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A divina comédia (1304-1321), Dante Alighieri,

professor Arthur Telló

No meio do caminho de nossa vida


Me encontrei numa selva escura
porque a correta via fora perdida.

Ah, dizer como era é coisa dura


Esta selva selvagem e áspera e forte
Que no pensamento se renova o medo!

Tanto era amarga que quase morri;


Mas para tratar do bem que lá encontrei,
Direi das outras coisas que lá vi.

Eu não sei bem dizer como lá eu entrei,


Tanto era o meu sono naquele ponto
Que a estrada verdadeira abandonei.

Mas depois que fui ao pé de uma colina alta


Lá onde terminava aquele vale
Que me perfurara o coração de medo,

Olhei para o alto, e vi as suas costas


Já vestidas com os raios do planeta
Que a todos pelas ruas conduz direito.

Então meu medo fora um pouco aquietado,


mas como durou no lago do coração
Aquela noite que passei com tanta pena.

E assim como um náufrago sem ar


Saído do mar revolto à costa
Se volta para a água perigosa e densa

A minha alma, que ainda fugia,


Se voltou para trás a ver os passos
Que não deixou jamais pessoa viva,

Depois de repousar um pouco o corpo lasso


Retomei o caminho pela praia deserta
De forma que o pé se firmava sempre mais embaixo.

E ali quase começando a subir a eira


Uma onça ligeira e muito rápida
coberta de seu pelo maculado

não se movia de diante de mim


e impedia tanto o meu caminho,
que eu depressa me voltei para voltar.

O tempo era do começo da manhã


E o sol ascendia com aquelas estrelas
Que eram com ele quando o amor divino
Moveu primeiro aquelas coisas belas;
Assim me fez esperar
Aquela fera de pele alegre

Horas no tempo da doce estação;


Mas não sei qual medo me tomou
A vista apavorante de um leão.

Este parecia que contra mim viesse


Com a cabeça alta e a raivosa fome
Que parecia que até o ar o temesse.

E uma loba que todos os desejos


Parecia querer na sua magreza
que a muitos já fez viver desamparados,

ela me pressionou tanto


Com o medo que saía de sua vista
Que perdi a esperança da alteza.

E como aquele que de bom grado conquista


E chega o tempo que o faz perder,
Que em todos seus pensares chora e se entristece

Tal me fez sem paz a besta


Que me vindo ao encontro, de pouco a pouco,
Me lançava de volta aonde o sol se fecha.

Enquanto me desesperava num lugar baixo


Diante aos olhos me apareceu
Alguém que pelo longo silêncio mal se distinguia

Quando o vi no grande deserto,


“pena de mim”, gritei a ele,
“quem quer que sejas, ou sombra ou homem certo”

Respondeu-me, “não sou homem, homem já fui,


E os meus pais foram lombardos,
Montanheses por pátria ambos os dois

Nasci sob Júlio, ainda que fosse tarde,


E vivi em Roma sob o bom Augusto
No tempo dos deuses falsos e mentirosos

Fui poeta e cantei sobre aquele justo


Filho de Anchise que veio de Tróia
Depois que Ílion a soberba fora queimada

Mas tu, por que retornas a tanto tormento


Por que não sais ao ditoso monte
Que é o princípio e a razão de toda glória?”

“Oh, és tu aquele Virgílio e aquela fonte


Que discorres falando tão grande rio?”
Respondi-lhe com o rosto envergonhado.
“a honra e a luz dos demais poetas,
Valeram-me o longo estudo e o grande amor
Que me fizeram buscar o teu volume

Tu és o meu mestre e o meu autor


É somente de ti que tomei
O belo estilo que me honrou

Vês a besta de quem me voltei;


Ajude-me, famoso sábio,
Que ela me faz tremer as veias e os pulsos”.

“a ti convém uma outra viagem”,


Respondeu-me, depois que me vira chorar,
“se queres te salvar deste lugar selvagem;

por que esta besta, pela qual tu gritas,


Não deixa ninguém passar pela sua estrada
Mas tanto o impede que o mata;

E tem uma natureza tão má e malvada,


Que nunca sacia sua ganância
E depois de comer tem mais fome que antes,”

Muitos são os animais a quem seduz,


E ainda serão mais, até vir o Cão
Que a fará morrer com dor.

Este não se alimentará nem da terra nem do dinheiro


Mas de sabedoria, de amor e de virtude,
E sua nação existirá entre o simples e a simplicidade.

Que aquela Itália humilde, por que morreu


a virgem Camila, e Eurialo e Turno
e Niso caíram feridos, mostre saúde.

O Cão a caçará por todo lugar,


e por fim a terá lançado ao inferno.
Lá de onde a inveja partiu primeiro

Onde eu por ti penso e discerno


Que tu me sigas, e eu serei o teu guia,
E te levo daqui pelo lugar eterno;

Onde ouvirás os gritos desesperados,


Verás os antigos espíritos sofridos,
Que invocam uma segunda morte;

E verás alguns que estão contentes


No fogo, porque esperam estar,
Quando a hora vir, entre as salvas gentes.

E dali depois se tu quiseres sair,


A uma alma fiel mais digna que a minha
Com ela te deixarei no meu partir;

pois aquele imperador que lá em cima reina,


por que eu fora rebelde a sua lei,
não quer que na sua cidade por mim se venha

em todas as partes impera e ali reina;


ali é a sua cidade e o alto trono:
oh, como são felizes quem ele ali elege!”.

E eu a ele, “poeta, eu te peço


Por aquele Deus que tu não conheceste
Que eu fuja deste mal destino

Que tu me leves lá onde disseste,


Que eu veja a porta de São Pedro
E aqueles miseráveis de que me falaste”.

Ele então moveu-se, e eu o segui de perto.

Canto V

Assim desci do primeiro círculo;


Abaixo, no segundo, num lugar menor
Havia tanto mais dor, que pungia mais lamentos.

Ali estava Minos horrivelmente sorrindo:


Examinando as culpas na entrada,
Julga e manda segundo deseja.

Digo que quando a alma é mal nascida


Ali chega em frente e a tudo confessa;
E aquele conhecedor dos pecados

Vê qual é no inferno o lugar desta;


Gira com sua cauda tantas voltas
Quanto deseja que ela desça.

(...)
Vi Helena, por quem tanto rei
Se moveu no tempo, e vi o grande Aquiles,
Que por amor combateu até o fim.

Vi Páris, Tristão; e mais de mil


Sombras mostrou-me e apontou-me
A quem o amor a vida destruiu.

Depois que escutei meu doutor


Identificar as damas antigas e os cavalheiros
A piedade me tomou e quase me perdi.

Eu comecei, “poeta, de bom grado


Falarei com aqueles dois que juntos vêm
E parecem tão leves ao ligeiro vento”
(...)
“Amor, que rápido prende-se ao coração gentil
Me atou a ele, a esta bela pessoa
Tão fortemente; que ainda sofro.

Amor, que a nenhum amado amar perdoa,


Me prendeu ao prazer deste assim tão forte
Que, como vês, ainda não me abandona.

Amor, nos conduziu a uma só morte


Caina atende quem a vida nos venceu”.
Assim eram as palavras deles,

Que quando eu entendi aquelas almas ofendidas,


Baixei o rosto e tanto o mantive baixo,
Que por fim o poeta me disse, “que pensa?”

Quando respondi, comecei,”Oh lasso,


Quão doces pensamentos, quanto desejo
Costurou a ambos neste doloroso passo!”.

Depois me voltei a eles para falar,


E comecei, “Francesca, os teus sofrimentos
Me fazem chorar triste e pio.

Mas me diz, no tempo dos doces suspiros,


Por que e como concedeste amor,
como conheceste os desejos duvidosos?”

E aquela a mim, “não há maior dor


Do que recordar do tempo feliz
Na miséria, assim sabe o teu doutor.

Mas se queres conhecer a primeira raiz


Do nosso amor que tanto te tocou
Direi como quem chora e conta sua história.

Nós líamos um dia por prazer


sobre Lancelote, como o amor o escravizou;
Estávamos sós e não suspeitávamos de nada.

Às vezes nossos olhos se encontravam


da leitura e o nosso rosto empalidecia;
Mas foi somente um ponto que nos venceu.

Quando lemos aquele riso distraído


Ser beijado pelo amante apaixonado,
Este, que nunca se separa de mim,

A boca me beijou tremendo inteiro.


Galeotto foi o livro e quem o escreveu:
Daquele dia em diante não o lemos mais”.

Enquanto um espírito disse isso,


O outro chorava; de modo que a piedade
De golpe me fez sentir como se eu morresse.

E caí como um corpo morto cai.

Canto XXXIV

O guia e eu por aquele caminho asqueroso


Viemos a voltar ao claro mundo,
E sem preocupação de algum repouso

Saímos acima, ele primeiro e eu segundo,


Até que vi as coisas belas,
Que levam ao céu, por um lugar obscuro,

E assim saímos a ver as estrelas.

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