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A APRENDIZAGEM COMO DISCIPLINA DE DIÁLOGO:


IMPLICAÇÕES CIENTÍFICAS E SOCIAIS

LEARNING AS A DIALOGUE DISCIPLINE:


SOCIAL AND SCIENTIFIC IMPLICATIONS

Mauro de Oliveira MAGALHÃES1

RESUMO

No artigo são examinadas as bases históricas e filosóficas do pensamento


ocidental para explicitar as crenças tácitas sobre a natureza do
conhecimento que subjazem às interações sociais, com ênfase nos
meios acadêmicos e científicos. São analisadas as conseqüências de
idéias e atitudes presentes na tradição filosófica iniciada por Sócrates e
Platão sobre o modo típico de pensar e resolver problemas em nossa
cultura. A tarefa do conhecimento é descrita como uma disciplina de
diálogo e construção coletiva.
Palavras-chave: ciência, aprendizagem, diálogo.

ABSTRACT

The article examines the historical and philosophical background of


occidental thinking in order to make explicit the tacit beliefs about the
nature of knowledge behind the social interactions with emphasis on the
academic and scientific fields. The consequences of the ideas and
attitudes inherent in the philosophical tradition started by Socrates and
Plato on the typical mode of thinking and problem-solving of our culture
are analyzed. The task of knowing is described as a discipline of dialogue
and social construction.
Key-words: science, learning, dialogue.

(1)
Departamento de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA)
Programa de Doutorado em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS)
Endereço para correspondência: Rua Sinimbú, 78 apto 303, bairro Petrópolis, Porto Alegre – RS telefones: (0XX51)
3388 6152 CEP 90470.470 - 9841 0034 E-mail: mauro.m@terra.com.br

Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 20, n. 1, p. 37-50, janeiro/abril 2003


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INTRODUÇÃO navegação e a matemática floresceu junto à


complexidade das transações comerciais. “A
Neste trabalho irei trazer algumas magia e o credo foram lentamente cedendo
reflexões sobre o que considero serem os lugar à ciência e ao controle; e nasceu a
principais empecilhos para o estabelecimento filosofia”. (p.31)
de um diálogo e colaboração genuína entre
Neste contexto surge o movimento dos
indivíduos engajados na tarefa de adquirir e
sofistas, professores ambulantes de sabedoria
construir conhecimentos, tanto no nível dos
que questionavam sem pudores os credos
conteúdos (informações) quanto no nível das
religiosos e políticos, submetendo-os ao
habilidades (processos cognitivos) implicadas.
escrutínio da razão. Por outro lado, eram
Estes empecilhos são (a) a crença na idéia de
céticos quanto à possibilidade de um
verdade, (b) a utilização de uma estratégia
conhecimento definitivo sobre qualquer coisa;
estritamente argumentativa, crítica e defensiva
o que lhes importava era o saber pragmático.
para o debate das idéias e (c) a crença na
Na visão sofista, a verdade, tal como a
autonomia do pensar individual. Estes fatores
percepção, é sempre uma questão de escolha.
são complementares e constituem as bases
Protágoras argumentava que o mundo é o que
do “equipamento” assumido tacitamente pela
cada pessoa escolheu perceber. A sua famosa
civilização ocidental como o método de pensar
frase “o homem é a medida de todas as coisas”
e resolver problemas.
é freqüentemente interpretada como uma versão
individualista da verdade, pois, deste modo,
todas as percepções são igualmente
SOB O JUGO DA VERDADE verdadeiras. Mas Protágoras não era um
individualista, pois o seu objetivo maior era
“Verdade baseia-se mais em ‘O que é?’ esclarecer que as desavenças entre os homens
do que em ‘O que pode ser?’” não serão resolvidas com base na verdade.
(De Bono, 1990, 1995; Russell, 2001)
(De Bono, 1995, p. 62)
O pluralismo sofista abalou a fé religiosa
Para enfocar este tópico é necessário do povo ateniense pois, nesta perspectiva,
revisar historicamente o nascimento da filosofia Deus existe para aqueles que acreditam em
grega e a sua influência sobre o pensamento Deus. É claro que estas idéias encontravam
ocidental. Após a guerra entre Grécia e Pérsia, adversários entre cidadãos e também entre
de 490 a 470 a. C., Atenas transformou a sua filósofos como, por exemplo, Sócrates. Ora, a
marinha de guerra em uma frota mercante e defesa de um critério de realidade baseado em
tornou-se um porto movimentado, onde idiossincrasias pessoais é caótica do ponto
acediam tripulações das mais diversas de vista normativo. E além disso, os sofistas
culturas. Esta pluralidade em convívio gerou ganhavam a vida como professores de retórica,
comparações, análise e reflexão. Durant (2000) ministrando aulas pagas de persuasão, isto é,
sugeriu que os comerciantes tenham sido os ensinando métodos para mudar a visão de
primeiros filósofos pois “onde existem mil mundo alheia. Nas suas escolas, sustentavam
crenças, tendemos a nos tornar céticos em que, com esses recursos, o argumento mais
relação a todas elas” (p. 30). Estes homens fraco poderá se tornar o mais forte. E por isso
prósperos puderam se dedicar à especulação foram acusados pelos democratas de
e ao conhecimento sobre fenômenos da corromperem a juventude com ensinamentos
natureza até então revestidos de sacralidade subversivos.
religiosa e poderes sobrenaturais. A astronomia Sócrates criticava duramente as práticas
desenvolveu-se em resposta aos desafios da sofistas, mas, paradoxalmente, foi incluído

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neste grupo por muitos de seus dias, de que existe uma verdade única e
contemporâneos. Talvez porque ambas as eterna. O pluralismo e o ceticismo dos sofistas
partes comungassem certos valores da haviam feito a “percepção” dominante. A
aristocracia, que significa o governo dos verdade era uma questão de ponto de vista, o
melhores. O pensamento político dos sofistas, que implica que as pessoas e o governo
tal como Nietzche (1885/1978) viria a defender poderiam ser persuadidos pelos retóricos
com o seu super-homem, considerava a habilidosos. Platão não tolerava esta situação,
moralidade uma invenção dos fracos para deter pois estava preocupado com ordem, regras,
os fortes, e o poder como o desejo e a virtude verdade, fórmulas eternas e absolutas. E assim
suprema do homem. Por outro lado, Sócrates decidiu instaurar a ordem em nosso
defendia que o bem era o conhecimento, e a pensamento. E, historicamente, o pensamento
ignorância, a fonte de todos os males. E ocidental assumiu que a verdade está em
sonhava com uma moralidade independente algum lugar. Resta-nos a tarefa de encontrá-la,
das doutrinas religiosas que amedrontavam os pura, inteira e pronta a nos oferecer a dádiva de
cidadãos. Para ele, o conhecimento era a
sua luz (De Bono, 1995; Glasersfeld, 2001).
fonte da moral, e uma sociedade é forte e justa
se tiver em seu comando os homens mais Na famosa analogia platônica, ou
sábios. socrática, as pessoas estão acorrentadas em
uma caverna de tal maneira que podem observar
Este ataque à democracia refletia a
somente sombras da verdade ou das formas
tentativa de ascensão de uma minoria rica em
Atenas, o partido oligárquico, que denunciava essenciais (Platão, trans. 1980b). Não
a democracia como uma impostura obstante, Platão argumentou que, quando
incompetente. Os sofistas foram então somos filósofos, vemos as coisas à luz da
perseguidos e Sócrates obrigado a tomar verdade e da razão. Pois “os filósofos são
cicuta. Diante disto, Platão, discípulo fervoroso aqueles que são capazes de atingir aquilo que
de Sócrates, encheu-se “de tamanho desprezo se mantém sempre do mesmo modo”. (Platão,
pela democracia, tamanho ódio contra as trans. 2001, p.179). No diálogo do Fédon,
massas, que nem mesmo a sua linhagem e esclareceu que a visão da verdade é possível
sua criação aristocráticas haviam despertado ao homem porque Deus lhe deixou esta herança
nele; levando-o a uma decisão catônica de que latente através da alma; e que, por meio da
a democracia precisava ser destruída”. (Durant, eliminação das interferências corpóreas sobre
2000, p.39) o pensamento, o filósofo terá acesso às
E assim, em A República, Platão sugeriu verdades sobre o mundo real. Neste sentido, o
que a sociedade deveria ser governada por personagem Sócrates diz: “... o exercício
uma classe especial denominada “Guardiões”. próprio dos filósofos não é precisamente libertar
Estes cidadãos seriam selecionados e a alma e afastá-la do corpo?” (Platão, trans.
educados, desde a infância, com base em 1972, p.75). Glaserdfeld (2001) mostrou que o
poder desta metáfora platônica, denominada o
regras científicas que garantissem o
“mito da caverna”, reside em apresentar uma
desenvolvimento de sua competência
situação poeticamente plausível, sem deixar
administrativa e sabedoria para criar leis e
claro que esta situação poderia ser descrita
governar. Esta era a utopia de Platão (Platão,
somente por um Deus, pois somente um Deus
trans. 1980b).
poderia saber o que há além da experiência
Platão desprezava o pluralismo humana. Pois, tal como Kant (1787/1978)
democrático, pois estava convencido, e escreveu, a razão humana pode alcançar
terminou por convencer as gerações somente o que ela mesma produziu de acordo
subseqüentes de pensadores até os nossos com sua própria programação.

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Por outro lado, o relativismo sofista emerge de um fundo de possibilidades. Uma


sobreviveu até nossos dias. Entre seus figura nítida e brilhante expressa a necessidade
representantes estão os pensadores constru- psicológica predominante no presente,
tivistas, entre eles, Glasersfeld (2001) e organiza o campo organismo-meio e orienta o
Watzlavick (1981). O construtivismo postula comportamento eficiente. Os psicólogos da
que um organismo jamais será capaz de afirmar, Gestalt nos mostraram que os processos
verificar ou copiar a realidade; ele apenas perceptivos tendem a se mover numa direção
poderá construir um modelo que se ajusta a geral que subordina os ajustamentos
ela. Estes autores se preocupam com o particulares na busca da regularidade, da
processo de “invenção” das realidades simplicidade e da estabilidade. Esta é a lei da
científicas, sociais e pessoais; considerando pregnância, ou da “boa forma”, que expressa o
que a realidade pretensamente objetiva é apetite estruturador da percepção em sua
sempre uma construção baseada em missão de organizar os processos psicológicos
pressupostos tomados como fatos, mas que e orientar a conduta. Esta organização/
são apenas a conseqüência de um modo de se orientação será a melhor possível nas
buscar a realidade. Neste sentido, cientistas condições em que o organismo se encontra,
no campo da física quântica levantam será o seu esforço criativo para alcançar a
argumentos semelhantes (por exemplo, Bohm, posição mais confortável no seu contexto
1965), pois asseveram que a ação de investigar, (Wertheimer, 1959). De acordo com
seus instrumentos e métodos, modifica a Wertheimer (1959), o indivíduo deseja uma
percepção do objeto do conhecimento; ou percepção “estruturalmente clara, na qual os
seja, o instrumento de observação e o objeto itens encontrem seu lugar, função e papel
observado constituem-se na reciprocidade. claros, e não perturbem as linhas principais e
Esta participação mútua entre natureza a direção resultante de visão e ação”. (p.244)
e consciência (Bohm,1965) revela-se na E será possível discriminar se esta organização
interdependência entre as etapas do foi imposta ao caos ou emergiu do mesmo?
empreendimento científico, pois observa-se Esta não é uma questão relevante se
na articulação entre orientação teórica, método pensarmos sistemicamente, pois uma dada
de investigação e “achados científicos” a configuração perceptiva do campo organis-
construção de um argumento que defende mo-meio emerge de uma necessidade de
uma idéia presente desde o início na atitude orientação para o comportamento (que, em
original do pesquisador. Numa visão sistêmica, última análise, é a busca da sobrevivência); e
constata-se a circularidade destes momentos, por isso impõe-se em primeiro plano, mesmo
encadeados numa relação de cumplicidade, diante de alternativas (outras configurações
em que confirmação que se obtém da possíveis), enquanto a excitação que a originou
orientação teórica inicial deriva do método não tenha encontrado vazão suficiente, ou
empregado, uma vez que o método (e a enquanto o organismo não seja confrontado
expectativa do investigador) cria em parte o com uma demanda mais urgente para sua
que se descobre, da mesma maneira como o sobrevivência (Perls, Hefferline & Goodman,
próprio cientista foi orientado em sua formação 1965). E, portanto, “o que chamamos
teórico-prática específica (Perls, Hefferline & conhecimento, num sentido amplo, é
Goodman, 1965). precisamente esta organização dinâmica do
Ora, o objetivo fundamental da percepção sistema organismo/entorno, enquanto lhe
é orientar o comportamento eficiente, e não possibilita agir”. (Assmann, 1995, p.3).
reproduzir uma suposta realidade. Para a Järvilehto (citado por Assmann, 1995, p.2)
escola Gestalt, o percebido é uma figura que apresentou o cerne desta questão:

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Segundo a teoria do sistema unificado ver o mestre esvaziar dogmas e ferretoar


organismo/entorno, o surgimento das idéias preconcebidas com as aceradas
formas do conhecimento não está pontas de suas perguntas. Platão
baseado em nenhum processo de entregara-se a esse desporto com o ardor
transferência do entorno para dentro do com que se dedicara a outras lutas mais
organismo, porque não existem dois grosseiras”. (Durant, 1959, p.33)
sistemas entre os quais pudesse ocorrer
esta transferência. O conhecimento é O que sabemos sobre o pensamento de
a forma de existência do sistema Sócrates foi escrito por outros, principalmente
(melhor: é o conhecimento que o faz por Platão. Platão expressou seu pensamento
existir nessa forma) e o conhecimento por meio de diálogos entre um “personagem”
novo é criado quando se estão verificando chamado Sócrates e outras pessoas. Este foi
mudanças na estrutura do sistema. O o veículo principal de nosso conhecimento do
aumento do conhecimento representa pensamento socrático, filtrado pela mente de
uma ampliação do sistema e sua Platão. De Bono (1995) resumiu a essência do
reorganização, o que torna possíveis método socrático como a busca incessante
novas formas de ação e novos resultados. da verdade por meio de questionamento.
Segue daí que o conhecimento como tal O método socrático pressupõe que o
não está baseado em qualquer ação direta conhecimento esta aí, de modo absoluto, em
dos sentidos. algum lugar. Por outro lado, Sócrates também
Bohm (1965) disse que o propósito da fez da ignorância uma virtude. Ele
ciência não é o acúmulo de conhecimentos, aparentemente foi informado pelo oráculo de
mas a construção de mapas mentais Delfos que nenhum homem era mais sábio que
orientadores da percepção e do compor- Sócrates. Finalmente concluiu que isto era
tamento, emergentes da parceria constante porque somente ele sabia de sua ignorância.
entre natureza e consciência. E, de fato, as Então ostentou sua ignorância e era quase
lideranças científicas do século passado, de orgulhoso de não ter conclusões após uma
uma forma ou de outra, declararam que sua exploração de idéias sobre determinado tema.
teorias eram somente modelos explicativos Ele considerava o seu papel como o de uma
hipotéticos (Glaserdfeld, 2001). Portanto, tal “mutuca” (como Sócrates chamava a si mesmo),
como os sofistas, pensadores modernos provocando as pessoas a rever seus
preferem lidar com as realidades construídas pensamentos na busca incessante de uma
e cambiantes, em vez de buscar uma verdade profundidade que se tornava tão mais inóspita
absoluta e imutável. e longínqua quanto mais buscava atingir o seu
Este trabalho não pretende defender fundo. Era suficiente que seus estudantes
posições filosóficas sobre o conceito de começassem a questionar e a pensar; a
verdade, mas sim apontar conseqüências que conclusão não importava (Durant, 1959, 2000;
podem advir do apego irrefletido a determinado De Bono, 1995).
ponto de vista sobre a questão. Algumas destas
A essência do método socrático era
conseqüências são abordadas no tópico a
esclarecer erros, confusão e falsas premissas.
seguir.
Sócrates deleitava-se com a refutação. Diante
de qualquer idéia oferecida, mesmo algo
O MÉTODO SOCRÁTICO perfeitamente razoável, regozijava-se em dar
um contra-exemplo, isto é, uma circunstância
“Platão descobrira um novo prazer no muito especial e, portanto, pouco provável,
jogo “dialético” de Sócrates; era um deleite em que tal idéia não funcionaria. Seus con-

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tra-exemplos tornavam muito difícil chegar a argumento, o sujeito B educadamente diz:


alguma conclusão. De algum modo, pode ter “aprecio suas idéias, mas a minha experiência
sido a honestidade de Sócrates que não lhe leva a conclusões diferentes, deixe-me dizer...”.
permitiu delinear uma possível resposta e o fez À medida que cada lado defende seus
esperar que a verdade se revelasse por si argumentos, adota posturas cada vez mais
mesma, a despeito dos seus esforços para veementes e congela-se em suas posições. E
contrariar. Porém, as premissas de seu método uma vez que a batalha foi lançada, ego e vitória
de “diálogo” e o seu estilo de conviver foram são muito mais importantes do que explorar o
perpetuados por Platão, tornando-se o método tema ou objeto do conhecimento. Este é o
tradicional de pensar e conviver no ocidente roteiro típico das interações sociais bem
(De Bono, 1995). intencionadas que buscam resolver problemas
Ingenuamente pensamos que as coisas em todos os âmbitos da atividade humana e,
boas (como a verdade) já estão aí, muito freqüentemente, em contextos que
obscurecidas pelas coisas ruins ou fora da pretendem apenas a participação e afiliação
vista, assim como muitos jardineiros pensam social em si mesmas (Senge, 1990; De Bono,
que é suficiente retirar as ervas daninhas para 1995).
que as flores cresçam. A máxima socrática Isto é o resultado do que De Bono (1995)
“conhece a ti mesmo” parece dizer que há um aponta como a valorização excessiva do
eu oculto a ser desvelado pela introspecção. pensamento crítico na cultura ocidental.
Ou seja, a aparência esconde a essência. Ambientes acadêmicos, principalmente,
Ora, sob o véu da aparência encontraríamos consideram o pensamento crítico como o mais
somente vazio e o sentimento da falta de ser, alto nível de utilização do intelecto humano.
um espaço a ser preenchido pelo esforço Por que essa obsessão com a importância e a
criativo de cada indivíduo. A fenomenologia suficiência do pensamento crítico? Ora, é fácil
existencial (por exemplo, Luijpen, 1973) e as observar que o sujeito interessado em
correntes construtivistas contemporâneas (por aproximar-se, ser aceito ou admirado por seus
exemplo, Glaserdfeld, 2001) concordam que a pares deve dizer alguma coisa. Em conversas
condição humana é também um encargo, pois e encontros sociais, a forma mais fácil de
os mundos humanos são construídos e não contribuição é a negativa: “Sim, mas...”; “E
dados a priori. Talvez pudéssemos igualmente sobre o perigo de... ?”; “Em tais circunstâncias
dizer “constrói a ti mesmo”. isto não irá funcionar”. Diante de qualquer
A obra do psicólogo E. De Bono (1971, idéia apresentada, não é difícil focalizar nos
1995) salienta que a civilização ocidental 5% que podem não funcionar ao invés dos 95%
desenvolveu uma estratégia de pensar baseada que podem funcionar. Além disso, o criticismo
na premissa de que existem verdades únicas é emocionalmente atrativo, na medida em que
e absolutas, e que o esforço de conhecer deve atacar uma idéia sugere superioridade à
ser direcionado à descoberta destas verdades. mesma. Nesse sentido, freqüentemente é uma
Esta crença considera que uma idéia é válida cobertura legítima e útil para a inveja, como é
somente se resistir a uma bateria de críticas; comum no mundo acadêmico. A crítica traz
se ela não se provar verdadeira em condições um senso de realização e importância mesmo
adversas, é rejeitada. Neste paradigma, na ausência de uma contribuição positiva do
constrói-se a modalidade característica de sujeito, como no exemplo de muitos críticos
interação social em busca do conhecimento e de arte que se tornaram mais significativos do
da solução de problemas, qual seja, a que os próprios artistas. Portanto, a grosso
modalidade adversarial ou argumentativa. modo, pode-se dizer que o criticismo é uma
Explica-se: o sujeito A apresenta seu forma leve de esforço intelectual. Se alguém

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pretende ser crítico, não é difícil encontrar um capacidade de indagar abertamente sobre
alvo. Por exemplo, escolhendo um esquema problemas complexos. O autor assevera que
de referência diferente do arquiteto, você pode “mesmo quando nos sentimos inseguros ou
criticar a diferença entre a construção e o ignorantes, aprendemos a nos proteger da dor
esquema de sua escolha. Se a construção é de parecer inseguro ou ignorante. Este
simples, você pode dizer que é simplória ou processo por si só bloqueia novas com-
Bauhaus. Se a construção é elaborada, pode preensões que possam nos ameaçar”. (p.58)
dizer que é fútil, ostensiva, vulgar e vitoriana. E, desse modo, adquirem-se habilidades de
Se você não encontrou nada para dizer, diz impedir a própria aprendizagem, tal como no
que é derivativa (significando cópia de outro) funcionamento neurótico, o sujeito interrompe
ou repetitiva (significando que o arquiteto fez o contato com sua falta de autoconfiança e faz
cópia de si próprio). Há um vasto repertório de manobras para minimizar os efeitos de sua
observações extremamente fáceis de aplicar a desvantagem, em vez de enfrentá-la e superá-
qualquer coisa e mesmo assim soar profundo la (Perls, Hefferline, Goodman, 1965). A
(De Bono, 1995). incapacidade de aprender resulta então de
E por fim, existe uma temor genuíno, e manobras paradoxalmente inteligentes para
não completamente infundado, de que a evitar a percepção da ignorância, em lugar de
ausência do criticismo leve o mundo ao caos. aceitá-la e partir daí para a descoberta.
Assim como Sócrates sentiu que o criticismo Adquire-se o que Argyris (1990) denominou de
era necessário para contrariar os retóricos incompetência hábil.
Sofistas, nós ainda sentimos que as pessoas Em vista do que foi exposto, resta saber
inteligentes têm o dever de guardar a sociedade como podemos desenvolver uma nova disciplina
contra idéias loucas ou novas. E a estratégia de convívio que permita aos indivíduos o
é criticar as idéias novas o mais tenazmente enriquecimento recíproco de suas capacidades
possível. Se elas sobreviverem, então possuem de adquirir e criar conhecimentos, em vez de
algum mérito. De Bono (1995) considerou que aprisioná-los em posições argumentativas. De
a estratégia socrática pode ter sido necessária Bono (1995) apresentou a sua proposta do
em sua época e pode mesmo ser utilizada pensamento paralelo ou pensamento lateral,
produtivamente na atualidade. Porém, termo que já foi incluído no dicionário Oxford
tornou-se um hábito irrefletido e naturalizado de língua inglesa. Pensamento paralelo signi-
como o método racional de resolução de fica traçar idéias ou linhas de raciocínio
problemas. O autor denominou o método paralelamente umas às outras. Não há choque,
socrático de argumentativo ou adversarial e nem disputa, nem julgamentos verdadeiro/falso
esclareceu que não põe em questão a qualidade a priori. Os sujeitos devem buscar o interesse
e o valor das idéias de Sócrates, mas genuíno para uma autêntica exploração do
argumentou ser contraproducente a utilização tema. De Bono (1995) desenvolveu a técnica
exclusiva e ingênua da estratégia de pensar dos seis chapéus, a fim de instrumentalizar
fundada sobre suas premissas. sua proposta. A técnica consiste em adotar
Nesse sentido, Senge (1996), em sua seis chapéus metafóricos, de diferentes cores,
obra clássica sobre organizações que que representam diferentes modos de
aprendem, salientou que a escola nos educa pensamento em relação a uma temática ou
para nunca admitir que não sabemos a questão determinada. Os pensadores em
resposta, e a maioria das instituições de nossa interação usam, simultaneamente, um mesmo
sociedade reforça esta mentalidade, chapéu de cada vez; e seguem, exclusi-
recompensando as pessoas pela competência vamente, o modo de pensar indicado pelo
em defender seus pontos de vista, e não pela chapéu. O autor comenta que à primeira vista

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esta idéia pode parecer boba ou infantil, mas esquemas para perceber e arranjar
salienta a necessidade perceptual de um idéias e informações em cursos
esquema concreto para fazer o método fácil de inovadores de trabalho e criação.
usar e lembrar. De maneira resumida, cada 6. Chapéu azul: É o chapéu para pensar
chapéu convida os participantes a adotarem sobre o pensamento, supervisionar e
os seguintes comportamentos intelectuais: administrar o processo em andamento.
1. Chapéu branco: Focaliza o levan- Seria tipicamente utilizado pelo
tamento de informações sobre a coordenador ou facilitador de um
questão. Qual informação é disponível? encontro.
Como vamos conseguir a informação O método dos seis chapéus usa o
que precisamos? A qualidade da pensamento paralelo de três maneiras: (1) sob
informação deve ser assinalada. a vigência de determinado chapéu, cada
Quando houver desacordos, isto pode pensador focaliza o tema, e não disputas com
ser conferido em outro momento. os colegas; (2) opiniões diferentes são postas
2. Chapéu vermelho: Propõe a expressão em paralelo e aguardam apreciação posterior,
de sentimentos e intuições. Não se se necessário; (3) os chapéus trazem direções
espera uma justificativa lógica, pois a paralelas para pensar, evitando choques entre
intuição pode estar baseada numa estratégias e otimizando esforços. Por
experiência complexa com a questão exemplo, o chapéu preto e o chapéu amarelo
em foco, o que dificulta discriminar os são esforços paralelos para pensar as
fatores que a fundamentam, ao menos dificuldades e os benefícios, respectivamente.
por enquanto. Evita que os sentimentos Esta discriminação e direcionamento evita o
apareçam desordenadamente em bloqueio recíproco de cursos de pensamento a
outros momentos sob a forma de nível individual e grupal. O simbolismo dos
ataques ou apologias. chapéus permite que os participantes se
3. Chapéu preto: Solicita cautela, indaguem mutuamente num jogo de papel de
percepção de riscos e criticismo. características lúdicas que previne manobras
Verifica se algo é coerente com a defensivas do ego e abre avenidas de
informação, experiência, objetivos, exploração e criatividade que seriam
política, valores, ética, etc. impossíveis num contexto argumentativo (De
Bono, 1985).
4. Chapéu amarelo: Indica a lógica
positiva, os benefícios e valores. Os Propostas semelhantes foram apresen-
tadas por Senge (1996) e Argyris (1990), que
chapéus amarelo e preto demandam
sugerem o treinamento de um equilíbrio entre
suporte lógico para as afirmações. O
processos de indagação e argumentação. A
chapéu amarelo freqüentemente se
argumentação é a estratégia defensiva de
mostra mais difícil do que o preto, pois
pontos de vista ou opiniões anteriormente
somos mais treinados em perceber
descrita, que permanece útil, pois as visões
imperfeições, dificuldades e perigos.
pessoais sempre existem, independente do
5. Chapéu verde: O chapéu verde significa sujeito acreditar que é o único correto ou não.
esforço criativo deliberado, isto é, a Por outro lado, o processo de indagação
busca de alternativas e novas idéias. significa a exposição, por cada participante,
Para De Bono (1995), o exercício da de sua linha de pensamento ao exame público,
possibilidade é responsável pelo sem ocultar falhas ou raciocínios subjacentes.
progresso tecnológico do ocidente, não A diferença entre os dois processos, e o
o sistema argumentativo, pois traz equilíbrio entre ambos, revela-se na forma

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como os sujeitos utilizam os dados, permitindo segundas no treinamento para reconhecer e


revelar-se ou não o raciocínio subjacente às expor as premissas ou teorias implícitas que
suas abstrações. Quando há somente subjazem ao pensamento. O autor esclarece
argumentação, os dados são utilizados que os problemas relacionados aos modelos
seletivamente de modo a confirmar a posição mentais não residem em questões de certo e
adotada. Em contraste, na indagação cada errado, pois todos os modelos são sempre
participante deve esforçar-se por explicitar simplificações, mas no fato de serem tácitos,
como construiu suas conclusões a partir de isto é, indisponíveis para exame e reflexão.
suas premissas e crenças fundamentais. Desta Portanto, o objetivo da disciplina dos “modelos
forma, há um convite à exploração recíproca mentais” não é encontrar a verdade, mas a
entre os participantes sobre as potencialidades melhor alternativa para lidar com questões
e falhas presentes nos esforços individuais. específicas.
O objetivo da indagação é encontrar as As idéias de Senge (1996) sobre
lacunas no processo de pensar, isto é, o que aprendizagem grupal foram influenciadas pela
Senge (1996) denominou saltos de abstração. obra do físico David Bohm. As idéias de Bohm
Explica-se: a rapidez dos processos cognitivos (Bohm & Nichol, 1996; Bohm, Factor & Garret,
apóia-se em generalizações que simplificam 2001) revelam o caráter coletivo do pensamento
uma quantidade de informações sob a forma e propõem o conceito de diálogo como uma
de um conceito. Os conceitos podem ser prática de acesso e reflexão sobre as matrizes
descritos como rótulos lingüísticos que culturais reguladoras do pensamento humano.
resumem e simplificam um conjunto complexo A crença de cada um na autonomia do seu
de experiências com base num denominador processo de pensar mostra o quanto a noção
comum e, desde então, por razões práticas ou de “eu” está hipertrofiada em nossa cultura.
preguiça intelectual, passamos a tratar o rótulo Esta hipertrofia faz com que vejamos a
abstraído da experiência como o próprio fato comunidade como apenas uma rede de
da experiência. Neste sentido, Bohm, Factor compromissos contratuais, na qual realizamos
e Garret (2001) sugerem que precisamos de transações que podem adicionar ou subtrair à
meios para desacelerar o processo de pensar, grandiosidade do eu. Portanto, o autor vem
a fim de sermos capazes de observá-lo oferecer subsídios para a superação dos
enquanto acontece e identificar as estruturas empecilhos à convivência de aprendizagem
dinâmicas que o governam. Estas estruturas gerados por essa visão solipsista do sujeito.
foram denominadas por Senge (1996) de
modelos mentais, brevemente definidos como
as imagens internas, profundamente OS DONOS DO PENSAMENTO:
arraigadas, sobre o funcionamento do mundo, ATORES OU AUTORES
que limitam os modos de pensar e agir a
fórmulas conhecidas. Neste sentido, Senge Ficamos presos no teatro dos nossos
(1996) propôs uma disciplina de aprendizagem pensamentos. A realidade pode mudar,
que denominou “modelos mentais”, que tem mas o teatro continua. Operamos no
por objetivo trazer à tona, testar e aperfeiçoar teatro, definindo e resolvendo problemas,
essas imagens internas. Essa disciplina perdendo contato com o contexto maior
a póia-se no exercício combinado de que produz e dirige a cena (Senge, 1996).
habilidades interpessoais e habilidades de
reflexão. As primeiras fundamentam-se no Nas últimas décadas, muito se tem falado
equilíbrio entre processos de indagação e sobre o caráter coletivo do pensamento, isto
argumentação na convivência grupal, e as é, o pensar individual não é uma mônada

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auto-suficiente que sobrevive no reduto de sua que a aprendizagem e o acesso a níveis de


privacidade. A obra de Guattari e Rolnik (1986) reflexão mais intensos e radicais só ocorrerão
nos esclareceu que,não obstante a pretensão por meio de disciplinas coletivas de convivência
de cada indivíduo em afirmar sua autonomia baseadas em um novo conjunto de premissas
entitativa, as instância psíquicas que definem sobre a natureza do pensamento e do
sua representação e vivência do mundo conhecimento. O pensamento do físico David
encontram-se em sistemas de conexão direta Bohm (Bohm, Factor & Garret, 2001; Bohm &
com as grandes máquinas produtivas, as Nichol, 1996) sobre o diálogo destaca-se nessa
grandes máquinas de controle social e de busca. O autor considera o pensamento como
semiotização da subjetividade. O indivíduo é o um fenômeno sistêmico que surge de nossa
terminal de sistemas de subjetivação, é um forma de interação e discurso na dinâmica
consumidor da subjetividade fabricada e em social. Senge (1996) resumiu a concepção de
circulação nos conjuntos sociais. D. Bohm sobre o significado do diálogo:
Ou seja, os elementos constitutivos da No diálogo, um grupo explora questões
subjetividade não estabelecem uma relação difíceis e complexas de vários pontos de
do tipo dentro/fora com um indivíduo recipiente vista. Os indivíduos suspendem seus
de coisas exteriores. Pensadores contem- pressupostos embora os comuniquem
porâneos argumentam que as distinções livremente. O resultado é uma livre
dentro/fora, natureza/cultura ou homem/má- exploração que traz à tona a total
quina estão encontrando o limite de sua profundidade da experiência e do
existência na vida cotidiana. A racionalidade pensamento das pessoas, e ainda assim
está sofrendo crescentes ataques à sua pode ir além das suas visões individuais.
imagem essencialista, uma vez já questionada (p.268)
pelo historicismo no advento da Modernidade, Neste contexto de vulnerabilidade, o
mostrando ser um efeito ecológico, que se diálogo permite que o grupo aceda a um grande
sustenta no uso de tecnologias intelectuais conjunto de significado comum, inacessível
variáveis no espaço e historicamente datadas individualmente. Nas palavras dos autores:
(Lévy, 1993, Lissovsky, 1996, Pedro, 1996).
O diálogo é um modo de observar,
Pierre Lévy (1993), em sua obra “As tecnologias
da inteligência”, propõe-se a “mostrar a coletivamente, como valores e intenções
quantidade de coisas e técnicas que habitam ocultas podem controlar nosso compor-
o inconsciente intelectual, até o ponto extremo tamento, e como diferenças culturais não
no qual o sujeito do pensamento quase não se examinadas podem se chocar sem
distingue mais (mas se distingue ainda) de um compreendermos o que está acontecendo.
coletivo cosmopolita composto por dobras e ... No diálogo, um grupo de pessoas pode
volutas do qual cada parte é, por sua vez, explorar as pressuposições, crenças e
misturada, marmoreada ou matizada de sentimentos, individuais e coletivos, que
subjetividade branca ou rosa e de objetividade sutilmente controlam as suas interações.
negra ou cinza” ( p.11). (Bohm, Factor & Garret, 2001, p.2)
Portanto, considerando-se que a O principal objetivo do diálogo é revelar a
racionalidade é uma construção coletiva e que incoerência do pensamento tal como ele é
a reflexão do indivíduo é um emergente de geralmente praticado. O pensar é algo dado
processos coletivos situados historicamente na experiência cotidiana, não temos
em determinada comunidade social e tecno- consciência da programação que seguimos ao
lógica (o que foi repetidamente exemplificado empreendermos a reflexão sobre determinado
através do fenômeno do Zeitgeist), conclui-se problema. No nível pré-reflexivo, assumimos

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que este é um procedimento natural tal como perspectivas gera novas possibilidades
a respiração ou a coordenação de movimentos que seriam inacessíveis individual-
de nosso corpo. Bohm, Factor e Garret (2001) mente.
esclareceram que na execução motora temos b)Todos os participantes devem encarar
a possibilidade da consciência do movimento uns aos outros como colegas. A
enquanto este ocorre e, mais importante, vulnerabilidade gerada pela suspensão
podemos prestar atenção e controlar aspectos de pressupostos necessita de um clima
como velocidade, intensidade, ritmo, etc. Este de solidariedade e segurança para
não é o caso quando abordamos processos de enfrentar o risco de colocar em cheque
pensamento. Não possuímos algo análogo à as próprias crenças. Os indivíduos
propriocepção enquanto pensamos; e por isso colaboram num contexto de liberdade
ignoramos os caminhos que inadvertidamente e não-julgamento, buscando o aspecto
optamos por seguir em nosso raciocínio. O lúdico de experimentar novas idéias,
autor propõe o diálogo como o contexto em examinando-as e testando-as. Este
que tal “propriocepção do pensar” pode ser tipo de coleguismo assume
desenvolvida, em que coletivamente possamos gradativamente uma forma de
trazer à tona as estruturas dinâmicas que o participação na qual os envolvidos se
governam. Do contrário, estaremos presos a sentem integrados num fluxo comum
um programa de pensar que simplesmente de significação.
segue em frente sem considerar as demandas
c) Deve haver um facilitador que mantenha
da realidade, pois estabelece o seu próprio
o contexto do diálogo. Senge (1996)
padrão de referência para resolver problemas,
observou que, na ausência de um
os quais, paradoxalmente, contribuiu para criar.
facilitador, facilmente instala-se a
Esta é a incoerência do pensamento, na
modalidade argumentativa de intera-
terminologia de Bohm e Nichol (1996). Os
ção, principalmente nas etapas iniciais
autores propuseram algumas condições para
a superação dessas incoerências por meio do da convivência em grupo. O facilitador
diálogo, a saber: deve identificar esses desvios e
perguntar ao grupo se as condições
a) Todos os participantes devem
descritas nos itens anteriores
suspender seus pressupostos. Isso
continuam sendo cumpridas. Ele não
significa abdicar de premissas
deve atuar como um especialista, mas
inegociáveis e aceitar que a base do
devolver continuamente ao grupo a
pensamento sempre é um conjunto de
responsabilidade sobre o que ocorre,
crenças, que somente serão perni-
ciosas se agirem na dimensão do salientando a necessidade de
esquecimento. É compreender que o expressar pressupostos implícitos.
pensamento é uma representação e não Devido à própria natureza do diálogo, o
a realidade. Portanto, os participantes papel do facilitador perde relevância à
devem expor suas premissas ao exame medida que o grupo adquire mais
público, superando a tendência a habilidades de diálogo.
preservar suas verdades, e adotar o
máximo de imparcialidade. A
comparação entre pressupostos produz CONSIDERAÇÕES FINAIS
um esclarecimento mútuo das
incoerências a que estamos submeti- A necessidade de redefinir os objetivos
dos, tanto como indivíduos quanto como de educação, no sentido de aquisição de
uma comunidade. O contraste das habilidades cognitivas e atitudes em vez de

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um simples acúmulo de informações, já foi pensar devem ser adquiridos para alcançar a
repetidamente constatada e defendida nas capacidade de “aprender a aprender”?
últimas décadas. Há quase 40 anos proliferam Considero que a resposta seria: tantos quantos
programas de capacitação cognitiva que têm possamos inventar.
por objetivo geral instrumentar os indivíduos Portanto, além de adquirir métodos de
com as mais variadas habilidades intelectuais. pensar, primeiramente é fundamental ter a
Tornou-se quase lugar comum dizer que o capacidade de “pensar o pensamento”, isto é,
objetivo da educação deve ser de “aprender a entender que o pensar não é um processo
aprender”. Porém, a efetiva implementação dado a partir da natureza, mas uma construção
desta idéia não tem sido tão freqüente (Pelletier, humana, um equipamento que utilizamos para
Bujold & Noiseux, 1982). resolver problemas. E, muitas vezes, podemos
Uma das razões para essa preocupação estar nos aperfeiçoando no método errado e
é a constatação cada vez mais radical da cometendo equívocos com perfeição, pois não
efemeridade do conhecimento. Ou seja, o que cogitamos a possibilidade de adotar outros
é válido hoje provavelmente não o será amanhã, equipamentos de pensar. Neste sentido, a
portanto é mais vantajoso possuir um know- tradição oriunda de Sócrates e Platão
how intelectual utilizável em situações novas e instalou-se como o método de pensar em si
imprevisíveis do que reproduzir fórmulas mesmo, e não como uma estratégia entre
memorizadas. outras. Pensar o pensamento e aprender a
Por outro lado, observa-se que a consta- reconhecer e escolher estratégias e modelos
tação do caráter efêmero do conhecimento de realidade é o objetivo das propostas
não é acompanhada por uma revisão de cren- apresentadas por De Bono (1995) com o
ças e atitudes profundas sobre a questão. pensamento lateral, por Senge (1996) com as
Verifica-se o contraste entre o que Argyris disciplinas de aprendizagem grupal e
(1990) descreveu como teorias esposadas (no organizacional, e por Bohm, Factor e Garret
caso: “o saber é efêmero e relativo”) e teorias (2001) com sua concepção de diálogo.
em uso (“existe uma única resposta verdadeira, Por fim, tal como referido por Caon (2001),
profunda e imutável”), isto é, a usual é urgente desenvolver não somente
dissociação entre discurso e prática. Pois, capacidades de aquisição de conhecimentos,
junto a uma retórica construtivista, mas também capacidades de convívio com
presenciamos o predomínio da estratégia pessoas. Penso que neste último aspecto
argumentativa no convívio social voltado para a observa-se uma deficiência tanto enraizada
produção de conhecimento e para a solução quanto pouco reconhecida e refletida em seus
dos problemas humanos. fundamentos. Neste trabalho busquei identi-
Sobre este aspecto, escutamos muitos ficar alguns destes fundamentos. Sócrates e
educadores argumentarem que ensinam os Platão nos ensinaram a ser profundos e buscar
seus alunos a pensar e não somente a a razão última das coisas, a realidade pura e
reproduzir. Porém, facilmente constatamos imutável a que somente os filósofos têm
que, quando o dizem, querem dizer que o acesso. Nesta busca, perpetuou-se um método
fazem quando estimulam o pensamento crítico de pensar abusivamente crítico e autoritário e,
em seus alunos. Ou seja, “aprender a aprender” portanto, belicoso do ponto de vista social. Em
tem sido traduzido na prática como “aprender contraste, Protágoras advertiu que “as
a criticar e argumentar”. Ora, o reconhecimento desavenças entre os homens não serão
de que ensinar estratégias de pensar é mais resolvidas com base na verdade”, e, na minha
proveitoso carrega a pergunta sobre quais opinião, esta é a lição que carecemos
estratégias ensinar. Quais instrumentos de aprender.

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