiros. Quem os
financiaria para altos vôos criminais? Quem os treinaria para exibirem tanta destreza e
coordenação na ação e planejamento? (sabe-se hoje que são militares
desincompatibilizados).
O crime organizado não é um fenômeno marginal: é parte integrante da sociedade
de classes e ramo não reconhecido da economia capitalista.
A ingenuidade é mortal. A ingenuidade por parte da esquerda leva à maioria dos
macro-desastres políticos que conhecemos.
Tania J.Faillace

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