Você está na página 1de 18

SECESSÃO, ESTATALIDADE E NOVOS ESTADOS AFRICANOS

Daniel Duarte Flora Carvalho

Centro Universitário Vila Velha - UVV

Resumo

Com o resultado do plebiscito sobre a independência do Sudão do Sul favorável


à secessão, uma série de questões surge sobre as relações exteriores do novo Estado.
No entanto, re-surge também a necessidade de discutir a estatalidade na África e o
surgimento de movimentos de libertação nacional capazes de derrubar governos e
decretar unilateralmente a independência de região que pretendia libertar. No último
vintênio, Eritréia e Sudão do Sul tornaram-se independentes em um processo guiado
por frentes de libertação nacional que reivindicavam a representação popular e do
território em questão. O presente artigo visa a refletir, ainda que preliminarmente, sobre
o êxito das FLNs e as condicionantes que permitiram ou impediram a secessão, em
especial nos chamados Grandes Estados Africanos.

Palavras-chave: secessão, Estatalidade, soberania, frente de libertação nacional.

1
A divulgação do resultado oficial do referendo, no começo de 2011, que decidiu
pela separação da região sul-sudanesa, conforme previstos nos acordos de paz de
2005 entre o Movimento/Exército de Libertação Popular do Sul (SPLA/M, em inglês) e o
governo central do Sudão, trouxe mais uma vez a necessidade da discussão sobre os
Estados na África. Esse recente acontecimento provocou indagações sobre a natureza
dos Estados, do sistema internacional africano e das abordagens teóricas para a
explicação/compreensão do continente. Neste trabalho, pretende-se debruçar sobre o
fenômeno da secessão que, desde 1991, deu origem a três novos Estados no
continente.

Discutir a estatalidade na África, portanto, já se mostrava essencial para uma


melhor compreensão de suas relações internacionais há muito tempo. Engel e Olsen
(2006) já acusavam a existência de dois sistemas internacionais na África: um
westfaliano e outro não-westfaliano, no qual o dilema de segurança era calculado pelo
regime objetivando a sobrevivência não só de seu Estado, mas também a sua própria
permanência no poder. Além disso, o pós-Guerra Fria foi responsável por um processo
de “balcanização” da África (Vizentini 2007) que culminou, em boa medida, no
surgimento de uma série de movimentos armados que visavam, via de regra, a tomar o
poder do Estado, adquirir maior autonomia para a região que dizia libertar ou à
secessão dessa região, o que promoveria a partição do Estado que aqui é entendida
como

an internally motivated (i.e. secessionist) division of a country’s homeland (i.e.


non-colonial) territory that results in the creation of at least one new independent
state (e.g. Eritrea) and that leaves behind the now territorially smaller rump state
(e.g. Ethiopia) (Tir 2005, 545).

Alguns desses movimentos (doravante Frentes de Libertação Nacional, FLN)


obtiveram êxitos na consecução de seus objetivos e foi no Chifre da África onde esses
sucessos se concentraram: a Somalilândia, em 1991, cuja independência não é
reconhecida internacionalmente; a Eritréia, também em 1991, e que dois anos mais
tarde obteve o reconhecimento internacional de sua independência graças a um
2
referendo promovido pelas Frente Popular de Libertação da Eritréia (FPLE) e Frente
Popular de Libertação do Tigray (FPLT, que recém haviam derrocado o regime de
Mengistu Haile-Mariam) e com o patrocínio da ONU; e o Sudão do Sul que, após
referendo (também patrocinado pela ONU) previsto nos acordos de paz entre SPLA/M e
Cartum, está em fase final do processo de independência (previsto para ser concluído
no dia 09 de julho de 2011).

Nestes três casos, a secessão foi originada por grupos insurgentes capazes de
atender requisitos mínimos de estatalidade (Clapham, 1998), que reivindicavam a
representação da população e território em questão. Nos dois últimos casos, a
secessão foi concluída através de referendo com aprovação quase que unânime e ao
passo que a Eritréia obteve pronto reconhecimento da comunidade internacional, não
há o que leve a pensar que o Sudão do Sul não tenha o mesmo destino a partir de 9 de
julho de 2011.

Apesar de as FLNs serem onipresentes no continente, seu sucesso ficou


confinado a uma região específica cujos mecanismos multilaterais apresentam as
mesmas limitações para lidar com a questão que a União Africana e outros órgãos
multilaterais africanos (Okafor 2000). Destarte, é necessário refletir sobre o êxito dessas
FLNs e as condicionantes que lhe permitiram ou impediram no continente africano, em
especial nos chamados Grandes Estados Africanos, os quais já apresentaram ou
apresentam movimentos de secessão e são considerados como ameaças aos vizinhos
dada sua fragilidade (Clapham et al. 2006)

Com base nesses Grandes Estados será feita a análise das condicionantes que
permitiram o surgimento de novos Estados africanos que, neste trabalho, são definidos
como todo Estado africanos que obteve sua independência de facto e de jure a partir de
outro Estado africano no pós-Guerra Fria. Para tanto, será feita uma análise geral das
semelhanças dos Grandes Estados (África do Sul, Angola, Etiópia, Nigéria, República
Democrática do Congo e Sudão) com o intuito de verificar as razões que levaram
algumas dessas FLNs a conseguirem seu objetivo secessionista e outras não.

3
Os Grandes Estados Africanos

Os chamados Grandes Estados Africanos (doravante GEAs) têm importância


singular no desenvolvimento das relações internacionais das regiões onde estão
alocados. Dado o seu tamanho, servem eles como grandes centros de gravitação
política, o que lhes confere a posição central no processo de causa e conseqüência das
relações entre os atores regionais (sejam eles Estados ou não). A gravitação por eles
exercida, contudo, não significa obrigatoriamente que eles sejam potências regionais ou
líderes cujas ações sejam legítimas perante os demais atores regionais. Na verdade, o
que se demonstra nesses GEAs é que suas grandes proporções territoriais e
demográficas combinadas, entre outros fatores, com escassez de recursos provocou
sérias desfuncionalidadesi nos serviços do governo (Herbst et al. 2006).

Chamar a estes Estados de “grandes” não é exagero. Cinco dos sete maiores
Estados em extensão territorial na África estão neste grupo (dos seis GEAs, apenas
Angola não figura entre os sete maiores Estados; enquanto Quênia e Tanzânia estão
presentes nesta lista). Além disso, esses sete Estados aglomeravam, em 2006, 57% da
população da África. Desta forma, é possível destacar a sua importância para uma
análise de relações internacionais africanas.

Nigeria alone has a population equivalent to the sum of the thirty one smallest
countries. Each of Africa’s region can be said to have at least one big country that
is the centre of gravity for much political and economic activity. Thus, South Africa
dominates southern Africa, the DRC dwarfs the rest of central Africa, Nigeria is
recognized as the centre of West Africa, and Sudan and Ethiopia are the major
countries in the Horne of Africa (Herbst et al. 2006, p.07).

O que torna intrigante essa combinação desproporcional de território e população


nos GEAs são as conseqüências que lhes surge no processo de construção do Estado,
que está diretamente ligado ao fenômeno da secessão. Estes Estados têm
desempenho econômico pífio, apesar de serem ricos em recursos naturais e terem
mercados internos que deveriam ser capazes de garantir o crescimento econômico
(Ottaway et al. 2004). Além disso, ainda têm como característica regimes unipartidários
ou militares, responsivos à estrutura colonial herdada. Como diz Ottaway, Herbst e Mills

4
(2004, p.01), “forty years after independence, most are still struggling to find a political
system capable of holding together their diverse populations without constant strife”.

Essas lutas que ainda ocorrem estão ligadas, em boa medida, à concentração da
riqueza que acaba privilegiando uma determinada região, seja por vontade dos
governantes, seja pelas dificuldades logísticas de difundir o poder para áreas mais
distantes da capital. Esta forma de difusão, que será vista mais para frente, é
organizada de forma decrescente a partir da capital rumo à hinterlândia do Estado. No
caso dos GEAs, todos possuem grandes hinterlândias de difícil governo e policiamento
(Herbst et al. 2006). Além das dificuldades logísticas, Herbst (2000) afirma que dado à
falta de ameaça externa e à alta concentração populacional na capital e nos entornos,
os Estados africanos – por meio de seus governos – não julgam ser do interesse
nacional difundir poder e marcar presença nessas remotas áreas, visto o baixo retorno
político e de taxação. Além de grandes hinterlândias, também é característica dos
GEAs a existência de grande número de agrupamentos étnicos, dado o tamanho de sua
população e a evidente dependência da exportação de minérios (com a exceção da
Etiópia, que depende das exportações de café primariamente.

Sobre os agrupamentos étnicos, é importante ressaltar a existência de uma


problemática que recomendaria a não centralização do conceito etnia na analisa das
relações internacionais. Apesar de a hipótese afro-pessimista de que etnias e tribos
inimigas foram unidas em um mesmo território durante a colonização ser bastante
convidativa para compreender parte dos processos de secessão no continente, é
necessário ter em mente que etnias são construídas politicamente, sem qualquer
critério objetivo e não manipulável para defini-las (Fearon 2004) e que as identidades
são sempre maleáveis e multifacetadas (Chabal et al. 2000). De qualquer modo, muitas
das FLNs presentes nos GEAs reivindicam uma identidade coletiva subnacional cujo
povo elas pretendem libertar. Em alguns casos, elas estão localizadas longe do
principal centro político do país e acabam sendo marginalizadas dos benefícios do
Estado: este é o caso da FLT, na Etiópia, e da SPLA/M, no Sudão (Woodward 2003).

5
A presença desses vários agrupamentos étnicos e das grandes hinterlândias se
justifica – como já dito – pelo tamanho do território desses Estados e isso não deveria
ser um problema de acordo com as noções ocidentais de estatalidade, que tendem a
influenciar a análise sobre a viabilidade política dos Estados na África de forma a
afirmar que quanto maior o Estado, maior o potencial de viabilidade econômica.
Contudo, os GEAs estão demonstrando que tal afirmação é contrafactual, uma vez que
o indivíduo médio tem vivido de modo muito pior do que mostram as estatísticas per
capita continentais, dado que os países onde a maioria da população africana vive em
Estados que apresentam desempenhos muito inferiores à média africana. Se a
literatura sobre a viabilidade do Estado assume que “maior é melhor”, na África o
resultado tem sido exatamente o oposto: são os GEAs os mais disfuncionais.

The fundamental problem affecting Africa is that, overall, the countries that have
done especially well have few people and the countries that have performed
worse than average are extremely large and populous” (Herbst et al. 2006, p.03).

O desempenho desses GEAs tem importantes reflexos nas dinâmicas políticas,


sociais e econômicas das regiões nas quais são centros de gravitação. Dessa forma,
ocorre um processo de spill over de seus desempenhos, bons ou ruins, assim como de
suas desfuncionalidades: e o crescimento econômico e a estabilização política desses
Estados podem incentivar os mesmos efeitos nos países vizinhos, a estagnação e a
instabilidade também podem promover efeitos homólogos. Portanto, os GEAs podem
ser problemas para suas regiões, assim como grandes hinterlândias são problemas
para a governança nesses Estados, já que apresentam retornos decrescentes de
escala que geram três conseqüências: 1- a existência de múltiplos centros de poder nos
Estados que podem beneficiar o surgimento de FLNs as quais responderiam às
preocupações decrescentes de difusão do poder sobre a distância por parte do governo
centralii; 2- dificuldades para as insurgências levarem a cabo seus planos e atingirem
seus objetivos dado que a distância atrapalha a angariação de recursos e dificulta o
combate contra as tropas do governo central, tornando longas as guerras civis; e 3- a
dificuldade de governar causada por problemas logísticos (Herbst et al. 2006).

6
Desta forma, aos GEAs e aos demais Estados africanos, acaba sendo
diretamente associada a nomenclatura de “Estados falidos”iii, porém de maneira pouco
crítica. Como evidencia Dunn (2001), boa parte da literatura atribui um adjetivo para o
Estado africano (falido, fraco, quase, inventado e imposto, parasitário etc), o que
prejudica um melhor entendimento das dinâmicas existentes no continente, incluindo os
movimentos de secessão e até mesmo graus de estatalidade. Por isso, se faz
necessária a discussão sobre a natureza do Estado africano.

Graus de estatalidade e o estado essencial: a natureza dos “estados” africanos

Uma premissa (ainda) pouco debatida sobre os Estados africanos é sua natureza
artificial. De acordo com ela, os atuais Estados africanos são um legado da época
colonial e seriam a primeira experiência de vida dos povos africanos sob o governo de
um Estado. Além disso, a imposição de fronteiras artificiais teria separado os povos que
deviam ficar juntos e juntado aqueles que deviam ter permanecido separado, o que
seria fonte de conflitos. As fronteiras teriam se tornado, portanto, um grande problema
para a África. Além disso, elas acabam recebendo a atenção de boa parte da discussão
sobre a natureza dos Estados africanos uma vez que “a África é o continente mais
dividido” (Döpkce 1999, 77). Apesar desta realidade do continente africano, é
necessário levar em consideração que essa premissa é problemática.

No debate sobre os conflitos políticos na África contemporânea, comumente


destaca-se o papel das fronteiras e suas origens coloniais como uma das
principais vertentes. Entretanto, este discurso, dominado por cientistas políticos,
recorre freqüentemente a estereótipos e mitos e se recusa a reconhecer a
complexidade do assunto, especialmente na sua dimensão histórica (Döpcke
1999, 78).

Esta visão, combatida por Döpcke e outros africanistas, é responsável pela


conclusão de que os Estados africanos são ilegítimos – o que é discutível. Essa
atribuição de ilegitimidade aos Estados está diretamente ligada aos três métodos de
análise que se costuma utilizar para a compreensão do Estado africano. Isto é, se o
analisa levando em consideração 1) o controle físico do território por parte do governo

7
que deve ser provedor de bem-estar social; 2) a “idéia de Estado”iv, ou seja, pela
construção do Estado no imaginário das populações; e 3) pelo reconhecimento
internacional como membro legalmente igual do sistema de Estados (Clapham 1996).

Nenhum Estado africano atende completamente a nenhum desses critérios. A


grande maioria tem o reconhecimento internacionalv, mas não consegue atender a
todos esses requisitos, gerando a quase-estatalidade e o sistema de soberania negativa
de Jackson (1990) que, segundo Clapham (1998, 146), “always rested on the
contradiction that states could retain their independence of the international system
while remaining dependent on the international system”. A partir da soberania negativa,
então, os Estados africanos seriam ilegítimos e isso seria a causa da ascensão das
FLNs.

Essa afirmação não está errada, porém está incompleta. A (i)legitimidade do


Estado africano é discutível. Para compreender isso, primeiro é preciso estabelecer
qual Estado africano é (i)legítimo: os Estados que detêm reconhecimento internacional
ou alguma outra concepção de Estado? Se tomarmos o primeiro caso, esse debate
pode ser visto por meio das condições que tornam um Estado africano legítimo ou não.
Para Engelbert (2000), há três condições que auferem legitimidade ao Estado africano,
estando elas diretamente relacionadas ao período da colonização: 1) ter mantido sua
independência na era moderna, sem ter sido colonizado (ex: Etiópia); 2) ter
permanecido com instituições políticas semelhantes às anteriores à colonização (ex:
Botsuana, Burundi, Lesoto, Ruanda e Suazilândia); e 3) ter sido iniciado em áreas sem
prévio assentamento humano (Cabo Verde, Maurício, São Tomé e Príncipe e
Seychelles). Além dessas condições ressaltadas por Engelbert, Chabal e Daloz (2001)
ressaltam o processo de acomodação das relações entre instituições herdadas e povos
africanos (o que eles chamam de “africanização” dos sistemas políticos herdados).
Esse processo de “compartilhar o botim” e “domesticar a desordem” seria responsável
por auferir legitimidade à instituição “Estado”.

8
Essas duas visões não são, como já foi dito, consensuais. Enquanto autores pós-
colonialistas sentir-se-iam pouco confortáveis com a noção de legitimidade explicitada
por Engelbert, a noção apresentada por Chabal e Daloz pode ser acusada de
conformista e comprometida em legitimar um status quo antidemocrático e injusto nos
Estados africanos. Ambas as visões têm certa relação com a questão da secessão: a
relação entre legitimidade do Estado, secessão (ocorrência e fomento) e possível
conflito pós-partição já foi trabalhada por Carvalho (2008) enquanto a visão de Chabal e
Daloz foi incorporada, ainda que indiretamente e sem ser referido, na discussão de
Clapham, Herbst e Mills (2006), sobre os grandes Estados africanos. De qualquer
modo, essa segunda visão parece oferecer um retrato bastante fiel à realidade política
dos Estados africanos e se mostra bastante útil para a compreensão de como surgiram
as FLNs e os múltiplos centros de poder.

O advento do colonialismo na África não alterou o padrão de difusão de poder e


a existência de múltiplos centros de poder nos Estados africanos. Se antes da
colonização, “African international relations reflected the complexity of shared
sovereignty and multiple state forms” (Herbst 2000, 54), após a colonização e os
processos de independência essa estrutura se manteve graças à força das fronteiras
impostas pelos poderes coloniais. Com isso, “a divisão arbitrária do continente pelas
potências européias [...] complicou imensamente as tarefas de construção de nação e
de Estado pelos governos africanos” (Ravenhill 1988, 82) uma vez que antes da
colonização o tamanho dos Estados africanos variava de acordo com as possibilidades
de comércio em função dos custos de difusão de poder, enquanto no período pós-
colonial o tamanho já era dado e imutável, fazendo com que pouco interessasse a
difusão do poder para a hinterlândia.

States had to control their political cores but often had highly differentiated control
over outlying áreas. Indeed, there was often no immediate imperative to improve
tax collection in the hinterlands or to do the necessary work so that those outside
the capital could be bound to the state through symbolic politics (Herbst 2000,
134).

Essa desatenção do centro político maior do Estado para as hinterlândias,


denunciada por Herbst (2000), aparenta ser uma importante razão para o surgimento
9
das FLNs. Uma vez que o aparato estatal se coloca como uma das principais fontes de
renda nos Estados africanos, a desatenção em alguma região favoreceu o surgimento
de uma estrutura governamental privatizada e que goza de apoio popular. Um bom
exemplo disso é a FPLT, conforme explicado por Berhe (2004), um dos fundadores do
movimento.

Esse fenômeno que liga o surgimento e a força das FLNs aos múltiplos centros
de poder dentro dos Estados é inerente aos GEAs. Neles, a incompatibilidade do
território do Estado com os agrupamentos e organizações políticas anteriores à
colonização é mais acentuada, dada a escassez de recursos e os baixos incentivos de
difusão de poder sobre a distância. Isso também é válido para a Etiópia, um dos GEAs
e único país africano que não sucumbiu à colonização. Carvalho (2010) procura
demonstrar que o Estado etíope atual conta com fronteiras artificiais criadas durante a
modernização do Estado e expansão territorial levada a cabo por Menelik II como forma
defesa.

Il riassetto territoriale portato a termine dall’imperatore Menelik, già ré dello Scioa,


che spostò più a sud la capitale, fondando Addis Abeba, e che assorbì terre
abitate da popolazioni non abissine come l’Harar e l’Ogaden, ha fatto dire che
l’Etiopia ha partecipato allo Scramble condividendone gli intenti. Ma nella
prospettiva dell’Etiopia quell’espansione fu un modo per opporsi al colonialismo
europeo (Novati et al. 2005, 241)vi.

Dessa forma, sendo a artificialidade das fronteiras e a existência de FLNs


características comuns aos Estados africanos – em especial, os GEAs – é importante
pensar no que foi dito sobre o papel das FLNs nos centros de poder mais afastados do
principal, aquele que é controlado pelo governo do Estado. Em muitos casos –
principalmente nos que levaram à secessão de jure e/ou de facto – esses movimentos
eram fortemente armados e sua estrutura representava uma organização
governamental (ainda que nada democrática) para aquela região. São eles que ditam
as regras nesses locais, determinando lei, cobrando impostos e até mesmo mantendo
serviços sociais e fazendo o serviço de policiamento.

The functions of international relations for African insurgents were, in many


respects, little different from those for recognised states. Insurgent leaders, like
heads of state, used international contacts in order to strengthen their own control
10
over their domestic political structure, gain access to external resources, and so
far as possible ensure their own survival (Clapham 1996, 223).

Nota-se assim que os grupos insurgentes são atores que desempenham o


mesmo papel que os Estados oficialmente reconhecidos, chegando até mesmo a
manter relações e alianças com eles. Por isso, Lemke (2003, 138) os chamou de
“Estados de facto”, que são “political entities controlling territory and possessing military
capabilities”. Importante ressaltar, portanto, que essa definição é composta pelos
critérios básicos de Estatalidade destacados por Clapham (1998) e guarda uma
importante proximidade com o chamado “Estado essencial” (ou “Estado como tal”) de
Wendt (1999, 213), que é definido como “an organizational actor embedded in na
institutional legal order that constitutes it with sovereignty and a monopoly on legitimate
use of organized violence over a society in a territory”.

Sobre essa visão de Wendt, é discutível a existência de uma ordem legal


instituicional nos Estados de facto africanosvii. No entanto, eles detêm o controle sobre
os meios de destruição que, segundo Wendt (1999, 204) “is the ultimate and distinctive
basis of state Power, and only this is essential to stateness”. Nos demais critérios, o
Estado de facto de Lemke e o Estado essencial de Wendt coincidem: ambos são o
locus supremo para a autoridade política de uma sociedade, gozando, portanto, dessa
soberania interna e de soberania externa, uma vez que “a state can have external
sovereignty even if it is not recognized by other states”viii (Wendt, 1999, 208 – destaque
no original); e ambos detêm território com fronteiras confusa, levando sempre em
consideração que “states are effects of boundary construction as much as they are its
causes” e que “the construction of state boundaries is never a finished affair” (Wendt,
1999, 213).

Assim, considera-se que, na África, há Estados dentro de Estados. Isto é, há


Estados de facto dentro de Estados de jure. Esses primeiros – organizados e
governados pelas FLNs – gozam das mesmas características que os últimos,
carecendo apenas de reconhecimento internacional. Isso faz com que possam ser
considerados como “states-in-waiting”, tal como Reid (2004) qualificou a FPLT. Com

11
isso, será útil o debate sobre a secessão nos Estados africanos, não como forma de
encorajá-la, mas sim a fim melhor entender as forças que levam a ela e suas
conseqüências.

A questão da secessão

A questão da secessão (ou partição) na África tem sido debatida – ainda que
com grandes interregnos – desde 1972 (aproximadamente) quando Saadia Touval e
Thomas Hachey começaram os seus estudos sobre as fronteiras africanas. Enquanto o
primeiro, por meio de seu livro The boundary politics of independent Africa, preocupou-
se em explicar a manutenção das fronteiras africanas as quais considerava artificiais, o
segundo, por meio de seu livro The problem of partition: peril to world peace, já
posicionava-se claramente afirmando que a secessão representava uma ameaça à paz
e segurança internacionais. Durante a década de 1990, no imediato pós-Guerra Fria, o
debate concentrou-se na discussão sobre a África e os Bálcãs, sempre trazendo a
questão sobre quais seriam as conseqüências de uma secessão.

Vários autores se preocuparam demonstrar que a partição seria uma solução


viável para por termo a guerras civis e solucionar crises étnicas geradas por divisões
arbitrárias de territórios sem conhecimento ou respeito à realidade demográfica.
Kaufman (1996 e 1998), Tullbert & Tullberg (1998) e outros se apoiaram na premissa de
que más fronteiras podem confinar dentro de seus limites culturas incompatíveis, o que
geraria o nacionalismo violento. Outros – como Etzioni (1992), Kumar (1997) e Fearon
(2004) – destacaram que as partições só gerariam futura violência. Com esta divisão, o
único consenso aparente que se pode destacar seria sobre a definição de partição de
Tir (2005, descrita na introdução)ix.

Várias são as razões às quais os autores atribuem o surgimento de movimentos


separatistas. Alguns autores se apóiam no argumento wilsoniano de que as fronteiras
não estariam alinhadas adequadamente com os grupos nacionais pré-existentes.
Muitos são os autores que parecem concordar com essa premissa, dizendo que a falta
de responsividade e de democracia são responsáveis pelo surgimento das FLNs
12
(Etzioni, 1992) ou então que é a retórica hipernacionalista que eleva as identidades
étnicas em momentos de crise (ou não), tal como afirma Kaufmann (1996). Digno de
nota é que a democracia e a falta de responsividade são comumente apontadas pela
FPLE e SPLA/M como motivos que lhes levaram a almejar a secessão.

De certa forma, esses argumentos estão conectados com a existência de


múltiplos centros de poder e a difusão de poder decrescente sobre as distâncias. As
FLNs, até hoje, se concentram em países não democráticos, em regiões (hinterlândias)
com a população mais pobre que aquela do entorno da capital e que não gozam de
autonomia política nem de atenção do governo central. Ou seja, é a ausência de um
Estado imparcial e forte o bastante para prevenir conflitos civis que gera tal
necessidade de secessão.

Assim sendo, as identidades passam a ser importantes para a questão da


partição uma vez que podem ser securitizadas. Afirma-se que é com base nelas que as
populações posicionar-se-ão em um possível conflito. Nesse sentido, as lealdades se
tornam rígidas e transparentes, criando dilemas de segurança que forcem a separação
das populações etnicamente diferentes. De acordo com Kaufmann (1996, 137), a
neutralização do conflito étnico-identitário só será possivel “only when opposing groups
are demographically separated into defensible enclaves”, uma vez que os exemplos
históricos demonstram que, segundo Kaufmann (1998), quanto mais separados os
grupos combatentes, mais pacíficas serão as relações entre eles.

Para ser completa, portanto, a partição teria de garantir a separação do povo em


enclaves defensáveis com soberania, isto é, a separação só poderá ser garantida com
a criação de um novo Estado (o Estado secessionista). Nesse sentido, uma vez que a
coabitação dos povos se torna impossível, a partição torna-se necessária, garantindo
primeiro enclaves baseados nas identidades para parar com uma possível matança e,
em seguida, a criação de novos Estados (Kaufmann 1998).

Sem querer entrar na discussão sobre as conseqüências da partição/secessão,


isto é, sobre se a partição gera novos conflitos (desta vez inter-estatais) ou uma
13
pacificação definitiva, é importante destacar a proximidade teórica entre o debate sobre
a partição e a estatalidade. Como já dito, muitas FLNs na África são “states-in-waiting”,
desempenhando todas as funções de Estados oficiais, inclusive gozando de soberania
externa e de reconhecimento enquanto ator políticox, atendendo aos requisitos mínimos
de estatalidade e configurando-se em Estados essenciais ou “Estados como tal”. Elas
controlam centros de poder na hinterlândia, mais afastados do centro político do Estado
e não gozam de autonomia de jure, o que lhes faz pleitear a secessão.

Conclusão

Este trabalho tinha como objetivo fornecer respostas preliminares sobre os


motivos que levavam ao surgimento de Novos Estados Africanos, por meio das
condicionantes que permitiram o surgimento das FLNs e por que algumas obtiveram
sucesso na sua agenda secessionista enquanto outras não. Como se procurou mostrar,
o Estado em África deve ser visto como algo além do que a entidade que goza de
reconhecimento internacional. Dada a estrutura dos Estados africanos e suas
desfuncionalidades que são potencializadas nos Grandes Estados Africanos, a
existência de múltiplos centros de poder combinados com a existência de FLNs com
objetivo de liberar essas regiões do jugo do governo central acabou sendo essencial
porém não suficiente para o sucesso da agenda secessionista.

Todos os seis GEAs possuem FLNs com objetivos secessionistas, mas apenas
em dois casos houve o sucesso. Tanto na Etiópia quanto no Sudão, os problemas que
levaram à secessão estavam diretamente relacionados com a construção do Estado
pós-colonial, que não foi capaz de alterar o padrão de difusão de poder sobre a
distância. Nos outros quatro Estados, supõe-se que as FLNs talvez arrastem com os
governos centrais dos países onde atuam guerras civis por décadas (ou apenas
reclames retóricos, dada a incapacidade/opção política de tomar armas) visando um
objetivo menor que seria a autonomia, mesmo que sem aprovação constitucional uma
vez que a distância a outros centros de poder pode ser tão grande que o isolamento
pode até mesmo impossibilitar a visibilidade midiática do movimento.

14
É possível que FLNs nesses quatro países tenham sucesso e consigam a
secessão no futuro, mas – preliminarmente – parece altamente improvável. Eritréia e
Sudão do Sul tiveram êxito graças à relativa proximidade dos centros de poder de seus
respectivos países e graças às relações internacionais guardadas com países alhures.
Nesses dois casos – é preciso reforçar – as FLNs trataram de libertar centros de poder
que já estavam em questão e já tinham sua relevância desde a criação dos Estados
pós-coloniais etíope e sudanês.

Referências

BERHE, A. The origins of the Tigray People’s Liberation Front. African Affairs, p.569-
592, 2004.

CARVALHO, D.D.F. Diferentes partições, diferentes conflitos: os casos da Eritréia e da


Somalilândia In: IX Congresso da Associação Latino-americana de Estudos Africanos e
Asiáticos do Brasil, 09, 2008. Rio de Janeiro: Anais... Rio de Janeiro: ALADAA-B, 2008.

CARVALHO, D.D.F. Conflitos no Chifre da África: oportunidades e constrangimentos na


difusão do poder. São Paulo: PUC-SP, 2010, 147p. Dissertação de Mestrado, Programa
de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” –
UNESP/UNICAMP/PUC-SP, São Paulo, 2010.

CHABAL, P. & DALOZ, J.P. Africa camina: el desorden como instrumento político.
Barcelona, Ballesterra, 2001, 229 p.

CLAPHAM, C. Africa and the international system: the politics of state survival.
Cambridge, Cambridge University Press, 1996, 337 p.

CLAPHAM, C. Degrees of statehood. Review of International Studies, p.143-157, 1998.

CLAPHAM, C. Ethiopia. In CLAPHAM, C.; HERBST, J. & MILLS, G. Big African States.
Johannesburg: Wits University Press, 2006, p.17-38.

CLAPHAM, C.; HERBST, J. & MILLS, G. Big African States. Johannesburg: Wits
University Press, 2006, 301 pp.

DÖPCKE, W. A vida longa das linhas retas: cinco mitos sobre as fronteiras na África
Negra. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, 42 (1):77-109, 1999.

15
DUNN, K. MadLib #32: The (Blank) African State: Rethinking the Sovereign State in
International Relations Theory In DUNN, K. & Shaw, T. Africa’s Challenge to
International Relations Theory. Nova Iorque: Palgrave, 2001, p. 46-63.

ENGEL, U. & OLSEN, G. R. Africa in International Relations Theory In:


INTERNATIONAL STUDIES ASSOCIATION, 47, 2006. San Diego, Anais… San Diego:
ISA, 2006.

ENGELBERT, P. State Legitimacy and Development in Africa. Boulder: Lyenne


Ryenner, 2000

ETZIONI, A. The evils of self-determination. Foreign Policy, LOCAL, EDITORA,


VOLUME, NÚMERO, p.21-35, 1992.

FEARON, J. Separatist wars, partition and world order. Security Studies. Londres:
Taylor & Francis, 2004

HACHEY, T. The problem of partition: peril to world peace. Chicago: Rand McNally,
1972.

HERBST, J. States and power in Africa: comparative lessons in authority and control.
Princeton: Princeton University Press, 2000, 280p.

HERBST, J. & MILLS, G. Africa’s big dysfunctional states: an introductory overview. In


CLAPHAM, C., HERBST, J. & MILLS, G. Big African States. Johannesburg: Wits
University Press, 2006, p. 01-16.

JACKSON, R. Quasi-states: sovereignty, international relations and the Third World.


Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

Kaufman, C. Possible and impossible solutions to ethnic civil wars. International


Security, p. 136-75, 1996.

___________. When all else fails: ethnic population transfers and partitions in the
Twentieth Century. International Security, p. 120-156, 1998.

KUMAR, R. The troubled history of partition. Foreign Affairs, p. 08, 1997.

LEMKE, D. African Lessons for International Relations Research. World Politics, p. 114-
38, 2003.

NOVATI, G. & Valsecchi, P. Africa: la storia ritrovata. Roma: Carocci, 2005, 359 p.

16
OKAFOR, O.C. Re-defining legitimate statehood: international Law and state
fragmentation in Africa. Haia: Martinus Nijhoff Publisher, 2000.

OTTAWAY, M.; HERBST, J. & MILLS, G. Africa’s Big States: toward a New Realism.
Canergie Endowment for International Peace, 2004, pp.01-09.

RAVENHILL, J. Redrawing the map of Africa In ROTHCHILD, D. & CHAZAN, N. The


precarious balance: state and society in Africa. s.l. Westview Press, 1988.

REID, R. ‘Ethiopians believe in God, Sha’abiya believe in mountains’: the EPLF and the
1998-2000 war In JACQUIN-BERDAL, D. & PLAUT, M. Unfinished business: Ethiopia
and Eritrea at war. Asmara: The Red Sea Press, p.23-36, 2004.

TOUVAL, S. The boundary politics of independent Africa. Cambridge: Cornell University


Press, 1972.

TIR, J. Dividing countries to promote peace: prospects for long term success of
partitions. Journal of Peace Research. p.545-562, 2005.

TULLBERG, J. & TULLBERG B. Separation or unity? A model for solving ethnic


conflicts. Politics and Life Sciences, 16 (2) p. 237-248, 1997.

VIZENTINI, P. F. A África In. PAULO FAGUNDES VIZENTINI. As relações


internacionais da Ásia e da África. Petrópolis, 2007, p.159-222.

WENDT, A. Social Theory of International Politics. Cambridge: Cambridge University


Press, 1999.

WOODWARD, P. The Horn of Africa – politics and international relations. Nova Iorque: I.
B. Tauries, 2003, 230 p.
i
Definida por Herbst et al. (2006) como “a falta de provisão de bem estar e de oportunidades para a população”.
ii
De acordo com a idéia apresentada em Herbst (2000).
iii
Não à toa. Segundo o ranking de Estados falidos do ano de 2010 da revista Foreign Policy, os GEAs estão, em sua
maioria, estão em estado de alerta. Desses seis, apenas a África do Sul não está entre os 20 Estados mais falidos do
mundo.
http://www.foreignpolicy.com/articles/2010/06/21/2010_failed_states_index_interactive_map_and_rankings
(último acesso em 20 de julho de 2011).
iv
Baseado em Buzan, B. Peoples, States and Fear: the national security problem in International relations. 1989
v
Somalilândia e Saara Ocidental são dois que merecem destaque. Enquanto a Somalilândia não tem nenhum
reconhecimento internacional de sua independência e soberania, o Saara Ocidental é reconhecido pelos demais
Estados africanos, com exceção de Marrocos.
vi
“A reorganização territorial concluída pelo imperador Menelik, já rei dos Scioa, que transferiu mais para o sul a
capital, fundando Adis Abeba, e que absorveu terras habitadas por populações não-abissínias como a Harar e a
Ogaden, fez dizer que a Etiópia participou do scramble, compartilhando suas intenções. Porém, na perspectiva da
Etiópia a expansão foi um modo para se opor ao colonialismo europeu”. (tradução própria)
17
vii
Destaca-se os Estados de facto africanos dado o objetivo deste trabalho. O autor acredita, no entanto, que a
mesma discussão pode ser feita para Estados de facto em outras regiões do mundo.
viii
Para Wendt (1999, 208), isso é possível uma vez que “the concept of external sovereignty is relatively straight
foward, denoting merely the absence of any external authority higher than the state, like other states, international
law, or a supranational Church – in short, “constitutional independence””.
ix
Mesmo sendo tal definição posterior aos trabalhos citados, as idéias que eles carregam não parecem ir-lhe de
encontro ao passo que não se encontrou questionamentos sobre ela nos anos que lhe sucederam.
x
Podemos destacar como exemplos nos GEA, a Frente de Libertação do Enclave de Cabinda (Angola) e a Frente de
Libertação Nacional de Ogaden (Etiópia). Além dos GEA, a Somalilândia talvez seja o melhor exemplo de Estado
com soberania externa sem reconhecimento internacional.

18

Você também pode gostar