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Direito Constitucional

PARTE I - PARTE GERAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL

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Introdução

§1. O DIREITO CONSTITUCIONAL é a disciplina científica,


académica e curricular, que estuda o fenómeno constitucional. O
objecto desta disciplina é a Constituição, em sentido amplo, referido
como fenómeno Constitucional (que se verá em § 2.). Para garantir a
autonomia científica do Direito Constitucional exige-se que siga um
método próprio (que se verá em §3.).

§ 2. A CONSTITUIÇÃO, como objecto de estudo do Direito


Constitucional, deve ser interpretada num sentido amplo de fenómeno
constitucional, mas ao qual se encontram vários sentidos.

§ 2.1 Em sentido Formal, a Constituição é a Lei do Parlamento


Nacional, aprovada para valer como norma suprema do Estado. A
Constituição é uma lei diferente das demais, aprovada, vigente e revista,
segundo as suas próprias regras. É a primeira lei do Estado, critério de
validade das demais leis. A Constituição da República Democrática de
Timor-Leste foi, inclusivamente, a primeira lei aprovada pelo Estado,
pelo Parlamento Nacional, em 22 de Maio de 2002, depois da
restauração da independência, em 20 de Maio de 2002.

§ 2.2 Em sentido Material, a Constituição, inclui, no entanto, outras


normas, escritas e costumeiras, com valor constitucional (valor de norma
suprema do Estado), mesmo que não estejam incluídas no texto formal
da Constituição. Relativamente ao catálogo de Direitos Fundamentais
previsto na Constituição, o art. 23.º claramente não excluiu outros

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previstos na lei. É exemplo clássico o caso dos Direitos de


Personalidade, previstos no Código Civil, para efeitos de protecção civil,
como o Direito ao nome, previsto no art. 67.º do Código Civil, entre
outros. O facto de a Constituição não prever um “Direito ao Nome”, não
significa que este Direito não tenha natureza de Direito Fundamental,
nos termos do art. 23.º da Constituição. O mesmo se refere a propósito
das regras da interpretação jurídica, previstas no art. 8.º do mesmo
Código Civil, mas que têm natureza constitucional, conforme se verá em
maior detalhe a diante.

§ 2.3 Em sentido Real, a Constituição (enquanto fenómeno


Constitucional) refere-se às normas, efectivamente, aplicadas com
consciência do seu valor constitucional. Em Timor-Leste, esta questão é
especialmente relevante no que se refere ao valor do costume, ainda a
principal fonte de direito em diversas partes do território, especialmente,
em matérias como o casamento, sucessões e relações familiares. Apesar
de o art. 2.º, n.º 4 da Constituição e o art. 2.º da Lei n.º 2/2002, de 7 de
Agosto, apenas admitirem a vigência do costume conforme à lei e a
Constituição, a verdade é que há muito que se estuda como a vigência do
costume é questão anterior ao próprio direito, que não cabe ao Direito do
Estado resolver, definitivamente, mesmo que o aparelho coercivo do
mesmo Estado o não possa aplicar. Mas essa é questão diferente da sua
vigência, observância e coercibilidade. Voltar-se-á a esta questão a
propósito das Fontes de Direito.

§ 3. O Direito Constitucional, assim entendido, reclama uma


ambição científica que o distingue das demais ciências que estudam,
também com ambição científica, o fenómeno Constitucional, em

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especial, as ciências sociais como Ciência Política, a Sociologia, entre


outras.

§ 3.1 A questão assim colocada é a de saber qual o método (caminho)


próprio seguido pelo Direito Constitucional, diferente da sua aplicação
prática e das outras ciências que incidem sobre o mesmo objecto,
fenómeno constitucional.
§ 3.1.1 Neste caso, invoca-se a ambição normativa da Ciência do
Direito, que não é específica do Direito Constitucional. O Direito
perspectiva o fenómeno jurídico não apenas como um “ser” (a sua
dimensão fáctica, real e quotidiana), mas também como um “dever-ser”,
a partir da consideração integrada do ordenamento jurídico, nas
dimensões histórica, sistemática (na qual se inclui a necessidade de
garantir a sua coerência interna, como as relações com outros
ordenamentos jurídicos), e teleológica, a partir dos fins prosseguidos por
uma ordem jurídica.
§ 3.1.2 Estes são os elementos do chamado “método jurídico”,
construído como método (caminho) específico da relevação do Direito
pela Escola Historicista de SAVIGNY, do qual o Código Civil Francês se
apropriou contra a posição do seu mais ilustre cultor. SAVIGNY
manifestou-se contra a positivação, na lei (no Código Civil), das
condições de interpretação da própria leii. Esta é também uma questão,
cada vez mais, com relevância constitucional, como se verá adiante.
§ 3.1.3 Mesmo na relação do Direito Constitucional com os outros ramos
da Ciência Jurídica, são diferentes as perspectivas prosseguidas. O
Direito Constitucional é o ramo de Direito Público, que estuda a norma
suprema do Estado, sobre os outros ramos do Direito, em especial do
Direito Público. Os estudos de Direito Constitucional condicionam
outras perspectivas sobre o fenómeno constitucional, que, no entanto, se
apresentam sempre parcelares perante visão sistémica, integrada e total

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do Direito Constitucional. É o caso do Direito Internacional Público, que


perspectiva o fenómeno Estadual externamente, definindo as regras da
relação, nem sempre fácil, entre os ordenamentos jurídicos estaduais e
internacionais, no art. 9.º da CRDTL, como se verá adiante. O Direito
Administrativo mantém-se muito próximo do Direito Constitucional.
Diz-se, aliás, que o Direito Administrativo é “Direito Constitucional
concretizado”, num “casamento sem fim”. Mas esta perspectiva é
sempre vinculada às soluções constitucionais, que são aqui
perspectivadas a partir do exercício da função administrativa, no art.
103.º, que consagra o Governo como órgão máximo da Administração
Pública, ou o art 137.º, ambos da CRDTL. O Direito Penal encontra os
limites para o exercício da acção penal do Estado na Constituição, em
especial, em matéria de Direitos Fundamentais, no art. 31.º da CRDTL.
O mesmo sucede com o Direito Fiscal. Estes últimos ramos de Direito,
na limitação da liberdade e da propriedade dos cidadãos, estão,
historicamente, na génese do próprio fenómeno Constitucional, como se
verá adiante. Todo o fenómeno jurídico se encontra condicionado
constitucionalmente, se não de outra forma, pela definição das fontes de
Direito, como se verá adiante.

§ 3.2 A ambição científica do Direito Constitucional, distinta da sua


aplicação prática, como das demais ciências que perspectivam o mesmo
objecto de estudo, é especialmente, difícil de afirmar considerando uma
matéria tão marcada social, cultural e, mesmo politicamente. Que é o
mesmo que dizer, marcada humanamente, pelas virtudes e defeitos de
cada ser humano, suas concepções (ideias, preconceitos, crenças,
reservas e experiências) do mundo, da vida e das relações com os outros.
Mesmo que se perspective essa ambição de cientificidade afastada das
pretensões de absoluta neutralidade da ciência e do cientista, não é fácil

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construir um quadro metodológico próprio do Direito Constitucional, já


que o objecto não é exclusivo do Direito Constitucional.
O objecto destas duas perspectivas, estudo e realização/prática/acção, é o
mesmo: a Constituição (nos diferentes sentidos do fenómeno
Constitucional referidos). Esta é a questão fundamental do estudo do
Direito remetendo a sua solução para outras disciplinas mais
profundamente dedicadas a este problema do método do Direito -
enquanto ciência e acção. É o caso da Teoria Geral do Direito, da
Metodologia Jurídica e, introdutoriamente, da Introdução ao Direito.
Basta aqui alertar para o problema, na perspectiva específica do Direito
Constitucional.

§ 3.3 A ambição científica do Direito Constitucional não se afirma, no


entanto, contra nenhuma das anteriores perspectivas. O Direito
Constitucional faz, necessariamente, recurso a um sincretismo
metodológico que usa diferentes ferramentas hermenêuticas no estudo da
Constituição (enquanto fenómeno constitucional). ?
§ 3.3.1 Na relação com as demais ciências que estudam o fenómeno
jurídico e Constitucional, a hermenêutica jurídica, em especial, na
Hermenêutica Constitucional, usa, cada vez mais, ferramentas típicas das
Ciências Sociais, como a História (na reconstrução das soluções
normativas vigentes), Ciência Política, Sociologia (por exemplo, no
estudo da concretização das soluções legislativas), Psicologia,
Antropologia, Linguística (por exemplo, na análise dos diferentes textos
legislativos, judiciais, administrativos ou outros) ou Literatura, mas,
inclusivamente, se necessário Ciências ditas (mais) exactas, como a
Estatística, Matemática, Lógica ou Informática, ou mesmo Ciências
Naturais, como a Medicina (por exemplo, na determinação das causas de
morte), a Botânica (por exemplo, na definição da composição química

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de plantas) ou da veterinária (por exemplo, na definição dos direitos dos


animais).
§ 3.3.2 O interprete constitucional usa as mesmas ferramentas
hermenêuticas do Direito, segundo o método jurídico, com as
especificidades próprias do fenómeno constitucional, em especial, com
referência ao peso dos princípios normativos. Adiante se voltará à
questão da Hermenêutica Constitucional, em especial. Mas são também
usadas ferramentas metodológicas de outras ciências, em especial, das
ciências sociais. O prosseguimento das pistas da interdisciplinaridade é
uma das mais importantes lições aprendidas pelo Direito Constitucional.
Todos os elementos hermenêuticos referidos, especificamente, jurídicos,
ou o resultado da abertura interdisciplinar ad hermenêutica jurídica, são
tópicos retórico-argumentativos, usados pelo intérprete no momento da
decisão, como se verá adiante a propósito da hermenêutica
constitucional. Muitos destes tópicos serão, inclusivamente, usados neste
texto.
§ 3.3.3 Na distinção do “cientista” do Direito do seu aplicador decisiva é
a postura metodológica sobre o objecto fenómeno Constitucional (o fim
prosseguido), que não, exactamente, as ferramentas metodológicas
usadas: o aplicador tem uma “competência” legal, constitucional ou
consuetudinária a cumprir, enquanto o “cientista” não se encontra final-
causalmente orientado. Ver-se-á adiante as variáveis vinculações ao
Direito, em especial, à Constituição, determinadas pela definição
“competencial” (na Constituição, na lei ou nos costumes vigentes) dos
diferentes poderes separados quando chamados a aplicar/realizar a
Constituição. Para já, interessa é alertar para o sentido da
“neutralidade” competencial do “cientista” da Constituição, o cultor do
Direito Constitucional, o Constitucionalista. A ciência do fenómeno
Constitucional, do Direito Constitucional, nunca será neutro no sentido
em que anula o cientista, o que será sempre impossível nas ciências ditas

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sociais, mas é neutro porque não se encontra comprometido com uma


competência, que tem um sentido, um fim, uma perspectiva própria
(definida na Constituição, na lei ou consuetudinariamente).
Este não é, no entanto, um desafio fácil de cumprir, considerando que o
objecto do Direito Constitucional é, várias vezes, a própria realização da
Constituição e nestes casos, não é fácil assegurara a neutralidade do
cientista. Não é fácil separar a linha da realização (comprometida com
uma competência) com o estudo (científico competencialmente neutro).
Este é um esforço que se estende a todo o Direito, em especial, ao
Direito Público, mais ainda, quando aumenta a proximidade (humana)
do poder, como sucede no caso do Direito Constitucional. No entanto,
nem a violação (por mais repetida que seja) desta fronteira invalida o
esforço de autonomização científica do Direito e do Direito
Constitucional. Pelo contrário, reforça a necessidade da sua afirmação
quotidiana, mesmo que votada ao falhanço quotidiano. Este é um esforço
que os cultores do Direito, e, em especial, do Direito Constitucional,
mesmo aqueles que agora nele se iniciam, têm de, permanentemente,
manter presente.

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Capítulo 1. O Problema da Constituição

§ 4. A Constituição procura responder ao problema da


legitimidade do exercício do poder nas comunidades politicamente
organizadas. A legitimidade que a Constituição procura é a garantia do
reconhecimento popular da “bondade” do exercício do poder, das
limitações impostas à liberdade dos cidadãos em nome do bem comum.
Já SÓCRATES na “República” de Platão perguntava se havia vantagens
num governo “Justo”, para chegar a um resposta afirmativa. MAQUIAVEL
ocupou-se de questão análoga, considerando-se, à época, que “ao
príncipe mais vale ser temido do que amado”. O Constitucionalismo,
pelo contrário, dá uma resposta afirmativa a esta questão - vale a pena
garantir a justiça , ocupando-se, precisamente, das condições de garantia
da legitimidade do exercício poder. A questão não é exclusiva do
Constitucionalismo Moderno, como se verá. Mas a resposta dada pela
Constituição é inovadora e tem sido tão bem sucedida, historicamente,
que justifica atenção especial.

1. O Fenómeno Político

§ 4.1 O ser humano, biologicamente mais frágil do que outros animais,


tem na vida em comunidade o segredo do sucesso da sua sobrevivência.
Da vida em comunidade emerge o fenómeno político, em especial, na
adopção das decisões da comunidade. ARISTÓTELES dizia que “O
Homem é um ser social”ii, o que poeticamente foi reconstruído como
“nenhum homem é uma ilha”iii. A vida em sociedade é o modo natural
da existência da espécie humana, desde a pré-histórica sobrevivência da

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espécie, organizada em estruturas sociais superadoras da maior


fragilidade do sujeito. Desde o nascimento os indivíduos estabelecem
relações de comunicação, colaboração e dependência, que reconstrói
permanentemente um legado civilizacional que perpetua a partilha de
coisas, frutos da natureza ou construções humanos, e ideias. Este é o
ponto de partida para esta disciplina, que se constata empiricamente,
independentemente, da resposta a dar à questão antropológica, que
ocupou vários do cultores originais do Constitucionalismo.

§ 4.1.1 Para ROSSEAU o mito do “Bom Selvagem” parte da natureza,


originalmente, livre do ser humano, ocupado com a satisfação das suas
necessidades básicas, no “estado de natureza”iv. A transição do “estado
natureza” para a vida em comunidade alicerça-se num “contrato social”v,
cuja relevância constitucional se verá adiante. LOCKE afirmava que todos
os Homens nascem iguais e livres, com direitos inalienáveis como o
direito à vida, à liberdade e à propriedade, numa formulação que
inspirou grande parte do movimento constitucional liberalvi. Também
para LOCKE era o contrato social que permitia passar do “estado
natureza”, na qual perspectiva o Homem de forma benigna, para a vida
em sociedade, que o “corromperia”.

§ 4.1.2 Em sentido contrário, para HOBBES o fundamento do contrato


social é a vontade guerreira do Homem, originalmente, visto de uma
perspectiva pessimista. Para ilustrar a sua posição HOBBES recorre à
fórmula clássica “O Homem é o lobo do Homem” (Homo homini lupus).

§ 4.1.3 A solução desta questão não é aqui decisiva. Ela assentará


sempre numa pré-compreensão do mundo que apenas um “salto de fé
antropológico”vii de cada Autor poderá justificar. Cumpriu, é certo, o seu
papel histórico de fundamentar as posições filosóficas referidas, ao
tempo, verdadeiramente revolucionárias. Importante, é aqui assentar que

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as relações humanas ocorrem dentro de uma comunidade que se


reconhece como diferente das outras comunidades.

§ 4.2 A diferença comunitária constrói um “nós” comunitário por


oposição ao “outro” comunitário. Para CARL SCHMITT a relação com o
“Outro” é o fundamento de qualquer relação política - é a sua “categoria
política específica” viii.

§ 4.2.1 O “conceito do político” é, nesta perspectiva, encontrado na


antítese entre “Freund und Feind” (“Amigo e Inimigo”), considerados
num “senso concreto e existencial, não como metáforas ou símbolos”ix.
O inimigo não é apenas um “competidor”, um “parceiro num conflito”
ou um “adversário privado” - é referido à “possibilidade real de morte
física”x. A razão para a consideração do “outro” como “inimigo” é
irrelevante e pode assumir várias formas, já que “todas as antíteses
religiosas, morais, económicas, éticas e outras transformam-se numa
antítese política, se for suficientemente forte para agrupar seres humanos
efectivamente de acordo com o inimigo e amigo”xi.

§ 4.2.2 O factor político é constituído na “possibilidade real de morrer”


e a soberania (como “a decisão da excepção”) na “ordem para morrer”.
Naturalmente que “a Guerra vem da inimizade (…) [tal como] da
negação existencial do inimigo”xii. Contudo, não é para ser visto como o
objectivo do político, mas co-existe com outra entidade política”xiii. A
inexistência de um inimigo eliminaria a política das relações humanas e,
apesar de considerado “interessante”, podia provar-se anti-política.

§ 4.2.3 Já se teve oportunidade de referir como o acesso de Timor-Leste


à independência soberana reflectiu e ainda reflecte, neste verdadeiro Big
Bang da soberania, exactamente, esta relação com o “Outro”, a que nem
a fábula fundadora do crocodilo feito chão resistiu. Externamente, são as

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pistas seguidas nas relações com os vizinhos imperiais, tanto na solução


da relação com o anterior ocupante, contra o qual se fez a luta de
libertação nacional, na definição do direito subsidiário aplicável ao
estado emergente, como na delimitação das fronteiras marítimas com o
vizinho a Sul, numa das questões ainda pendentes no ordenamento
jurídico regional. Internamente, a dificuldade de integração de uma nova
realidade política nos processos de deliberação comunitários terá estado
entre as causas de diferentes “crises de crescimento” democrático que,
desde a independência assolaram Timor-Lestexiv. Interessante é verificar
como o sistema de governo semi-presidencial permitiu solucionar essas
crises no quadro do funcionamento do regime democrático. A liderança
bicéfala dos sistemas de governo semi-presidenciais é apontada por
alguns como factor de desestabilização, mas na verdade tem sido o
sistema mais bem sucedido em transições democráticas, em especial, de
situações pós-conflito. Em causa estará a possibilidade de incluir
diferentes maiorias no exercício do poder, facilitando o seu
reconhecimento popularxv. Em Timor-Leste, a própria prática
constitucional confirmou o sucesso desta fórmula com a ambição
executiva de um Presidente da República a ser satisfeita, não por uma
interpretação estratégica mais Presidencialista, mas pela formação de um
partido político e pela candidatura a eleições legislativas, que
redundaram no IV e no V governos constitucionais.

§ 4.3 Não se pode sobrevalorizar a dimensão antagónica da organização


política comunitária. Se a comunidade politicamente organizada, como
Estado, se fecha em torno de uma identidade, que se constrói por
oposição do “Nós” ao “Outro”, a Constituição abre por uma referência
cosmopolita, em especial, referida ao regime universal de Direitos
Humanos.

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§ 4.3.1 A importância da relação com a alteridade como o elemento


constitutivo das relações políticas afirma que qualquer noção de
Humanidade é enganadora, porque a-política e invocar o nome da
Humanidade seria “mentir”xvi. Mas o projecto da Constituição tem na
sua base exactamente o mesmo projecto cosmopolita com referência ao
conceito de Direitos Humanos/Fundamentais. Desde logo, são as
mesmas declarações de Direitos Humanos/Direitos Fundamentais que
fundamentam o fenómeno constitucional em diversos espaços do mundo.
Também é este o fundamento do moderno Direito Internacional, desde
Hugo Grócius.

§ 4.3.2 É verdade que a ideia de uma humanidade cosmopolita conviveu


desconfortavelmente com preocupações soberanas do Estado Nação
Moderno. A natureza anti-cosmopolita da polis grega ou da pulsão
hegemónica do Império Romano e da “Igreja Universal” prologa-se nas
preocupações orientadas para comunidades organizadas em torno de
critérios, ditos nacionais, que marcam de igual forma o contratualismo
social modernoxvii .

§ 4.3.3 Assim entendida a Constituição não é a Constituição de um


Estado, mas antes um estatuto jurídico das relações estabelecidas dentro
de uma Comunidade, num fenómeno dinâmico, aberto à realidade e ao
mundo. A Constituição, assim, entendida não é apenas uma teoria do
Estado, enquanto aparelho de garantia das relações de uma determinada
comunidade, mas abre-se a todo o processo político da comunidade. E
este processo político é, necessariamente, aberto a outras comunidades,
aberto ao mundo e à humanidade.

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2. Da Comunicação ao Poder

§ 5 A comunicação dos seres humanos em comunidade, herdeiros deste


lastro civilizacional, é feita através do uso da linguagem. Não é aqui
apenas a linguagem no sentido natural que lhe damos, mas uma
linguagem politicamente significativa. A comunicação entre a
comunidade (por isso, dita comunicação pública) é o objecto da Política.
Esta comunicação acontece num espaço público - a rés pública (a coisa
pública, desde a Grécia Antiga). A ideia de aplicar aos processos
públicos de deliberação as regras da comunicação foi desenvolvida por
HABERMAS, que aplica as regras da acção comunicativa aos processos de
deliberação pública.

§ 5.1 A Democracia Deliberativa ambiciona, pois, pela acção


comunicativa pública dirigida a um consenso deliberativo, estabelecer
procedimentalmente as condições da “validade universal” de qualquer
proposição (normativa), garantida através do discurso numa ética
consensualxviii . Postula-se, para esse efeito, uma “ética do discurso”, que,
alicerçada na racionalidade comunicativa inerente ao diálogo, garante a
racionalidade das decisões tomadas com base num procedimento
democrático deliberativo, realizado entre pessoas livres e iguais, com
base no exercício da razão prática, dentro das regras deliberativas
construídas para o efeito.

§ 5.1.2 No entanto, se a linguagem natural pressupõe um consenso


prévio sobre as condições em que esse diálogo deverá ocorrer, o mesmo
acontece na comunicação pública, orientada a uma decisão pública.
Comunidades construídas em torno de uma perfeita identidade comum
confrontariam outras comunidades também identitariamente perfeitas. O
outro (eles) claramente não é parte da nossa comunidade (nós). Uma

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comunidade política organizada sob estas condições, tão claramente


moldada por uma identidade comum, não teria razões para se preocupar
com a inclusão dos seus membros e, por isso, as relações com os outros
foram, durante muito tempo, uma questão de relações inter-estatais,
enquanto a ideia de uma comunidade humana foi desprezada. De tal
sorte que a inclusão total passaria a ser apenas possível em comunidades
etnicamente homogéneas, uma vez que a “democracia exige primeiro a
homogeneidade e segundo – se houver necessidade – a eliminação ou
erradicação da heterogeneidade”xix.

§ 5.1.3 Contudo, esta realidade de comunidades puras não acontece


nunca. Aliás, as actuais sociedade são mais plurais, abertas e diversas
pelo que a relação com a “Diferença” é das questões mais relevantes nos
processos públicos de deliberaçãoxx.

§ 5.2 Surgem, assim, “lutas de reconhecimento” xxi às quais é necessário


dar satisfação. Ver-se-á, em maior detalhe, esta questão a propósito das
soluções propostas relativamente ao princípio democrático, segundo a
regra da maioria.

§ 5.3 Para já assinala-se, como a construção desta especial relação com a


diferença é referida sempre àquele que se encontra “de uma forma muito
intensa, existencial [como] algo diferente e alheio de tal forma que o
conflito é possível”xxii. E é assim que esta necessidade de integração da
diferença também é sentida no desenho dos procedimentos internos de
decisão jurídico-política, em particular ocupados com o diálogo
inclusivo com o “Inimigo” doméstico - assim feito “Adversário”xxiii , mas
ainda o “Outro”. Este foi o fundamento da crítica radical da democracia
representativa liberalxxiv que, passados os excessos do nacional-

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socialismo, revela, actualmente, a natureza amplamente excludente das


comunidades modernas baseadas na Nação-Estado. A identidade
política, construída numa exclusão total da heterogeneidade nos processo
de deliberação de uma dada comunidade (política), não é alicerce
possível para construir toda uma teoria constitucional.

§ 6. A comunicação pública não é um fim em si mesmo, sob pena


de se perpetuar, sem qualquer fim. A comunicação pública é orientada,
pela necessidade (pragmática) de vida humana num espaço e num
tempo, à adopção de uma decisão. A decisão deste processo de
comunicação entre os membros da comunidade, assim, construída como
decisão pública, corresponde ao exercício do Poder. A decisão pública,
depois de adoptada, deve ser cumprida - ela é imposta aos seus
destinatários, se necessário. Como ensinava MARCELO CAETANO “o
poder político é um irresistível poder de domínio”xxv . Por isso, o poder
tem uma dimensão de violência - uma violência pública (offentliche
gewalt), porque alicerçada em nome e no interesse da comunidade
politicamente organizada. Para CARL SCHMITT, o soberano é mesmo o
“decisor da excepção”, aquele que pode, em última instância, dar a
“ordem para morrer”xxvi .

§ 6.1 Por isso, sempre existiram também preocupações em torno da


bondade e da justiça do poder. A necessidade permanente de colocar a
decisão pública (poder) além das puras relações de força é
magistralmente enunciada por STANLEY KUBRICK na aventura de ficção
científica “2001 - Odisseia no Espaço”, desde a primeira ferramenta dos
hominídeos pré-históricos, que violentamente desequilibra as relações

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humanas de pura força física, até à mais sofisticada ferramenta que é a


estação espacial gerida pelo super-computador Hal 9000 ao som do
Danúbio Azul de STRAUSS. (com o qual se constata a impossibilidade
absoluta de comunicação com consequências sempre fatais para
aquele(s) que não consegue(m) tomar parte num diálogo cujas condições
se vão (sempre violentamente) alterando).

§ 6.2 O fenómeno político, assim considerado, encerra uma dupla


dimensão: fáctica (ser) e normativa (dever ser)xxvii . Se por um lado o
exercício político se traduz em factos, este factos ambicionam a
referência a uma ordem de valores que os justifique. Ora, a bondade
desta ordem normativa, cujo reconhecimento colectivo facilite o seu
respeito e permita a sua aplicabilidade, é uma das preocupações centrais
do Constitucionalismo Moderno, reconstruída, como estudado já, sob a
forma de legitimidade.

§ 6.3 A legitimidade do exercício poder, em sentido amplo, refere-se ao


reconhecimento pelos membros da comunidade organizada
politicamente do poder (enquanto decisão da comunicação pública,
como visto supra) como Bom e Justo. E se os indivíduos sempre
conviveram em comunidades organizadas, nas quais era preciso decidir,
sempre existiu política, sempre existiu poder e sempre existiram
preocupações em torno da legitimidade do poder.

3. A Constituição como “Estatuto Jurídico do Político”

§ 7. De há muito que as preocupações em torno da Bondade e a


Justiça do poder animam o pensamento dos Homens, seja no que se

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refere à titularidade e ao exercício do poder. A legitimidade dinástica foi


uma das primeiras formas de legitimidade da titularidade do poder,
desde a Antiguidade Clássica, no Antigo Egipto ao Império do Meio, na
actual China, como na Grécia Clássica e no Império Romano.

§ 7.1 Apesar disso, mesmo que, indirectamente, já nos momentos


prévios à centralização do monopólio do exercício do poder, o princípio
de proporcionalidade, pelo menos, se integrava entre os limites (ditos,
jurídicos) ao exercício do poder.

§ 7.1.1 Num período em que este exercício sancionatório do poder se


alicerçava na “vingança privada”, que tudo permitia ao infractor,
“inimigo” diabolizado, já prevista no Código de Hamurabi, a “Lei de
Talião” pela qual a fórmula “Olho por olho, dente por dente”. Esta regra
não significa promover a “vingança privada” total ou absoluta, mas antes
implica uma limitação proporcional da sanção ao delito, devendo, por
isso, ler-se como “Apenas olho por um olho, apenas dente por um
dente”. Na Repúblicaxxviii , já PLATÃO apontava as vantagens de uma
sociedade justa, como de uma conduta individual justa, para traçar o
ideal Socrático de uma sociedade justa, governada por filósofos. Estas
preocupações com a justiça estenderam-se, com os Romanos, mesmo
que as preocupações jurídicas se orientassem mais para esfera das
relações entre privados. ULPIANUS considerava a Justiça como “a
perpétua e constante vontade de dar a cada um o que lhe é seu” (iusticia
est perpetuas e constants voluntas sum cuique tribuere). CÍCERO na “Rés
Pública” (“Coisa Pública”) enceta um mesmo tipo de diálogo platónico
sobre a justiça do Governoxxix .

§ 7.1.2 Na Europa, já na Alta Idade Média, a reunião das Ordens Sociais


em Cortes e a aclamação régia impunham já formas, ainda que difusas,

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de legitimação do exercício do poder que não se poderão esquecer. Mas


estas modalidades de legitimidade da titularidade do poder não
excluíam já forma permanentes de exercício do poder - o brocado de S.
ISIDORO DE SEVILHA relativamente ao exercício do poder pela Coroa,
rezava que “Rex eras si recta facias, si non facias non eris”xxx . Um dos
momento mais decisivos da limitação do poder soberano pela vontade
dos seus súbditos, neste caso os vassalos do Rei, foi a adopção da
Magna Carta, em 1215, no Reino Unido, em termos que melhor se
verão adiante.

§ 7.1.3 Para já, basta reter como o problema constitucional em torno da


legitimidade, em sentido amplo, do exercício do poder é anterior ao
fenómeno constitucional, mesmo que aí tenha encontrado um fórmula
tão bem sucedida que ainda hoje se encontra vigente e disseminada por
todos os cantos do Mundo.

§ 7.2 ROGÉRIO SOARES, referindo-se ao “Conceito Ocidental de


Constituição”xxxi , anuncia como a preocupação com a legitimidade (em
sentido amplo) do exercício do poder.

§ 7.2.1 A legitimidade, em sentido amplo, refere-se, como se referiu, ao


reconhecimento pelos membros da comunidade organizada
politicamente do exercício do poder (enquanto decisão dos processo de
comunicação pública, como visto supra) como Bom e Justo.

§ 7.2.2 ROGÉRIO SOARES aponta aqui na realização da legitimidade


Constitucional Moderna dois momentos essenciais:

a) a Legitimidade em sentido estrito, por referência a uma


dimensão material referida a uma ordem axiológica material
composta por valores partilhados comunitariamente;

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b) a Legitimação, pelo estabelecimento constitucional de


procedimentos adequados ao diálogo comunitário na deliberação
normativa.

§ 7.2.3 Em sentido próximo, HABERMAS sintetiza a resposta dada à


questão da legitimidade de um poder pela Modernidade Constitucional
entre:

a) Direitos Humanos, que conferem a validação material ao


exercício do poder na Constituição e
b) Democracia, no sentido amplo de participação política (o
direito de eleger e de ser elei, de formar partidos e filiar-se
em partidos, mas também de aceder aos tribunais (art. 26.º da
CRDTL), apresentar queixas ao Provedor de Justiça e dos
Direitos Humanos (art. 27.º da CRDTL), peticionar todos os
órgãos e soberania e autoridades (art. 48.º da CRDTL),
participar nos procedimentos administrativos (art. 137.º da
CRDTL).

§ 7.3 A Constituição, assim, perspectivada em torno da legitimação do


exercício do poder constitui-se como o “estatuto jurídico do político”. É
a Constituição, como lei, e mais ainda como lei suprema do ordenamento
jurídico, que define as condições de exercício do poder político.

§ 7.3.1 A superioridade hierárquica da Constituição estabelece o padrão


de validade da actuação do Estado, que tem como sanção a
inconstitucionalidade. A limitação do exercício do poder pelo Direito
(Constitucional) é uma das marcas centrais do Constitucionalismo
Moderno que a estabelece como barreira aos abusos do poder. Não é
apenas o papel paramétrico da Constituição, mas a revelação
procedimental (ROGÉRIO SOARES) da norma jurídica, através do processo

21
Direito Constitucional

Democrático (HABERMAS), que, com CHAIM PERELMAN, se pode dizer


unifica na ideia do primado do direito, o direito e políticaxxxii .

§ 7.3.2 O Constitucionalismo Moderno, que dá origem ao que hoje


reconhecemos como uma “Constituição”, está intimamente ligado ao
conceito de Estado. É, na verdade, com referência à emergência do
conceito de Estado na transição da Idade Média para a Modernidade, que
o fenómeno constitucional emerge como instância histórica de
legitimidade do poder. O Estado moderno que surge com a crise do
sistema político medieval na transição para a Época Moderna,
encontrando-se largamente alicerçado espírito científico e no
pensamento racionalista que caracteriza esse momento histórico. Como
se viu, já existiam comunidades de indivíduos organizadas
politicamente, cuja garantia institucional poderia equivaler a uma forma
de organização Estadual e cuja legitimidade poderia equivaler a uma
forma de Constituição. No entanto, não é esse o sentido que se dá a
Estado ou a Constituição, juridicamente.

§ 7.3.3 Apenas a partir do no século XVI, MAQUIAVEl, autor de “O


Príncipe, refere que “todos os Estados são Monarquias ou Repúblicas”,
uma afirmação tendente a reconhecer e fortalecer a ideia emergente de
Estado. Este processo de progressiva afirmação do Estado Moderno
pode dizer-se concluída aquando da assinatura dos Tratados de
Vestefália (1648) que vieram por termo à “Guerra dos Trinta Anos”,
reconhecendo a igualdade soberana dos Estados Europeus e assim dando
inicio a um novo ciclo nas suas relações. Por ser a forma de organização
da comunidade política dominante, cujo sucesso depende, em larga
medida das suas diferentes modalidades, como se verá adiante, e aquela
mais intimamente ligada ao conceito de Constituição impõe-se
prosseguir este estudo, exactamente, pela aproximação ao conceito de
Estado.

22
Direito Constitucional

23
Direito Constitucional

Capítulo 2 - Introdução ao conceito de Estado

§ 8. A organização das comunidades políticas soberanas tem


assumido, de modo dominante, a forma de Estado inspirado no Estado-
Nação soberano resultado histórico da evolução ocorrida na Europa na
transição para a Modernidade, espalhada pelo mundo nos séculos
subsequentes, pelas Descobertas, colonizações e, mais recentemente,
globalização.

1. O Estado Moderno Europeu

§ 8.1 O Estado do novo milénio não é, naturalmente, o Estado-Nação


soberano da Modernidade. Muito mudou, como se verá, desde o Estado
Absolutista. As funções, formas e limites da organização Estadual são,
aliás, uma das discussões do dia, como se verá.

§ 8.2 A caracterização do conceito de Estado impõe-se mais


decisivamente num ordenamento jurídico que não acarreta o lastro
histórico, social e cultural na génese do conceito ocidental de Estado. A
CRDTL introduz uma organização Estadual ex novo, num ordenamento
jurídico que não cumpriu o caminho comparável àquele que noutros
espaços trouxe às soluções actuais.

§ 8.3 Esta é, no entanto, uma opção soberana no constitucionalismo


inaugurado com a restauração da independência. As questões suscitadas

24
Direito Constitucional

por esta opção encontram-se, actualmente, em permanente discussão


para a qual interessa contextualizar.

1.1. Da organização Pré-Estadual ao Estado

§ 9. Historicamente, as modalidades de organização comunitária


política, aqui em sentido amploxxxiii , apresentam diferentes
classificaçõesxxxiv . Na proposta de JELLINEK que distingue entre Estado
oriental, Estado Grego, Estado Romano, Estado medieval e Estado
moderno, em diferentes formulações. Interessa sumariamente
caracterizar cada um destes momentos, sendo adiante desenvolvidas,
naturalmente, as característica do Estado Moderno Constitucional.

1.1.1. Organização do Poder Pré-Estadual

§ 9.1 No momento pré- constitucional, o Estado Oriental caracterizar-se-


ia como uma teocracia, com o poder político justificado no poder
religioso, pelo qual o monarca é adorado como um deus. Considerar-se-
iam aqui muito reduzidas garantias jurídicas dos indivíduos, numa larga
extensão territorial, nomeadamente face à aspiração de um império
universal.

§ 9.2 O Estado Grego ou polis, abreviadamente, caracterizar-se-ia como


uma comunidade de cidadãos, ainda que altamente censitária, excluindo
estrangeiros, escravos e outras minorias. Não existe liberdade fora do
Estado, o indivíduo é-o enquanto cidadão que participa na coisa pública

25
Direito Constitucional

(rés pública). Territorialmente, a pequena extensão do território favorece


a emergência de Cidade-Estado com diferentes formas de governo.

§ 9.3 O Estado Romano, vigente sensivelmente, desde o século II antes


de Cristo até ao século IV depois de Cristo, caracterizar-se-ia pelo
desenvolvimento do conceito de poder político como poder supremo e
uno, cuja plenitude pode ou deve ser reservada a uma única origem e a
um único detentor. Emerge a consciência da separação entre o Estado
(poder público) e o poder privado (do pater famílias), distinguindo-se
também o direito público do direito privado. São assegurados aos
cidadãos romanos o direito ao sufrágio, o direito de contrair casamento
legítimo, o direito de celebrar actos jurídicos comerciais e o direito a
ascender à magistratura. A relação com os estrangeiros ao império deu
origem à formação do “ius gentium” como Direito entre povos que,
mais tarde, com a progressiva atribuição dos direitos aos estrangeiros
levou à expansão da cidadania aos habitantes do império, contrastando
com o carácter meramente territorial das monarquias orientais e o
carácter pessoal restrito das cidades-Estado gregas.

§ 9.4 Do Estado medieval (cerca do século V até XV) dir-se-ia que não é
possível considerar a existência de Estado pois a “ordem hierárquica da
titularidade e exercício do poder político é feita numa relação de
soberanos e vassalos ligados por vínculos contratuais”. Em vez de um
conceito de imperium surge o conceito de dominium, em conexão com
os princípios da família e da propriedade: investidura hereditária; direito
de primogenitura; inalienabilidade do domínio territorial. As comunas,
as corporações de mesteres, as universidades, cada qual com a sua
função, formam-se e desenvolvem-se à margem de qualquer estrutura

26
Direito Constitucional

administrativa organizada. Os direitos não são atribuídos


individualmente mas enquanto membros de um grupo.

§ 9.5 No entanto, para a disciplina que aqui se ensina, só de poderá falar


da emergência do fenómeno Estadual (Estado em sentido estrito), a
partir do século XVI, referido ao Estado moderno ou Estado Europeu.

1.1.2. Condições Históricas para o Aparecimento do Estado


Moderno Europeu

§ 10. Até fins do século XVI não se poderia dizer existir Estado
no sentido estrito aqui considerado, que, apenas surge a partir do século
XVI, fruto de muito particulares factores e condições.

§ 10.1 Em termos jurídicos refere-se a este momento histórico a


emergência do “Direito Comum” (ANTÓNIO MANUEL HESPANHA) a
partir do final do século XV, pelo qual se unifica a ciência jurídica
europeia. O ius comune europeo ainda hoje se revela altamente
significativo em diversos momentos da organização comunitária
Europeia, em particular no actual processo de integração Europeia, sob a
forma da União Europeia e da Comunidade Europeia, marcado pela
emergência de uma “tradição Constitucional Comum”. Este fenómeno
histórico, na sua formulação inicial a partir do final do século XV, pode-
se caracterizar pela centralização das fontes de direito sob a capa do
racionalismo emergente e pela sua geração de um método comum, fruto
do crescente intercâmbio universitário Europeu e segundo o reabilitado
exemplo Romano.

27
Direito Constitucional

§ 10.2 Entre outras condições que determinam a emergência do


fenómeno estadual poder-se-ão contar aquelas ditas culturais ou
espirituais, caracterizadas pela influência do renascimento, a reforma e a
contra-reforma na Igreja, numa cultura de massas, marcada pelo espírito
científico do racionalismo que ameaça o poder religioso.

§ 10.3 Por outro lado, condições sociais e económicas, como sejam a


decadência da nobreza e da aristocracia rural, os descobrimentos
marítimos e a expansão colonial, a ascensão da burguesia, o
desenvolvimento do capitalismo, a revolução industrial com o surgir da
classe operária, do sindicalismo e dos conflitos sociais.

1.1.3. O Estado Moderno Europeu

§ 11. O Estado Moderno, que surge com a crise do sistema


político medieval na transição para a Época Moderna, encontra-se, em
larga medida, alicerçado no espírito científico e no pensamento
racionalista que caracteriza esse momento histórico.

1.1.3.1. Período de Transição

§ 11.1 Este processo de progressiva afirmação do Estado


Moderno pode confirmar-se na assinatura dos Tratados de Vestefália
(1648) que vieram por termo à “Guerra dos Trinta Anos”. A partir desta
data inaugurou-se uma nova fase na relação entre os Estados soberanos
europeus, que na História das Relações Internacionais é conhecida como

28
Direito Constitucional

a “A Paz de Vestfália”. Este novo sistema de relações entre os Estados


assenta na igualdade soberana dos Estados Modernos Europeus.

§ 11.2 No entanto, mesmo na evolução do Estado moderno, impõe-se,


num esforço de maior depuração conceptual, distinguir diversos
momentos aqui ilustrados de forma muito sumária.

§ 11.3 Num primeiro período de transição, típico dos finais do século


XV ao século XVII,, ainda se pode falar do Estado corporativo ou
estamental (cortes) caracterizado pela limitação dos poderes régios
através das ordens sociais reunidas nas cortes.

1.1.3.2. O Estado Absolutista

§ 12. A forma típica de organização estadual é o Estado absoluto. Como


o nome indica esta forma de organização estadual caracteriza-se pela
máxima concentração de poder no rei. Esta organização Estadual é
típica da Europa Continental entre o final do século XVII e XVIII, tendo
atingido o seu apogeu com o Rei Luís XIV (o Rei-Sol). A corte do Rei
todo tem e tudo pode. Em Portugal, o fausto da corte é melhor retratado
no reinado de D. João VI.

§ 12.1 Neste período é no rei que se concentram todos os poderes do


Estado, que o Constitucionalismo, viria a separar. “L’Etat c’est moi” (O
Estado sou eu”, famosamente teria dito Luís XIV) Além disso, a
legitimidade divina do Rei era escolhido por Deus, permitia que ele

29
Direito Constitucional

exercesse também o poder religioso. O Rei tudo podia, tinha plena


liberdade para atingir os seus fins.

§ 12.2 É nesta fase que surge o conceito de Estado, numa fórmula


absoluta e centralizada. Surge aqui o Estado, em sentido estrito, a que se
tem referido, com soberania e atribuições, em especial na cobrança de
impostos. Apenas nesta actividade, o Estado estabelece relações
jurídicas com os particulares e só contra este podem os particulares
reivindicar direitos subjectivos.

§ 12.3 Este período também é reconhecido como o Estado de Polícia o


Estado é como uma associação para a consecução do interesse público,
devendo o príncipe, seu órgão ou primeiro funcionário, ter plena
liberdade nos meios para o alcançar. Mais tarde, pensamento do século
das Luzes (século XVIII) procura salvar a organização estadual da
monarquia absolutista vigente face aos seus próprios ditames filosóficos
igualitários através do despotismo esclarecido, pelo qual o déspota
reinava iluminado pela razão.

1.2. O Estado Constitucional de Direito

§ 11. É com a emergência do Estado Constitucional de Direito,


que se aproxima o conceito actual de Estado. É o Liberalismo
revolucionário emergente que funda a reacção popular contra os
excessos centralizadores do absolutismo régio e, consequentemente, o
fenómeno Constitucional que garante a legitimidade substantiva do
exercício do poder, por referência a um conjunto de valores positivados

30
Direito Constitucional

na constituição, bem como procedimental, na formação democrática das


decisões.

§ 11.1 Esta nova forma de organização Estadual dir-se-á Constitucional,


uma vez que assente numa Constituição que regula a organização e a
relação com os cidadãos, enquanto “Estatuto Jurídico do Político”
(GOMES CANOTILHO). Por isso também se diz que esta nova modalidade
de Estado é representativo, porque enquanto a titularidade do poder
radica no povo, na nação ou colectividade, o seu exercício é atribuído a
governantes eleitos ou representativos da colectividade (de toda a
colectividade e não de grupos como no Estado estamental), segundo o
Princípio Democrático.

§ 11.2 O Estado, assim considerado, sujeita-se ao Direito porque, para


garantia dos direitos dos cidadãos, observa-se o disposto na Lei enquanto
expressão representativa da “vontade geral” (MONTSEQUIEU) da
comunidade política organizada, bem como numa muito especial Lei que
é a Constituição emergente do poder constituinte soberano do povo. O
princípio fundamental da organização do poder político, assim
entendido, é o da Separação de Poderes no respeito estrito pela
legalidade (formal e mais tarde material).

1.2.1. O Estado de Direito Liberal

§ 11.3 Mesmo o Estado de Direito Constitucional não se apresentou de


forma imutável desde a sua emergência. Assim, se identificam diferentes
tipos.

31
Direito Constitucional

§ 11.3.1 O Estado de Direito Liberal assentava na ideia de liberdade e,


em nome dela, limita o poder político tanto internamente (pela sua
divisão) como externamente (pela redução ao mínimo das suas funções
perante a sociedade). É o Estado mínimo típico de uma organização
formada sob a ideia de “laissez faire, laissez passez” (Deixa fazer, deixa
passar). O Estado teria como principal (senão única) única tarefa a
garantia da paz social e da segurança dos bens e das vidas, daí que seja
também conhecido como Estado-Polícia, de forma a permitir o pleno
desenvolvimento da sociedade civil de acordo com as suas próprias leis
naturais. Não há, aliás, aparelho do Estado para satisfazer mais
necessidades das opulações. É o Estado formado a partir da ideia liberal
“right to be left alone” (O direito a ser deixado em paz |pelo Estado|).

§ 11.3.2 É a ideia de Estado mínimo que aqui impera, o Estado que


garante apenas as liberdades negativas contra o Estado, construídas,
pedagogicamente, como os Direitos Fundamentais de primeira geração:
o direito à vida (art. 29.º da CRDTL), o direito à liberdade (art. 30.º da
CRDTL) ou o direito a não ser arbitrariamente privado da liberdade
protegido pelas garantias de aplicação da lei criminal (art. 31.º da
CRDTL), o direito de propriedade (art. 54.º) e as garantias dos
contribuintes não serem arbitrariamente privados da sua propriedade (art.
142.º).

§ 11.3.3 A igualdade jurídica é, ainda hoje, característica fundamental do


modelo do Estado constitucional, representativo e de Direito de tipo
liberal. Originalmente, esta era, no entanto, uma perspectiva formal.
Inicialmente, aliás, esta perspectiva formal consubstanciava-se numa
dimensão negativa de igualdade perante a lei. Apenas mais tarde, ainda
nesta dimensão formal, a igualdade se reconduziria a uma positiva
participação na elaboração da lei (no que se tem tratado como a
emergência da segunda geração de Direitos Fundamentais – os Direitos

32
Direito Constitucional

de participação política). Ainda assim, esta é sempre uma igualdade


formal, porque nada os diz quanto às reais condições de igualdade entre
os cidadãos.

1.2.2. A Crise do Estado Social de Direito

§ 11.3.3 A dimensão material da igualdade, que é económica e social e,


por essa via, jurídica e política, manifesta-se nas disparidades de acesso
ao poder económico, político, mas também á educação e à saúde que o
desenvolvimento liberal pós-Revolução Industrial havia permitido e que
pareciam no século XVII e XIX tender a perpetuar-se. Esta ideia,
politicamente marcada, pode, no entanto, encontrar fundamento tanto na
critica socialista ao desenvolvimento do capitalismo selvagem, como na
doutrina social da igreja, ambos do final do séc. XIX, início do séc. XX,
que marcaram as discussões jurídico-político-filosóficas durante todo o
século XX e se projectam, actualmente, como se viu.

1.2.2.1. O Estado Social de Direito

§ 11.3.3.1 Esta evolução tem de ser compreendida considerando a


transformação do Estado num sentido democrático, intervencionista,
social, em contraposição com a abstenção liberal. Concomitantemente,
na esfera internacional assiste-se à ascensão e queda dos regimes
autoritários e totalitários e a emancipação dos povos coloniais e,
progressivamente, à organização da comunidade internacional e a
protecção internacional dos direitos do homem. É o Estado associado à
ideia de emergência de uma terceira geração de Direitos
xxxv
Fundamentais , os Direitos Económicos, Sociais e Culturais.

33
Direito Constitucional

§ 11.3.3.2 É apenas no século XX e, em especial após o final da II


Guerra Mundial, com o sucesso da intervenção Estadual na grande
Depressão de 1929, a afirmação do ideário Keynesiano de intervenção
estadual económica contra-ciclíca e o desenvolvimento económico que a
paz permitiu, que o Estado assume novas funções. O progressivo esforço
de simultâneo aprofundamento e de alargamento da liberdade e da
igualdade em sentido social, com a integração política de todas as
classes sociais revela a emergência do Estado Social de Direito.

§ 11.3.3.3 Assinala-se a emergência do conceito de Estado social de


Direito na decisão de iluminação pública nocturna da cidade de Bordéus,
na transição do liberalismo mínimo preocupado com a segurança para a
prestação de serviços públicos. Esta realização cresceu com a prestação
de serviços pelo Estado: sistema universal de ensino, básico até
Universitário, sistema universal de cuidados médicos, sistema universal
de protecção social na velhice, enfermidade, desemprego, parentalidade
(maternidade e paternidade), até ao exemplo máximo de garantia de um
mínimo de sobrevivência a todos os cidadãos (a ideia de um rendimento
mínimo garantido). No entanto, o Estado Social de Direito apresenta
importantes sintomas de crise.

1.2.2.2. A Crise do Estado Social de Direito

§ 11.3.3 A crise do Estado-Providência parece, desde logo, na crise


demográfica dos Estado industrializados (decrescente natalidade e maior
esperança de vida) que ameaça, a prazo, a sustentabilidade económica do
modelo de protecção social vigente. Ao mesmo tempo, por outro lado,
exige-se ao Estado a intervenção em novos espaços confrontando novos
desafios colocados, em diferentes âmbitos, desde a degradação da
natureza e do ambiente até às desigualdades potenciadas pela

34
Direito Constitucional

globalização da actividade económica, nomeadamente, entre os países


do Hemisfério Norte e do Sul, pelos fenómenos de exclusão social,
manipulação dos meios de comunicação (referido já como quarto poder)
e mesmo pela cultura consumista de massas. Ao mesmo tempo que a sua
sustentabilidade económica se encontra ameaçada são exigidas novas
esferas de intervenção, na defesa dos chamados Direitos de 4.ª Geração
(o ambiente, o desenvolvimento sustentado, a solidariedade inter-
gerações), que obriga a repensar os modelos de organização estadual.

1.2.2.3. O Estado Pós-Social de Direito

§ 11.3.3.2 Esta é uma discussão em curso apontando para um nova fase


do Estado Pós-Social de Direito, que, por via das novas funções que
assume Ecológico e de garante da Solidariedade Inter-geracional, mas
também Regulador. Na procura de soluções mais eficientes na gestão
dos recursos cada vez mais escassos, o Estado recorre a formas de
organização mais típicas dos privados que visam os lucros, num
fenómeno apontado como a “fuga para o Direito Privado”xxxvi . Por um
lado, o Estado assume formas de organização mais flexíveis na sua
organização, assumindo formas empresariais que tratam os cidadãos,
como verdadeiros clientes. É o caso das empresas de capitais públicos ou
as mais generalizadas empresas municipais que prosseguem, em nome
do Estado e para o Estado, actividades que anteriormente cabiam à
Administração Pública. Fazem-no, no entanto, com maior eficiência
nomeadamente garantindo uma gestão privada e vínculos privados de
contratação menos onerosos seja na aquisição de bens e serviços ou na
relação laboral. Por outro lado, permite-se aos privados, ao mesmo
tempo que prosseguem o lucro, a satisfação de necessidades que,
tradicionalmente, se encontravam acometidas ao Estado. Neste caso a

35
Direito Constitucional

intervenção do Estado é, especialmente, feita na garantia de um estrito


quadro não de prestação, mas de regulação. Este papel regulador é,
evidenciado, actualmente, pela crise económica mundial, que acentua
novos desafios reguladores ao Estado na Economia. O Estado não é
dono da Economia, nos Estados Constitucionais de raiz liberal
Humanista, que protegem a Propriedade privada a liberdade de iniciativa
e a Economia de Mercado, ainda que financie as necessidades
financeiras para a satisfação das necessidades colectivas na Economia,
através da colecta de impostos.

§ 11.3.3.3 No entanto, o Estado não pode deixar e intervir na Economia


no sentido de garantir, precisamente, a liberdade da concorrência, os
direitos dos cidadãos, enquanto consumidores, e de repor alguma
igualdade material que a tremenda desigualdade material de riqueza,
potenciada pelo capitalismo liberal, promoveu. Assim, proíbem-se
organizações monopolistas ou oligopolistas, que ameaçam os interesses
e direitos dos consumidores, e regula-se, estritamente, o exercício de
certas actividades de forma a garantir a sã concorrência. A falência de
certos instrumentos reguladores nesta fase do desenvolvimento
económico global vem, precisamente, chamar a atenção para a
necessidade de melhor pensar e desempenhar funções essenciais,
relativamente novas, e nas quais o Estado se confronta com interesses de
magnitude e poderio económico de difícil limitação. Aliás, a natureza
global da actual actividade dos agentes económicos impõe que a
regulação seja também transnacional, desenvolvida no quadro de
organizações de vocação global (a OMC) ou regional (a EU ou a
ASEAN).

36
Direito Constitucional

1.2.3. Conceito de Estado em Timor-Leste?

§ 12. Qual o sentido de falar da evolução do conceito de Estado


em 2015, numa realidade histórica, geográfica sócio-politicamente tão
diversa daquela retractada?

§ 12.1 Timor-Leste procura afirmar a estrutura de um estado soberano,


apesar de não partilhar deste lastro histórico, filosófico ou sociológico.
Por isso, os termos da discussão aqui ensaiada, com referência histórica,
são actuais também em Timor-Leste, precisamente, no cumprimento da
decisão política, constitucional, soberana de organização do poder sob a
forma de Estado.

§ 12.2 Na CRDTL, o Estado é soberano, de Direito e Democrático (art.


2.º), os objectivos do Estado (art. 6.º) são os de um Estado
contemporâneo, como o são as obrigações constitucionais em matéria de
protecção social (art. 56.º da CRDTL), saúde (art. 57.º da CRDTL),
habitação (art. 58.º da CRDTL), ensino e educação (art. 59.º da
CRDTL), entre outras. Até são mais exigentes considerando a natureza
principiológica, em sede de protecção de direitos fundamentais, da
promoção da igualdade entre mulheres e homens (art. 17.º), protecção da
criança (art. 18.º), da juventude (art. 19.º), da terceira idade (art. 20.º),
entre outros, com consequências que se estudarão em maior detalhe
adiante.

§ 12.3 São patentes os exemplos de intervenções estaduais que revelam


como o Estado timorense partilha desta discussão que é de todos em

37
Direito Constitucional

torno da sua própria organização. Exemplos legislativos da função


reguladora do Estado são os:

a) DL 27/2014, de 10 de Setembro, (que altera o DL 21/2010,


de 1 de Dezembro, que aprova o regime geral de avaliação do
ensino superior e cria a Agência Nacional para a Avaliação e
Acreditação Académica – ANAAA) que revela o papel do
Estado na regulação das instituições de ensino superior do
sector público e privado.
b) DL 22/2014, de 15 de Janeiro, altera o DL 42/2012, de 7 de
Setembro, que aprova o Regime Jurídico das Parcerias
Público-Privadas.

1.3. Conceito Jurídico de Estado

§ 12. Na tentativa de aproximar um conceito actual de Estado


interessa procurar os diferentes sentidos, características, elementos e
tipologias do Estado Moderno Constitucional.

1.3.1. Sentidos do conceito de Estado

§ 12.1 Assim, interessa considerar três perspectivas sobre o


mesmo conceito de “Estado”:

§ 12.1.1 Em sentido internacional, é o Estado soberano, titular de


direitos e obrigações na esfera internacional (o seu objecto de estudo é o
Direito Internacional Público).

38
Direito Constitucional

§ 12.1.2 Em sentido constitucional, é o Estado comunidade. É a


comunidade de cidadãos que nos termos do poder constituinte que em si
própria (comunidade) se atribui e arroga, assume uma determinada
forma política para prosseguir os seus fins nacionais (objecto do estudo
da Ciência Política, Direito Constitucional e que, por isso, aqui nos
ocupará mais detidamente).

§ 12.1.3 Em sentido administrativo, o Estado é a pessoa colectiva


pública, que no seio da comunidade nacional desempenha sob a direcção
do Governo a actividade administrativa (estudado pelo Direito
Administrativo).

1.3.2. Tipologias de Estados Unitários e Federais

§ 12.2 Os Estado Soberanos podem organizar-se como Estados


Unitários (como o caso de Timor-Leste, Portugal) e Estados Federais
(complexos) (como seja o caso do Brasil, Alemanha e Estados Unidos da
América). Enquanto que o Estado unitário é um Estado em que há um só
poder para todo o território os Estados federais – são uma união de
Estados membros, um só Estado central que se rege por normas
constitucionais comuns a todos os membros.

§ 12.2.1 A natureza jurídica do Estado federal surgirá segundo diferentes


formas e teorizações. O Estado federal de dois membros pela qual os
estados federados são parte da federação e estão a ela submetidos. Esta
teoria defende a primazia da federação sobre os Estados federados. De
forma diferente o Estado federal de três membros pela qual os Estados
federados formam juntamente com a federação uma república federal e
atribui a esta república a qualidade de Estado. Esta teoria nega a
primazia da federação sobre os Estados federados. Finalmente segundo

39
Direito Constitucional

uma teoria dita de Estados-partes, a federação e os Estados federados são


membros de igual categoria de um conjunto que entre si mesmo, não tem
qualidade estatal, ou seja, não dá a qualidade de Estado á república
federal e também nega a primazia da federação sobre os Estados
federados.

§ 12.2.2 Interessará aqui distinguir federação e confederação. A


Confederação de Estados é uma associação de Estados criados por um
tratado internacional do qual resulta a instituição de órgãos comuns para
prosseguir certos fins, geralmente internacionais. Exemplo: Cantões
Suíços até 1848 e dos EUA entre 1781 e 1787. Por outro lado, a
Federação é uma associação de Estados, que redunda na constituição de
um só sujeito Estadual com personalidade jurídica internacional.

§ 12.2.3 JORGE MIRANDA aponta os seguintes princípios directivos dos


Estados Federais: Dualidade de “soberanias”; Participação dos Estados
Federados na formação e na modificação da Constituição Federal;
Garantia (a nível da Constituição Federal) da existência e dos direitos
dos Estados Federados; Intervenção institucionalizada dos Estados
Federados na formação da vontade política e legislativa federal;
Igualdade jurídica dos Estados Federados; Limitação das atribuições
federais. Relativamente ao que seja a dualidade soberana alicerçada
numa estrutura de sobreposição - «a qual recobre os poderes políticos
locais (isto é, dos Estados federados), de modo a cada cidadão fica
simultaneamente sujeito a duas Constituições, - a federal e a do Estado
Federado a que pertence - e ser concidadão de actos provenientes de dois
aparelhos de órgãos legislativos, governativos, administrativos e
jurisdicionais»; tanto quanto num estrutura de participação - «em que o
poder político central surge como resultante da agregação dos poderes
políticos locais, independentemente do modo de formação»;

40
Direito Constitucional

§ 12.2.4 Estado é a repartição de matérias entre Estado Federal e os


Estados Federados. Esta pode assumir duas formas: a repartição
horizontal ou material (federalismo clássico - EUA e Suíça) «em que o
dualismo de soberanias envolve um dualismo legislativo e executivo (O
Estado Federal faz e executa as suas Leis, e o mesmo acontece com os
Estados Federados)»; a repartição vertical (federalismo cooperativo -
Alemanha) «em que o Estado Federal legisla e define as bases gerais da
legislação e os Estados Federados executam e desenvolvem as bases
gerais».

§ 12.2.5 Interessaste será pois analisar a figura do Estado Federado, dito


a única modalidade actual de Estados não soberanos embora também
tenha existido a união realxxxvii . Os Estados federados existem quando
um certo número de colectividades territoriais, politicamente
organizadas decidem unir-se e aceitam mediante a adopção de uma
constituição comum, transferir para os órgãos da união os seus poderes
soberanos de ordem externa e reconhecem a estes órgãos competência
para decidir sobre alguns domínios da sua ordem interna. Os Estados
federados continuam a ser verdadeiros Estadosxxxviii , pois podem elaborar
as suas próprias constituições e fazer leis no domínio da sua competência
e dispõem de meios próprios para fazer respeitar essas leis, mas não são
Estados soberanos. Desde logo, porquanto as suas constituições têm que
respeitar a constituição federal; tanto quanto as suas leis têm que se
subordinar ás leis que provem dos órgãos da federação, isto é devem
obediência à constituição federal. Por outro lado, os Estados Federados
não podem abandonar a federação por vontade própria, ao mesmo tempo
que não podem manter relações internacionais próprias, pois perdem o
direito de legação, o direito de celebrar tratados, o direito de fazer a
guerra e o direito de reclamação internacional a favor do Estado
federado.

41
Direito Constitucional

§ 12.3 Uma classificação próxima da anterior distingue Estados


Unitários e Estados Complexos.

§ 12.3.1 Estados Unitários são aqueles em que existe apenas um poder


político, podendo, no entanto, existir uma descentralização política ao
nível territorial, caso em que distinguiremos entre Estados unitários
centralizados e Estados unitários regionais.

§ 12.3.2 Contudo, os Estados Unitários não dispensam fórmulas


alternativas de Descentralização Política como a existência de
províncias ou regiões que se tornam politicamente autónomas por os
seus órgão desempenharem funções políticas, participarem ao lado dos
órgãos estaduais no exercício de alguns poderes ou competências de
carácter legislativo ou governativo. Descentralização política é distinta
de desconcentração; descentralização administrativa; regionalização;
autonomia política; federalismo – conceitos da Organização
Administrativa a estudar noutras instâncias.

§ 12.3.3 Na organização unitária do estado pode ainda distinguir-se entre


Estado Unitário Centralizado Ou Clássico: os órgãos políticos nacionais
conservam na sua esfera todo o poder legislativo e executivo e Estado
Unitário Regional: atribuem-se, por um processo de descentralização
política, a entidades infra-estaduais «poderes ou funções de natureza
política, relativas à definição do interesse público ou à tomada de
decisões políticas (designadamente, de decisões legislativas)».
Relativamente a este último interessará apontar que existem diferenças
entre Estado Federal e Estado Unitário regional ao nível do Poder
Jurisdicional; do Poder Constituinte e da atribuição do Poder residual.

§ 12.3.4 Por outro lado, o Estado complexo (ou composto) é aquele que
agrega diversos Estados num outro de hierarquia superior, sendo que o

42
Direito Constitucional

poder político é repartido entre o Estado “mãe” e os estados agregados,


de tal modo que o povo e o território ficam sujeitos simultaneamente a
dois poderes políticos.

§ 12.3.5 Tipicamente poder-se-á encontrar como exemplos de Estados


Complexos (Ou Compostos) a «União Real»: resulta da fusão entre dois
Estados Soberanos, da qual resulta a criação de órgãos comuns de
exercício de parte do poder político que exercem em cumulação com os
órgãos de cada Estado Soberano que se mantém. (Ex. Portugal e Brasil
de 1815 a 1822). O que é distinto da União Pessoal que resulta apenas da
coincidência do titular do órgão executivo do Estado (ex.: Portugal e
Espanha entre 1580 e 1640).

1.3.3. Funções do Estado

§ 13. As funções do Estado assim organizadas reconduzem-se a


funções primárias, que decorrem da directa e incondicionada
concretização da Constituição, como seria o caso da função legislativa,
política e jurisdicional e funções secundárias no desenvolvimento da
Constituição e da lei, sem qualquer espaço para inovar, como seria o
caso da função administrativa.

§ 14. A distinção entre as funções do Estado não é, no entanto,


fácil, como se verá mais adiante, em especial, com referência às soluções
positivas da Constituição. Tradicionalmente, não é difícil apontar como
cabe à administração gerir, o que a política prioritariza, a função
legislativa legisla e os tribunais controlavam juridicamente, como a
“boca da lei”, segundo MONTSEQUIEU.

43
Direito Constitucional

No entanto, estes pressupostos estão, actualmente, em crise. A discussão


em torno da função legislativa dos executivos é ainda mais sensível a
propósito da própria função criativa da aplicação da lei por parte da
Administração Pública (PAULO OTERO), ao mesmo tempo que, com
GOMES CANOTILHO, se questiona a “liberdade do legislador” face ao
projecto constitucional (na sua dimensão social)xxxix . Por outro lado, o
sentido preciso da função jurisdicional é ainda questionado, mas hoje
longe de ser “a boca da lei”, a sua função criativa assente na descoberta
argumentativa dos princípios jurídicos fundamentais, cuja vigência
interessa garantir. Por outro lado, em confronto com o exercício da
função administrativa, julgar a Administração foi durante muito tempo
administrar, sendo, coisa recente, a autonomização da jurisdição
administrativa, como se verá adiante.

2. Os Elementos do Estado

§ 15. O Estado Moderno Europeu é caracterizado com referência


a três elementos essenciais:

- povo – elemento humano,

- território – elemento espacial,

- poder político – elemento funcional.

2.1. Povo

§ 15.1 Enquanto elemento do Estado, o Povo poderá ser entendido como


a colectividade humana que, afim de realizar um ideal próprio de justiça,
segurança e bem estar, reivindica a instituição de um poder político

44
Direito Constitucional

privativo que lhe garanta o direito adequado às suas necessidades e


aspirações, dentro de um território que reclama como seu. Neste sentido,
Povo é diferente apenas da população, que tem um sentido significado
económico (é um conceito demográfico e económico e representa o
conjunto de residentes em certo território sejam cidadãos ou
estrangeiros), ou apenas dos cidadãos, que detenham uma determinada
nacionalidade.

§ 15.2 A cidadania é, ainda assim, o vínculo jurídico decisivo que se


estabelece entre um indivíduo a uma comunidade política e que os
integra em certo povo atribuiu-se a designação de Nacionalidade.

§ 15.2.1 Tradicionalmente, existem dois critérios essenciais quanto à


atribuição de nacionalidade:

- ius sanguinis - quando o critério usado para a atribuição de


cidadania seja gerado por laços de sangue direito que vem do
sangue, uma vez que podem aceder à cidadania filhos de pai ou
mãe cidadãos desse Estado, independentemente do local de
nascimento.

- ius soli –como direito do solo, uma vez que pode aceder à
cidadania quem nascer em território desse Estado. É o critério
típico de Estados mais recentes ou com grande influência de
imigrações ou emigrações.

§ 15.2.2 Também é comum distinguir entre aquisição originária da


nacionalidade, com o nascimento, e aquisição derivada da
nacionalidade, através de naturalização com base em qualquer das
soluções admitidas pela lei (casamento, permanência no território, entre
outras).

§ 15.2.3 A nacionalidade será, pois, apreciada de duas vertentes


enquanto um vínculo jurídico-político, mas também um direito

45
Direito Constitucional

fundamental (questão da dupla cidadania e dos apátridas) É que a


atribuição do vínculo jurídico-político de nacional a determinada pessoa
humana confere-lhe determinados direitos e deveres:

- de participar na vida política do Estado;

- de beneficiar da defesa dos seus direitos dentro do território


do Estado;

- de beneficiar da defesa dos seus direitos fora do território do


Estado;

- de participar na defesa do território;

§ 15.3 Cidadania em TL

2.2. Território

§ 16. O território é o elemento físico sobre o qual o Estado


exerce o seu poder. O território nacional integra:

- o domínio terrestre, como o solo e subsolo sob o domínio do


Estado,
- o domínio marítimo, que, quando banhado por mar, engloba
igualmente a faixa das chamadas “águas territoriais”, o
domínio fluvial (rios), o domínio lacustre (lagos), e
- o domínio aéreo, o espaço que é susceptível de apropriação,
excluída que está a apropriação do espaço fora da atmosfera.

§ 16.1 O território, enquanto espaço jurídico próprio do Estado, é


condição para a atribuição de personalidade jurídica internacional ao
Estado, dependente da efectividade de exercício desse poder sobre o
território. Está, por isso, excluída a existência de poderes concorrentes

46
Direito Constitucional

de outros Estados sobre o seu território, o que, com a crescente


integração à escala regional e global, não apenas socioeconómica, mas
também jurídica e política, é, cada vez mais, discutida. Assim, o poder
do Estado sobre o seu território há-de ser indivisível, inalienável,
exclusivo.

§ 16.2 A aquisição do território pode ser originária (natural) ou derivada


(obtida por qualquer título posterior, v. g. aquisição ou conquistas).

§ 16.3 Em TL

2.3. Poder Político

§ 17. O Poder Político corresponde à faculdade de uma


comunidade politicamente organizada (povo) decidir do seu destino, por
autoridade própria (sem intervenção de qualquer outro poder).

§ 17.1 O Poder Político do Estado sobre um povo e um território vai


intimamente ligado ao conceito de soberania, na génese do “mito” do
Estado-Nação perfeito. Soberania é “o poder que não reconhece
qualquer outro poder” (summa potestas). Mais tarde, esta ideia foi
aperfeiçoada por JEAN BODIN, que garante que cada Povo se organiza,
num território, em Estado sob o domínio de um príncipe soberano.

§ 17.2 O Poder Político do Estado, pressupõe, ainda assim, uma “auto-


validação” do seu próprio poder, que não depende de outra fonte - ou
seja, o Poder Político do Estado será soberano, supremo e independente.

47
Direito Constitucional

Mesmo em casos de secessão, revolução ou guerra de libertação


nacional, a “validade”, “bondade” ou “legitimidade” desta afirmação
soberana começa por ser um acto “ilegal” contra uma certa ordem
estabelecida. Esta afirmação de vontade soberana apenas se legitima pela
ordem normativa que pretende instalar, à posteriori, e no caso de
sucessoxl. Daí que a melhor caracterização de “soberania” seja ainda
“soberano é o poder que não reconhece qualquer outro poder”.

§ 17.3 Naturalmente, isto é, cada vez, menos verdade. Por um lado, a


crescente integração normativa e política ao nível regional e global,
significa que os Estado, cada vez mais, dependem de instâncias de poder
que estão fora do seu domínio. Muitas vezes, em casos de processos de
integração, por exemplo, em organizações internacionais, que admitam
processos de decisão maioritários, poderá mesmo ser imposta uma
decisão contra a vontade de um Estado. Por outro lado, também a
integração social transnacional pode condicionar o próprio acesso à
soberania, como no caso de Timor-Leste, no caso do Direito
subsidiariamente aplicável.

48
Capítulo 3 - Evolução Histórica Constitucional

1. Génese do Constitucionalismo Moderno

§ 22. A ideia de um pacto fundador para a comunidade organizada


politicamente que vincula os seus membros é quase tão antiga como a História
registada pela escrita. A forma actual deste pacto é a Constituição que, no entanto,
chega apenas desde a Modernidade, com as Revoluções Liberais do final do séc.
XVIII, início do séc. XIX, depois “universalizado” pela implementação da presença
colonial europeia um pouco por todo o mundo e, mais recentemente, pelo fenómeno
da “globalização”.

1.1. Antecedentes Históricos

§ 23. O actual conceito de Constituição tem raízes remotas e uma evolução


histórica mais recente.
§ 23.1 Já se referiu a importância do Código de Hamurabi como uma das
primeiras codificações normativas para uma comunidade politicamente organizada.
Da mesma forma, num texto (discutivelmente) atribuído a ARISTÓTELES e
XENOFONTE é referida a evolução das normas em vigor na cidade-estado de Atenas,
na Antiguidade Clássica, desde DRACO até PÉRICLES, na Constituição dos Atenienses
(Ἀθηναίων πολιτεία) 1. No período da República, os Romanos adoptaram as Doze
Tábuas (Duodecim Tabulae), cerca de 450 AC, como um conjunto de regras dirigidas
mais aos membros da comunidade nas suas relações privadas.

§ 23.2 Outros exemplos de tentativas de definição das regras que regem a


organização da comunidade política seguiram-se historicamente. Entre outros
exemplo, merecem referência: a Lei dos Visigodos (Lex Visigothorum) (cerca de 654
D.C.), que vigorou na Europa depois da queda do império Romano; no Japão, a
Constituição de Dezassete Artigos (十七条憲法 jūshichijō kenpō) atribuída ao
Príncipe Shōtoku (cerca de 604) é um dos primeiros exemplos de codificação
normativa no Extremo Oriente, e, no Médio Oriente, a Constituição de Medina

49
Ṣaḥīfat al-Madīna ‫ ﺹصﺡحﯼیﻑفﺓة ﺍاﻝلﻡمﺩدﯼیﻥنﻩه‬pôs fim a uma série de conflitos nesta cidade,
cerca de 622.

§ 23.3 No entanto, as mais directas influências do Constitucionalismo


Moderno partem da experiência liberal inglesa até chegar ao movimento
constitucional Norte-Americano, com origem na Guerra da Independência Norte-
Americana, e Francês, baseado na Revolução Francesa. Estas experiências estão todas
muito intimamente relacionadas.

1.1.1. O Liberalismo Inglês

§ 23.3.1 É longa a experiência constitucional inglesa, que assenta em diversos


documentos historicamente relevantes, considerando que, ainda hoje, o Reino Unido
não tem um texto constitucional único, mas uma Constituição material dispersa por
vários documentos, práticas e tradições.

§ 23.3.1.1 A Magna Carta inglesa2, de 1215, é um dos embriões do movimento


Constitucional. Pela primeira vez, num documento escrito, se estabelece a ideia de
limitação do poder régio, mesmo que por um grupo oligarca de nobres. A versão
original da Magna Carta previa um Conselho de Nobres que podia revogar as decisões
do Rei, pela força, se necessário. Por esta razão, há quem assinale a Magna Carta
como uma afirmação do poder da nobreza, mais do que dos direitos individuais dos
cidadãos. O Rei João Sem Terra assinou a Magna Carta sem qualquer intenção de a
cumprir, tendo-a repudiado logo após a assinatura. Uma versão mais curta foi
republicada já no reinado de seu filho Henrique III e assinala, pela experiência
subsequente, um importante marco na afirmação das liberdades individuais. Na
Magna Carta são, em especial, afirmadas as garantias de processo justo em matéria
criminal (art. 39.º) e as garantias de acesso ao Direito (art. 40.º).

§ 23.3.1.2 Este embrião foi desenvolvido na Petition of Rights, de 1628, apresentada


pelo Parlamento ao Rei Carlos I. A causa mais evidente seria a condução da Guerra
dos Trinta Anos (que, na verdade, foi uma série de conflitos na Europa entre 1618-
1648). Aqui o Parlamento procura estabelecer a seu favor (ou seja, a favor da

50
representatividade parlamentar) algumas limitações ao poder régio em matéria
tributária, em especial, no estabelecimento de novos impostos, na mobilização de
exército e em matéria de liberdades individuais, como acesso ao direito e garantias de
processo penal. No mesmo sentido de garantia das liberdades individuais apontou, em
1679, a Lei sobre o Habeas Corpus, como forma de garantia contra detenções ilegais.

§ 23.3.1.3 Em 1689, a Bill of Rights marca o fim da Glourious Revolution que


estabeleceu, definitivamente, a dinastia protestante em Inglaterra. A Bill of Rights
afirma-se como o texto fundador da Monarquia Constitucional Britânica em torno da
ideia de liberdades individuais, mesmo que, na prática político-constitucional, o tenha
feito a expensas da liberdade religiosa e de alguns direitos das minorias 3 .
Formalmente, ainda assim, marca uma primeira expressão normativa codificada sob a
forma de um texto das Declarações de Direitos Fundamentais que viriam a marcar
toda a história do o Constitucionalismo. Mais tarde, em 1701, o Act of Settlement
(pelo qual a Escócia se integrou no Reino Unido) afirma-se também como lei que
estabelece a forma de organização do Parlamento, completado em 1901. Este foi
completado em 1911 pelo Estatuto de Westminster.

1.1.2. A Independência Norte-Americana

§ 23.3.2 O movimento Constitucional encontra-se geneticamente marcado pela


Revolução contra uma ordem que, violentamente, se recusa.

§ 23.3.2.1 A Guerra da Independência Norte-Americana (1775-1783) foi despoletada


pela discordância dos impostos que a Inglaterra quis impor sobre as colónias, sem que
os colonos tivessem adequada representação parlamentar. A violação do princípio “no
taxation whithout representation” (“não há tributação (impostos), sem representação
(parlamentar)) seria inconstitucional por ofender os seus direitos como ingleses
(“rights as englishmen”), que então ainda eram, precisamente, segundo a tradição
constitucional liberal inglesa já referida. A primeira acção de protesto foi a conhecida
“Boston Tea Party”, em 1773, pela qual os Filhos da Liberdade (“Sons of Liberty”)
de Boston destruíram um carregamento de chá em protesto contra o Tea Act, que
previa uma das primeiras formas de taxação das actividades comerciais da colónia. A

51
forte repressão das autoridades coloniais inglesas que se seguiu foi o embrião para a
Guerra da Independência Norte-Americana.

§ 23.3.2.2 A Guerra da Independência norte-americana foi conduzida pelas colónias


americanas, com o apoio da França, Holanda e Espanha, contra o Reino Unido. Foi
estabelecido um órgão representativo das 13 colónias - o Congresso Continental - que,
na sua segunda convocação, em 4 de Julho 1776, proclamou a Declaração de
Independência (Declaration of Independence) em Filadélfia. Este texto procura
justificar a declaração formal de independência, que tinha sido proclamada já no dia 2
de Julho de 1776. Aqui se encontra o berço do Constitucionalismo Norte-Americano,
com influência em todo o mundo, em especial, quando afirma: “temos estas verdades
como evidentes, que todos os Homens são criados iguais, que lhes são atribuídos pelo
Criador certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a Vida, a Liberdade e a
prossecução da Felicidade” 4 . A independência das colónias Norte-Americanas
encontra-se, assim, umbilicalmente ligada ao nascimento do Constitucionalismo
Moderno, com a influência evidente da própria Bill of Rights britânica.

§ 23.3.2.3 A Constituição dos Estados Unidos foi preparada pelo mesmo Segundo
Congresso Continental, entre 1776 e 1777, e posta à ratificação dos Estado (por se
tratar de um Estado Confederal) até 1781. A Constituição dos Estados Unidos da
América entrou em vigor em 1789. A sua versão original é composta de sete artigos.
Os primeiros três são relativos à organização do poder político, segundo o princípio
da separação de poderes: a) legislativo, exercido pelo sistema bicameral do Congresso
(que inclui a Câmara dos Representantes e o Senado); b) o executivo exercido pelo
Presidente e c) o judicial pelos Tribunais. Os três artigos seguintes referem-se à
organização federal (ou confederal, na ocasião) dos Estados Unidos da América, em
especial, no que se refere às relações entre Estados e Federação, e o artigo final é
relativo ao processo de ratificação pelos Estados. A Constituição Norte-Americana foi
revista (amendments) vinte sete vezes. As primeiras dez emendas são referidas, em
conjunto, como o catálogo de Direitos Fundamentais (Bill of Rights) que falta no texto
escrito da Constituição, por se referirem a matérias relativas aos Direitos e Liberdades
dos Cidadãos5.

52
1.1.3. A Revolução Francesa

§ 23.3.3 As difíceis condições económicas em França, fruto do endividamento da


Guerra da independência norte-americana, da Guerra dos Sete Anos6 e de sucessivos
anos de más colheitas, levaram o Estado a lançar novos impostos, que aumentaram o
descontentamento popular com a Monarquia Absolutista, na figura do então Rei Luís
XVI e da sua Rainha Maria Antonieta.

§ 23.3.3.1 Este período de “Ancient Régime” (o “Regime Antigo”) foi denunciado


nos “Estados Gerais”, organizados segundo os Três “Estados”, nobreza, clero e povo,
em Maio de 1789. Foi marcante a influência da elite intelectual e inspiração liberal,
defensora dos ideais do iluminismo, que já tinham, em Inglaterra e nos Estados
Unidos, conduzido ao movimento Constitucional e às Declarações de Direitos
Fundamentais, referidas. Esta influência é marcante em dois dos mais importantes
pensadores da época, que publicaram livros relativos, precisamente, a essa
experiência comparada: ALEXIS DE TOCQUEVILLE, “A Democracia na América”7,
MONTESQUIEU, cujo Capítulo XI do “L’Esprit de Loi”8 se refere, precisamente, à
“Constituição em Inglaterra”9.

§ 23.3.3.2 Inspirados por estes ideais, bem como pelas referidas circunstâncias
económicas difíceis, os movimentos populares conduziram a Revolução Francesa
levando à Tomada da Bastilha, em 14 de Julho de 1789. Em 10 de Junho de 1789,
por proposta do ABADE DE SIEYÈS já os Estados Gerais se tinham convertido em
“Comunes” (da referência inglesa à “House of Commons”) e, em 20 de Junho,
assumiram-se como Assembleia Nacional com poderes constituintes, pelo juramento
de não se dispersarem até a França ter uma Constituição. A Assembleia Nacional, em
primeiro lugar, aboliu o feudalismo, em 04 de Agosto de 1789, e aprovou a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Déclaration des Droits de
l'Homme et du Citoyen), em 26 de Agosto de 1789. A Constituição foi aprovada em
30 de Setembro de 1791, tendo a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do
Cidadão como seu preâmbulo.

§ 23.3.3.3 O período revolucionário Francês foi pródigo em Constituições10 . A


experiência constitucional Francesa teve influência dominante na Europa, através da
força da expansão do ideário revolucionário liberal, conduzindo a importantes
reformas jurídicas, políticas e administrativas, que as invasões Napoleónicas

53
espalharam por toda a Europa continental. A expansão colonial das principais
potências europeias, que se acentuou nos séculos seguintes, espalhou esta influência
um pouco por todo o mundo.

2. Experiência Constitucional Lusófona

§ 25. O enquadramento Constitucional no espaço da Lusofonia apresenta


traços partilhados interessantes, numa verdadeira comunidade de Direito
Constitucional que GOMES CANOTILHO refere como “padrão Constitucional
Lusófono” e BACELAR GOUVEIA “modelo Constitucional de língua portuguesa” 11,
apesar das divergências acentuadas na doutrina, exactamente, com referência ao caso
timorense12.

§ 25.1 Alguns traços comuns podem ser identificados entre as diversas soluções
Constitucionais encontradas no espaço da Lusofonia.

§ 25.1.1 Relativamente ao sistema de governo parece dominante a opção pelo semi-


presidencialismo (ou sistemas parlamentares-presidenciais, como se verá adiante
relativamente a Timor-Leste). Estas soluções são inspiradas na CRP de 1976.
Excepção são os casos do Brasil e de Moçambique, que consagram opções de
organização do poder político presidenciais. Todas as Constituições prevêem um
Parlamento com competência legislativa.

§ 25.1.2 Da mesma forma, quanto à forma do Estado, todos os Estados assumem a


forma unitária, com a excepção do Brasil que adopta a forma Federal. Nestes Estados
unitários é prevista uma forte autonomia do poder local.

§ 25.1.3 Em termos de Constituição económica, todos os Estados privilegiam a


economia de mercado, apesar de a solução constitucional moçambicana ainda prever
uma base colectivista da economia.

§ 25.1.4 Todas as Constituições prevêem a instauração do Estado de Direito


democrático, com poder judicial independente. Esta é uma solução que resulta da
própria definição de Constituição, organizada segundo o princípio da separação de
poderes e o regime de direitos fundamentais. Na tutela dos Direitos Fundamentais,
todos os catálogos prevêem os Direitos, Liberdades e Garantias dos cidadãos,
seguidos dos Direitos Económicos e Sociais, com excepção de Moçambique onde se

54
verifica a situação inversa. Todos os Estados prevêem fiscalização jurisdicional da
constitucionalidade (excepto Moçambique) e todas as Constituições prevêem
possibilidade de um referendo nacional. Além do mais todas as Constituições são
rígidas, prevendo processos específicos de revisão.

§ 25.1.5 Estes exemplos são relevantes para Timor-Leste, revelando uma


materialidade constitucional que justifica algumas das soluções Constitucionais
positivas encontradas.

2.1. Experiência Constitucional Portuguesa

§ 25.2 A experiência Constitucional Portuguesa tem uma marcante influência original


francesa, encontrando na sua génese a Revolução Liberal de 24 de Agosto 1820, em
grande medida, propiciada também pelo que foram as invasões francesas e o auxílio
Britânico na sua derrota. Na História Constitucional Portuguesa podem distinguir-se
vários momentos e documentos.

- As Constituições Liberais: a Constituição de 1822, a Carta Constitucional


(com este nome porque outorgada pelo monarca) de 1826 e as Constituição de
1838;

- A Constituição Republicana de 1911;

- A Constituição autoritária de 1933, que é a Constituição do Estado Novo de


1926, caracterizado como anti-liberal (economicamente defende o
intervencionismo e controlo estatais, anti-parlamentar e corporativo - a
organização social em corporações surge em reacção contra o individualismo
do liberalismo, sendo através das corporações (dos corpos sociais) e não do
sufrágio que se tinha acesso ao poder político).

- A Constituição Democrática de 1976, fruto da Revolução de 25 de Abril de


1974, visa a institucionalização de um verdadeiro Estado de Direito
Democrático, Social – pela primeira vez se prevê o sufrágio universal e
directo, ao mesmo tempo que se procura a Democracia Económica, Social e
Cultura.

55
2.2. Experiência Constitucional Brasileira

§ 25.3 A Constituição portuguesa de 1822 foi aplicada no Brasil até à sua


independência em 1826, sendo que desde então o Brasil tem uma longa e rica
experiência Constitucional. Assim, podemos encontrar:

- Constituição de 1824, que prevê a Monarquia Constitucional;

- Constituição de 1891, que estabelece o Federalismo;

- Constituição autoritária de 1934, na sequência da crise de 1929, inspirada


no sistema fascista italiano de 1922 e também seguido na Constituição
Portuguesa de 1933;

- Constituição de 1937, subsidiária da anterior;

- Constituição de 1946;

- Constituição de 1967;

- Constituição de 5 de Outubro de 1988, pela qual se estabelece um


Presidencialismo, tenta descentralizar o poder, dando relevância aos
Direitos Fundamentais, em particular, aos Direitos Económicos, Sociais e
Culturais.

2.3. Experiência Constitucional dos PALOP’s

§ 25.4. A 17 de Julho de 1996 foi constituída a Comunidade de Países de Língua


Portuguesa. Apesar de não haver referência directa a uma estrita aproximação de
modelos políticos, pode, ainda assim, encontrar-se níveis de comparação entre
membros da CPLP.

§ 25.5 Nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa [PALOPS], cuja


independência resulta dos Acordos de Independência celebrados entre 1974 e 1975
em Argel, Lusaka e Alvor, podem identificar-se diversos momentos e instrumentos
Constitucionais. Numa primeira fase, alguns Estados adoptaram derivas autoritárias
de raiz marxista-leninista, tendo os demais Estados de S. Tomé e Príncipe, Giné-
Bissau e Cabo Verde adoptado soluções autonomistas originais. Numa segunda fase
todos estes Estados efectuaram transições democráticas, com preocupações sociais,

56
adoptando novas Constituições (São Tomé e Príncipe – 1990; Angola, Moçambique e
Cabo Verde – 1992 e a Guiné-Bissau – 1993).

3. A experiência constitucional em Timor-Leste

§ 26. Uma ideia de constitucionalismo timorense percorre a própria história,


desde a estrutura tradicional até às referências coloniais, que marcam a diferença
específica que justifica a autonomia estadual face o “outro”, neste caso até apenas
metade de uma ilha. O território do actual Estado e as populações aí residentes
distinguem-se por factores específicos que fundamentam a especial relação
constitutiva da identidade colectiva politicamente organizada na base do acesso à
Estadualidade soberana.

3.1. Da História ao Direito

§ 27. A História Constitucional timorense mais remota encontra as suas raízes


mais profundas na diferença específica que a colonização portuguesa marca
relativamente aos vizinho com presenças coloniais britânicas, na Austrália, e
Holandesa, na Indonésia.

3.1.1. Da Colonização Portuguesa

§ 27.1 A presença colonial portuguesa não resultou, necessariamente, numa presença


administrativa que exercesse sobre as populações locais a autoridade do Estado. Em
diversos espaços, como em Timor, o exercício da autoridade colonial foi exercido de
forma indirecta13, inicialmente através da Igreja Católica, cuja papel evangelizador e
social, da educação à prestação de cuidados de saúde, desde sempre se fez sentir.

§ 27.1.1 A presença das autoridades metropolitanas nunca foi, também em Timor-


Leste, avassaladora a ponto de limitar as especialidades da realidade sócio-
económica ou cultural local. Pelo contrário, a autoridade do Estado parecia exercida
através das autoridades indígenas locais fundando-se no consensoprévio estabelecido

57
entre as autoridades locais, que assim viam legitimado o exercício do seu próprio
poder por uma autoridade externa, e as autoridades metropolitanas, que assim
exerciam à distância e com economia de meios o controlo sobre território e
população, desempenhando também, quando necessário, uma função de arbitragem
dos conflitos entre os diferentes reinos14. Esta lealdade às autoridades coloniais
manteve uma muito limitada presença colonial portuguesa em Timor-Leste, de tal
forma que o governador oitocentista AFONSO DE CASTRO diria que “se hoje
abandonássemos a ilha poucos vestígios ficariam da nossa presença”15. Ainda assim,
desta forma se permitiu, durante vários séculos, suportar economicamente a presença
colonial portuguesa em Timor (financiada através da “finta”), bem como a
colaboração, inclusivamente militar, contra episódios insurgentes, na manutenção da
ordem na ilha.

§ 27.1.2 PIMENTA DE CASTRO relata vários períodos (cinco até à Segunda Guerra
Mundial) da colonização portuguesa em Timor-Leste16. Num primeiro período, até à
transferência da capital para Díli (1769), relata a chegada de ANTÓNIO TAVEIRO e dos
missionários dominicanos, vindos das posições portuguesas em Larantuka, actual
ilhas das Flores e de Solor. Em Timor-Leste inverteu-se a ordem tradicional da
colonização portuguesa, sendo os missionários a abrir o caminho aos soldados. Neste
período descrevem-se as relações, por vezes difíceis, com os locais, entre estes e
também nas relações com a administração de Goa e de Macau.

§ 27.1.3 Num segundo período, até 1859, descreve, em especial, as relações com os
holandeses que disputavam o título de aquisição sobre o território, da descoberta à
conquista, pela qual concorriam pela fidelidade dos locais. Este período teria durado
até à delimitação de fronteiras em 20 de Abril de 1859. A negociação da delimitação
de fronteiras em Timor-Leste foi estimulada, localmente, pelo episódio de troca de
fidelidade dos líderes locais para a coroa Holandesa e falta de reacção portuguesa
(1820), em Atapupo, bem como, no plano internacional, pelas as disputas na Europa
entre as coroas de entre França e Inglaterra das Guerras napoleónicas, e, em Portugal
a revolução liberal e as disputas entre Miguelistas e Liberais, no início do século
XIX17. A delimitação fronteiriça procurou, em Timor-Leste, manter o status quo
existente e, fora de Timor-Leste, foi reforçada por uma indemnização pelos domínios
das Flores e de Solor. Neste período, assinala-se ainda a criação da actual Díli, em
1834, pelo Governador JOSÉ MARIA MARQUES, bem como o lançamento da cultura

58
do café (cerca de 1815, pelo Governador JOSÉ PINTO ALCOFORADO E SOUZA) que
marca a vida económica timorense nos anos seguintes. Durante este período, a
presença colonial portuguesa foi-se consolidando com a definição fronteiriça e o
desenvolvimento das trocas comerciais, promovidas por uma comunidade de origem
chinesa já numerosa e por militares em fim de comissão, essencialmente alicerçada
no sândalo vendido para Macau e para a China. Difícil mantinha-se garantir o
controlo das fronteiras, nomeadamente no Mar de Timor a Sul18.

§ 27.1.4 O estatuto jurídico-político de Timor-Leste encontrou-se, nos primeiros


tempos, subordinada a Malaca, mas com a sua perda, em 1641, passou a estar
subordinado à Índia. O Governador era a autoridade civil e militar máxima, sendo
exercido o poder judicial por um ouvidor. Em 1844, Macau e Timor deixaram o
Governo da Índia, tendo, em 1850, assumido estatuto de Governo-Geral Autónomo,
perdido em 1866, quando passou a ser ter um governador subalterno ao de Macau,
com atribuições de governador civil. Em 1897, já durante a administração do
Governador CELESTINO DA SILVA, Timor passou a distrito autónomo. Aliás, durante
esta administração, entre 1894-1908, foi implantado em Timor-Leste um novo
sistema administrativo colonial, com a reorganização do domínio colonial das
grandes potências europeias, saída da Conferência de Berlim. Também para Portugal,
a viragem para o século XX marcou o início do Terceiro Império português, dirigido
essencialmente para África. No novo século, impôs-se a necessidade de garantir a paz
e a ordem em Timor-Leste, pelas Campanhas de Pacificação conduzidas por
CELESTINO DA SILVA. O desenvolvimento tecnológico da época realça também a
necessidade de aproveitamento dos recursos naturais de Timor-Leste, em especial, o
petróleo, mas, também, por via da penetração no território de estradas transitáveis
que ligam os postos militares e garantem o efectivo controlo do território e pela
fundação da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho, cada vez mais, o café19. O
contexto internacional, por outro lado, rapidamente, tornou evidente a crescente
importância geo-estratégica do território de Timor-Leste, como o resto do século XX
o confirma, na intersecção de diversas linhas de comunicação, na ligação entre o
Indico e o Pacífico, entre a Ásia e a Oceânia.

§ 27.1.5 Em termos administrativos, em 1896, Timor-Leste adquire o estatuto de


colónia, autonomizando-se do governo de Macau. Já anteriormente, AFONSO DE

CASTRO tinha tentado a divisão administrativa do território, procurando, na medida

59
do possível, seguir as tradicionais divisões em reinos “soberanos”. Em 1897 vieram a
prever-se 4 concelhos e os comandos militares necessários, em 1908, foram fixados
em 15 (Batugadé, Bobonaro, Maubara, Liquiçá, Aipélo, Hatolia, Manufai, Central do
Sul, Central do Norte (Aileu) Remexio, Manatuto, Baucau, Viqueque, Lautem e Oe-
Cussi)20. A belicosidade dos reinos para com a administração colonial portuguesa, no
período de transição para o século XX, fica demonstrada pelas diversas insurreições
que conduziram as “campanhas de pacificação” nas quais se incluía a repressão
violenta apoiada pelas “tropas de segunda linha”, que tiveram o seu ponto alto na
revolta de D. Boaventura, em 1911-12, já depois do termo da administração de
CELESTINO DA SILVA.

§ 27.1.6 A implantação da República em Portugal marcou um novo impulso


descentralizador na relação da metrópole com as colónias. Em Timor-Leste, esteve
na origem da Carta Orgânica de Timor de 1917 e, subsequentemente, a Lei Orgânica
de 1920. Em sentido inverso, aponta-se ao Estado Novo a tendência centralizadora na
figura do Ministro das Colónias reflectido nas Bases Orgânicas da Administração
Colonial de 1928, bem como no Acto Colonial de 1930, na Carta Orgânica do
Império Colonial Português e a Reforma Administrativa Ultramarina, ambas de 1930.
Juntamente com diversas tentativas de reorganização administrativa do território
marcaram a colonização portuguesa até à eclosão da Segunda Guerra Mundial que,
ao contrário da Primeira, não passou ao largo de Timor-Leste.

3.1.2. Uma Diferença Emergente

§ 27.2 A neutralidade portuguesa na Segunda Guerra Mundial não impediu que o


relevo geo-estratégico de Timor-Leste suscitasse os apetites das potências em
conflito, de um lado, as vizinhas Austrália e a Holanda, de outro, o Japão. Em 17 de
Dezembro de 1941, desembarcaram as primeiras forças aliadas combinadas da
Austrália e da Holanda, com o argumento de pretender evitar que Timor-Leste fosse
tomado pelos Japoneses como base de lançamento para a invasão da Austrália. Em
19 de Fevereiro de 1942, desembarcaram os Japoneses, prevenindo o risco de quebra
da neutralidade portuguesa por parte de australianos e holandeses. Na verdade, o
argumento japonês durante toda a Segunda Guerra Mundial pregava “o advento da

60
Grande Ásia”, que, sob a liderança japonesa, pretendia substituir o domínio colonial
ocidental21.

§ 27.2.1 De nada valeram os protestos formais formulados por Portugal contra os


Estados em confronto, não se tendo logrado o abandono das forças em conflito até
1943 com a retirada Australiana. No entanto, a ocupação japonesa foi bem mais
sangrenta, apontando-se o desaparecimento de cerca de 15% da população em
campanhas negras de repressão de qualquer manifestação contrária às forças do Eixo,
em especial, anti-nipónica e do seu projecto pan-asiático.

§ 27.2.2 A resistência timorense à invasão, isolada pela neutralidade e distância


portuguesa, é apontada por JOSÉ MATTOSO como “uma espécie de consciência pré-
nacional” e CANAS MENDES, refere-se a este período como um dos decisivos
momentos da consciencialização nacionalista timorense ao acentuar a alteridade
comunitária face ao “outro” (“malai”) invasor, tanto quanto a dualidade face à outra
metade da ilha onde teriam sido recrutados os membros das “colunas negras”
repressoras, num prelúdio de uma, muito mais decisiva, resistência22.

§ 27.2.3 Não é fácil aferir o efectivo papel destes eventos na construção de uma
identidade nacional timorense, potencialmente, instrumentalizados (como contra a
ocupação colonial portuguesa a resistência de D. BOAVENTURA) e construídos
apocrifamente por um nacionalismo emergente. No entanto, não parece difícil aceitar
a sua relevância na consciencialização colectiva da insuficiência da presença
estrangeira e, assim, na construção “negativa”, como refere CANAS MENDES, de uma
identidade nacional timorense. Independentemente desta discussão, o seu papel
actual como um dos mitos fundadores do nacionalismo timorense é real e, como tal, a
sua referência incontornável23.

3.1.3. Tratamento Jurídico-Constitucional

§ 27.3 Até ao final da presença colonial portuguesa, em termos jurídico-


constitucionais, as referências constitucionais a Timor-Leste integravam-no no
território nacional. Na:

• Constituição de 1822 (art. 20.º, IV),

61
• Carta Constitucional de 1826 (art. 2.º, § 3.º),

• Constituição de 1838 (art. 2.º),

• Constituição de 1911 (art. 2.º),

• Constituição de 1933 (art. 1.º).

No período final do Estado-Novo, já confrontado com guerras de libertação


nacional em África, o regime afirmava a soberania sobre um território “Do Minho a
Timor”- do território mais a Norte ao território mais a Sul.

§ 27.3.1 Várias disposições legais desenvolveram estas disposições constitucionais


sobre Timor-Leste. Em especial, a partir da implantação da República em Portugal,
em 1910, foram aprovados diferentes Estatutos legais de Timor-Leste:

• Carta Orgânica de Timor-Leste, pelo Decreto n.º 3309, de 23 de Agosto de


1919;

• Carta Orgânica de Timor, Decreto n.º 12499-G, de 12 de Outubro de 1926;

• Estatuto da Província de Timor, Decreto n.º 40228, de 5 de Julho de 1955; o


Estatuto Político Administrativo da Província de Timor, Decreto n.º 45378, de
22 de Novembro de 1963.

§ 27.3.2 Desde o final da Segunda Grande Guerra, com a adopção da Carta das
Nações Unidas, a ameaça à presença colonial portuguesa em Timor-Leste foi
constante. A revisão da Constituição Portuguesa de 1951 caracterizou as, até então,
colónias como “províncias ultramarinas”, tendo, inclusivamente, o Estatuto Orgânico
de Timor-Leste, de 5 de Julho de 1955, consagrado órgãos de governo próprio, como
o Governador e o Conselho de Governo, com competências essencialmente
consultivas e para o qual apenas seriam elegíveis cidadãos de origem portuguesa. O
novo Estatuto de 1962 veio acrescentar um Conselho Legislativo. Também se foram
sucedendo as reorganizações do território em Timor-Leste, a mais relevante das quais
o Estatuto Político-Administrativo da Província de Timor, de 22 de Novembro de
1963. Subsequentes revisões de 1971 (e a Lei Orgânica de 1972) expressamente
consagraram a autonomia dos territórios.

§ 27.3.3 Em termos da organização administrativa do território de Timor-Leste,


CANAS MENDES 24 dá conta, em 1974, de 13 concelhos: Díli, Oé-Cussi, Aileu,

62
Liquiçá, Ermera, Bobonaro, Cova lima, Ainaro, Same, Manatuto, Viqueque, Baucau
e Los Palos. A paz que se seguiu à Segunda Guerra Mundial permitiu, também em
Timor, um desenvolvimento económico e social sem precedentes, com o incremento
da alfabetização, o acesso das elites timorenses ao funcionalismo público e aos
centros de decisão política. Também a facilidade de comunicação e deslocação (em
especial após a construção do aeroporto de Baucau) facilitaram os contactos, sempre
tão difíceis, com Portugal. No entanto, o acesso da Indonésia à soberania estadual
anunciava perigos para o status quo que a vitória aliada na guerra do Pacífico havia
já prenunciado. A posição geo-estratégica de Timor-Leste, crescentemente,
importante, em especial, para a segurança da Austrália, bem como a posição não
alinhada da Indonésia no quadro da Guerra Fria, susceptível de intimidar ambos os
blocos a ponto de aplacarem os seus apetites expansionistas (como no caso da Nova
Guiné Holandesa) e, mais ainda, o seu militante anti-colonialismo, pareciam ameaçar
a presença portuguesa em Timor-Leste. Em causa não estava, no entanto, a diferença
que presença portuguesa em Timor-Leste marcava face às antigas Índias Holandesas,
que, aliás, o golpe militar de SUKARNO pareceu garantir25.

3.2. O Exercício Direito à Auto-determinação

§ 28. O direito de autodeterminação das possessões coloniais portuguesas


apenas foi reconhecido após a Revolução de 25 de Abril de 1974. Na CRP de 1976
não se faz qualquer referência a territórios coloniais. Logo após a Revolução de
1974, e antes ainda da Constituição de 1976, já a Lei Constitucional n.º 7/74, de 27
de Julho, se referia ao programa de descolonização e a Lei n.º 7/75, de 17 de Julho,
fazia referência ao caso de Timor-Leste, prevendo a criação de uma Assembleia
Popular à qual caberia “definir, por maioria simples e voto directo e secreto, o
estatuto político e administrativo do território de Timor”, nos termos do respectivo
art. 4.º. A soberania portuguesa em Timor-Leste terminaria, nos termos do art. 5.º, n.º
1 da mesma Lei n.º 7/75, de 17 de Julho, no terceiro domingo de Outubro de 1978.

63
3.2.1. A República Democrática de Timor-Leste de 1975

§ 28.1 Os diferentes interlocutores timorenses deste processo de transição, em


especial, a ASDT (precursora da actual FRETILIN), a UDT e a APODETI,
preconizavam diferentes soluções. Respectivamente, a ASDT defendia a imediata
independência, a UDT, uma prévia fase de transição, a APODETI, a integração na
Indonésia. As alianças conjunturais e as suas sucessivas rupturas conduziram à perda
do controlo sobre o território da administração portuguesa. Portugal requereu ainda a
intervenção de uma força internacional para restaurar a ordem e a paz no território,
através da carta remetida ao Secretário-Geral das Nações Unidas em 22 de Agosto de
1975, apontada como a primeira instância de “multilateralização” da questão
timorense 26 . A violência interna agudizou-se nos meses seguintes. Em 28 de
Novembro de 1975 foi proclamada a declaração de independência unilateral pela
FRETILIN. Esta declaração foi apenas reconhecida por 15 Estados, entre os quais
alguns dos Estados Africanos recentemente saídos da descolonização portuguesa. A
generalidade da comunidade internacional, incluindo Portugal, Austrália ou
Indonésia, não reconheceram a declaração de independência da República
Democrática de Timor-Leste, nesta ocasião. Apesar de ser genericamente
reconhecido o direito do povo timorense à autodeterminação, a Indonésia, que havia
subscrito a apresentação à Assembleia Geral das Nações Unidas de uma Resolução
neste sentido, em 07 de Dezembro de 1975, invadiu o território, alegadamente, a
pedido de algumas das forças excluídas do processo de declaração unilateral de
independência27.

3.2.2. A Invasão Indonésia

§ 28.2 A ilegalidade da acção da Indonésia, desde cedo, pareceu evidente.

§ 28.2.1 Desde logo, em causa estaria a violação do Princípio da Proibição da Força


ou da Ameaça da Força, em especial, previsto no art. 2 (4) da Carta das Nações
Unidas, assinada em 1945 no final da Segunda Guerra Mundial, precisamente, com o
intuito de a não repetir28. Aliás, a “Operação Komodo” facilmente se enquadraria no
conceito de “Agressão” definido pela Resolução n.º 3314 da AG das Nações Unidas,
de 1975 regula as relações internacionais, formalmente, consagrado

64
§ 28.2.2 Mesmo a invocação de um putativo Direito da Ingerência Humanitária29
não é aceite pela generalidade da doutrina do Direito Internacional. Mais ainda seria
recusada a invocação deste argumento em 1975. Mesmo que se aceitasse esta
possibilidade à luz do Direito Internacional Humanitário, sempre haveria que
verificar, no caso, a veracidade factual dos argumentos de uma crise humanitária
invocado na altura pela Indonésia.

§ 28.2.3 A dupla função (dwifungsi) dos militares indonésios garantia uma presença
militar constante, visível e actuante, visando a sua infiltração em todas estruturas da
sociedade timorense. Impuseram-se obrigações de denúncia de todos os cidadãos às
estruturas de bairro que colocavam cada timorense ao serviço de uma rede de
informações totalitária. Esta avassaladora presença militar existia em detrimento da
própria administração civil, bem como das próprias estruturas tradicionais, o que,
com a violenta repressão de qualquer manifestação anti-indonésia, teve o efeito de
fomentar a resistência à ocupação. A tentativa de indoneisação da sociedade
timorense proibiu o uso da língua portuguesa e a promoção activa do Bahasa Malaio
no sistema de ensino. O mesmo efeito integracionista pretendia tanto a política de
migrações forçadas para o litoral, de forma a retirar o apoio à guerrilha, e a política
de emigração das populações indonésias para Timor. No entanto, estas políticas
parecem ter oferecido resultados contrários aos pretendidos. A promoção activa da
assimilação social na sequência da anexação política, pela sua escala e intensidade,
parece ter sido um dos factores que mais activamente conduziu à resistência e,
nomeadamente, através da religião à definitiva constituição de uma identidade
nacional timorense30. Nem este efeito foi contrariado pela dimensão da administração
indonésia em Timor-Leste (cerca de 34000 em 1999, segundo o MNE português, 3,4
% da população total) composta no seu topo, maioritariamente, por indonésios, mas
também incluindo muitos timorenses nos seus quadros mais baixos, que assim viam
garantidos salários, ainda que muito baixos, e um nível de vida sustentável a que
acresciam regulares distribuições de arroz31.

3.2.3. O Direito à Autodeterminação timorense

§ 28.3 O Direito à autodeterminação dos povos é um dos fundamentos da actual


ordem jurídica internacional encontrando consagração expressa no art. 1 (2) e 55.º da

65
Carta das Nações Unidas, da qual é uma das linhas condutoras. Encontra maiores
desenvolvimentos, no que concerne o processo de descolonização, no Capítulo XI
“Declaração relativa aos territórios sem governo próprio” e no Capítulo XIII que lhe
consagra o “Sistema Internacional de Tutela”.

§ 28.3.1 Além disso, a acção das Nações Unidas no processo de descolonização


conduziu à aprovação da Resolução 1514 (XV) de 1960 (Declaração de Concessão
de Independência aos Povos e Países Colonizados), bem como da Resolução 1541
(XV) sobre os “Princípios que devem guiar os Membros na determinação da
Obrigação de Transmissão de Informação Exigida pelo artigo 73.º, e) da Carta”.
Portugal foi repetidas vezes interpelado ao abrigo deste regime pela manutenção das
possessões coloniais, antes de 1974. Na primeira Resolução, Timor-Leste era
considerado um “Território Não-Autónomo”, sob administração portuguesa. Nesta
última resolução estabeleciam-se as condições para o exercício do direito de
autodeterminação destes territórios, designadamente referindo-se ao desenvolvimento
das “instituições políticas livres” e à formação de “vontade, livremente expressa”,
potencialmente fiscalizada pelas Nações Unidas32.

§ 28.3.2 A Resolução 1542 (XV), de 15 de Dezembro, garantia o exercício do direito


à autodeterminação timorense, dirigindo-se, especificamente, a Portugal, fazendo
referência também a os outros territórios coloniais portugueses. A Resolução da AG
da ONU 3485 (XXX), logo de 12 de Dezembro de 1975, exigiu a retirada da
Indonésia e reconheceu Portugal como a potência administrante. Mais tarde, a
Resolução do Conselho de Segurança (obrigatória ao abrigo do art. 25.º da Carta das
Nações Unidas) incumbe o Secretário-geral das Nações Unidas de acompanhar a
situação, para o que é nomeada o primeiro representante especial Guicciardi.

§ 28.3.3 Esta posição dos diferentes órgãos da ONU contrariava a principal


argumentação indonésia segunda a qual o Povo timorense havia já exercido o seu
Direito à autodeterminação, tendo optado pela integração. Além do alegado pedido
timorense de intervenção no momento da invasão, já referido, acrescentou-se a
deliberação da Assembleia Regional timorense, instituída pelas autoridades
indonésias, de 31 de Maio de 1976, a requerer, e a decisão do Parlamento indonésio a
aceitar a integração de Timor-Leste com a 27.º Província indonésia, pela Lei 7/76, de
17 de Julho de 1976.

66
§ 28.3.4 Apesar dos argumentos jurídico aduzidos, a extrema violência da ocupação
indonésia, que alguns relatórios apontam para uma perda de 1/3 da população nos
primeiros anos33, manteve-se durante 24 anos, marcada pela generalização da fome,
das prisões arbitrárias e da preterição do direito a um processo judicial justo, da
tortura, da violação da liberdade de expressão, da liberdade de culto e de outras
diversas normas de Direito Internacional34, algumas delas reconhecidas, de há muito,
como detentoras de carácter de normas peremptórias (ius cogens). O apoio pela causa
timorense parecia diminuir entre a comunidade internacional, com a crescente
diminuição de votos favoráveis nas Resoluções de Organizações Internacionais. A
última votação na AG da ONU é bem elucidativa, tendo obtido apenas mais quatro
votos favoráveis e tantos quantos as abstenções (50 a favor, 46 contra e 50
abstenções). Cada vez mais se apontava para a grave situação humanitária que se
vivia no território (mais consensual na comunidade internacional) invocando o direito
de acesso da Cruz Vermelha e de outras organizações humanitárias.

§ 28.3.5 O enquadramento geo-estratégico global facilitou o desenlace que se seguiu


à declaração unilateral de independência, bem como o progressivo esquecimento da
violenta ocupação. A aceitação, mesmo que de facto, da anexação pelos Estados
Unidos da América, na sequência do apontado beneplácito dado à invasão, encontrou
no bloco hegemónico opositor nesta fase da Guerra Fria, tão pronto a tomar partido
de outras reivindicações relativas à autodeterminação dos povos, em especial, no
processo de descolonização do terceiro mundo, a mesma indiferença face à
reivindicação soberana timorense. Nem a URSSS, nem a República Popular da China
tomaram significativo partido nesta ocasião, apesar da proximidade ideológica
reclamada por certos quadrantes da resistência (em particular, a ADST rebaptizada
como FRETILIN, cuja programa não se afastava de outros partidos e movimentos de
libertação do terceiro mundo da altura). A Guerra Fria mundial não facilitava, pois, a
defesa da posição timorense 35 , dada a importância geo-política da Indonésia, e
nomeadamente, o seu papel no Movimento dos não alinhados.

§ 28.3.6 A riqueza da história da resistência não cabe neste estudo. No entanto, a sua
referência impôs-se como um dos mitos fundadores da própria estadualidade
timorense, encontrando eco, inclusivamente, no texto da CRDTL. A ocupação que se
arrastava (e chegou aos 24 anos) foi sendo contrariada pela intransigente defesa da
soberania popular por uma reduzida força militar sempre presente no território (a

67
“gloriosa luta das FALINTIL” como refere o art. 11.º da CRDTL), com os altos e
baixos de uma guerra de guerrilha sem solução militar. Estes esforços foram
conjugados com a diligente diplomacia no exterior, apoiada por Estados amigos.

3.2.4. No Tribunal Internacional de Justiça

§ 29. A questão da autodeterminação do povo timorense chegou,


inclusivamente, ao Tribunal Internacional de Justiça, a requerimento de Portugal na
qualidade de potência administrante36.

§ 29.1 Pelo menos desde a década de 1960 que a delimitação das fronteiras marítimas
em Timor-Leste se afigura problemática. A estas dificuldades não são, naturalmente,
estranhas as riquezas naturais de minerais fósseis entretanto descobertas, em especial
no Mar de Timor (Costa Sul).

§ 29.1.1 A realidade geográfica no Mar de Timor não facilita a sua delimitação. O


Mar de Timor é a parcela de mar que separa a costa sul da ilha de Timor do litoral
Nordeste da Austrália com uma largura de cerca de, na zona mais estreita, as 250
milhas e, na sua banda mais larga, as 290 milhas marítimas. Por outro lado, a
plataforma continental do Mar de Timor apresenta traços de descontinuidade - uma
depressão profunda, situada a uma distância que varia entre as 40 e as 70 milhas
marítimas ao longo da costa da ilha de Timor, cuja existência dá origem a dois
bordos exteriores da margem continental, um timorense e outro australiano.

§ 29.1.2 Na delimitação das fronteiras marítimas a Austrália pretendia que o


reconhecimento da sua jurisdição sobre o leito e o subsolo do mar de Timor se
estendesse até ao bordo exterior da sua margem continental, o qual dista mais de 200
milhas marítimas das linhas de base australianas que servem para calcular o mar
territorial, segundo o argumento em Direito Internacional de “prolongamento
natural”. Na delimitação de fronteiras marítimas com a Indonésia, os dois tratados, de
Maio de 1971 e de Outubro de 1972, fixaram as fronteiras marítimas entre os dois
países numa zona intermédia entre o bordo exterior da margem continental
australiana e a linha mediana, que fizeram valer esta posição australiana.

§ 29.1.3 Portugal nunca aceitou o argumento australiano e na impossibilidade de


determinação da fronteira marítima criou-se o chamado “Timor Gap”, o espaço

68
frontal ao território sob administração portuguesa cujas fronteiras marítimas não se
encontravam delimitadas. Após a invasão e posterior integração de Timor na
República Indonésia apenas foi reconhecida pela Austrália, a partir de 1978, foram
conduzidas negociações entre os dois Estados no sentido de concluir um Tratado
relativo à delimitação da fronteira marítima no que se refere ao segmento do “Timo
Gap”. O início formal das negociações marcou, em 1979, o reconhecimento jurídico
da anexação indonésia de Timor-Leste.

§ 29.2 As pretensões portuguesas, na qualidade de potência administrante do


território de Timor-Leste na falta do adequado exercício do direito à
autodeterminação pelo povo timorense, conduziram à apresentação de diversas notas
de protesto ao governo australiano, formalizada pela apresentação de uma nota
formal de protesto em Setembro de 1985. No entanto, em Dezembro de 1989, foi
assinado a bordo de avião que sobrevoava o Mar de Timor, o tratado que institui uma
zona de cooperação entre a Austrália e a Indonésia na plataforma continental de
Timor Leste, pelo Ali Alatas, Ministro dos Negócios Estrangeiros da Indonésia e
Alexandre Downer.

§ 29.3 Ao abrigo da legitimidade que lhe garantia a qualidade, internacionalmente


reconhecida, de potência administrante do território não autónomo de Timor Leste,
Portugal apresentou em 22 de Fevereiro de 1991, petição ao TIJ argumentando que
com a conclusão do Tratado pelo qual se estabelecia a zona de cooperação entre a
Austrália e a Indonésia sobre o Mar de Timor, a Austrália havia violado os direitos
do povo de Timor-Leste à autodeterminação e violado os direitos de Portugal como
potência administrante.

29.3.1 Assim, requeria-se que o Tribunal declarasse:

1. o direito do povo de Timor Leste à autodeterminação, à integridade territorial


e à soberania permanente sobre os seus recursos naturais;
2. a oponibilidade, em relação à Austrália, das obrigações, poderes e direitos de
Portugal, enquanto potência administrante de Timor Leste;
3. o incumprimento australiano da obrigação de negociar com Portugal em todas
as matérias relativas à plataforma continental de Timor Leste;
4. o desrespeito australiano pelas resoluções do Conselho de Segurança relativas
a Timor Leste;

69
5. como ilícito o comportamento da Austrália e, por fim,
6. que, até ao momento em que o povo timorense pudesse exercer o seu direito à
autodeterminação, a Austrália fosse aconselhada a renunciar a qualquer
negociação, assinatura, ratificação ou execução de acordos com países
terceiros, relativos à delimitação ou exploração da plataforma continental de
Timor Leste37.

§ 29.3.2 Na decisão sobre os méritos, em 30 de Junho de 1995, o Tribunal


Internacional de Justiça veio reconhecer a existência de uma disputa entre Portugal e
a Austrália, acabando, no entanto, por decidir não poder exercer a sua jurisdição
sobre a questão apresentada, uma vez que isso impunha a anterior pronúncia sobre o
poder de Portugal ou da Indonésia de celebrar Tratados em nome de Timor-Leste. A
Indonésia não podia ser demandada, um vez que não era parte nesta acção por não
reconhecer a jurisdição compulsória do Tribunal, ao abrigo do art. 36.º do seu
Estatuto. Em termos técnico mesmo esta decisão foi critica na Separate Opinion do
Juíz ODA, que indicou como fundamento da decisão a falta de legitimidade
processual de Portugal. A decisão foi, no entanto, mais polémica e dividida.

§ 29.3.3 O Tribunal reconheceu expressamente que as partes reconheciam Timor


Leste como um território não autónomo e que o seu povo tem o direito à
autodeterminação. Decidiu ademais a natureza erga omnes, oponível a todos os
sujeitos de Direito Internacional, do Direito à auto-determinação dos povos, tal como
consagrado na Carta das Nações Unidas e reconhecido pelo Tribunal. Declarou
mesmo tratar-se de uma “princípio essencial de Direito Internacional
contemporâneo”. Daqui se extraem as maiores críticas à decisão do tribunal.

§ 29.3.3.1 A maioria da doutrina crítica a decisão do tribunal entendeu de que a


decisão não poderia afectar a posição jurídica de terceiros que não aceitassem a
jurisdição do Tribunal, validando a perspectiva voluntarista do Direito Internacional,
tão criticada da perspectiva da insuficiência dos mecanismos coercivos em Direito
Internacional.

§ 29.3.3.2 A natureza erga omnes do princípio da auto-determinação dos povos, que


no caso de Timor-Leste se encontra ainda por realizar adequadamente, como também
reconhece o Tribunal, significaria que o mesmo poderia ser oposto à conduta de
qualquer Estado, mesmo que unilateral e, no caso vertente, da Austrália, que havia

70
inclusivamente adoptado legislação doméstica para dar cumprimento ao acordado
com a Indonésia. E, no caso vertente, nem a questão a legitimidade processual de
Portugal seria questionada, atenta a sua qualidade de potência administrante. Neste
sentido, considerando a posição de Portugal como potência administrante do
território não independente de Timor-Leste, aponta, inclusivamente, o voto de
vencido do Juíz SKUBISZEWSKI.

§ 29.3.3.3 Além disso, a possibilidade de o fazer ao abrigo da legitimidade popular


(actio popularis) já reconhecida em Direito Internacional38. Este raciocínio, “levado à
sua conclusão lógica, significa que o peido formulado contra a Austrália deveria ter
prosseguido, independentemente da demanda contra a Indonésia, segundo o voto de
vencido (dissenting opinion) do Juíz WEERAMANTRY.

3.3. O Exercício do Direito de Autor-determinação Timorense

§ 30. O final da Guerra Fria veio alterar o quadro geopolítico que mantinha
esquecidas as reclamações soberanas do povo timorense. No entanto, inicialmente, a
Queda do Muro de Berlim, em 1989, impôs outras preocupações na comunidade
internacional. Em especial, o ressurgimento nacionalista, sentido nas repúblicas da
ex-URSS e na sua órbita, levantaram sérias preocupações na resposta a pretensões
independentistas unilaterais. Havia que conter a Guerra que grassava desde o inicio
da década de noventa do século XX na zona dos Balcãs, na Europa, entre as
anteriores Repúblicas da Federação da Jugoslávia – Sérvia, Croácia, Bósnia
Herzegovina e, já neste século, no Kosovo. Naturalmente, nenhuma das questões
aqui suscitadas teria o tratamento jurídico-internacional incontrovertido dos
argumentos timorenses, de há muito, enquadrados no processo de descolonização.
Em meados da década de 1990, a ilusão de uma ordem mundial alicerçada no
primado dos direitos humanos, nomeadamente no direito de ingerência humanitária
(agora oposto à catástrofe humanitária causada pela ocupação indonésia), tinha
sofrido um revés sério com o fracasso da intervenção humanitária de forças dos
EUA, sob a égide da ONU, na Somália. As considerações de realpolitik continuavam
a impor-se à justiça e legalidade internacional das pretensões timorense. Nesta altura,
aceite tacitamente e, mesmo que apenas de facto, a invasão e a ocupação indonésias
em Timor-Leste, importante era evitar incentivar outras pulsões independentistas que

71
emergiam no território da Indonésia, em especial em Banda Ache, que só tsunami de
2004, verdadeiramente, acalmou. A perspectiva da generalização de pretensões
soberanas, que pudessem levar à desagregação da Indonésia revelava-se
potencialmente desestabilizadora de toda região, com consequências altamente
indesejáveis.

§ 30.1 Ainda assim, a partir da década de 1990, os esforços da a resistência timorense


tornaram-se internacionalmente cada vez mais visíveis, num movimento com
crescente simpatia junto da opinião pública internacional.

§ 30.1.1 A visita papal a Timor-Leste, em Outubro de 1989, chamou a atenção da


comunidade internacional para o território ocupado. Apesar de, aquando da visita ao
território, o Papa João Paulo II não ter beijado o solo em reconhecimento da
independência (ou do direito à independência) timorense, a simples presença e
visibilidade mediática, trouxe Timor-Leste de volta aos ciclos mediáticos
internacionais.

§ 30.1.2 Mais dramaticamente contribuiu para a crescente visibilidade internacional


da questão timorense o massacre no cemitério de Santa Cruz, em 12 de Novembro de
1991. As imagens captadas na ocasião e difundidas em todo o mundo por jornalistas,
alguns deles presentes em Díli para acompanhar uma missão parlamentar portuguesa
cancelada à última hora, tragicamente chamaram a atenção da opinião pública
internacional e dos respectivos governos para a gravíssima situação que se vivia no
interior do território ocupado, marcando um “ponto de viragem”39.

§ 30.1.3 A “questão timorense” manteve-se entre as preocupações da comunidade


internacional com a prisão, julgamento e posterior encarceramento em Cipinang do
lendário líder da guerrilha no território – KAY RALA XANANA GUSMÃO, bem como
pela atribuição do Prémio Nobel da Paz ao Bispo D. XIMENES BELO e a JOSÉ RAMOS-
HORTA. Também juridicamente, continuava a luta pelo reconhecimento da validade
da posição a favor da auto-determinação timorense, e, em Junho de 1997, a Comissão
dos Direito Humanos da ONU, aprovou a resolução 1997/63 consolidando anterior
decisão sobre Timor e pressionando a Indonésia a cumprir anteriores resoluções dos
diferentes órgãos da ONU sobre Timor, instando a procura de uma solução
internacionalmente aceite para o problema.

72
3.3.1. Da Ocupação ao Referendo

§ 30.2 Não é fácil, nem cabem aqui, as razões que criaram, na parte indonésia, as
condições para o exercício do direito à autodeterminação timorense. Facilmente se
compreende, no entanto, a insustentabilidade da manutenção da situação, em
especial, no rescaldo de uma profunda crise económica regional40. O complexo
processo de transição democrática na Indonésia e os seus difíceis equilíbrios marcou
profundamente o momento histórico do exercício timorense do direito à
autodeterminação. Em especial, a necessidade de reconhecimento internacional no
final de um período de ditadura militar de SUHARTO, por parte da facção liderada por
HABIB, parece ter criado o quadro favorável ao acordo celebrado em Nova Iorque,
sob os auspícios do Secretário-Geral das Nações Unidas, a 05 de Maio de 1999, entre
a Indonésia e Portugal, reconhecidamente a potência administrante de um território
não autónomo, para o exercício do direito à auto-determinação.

§ 30.2.1 Tratava-se, afinal, de dar efectivo cumprimento ao exercício do direito de


autodeterminação do povo timorense, nos termos da Resolução 1541 (XV), referida
já, apesar de nem todas as condições aí previstas se encontrarem cumpridas pela
acção dos ocupantes durante 24 anos, nomeadamente aquelas que se referem ao
desenvolvimento em “grau avançado de governo próprio, com instituições políticas
livres, para que os seus povos tenham capacidade para fazer uma escolha
responsável, através de processos, de todos conhecidos e democráticos”. O
compromisso, satisfazia, ainda assim, parte das pretensões timorenses,
nomeadamente garantindo a supervisão das Nações Unidas, como prescrito na
mesma Resolução da AG da ONU.

§ 30.2.2 Com base neste “Acordo Geral”, o Conselho de Segurança da ONU criou a
United Nations Missions in East Timor (UNAMET), através da Resolução 1246
(1999), de 11 de Junho, com vista a supervisionar o processo que conduziria ao
referendo pelo qual se exerceria o direito do povo timorense à auto-determinação,
tendo o Secretário-Geral da ONU KOFI ANANN nomeado como seu represente
especial IAN MARTIN41. Em 16 de Junho iniciou-se o processo de recenseamento e a
14 de Agosto a campanha para o referendo de 30 do mesmo mês. Os timorenses
foram convidados a pronunciar-se acerca da proposta de autonomia oferecida pela
integração da indonésia. Os resultados, anunciados a 4 de Setembro, foram claros:
78,5% votaram contra a proposta de autonomia que a integração oferecia, numa

73
votação a que compareceram 98,6 % dos eleitores recenseados. A violência que se
seguiu culminou de forma trágica, e ainda hoje visível um pouco por todo o país, os
anos de ocupação e a intimidação que tinha marcado a campanha para o referendo.
No quadro dos complexos equilíbrios de poder entre as facções indonésias na
transição para a democracia, os militares pareciam não prescindir de marcar a sua
posição tanto quanto de alertar quaisquer outros eventuais a independentistas.

§ 30.2.3 Em 15 de Setembro de 1999, o Conselho de Segurança aprovou a Resolução


1264 (1999), pela qual autorizou a intervenção militar internacional, conduzindo à
entrada da INTERFET em Timor, em 20 de Setembro. O mandato da UNAMET foi
prolongada até 30 de Novembro de 1999, data da entrada em funções da nova missão
da ONU, com a função de preparar a independência timorense e o efectivo
funcionamento do Estado timorense. O Acordo entre Portugal e a Indonésia previa
que, em caso de recusa da proposta de integração, seriam tomadas todas as medidas
necessárias para a transferência de administração para as Nações Unidas. Os
acontecimentos que se seguiram ao referendo anteciparam este processo.

3.3.2. O Reino (Absolutista) da ONU em Timor-Leste”

§ 30.3 De há muito, que as Nações Unidas estão envolvidas em operações de


Administração internacional de territórios, em especial, no âmbito das suas
prerrogativas de tutela e monitorização de territórios descolonizados, mas, em
especial, quando as estruturas locais do Estado se desagregam. Estas operações têm
tradicionalmente diferentes graus de intervenção, graduadas em assistência, parceria,
controlo e governação total 42 . Em Timor-Leste, a ONU assumiu funções da
governação directa na transição para a estadualidade soberana, desde cedo se
afirmando como um caso de estudo, e, por vezes perversamente, um laboratório, para
as operações de nation biulding da ONU. A Resolução 1272 (1999) do Conselho de
Segurança da ONU, de 25 de Outubro de 1999, criou a Administração Transitória
das Nações Unidas em Timor-Leste (UNTAET em inglês).

§ 30.3.1 Esta Resolução foi adoptada ao abrigo do Capítulo VII, considerando a


situação em Timor-Leste uma ameaça para a paz e a segurança colectiva, investindo
a UNTAET de poderes inéditos nas operações das Nações Unidas. A UNTAET

74
detinha responsabilidade geral pela administração de Timor-Leste, um verdadeiro
reino 43 de governo absolutista fora de tempo, concentrando poderes legislativos,
executivos e judiciais, a que acrescia uma cláusula residual pela qual poderia
“adoptar todas as medidas necessárias para cumprir o seu mandato”. A sua estrutura
integrava uma força administrativa, que incluía polícia (CIVPOL), em número até
1640, uma componente humanitária e uma força militar até ao máximo de 8950.

§ 30.3.2 No primeiro acto em Timor-Leste (UNTAET/REG/1999/1), a UNTAET


arrogou-se todos os poderes que lhe eram já atribuídos pela Resolução 1272 (1999),
remetendo-os para o Administrador transitório, SÉRGIO VIEIRA DE MELO. Este
regulamento manteve em vigor toda a legislação vigente em Timor-Leste anterior a
25 de Outubro de 1999, data da criação da UNTAET, desde que não contrariasse uma
série de actos normativos de origem internacional, referidos no art. 2.º, que garantiam
um nível adequado de protecção dos direitos humanos, bem como o mandato
conferido pela Resolução 1272 (1999). O Representante Especial do Secretário-geral
das Nações Unidas [RESG] rapidamente tratou de proceder à escolha de um
interlocutor local, na “timorização” do processo de Administração transitória, pela
criação do Conselho Consultivo Nacional, através do UNTAET/REG/1999/2 de 2 de
Dezembro de 1999. Este Conselho foi substituído, em Outubro de 2000, pelo
Conselho Nacional, “um órgão proto-parlamentar transitório” com formação
híbrida44. No mesmo sentido de “timorização” os poderes executivos passaram a ser
exercidos pela ETTA (East Timor Transitory Administation), composta em Julho de
2000 e que incluía, além de vários altos-funcionários internacionais, várias
personalidades timorenses (MARI ALKATIRI, ANA PESSOA, RAMOS HORTA e JOÃO
CARRASCALÃO) e era presidido por SÉRGIO VIEIRA DE MELLO. No entanto, as
dificuldades sentidas do próprio lado timorense para apresentar uma só voz como
interlocutor da Administração Transitória das Nações Unidas, reflectem aquelas
sentidas pelo Conselho Nacional da Resistência Timorense [CNRT] criado no exílio,
em Peniche, Portugal, que apareceria como o fórum mais favorável para o efeito, não
fossem as diversas vicissitudes relatadas, como a falta do representante da Frente
Revolucionária Timor Leste Independente [FRETILIN] e a recusa de Xanana
Gusmão em se candidatar á sua presidência CNRT45.

§ 30.1.3 A composição da ETTA foi revista em Setembro de 2001, reflectindo os


resultados das eleições para a Assembleia Constituinte, ocorrida no mês de Agosto

75
desse mesmo ano. Nessa altura, composto apenas por timorenses, adoptou a
designação de ETPA (East Timor Public Administration) funcionando como um
“Conselho de Ministros”, cujo Primeiro-Ministro respondia perante o Administrador
Transitório e adoptou o Português e o Tétum como idiomas de trabalho em
preparação para plena independência.

3.3.3. Procedimento Constituinte

§ 31. A Constituição da República Democrática de Timor-Leste foi aprovada


em 22 de Maio de 2002, como primeiro acto do mais novo Estado independente do
novo milénio, em 20 de Maio de 2002. A sua história imediata não foi, no entanto,
pacífica.
§ 31.1 Na preparação das estruturas do que viria a ser o Estado timorense
independente e autónomo impunha-se a preparação do procedimento constituinte.
BACELAR DE VASCONCELOS relata as duas opções que se confrontavam. Por um lado,
aqueles que defendiam um “procedimento constitucional directo”, orientado pelo
Conselho Nacional timorense segundo o modelo de “Convenção” que serviu no
procedimento constitucional Americano e que a União Europeia tentou replicar. Este
modelo defendia a realização de um Referendo ou a própria eleição de uma
Assembleia Constituinte para formalizar a sua aprovação. Por outro lado, defendia-se
uma opção constituinte dita “complexa” e “puramente conceptual” alicerçada em
duas etapas eleitorais. Uma primeira eleição para uma Assembleia Constituinte que
preparasse a redacção e aprovasse uma nova Constituição, seguida de eleições gerais,
previsivelmente legislativas e presidenciais. A duração, com uma sobrecarga de actos
eleitorais e potencial conflitualidade (entre actores políticos timorense concorrentes,
mas também entre estes e as organizações internacionais presentes no território) do
segundo tipo de procedimento levavam BACELAR DE VASCONCELOS a preferir a
primeira opção, que melhor garantiria as exigências de legitimação processual e
legitimidade material, relacionando as opções constituintes com a “vinculação do
texto a uma história, uma cultura e um universo linguístico peculiar” 46 . Em
particular, pretendia-se promover um amplo debate nacional através do “programa de
Educação Cívica”, auscultando as populações nos diferentes distritos timorenses.
Entretanto, o decurso do tempo e o adiamento do “Programa para a Educação Cívica”

76
levaram ao abandono desta opção, a dado momento pacífica entre os diferentes
actores internacionais e locais, mas que ia perdendo adeptos, nomeadamente, entre os
membros do Conselho Nacional.

§ 30.2 Assim, no final de 2000, foram iniciados os preparativos para a eleição da


Assembleia Constituinte. Adoptou-se um sistema eleitoral misto, com um círculo
plurinominal único para todo o território, com base proporcional, que elegia 75
deputados, mais treze círculos uninominais, de acordo com os actuais distritos, de
base maioritária e limitados aos aí residentes47. O quadro legislativo para as eleições
foi definido pelo Regulamento UNTAET/2001/REG/1. A Assembleia Constituinte
ficou assim composta por 88 membros, tendo os resultados eleitorais atribuído os
seguintes resultados: FRETILIN 55 mandatos (57,37%); Partido Democrático (PD) 7
(8.72%); Partido Social Democrata (PSD) 6 (8.18%); Associação Social-Democrata
Timorense (ASDT) 6 (7.84%); União Democrática Timorense (UDT) 2 (2.36%);
Partido Socialista do Timor (PST) 1 (1.78%). Os restantes partidos repartiram os
mandatos de 13.76% dos votos da seguinte forma: Partido Democrata Cristão 2,
Klibur Oan Timor Asuwain 2, Partido Nacionalista Timorense 2, Partido Democrata-
Cristão de Timor 1, Partido do Povo de Timor 2, Partido Socialista de Timor 1,
Partido Liberal 1, Independentes 1. Os resultados eleitorais para a Assembleia
Constituinte lançaram dúvidas quanto à adequação do regime eleitoral, que veio a ser
consagrado na lei que regulou as eleições seguintes48.

§ 30.3 A posição dominante da FRETILIN na Assembleia Constituinte foi


igualmente relevante com o exercício da possibilidade aberta pelo art. 6.º do
Regulamento da UNTAET regulador do acto eleitoral, de se converter em
Assembleia Legislativa ordinária, para fazer face a constrangimento económicos
existentes. Através do art. 146.º da CRDTL, a Assembleia Constituinte arrogou-se
poderes de Assembleia Legislativa ordinária. Como previsto seguiram-se as eleições
presidenciais, nas quais Xanana Gusmão, Independente, 82.68%, Francisco Xavier
do Amaral, Associação Social-Democrata Timorense, 17,31%. O novo Presidente da
República tomou posse no dia da Declaração da (Restauração) da Independência, em
20.05.200549.

77
Capítulo 4 - A Ideia da Constituição

§ 31. O art. 16.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789


estabelece que, para se poder dizer que um país tem uma Constituição, deve ter:

1) um texto escrito, no qual se consagra


2) a protecção de Direito Fundamentais e
3) a separação de poderes.
Esta é uma formulação, que se pode dizer mítica, dos elementos da Constituição, mas
que reflecte as ideias essenciais do “momento constitucional”.

1. Do individuo à Constituição

§ 32. A ordem aqui seguida pretende ilustrar o caminho percorrido do


individuo à Constituição, pelo qual 1) o individuo, livre, igual 2) escolhe viver numa
comunidade politicamente organizada, sujeitando-se a um poder consentido por um
“contrato social” 3) que assume a forma de Constituição pelo exercício do “poder
constituinte”.

1.1. Direitos Fundamentais Individuais

§ 33. O movimento constitucional parte da ideia revolucionária de que “todos os


Homens nascem iguais”. Este foi o fundamento de todas as declarações de direitos
(“Bill of Rights”, na Inglaterra, “Declaration of Independence”, nos Estados Unidos,
“Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen”, em França e consta de todas as
Constituições. Consta ainda como base dos catálogos de Direitos Fundamentais,
actualmente, em vigor.

§ 33.1 A ideia da igualdade constitui uma verdadeira revolução na Modernidade que


tem por fundamento o uso da razão universal a partir do racionalismo cartesiano. A
formulação clássica de DESCARTES “penso, logo existo” (“cogito ergo sum”) abriu as
portas das modernas Declarações de Direitos que precederam ou integram as

78
modernas Constituições. Da igualdade genética passou-se à igualdade jurídica dos
seres humanos.

§ 33.2 Naturalmente, esta ideia também não surgiu do vazio. O berço do


cosmopolitismo foi originalmente afirmado pelos filósofos Gregos, na Antiguidade
Clássica. HÍPIAS afirmou num discurso a SÓCRATES e PRÓTAGORAS relatado por
PLATÃO: “Meus senhores, aqui presentes, creio eu que todos são aparentados,
familiares e concidadãos – por natureza e não por lei”50. Mas foi o cínico Diógenes
quem, pela primeira vez, se proclamou “cidadão do mundo” (Kosmou Polītēs)51 em
termos que se parecem, ainda hoje em dia, reconhecer em grande parte das actuais
preocupações cosmopolitas do Direito52. A ideia da igualdade da condição humana
foi retomada pela facilidade de contacto com a diferença dos povos indígenas que a
expansão ultramarina europeia permitiu, em especial, no pensamento e na acção dos
clérigos ibéricos BARTOLOMEO DE LAS CASAS e do PADRE ANTÓNIO VIEIRA.

§ 33.3 O Iluminismo tratou a ideia de “Humanidade” como fundamento de um


projecto cosmopolita com ambição normativa. A igualdade dos seres humanos está,
assim, tanto na base do surgimento do Moderno Direito Constitucional como do
moderno Direito Internacional. Na Filosofia, KANT viu na “inscrição satírica numa
estalagem holandesa, sobre cujo sinal foi pintado um túmulo” o fundamento do
projecto “Paz Perpétua”, dirigido ao “final de todas as hostilidades, de tal forma que,
inclusivamente a palavra perpétua redundaria num pleonasmo duvidoso”.

§ 33.3.1 Ainda actualmente este é o fundamento de todo o ideário dos Direitos


Fundamentais, inscritos nas Constituições de todos os Estados, como dos Direitos
Humanos na base do Direito Internacional contemporâneo53.

§ 33.3.2 Para KANT, o estado natural da espécie humana não tende para a paz, mas
para o uso da força ou para a ameaça do uso da força. O “Estado de paz”
(Friedenzustand) deve ser promovido através do compromisso de segurança
assumido por cada Estado face ao seu vizinho. A primeira condição54 é, pois, que “A
Constituição civil de cada Estado deveria ser republicana” derivada de um “contrato
original” fundado nos princípios da liberdade (como homens), na sujeição de todos a
uma só legislação comum (como sujeitos) e na igualdade (como cidadãos), “a única
Constituição que poderia garantir a pureza da sua fonte”. A expressão deste laço
constitucional, nas relações recíprocas entre os Estados, levaria a que “o Direito das

79
Nações fosse fundado numa união de Estados livres”, uma Völkerbund, não
confundível com um Estado de Nações (Völkerstaat), uma vez que os Estados
mantêm os seus interesses e características. Esta será uma União (Bund) de Paz
(Friedensbund), mais do que um simples tratado, afirmando a limitação imposta à
vontade dos Estados pela emergência do Direito nas relações entre Estados (Civitas
Gentium). Esta União seria a única forma de impedir a destruição mútua que
encontrasse a Paz Perpétua “na vasta campa que engole as atrocidades e os seus
perpetradores”55 e , segundo HABERMAS, seria precursora da actual ONU56.

§ 33.3.3 A ideia da igualdade entre todos os indivíduos está na base do regime


constitucional de Direitos Fundamentais.

1.2. O “Contrato Social”

§ 34. O indivíduo livre escolhe viver em sociedade. É a partir desta afirmação


que surge a ideia de uma vida em comunidade politicamente organizada a partir de
um “contrato social” original, ideal e mítico.

§ 34.1 Esta ideia está intimamente ligada à já referida “questão antropológica”


entre a “bondade” ou “maldade” da natureza humana, numa discussão que, também
já se viu, não tem solução argumentativamente sustentável, mas apenas adesão
incondicional. A partir da opção sobre a bondade ou maldade antropológica
estabeleceram-se diferentes formas de contratualização social.

§ 34.1.1 THOMAS HOBBES alicerçou na natural tendência do ser humano para


a guerra total (Bellum omnia omnes) o fundamento do contrato social que levaria ao
estabelecimento do Estado (“Leviathan”), como organização total, limitadora da
liberdade individual para cercear as suas tendências guerreiras naturais57.

§ 34.2 Para JOHN LOCKE o novo “contrato social” parte do “estado de


natureza”. O “estado natureza” não é uma referência a qualquer momento histórico
em que o individuo vivia na natureza, antes da vida em sociedade, mas é a referência
a um estado ideal da condição humana, que se pode verificar em qualquer espaço e
tempo. O contrato social é expressão do “consentimento” (consent) dado para a
limitação da liberdade individual. Naturalmente, não é cada individuo que consente,
sob pena de se excluir da participação social. A ideia de um “poder consentido” faz

80
repousar a titularidade do poder no povo. Foi esta ideia inovadora que autorizou as
modalidades revolucionárias de seu exercício, que se seguiram. Este consentimento é
o fundamento do poder - como refere PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS, ainda hoje,
“não há poder que não seja poder consentido”. O poder, assim construído em torno
do consentimento popular, procura uma forma legítima de organização, que LOCKE
constrói como “Separação de Poderes”, em termos que se verão em maior detalhe
adiante.

§ 34.3 ROUSSEAU parte da mesma opção benigna da natureza humana,


alicerçado no mito do “Bom Selvagem”, com referência a um período mítico em que
o indivíduo viveria em liberdade. A participação dos indivíduos na vida em
sociedade é, também para ROSSEAU, uma auto-limitação da liberdade individual. São
os indivíduos que aceitam limitar a sua liberdade para participar na vida numa
comunidade politicamente organizada - “Seguir o impulso de alguém é escravidão,
mas obedecer uma lei auto-imposta é liberdade” 58 . É a mesma ideia de poder
consentido, legitimado pela participação voluntária dos indivíduos. O contrato social
visa a realização dessa liberdade “sob a direcção suprema da vontade geral”,
especialmente, revelada no exercício da função legislativa. Por isso, também
ROUSSEAU adopta o modelo dos poderes separados na ideia de contrato social, com
base no qual MONTESQUIEU desenvolverá essa teoria.

1.3. O Poder Constituinte

§ 35. A partir do “Momento Constitucional” (nos finais do século XVIII) o


“contrato social” proposto tem também expressão na Constituição. Naturalmente, os
fundamentos para a própria Constituição encontram-se numa expressão pré-
constitucional do consenso social. Mas a expressão das grandes linhas desse acordo
social constam da Constituição. Em 1789, pretendia-se afirmar um novo contrato
social que alterasse a ordem vigente do Absolutismo régio. Poucos meses antes da
Revolução Francesa, o ABADE DE SIEYÉS distinguiu o “poder constituinte” do “poder
constituído”. O poder constituinte é o poder do “momento Constitucional”. O poder
constituído é o poder derivado da Constituição, exercido sob a sua autoridade.

§ 35.1 O poder constituinte pode ser:

81
a) originário, no momento de aprovação da Constituição;
b) derivado, no caso de revisões constitucionais.

O poder constituinte exerce-se, pois, num primeiro momento de aprovação,


por qualquer das modalidades que constam da própria Constituição, mas fica sempre
presente, de forma latente, também na Constituição pela possibilidade de sua revisão.

§ 35.1.1 É a Constituição que determina os termos da sua aprovação e revisão, não se


admitindo qualquer outra limitação. Daí o carácter único, incondicionado e
hierarquicamente superior da Constituição, apesar de ser, formalmente, uma Lei
(como acto legislativo do Parlamento Nacional). No entanto, é uma Lei especial, que
define as próprias regras da sua aprovação e revisão (art. 154.º e ss. da Constituição).
Por isso, se diz que o poder constituinte é expressão da soberania do próprio Estado.
No momento de aprovação ou revisão da Constituição não há qualquer outro poder
que se lhe possa opor, condicionar ou limitar. Apenas a própria Constituição
determina as regras da sua aprovação e revisão.

§ 35.1.2 Naturalmente daqui resulta um paradoxo no facto de a própria Constituição


prever limites para a sua revisão. Estes limites são:

a) materiais (art. 156.º da Constituição);


b) circunstanciais (art. 157.º da Constituição),

Há ainda outras normas relativas aos termos da aprovação, que podem ser construídas
como limites formais (art. 154.º e 155.º da Constituição). Estudar-se-á adiante o
regime da revisão constitucional na CRDTL, bastando agora indicar o paradoxo que
constituiu a previsão na própria Constituição de limites ao exercício do poder
constituinte, que é soberano (original, incondicionado e ilimitado). A reconhecerem-
se estas características, não haveria limites que pudessem ser estabelecidos ao
exercício do poder constituinte soberano. Em última instância, mesmo estes limites
poderiam ser revistos pelo poder constituinte, o que, dentro da sistemática
constitucional, não se pode admitir, sob pena de permanente insegurança. Este é o
paradoxo dos limites dos limites.

§ 35.2 Na verdade, o poder constituinte mantém sempre em aberto qualquer solução.


Nem que ela seja de absoluta ruptura com a ordem constitucional estabelecida. No
momento de exercício do poder constituinte é uma ordem constitucional nova que se
pretende afirmar, animada por uma ambição nova de justiça. É um novo pacto

82
fundador, um novo contrato social que se pretende estabelecer para a comunidade
política. É uma nova modalidade de exercício, legitimidade e garantia do poder que se
inaugura, juntamente com um novo projecto material de organização comunitária.
Naturalmente, é problemático legitimar a emergência de uma ordem jurídica nova de
forma violenta com as preocupações em torno da legitimação do exercício do poder
no Constitucionalismo Moderno. Uma ordem constitucional “nova” afirma-se sempre
contra uma ordem constitucional “velha”, perante a qual constitui uma ilegalidade.
Todas as ordens normativas, mesmo que (ou principalmente) ordens constitucionais
autoritárias, ilegítimas e violentas, têm regras para sua garantia e protecção.

A ilegalidade revolucionária que o estabelecimento de uma nova Constituição


acarreta gera mais paradoxo constituinte. Qualquer ordem constitucional apenas é ser
legitimável à luz da ordem que pretende instituir. Aqui reside a soberania do poder
constituinte. Ora, numa perspectiva de facto, esta legitimidade apenas é aferida pelo
seu eventual triunfo 59 . No caso de manutenção da ordem constitucional velha
mantém-se como uma ilegalidade. No caso do Constitucionalismo Moderno, também
foi necessário legitimar a revolução constitucional que instaurou regimes
constitucionais. Nem todos os exemplos de transição constitucional foram violentos -
nos Estados que agora compõe a Alemanha, a transição foi mais pacífica. A acrescer
ao triunfo das ordens constitucionais, foi a bondade material desta nova ordem
jurídica que a legitimou. A ideia da Constituição, alicerçada no respeito pelos Direitos
Fundamentais dos indivíduos, na limitação do poder pelo princípio da separação de
poderes, positivados num documento escrito são, como se viu, as marcas perenes do
Estado de Direito Constitucional que legitima a sua institucionalização – pela força se
necessário.

§ 35.3 São diversas as modalidades de exercício do poder constituinte originário e


derivado.

§ 35.3.1 O exercício do poder constituinte originário pode ser exercido:

a) de forma indirecta, através de uma Assembleia Constituinte, para o efeito:


i. nomeada ou
ii. eleita;
b) de forma directa, aprovada através de um referendo ou um plebiscito.

83
§ 35.3.2 O exercício do poder constituinte derivado segue sempre as modalidades
admitidas na Constituição, que também aqui podem ser:

a) de forma indirecta, através do órgão legislativo ordinário, que assuma


poderes constituintes;
b) de forma directa, através de um referendo ou um plebiscito.

§ 35.3.3 Apesar da previsão na Constituição dos termos da sua própria aprovação e


revisão, já se viu como, em última instância, um momento constitucional
revolucionário as pode sempre pôr em causa.

2. O Princípio da Separação de Poderes

§ 36. O poder constituído organiza-se sob uma das mais importantes ideias do
Constitucionalismo Moderno: a Separação de Poderes. Esta ideia, hoje feita princípio
jurídico-constitucional, é, aliás, um dos requisitos míticos da existência de uma
Constituição, conforme se viu no art. 16.º da DUDHC. Aqui bastar-se-á uma
referência introdutória à ideia de separação de poderes, adiante estudada como
princípio jurídico-constitucional.

2.1. A ideia de separação de poderes

§ 36.1 A ideia de separação dos poderes do Estado é das mais polissémicas do


Direito60. São diferentes as interpretações, as suas concretizações constitucionais e
legislativas e mesmo as perspectivas a partir das quais se estuda.

§ 36.1.1 A separação dos poderes pode ser orgânica, funcional, pessoal, assinala-se a
interdependência dos poderes, a separação associa-se à ideia de “pesos e medidas”
(checks and balances), aponta-se o controlo do poder, a vinculação dirigente ao
projecto material da constituição, entre outras. Estas não são diferentes expressões da
mesma ideia de organização dos poderes pela sua separação. Estas expressões são,
antes, diferentes perspectivas estratégicas deste princípio do constitucionalismo
moderno, construído já como seu “mito” fundador, e, desde então, uma poderosíssima
ferramenta retórica na realização de diferentes argumentos jurídico-políticos.

84
§ 36.1.2 A ideia de organizar o poder do Estado a partir da sua separação é antiga. Já
PLATÃO, no “Diálogo das leis”, referindo-se a LICURGO, enunciava a ideia de
contrabalançar o poder de uma Assembleia dos Anciãos ao poder do Rei. Na ocasião
referia que “não se deve estabelecer jamais uma autoridade demasiado poderosa e
sem freio nem paliativos” 61 . Também ARISTÓTELES enunciou uma repartição
tripartida do poder, em “A Política”, que divida o poder em Poderes Legislativo,
Executivo e Administrativo. Já no fim da Idade Média, MARSÍLIO DE PÁDUA, autor de
“Defensor Pacis” (1324), defendeu a distinção entre o Poder Legislativo, exercido
pelo Povo, e o Poder Executivo, exercido pelo Rei.

§ 36.1.3 Uma elaboração teórica mais desenvolvida sobre a teoria da separação dos
poderes surgiu apenas nos momentos que antecederam as Revoluções
Constitucionais. Entre os seus cultores destacam-se JOHN LOCKE, em Inglaterra,
MONTESQUIEU, em França, e MADISON, nos Estados Unidos da América.

2.1.1. “Separation of Powers” (LOCKE)

§ 36.2 No século XVII, o filósofo inglês JONH LOCKE identificou diferentes poderes
que seriam exercidos pelos diferentes órgãos já então previstos na tradição do
liberalismo britânico como “separation of powers”. A filosofia de LOCKE parte da
ideia, revolucionária à época, de que os Homens nascem iguais e livres, contra a
natureza divina do poder régio, dominante na altura. No estado de natureza (ideal),
regido por leis comuns a todos os Homens, o Homem é livre e apenas ele pode
consentir na subordinação ao poder em benefício da comunidade, como já se viu.
§ 36.2.1 Relativamente à organização do poder, JOHN LOCKE distinguiu quatro
poderes, enquanto funções exercidas pelos órgãos do Estado. Esta é a primeira
construção dos poderes do Estado como funções do Estado, exercidas por diferentes
órgãos, nos quais são investidas diferentes pessoas. A separação de poderes é, aqui
funcional, orgânica e pessoal. LOCKE, no séc. XVII, identifica os seguintes poderes
(funções)62:
a) legislativo, ao qual cabe criar as leis, enquanto normas jurídicas,

b) executivo, ao qual caberia aplicá-las, no território nacional;

85
c) federativo, referindo-se ao poder de fazer a guerra e a paz, de celebrar tratados
e estabelecer alianças, de conduzir os negócios com pessoas e Estados
estrangeiros;

d) prerrogativo, na promoção do bem-estar da comunidade nos casos de omissão


ou lacuna da lei, como decisor da excepção, que cabe ao Rei.

§ 36.2.2 O poder legislativo é o poder supremo de aprovar leis gerais e abstractas.


Este poder apenas está limitado pelo Direito Natural.
§ 36.2.2.1 O envolvimento da House of Commons, da House of Lords e da Coroa,
para LOCKE, desvaloriza a separação orgânica do poder a favor da sua dimensão
funcional. Na Câmara dos Comuns (“House of Commons”) estava representado o
Povo e na “House of Lordes” a nobreza e o clero, ainda que garantindo-se sempre a
presença do Rei no Parlamento (“King in Parliament”). A prevalência do Parlamento
é expressão da tradição da monarquia parlamentar de inspiração liberal inglesa e
funda-se na representação popular. Dizia LOCKE “what can give laws to another, must
needs be superior to him”63.
§ 36.2.2.2 O poder executivo, sujeito ao poder legislativo, limita-se a aplicar as leis
gerais e abstractas. Mesmo a autonomia do poder judicial é limitada à aplicação da
lei. O poder federativo é expressão do poder executivo para fazer a guerra e a paz,
celebrar tratados com Estados estrangeiros, estabelecer alianças e, em geral, conduzir
as relações internacionais.
§ 36.2.2.3 O poder prerrogativo é, para LOCKE, o poder atribuído ao executivo de
actuar em momento de excepção, mesmo sem expressa autorização legal. Este espaço
de autonomia executiva desafia a prevalência legislativa, mas, ainda hoje, aqui se vê
a especificidade da função política, imune a controlo judicial64. LOCKE define-o como
“the power of doing public good without a rule”65, no qual se incluem poderes como o
das relações externas e a guerra.
§ 36.2.3 LOCKE aponta a prevalência do parlamentarismo Britânico no quadro da
monarquia liberal, subordinando o poder executivo ao do Parlamento, que seria
remetido para duas Câmaras.

86
2.1.2. “Separation des pouvoir” (MONTESQUIEU)

§ 36.3 O Barão de MONTESQUIEU foi responsável, no séc. XVIII, pelo


desenvolvimento da teoria da separação dos poderes em França. O seu pensamento é,
no entanto, inspirado pela experiência da monarquia parlamentar Britânica - o
Capítulo X do seu Livro “L’Espirit des Lois” é dedicado, precisamente, à experiência
Britânica - e pelo pensamento de LOCKE. Aliás, já se referiu como toda a experiência
constitucional francesa é tributária da influência liberal inglesa.
§ 36.3.1 MONTESQUIEU desenvolveu a teoria de separação de poderes de LOCKE
organizando a separação de poderes em três ramos:
• poder legislativo, ao qual cabe aprovar as leis, numa Assembleia Popular
representativa dos cidadãos;
• poder executivo, ao qual cabe executar as Leis, desempenhado, na altura, pelo
Governo da Coroa nas Monarquias Constitucionais;
• poder judicial, um terceiro independente ao qual cabe aplicar as leis aos
cidadãos, desempenhado pelos tribunais.

§ 36.3.2 Em MONTESQUIEU o poder legislativo é remetido para um sistema


parlamentar de duas câmaras - uma “Câmara dos Comuns” e uma Câmara dos
Nobres”, segundo o sistema já vigente em Inglaterra e que veio a fazer escola na
Constituição dos Estados Unidos da América. A prevalência do poder legislativo faz-
se pela Lei, que é condição de liberdade. Para MONTESQUEIU ser livre é realizar o que
a lei permite. Mas não qualquer lei, apenas a lei enformada pela “vontade geral” do
povo é fonte de liberdade – o povo é o soberano que substitui o “Príncipe”. É
precisamente a partir da formação representativo-parlamentar da vontade popular que,
de forma possivelmente não antecipada pelos seus pais-fundadores, se enceta o
processo legislativo de codificação.
§ 36.3.2.1 O fenómeno de codificação pretende promover as necessidades de certeza e
segurança jurídica, na reacção ao arbítrio do Absolutismo, que concentrava na figura
real todas as funções Estaduais. A garantia da previsibilidade da intervenção estadual
é dos mais decisivos motores revolucionários, o que, em larga medida, explica a
aversão pelo direito consuetudinário e pela jurisprudência.
§ 36.3.2.2 Daqui decorre que os demais órgãos limitam-se a aplicar a lei. Para
MONTESQUIEU, o executivo limita-se a aplicar a lei, sem qualquer papel criativo,
dirigida à satisfação das necessidades colectivas e à realização do interesse público.

87
Também o poder judicial é para Montesquieu um poder nulo (“a boca que pronuncia
a lei”) sem qualquer autonomia da lei na sua aplicação ao caso concreto para solução
de conflitos.
§ 36.3.2.3 A maior novidade no pensamento de MONTESQUIEU é precisamente a
autonomização do poder judicial, não mais integrado entre a “administração das leis”,
mas um verdadeiro poder independente que controla os outros poderes. No entanto, o
poder judicial para MONTESQUIEU é muito diferente daquele que encontramos hoje
em dia. MONTESQUIEU defendia a eleição dos juízes para mandatos limitados, bem
como a sua estrita vinculação à lei - “um poder nulo”.

§ 36.3.3 A teoria da separação de poderes, naturalmente, não sobreviveu aos desafios


dos tempos que lhe sucederam. O poder legislativo já não é apenas exercido pelo
Parlamento, com a crescente complexificação da acção legislativa do Estado; o poder
executivo do Governo cresceu de tal forma com a assunção de novas competências
pelo Estado já não se limitando apenas à execução das leis; os Tribunais já não são
apenas “a boca que pronuncia a Lei”, cabendo-lhe competências que não se
encontravam pensadas à altura (como a fiscalização da constitucionalidade das leis,
desde o caso Marbury v. Madison do USSC ou da acção administrativa (executiva) do
Estado, tradicionalmente, referida ao caso Agnés Blanco do Counseil d’Etat Francês,
de 187366) e descobrindo-se uma função criativa na definição do direito aplicável a
cada caso concreto. Estes desafios serão explorados ao longo deste texto.

2.1.3. “Checks and Balances” (MADISON)

§ 36.4 JAMES MADISON desenvolveu no final século XVIII o modelo de separação de


poderes para o, então, emergente sistema de governo dos Estados Unidos da América,
no texto “The Federalist” n.º 51, intitulado “The Structure of the Government Must
Furnish the Proper Checks and Balances Between the Different Departments”,
publicado, sob o pseudónio “Publius”, pela primeira vez, no “Independent Journal”
em 6 de Fevereiro de 1788. Este texto foi depois integrado nos Federalist Papers, que
MADISON publicou com ALEXANDER HAMILTON e JOHN JAY para promover a
ratificação da Constituição dos Estados Unidos, entre Outubro de 1787 e Agosto de
1788.

88
§ 36.4.1 A teoria da separação de poderes surge aqui como “Checks and balances”
[pesos e medidas], inspirado no espírito mecanicista do tempo pré Revolução
Industrial. A ideia de “checks and balances” acentua a dimensão de controlo dos
poderes separados na defesa dos direitos dos cidadãos. Refere MADISON que “If
angels were to govern men, neither external nor internal controls on government
would be necessary. In framing a government which is to be administered by men
over men, the great difficulty lies in this: you must first enable the government to
control the governed; and in the next place oblige it to control itself.”.

§ 36.4.2 Neste sentido, o sistema presidencialista adoptado na Constituição


Americana é aquele que melhor serve os propósitos de controlo na separação de
poderes:

• o poder legislativo é exercido por um parlamento bicameral, no qual se


representam os cidadãos eleitores na Câmara dos Representantes e os Estados
no Senado, considerando a dimensão continental da Federação;
• o poder executivo é exercido pelo Presidente, que não detém poder legislativo,
ainda hoje, apenas em casos de excepção, podendo adoptar executive orders;
• o poder judicial é atribuído ao terceiro independente, que são os Tribunais.

MADISON também afirma a prevalência do poder legislativo, legitimado


democraticamente (a partir da sétima emenda da Constituição Americana também o
Senado passou a ser eleito e não apenas a Câmara dos Representantes) - diz: “In
republican government, the legislative authority necessarily predominates.”. Esta
divisão do poder entre Estados Federal e Federados é outra das garantias da separação
do poder identificada por MADISON.
§ 36.4.3 Os pais fundadores da independência Norte-Americana não partilhavam os
receios quanto ao poder dos juízes que alimentavam os mentores da Revolução
Francesa. O poder judicial é considerado o ramos menos perigoso (“the least
dangerous branch”), sendo, exactamente, nos Estados Unidos que se afirmou o poder
judicial de fiscalização da constitucionalidade das Leis, apesar de relevantes
precedentes, num caso em que MADISON viria a ser parte, no caso Marbury v.
Madison, como se verá adiante, numa das ironias da História do Direito
Constitucional.

89
2.2. “Common Law” e “Civil Law”

§ 37. São estas diferentes interpretações do princípio da separação de poderes


que estão na base de diferentes famílias jurídicas “common law” (ou Anglo-
Saxónicos) e “civil law” (ou Romano-Germanísticos).
§ 37.1 Os sistemas de “common law” são inspirados na interpretação do princípio da
separação de poderes em Inglaterra e que foi divulgada pela colonização do Império
Britânico, nos Estados Unidos da América, Austrália e Nova Zelândia, entre outros.
Parte-se aqui da sujeição de toda a acção dos particulares e do Estado aos tribunais
comuns (por isso, “common law”) e do papel das decisões judiciais como precedente
com força obrigatória geral para todos os casos. A força do precedente judiciário é
decisiva nos sistemas de “civil law”, vinculando os tribunais, em especial, os
inferiores na organização judiciária, sendo, por isso, matéria com consideráveis
diferenças entre os próprios ordenamentos jurídicos em que este sistema vigora.
Considerando a proximidade dos diferentes ordenamentos jurídicos “civil law” nem é
estranho que as decisões judiciais de um determinando ordenamento jurídico possam
ser invocadas noutro ordenamento jurídico em suporte de posições esgrimidas em
tribunal.
§ 37.2 Os sistemas jurídicos “civil law” têm inspiração no exemplo nascido em
França, divulgado, primeiro, na Europa continental pelas invasões francesas do séc.
XVIII e XIX e, mais tarde, em todo o mundo pela colonização que estes mesmos
Estados promoveram um pouco por todo o mundo. Assume papel decisivo nestes
sistemas normativos, segundo a lição de MONTSEQUIEU, a codificação legislativa sob
o impulso político da representação popular. Mais tarde, os sistemas de tradição “civil
law” desenvolveram um ramo próprio de direito para as relações com o Estado, agora
conhecido como “Direito Administrativo”, sujeito a uma jurisdição autónoma, os
Tribunais Administrativos.
§ 37.3 As diferenças entre os dois sistemas podem até ter sido exageradas em mais
uma das construções míticas do Direito Constitucional67. Certo é que estas diferenças
têm-se esbatido cada vez mais, em especial, considerando o processo de globalização
que é também muito feito através do Direito. Na Europa, em particular, com o
processos de integração europeia (pela UE) e do TEDH essa aproximação é cada vez
maior.

90
2.3. A Constituição Escrita e a Codificação

§ 38. Fez-se referência à necessidade de fazer constar a protecção dos Direitos


Fundamentais e a Separação de Poderes de um documento escrito, nos termos do art.
16.º da DUDHC, de 1791. No entanto, esta referência é também consequência das
particulares interpretações do princípio da separação de poderes.

§ 38.1 A previsão da Constituição num único texto escrito contraria alguma das mais
bem sucedidas experiências constitucionais - já se viu como, em Inglaterra, a
Constituição é referida a um conjunto de documentos históricos e, nos Estados
Unidos, a curta Constituição de sete artigos é suplementada por diversas “Emendas”
de valor Constitucional. A preferência pela codificação, em detrimento do precedente
judiciário, é, aliás, a principal diferença entre os sistemas jurídicos anglo-saxónico
(Common Law) e os sistemas de raiz Europeia-Continental (Romano-Germanística,
ditos de Civil Law).

§ 38.2 A codificação é um “projecto político” da revolução francesa68. É a partir da


formação representativo-parlamentar da vontade popular que, de forma possivelmente
não antecipada pelos seus pais-fundadores, se impôs a necessidade de codificação.
Este projecto funda-se no racionalismo moderno pela ideia de que o uso da razão
pelos indivíduos livres e iguais, filtrado pela representação parlamentar, conduz a
decisões racionais, mas foi promovido tanto ao serviço dos interesses de uma
Monarquia Ilustrada, quanto da burguesia revolucionária, pelo qual se pretendia
promover as necessidades de certeza e segurança jurídica, na reacção ao arbítrio do
Absolutismo, que concentrava na figura real todas as funções Estaduais. A garantia da
previsibilidade da intervenção estadual é dos mais decisivos motores revolucionários,
o que, em larga medida, explica a aversão pelo direito consuetudinário e pela
jurisprudência. ALF ROSS explica como “sobre o fundo de muitos costumes
enviesados, de carácter mais ou menos feudal e de uma jurisprudência que era
muitas vezes arbitrária e corrupta sob o antigo regime, torna-se-nos
psicologicamente compreensível que os revolucionários tenham ansiado pela lei
como pela nova terra prometida”69.

§ 38.3 É deste caldo de cultura que emerge também o sucesso da sistematização dos
elementos da interpretação jurídica de SAVIGNY. Apesar da apontada preferência pelo
papel da Ciência do Direito na revelação sistemática do Direito, que a integração na

91
Escola Histórica do Direito exigiria, a propensão lógico-dedutiva das propostas de
SAVIGNY serviu na perfeição os propósitos de sujeição do labor hermenêutico à
exegese do texto legal, vinculando o intérprete à procura de uma interpretação
correcta70. Ver-se-ão adiante os limites desta construção.

3. Os mitos fundadores do Constitucionalismo Moderno

§ 39. As ideias centrais do momento constitucional moderno foram tanto


relevantes à época, quanto o foram construídas, quotidianamente, de forma apócrifa,
como os fundamentos míticos do constitucionalismo moderno tal como nos foi feito
chegar. Estes “institutos” desempenham, ainda hoje, uma função “retórica” decisiva
na legitimação do exercício do poder71. Interessante é verificar como, por sucessivas
apropriações, sínteses e inovações, o resultado actual é tão mais complexo daquele
originalmente pensado pelos pais fundadores do constitucionalismo Moderno.

§ 39.1 Os mitos fundadores do Constitucionalismo, sem prejuízo para o seu papel


desempenharam, conforme PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS, precisamente, um
“lugar “metodológico”72, que serviu os propósitos revolucionários do tempo. Explica
o Autor “Analogamente, dir-se-ia, poderá haver crime sem perdão o que não há é
perdão sem crime, nem “salvação” sem “pecado original”.”73

§ 39.1.1 A referência à “questão antropológica” é para ROUSSEAU e LOCKE


perspectivada de forma benigna que teria sido corrompida socialmente. No momento
histórico em que esta afirmação é proferida constitui um instrumento retórico
poderoso para demonstrar a “corrupção” do estado da coisa pública à época das
monarquias absolutistas que interessava superar. A metáfora de um estado de pureza
original, além da referência bíblica que não perde, serve o propósito de demonização
do poder absoluto, que interessa superar.

§ 39.1.2 Este paradoxo ilustra os limites da construção do “poder constituinte”. Da


mesma forma, já referida a propósito da ideia do “contrato social”, alicerçado na
intrínseca bondade do ser humano, também a teoria do “poder constituinte” serviu,
retoricamente, os propósitos de uma nova ordem emergente, pela revolução, contra
um regime de monarquia absolutista. A “atenção agora dedicada à questão do poder
constituinte traduz a ideia de que só um poder absoluto se pode contrapor ao poder

92
absoluto. (...) O absolutismo do poder constituinte é, pois, simétrico do monarca
absoluto.” 74 . Aliás, ilustração desta instrumentalização retórica parcelar parece
evidenciada no facto de a teoria do poder constituinte não ter sido levada até às suas
últimas consequências. Esta nova teoria teria como resultado a imediata
superioridade hierárquica da Constituição, que, como se verá adiante, é, na verdade,
uma construção jurisprudencial posterior, imposta pela necessidade de
funcionamento de um sistema normativo organizado segundo relações de pertinência.

§ 39.1.3 Também se viu como a ideia da prevalência do poder legislativo, na original


separação de poderes (de LOCKE a MONTESQUIEU), foi também brandida contra o
exercício do poder absoluto das monarquias do Ancient Regime, que visavam
derrubar. E este é um propósito decisivo no argumento da separação de poderes. O
mesmo se evidenciou do processo de codificou emergente contra as suspeitas de
“corrupção” da jurisprudência do período das monarquias constituintes, segundo ALF
ROSS75.

§ 39.2 São também ainda os reflexos dos sistemas absolutos do iluminismo e dos
excessos retóricos herdeiros do romantismo literário que, pelo uso da razão kantiana,
se propunham libertar a condição humana do jugo terreno. Nas suas diferentes
formulações. Os recursos retóricos assim circunstanciados no “espaço e no tempo”76
revelam, pois, a natureza contingente das propostas de emancipação da condição
humana, de “amanhãs que cantam” por oposição a um quotidiano de sofrimento. As
construções sistemáticas omnipotentes então ensaiadas, em especial, com KANT e
HEGEL, são ainda hoje, a linguagem de grande parte das discussões científicas da
tardo-modernidade em permanente crise e superação. A teoria da linguagem, em
especial, das correntes pós-estruturalistas, como a “desconstrução” de DÉRRIDA,
revelaram, de há muito, as contradições internas do discurso que alimenta estas
propostas emancipatórias. São as pistas dos limites da linguagem que revelam a
“contingência” de qualquer decisão fundada argumentativamente, em especial,
aplicados aos processo de comunicação pública. A comunicação na “esfera pública”,
que seria para HABERMAS, o espaço de legitimação das decisões públicas pelo
consenso, revela-se como um exercício de maiorização do poder, sempre de exclusão
de todos quantos não participam no consenso prévio que esta modalidade de
comunicação presume. Não são apenas as “lutas de reconhecimento”, referidas já,
que emergem, mas é toda a legitimação racional/consensual dos processos de

93
deliberação pública que está em causa, como se verá a propósito das propostas
críticas aos processos democráticos. Também ROBERT ALEXY alerta como “carácter
ideal da regra de racionalidade (Vernunftregeln)” ilustra como “nenhum consenso é
garantia de validade (Gültigkeit) do resultado discursivo”77.

§ 39.3 A Constituição feita Direito traz a este exercício de ilusão emancipatória pelo
Direito todo o aparelho do Estado. A ideia de “paz pelo Direito”, de que falava
KELSEN, em relação à justiça no período pós-Guerra78, converte-se, com o advento do
Estado Social, em felicidade, bem-estar e justiça.

§ 39.3.1 A Constituição liberal original procura garantir, como se viu, uma nova
ordem de legitimidade do exercício do poder, por oposição às monarquias
absolutistas do Ancient Regime. Por isso, as primeiras preocupações são com as
liberdades pessoais - direito à vida, à liberdade física, à liberdade de pensamento e de
expressão, à liberdade de culto. Mas estas proclamações nem pretendem ter valor
hierárquico superior à sua concretização legal por via parlamentar e prática
administrativa e judicial quotidiana, como se verá adiante a propósito do princípio da
constitucionalidade, surge como uma construção jurisprudencial posterior às
primeiras constituições, algumas das quais até o recusavam.

§ 39.3.2 É apenas com o advento do Estado de Direito Social que estas preocupações
integram o corpo da Constituição, como novos catálogos de Direitos Económicos,
Sociais e Culturais pelos quais se procura realizar o ser humano em todas as suas
dimensões. Estes catálogos vinculam todos cidadãos e envolvem todos os órgãos do
Estado, apesar de dependerem de condições que não são sequer, jurídicas, como a
disponibilidade financeira do Estado, conforme se constata actualmente na “Crise do
Estado Social de Direito.

§ 39.2.3 A Constituição converte-se, assim, no mais poderoso instrumento de


promoção da realização humana. Já nem é a “pursuit of hapiness” da Declaração de
Independência dos Estados Unidos. Como dizia o Mandarim, na epígrafe deste texto,
os defensores da Constituição pedem as felicidades (às Senhora das Dores e
procuram-nas ao jogo). Ora, retoricamente, a positivação de regimes de Direitos
Fundamentais questiona sempre quais os direitos fundamentais preferidos da
comunidade politicamente organizada79.

94
Capítulo 5 - Constituição e Direito

§ 40. A Constituição almeja transformar-se em instância histórica de legitimação do


exercício do poder. O Constitucionalismo Moderno vem inovar ao colocar o Direito
no cerne da legitimação do exercício do poder, operando assim um verdadeiro
“milagre” na garantia simultânea de “objectivos anteriormente contraditórios,
liberdade e segurança, alternatividade e estabilidade, mudança e ordem, soberania
individual (cidadania) e soberania estatal”80. Por isso, se pode dizer, com GOMES
CANOTILHO, que “o Direito Constitucional enquanto Direito para o Político,
estabelece o verdadeiro estatuto jurídico do político”.

1. A Constituição e Direito

§ 41. A Constituição ambiciona estabelecer as normas fundamentais para a


organização e funcionamento da comunidade politicamente organizada. Adopta, por
isso, uma estrutura discursiva normativa que a coloca também como pacto fundador
do ordenamento jurídico.

1.1. A Constituição como Lei

§ 41.1 Originalmente, as Constituições não previam a sua superioridade hierárquica


sobre os demais actos do ordenamento jurídico. Não significa que não houvesse
mecanismos de salvaguarda das Constituições. Mesmo antes do Constitucionalismo
formal, já os Parlamentos reclamavam um direito de controlo prévio da legislação
aprovada pelo Rei (droit d’enregistrement) 81 . As constituições formais também
previam a possibilidade de sua violação, como nas Constituições portuguesas de 1822
(art. 17.º), de 1826 (Carta Constitucional, art. 145.º, § 28) e de 1836 (art. 15.º) que
previam uma forma embrionária de “direito de petição”82.

§ 41.2 Estabelecer que uma lei poderia ser inconstitucional constituiria, na ocasião,
uma limitação inaceitável no poder do legislador que era considerado supremo por
representar o povo soberano. Alguns texto normativos, de valor constitucional,
inclusivamente, pareciam restringir a uma qualquer limitação deste tipo.

95
§ 41.2.1 Nos Estados Unidos, a Declaração de Direitos da Virgínia (Virgínia Bill of
Rights), de 1776 (ano da Declaração de Independência) estabelecia, na sua secção
VII, que “Todo aquele poder de suspender leis, ou de executar as leis, por outra
autoridade sem o consentimento dos representantes do povo, viola os seus direitos e
não deve ser exercido.”83. A Constituição Americana proclamava-se “a lei suprema
do país” (“the supreme law of the Land” (art. VI, § 2)), mesmo que não previsse
mecanismos da sua garantia.

§ 41.2.1 Em França, a Constituição de 1791 estabelecia, no seu art. 3.º, da Secção I do


Capítulo II, que “não há em França autoridade superior à Lei. O Rei reina através
dela e é em nome da lei que pode exigir obediência”84. Esta limitação parece, no
entanto, mais dirigida à actuação do Rei do que à “auto-limitação constitucional”85,
até pela sua inserção sistemática, num capítulo e secção, especificamente, dirigidos ao
Rei. Em qualquer caso, parece dominante a ideia da natureza “proclamatória” das
Constituições revolucionárias Francesas e Alemãs. No primeiro caso, alicerçado na
“mitificação” da lei como expressão da “vontade geral”, afirmada por Rousseau, no
segundo caso, na tentativa de outorga Real de uma Constituição que permitisse uma
transição mais tranquila entre velha e nova ordem constitucional, que preservasse o
poder do Rei86.

§ 41.2.3 Mais clara é a referência em Portugal à proibição de apreciação da validade


das leis por parte dos tribunais, pela Lei 16-24, de Agosto de 1790, exemplo do
“repúdio da fiscalização judicial” da constitucionalidade das leis87.

§ 41.3 Na doutrina, no entanto, afirmavam-se as propostas de superioridade


hierárquica da Constituição e do seu controlo. Da já referida teoria do poder
constituinte, o ABADE DE SIEYÉS havia retirado a proposta de uma jurie
constitutionelle. A natureza, política ou judicial, deste órgão continua a ser discutida,
apontando-se o repúdio público do próprio Autor de uma solução que autorizasse os
juízes a declarar a invalidade das leis88. Mais clara era a posição de HAMILTON que
afirmava a superioridade hierárquica da Constituição e o seu controlo pelos
Tribunais 89 . De outra forma admitir-se-ia que o “procurador é maior do que o
mandante”, o que põe em causa o funcionamento do próprio um sistema normativo.

96
1.2. Constituição como Lei Suprema

§ 42. A vinculação paramétrica à Constituição não resultava clara no


Constitucionalismo Liberal, alicerçado na preferência pela primazia do
parlamentarismo representativo, mas foi sendo construída a partir do diálogo da
jurisprudência anglo-saxónica. Esta construção histórica demonstra como a própria
primazia da constitucional também não deixa de ser o resultado de uma decisão
jurídica contingente, agora construída como (mais um) seu alicerce fundador mítico.

§ 42.1 Esta opção surge como uma imposição judicial para o funcionamento do
sistema normativo - uma “necessidade existencial” para a economia interna do
ordenamento jurídico. Ver-se-á também adiante, como esta evolução histórica tem
paralelo mais recente em Timor-Leste, na CRDTL.

§ 42.2 O que daqui resulta também é uma evolução no exercício da função judicial,
no quadro do princípio da separação de poderes, como se verá adiante. O poder
judicial deixa de ser apenas “a boca que pronuncia a lei” ou o “poder nulo” de que
falava MONTESQUIEU, com controlo da constitucionalidade. O posterior acolhimento
nos textos Constitucionais, agora dominante como garantia da Constituição (art. 126.º
e art. 149.º e ss. da CRDTL), vem confirmar esta evolução, que também se estudará
em maior detalhe adiante.

§ 42.3 A dinâmica histórica que conduziu a uma decisão, tão decisiva à época, mas
que hoje parece pacífica, remonta à afirmação do controlo judicial dos actos do
parlamento por SIR EDWARD COKE no “Dr. Bonham's Case”. Referia na ocasião que
“consta dos nossos Livros que, em muitos casos, a Common Law deve controlar as
Leis (Acts) do Parlamento e, por vezes, estabelece a sua invalidade, porque quando
uma Lei (Act) do Parlamento violar o Direito Comum e a razão, for repugnante ou
impossível de implementar, a Common Law controla-o e estabelece a sua
invalidade.”90.

§ 42.3.1 Esta decisão não encontrou eco na jurisprudência dominante na época,


apenas sendo recuperada, do outro lado do Atlântico no momento constitucional
Norte-americano, a partir da posição de HAMILTON nos Federalist Papers e mais
ainda na paradigmática decisão da US Supreme Court (com referência aos poderes do
Congresso), já no século XIX, no caso Marbury v. Madison (1803)91. Neste caso se
afirma a dicotomia essencial: “Entre essas alternativas não há meio termo. A

97
Constituição é, um, o direito fundamental superior, imutável por meios ordinários, ou
ele está em um nível com actos legislativos ordinários, e, como outros actos, é
alterável quando o legislador deve agradar a alterá-lo.92. A conclusão seguinte é que
"Certamente todos aqueles que têm pensado as Constituições escritas as contemplam
como a lei fundamental e suprema da nação, e, consequentemente, a teoria de governo
deve ser tal que um acto do Legislativo repugnante à Constituição seja nulo.”93.
Relativamente aos poderes do Tribunal, o USSC considera, na ocasião, que: "Esta é a
própria essência do dever judicial. Se, então, os tribunais têm de aplicar a
Constituição, e a Constituição é superior a qualquer acto ordinário do poder
Legislativo, é a Constituição, e não como acto legislativo ordinário, que deve reger o
caso a que ambos se aplicam.”94, 95.

§ 43.3.2 No entanto, nenhuma das decisões referidas foi recebida com entusiasmo
pela doutrina e jurisprudência dominantes na respectiva época, nem os seus autores
mereceram os favores do poder então instituído.

§ 43.3.3 É particularmente interessante esta referência final a partir da natureza da


função judicial na aplicação da lei ao caso concreto. É a partir da aplicação a um caso
que se constrói a teoria da hierarquia normativa. Por um lado, revela-se a natureza
dinâmica da função judicial, na aplicação do Direito ao caso concreto. O que é, por si
só, uma grande alteração na posição que no princípio da separação de poderes
MONTESQUIEU tinha atribuído aos Tribunais como “poder nulo” ou como “a boca que
pronuncia a lei”. Por outro lado, também daqui se revela como a teoria do Direito, no
caso do Direito Constitucional, na definição da hierarquia das fontes de direito é
dinâmica e aberta à realidade. A decisão no caso Marbury v. Madison (1803) declarou
a inconstitucionalidade do “Judiciary Act (1789)” relativamente à jurisdição do
Tribunal, precisamente, para não autorizar o Tribunal a condenar (através da ordem
de mandamus) o Secretário de Estado em funções a definitivamente instalar os juízes
nomeados pelo Presidente-cessante John Adams (Federalista) após a eleição do
Presidente-eleito Thomas Jefferson (Democrata-Federalista)96.

§ 44. Em Timor-Leste esta alteração na interpretação original do princípio da


separação de poderes é evidente. Um ordenamento jurídico emergente suscita
questões quanto ao seu funcionamento interno que são decisivas na sua construção

98
futura. Enunciam-se aqui três questões jurídicas, a desenvolver noutros espaços, que
determinam a interpretação estratégica do princípio da separação de poderes na
CRDTL. 1) Na relação do poder judiciário com o poder legislativo, a questão
colocou-se na definição do direito subsidiário aplicável nas lacunas do ordenamento
jurídico nacional emergente. 2) Nos poderes de definição do direito aplicável, a
questão suscitou-se na definição da hierarquia normativa no ordenamento jurídico. 3)
Na relação do poder executivo com o poder legislativo, a questão coloca-se ainda a
propósito da repartição das competências legislativas entre o Governo e o Parlamento.
Estas questões são nesta fase apenas enunciadas, reservando-se ulterior
desenvolvimento para a parte especial do Direito Constitucional timorense.

1.3. Os limites da hierarquia positivista

§ 45. Esta perspectiva dinâmica do ordenamento jurídico está intimamente


ligada à aplicação do Direito ao caso concreto e, por isso, relaciona a hermenêutica
jurídica ao princípio da separação de poderes, como se verá adiante. A primeira
consequência desta perspectiva é a recusa de teses, alegadamente, perfeitas sobre a
construção do ordenamento jurídico.

§ 45.1 A partir da definição judicial e consagração constitucional da superioridade


hierarquia da Constituição, várias tentativas procuraram organizar o ordenamento
jurídico de forma total. A mais famosa dessas metáforas organiza o ordenamento
jurídico como uma pirâmide, no topo da qual se encontra, precisamente, a
Constituição. A Escola de Viena e KELSEN, do início do século XX adopta, pois, uma
postura positivista-formalista que procura organizar toda a produção normativa do
Estado debaixo da ideia de Constituição97. Outras escolas, como a Escola Analítica de
Oxford, de HART organizam também todo o ordenamento jurídico a partir da
Constituição. A Constituição visa, neste perspectiva, “reduzir à unidade” 98 as
diferentes ordens normativas vigentes para os membros da Comunidade.

§ 45.2 O problema coloca-se com a definição da relação da Constituição com cada


vez mais ordenamentos jurídicos. Nesta perspectiva também caberia à Constituição
estabelecer as regras relativas à relação com os diferentes ordenamentos jurídicos
também vigentes.

99
§ 45.2.1 São as Constituições actuais que definem as regras relativas à relação do
Direito Constitucional com o Direito Internacional. Assim, estabelecem as regras
relativas à recepção deste no ordenamento jurídico nacional (art. 9.º da Constituição),
às modalidades da vinculação externa do Estado (art. 87.º, art. art. 95.º, n.º f) e art.
115.º, n.º 1 f) da CRDTL) e, em alguns casos, que não a CRDTL, relativamente à
hierarquia das normas de ordenamentos jurídicos estrangeiros (art. 66.º da
Constituição Holandesa).

§ 45.2.2 Da mesma forma, as Constituições procuram delimitar o valor de ordens


jurídicas costumeiras, onde esta matéria seja relevante (art. 2.º, n.º 4 da CRDTL e, por
exemplo, art. 4.º da Constituição Moçambicana, que estabelece que art. 4.º
(Pluralismo jurídico) “O Estado reconhece os vários sistemas normativos e de
resolução de conflitos que coexistem na sociedade moçambicana, na medida em que
não contrariem os valores e os princípios fundamentais da Constituição.”).

§ 45.2.3 Esta ambição absoluta (soberana) da Constituição reclama para si o


monopólio do poder de definição do Direito aplicável. Ora, cada ordem jurídica
apenas se pode pronunciar acerca das suas condições de validade, vigência ou
coercibilidade. Tudo o que definir acerca das demais, por sua própria vontade, apenas
vale dentro da sua própria ordem jurídica - apenas vincula as demais na medida em
que estas aceitem. Esta formulação retórica das teorias dualistas (soberanistas) não
tem, argumentativamente, solução que não seja uma argumentação circular auto-
fágica99.

§ 45.2.3.1 Uma tal ambição totalizante da Constituição vincula apenas para os órgãos
do Estado por ela estabelecida. Naturalmente, esta é a mais relevante organização
vigente, mas vale apenas na medida em que a aplique.

§ 45.2.3.2 Na relação com o Direito Internacional, a afirmação de uma determinada


hierarquia jurídica vale apenas para a ordem jurídica estabelecida, na Constituição
(art. 8.º da CRDTL) ou no próprio Direito Internacional (por exemplo, a art. 27.º da
Convenção de Viena do Direito dos Tratados estabelece que a violação das normas da
constitucionais relativas á vinculação dos Estados não invalidam o Tratado,
contrariando o Direito Constitucional dos Estados)

100
§ 45.2.3.3 Na relação com o costume, em especial, não cabe a uma ordem jurídica
formal estabelecer os termos da validade, vigência ou coercibilidade desse ordem
jurídica que não seja para essa própria ordem jurídica e para os órgãos que a aplicam.

§ 45.3 As dificuldades do exercício de relacionamento entre diferentes ordens


jurídicas, no entanto, não podem ter como consequência o seu abandono. Abandonar
esta busca a afirmações soberanistas de responsabilidade no caso de violação é um
argumento perigoso e falacioso. Falacioso porque qualquer ordem jurídica tem uma
ambição de vigência e não de violação (este é o argumento da ilegalidade). Perigoso
porque, em especial, no caso do Direito Internacional deixa a um regime atípico de
sanções (que incluem o uso da força) a efectivação de responsabilidade. Neste
exercício, ver-se-á adiante como a relação entre diferentes ordenamentos jurídicos
deve ser perspectivada como um conflito de princípios a resolver casuisticamente100.

2. Constituição e Ordenamento Jurídico

§ 46. Apesar de se recusar a ideia de um sistema jurídico, aprioristicamente,


perfeito, a Constituição desempenha o papel decisivo na organização do sistema
jurídico.

2.1. Ordem e Direito

§ 47. “Ordem” e “Unidade” são os pressupostos “teorético-científicos e


hermenêuticos” do sistema jurídico, segundo CANARIS. Por estes conceitos pretende-
se “exprimir um estado de coisas (…) fundado na realidade” (ordem) e “modifica[r]
o que resulta já da ordenação, por não permitir uma dispersão numa multiplicidade
de singularidades desconexas, antes devendo deixá-las reconduzir-se a uns quantos
princípios fundamentais” (unidade)101. Não que daqui resulte qualquer encerramento
sistemático de matriz positivista. Pelo contrário, apontam-se daqui as aberturas
sistemáticas principialistas - são os princípios que abrem a ordem jurídica ao mundo,
à realidade e à interdisciplinaridade.

101
2.1.1. Os Princípios Normativos

§ 47.1 Na estrutura da Constituição podem encontrar-se normas, regras e princípios.


Regras e Princípios são diferentes expressões de comandos deônticos das normas.
§ 47.1.1 ALEXY refere-se a princípios como “determinando que algo seja realizado no
mais alto grau possível legal fisicamente possível”102. Segundo CANARIS, há sempre
que apurar “os princípios de uma ordem jurídica; (…), por detrás da lei e da ratio
legis, a ratio iuris determinante.” 103 . Os princípios jurídicos podem, pois, ser
caracterizados como a ideia por trás das regras.
§ 41.1.2 As regras e os princípios são dois tipos de normas, que se distinguem,
segundo GOMES CANOTILHO:
1. pelo grau de abstracção (nos princípios elevado, nas regras reduzido);
2. pelo grau de determinabilidade (os princípios são vagos e indeterminados, de
aplicação indirecta e as regras de aplicação directa, de forma “tudo-ou-nada”);
3. pelo carácter de fundamentabilidade (no sistema de fontes de direito os
princípios possuem papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua
posição hierárquica, e no sistema jurídico é uma estrutura importante como o
Princípio do Estado de Direito, enquanto as regras não possuem carácter de
fundamentabilidade);
4. proximidade da ideia de direito (os princípios: são padrões ou “standards”
juridicamente vinculados e as regras são normas vinculativas cujo conteúdo é
funcional) e pela
5. natureza normo-genética (os princípios são fundamentos para as regras,
normas básicas com uma função normo-genética).
§ 47.1.3 São, por isso, “Comandos de optimização”104 das regras. Na relação com as
regras, os princípios são critério na:
1. interpretação das regras;
2. integração de lacunas das regras;
3. solução de conflitos das regras.
§ 47.1.3.1 Já noutra ocasião se teve oportunidade de referir o papel dos princípios na
interpretação constitucional, em especial, no caso de nomeação presidencial do
Primeiro-Ministro indigitado pelo partido mais votado ou pela aliança de partidos
com maioria parlamentar, nos termos do art. 106.º da Constituição.

102
§ 47.1.3.2 Relativamente à integração de lacunas, ver-se-á adiante, como a falta de
legislação relativamente à responsabilidade civil extracontratual do Estado pode ser
extraída como decorrência do Princípio do Estado de Direito, nos termos do art. 1º da
Constituição.
§ 47.1.3.3 Na solução de qualquer conflito normativo, os princípios jurídicos
desempenham um papel decisivo. Os princípios podem ser cumpridos por graus,
enquanto as normas são sempre cumpridas de forma “tudo-ou-nada”105, o que impõe o
recurso a especiais regras de conflito. No caso de princípios conflituantes, a solução
passa, ainda segundo ALEXY, “pela prioridade condicional de um dos princípios em
colisão sobre o outro, com respeito pelas circunstâncias do caso”106.

2.1.2. Positivismo (Moderado) Principialista

§ 47.2 Os princípios realizam-se por graus. Na aplicação dos princípio é


necessário garantir o seu núcleo essencial, mesmo quando não seja possível fazer
valer integralmente a sua vigência. No caso de conflitos de princípios pode impor-se
um delicado equilíbrio pela qual se procure garantir a vigência de um princípio sem
afectar o núcleo essencial de outro.

§ 47.2.1 A ponderação casuística da realização principial assim imposta, depende,


seguindo ainda ROBERT ALEXY, da formulação de uma “regra de proporcionalidade”
(Verhältnismaeigkeitsgrundsatz)”, nas três sub-formulações de adequação,
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito107, 108.

§ 47.2.2 A ponderação é, por isso, referida a três passos pelos quais é necessário, em
primeiro lugar, determinar se o grau de não satisfação de um determinado princípio,
seguida da “importância de satisfazer princípios concorrentes” e, finalmente,
estabelecer se “a satisfação deste princípio justifica a preterição, ou não satisfação, do
primeiro”109. Neste sentido, formula-se uma “regra de desproporcionalidade”110 pela
qual “a interferência com um direito constitucional é desproporcional se não for
justificada por essa omissão dar lugar a uma interferência com outro princípio (ou
com o mesmo princípio em relação a outra pessoa ou noutro contexto) desde que esta
última interferência seja pelo menos tão intensa quanto a primeira”111. A “regra de
desproporcionalidade” cria uma relação entre juízos acerca da intensidade e acerca da
proporcionalidade, o que realça a importância de obviar ao “risco de decisões

103
irracionais”, segundo a qual não existiriam critérios racionais para a ponderação
proposta112.
§ 47.2.3 Exemplificando o conflito em matéria de direitos fundamentais, ALEXY
relata como as consequências deste entendimento foram perceptíveis na decisão do
caso Lüth do BVerfG113. Um cidadão alemão, no pós-II Guerra Mundial, apelou ao
boicote dos filmes de VEIT HARLAN, notório propagandista nazi, em especial do filme
“Jud Süß”. O Tribunal de Hamburgo condenou o Sr. Lüth a abster-se de apelar ao
boicote, uma vez que contrariava o disposto § 826 do Código Civil Alemão, em
violação da política pública de tolerância, que o Tribunal referiu como “as convicções
democráticas da lei e da moral do povo Alemão”. Inconformado, o Sr. Lüth interpôs
recurso para o BVerfG, através do mecanismo de “queixa Constitucional”
(Verfassungsbeschwerde). Este Tribunal Superior julgou a decisão do tribunal a quo
insuficiente, uma vez que, da subsunção do caso ao Direito Civil, poderia resultar a
restrição de Direitos Constitucionais. Assim, impunha-se a ponderação de princípios
conflituantes, pelo que a cláusula “contra política pública” (Sittenwidrige
vorsätzliche Schädigung), na Secção 826 do BGB, deveria ser confrontada com a
liberdade de expressão, prevista no § 5 (1) da GG, à qual o Tribunal decidiu que
deveria ser dada primazia sobre concorrentes princípios constitucionais.

§ 47.3 As objecções formuladas, em especial pela “teoria do discurso”, a este


entendimento têm sido referidas ao risco de despromover Direitos com previsão
constitucional do estatuto normativo, que o discurso jurídico lhes garantiu, a
“argumentos políticos” ordinários114. Os limites de um qualquer “consenso factual”,
pressuposto pela teoria do discurso, como critério de verdade (kein
Wahrheitskriterium) 115 ilustra como “nenhum consenso é garantia de validade
(Gültigkeit) do resultado discursivo”116, considerando o “carácter ideal da regra de
racionalidade (Vernunftregeln)”. Assim, a crítica da despromoção dos Direitos
Constitucionais é contrariada pela formulação de uma “lei de utilidade diminuente”,
pela qual os direitos constitucionais ganham “sobre-proporcionalidade” quanto maior
a intensidade da interferência que sofrem117.

104
2.1.3. A Constituição como um sistema normativo aberto de normas e
princípios?

§ 48. Os princípio jurídicos são especialmente relevantes na construção,


interpretação e aplicação da Constituição. Um sistema jurídico exclusivamente
alicerçado em princípios seria criticado pela sua indeterminabilidade e
imprevisibilidade e falta de certeza e segurança, pelo que haveria que referir a função
de “optimização aberta” que os princípios permitem para um “sistema aberto de
normas e princípios” com suficiente apoio em “esquemas funcionais e institucionais”,
fundamentalmente alicerçados na própria Constituição118. A Constituição como um
sistema normativo aberto de normas e princípios119 seria 1) um sistema normativo,
pois que se refere aos valores estruturados por meio de normas; 2) jurídico, por ser
um sistema dinâmico de normas; 3) aberto, pois as normas constitucionais se adaptam
às mudanças da realidade, a gerações cambiantes da verdade e da justiça; 4) cujas
normas podem ser reveladas por princípios ou por regras.

105
Capítulo 6 - Os princípios Estruturantes do Constitucionalismo

§ 49. O Constitucionalismo Moderno visa limitar o poder através do Direito


constituindo-se como uma teoria normativa do poder. Já se referiu como a
Constituição se estabelece, assim, como o “estatuto jurídico do poder”. O Estado
Constitucional é o Estado sujeito ao Direito, através da Constituição - é a ideia do
governo de leis e não apenas dos homens120. Podem seguir-se diferentes organizações
dos princípios Constitucionais, preferindo-se a aqui apresentada, essencialmente, por
razões pedagógicas.

1. O Princípio do Estado de Direito

§ 50. O Estado sujeita-se ao Direito através do princípio do Estado de Direito.


São diferentes as formulações históricas e espaciais deste princípio como rule of law,
due processo of law, rechtsstaat, príncipe de la legalité.
§ 50.1 O art. 1.º da Constituição consagra logo na abertura do pacto fundador que:
Artigo 1.º
(A República)
1. A República Democrática de Timor-Leste é um Estado de direito democrático,
soberano, independente e unitário, baseado na vontade popular e no respeito pela
dignidade da pessoa humana.
(...)
O art. 2.º da Constituição desenvolve esta previsão, em larga medida, inspirada na
análoga previsão da Constituição Moçambicana.
Artigo 2.º
(Soberania e constitucionalidade)
1. A soberania reside no povo, que a exerce nos termos da Constituição.
2. O Estado subordina-se à Constituição e às leis.
3. As leis e os demais actos do Estado e do poder local só são válidos se forem
conformes com a Constituição.

106
4. O Estado reconhece e valoriza as normas e os usos costumeiros de Timor-Leste
que não contrariem a Constituição e a legislação que trate especialmente do
direito costumeiro.
O Princípio do Estado de Direito daqui extraído tem variadas concretizações ao longo
do texto.

1.1. Princípio da Legalidade (Juridicidade)

§ 50.1.1 A referência ao “Estado de Direito” impõe a ideia de juridicidade através da


Constituição. No entanto, não é uma juridicidade qualquer. A ideia de Estado de
Direito opõe-se, precisamente, à arbitrariedade do exercício do poder através da Lei.
O Direito do “Estado de Direito” é o Direito enformado pela soberania popular,
representada democraticamente, e pela ideia de justiça contida na Constituição. É a
dicotomia de legitimidade material, em especial, com referência ao catálogo de
Direitos Fundamentais, e de legitimação procedimental, pela participação
democrática, já vista. O Direito que subordina a acção do Estado radica na vontade e
soberania popular. A expressão da soberania popular pelo Direito é mediada pela
representação democrática. Por isso, se refere também o princípio do Estado de
Direito Democrático. O Direito vincula-se também ao projecto material que a
Constituição consagra. E esse projecto é, apesar de diferentes formulações, o da
promoção da igualdade de oportunidades entre os cidadãos, não apenas a igualdade
formal, pelo que se refere também a ideia de Estado de Direito Social.
§ 50.1.2 O ordenamento jurídico assim construído segundo o princípio do Estado de
Direito (Democrático e Social) é: 1) organizado, não caótico; 2) hierarquizado e
encimado pela constituição; 3) dotado de mecanismos que possam verificar as
relações de desconformidade das normas jurídicas, com as normas de carácter
superior. O ordenamento jurídico implica, assim, todos os ramos do saber jurídico.
Assim, se concretiza na criação de garantias jurídico-formais que ordenam a vida
política (direito constitucional); na regulação das relações jurídicas, civis e comerciais
(direito civil e comercial); na regulação do comportamento da administração pública
(direito administrativo); na punição da violação de bens e valores jurídica e
constitucionalmente protegidos (direito penal e contra-ordenacional); na criação de

107
normas, processos e procedimentos para solucionar conflitos de interesse público e
privado (direito processual).
§ 50.1.3 No caso de ordenamentos jurídicos plurais, o princípio do Estado de Direito
implica também o respeito pelos ordenamentos jurídicos tradicionais. Apesar de o art.
2.º, n.º 4 da Constituição apenas reconhecer o costume que não contrarie a lei e a
Constituição (costume secundum lege) e de a Lei n.º 2/2002, de 20 de Novembro,
estabelecer a Lei como a única fonte imediata de Direito, a riqueza e a diversidade
destes sistemas normativos tradicionais, bem como o reconhecimento popular desta
imperatividade, impõe também sistemas de aplicação que escapam às estruturas do
Estado. Por isso, as disposições legais formais relativas ao valor do direito costumeiro
dirigem-se apenas, precisamente, às estruturas aplicação do Direito do Estado formal.
O que, já se viu, é, aliás, mais congruente com uma relação saudável entre
ordenamentos jurídicos diferentes.
A abertura é também ao Direito Internacional, que se estudará adiante como Princípio
da Abertura Cosmopolita ou da Internacionalidade.
§ 50.2 O Estado de Direito é um Estado Constitucional. Entre o Princípio da
Legalidade, sobressai o Princípio da Constitucionalidade, uma vez que o Estado de
Direito tem na Constituição a sua ordem jurídico normativa fundamental vinculativa
de todos os poderes públicos. A Constituição é a norma fundamental dotada de
supremacia normativa, como já se viu. A Constitucionalidade do Princípio do Estado
de Direito concretiza-se em diversas dimensões.
§ 50.2.1 O Estado de Direito é um Estado Constitucional, sujeito a uma constituição
formal escrita. Esta Constituição vincula mesmo todos os actos do Estado (políticos,
administrativos, legislativos e judiciais), tal como dispõe o art. 2.º, n.º 2 da CRDTL,
quando prevê que: “O Estado subordina-se à Constituição e às leis”.
§ 50.2.1.1 A Constituição vincula o legislador ordinário como parâmetro formal e
material da criação de direito e logo do exercício do poder legislativo, inclusivamente
quanto à própria revisão da constituição. Isto mesmo resulta da previsão do n.º 3 do
mesmo art. 2.º “As leis e os demais actos do Estado e do poder local só são válidos se
forem conformes com a Constituição”.
§ 50.2.1.2 A Constituição vincula também o poder executivo no exercício da função
administrativa. Apesar disso, são limitados os casos em que a Administração Pública
pode desaplicar uma lei com fundamento na sua inconstitucionalidade, como se verá
adiante. Esse papel cabe aos tribunais.

108
§ 50.2.1.3 A função política fundamenta-se directamente na Constituição, que procura
realizar, por isso, se caracterizando como primária e soberana. São, em Timor-Leste,
como em ordenamentos jurídicos comparados, como o português, limitados os casos
em que o controlo judicial do exercício da função política, ainda resultado de uma
ampla valorização das “imunidades do poder”, conforme referia GARCIA DE

ENTERRIA121.
§ 50.2.1.4 A garantia da Constituição cabe aos Tribunais (art. 118.º e ss. da
Constituição, maxime art. 126.º e art. 149.º). As decisões dos Tribunais são de
cumprimento obrigatório e prevalecem sobre as de outras autoridades (art. 118.º, n.º 3
da Constituição). A competência constitucional é, em especial, exercida pelo Supremo
Tribunal de Justiça (art. 126.º), transitoriamente, o Tribunal de Recursos (art. 164.º).
No entanto, todos os tribunais estão impedidos de aplicar normas contrárias à
Constituição (art. 120.º CRDTL) num sistema desconcentrado de fiscalização da
constitucionalidade. Os demais poderes do estado, executivo e político-legislativo,
encontram-se também vinculados á Constituição e desenvolvem formas próprias de
controlo da constitucionalidade, sem prejuízo para a competência adjudicatória final
do poder judicial. A intensidade do princípio de prevalência da Constituição aqui
consagrado revela-se na possibilidade de a sua violação ocorrer não só por via da
acção, mas também por via de omissão (art. 151.º da CRDTL), em termos que serão
melhor estudados adiante.
§ 50.2.2 O princípio do Estado de Direito tem, por isso, concretização num princípio
da reserva da Constituição. Daqui decorre:
• o princípio da tipicidade constitucional de competências, pelo qual os órgãos
do Estado só têm competência para fazer aquilo que a constituição lhes
permite (as funções atribuídas a um órgão são a medida da sua competência!)
e
• o princípio da constitucionalidade de restrições a direitos liberdades e
garantias, prevendo que as restrições a estes direitos devem ser feitas
directamente na CRP ou através de lei mediante autorização constitucional e
apenas nos casos previstos na constituição (art. 24.º, n.º 1 CRDTL).
§ 50.2.3 Finalmente, a força normativa da constituição determina que é a própria
Constituição que determina os termos da vigência, revisão e eventual suspensão.
Nenhuma ideia, sejam os “superiores interesses da nação” ou qualquer outra alegação

109
de um direito superior ou princípios transcendentes podem suspender a Constituição.
Os casos de excepção constitucional encontra-se estritamente previstos na CRDTL
(art. 25.º) e desenvolvidos legalmente na Lei n.° 3/2008, de 22 de Fevereiro (Regime
do Estado de Sítio e de Emergência).

1.2. Subprincípios Concretizadores do Estado de Direito

§ 50.3 São várias as concretizações do princípio do Estado de Direito da Constituição.


Muitas delas não se encontram, expressamente, previstas na Constituição, mas são
decorrências da sujeição do Estado ao Direito. Estas decorrências são decisivas, na
medida em que conformam, directamente, a aplicação das normas, como se viu já.

1.2.1. Princípio da Proporcionalidade

§ 50.3.1 Não se encontra na CRDTL uma referência expressa ao Princípio da


Proporcionalidade, enquanto concretização do Princípio do Estado de Direito. No
entanto, este é um dos parâmetros essenciais da ideia de Estado sujeito ao Direito. A
proporcionalidade aponta para a ponderação entre os meios a usar e as finalidades a
atingir e reconduz-se, por isso, em primeiro lugar, um princípio de proibição de
excesso.
§ 50.3.1.1 Este critério aplica-se a toda a actuação de qualquer órgão do Estado que,
assim, se deve limitar ao estritamente necessário causando sempre o mínimo dano
possível na esfera jurídica dos seus cidadãos, cuja irredutível dignidade é o padrão
orientador da própria convivência social e, consequentemente, da organização sob a
forma de Estado, sujeito ao Direito e à Constituição.
§ 50.3.1.2 O Princípio da Proporcionalidade apresenta-se em três dimensões de
adequação (ou idoneidade); necessidade; proporcionalidade em sentido estrito. A
actuação jurídico-pública é adequada quando é apta à obtenção do resultado que a lei
lhe faz destinar. É necessária se não houver outra actuação que seja menos gravosa ou
menos lesiva. É proporcional quando os efeitos escolhidos se apresentem
equilibrados, numa óptica da relação de custos/benefícios.
§ 50.3.1.3 O princípio da proporcionalidade é decisivo como princípio hermenêutico,
em especial, na interpretativa constitucional para legislador, tribunais e administração

110
pública. No caso da aplicação administrativa do Direito encontra-se previsão expressa
ao art. 3.º da lei que regula o procedimento administrativo no DL n.° 32/2008, de 27
de Agosto (Procedimento Administrativo).

1.2.2. Princípio da Segurança Jurídica e da Protecção da Confiança dos


Cidadãos

§ 50.3.2. A plena realização do Estado de Direito impõe a certeza e segurança jurídica


e a protecção da confiança dos cidadãos nas diferentes dimensões da actuação do
Estado.

1.2.2.1. Princípio da Segurança Jurídica

§ 50.3.2.1 A necessidade de previsibilidade nas relações jurídicas dos cidadãos é parte


integrante do Princípio do Estado de Direito. Daqui se retiram diversas decorrências.
§ 50.3.2.2 Impõe-se, em especial, a publicação das decisões jurídico-públicas com
clareza e certeza quanto ao seu sentido. A CRDTL consagra este principio quando
estipula no seu artigo 73.º, n.º 2 a ineficácia jurídica de actos não publicados. Este
princípio consta também da Lei n.º 1/2002, de 7 de Agosto (Publicação dos Actos).
Aqui prevêem-se os tipos de actos legislativos e fixa-se o formulário dos diplomas.
Esta preocupação da lei ordinária vai ao ponto de estabelecer um período de “vacatio
legis” (vazio da lei), quando a lei nada disser, a fim de permitir o seu conhecimento
(art. 4.º do Código Civil). A obrigatoriedade de publicitação das normas jurídicas tem
a importância de à partida as pessoas não poderem invocar o desconhecimento da lei
para se eximirem ao respectivo cumprimento.

1.2.2.2. Princípio da protecção da confiança

§ 50.3.2.3 Uma outra dimensão do Estado de Direito é a necessidade de proteger a


confiança depositada pelos cidadãos no ordenamento jurídico. Esta dimensão vai
intimamente ligada à certeza e segurança jurídica, mas concretiza-se mais
detalhadamente na necessidade de criar um clima de estabilidade entre o poder
público e os cidadãos destinatários dos actos jurídicos públicos. Uma concretização

111
da protecção da confiança, como decorrência do princípio do Estado de Direito, é o
princípio da aplicação não retroactiva (prospectiva) da Lei (artigo 11.º do Código
Civil). Estabelece este artigo que, como princípio geral, “A lei só dispõe para o
futuro”. Admitem-se excepções, casos em que o legislador deve expressamente prever
a retroactividade da lei. No entanto, mesmo nestes casos “(…) presume-se que ficam
ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular”.
O n.º 2 do art. 11.º refere-se à aplicação da lei a factos novos ou a relações jurídicas
pré-estabelecidas. Estes casos de irretroactividade imprópria, ou retrospectividade,
apenas são admitidos numa aferição casuística das circunstâncias que determinam a
sua aplicação. Em caso algum essa aplicação pode ser desproporcionada ou afectar o
essencial da posição jurídica dos cidadãos, sob pena de violar, precisamente, o
princípio da protecção da confiança dos cidadão na actuação do Estado (neste caso
pelo exercício da função legislativa), como decorrência do Princípio do Estado de
Direito.
A Constituição impõe vários casos de irretroactividade da lei. São os casos de:
irretroactividade das leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias (art. 24.º, n.º 2
in fine); da lei penal incriminadora (artigo 31.º, n.º 2 e 3). A lei penal apenas pode ter
efeitos retroactivos se for mais favorável ao arguido (art. 31.º, n.º 5). Não se encontra
na Constituição previsão expressa, mas também a lei fiscal não pode ser retroactiva,
sob pena de pôr em causa os direitos fundamentais dos cidadãos. A lei regulará,
cuidadosamente, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade pelo Tribunal de
Recurso que devem poder ser reportados a momento anterior.

1.2.2.3. Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

§ 50.3.2.4 A Constituição estabelece a obrigatoriedade de o Estado indemnizar, de


forma justa, os cidadãos injustamente condenados em processo crime (art. 31.º, n.º 6)
e aquele cuja propriedade seja objecto de expropriação ou requisição civil. (art. 54.º,
n.º 3). No entanto, é possível construir um mais amplo princípio de justa
indemnização pelos danos causados pelo Estado, no exercício de qualquer uma das
funções estaduais. Esta é uma dimensão do princípio do Estado de Direito que protege
os cidadãos contra intromissões abusivas do Estado. Esta imposição constitucional
carece de concretização legal, sob a forma de responsabilidade civil extracontratual

112
do Estado, por actos de gestão pública. A responsabilidade civil extracontratual do
Estado para actos de gestão privada (quando o Estado actua como os privados, sem
invocar os seus poderes de autoridade) encontra-se já prevista no art. 435.º do Código
Civil. A responsabilidade civil extracontratual do Estado pode, no entanto, ser
extraída da Constituição como decorrência do princípio do Estado de Direito. Todas
as funções do Estado se encontram sujeitas a este princípio. A função do Estado que
mais directamente se relaciona com os cidadãos e é, por isso, mais apta a gerar danos
é a função administrativa. Um embargo administrativo ilegal de obra, que impede a
abertura de um estabelecimento comercial numa data prevista e causa danos aos seus
proprietários tem de ser indemnizado. O erro judiciário e a actuação político-
legislativa podem também gerar responsabilidade, sendo, no entanto, de admitir que
os requisitos sejam mais apertados. Entende-se, nestes casos, ser mais ampla a
discricionariedade estadual e, por isso, mais “normais” os danos causados em nome
do interesse público. Decisivo aqui é verificar da proporcionalidade da actuação
estadual e, por isso, da “normalidade” do dano causado aos particulares pela actuação
estadual que, se presume, em nome do interesse público. Importante, neste caso, é
também verificar da boa-fé do agente (nos casos de dolo ou até negligência pode
haver direito de regresso do Estado). A responsabilidade civil extracontratual do
Estado pode ser gerada por acção ou omissão. É também decisivo verificar se o dano
resulta da actuação estadual (nexo causal). Todos estes requisitos devem ser
concretizados em lei especial.

1.2.3. Princípio da Igualdade e da Princípio do Respeito da Dignidade Pessoa


Humana

§ 50.3.2.5 A realização do indivíduo é o fim último do Estado e do Direito. Já se viu


como a própria organização social sob a forma do Estado apenas tem sentido na
medida em que garantir a irredutível dignidade da pessoa humana. A inerente
dignidade da condição humana é o cerne da doutrina dos Direitos Fundamentais, nas
diferentes acepções que serão estudadas adiante. Assim, não se pode reduzir o regime
de Direitos Fundamentais à estrita garantia da sobrevivência e integridade física,
embora sejam o essencial desta dimensão. A plena realização do indivíduo no respeito
pela sua autonomia e individualidade impõe também o respeito pelos seus direitos de

113
participação política, bem como a criação das condições para a sua realização
económica, cultural e social. Começam, actualmente, a ser reclamados os direitos à
solidariedade inter-geracional, como sejam os Direitos relativos ao Ambiente e ao
desenvolvimento sustentado (ditos de um quarta geração).
§ 50.3.2.6 A CRDTL consagra o papel central da pessoa humana na organização
estadual, logo no seu art. 1.º, n.º 1 a propósito do Princípio do Estado de Direito, aqui
estudado. Aí se refere que a “República Democrática de Timor-Leste é um Estado de
direito democrático (…) no respeito pela dignidade da pessoa humana”. Uma das
decorrências do Princípio do Estado de Direito, nesta dimensão de respeito pela
dignidade da pessoa humana, é a inabalável vigência do Princípio da Igualdade. Já se
viu, aliás, como este princípio se encontra na génese das Declarações de Direitos que
fundamentam o Constitucionalismo Moderno. O Princípio da Igualdade é um dos
pilares do constitucionalismo moderno. Entre as suas diversas dimensões, que se
estudará adiante a propósito do regime geral de Direitos, Liberdades e Garantias,
trata-se de uma decorrência necessária do princípio do Estado de Direito. Estudar-se-á
em maior pormenor a propósito da matéria de Direitos Fundamentais, prevista na
Parte II da CRDTL, as decorrências do princípio do Estado de Direito, como Princípio
do Respeito pela Dignidade da Pessoa Humana e do Princípio da Igualdade, em
especial, como cláusula geral fundamento dos Direitos Fundamentais e princípio
central do regime geral de todos os Direitos Fundamentais.

1.3. Princípio da Socialidade

§ 50.3.3 Já se referiu como o Princípio do Estado de Direito inclui a subordinação do


Estado ao Direito Social, na concretização de um projecto constitucional alicerçado
na plena realização do ser humano. Partindo de uma desigualdade inerente à condição
humana social, o Estado assumiu como responsabilidade a promoção da igualdade
material entre os seus cidadãos. Esta reposição de igualdade de oportunidades não
constava das preocupações com o ideário liberal, mais preocupado com a defesa das
liberdades negativas do cidadão contra a intromissão do Estado e a igualdade formal
perante a lei e o poder. Foi a constatação da insuficiência desta igualdade formal face
a diferenças materiais (económicas, sociais e culturais) persistentes e que dificultavam

114
o acesso em condições paritárias ao poder e ao direito que impôs a consideração da
dimensão social do Estado de Direito.
§ 50.3.3.1 Assim, passou a fazer parte dos fins do Estado, a promoção e edificação
“de uma sociedade com base na justiça social, criando o bem-estar material e
espiritual dos cidadãos”, tal como previsto no art. 6.º e) da CRDTL, nomeadamente
na promovendo “o desenvolvimento harmonioso e integrado dos sectores e regiões e
a justa repartição do produto nacional” e promovendo “a efectiva igualdade de
oportunidades entre a mulher e o homem”. A democracia, económica, social e
cultural encontra-se no centro da realização do Estado social e traduz-se na
responsabilidade pública pela promoção do desenvolvimento económico-social e
cultural, na satisfação dos níveis básicos de prestações sociais para todos e na
correcção das desigualdades sociais
§ 50.3.3.2 Esta preocupação do Estado com a realização da Democracia Social impõe,
pois, a sua expressa referência em sede de Direitos, Liberdades e Garantias, desde
logo no próprio regime geral em relação à dimensão positiva do Princípio da
Igualdade, nos termos do art. 16.º da CRDTL (tratar os iguais de forma igual e a
diferença de forma diferente, na medida dessa diferença). A expressa previsão de
especiais deveres ao Estado timorense, a propósito dos Princípios em matéria de
Direitos, Liberdades e Garantias Fundamentais vincula todos os órgãos do Estado.
Impõe-se também em sede de Direitos Económicos, Sociais e Culturais, cujo regime
se verá em maior detalhe adiante, nomeadamente referindo-se à sua concretização no
espaço e potencial retrocesso.
§ 50.3.3.3 Finalmente, esta preocupação orienta também todo o regime positivo
relativo à organização económica, que, nos termos da Parte IV da CRDTL. Em
especial valerá aqui a referência à obrigação, imposta ao Estado pelo art. 144.º,
relativamente à criação de “um sistema fiscal que satisfaça as necessidades
financeiras e contribua para a justa repartição da riqueza e dos rendimentos
nacionais”. Também aqui a propalada “crise do estado previdência”, pelo menos
desde meados do século XX, vem suscitando a necessidade de construção dos termos
do Estado de Direito Pós-Social, cujos contornos, como já se viu, se encontram, em
larga medida, ainda por fazer.

115
2. O Principio Democrático

§ 51. O Constitucionalismo Moderno procurou responder ao problema da


legitimidade do exercício do poder garantindo a sua legitimidade material (em
especial, através dos catálogos de Direitos Fundamentais) e da legitimação
processual, que a formulação democrática da “vontade geral” lhe traz. O princípio
democrático é, neste contexto, uma “forma de vida, como forma de racionalização do
processo político e como forma de legitimação do poder.”. O princípio democrático
consagrado na Constituição “é mais do que um método ou técnica de os governados
escolherem os governantes, pois como princípio normativo considerado nos seus
vários aspectos políticos, económicos, sociais e culturais, ele aspira a ser um impulso
dirigente de uma sociedade”122.

§ 51.1 A realização do princípio democrático concretiza-se, pois, na:


• democracia representativa (através de órgãos representativos, eleições
periódicas, pluralismo partidário, separação de poderes - art. 65.º da CRDTL),
como na
• democracia participativa (que oferece aos seus cidadãos efectivas
possibilidades de participar no processo de decisão, exercer controlo crítico na
divergência de opiniões, produzir inputs políticos democráticos, como no art.
66.º da CRDTL pelo instituto do referendo).

§ 51.2 A Democracia Representativa realiza o princípio democrático como um


princípio da representação popular, que tem expressão máxima na representação
garantida pelas eleições, nos termos do art. 65.º da CRDTL. Assim, se entende esta
concretização como derivação directa ou indirecta do princípio da soberania popular e
como exercício jurídico de funções de domínio por órgão do estado em nome do
povo, bem como exercício do poder com vista a prosseguir os fins ou interesses do
povo. São aqui mais relevantes os Direitos, Liberdades e Garantias de participação
política, relativos à liberdade de criação e militância nos partidos (art. 46.º), direito ao
sufrágio (art. 47.º). O direito à participação política encontra concretização em
matéria de Direitos, Liberdades e Garantias Pessoais. O art. 46.º da CRDTL
estabelece, por isso, que “Todo o cidadão tem o direito de participar, por si ou
através de representantes democraticamente eleitos, na vida política e nos assuntos

116
públicos do país”. Este seria já o resultado do regime típico dos Direitos, Liberdades e
Garantias Pessoais, mas a sua previsão expressa vem reforçar esta ideia. A
participação política faz-se em especial através do sistema partidário, pelo que o n.º 2
do mesmo artigo determina que “Todo o cidadão tem o direito de constituir e de
participar em partidos políticos”, cuja regulamentação o n.º 3 remete para lei, que
será competência exclusiva do Parlamento nacional, nos termos do art. 95.º, n.º 2 i). A
principal realização do Princípio Democrático continua a passar pela realização da
democracia representativa.
§ 51.2.1 O Direito de Sufrágio enquanto instrumento de realização do princípio
democrático encontra-se positivado em diversas disposições da CRDTL.
§ 51.2.2 O art. 7.º da CRDTL consagra, juntamente com a titularidade de poder
soberano por parte do povo timorense, a ideia de “Sufrágio universal e
multipartidarismo”, com o sentido de que “O povo exerce o poder político através do
sufrágio universal, livre, igual, directo, secreto e periódico e através das demais
formas previstas na Constituição”. Esta mesma ideia vem reforçada pelo
acolhimento, em sede de Direitos, Liberdades e Garantias Fundamentais, dos Direitos
de Participação Política. O primeiro princípio constitucional orientador do regime
constitucional refere-se à universalidade dos direitos implicados no direito de
sufrágio. Esta qualidade refere-se não apenas à universalidade eleitoral activa (a
possibilidade eleger) como passiva (de ser eleito).
§ 51.2.2 Assim, o art. 47.º da CRDTL refere-se ao “Direito ao Sufrágio” em sede de
Direitos, Liberdades e Garantias Fundamentais, e determina que “Todo o cidadão
maior de dezassete anos tem o direito de votar e de ser eleito”. Esta consequência
resultaria já do regime específico de Direitos, Liberdades e garantias, mas o seu
reforço é uma importante nota para a natureza não censitária do Direito ao sufrágio. O
“exercício do direito de sufrágio” é pessoal e intransmissível e constitui, além de um
Dever Fundamental, “um dever cívico”. O exercício do Direito Fundamental ao
sufrágio poderá colocar, no seu reverso, a problemática de saber se constituirá
também um Dever Fundamental. A perspectiva personalista, orientada pelo respeito
dos Direitos Fundamentais e pela plena realização do indivíduo na sua eminente
dignidade, não favorece a imposição de Deveres, e o seu sancionamento público, em
nome de uma convivência humana, sob a forma de Estado, orientada, precisamente, à
sua realização individual.

117
§ 51.2.3 Relativamente à organização do Poder Político, a Parte III da CRDTL, o art.
65.º vem, mais detalhadamente, prever que os “órgãos eleitos de soberania e do
poder local são escolhidos através de eleições”. A regulamentação constitucional
específica para cada órgão de soberania encontra-se em diferentes momentos da
CRDTL. Em especial, interessa considerar a imposição constitucional de um sistema
eleitoral proporcional (art. 65.º, n.º 4), que é, aliás, limite à revisão constitucional,
juntamente com o “sufrágio livre, universal, direto, secreto e periódico dos titulares
dos órgãos de soberania”, nos termos do art. 156.º, n.º 1 g) CRDTL.

§ 51.3 As preocupações com a qualidade da participação dos cidadãos nestes


processos, incrementando o reconhecimento público da bondade dessas decisões (a
sua legitimidade), impõe formas qualificadas de Democracia Participativa, como seja
o recurso à dimensão democracia directa e semi-directa, através do regime do
referendo.
§ 51.3.1 Assim se pretende incrementar o controlo e a responsabilização
(accountability) dos órgãos estaduais de decisão, bem como aumentar a qualidade das
decisões tomadas com o maior número de contributos nesse processo de “diálogo”
público. O art. 6.º c) da Constituição prevê, precisamente, entre os objectivos do
Estado “Defender e garantir a democracia política e a participação popular na
resolução dos problemas nacionais”. A Democracia Participativa implica outros
Direitos Fundamentais, que não apenas aqueles que se referem à participação política
através de partidos políticos. Relevantes aqui são a liberdade de opinião, de expressão
e informação (art. 40.º), liberdade de imprensa (art. 41.º) liberdade de reunião e de
manifestação (art. 42.º) e direitos de petição (art. 48.º). A Democracia participativa
garante também a intervenção dos cidadãos, individualmente ou através de
associações sociais e profissionais pela previsão da liberdade de associação (art. 43.º).
O objectivo é limitar a distância entre o poder e os cidadãos que resulta das fórmulas
tradicionais da democracia que a constituição se refere, quando fala no
aprofundamento da democracia, que tem que ser visto como um conceito dinâmico.
§ 51.3.2 A Democracia Participativa pode ser Directa quando os cidadãos adoptam as
decisões públicas directamente. É o caso de Assembleias Populares, em especial, em
circunscrições territoriais limitadas.
§ 51.3.3 Em Timor-Leste, o principal instrumento de Democracia Participativa faz-se
de forma Semi-directa, na possibilidade de submeter a referendo certas matérias (art.

118
66.º da CRDTL). É uma forma de participação política semi-directa uma vez que,
ainda assim, as opções são apresentadas aos votantes, enquanto nas formas de
participação política directa são os próprios cidadãos que participam na definição das
opções sobre as quais deliberam. O regime jurídico do Referendo encontra-se previsto
no art. 66.º da CRDTL, mas encontra-se largamente limitado pela falta de
regulamentação legal. A aprovação da legislação sobre o instituto do Referendo é
competência legislativa exclusiva do Parlamento Nacional, nos termos do art. 95.º, n.º
2 h) da CRDTL, conjugado com o n.º 5 deste mesmo art. 66.º da Constituição. O
âmbito material de matérias referidas a referendo é nos termos do art. 66.º, n.º da
CRDTL largamente referido a todas as “questões de relevante interesse nacional”. No
entanto, o n.º 3 restringe estas matérias, retirando deste âmbito material “as matérias
da competência exclusiva do Parlamento Nacional, do Governo e dos Tribunais
definidas constitucionalmente”. Assim, se excluem muitas das matérias submetidas
aos órgãos de soberania, em especial aquelas referidas no art. 95.º n.º 2, relativo à
competência legislativa exclusiva do PN; o art. 115.º, n.º 3 relativo à competência
legislativa exclusiva do Governo em relação à sua organização e funcionamento; bem
como o art. 118.º, relativo ao exercício da função jurisdicional do Estado. Nos termos
do n.º 2 do art. 66.º o referendo é convocado pelo Presidente da República (art. 86.º
f)), por proposta de um terço e deliberação aprovada por uma maioria de dois terços
dos Deputados (art. 95.º, n.º 3 k)) ou por proposta fundamentada do Governo (art.
115.º, n.º 2 d)). No aumento da qualidade participativa da democracia timorense vale
considerar a possibilidade de o referendo ser proposto ao abrigo do Direito de petição,
pelos cidadãos. O referendo só tem efeito vinculativo quando o número de votantes
for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento, nos termos do art.
66.º, n.º 4 da CRDTL.

3. Princípio da Unidade Territorial

§ 52. A CRDTL considera o princípio da unidade do Estado como princípio


estruturante do Estado, na óptica organizatório-territorial. Estado unitário é aquele
que, num determinado território e para a população que nele vive, tem uma base única
para a estadualidade. Significa a existência de: 1) uma organização política e jurídica

119
(o Estado) à qual se imputa a totalidade das competências estaduais (defesa, justiça,
representação externa, por exemplo); 2) uma só soberania interna e externa, não
existindo outras organizações soberanas (como nos estados federais); 3) unitariedade
do Estado, que resulta a imediaticidade das relações jurídicas entre o poder central e
os cidadãos; 4) carácter unitário resulta, ainda, a ideia de indivisibilidade territorial.
Unidade Estadual significa uma República una, com uma única Constituição e órgãos
de soberania únicos para todo o território nacional

§ 52.1 Uma das dimensões constitutivas do Estado unitário, previsto no art. 1.º da
CRTL é o respeito” na sua organização territorial, o princípio da descentralização
da administração pública”, cujas características e competências são definidas por lei,
nos termos do art. 5.º da CRDTL. A natureza geográfica de Timor-Leste impõe a
especial organização e “tratamento administrativo e económico” do enclave de Oe-
Cusse Ambeno e da ilha de Ataúro. Este princípio foi concretizado pela Lei 3/2014,
de 18 de Junho, que cria a Região Administrativa Especial de Oe-Cusse Ambeno e
cria a Zona Especial de Economia Social de Mercado. A descentralização referida na
Constituição refere-se à organização administrativa do Estado. Não estão afastadas,
no entanto, formas de descentralização política, pelos quais sejam os processos de
participação política a aproximar-se das populações. Neste caso, trata-se de devolver
o poder político às populações, no sentido geral do Princípio da Descentralização
como princípio de aproximação do poder das populações.

§ 52.2 O Princípio da Descentralização é um dos princípios estruturantes da própria


organização do Estado, não se encontrando na disponibilidade do legislador ordinário.
Nem tão pouco do legislador constituinte, uma vez que constitui, inclusivamente, um
dos limites materiais à revisão constitucional, segundo o art. 156.º, n.º 1 h) da
CRDTL. No entanto, é deixada a legislação especial a sua regulamentação, nos
termos do art. 5.º, n.º 1. Actualmente, apesar de existirem diversos planos relativos a
essa matéria, não se encontra ainda previsto o regime legal de organização do poder
local. A CRDTL impõe, contudo, certas previsões constitucionais imperativas. Valem
também aqui os princípios da legalidade e da constitucionalidade tal como disposto
no art. 2.º, n.º 3 da CRDTL relativamente à prevalência da Constituição, quando exige
que além das leis e os demais actos do Estado, também os actos “do poder local só
são válidos se forem conformes com a Constituição”. A dimensão deste princípio

120
relativo à protecção de segurança jurídica e da confiança dos cidadãos impõe, nos
termos do art. 73.º, n.º 2 da CRDTL que “a falta de publicidade dos actos previstos
no número anterior ou de qualquer acto de conteúdo genérico dos órgãos de
soberania e do poder local implica a sua ineficácia jurídica”, nos termos do art. 73.º,
n.º 2. Nos termos do art. 65.º, n.º 1, além dos órgãos eleitos de soberania, também os
do “poder local são escolhidos através de eleições, mediante sufrágio universal, livre,
directo, secreto, pessoal e periódico”. Nos termos do art. 72.º, o “Poder Local” é
constituído por pessoas colectivas de base territorial, compostos com órgãos
representativos. O objectivo da organização territorial em torno do poder local é “de
organizar a participação do cidadão na solução dos problemas próprios da sua
comunidade e promover o desenvolvimento local, sem prejuízo da participação do
Estado”.

§ 52.3 Daqui também se pode extrair um subprincípio da subsidiariedade, numa


dimensão estruturante da ordem constitucional timorense, em articulação com o
princípio da descentralização democrática. Os poderes autonómicos regionais e locais
das regiões autónomas e das autarquias locais (comunidades de dimensões mais
restritas) devem ter competências próprias para regular e tratar as tarefas e assuntos
das populações das respectivas áreas territoriais (administração autónoma em sentido
democrático). Ligado a este princípio da administração autónoma democrática, está o
principio da desburocratização (art. 137.º, n.º 2) assegurando a participação das
populações na defesa e prossecução dos seus interesses (princípio da subsidiariedade
como princípio antiburocrático). O princípio da subsidiariedade foi formulado em
especial nas relações entre Estados e Federações (como na República Federal da
Alemanha) e entre os Estados e as Organizações Internacionais com as quais
partilhem o exercício de competências soberanas (como no caso da União Europeia).
A nível dos Estados unitários, a expressão de um princípio geral de subsidiariedade
pode formular-se da seguinte forma: as comunidades (ou esquemas organizatório-
políticos superiores) apenas podem assumir as competências que as comunidades
mais próximas das populações não podem cumprir da mesma forma ou de forma mais
eficiente123.

121
4. Princípio de Abertura Cosmopolita (ou da Internacionalidade)

§ 53. A abertura constitucional da Constituição e do Estado ao Direito de origem


supra-estadual tem-se acentuado nos últimos anos. São as consequências da
integração da vida socioeconómica à escala planetária (Globalização) que a crescente
facilidade de comunicação e de deslocação tem potenciado. O fenómeno tem
assumido tal relevância que não custa ler um princípio constitucional de abertura
cosmopolita da Constituição do Estado. Aliás, o projecto da Constituição tem na sua
base o mesmo projecto cosmopolita do Direito Internacional, em especial, alicerçado
no mesmo projecto individualista dos Direitos Humanos/Direitos Fundamentais. A
unidade (genética) do projecto cosmopolita revela o carácter, em larga medida,
ilusório de qualquer conflito na origem da realização de um projecto cosmopolita –
nacional-constitucional ou internacional-constitucional. A linguagem do diálogo
imposto pela unidade do projecto cosmopolita no desenvolvimento de uma relação
normativa é precisamente o conceito de Direitos Fundamentais/Direitos Humanos124.

4.1. Universalização da Constituição e Constitucionalismo Global

§ 53.1 A Constituição (Estadual, Soberana e Moderna), enquanto norma fundamental


de qualquer comunidade politicamente organizada e padrão legitimador da actuação
do Estado, “universalizou-se” 125. Todos os Estados têm uma Constituição, entre as
diferentes formulações aqui estudadas. A “universalização” da Constituição teve
como consequência uma prática internacional dos Estados crescentemente enquadrada
pelo Direito e, por isso, um Direito Internacional cada vez mais reconhecido como
legítimo. É, assim, o próprio Direito Internacional que se “Constitucionaliza” à
semelhança do Direito dos Estados, em termos que legitimam a crescente abertura do
Estado Constitucional ao Direito Internacional. É esta abertura que, num movimento
contínuo, ameaça o papel soberano da Constituição dos Estados.

§ 53.1.1 O desenvolvimento do Direito supra-estadual, assim marcado pela influência


do Estado Constitucional, tem apontado inegáveis características constitucionais ou
126
proto-constitucionais próprias . O “Constitucionalismo Global” (ou o Direito
Constitucional Global) tem-se construído a partir da “afirmação pós-ontológica do
Direito Internacional”127, com características desenvolvidas contemporaneamente:

122
• materialmente, o conceito de ius cogens e os sistemas multilaterais e regionais
de protecção de direitos humanos lhe garantem e
• organicamente, referida à (quase) universal filiação na ONU.

Surgem, por isso, cada vez mais, na reprodução da tradicional dicotomia


legitimatória, material e procedimental, preocupações em torno da “democraticidade”
da actuação supra-nacional dos Estados e demais sujeitos de Direito Internacional. É,
assim, como se viu, também o próprio princípio da separação de poderes que se
globaliza e assim também a (velha) querela entre a vinculação ao projecto
constitucional e o controlo do poder.

§ 53.1.2 A acção internacional de um poder limitado pela Democracia e Direito


Humanos é cada vez menos determinada por referências estaduais, e mesmo
nacionais. FRANCK refere como o “empowered individual”128 cria novas afiliações
num espaço social supra-estadual. É também assim que se criam as condições para
garantir a legitimidade do exercício supra-nacional de autoridade, de forma
potencialmente superadora da própria estadualidade soberana constitucional moderna
- na formulação de SCHMITT “aquele por quem morre” e, por quem, no século XX e
ainda no século XXI, se morreu e morre.

§ 53.1.3 Qualquer das diversas formulações que cabem no “Constitucionalismo


Global” anuncia uma tentativa de superação da “magnífica artificialidade” 129 do
Estado Nação. O sucesso do exemplo europeu na limitação constitucional do
exercício do poder, conduziu à sua universalização, que simultaneamente conduziu
uma prática internacional crescentemente legítima, por um lado, impondo a crescente
abertura e amizade do Direito Estadual para com o Direito Internacional, por outro
lado, apontando precisamente para a superação deste modelo estadual pela
transposição para o espaço internacional das suas premissas legitimadoras.

4.2. Desafios para a Constituição Estadual

§ 53.2 As propostas do Constitucionalismo supra-estadual, com base na crescente


integração normativa além dos limites do Estado, se ameaça o paradigma
constitucional-estadual típico, numa outra perspectiva potencia a realização do
projecto cosmopolita da Modernidade.

123
§ 52.2.1 O “silencioso trânsito de um quadro nacional ou interno de referências
axiológico-teleológicas (…) para um (cada vez mais amplo) referencial axiológico-
teleológico de matriz internacional”130 parece ser um dos fundamentos da apontada
crise (ou “erosão”) da Constituição, que marca o desenvolvimento do
“constitucionalismo global” e a emergência de uma teoria da inter-
constitucionalidade. O mesmo efeito de complexificação do ordenamento jurídico-
administrativo é referido nesse momento à abertura dos ordenamentos jurídicos dos
Estados que compõem a União Europeia, por via das características próprias do
Direito da UE, de aplicabilidade directa, protecção de direitos fundamentais e
autonomia, que constituem, por si só, um sistema jurídico-constitucional, fundado em
vasos comunicantes entre o ordenamento jurídico da UE e aquele dos Estados-
membros, que, se são impregnados por aquele, fundam-no na sua “tradição
constitucional comum” destes, conforme o TEDH e o TJCE, em especial, ao princípio
Democrático.

§ 52.2.2 A “universalização” 131 do fenómeno constitucional como expressão da


limitação do exercício de um poder não é isenta de problemas na sua recepção em
realidades socioculturais sem paralelo com a experiência histórica europeia. A
Constituição é, assim, um conceito “ideal”132, “viajante”133, cujo conteúdo concreto
cabe historicamente realizar. Exemplo próximo desta universalização constitucional
poderá ser encontrado no espaço da CPLP, nos Estados que resultaram da
independência de territórios sob administração portuguesa, nos quais se geraram
interessantes traços partilhados no enquadramento Constitucional, numa verdadeira
comunidade de Direito Constitucional, como já se referiu.

§ 52.2.3 O processo de “universalização” vive de mãos dadas com a crescente


abertura da Constituição. Por um lado, o exercício do direito à autodeterminação dos
povos no acesso a uma “Comunidade de Estados Civilizados”, garantido pelo
reconhecimento inter pares, encontra-se cada vez mais regulado internacionalmente,
em especial, após a Segunda Guerra Mundial nos processos de descolonização
previstos na Carta das Nações Unidas134. Por outro lado, é a prática internacional dos
Estados limitados constitucionalmente que, pelo incremento de reconhecimento da
bondade das suas decisões, acarreta uma crescente legitimidade, mesmo que indirecta,
às decisões do Direito supra-estadual. É assim, também se fundamenta a crescente

124
abertura recíproca entre ordenamentos jurídicos constitucionais – internacional e
estadual.

4.3. A Constituição Cosmopolita

§ 52.3 A universalização Constitucional é agora também de uma “Constituição


aberta” ao Direito supra-estadual que pareceria anunciar, movimento contínuo, o
triunfo do projecto cosmopolita de KANT, que, duzentos anos depois, se propõe
reinterpretado à escala global, como expressão da, já assinalada, natureza “proto-
constitucional” do ordenamento jurídico internacional, mas originalmente alicerçado
numa Comunidade de Estados constitucionais135.

§ 52.3.1 A “amizade” do Direito Constitucional ao Direito e às relações internacionais


traduz-se no princípio da internacionalidade presente nos art. 8.º e 9.º da CRDTL,
respectivamente, em relação às “Relações Internacionais” e à “Recepção do Direito
Internacional”.

§ 52.3.2 Na aproximação soberana ao constitucionalismo aqui ensaiado não se


esquece como o pluralismo jurídico, fundado na riqueza das experiências jurídicas do
catálogo de agora Estados soberanos, desafia os próprios cânones da soberania
Constitucional estadual formulada para uma realidade sócio-cultural que, nem mesmo
nos locais onde se originou, se verifica mais (se é que alguma vez verificou e não
passou de um mito fundador). Sem esquecer também que as especificidades locais
potenciam a instrumentalização do modelo constitucional aplicado por um poder, sem
o lastro histórico-cultural racionalista e iluminista na génese do constitucionalismo
moderno na Europa, e que se pretende legitimar, a verdade de um “Direito que
viaja”136 é um facto da realidade cosmopolita contemporânea.

§ 52.3.3 Uma interjusfundamentalidade cada vez mais integrada autoriza que os


valores comuns entre o Direito Internacional e o Direito Constitucional dos Estados
sejam perspectivados como o fundamento para se repensar a sua tradicional
relação137. A lição da crescente integração normativa supranacional, materialmente
legitimada, é precisamente a de autorizar uma perspectiva principialista dos conflitos
normativos gerados.

125
5. Princípio de Separação de Poderes

§ 53. A referência mais detalhada ao Princípio da Separação de Poderes será


efectuada a propósito da Organização do Poder Político.

126
127
Capítulo 3 - Evolução Histórica Constitucional ...................................................... 49  
1.   Génese do Constitucionalismo Moderno ...................................................... 49  
1.1.   Antecedentes Históricos .................................................49  
1.1.1.   O Liberalismo Inglês....................................................................... 50  
1.1.2.   A Independência Norte-Americana ................................................ 51  
1.1.3.   A Revolução Francesa .................................................................... 53  
2.   Experiência Constitucional Lusófona ........................................................... 54  
2.1.   Experiência Constitucional Portuguesa ..........................55  
2.2.   Experiência Constitucional Brasileira ............................56  
2.3.   Experiência Constitucional dos PALOP’s ......................56  
3.   A experiência constitucional em Timor-Leste .............................................. 57  
3.1.   Da História ao Direito .....................................................57  
3.1.1.   Da Colonização Portuguesa ............................................................ 57  
3.1.2.   Uma Diferença Emergente .............................................................. 60  
3.1.3.   Tratamento Jurídico-Constitucional................................................ 61  
3.2.   O Exercício Direito à Auto-determinação ......................63  
3.2.1.   A República Democrática de Timor-Leste de 1975 ....................... 64  
3.2.2.   A Invasão Indonésia ........................................................................ 64  
3.2.3.   O Direito à Autodeterminação timorense ....................................... 65  
3.2.4.   No Tribunal Internacional de Justiça .............................................. 68  
3.3.   O Exercício do Direito de Autor-determinação Timorense71  
3.3.1.   Da Ocupação ao Referendo ............................................................ 73  
3.3.2.   O Reino (Absolutista) da ONU em Timor-Leste” .......................... 74  
3.3.3.   Procedimento Constituinte .............................................................. 76  
Capítulo 4 - A Ideia da Constituição........................................................................ 78  
1.   Do individuo à Constituição ......................................................................... 78  
1.1.   Direitos Fundamentais Individuais .................................78  
1.2.   O “Contrato Social” ........................................................80  
1.3.   O Poder Constituinte.......................................................81  
2.   O Princípio da Separação de Poderes ........................................................... 84  
2.1.   A ideia de separação de poderes .....................................84  
2.1.1.   “Separation of Powers” (LOCKE).................................................... 85  
2.1.2.   “Separation des pouvoir” (MONTESQUIEU) .................................... 87  
2.1.3.   “Checks and Balances” (MADISON)................................................ 88  
2.2.   “Common Law” e “Civil Law” ......................................90  
2.3.   A Constituição Escrita e a Codificação ..........................91  
3.   Os mitos fundadores do Constitucionalismo Moderno................................. 92  
Capítulo 5 - Constituição e Direito .......................................................................... 95  
1.   A Constituição e Direito ............................................................................... 95  
1.1.   A Constituição como Lei ................................................95  
1.2.   Constituição como Lei Suprema .....................................97  
1.3.   Os limites da hierarquia positivista.................................99  
2.   Constituição e Ordenamento Jurídico ......................................................... 101  
2.1.   Ordem e Direito ............................................................101  
2.1.1.   Os Princípios Normativos ............................................................. 102  
2.1.2.   Positivismo (Moderado) Principialista ......................................... 103  
2.1.3.   A Constituição como um sistema normativo aberto de normas e
princípios? .................................................................................................. 105  
Capítulo 6 - Os princípios Estruturantes do Constitucionalismo ........................... 106  
1.   O Princípio do Estado de Direito ................................................................ 106  

128
1.1.   Princípio da Legalidade (Juridicidade) .........................107  
1.2.   Subprincípios Concretizadores do Estado de Direito ...110  
1.2.1.   Princípio da Proporcionalidade ..................................................... 110  
1.2.2.   Princípio da Segurança Jurídica e da Protecção da Confiança dos
Cidadãos..................................................................................................... 111  
1.2.2.1.   Princípio da Segurança Jurídica ............................................. 111  
1.2.2.2.   Princípio da protecção da confiança ...................................... 111  
1.2.2.3.   Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado ................ 112  
1.2.3.   Princípio da Igualdade e da Princípio do Respeito da Dignidade
Pessoa Humana .......................................................................................... 113  
1.3.   Princípio da Socialidade ...............................................114  
2.   O Principio Democrático ............................................................................ 116  
3.   Princípio da Unidade Territorial ................................................................. 119  
4.   Princípio de Abertura Cosmopolita (ou da Internacionalidade) ................. 122  
4.1.   Universalização da Constituição e Constitucionalismo Global 122  
4.2.   Desafios para a Constituição Estadual ..........................123  
4.3.   A Constituição Cosmopolita .........................................125  
5.   Princípio de Separação de Poderes ............................................................. 126  

129
1
A Constituição dos Atenienses, Pseudo-Xenofonte • Pedro Ribeiro Martins (Tradução do grego, introdução e notas), IUC,
Coimbra, 2013.
2
Magna Charta Libertatum, seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni
angliae - Grande Carta das liberdades, ou concórdia entre o rei João e os barões para a outorga das liberdades da Igreja e do rei
Inglês.
3
O propósito da Revolução Gloriosa foi, precisamente, o de pôr fim à possibilidade de uma dinastia católica em Inglaterra de
Jaime II de Inglaterra (Jaime VII de Escócia e Jaime II de Inglaterra), tendo, para isso, a nobreza inglesa convocando William III,
de Orange (Holanda), que passou a ser William II de Inglaterra.
4
Tradução livre de “We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their
Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness”.
5
A Emenda 1 protege a liberdade religiosa, a liberdade de expressão e de imprensa; o direito de reunião e de petição; Emenda 2
protege o direito de possuir armas, Emenda 3 limita a acção dos soldados em tempo de paz, A Emenda 4 , garante o direito à
inviolabilidade de pessoas, casas, documentos, definido as regras de buscas e revistas, segundo o princípio de “causa provável”;
Emenda 5 protege as garantias de processo justo, em especial garantindo a proibição de auto-incriminação de o “princípio ne bis
in idem”; Emenda 6 desenvolve as garantias de processo penal, a um processo justo e célere, estabelecido por lei, confrontando
as testemunhas e conhecendo a acusação, o direito a apresentar testemunhas a seu favor e ter a assistência de um advogado;
Emenda 7 garante o julgamento por um júri; Emenda 8 proíbe caução e multas excessivas, bem como punições cruéis ou
incomuns; Emenda 9 protege os direitos não expressamente enumerados na Constituição. Em matéria jus-fundamental, merece
ainda referencia a abolição da escravatura pela Emenda 13, a proibição de negação do direito de voto, como base na raça, cor ou
prévia condição de servidão, na Emenda 15e na Emenda 19, com base no género; a Emenda 26 que proíbe a negação do direito
de voto a cidadãos com idade superior a dezoito anos.
6
Que, na verdade, correspondeu a uma série de conflitos na Europa, América e Índia entre a França e a Inglaterra, e os
respectivos aliados, entre 1756 e 1763.
7
ALEXIS DE TOCQUEVILLE, “A Democracia na América”, Princípia, Lisboa, 2001.
8
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis, Ed. 70, Lisboa, 2011.
9
A verdade é que as influências terão sido cruzadas, considerando que alguns dos “pais fundadores” dos Estados Unidos da
América, como Benjamim Franklin, Thomas Jefferson e John Adams, foram embaixadores em França durante o período
revolucionário, onde colheram muitas das influências que depois aplicaram nos Estados Unidos.
10
Período Revolucionário (1789 a 1799) Constituição de 1791, 1793, 1795; Período do Consulado Constituição de 1799; Período
do 1º Império (1799-1804) Constituição de 1799, 1802, 1804; Período da Restauração (1814-1830) Constituição de 1814 e de
1830; Período da 2ª República (1848); Período do 2º Império – 1851; Período de Luís Napoleão Constituição de 1848, 1852,
1870; 3ª República – 1870, 4ª República – 1940
11
79
12
PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS, ao assinalar a especificidade local da opção constituinte pelo semi-presidencialismo em
Timor-Leste, realça a mais decisiva importância das circunstâncias de cada um dos Estados lusófonos do que a influência da
Constituição da República Portuguesa de 1976, em especial, no que se refere à organização do poder político. Por todos vide
PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS, “A transição em Timor-Leste (1999-2002)” in RUI CENTENO E RUI NOVAIS (Org),. Timor-
Leste da Nação ao Estado, Edições Afrontamento, 2006, Porto, página 70 e ss..
13
Como CANAS MENDES dá conta, valendo-se da expressão de Hélio Esteves FELGAS, …
14
Como para o caso de Macau reconhece António Vasconcelos de SALDANHA
15
Afonso de Castro in Canas Mendes, 134
16

17
18
Pimenta de Castro, 77
19
PIMENTA DE CASTRO, …
20
Canas Mendes, 138

130
21
Marcelo Caetano, CM, 145. Como, aliás, reconhecido como a “Esfera de Co-Prosperidade Oriental” pela doutrina alemã de
relações internacionais à época,
22
Canas Mendes, 148
23
Sobre a relevância Constitucional dos mitos fundadores ver PAULO FERREIRA DA CUNHA,
24
(138)
25
?
26
PAULA ESCARAMEIA, referir-se-ia à sua “internacionalização”, mas crê-se que esta valeria desde a inclusão de Timor-Leste nas
listas de territórios a descolonizar. Isto considerando que o direito à autodeterminação não terá a eficácia erga omnes que o ICJ
recusou, precisamente, no caso “Timor-Leste”.
27
CANAS MENDES (página 125) aponta a necessidade de garantir a estabilidade regional no quadro do equilíbrio de poderes que
caracterizava o período da “Guerra Fria”, considerando, em especial, a importância geoestratégica da região, por onde ainda hoje
circula parte considerável o comércio mundial, através das SLOCS, e de importância decisiva para o patrulhamento militar dos
submarinos que passam de Indico para o Pacífico27. Não será, por isso, de estranhar a conjunção de interesses que cobriu sob o
manto do silêncio a invasão indonésia. Desde a necessidade de garantir a segurança da grande minoria católica aí residente o
peso geopolítico da Indonésia numa região decisiva para a estabilidade global revela-se como membro fundador e director do
movimento dos não-alinhados, que granjeava a simpatia, nomeadamente no Sudoeste Asiático da RPC e da URSS, tanto quanto
o seu papel na contenção da hegemonia comunista, particularmente importante após a queda de Saigão. Em especial, a garantia
da “compreensão” norte-americana encontra-se documentada, no “memorando da conversação entre os presidentes Ford e
Suharto”, na visita do Presidente norte-americano a Jakarta, em 5 de Julho de 1975, bem como, mais próximo do início da
“Operação Komodo”, no telegrama 1579 da Embaixada de Jakarta para o secretário de estado, em 6 de Dezembro de 1975.
Enquanto na primeira ocasião, o presidente indonésio garante o respeito pelo direito à autodeterminação timorense, chamando a
atenção para influência comunista da FRETILIN, na segunda considera a independência unilateral declarada pela FRETILIN
inviável e argumentando com a grave situação humanitária criada junto da fronteira aponta a necessidade de uma intervenção
militar que garanta a estabilidade em Timor-Leste. A esta pretensão os representantes do EUA garantem “compreensão e que não
vos vamos pressionar sobre o assunto”, alertando, contudo, para o uso de material militar norte-americano.
28
Nem as excepções permitidas ao sistema de Segurança Colectiva poderiam ser invocadas pela Indonésia. Não se poderia
argumentar o recurso ao instituto da “Legítima defesa”, previsto no art. 51.º da Carta das NU, atento desde logo a
desproporcionalidade das forças em confronto. Por outro lado, não foram cumpridos os requisitos procedimentais aí previstos,
que envolvem os órgãos das NU. Mesmo o putativo recurso à “Legítima Defesa preventiva”, prevenindo a instalação de um
regime comunista em Timor-Leste não colhe. Por um lado, porque essa ameaça não parece factualmente existir atenta a natureza
e o programa da FRETILIN, nem poderia ser encarado como uma ameaça atenta a sua dimensão. Por outro lado, este princípio
apesar de continuar a fazer o seu percurso no Direito Internacional28 , em especial, após os eventos de 11.09.2001, não parece ser
de aceitar como um princípio vigente em Direito Internacional. A sua natureza costumeira, por carecer de qualquer consagração
positiva, seria sempre disputada por não encontrar espaço na “prática uniforme e constante” dos Estados que compõem a
comunidade internacional, menos ainda no elemento intelectual relativo à convicção da sua normatividade. No inicio do milénio
e após os repetidos ataques terroristas contra estados ocidentais, menos ainda seria aceitável a formação de um “costume
instantâneo” ou “costume selvagem” a arrepio dos tradicionais conceitos de direito internacional. PCC
29
Este princípio foi, recentemente, discutido amplamente, por exemplo, a propósito das operações militares da NATO sobre a
Sérvia (Ex-Federação Jugoslávia) a propósito da situação criada pelas forças desta no Kosovo, onde forças irregulares
reclamavam a independência. Ainda hoje é altamente discutível a aceitabilidade deste princípio em Direito Internacional,
derrogando o princípio da igualdade soberana, previsto no artigo 2 (1) da Carta das nações Unidas.
30
CM
31
Sobre a “colonização” indonésia e num balanço com a portuguesa, Canas Mendes, 159 e ss.
32
Nenhuma destas condições se poderia considerar cumprida no caso de Timor, como é patente. O mesmo destino teria o
argumento da protecção da integridade territorial que o facto de Timor-leste ser apenas parte de uma ilha justificaria. Este
argumento foi usado amiúde no século XX, não sendo aceite como regra de Direito Internacional, como o comprovam os casos
da anexação do Kuwait pelo Iraque, em 1991 e das Falklands pela Argentina, em … Para mais desenvolvimentos ver PAULA
ESCARAMEIA…
33

131
34
PIDCP E PIDESC, Convenção contra a Tortura, Genocídio
35
António Monteiro
36

37
Janus
38

39
Novais in Centeno
40
(in Centeno – crise Asiática)
41
Para mais desenvolvimentos PBV in Centeno
42
MÓNICA FERRO, “O papel das Nações Unidas na Construção de Estados – o caso de Timor-Leste”, Ensaios sobre
Nacionalismos em Timor-Leste, Colecção Biblioteca Diplomática, …página 295.
43
JARAT CHOPRA,
44
PBV 61.
45
PBV in Centeno, 63
46
47
PBV65
48
Feijó refere, contudo, que a potencial opção pelo método d’Hondt seria pior ainda.
49
Sobre eleições PBV, RSC
50
PLATÃO, Protágoras, (tradução, introdução e notas de ANA DA PIEDADE ELIAS PINHEIRO), Relógio D’Água, Lisboa, 1999,
página 113.
51
In DIÓGENES LAÉRCIO, Vida de los Filósofos más Ilustres, Livro VI, linha 63 (tradução e prólogo de JOSÉ ORTIZ Y SANZ e
JOSÉ M. RIAÑO), Editorial Porrúa, S.A., México, 1991, página 149.
52
JAMES BROWN SCOTT, The Spanish Origin of International Law…, op. cit., passim.
53
Desde logo a proibição geral do uso da força nas relações entre os Estados, previsto no artigo 2.º (1) da Carta das Nações
Unidas. Para KANT, o primeiro Artigo Preliminar para a Paz Perpétua comina com a invalidade “qualquer tratado que
tacitamente reservasse o recurso à guerra” antecipando a hierarquia normativa em Direito Internacional.
Além das reminiscências ao projecto cosmopolita kantiano, já GROTIUS havia previsto uma “grande sociedade de Estados”,
ligada pela “lei das nações (…) entre todos os Estados” GROTIUS, De Iure Belli ac Paci, 1625, Prolegomena par. 17.
54
Prevista como Primeiro Artigo Definitivo para a Paz Perpétua.
55
No sexto artigo preliminar para a paz perpétua.
56
HABERMAS, “Kant’s Idea of Perpetual Peace: At Two Hundred Years’ Historical Remove” in The Inclusion of the Other, 1998
(tradução de 1996 de Die Einbeziehung des Anderen), páginas 165 e ss., maxime 179.
57
(“Leviathan” (1675)).
58
(O Contrato Social, 1712)
59
Neste sentido Miguel Galvão Telles…
60
PBV
61

62
BOBBIO, contudo, encontra no pensamento de Locke uma organização diferente dos poderes separados, considerando apenas
dois poderes, o poder executivo, próximo de Federativo (Chapter XIV), que inclui prerrogativo, integrando também o poder
judicial no poder executivo, como poder de administração das leis.
63
(Two Treatises 2.150)
64
(Two Treatises 1.159)
65
(1.167)
66
Caso Agnès Blanco, 1873 – uma criança atropelada por veículo de empresa pública => o Juiz-Conselheiro Davi afirmou que o
“Conseil d’Etat” seria competente e assim impôs a "responsabilidade objetiva por danos decorrentes do serviço público".
67
Colaço
68
PAOLO GROSSI, De la Codificación a la Globalización del Derecho, (trad. Rafael Pérez), Aranzadi, Navarra, 2010, passim.
69
ALF ROSS, Teoría de las fuentes del derecho. Una contribución a la teoría del derecho positivo sobre la base de
investigaciones histórico-dogmáticas, (trad. de Jose Luis Munoz de Baena Simon, Aurelio de Prada Garcia y Pablo Lopez

132
Pietsch), Madrid, Centro de Estudios Politicos y Constitucionales, 1999, página 89 apud JOANA AGUIAR E SILVA, Para uma
teoria hermenêutica da justiça…, op. cit., página 146.
70
JOANA AGUIAR E SILVA, Para uma teoria hermenêutica da justiça…, op. cit., página 178.
71
PFC
72
(PBV, 88)
73
(PBV, 88)
74
(PBV, 140)
75
ALF ROSS, Teoría de las fuentes del derecho. Una contribución a la teoría del derecho positivo sobre la base de
investigaciones histórico-dogmáticas, (trad. de Jose Luis Munoz de Baena Simon, Aurelio de Prada Garcia y Pablo Lopez
Pietsch), Madrid, Centro de Estudios Politicos y Constitucionales, 1999, página 89 apud JOANA AGUIAR E SILVA, Para uma
teoria hermenêutica da justiça…, op. cit., página 146.
76
Martin Heidegger, Sein und Zeit
77
Idem.
78
Basta pensar no título do ensaio de Kelsen sobre Direito Internacional, HANS KELSEN, Peace Through Law, Chapel Hill, The
University of North Carolina Press, 1944.
79
conflito de DF????
80
Francisco Lucas Pires, Introdução ao Direito Constitucional Europeu, 1997
81
ASM 83
82
JM, 43.
83
(Tradução do Autor de Section 7. That all power of suspending laws, or the execution of laws, by any authority, without
consent of the representatives of the people, is injurious to their rights and ought not to be exercised).
84
(tradução livre do Autor, do original “Il n'y a point en France d'autorité supérieure à celle de la loi. Le roi ne règne que par
elle, et ce n'est qu'au nom de la loi qu'il peut exiger l'obéissance.”).
85
ASM, 89.
86
JM, 46. ASM, 88 e ss.
87
JM, 45.
88
ASM, 89.
89

90
“And it appeareth in our Books, that in many Cases, the Common Law doth controll Acts of Parliament, and somtimes shall
adjudge them to be void: for when an Act of Parliament is against Common right and reason, or repugnant, or impossible to be
performed, the Common Law will controll it, and adjudge such Act to be void”. Thomas Bonham v College of Physicians, 1610,
8 Co. Rep. 107 77 Eng. Rep. 638, disponível em SIR EDWARD COKE, The Selected Writings and Speeches of Sir Edward Coke,
ed. Steve Sheppard (Indianapolis: Liberty Fund, 2003). Vol. 1. Chapter: Dr. Bonham’s Case.
91
Marbury v. Madison, 5 U.S. (1C) 137 (1803). Por todos, na doutrina nacional, vide PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS, A
separação dos poderes na Constituição Americana (Do Veto Legislativo ao Executivo Unitário — A Crise Regulatória), Studia
Iuridica, Coimbra Editora, Coimbra, 1994.
92
"(P. 178)
93
Idem
94
179
95
“Between these alternatives there is no middle ground. The Constitution is either a superior, paramount law, unchangeable by
ordinary means, or it is on a level with ordinary legislative acts, and, like other acts, is alterable when the legislature shall
please to alter it.” (p. 178). A conclusão de que “Certainly all those who have framed written Constitutions contemplate them as
forming the fundamental and paramount law of the nation, and consequently the theory of every such government must be that
an act of the Legislature repugnant to the Constitution is void.” (p. 178), necessariamente, postula, relativamente à postura do
Tribunal, perante aquela conclusão, que: “This is of the very essence of judicial duty. If, then, the Courts are to regard the
Constitution, and the Constitution is superior to any ordinary act of the Legislature, the Constitution, and not such ordinary act,
must govern the case to which they both apply.” (p. 179).

96
PBV???
97

133
98
JR?
99
Minha tese
100
Minha tese
101
CLAUS-WILHELM CANARIS. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito Fundação Calouste
Gulbenkian, Lisboa, 2002, página 20.
102
ROBERT ALEXY, “On the Structure of Legal Principles”, Ratio Juris, Vol. 13, n.º 3, September 2000, páginas 294-304. Ver
também ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte (tradução em castelhano Teoría de los derechos fundamentales, Centro de
Estudios Constitucionales, Madrid, 1993), maxime páginas 81 e ss..
103
CLAUS-WILHELM CANARIS. Pensamento sistemático, op. cit., página 77.
104
ROBERT ALEXY, “On the Structure of Legal Principles”, op. cit., página, 295.
105
RONALD DWORKIN, Taking Rights Seriously…, op. cit., página 1977.
106
ROBERT ALEXY, “On the Structure of Legal Principles”, op. cit., página 296.
107
ROBERT ALEXY, “On the Structure of Legal Principles”, op. cit., página 297.
108
Em especial no que concerne a ponderação de Direitos Fundamentais, ALEXY relata como as consequências deste
entendimento foram perceptíveis na decisão do caso Lüth do BVerfGe, pelo qual um cidadão alemão, no pós-II Guerra Mundial,
apelou ao boicote dos filmes de VEIT HARLAN, notório propagandista nazi, em especial do filme “Jud Süß”. O Tribunal de
Hamburgo condenou o Sr. Lüth a abster-se de apelar ao boicote, uma vez que contrariava o disposto § 826 do Código Civil
Alemão, em violação da política pública de tolerância, que o Tribunal referiu como “as convicções democráticas da lei e da
moral do povo Alemão”. Inconformado, o Sr. Lüth interpôs recurso para o BVerfG, através do mecanismo de “queixa
Constitucional” (Verfassungsbeschwerde). Este Tribunal Superior julgou a decisão do tribunal a quo insuficiente, uma vez que,
da subsunção do caso ao Direito Civil, poderia resultar a restrição de Direitos Constitucionais. Assim, impunha-se a ponderação
de princípios conflituantes, pelo que a cláusula “contra política pública” (Sittenwidrige vorsätzliche Schädigung), na Secção 826
do BGB, deveria ser confrontada com a liberdade de expressão, prevista no § 5 (1) da GG, à qual o Tribunal decidiu que deveria
ser dada primazia sobre concorrentes princípios constitucionais. BVerfGE vol. 7, 198. Exemplo dado em ROBERT ALEXY,
“Constitutional Rights, Balancing, and Rationality”, Ratio Juris, Vol. 16 No. 2 June 2003, páginas 131 a 140.
109
ROBERT ALEXY, “Constitutional Rights, Balancing, and Rationality”, op. cit., página 136.
110
Idem.
111
Ibidem.
112
“Because there are no rational standards here, weighing takes place either arbitrarily or unreflectively, according to customary
standards and hierarchies” ROBERT ALEXY, “Constitutional Rights, Balancing, and Rationality”, op. cit., página 259.
113
BVerfGE vol. 7, 198, citado por ROBERT ALEXY, “Constitutional Rights, Balancing, and Rationality”, Ratio Juris, Vol. 16 No.
2 June 2003, páginas 131 a 140.
114
JÜRGEN HABERMAS, Between Facts and Norms, op. cit., que ALEXY não ignora in ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte,
op. cit., página 130.
115
ROBERT ALEXY, Theorie der Juristischen Argumentation, op. cit., página 169 e ss..
116
Idem.
117
ROBERT ALEXY, “Constitutional Rights, Balancing, and Rationality”, op. cit., página 139.
118
GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional…, op. cit., página 1162 e ss..
119
Ibidem.
120
J.J.Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 1998, pg 92
121
122
123
R. Zippelius, Teoria Geral do Estado, 3ª edição, 1997, pg 159 VITAL MOREIRA, A Administração Autónoma, pg. 250.

124
Sobre o potencial argumentativo do conceito de Direitos Fundamentais vide ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte…, op.
cit., página 524 e ss..
125
BRUCE ACKERMAN, “The Rise of World Constitutionalism”, Va L Rev, 87 (1997) página 773 e ss..
126
JÜRGEN HABERMAS, Der Gespaltene Westen, Suhrkamp, op. cit., página 121.
127
THOMAS FRANCK, Fairness in International law and Institutions, op. cit., página 6.

134
128
THOMAS M. FRANCK, The Empowered Self - Law and Society in an Age of Individualism, OUP, Oxford, 2000, passim.
129
KOSKENNIEMI, “The Wonderful Artificiality of States”, Proceedings of the American Society of International Law, 1994,
página 22 a 29.
130
Que PAULO OTERO entende, desde logo, fundar o desenvolvimento do “constitucionalismo global” e a “emergência de uma
teoria da inter-constitucionalidade”, em especial, a matéria de Direitos Humanos, crescente objecto de normas com valor ius
cogens no ordenamento jurídico internacional. Vide PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública..., op. cit., página 227 e
ss.. Do mesmo modo, se faz referência ao Direito estrangeiro que pode, por via da aplicação de normas de conflitos, ser aplicado
em Portugal, ou do Português noutro ordenamento jurídico, mas sempre em sentido bem diversos daquele que se poderia,
tradicionalmente, atribuir-se-lhe na sua origem. Vide PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública..., op. cit., página 228
e ss. e, mais especificamente em matéria administrativa, página 487 e ss..
131
BRUCE ACKERMAN, “The Rise of World Constitutionalism”, Va L Rev, 87 (1997) página 773 e ss..
132
Tradicionalmente reconduzido ao disposto no art. 16.º da DUDHC de 1791, pelo qual um documento escrito, consagrando a
protecção dos Direitos fundamentais e a limitação do poder pela consagração do princípio da Separação de Poderes.
133
A expressão é de AROSO LINHARES, “O Direito como forma de vida”, Comunicação apresentada ao 1.º Congresso de Direito
Constitucional da UNTL, em 11.07.2009.
134
Advisory Opinion of the ICJ on the “Accordance with international law of the unilateral declaration of independence in
respect of Kosovo”, Decisão de 22 de Julho de 2010 in http://www.icj-cij.org/docket/files/141/15987.pdf.
135
HABERMAS, “Kant's Idea of Perpetual Peace with the Benefit of Two Hundred Year Hindsight”, The Inclusion of the Other,
op. cit., página 114 e ss..
136
A expressão é de AROSO LINHARES, “O Direito como forma de vida”, Comunicação apresentada ao 1.º Congresso de Direito
Constitucional da UNTL, em 11.07.2009.
137
Minha tese???
JANNE NIJMAN & ANDRE NOLLKAEMPER, “Beyond the Divide” in JANNE E. NIJMAN E ANDRÉ NOLLKAEMPER, New Perspectives
on the Divide…, op. cit., página 342. A este desenvolvimento histórico do Direito Internacional, juntam outros mais recentes
como a dispersão de autoridade que a “privatização”, à escala global, de certas funções de autoridade permite, bem como a
crescenteme relevância do de normas ditas de soft law. Vide também CHRISTINE CHINKIN, “Monism and Dualism: the Impact of
Private Authority on the Dichotomy Between National and International Law” in JANNE E. NIJMAN E ANDRÉ NOLLKAEMPER,
New Perspectives on the Divide…, op. cit., página 134 e ss..

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