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Secessão, Estatalidade e Novos Estados Africanos PDF
Secessão, Estatalidade e Novos Estados Africanos PDF
Resumo
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A divulgação do resultado oficial do referendo, no começo de 2011, que decidiu
pela separação da região sul-sudanesa, conforme previstos nos acordos de paz de
2005 entre o Movimento/Exército de Libertação Popular do Sul (SPLA/M, em inglês) e o
governo central do Sudão, trouxe mais uma vez a necessidade da discussão sobre os
Estados na África. Esse recente acontecimento provocou indagações sobre a natureza
dos Estados, do sistema internacional africano e das abordagens teóricas para a
explicação/compreensão do continente. Neste trabalho, pretende-se debruçar sobre o
fenômeno da secessão que, desde 1991, deu origem a três novos Estados no
continente.
Nestes três casos, a secessão foi originada por grupos insurgentes capazes de
atender requisitos mínimos de estatalidade (Clapham, 1998), que reivindicavam a
representação da população e território em questão. Nos dois últimos casos, a
secessão foi concluída através de referendo com aprovação quase que unânime e ao
passo que a Eritréia obteve pronto reconhecimento da comunidade internacional, não
há o que leve a pensar que o Sudão do Sul não tenha o mesmo destino a partir de 9 de
julho de 2011.
Com base nesses Grandes Estados será feita a análise das condicionantes que
permitiram o surgimento de novos Estados africanos que, neste trabalho, são definidos
como todo Estado africanos que obteve sua independência de facto e de jure a partir de
outro Estado africano no pós-Guerra Fria. Para tanto, será feita uma análise geral das
semelhanças dos Grandes Estados (África do Sul, Angola, Etiópia, Nigéria, República
Democrática do Congo e Sudão) com o intuito de verificar as razões que levaram
algumas dessas FLNs a conseguirem seu objetivo secessionista e outras não.
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Os Grandes Estados Africanos
Chamar a estes Estados de “grandes” não é exagero. Cinco dos sete maiores
Estados em extensão territorial na África estão neste grupo (dos seis GEAs, apenas
Angola não figura entre os sete maiores Estados; enquanto Quênia e Tanzânia estão
presentes nesta lista). Além disso, esses sete Estados aglomeravam, em 2006, 57% da
população da África. Desta forma, é possível destacar a sua importância para uma
análise de relações internacionais africanas.
Nigeria alone has a population equivalent to the sum of the thirty one smallest
countries. Each of Africa’s region can be said to have at least one big country that
is the centre of gravity for much political and economic activity. Thus, South Africa
dominates southern Africa, the DRC dwarfs the rest of central Africa, Nigeria is
recognized as the centre of West Africa, and Sudan and Ethiopia are the major
countries in the Horne of Africa (Herbst et al. 2006, p.07).
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(2004, p.01), “forty years after independence, most are still struggling to find a political
system capable of holding together their diverse populations without constant strife”.
Essas lutas que ainda ocorrem estão ligadas, em boa medida, à concentração da
riqueza que acaba privilegiando uma determinada região, seja por vontade dos
governantes, seja pelas dificuldades logísticas de difundir o poder para áreas mais
distantes da capital. Esta forma de difusão, que será vista mais para frente, é
organizada de forma decrescente a partir da capital rumo à hinterlândia do Estado. No
caso dos GEAs, todos possuem grandes hinterlândias de difícil governo e policiamento
(Herbst et al. 2006). Além das dificuldades logísticas, Herbst (2000) afirma que dado à
falta de ameaça externa e à alta concentração populacional na capital e nos entornos,
os Estados africanos – por meio de seus governos – não julgam ser do interesse
nacional difundir poder e marcar presença nessas remotas áreas, visto o baixo retorno
político e de taxação. Além de grandes hinterlândias, também é característica dos
GEAs a existência de grande número de agrupamentos étnicos, dado o tamanho de sua
população e a evidente dependência da exportação de minérios (com a exceção da
Etiópia, que depende das exportações de café primariamente.
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A presença desses vários agrupamentos étnicos e das grandes hinterlândias se
justifica – como já dito – pelo tamanho do território desses Estados e isso não deveria
ser um problema de acordo com as noções ocidentais de estatalidade, que tendem a
influenciar a análise sobre a viabilidade política dos Estados na África de forma a
afirmar que quanto maior o Estado, maior o potencial de viabilidade econômica.
Contudo, os GEAs estão demonstrando que tal afirmação é contrafactual, uma vez que
o indivíduo médio tem vivido de modo muito pior do que mostram as estatísticas per
capita continentais, dado que os países onde a maioria da população africana vive em
Estados que apresentam desempenhos muito inferiores à média africana. Se a
literatura sobre a viabilidade do Estado assume que “maior é melhor”, na África o
resultado tem sido exatamente o oposto: são os GEAs os mais disfuncionais.
The fundamental problem affecting Africa is that, overall, the countries that have
done especially well have few people and the countries that have performed
worse than average are extremely large and populous” (Herbst et al. 2006, p.03).
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Desta forma, aos GEAs e aos demais Estados africanos, acaba sendo
diretamente associada a nomenclatura de “Estados falidos”iii, porém de maneira pouco
crítica. Como evidencia Dunn (2001), boa parte da literatura atribui um adjetivo para o
Estado africano (falido, fraco, quase, inventado e imposto, parasitário etc), o que
prejudica um melhor entendimento das dinâmicas existentes no continente, incluindo os
movimentos de secessão e até mesmo graus de estatalidade. Por isso, se faz
necessária a discussão sobre a natureza do Estado africano.
Uma premissa (ainda) pouco debatida sobre os Estados africanos é sua natureza
artificial. De acordo com ela, os atuais Estados africanos são um legado da época
colonial e seriam a primeira experiência de vida dos povos africanos sob o governo de
um Estado. Além disso, a imposição de fronteiras artificiais teria separado os povos que
deviam ficar juntos e juntado aqueles que deviam ter permanecido separado, o que
seria fonte de conflitos. As fronteiras teriam se tornado, portanto, um grande problema
para a África. Além disso, elas acabam recebendo a atenção de boa parte da discussão
sobre a natureza dos Estados africanos uma vez que “a África é o continente mais
dividido” (Döpkce 1999, 77). Apesar desta realidade do continente africano, é
necessário levar em consideração que essa premissa é problemática.
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que deve ser provedor de bem-estar social; 2) a “idéia de Estado”iv, ou seja, pela
construção do Estado no imaginário das populações; e 3) pelo reconhecimento
internacional como membro legalmente igual do sistema de Estados (Clapham 1996).
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Essas duas visões não são, como já foi dito, consensuais. Enquanto autores pós-
colonialistas sentir-se-iam pouco confortáveis com a noção de legitimidade explicitada
por Engelbert, a noção apresentada por Chabal e Daloz pode ser acusada de
conformista e comprometida em legitimar um status quo antidemocrático e injusto nos
Estados africanos. Ambas as visões têm certa relação com a questão da secessão: a
relação entre legitimidade do Estado, secessão (ocorrência e fomento) e possível
conflito pós-partição já foi trabalhada por Carvalho (2008) enquanto a visão de Chabal e
Daloz foi incorporada, ainda que indiretamente e sem ser referido, na discussão de
Clapham, Herbst e Mills (2006), sobre os grandes Estados africanos. De qualquer
modo, essa segunda visão parece oferecer um retrato bastante fiel à realidade política
dos Estados africanos e se mostra bastante útil para a compreensão de como surgiram
as FLNs e os múltiplos centros de poder.
States had to control their political cores but often had highly differentiated control
over outlying áreas. Indeed, there was often no immediate imperative to improve
tax collection in the hinterlands or to do the necessary work so that those outside
the capital could be bound to the state through symbolic politics (Herbst 2000,
134).
Esse fenômeno que liga o surgimento e a força das FLNs aos múltiplos centros
de poder dentro dos Estados é inerente aos GEAs. Neles, a incompatibilidade do
território do Estado com os agrupamentos e organizações políticas anteriores à
colonização é mais acentuada, dada a escassez de recursos e os baixos incentivos de
difusão de poder sobre a distância. Isso também é válido para a Etiópia, um dos GEAs
e único país africano que não sucumbiu à colonização. Carvalho (2010) procura
demonstrar que o Estado etíope atual conta com fronteiras artificiais criadas durante a
modernização do Estado e expansão territorial levada a cabo por Menelik II como forma
defesa.
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isso, será útil o debate sobre a secessão nos Estados africanos, não como forma de
encorajá-la, mas sim a fim melhor entender as forças que levam a ela e suas
conseqüências.
A questão da secessão
A questão da secessão (ou partição) na África tem sido debatida – ainda que
com grandes interregnos – desde 1972 (aproximadamente) quando Saadia Touval e
Thomas Hachey começaram os seus estudos sobre as fronteiras africanas. Enquanto o
primeiro, por meio de seu livro The boundary politics of independent Africa, preocupou-
se em explicar a manutenção das fronteiras africanas as quais considerava artificiais, o
segundo, por meio de seu livro The problem of partition: peril to world peace, já
posicionava-se claramente afirmando que a secessão representava uma ameaça à paz
e segurança internacionais. Durante a década de 1990, no imediato pós-Guerra Fria, o
debate concentrou-se na discussão sobre a África e os Bálcãs, sempre trazendo a
questão sobre quais seriam as conseqüências de uma secessão.
Conclusão
Todos os seis GEAs possuem FLNs com objetivos secessionistas, mas apenas
em dois casos houve o sucesso. Tanto na Etiópia quanto no Sudão, os problemas que
levaram à secessão estavam diretamente relacionados com a construção do Estado
pós-colonial, que não foi capaz de alterar o padrão de difusão de poder sobre a
distância. Nos outros quatro Estados, supõe-se que as FLNs talvez arrastem com os
governos centrais dos países onde atuam guerras civis por décadas (ou apenas
reclames retóricos, dada a incapacidade/opção política de tomar armas) visando um
objetivo menor que seria a autonomia, mesmo que sem aprovação constitucional uma
vez que a distância a outros centros de poder pode ser tão grande que o isolamento
pode até mesmo impossibilitar a visibilidade midiática do movimento.
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É possível que FLNs nesses quatro países tenham sucesso e consigam a
secessão no futuro, mas – preliminarmente – parece altamente improvável. Eritréia e
Sudão do Sul tiveram êxito graças à relativa proximidade dos centros de poder de seus
respectivos países e graças às relações internacionais guardadas com países alhures.
Nesses dois casos – é preciso reforçar – as FLNs trataram de libertar centros de poder
que já estavam em questão e já tinham sua relevância desde a criação dos Estados
pós-coloniais etíope e sudanês.
Referências
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15
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i
Definida por Herbst et al. (2006) como “a falta de provisão de bem estar e de oportunidades para a população”.
ii
De acordo com a idéia apresentada em Herbst (2000).
iii
Não à toa. Segundo o ranking de Estados falidos do ano de 2010 da revista Foreign Policy, os GEAs estão, em sua
maioria, estão em estado de alerta. Desses seis, apenas a África do Sul não está entre os 20 Estados mais falidos do
mundo.
http://www.foreignpolicy.com/articles/2010/06/21/2010_failed_states_index_interactive_map_and_rankings
(último acesso em 20 de julho de 2011).
iv
Baseado em Buzan, B. Peoples, States and Fear: the national security problem in International relations. 1989
v
Somalilândia e Saara Ocidental são dois que merecem destaque. Enquanto a Somalilândia não tem nenhum
reconhecimento internacional de sua independência e soberania, o Saara Ocidental é reconhecido pelos demais
Estados africanos, com exceção de Marrocos.
vi
“A reorganização territorial concluída pelo imperador Menelik, já rei dos Scioa, que transferiu mais para o sul a
capital, fundando Adis Abeba, e que absorveu terras habitadas por populações não-abissínias como a Harar e a
Ogaden, fez dizer que a Etiópia participou do scramble, compartilhando suas intenções. Porém, na perspectiva da
Etiópia a expansão foi um modo para se opor ao colonialismo europeu”. (tradução própria)
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vii
Destaca-se os Estados de facto africanos dado o objetivo deste trabalho. O autor acredita, no entanto, que a
mesma discussão pode ser feita para Estados de facto em outras regiões do mundo.
viii
Para Wendt (1999, 208), isso é possível uma vez que “the concept of external sovereignty is relatively straight
foward, denoting merely the absence of any external authority higher than the state, like other states, international
law, or a supranational Church – in short, “constitutional independence””.
ix
Mesmo sendo tal definição posterior aos trabalhos citados, as idéias que eles carregam não parecem ir-lhe de
encontro ao passo que não se encontrou questionamentos sobre ela nos anos que lhe sucederam.
x
Podemos destacar como exemplos nos GEA, a Frente de Libertação do Enclave de Cabinda (Angola) e a Frente de
Libertação Nacional de Ogaden (Etiópia). Além dos GEA, a Somalilândia talvez seja o melhor exemplo de Estado
com soberania externa sem reconhecimento internacional.
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