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ATIVIDADE DE
princípios do Art. 144 da CF/88 que estabelece que a Segurança
Pública como dever do Estado e direito e responsabilidade de
todos. Assim, estamos contribuindo com a nossa parte.
INTELIGÊNCIA E
(Wando Dias Miranda)
SEGURANÇA PÚBLICA
O Brasil e as Trincheiras
do Século XXI
:
EDIÇÕES DOS AUTORES
ANANINDEUA
2018
ORGANIZADORES:
WANDO DIAS MIRANDA
ROBERTO MAGNO REIS NETTO
LUIS ROBERTO LOBATO DOS SANTOS
ILTON RIBEIRO DOS SANTOS
DIAGRAMAÇÃO E CAPA:
Roberto Magno Reis Netto
Ilton Ribeiro dos Santos
ILUSTRAÇÃO DE CAPA:
Sandra Cristina Ferreira dos Santos
Parabéns e obrigado!
A ESMAC.
Organizadores da Obra
REVISÃO
ARTE DA CAPA
1 INTRODUÇÃO
É indiscutível a importância da atividade de
inteligência para preservação da integridade e estabilidade
dos Estados. Neste sentido, aliás, ressalta-se o caráter
estratégico desta atividade, tanto para preservação da
Soberania Estatal num contexto internacional, quanto, para
propiciar um status mínimo de ordem interna (GONÇALVES,
2009).
Contudo, a despeito desta relevância, é assente a
existência de um verdadeiro pavor social à execução de
medidas voltadas à obtenção dos conhecimentos sensíveis
necessários à condução dos processos decisórios
determinantes àquela pretendida ordem, quase que numa
relação de proporcionalidade inversa.
Trata-se de um estigma decorrente dos métodos de
coleta de informações 1 peculiares ao período anterior à
democracia brasileira (em muito, atribuído às práticas
concernentes ao regime ditatorial instalado a partir de 1964),
ao longo do qual se associou uma imagem de “repressão
política” e “violação às liberdades e direitos fundamentais” à
atividade de inteligência (BRANDÃO, 2002, p. 30).
1
Aqui ressaltando, conforme a lição de BRANDÃO (2002, p. 43) que a utilização da
terminologia “informações” é típica da atividade de inteligência anterior à década de
1990.
48
Disto, surge uma interessante dicotomia: se, por um
lado, é de inescusável interesse público a manutenção da
ordem estatal, seja no plano externo ou interno, de outro
lado, poucos são os que aceitam, pacificamente, qualquer
espécie de investigação ou observação de suas atividades
particulares, como se sua vida configurasse uma redoma de
individualidade intangível e intransponível.
Noutras palavras: tem-se que todos anseiam que o
Estado investigue atividades potencialmente nocivas a seus
interesses (e aos interesses públicos), porém, poucos aceitam
ser investigados, inobstante se saiba da potencialidade
delitiva de cada um.
Por óbvio, a permanência do estigma é atribuível, em
muito, à ausência de uma maior discussão aberta, tanto
doutrinária, quanto política e popular, a respeito das
peculiaridades da inteligência, bem como, a não
demonstração dos mecanismos pelos quais esta atividade
pode ser efetivamente controlada, interna e externamente,
em cada uma das fases do ciclo de sua produção - solicitação,
coleta, análise e disseminação de resultados (GONÇALVES,
2009).
O controle deste instrumento de ação estatal, aliás,
ganha uma relevância especialíssima no contexto do regime
democrático. Preliminarmente, em razão da necessidade de
participação popular nas políticas públicas a serem
implementadas pelo Estado (inclusive, as de inteligência, a
despeito de seu caráter normalmente sigiloso) e, em segundo
lugar, em razão da limitação da atuação executiva deste
último diante do núcleo intangível dos direitos fundamentais
do cidadão, notadamente, sua liberdade material e ideológica,
privacidade, sigilo de comunicação, inviolabilidade domiciliar
e integridade física.
49
Compreender os mecanismos de controle da atividade
de inteligência, portanto, afigura-se fundamental à própria
confiabilidade deste mecanismo de tutela de interesses
públicos, repercutindo na própria legitimidade da atuação dos
agentes e órgãos de inteligência no Estado Democrático de
Direito.
Neste contexto, é inevitável o surgimento de uma
questão: Quais são os elementos caracterizadores da validade,
perante a lei, dos atos praticados no exercício da atividade de
inteligência em nosso Estado Democrático? É o problema de
pesquisa sobre o qual o estudo se debruçou.
Por óbvio, é necessária a realização de um corte
epistemológico imprescindível ao atingimento da resposta
àquela questão. Preliminarmente, em razão do fato de que a
atividade de inteligência pode denotar um viés tanto externo
(voltado às relações internacionais), quanto interno (voltado à
segurança pública e demais atividades estratégicas),
detentoras, cada uma, de características marcantes, conforme
assinalou Gonçalves (2009).
Em segundo lugar, em função de que a inteligência,
como atividade executiva do Estado, denota-se como um
processo que nasce num nível político e se concretiza num
nível administrativo, em que os mecanismos de controle
podem ser bastante diferenciados, tanto na teoria, quanto na
prática.
Em razão disso, a problemática estará direcionada ao
âmbito da atividade de inteligência em segurança pública, em
seu aspecto administrativo, ou seja, executivo ou operacional.
O debate é de extrema significância: para o âmbito da
inteligência, denota argumentos imprescindíveis a sua
legitimação e concretização social. Para o âmbito jurídico, a
temática propicia o desenvolvimento de uma doutrina
50
preventiva e repressiva de condutas juridicamente prejudiciais
ao ordenamento vigente, sobretudo, aos direitos
fundamentais do cidadão.
Ademais, trata-se de assunto que, por suas próprias
características, toca num ponto deveras polêmico, já que a
atividade de inteligência, como instrumento de investigação
de ameaças potenciais ao sistema, necessita de uma
“metodologia própria” que, sem demagogias, atua no
extremo limite da noção de legalidade, transitando numa
fronteira muito tênue e fácil de ser ultrapassada.
Como objetivo geral, verificou-se, a partir do modelo
Jurídico e Legislativo do Estado Democrático de Direito
Brasileiro, se existem elementos de controle da validade do
ato praticado no exercício da atividade de inteligência, a partir
de aspectos legais.
Especificamente, buscou-se um enquadramento dos
atos de inteligência em uma das categorias de atos jurídico-
administrativos previstos pela doutrina brasileira, tomando
como base o paradigma democrático atual. Em seguida,
verificou-se, a partir do ordenamento jurídico, quais seriam os
elementos necessários à caracterização da legalidade dos atos
em questão.
Por fim, satisfeitas aquelas premissas, restaram
delineados os critérios determinantes da validade dos atos
jurídico-administrativos de inteligência, consideradas suas
peculiaridades e metodologia própria.
53
Por isso, sem embargo, é assente que o modelo
ideológico de Estado Democrático de Direito é um
“paradigma” que orienta a ação estatal em prol das
necessidades de “diferentes formatações” de uma mesma
“sociedade civil”, sob o desiderato de realização dos objetivos
constitucionais: liberdade social, desenvolvimento,
erradicação da pobreza, bem estar etc. (FERNANDES, 2014, p.
285).
De fato, é de se ressaltar que este modelo é ideal, já
que na prática são incontáveis as dificuldades impostas a sua
implementação, o que pode gerar substanciais
questionamentos quanto à qualidade do seu funcionamento.
Santos (2011), por exemplo, afirma que a expansão da
participação popular para além do voto pode ocasionar o
surgimento, até mesmo, de um novo paradigma político
estatal, para além de estruturas legitimadoras de situações
arraigadas no tempo, o que, perante mentes menos abertas à
mudança poderia significar uma verdadeira ameaça à
estabilidade e longevidade das instituições estatais.
O debate é interessante, mas, infelizmente, não cabe
nas presentes linhas, por força dos objetivos eleitos. De todo
modo, a partir destes poucos parágrafos, já se pode ter uma
noção de democracia como processo e não como modelo
inerte.
Determinante, ao passo, é destacar que o alinhamento
de políticas públicas num Estado declarado Democrático de
Direito deve observar dois fatores: a) a multiplicidade social,
que roga uma participação popular na elaboração das ações
políticas, tanto na fase de elaboração, quanto na fase de
implementação; e, b) a observância de normas jurídicas
previamente elaboradas (em concordância ao primeiro
preceito) que ditarão os processos a serem seguidos e
54
formalidades necessárias, imprescindíveis à validade daquelas
ações, em respeito a um princípio democrático segundo o
qual as regras do jogo estarão bem delineadas a todos,
possibilitando controles prévios, concomitantes e/ou
posteriores.
É se advertir, entretanto, que assim como não se pode
falar numa só sociedade, igualmente, não se pode falar num
só governo ou num só direito, senão em espaços
contraditórios, forças político-sociais em confronto, distantes
de formar o que muitos apregoam como um “bloco
monolítico ou plenamente hegemônico de poder”, ainda que
se declare a existência de uma “hegemonia conservadora”
(BEHRING; BOSCHETTI, 2006, p. 198).
Diante disto, surge o questionamento: em face de
tamanha volatilidade política, como estabelecer um
parâmetro mínimo de funcionamento das políticas estatais,
sobretudo, das políticas de inteligência? Como garantir o uso
ético da máquina pública? Como aferir um mínimo de
legitimidade destas ações estatais? Certamente, a construção
de instâncias comunitárias de participação, de integração
social e política, e, sobretudo, de controle, dentre outros, é
medida de extrema importância. Porém, para que se cheque a
tanto, é imprescindível o estabelecimento de um regramento
inicial mínimo, de caráter vinculante, capaz de coordenar as
ações de quaisquer potenciais detentores do poder (sejam
sujeitos hegemônicos ou contra-hegemônicos), propiciando
um desenvolvimento equilibrado de políticas e decisões
estatais sem condutas predatórias.
Este parâmetro inicial compreende-se aqui, pode ser
obtido a partir da lei. Afinal, se o Estado, além de
democrático, é um Estado de Direito, suas instituições devem
obediência às normas jurídicas, em tese, elaboradas em
55
atenção a um processo de convergência de forças (por vezes
antagônicas, como vimos) que as legitima ideologicamente.
É claro que não se deve ignorar que a
institucionalização de normas e conflitos acaba por se
configurar como mecanismo de filtragem de interesses,
cooptação de demandas e favorecimento de camadas
hegemônicas do organismo social, ocupando a lei, neste
contexto, uma função “organizadora” da “violência estatal”,
responsável por legitimar privilégios estatais em detrimento
de largas camadas da comunidade, como afirma Miguel (2015,
p.40).
A luz dos ensinamentos de Foucault (2015), o norte ora
adotado poderia ser facilmente desqualificado sob a
argumentação de que a lei (portanto, o direito posto) é um
instrumento de exclusão social, utilizado como ferramenta de
criminalização de condutas não desejadas por grupos
detentores de poder, em detrimento dos menos favorecidos. E
de fato o é!
Porém, de outro lado se pode ignorar que o modelo de
ordem instituído a partir da lei, apesar de não ser o ideal, é
um mínimo modelo de garantia de ordem social que não deve
ser simplesmente dispensado ou eliminado. Afinal, o direito
funciona como um parâmetro de limitação reconhecido pelo
Estado em relação aos seus próprios atos políticos ou
administrativos, e que, nessa qualidade, serve como uma
primeira instância de discussão e controle daquelas ações, ao
menos, para fins de revelação das lacunas institucionais a
serem supridas em eliminação ao mau funcionamento das
instituições.
Mais ainda, a ressignificação (ou releitura) da lei à luz
da Constituição Federal, como exigência típica de um Estado
Democrático de Direito, impõe a derrogação de qualquer
56
prática legal que venha a sufragar de validade os ideais de
igualdade e liberdade (dentre outros) relativos a qualquer
cidadão, o que, em sede de atividade de inteligência, ganha
contornos especiais: Em sua reconstrução democrática, a
inteligência não manifesta pretensão de estender sobre os
historicamente desfavorecidos as mesmas redomas de
privilégios e proteções concedidas anteriormente às classes
socialmente favorecidas. Pelo contrário: busca-se uma
ostensiva busca de informações, coerente e comprometida
com o interesse público, que atue sobre fatos significantes à
gestão democrática, pouco importando o nível de poder
político, econômico ou social dos envolvidos.
Falar de controle e do uso ético da máquina pública,
destarte, importa reconhecer a existência de uma
normatização que estabeleça os limites das ações dos agentes
públicos no exercício de sua competência, equilibrando as
relações políticas e possibilitando o exercício democrático dos
mecanismos institucionais.
Ou seja, o desempenho da atividade de inteligência
deve se guiar por limites legais semelhantes aos impostos às
demais atividades estatais, justamente, por ser uma política
de atuação estatal de caráter especial. Aliás, como bem
adverte Gonçalves (2009), a atividade de inteligência é uma
função diretamente destinada ao agente político tomador de
decisões, pelo que se traduz como instrumento colocado à
disposição das estruturas estatais, sendo assim, regulado
conforme uma produção normativa pública prévia (a qual, ao
menos em tese, deve se constituir a partir do ideal da vontade
popular).
Conclui-se que o direito é preliminar à própria
atividade de inteligência (que, por sinal, é instituída pelo
mesmo), devendo esta ser uma atividade contextualizada aos
57
moldes do Estado Democrático. Desta forma, é possível a
eleição do ordenamento jurídico como uma primeira
trincheira de legitimação dos atos realizados pelos serviços de
inteligência, obviamente, observadas as peculiaridades e
caracteres próprios desta atividade, conforme resta
argumentado no teor do tópico seguinte.
2
Art. 1º, §2º da Lei nº 9.883/99, que Institui o Sistema Brasileiro de Inteligência –
SISBIN e promoveu a criação da Agência Brasileira de Inteligência – ABIN.
58
especializadas para a identificação,
acompanhamento e avaliação de
ameaças reais ou potenciais na esfera
de Segurança Pública, basicamente
orientadas para produção e
salvaguarda de conhecimentos
necessários para subsidiar os governos
federal e estaduais a tomada de
decisões, para o planejamento e à
execução de uma política de Segurança
Pública e das ações para prever,
prevenir, neutralizar e reprimir atos
criminosos de qualquer natureza ou
atentatórios à ordem pública (BRASIL,
2009, p. 10).
3
Art. 144, da CF/88.
4
Ibidem.
59
sistemática de informações disponíveis,
busca a identificação de criminosos e
os aspectos essenciais da consumação
do delito. Há que se considerar, ainda,
seu caráter consultivo, quando
contribui para elaboração e adoção de
medidas ou políticas de prevenção e
combate à criminalidade.
5
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
61
Torna-se assente, a esta altura, o enquadramento
jurídico dos atos praticados no exercício da atividade de
inteligência em segurança pública como atos administrativos
sui generis (ou especiais), dada a especialidade do regime em
que ocorre sua execução e o caráter diferenciado pelo qual
sofrem a incidência dos princípios constitucionais.
Cunha Jr., conceitua atos administrativos como
(...) espécie do gênero ato jurídico,
regido pelo direito público, do qual se
vale o Estado ou quem age em nome
dele, para exprimir, unilateralmente,
uma declaração de vontade, fundada
na lei e voltada ao desempenho de
funções administrativas na gestão do
interesse coletivo (2011, p. 100).
6
Ou seja, com elementos estrita e totalmente amarrados em lei.
7
Consistindo em atos nos quais se dá margem ao administrador para uma atuação
regida por critérios de conveniência e oportunidade (CARVALHO FILHO, 2013),
dando-lhe liberdade quanto à escolha do objeto, desde que regularmente exposto o
motivo do ato.
63
se conforma perfeitamente, aliás, à esfera da atividade de
inteligência.
Este apontamento é de suma importância: os atos de
império (em geral) são, inequivocamente, as espécies de atos
administrativos que mais se denotam aptos a ocasionar
violações aos direitos e garantias fundamentais do cidadão, o
que, por óbvio, é mais ainda assente na categoria de atos
administrativos praticados no exercício da atividade de
inteligência.
Como assevera Gonçalves (2009, p. 56), “algumas
dessas medidas limitarão em algum momento, as liberdades
individuais. Entretanto, ou as autoridades governamentais
agem assim ou as consequências podem ser nefastas”, afinal,
a vedação à prática de atos desta natureza, num contexto de
enfrentamento a organizações criminosas cada vez mais
estratificadas política e socialmente, significaria um suicídio
institucional inaceitável.
Daí repetir-se: É inconcebível abrir mão de um serviço
tão estratégico (como o é qualquer atividade desenvolvida
dentro da Segurança Pública), devendo-se buscar, por outro
lado, sua legitimação por meio de eficientes mecanismos de
controle legal e institucional.
Como afirma Cepik, ao tratar dos “mandatos legais” 8
da atividade de inteligência (num contexto internacional,
aplicável, porém, ao âmbito interno),
[...] claro está que os mandatos legais
não resolvem os problemas políticos
resultantes da interpretação sobre as
8
Na exposição de CEPIK (2001), a ideia de marcos legais se confunde com a ideia de
legalidade ora exposta, ou seja, a previsibilidade legal da adoção de “atos” de
inteligência para fins de administração pública dos interesses sociais, notadamente,
na área da segurança pública, no caso deste trabalho.
64
áreas, os métodos e a intensidade da
atuação da inteligência. [...] entretanto,
considerando-se que existem
realmente ameaças que exijam a
manutenção de organizações de
security intelligence, os mandatos
legais tornam-se imprescindíveis para
ao menos estabelecer parâmetros a
partir dos quais se possa julgar as
ações e prioridades destes órgãos
(2001, p. 181).
9
Mérito administrativo, conforme a doutrina de CARVALHO FILHO (2013, p. 125),
pode ser compreendido como a esfera de “liberdade de escolha” atribuída política e
legalmente aos agentes públicos pelo regime democrático, para que estes,
atendendo a critérios de oportunidade e conveniência, que jamais poderiam ficar
vinculados (amarrados em lei), possam fazer as “melhores escolhas” no atendimento
das necessidades concretas do interesse público, evitando uma maior burocracia no
atendimento das demandas do organismo social.
69
vezes, acaba por inviabilizar a noção de contraditório e ampla
defesa judicial) e a existência de mecanismos refratários à
atuação judiciária, tem-se mostrado como impeditivos fiéis à
colocação dos serviços de inteligência nos bancos dos réus,
para sua sorte.
Ainda conforme Cepik (2001), tem-se como muito mais
comum a participação prévia do poder judiciário no controle
de algumas ações de inteligência que, por analogia
(impropriamente), inspiram-se em mecanismos
investigatórios, como no caso das interceptações telefônicas 10,
ações controladas11 e infiltrações12.
Nas demais situações, até mesmo pela difícil
caracterização dos ilícitos administrativos oriundos da
atividade de inteligência e considerável carência de estudos
jurídicos sobre o tema (sendo o assunto muito estranho até
mesmo aos profissionais do direito), pouco se vê em termos
de atuação judicial.
Ainda, assim, o problema do vazio legislativo é
considerável.
Preliminarmente, não há que se confundir a atividade
investigatória (voltada à produção de provas para o processo
penal), com atividade de inteligência (voltada à obtenção de
informações necessárias à tomada de processos decisórios
pelo poder público), pelo que sequer se poderia legitimar o
uso via analogia dos meios de investigação acima
identificados no seio da atividade de inteligência (embora, na
prática, estes sejam corriqueiramente realizados).
10
Lei 9.296/96, que regulamenta a intercepção telefônica tratada no teor do art. 5º,
XII, da Constituição da República Federativa do Brasil.
11
Art. 9º, da Lei nº 12.850/13, que trata do combate a organizações criminosas.
12
Art. 10, da lei supra mencionada.
70
Em segundo lugar, mesmo pressupondo que, por
serem os agentes ou analistas de inteligência membros da
área de segurança pública, estando assim conglobados pelas
competências gerais de seus cargos (enquanto policiais,
fiscais, etc.), deve-se lembrar de que, por outro lado, há uma
diferença substancial entre as atividades de investigação e
repressão de crimes e a atividade de assessoramento ao
gestor, esta última, realizada tipicamente em sede de
atividade de inteligência, através de métodos próprios de
coleta e análise de dados. Persiste, portanto, a necessidade de
regulamentação específica,
Em terceiro lugar, considerando a natureza das práticas
(operações) efetivadas pela atividade de inteligência (como,
por exemplo, as entradas, as interceptações de sinais e as
entrevistas), constata-se que estas não encontram
fundamento em qualquer lei capaz de admiti-las como
exceções democraticamente consentidas aos direitos
fundamentais que invariavelmente atingem.
Em quarto lugar, constata-se comum a colaboração de
particulares que, de livre vontade ou mediante incentivos,
fornecem as informações necessárias à apuração de fatos, e,
nessa qualidade, poderiam ser classificados, em sentido
amplíssimo, como agentes particulares colaboradores
(possivelmente, agente honoríficos, por prestarem
informações por uma questão de honra à nação ou ao serviço
público)13. Porém, novamente, são raras as regulamentações a
respeito desta possibilidade ou, até mesmo, da concessão de
incentivos oriundos de dinheiro público àqueles sujeitos (o
temido tema da verba secreta).
13
Nesse sentido, recomenda-se a leitura de Carvalho Filho (2013, p. 591).
71
Portanto, vislumbra-se uma verdadeira lacuna
legislativa funcional a respeito do tratamento jurídico das
ações dos profissionais da atividade de inteligência, capaz de
gerar, repita-se, uma enxurrada de ações judiciais contra o
Estado, bem como, prejuízos graves e incompatíveis com a
ideia de regime democrático.
Além disso, a ausência de regulamentação pode gerar
responsabilidades individuais que, por mais que consentidas,
acabariam por ser imputados exclusivamente ao analista ou
agente da atividade em questão, num imoral benefício do
ente estatal assessorado.
Impõe-se, de maneira inconteste, a regulamentação da
matéria no Brasil.
4.2.2 Do Objeto.
Por sua vez, é importante que seja verificado o objeto
da ação praticada pelo serviço de inteligência, situação que
diz respeito à criação, modificação ou extinção que se
pretende produzir na realidade jurídica pertinente. Em linhas
simples, o objeto expressa o conteúdo da ação realizada.
Aquilo que efetivamente “se fez” (JUSTEN FILHO, 2009, p.
295).
Este objeto, por sua vez, deve ser lícito (ou seja, não
deve ser proibido por lei), possível (ou seja, efetivamente
realizável, em termos práticos) e determinado, ou, no mínimo,
determinável (ou seja, deve ser potencialmente delimitável ou
quantificável).
Como a atividade de inteligência é voltada à obtenção
de dados sensíveis ao processo decisório, tem-se que o objeto
deverá satisfazer: a) a obtenção de dados por meios legais
(licitude), através de b) métodos legalmente viáveis
(possibilidade), e, c) inerentes a fatos devidamente
72
especificados e delimitados (determinação), sobretudo, em
razão de que, no contexto democrático, a atividade de
inteligência se encontra voltada a fatos (e não a pessoas).
Quando se trabalha com dados abertos (ou seja,
publicamente disponíveis através de meios abertos de acesso,
como prestações de contas, redes sociais, meios de
comunicação etc.), nenhum problema se constata, em regra,
quanto ao objeto dos atos de inteligência (BARRETO;
MIRANDA; NASCIMENTO, 2015), desde que a informação
produzida não esteja voltada a denegrir a honra, imagem,
vida privada ou intimidade do eventual atingido. O mesmo,
porém, já não se pode dizer a respeito da atividade destinada
à obtenção de dados negados, que pressupõem uma
acessibilidade não autorizada pelos indivíduos e instituições
atingidos pela ação dos serviços de inteligência (BARRETO;
MIRANDA; NASCIMENTO, 2015).
A obtenção de tais dados, num contexto democrático,
só poderia ser consentida em duas hipóteses: Ou a) há uma
autorização legal à acessibilidade excepcional dos mesmos
(hipótese em que o objeto seria vinculado em lei),
preenchidos certos requisitos; ou, b) há autorização
discricionária concedida, conforme oportunidade ou
conveniência, por um órgão ou instância colegiada (hipótese
voltada a atos discricionários), o que, ainda assim, pressupõe
previsão legal.
Como já se viu no tópico anterior, raras são as leis que
tratam a respeito destas possibilidades, sendo comum o
recurso analógico (impróprio) em casos como os das leis nº.
9.296/96 (que trata da interceptação telefônica) e nº.
12.850/13 (a lei de combate a organizações criminosas, que
trata da possibilidade de infiltração de agentes), em ambos
73
casos, sob estrita autorização judicial e após o preenchimento
de determinados requisitos.
Algo que seria próximo do segundo exemplo é
previsão de uma comissão de controle e fiscalização externa
em relação à Agência Brasileira de Inteligência, conforme
previsão do art. 6º14, da Lei 9.883/99. Diz-se “algo próximo”,
porque, a despeito da previsão legal deste órgão de controle
externo, a lei deixou sob inteiro critério do Congresso
Nacional a institucionalização desta Comissão, não
especificando se este controle poderia ser prévio, ou não, o
que, por óbvio, não poderia ser estipulado naquele ato
regimental, justamente, por significar uma ingerência em
competências do Poder Executivo, e, assim, violação ao
princípio constitucional da separação das funções
constitucionais.
Igualmente, questiona-se a (ausência de)
expressividade concreta da atuação daquele órgão (o que não
cabe nas linhas do estudo, mas deve ser objeto de crítica,
certamente).
Novamente, observa-se que a falta de tratamento
adequado a respeito dos objetos, ou seja, conhecimentos
passíveis de serem acessados no exercício da atividade de
inteligência, sobretudo, no que toca aos dados negados, pode
conduzir a ação a um contexto de ilegalidade.
Por mais que as informações obtidas pelas ações de
inteligência não sejam (e nem possam ser) utilizados para fins
de instrução criminal (já que esta não é a destinação da
Atividade de Inteligência), ainda assim, sua obtenção pode
ensejar sentimentos de violação substancialmente perigosos à
14
Art. 6o O controle e fiscalização externos da atividade de inteligência serão
exercidos pelo Poder Legislativo na forma a ser estabelecida em ato do Congresso
Nacional.
74
estabilidade democrática, o que, mais uma vez, impõe um
tratamento legal adequado sobre a matéria.
4.2.3 Da forma.
Em linhas diretas, aqui se constata um dos problemas
mais nevrálgicos do tema.
A forma diz respeito ao suporte material por meio do
qual o ato administrativo se realiza (se por escrito, por gestos,
sinais etc.). A regra é a solenidade dos atos, ou seja, sua
elaboração por escrito, com perfeita identificação dos
responsáveis, e seguindo prescrições especificadas em normas
legais ou regulamentares (CUNHA JR, 2011).
Contudo, o que é regra para as demais atividades, é
nítida exceção para a atividade de inteligência: as ações de
inteligência devem ser compreendidas como um processo, ou,
em doutrinários, como um ciclo, que, para ser consolidado
como válido, depende da validade de uma série de atos
praticados em seu decorrer.
Embora o ato final (em tese) deste ciclo - o Relatório
de Inteligência -, seja um documento solene, portanto, escrito
e elaborado conforme determinadas regras específicas, em
alguns casos, até mesmo com a identificação (criptografada,
ou não) dos responsáveis, tem-se que as demais ações
concretas praticadas ao longo do processo de obtenção ou
transmissão de informações sigilosas, não detêm
pormenorizações específicas, afora as previstas nos manuais,
o que torna a verificação de sua validade uma atividade
hercúlea e praticamente impossível, senão, aos membros da
própria equipe de inteligência em campo, no momento da
operação.
Certamente, é aqui que surge a maior necessidade de
discussão, debate e construção de mecanismos de controle da
75
formalização dos atos de inteligência. Afinal, é no momento
da ação, da transmutação da vontade, por meio do ato, num
meio material, que podem ocorrer arbitrariedades contrárias
ao espírito democrático.
Novamente, roga-se a regulamentação da matéria,
carente em todos os sentidos.
4.2.4 Motivo
No dizer de Cunha Jr. (2011, p. 111), o motivo “é a razão
ou circunstância de fato ou de direito que autoriza ou
determina a prática do ato administrativo”. Em linhas mais
simples, trata-se do porquê da prática de um ato.
Em sede de atividade de inteligência, deve-se lembrar
de que este motivo sempre estará voltado à obtenção de
dados qualificados, necessários à tomada de um processo
decisório por parte de um gestor (CEPIK, 2001), o que se dá
por meio de diversas outras atividades de preparação, coleta e
disseminação de informações.
A gênese da solicitação de informações, por sua vez,
que é o primeiro passo do ciclo de inteligência, ocorre a partir
da formalização da demanda de um agente de cúpula (aos
quais normalmente se encontram subordinados os órgãos de
inteligência), pleiteando uma determinada sorte de
informações a respeito de um fato.
Esta demanda, por sua vez, deve se conformar a um
mandato ou poder conferido ou legitimado pelo sistema
político, materializando, assim, um verdadeiro ato político15.
15
Conforme o ensinamento de CUNHA J. (2011, p. 99), os atos políticos
materializariam uma ação facultada pelos documentos políticos máximos da
federação brasileira (Constituição Federal, Constituições Estaduais e Leis Orgânicas),
bem como, leis estratégicas, que permitiriam uma ação com “maior liberdade” a ser
efetivada por parte de determinados grupos de agentes públicos (normalmente de
cúpula, sendo, nessa qualidade, chamados de agentes políticos), conforme funções
76
Assim, todos os demais atos que decorrerem desta
solicitação (ato político) estarão direta e exclusivamente
vinculados ao pedido (motivo da ação de inteligência) não
devendo se estender, a princípio, a quaisquer outros fatos que
não aquele demandado pela autoridade assessorada, sob
pena de violação desta motivação, salvo, quando influente na
decisão a ser tomada, conforme margem discricionária
eventualmente conferida por lei ao agente ou analista.
Há, portanto, uma vinculação do motivo à demanda
solicitada, que, se contrariada, poderá gerar a invalidade do
ato jurídico-administrativo.
Ademais, apesar do campo político não se configurar
como objeto de análise (ao menos estrito) deste estudo, deve-
se lembrar de que a vontade política determinante do motivo,
se eventualmente corrompida, enseja por parte dos
executores das ações jurídico-administrativas de inteligência
apego à legalidade, de modo a, em último caso, até mesmo
recursar a satisfação da demanda solicitada.
Trata-se de outro problema teórico digno de debate,
uma vez que a vontade política corruptível pode ensejar
motivos inválidos, porém, vinculativos da ação dos agentes e
analistas da atividade de inteligência. Deste modo, uma
eventual recusa executiva legítima por parte destes últimos
pode acabar por ser substituída por um acatamento tácito de
arbitrariedades, ainda mais num Brasil onde a meritocracia é
sinônimo de subserviência quando da eleição dos ocupantes
de cargos de confiança.
Trata-se, portanto, de sério ponto a ser analisado além
da legalidade, invadindo o campo teórico político e ético.
78
O caráter finalístico do ato (a satisfação do que é de
interesse público), portanto, acaba por dizer respeito a
questões que ultrapassam, novamente, a esfera da legalidade,
habitando o campo da política e da vontade representativa,
declarada pelos agentes escolhidos conforme os processos
institucionalizados pela Constituição e pela Lei (eleição direta
ou indireta, nomeação para ocupação de cargos de confiança,
etc.).
Por óbvio, escolhas realizadas pelos administradores
em desrespeito ao mínimo processo democrático instituído,
decerto, significarão uma violação da finalidade pública ora
referida, importando, por sua vez, na nulidade de toda e
qualquer atividade desempenhada pelos órgãos de
inteligência.
É por isso que, mais uma vez, se reforça a importância
do controle político exercido pelo Poder Legislativo em
relação à atividade de inteligência, o qual, no nível federal,
repita-se, foi instituído pela própria Lei 9.883/99, que, em seu
art. 6º, instituiu a comissão de controle e fiscalização externa
em relação à Agência Brasileira de Inteligência (num modelo
que deveria ser seguido por todo e qualquer serviço,
independentemente da esfera federativa).
Esta comissão, regida pela Resolução nº 02/2013 do
Congresso Nacional, detém a função de fiscalização e controle
externo da atividade de inteligência desempenhada pela
Agência Brasileira de Inteligência – ABIN e demais órgãos do
Sistema Brasileiro de Inteligência – o SISBIN, por óbvio, não
só de maneira restrita ao aspecto de legalidade que embasa
este estudo, porém, num aspecto muito mais amplo,
conglobando a conveniência política das ações realizadas.
A despeito do caráter elogioso da iniciativa, constata-
se a não reprodução obrigatória deste mecanismo de controle
79
no âmbito dos Estados e Municípios, enfraquecendo o
necessário e imprescindível controle de finalidade dos atos
jurídico-administrativos realizados pelos órgãos de
inteligência destes entes federativos, sobretudo no campo da
Segurança Pública, onde é marcante a atuação, sobretudo,
dos Estados-Membros de nossa federação.
Igualmente, o já registrado trauma histórico associado
à atividade de inteligência, aliado à ausência de transparência
política (questão que não se restringe somente ao âmbito da
atividade de inteligência, diga-se de passagem) são fatores
que dificultam substancialmente a legitimação e, nesta senda,
a criação de mecanismos de controle da legalidade (e,
portanto, da finalidade) dos atos jurídico-administrativos
praticados no exercício daquela função.
Cabe, por hora, a transcrição de importante conclusão
obtida por Cepik, em seus estudos a respeito das questões
políticas que envolvem a atividade:
(...) Mesmo nos países mais
democráticos os mecanismos de
supervisão congressual são muito
recentes e têm evidentes problemas de
desempenho institucional. Na medida
em que a institucionalização dos
serviços de inteligência envolveria não
apenas a obtenção de “estabilidade”
organizacional, mas também um longo
processo através do qual eles tornam-
se (ou não) organizações valiosas para
o público, esse é um processo que está
fortemente relacionado à
transparência, ou seja, à capacidade do
público ver e julgar por si mesmo os
80
atos dos governantes na área de
inteligência. Mesmo que os serviços de
inteligência contemporâneos tornem-
se suficientemente ágeis para
estabilizarem-se organizacionalmente
no novo contexto (...), sua eventual
institucionalização dependerá ainda da
difícil resolução do dilema da
transparência (2001, p. 214).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Faltando praticamente uma década para a
comemoração do centenário da institucionalização da
atividade de inteligência no Brasil (surgida em 1927, no
Governo Washington Luis), observa-se que a função ainda
convive com sérios problemas contemporâneos ao seu
nascedouro, concernentes, sobretudo, à indiferença quanto à
normatização de sua metodologia e práticas, o que só reforça
o temor criado em torno de sua existência atual e de seus
fantasmas, remanescentes de regimes autoritários.
81
Como se constatou ao longo do Estudo, uma vez
verificada a natureza jurídico-administrativa dos atos
praticados na atividade de inteligência, vislumbrou-se
também, a partir da legislação vigente, a possibilidade de
aferir critérios mínimos para avaliar a sua validade.
Das construções doutrinárias do direito administrativo,
por sua vez, ressaltou-se o caráter público da atividade de
inteligência em segurança pública, bem como, sua submissão
a normas de mesma natureza, bem como, a princípios
constitucionais inerentes à atividade administrativa como um
todo.
De igual maneira, constatou-se a existência de graves
lacunas legislativas referentes aos elementos definidores da
validade dos atos praticados no exercício da atividade de
inteligência, capazes de ocasionar, num primeiro momento, a
declaração de nulidade das ações realizadas, e, como
consequência, possíveis prejuízos financeiros aos entes
públicos envolvidos na violação da legalidade.
Numa perspectiva mais grave, tem-se que esta
fragilidade de limites pode importar num total descrédito em
relação à atuação das instituições políticas e administrativas,
além de significar, numa total contrariedade ao espírito
democrático, a tomada de violações não consentidas aos
núcleos intangíveis de certos direitos fundamentais do
cidadão.
Faz-se necessário, portanto, um aprimoramento da
legislação brasileira quanto aos elementos configuradores da
validade dos atos jurídico-administrativos desempenhados na
inteligência (competência, objeto, forma, motivo e finalidade).
Igualmente, além do aspecto da legalidade, é
imperioso o fortalecimento de instituições de controle político
institucional desta atividade, justamente para que, superando
82
cicatrizes do passado, a função em apreço tenha reconhecida
sua legitimidade democrática e seu caráter de
imprescindibilidade à mantença da ordem social.
Para tanto, faz-se necessária uma desmistificação da
atividade de inteligência, sua apresentação formal à
comunidade e sua submissão à debates e estudos abertos,
como o ora efetivado, de modo a admiti-la como significativo
instrumento evolutivo à disposição do Estado Brasileiro,
sobretudo, no aspecto tangente à segurança pública.
Por óbvio, o presente estudo não se encerra em si
mesmo, mas dá azo a um prosseguimento da análise por
vieses históricos, políticos e jurídicos mais aprofundados, que
poderão buscar as origens (pretendidas, ou não; e,
convenientes, ou não) de tantas lacunas normativas no
regramento deste importante campo político.
Cumpre encerrar essas ponderações afirmando que a
atividade de inteligência empodera o regime democrático,
permitindo a antecipação de eventos muito prejudiciais à
ordem social, inclusive, no sentido de proteger e potencializar
a participação de camadas não hegemônicas do organismo
social (historicamente estigmatizadas pelo regime dito
democrático), aproximando da realidade concreta o
proclamado mito da igualdade típico do modelo político
nacional.
Contudo, isto pressupõe uma crença da comunidade
de inteligência e no aprimoramento de suas ações, na
eticidade de suas atribuições e, sobretudo, na pluralidade
político-institucional, que impõe controlar e aceitar o
controle, justamente, como garantia de transparência na
satisfação das necessidades públicas.
Aprimorar é preciso: Se hoje o Brasil ainda não acredita
na comunidade de inteligência, a comunidade de inteligência,
83
certamente, como visionária por aptidão natural que é, tem
muitos motivos para acreditar no Brasil.
REFERÊNCIAS
85
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo
Curso de Direito Civil: Parte Geral. V. I. 11. Ed. São Paulo:
Saraiva, 2009.
86
ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA E FORMAÇÃO DE POLICIAIS CIVIS NO
PARÁ, NO PERÍODO DE 2005 A 2006
87
period and its headways, and a reflection about the lack of
continuity in the public administration.
1 INTRODUÇÃO
Nesta pesquisa apresentamos uma proposta do tipo
descritiva, pois segundo Sampieri, Collado e Lucio (2013, p. 102), os
estudos descritivos buscam especificar as propriedades,
características e os perfis das pessoas, grupos, comunidades,
processos, objetos ou qualquer outro fenômeno que se submeta a
uma análise.
Para lograr êxito, o propósito de pesquisa se programou
componentes do enfoque qualitativo, cujo foco é compreender e
aprofundar os fenômenos, que são explorados a partir da
perspectiva dos participantes em um ambiente natural e em relação
ao contexto, com amostra de estudo de caso.
Por meio da entrevista à profundidade, buscamos
compreender a perspectiva da docente que participou da
implantação e ministrou a disciplina Atividade de Inteligência nos
dois primeiros cursos (GPE e Formação de Policiais Civis), suas
experiências, pontos de vista, significados, bem como, as percepções
de um dos pesquisadores enquanto diretor do Núcleo de
Inteligência Policial (NIP) no período de 2005 a 2006.
Nossa pesquisa teve como objetivo geral analisar como a
disciplina Atividade de Inteligência foi inserida na formação de
policiais civis do Pará, no período de 2005 a 2006. Dentre os
objetivos específicos, buscou-se analisar o referencial teórico e as
experiências educacionais da docente que ministrou a disciplina
Atividade de Inteligência no período de estudo, e comparar
experiências educacionais da docente em outras instituições de
Segurança Pública.
Dentre as perguntas norteadoras da pesquisa: Como a
disciplina Atividade de Inteligência foi inserida na formação de
88
policiais civis do Pará? A formação de docente influenciou nas
experiências educacionais da disciplina Atividade de Inteligência na
formação de policiais civis? Quais as experiências educacionais
ministradas na formação em Segurança Pública no Pará?
2 REFERENCIAL TEÓRICO
Na mitologia grega, Bauman (apud PUREZA, 2011 p. 8-9) nos
mostra a estória de Tântalo — filho de Zeus e de Plutó — que um
dia cometeu um crime que os deuses não quiseram ou não
poderiam perdoar e, por isso, foi punido: Tântalo frequentava as
festas no Monte Olimpo na companhia dos deuses, e teria abusado
da confiança divina ao compartilhar com outros homens mistérios
que deveriam permanecer ocultos dos mortais.
Pelo seu crime, Tântalo recebeu uma punição exemplar: foi
mergulhado até o pescoço num regato, mas quando abaixava a
cabeça tentando saciar a sede, a água desaparecia, e sobre sua
cabeça foi pendurado um ramo de frutas, porém, quando ele
estendia a mão tentando saciar a fome, um repentino golpe de
vento carregava o alimento para longe — o suplício de Tântalo —,
daí a expressão “tão perto e ao mesmo tempo tão distante!”.
Para Pureza (2011), essa versão mitológica nos remete a
preceitos de segurança orgânica (atualmente chamada segurança
corporativa), segmento da Contrainteligência1 que preconiza a
adoção de um conjunto de medidas destinadas a prevenir e obstruir
ameaças, de qualquer natureza, dirigidas a pessoas, dados,
conhecimentos, materiais, áreas e instalações.
Na Bíblia Sagrada (2000, p. 164-165), no Antigo Testamento
— livro Números 13: 1-33 — verificamos na história cristã a
importância de informações oportunas para a tomada de decisões
estratégicas, e da utilização de recursos humanos capacitados a
serem empregados na coleta de dados:
1
Ramo da Atividade de Inteligência, que objetiva prevenir, detectar, obstruir e
neutralizar a inteligência adversa e as ações de qualquer natureza que ameacem a
salvaguarda de dados, conhecimentos, áreas, pessoas e meios de interesse da
segurança da sociedade e do Estado.
89
O Senhor falou a Moisés: mande gente
para explorar o país de Canaã, que vou dar
aos filhos de Israel. Mande um de cada
tribo, e que todos sejam chefes”. […]
“Moisés mandou que eles explorassem o
país de Canaã, e lhes falou: subam pelo
deserto do Negueb até chegar à montanha.
Observem como é o país e seus habitantes,
se são fortes ou fracos, poucos ou
numerosos. Vejam se a terra é boa ou ruim;
como é que são as cidades onde moram, se
são abertas ou fortificadas. Vejam se a terra
é fértil ou estéril, se tem árvores ou não.
[…] Quarenta dias depois, voltaram os
exploradores e se apresentaram diante de
Moisés, Aarão e toda a comunidade de
Israel, no deserto de Farã, em Cades. Diante
deles e da comunidade, fizeram seu
relatório e mostraram os frutos da terra.
90
permitem ao soberano esclarecido e ao
bom general atacar e vencer, e obter feitos
fora do alcance dos homens comuns. Ora,
essas informações não podem ser evocadas
dos espíritos; não podem ser obtidas
indutivamente da experiência, nem por
meio de qualquer cálculo dedutivo. […]
somente o governante esclarecido e o
general sensato empregarão o melhor
talento do exército para fins de
espionagem e, assim obterão grandes
resultados (Sun Tzu).
91
No Brasil, Célio Santos (2012, p. 111) nos mostra que com a
vinda de D. João VI, em 1808, foi criada a Intendência Geral de
Polícia na cidade do Rio de Janeiro, que contava com um Delegado
em cada província, seguido de breve período democrático e
descentralizado da gestão policial e judiciária, colocando o Juiz de
Paz como figura pública eleita, responsável pelo conhecimento e
julgamento de pequenos crimes e posturas municipais, mas em 1841
o sistema policial foi reorganizado por meio da definição e
aparelhamento das Polícias Civil e Militar.
De acordo com Costa & Grossi (2007, p. 12), durante os
períodos republicanos (1889-1930 e 1946-1964) os estados
brasileiros gozaram de grande autonomia para organizar e controlar
suas polícias. Mas, contudo, durante os períodos autoritários (1937-
1945 e 1964-1985), as polícias estaduais foram submetidas ao
controle federal, não como cooperação, mas sim em relação à
submissão dos estados às diretrizes do governo federal.
O Brasil, assim como diversos países da América do Sul,
sofreu forte influência da doutrina norte-americana de Informações
e Contrainformações2, difundidas por meio de cursos somente para
a cúpula militar desses países, atendendo aos interesses norte-
americanos estratégicos de combate à subversão e contenção do
Movimento Comunista Internacional, com reflexos nos campos
político e econômico.
Era uma estratégia do então governo de Washington, que
resultou na criação e difusão de diversas doutrinas de Segurança
Nacional, difundidas para países que, em muitos casos, serviram de
“sucursais” do serviço norte-americano, com a formação da cúpula
militar na “Escuela de las Americas”, instituição estadunidense-
panamenha onde foram treinados, a partir de 1961, centenas de
2
Terminologia que passou por modificações ao longo das décadas, e inicialmente
estava associada às questões bélicas e de segurança nacional, e posteriormente,
evoluiu para Atividade de Inteligência, com os segmentos de Inteligência e de
Contrainteligência, e empregada “a serviço da sociedade e do Estado Brasileiro”, “um
Estado Democrático de Direito” – em que o Estado e a sociedade têm o mesmo peso
e valor, conforme a doutrina da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
92
militares latino-americanos para agir contra o comunismo no
continente (SANCHES, 2016)
O Paraguai — juntamente com o Brasil, Guatemala, Bolívia, e
Colômbia — foi selecionado em 1956 como um dos primeiros países
latino-americanos a receber o programa de treinamento policial.
Para lá foi designado o Ten. Cel. Robert K. Thierry, formado pela
Escola de Inteligência Estratégica dos EUA, enviado pela Embaixada
Norte-americana em Assunção com a missão de instalação,
assessoramento, e treinamento contínuo do pessoal da Direção
Nacional de Assuntos Técnicos (“la Técnica”), que foi responsável
pela tortura, morte, desaparecimento e lesões físicas e psicológicas
a quem se atrevesse a questionar as políticas baseadas na Doutrina
de Segurança Nacional.
Antes de Robert Thierry, o tratamento nos interrogatórios
era violento e primitivo, com a utilização de claves de ferro
cortantes, socos, dentre outros, que careciam de “refinamento
metodológico”, eficiente e devastador que veio de fora, segundo
Riquelme (op. cit.). Assim, Thierry apresentou a tortura sistemática,
com a aplicação de descargas elétricas, imersão na água, golpes nas
zonas mais vulneráveis do corpo, acompanhamento médico para
calibrar o volume da descarga a ser aplicada em cada caso, com o
fim de arrancar confissões dos detidos.
93
Fonte: Pureza, 2016
95
Referente à capacitação profissional, a Senasp lançou as
“Bases Curriculares para a Formação dos Profissionais da área de
Segurança do Cidadão”, com o objetivo de descrever e nortear
algumas das ações pedagógicas relacionadas ao perfil desejado para
os profissionais da área, os princípios pedagógicos, as dimensões do
conhecimento e o desenho básico do currículo com suas disciplinas.
Destaque para a inclusão da disciplina Atividade de Inteligência, que
anteriormente algumas academias tratava como Atividades de
Informação e Contrainformação.
Em 2003, as Bases Curriculares foram substituídas pela
Matriz Curricular Nacional (MCN), e esta, pela Matriz Curricular
Nacional em Movimento - Diretrizes Pedagógicas e Malha
Curricular, a MCN foi atualizada em 2009.
Nesse contexto, como forma de incrementar a cooperação
intergovernamental, a Senasp criou em 2003 o Sistema Único de
Segurança Pública (Susp), que estabeleceu seis eixos temáticos nos
quais as ações deveriam ser concentradas, dentre eles a gestão
unificada da informação, gestão do sistema de segurança, e
formação e aperfeiçoamento de policiais.
No Pará, não encontramos nenhum registro na Academia de
Polícia Civil sobre as disciplinas Atividade de Informações ou
Atividade de Inteligência nos cursos de formação de policiais civis,
anteriores a 2005. Assim, nossos policiais civis não possuíam
formação na área de Inteligência ministrada em nossa academia de
polícia.
Em fevereiro de 2005, com a morte da missionária
norteamericana, Dorothy Stang, em Anapu/PA, o juiz deferiu a
medida cautelar de interceptação telefônica e o Núcleo de
Inteligência Policial (NIP) teve que emergencialmente
operacionalizar a interceptação no Sistema Guardião, que ainda não
estava em funcionamento.
Todavia, os policiais não haviam sido capacitados conforme
previsto no contrato com a empresa que vendeu e instalou o
Sistema Guardião no Estado, mas pela necessidade, decidiu-se
operacionalizar assim mesmo as interceptações legais telefônicas
96
concedidas no “Caso Dorothy Stang”, com o conhecimento básico
adquirido pelos policiais do Núcleo de Inteligência Policial (NIP) que
acompanharam a montagem e apresentação de características dada
pela empresa.
Assim, conseguiu-se dar suporte às equipes operacionais da
PCPA que atuaram em Anapu/PA, com êxito na resolução do crime e
consequente prisão dos mandantes e pistoleiro. A experiência
marcou a vida profissional do autor principal, pela decisão advinda
de uma situação extrema, que acabou como uma “proeza” bem
sucedida, mas que não houve a capacitação anterior dos
profissionais para a execução de tarefas técnicas e de interceptação
legal telefônica.
Após o Caso Dorothy Stang, verificou-se a necessidade de
criação de um grupo operacional de pronto emprego na Polícia Civil
do Pará, com condicionamento físico, treinamento contínuo, e que
pudesse ser mobilizado com rapidez para o trabalho de Polícia
Judiciária, e que também assessorasse com agilidade o delegado
geral e o diretor de inteligência policial.
Assim, criou-se o Grupo de Pronto Emprego (GPE), cujo
processo seletivo foi realizado internamente mediante ficha de
inscrição, análise de currículo (experiências anteriores à polícia e na
instituição), teste de aptidão física, entrevista e pesquisa social. Este
foi o primeiro curso da Polícia Civil do Pará a incluir a disciplina
Atividade de Inteligência nos cursos Básico (10 h/a) e Avançado (20
h/a), e teve como alunos profissionais das seguintes categorias:
delegados, investigadores e escrivães.
Posteriormente, incluiu-se a disciplina Atividade de
Inteligência no Curso de Formação de Policiais Civis (concurso C-
89/2006, 680 h/a), em 2007, com carga horária de 20 h/a, como
etapa do concurso público, para alunos delegados, investigadores,
escrivães e papiloscopistas. Mesmo não sendo o objetivo deste
trabalho, mas a título de informação, nos concursos seguintes a
carga horária foi reduzida para 10 h/a (concurso C-149/2009, 480
h/a) e depois aumentada para 14 h/a (último concurso – 2014, 600
h/a), com alterações de ementa da disciplina.
97
A questão dos currículos da PCPA foi tratada por Sedovim
(2008, p. 54-55), em seu estudo sobre a formação dos policiais civis
do Estado do Pará, tendo como foco uma investigação sobre os
currículos desses cursos na Acadepol, compreendendo o período de
1998 a 2007. A pesquisa teve como objetivo geral “realizar uma
apresentação dos currículos da formação dos policiais civis no Pará,
assim como verificar quais fatores podem ser determinantes para a
construção dos currículos no que se refere às disciplinas e suas
respectivas cargas horárias, que o contemplam”.
Dentre os vários aspectos apontados pela autora quanto à
escolha do tema, a experiência profissional na Acadepol em
participar e/ou acompanhar a construção dos projetos de cursos
voltados para a formação de policiais civis do Estado do Pará, bem
como atuar como docente em algumas das disciplinas ministradas
nesses cursos.
Dentre os resultados da análise, as mudanças constantes
relativas à estruturação dos currículos que compõem aqueles cursos,
principalmente no que se refere à estruturação das disciplinas dos
mesmos e de suas respectivas cargas horárias, com “falta de
uniformidade quanto aos currículos, absolutamente variáveis para a
formação dos mesmos cargos de policiais”, a exemplo, determinado
concurso público cujo curso de formação era de 1.030 h/a, enquanto
que para outro, que tinha como finalidade formar os mesmos
profissionais para o exercício das mesmas funções, percebia-se uma
redução de 350 h/a da carga horária total do curso, ou seja,
passando a ter apenas 680 h/a. O que diria a autora, policial
aposentada, sobre as alterações realizadas posteriormente:
Concurso C-149/2009 (480 h/a) e o último, realizado em 2014 (600
h/a)?
Para Sedovim (2008, p. 11), “essa discrepância certamente
influenciará na construção das disciplinas a serem ministradas nos
cursos de formação, refletindo diretamente nos objetivos a serem
alcançados”.
Segundo Sedovim (2008, p. 61), os eventos selecionados
para estudo ocorreram em períodos marcados por mudanças,
98
inovações e transformações voltadas para o ensino do profissional
de Segurança Pública no Brasil, tendo como diretriz pedagógica
desse “marco” um novo pensar e olhar para o ensino policial com as
Bases Curriculares para a Formação dos Profissionais da Área de
Segurança do Cidadão (2000), a Matriz Curricular Nacional para a
formação em Segurança Pública (2004) e a Matriz Curricular em
Movimento: diretrizes pedagógicas e malha curricular (2006). A
pesquisadora realizou a análise dos currículos referentes aos três
Concursos Públicos selecionados no período de estudo às categorias
delegados, escrivães e investigadores, bem como dos editais dos
concursos e projetos de cursos de formação policial, este último
elaborado pela Acadepol.
Relativo aos fatores externos à Acadepol que podem ser
determinantes para a construção dos currículos dos cursos de
formação de policiais civis, a pesquisa apontou para uma série de
fatores determinantes, dentre os quais: “1) A falta de uma identidade
dos currículos dos cursos, quanto a grande flexibilidade e
diferenciação de carga horária, das disciplinas que compõem os
currículos, bem como, as disciplinas que são suprimidas dos
currículos, sem que critérios sejam diagnosticados nesse sentido; 2)
As influências de demandas externas, quanto à urgência da
formação desses policiais, bem como da necessidade em dar
respostas rápidas à sociedade nos serviços prestados pelo
profissional de segurança pública; problemas de verbas
orçamentárias para a realização de uma formação, comprometendo
assim a qualidade e excelência desses cursos; e 3) Através das ‘falas’,
extraídas de conversas ‘informais’, mantidas com ex-diretores e
funcionários da ACADEPOL, alunos egressos dos cursos e,
professores cadastrados no Instituto de Ensino de Segurança do
Pará – IESP, que ministram aulas na Academia de Polícia Civil do
Pará, que enquanto conteúdos representacionais expressos em
torno da temática, posicionaram-se de forma bastante crítica, o que
vem corroborar para uma reflexão crítica/construtiva, das pessoas
que elaboram e executam as atividades pedagógicas e
administrativas do ensino policial civil no Pará.
99
3 ANÁLISE DOS RESULTADOS
No primeiro nível de análise apresentam-se as evidências
qualitativas organizadas segundo a dimensão a qual estejam
vinculadas: “Formação do docente”, “Ingresso na docência em
Segurança Pública”, “Experiências no ensino/capacitação de docente
para atuar na Segurança Pública”, e “Relação acadêmica na PCPA”.
Dentre os resultados na dimensão “Formação do docente”,
com relação à Formação Acadêmica da docente entrevistada,
Zeneide Sanches Pureza, no período de 2005 a 2006, ela possuía
duas graduações (bacharelado), uma especialização em Educação,
uma especialização (380 h/a – Curso Básico de Inteligência/ABIN) e
diversos cursos de capacitação (Metodologia de Produção do
Conhecimento, Entrevista, Propaganda, dentre outros realizados no
Centro de Formação em Recursos Humanos (CFARH) e na Escola de
Inteligência (EsInt) da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Somente em 2008 a docente realizou o Curso de Formação de
Docentes em Segurança Pública, e iniciou o mestrado em Educação
com Ênfase em Investigação Educativa.
Na dimensão “Ingresso na docência em Segurança Pública”,
de acordo com a docente entrevistada ela teve conhecimento por
meio de matéria em jornal local sobre a abertura de período de
credenciamento de currículos no Instituto de Ensino em Segurança
Pública (Iesp) do Pará, inscreveu-se e seu currículo foi analisado por
banca avaliadora do instituto 3 que a chamou para ministrar a
disciplina Atividade de Inteligência para cursos do Corpo de
Bombeiros Militar (BM) a partir de 2005.
Na dimensão “Experiências no ensino/capacitação de
docente para atuar na Segurança Pública”, a entrevistada informou
3
De acordo com o edital, os currículos eram pontuados e as dez melhores notas eram
selecionadas pelo Núcleo de Informações Docentes (NID) para ministrar a disciplina
(se o primeiro colocado não pudesse, chamavam o segundo, etc.). Esse sistema
funcionou até 2008, e a entrevistada ficou em primeiro lugar nesse período. Depois,
mudou a direção do Iesp e passaram a chamar o professor por indicação das
academias.
100
que sua primeira experiência educacional em Segurança Pública foi
no Curso de Formação de Sargentos do Centro de Formação,
Aperfeiçoamento e Especialização de Praças “Maj. Henrique Rubim”
(CFAEHR/BM), e que após ter sido convidada para ministrar a
matéria participou de oficinas pedagógicas com os demais
professores selecionados e teve acesso à Matriz Curricular Nacional
da Senasp e alinhamento com a doutrina institucional do CBM.
Quanto à capacitação de docente para atuar na Segurança
Pública, a princípio, sem formação pedagógica, foram muito úteis as
oficinas pedagógicas do CFAE/BM, que de forma muito didática os
organizadores possibilitaram a confecção de plano de aula,
relatórios e, principalmente, o acesso à MCN/Senasp.
Posteriormente, acabou por realizar o Curso de Formação de
Docentes em Segurança Pública, promovido pelo IESP, e o mestrado
em Educação com Ênfase em Investigação Educativa (em que
investigou problemas da formação educacional de policiais civis em
Belém), e a cada disciplina que ministrava exercitava os
conhecimentos adquiridos nos cursos e leituras que realizava,
buscando também sua experiência como aluna do Curso de
Formação de Policiais Civis, em 1991.
A experiência como aluna policial talvez tenha feito toda a
diferença na experiência docente (motivação pela busca de soluções
para os velhos problemas educacionais): ingressou com 19 anos
(universitária) na academia de polícia e recebeu uma punição
“atípica” por ter chamado o professor pelo nome na prática de
Educação Física: ir para o alto da caixa d’água da academia (hoje,
Hospital Metropolitano de Belém) até o final da aula. O problema
era que a aluna tinha medo de altura, mas o episódio serviu como
uma superação do medo e exemplo de uma questão complexa na
formação de policiais civis: o “professor” não tinha formação
acadêmica em Educação Física!
Na dimensão “Relação acadêmica na PCPA”, com a
necessidade de criação do GPE na Polícia Civil do Pará, o diretor do
NIP encaminhou à docente entrevistada (que também trabalhava
101
com ele na reestruturação do núcleo de inteligência) um esboço de
projeto de criação do grupo com respectivo curso de formação.
Pela necessidade do NIP em assessorar o delegado geral em
tempo oportuno, e também ser assessorado pelo braço operacional
de pronto emprego, a docente entrevistada vislumbrou ser
oportuno a inclusão da disciplina Atividade de Inteligência, visto
que já ministrava essa disciplina para os cursos de sargento e de
soldados BMPA e PMPA, e na PCPA não existia essa disciplina.
Contudo, ao retornar o projeto da Academia de Polícia Civil
(Acadepol) para o diretor do NIP, a disciplina Atividade de
Inteligência foi retirada do texto, e na tramitação para a aprovação
do delegado geral a docente entrevistada inseriu novamente a
disciplina Atividade de Inteligência e, assim, foi implantada a
matéria pela primeira vez na PCPA, com 10h/a no Curso Básico e 20
h/a no Curso Avançado.
Em seguida, o diretor do NIP e a docente entrevistada
conseguiram inserir a disciplina também nos Cursos de Formação de
Policiais Civis (2007 - delegado, investigador, escrivão e
papiloscopista), com 20 h/a. De acordo com a professora, na
construção das ementas de curso buscou sensibilizar os alunos para
a importância da Atividade de Inteligência na corporação, visto que
em virtude do quantitativo de h/a reduzido (10-20h) não se
vislumbrou formar profissionais para atuarem na atividade (em
operações ou análise4), mas sim a possibilidade de sensibilização
para o pronto atendimento das demandas dos profissionais de
inteligência.
De acordo com a entrevistada, as ementas foram
construídas com ênfase em Segurança Orgânica (atualmente
chamada Segurança Corporativa), e posteriormente modificadas
pela Acadepol, com redução para 10h/a, não havendo gestão de
continuidade do negócio público.
4
Em 2008, por conta da realização do Fórum Social Mundial em Belém/PA, a Senasp
realizou vários cursos de capacitação, dentre eles o Curso Básico de Inteligência com
220 h/a, com disciplinas introdutórias de 30 h/a, ou seja, praticamente impossível
segundo a entrevistada compactar conteúdos para 10-20 h/a.
102
Dentre as limitações apontadas pela docente, a falta de uma
cultura institucional de inteligência, assim como confusões sobre o
que de fato seria a atividade e sua finalidade de assessoramento
(assessorar autoridades e assessorar unidades operacionais),
confundindo assim a produção do conhecimento com o relatório de
transcrição de interceptação legal telefônica, dentre outros.
Por conta dessa cultura, disseminou-se a ideia de que
trabalhar com inteligência é o mesmo que trabalhar com
interceptação telefônica.
4 CONCLUSÃO
A partir das análises realizadas, considera-se pertinente
deixar como aporte da pesquisa uma série de considerações sobre a
forma como a disciplina Atividade de Inteligência foi inserida na
formação de policiais civis do Pará, no período de 2005 a 2006.
Verificou-se que o Brasil, assim como diversos países da
América do Sul, sofreu forte influência da doutrina norte-americana
de Informações e Contrainformações, difundidas por meio de cursos
somente para a cúpula militar desses países, com reflexos nos
campos político e econômico. No Brasil, foi criada a Divisão de
Polícia Política e Social, que juntamente com o Serviço Nacional de
Informações atuaram na vigilância e na repressão de adversários
políticos do regime vigente, com atuação nas unidades da federação
das DOPS estaduais: com atribuições de investigar crimes políticos.
Historicamente, nossos policiais não recebiam treinamento
para a rotina policial, recebiam uma estrela que os habilitava ao
desempenho da função e, posteriormente, com a criação da
Acadepol, a formação se deu de acordo com as necessidades
empíricas. Quanto à formação em Atividade de Inteligência (ou
Informações) de nossos policiais na Acadepol, corrobora-se a nossa
pesquisa por não termos encontrado registros sobre a existência de
tais disciplinas.
Daí inferir-se que a percepção de nossos policiais para as
ações da Atividade de Inteligência, com formação anterior à
103
inclusão da disciplina nos cursos de formação, estaria associada às
práticas da investigação policial e, principalmente, às técnicas de
interrogatório, a exemplo das ações desenvolvidas no Paraguai pelo
Coronel Robert Thierry, responsável pela capacitação em “técnicas
de interrogatório”.
Dentre os resultados na dimensão “Formação do docente”,
verificou-se formação acadêmica na graduação (inclusive a jurídica),
especialização na área educacional e na área de Inteligência, com a
realização de muitos cursos de capacitação para o exercício da
Atividade de Inteligência realizados no Centro de Formação em
Recursos Humanos (CFARH) e na Escola de Inteligência (EsInt) da
Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Tal possibilidade de
capacitação na área da Atividade de Inteligência foi atípica a um
policial civil, e se deu em função da servidora ter sido requisitada
pelo órgão federal de Inteligência, e seguramente influenciou seu
trabalho como docente no IESP/PA.
Na dimensão “Ingresso na docência em Segurança Pública”,
segundo a docente seu ingresso se deu via processo de seleção de
docentes, com análise e pontuação de currículo, sem a ingerência do
famoso “Quem Indica (QI)”, uma vez que de outra forma seria difícil
a aceitação por se tratar a docente em seu órgão de origem
Investigadora de Polícia Civil (e para alguns delegados seria um
absurdo ter um subordinado como docente).
Na dimensão “Experiências no ensino/capacitação de
docente para atuar na Segurança Pública”, verificou-se a
importância das oficinas pedagógicas para os docentes, tanto os
técnicos quanto os pedagogos, pois alinham as ações formativas à
Matriz Curricular Nacional da Senasp e à doutrina institucional.
Na dimensão “Relação acadêmica na PCPA”, verificou-se que
as necessidades práticas laborais impuseram a necessidade
institucional de tomada de decisões, como no caso “Dorothy Stang”,
de utilização do Sistema Guardião antes mesmo da capacitação de
servidores do NIP/PCPA, ou mesmo na criação do Grupo de Pronto
Emprego (GPE) /PCPA, e na criação deste, como se deu a inclusão da
disciplina Atividade de Inteligência, pois apesar da Senasp já prever
104
essa disciplina, a Acadepol ainda não a percebia como importante,
talvez por falta de uma cultura institucional.
Nesse contexto, reforça o pensamento de Sedovim (2008)
sobre as influências de demandas externas, quanto à urgência da
formação desses policiais, bem como da necessidade em dar
respostas rápidas à sociedade nos serviços prestados pelo
profissional de segurança pública, além de problemas de verbas
orçamentárias para a realização de uma formação, comprometendo
assim, a qualidade e excelência desses cursos, com as constantes
modificações de carga horária dos cursos de formação de policiais
civis.
A partir das análises da implantação da disciplina Atividade
de Inteligência na PCPA, no período de 2005 a 2006, e seus avanços,
fica a reflexão sobre a falta de gestão de continuidade do negócio
público, pois com a mudança de governo e de direção dos órgãos
estatais, é como se tivesse ocorrido um retrocesso no período de
2007 a 2010, com a redução de carga horária (10 h/a) e mudança de
ementa de disciplina por profissional que não tinha formação na
Área de Inteligência, e “elaborou” apostila com a Doutrina Nacional
de Inteligência de Segurança Pública (DNISP) e a trabalhou na
reduzida carga horária, com estudos de caso do Sistema Guardião.
As questões de prova foram objetivas, de marcar, e versaram sobre
Inteligência, Contrainteligência e Operações de Inteligência.
Posteriormente, houve o ingresso de outros professores com cursos
na Área de Inteligência.
Vale lembrar que a DNISP foi alvo de investigações da
Polícia Federal, solicitadas pela Senasp, em função do vazamento de
material classificado (à época, Reservado) nas redes sociais, o que
reforça a tese de Sanches Pureza em sua dissertação de mestrado:
de que os policiais civis de Belém não percebem a Segurança da
Informação e Comunicações (SIC) como extensão da Segurança
Física adquirida na academia.
105
REFERÊNCIAS
106
título de Mestre em Educação com Ênfase em Investigação
Educativa, Facultad de Filosofía y Ciencias Humanas, Universidad
Católica “Nuestra Señora de la Asunción”. Assunção: PY, 2011.
107
108
II. SEGURANÇA PÚBLICA NO SÉCULO XXI
Lascas e rasgos: palavras farpadas
A história do arame farpado está ligada a Revolução Industrial, e tinha
como função imediata, limitar o terreno para os animais domesticados não
fugirem. Esse cercado espinhento foi inventado no estado
de Illinois nos Estados Unidos em 1873 e quinze anos depois, o arame farpado
estava sendo utilizado pelos militares ingleses como instrumento de guerra.
Depois das duas grandes Guerras Mundiais, e tantas outras pequenas no
cotidiano, o arame farpado se internacionalizou e tornou-se símbolo de
atrocidades desumanas, como holocausto, e também de contenção de ideias,
como as barricadas de ruas.
Trouxemos essa invenção das farpas metálicas para o cotidiano
urbano medonho, criamos trincheiras nos terrenos de guerra nas cidades.
Então ampliamos nosso vocabulário para refúgio: cercado, vedação, muro,
gradeamento, sebe, valado, sitiado, circunvalado, encurralado, ladeado,
rodeado, muramento, parede, cerca-elétrica.
O poema “Lascas e rasgos” fala das palavras que provocam brechas no
volume maciço de frases violentas que golpeiam o cotidiano. Palavras
farpadas rasgam respiradouros de vida nos hábitos sangrentos dos homens.
Como num estado onírico-criador, apenas no mundo da linguagem as
palavras-farpadas conseguem rasgar os caducos vocábulos cansados,
soterrados em camadas, assim, desenvolver novos significados, resignificar as
relações humanas para o convívio com o outro. Nos rasgos da palavra-
comum brotam novos raminhos de verde-chuva impondo a vida.
É possível, então, uma palavra-farpada abrir rasgos em vocábulos velhos e
atrofiado de ira, carregados de barbáries? É possível nos espaços abertos dos
rasgos germinarem novas ideias de vida nas biografias dos que vivem em
coletividade? É possível reativar uma coletânea de palavras de boas-novas
nos horizontes maçantes do convívio humano?
Resignificar palavras, rever as camadas, produzir fluxos de acontecimentos da
palavra-imagem, são atos que mudam o presente dos vocábulos, seus vários
passados, suas várias formas de encadeamento, suas várias hierarquias de
importâncias, suas diversas redes de determinações, seus diversos campos
ideológicos. A palavra-farpa é necessária para reavivar nossa capacidade de pensar e
produzir sentidos, porque é desigual a luta constante contra a corrupção das ideias,
dos sentidos e das avalanches ideológicas que sedimentarem camadas rígidas e de
difíceis rasgos sobre nossas palavras corriqueiras.
(Imagem e Texto Por Ilton Ribeiro dos Santos)
109
SEGURANÇA PÚBLICA COMO DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL DE
PRESTAÇÕES E A IMPORTÂNCIA DE SUA EFETIVAÇÃO NO SÉCULO
XXI
ABSTRACT:
The fundamental social right to public security has been violated,
since the State can not contain the phenomenon of contemporary
violence or reduce it to reasonable levels, this has negatively
reflected the life of the citizens, since they do not have a safe
environment where they can live and Interpersonal relationships to
develop their potentialities. This research was developed in the light
of a juridical-sociological approach to the right to public security, in
order to show the importance of its classification as a fundamental
social right of benefits, in order to have greater involvement of all
public agencies, in order to implement policies That can promote
citizenship.
110
KEYWORDS: Public Security, Fundamental Rights, society.
1 INTRODUÇÃO
Ao não propiciar um ambiente seguro onde os cidadãos
possam viver e estabelecer relações interpessoais com objetivo de
desenvolver suas potencialidades, o Estado acaba por violar Direitos
Sociais Fundamentais.
Partindo desta premissa, este artigo faz uma abordagem
jurídico-sociológica do direito à segurança pública, a fim de mostrar
a importância de sua classificação como direito social fundamental
de prestações para que aja um maior engajamento de todos os
órgãos públicos no fomento de políticas públicas para o combate ao
fenômeno da violência contemporânea.
Utilizou-se de hermenêutica constitucional para interpretar e
descrever os elementos que influenciaram a travessia do modelo
jurídico do Estado de Direito para o paradigma do Estado
Constitucional.
Para esse desiderato, utilizou-se do método sistemático para
analisar o ordenamento jurídico brasileiro, notadamente a
Constituição Federal de 1988, dada a afirmação de que o direito à
segurança pública é um direito com a marca da fundamentalidade
formal e, também, material. Portanto, todos os órgãos públicos
devem estar engajados em efetivá-los.
111
Em verdade, não se pode olvidar que o Estado, nos regimes
democráticos, tem como fim a justiça e o respeito à liberdade.
Conforme Bobbio (1990), trata-se da limitação do poder estatal em
benefício das liberdades individuais. Este é o pensamento central de
Rousseau (1965, p. 30), considerado mentor da democracia
moderna, assim a definiu "uma forma de associação, que defenda e
proteja de toda força comum à pessoa e os bens de cada associado,
e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça, portanto,
senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente".
Portanto, fica evidente a importância do Estado na
manutenção de uma estrutura adequada de vida em sociedade,
estabelecendo punições para os transgressores das regras com
vistas a manter o equilíbrio e paz entre os homens, garantida a
liberdade de cada um para exercer seus Direitos. Nesse ponto, Reale
(1987) aduz:
[...] torna-se necessário estabelecer um
relacionamento equilibrado e dinâmico
entre o poder Público e a sociedade, de tal
modo que o Estado não seja fortalecido em
si e por si mesmo, isto é, em função dos
fins que lhe são próprios, mas sim em razão
das finalidades dos indivíduos, dos grupos
naturais e da coletividade em seu conjunto
(REALE, 1987, p.40).
112
ao Estado acompanhar o ritmo de desenvolvimento social para não
se tornar obsoleto, no que tange aos anseios dessa massa de
pessoas.
1
Sobre a evolução desse fenômeno, Franco Filho (2012) destaca que existem
globalizações diversas no decorrer de nossa história (império romano, Antiguidade;
grandes descobertas, por volta do século XVI; revolução industrial, do século XIX;
chamada econômica, do século XX, chegando no XXI).
113
democracia formal (democracia das
maiorias) pela democracia substancial (ou
material); (5) distinção entre vigência e
validade da lei; (6) convivência com as
antinomias e lacunas do ordenamento
jurídico; (7) eficiente sistema de controle de
constitucionalidade das leis; (8) revisão do
papel do juiz; (9) revisão do papel da
ciência jurídica; e (10) revisão e atualização
normativa do princípio do devido processo
legal. (GOMES, 2008, P.15-18).
114
democracia. O Estado Democrático de Direito é, portanto, um Plus
em relação ao Estado Social, na medida em que o Direito é visto
como instrumento necessário à implantação das promessas de
modernidade não cumprido pelo Estado Social”. Nesse passo, Streck
(2005), afirma:
O Estado Democrático de Direito
representa, assim, a vontade Constitucional
da realização do Estado Social. É nesse
sentindo que ele é um Plus normativo em
relação ao direito provedor-
intervencionista próprio do Estado Social
de Direito [...] Desse modo, se a
Constituição se coloca o modo, é dizer, os
instrumentos para buscar/resgatar os
direitos de segunda e terceira gerações [...]
é porque no contrato social – do qual a
Constituição é a explicitação – há uma
confissão de que as promessas da
realização da função social do estado não
foram (ainda) cumpridas [...] A noção do
Estado democrático de Direito está, pois,
indissociavelmente ligada a realização dos
direitos Fundamentais. É desse liame
indissolúvel que exsurge aquilo que se
pode denominar de Plus normativo do
estado democrático de direito, (STRECK,
2005, p. 38-40).
115
Sobre a marca da fundamentalidade formal, referindo-se a
Constituição Alemã, Alexy (2008, p.69) acentua que normas de
direitos fundamentais são as contidas nas disposições dos artigos
primeiro ao décimo nono, bem como as disposições garantidoras de
direitos individuais. Conclui que “normas de direitos fundamentais
são as normas diretamente expressas por essas disposições”.
Desta forma, no contexto nacional, a segurança pública tem
a marca da fundamentalidade formal, já que a segurança é um
direito social positivado no artigo 6º da CF/88 e, também
assegurado no caput do art. 5º da CF/88. Até porque, para ter uma
vida digna é necessária a valorização do princípio da dignidade
humana - art. 1º, III – (BRASIL, 1988).
Enfatiza-se que, a fundamentalidade material é atinente à
correlação entre os direitos fundamentais e o núcleo de valores que
informa a Constituição Federal, notadamente os princípios
enumerados no Título I da CF/88, dentre os quais, a dignidade da
pessoa humana.
Portanto, sob aspecto material, os direitos fundamentais
representam as decisões axiológicas fundamentais eleitas pelo
constituinte a respeito da estrutura do Estado e da Sociedade. Nesse
sentido, a segurança pública é um direito fundamental com a marca
da fundamentalidade material2, à medida que é considerado um
direito especial relativo à vida, visto que se trata de um direito que
assegura proteção aos cidadãos.
Este conceito material tem também, segundo Olsen (2008,
p.24), “especial relevância para se compreender a real
fundamentalidade de todos os direitos fundamentais previstos
expressamente no texto constitucional, ainda que não exatamente
no catálogo do Título II”. Assim, a segurança pública assegurada no
2
“Afinal, o constituinte inseriu uma cláusula de abertura quando tratou do regime de
direitos fundamentais no parágrafo 2º do artigo 5º, da CF, admitindo como
fundamentais os direitos decorrentes dos princípios”, bem como, do regime
constitucional, e aqueles previstos em tratados internacionais. Nesse prisma, somente
poderiam ser considerados direitos fundamentais não expressamente previstos na
Constituição aqueles que, materialmente, fossem dotados da mesma dignidade
(OLSEN, 2008, p.24).
116
art. 144, capítulo III da Constituição Federal de 1988, ainda que não
conste formalmente no Título II, é um direito fundamental com a
marca da fundamentalidade material.
Frisa-se que sendo o direito social entendido como direito
fundamental, possuiu aplicação imediata conforme o escólio de
Bonavides (2009, p.518) que “atribui aos direitos sociais o caráter de
direitos fundamentais, à medida que positivados no texto
constitucional, e submetidos ao regime da aplicabilidade imediata
prevista no § 1º do art. 5º da CF/88”.
117
garantir e concretizar a ordem pública e proteção à incolumidade da
pessoa e o seu patrimônio, numa obrigação de fazer, para a
realização do bem-estar social, finalidade cobrada no Estado
Democrático de Direito”. É que, conforme observa Alexy (2008, p.
201-202), “quando se fala em ‘direitos a prestações’, está a fazer
referência em ações positivas fáticas”.
Com objetivo de efetivar o direito à segurança pública, a
Constituição Federal de 1988 discriminou/determinou órgãos e
instituições a fim de satisfazer o direito a prestações positivas por
parte do Estado, sendo algumas delas: Polícia Federal; Polícia
Rodoviária Federal; Polícia Ferroviária Federal; Polícias Civis; Polícias
Militares e Corpos de Bombeiros Militares, art. 144, I a V; e as
Guardas Municipais, § 8º, (BRASIL, 1988).
Sobre a estrutura de direitos criados com objetivos de
efetivar o direito fundamental à segurança pública, Sarlet (2010,
p.185) afirma que:
Na Constituição vigente, os direitos a
prestações encontram uma receptividade
sem precedentes no constitucionalismo
pátrio, resultando, inclusive, na abertura de
um capítulo especialmente dedicado aos
direitos sociais no catálogo dos direitos e
garantias fundamentais. Além disso,
verifica-se que mesmo em outras partes do
texto constitucional (inclusive fora do
catálogo dos direitos fundamentais), se
encontra uma variada gama de direitos a
prestações” (SARLET, 2010, p.185).
118
A primeira constituição brasileira que tratou de segurança
pública foi a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937,
notadamente em seu artigo 16, inciso V, ao dispor que competia,
privativamente, a União legislar sobre “[...] o bem-estar, a ordem, a
tranquilidade e à segurança pública [...]” (BRASIL, 1937).
A expressão segurança pública não aparece de forma
taxativa na Constituição de 1946, no entanto, o artigo 183 dispunha
que era de responsabilidade das polícias militares a missão de
garantir a segurança interna e a manter a ordem nos Estados, bem
como nos Territórios e no Distrito Federal (BRASIL, 1946).
Assim como a Constituição Federal de 1946, a Constituição
de 1967 não previa taxativamente o termo segurança pública.
Contudo, estava disposto no art. 13, §4º, que os Estados deveriam se
organizar pelas Constituições e leis que adotassem, observando,
entre outros, os princípios previstos na Constituição Federal, sendo
da responsabilidade das polícias militares, instituídas para a
manutenção da ordem e segurança interna nos Estados, nos
Territórios e no Distrito Federal [...] (BRASIL, 1967).
Ao contrário das anteriores, A Constituição Federal de 19883
deu maior relevância ao tema, dedicando um capítulo específico
3
“A promulgação da Constituição Federal de 1988 – também conhecida como a
‘Constituição Cidadã’ – viabilizou novos compromissos políticos e sociais no sentido
da legitimação da democracia, do federalismo e da participação como grandes pilares
estratégicos da organização do Estado. Embora estabelecido em nível político-
institucional, o movimento de democratização brasileiro enfrenta ainda o desafio de
alcançar as práticas cotidianas dos cidadãos, permeando as relações da população
com as diversas agências (e agentes) do poder público, com os espaços e com os
indivíduos que o povoam. A experiência democrática dos últimos 20 anos tem
reiterado esta constatação, demonstrando que o leque de garantias constitucionais
não se projeta de modo uniforme na realidade social brasileira. Recortes
socioeconômicos, de gênero, étnico-raciais, articulam-se de forma complexa em
nossa história social, ditando o rumo de expansão destas garantias entre as diversas
“classes de cidadãos”. Para segmentos bastante expressivos da sociedade brasileira, o
exercício de certos direitos, como a liberdade de pensamento e o voto, não gerou
automaticamente o gozo de outros, como a segurança e o emprego, colocando para
os governos democráticos o desafio da afirmação ativa da cidadania plena no Brasil.
Esta tarefa, na atualidade, tem se caracterizado pelos esforços governamentais em
119
para tratar sobre a segurança pública. Esse direito fundamental está
disciplinado no artigo 144, Capítulo II, do Título V, sendo
considerado como responsabilidade de todos e dever do Estado
(BRASIL, 1988).
No sentido de implementar o direito fundamental social à
segurança pública, a Constituição Federal de 1988 integrou diversas
normas:
a - impõe um dever ao Estado de prestar o
serviço de segurança pública para a
manutenção da ordem pública e da
incolumidade das pessoas e do patrimônio,
por meio de norma constitucional válida
(artigo 144, “caput”);
b - por outro lado, estabelece o direito à
segurança pública como garantia
fundamental individual e social (artigos 5º,
“caput”, e 6º), atribuindo-o conteúdo
específico, qual seja, o de receber a
proteção do Estado para a manutenção da
ordem pública e da incolumidade das
pessoas e do patrimônio (artigo 144,
“caput”);
c - prevê que a prestação do direito à
segurança pública se desenvolva de forma
eficiente (artigo 37, “caput”, e 144, § 7º); e
d - atribui a competência para o legislador
de dispor sobre a organização e o
funcionamento das instituições de
segurança pública (artigo 144, § 7º).
(BRASIL, 1988).
4
Para Eugenio Pacelli de Oliveira, “o vocábulo ordem pública, consoante se acha
inscrito no art. 312 do CPP, e malgrado a pluralidade de sentidos que dali pode se
obter, parece indicar maiores cuidados e preocupações com a estabilidade e/ou
tranquilidade da comunidade, em relação ao cumprimento, pelo Poder Público, das
funções que lhe são inerentes em tema de segurança pública” (OLIVEIRA, 2004. p.
62).
121
Sobre os desafios do Estado (combate a violência)5, no que
se refere à promoção da garantia à segurança pública em um
patamar onde os cidadãos possam desenvolver suas atividades com
o mínimo de segurança, Soares (2006, p.117) formula as seguintes
indagações:
Podemos tornar as polícias melhores do
que são? Mais eficientes, mais honestas e
confiáveis, menos violentas e capazes de
valorizar seus profissionais? Podemos
adotar políticas públicas mais inteligentes e
eficientes na prevenção da violência,
mesmo com poucos recursos? Podemos
combater com mais eficácia a lavagem de
dinheiro e as conexões entre o crime, a
polícia e a política? Haveria algumas
medidas capazes de causar prejuízo a essa
gente, bloqueando pelo menos algumas de
5
O RDH “Segurança Cidadã com Rosto Humano: diagnóstico e propostas para a
América Latina” revela um paradoxo: na última década, a região foi palco de duas
grandes expansões: a econômica, mas também a criminal. Apesar das melhorias
sociais, a região continua a ser a mais desigual- e a mais insegura do mundo.
Enquanto a taxa de homicídios diminuiu em outras regiões, o problema tem
aumentado na América Latina, que registra mais de 100 homicídios a cada ano,
chegando a mais de um milhão de assassinatos entre 2000 e 2010. Embora a taxa de
homicídios tenha se estabilizado e até diminuído em alguns países, ela ainda é alta:
em 11 dos 18 países analisados, a taxa é superior a 10 homicídios por 100 mil
habitantes, um nível considerado epidêmico. Além disso, em todos os países
estudados, a percepção de segurança se deteriorou, e o roubo triplicou nos últimos
25 anos, tornando-se o crime que mais afeta os latino-americanos. (....) Uma das
principais lições aprendidas na região é que as chamadas políticas de “mão de ferro”
não funcionam: a forte repressão policial e criminal, muitas vezes coincidiu com altas
taxas de criminalidade na América Latina, diz o relatório. As experiências analisadas
confirmam que uma abordagem que proteja o direito a vida com dignidade e
integridade física e material está no centro da segurança cidadã, que é um bem
público, ao qual todas as pessoas devem ter acesso, e que é responsabilidade do
Estado.” PNUD Brasil. Relatório Regional de Desenvolvimento Humano recomenda
prevenção, reformas institucionais e acordos nacionais de longo prazo para lidar com
o crime e a violência. (PNUD, http://www.pnud.org.br/Noticia. 2013.
122
suas práticas? Haveria como lidar com o
ciclo vicioso dos crimes mais graves,
interceptando a dinâmica que os
realimenta? Poderíamos viver em um país
em que se andasse pelas ruas com menos
medo? Um país em que houve menos
violência doméstica contra as mulheres?
Em que os negros não sofressem tanto os
efeitos perversos do racismo e a
homofobia fosse quase apenas uma
lembrança amarga de um passado
preconceituoso? Um país em que as escolas
funcionassem e mantivessem as crianças e
os adolescentes mais interessados, o dia
inteiro, em atividades de ensino, arte,
cultura, esporte e lazer? Um país com mais
oportunidades e menos armas, menos
mães precoces e menos uso irregular do
solo, que agride o meio ambiente e impede
o planejamento urbano? Em que a política
fosse uma prática menos degradada? Em
que os governos fossem um pouquinho
mais decentes e eficientes? Em que a
estrutura do estado não se limitasse a
secretarias e ministérios, que são feudos,
rivais entre si, e por isso acabam
bloqueando a aplicação de políticas
públicas integradas e coordenadas? Um
país em que o acesso a justiça fosse menos
desigual? Em que a política criminal fosse
menos refratada por filtros de cor e classe?
Seria possível tornar o Brasil um país
menos injusto e um pouquinho mais capaz
de respeitar suas próprias leis? Seria
possível fazer com que a s leis valessem
123
realmente para todos? (SOARES, 2006
p.117).
124
concretização de direitos por via legal,
opere uma redução da força normativa
imediata dessas normas, trocando-a pela
força normativa da lei; c) não emanar
preceitos formal ou materialmente
incompatíveis com essas normas.
Por sua vez, ao Judiciário compete: a)
interpretar os preceitos constitucionais
consagradores de direitos fundamentais,
na sua aplicação em casos concretos, de
acordo com o princípio da efetividade
ótima e b) densificar os preceitos
constitucionais consagradores de direitos
fundamentais de forma a possibilitar a
sua aplicação imediata, nos casos de
ausência de leis concretizadoras.
No que tange ao governo e à
administração, incumbe-lhes um
importante papel na tarefa de
concretização dos direitos fundamentais,
tendo em vista que, no exercício de sua
competência planificadora, regulamentar,
fornecedora de prestações, os órgãos da
administração e do governo desenvolvem
tarefas de realização de direitos
fundamentais (PIOVESAN, 2003, p. 344-
345).
125
social, criando condições para diminuição das desigualdades sociais
que é fruto do embate entre riqueza e poder. Valorizando o
princípio da dignidade da pessoa humana para criação de um
ambiente onde as pessoas possam desenvolver suas potencialidades
(LOPES, 2008, p.69-80).
4 CONCLUSÃO
Conclui-se que, com a passagem do Estado de Direito ao
Estado Constitucional, deve ser dado um novo enfoque aos direitos
fundamentais, no sentindo de buscar sua máxima efetivação.
O direito à segurança pública não é considerado um direito
social fundamental apenas por constar expressamente no rol
taxativo da constituição Federal de 1988, visto que existe uma série
de direitos fundamentais sociais materiais, que tem como marca da
sua fundamentalidade, a correlação entre os direitos fundamentais e
o núcleo de valores que informa a Constituição, desta forma, sob
aspecto material, os direitos fundamentais representam as decisões
axiológicas fundamentais eleitas pelo constituinte a respeito da
estrutura do Estado, bem como, da Sociedade, é nesse sentido que
para a segurança pública pode ser considerado um direito
fundamental com a marca da fundamentalidade material.
No atual Estado Constitucional de direito, os direitos sociais
fundamentais de prestações deve receber tratamento especial do
Estado no que se refere à busca de sua efetivação, sendo à
segurança pública considerada um direito social fundamental de
prestação, conforme os valores consagrados na Constituição Federal
de 1988, todos os órgãos públicos devem estar engajados na busca
da máxima efetivação desse direito, para tanto, deve haver um
intercâmbio entre os poderes, judiciário, executivo e legislativo, para
implementar uma política criminal que não fique reduzida apenas
ao âmbito punitivo do Estado. Mas que valorize políticas sociais que
possam propiciar cidadania, com maior compromisso com a
transformação da estrutura social, criando condições para
diminuição das desigualdades sociais.
126
REFERÊNCIAS
127
CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
128
PNUD. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
www.pnud.org.br/Noticia. 2013.
129
PANORAMA CRIMINOLÓGICO: TRÁFICO ILEGAL DE PESSOAS NAS
FRONTEIRAS DO ESTADO DO PARÁ
130
phenomenon; and to compare international instruments with the
current policy applied in the State of Pará.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O tráfico de pessoas, nas fronteiras do Brasil, tem sido tema
de políticas públicas de grande importância no Brasil. As fronteiras
do país perpassam por onze Estados brasileiros, fazendo contato
direto com dez países da América do Sul. No caso das vítimas de
tráfico ilegal, diferente das migrações ilegais, há o agravamento do
fenômeno pela exploração ou a intenção de abuso por um
intermediário (CACCIAMALI; AZEVEDO, 2006). Ao considerar-se o
crime de tráfico de pessoas como uma prática milenar desde o
período da Antiguidade - e que até hoje se perpetua - o fenômeno
social “consiste na atitude de alguém (o aliciador) enganar ou coagir
a vítima, apropriando-se de sua liberdade por dívida ou outro meio
(físico, moral, psicológico etc.)” (PEREIRA, p.41, 2015).
O tráfico ilegal de pessoas afeta a população vulnerável de
um dos Estados de fronteiras mais frágeis do Brasil, o Estado do
Pará, que por sua extensão territorial faz contato direito com
Guiana, Suriname e Guiana Francesa e, por isso, é conferido a si
grande responsabilidade a planos de prevenção, combate e
enfrentamento ao tráfico ilegal, frequentemente atingindo mulheres
e crianças (QUAGLIA, 2008, p. 40, apud BARBOSA, 2000, p. 35) em
um dos países de fronteira com o Estado do Pará, Branco reflete
que:
(...) o problema explícito do tráfico de
mulheres com fins de exploração sexual
para o Suriname existe em suas múltiplas
facetas, apesar da ausência de estatística
oficial sobre o número específico de
brasileiros e brasileiras vivendo e
trabalhando atualmente no Suriname.
131
Dados relativos ao ano de 2004,
apontavam a estimativa de
aproximadamente 17 mil brasileiros no
País, vivendo na capital Paramaribo e em
outras colônias, sendo a sua grande
maioria ilegal, oriundos dos Estados do
Pará, Maranhão e Amapá. De igual modo
não existe estatísticas de quantas mulheres
sobrevivam da prostituição (boates e
garimpos) sendo certo que todas as
brasileiras são consideradas como tal para
os surinameses (BRANCO, p. 44, 2009)
132
suas vertentes. Pretende ainda, em específico, identificar a função
das principais instancias do poder público que elaboram as políticas
estaduais relacionadas ao tema; descrever a realidade social
percebida nas vítimas deste fenômeno; e comparar programas
internacionais com a política estadual vigente no Estado do Pará.
2 MÉTODOS APLICADOS
O estudo adotou como método o trabalho descritivo, com
exploração de bibliografia mista de Direito, Relações Internacionais,
Antropologia, Sociologia e matérias afins. Foi feito revisão de dados
publicados pelo sistema nacional de justiça e por instâncias
estaduais responsáveis por levantamentos e recepção de denúncias
de tráfico ilegal de pessoas.
A pesquisa também abrangeu, por meio de extensivo acervo
interdisciplinar, menções a estudos de Organizações Não-
Governamentais, monografias e manuais de enfrentamento ao
tráfico. O propósito foi a triangulação de informações a fim de
aclarar o panorama criminológico pretendido sem ater-se somente à
bibliografia tradicional, adicionando assim consistência ao artigo.
A organização do estudo sobre o tráfico de pessoas no
Brasil, em âmbito estritamente legal, é dividida em três partes
principais: a ação, o meio e o fim, ou seja, o fenômeno não é só um
crime “meio”, pois se caracteriza mesmo quando a exploração não
ocorre. Ainda que o presente artigo não se restrinja à menção da
legislação brasileira a respeito do tema proposto, é válido lembrar a
fundamentação jurídica explicitada no Código Penal brasileiro, Art.
239, que versa sobre o tráfico internacional de pessoas com fins de
exploração sexual, corrupção e prostituição de crianças,
complementado pelo Art. 244, do Estatuto da Criança e do
Adolescente. As leis mencionadas, e as referidas posteriormente no
presente trabalho fazem conjunto coercitivo, ou preventivo, com as
políticas sociais e projetos de combate ao fenômeno.
No Brasil, acordos internacionais que versam sobre Direitos
Humanos são inseridos na legislação interna com status de mesma
hierarquia do ordenamento jurídico (BARBOSA, 2010, p. 64), ou seja,
133
torna-se Emenda Constitucional. A melhor representação de
cooperação internacional sobre o tema de enfrentamento ao tráfico
de pessoas está na Resolução 55/25 do Protocolo Adicional a
Convenção contra o Crime Organizado Transnacional, que define o
recrutamento, ameaça e outros tipos de coação que envolva o
tráfico de pessoas.
A referência ao Protocolo de Palermo é intencional. É
considerado o instrumento jurídico que conceitua de uma forma
mais consensual entre os signatários do Acordo Internacional sobre,
em específico, o tráfico de pessoas e suas complexidades (agentes
aliciadores, vendedores intermediários, contatos internacionais, às
vezes, autoridades judiciais). Devido à ambição do projeto, muitos
dos membros signatários ainda estão em fase de adaptação ao
conteúdo do Acordo. Ele ainda busca, como objetivo futuro,
comparar estatísticas criminais de tráfico dos países signatários,
representando assim, um instrumento universal de formas efetivas.
Com esse conjunto de meios metodológicos que permitem
analisar o objetivo último do artigo (PINHEIRO, 2013, p. 12), em
outras palavras, objetivo este que inclui as relações de conceitos da
Criminologia com o fenômeno do tráfico ilegal de pessoas, tem-se
que não apenas referido justificativa jurídica, mas também conceitos
interdisciplinares que integram as complexidades do tema.
134
terras habitadas por esses povos. Havia basicamente duas opções:
ou os indígenas recuavam, ou eram reprimidos pelos portugueses,
que de forma gradativa dominavam até mais remotos territórios. O
autor, Victor Leonardi (1996, p.80-81), explica que:
A situação do baixo Amazonas, ainda em
terras do Pará, era muito semelhante [a
situação do que hoje é o Estado do
Maranhão], sendo o trabalho indígena
utilizado com frequência, tanto na aldeia
de Gurupatuba, atual Monte Alegre, como
nas de Jaguaguara e Santa Cruz do
Nhamundá, atual Faro. Os caboclos e
ribeirinhos, que ainda vivem hoje nessas
localidades, são descendentes daqueles
índios aculturados no século XVIII e, em
seguida, empregados em alguma atividade
extrativista regional, ou no transporte
fluvial, ou, ainda, no trabalho doméstico
(...) (grifo de autor).
135
que a diferença crucial entre tráfico de migrantes e tráfico de seres
humanos está no consentimento da vítima. Segundo Cícero Rufino
Pereira, “(...) enquanto que neste – tráfico de pessoas –
consentimento nunca existiu (ou é viciado por coação, fraude ou
similares), naquele – tráfico de migrantes – há o consentimento do
sujeito passivo do crime” (2015, p. 43).
Em contrapartida, os agentes ativos do fenômeno do tráfico
ilegal (aliciadores, compradores, traficantes de órgãos, agentes de
adoção ilegal, intermediários para trabalho escravo ou para
prostituição e pornografia dentre outras funções) recebem
estímulos da sociedade moderna que condicionam elementos
debilitadores de sentimentos sociais. Uma das teorias da gênese do
crime é a de Fatores Criminógenos, que destaca a Indiferença
Afetiva como carência altruística. Para Oliveira:
O mesmo empenho na competição
inevitável para alcançar objetivos
existenciais, que comumente é designado
pela expressão “lutar pela vida”, reduz
drasticamente as já delicadas emoções de
piedade e de probidade, de generosidade e
de altruísmo, de liberdade e de amor. A
redução extremada de todas as
manifestações da afetividade é fonte de
angústia patológica, sentida por muitas
pessoas sob a forma de medos vagos e
inidentificados. (1992, p. 51)
136
reales crecientes) y cuando las pautas para lograr éxito son
desconocidas y cambiantes”1 (2015, p.154).
1
A miséria dos seres humanos surge quando a realidade não cumpre suas
expectativas (salários reais declinantes em uma nação onde se espera o aumento dos
salários reais) e quando as diretrizes para o sucesso são desconhecidas e mutantes.
(DESIMONI, 2015, p. 154, tradução nossa)
2
BRASIL. Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos. Disponível em
<http://www.sejudh.pa.gov.br/conheca-a-sejudh/missao-2/>
3
BRASIL. Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos. Disponível em
<http://www.sejudh.pa.gov.br/diversos/conselhos/>
137
Contudo, Branco reflete que “a realidade da estrutura de
enfrentamento ao problema, hoje, apresenta-se muito incipiente,
para não dizer precária (...) com o estabelecimento de prioridades
cujos verbos traduzem sempre ações futuras, como levantar,
capacitar, mobilizar, articular e etc” (2009, p. 36, grifo do autor).
A Coordenadoria de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e
Trabalho Escravo, em conjunto com o serviço do Posto Avançado de
Atendimento Humanizado ao Migrante, articulam um rol de política
pública que garante o respeito e a dignidade aos direitos da pessoa
humana. Além de elaborar, também executa projetos de
enfrentamento ao tráfico de pessoas, como a execução, em 2015, de
uma das diretrizes do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Trafico
de Pessoas: a capacitação para enfrentamento ao Tráfico por meio
do “II Seminário Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas:
Interlocução entre as Políticas para Fortalecimento da Rede”,
promovendo a diálogo da sociedade civil e órgãos governamentais4.
Em maio de 2017, a referida Coordenadoria apresentou avaliação do
II Plano Nacional mencionado durante a 7ª Reunião Ordinária do
Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, em
Brasília, mensurando com demais Estados a realidade e aspirações
de políticas efetivas nas áreas mais vulneráveis.
Ainda no primeiro semestre de 2017, a ação conjunta de
órgãos do SEJUDH (a Coordenadoria de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas e Trabalho Escravo - CTETP, o Comitê Estadual de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – COETRAP, e a Comissão
Estadual de Erradicação ao Trabalho Escravo – COETRAE) alcançou
os municípios de Portel e Breves. Localizados no extremo norte do
Estado do Pará, na região da Ilha do Marajó, tais cidades já
participaram de uma rede de origem e destino do tráfico ilegal de
pessoas. O objetivo do Fórum Paraense de Educação para o Campo
realizados nas respectivas cidades foi desenvolver e fortalecer o
“atendimento em rede das demandas relativas à vivência de
4
Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos. II Seminário de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas: interlocução entre as Políticas para o fortalecimento da rede.
Disponível em < http://www.sejudh.pa.gov.br/setp/>
138
situação de Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo, além de
monitorar a implantação da municipalização do atendimento às
vítimas de tráfico de pessoas nos municípios elencados”5.
Entre os meses de abril e junho do referido ano, foi
desenvolvido um ciclo de capacitações do Projeto Direitos Humanos
em Cena. Ocorrido em instituições penais da região metropolitana
de Belém, é um projeto que exige sensibilidade, pois promove
divulgação e esclarecimento de temas delicados como trabalho
escravo e tráfico de pessoas com servidores que vivem em contato
direto com os detentos. Desenvolvido em parceria entre a Secretaria
de Estado de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH), a Secretaria de
Estado de Educação (SEDUC) e a Superintendência do Sistema
Penitenciário do Estado do Pará (SUSIPE), a proposta principal foi
fortalecer ações de prevenção contra o tráfico de pessoas 6.
5
Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos. Disponível em:
<http://www.sejudh.pa.gov.br/municipios-do-marajo-recebem-acao-de-articulacao-
para-enfrentamento-ao-trafico-de-pessoas-e-trabalho-escravo/#more-8536>
6
Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos. Disponível em: <
http://www.sejudh.pa.gov.br/capacitacao-em-casas-penais-prioriza-a-prevencao-ao-
trafico-de-pessoas/#more-8594>
139
ilegal. De uma forma sintética, “a sociedade cria vítimas” (SANTOS,
1976, p.161). O indivíduo é vitimizado nas relações/fatos sociais que
contribuem para exclusão ou deixam de contribuir à “efetiva
proteção dos direitos humanos”, permitindo que as vítimas tornem-
se “mais vulneráveis às investiduras dos traficantes” (BARBOSA,
2010, p. 35).
A realidade da rede do tráfico de pessoas incluiu ainda uma
complexa questão vitimológica, exposta por Hans Von Henting,
representado pela “contrariedade ao bom senso, tamanha
instabilidade demonstrada pelo indivíduo ao agir” (HENTING, 1979,
apud OLIVEIRA, 1996, p. 84). Inicialmente, tendo como maioria
recrutadores do sexo masculino, o tráfico de pessoas apresentou,
em 2008, em sua maior parte, aliciadoras que formavam uma teia de
conexões. São mulheres que, antes vítimas do tráfico ilegal, acabam
tomando partido na organização criminosa (algum privilégio por
relacionamento conjugal na hierarquia, envolvimento afetivo com
algum membro da organização etc). Essa rede que transforma
mulheres exploradas (vítimas) em aliciadoras (criminosas) compõe a
complexidade da dualidade causa-estado desses indivíduos,
“formado por aspectos desconhecidos da personalidade,
manifestam-se bruscamente, transformando determinado indivíduo
em criminoso ou em vítima, sem limites precisos entre um e outro”
(OLIVEIRA, 1996, p. 84).
140
elements of deception and/or coercion, and whether these were
sufficient to elevate the situation from one of voluntary
undocumented migration, to trafficking7 (SALT, 2000, p. 4).
Em ambiente internacional, é necessário mencionar o
principal instrumento de melhor consenso sobre a conceituação do
que é compreendido por tráfico ilegal de seres humanos. O
Protocolo de Palermo, documento adicional à Convenção das
Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional (do qual o
Brasil é signatário), foi aprovado em dezembro de 2000, e
compreende que:
A expressão “tráfico de pessoas” significa o
recrutamento, o transporte, a transferência,
o alojamento ou acolhimento de pessoas,
recorrendo à ameaça ou uso da força ou a
outras formas de coação, ao rapto, à
fraude, ao engano, ao abuso de autoridade
ou à situação de vulnerabilidade ou à
entrega ou aceitação de pagamentos ou
benefícios para obter o consentimento de
uma pessoa que tenha autoridade sobre
outra para fins de exploração sexual,
trabalho ou serviços forçados, escravatura
ou prática similares à escravatura, a
servidão ou a remoção de órgãos
(BRANCO, 2009, p. 14)
7
Muitas vezes, é difícil estabelecer se existem elementos de engano e/ou coerção, e
se estes foram suficientes para elevar a situação de uma migração voluntária
indocumentada, para o tráfico (SALT, J. Trafficking and human smuggling: a European
perspective. International Migration:International Organization for Migration, v.38, p.
31-56, 2000, tradução nossa)
141
enfatizando que a primeira dimensão no estudo do tema “trata dos
direitos civis e políticos” e a segunda dimensão “é a que trata dos
direitos sociais, culturais e econômicos” (PEREIRA, 2015, p. 50).
Conforme é realizada uma reflexão acerca da efetiva busca por
sustentabilidade e desenvolvimento humano no período
contemporâneo, a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas, consolidada pelo Decreto n. 5.948/2006 (geradora,
posteriormente, dos princípios contidos no primeiro e no segundo
Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas), absorve
uma base tríplice de prevenção, repressão à prática delituosa, e um
enfoque especial às vítimas desse tipo de delito (BRANCO, 2009, p.
29).
As demais ramificações executivas e de planejamento,
oriundas da Política Nacional mencionada, como a Estratégia
Nacional de Segurança Pública na Fronteira, representam um real
esforço por estabelecimento de Postos Avançados de Atendimento
Humanizado ao Migrante e por cooperação jurídica internacional.
Esta última, infelizmente, ainda apresenta “casos que se repetem
constantemente (...) onde a questão da cooperação fronteiriça [na
fronteira Brasil/Paraguai] para fins de enfrentamento ao tráfico de
pessoas é absolutamente falha” (PEREIRA, 2015, p. 127). No Estado
do Pará, pode-se mencionar como instrumento de cooperação
internacional entre o governo do Suriname e do governo do Estado
(junto a organização civil), a Declaração de Belém, em que “afirmam
a importância da cooperação entre os dois países para garantir a
melhoria da situação dos migrantes, especialmente das mulheres,
em ambos os países”8
Comitês e Coordenadorias Estaduais de Prevenção e
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas têm um papel ainda mais
específico e, na prática, são mais realistas com as particularidades de
cada região. No caso do Comitê Estadual de Prevenção e
8
Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC, em inglês United
Nations Office on Drugs and Crime). Declaração de Belém. Disponível em: <
https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil//noticias/2009/05-
maio/Declaracao_de_Belem.pdf>
142
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, do Estado do Mato Grosso,
por exemplo, há desdobramento de “informações sobre indícios de
aliciamento ou deslocamento de mulheres para exploração sexual”
nos quais “são compartilhadas com as frações de inteligência das
forças policiais e com a ABIN para o processamento e planejamento
das operações de repressão”9. O órgão articula e mobiliza a
sociedade e é composto por representantes de organizações da
sociedade civil, Poder Público Estadual e Federal10. No Estado do
Pará, o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado,
colegiado à Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos, e
implementados pelo Programa Nacional de Segurança Pública com
Cidadania, como unidades administrativas executam ações de
prevenção ao tráfico, de responsabilização de seus autores e
atenção às vítimas. As principais funções essenciais do Núcleo são
“articular, estruturar e consolidar, a partir dos serviços e redes
existentes, uma rede estadual de referência e atendimento às
vítimas do tráfico de pessoas”11. Consolidada pela Portaria n. 41, de
2009, Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Postos
Avançados também representam um sistema de referência e
atendimento às vítimas do tráfico de pessoas.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fenômeno social do tráfico ilegal de pessoas foi apontado
como estudo extenso, pois abrange esferas antropológicas, políticas,
econômicas, históricas, culturais, psicológicas e estruturais. O breve
estudo criminológico do fenômeno permitiu a compreensão de
9
Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos do Estado do Mato Grosso.
Disponível em: <http://www.sejudh.mt.gov.br/cetrap-comite-estadual-de-prevencao-
e-enfrentamento-ao-trafico-de-pessoas>
10
Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos do Estado do Mato Grosso. I
Simpósio Regional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Disponível em:
<http://www.sejudh.mt.gov.br/-/5273923-governo-realiza-1-simposio-regional-de-
enfrentamento-ao-trafico-de-pessoas>
11
Ministério da Justiça. Núcleos de Enfrentamento. Disponível em:
<http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-de-
enfrentamento/nucleos-de-enfrentamento>
143
doutrinas que interpretam a realidade da vítima e os impulsos dos
agentes criminosos. Uma visão panorâmica do tema buscou impedir
a cristalização de ideias, preconceitos e teorias simplistas sobre as
causas e os fatores da continuidade dessa violação de Direitos
Humanos.
Ao considerarmos o delito de aliciamento de pessoas para
exploração em suas diversas formas (fins de exploração sexual ou
trabalho análogo à escravidão, por exemplo) compreendemos a
conduta típica, antijurídica, na qual o sentimento prevalecente é de
que o responsável precisa sofrer sanção. Contudo, o artigo mostrou
que, embora o crime seja, em realidade, transnacional e de difícil
alcance das suas raízes, por vários fatores, é essencial ater-se por
alguns momentos na vítima.
As violações das quais o indivíduo foi privado (restrição à
vida, lazer, saúde, educação, convivência familiar e comunitária,
dentre outras reservas) aumentam a propensão à “delinquência
residual”, em outras palavras, a vítima torna-se criminosa, em
especial quando não há um amparo às vítimas ou a exclusão dessas
a qualquer auxílio, processo relacionado à explanada Vitimogenia
Social. A vulnerabilidade das vítimas é sua motivação à emigração, o
que cria verdadeiros centros de aliciadores preparados à coação de
indivíduos marginalizados.
As políticas públicas mencionadas são apenas o escopo
inicial das muitas iniciativas, governamentais ou de ação civil, que
importam ao problema do tráfico ilegal alguma discussão
construtiva em que busca solucionar gradativamente as dificuldades
regionais. Se o Brasil preserva um vasto território geográfico e busca
continuamente amparar seu território com proteção aos cidadãos e
migrantes construindo ordenamento jurídico e assistência social que
garanta o mínimo existencial dos indivíduos, o Estado do Pará
também se insere com muitos agentes determinados a pouco a
pouco desenvolver um plano estadual de enfrentamento ao tráfico
que seja eficaz, maduro e realista e que, efetivamente, combata o
fenômeno do crime organizado transnacional do tráfico de pessoas.
144
REFERÊNCIAS
145
ELBERT, Carlos Alberto. Criminologia Latino-Americana. Vol. 2. São
Paulo: Editora São Paulo, 2002
146
PERFIL DAS VÍTIMAS DE ACIDENTES DE TRÂNSITO ATENDIDAS
PELO HOSPITAL METROPOLITANO DE URGÊNCIA E EMERGÊNCIA,
DE ANANINDEUA-PARÁ
147
Metropolitan Emergency and Emergency Hospital. It concluded that
the total of 23,950 visits were made to victims of traffic accidents,
the majority of whom were male (74.71%), aged between 20 and 39
years (54.87%). The most common mode of transportation was the
motorcycle (46.56%) and 4 municipalities (Belém, Ananindeua,
Castanhal and Marituba) generated more than half (54.84%) of the
total demand. The day of the week with the highest occurrence was
Sunday (23.99%). The young and adult motorcyclists predominated
among the victims. The results of this research can support
intersectoral actions to prevent traffic accidents that are adequate to
the frequent profile of the victims, reducing the demand for traffic
accidents at the Metropolitan Emergency and Emergency Hospital.
1 INTRODUÇÃO
Os acidentes de trânsito (AT) representam um grave
problema de Saúde Pública, contribuindo para a redução da
qualidade e expectativa de vida, principalmente entre os jovens.
Estudos da Organização Mundial de Saúde (OMS) revelam que a
cada ano cerca de 1,3 milhão de pessoas perdem a vida, e outras 50
milhões são lesionadas em vias públicas de todo o mundo. Desse
total de mortes, quase a metade (46%) são pedestres, ciclistas ou
motociclistas, considerados os integrantes mais vulneráveis no
trânsito, justificando a necessidade de maiores pesquisas sobre o
assunto (OMS, 2011; 2013; 2015).
No período de 2013 a 2015, no Estado do Pará, 4720 pessoas
perderam a vida (DATASUS, s/d) e, somente no serviço de
emergência do Hospital Metropolitano de Urgência e Emergência
(HMUE), outras 23.950 foram atendidas em decorrência de AT. O
HMUE é um hospital integrante do Sistema Único de Saúde (SUS)
que, devido às especialidades oferecidas, é considerado um centro
de referência regional em atendimento de ortopedia/traumatologia,
atendendo diversos municípios do Estado do Pará e Estados
vizinhos.
148
Essa expressiva quantidade de vítimas de AT corresponde a
29,07% do total de pacientes atendidos pelos HMUE no mesmo
período, demonstrando a significativa demanda que os AT
representam para os serviços de emergência, além da notável carga
social, traduzida pelas sequelas e altos custos para a sociedade
(BRASIL, 2015; OMS, 2013).
Para a Polícia Rodoviária Federal (PRF), AT é todo
acontecimento não premeditado do qual resulte danos materiais
e/ou pessoais, envolvendo veículo na via pública (PRF, 2016). Pelas
características de sua ocorrência, os estudos sobre AT tornam-se
importante especialmente pela alta possibilidade de intervenção,
pois, sabe-se que a maioria dos atendimentos em emergências
decorrentes de AT poderiam ser evitados com a adoção de medidas
preventivas (BARROS et al., 2003). Nesse sentido, a geração de
informação sobre AT é fundamental para subsidiar a tomada de
decisão em setores como saúde, educação e fiscalização.
Assim, o presente estudo tem como objetivo descrever o
perfil das vítimas de AT atendidos no serviço de emergência do
HMUE, em Ananindeua, Estado do Pará, fornecendo subsídios para
o planejamento e desenvolvimento de ações efetivas de prevenção e
controle para a redução dos AT (CARDOSO, 2002) e consequente
diminuição da demanda de atendimento de AT pelo HMUE.
2 MÉTODO
Realizou-se um estudo epidemiológico analítico com
abordagem quantitativa dos registros de vítimas de AT atendidas
pelo HMUE, a partir de relatório gerenciais disponibilizados pela
Direção Geral do hospital. O recorte temporal foi o período de 1° de
janeiro de 2013 a 31 de dezembro de 2015, com a amostra da
pesquisa sendo composta por 23.971 registros de atendimentos.
Em seguida, fez-se a qualificação (limpeza) da base de dados
com exclusão dos registros duplicados. Utilizando a plataforma
Excel, foram comparadas as variáveis sexo, data de nascimento, dia
do AT, município do AT e meio de locomoção, identificando-se os
pares em duplicidade. Considerou-se como duplicidade a existência
149
de mais de uma notificação da mesma vítima para o mesmo AT,
classificando como duplos os pares em que todas as variáveis
analisadas estivessem idênticas.
Foram excluídos 13 registros identificados como duplicados
e 8 que foram identificadas como vítimas de acidentes aéreos com a
amostra final do banco de dados sendo composta por 23.950
atendimentos específicos de AT. Ocorrências com a mesma vítima,
mas, em AT diferentes não foram consideradas duplicidade,
permitindo que as múltiplas ocorrências de um indivíduo não
fossem excluídas da análise (SOUTO et al., 2016).
Para a distribuição das idades foram excluídas 30
ocorrências em que a data de nascimento informada era posterior à
data de ocorrência do AT e para distribuição dos municípios de
ocorrência do AT analisou-se apenas aqueles com mais de 300
ocorrências registradas no período analisado. O meio de locomoção
motocicleta englobou todos os AT onde o paciente foi identificado
como condutor ou passageiro de ciclomotor, motocicleta, motoneta
e triciclos; o meio de locomoção veículo engloba as vítimas
identificadas como passageiro ou condutor de automóvel,
caminhonetes, caminhoneta, caminhão e ônibus; ciclista se relaciona
com as vítimas condutoras ou passageiros de bicicletas e, pedestre,
refere-se a vítimas de atropelamento (DENATRAN, 2006).
Na análise, utilizou-se a estatística descritiva para a
caracterização das variáveis avaliadas com os resultados sendo
apresentados na forma de frequência simples e percentual, em
tabelas, com base na literatura científica (BUSSAB; MORETTIN, 2013;
RAMOS et al., 2008).
3 RESULTADOS
No período analisado, o HMUE atendeu vítimas de AT
oriundas de 159 municípios do Estado do Pará e Estados vizinhos, tal
diversidade de municípios atendidos é justificada pela Carta de
Direitos dos Usuários da Saúde que preconiza o atendimento
incondicional de urgência e emergência em qualquer unidade do
SUS (BRASIL, 2006), porém, possivelmente devido à localização do
150
HMUE (Figura 1), mais da metade dessa demanda (54,84%) é
oriunda de 4 municípios paraenses pertencentes à Região
Metropolitana de Belém (RMB): Ananindeua, Belém, Castanhal e
Marituba (Tabela 1).
Em 74,71% dos casos a vítima é do sexo masculino e o dia da
semana com maior registro de atendimento é o domingo (23,99%).
Mais da metade dos casos envolveu indivíduos com idade entre 20 e
39 anos (54,87%) enquanto que, nas faixas etárias das extremidades,
observou-se os menores índices: de 0 a 9 anos (5,73%) e aos 60 anos
ou mais (4,72%) (Tabela 1). Quanto ao meio de locomoção, a
motocicleta foi o que mais gerou vítimas de AT (46,56%), seguida
pelos veículos (29,36%) e pedestres (18,44%), sendo a bicicleta o
meio que menos gerou atendimentos (5,64%) (Tabela 1).
151
60 anos possuem como maior frequência registros de
atropelamento.
152
(2,21%) (2,09%) (2,05%) (6,85%)
254 549 1129
>= 60 (1,06%) 241 (1,01%) (2,29%) 85 (0,36%) (4,72%)
Dia da
Semana
3101
(12,95% 1565 844 236 5746
Domingo ) (6,53%) (3,52%) (0,99%) (23,99%)
2142 1124 658 204 4128
Segunda-feira (8,94%) (4,69%) (2,75%) (0,85%) (17,24%)
1069 754 180 2515
Terça-feira (4,46%) (3,15%) 512 (2,14%) (0,75%) (10,50%)
989 779 177 2458
Quarta-feira (4,13%) (3,25%) 513 (2,14%) (0,74%) (10,26%)
980 738 163 2391
Quinta-feira (4,09%) (3,08%) 510 (2,13%) (o,68%) (9,98%)
1132 837 586 178 2733
Sexta-feira (4,73%) (3,49%) (2,45%) (0,74%) (11,41%)
1739 1234 793 213 3979
Sábado (7,26%) (5,15%) (3,31%) (0,89%) (16,61%)
Fonte: Direção Geral do HMUE. Elaboração dos autores.
153
Bragança 326 (1,36%)
Capitão Poço 311 (1,30%)
Moju 304 (1,27%)
Fonte: Direção Geral do HMUE. Elaboração dos autores.
4 DISCUSSÃO
Entre as vítimas de AT atendidas pelo HMUE, no período de
2013 a 2015, os adultos jovens (20-39 anos) e o sexo masculino
foram as principais vítimas. A motocicleta foi destaque como o meio
de locomoção que mais gerou vítimas e o domingo foi o dia da
semana em que mais ocorreram atendimentos dessas vítimas. Esses
resultados, de forma geral, confirmam os dados sugeridos pela
literatura.
De acordo com Bastos et al. (2005), as vítimas de AT
atendidas pelo Serviço Integrado de Atendimento ao Trauma e às
Emergências (SIATE) de Londrina eram aproximadamente 75.2% do
sexo masculino. Tal predominância de vítimas do sexo masculino
também pode ser observada nos estudos de Souto et al. (2016) com
vítimas atendidas em unidades sentinela de Pernambuco, Soares et
al. (2012) com vítimas atendidas pelo Serviço de Atendimento Móvel
de Urgência (SAMU) em João Pessoa-PB, Cabral et al. (2011) com
vítimas de AT na cidade de Olinda e finalmente o trabalho de Santos
(2008) com vítimas de motocicleta na cidade de |Teresina-PI.
Portanto, estes estudos indicam que pessoas do sexo masculino,
jovens e motociclistas são as vítimas mais frequentes do trânsito,
resultado também obtido em outras pesquisas (LEGAY et al., 2012;
MALVESTIO; SOUSA, 2002; BARROS et al., 2003; MAGNANO et al.,
2011).
A maior frequência de vítimas de AT ligados à utilização de
motocicletas pode ser relacionada com o aumento da utilização
desse meio de locomoção no deslocamento da residência para o
trabalho e vice-versa e ao crescimento da frota desse tipo de
veículo. Pordeus et al. (2010) afirmam que a utilização da
motocicleta como instrumento de trabalho, tem repercutido no
perfil dos atendimentos de emergência de um hospital em
154
Fortaleza-CE. Essa utilização pode ser atribuída à rapidez, fácil
circulação e baixo custo desse veículo (ANJOS et al., 2007; MARÍN-
LEÓN et al., 2012). Tal hipótese é reforçada pelo considerável
aumento registrado na frota de motocicletas que, no Estado do Pará
aumentou 45,09% no período de 2013 a 2015 (DENATRAN, s/d).
Por outro lado, o predomínio de jovens do sexo masculino
em AT com motocicletas também pode ser atribuído, segundo
alguns autores, à imaturidade própria da idade, à autoconfiança e à
tendência em desafiar limites, fazendo da motocicleta sinônimo de
liberdade, emoção e adrenalina, tornando quase que heroico o ato
de transgredir leis e viver perigosamente (ANDRADE; JORGE, 2000;
BASTOS et al., 2005; QUEIROZ; OLIVEIRA, 2003; VIEIRA et al., 2011).
Sugere-se uma reflexão sobre como nossa sociedade está
construindo a personalidade desses jovens, com reflexo direto dos
padrões de conduta no trânsito e no dia a dia.
Mesmo os ciclistas estando em quarto lugar entre as vítimas
de AT atendidas pelo HMUE, sugere-se muita atenção a esse perfil,
pois juntamente com os pedestres, eles formam o grupo de maior
vulnerabilidade no trânsito, de modo que, parte considerável dos AT
envolvendo ciclistas e pedestres ocasiona, diretamente, o óbito dos
envolvidos (BARROS et al., 2003). Nesse sentido, os idosos (>= 60) e
as crianças (0 a 9) foram as principais vítimas de atropelamento,
corroborando com os estudos de Bacchieri e Barros (2011), Silva et
al. (2011) e Gawryszewski et al. (2009).
Quanto ao dia da semana da ocorrência do AT, observou-se
que a maior frequência foi registrada aos domingos (23,99%),
possivelmente este dado está relacionado ao hábito local de
deslocamento para lazer em balneários e clubes nesse dia da
semana. Soares et al. (2012). Ao analisar as vítimas de AT atendidas
pelo SAMU no município de João Pessoa, indicou-se resultado
similar, com 19,4% dos AT ocorrendo aos domingos, porém, os
pesquisadores não apontaram uma provável causa para essa
ocorrência. Resultado diferente foi observado na pesquisa de Souto
et al. (2016), que concluiu com sendo a quarta-feira (16,6%) o dia de
maior frequência de AT, de acordo com o autor essa ocorrência
155
estaria relacionada com uma maior concentração de atividades
laborais nesse dia da semana.
O resultado desse estudo identificou o grupo mais exposto
aos AT como sendo: jovem adulto, sexo masculino e motociclista,
confirmando a vulnerabilidade desse meio de locomoção. Essas
informações são fundamentais para o desenvolvimento e
implementação de ações que possibilitem a prevenção e redução de
AT, com consequente decréscimo na demanda de atendimento
desses eventos no HMUE.
Sugere-se como ações específicas para esse grupo de risco,
programas de educação para o trânsito e um aumento na
fiscalização e controle por conta das autoridades. Nesse sentido, a
integração entre os órgãos de trânsito das esferas municipal,
estadual e federal é de extrema importância, além do envolvimento
das instituições de ensino, empresas que utilizam serviços de
motociclistas e representantes das categorias profissionais
envolvidas com esse tipo de transporte, buscando ampliar a
discussão e definir estratégias mais especificas de intervenção.
Como limitação do presente estudo, cita-se que as vítimas
atendidas pelo HMUE podem não ser representativas de todos os
acidentes da região no período analisado. Entretanto, as
informações obtidas sobre o perfil das vítimas e dos AT podem
contribuir para fundamentar, implementar e desenvolver programas
de prevenção dos AT e suas consequências. Espera-se que os
resultados observados sirvam de estímulo para realização de outras
pesquisas que possam complementar e confirmar o conhecimento
alcançado.
REFERÊNCIAS
156
ANJOS, K.C.; EVANGELISTA, M.R.B.; SILVA, J.S.; ZUMIOTTI, A.V.
Paciente vítima de violência no trânsito: análise do perfil
socioeconômico, características do acidente e intervenção do
Serviço Social na emergência. Acta Ortop. Bras., São Paulo, v. 15, n.
5, p. 262-266, 2007.
157
CARDOSO, G. O sistema de cadastro, consulta e análise de acidentes
de trânsito em Porto Alegre. In: Fórum Nacional sobre Segurança no
Trânsito, FONAST, 2002.
LEGAY, L.F.; SANTOS, S.A.; LOVISI, G.M.; AGUIAR, J.S.; BORGES, J.C.;
MESQUITA R.M. Acidentes de transporte envolvendo motocicletas:
perfil epidemiológico das vítimas de três capitais de estados
brasileiros, 2007. Epidemiol Serv Saude. abr-jun 2012.
158
MALVESTIO, M.A.A.; SOUSA, R.M.C. Suporte avançado à vida:
atendimento a vítimas de acidentes de trânsito. Rev. Saúde Pública,
São Paulo, v. 36, n. 5, p. 584-589, Oct. 2002 .
159
SILVA, P.H.N.V.; DE LIMA, M.L.C.; MOREIRA, R.S.; DE SOUZA, W.V.;
CABRAL, A.P.S. Estudo espacial da mortalidade por acidentes de
motocicleta em Pernambuco. Rev. Saúde Pública. 2011.
160
CONTROLE SOCIAL INFORMAL E CRIMINALIDADE NA PÓS-
MODERNIDADE
161
the criminality. In order to reach the proposed objectives, we used
the qualitative research with critical-dialectical analysis; the
techniques used were the documental and the bibliographic. Among
other results of the examination of the consequences of
postmodernity, it was possible to associate some transformations,
which culminated in the so-called "informal control loosening", to
Public Security.
1 PROBLEMATIZAÇÃO
A pós-modernidade trouxe consigo mudanças profundas no
âmbito político, econômico, social e até religioso. Os reflexos dessas
mudanças podem ser notados, por exemplo, na segurança pública,
com o aumento da criminalidade no Brasil. Alguns questionamentos
a respeito desse tema logo surgem. O presente artigo aborda aquilo
que parece estar intimamente relacionado ao crescimento
exacerbado da criminalidade no Brasil, que são as alterações nas
formas de controle social, mas especificamente do controle
informal.
A análise do período pós-moderno, que se inicia,
historicamente em 1970, objetiva discutir como a pós-modernidade
acarretou notáveis mudanças no conjunto de grupos que
conhecemos por controles informais, focando o grupo familiar.
Nesse sentido, faz-se necessário entender a dinâmica de um
grupo específico, que é a família na pós-modernidade, e examinar a
relação entre a decadência do controle social atribuído a esse grupo
e a violência no Brasil. Identifica-se, desse modo, as mudanças
ocorridas na relação entre o Estado e a família, dando-se destaque
ao papel que é imposto às famílias e às consequências da pós-
modernidade.
Há uma certa discordância acadêmica sobre o conceito de
pós-modernidade. Neste artigo, adotar-se-á o termo pós-
modernidade para que seja mais claro o entendimento quanto ao
período tratado. De acordo com Garland (2008), o conceito seria o
162
de “modernidade tardia”, com base nas transformações que
marcaram profundamente o mundo a partir da década de 70 do
século XX. Mudanças de cunho econômico, político, social, religioso
e, claro, histórico.
Pode-se citar ainda que Anthony Giddens, Beck, Ulrich e
Scott Lasch (1995)1 falam em “modernidade reflexiva” e Zygmunt
Bauman (2001)2 em “modernidade líquida”, e assim por diante
(PASTANA, 2012). Mas, o fato é que, para todos esses autores, a pós-
modernidade começa a partir de 1970. Há ainda autores como
Singly (2007), que consideram tal período como contemporâneo.
Mas, inegavelmente, abstraindo-se a nomenclatura, todos destacam
as peculiares formas de controle social da pós-modernidade.
Os controles sociais classificam-se em formais e informais,
de acordo com Garland (2008). O controle formal é aquele aplicado
pelas instituições do Estado tem suas ações normalmente pautadas
pelo princípio reativo. O controle informal seria a forma de controle
oriunda da família, da Igreja, da comunidade e afins. Tanto no
controle formal quanto no informal há a vigilância constante e a
iminência de punição em caso de transgressões de leis, bem como
de certas “moralidades” (GARLAND, 2008).
O Estado demonstra ser limitado quanto à capacidade de
garantir segurança. Daí a necessidade de a sociedade civil associar-
se – processo que se originou nos EUA e na Grã-Bretanha. O
controle do crime foi moldado por duas forças sociais: a primeira
seria o modo de organização social da pós-modernidade; a segunda
seria a economia de mercado. Assim, o processo penal da pós-
modernidade, conduzido pelo discurso jurídico da
instrumentalidade do processo, preocupa-se bem mais com os
resultados do que com a segurança. A pós-modernidade estaria
atrelada a uma série de riscos, inseguranças e problemas
relacionados ao controle (GARLAND, 2008).
1
Ver GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASCH, Scott. Modernização reflexiva: política,
tradição e estética na Ordem Social Moderna. São Paulo: Ed. Unesp, 1995.
2
Ver BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
163
Ressalta-se que houve uma divisão de responsabilidades
entre o Estado e o setor privado, por meio do aumento de indústrias
privadas voltadas para a segurança pública, e uma reorganização
social devido à nova estrutura em construção. É o que Garland
(2008) denomina “estratégia da responsabilização”, segundo a qual
o Estado incentiva a ação de atores e de organizações não estatais.
O objetivo é que haja um complemento no controle do crime
exercido pelo Estado, pulverizando-se a responsabilidade pelo
controle do crime para além do Estado. O que não significa que o
Estado abriu mão do monopólio do controle do crime, permitindo
que a iniciativa privada também se aliasse aos esforços contra o
crime, essa foi uma estratégia para mitigar inúmeros problemas de
segurança pública (GARLAND, 2008).
A discussão sobre o papel do Estado no controle da
violência faz-se pertinente ao passo que a iniciativa privada
aumenta a vigilância social, mas o controle informal vai na
contramão desse processo. Com efeito, observa-se que a
reconfiguração familiar tende ao afrouxamento do controle
informal.
O século XX trouxe consigo intensas alterações no campo do
trabalho – leia-se “econômicas” –, e isso foi uma das consequências
dos avanços tecnológicos. Nesse contexto, vimos a reconfiguração
do mercado de trabalho, que passou a absorver a força de trabalho
da mulher, impactando assim o núcleo familiar tradicional. Além
disso, as políticas de Estado contribuíram para a perda de
autonomia da família no contexto social.
Importa salientar que as alterações no núcleo familiar, como
a entrada da mulher no mercado de trabalho em razão do advento
do industrialismo, trouxeram consigo impactos que vão além da
economia e da política, desencadeando uma ruptura no controle
informal que a mulher exercia, começando no contato mais próximo
com os filhos. A chegada da globalização e os avanços tecnológicos,
igualmente legados da pós-modernidade – que não são o foco do
trabalho –, estão entre as alterações trazidas pela pós-modernidade
164
que também contribuem para o afrouxamento do controle informal
exercido pela família.
Afinal, qual a relação entre as alterações do mundo do
trabalho, a reestruturação familiar e os controles sociais? A resposta
é o controle informal, que é o objeto deste artigo. O cerne da
questão são as consequências do processo de reestruturação do
núcleo familiar que contribuem para o afrouxamento no controle
informal e sua relação com o recrudescimento da criminalidade dos
jovens do Brasil.
165
compreende o pensamento como algo que não pode avançar em
linha reta, dependendo assim de verdades parciais para a obtenção
de um significado no conjunto, conjunto que só pode ser alcançado
pelo progresso no conhecimento das verdades parciais
(GOLDMANN, 1991). De modo que, somente por meio da junção de
diversos elementos presentes na pós-modernidade, será possível
construir uma reflexão coerente sobre as contradições da realidade,
na qual a dialética está empenhada em desenvolver crítica.
Como características da crítica dialética, destacam-se o
espírito crítico e autocrítico e a atitude contestatória. De acordo
com Konder (2000, p. 86), a dialética “[...] intranquiliza os
comodistas, assusta os preconceituosos, perturba
desagradavelmente os pragmáticos ou utilitários...”. Lakatos e
Marconi (2003, p. 100) definem as leis fundamentais da dialética
como “ação recíproca, unidade polar ou ‘tudo se relaciona’;
mudança dialética, negação da negação ou ‘tudo se transforma’;
passagem da quantidade à qualidade ou mudança qualitativa; e
interpenetração dos contrários, contradição ou luta dos contrários”.
Para esta pesquisa, entre as leis fundamentais dialéticas, a
mais adequada é a dialética de ação recíproca; de acordo com
Lakatos e Marconi (2003, p. 101), diferentemente da metafísica, que
concebe o mundo como um conjunto de coisas estáticas, a dialética
vê o mundo como um conjunto de processos, tal como Engels.
Destarte, nada existe isoladamente, mas como parte de um todo
unido, coerente e inter-relacionado reciprocamente (LAKATOS;
MARCONI, 2003).
A abordagem utilizada é qualitativa, na busca de definir
“como” o processo de afrouxamento do controle informal exercido
pela família, e inerente à pós-modernidade, está relacionado com o
aumento da criminalidade no Brasil, preocupando-se em
compreender os fenômenos tomando como referência o mundo dos
símbolos ou significados.
A técnica de pesquisa é do tipo documental – baseada em
dados primários (censos do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) do século XX, Relatório sobre Desenvolvimento
166
Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), de 1998, e dados de 2015 divulgados pelo Ministério da
Justiça) – e também bibliográfica, englobando dados secundários
(com referencial teórico específico, apoiando-se, principalmente, em
Garland (2008) e seus conceitos de controle informal e pós-
modernidade).
Os dados primários e secundários apresentados pela
pesquisa são descritos e confrontados, buscando-se averiguar se
encontram assento na realidade. Tudo para que os objetivos
propostos sejam alcançados, bem como para que seja possível obter
um diagnóstico mais completo da realidade em discussão.
167
nação brasileira’, impunha-se traçar o
destino, estabelecer os valores morais, o
perfil das relações interfamiliares, a lógica
dos comportamentos, a serem adotados
pelos setores populares. [...]”.
168
Com a primeira e a segunda Revolução Industrial, a
atividade laboral foi redefinida, extraindo famílias pobres da
produção doméstica ou artesanal, inserindo-as no ambiente fabril.
Nesse período, entre a segunda metade do século XVIII e o início do
século XX, a estrutura familiar sofreu uma enorme modificação,
rompendo com as funções apenas domésticas e maternas de
milhares de mulheres, que foram insertas3 no mercado de trabalho.
Cabe ressaltar que as três fases da Revolução Industrial
alteraram o mundo do trabalho, impactando diretamente o modo
de vida de famílias não só no Brasil. Com as exigências cada vez
maiores, os indivíduos, além de trabalhar fora para ajudar na renda
familiar, são obrigados a qualificar-se com frequência para garantir
melhores salários e colocações, o que demanda, portanto, um
tempo maior para atividades com fins econômicos.
A situação no Brasil (e no resto do
continente) é um pouco distinta,
especialmente por causa do seu processo
tardio de industrialização e por causa das
turbulências no cenário político no período
que vai da segunda metade da década de
sessenta até meados da década de oitenta
do século XX. É justamente a partir da
redemocratização que tem como um dos
marcos a promulgação da Constituição da
República de 1988, que o tratamento penal
dos conflitos sociais começa a se tornar
mais severo (GARLAND, 2008, p. 12).
3
Essa inserção foi propiciada pelo fato de que as máquinas não careciam de força
física para serem operadas, o que abriu espaço para o emprego de indivíduos sem
força muscular, como mulheres e crianças.
169
reorganizou-se para acomodar essas mudanças. A mulher
abandonou a função precípua de casar e tornar-se dona de casa e
mãe, ganhando independência financeira, direitos de cidadania, e
maior decisão quanto ao próprio corpo.
De acordo com D’Alonso (2008), há um considerável
aumento na participação feminina no mercado de trabalho
brasileiro a partir da década de 70. O Relatório sobre
Desenvolvimento Humano, de 1998, do PNUD revela, segundo
D’Alonso (2008), que as mulheres brasileiras nesse ano já
representavam 44% da força de trabalho no país, número superior
ao de outros países como Venezuela (42,1%), México (38,4%), Chile
(36,6%), Argentina (34,3%), Grécia (26,5%) e Espanha (24,3%).
Singly (2007) divide a história da família contemporânea em
dois períodos. O primeiro período, denominado “família moderna 1
ou da primeira modernidade”, durou meio século, indo do início do
século XIX até meados de 1960. Nesse período, a vida familiar era
centrada no grupo, as crianças eram a figura central, e os adultos
estavam a serviço da vida familiar e de seus filhos. Para tal, ao
homem incumbia a tarefa social de trabalhar fora e ser o chefe da
família, provendo-a de aportes econômicos. A mulher assumia a
tarefa de cuidar do lar e da educação dos filhos.
O segundo período, denominado “família moderna 2 ou
pós-moderna”, teve início em 1960 e sofre influência da mudança da
“modernidade europeia”, incutindo no seio familiar o processo de
individualização. Nesse período, Singly (2007) entende que há uma
redefinição da vida familiar sob a perspectiva das relações entre os
sexos: diminuição sensível da dependência objetiva da mulher;
manutenção dos investimentos profissionais e domésticos
diferenciados segundo o sexo; fuga dos papéis sexuais que surgiram
com o compromisso conjugal.
A família contemporânea, de acordo com Singly (2007),
possui características muito distintas da família antiga, mas a função
de reprodução biológica e social, bem como o ideal de manter e
melhorar a posição familiar no espaço social mantém-se e são
repassados às novas gerações. Para esse autor, a família
170
contemporânea percebe-se menos como instituição e delineia-se
mais em razão das relações internas estabelecidas no seio familiar.
Outro fator que se destaca na nova configuração familiar
são as relações menos hierarquizadas, tanto entre os casais quanto
entre pais e filhos. O que não significa ausência de conflitos. Apesar
desse caráter privado que a entidade familiar aparenta ter – lugar
em que seus membros repousam suas individualidades –, ela
também possui um caráter público, sofrendo uma intervenção
estatal justificada por um sistema legislativo.
Este seria o paradoxo da família moderna: quanto mais
privada ela é, mais pública se torna. Cabe evidenciar que há uma
conexão entre esse duplo movimento da entidade familiar: a
importância dada à qualidade das relações interpessoais e à
socialização na esfera privada deve-se à influência da esfera pública,
em razão de uma maior intervenção estatal (SINGLY, 2007).
De acordo com Passetti (2003, p. 31-32), “vivemos numa
sociedade de controle que se afirma, antes de tudo, como sociedade
de difusão de direitos”. Isso resulta em um investimento no aparato
legal que protege e controla, normatizando condutas almejadas e
regulamentando as dinâmicas da vida dos sujeitos.
Para Cortez (2008, p. 287), a relação entre o Estado e a
família alicerça-se nos interesses estatais de controlar a sua “célula
social por excelência”. O Estado exerce esse controle por intermédio
da legislação, do Judiciário, das polícias, entre outros mecanismos, a
fim de controlar os sujeitos que possuem identidades dissonantes
em relação ao padrão social identificado como legítimo.
No âmbito familiar, diversos são os mecanismos legais que
disciplinam as relações entre pais e filhos e entre os casais. A própria
legislação da criança e do adolescente disciplina uma série de
diretrizes de proteção que devem ser cumpridas pelos pais sob pena
da perda definitiva ou temporária do poder familiar 4.
4
O poder familiar representa uma mudança significativa no direito das famílias,
prestigiando a “igualdade” entre homens e mulheres, substituindo o antigo pátrio
poder, oriundo do direito romano, instituto que significava um direito absoluto do
pai sobre seus filhos (DIAS, 2010).
171
Nesse sentido, a família contemporânea tem, de um lado,
uma maior dependência em relação ao Estado e, do outro, uma
maior independência em relação ao círculo de parentes, em razão
da ruptura do casamento arranjado, o que permite a escolha pessoal
do cônjuge; há ainda uma maior independência entre homens e
mulheres em relação às suas famílias (SINGLY, 2007).
Essas questões são um grande desafio que a família
moderna enfrenta em sua estrutura. O controle da entidade familiar
não mais é um direito incontestável do pai, do mesmo modo que
não há mais o controle de parentes na constituição e no cotidiano
das famílias, sendo substituído pelo controle do Estado.
Outro ponto essencial para essa individualidade está ligado
à ideia de salário, que dá autonomia aos sujeitos, com ganhos e
gastos individuais. A lógica das sociedades de consumo é refletida
em campanhas publicitárias que vendem produtos a crianças,
jovens, mulheres e homens, individualizando-os em segmentos
específicos de mercado. Tilly e Scott (1978) entendem que essa
individualização enfraquece a dimensão coletiva da vida social.
Para Singly (2007), esse individualismo é um agente
desestabilizador do núcleo familiar, pois a autonomia individual dos
sujeitos insere-os em uma complexa dinâmica de compatibilização
entre as vidas pessoal, de trabalho e de família, a vida conjugal
sendo repartida entre zonas comuns e zonas protegidas. Há certa
tensão entre independência e dependência, entre indivíduo e grupo.
Contudo, a família é a instituição que tem o condão de auxiliar o
indivíduo na sua construção enquanto pessoa autônoma.
Os próprios arranjos familiares, hoje, são distintos, há uma
redução do núcleo familiar, composto pelos cônjuges e por seus
filhos, também em menor número, visando proporcionar-lhes os
melhores aportes para a sua formação e capacitação profissional.
Essa preocupação educativa é um dos pilares dessa família.
Outra forma de controle estatal sobre as famílias é a
inclusão dos filhos no ambiente escolar, intervindo na formação do
capital cultural desses sujeitos. Singly (2007) diagnostica que o
papel da família na socialização infantil é cada vez menor na família
172
moderna, em decorrência da invenção da escola e do hábito de
enviar crianças em tenra idade para esse espaço social longe do
convívio com seus pais. Dessa forma, a escola retira da família parte
de sua responsabilidade educativa e socializadora.
Bock, Furtado e Teixeira (2002, p. 261) informam que, “ao
transmitir a cultura e, com ela, modelos sociais de comportamento e
valores morais, a escola permite que a criança ‘humanize-se’,
cultive-se, socializa-se ou, numa palavra, eduque-se”. Nessa
perspectiva, a escola, assim como a família, atua na formação da
criança autônoma, influenciando a construção de seu pensamento
com tendências a legitimar o sistema vigente e suas instituições de
forma habitual, preparando-a para determinados papeis no mundo
do trabalho.
173
Mas qual a relação dessa reconfiguração familiar com o fenômeno
da criminalidade?
É preciso evidenciar que o presente artigo não insinua que o
modelo de família patriarcal seria o mais apropriado para a
manutenção do controle informal em relação à configuração
familiar pós-moderna.
A discussão centra-se no fato de que a pós-modernidade é
marcada por mudanças sociais profundas – e a família está na base
de tudo isso. Não se pode negar que a criminalidade tem
aumentado consideravelmente a cada ano – em termos gerais. Por
isso, propomos discutir alguns pontos relevantes desse fenômeno.
Para Adorno (2001, p. 1), a sensação de medo e de
insegurança tem aumentado desde a década de 70 do século XX,
propiciada por uma “aceleração do crescimento de todas as
modalidades delituosas”. O autor explica:
Esse crescimento veio acompanhado de
mudanças substantivas nos padrões de
criminalidade individual bem como no
perfil das pessoas envolvidas com a
delinquência. Recente estudo sobre as
tendências do homicídio, para o país em
seu conjunto, constatou que: a) o número
de homicídios causados por armas de fogo
vem crescendo desde 1979; b) esse número
cresce mais que a população. No Distrito
Federal, em 1980, a taxa de homicídios era
de 13,7 por cem mil habitantes; em 1991,
isto é, onze anos após, saltou para 36,3
(ADORNO, 2001, p. 1).
174
Rússia (673.800), China (1,6 milhão) e
Estados Unidos (2,2 milhões). Quando se
compara o número de presos com o total
da população, o Brasil também está em
quarto lugar, atrás da Tailândia (3º), Rússia
(2º) e Estados Unidos (1º). Segundo o
ministério, se a taxa de prisões continuar
no mesmo ritmo, um em cada 10 brasileiros
estará atrás das grades em 2075 (BRASIL,
2015a).
175
significativa da vida em sociedade, que é o ideal de comunidade, de
convívio coletivo, de integração.
Santos (2004, p. 7) adverte:
[...] estaríamos diante de uma crise da
modernidade tardia, na qual a privação
relativa combina-se com o individualismo,
transformando-se em uma comparação no
interior da divisão do trabalho e entre
aqueles que estão no mercado e os
excluídos, conformando uma grande
vulnerabilidade social, pobreza e miséria.
176
ano –, seja pela cultura do consumismo, da individualização, pela
pouca ou nenhuma instrução de valores por intermédio da família,
da escola.
Sobre isso, Santos (2004, p. 6) aponta como características
da “modernidade tardia”, entre outras coisas, “a disseminação das
violências, a ruptura de laços sociais e a ‘desfiliação’ de algumas
categorias sociais, como a juventude, uma das grandes vítimas da
civilização”.
De acordo com a hipótese levantada neste artigo, embora
todos esses fatores devam ser levados em consideração, um peso
diferenciado deve ser atribuído à mudança do controle exercido
pela família, que, na configuração pós-moderna, deixa de exercer a
mesma vigilância e influência sobre seus membros, o que possibilita
que outros grupos e instituições insiram-se na dinâmica das
atividades cotidianas, ocupando o espaço que antes era da entidade
familiar. Isso faz com que a família seja reestruturada e passe a
exercer outras funções, que não estão relacionadas com o controle
informal.
Por isso, considera-se o afrouxamento do controle informal
exercido pelo núcleo familiar como um dos gatilhos do assustador
crescimento da criminalidade experimentado pela pós-
modernidade.
Por conseguinte, os “impactos da
modernidade tardia sobre as taxas de
crime foram multidimensionais: aumento
das oportunidades para o crime; redução
dos controles situacionais; aumento da
população em risco; redução da eficácia
dos autocontroles sociais como
consequência das mudanças na ecologia
social e nas normas culturais (GARLAND,
2008, p. 90).
177
que se baseavam no ideal de reabilitação viam o criminoso como
necessitado de um tratamento correcional, de acordo com Garland
(2008). Portanto, a solução do crime, entre outras coisas – como o
amparo da família do criminoso –, estava pautada pela reabilitação.
A prisão seria o último recurso.
Mas, a partir de 1970, ocorre o que Garland (2008) chama
“declínio do ideal de reabilitação”: os esforços do Estado não são
mais para que o preso seja “recuperado”, mas apenas para que seja
excluído socialmente e punido. O Estado assume uma conduta
extremamente punitiva. Essa mudança de postura pós-moderna do
Estado para com os criminosos, aliada à reconfiguração do núcleo
familiar, que agora não controla mais os indivíduos pertencentes
àquele grupo como outrora, passam a impactar diretamente os
níveis da violência.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo limita-se a discutir o afrouxamento dos controles
sociais, notado mais drasticamente no seio familiar, que é a base do
controle informal. Reforçada pela cultura do individualismo – certa
ou errada, o que não está em questão aqui –, a intervenção mínima
do Estado é legitimada, impondo certas responsabilidades,
principalmente no âmbito de direitos sociais, à família, ao mesmo
tempo que diminui sua autonomia, ao robustecer a autonomia
individual de seus membros na direção de seus destinos.
O ponto relevante foi elucidar de que forma ocorreu o
afrouxamento do controle informal exercido pela família. Vimos
que, com a pós-modernidade, o processo de globalização trouxe
novas necessidades econômicas e culturais que, consequentemente,
alteraram a vida social em diversas esferas, entre as quais o núcleo
familiar, por meio das intervenções do Estado na vida familiar, da
entrada da mulher no mercado de trabalho, da nova dinâmica das
escolas, das novas tecnologias, etc.
Com o advento da pós-modernidade, o Estado passa a
assumir uma postura diferente com relação à família, por meio de
políticas que visam reforçar a intervenção ou a proteção de modelos
178
hegemônicos de entidades familiares. Infere-se daí que o padrão da
família juridicamente protegido é fruto de um modelo estabelecido
por conveniências políticas, sociais ou religiosas, não havendo
atenção para com todos os arranjos familiares existentes ou até
havendo o intuito de excluí-los.
As sucessivas mudanças legislativas que tiveram início na
segunda metade do século XX no Brasil culminaram com o advento
da Constituição Federal de 1988. Desde então, diversas leis têm
tentado adequar-se às novas perspectivas da família e da sociedade.
A intervenção na instituição familiar resulta da necessidade
estatal de mantença do status quo. A família desempenha um papel
importante na educação formal e informal do indivíduo,
proporcionando-lhe os aportes necessários ao seu desenvolvimento
biopsicossocial, transmitindo-lhe valores morais e humanistas,
estabelecendo laços de afetividade com o próximo. A transmissão
dos valores morais e humanitários de uma dada sociedade para as
novas gerações é um fator imprescindível para alimentar a ideologia
de vida em comunidade e para a mantença da ordem social.
No entanto, a família pós-moderna é individualista, e seus
membros também têm uma individualidade maior, cujo elemento
central é sua capacidade de escolha. Nesse contexto, percebe-se que
os indivíduos possuem uma maior autonomia sobre os rumos de sua
vida, tanto na esfera individual quanto na familiar. Isso é propiciado
por um sistema de valores que autoriza a autonomia dos sujeitos,
bem como por sua recusa em manter determinados costumes
sociais ditos ultrapassados, como os papéis de marido e esposa,
desempenhados no ambiente familiar nos moldes das gerações
passadas, o controle individual sobre o corpo, que permite o uso de
métodos contraceptivos; entre outros fatores.
A consciência coletiva vai perdendo o sentido. O próprio
sentido de coletividade parece ter caído no esquecimento. O “só se
importar consigo mesmo” acabou gerando um certo abismo nas
relações sociais pós-modernas; essas relações começam pela família,
que é a primeira instituição da qual o indivíduo faz parte.
179
A partir do momento em que a mulher passa a trabalhar
fora de casa, automaticamente passa menos tempo com seus filhos,
pois agora precisa dar conta também da vida profissional. Os filhos
passam a ser confiados a terceiros, creches, jardins, escolas. Dessa
forma, a família abandona em parte o que era e é sua função
precípua de educação e de socialização de seus filhos. O próprio lar,
em razão da dinâmica da vida moderna, torna-se, em muitos casos,
dormitório de pais e filhos, perdendo seu espaço recreativo na vida
familiar; cada vez mais, à medida que os filhos atingem maior
autonomia, buscam entretenimento fora de casa ou em ambientes
virtuais.
Estamos falando de uma geração jovem, oriunda da pós-
modernidade. Uma geração que cresceu e naturalmente pôde ver –
sem generalizações – mães escolhendo ser independentes
financeiramente, livre escolha de parceiros, lares com pais
divorciados legalmente, liberdade de gênero, Lei da Palmada,
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) etc.
O cenário parece ideal para o desenvolvimento desses
sujeitos, menos quando olhado na perspectiva do controle informal,
que teve sua dinâmica de vigilância e de intervenção familiar
modificada – o que neste artigo é considerado um dos fatores do
crescimento exacerbado da violência.
É óbvio que a reorganização familiar pós-moderna não pode
ser apontada como culpada pelo crescimento da violência, mas seria
leviano deixar de salientar que tal reconfiguração do núcleo familiar
– graças a conquistas de movimentos sociais e a políticas de Estado
– no que diz respeito ao controle informal trouxe consequências
para a segurança pública.
Do mesmo modo, não há como dizer até que ponto o
afrouxamento do controle informal foi determinante para a
criminalidade, pois se trata de uma história do tempo presente, e,
como já nos advertiu Eric Hobsbawm (2013), há uma imensa
dificuldade em escrevê-la. Porém, o ambiente acadêmico é o espaço
destinado a esse tipo de discussão. De fato, trata-se de um tema
ainda carente de certa atenção – seja pela academia, seja pelo
180
Estado, seja pela sociedade –, mas de imensa relevância, já que,
desde a formação das primeiras sociedades, os controles sociais são
parte da “arte de governar” e seu reflexo social.
REFERÊNCIAS
181
Latina. N. 15. Dez. 2008. Disponível em: <http:// www.inesc.org.br>.
Acesso em: 12 jun. 2016.
182
JUSTAMAND, Michel; CRUZ, Tharcísio Santiago (Org.). Fazendo
antropologia no Alto Solimões: diálogos interdisciplinares. São
Paulo: Alexa Cultural, 2016. Pp. 131-146.
TILLY, Louise; SCOTT, Joan W. Women, work & family. New York:
Holt, Rinehart and Winston, 1978.
183
UM RETRATO DAS MULHERES QUE CUMPREM PENA NO CENTRO
DE REEDUCAÇÃO FEMININO DE ANANINDEUA
RESUMO
O presente artigo busca traçar o perfil das condenadas custodiadas
no Centro de Reeducação Feminino de Ananindeua no Estado do
Pará. Para tal, utiliza-se da pesquisa documental e bibliográfica,
assim como, da análise estatística de dados, a partir de uma
abordagem quantitativa dos dados amostrais coletados junto ao
Sistema INFOPEN-PA agregando-se aos resultados informações
carcerárias fornecidas por órgão oficiais, discussões e conclusões
alcançadas em outras pesquisas científicas, contribuindo para que se
conheçam as particularidades e necessidades das mulheres
custodiadas na referida casa penal onde se constatou, entre outros
resultados, que a maioria das custodiadas são negras e pardas e
cometeram o crime de tráfico de drogas.
ABSTRACT
The present article aims to outline the profile of those convicted in
custody at the Ananindeua Female Reeducation Center in the State
of Pará. For this purpose, documentary and bibliographic research is
used, as well as statistical data analysis, based on a quantitative
approach to sample data collected in the INFOPEN-PA System,
adding to the results of prison information provided by official
departments, discussions and conclusions reached in other scientific
research, contributing to the knowledge of the particularities and
needs of the women in custody in that prision. Among other results,
184
that most of the custodians are black and committed the crime of
drug trafficking.
1 INTRODUÇÃO
O Brasil possui a terceira maior população carcerária do
mundo, incluindo pessoas em prisão domiciliar, no ranking dos 10
países com maior população prisional, ficando atrás apenas dos
Estados Unidos e China, de acordo com dados do Departamento
Penitenciário Nacional-DEPEN, do Ministério da Justiça e Cidadania.
(INFOPEN, 2014). A população carcerária do Brasil é de 715.592,
incluindo pessoas em prisão domiciliar, de acordo com o
Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema
Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas –
DMF (DMF, 2014), vinculado ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ.
Nesta população de presos estão homens e mulheres. Esta mesma
fonte também aponta que o Pará possui população carcerária de
13.179 presos, incluindo pessoas em prisão domiciliar.
A população carcerária do Brasil vem apresentando
crescimento contínuo, tendo a taxa de aprisionamento nacional
crescido 119%, entre 2000 e 2014 (INFOPEN, 2014) e, quando se
observa a população carcerária por sexo, constata-se que o número
de mulheres presas1, cresceu mais que a de homens encarcerados,
sendo mais que o dobro do crescimento de encarceramento
masculino, conforme é apontado no Plano Nacional de Política
Criminal e Penitenciária de 2015. Para este Plano o crescimento
expressivo de encarceramento feminino é reflexo do endurecimento
das penas para o crime de tráfico de drogas.
O crescimento expressivo de mulheres encarceradas,
sobretudo pelo cometimento do crime de tráfico de drogas,
também se apresenta como realidade no Estado do Pará fato que
chamou atenção e motivou a busca de um perfil das presas
Serão utilizadas como sinônimas as palavras preso (a) e detento (a), referindo-se às
1
2
São condenadas as mulheres recolhidas ao cárcere que possuem sentença penal
condenatória, ou seja, condenação em primeiro grau de jurisdição.
3
Aquelas que “não tiveram condenação em primeiro grau de jurisdição” (MINISTÉRIO
DA JUSTIÇA E CIDADANIA, 2016).
4
O trânsito em julgado da sentença penal condenatória é quando não há mais
possibilidades de recursos contra a decisão penal que condenou o réu.
186
Sistema INFOPEN-PA, tendo Carmen Lúcia Gomes Botelho como
atual diretora.
Diante deste cenário, o objetivo deste artigo é traçar o perfil
das presas condenadas do Centro de Reeducação Feminino de
Ananindeua, observando cinco variáveis: tipo penal, cor da pele,
idade, município de nascimento e reincidência, para que possa servir
de base para adoção adequada de políticas de combate ao crime e
de seu público alvo, bem como das atividades que serão ofertadas
às detentas no interior do cárcere, conferindo maior visibilidade a
essas mulheres.
2 METODOLOGIA
As informações foram coletadas do banco de dados do
sistema informatizado (INFOPEN) da Superintendência do Sistema
Penitenciário do Estado do Pará – SUSIPE, fornecidos aos autores
mediante solicitação formal (ofício 041/2017-PPGSP) onde foram
disponibilizadas todas as informações aqui adiante descritas e que
deram ensejo aos cálculos apresentados.
O método de abordagem utilizado foi o da pesquisa
quantitativa em que há uma análise numérica do comportamento da
população observada, nesse sentido:
Diferentemente da pesquisa qualitativa, os
resultados da pesquisa quantitativa podem
ser quantificados. Como as amostras
geralmente são grandes e consideradas
representativas da população, os
resultados são tomados como se
constituíssem um retrato real de toda a
população alvo da pesquisa. A pesquisa
quantitativa se centra na objetividade.
Influenciada pelo positivismo, considera
que a realidade só pode ser compreendida
com base na análise de dados brutos,
recolhidos com o auxílio de instrumentos
padronizados e neutros. A pesquisa
187
quantitativa recorre à linguagem
matemática para descrever as causas de
um fenômeno, as relações entre variáveis,
etc. A utilização conjunta da pesquisa
qualitativa e quantitativa permite recolher
mais informações do que se poderia
conseguir isoladamente. (FONSECA apud
GERHARDT; SILVEIRA, 2009 p.33).
188
seguintes crimes: tráfico de drogas5, roubo6, homicídio7, dano8,
furto9 e os demais crimes ou tipos penais10 foram desconsiderados
na análise por corresponderem a um número variado de delitos com
pouca incidência, em geral apenas uma ou duas.
Quando se analisou a categoria de interesse cor da pele,
utilizou-se o censo das condenadas do CRF Ananindeua, divididas
em 4 (quatro) estratos – parda, negra, branca e amarela. Ademais,
foram calculadas: a média aritmética das idades, segundo Vieira
(2008); a moda dos locais de nascimento, conforme Carvalho e
Campos (2008) e para a reincidência criminal utilizou-se a sua média
e o terceiro quartil de acordo com Bussab e Morettin (2002),
calculados sobre o censo das condenadas.
3 DISCUSSÃO E RESULTADOS
3.1 OS CRIMES COMETIDOS
No Gráfico 01 constata-se a incidência predominante em
cinco tipos penais ou crimes – tráfico de drogas, roubo, homicídio,
furto e dano.
5
Para este artigo considerou-se tráfico de drogas as condutas descritas nos arts. 33 e
35 da Lei nº 11.343/2006.
6
Neste estudo, o roubo é aquele descrito no art. 157do Código Penal Brasileiro.
7
Entendeu-se como homicídio a prática das condutas do art. 121 do Código Penal
Brasileiro.
8
Dano é a conduta tipificada nos arts. 163 a 166 do Código Penal Brasileiro.
9
No presente trabalho, o furto é aquele descrito no art. 155 do Código Penal
Brasileiro.
10
“Fatos descritos como crime” (MIRABETE, 2012, p.32).
189
O crime de tráfico de drogas, aqui entendido como aquele
descrito nos artigos 33 e 35 da Lei nº 11.343/2006, corresponde a
42,38% do total das infrações penais cometidas pelas detentas
condenadas do CRF Ananindeua, já os delitos de roubo, furto e dano
representam, respectivamente, 24,83%, 8,94% e 10,60% do total de
crimes e se forem somados os percentuais dos quatro crimes –
tráfico de drogas, roubo, furto e dano – conclui-se que 86,75%
dessas detentas condenadas incidiram em delitos que possuem um
viés patrimonial – embora o crime de tráfico de drogas não seja tido
como crime patrimonial “sua prática constitui-se em uma forma
tradicional de comércio, onde se identifica um produto consumível
que agrega uma demanda crescente” (CORTINA, 2015, p. 766) – seja
para provento próprio e de suas famílias ou para a satisfação do
consumo estimulado pela sociedade.
As prisões femininas estão superlotadas de
mulheres mães, madrastas ou mocinhas
sonhadoras que se perderam na ilusão do
lucro fácil e no desejo de consumir a
qualquer custo. Mulheres que desejam
fazer parte de um mundo vendido pelas
novelas e pelos comerciais de televisão,
ambicionando pertencerem ao centro. O
190
cárcere, no entanto, é a realidade.
(BARROS; PINHEIRO, 2015, p. 245)
191
maior incidência entre as mulheres condenadas que cumprem pena
no CRF Ananindeua, segundo dados do Levantamento Nacional das
Informações Carcerárias (LNIC) do Ministério da Justiça e Cidadania
(dezembro, 2014), 64% das mulheres foram condenadas ou
aguardam julgamento por tráfico de entorpecentes.
Fatores como parentes no tráfico,
facilidade de acesso às drogas,
dependência econômica e afetiva do
traficante, ameaças, desemprego,
necessidade de meios para prover o
sustento familiar e a obtenção de poder,
também têm encontrado associação com o
envolvimento e a permanência das
mulheres no tráfico de drogas. Pesquisa
realizada em 2010 com mulheres
encarceradas, encontrou que 66,9% destas
tinham ou já tiveram um ou mais familiar
preso por tráfico de drogas, incluindo o
companheiro (FERREIRA et al., 2014,
p.2256).
192
Modernamente, estudos têm demonstrado
que a mulher não assume o protagonismo
nos crimes de tráfico ilícito de
entorpecentes, mas desponta como o que
vulgarmente se conhece como sendo uma
“mula” do tráfico, vale dizer, uma pequena
traficante/transportadora e possuidora de
drogas para a venda a terceiros. (COELHO;
NETO, 2016, p.88).
193
No censo coletado entre as presas condenadas do CRF
Ananindeua – 211 (duzentas e onze) mulheres – 141 (cento e
quarenta e uma) mulheres são pardas, correspondendo a 66,81% do
total; 42 (quarenta e duas) mulheres são negras, representando
19,91% das condenadas; 22 (vinte e duas) mulheres são brancas, ou
seja, o equivalente a 10,43% da população prisional; 2 (duas)
mulheres são amarela, representando 0,95% do todo e 4 (quatro)
mulheres não constam a característica cor da pele no sistema,
referente a 1,90% das condenadas do CRF Ananindeua.
Segundo informações do Levantamento Nacional das
Informações Carcerárias (LNIC) do Ministério da Justiça e Cidadania
(dezembro, 2014), no Estado do Pará 83,06% dos presos são negros
e pardos; 13,51% são brancos, 2,78% são amarelos; 0,11% são
indígenas e 0,545 outros. Em relação às mulheres o Levantamento
Nacional das Informações Carcerárias INFOPEN Mulheres de junho
de 2014 constatou que 68% das presidiárias são negras (aqui não
houve diferenciação entre negras e pardas); 31% das detentas são
194
brancas; 1% das mulheres são amarelas e, indígenas e outros
possuem o percentual de 0%. No Estado do Pará, o LNIC INFOPEN
Mulheres (junho, 2014) apontou que 88% das mulheres no cárcere
eram negras (não fazendo diferenciação entre negras e pardas) e
12% eram brancas; amarelas, indígenas e outros tiveram o
percentual de 0%.
Destacam-se os números referentes às mulheres pardas
(66,81%) e negras (19,91%), que juntas totalizam 86,72% das
detentas condenadas, apontando para uma seletividade do público
alvo do direito penal, fenômeno que se irradia para as sociedades
latino-americanas, conforme se pode observar:
A mesma lógica criminalizadora e
estigmatizante que foi iniciada na
colonização dos territórios é continuada
nas sociedades-latinoamericanas, há uma
histórica tradição do extermínio como
tecnologia punitiva e mecanismo de
controle social, os corpos, sobretudo de
pobres e mestiços, indígenas e negros
(antes das tribos, campos e senzalas, e
depois das favelas), das marginalizadas e
conflitivas periferias urbanas ou zonas
rurais continuam como alvos da
seletividade penal. (ANDRADE apud
ARAÚJO; ALBANO, 2016, p. 46).
195
forma seletiva e racista colocam como
“clientes” preferenciais jovens, negros e
moradores da periferia sob custódia
(Ramos, 2002; Adorno, 1996; Cano, 2010).
(IPEA, 2015, p.24).
196
situação de vulnerabilidade. Na América
Latina, os planos de ajustes, flexibilização e
liberalização dos direitos sociais
provocados pelas políticas neoliberais
vitimizaram principalmente as mulheres
latino americanas. (ARAÚJO; ALBANO,
2016, p. 48).
3.3 A IDADE
O Centro de Reeducação Feminino de Ananindeua/PA
recebe apenas mulheres maior de idade, ou seja, mulheres com mais
de 18 anos, nos termos do Código Penal Brasileiro.
197
uma) presas condenadas do CRF Ananindeua era de 31 (trinta e um)
anos. A menor idade identificada foi de 19 (dezenove) anos e a
maior idade foi de 66 (sessenta e seis) anos.
Ao analisar a categoria de interesse idade relacionando com
os tipos de crime, observou-se que do total de mulheres
condenadas daquele centro, 128 (cento e vinte e oito) desse grupo,
foram condenadas por tráfico e possuíam média de idade de 32
(trinta e dois) anos, enquanto que para as condenadas por roubo
essa média cai para 27 (vinte e sete) anos; as internas que
cometeram crime de furto tiveram a média de idade de 24 (vinte e
quatro) anos, já para as condenadas por crime de homicídio a média
de idade ficou em torno de 32 (trinta e dois anos), em relação aos
crime de estupro a média de idade foi de 31 (trinta e um) anos e ao
estrato convencionado “outros”, que é composto por todos os
outros crimes que não apresentaram incidência expressiva,
conforme já explicado, obteve-se média de idade de 45 (quarenta e
cinco) anos, como se pode observar na tabela 2 a seguir.
199
ordem, porém, a falta de oportunidades, na sociedade, para a
obtenção dessas finalidades, pode ser uma porta de entrada para o
mundo do crime.
De acordo com dados do INFOPEN Mulheres (2014)
Analisando-se o perfil das mulheres
privadas de liberdade por faixa etária por
Unidade da Federação, percebe-se que o
perfil etário da mulher encarcerada repete
o padrão nacional jovem em quase todos
os estados, com a grande maioria das
mulheres privadas de liberdade abaixo dos
34 anos, ou seja, em pleno período
economicamente ativo da vida. (p.23)
200
encarcerados, com a taxa de desocupação. Para isto foram
empregados parâmetros do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística – IBGE extraído da Pesquisa por Amostra de Domicílios
(PNAD) – IBGE, divulgado em 22 de fevereiro de 2017. E isto fica
ainda mais claro se for observada a taxa de desocupação.
O IBGE traz informações de taxa de desocupação no
trimestre outubro, novembro e dezembro, de 2013 a 2016, extraídas
da base de dados da PNAD contínua. No Brasil, em 2013 a taxa de
desocupação era de 6,2%, passou em 2014 para 6,55%, em 2015
chegou a 9,0% e continuou subindo em 2016 passou para 12,0%,
atingido a maior taxa da série. No Pará não foi diferente, pois a taxa
de desocupação também vem crescendo partindo de 6,0 % em 2013
e chegando a 12,7% em 2016.
Estes dados da elevação da taxa de desocupação pode ser
um facilitador para o aumento da violência e, consequentemente,
para a elevação do índice de encarceramento, pois sem ocupação a
pessoa está em condição de vulnerabilidade podendo ser seduzido,
ou mesmo recrutado para o crime, posto que em uma sociedade
capitalista as pessoas precisam de renda para sobreviver.
201
*Da amostra pesquisada, 9 (nove) registros não possuíam informações,
correspondendo a 6%.
203
crime possui um viés patrimonial e para ilustrar, apresentamos
incidência de pobreza nos principais municípios de origem das
mulheres condenadas do CRF, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística). Este instituto aponta que a incidência da
pobreza no município de Belém (município com maior número de
condenadas, no CRF Ananindeua, no dia pesquisado) possui a taxa
de incidência de 40,60%, Soure possui incidência da pobreza de
48,21%, em Ananindeua é de 43,01%, enquanto que no município de
Santa Isabel este índice é de 38,33%, estas taxas demonstram que
essas cidades, e também muitas outras do Estado do Pará possuem
índice de pobreza considerável.
Nesse sentido, Ferreira, et al. (2014) mostra que a baixa
renda mensal das mulheres, inferior a um salário mínimo, refletem a
condição de vida da população em situação de exclusão social,
prevalecendo o subemprego e a baixa renda, inclusive a população
carcerária brasileira, além de que a falta de perspectiva e o
desemprego fortalecem a atividade econômica ligada ao tráfico de
drogas no Brasil porque criam oportunidade de lucro às pessoas
sem acesso ao mercado de trabalho formal.
Desse modo, além da necessidade de políticas públicas
preventivas em nível local, observando as particularidades de cada
município. Também é importante que essas mulheres cumpram suas
penas o mais próximo possível de seus locais de origem para que se
evite uma segunda punição, o abandono familiar.
3.5 A REINCIDÊNCIA
Como já citado anteriormente, o CRF Ananindeua é o
estabelecimento prisional que possui a maior população carcerária
de mulheres no Estado do Pará, com 470 (quatrocentos e setenta)
detentas, no dia 22 de março de 2017, reunindo presas provisórias e
condenadas conforme as informações do INFOPEN-PA. Destas 470
detentas, 211 (duzentas e onze) estão na condição de condenadas. E
destas 211 detentas condenadas que estão atualmente cumprindo
pena, 128 (cento e vinte e oito) são reincidentes, o que
correspondem a 61% do total, conforme demonstrado na tabela 3.
204
Tabela 3: Distribuição das detentas condenadas reincidentes, no CRF
Ananindeua, em março 2017.
Situação da Presa Quantidade Percentual
Não reincidentes 83 39%
Reincidentes 128 61%
TOTAL 211 100%
Fonte: INFOPEN-PA, 22 de março de 2017.
205
usuários ou traficantes ou ainda em razão de subempregos ou
desemprego, entre outros:
[...] o tráfico praticado por mulheres
reveste-se de inúmeras particularidades.
Trata-se de um tráfico próprio para o
sustento e, por muitas vezes, trata-se de
um tipo peculiar de tráfico, conhecido
como “tráfico no sistema”. Esse tráfico
dentro do sistema ocorre quando mães,
esposas e namoradas de detentos
adentram nas penitenciárias, através das
visitas, portando entorpecentes. Tal
conduta, habitualmente, ocorre em
decorrência dos subempregos/desemprego
dessas mulheres, que para sustentar suas
famílias acabam se expondo a tais
situações. Não raras vezes, essas mulheres
submetem-se a adentrar nos presídios
fornecendo drogas para proteger a
integridade de seu familiar – ora preso –
que para manter-se a salvo no cárcere tem
de fornecer droga para os donos do tráfico,
dentro da prisão. [...]
Além do tráfico no sistema e do tráfico de
subsistência, encontrado como opção
viável para manter-se em um mercado de
trabalho que não lhes proporciona
possibilidades de inserção, muitas das
mulheres respondem por tráfico de
pequeno porte, realizado para manter seu
vício. Assim, muitas vezes, por não haver
previsão legal para esse tipo de conduta,
usuárias, que acabam por traficar em
decorrência do vício, respondem com a
mesma severidade dirigida àqueles que
206
cometem tráfico de grande porte, hoje
equiparado aos crimes hediondos
(PEREIRA, Larissa Urruth, p 7-8.)
207
contudo, no tráfico de drogas, o que traduz mais um dado
preocupante em relação a esse tipo de ilícito12, pois pode refletir,
além das considerações já formuladas, a facilidade para a prática
desta atividade ilícita.
O encarceramento de mulheres em
decorrência do tráfico de drogas é fato
preocupante, considerando a velocidade
com que esse crime vem se expandindo no
Brasil e no mundo e suas consequências
para a sociedade. Entretanto, para explicar
o envolvimento dessa população no tráfico
de drogas, não se pode afirmar que uma
única causa o determine ou que variáveis
isoladas alcancem a magnitude do
problema. Faz-se necessário conhecer o
conjunto de fatores que o definem,
considerando um contexto que inclui os
aspectos cultural, econômico e social que
fomenta as desigualdades de gênero e,
consequentemente, a violência contra a
mulher, sendo essencial analisá-los sob o
olhar do respeito aos direitos humanos.”
(FERREIRA et al., 2014, p.2261)
12
O mesmo que crime. Também chamado ilícito penal.
208
Idade Quantidade Percentual
19 Ⱶ 24 20 16 %
24 Ⱶ 29 33 26 %
29 Ⱶ 34 28 22 %
34 Ⱶ 39 19 15 %
39 Ⱶ 44 9 7%
44 Ⱶ 49 6 5%
49 Ⱶ 54 7 5%
54 Ⱶ 59 4 3%
59 Ⱶ 64 0 0%
64 Ⱶ 66 2 1%
TOTAL 128 100%
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo do presente artigo era traçar um perfil das
detentas condenadas que estavam custodiadas no Centro de
Reeducação Feminino de Ananindeua quando foram coletadas das
informações, a partir de cinco características de interesse – crime
cometido, cor da pele, idade, local de origem e reincidência criminal.
As condenadas reclusas no Centro de Recuperação Feminino
de Ananindeua, em sua maioria, praticaram o delito de tráfico de
drogas. Foi possível notar que 86,72% das internas possuíam o tom
209
de pele negro ou pardo. Quando analisado o município de origem
constatou-se que a maioria das presidiárias nasceu em Belém,
capital do Estado do Pará, todavia em relação ao delito tráfico de
drogas há um equilíbrio entre o número de condenadas nascidas no
interior do estado e as nascidas na capital. O percentual de
reincidência entre as detentas do CRF Ananindeua mostrou-se
pequeno, no entanto, dentre as mulheres que reincidiram, o delito
de tráfico de drogas voltou a ocupar lugar de destaque.
Durante a realização da pesquisa, constatou-se a
necessidade da disponibilização de relatórios com uma quantidade
maior de filtros relacionados ao perfil dos internos do sistema
prisional do Estado do Pará. No mesmo sentido, detectou-se
carência da adoção de um padrão no conceito de reincidência para
estudos oficiais, obstando a comparação dos dados coletados com
informações nacionais e das demais regiões do país.
No que tange à atuação do Poder Público, verificou-se que,
devido ao elevado número de delitos praticados por mulheres ter
uma conotação patrimonial, faz-se necessária a implantação de
políticas públicas visando a inserção feminina no mercado de
trabalho, bem como o desenvolvimento mais incisivo de políticas
públicas de caráter educacional no tocante ao tráfico de drogas.
Para o desenvolvimento de pesquisas futuras que busquem
traçar um perfil das mulheres condenadas que estão custodiadas no
Centro de Reeducação Feminino de Ananindeua e para aprofundar o
perfil neste artigo já delineado, seria interessante a análise das
condições econômicas, da profissão, do grau de escolaridade e do
estado civil dessas detentas condenas.
Finalmente, destaca-se que ao se traçar o perfil da mulher
condenada, em especial a custodiada no CRF Ananindeua possibilita
o debate sobre o delicado tema do encarceramento feminino, seus
reflexos nas famílias, trabalho e condição social dessas mulheres.
Trata-se de um tema complexo e que possuiu como escopo
externalizar as relações que envolvem os elementos de composição
do perfil das apenadas daquele centro. Assim, salienta-se que a
importância deste trabalho está em contribuir primeiro para o
210
debate do tema e também inspirar diretrizes e políticas que
revertam o constante crescimento do aprisionamento feminino,
possibilitando uma estabilização ou mesmo diminuição dessa
realidade.
REFERÊNCIAS
211
CARVALHO, Sérgio; CAMPOS, Weber. Estatística básica simplificada,
Rio de Janeiro: Elsevier. 2008.
212
GERHARDT, Tatiana Engel; SOUZA, Aline Correa de. “aspectos
teóricos conceituais”, in TEGERHADT;SILVEIRA, D T, Métodos de
pesquisa, Porto Alegre, UFRGS, 2009.
213
MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de Direito
Penal - vol.1. 28, São Paulo: Atlas, 2012.
SCHERER ZAP; Scherer EA; Nascimento AD; Ragozo FD. (2011), “Perfil
sociodemográfico e história penal da população encarcerada de
uma penitenciária feminina do interior do estado de São Paulo”.
Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.), p. 61. Acesso
em 22 mar. 2017. Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/pdf/smad/v7n2/02.pdf>.
214
SUPERINTENDÊNCIA DO SISTEMA PENITENCIÁRIO DO ESTADO DO
PARÁ (SUSIPE). Acesso em: 16 out. 2016. Disponível em:
<http://www.susipe.pa.gov.br/ >
215
O ESTADO PENAL E O ENCARCERAMENTO EM MASSA NA AMÉRICA
CONTEMPORÂNEA
RESUMO
No decorrer das quatro últimas décadas a América, lançou-se numa
experiência social e política sem precedentes. A substituição de um
Estado de bem-estar social por um Estado penal, no qual a
criminalização da marginalidade e a contenção punitiva das
categorias deserdadas confundem-se com política social. Enquanto
que os programas voltados para as populações vulneráveis foram
sempre limitado e isolados do resto das atividades estatais. Dessa
forma, a vocação disciplinar se afirma principalmente na direção das
classes inferiores e das categorias étnicas dominadas. Veremos, por
meio deste paper, a conjuntura do aprisionamento afro-americano
segundo Loic Wacquant.
ABSTRACT
Over the pass the last four decades, America had a new kind of
political and social experience. The replacement of the welfare state
by penalty state, the arise of criminalization and punishment of the
poor people wich the government now calls social politics. Although
the programs developed for the vulnerable population were always
limited. This way, the punishment state reachs directly the
underclasses. We will see in this paper the afro-american mass
incarceration in the United States of America by the Loic Wacquant
point of view.
KEYWORDS: Ghetto; Mass Incarceration; Penalty State.
1 PROBLEMATIZAÇÃO
216
Vários fatores devem ser considerados no que diz respeito à
desigualdade racial e aprisionamento na América contemporânea.
Desde 1989 e pela primeira vez na história da nação, afro-
americanos são maioria nas prisões, e este número só aumenta a
cada ano. Há quatro décadas, a composição de internos nas prisões
americanas mudou, no meio do século 70% dos prisioneiros eram
brancos, hoje em dia, 70% são negros e latinos. Embora não tenham
ocorrido mudanças nos padrões étnicos de atividade criminal
durante o período.
A taxa de encarceramento de afro-americanos tem
aumentado em níveis alarmantes comparados a outras sociedades, e
é mais alto agora que a taxa total de encarcerados na antiga União
Soviética ou na África do Sul no alto da luta contra o apartheid.
Em meados de 1999, quase 800.000 homens negros foram
detidos em penitenciárias federais, prisões estaduais e cárceres. Um
terço dos afro-americanos na casa dos 20 anos se encontra atrás das
grades ou em liberdade condiciona; em antigas cidades industriais
do norte, esta proporção chega a exceder muitas vezes os dois
terços.
A taxa de negros comparada à taxa de brancos aprisionados
tem crescido constantemente nas últimas décadas. Isto eleva a
desproporcionalidade racial e tem ligação direta com a política de
guerra as drogas, criada por Ronald Reagan e expandida
posteriormente sob o governo de George Bush e Bill Clinton
respectivamente. Em alguns estados, afro-americanos são
aprisionados 10 vezes mais se comparados à taxa de americanos
descendentes de europeus. No distrito de Columbia, por exemplo,
negros são 35 vezes mais prováveis de estarem atrás das grades do
que brancos.
A maioria dos analistas explica o súbito "enegrecimento" do
sistema carcerário que inclui prisões, prisões estaduais, prisões
federais e instalações privadas de detenção em termos de
tendências no crime e seu tratamento judicial (prisão, acusação e
sentença). Alguns consideraram variáveis não judiciais, como o
tamanho da população negra, fatores econômicos (taxa de pobreza,
217
desemprego, renda), o valor dos pagamentos de assistência social, o
apoio ao fundamentalismo religioso e o partido político dominante.
Mas, esses fatores, tomados separadamente e em conjunto,
simplesmente não podem explicar a magnitude, a rapidez e o
momento da recente racialização da prisão dos EUA, especialmente
porque as taxas de criminalidade foram estáveis e depois
aumentaram em demasia ao longo do último quarto de século.
Esta política de encarceramento em massa tem como
principais vítimas os jovens pobres e em sua maioria negros que são
usuários de drogas ou praticam pequenos furtos. Ao contrário do
que se é frequentemente noticiado na mídia, as prisões estão
repletas não de criminosos violentos, mas sim de pequenos
delinquentes e usuários de drogas.
O problema deste artigo concentra-se em relacionar a
desigualdade racial e o encarceramento em massa nos Estados
Unidos dentro da perspectiva de Loïc Wacquant. O objetivo geral
visa compreender como a questão racial e social está diretamente
associada ao aprisionamento. O objetivo específico é identificar os
fatores sociais, raciais e políticos que fomentam o encarceramento
em massa e contribuem para a formação do atual Estado Penal
estadunidense.
2 METODOLOGIA
Nosso objeto de estudo é a política de Encarceramento em
Massa e o Estado Penal na América contemporânea por meio da
discussão racial. Trata-se de pesquisa de natureza exploratória, com
abordagem qualitativa realizada por meio de revisão bibliográfica
das obras de Loïc Wacquant.
218
últimas quatro décadas resulta da obsolescência do gueto como um
dispositivo para o controle de castas e a necessidade correlativa de
um aparelho substituto para manter os afro-americanos (não
qualificados) em uma posição subordinada e confinada fisicamente,
socialmente e simbolicamente (WACQUANT, 2009).
O gueto e o sistema carcerário em
expansão tornaram-se ligados em um
único sistema que atrai grande número de
homens negros jovens. Essa malha
carcerária emergiu de dois conjuntos de
mudanças convergentes: as forças
econômicas e políticas arrebatadoras
reestruturaram o "cinto preto" de meados
do século para tornar o gueto mais como
uma prisão. E a "sociedade do preso"
quebrou de forma que torna a prisão mais
como um gueto. A simbiose resultante
entre gueto e prisão impõe a
marginalidade socioeconômica e a mancha
simbólica de um subproletariado negro
urbano. (WACQUANT, p. 29, 2002, tradução
nossa).
219
as crianças são gerenciadas por um sistema renovado de assistência
social e trabalho projetado para reforçar o emprego casual e
precário.
Jonathan Simon, professor de Sociologia do Direito em
Berkeley, define com segurança a nova ordem do Estado penal
americano contemporâneo:
Na nova ordem do Estado penal, impera a
lógica do Estado mínimo, da proteção
mínima contra riscos econômicos e sociais,
da responsabilização individual. O direito
penal é aquele que, diante de um problema
social complexo, que resulta da interação
de muitos fatores muitas vezes históricos
ou sistêmicos, produz sempre uma
resposta baseada na responsabilidade
individual. (SIMON, p.53, 2007, tradução
nossa).
220
A reforma revoga o direto à assistência de que as crianças
desfrutam e instaura uma duração máxima acumulada de cinco anos
de assistência por cada vida. Os estados e condados têm toda a
liberdade de ação para impor condições de atribuições dos auxílios
mais restritivas do que as enunciadas pela lei federal. Esta lei institui
um sistema de prêmios e penalidades financeiras encorajando os
estados a eliminar por todos os meios os assistidos. Os orçamentos
da assistência passam a ser determinados, atualmente, não em
função das necessidades das populações, mas por dotações fixas. A
nova legislação exclui do registro das verbas várias categorias
sociais, a exemplo dos imigrantes legais chegados a menos de 10
anos e crianças pobres sofrendo de deficiência física.
Assim, o crescimento hipertrófico da prisão
é um componente de uma reestruturação
mais abrangente do Estado americano para
atender às exigências do neoliberalismo.
Mas a raça desempenha um papel especial
neste sistema emergente. Os Estados
Unidos ultrapassam largamente todas as
nações avançadas na tendência
internacional para a penalização da
insegurança social. E assim como o
desmantelamento dos programas de
assistência social foi acelerado por uma
confusão cultural e política de escuridão e
imerecimento, também o "grande
confinamento" dos rejeitos da sociedade
de mercado, os pobres, os doentes
mentais, os sem-abrigo, os desempregados
e inúteis, podem ser pintados como uma
"repressão" bem-vinda sobre eles, aqueles
criminosos de pele escura de um grupo de
parias ainda considerados estranhos ao
corpo nacional. O sistema prisional reflete
e reforça a divisão racial da sociedade
221
americana e desempenha um papel
fundamental no modelo de um estado pós-
keynesiano. (WACQUANT, p. 25, 2002,
tradução nossa).
222
preso, muitas vezes, injustamente, ou até mesmo cumprindo uma
pena maior do que o crime supostamente cometido.
O encarceramento também tem um grande efeito no índice
de desemprego. Se por um lado mascara este índice, retirando à
força milhões de pessoas da “população em busca de um emprego”,
por outro só contribui para o seu crescimento. Como menciona
Wacquant (2002), um efeito do encarceramento é o de acelerar o
desenvolvimento do trabalho assalariado de miséria e da economia
informal, produzindo incessantemente um grande contingente de
mão de obra submissa disponível: os antigos detentos não podem
pretender senão os empregos degradados e degradantes, em razão
de seu status judicial. Isso é agravado quando pensamos, por
exemplo que, em alguns estados dos Estados Unidos, têm-se uma
base de fichas criminais que, muitas vezes, é disponível a indivíduos
e empresas, o que dificulta ainda mais a reinserção de ex-detentos
na sociedade e no mercado de trabalho. Mantém-se, assim, um
círculo vicioso: a miséria alimenta o sistema carcerário, que por sua
vez produz mais miséria.
A gestão da miséria nos Estados Unidos se confunde, muitas
vezes, com o controle de negros e latinos, e se expressa no
crescente encarceramento de parte dessa população. Os Estados
Unidos definem o cárcere como opção para governar os
desafortunados num país extremamente ligado ao consumismo.
Expandindo gastos públicos para confirmar sua administração penal,
gastando excessivamente em penitenciarias e prisões, prendendo
cada vez mais, midiatizando ações de segurança pública de forma a
demonstrar aos eleitores descontentes com o aumento da
criminalidade que o Estado faz sua parte em prender vagabundos e
desocupados (WACQUANT, 2009).
[...] o corte dos programas sociais retoma o
áspero caminho rumo à ascensão da
miséria e da violência ao hipertrofiar o
direito penal e sua força sancionadora,
buscando os locais de guetos e onde se
encontrarem as famílias mais pobres, que
223
passam a ser em maior número tendo em
vista a redução dos programas sociais do
Estado. A destruição do Estado social e a
hipertrofia súbita do Estado penal são dois
desenvolvimentos concomitantes e
complementares, ou seja, o
estabelecimento de um governo da
miséria. (WACQUANT, p. 85, 2009).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Estado tende a cada vez mais monopolizar seu caráter
social em favor dos privilegiados, que são as empresas, possuidoras
de garantias e apoio inúmeros, bem como às classes superiores.
Contudo, isolou as classes inferiores da maneira a transformá-la na
mão de obra barata oriunda dos guetos e das pequenas
comunidades carentes. Deste modo, a reforma do sistema social
serve para vigiar e punir os grupos que se ajustam dominados por
uma classe que se encontra no topo da pirâmide, mas que somente
sobrevive graças ao esforço e ao sustento daqueles que estão na
margem desta construção. Esse mergulho na obra de Loïc Wacquant
nos dá subsídio para compreensão das altas taxas de
encarceramento estadunidense e esclarece a verdadeira causa do
problema, que não é simplesmente o aumento da criminalidade, e
225
sim a população pobre, carente e excluída como alvo para punição e
aprisionamento, executando uma verdadeira “limpeza social”,
retirando essa classe desprivilegiada das cidades e a aprisionando.
Este estudo ajuda a compreender melhor o crescimento das taxas de
encarceramento no Brasil, que também guarda semelhanças com o
cenário estadunidense, quando o perfil do prisioneiro brasileiro
também é o negro, jovem, morador de favelas, com baixa
escolaridade e excluído dos programas sociais de benefício
assistencial.
REFERÊNCIAS
226
VIOLÊNCIA DE GÊNERO NA INTERNET: REVENG PORN E SEUS
MECANISMOS DE DEFESA
RESUMO
O presente artigo objetiva analisar a prática da “Pornografia de
Vingança” no ciberespaço e suas consequências para suas vítimas e
à sociedade, possibilitando uma maior reflexão à comunidade
acadêmica, acerca desta grave violação aos direitos humanos
relacionada ao ambiente virtual. Cotidianamente, a mídia noticia
casos de publicação não autorizada de conteúdo íntimo de terceiros
na internet, em que o autor do fato o faz seja para expor, humilhar
ou vingar-se da vítima, fazendo com que vídeos e imagens
“viralizem”, levando a conduta criminosa a qualquer lugar do
mundo, em tempo real. Por meio de um olhar epistemológico a
respeito do tema, discute-se os enfoques da criminalização deste
ato contra a dignidade humana, alcançado de forma desleal. A
metodologia adotada foi pesquisa bibliográfica, visando
contextualizar no mundo jurídico tal conduta ilícita. Constatou-se
que o Brasil precisa adequar-se não só sob o ponto de vista
legislativo, como também no que se refere à divulgação de
mecanismos de defesa e prevenção desta prática nefasta, a fim de,
se não prevenir, ao menos proporcionar aos ofendidos o verdadeiro
acesso à Justiça.
ABSTRACT
This article aims to analyze the practice of "Revenge Pornography"
in cyberspace and its consequences for its victims and society,
227
allowing a greater reflection to the academic community about this
serious violation of human rights related to the virtual environment.
Every day, the media reports cases of unauthorized publication of
intimate third-party content on the Internet, in which the
perpetrator does so to expose, humiliate or avenge the victim,
causing videos and images to "viralize", leading to conduct crime
anywhere in the world in real time. Through an epistemological view
on the subject, it is discussed the approaches of the criminalization
of this act against the human dignity, reached of disloyal form. The
methodology adopted was bibliographic research, aiming to
contextualize in the legal world such illicit conduct. It was found that
Brazil needs to adapt not only from the legislative point of view, but
also as regards the dissemination of defense mechanisms and
prevention of this harmful practice, in order, if not prevent, at least
provide the offended access to justice.
1 INTRODUÇÃO
A disseminação não consensual de vídeos e imagens íntimas
da vítima, como represália, geralmente publicada na internet por ex-
companheiros, devido a não aceitação da separação é definida
como pornografia da vingança ou reveng porn.
É exatamente nesse contexto que temos verificado cada vez
mais em nossa sociedade a prática deste ato, onde a maioria das
vítimas são mulheres e os agressores, geralmente são ex-
namorados, ex-maridos, ou seja, os quais tiveram algum
relacionamento afetivo com a vítima. Desta forma, pretende-se
evidenciar o caráter de violência de gênero deste fenômeno e
apresentar mecanismos de defesa desta prática.
O presente trabalho encontra-se dividido em três seções. A
primeira trata-se sobre pornografia da vingança: a internet como
meio de disseminação. Apresentando uma breve definição sobre a
228
internet, crime virtual e pornografia da vingança. A segunda seção
refere-se à aplicação das leis no Brasil nos casos de violação da
intimidade através da divulgação indevida de material íntimo e suas
consequências. Por fim, a última parte encarrega-se de apresentar
mecanismo de prevenção e assistência no combate desta prática.
229
Ao lado dos benefícios que surgiram com a
disseminação dos computadores e do
acesso à Internet, surgiram crimes e
criminosos especializados na linguagem
informática, proliferando-se por todo o
mundo. Tais crimes são chamados de
crimes virtuais, digitais, informáticos,
telemáticos, de alta tecnologia, crimes por
computador, fraude informática, delitos
cibernéticos, crimes transnacionais, dentre
outras nomenclaturas. (PINHEIRO, 2016,
p.1).
230
Penal Brasileiro e leis penais especiais e os infratores estão sujeitos
às penas previstas na Lei.
Como exemplo, podemos citar a pornografia da vingança,
que elenca esses tipos de delitos praticados no ciberespaço, a qual
consiste na veiculação de imagens/vídeos sexuais consentidos ou
não pela vítima, decorrente do rompimento da relação afetiva,
ocorrendo uma exposição da privacidade, gerando inúmeros
problemas, tanto físicos como emocionais.
É importante, a fim de compreender
a pornografia da vingança e suas
dimensões, contextualizá-la como
uma forma de violência de gênero,
sobretudo quando a maioria dos
casos de violação ocorre quando há
rompimento da relação afetiva por
iniciativa da mulher. (GUIMARÃES;
DRESCH, 2014, p.11).
231
A maneira mais comum de haver tal
divulgação ocorre quando as
imagens são postadas em sites de
relacionamento, ou ainda de
oferecimento de serviços sexuais,
colocando as mulheres como garotas
de programa, juntamente com seus
dados pessoais e contato.
Consequentemente, iniciam-se os
contatos de estranhos, stalking e,
inclusive, ataques físicos.
232
Com isso, pode-se observar que nos últimos anos, o
ambiente virtual tem operado interligado com o real, desta forma,
influenciando de forma direta e indireta na proliferação de
diferentes formatos de violência contra as mulheres.
233
visualizar, de forma cristalina, as consequências ao ato, infringindo
em penalidades palpáveis” (CITRON; FRANKS, 2014, p. 14).
No Brasil ainda não vigora nenhuma lei que trate
exclusivamente dessa prática originado da pornografia de vingança.
Porém, de acordo com Freitas (2014), há dois projetos em trâmite no
Congresso, que visam tornar crime a prática desta conduta. O
projeto de lei 6630/2013 é um deles, o qual é de autoria do
deputado federal Romário.
Segundo Guimaraes e Dresch (2014, p.9, apud FREITAS, 2014,
p.8):
Em ambos os projetos (PL 6630/2013 e
6831/2013) as sanções são definidas em
patamares de um a três anos de detenção
(primeiro projeto) ou de reclusão (segundo
projeto). Já o projeto de lei nº 6713/2013, de
autoria do deputado Eliene Lima, do
PSD/MT, tem redação do tipo penal bastante
genérica, prevendo-se apenas a punição de
um ano de reclusão, mais multa de vinte
salários mínimos, para aquele que ‘publicar
as chamadas postagens pornográficas de
vingança na internet’.
234
da intimidade sexual e da privacidade de quem quer que seja,
sobretudo de grupos historicamente vulneráveis.
Segundo Guimarães e Dresch (2014), no Direito Civil a
violação da intimidade por meio da divulgação indevida de material
íntimo gerará o dever de reparação do dano moral e material. A
responsabilidade tem caráter reparatório e indenizatório ao
indivíduo lesado pelo sujeito que produziu o dano. No entanto,
referente ao dano moral, esse caráter se torna impossível de
quantificar, visto que o resultado e consequências da online revenge
porn são irreversíveis.
Quando se trata de violação da
intimidade e da privacidade, a vítima
poderá pleitear o direito à proteção
constitucionalmente assegurada para
obter a determinação judicial de
obstar a continuidade da exposição
pública e de invasão em sua vida
íntima, como exemplo, obtendo a
ordem judicial de retirada de
circulação, por parte do provedor da
internet, dos vídeos e/ou fotos (isso,
certamente, não impede que
arquivos copiados pelas pessoas não
voltem a circular por meio de
mensagens direcionadas – e-mail’s
ou por telefone celular)
(GUIMARÃES; DRESCH, 2014, p.14).
235
e multa. Segundo Bittencourt (2013, p. 352 apud GUIMARAES;
DRESCH, 2014, p. 16) “A difamação é imputar a alguém fato ofensivo
à sua reputação, e por reputação se entende a estima moral,
intelectual ou profissional de que alguém goza no meio em que
vive.”
Considerando, ainda, que para haver
crime a reputação do indivíduo
perante a sociedade deve ser lesada;
é fundamental que o fato
desonroso chegue a conhecimento
de terceiros, pois aí é que a
honra do indivíduo será atingida
perante a coletividade na qual está
inserido. Nos casos de divulgação de
material íntimo, não há maiores
dificuldades em enquadrar este
ponto. (GUIMARÃES; DRESCH, 2014,
p.16).
236
a vítima, ameaçando de torná-las
públicas, o crime será o de ameaça,
previsto no art.147 do Código Penal,
cujo bem jurídico tutelado é a
liberdade individual (GUIMARÃES;
DRESCH, 2014, p.17).
237
termina, os arquivos podem ser
utilizados como “explosivos” para
ofender a reputação de uma pessoa
(BRASIL; BARRETO, 2016, p.179).
238
ao poder judiciário é considerado um grande avanço no que diz a
respeito à proteção da vítima.
Pode-se citar como exemplo o Facebook, o qual lançou uma
ferramenta para “combater” esta prática, de modo que se uma
imagem imprópria for compartilhada por meio do site, o usuário
terá a opção de denunciá-la, e esta será revisada por um profissional
qualificado, o qual determinará se ela viola ou não os padrões da
comunidade.
Segundo Barreto e Brasil (2016, p.174) “A denúncia no
Facebook pode ser feita diretamente no link “denunciar” que fica
próximo à foto ou ao vídeo, bem como através do acesso a link
específico, preenchendo os dados solicitados e indicando a URL do
conteúdo infringente”. Vale ressaltar que caso o conteúdo seja
considerado explícito, a imagem será removida e automaticamente
a conta que a compartilhou poderá ser desativada, bem como,
também dispõe de uma tecnologia a qual impede que a imagem se
espalhe pelas outras empresas.
Neste compasso, há a existências de organizações que
defendem e promovem os direitos humanos na internet. Como por
exemplo, SaferNet1 que é uma organização não governamental que
registra as queixas de vítimas de pornografia da vingança e auxilia
na remoção do conteúdo na internet.
Segundo Brasil e Barreto (2016):
A ferramenta possibilita ao
denunciante acompanhar o
andamento da denúncia formulada e,
caso haja procedência nesta, a
equipe de analistas faz a colheita de
todas informações úteis a comprovar
a atividade ilícita e as encaminhar a
Polícia Federal ou ao Ministério
Público Federal quando o conteúdo é
1
Disponível em: http://new.safernet.org.br/. Acesso em: 20/07/2017.
239
hospedado no Brasil (BRASIL,
BARRETO, 2016, p. 134).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, o presente trabalho propôs uma análise acerca da
pornografia da vingança, mostrando os diferentes aspectos entre
gênero, violência e internet, suas interrelações e reflexos na
sociedade. Demonstrou as causas e consequências atribuídas às
vítimas dessa prática, bem como evidenciou a forma como esses
atos de violência são percepcionados pelas mulheres. Deste modo,
também foram apresentados mecanismos de prevenção e auxílio,
que são grandes suportes para o enfrentamento e amparo nos casos
de reveng porn na sociedade. Diante da gravidade da conduta e dos
danos causados, entende-se que além da criminalização da conduta,
a pena deverá ser mais gravosa por meio de leis mais rígidas, para a
efetiva proteção da vítima, refletindo no tratamento aos agressores,
2
Disponível em: http://www.mariasdainternet.com.br/. Acesso em: 20/07/2017.
240
de modo a serem intimidados e repreendidos pelo estado, como
forma de inibir que venham a violar direitos humanos das mulheres
na internet, preservando a inviolabilidade da privacidade e
intimidade destas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
241
LINS, B.A. A internet não gosta de mulheres? Gênero, Sexualidade e
Violência nos debates sobre "Pornografia da Vingança", 2014.
Disponível
em:<http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/a_internet_n
ao_gosta_de_mulheres.pdf>. Acesso em: 20 de jun. 2017.
242
PERFIL DOS CRIMES DE TRÁFICO DE DROGAS DENUNCIADOS PELO
MINISTÉRIO PÚBLICO NO MUNICÍPIO DE BENEVIDES-PA NO ANO
DE 2015: UMA ANÁLISE CRÍTICA
243
postulates raised by the author, in his work, verifying its suitability
to the local reality of the Municipality of Benevides-PA, belonging to
the Metropolitan Region of Belém, State of Pará. hypothetical-
deductive method, conducting a qualitative and quantitative
approach through a documentative research. At the end, it was
confirmed the hypothesis that selective postulates guide the local
action of repression to the traffic, in face of the data analyzed.
1 INTRODUÇÃO
É fato público e notório que, sob o discurso de combate às
drogas, diariamente, diversas pessoas são presas e encarceradas no
seio do território nacional. Conforme levantamento do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ, 2017), em janeiro de 2017, o maior
quantitativo de presos provisórios respondendo a processos
criminais nos tribunais estaduais da federação (29% do total de
221.054 encarcerados), correspondia ao contingente de acusados
sob algum dos tipos penais elencados pela lei 11.343/06 - a lei
antidrogas.
Entretanto, a despeito do alto investimento realizado no
âmbito nacional e internacional em torno da declarada guerra às
drogas, o problema ainda parece muito distante de qualquer efetiva
solução (RODRIGUES, 2004; SAVIANO, 2014), dentre outros motivos,
por conta das altíssimas cifras que o mercado ilegal do tráfico de
drogas movimenta a cada ano (LABROUSSE, 2010; CAMPOS, 2014;
SAVIANO, 2012; 2014).
Inúmeras, aliás, são as hipóteses teóricas levantadas em
relação ao fracasso da guerra às drogas, ganhando destaque teses
como a da naturalidade do vício (ARAÙJO, 2012), do vício e
comércio como fruto de uma sociedade consumista (WEIGERT,
2010), ou, ainda, de uma função assessória do tráfico numa política
de estigmatização e controle populacional (WACQUANT, 2015).
244
Especial destaque, entretanto, ganha a hipótese levantada
por D’élia Filho (2014) a respeito da atuação de mecanismos de
seletividade penal, como engrenagens de engessamento do
combate ao tráfico real, por meio de um atingimento isolado das
camadas mais pobres da população envolvida com esta atividade.
Segundo esse autor (D’ÉLIA FILHO, 2014) a atuação concreta
da lei antidrogas, em terras brasileiras, atingiria somente de forma
excepcional os médios e grandes traficantes (denominados, em
diversos momentos de sua obra, como oligopolistas do tráfico),
recaindo corriqueiramente sobre pessoas pobres e estigmatizadas,
naturalmente excluídas das fileiras da sociedade de consumo do
Século XXI, às quais, obviamente, o tráfico surgiria como uma
verdadeira alternativa laboral/econômica. A teoria é reforçada,
ainda, através de dados comparativos referentes a prisões e
apreensões em zonas com perfil econômico diferenciado do Rio de
Janeiro (D’ÉLIA FILHO, 2014).
A coerência dos argumentos apresentados pelo autor, assim
como, sua adequação aos postulados de outros estudos relevantes
quanto à temática do tráfico de drogas (LABROUSSE, 2010;
CAMPOS, 2014; RODRIGUES, 2004; SHECAIRA, 2014), por sua vez,
torna tentadora a testagem de seus postulados em contextos
diferentes daquele onde se originou o estudo (a megalópole do Rio
de Janeiro – RJ).
Sob esta pretensão, o presente estudo objetivou testar os
principais postulados teóricos levantados por D’élia Filho (2014) em
sua obra, verificando sua adequação à realidade local do Município
de Benevides-PA, pertencente à Região Metropolitana de Belém,
Estado do Pará.
Questionou-se: o perfil das denúncias realizadas pelo
Ministério Público do Estado do Pará com base na lei antidrogas, ao
longo do ano de 2015 na Comarca de Benevides-PA, revela
características compatíveis com postulados de seletividade penal
apontados por D’élia Filho em sua obra Acionistas do Nada: Quem
são os traficantes de drogas (2014)?
245
Partiu-se da hipótese, desenvolvida a partir da experiência
pessoal dos pesquisadores com o estudo criminal no Estado do Pará,
de que a hipótese levantada por D’élia Filho (2014) seria confirmada
no âmbito local (questão que será retomada nas considerações
finais).
Assim, o trabalho se desenvolveu sob a seguinte
estruturação: a) Uma segunda seção (após a introdução) que se
ocupou da discussão dos postulados teóricos que embasaram a
hipótese acima; b) Uma terceira seção, que, brevemente, se ocupou
da discussão dos contornos metodológicos do estudo; c) Uma
quarta seção, que se ocupou da análise e discussão dos resultados
encontrados; e, finalmente, d) as considerações finais do estudo.
246
concluiu que a atuação penal, sobretudo das instituições policiais,
seria guiada por critérios de estigmatização de determinados
segmentos populacionais, especialmente, aqueles pertencentes às
áreas mais pobres das cidades, bem como, às camadas sociais
alijadas das fileiras do mercado formal de trabalho.
A teorização faz total sentido, sobretudo, se analisada sob
um viés territorial.
Sampaio (2015), por exemplo, denunciou em seus estudos a
violência que acompanha o processo de urbanização e a
apropriação do espaço urbano como bem de consumo, o que, por
sua vez, importaria numa segregação cada vez maior da população
mais pobre dos centros urbanos que conglobam as redes de bens e
serviços interessantes ao mercado.
Estas áreas nobres, por conseguinte, seriam objeto de uma
especial proteção pelo poder público, sobretudo, para manter sua
valorização, tornando-as, portanto, um paraíso presente a todos
aqueles capazes de pagar por seus benefícios (BAUMAN, 2001).
Como consequência desta apropriação do espaço como bem
de consumo, constatou-se a segregação de grandes contingentes
populacionais incapazes de se inserir naquelas redes, e, com isso, a
gênese de grandes bolsões de pobreza em áreas relativamente
próximas aos centros urbanos, responsáveis pela absorção da mão
de obra ativa (trabalhadores formais) e de um exército de mão de
obra de reserva (ou seja, desempregados e trabalhadores informais),
aptos a mover as engrenagens dos grandes centros (OLIVEIRA,
2015).
Esses bolsões, por seu valor econômico reduzido, seriam
naturalmente privados de serviços públicos eficientes quanto à
salvaguarda de direitos mínimos dos cidadãos ali presentes
(SAMPAIO, 2015). Com isso, as organizações culturais e espaciais
passariam a ganhar contornos diferenciados que, com o auxílio da
mídia (sobretudo a sensacionalista), difundiriam a obtusa confusão
entre a ideia de diferente e a ideia de perigoso (OLIVEIRA, 2015).
Além disso, a falta de investimento e de uma presença
contundente do Poder Público, decerto, torna essas áreas periféricas
247
passíveis de ocupação por outros poderes (como o das organizações
criminosas do tráfico de drogas e milícias), que ali passam a
consolidar seu território através de práticas contrárias ao sistema
legal.
Nascem os estereótipos, e, com eles, um clamor impensado
sobre ações mais severas nestas regiões, que, conforme afirmou
Haesbaert (2014), criam barreiras artificiais e simbólicas que
fragmentam a cidade.
No que tange ao tráfico de drogas, essa segregação sócio-
espacial (SAMPAIO, 2015), associada ao discurso oficial de guerra às
drogas (RODRIGUES, 2004), resultou numa verdadeira atuação
seletiva do Estado, predominantemente, sobre os varejistas do
tráfico que residem nestas áreas (para os quais o tráfico surge como
uma oportunidade de satisfação pessoal numa comunidade
determinada pelo consumo [BAUMAN, 2001]).
Esta repressão, por sua vez, ao invés de combater o tráfico
de drogas, acaba por apenas escassear os revendedores e tornar as
vias de acesso mais dificultosas, sem, no entanto, atingir os
empresários responsáveis pelo processo produtivo e de
comercialização internacional das drogas (D’ÉLIA FILHO, 2014). Em
outras palavras, as drogas se tornam mais caras (justamente por
serem proibidas e demandarem mais custos e se tornarem um
objeto mais complexo para ser adquirido/consumido) e a repressão
retroalimenta a economia da droga e os lucros obtidos pelos
oligopolistas (RODRIGUES, 2004; D’ÉLIA FILHO, 2015).
Em paralelo, danos muito maiores, associados tanto ao
consumo de substancias regularmente consumidas (como bebidas e
cigarros), quanto, a outras condutas criminosas mais graves (como a
lavagem de dinheiro e corrupção, em todas as suas formas),
acabaram por ser negligenciadas pelos órgãos integrantes do
sistema judiciário.
Em suma, afirmou o autor que esse processo de
estigmatização acabaria por resultar numa punição seletiva de
varejistas, que, em verdade, corresponderiam a cidadãos excluídos
do mercado formal de trabalho, especialmente, pobres, moradores
248
de áreas menos valorizadas das comunidades e, em sua maioria,
negros (D’ÉLIA FILHO, 2014), afinal, a questão racial também seria
importante mecanismo integrante do crivo estigmatizador da
pobreza (WACQUANT, 2015).
Trata-se, portanto, de uma hipótese bastante alarmante a
respeito da atuação das instituições de repressão criminal,
sobretudo, aquelas vinculados aos órgãos policiais (D’ÉLIA FILHO,
2014), evitando, assim, um correto enfrentamento dos problemas
inerentes ao tráfico de drogas.
Justamente em razão disso, como mencionado ao início, é
tentador, em termos científicos, comparar os postulados acima
destacados com outras realidades externas ao contexto originário (a
cidade do Rio de Janeiro).
E, justamente, foi esta motivação que deu origem ao
presente estudo.
Adotando a teoria destacada como paradigma analítico, nas
próximas seções, após os pertinentes delineamentos metodológicos,
buscou-se verificar se a hipótese levantada por D’élia Filho (2014),
poderia espelhar uma realidade totalmente diferente daquela onde
se originou: a realidade de um município amazônico, pertencente à
Região Metropolitana de Belém-PA - O município de Benevides.
249
devem manter as mesmas características enunciadas (hipótese do
estudo).
Talvez, considerando algumas peculiaridades locais, seja
necessária a realização de um processo de adição ou introdução de
conclusões na teoria (MARCONI; LAKATOS, 2016), o que, por outro
lado, não descaracteriza os postulados enunciados na seção
anterior. Caso contrário, o falseamento da hipótese apontará novos
caminhos interpretativos, pelo que, de uma forma ou de outra, ser
atingirá a relevância do esforço científico em questão.
Por sua vez, o estudo se pautou numa abordagem
quantitativa e qualitativa (MARTINS; THEÓPHILO, 2016), uma vez
que toma por base tanto análises numéricas (auxiliando-se da
estatística descritiva), bem como, análises pautadas no conteúdo
dos dados colhidos em campo.
Adotou-se como técnica de coleta de dados a pesquisa
documental (MARTINS; THEÓPHILO, 2016), procedendo-se ao
levantamento de denúncias propostas pelo Ministério Público da
Comarca de Benevides-PA contra acusados pelos crimes previstos
na lei n. 11.343/2006 – a lei antidrogas, ao longo do ano de 2015 1,
perante o Fórum de Benevides-PA, cujo tramite passaria, a partir de
então, a ocorrer sob competência da Vara Criminal local2.
A escolha pelo Município de Benevides-PA, por conseguinte,
se deu em razão de seu pertencimento à Região Metropolitana de
Belém (Capital), bem como, por ser um município que na última
década abandonou a típica característica de cidade dormitório,
passando a absorver a expansão de negócios e habitação
proveniente do inchaço da Capital.
1
As denúncias diziam respeito a crimes ocorridos entre os meses de dezembro/2014 e
dezembro/2015.
2
Registra-se o agradecimento dos autores à Dra. Viviana dos Santos Couto Delaquis
Perez, que compreendendo a relevância do estudo e suas repercussões junto à justiça
criminal local, não tardou em fornecer os dados em questão (em posse de sua
promotoria), bem como, auxiliar no levantamento de outros (contidos noutras
promotorias). Sua postura, certamente, condiz com o dever ministerial de busca
incessante pela verdade e manutenção da ordem pública.
250
FIGURA 1 – LIMITES GEOGRÁFICOS DO MUNICÍPIO DE BENEVIDES-
PA, EM RELAÇÃO À REGIÃO METROPOLITANA DE BELÉM-PA
251
A escolha pela análise de denúncias3, por conseguinte, se
deu, justamente, em razão do argumento elencado quanto à dupla
seletividade penal (D’ÉLIA FILHO, 2014): As denúncias já
protocoladas, certamente, diriam respeito a crimes já sujeitos ao
processo de seleção pelas forças policiais (segunda seleção), sendo
concernentes, portanto, ao produto da atuação discriminatória dos
órgãos do sistema judiciário.
Diante da ação da polícia, o Ministério Público somente teria
acesso a crimes já selecionados sob o crivo da alteridade enquanto
preconceito (OLIVEIRA, 2016), conforme critérios vinculados à
pobreza, raça e posição subalterna no mercado do tráfico, de acordo
com a hipótese sob testagem (D’ÉLIA FILHO, 2014).
Uma vez coletadas, as denúncias (correspondentes a uma
amostra de 80 documentos) foram submetidas a um processo de
dupla leitura: primeiramente, uma leitura flutuante (BARDIN, 2011),
para inicial contato com os objetos buscados em seu teor; e, num
segundo momento, uma leitura apurada, para classificação de
elementos e tabulação de dados.
Os dados foram tabulados conforme as seguintes categorias:
a) número do processo (para fins de buscas por ulteriores detalhes);
b) acusados (para melhor análise dos perfis individuais); c) cor do
acusado (para melhor análise dos perfis individuais); d) Sexo do
Acusado (para melhor análise dos perfis individuais); e) profissão do
acusado do crime (questão diretamente influente na hipótese do
estudo); f) Bairro (também diretamente influente na hipótese do
estudo); g) Coincidência entre local da prisão e sede da boca de
fumo (dado analisado de forma adicional); h) tipo penal de
enquadramento (para identificação do tipo de tráfico apurado); i)
correlação com outros crimes (questão influente na hipótese); j)
espécie(s) de droga(s) apreendidas (dado adicional à
argumentação); e, k) Presença de indicativos de consumo ou de
comércio (conforme critérios adiante enunciados).
3
A denúncia é um documento escrito que dá origem ao processo penal. Por ser um
pedido formal, é classificada, também, como petição inicial do processo criminal.
252
Após esta tabulação, os dados foram sujeitos a
procedimentos descritivos e comparativos, conforme os resultados
que se encontram dispostos na seção seguinte, sempre, voltados à
verificação dos postulados inicialmente descritos em torno dos
estudos de D’élia Filho (2014).
4 DOS RESULTADOS
Por uma opção didática e organizacional, os resultados da
pesquisa foram dispostos em subseções separadas, para melhor
compreensão dos leitores a respeito de cada ponto analítico sujeito
ao processo de verificação.
253
Como se constata, das 80 denúncias, 56 (70,00% do total)
foram classificadas sob a espécie criminosa prevista no art. 334, da
Lei n. 11.343/06, a espécie mais comum de enquadramento legal.
De forma estatisticamente menos relevante (p-valor<0,05),
constou-se que foram encontrados 21 casos (26,25% do total) com
enquadramento mútuo na espécie legal do art. 33
concomitantemente com o Art. 355, da mesma lei (associação para o
tráfico); 1 caso (1,25% do total) tipificado somente na hipótese de
associação (art. 35); 1 caso (1,25% do total) classificado na hipótese
4
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender,
expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar,
prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que
gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500
(quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem: I - importa, exporta, remete, produz, fabrica,
adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz
consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico
destinado à preparação de drogas; II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas
que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas; III - utiliza local ou
bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda
ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o
tráfico ilícito de drogas. § 2o Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de
droga: (Vide ADI nº 4.274) Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa de
100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa. § 3o Oferecer droga, eventualmente e sem
objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem: Pena -
detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.500
(mil e quinhentos) dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28. § 4o Nos
delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de
um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde
que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades
criminosas nem integre organização criminosa. (Vide Resolução nº 5, de 2012)
5
Art. 35. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente
ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 desta Lei: Pena -
reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil e
duzentos) dias-multa. Parágrafo único. Nas mesmas penas do caput deste artigo
incorre quem se associa para a prática reiterada do crime definido no art. 36 desta
Lei.
254
do Art. 35 c/c Art. 40 (agravante imputada em razão da pessoa ter
sido presa em tentativa de tráfico interestadual, com o intermédio
da Polícia Rodoviária Federal, que detém uma barreira municipal); e,
finalmente, 1 caso (1,25% do total), tipificado com o Art. 33,
concomitantemente com os Arts. 35 e 34 6 (artifícios de
fabricação/produção).
Em relação a este último caso, uma observação deve ser
feita: trata-se de situação excepcional em que houve a intervenção
da Polícia Federal, que, após tomar ciência do transporte de
considerável carga de droga, perseguiu um veículo até Benevides-
PA, cidade em que estourou uma residência onde havia uma nítida
sede de refino e distribuição de entorpecentes. Trata-se de uma
situação atípica, em verdade, em relação a todas as demais, por se
atingir um grupo de traficantes incumbido da atividade de produção
e distribuição. Por outro lado, embora seja um caso relativamente
significativo em relação aos demais, a situação, entretanto, nem de
longe chega a caracterizar o que D’élia Filho (2014) denomina como
oligopólio do tráfico de drogas.
Por conseguinte, dos 80 casos, somente 15 (18,75% do total,
ou seja, uma diferença estatisticamente relevante de casos [p-
valor<0,05]) apresentou associação com algum outro crime externo
às disposições da lei n. 11.343/06. Dentre estes, em uma situação
houve a tentativa de corrupção dos agentes policiais (1,25% dos
casos); em 2, houve a caracterização de corrupção de menores, Art.
244-B7, do Estatuto da Criança e do Adolescente – o ECA, Lei n.
6
Art. 34. Fabricar, adquirir, utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar
a qualquer título, possuir, guardar ou fornecer, ainda que gratuitamente, maquinário,
aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação, preparação,
produção ou transformação de drogas, sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e
pagamento de 1.200 (mil e duzentos) a 2.000 (dois mil) dias-multa.
7
Art. 244-B. Corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos, com
ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la: (Incluído pela Lei nº 12.015,
de 2009) Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009) § 1o Incorre nas penas previstas no caput deste artigo quem pratica as
condutas ali tipificadas utilizando-se de quaisquer meios eletrônicos, inclusive salas
de bate-papo da internet. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009) § 2o As penas
255
8.069/90 (o que é até incomum, dada a preferência pela utilização
de jovens como aviões do tráfico [RODRIGUES, 2004], o que,
entretanto, poderia ser identificado em posterior estudo envolvendo
as representações com base no ECA); e, em 1 caso o tráfico foi
identificado após a ocorrência de um furto (1,25% do total).
Além daqueles, merece destaque que em 6 situações (7,5%
do total) houve a identificação do crime de porte ilegal de arma de
fogo (Art. 168, da Lei n. 10.826/03), ao passo que em 1 caso (1,25% do
total) houve a cumulação de porte ilegal com corrupção de
menores. Estas últimas ocorrências, ínfimas em relação ao total,
confirmam a afirmação de D’élia Filho (2014, p. 11-12) de que os
criminosos são “(...) autuados e presos pela conduta descrita como
tráfico de drogas (...), na grande maioria dos casos, detidos com
drogas e sem portar nenhuma arma”. Isso já denota uma primeira
confirmação da hipótese inicial do estudo.
9
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo,
para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação
legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os
efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de
comparecimento a programa ou curso educativo. § 1o Às mesmas medidas submete-
se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à
preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar
dependência física ou psíquica. § 2o Para determinar se a droga destinava-se a
consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância
apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias
sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. § 3o As penas
previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo
de 5 (cinco) meses. § 4o Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III
do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses. § 5o A
prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários,
entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres,
públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da
prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas. § 6o
Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos
incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-
lo, sucessivamente a: I - admoestação verbal; II - multa. § 7o O juiz determinará ao
Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento
de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.
258
No que tange a um aspecto geográfico, tem-se que as
denúncias podem ser classificadas conforme áreas geográficas de
distribuição. Deve-se ressaltar que, por uma opção metodológica, a
distribuição diferenciou algumas localidades que, embora façam
parte de um distrito do Município (como é o caso do Murinim e da
Piçarreira), em verdade, são tratados como bairros, considerando
sua área geográfica bem definida e isolada.
GRÁFICO 2 – Concentração de denúncias de tráfico de drogas, por
área geográfica, havidas no Município de Benevides-PA, no ano de
2015.
259
Por sua vez, o bairro apontado como campeão de
ocorrências (o Bairro do Maguari) concentrou grande parte de suas
denúncias numa área de uma invasão surgida, justamente, no ano
de 2015, a qual, atualmente, não mais existe, após reintegração de
posse efetivada com o auxílio da Vara Agrária no ano de 2016.
No mais, constata-se uma forte coincidência com áreas de
aglomerados subnormais, nos casos em que houve a identificação
da sede da atividade de tráfico (ou, conforme se prefira, da boca de
fumo), o que se evidenciou em 56,25% dos casos, ao passo que, nas
demais situações (43,75%), evidenciou-se a venda em praças ou em
áreas de grande tráfego (como a BR-316 e vias de significativa
circulação nas áreas acima discriminadas).
Com isso, confirma-se, novamente, a hipótese de D’élia Filho
(2014), a respeito da coincidência do tráfico em áreas mais pobres.
Não, porque o tráfico só exista nestas, senão, em razão de o tráfico
ser mais combatido em seu teor. A circulação comercial pelas vias da
cidade, aliás, acima mencionada, demonstra que a droga transita
pela cidade, certamente, atingindo todos os estratos sociais e
bairros ali presentes.
Inclusive, deve-se ressaltar que não houve qualquer caso de
identificação de tráfico dentro dos condomínios fechados da cidade,
o que, no dizer de Volochko (2015), não se dá em razão de uma
segregação que a lógica territorial dos espaços fechados impõe com
menor acesso à polícia e menor visibilidade criminal.
Como afirma D’élia Filho (2014), “a polícia não enxerga um
palmo além do espaço público”, o que, nos números acima, parece
encontrar guarida.
260
Foram identificados 109 acusados, dos quais 93 eram do
sexo masculino (85,32%) e 16 do sexo feminino (14,68%). Entre
aquelas mulheres, apenas 4 (quatro) foram presas
desacompanhadas por homens, sendo que, em somente 1 (um) caso,
a acusada se encontrava em trânsito com drogas, ao passo que nos
outros 3 (três) as mesmas armazenavam as substancias ilícitas em
uma sede (residência). Nos demais casos, as mulheres foram
acusadas por fatos cometidos em conjunto com homens.
Num primeiro momento, os números relativos às mulheres
parecem caminhar em sentido contrário aos números nacionais que
apontam um recrudescimento do envolvimento daquelas com a
atividade de tráfico de drogas (QUEIROZ, 2016).
Porém, em comparação realizada a partir de dados do
sistema carcerário paraense (SUSIPE, 2017), constata-se que, para
cada mulher, há 5,4 homens presos, ao passo que em Benevides-PA,
para cada mulher, há 5,8 homens presos. Resta demonstrado, em
verdade, que há uma consonância entre o cenário local e o regional.
De todo modo, porém, recomenda-se um aprofundamento
de futuros estudos nesta perspectiva de gênero, para identificação
de eventualidades quanto aos números em questão.
Quanto ao aspecto cor da pele, no entanto, os dados
espelham claramente os indicativos de seletividade apontados por
D’élia Filho (2014), em seus estudos: conforme levantamentos
realizados com o auxílio do sistema INFOPEN, excetuados 23
acusados cuja cor não foi identificada nas denúncias (nem constam
em sistema - talvez, porque os denunciados não tenham sido presos
preventivamente), constatou-se um total de 6 (seis) brancos, 14
(quatorze) pretos e 66 (sessenta e seis) pardos, dentro de um
quantitativo de 86 (oitenta e seis) acusados autodeclarados.
Considerando o sistema classificatório, atualmente utilizado
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2013), que
congloba pretos e pardos sob a categoria negros, levando em conta
aspectos de classificação racial, tem-se que, entre os identificados,
80 acusados eram negros (93,02%) e somente 6 (6,98%) eram
brancos. Tais dados espelham uma desproporcionalidade não só em
261
relação à população paraense, como, à própria população carcerária
do Estado.
Conforme o Censo/2010 do IBGE (2013), 21,8% da população
do Estado do Pará se autodeclarou como pessoa de cor branca, 7,2%
de cor preta, 69,5% de cor parda e 1,5% de demais raças/cores.
Assim, o Pará apresentou o maior percentual nacional de pessoas
negras do país: 76,7%. Já conforme a Superintendência do Sistema
Penitenciário do Estado do Pará (SUSIPE, 2017), em junho/2017, sem
distinção quanto ao crime cometido constatou-se a prevalência de
63,87% de encarcerados pardos, 19,42% de negros, 14,32% de
brancos e 2,37% de outras etnias.
Em outras palavras, enquanto o percentual de presos revela
(conforme os critérios de raça do IBGE [2013]) um percentual de
83,29% de encarcerados negros, em Benevides-PA, o combate ao
tráfico levou ao cárcere 93,02% de negros.
Em contrapartida, enquanto no sistema carcerário há 14,32%
de encarcerados brancos (SUSIPE, 2017), percentual já baixo em
relação ao total da população paraense, que detém 21,80% de
pessoas autodeclaradas brancas (IBGE, 2013), em Benevides-PA,
constatou-se um percentual de somente 6,98% de acusados
autodeclarados brancos.
Veja-se o comparativo dos percentuais no gráfico abaixo.
GRÁFICO 3 – Comparativo, quanto ao aspecto raça, dos percentuais
de acusados nas denúncias analisadas, em relação à população
paraense e a população carcerária paraense.
262
2,37%
OUTRAS ETNIAS 1,50%
0%
14,32%
BRANCOS 21,80%
6,98%
83,29%
NEGROS (PARDOS+PRETOS) 76,70%
93,02%
263
2 estudantes, 1 aposentado (sem profissão anterior identificada), 1
motorista (moto-taxista), 1 pedreiro, 1 serrador e 1 vendedor.
Este último dado aponta para o que D’élia Filho (2014, p. 30)
consignava, ao afirmar que “(...) o sistema penal exercita um poder
de vigilância disciplinar, de uso cotidiano, nas áreas carentes”, o
qual “(...) traduz o poder de controle exercido sobre as populações
pobres” (2014, p. 31), dificilmente atingindo membros do tráfico que
detenham um padrão mais elevado, em termos econômicos (e
políticos).
Em linhas mais diretas, D’élia Filho (2014, p. 129) assevera
que “(...) a repressão estatal se concentra na parte mais débil do
mercado ilícito, ou seja, naquelas pessoas que não podem oferecer
resistência aos comandos de prisão”.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como tratado nas linhas acima, o tráfico de drogas se
afigura como uma atividade substancialmente presente em qualquer
extrato social, e que, em pleno século XXI, se comporta sob uma
estrita lógica de mercado, manifestando compartimentalizações
que, conforme apontado por D’élia Filho (2014), imunizam os
detentores do lucro num nível social mais elevado, expondo, de
outro lado, os pequenos traficantes-revendedores.
Com isso, o autor propôs (no contexto do Rio de Janeiro)
que a repressão da declarada guerra às drogas recairia
substancialmente sobre as populações mais afastadas das fileiras do
mercado formal e da economia, numa verdadeira política de
penalização da pobreza (D’ÉLIA FILHO, 2014).
Tal lógica, como demonstrado pelos dados acima, também
acabou por explicar a realidade punitiva do tráfico identificado no
Município de Benevides-PA, uma vez que, por intermédio da ação
seletiva praticada pelos órgãos do sistema judiciário apresentou os
mesmos aspectos de seletividade voltados a acionistas do nada, e,
apenas em um caso (e sob a interferência da polícia federal) acabou
por atingir um grupo que atuava acima da atividade básica de
revenda local de entorpecentes.
264
Disto tudo, é plausível a conclusão de que a repressão ao
tráfico ainda segue uma lógica meramente repressiva, que levou aos
gabinetes ministeriais e judiciais, tão somente, casos relativos a
pequenos traficantes de áreas pobres (e estigmatizadas), excluídos
do mercado formal de trabalho (e, a quem, o tráfico certamente se
afigurou como meio de viver ou sobreviver numa sociedade
impelida pelo consumo [BAUMAN, 2001]) e, nitidamente, marcados
por uma questão racial historicamente imbrincada nas práticas
político-administrativas (WACQUANT, 2015).
Confirmou-se, portanto, a hipótese do estudo.
Certamente, a despeito da clareza dos resultados do
comparativo, é prudente um aprofundamento dos dados, tanto em
termos históricos, quanto no que toca a certas variáveis de gênero e
relativas à posição social dos acusados, assim como, no que se
refere às práticas policiais para identificação dos reputados
criminosos.
Igualmente, recomenda-se aos órgãos envolvidos com a
persecução criminal local a adoção de técnicas de inteligência em
segurança pública para uma melhor compreensão do tráfico
municipal (integrado, como visto, a uma escala global), não somente
para seu efetivo combate, mas, sobretudo, para identificação de
áreas de consumo e, consequentemente, tratamento populacional
paralelo à consolidação de medidas educacionais, dentre outras
políticas públicas cabíveis (WEIGERT, 2010).
Afinal, o impulso consumidor de entorpecentes espelha
raízes muito mais profundas do que o simples desejo de embriaguez,
o que, uma vez ignorado (como tem sido comum) pela repressão,
decerto, apenas auxiliará no superencarceramento de frações
significativas da população, que encontrou no tráfico (talvez, da
mesma maneira que os vitimados pelo vício) uma maneira de
continuar caminhando numa sociedade de costumes cada vez mais
confusos e segregadores.
REFERÊNCIAS
265
ARAÚJO, Tarso. Almanaque das Drogas. 1. Ed. São Paulo: Leya, 2012.
CAMPOS, Rui Ribeiro de. Geografia Política das Drogas Ilegais. 1. Ed.
Leme: Editora J. H. Mizuno, 2014.
266
MARTINS, Gilberto de Andrade; THEÓPHILO, Carlos Renato.
Metodologia da Investigação Científica Aplicada às Ciências Sociais
Aplicadas. 3. Ed. São Paulo: Atlas, 2016.
267
SUPERINTENDÊNCIA DO SISTEMA PENITENCIÁRIO DO ESTADO DO
PARÁ. Relatório SUSIPE em números. Junho/2017. Disponível em:
<http://susipe.pa.gov.br/?q=node/455>. Acesso em: 01.06.2017.
268
TRÁFICO DE DROGAS E SÉCULO XXI: UMA RECONSTRUÇÃO
GENEALÓGICA
269
Therefore, the study was based on a bibliographical and
documentary research, based on the hermeneutic-dialectic method.
As a result, it was found that drug trafficking, at any of its possible
levels, represents a social fact that reproduces the capitalist logic
that originated it, being analogous to a commercial activity (a
company, a subject or group of subjects acting in the (which is
determined by the economic interests and hegemonic groups of the
nation-states), because of the opportunities that an individualized
and prepared society can offer, and, of course, a valley of strategies
that illicitness imposes on him in search of overcoming the obstacles
that oppose his freedom of action.
1 INTRODUÇÃO
Neste início do Século XXI, o debate relativo ao tráfico de
drogas e ao combate de organizações criminosas que o exercem
vivencia uma difícil dicotomia que não pode ser ocultada por
qualquer análise: a despeito dos esforços públicos e privados
realizados (seja numa escala internacional, seja em níveis nacionais
ou locais) para enfrentamento dos problemas decorrentes do
comércio e consumo de substâncias capazes de alterar a
normalidade dos sentidos, ainda assim, há um notado aumento do
consumo e do tráfico, que desponta como uma das mais lucrativas
atividades econômicas do planeta.
Esta constatação, por sua vez, levanta dúvidas a respeito da
eficácia das medidas desenvolvidas até o presente momento para
combate dessa atividade, o que, por sua vez, traz à tona uma série
de outros questionamentos a respeito da verossimilhança do
próprio discurso oficial que envolve o tema, da classificação de
substâncias entorpecentes a seus critérios, da efetividade da política
de guerra às drogas – que tem se manifestado como política pública
hegemônica no enfrentamento do problema -, de alternativas às
políticas proibitivas, etc.
270
Retornar às origens do problema, em busca da
reconstituição de suas raízes e descontinuidades históricas,
portanto, coloca-se como uma atividade fundamental a ser firmada
por qualquer estudo que busque tratar do tema, sob pena de
constituir apenas mais uma análise meramente reprodutiva dos
discursos já consolidados e disseminados pelo senso comum.
Diante disto, o presente trabalho se propôs a realização de
uma genealogia do tráfico (FOUCAULT, 2015), na tentativa de
desvelar as razões e fundamentos das políticas proibitivas e
intervenções repressivas, bem como, entender os motivos político-
econômicos que determinaram seu surgimento histórico, que, uma
vez conjugados, ocasionaram a atual formatação do que se pode
denominar como tráfico de drogas.
A importância do debate se revela em múltiplas
perspectivas: primeiramente, num ponto de vista teórico, constituiu
um esforço de compreensão histórica das atuais características do
consumo e tráfico de entorpecentes. Sob um ponto de vista
acadêmico, representou a conjugação de teorias e estudos já
desenvolvidos em torno do tema, possibilitando uma aproximação
de seu atual estado da arte. E, finalmente, o estudo representou a
formatação uma base preliminar para posteriores análises em torno
do assunto, ou seja, um substrato analítico que permite, ao fim, a
continuidade de outros trabalhos científicos em torno de seu eixo-
central.
Para tanto, o estudo foi dividido em quatro seções: a) uma
primeira, que explica os necessários contornos metodológicos
adotados; b) uma segunda, que perfez uma aproximação do tema
diante das transformações mundiais do capitalismo, sobretudo, a
partir dos meados do Século XX; c) uma terceira, que explicou as
transformações político-econômicas que induziram às
transformações atuais do tráfico no mundo; e, d) uma última seção
que se ocupou dos caminhos político-econômicas que induziram as
transformações atuais do tráfico no Brasil.
Como é natural de se esperar na ciência social, deve-se
advertir que o estudo se atém a certos conjuntos teórico-
271
metodológicos específicos, que, obviamente, não se prendem a uma
ou outra posição política específica, embora, em alguns momentos,
a análise até possa se alinhar a certos posicionamentos e discursos
existentes (afastando-se, obviamente de outros).
Ainda assim, que fique claro: o estudo não se afilia a
qualquer corrente política atual sobre as drogas, senão, constitui
uma tentativa de reconstrução postulados sobre o tema (o que, por
óbvio, ocasionará uma aproximação com algumas daquelas teorias
que realizam esta mesma atividade teórica genealógica, como a
criminologia crítica, por exemplo). Isto é devidamente explicitado a
partir da metodologia adotada, conforme se vê no tópico seguinte.
272
subjetivos que influenciam a posição do cientista social (MINAYO,
2002).
Sua adoção, ao passo, justificou-se diante da necessidade já
enunciada ao início deste estudo: superar os discursos legais
consolidados em torno do tráfico de drogas, num verdadeiro
esforço de conhecimento de suas raízes e descontinuidades
históricas (FOUCAULT, 2015), o que, por sua vez, dependia de uma
crítica à história oficial do tráfico e de uma reanálise do substrato
teórico dos estudos existentes.
Por sua vez, o estudo se valeu de uma técnica de pesquisa
bibliográfica (uma vez que se debruçou sobre a literatura a respeito
do tema [MEZZAROBA; MONTEIROS, 2016]) e documental (já que
analisou documentos oficiais como relatórios, leis e notícias, ou seja,
suportes que carregam informações não trabalhadas sob um critério
necessariamente científico e que foram classificados e criticados
conforme o objetivo acima eleito [MARTINS; THEÓPHILO, 2016]).
A análise, por sua vez, confrontou as relações dissimétricas
de cada momento histórico de criação e consolidação das políticas
proibitivas, com estudos teóricos que revelavam suas razões ocultas,
buscando esclarecer os motivos pelas quais as políticas de
enfrentamento do consumo e comércio de entorpecentes se
mostraram ineficazes na atualidade.
Contudo, um esforço preliminar mais amplo, a respeito da
própria base de desenvolvimento do capitalismo e sua expansão,
afigurou-se necessário à explicação do caráter consumerista que
permeia o tráfico de drogas neste início de Século XXI.
Em razão disso, o tópico seguinte se desenvolveu como um
esforço de exposição de questões relativas à expansão do
capitalismo de consumo, desde meados do Século XX, e
consequências do mesmo na atualidade, como a individualização
dos cidadãos, a segregação da pobreza, o super-encarceramento
como política pública de enfrentamento ao crime e as estratégias de
resistência àquela política. Como se verá a seguir, estes fenômenos,
historicamente delineados no contexto da pós-modernidade, em
verdade, representaram a própria base em que se assentou a
273
atividade que hoje se pode, além de qualquer texto legal,
denominar tráfico de drogas.
274
Concomitantemente, este progresso capitalista também
propiciou um consenso político a respeito de investimentos sociais,
até mesmo, em comunidades mais pobres, decorrente da inserção
de uma grande gama de cidadãos no debate democrático e do
mercado de consumo (ESPING-ANDERSEN, 1991), assim como, em
razão da ideia de que o aumento dos indicadores sociais eliminaria a
criminalidade e outros males. Este foi o ambiente de surgimento do
Welfare State (GARLAND, 2008), caracterizado por um notável
crescimento da máquina estatal para o atendimento de inúmeras
demandas sociais.
No entanto, esse momento de progresso não sobreviveu à
primeira metade da década de 1970 e ao advento de novas crises
econômicas que surgiriam no horizonte (especialmente, a crise
mundial do petróleo), ocasião em que se iniciou a ruína do
paradigma do Bem-Estar Social. Enfrentando a inflação e o
crescimento negativo, os Estados capitalistas (sobretudo, os EUA)
não mais seriam capazes de equilibrar o livre comércio com a
mesma eficiência.
Com isso, também se transformou a concepção das classes
hegemônicas a respeito da plausibilidade dos investimentos típicos
do Welfare State e sua reversão em prol da manutenção da máquina
de mercado. Diante desse quadro, abandonaram-se os
investimentos sociais, em prol de um liberalismo cada vez maior,
sem, no entanto, se promover qualquer mudança quanto ao modelo
de produção e consumo em massa surgido naquele período.
Produzir se tornou a palavra de ordem e reduzir os entraves se
tornou o objetivo da nova agenda econômica.
Associou-se à ideia de progresso a necessidade de
privatização e desregulamentação cada vez maior do mercado, sob
a ressuscitada crença neoliberal de que a livre competição
conduziria a sociedade a novos patamares evolutivos, não mais, a
partir de uma atuação coletiva, pública, senão, por intermédio do
esforço individualizado (BAUMAN, 2001, 2009), ocasionando o
progressivo surgimento de um Estado “Neo-Darwinista, que se
baseia na competição” (WACQUANT, 2015, p.31).
275
Consequentemente, para abarcar a nova lógica produtiva, as
relações de trabalho assalariado foram intensificadas em jornadas e
carga, flexibilizadas quanto aos vínculos e formas de contratação,
com forte descontinuidade dos trajetos e expectativas profissionais
(WACQUANT, 2015).
Neste mundo individualizado, onde todo o sucesso não
poderia decorrer de mais nada que não fosse o esforço pessoal, e,
mais ainda, onde a capacidade de consumo e os bens possuídos
traçariam os novos moldes de construção da personalidade de cada
um (BAUMAN, 2001, 2009), mudanças sociais significativas
passaram, também, a ocorrer.
Em decorrência disso, as famílias se transformaram: sob
relações de trabalho cada vez mais frágeis e flexíveis. Os homens
(pais) passaram a assumir maiores jornadas de trabalho ou duplo
emprego para sustento de um padrão de vida modal, ao passo que
as mulheres (as mães, historicamente tratadas como mão de obra
mais barata) se inseriam cada vez mais no mercado de trabalho
(GARLAND, 2008), também, em função de vitórias no campo dos
direitos civis (interessantes, obviamente, ao mercado) ainda
concernentes ao período do Welfare State. Com isso, as unidades
familiares se tornaram cada vez menores e constatou-se um
significativo enfraquecimento do relacionamento entre pais e filhos.
A tônica do consumo, por sua vez, que passaria a tomar o
espaço como um bem valioso e especulável (CARLOS, 2015),
ocasionou uma nova ecologia social nos centros urbanos. Ao
mesmo tempo em que a apropriação e comercialização territorial
propiciavam o lucro dos incorporadores e proprietários e a
circulação do capital, promovia, também, a supervalorização de
áreas, expulsando silenciosamente aqueles que não detivessem
condições de suportar o novo padrão de vida local (VOLOCHKO,
2015) num verdadeiro processo de remoção branca da população
mais vulnerável (OLIVEIRA J., 2014).
Este fenômeno gerou um distanciamento geográfico cada
vez maior das comunidades pobres, que passaram a ser
concentradas em bairros distantes (os subúrbios ou periferias),
276
longe dos centros de produtos e serviços, fenômeno responsável
por uma desconfiguração de laços comunitários (GARLAND, 2008;
BAUMAN, 2001; WACQUANT, 2005) e pelo rompimento de
sentimentos de pertencimento territorial (HAESBAERT, 2014),
reconstruindo-se uma identidade, daqueles contingentes
populacionais, a partir da ideia efetivada de exclusão sócio-
territorial (CLAVAL, 1999).
Por sua vez, o empoderamento de minorias (aspecto
positivo do Welfare State), proporcionou a rediscussão dos direitos
civis e uma intensificação do debate em torno dos direitos de
grupos historicamente discriminados (negros, homossexuais,
encarcerados, etc.). O ponto negativo está nessa exigência por
novos e múltiplos estatutos de direito, que importou num
enfraquecimento de códigos morais preexistentes (BAUMAN, 2009),
causando o afrouxamento de vínculos e a transformação dos sensos
comunitários anteriormente existentes (GARLAND, 2008). A ideia
tornava-se confusa e diferenciada, conforme cada grupo social.
A conjugação de tais transformações, somadas ao desejo de
consumo, cada vez mais incentivado pelo marcado (BAUMAN, 2001),
atingiria em cheio o âmbito da segurança pública, propiciando
maiores oportunidades para o crime, o aumento da população em
situação social de risco, a redução (ou eliminação) de controles
sociais informais e, diante do boom consumerista, o surgimento de
bens de consumo portáteis e de alto valor, facilmente sujeitáveis a
condutas criminosas (GARLAND, 2008).
Como resultado, houve um notável aumento da
marginalidade. Garland (2008, p. 203) ainda registra que “evidências
sugerem fortemente um liame causal entre a chegada da pós-
modernidade e a crescente suscetibilidade ao crime”, acompanhado
de um recrudescimento de “crimes contra o patrimônio, delitos
sexuais e relacionados às drogas”.
Deste modo, se entre as décadas de 1950 e 1970 o crime era
visto como uma consequência do conflito entre classes, típico de
uma criminologia crítica que o analisava como fruto de desníveis
sociais, nas décadas seguintes, ressurgiriam anteriores
277
posicionamentos conservadores e hostis, que, no momento do
declínio do Welfare State, rogariam o abandono dos investimentos
em reabilitação e combate das causas criminogênicas, seguindo-se
de um tratamento cada vez mais repressivo de condutas criminosas.
Não que as políticas do Welfare State tenham, em verdade,
propugnado avanços em prol da ressocialização de criminosos e da
diminuição de delitos (o que foi cientificamente negado nas décadas
de 1970 e 1980). Porém, como adverte Anitua (2015), o êxito do
período foi representado pela busca de uma fórmula política de
tratamento de problemas sociais e criminais.
De outro lado, também se deve ressaltar que a segurança,
no fim do Século XX, se tornou um produto disponível no mercado
de consumo, o que, somando-se aos fatores acima, ocasionou a
disseminação de empresas de segurança privada e um forte
movimento em prol da privatização de presídios, muito interessante
àqueles capazes de pagar (GARLAND, 2008; BAUMAN, 2008). Ao
passo que, como em qualquer outro campo comercial, estes novos
serviços necessitavam de uma estratégia de vendas, a qual, como
esperado, foi construída através da disseminação (com forte auxílio
da mídia) do medo e da alteridade enquanto preconceito (BAUMAN,
2008, 2009; OLIVEIRA J., 2014), que apenas retroalimentou as
políticas e teorias tradicionalistas, aqui mencionadas.
Assim, com o fim dos anos de crescimento econômico
favorável e diante dos fatores acima delineados, tornou-se mais
conveniente às elites políticas o retorno a um tratamento clássico do
delito, mais severo e gravoso, pautado em discursos
neoconservadores e neoliberais (ANITUA, 2015). Teorias pautadas no
controle social e na tolerância zero (década de 1970 em diante), ou
ainda em políticas de exceção ou emergência (marcantemente, no
século XXI) tomaram o lugar de qualquer visão (res)socializante da
figura do criminoso, renovando construções criminológicas que (à
imagem e semelhança da postura individualizada de sociedade do
século XXI) voltaram a tomar o crime como escolha exclusiva do
criminoso, que deve, assim, se sujeitar a todo o rigor penal (ANITUA,
2015).
278
As novas criminologias, portanto, ignorariam aspectos
sociais inerentes ao crime, simulando teorias que dissimulavam a
reversão de investimentos sociais e a estigmatização social. A
consequência natural deste processo foi a criminalização da pobreza
e da diferença, bem como, um super-encarceramento, que, em
termos práticos, atingiu e têm atingido somente os extratos sociais
não absorvidos pela economia de mercado do capitalismo
globalizado (GARLAND, 2008, WACQUANT, 2015).
Em defesa de uma segurança reputada pública, buscou-se a
identificação e neutralização da figura do “outro”, o inimigo
externo: o comunista, em tempos de Guerra Fria (FIGUEIREDO,
2005); o terrorista, ameaçador da democracia (ANITUA, 2015;
BAUMAN, 2008); o estrangeiro, especialmente, se adepto a religiões
não cristãs (BAUMAN, 2008); etc. Igualmente, promoveu-se a caça
ao inimigo interno, o anti-cidadão: o componente da underclass,
desempregado, sem-teto, mendigo, imigrante, e, assim,
potencialmente criminoso em sua desgraça (WACQUANT, 2005,
2015).
Institui-se uma política de Estado Prisional (GARLAND, 2008;
WACQUANT, 2015), que, da pior maneira possível, utilizou o direito
penal e o sistema judiciário para promover uma gestão populacional
dos problemas oriundos deste contexto de recrudescimento da
pobreza e desigualdade (sobretudo, os crimes): por meio do
encarceramento dos diferentes (sobretudo de jovens, pobres e
negros), ainda por cima, sem a tomada de qualquer contrapartida
paralela de natureza previdenciária ou social (ao menos, num nível
significativo). Aliás, o tráfico representa uma das principais razões
constitutivas destas prisões (conforme se demonstrará mais a
frente).
Além disso, foi nesse contexto pós-moderno, de uma
sociedade fragmentada, que o tráfico de drogas se renovou como
um fenômeno multifacetado, independente e simbiótico em relação
à figura do Estado, mas, ao mesmo tempo, alvo de uma repressão
interessante a muitos, inclusive, aos próprios traficantes (questão
que também será tratada a partir do próximo tópico).
279
Contudo, antes de se prosseguir na análise histórica da
construção das atuais imagens do tráfico de drogas, é importante
que se fale a respeito da posição do Estado-Nação Brasileiro, neste
contexto econômico e político da pós-modernidade.
Iniciamente, é assente que o Brasil sempre resguardou uma
postura patrimonialista e protetiva de interesses político-
econômicos de elites hegemônicas (até o século XIX,
predominantemente agrárias; no século XX, predominantemente
industriais e, por fim, nas últimas décadas, predominantemente
financeiras), o que foi determinante para a construção de certos
postulados científicos, econômicos e ideológicos até hoje adotados
no país (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012).
Sem pretender adentrar nos múltiplos aspectos da formação
de cada região do país e suas peculiaridades administrativas, é fato
que o Brasil sempre buscou conformações culturais e referências de
ações político-econômicas nos programas adotados pelos países-
modelo da tradição neoliberal: desde sua emancipação até meados
do século XIX, é muito comum observar a adoção de paradigmas
pautados nos padrões Europeus (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012). Já
ao longo do Século XX, nota-se uma forte conformação aos padrões
de vida e governo norte-americanos (SOUZA, 2015).
Sobretudo, a partir da segunda metade década de 1960 e do
advento do Governo Militar, houve uma forte participação norte-
americana na realização de investimentos financeiros e no auxílio à
elaboração de programas das mais diversas abrangências (políticos,
educacionais, científicos, territoriais, etc.) (SOUZA, 2015). Esta
participação, decerto, também se aplica ao campo da segurança
nacional (FIGUEIREDO, 2005), onde os modelos criminológicos em
muito se inspiraram nas construções tradicionalistas (de caráter
segregador e intolerante), acima assinaladas (SILVA, 2016). Os
modelos construídos na escala nacional, por sua vez, eram
adaptados pelos governos militares nas escalas regionais (estaduais)
e locais, sendo despiciendo se falar na repressão comum ao período
(FIGUEIREDO, 2005).
280
Mesmo após o processo de democratização, na década de
1980, quando a legislação brasileira passou a sofrer um processo de
adesão a valores ditos progressistas, o aparelhamento relativo à
segurança pública, ainda conservava práticas concernentes ao
período do Governo Militar, inclusive, no texto constitucional
(ZAVERUCHA, 2010).
Neste sentido, como afirmam Dorigo e Vicentino (1997) o
processo de abertura, instalou uma nova ordem política e
econômica, sem, no entanto, destronar as elites de véspera, que se
mostrou um costume histórico no país. Desse modo, mantinha-se,
no fim das contas, a já mencionada postura patrimonialista, que
necessitava, gradualmente, de um sistema policial eficiente a sua
proteção (motivo pelo qual, em pouco se transformou o paradigma
de segurança pública).
A partir disso, ao menos sob uma dupla perspectiva, o Brasil
se mostrou adepto aos modelos neoliberais do século XXI: em
primeiro lugar, como país patrimonialista, o Brasil aderiu à cultura
do consumo e produção em massa, bem como, aos processos de
transformação social destes decorrentes (SOUZA, 2015), o que é até
natural, na conjuntura de uma globalização histórica que não
respeita quaisquer limites formais ou informais inerentes às
fronteiras políticas e culturais dos Estados-Nação (BAUMAN, 2001;
SANTOS B., 2010).
Em segundo lugar, o país também consubstanciou em seu
sistema jurídico-penal os moldes criminológicos seletivos e
autoritários anteriormente discutidos, alinhando-se a uma política
prisional que promove a segregação e aprisionamento de vastos
contingentes populacionais não absorvidos pelo mercado de
consumo e de trabalho (SILVA, 2016).
Conseguinte, compreende-se que embora o Brasil
aparentemente tenha garantido certos direitos típicos do modelo do
Welfare State (o que é sensível no texto da Constituição Republicana
de 1988 e em diversas legislações), na prática, os benefícios jurídicos
não se mostraram acessíveis à maioria da população (DIAS, 2013),
ainda inserida em larga escala nos níveis da pobreza e da miséria.
281
Portanto, não houve superação do aspecto meramente simbólico da
lei, que, especialmente no campo penal, se apresenta apenas como
um discurso que legitima e esconde as crueldades seletivamente
perpetradas pelo sistema penal (SILVA, 2016).
Por fim, deve-se asseverar que, se por um lado o Brasil ainda
intenta viver a mesma lógica político-econômica dos Estados-Nação
do bloco liberal em que historicamente se inspirou, de outro, como
país em desenvolvimento que ainda dependente de maneira direta e
indissociável dos investimentos realizados pelos países ricos, o
mesmo sofre de maneira mais grave ainda os problemas relativos à
dificuldade de equilíbrio da balança econômica e da marginalização
da população, típicos da atual fase do capitalismo.
Desta forma, pode-se afirmar preliminarmente que o tráfico
de drogas do Século XXI e a proibição que se impôs ao mesmo, até
então, representou um importante instrumento de ação inerente às
políticas de criminalização de comunidades excluídas do mercado
formal. Mais ainda, como se verá a seguir, a proibição representou o
principal mecanismo de seguridade do monopólio de certas
substâncias nas mãos de grupos sociais hegemônicos.
Também se abordará, afora da ótica estatal, como a
proibição garantiu o efetivo sucesso das organizações criminosas do
tráfico, tornando, pela valorização da droga, a atividade muito
oportuna a investidores do mercado global e à gigantesca massa de
desempregados, especialmente, em países nos quais os efeitos das
transformações relatadas foram mais intensos ainda. Estas questões,
que revelam os aspectos não oficiais dos discursos proibitivos no
mundo e no Brasil, foram o alvo de análise das próximas seções
deste trabalho.
282
capitalismo de consumo pós-moderno, as quais, conforme será
tratado neste tópico, também resultaram em importantes
transformações na atividade inerente ao tráfico de drogas,
sobretudo, por meio das políticas proibicionistas (enquanto ação
econômica instituída pelos Estados-Nação).
Contudo, deve-se destacar que a proibição do uso de
substâncias entorpecentes não é um fenômeno recente na história
da humanidade, senão uma construção histórica que adquiriu
contornos mais específicos a partir do Século XX.
Como bem advertiu Rodrigues (2004, p. 18), a política
proibicionista não representa um movimento estritamente jurídico,
senão, “terminais, pontos de condensação, cristalizações de ferozes
conflitos que se desenrolam no blasfond e irrompem no cenário
histórico”. Assim, embora as drogas sempre tenham sido um
fenômeno naturalmente marcante na história das civilizações, sua
proibição, de outro lado, surge como uma ação ligada a conflitos de
poderes internos e externos, sobretudo, no plano econômico, como
se passa a relatar.
Um primeiro marco proibicionista do uso de drogas surgiu
ainda no século I, em meados de 392 D.C., quando o catolicismo
assumiu o status de religião oficial do Império Romano, colocando-
se oficialmente contra qualquer prática religiosa não albergada pela
igreja, o que, nos séculos II e III, importou na edição de leis e
decretos proibitivos do uso de ervas e misturas ditas demoníacas,
em alinhamento à chamada era da caça às bruxas (ARAÚJO, 2012).
Entretanto, a mesma igreja que proibira o uso de
substâncias entorpecentes, contraditoriamente, aceitou o consumo
de vinho em suas celebrações, assim como, o uso de opiáceos
(derivados do ópio) e de outras ervas, por médicos dos períodos
medievais e, especialmente, por alquimistas - em razão de sua busca
pelo ouro (ARAÚJO, 2012), motivo que certamente foi considerável
para justificar a aceitação da exceção eclesial.
Desde então, a limitação ao uso de substâncias capazes de
alterar a naturalidade dos sentidos, por meio de mecanismos legais
e discursos oficiais reputadamente benevolentes à população,
283
manifestava a sua principal marca: a contradição, ou seja, por detrás
de um conjunto explícito de declarações de determinados atores
sociais (estatais ou não), constatavam-se, em muitos casos, exceções
iníquas e incompatíveis com a própria ideologia declarada.
No século XVII, mais adiante, constatou-se a proibição do
uso de Tabaco na Inglaterra e seus parceiros comerciais, assim
como, a proibição do Ópio, na China. Os reais motivos que
resultaram nestas proibições, igualmente, nem de longe se
mostravam altruístas ou voltados à saúde da população como
diziam os discursos oficiais (afinal, os produtos já eram
naturalmente consumidos naqueles países - o primeiro, desde sua
chegada da América na Europa, e o segundo, desde o Século VII, na
China).
Pesavam, muito mais, questões de natureza econômica
voltadas ao equilíbrio da balança e da dívida externa, gerada pela
saída de moeda aos fornecedores externos de cada país (ARAÚJO,
2012). Na época, a China se tornou o maior fornecedor de Ópio à
Inglaterra, que via suas libras se esvaindo para o estrangeiro e,
assim, passou a se valer da proibição para assegurar o valor de sua
moeda. O mesmo se deu com a China, maior importadora do chá
inglês (ARAÚJO, 2012), que, em contrapartida, passou a taxar o
comércio deste produto em seu território. A tensão gerada pelas
medidas, inclusive, ocasionou duas guerras entre estas nações.
À questão econômica externa, somou-se ainda outro
imperativo de ordem interna na Inglaterra (e, posteriormente, na
Europa Ocidental): Autores como D’elia Filho (2014) e Rodrigues
(2004) apontam que a expansão de um modelo de Estado Policial,
voltado à instituição de uma gestão tutelar sobre seus súditos e à
uma imposição das novas dinâmicas decorrentes da Revolução
Industrial, logo, constituiu-se como um fator determinante ao
sucesso do proibicionismo europeu.
O “controle do corpo e da alma” (FOUCAULT, 2015, p, 138) se
tornou elemento central para a nova gestão econômica, que
organizou dispositivos que assegurariam não apenas a sujeição do
cidadão ao sistema instituído, mas, o aumento constante de sua
284
utilidade produtiva. Buscava-se ao aumento real da capacidade
econômica do Estado, sob a estrita orientação de uma nova ciência
de governo, a ciência política (FOUCAULT, 2008). Impunha-se, dessa
forma, um modelo médico-jurídico de gestão dos corpos, muito
significativo ao entendimento do movimento proibicionista das
drogas (RODRIGUES, 2004).
A questão se tornou cristalina diante da proibição do álcool,
a seguir, na Inglaterra do século XVIII: a produção de Genebra (Gim),
inicialmente fomentada para fazer frente à produção de vinho
francês, acabou por gerar um problema de consumo desenfreado na
população (sobretudo, nos trabalhadores) da década de 1730
(SHECAIRA, 2014).
Invertendo suas prioridades, o país passou a promover uma
forte taxação do produto (por meio do Gin Act, de 1736) e, mais
adiante, proibiu sua comercialização, em 1758, também, em função
da crise de grãos instalada na Europa, à época (SHECAIRA, 2014), e,
sob influência de movimentos puritanos de inspiração protestante
que, intervindo na política, passaram a cobrar uma posição
abstencionista da sociedade e do Estado.
O problema inglês, em seguida, foi exportado aos Estados
Unidos no mesmo Século XVIII. E, junto ao incômodo produtivo do
consumo do álcool, também o foram os ditames de caráter puritano,
que, nos EUA, através do movimento da temperança, chegaram a
consolidar ligas bastante representativas e, até mesmo, um partido
político (ARAÚJO, 2012), conseguindo impor forte taxação à
produção de álcool ao longo dos séculos XVIII e XIX.
Mais adiante, com as fortes limitações econômicas sofridas
pelos EUA (e diversos outros países) em decorrência da Primeira
Guerra Mundial (razão econômica), os puritanos obtiveram sucesso
na luta pela proibição do Álcool como um todo: Em 1919 (por
intermédio da 18ª Emenda à Constituição Norte Americana), impôs-
se nos EUA o período histórico conhecido como Lei Seca (SHECAIRA,
2014).
Antes de se prosseguir, torna-se interessante registrar dois
antagonismos marcantes desta série histórica: preliminarmente, o
285
fato de cervejarias norte-americanas serem parceiras econômicas de
outras cervejarias alemãs foi suficiente, na época, para associação da
imagem do álcool a uma tentativa de degradação da nacionalidade
do país (SHECAIRA, 2014), aliando um forte elemento ideológico ao
aspecto jurídico da proibição.
Em segundo lugar, tem-se que, apesar da proibição do
consumo do Álcool, era corriqueiro naquele período histórico, o uso
de derivados da folha de Coca (da qual se extrai a Cocaína) e
Maconha (Cannabis Sativa ou Indica) nos EUA e na Europa, onde
estas substâncias eram livremente manufaturadas pela medicina,
inclusive, como princípios ativos de diversos remédios (até mesmo,
infantis), fato que foi determinante para a posterior consolidação de
grandes empresas farmacêuticas que exploravam tais produtos,
como a alemã Merck e a americana Park-Davis (ARAÚJO, 2012).
Registra-se, inclusive, a utilização de Xarope de Coca como
composto da fórmula originária da Coca-Cola (PEREIRA, 2012).
Com o advento da Lei Seca, milhares de bares foram
fechados, relegando o consumo de álcool à total clandestinidade.
Ao passo, a política proibicionista criou a imagem estereotipada do
alcóolatra, o inimigo da moral, a ser combatido pelos órgãos de
segurança estatais (SHECAIRA, 2014). Como resultado, o número de
homicídios e aprisionamentos subiu de maneira alarmante no país,
exigindo uma versatilidade cada vez maior dos traficantes de
bebidas (os gangsters), que passaram a associar o comércio de
álcool a outras atividades como a prostituição, jogos ilegais,
homicídios por encomenda e corrupção (ARAÚJO, 2012),
representando um exemplo histórico marcante de modelos
originários de organizações criminosas: as máfias (MINGARDI, 2014),
que, posteriormente, acabaram por migrar para outras atividades
ilícitas, até, anos mais tarde, se envolverem com o tráfico de drogas
(num ciclo de reinvenção de ações voltadas ao lucro, típico das
empresas capitalistas).
Na mesma proporção, registrou-se o aumento de
internações compulsórias de inúmeros consumidores de álcool em
centros de reabilitação ou hospitais (manicômios) da época, estes
286
últimos, destinados à camada mais pobre da população, numa nítida
política de isolamento seletivo das camadas indesejáveis do período
(ARAÚJO, 2012).
A proibição do álcool só veio cair por terra ao final da
década de 1930 (novamente por questões econômicas), em função
da imperiosa necessidade de arrecadação de impostos no contexto
da grande depressão de 1929. Conforme a política do New Deal,
implementada por Franklin Roosevelt, a taxação do Álcool passaria a
ser aceitável e interessante em razão das receitas que traria ao
Estado Norte-Americano (SHECAIRA, 2014).
Porém, ainda naquele mesmo período, paralelamente ao
proibicionismo do Álcool, já havia se iniciado no âmbito
internacional uma empreitada norte-americana em prol das políticas
de caráter proibicionista, motivada, agora, além da disseminação
dos ideais puritanos na política externa, pela necessidade de
enfraquecimento da economia europeia (RODRIGUES, 2004;
ARAÚJO, 2012).
O primeiro passo foi representado pela Conferência de
Xangai, em 1906, que propiciou uma aproximação comercial entre
China e Estados Unidos (ARAÚJO, 2012). Na prática, se tratava de
esforço conjunto pela proibição do consumo de ópio, que rendia
fortes lucros aos países liberais Europeus – adversários políticos e
econômicos dos Estados Unidos e da China, à época (RODRIGUES,
2004).
Estabeleceu-se, após a Conferência de Xangai, uma primeira
classificação de substâncias controladas dentro do ambiente
doméstico dos EUA (o food and drug act, também de 1906), a qual,
contudo, não restou aceita ou reproduzida pelos países Europeus,
em razão dos já mencionados lucros obtidos, como dito, a partir do
livre comércio do ópio (RODRIGUES, 2004). A resistência só veio a
ceder mais adiante, quando houve enfraquecimento político-
econômico dos países Europeus durante e após a Primeira Guerra
Mundial, que, por sua vez, conferiu maior força política (apesar do
enfraquecimento econômico) aos EUA (RODRIGUES, 2004).
287
Porém, de forma inesperada aos EUA, como contrapartida à
aceitação (forçada) do proibicionismo pelos países do Bloco
Europeu, estes passaram a cobrar uma maior extensão do rol das
substâncias proibidas, contrariamente à posição norte-americana (e
atingindo em cheio sua indústria farmacêutica, que obtinha fortes
lucros dos derivados da Coca e Marijuana).
O proibicionismo, assim, instituiu-se numa escala mundial
por meio de seguidas Convenções e Acordos Internacionais: A
Primeira Convenção Internacional do Ópio, em Haia, de 1911/1912
(marco da proibição do comércio e consumo da Morfina, Cocaína e
Heroína); A Conferência de Genebra de 1924 (que ampliou o
conceito de drogas, substancialmente) e o Acordo de Genebra de
1925 (que retomou e fortaleceu a postura proibitiva já adotada em
Haia) (RODRIGUES, 2004). Mais tarde, surgiria ainda a convenção de
Genebra de 1936 (sobre a qual se comentará adiante).
A grande lição deixada por esta série histórica situada entre
a proibição temporária do Álcool nos Estados Unidos e a
consolidação das políticas proibicionistas dos demais tipos de
entorpecentes no mundo (também, por influência norte-americana),
se atém a três fatos importantes (que registram, igualmente, duas
contradições aos discursos oficiais).
Preliminarmente, o período de proibição do Álcool não teve
sucesso em inibir o comércio de bebidas, e, contrariamente ao
esperado, supervalorizou o preço deste produto, tornando sua
comercialização significativamente interessante e lucrativa a grupos
criminosos com capacidade financeira e organizacional (como no
caso já mencionado das máfias) (RODRIGUES, 2004; PEREIRA, 2012;
MINGARDI, 2014; SHECAIRA, 2014).
Em segundo lugar, a proibição da utilização de matérias
primas pela indústria farmacêutica impeliu, mais adiante, a
investigação científica em torno do isolamento de princípios ativos
que, então, passaram a ser comercializados na qualidade de
remédios, em alinhamento ao discurso de proteção sanitária da
população. Esta mudança, mais tarde, colocaria a indústria
farmacêutica na qualidade de principal interessada e incentivadora
288
das políticas proibicionistas (e, como principal financiadora de
candidaturas que apoiassem esta política) (RODRIGUES, 2004).
E, por terceiro, a política proibicionista propiciou um salvo
conduto para forças de segurança a realizarem o aprisionamento de
grandes contingentes de consumidores, produtores e comerciantes
de bebidas, com apoio midiático, e, em diversas regiões
problemáticas do território norte-americano (RODRIGUES, 2004;
ARAÚJO, 2012). Deste modo, criar a ilegalidade de mercado
resultava em duas consequências implícitas: a instituição de um
discurso influente na balança econômica internacional e a instalação
de mecanismos de legitimação à atuação repressiva do Estado em
certas regiões de seu próprio território. Em ambos os casos, sob a
declarada ideologia de defesa da saúde e incolumidade.
A experiência demonstrou que, muito além de qualquer
defesa social, a estigmatização de consumidores, produtores e
comerciantes de drogas permitiria uma atuação militarizada legítima
do Estado, especialmente, em áreas mais pobres, onde a ausência do
poder público e de oportunidades sociais tornava mais propícia à
instalação de atividades criminosas (RODRIGUES, 2004).
Na prática, o discurso de proteção popular no campo da
saúde e da incolumidade pública disfarçariam bem o real propósito
das políticas proibicionistas: utilizar a vedação ao comércio de
certos produtos como estratégia de proteção à balança econômica,
que, em termos práticos, ainda concedia um bônus: a possibilidade
de utilização da legitimidade atribuída ao combate às drogas, para
intervir em zonas tidas como problemáticas no território dos
Estados-Nação.
Confirma-se essa tese a partir do surgimento da convenção
de Genebra, em 1936 (CARVALHO, 2014), que instituiu a pena de
prisão às atividades de produção, venda e compra das drogas ali
previstas. Esta convenção, apesar de alinhada com a escalada
proibicionista, não foi subscrita pelos Estados Unidos (tal qual
ocorreu em relação aos documentos internacionais elaborados em
Genebra em 1924 e 1925), justamente, em função da ampliação das
limitações inicialmente impostas ao campo da indústria
289
farmacêutica (correspondente a importante segmento da elite
hegemônica daquele país) e em função daquele país não depender
de qualquer convenção para legitimar as práticas repressivas que já
vinham se consolidando há tempos em seu respectivo território
(D’ÉLIA FILHO, 2014).
Nota-se que o interesse norte-americano, ao não subscrever
a convenção de 1936, não era a proteção dos interesses públicos
reputados em seu discurso oficial, senão, a estabilidade de sua
própria economia (e dos grupos ligados a ela).
A despeito disso, por outro lado, nem de longe se registrou
qualquer redução na repressão interna. No ano seguinte, os EUA
instituíram o Marijuana Act (1937) proibindo a produção, compra e
venda de Maconha (SHECAIRA, 2014) e, sobretudo, limitando seu
uso para fins científicos (ARAÚJO, 2012), já materializando as
políticas de monopolização do manejo de entorpecentes pela
indústria farmacêutica, como adiantado acima. Garantiu-se, por
outro lado, relativa liberdade quanto à comercialização de sintéticos
que, uma vez lançados, perpassavam por relativos lapsos de
legalidade, sendo proibidos tão logo outros mais potentes, já se
encontrassem patenteados junto à indústria farmacêutica, como no
caso das anfetaminas (ARAÚJO, 2012), garantindo o monopólio,
também, do lucro deste mercado.
Consequentemente, milhares de cidadãos foram
aprisionados (ARAÚJO, 2012), por conta da alta popularidade das
substâncias que passavam a ser classificadas. E, enquanto isso, os
órgãos de governo sempre se mostravam indiferente a quaisquer
provas científicas a respeito da real potencialidade econômica e do
menor risco inerente ao consumo de outras drogas mais populares,
como a Maconha e o LSD (ARAÚJO, 2012), sobretudo, quando seu
so veio a assumir uma conotação política vinculada a movimentos
contrários à ação capitalista e aos conflitos geopolíticos em que os
EUA se envolviam (RODRIGUES, 2004).
Por sua vez, a repressão, cada vez maior, acabou por
desabastecer um mercado que nada diminuía em demanda, o que,
decerto, impulsionou a produção e manufatura das drogas no seio
290
de países onde o controle pelos órgãos de segurança não era tão
efetivo, sobretudo, no próprio quintal dos EUA: o continente
americano (ARAÚJO, 2012).
Assim, no início dos anos 1970, o México e a Jamaica se
tornaram sedes da produção e tráfico de Maconha, sobretudo, em
função de uma estratégica proximidade em relação aos EUA
(RODRIGUES, 2004). Era o estopim necessário para a ampliação da
atuação política norte-americana no continente. E, de fato, não
tardou para que estes (e outros) países fossem alvo de intervenções
militarizadas e boicotes econômicos para adequação à política
internacional.
Aliás, desde a declaração da Guerra às Drogas pelo governo
Nixon (CAMPOS, 2014), na década de 1960, a intervenção
militarizada já era usada pelos EUA e nações aliadas como um
elemento político para estigmatização e combate de reputados
adversários políticos, sobretudo, do bloco comunista (SILVA, 2013).
Seguida da promulgação da Convenção Única de New York
de 1961, que estabeleceu novas diretrizes internacionais de
classificação das Drogas, pormenorizando (sob critérios
metodológicos não muito bem definidos) espécies e delineando a
atuação da Organização das Nações Unidas – ONU e dos países no
combate internacionais ao tráfico de Drogas, instituía-se uma
política internacional de gestão das drogas, que, na prática, se deu
através da atuação armada de países com poderio imperial.
Buscava-se, na prática, a legitimação de uma atuação internacional
contra as drogas, protagonizada pelo bloco americano, que, em
verdade, poderia se estender por diversos outros campos dos países
atingidos. Esta política, na década seguinte, apenas foi aplicada na
América.
Contraditoriamente, no mesmo contexto de Guerra Fria, o
tráfico foi utilizado como arma geopolítica norte-americana para
favorecer grupos aliados em diversas revoluções e revoltas noutros
países (SILVA, 2013; CAMPOS, 2014; LABROUSSE, 2010), situação em
que a atividade, apesar de declarada como nociva pelo discurso
oficial, passou a ser tolerada e até incentivada por órgãos de
291
governo (especialmente os de inteligência) sob a desculpa de
combate ao comunismo.
Com isso, a partir da década de 1960, o discurso de combate
às drogas foi associado a uma forte xenofobia e a políticas
repressivas, que importaram na gênese de novos inimigos internos e
externos (como, por exemplo, os negros pertencentes aos guetos
territoriais - associados ao tráfico de cocaína-, os imigrantes
mexicanos - associados ao tráfico de maconha, e, até mesmo,
cidadãos americanos, envolvidos com o movimento hippie e a luta
contra a guerra [ARAÚJO, 2012]) e externos (comunistas russos,
mafiosos italianos, etc.).
Após as primeiras intervenções no México e na Jamaica, por
conseguinte, a produção foi empurrada em direção à América
Latina, onde economias originariamente agrícolas de países como
Bolívia, Peru e Colômbia - nos quais as substâncias então proibidas
até resguardavam uma certa normalidade dentro da cultura local,
por conta das condições climáticas e de solo favorável -, passaram a
ser alvo de intervenções de grupos paramilitares em busca do
controle dos meios de produção, nas décadas de 1970 e 1980,
gerando, mais adiante, o surgimento de grandes grupos econômicos
que, no século XXI, representariam uma mostra dos oligopólios
internacionais das drogas, sobretudo, da produção e tráfico de
cocaína (RODRIGUES, 2004).
Neste período, a disputa pelo mercado ocasionou a eclosão
de conflitos territoriais internos que transbordaram em violentas
batalhas, com especial destaque para a Colômbia, onde a guerra
entre os Cartéis (inclusive, com envolvimento da esfera político-
administrativa do país), na década de 1980, acabou por chamar a
atenção da comunidade internacional (CAMPOS, 2014).
Já na década de 1990, com a posterior consolidação das
Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – as FARC’s – e do
Exército de Libertação Nacional – ENL -, intensificou-se a
intervenção Norte-Americana no Conflito (obviamente, não por
força de interesses antidroga – discurso oficial, mas sim, por
questões políticas relativas ao combate à expansão da frente
292
comunista na América Latina), com a eliminação dos cartéis
originariamente ali existentes (ao menos, na forma primária).
Com a lição colombiana, as organizações do tráfico de
drogas ao redor do mundo compreenderam que o enfrentamento
direto ao Estado não se constituía como a melhor estratégia de
consolidação de seu poder, pelo que, alterando seu modus operandi,
iniciaram atuações mais discretas, simbióticas com o sistema
financeiro (em especial, paraísos fiscais de lavagem de dinheiro) e
com grupos políticos vinculados à esfera pública (LABROUSSE,
2010).
Diante disso, é possível afirmar que foi justamente a política
da repressão que ensinou uma trilha de sucesso às organizações
criminosas, atualmente, envoltas num altíssimo grau de
complexidade e aperfeiçoamento de suas redes e sistemas de
comércio e proteção. Contudo, este não foi o único impacto
decorrente da proibição.
Como afirma Rodrigues (2004), o controle sobre as drogas
se articulou como uma verdadeira política econômica, que, numa
dinâmica de governamentalidade, movimentou a indústria bélica
dos países envolvidos (sobretudo os EUA) e induziu investimentos
para determinados setores públicos e privados, dessa forma,
garantindo o favorecimento de grupos sociais predeterminados.
Afinal, a guerra enseja produção. E, naturalmente, há quem lucre
com isso: indústria bélica, órgãos militares, instituições de
inteligência, empresas privadas ligadas ao ramo da tecnologia da
informação, etc. Todos estes registraram grande lucros ao longo da
declara Guerra às Drogas (CAMPOS, 2014). Igualmente, não se deve
esquecer do favorecimento da indústria farmacêutica.
A partir das décadas de 1970, a publicação de novos acordos
internacionais a respeito do combate e classificação de drogas, já se
encontrava totalmente alinhada à estratégia de monopolização do
manejo e estudo de substancias capazes de alterar a normalidade
dos sentidos nas mãos das farmacêuticas (RODRIGUES, 2002).
Conforme afirmou Rodrigues (2002), este controle jurídico
sobre a manipulação das drogas, inclusive, foi aperfeiçoado e
293
consagrado nas mãos da indústria com o advento, em 1971, da
Convenção Única sobre Substâncias Psicotrópicas de Viena, que
ampliou (novamente, sob critérios questionáveis) a classificação dos
produtos proibidos, traçando diretrizes para estudo científico e
comercialização (que na prática, só poderiam ser efetivados por
grandes grupos econômicos de países desenvolvidos).
A proibição, nesta senda, mostrou-se uma medida lucrativa
aos grupos hegemônicos. E foi sob estes interesses, que as medidas
de guerra às drogas ganharam maior legitimidade e permanência
através de outros acordos subsequentes: a Conferência Internacional
sobre o Abuso de Drogas e Tráfico Ilícito, de 1977, que estabeleceu
medidas sobre o controle de substâncias proibidas e medidas de
combate ao tráfico; e, em 1988, com as adaptações à Convenção de
Viena (de 1971), que ampliaram as listagens de substâncias proibidas
e os mecanismos de combate ao tráfico. Desta forma, a repressão
atingiu seu auge nas duas últimas décadas do Século XX.
No entanto, a despeito dos altos investimentos
internacionais, é assente que a declarada Guerra às Drogas não
conseguiu combater, nem, tampouco, refrear o consumo e o
comércio de entorpecentes ao redor do globo.
Conforme dados da United Nations Office for Drug and
Crime - UNODC (2015), estima-se que, no mundo, 246 milhões de
pessoas com idade entre 15 e 64 anos (ou seja, 1 a cada 20
indivíduos), tenha feito uso de alguma droga ilícita no ano de 2013,
no mesmo passo em que o mercado internacional de drogas teria
movimentado uma cifra correspondente a 320 bilhões de dólares, só
no ano de 2009.
Em igual sentido, estima-se que mais de 1000 toneladas de
cocaína tenham sido comercializadas na Europa (cujos países, em
grande parte, fazem parte do bloco proibicionista), só no ano de
2004 (SAVIANO, 2014), tornando-o um (senão o) mais lucrativo
comércio do planeta no século XXI.
Este sucesso do tráfico, por conseguinte, é atribuível a
múltiplos fatores inerentes às transformações econômicas do Século
XXI. Como atividade comercial (afinal, é constituída por processos
294
de produção, manufatura e comercialização de produtos), é natural
que o tráfico também tenha aderido ao modelo produtivo em massa
inerente à sociedade de consumo do Século XXI, se expandindo nos
moldes das empresas capitalistas globais (CAMPOS, 2014). A própria
postura individualista das sociedades pós-modernas, aliás, incentiva
a tentação pelo consumo desenfreado de bens e substâncias,
mesmo as ilícitas (BAUMAN, 2001; BAUMAN, 2009).
Por conseguinte, a simbiótica associação entre vários
governos e organizações do tráfico de drogas, bem como, o
financiamento direto ou o favorecimento indireto de organizações
envoltas em conflitos geopolíticos (LABROUSSE, 2010; RODRIGUES,
2004; SILVA, 2013; CAMPOS, 2014), propiciaram o surgimento de
grandes oligopólios internacionais cuja atuação e complexidade
agora escapam ao controle e vigilância dos Estados-Nação mais
poderosos. À imagem e semelhança do mercado internacional
(conforme argumentado no tópico anterior), o tráfico impõe seus
interesses de maneira alheia às fronteiras nacionais, estatutos
jurídicos ou realidades locais (D’ÉLIA FILHO, 2014).
Ademais, a repressão, em si, é apontada como a maior
causadora da supervalorização do preço dos entorpecentes
(CAMPOS, 2014) e de sua presença nas grandes capitais centros
comerciais e econômicos do globo (UNODC, 2015), já que o preço
alto atribui à atividade uma possibilidade de lucro muito
interessante a pequenos ou grandes investidores.
Como consequência, o proibicionismo apenas “concentrou
as grandes redes de distribuição em poucas mãos, cada vez mais
impermeáveis” (WEIGERT, 2010, p. 37), ocultando as reais faces
(sociais) do problema das drogas e da falta de investimentos
assistenciais alternativo (ACSELRAD, 2011).
Desta forma, o tráfico de drogas do século XXI tende a
reproduzir a lógica capitalista de consumo e de produção em massa
inicialmente mencionada: formam-se grupos de caráter nacional ou
transnacional que atuam no controle do comércio, lavagem de
dinheiro e finanças da atividade, aos quais se destinam os massivos
lucros, e, de outro lado, amontoam-se os trabalhadores da droga:
295
agricultores, manufatureiros, comerciantes locais, normalmente,
aderentes à atividade em busca da alternativa financeira que não
lhes é oferecida pela legalidade do mundo individualizado e do
mercado formal de trabalho (D’ÉLIA FILHO, 2014).
Estes últimos, os pequenos acionistas da droga (que lucram
bem menos que os grandes empresários do tráfico), aliás, é que
acabam por se constitui os alvos concretos da política proibicionista
e sua repressão (D’ELIA FILHO, 2014).
Portanto, é possível afirmar: práticas econômicas
produziram o proibicionismo, que, por sua vez, conjugando-se às
transformações sociais ocorridas, desde meados do Século XX,
importaram na gênese da atual forma volátil e complexa das
organizações do tráfico de drogas.
Diante disto, é assente na literatura a falência das políticas
repressivas típicas do século XX (RODRIGUES, 2004; ARAÚJO, 2012;
D’ELIA FILHO, 2014; LEMGRUBER; RODRIGUES, 2014; SHECAIRA,
2014; CARVALHO, 2016; RODRIGUES, 2015), o que, por sua vez, causa
estranhamento a respeito da insistência de muitos Estados-nação do
mundo em sua manutenção, em pleno século XXI.
Não se confunda, no entanto, o teor da afirmação acima: o
questionamento aqui lançado, em torno da eficácia das estratégias
globais de combate às drogas, nem de longe constitui um incentivo
ao uso ou comércio de tal espécie de substâncias, que,
invariavelmente, se ligam à violência generalizada no globo e a
graves danos à saúde.
Pugna-se, entretanto, pela busca de novos paradigmas de
enfrentamento do problema, atualmente, tratado de modo seletivo
e hostil, dentro de uma política belicista e xenófoba, que pune
essencialmente classes pobres e permite o consumo legalizado de
outras drogas igualmente nocivas (como o álcool e o cigarro)
(ARAÚJO, 2012; RODRIGUES, 2004).
Em verdade, a realidade ocultada pelo discurso oficial da
Guerra às Drogas é muito mais grave. Conforme denunciou Anitua
(2015) e conforme já se afirmou acima, é evidente que a política de
Estado-Guerra gera subvenções estatais a determinados grupos que
296
oscilam na hegemonia econômica dos países-modelo do capitalismo
moderno e que permitem a ampliação da máquina judiciária e de
segurança pública (num contrassenso ao estado-mínimo liberal)
para uma melhor repressão dos inimigos sociais eleitos pela
criminologia (pós) moderna.
E os custos desse direcionamento e favorecimento, são
duplamente suportados pela população comum, preliminarmente,
por meio dos impostos decorrentes de suas rendas e atividades e,
num segundo momento, através da repressão que os atinge
(sobretudo, em suas parcelas historicamente estigmatizadas e
excluídas das fileiras do mercado de trabalho).
E mais: se hoje se alega um arrefecimento da Guerra às
Drogas, de outro lado, há a ampliação de uma Guerra ao Terrorismo,
cujos moldes e políticas interventivas não diferem da primeira,
mudando-se apenas os apontados malfeitores (ANITUA, 2015), num
verdadeiro círculo vicioso de exploração social.
A insistência nas políticas proibicionistas compõe, portanto,
uma clara estratégia econômica aliada ao moderno modelo de
repressão ao crime e à pobreza no Século XXI, conforme já
argumentado no tópico anterior.
Deste modo, repita-se: nos termos apontados por Garland
(2008) e Wacquant (2015), diante da ausência de políticas sociais e
previdenciárias eficientes, resta aos estados-nação tomar como
modelo de gestão das comunidades pobres (excluídas do mercado
de consumo, do emprego formal e geograficamente isoladas em
zonas marginalizadas), justamente, a repressão policial e o
encarceramento seletivo.
Para tanto, a luta contra as Drogas foi e ainda é uma
desculpa perfeita. Afinal, neste contexto de exclusão, o
envolvimento com atividades ilícitas é naturalmente potencializado
pela falta de oportunidades. E, sabendo-se que, mesmo em casos de
inocência, a imagem de alteridade e preconceito construída sobre o
cidadão estigmatizado (com o auxílio da mídia e do medo público)
certamente afastará questionamentos sobre a legitimidade da ação
estatal, a repressão às drogas se torna um prato cheio para uma
297
contenção governamental da pobreza (D’ÉLIA FILHO, 2014;
WACQUANT, 2015).
Enquanto isso, as classes sociais mais abastadas acabam
imunizadas em relação às políticas de encarceramento, em função
da seletividade penal da legislação antidrogas e do sistema
judiciário, assim como, pela dicotômica existência de um modelo
jurídico-penal (aplicável às classes mais pobres, estigmatizadas,
compostas por reputados inimigos sociais) e um modelo médico-
sanitarista (que identifica determinados sujeitos como cidadãos, e
assim, doentes, dispensando-lhes um tratamento médico muito
mais brando que as medidas de encarceramento) (CARVALHO, 2016;
ACSELRAD, 2011). De tal modo, se a Guerra às Drogas realmente
teve algum sucesso comprovado, o foi quanto ao aprisionamento de
grande parte da população, sobretudo, a mais pobre.
Igualmente, fez-se bem sucedida, também, quanto ao
pacote político modelo apto à exportação a diversos países de
tradição liberal, inclusive, países pobres e em desenvolvimento,
como o Brasil (dentre outros da América Latina), sob as comuns
ameaças concretas de imposição de sanções econômicas por parte
dos países-modelo da política neoliberal (WEIGERT, 2010).
Especificamente em relação ao Brasil, a já apontada postura
de alinhamento aos modelos político-econômicos norte-americanos,
sobretudo, a partir da década de 1960 (conforme já tratado),
garantiu a adesão do país à escalada proibicionista internacional. A
partir dessa perspectiva, como se verá no tópico seguinte, as
consequências deste alinhamento, somado ao contexto político
interno do país, foi determinante para o surgimento de um
fenômeno multifacetado e muito discutido no momento: as
organizações criminosas.
A seguir, promoveu-se uma breve análise de como o
combate às drogas se deu no Brasil e como as consequências desta
política, somadas às consequências territoriais da política liberal do
século XXI, criaram um campo fértil para o surgimento dos
territórios do tráfico no país.
298
5 DO PROIBICIONISMO BRASILEIRO E SUAS CONSEQUÊNCIAS
SÓCIO-TERRITORIAIS NO SÉCULO XXI
Assim como no restante do mundo, o Brasil também detém
suas imagens históricas do consumo de drogas e do proibicionismo
vinculado a razões políticas1. Embora a proibição do uso de
entorpecentes seja vislumbrada, legalmente, desde o Código Penal
Imperial de 1830 (que fazia alusão à nomenclatura venenos), foi
somente a partir de 1932 que se constatou um efetivo alinhamento
do Estado brasileiro à política proibicionista internacional, quando,
se acrescentou a pena de prisão àquele tipo de delito (CARVALHO,
2016).
Esta nova roupagem do controle sobre as drogas foi (à
imagem e semelhança do contexto internacional) progressivamente
implantada a partir do atendimento a interesses comerciais
vinculados ao monopólio da produção e administração de
medicamentos no país (RODRIGUES, 2015).
A influência médica, aliás, foi tão significativa, que o art. 281
do Código Penal de 1940, retomou a técnica da “norma penal em
branco” (de questionável constitucionalidade), na qual a proibição
genérica do uso de “estupefacientes” necessitava da atuação
complementar de outros órgãos governamentais (vinculados,
justamente, à classe médica) para definição de quais substâncias
seriam proibidas, ou não (CUNHA, 2013).
Com o impacto social desta alteração legal, e ainda, com a
ajuda dos contemporâneos meios de comunicação, constatou-se a
construção de uma preocupação social sobre a questão da droga
(RODRIGUES, 2015), que, facilmente, passou a ser explicada a partir
1
Destaca-se o consumo de caium pelos autóctones, anteriormente à colonização
portuguesa (FERNANDES, 2002); o consumo de cachaça, utilizada no processo de
descimento e pacificação dos índios e domesticação de escravos, posteriormente
proibida em razão da catequese, do vício que prejudicava as lavouras (FERNANDES,
2002; RICARDO, 2013) e dos prejuízos causados à venda do vinho português, o que a
levou a ser traficada, em troca de escravos (AVELAR, 2015); o consumo de maconha,
muito popular em comunidades pobres, até o início do século XX (CARLINI, 2006;
BRANDÃO, 2013).
299
de estereótipos criados sobre as figuras dos migrantes rurais, jovens
(sobretudo os pobres) e moradores de favelas (ZALUAR, 1994).
O discurso de luta contra um inimigo ganhava seus
contornos próprios no país. Adiante, com o advento do governo
militar (a partir de 1964), o modelo sanitarista que impulsionara a
política de drogas no Brasil se aliou a um modelo bélico-repressivo
(RODRIGUES, 2015). Num primeiro esforço de adequação da
legislação interna à Convenção Única de 1961 (repita-se,
considerando que o governo militar brasileiro detinha estreitos
laços com a política externa Norte-Americana), promoveu-se uma
reinterpretação e ampliação do conceito de crime de tráfico, nele
incluindo a atividade de cultivo (por meio da Lei nº 4.451/64) e
expandindo-se o rol das substâncias proibidas (através do Decreto-
Lei 159/67), com a inclusão das anfetaminas e alucinógenos.
Contudo, a alteração mais marcante foi instituída pelo
Decreto nº 385/68: a criminalização e penalização do uso de
substâncias entorpecentes, igualando, em termos práticos, as figuras
do traficante e do usuário no Brasil, como afirmam Carvalho (2016) e
Rodrigues (2015). A revisão das categorias em questão só ocorreu
três anos depois, com a instituição dos nomens juris de usuário,
dependente e traficante, por intermédio da Lei nº 5.726/71
(CARVALHO, 2016), sem a eliminação, entretanto, das imprecisões
práticas.
Em verdade, os aperfeiçoamentos legais apenas legitimaram
um conjunto de procedimentos que há tempos já era adotado no
país. Conforme apontou Batista, em estudo envolvendo
adolescentes, desde o final da década de 1960 a justiça brasileira já
levava em conta variáveis como “o estado de abandono, a etnia ou a
classe social [...] e reincidência”, para fins de “internação de jovens
que portavam pequenas quantidades de droga” (2003, p. 17),
critérios estes, certamente extensíveis à justiça penal como um todo.
Deste modo, atingindo-se no plano internacional o modelo
global de controle sobre as drogas encabeçado pelos EUA (por meio
da Convenção de Viena de 1971), uma nova adequação legislativa foi
promovida no Brasil, em seguida, por meio da lei 6.368/76, que
300
aperfeiçoou as previsões anteriores, guardando as maiores penas à
novel figura do narcotraficante (doravante, associado à figura do
comunista, a ser combatido pela política militar da Doutrina de
Segurança Nacional) (CARVALHO S, 2016).
Na prática, esta dicotomia dos modelos médico-jurídico e
jurídico-penal servia para promover uma ampla seletividade dentre
os alvos da atuação da repressão: os de classe média ou alta, eram
tratados como dependentes, doentes a serem curados; os demais,
sobretudo se pobres, migrantes ou negros, eram tratados como
criminosos (RODRIGUES, 2015).
Inclusive, mesmo após a democratização, o modelo dúplice
foi mantido, em função da permanência do tratamento
criminológico repressivo construído nas décadas anteriores. Nascia a
democracia, mas mantinha-se o sistema jurídico-penal autoritário
construído e instituído ao longo do período do Governo Militar
(CARVALHO, 2016). Assim, o aprisionamento seletivo se consagrou
como um nítido instrumento de gestão populacional no território
brasileiro.
O resultado prático desta política, por sua vez, não diferiu
daqueles denunciados nos estudos de Wacquant (2015): a)
constatou-se a construção de uma preocupação social sobre a
questão da droga (RODRIGUES, 2015), que, repita-se, promoveu a
estigmatização de estereótipos criados sobre os variados tipos de
cidadãos pobres (ZALUAR, 1994); e, b) produziu-se, em seguida, um
super-encarceramento, que, nos moldes ocorridos em países como
os EUA, também se tornou uma realidade brasileira, inclusive, com
nítidas tendências à privatização do sistema prisional (SILVA, 2016).
A verossimilhança da afirmação acima é sensível a partir dos
números do sistema penal, tanto no âmbito nacional, quanto no
âmbito local, do Estado do Pará, abaixo expostos.
Conforme dados estatísticos do Departamento Penitenciário
Nacional-DEPEN, de uma amostra de 234.524 presos colhida no ano
de 2014, constatou-se que 28,27% dos encarcerados no Brasil
respondiam por crimes classificáveis como tráfico de drogas,
301
números que ficavam atrás, somente, dos registros oficiais de presos
por crimes contra o patrimônio (40,49% do total) (BRASIL, 2014a).
No Estado do Pará, por sua vez, conforme dados da
Superintendência do Sistema Penitenciário - SUSIPE (2016), entre
janeiro de 1995 a maio de 2016, registrou-se um aumento da
população carcerária de 1182%, com um total de 14.789 presos.
Destes aprisionados, dentre os 13.059 homens, 17,64% respondiam
por crimes ligados ao tráfico de drogas, proporção que aumentava,
dentre as 746 mulheres presas, para um total de 64,5% (SUSIPE,
2016).
Porém, a despeito das prisões realizadas, nem de longe se
constatou uma diminuição nas ocorrências de tráfico de drogas.
Segundo a Secretaria Nacional de Segurança Pública – SENASP, em
2014, foram identificados 83.421 registros de crimes de tráfico, o que
fez o índice criminal da ocorrência (obtido pela divisão do número
total de ocorrências pelo valor de 100 mil habitantes) saltar de 18,5
em 2004, para 43,7 no ano da pesquisa (BRASIL, 2014a). Igualmente,
enquanto as apreensões de maconha (em quilos) cresceram 87%,
entre 2001 e 2007, as de ecstasy (droga sintética), por sua vez,
aumentaram 1.330% (BRASIL, 2014b).
Dessa forma, o super-encarceramento, além de tornar
economicamente inviável o sustento do atual modelo prisional
Brasileiro (e mundial, como informam Lemgruber e Rodrigues
[2014]), tem levado as cadeias brasileiras a uma situação de total
descontrole, e isso, sem desmantelar as redes que vinculam o tráfico
de drogas ao contexto do cárcere: conforme atestou a UNODC
(2015), a cada ano, constata-se um aumento significativo de presos
que se autodeclaram usuários de drogas. O interessante é a
ocorrência de tal afirmação no contexto de prisões que não
deveriam permitir o ingresso ou consumo de entorpecentes.
Porém, o pior dos problemas inerentes à relação tráfico-
cárcere ainda viria a eclodir no Brasil, ao final do século XX.
A política prisional encarceradora, as sucessivas crises
econômicas enfrentadas pelo país, o recrudescimento do
desemprego e a redução de oportunidades (DIAS, 2013), em
302
conjugação a todas as transformações políticas e sociais até então
apontadas no âmbito internacional e nacional, serviram como pano
de fundo para o nascimento de organizações criminosas vinculadas,
sobretudo, ao tráfico de drogas no Brasil.
O mais surpreendente, nesse ponto, é que o locus de
surgimento deste fenômeno, de maneira sui generis, foi, justamente,
o ambiente carcerário, ou seja, o interior dos muros dos próprios
locais escolhidos como ambientes político-administrativos de
contenção territorial do crime (AMORIM, 2011), numa infeliz ironia.
Conforme Dias (2013), em meados da década de 1970,
enquanto o Brasil ensaiava uma política prisional ressocializadora
(que só existiu no texto frio da lei), seu território foi
progressivamente inserido nos corredores e mercados consumidores
das redes internacionais de tráfico de cocaína. Ao mesmo tempo, a
estratégia pós-moderna de apropriação dos espaços urbanos como
bem de consumo e como mecanismo de segregação social
(VOLOCHKO, 2015), além de gerar uma primeira desterritorialização
precária das populações vulneráveis, relegando-as a zonas carentes
e desvalorizadas (HAESBAERT, 2014), ao se somar à política
criminológica já descrita, impôs a milhares de cidadãos uma
segunda desterritorialização mais precária ainda: a do cárcere
(SANTOS, 2007).
Como é natural de se esperar, o super-encarceramento
ocasionou a gênese de conflitos sócio-territoriais entre os diversos
agentes aprisionados, e ainda, entre estes e o Estado (RAFFESTIN,
1993). O ambiente do cárcere se tornou ainda mais hostil, para
qualquer um que nele transitasse (DIAS, 2013). Com isso, no bojo
desse ambiente violento e precário, a sobrevivência dos
aprisionados os forçou à tomada de estratégias de resistência, na
tentativa de consecução/preservação de direitos que compreendiam
possuir, numa escala mais crítica, em prol de um mínimo existencial
ou de sua própria vida (RIBEIRO, 2015).
Assim, diante de uma das mais graves formas de
desterritorialização (SANTOS, 2007) e em face não só de uma
303
quebra do sentimento de pertencimento ao lugar de origem2, mas
também, da submissão a um local de hostilidade e dominação, a
ideia de insubmissão e desrespeito à política estatal se tornou um
gérmen que passou a alimentar o ideário comum. Aos poucos
nasciam e se desfaziam diversas Facções dentro dos presídios que, a
princípio, demarcavam territórios como meio de autopreservação
coletiva, ou, simplesmente, de reprodução de relações de
dominação entre os próprios presos.
No entanto, em função das condenações com base na Lei de
Segurança Nacional - o Decreto-Lei 898/69, tornou-se corriqueiro o
convívio entre presos comuns e presos políticos, ligados a
movimentos genericamente enquadrados como comunistas
(AMORIM, 2011; DIAS, 2013). Não tardou para que os conhecimentos
dos presos políticos, de cunho ideológico e com ampla formação em
táticas de guerrilha e conflitos urbanos, acabassem por se conformar
aos ideários comunitários dos presos, propiciando o surgimento de
grupos cuja caracterização ia além da formatação das anteriores
facções.
Deste modo, a década de 1970 marcou o surgimento dos
chamados coletivos (grupos politizados e hierarquicamente
organizados) entre os presos, como estratégia de resistência
territorial (SANTOS, 2007, p. 92), voltada à busca pela melhoria das
condições nas prisões, cujos embriões foram atribuídos ao
(atualmente desativado) Presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro
(AMORIM, 2011, 2013).
Progressivamente, o que era tomado como uma estratégia
de resistência vinculada à simples ideia de sobrevivência digna se
transformou num intento de dominação, que, por sua vez,
desembocou em violentos conflitos carcerários incontroláveis pelo
Estado em busca da hegemonia interna (AMORIM, 2011, 2013; DIAS,
2013).
Mesmo após a anistia política, em 1979, que permitiu a
libertação dos presos políticos condenados com base na Lei de
2
O que Haesbaert (2014) denomina de territorialidade simbólica.
304
Segurança Nacional, a conformação de ideários de unificação das
massas aprisionadas, de dominação dos presídios, e, sobretudo, de
enfrentamento estatal, já se tornara um processo sociológico
irreversível.
Após sucessivos conflitos internos no presídio da Ilha
Grande – Rio de Janeiro, nasceria, no ano 1980, o Comando
Vermelho – CV, sucessor da Falange Vermelha (AMORIM, 2011), e,
sob os mesmos moldes, nasceria na década seguinte o Primeiro
Comando da Capital - PCC (DIAS, 2013), no Estado de São Paulo.
Conjuntamente àquelas organizações, várias outras se
consubstanciariam dentro e fora do cárcere: Terceiro Comando,
Terceiro Comando Puro, Amigos dos Amigos, dentre várias outras
citáveis (AMORIM, 2011, 2013).
Foi questão de tempo para que os coletivos tivessem
contato com o processo de escalada dos novos mercados da droga
no país (especialmente, da cocaína), momento em que agregaram o
tráfico às suas atividades e iniciaram uma empreitada pela
dominação das redes territoriais locais e nacionais, bem como, a
interligação destas a redes internacionais de traficantes, com a
eliminação de rivais em verdadeiras guerras urbanas, seguidas do
enfrentamento direto ao Poder Público (AMORIM, 2011, 2013; DIAS,
2013).
Com isso, o tráfico brasileiro passou a ter uma característica
marcante: embora também tenha seus oligopólios não atingíveis
pela política criminal, o país desenvolveu organizações de
traficantes cujas lideranças e cúpulas de comando se encontram
aprisionados, e, mesmo nessa situação, comandam as atividades de
seus coletivos e controlam o comércio das drogas, até mesmo,
dentro das cadeias do território nacional.
Atualmente, a despeito dos esforços dos órgãos de
segurança pública, verifica-se que as estratégias utilizadas por estas
organizações criminosas (e, em muitos casos, até mesmo por
simples comerciantes de menor expressão) têm superado os muros
e grades do cárcere, e, com isso, promovido uma eficiente e
concreta interligação de agentes territoriais encarcerados às redes
305
territoriais externas do tráfico de drogas (RODRIGUES, 2004;
AMORIM, 2011, 2013; DIAS, 2013; D’ELIA FILHO, 2014). Portanto, a
técnica da prisão, na forma em que se apresenta atualmente, não
tem demonstrado qualquer sucesso prático na contenção da
atividade: O tráfico se impõe além das grades.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Superando os discursos oficiais, constata-se o tráfico de
drogas do Século XXI é um fenômeno originário de uma série de
transformações sociais típicas da pós-modernidade e das
consequências que as mudanças do capitalismo moderno
impuseram às sociedades dos países vinculados ao bloco neoliberal.
A ideologia de guerra às drogas sempre se mostrou
historicamente vinculada, no Brasil e no Mundo, a fatores políticos e
econômicos inerentes a grupos socialmente hegemônicos, bem
como, a interesses relativos ao equilíbrio da balança comercial e de
dominação internacional (nalguns casos, de caráter nitidamente
intervencionista – para não dizer imperialista). Em especial,
verificou-se que a própria política proibicionista acabou por
impulsionar o caráter lucrativo da atividade.
Este caráter interessado da política de enfrentamento ao
tráfico, por sua vez, foi determinante para a imprecisão das
legislações inerentes ao tema, e, sobretudo, para aplicação seletiva
das políticas de repressão praticadas pelos órgãos oficiais, que,
como de praxe, atingiram (e atingem) significativamente as parcelas
mais vulneráveis da população: pessoas pobres, estigmatizadas por
sua cor, idade ou território estabelecido (ou imposto pela exclusão).
Isso, somado à natural segregação gerada pelos interesses
do capitalismo pós-moderno, consagrou uma desterritorialização
precária que, em casos mais graves, impeliu verdadeiros
contingentes populacionais ao interior do cárcere. A estes cidadãos,
que viram no tráfico uma importante economia, restou a adoção de
estratégias de resistência para manutenção de um meio de
sobrevivência na sociedade de consumo, mesmo que marcadas pela
violência.
306
Especificamente no Brasil, este processo foi determinante à
formação de coletivos de criminosos que hoje se espalham e
disputam o domínio de redes territoriais do comércio de drogas no
país, sob o aval de oligopólios nacionais e transnacionais que gozam
de substancial imunidade em relação às políticas repressivas do
Estado - encarcerado pelos limites de sua própria soberania
territorial.
Em suma, conclui-se que o tráfico de drogas, em qualquer
de seus possíveis níveis – o dos grandes oligopólios, dos pequenos
traficantes, em suas redes transnacionais ou, até mesmo, dentro do
cárcere -, certamente, representa um fato social que reproduz a
lógica capitalista que lhe originou, sendo uma atividade comercial
(uma empresa, um sujeito ou conjunto de sujeitos atuantes no
mercado) que lucra em função da proibição que recaiu sobre a
mesma (determinada por interesses econômicos e de grupos
hegemônicos dos Estados-Nação), em razão das oportunidades que
uma sociedade individualizada e preparada para o consumo pode
oferecer, e, decerto, que se vale de estratégias que a ilicitude lhe
impõe em busca da superação dos obstáculos que se opõe a sua
liberdade de ação.
A ausência de compreensão destes pressupostos (ou sua
ignorância, intencional ou não) é, certamente, uma das principais
(senão a principal) razão do fracasso apontado em relação às
políticas de enfrentamento do problema.
REFERÊNCIAS
307
AMORIM, Carlos. Comando Vermelho: a história do crime
organizado. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011.
308
CARLOS, Ana Fani Alessandri. Metageografia: Ato de Conhecer a
Partir da Geografia. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri. Crise Urbana.
São Paulo: Contexto, 2015.
309
FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. 2. Ed. Rio de Janeiro:
Editora Paz e Terra, 2015.
310
MINGARDI, Guaracy. Crime Organizado. In: RATTON, José Luis;
LIMA, Renato Sérgio de; AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli. Crime,
Polícia e Justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014.
311
SILVA, José Adaumir Arruda da. A privatização de Presídios: Uma
Ressocialização Perversa. Incompatibilidade com o Estado
Democrático de Direito. Rio de Janeiro: Revan, 2016.
312
ZAVERUCHA, Jorge. Relações Civil-Militares: O legado Autoritário da
Constituição Brasileira de 1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir.
O que Resta da Ditadura? São Paulo: Boitempo, 2010.
313
314
VENEZUELA: HACIA LA CONSTRUCCIÓN DE UNA DOCTRINA
MILITAR BOLIVARIANA DE SEGURIDAD Y DEFENSA INTEGRAL
RESUMO
Existe uma Doutrina Militar Bolivariana para a formulação de uma
política pública de Segurança e Defesa Integral? Se a segurança e a
defesa integral são um instrumento de análise estratégica cujo
objetivo final é proteger os objetivos nacionais, quem deve formulá-
los? Estas são as questões que este artigo propõe responder, que
desvendariam a construção até hoje desta Política Pública de
segurança e defesa integral, por meio da análise de numerosos
documentos emitidos pelos governos federais da Venezuela. É
necessário estabelecer que uma política de segurança pública é um
instrumento político e, se for um instrumento, faz parte de um
conjunto de atividades de política pública. A Doutrina Bolivariana
para a construção da segurança e defesa (doutrina de segurança
nacional) será a ideia imanente e emancipatória que irá gerar uma
variável antagônica e discordante para a realização de seus objetivos
hegemónicos que pairam sobre nossa região. Nossa iniciativa
desenvolve a atividade da defesa de forma integral, reivindicando
soberania sobre nossos espaços e recursos.
RESUMEN
¿Existe una Doctrina Militar Bolivariana para la formulación de una
política pública en Seguridad y Defensa Integral? Sí la seguridad y
defensa integral son un instrumento de análisis estratégico que
tiene como fin último proteger los objetivos nacionales, ¿entonces a
quién corresponde formularlas? Esas son las preguntas que se
315
propone a responder este artículo, que desglasara la construcción
hasta el día de hoy de esta Política Pública en materia de seguridad
y defensa integral, por medio de la análises de inúmeros
documentos expedidos por los gobiernos federales de Venezuela.
Necesario es establecer que una política de seguridad pública es un
instrumento político y si es un instrumento entonces es parte de un
conjunto de actividades de políticas públicas. Una Doctrina
Bolivariana para la construcción de la seguridad y defensa (Doctrina
de la seguridad nacional) será la idea inmanente y emancipadora
que va a generar una variable antagónica y discordante para la
concreción de sus objetivos hegemónicos que se vislumbran sobre
nuestra región, nuestra iniciativa desarrolla la actividad de la
defensa de manera integral reivindicando la soberanía sobre
nuestros espacios y recursos.
1 INTRODUCCIÓN
¿Existe una Doctrina Militar Bolivariana para la formulación
de una política pública en Seguridad y Defensa Integral? La
respuesta más elaborada que se pueda dar a esta pregunta está
contenida de forma esquematizada en la Propuesta del Candidato
de la Patria para la Gestión Bolivariana Socialista 2013-2019. Objetivo
1.6, acerca de: Programa de Gobierno (Gestión Socialista) 2013-2019.
Allí se establece:
Fortalecer el poder defensivo nacional para
proteger la independencia y la soberanía
nacional, asegurando los recursos y
riquezas de nuestro país para las futuras
generaciones (CHÁVEZ, 2012).
316
construcción de un cuerpo de políticas públicas en materia de
Seguridad y Defensa Integral, en sus objetivos más estratégicos.
El “Plan Económico y Social de la Nación 2013-2019”
(Gestión Bolivariana) y el que finalizó exitosamente en 2007-2013,
dan resultados identificados claramente a la luz de los objetivos
nacionales planteados en la Constitución de la República Bolivariana
de Venezuela y el “Proyecto Simón Bolívar 2007-2013”, así como en
la Doctrina Militar Bolivariana como política y base fundamental
para la construcción de políticas públicas de Estado en Seguridad y
Defensa Integral de la Nación.
Necesario es aclarar que la Doctrina Bolivariana es un
compendio de ideas y postulados políticos, económicos, jurídicos y
militares que llevan una profunda carga ideológica determinante, a
partir de la vida y obra del Libertador de cinco naciones Simón
Bolívar, necesario para alcanzar una política integral de Seguridad y
Defensa.
En este sentido el Gobierno Bolivariano que inició con el
Presidente Hugo Chavez y continuado por el Presidente Nicolás
Maduro se ha planteado bajo los escenarios de cambios profundos
del sistema político y social venezolano una planificación a partir del
2 de febrero de 1999 que busca determinar primeramente en la
afirmación de su existencia y posteriormente en su consolidación
como sistema político aceptado por la mayoría del pueblo
venezolano.
El documento oficial «Proyecto Simón Bolívar en su Primer
Plan Socialista (PPS) del Desarrollo Económico y Social de la Nación
para el período 2007-2013» generó siete macro lineamientos
sociales, económicos y políticos, de los que se identificó cuál es la
doctrina imperante y garante del nuevo entramado institucional. La
Doctrina Bolivariana es decir los preceptos del Padre de la Patria
Simón Bolívar se están formulando como una política pública de
Estado, escapando de esta manera a una etérea y fugaz política de
gobierno que por su naturaleza es de carácter temporal.
317
En la Constitución de la República Bolivariana de Venezuela,
en el Art. 322, se expone claramente la conceptualización del Nuevo
Sistema de Seguridad Integral con suficiente amplitud:
318
naturaleza e intensidad, que en forma
activa formule, coordine y ejecute el Estado
con la participación de las instituciones
públicas y privadas, y las personas
naturales y jurídicas, nacionales o
extranjeras, con el objeto de salvaguardar
la independencia, la libertad, la
democracia, la soberanía, la integridad
territorial y el desarrollo integral de la
Nación (REPÚBLICA BOLIVARIANA DE
VENEZUELA, 2002).
319
Venezuela es el único país del mundo que vive una guerra
de cuarta generación, guerra asimétrica o guerra de alta densidad
digita desde hace 17 años. La llegada de un militar nacionalista y
patriota a la Presidencia de Venezuela supuso un quiebre definitivo
a más de 40 años de tradicionalismo bipartidista. El Presidente Hugo
Chavez Frías en 1999 cambió todo en el país, abrió nuevos
paradigmas del hacer política en Venezuela, política no destinada a
llamar a los antiguos políticos y seguir con la continuidad sino un
llamado a todo un pueblo a que desde las bases se construyera una
nueva Venezuela. Desde ese entonces el país no ha tenido paz en la
realización de sus metas, sin embargo el Presidente Chavez hizo en
Venezuela maravillas sociales que aun hoy se defiende con todas las
fuerzas ante una nueva arremetida de cambios derechistas en
Suramérica.
En febrero de 1999 lo primero que hace el Presidente es
lanzar una convocatoria a un proceso de referéndum consultivo para
una Asamblea Nacional Constituyente, y la siguiente novedad que
anunció fue la implementación de un plan de atención social
denominado Plan Bolívar 2000. El primer Plan General de la Nación
de carácter cívico-militar de la era Bolivariana entre 2000 – 2006.
Este plan incorporaba a las instituciones del Estado, pero su fuerza
principal es el llamado a las Fuerzas Armadas para su participación.
Para ese entonces Venezuela presentaba los peores índices sociales
y económicos de continente con un 80% de pobreza, 39% de
pobreza extrema, 15% de indigencia y un 50% desocupación.
Con este plan, el presidente Chávez buscaba varios
objetivos. El primero era brindar atención social al pueblo,
despojado de todo derecho a la salud, educación, alimentación, a la
asistencia del Estado y la atención de sus demandas.
El segundo fue involucrar al sector castrense con las
comunidades y romper el aislamiento creado alrededor de las
instalaciones militares, que a lo interno contaban con ciertos
privilegios como centros médicos exclusivos para personal
uniformado, espacios deportivos y recreativos y sistemas de
320
distribución de alimentos, mientras que en las barriadas cercanas no
contaban con estos beneficios.
Tercero y el más importante fue llevar la reconciliación entre
pueblo y Fuerza Armada. Esto pasaba por mostrarle tanto al pueblo
como a los oficiales y tropas que ambos son venezolanos. Se rescató
el principio fundamental del ideal bolivariano, que concebía al
pueblo como un gran ejército al servicio de la defensa de la
soberanía nacional y la independencia.
Como hombre militar conocía perfectamente las limitaciones
conceptuales, metodológicas y políticas de llevar una revolución
social sin el apoyo de las Fuerzas Armadas el cual muy
inteligentemente incorporó desde los cuárteles, la participación
Cívico – Militar. La Unión Cívico-Militar es el nuevo concepto político
y nuclear basado en la participación de la sociedad venezolana en la
construcción de sus destinos en base a las fuerzas sociales. De esta
idea han trascurrido los 17 años de la Revolución Bolivariana, el
pueblo trabajando con sus fuerzas armadas.
¿Qué significa el pueblo trabajando con sus fuerzas
armadas? Significa que el estamento militar en todos sus rangos
está comprometido en las realizaciones civiles y de Estado. Un
batallón del Cuerpo de Ingenieros del Ejército construyendo puentes
civiles, reparando vías, construyendo viviendas sociales, apoyando la
distribución de bienes y servicios civiles etc. A su vez el pueblo se
formas en las doctrinas militares de la defensa nacional, se arraiga
en el sentido de unión de estamentos como parte de una sociedad
conjunta o en un todo orgánico. Este concepto de Unión Cívico –
Militar es muy extraña de entender para cualquier analista foráneo
que conceptualmente tiene el paradigma de separación de
estamento de civiles con civiles y los militares con los militares a sus
cuarteles, porque ese es el paradigma universal, y lo que no logran
ver es que en Venezuela en su historia tiene una tradición muy
arraigada en que los miembros que integran sus fuerzas armadas
son personas de todos los orígenes sociales y especialmente de
origen humilde.
321
2 VENEZUELA Y EL DESARROLLO DE SU SEGURIDAD Y DEFENSA
INTEGRAL
Actualmente en el mundo se desarrolla una nueva realidad
política con la articulación de nuevos bloques y el impulso de
alianzas estratégicas; Venezuela así como América Latina no escapa
de esta realidad, los cambios dinámicos y de reordenamiento de los
Estados que vienen siendo impulsados por doctrinas de corte
nacionalista de izquierda, en contraposición de aquellas políticas
imperialistas emanadas desde EEUU y Europa que entendían a
Suramérica como una de las principales fuentes de materia prima y
biodiversidad para mantener su gran potencia industrial y
hegemónico sobre nuestro continente.
En el marco del proceso de cambios y confrontación que
vive la Nación, caracterizada bajo una dinámica de transformaciones
continuas, cuyas exigencias determinan la inserción y
profundización de una planificación que perdure en el Desarrollo,
Seguridad y Defensa Integral de los intereses máximos del Estado,
el accionar Bolivariano del mismo determinará las directrices del
nuevo concepto Militar Venezolano. En este aspecto, la Doctrina
Bolivariana adapta perfectamente, no solo desde el punto de vista
ideológico, a las necesidades del siglo XXI, sino a las estrategias y
tácticas que aun en nuestros días siguen vigentes en los diferentes
ámbitos que desplazan al país en un futuro determinado por las
asimetrías económicas y la escasez de recursos naturales. De esta
manera, habrá que considerar la Doctrina Bolivariana como un
compendio de elementos y postulados que llevan una profunda
carga ideológica, determinante y necesaria para alcanzar una
Política Integral de Seguridad.
En la actualidad vivimos en una sociedad caracterizada por
la dinámica indolente ante las necesidades primordiales del ser
humano, tendiente a la voracidad del consumo impuesta por la
lógica de la dominación y las estructuras establecidas por la
sociedad industrial avanzada (MARCUSE, 1964). Bajo estas
concepciones de imposición cultural y la determinación de instaurar
la unilateralidad del poder hegemónico de los EE.UU y el
322
establecimiento de una cadena de Estados Clientes1 a nivel
hemisférico a disposición de los intereses del establishment
norteamericano jugará un papel determinante en los intentos de
retomar o imponer nuevamente su hegemonía sobre nuestro
continente.
Implementando una estrategia que estipula la
remilitarización de la Diplomacia Norteamericana y la instauración
de un Nuevo Orden Internacional2, a través de Políticas de Estado
impuestas arbitrariamente en el teatro de operaciones global,
entrando en una línea de clara disimetría con los preceptos
económicos, políticos y sociales impulsados por la Doctrina
Bolivariana (EL UNIVERSAL, 2005).
Sin duda representando una doctrina emancipadora que va
a generar una variable antagónica y discordante para la concreción
de sus objetivos hegemónicos que se vislumbran sobre nuestra
región, nuestra iniciativa desarrolla la actividad de la defensa de
manera integral reivindicando la soberanía sobre nuestros espacios
y recursos.
La Doctrina Bolivariana ha renacido con el despertar de las
Naciones del Sur a través de los movimientos latinoamericanistas,
reivindicando así la igualdad en términos de Nación contra las
imposiciones de una relación asimétrica que venía interviniendo en
los destinos de nuestros pueblos con aquellos países
industrializados.
1
Término acuñado por el profesor Noam Chomsky: El hecho fundamental es que los
Estados Unidos organizó bajo su auspicio y protección un sistema neocolonial de
Estados Clientes regidos sobre todo por el terror y que están al servicio de una
pequeña elite empresarial y militar del propio país y del extranjero.
2
El Proyecto para el Nuevo Siglo Estadounidense o en inglés PNAC (Project for the
New American Century) es un grupo ideológico y político establecido en Washington
D.C.. Fue fundado en la primavera de 1997 como una organización sin ánimo de lucro
con el objetivo de promocionar "el liderazgo mundial de Estados Unidos”. Muchos
afirman que este proyecto propone la dominación suprema, militar y económica, de
la Tierra, el espacio y el ciberespacio por parte de Estados Unidos, así como el
establecimiento de la intervención en los problemas mundiales (Pax Americana).
323
La implantación de modelos militares ajenos a nuestra
realidad nacional fueron las recetas de un intercambio con visos de
cooperación que determinaban nuestras políticas sin tomar en
cuenta el desarrollo y la defensa de nuestros recursos naturales,
debido a la formulación de líneas que defendían el interés
norteamericano sobre el nuestro. La aplicación de esquemas de
guerra contra subversión minó el pensamiento de nuestros soldados
venezolanos a través de la Escuela de las Américas y el aval político
de nuestros decisores de la época, creando así un sistema de
coacción que establecería la dominación de EEUU sobre la fachada
del Caribe3 y nuestras riquezas.
La promulgación de la Constitución de la República
Bolivariana de Venezuela en 1999, determina un revés para aquellas
imposiciones doctrinarias por parte del hegemonía militar del
continente, dando nuevas atribuciones a nuestra Fuerza Armada
Nacional y la incorporación de la población de manera activa en el
Sistema de Defensa Integral de la Nación. El articulado que
comprende sus atribuciones señala su alcance y preceptos, estos se
complementan con la suma de los articulados que comprende la Ley
Orgánica de la Fuerza Armada Nacional Bolivariana y la Ley
Orgánica de la Seguridad de la Nación.
En base a esto el deber de la defensa estipulada en el
artículo 130 de la Constitución de la República Bolivariana de
Venezuela4 y el principio de corresponsabilidad entre el Estado y la
sociedad civil establecido en el artículo 3265 del mismo texto
3
Según informe emanado por la Corporación Rand a petición del Departamento de
Estado desclasificados en los años 80, se determinó que el entrenamiento y dotación
de equipos a Venezuela permitiría la disminución en la influencia cubana y soviética
en la región (http://www.rand.org/pubs/reports/2008/R2954.pdf)
4
Artículo 130CRBV. Los venezolanos y venezolanas tienen el deber de honrar y
defender a la patria, sus símbolos y valores culturales; resguardar y proteger la
soberanía, la nacionalidad, la integridad territorial, la autodeterminación y los
intereses de la Nación.
5
Artículo 326CRBV. La seguridad de la Nación se fundamenta en la correspondencia
entre el Estado y la sociedad civil para dar cumplimiento a los principios de
independencia, democracia, igualdad, paz, libertad, justicia, solidaridad, promoción y
conservación ambiental y afirmación de los derechos humanos, así como en la
324
determinan la actividad de defensa en todos sus ámbitos y
espacios, por ello nuestra nueva doctrina de defensa refleja la
integralidad de todos los elementos para alcanzar el desarrollo de
una política pública acertada en el resguardo de nuestro espacio
territorial, soberanía y máximos intereses nacionales.
La Ley Orgánica de la Seguridad de la Nación determina en
su artículo tercero (03) los parámetros de la Defensa Integral6,
estableciendo así el engranaje de una corresponsabilidad de todo el
Estado y la sociedad para efectivamente garantizar la Seguridad del
Estado7 en todo su espectro. La elaboración de los planes
estratégicos y otras políticas públicas que impulsa el Gobierno
Central encuentra en esta y otras leyes su fundamento operacional.
El Plan Socialista I o Plan Simón Bolívar bajo la Nueva Geopolítica
Nacional8 activa por medio la planificación estratégica del Estado la
materialización de los preceptos emanados de la Seguridad y
Defensa Integral entendiendo a los diferentes Ejes de Desarrollo
9
Eje Norte-Llanero, Ejes de desconcentración Occidental, Oriental y Orinoco-Apure.
10
Decreto N° 6.239 con Rango, Valor y Fuerza, de Ley Orgánica de la Fuerza Armada
Nacional Bolivariana en su numeral 5, ESTABLECIMIENTO DE LAS REGIONES DE
DEFENSA INTEGRAL Y SU COMANDO MILITAR. Sobre la base de la concepción
estratégica de la Defensa Nacional, se reorientó el concepto de “Región de Defensa
Integral”, lo que trae como ventajas, entre otras, la unificación de la doctrina militar,
el planeamiento conjunto de las estrategias y tácticas necesarias a ser empleadas en
los casos de contingencias con la finalidad de garantizar la independencia, la
soberanía, la seguridad, la integridad del espacio físico y el desarrollo nacional; la
existencia de un mayor y mejor control sobre un área geográfica determinada; la
simplificación de manera efectiva de la interconexión cívico-militar en las tareas
tendientes a la materialización de las defensas de las Regiones Militares y la
cooperación mutua entre los miembros de la Fuerza Armada Nacional Bolivariana y la
sociedad en la realización de tareas conjuntas.
11
Artículo 47 LOSN. Se entiende por Zonas de Seguridad, los espacios del territorio
nacional, que por su importancia estratégica, características y elementos que los
conforman, están sujetos a regulación especial, en cuanto a las personas, bienes y
actividades que ahí se encuentren, con la finalidad de garantizar la protección de
estas zonas ante peligros o amenazas internas o externas. El Reglamento respectivo
regulará todo lo referente a la materia.
12
Articulo 49 LOSN. A los efectos de esta Ley, se entiende por Zona de Seguridad
Fronteriza, un área delimitada que comprende una franja de seguridad de fronteras,
así como una extensión variable del territorio nacional, adyacente al límite político-
territorial de la República, sujeta a regulación especial que estimule el desarrollo
integral, con la finalidad de resguardar las fronteras y controlar la presencia y
actividades de personas nacionales y extranjeras, quienes desde esos espacios
geográficos, pudieran representar potenciales amenazas que afecten la integridad
territorial y por ende la seguridad de la Nación.
326
áreas13, con el fin de contribuir a reforzar la independencia y
soberanía nacional, a través de políticas de integración y cohesión
sociopolítica de los factores que convergen en estos espacios,
asegurando una efectiva política de desarrollo territorial.
Recientemente la puesta en marcha de las Regiones
Estratégicas de Defensa Integral14 (REDI) contribuyen y refuerzan las
figuras antes mencionadas para darle operatividad y mayor
desplazamiento al Estado en aquellas áreas o zonas que su carácter
estratégico así lo determinen. Es importante resaltar la focalidad de
la activación de estos instrumentos, que junto a la articulación
orgánica con las comunidades organizadas y organizaciones de base
del poder popular15 articulan junto al Consejo Federal de Gobierno16
un cuerpo legítimo que promociona efectivamente la
corresponsabilidad de la sociedad civil en su conjunto para brindar
la seguridad, defensa y desarrollo integral nacional.
Otro ejemplo de incorporación activa de población en su
corresponsabilidad para la defensa es la conformación de la Milicia
Territorial y el Cuerpo de Combatientes17, muestra de ello es la
integración cívico-militar que caracteriza a nuestra nueva doctrina
de defensa. Basado y fundamentado en el artículo trescientos
veintiséis (326) de nuestra carta magna. Este nuevo componente
desarrolla las fortalezas de una población consciente de su papel
histórico emancipador para aportar a la estabilidad del modelo de
Democracia Protagónica Revolucionaria18, la independencia, libertad
y el poder originario del individuo como pilar fundamental del
nuevo modelo socialista venezolano.
También es importante resaltar el nuevo aspecto geopolítico
e internacional de nuestra doctrina militar, donde la integración con
13
Aquellas zonas denominadas en el Plan Simón Bolívar como Zonas de Integración
Fronteriza.
14
Artículo 23 de la Ley de Reforma Parcial del Decreto n° 6.239 con Rango, Valor y
Fuerza de Ley Orgánica de la Fuerza Armada Nacional Bolivariana.
18
Objetivo número III del Proyecto Nacional Simón Bolívar, Primer Plan Socialista.
327
otras naciones y el fortalecimiento de las relaciones con
Latinoamérica y el Caribe son un aval para garantizar la estabilidad y
seguridad colectiva de nuestra región19. La Nueva Geopolítica
Internacional20 en vista de mantener la integralidad política,
económica y territorial traza a Venezuela un papel preponderante
en la búsqueda de una América unida y consolidada a través de
mecanismos de integración basados en términos de intercambio
acorde con nuestras realidades políticas, económicas y sociales.
19
Artículo 153 de la Constitución de la República Bolivariana de Venezuela.
20
Objetivo número VII del Proyecto Nacional Simón Bolívar, Primer Plan Socialista
(Nueva Geopolítica Internacional).
21
Militar prusiano, uno de los más influyentes historiadores y teóricos de la ciencia
militar moderna. Es conocido principalmente por su tratado De la guerra, en el que
aborda durante ocho volúmenes un análisis sobre los conflictos armados, desde su
planteamiento y motivaciones hasta su ejecución, abarcando comentarios sobre
táctica, estrategia e incluso filosofía.
328
para alcanzar el objetivo de la guerra. La primera de estas
actividades es llamada táctica, la segunda se denomina estrategia”.
Este tipo de premisas planteadas como objetivo macro se
encuentran articuladas en los diferentes objetivos del Plan de la
Nación, trataremos de esta forma desglosar a continuación estas
estrategias que guían nuestra política pública en la materialización
de estos preceptos.
22
Objetivo número I del Proyecto Nacional Simón Bolívar, Primer Plan Socialista
(Nueva Ética Socialista).
329
rescate de la sociedad venezolana, articulando junto a los demás
factores que conforman el Estado para asentar los pilares
fundamentales de los valores bolivarianos.
Todo este conjunto de medidas (mencionar las medidas)
significa la refundación de la República para el rescate de la
identidad nacional, se rescata y crea un compendio de valores para
dar un sentido de pertenecía que se ve conglomerado en los
fundamentos ideológicos del Árbol de las Tres Raíces (Bolívar,
Zamora y Rodríguez) y en las doctrinas humanistas de corte social
que se incluyen como constante permanente en la promulgación y
elaboración de políticas públicas del nuevo Estado Bolivariano.
23
Objetivo número II del Proyecto Nacional Simón Bolívar, Primer Plan Socialista
(Suprema Felicidad Social).
330
Estas políticas públicas van a representar uno de los pilares
fundamentales de nuestra seguridad integral destacando su labor en
la aplicación preventiva dentro de los ámbitos: social, político,
cultural y ambiental. Ejemplo de ello, son el éxito de las diferentes
Misiones24 implementadas en todo el territorio nacional, dando
presencia del Estado Bolivariano para el beneficio de la población y
construyendo a través de las mismas una estructura que responde a
las necesidades inmediatas de aquella población excluida por
gobiernos anteriores. Esta compleja estructura orgánica va a su vez
generar un alto despliegue nacional con el impacto político
necesario para cohesionar aquellos sectores excluidos entorno a un
proyecto país humanitario, socialista y bolivariano facilitando de
esta manera la movilización nacional25.
El despliegue de las diferentes misiones sociales crea en este
aspecto la estructura necesaria para la difusión de una política
pública preventiva, acumulando en su extensión una diseminación
articulada de la presencia activa del estado en todo el territorio
nacional, plataforma necesaria para la aplicación y desarrollo de la
Seguridad y Defensa Integral. Estas estructuras lejos de ser una
propuesta coyuntural a la problemática social van a representar un
brazo ejecutor de políticas preventivas, agrupando las inquietudes
sociales entorno a programas constituidos para satisfacer a la
población e incorporarla a la lucha contra las principales amenazas
del Estado Bolivariano.
24
Misión Barrio Adentro-Sector Salud (24.884.000 casos atendidos en 6.531
consultorios populares por 8.200 médicos especialistas en 106.014 operaciones) ,
Misión Educativa Robinson (Venezuela declarada zona libre de analfabetismo)
Productividad Agrícola y Soberanía Alimentaria (Instauración del Plan Nacional de
Semilla, Creación de Centros Agroindustriales y la promulgación de la Ley Orgánica
de Seguridad y Soberanía Alimentaria con los siguientes modelos productivos en
leyes: Ley de la salud Agrícola Integral, Ley de Créditos para el Sector Agrícola, Ley de
Pesca, Ley de Bosques, Ley de Acuicultura y Ley de Silos y Almacenaje).
25
Es el Proceso permanente, dinámico e integral planeado y dirigido por el Estado,
que busca concebir las acciones relativas a la obtención, preparación y asignación de
recursos y medios para hacer frente con éxito a las amenazas que el país encara en
determinadas circunstancias.
331
3.3 INSTAURACIÓN DE UN MODELO LEGÍTIMO QUE FORTALEZCA
LAS INSTITUCIONES DEL ESTADO
En la tercera línea estratégica tenemos la implantación del
modelo de democracia participativa y protagónica26, la entrega del
poder originario al individuo, sustentado en lo moral por el
consenso colectivo bajo los principios permanentes de justicia,
libertad e igualdad que fueron enarbolados por nuestro Libertador
Simón Bolívar. En este sentido, los lineamientos demarcan que “el
poder político será utilizado como palanca para garantizar el
bienestar social y la igualdad real entre todos los miembros de la
sociedad”27, entendiendo a la política participativa y protagónica
como instrumento para agrupar a la sociedad entorno a la exigencia
del resguardo de los derechos consagrados en la Constitución de la
República Bolivariana de Venezuela.
La idea de implantar un nuevo modelo de democracia
protagónica marca el punto de quiebre entre el viejo modelo de
legitimidad del estado burgués con la nueva visión ejercida del
Estado Revolucionario. Esto en la dinámica consensuada de aquellos
sectores excluidos durante la social democracia de los partidos de la
Cuarta República y la falta de legitimidad de los poderes e
instituciones que fueron socavándose al responder a un pacto de
conciliación de elites que margino y excluyo a las grandes mayorías
de los procesos de legitimación estructural del Poder Público
Venezolano. Esta nueva modalidad de participación refrendaría va a
marcan un cambio significante en las relaciones de poder del mismo
Estado, delimitando e implantado en la nación una mayor relevancia
y participación activa a la sociedad organizada28 en los procesos de
elaboración e implementación efectiva de las políticas públicas
emanada de los diferentes Poderes e instancias del Gobierno
Nacional.
26
Objetivo número III del Proyecto Nacional Simón Bolívar, Primer Plan Socialista
(Democracia Protagónica Revolucionaria)
27
Proyecto Nacional Simón Bolívar, Primer Plan Socialista: III-1 Enfoque, Venezuela,
2007, pág. 15, punto b.
28
Artículo 3 del Reglamento de la Ley Orgánica del Consejo Federal de Gobierno.
332
3.4 INCORPORACIÓN DE LAS FUERZA ARMADA NACIONAL
BOLIVARIANA EN EL AFIANZAMIENTO DE LA DEMOCRACIA
PROTAGÓNICA REVOLUCIONARIA
Un avance en lo político y muestra del proceso de inclusión
social de la democracia participativa es la incorporación de la Fuerza
Armada y sus integrantes en el proceso electoral, anteriormente los
miembros de esta institución se les tenia proscrito su participación
en el proceso de elección nacional, situación que llevó en mucho de
los casos a la marginación y exclusión de nuestro componente
armado de la vida social y política de la Nación. Esta situación se
prestó para implantarle al estamento militar de directrices foráneas
que limitaban la participación de nuestros soldados en el desarrollo
de una estrategia nacional que fuera consonó con las realidades
sociales del país, manipulando de esta forma al sector castrense y
circunscribiéndolo únicamente como un cuerpo de coacción política
dándole funciones de aparato represivo al servicio de una elite que
se alejaba cada vez más de la aprobación popular.
Ciertamente a raíz de los cambios impulsados por el
Gobierno Bolivariano el sector militar como ente político no
partidista29 impulsa a través de su participación en el proceso de
votación los principios de corresponsabilidad y unidad cívico-militar
que caracteriza a nuestra doctrina de Seguridad y Defensa Integral,
consagrando de esta manera la inclusión social con el ejercicio al
voto, y a su vez, afianzando el compromiso de resguardo y defensa
del sistema democrático, participativo y protagónico.
29
Artículo 328 de la Constitución de la República Bolivariana de Venezuela.
333
participación una presencia activa en la vida política de la Nación,
según lo señala el artículo ocho (8) de la Ley Orgánica de Seguridad
de la Nación en donde El Estado debe fortalecer, a través de sus
órganos gubernamentales, la institucionalidad democrática sobre la
base de la pluralidad política, la libre participación ciudadana en los
asuntos públicos, por medio de los mecanismos establecidos en la
Constitución y las leyes, apoyándose en los principios de
honestidad, participación, celeridad, eficacia, eficiencia,
transparencia, rendición de cuentas y responsabilidad en el ejercicio
de la función pública y en el principio de corresponsabilidad que
rige la seguridad de la Nación. Estos mecanismos impulsados por la
legislación Bolivariana dan una acertada vía de acceso a la
participación de población en su conjunto para la inclusión de
vastos sectores de las comunidades en la relación gobierno-
población, dando prioridad a las necesidades inmediatas de estos
sectores en específico.
El Consejo Federal de Gobierno como lo señala en su
artículo primero (1) la Ley Orgánica del Consejo Federal de Gobierno
diseña y ejecuta los lineamientos de la planificación y coordinación
de las políticas y acciones necesarias para el adecuado desarrollo
regional. Igualmente atiende al establecimiento del régimen para la
transferencia de las competencias de los entes territoriales, a las
organizaciones detentadoras de la soberanía originaria del Estado,
aplicando de esta manera los principios fundamentales de nuestra
doctrina de Seguridad y Defensa Integral30. En este sentido la
aplicabilidad de las Regiones Estratégicas de Defensa Integral (REDI)
van a impulsar junto a este organismo centralizado y la sociedad
organizada la normativa o políticas públicas necesarias para el
desarrollo de aquellos espacios del territorio nacional, que por su
importancia estratégica, características y elementos que los
conforman, están sujetos a regulación especial, en cuanto a las
personas, bienes y actividades que ahí se encuentren, con la
finalidad de garantizar la protección de estas zonas ante peligros o
30
Artículo 326 de la Constitución de la República Bolivariana de Venezuela.
334
amenazas internas o externas31; entendiendo que la población
organizada junto a sus Fuerzas Armadas es la única garante de la
soberanía y la integridad territorial.
31
Artículo 47 de la Ley Orgánica de Seguridad de la Nación.
335
latifundio y la implementación de medidas que establezcan
parámetros para el aprovechamiento adecuado de aquellas tierras
ociosas o sin propiedad fundamentada.
Al mismo tiempo esta línea de acción beneficiara la
inversión nacional hacia el desarrollo de la ciencia y la adquisición
de tecnología innovadora para incrementar la capacidad de
respuesta ante las necesidades primordiales del país, potenciando
de esta manera las redes de conocimiento y de capacitación a través
de la transferencia tecnológica. Esto implica el diseño de políticas
que apunten el “conocimiento para el desarrollo endógeno y el
poder popular, orientado a la construcción de un modelo
económico que implica facilitar la potenciación de las capacidades
regionales generando conocimientos tecnológicos que permitan
crear redes productivas, microempresas y cooperativas articuladas
con la industria y las redes de comercialización, impulsando la
utilización de recursos productivos propios, la incorporación del
progreso técnico y el esfuerzo innovador, agregando valor a los
proyectos sociales y económicos de las comunidades organizadas y
los consejos comunales, redefiniendo los esquemas de la
institucionalidad en materia de ciencia y tecnología de acuerdo al
Proyecto Nacional Simón Bolívar” (GOBIERNO EN LÍNEA, n. d.).
En este sentido, siguiendo los objetivos trazados por el
Gobierno Nacional hacia la dotación, consolidación, renovación de
nuestra capacidad tecnológica y en respaldo a lo establecido en la
Ley Orgánica de la Fuerza Armada Nacional Bolivariana en su
artículo cuarto (4) numeral nueve (9), nuestro componente armado
deberá “Promover y realizar actividades de investigación y
desarrollo, que contribuyan al progreso científico y tecnológico de
la Nación, dirigidas a coadyuvar a la independencia tecnológica de
la Fuerza Armada Nacional Bolivariana”. Es así como el Ministerio
del Poder Popular para la Defensa ha acordado a través de múltiples
acuerdos de cooperación la adquisición de equipamiento con
transferencia de última generación en diversas áreas tecnológicas,
fortaleciendo e incorporando estas capacidades no solo para el
resguardo militar sino también destinadas a promover la actividad
336
económica diversificada en beneficio de la sociedad a portando de
esta forma al desarrollo en concordancia con la corresponsabilidad
cívico-militar que caracteriza nuestra doctrina de Seguridad y
Defensa Integral.
337
controlar la presencia y actividades de personas nacionales y
extranjeras, quienes desde esos espacios geográficos, pudieran
representar potenciales amenazas que afecten la integridad
territorial y por ende la seguridad de la Nación”, y su despliegue
operacional se materializara por medio de los Comandos de Región
Estratégica de Defensa Integral en donde el articulo veinticinco
(25),numeral once (11) de la Ley Orgánica de la Fuerza Armada
Nacional señala que estas deberán “Coordinar con las instituciones
del sector público o privado, la participación de la Fuerza Armada
Nacional Bolivariana en la planificación del desarrollo de la región;
“así como en su defensa.
5 CONCLUSIONES
La Doctrina Bolivariana de Seguridad y Defensa Integral de
la Nación se encuentra en un estado primario, apenas nace para su
funcionamiento y perfección. Como Doctrina hay que convertirla en
una máxima expresión de vinculación a los efectos políticos,
militares e ideológicos. Nuestro temor es que se haga el aporte
desde distintos ámbitos de acción pero que su aplicabilidad se
vuelva letra muerta. Es ahora más que nunca que el Estado
Bolivariano maximice sus esfuerzos operacionales para poner en
práctica la Doctrina de Defensa Integral Bolivariana a medida que
esta va creciendo epistemológicamente.
Venezuela ha alcanzado progresos sociales enormes y
dispone de gigantescas riquezas petroleras y mineras, aunado esto
las crisis estructurales del capitalismo Mundial y a las invasiones por
parte del Imperialismo norteamericano a países petroleros, existe
condiciones que podrían ser utilizadas por nuestros enemigos
externos e internos que pueden poner en riesgo la existencia misma
de la Revolución Bolivariana. También la República Bolivariana tiene
la responsabilidad de prevenir y resguardar a los países miembros
del ALBA como también colaborar con nuestros mejores aliados
internacionales.
REFERENCIAS
338
CÁTALA, José Agustín. Simón Bolívar. Ideario Político 1891: Discurso
ante El Congreso de Angostura. Universidad Simón Bolívar, 1980.
339
REPÚBLICA BOLIVARIANA DE VENEZUELA 2002. Ley Orgánica de la
Seguridad de la Nación, Gaceta Oficial Nº 37.594, 18 de septiembre
de 2002.
340
A Escola Superior Madre Celeste (ESMAC) e o Instituto Superior
de Educação (IES) foram credenciados por meio da portaria do
MEC Nº 2.928 de 2001, trazendo uma proposta inovadora e
criativa no que se refere ao ensino superior, credenciando-se
como a primeira instituição de ensino superior em Ananindeua.
341
Nascido da união de três projetos de pesquisa existentes na
ESMAC (“Atividade de Inteligência e Segurança Pública”,
“Novos Paradigmas do Direito Civil e Processual Civil” e “Novos
Pesquisadores”), o observatorio Anákê assume o compromisso
com a realização de atividades de pesquisa e de iniciação
científica de discentes dos diversos cursos da ESMAC.
Ainda, o mesmo surge como parceiro de outros observatórios
e grupos de pesquisa, com o objetivo de disseminar e
democratizar a ciencia.
Coordenadores
Prof. Wando Dias Miranda
Prof. Roberto Magno Reis Netto
Prof. Itamar Rogério Pereira Gaudêncio
342
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efetivamente as necessidades do seu público alvo, com
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343