Você está na página 1de 19

2

A Hipercomplexidade
Je finis par trouver sacré le désordre de mon esprit. ♦
Eimbaud

Aqui, vamos tentar demonstrar que a criatividade, a ori­


ginalidade, a eminência do homo sapiens têm a mesma
fonte que o desregramento, o devaneio e a desordem do
homo demens e que tudo tem origem no prodigioso au­
mento de complexidade que nos foi dado pelo cérebro de I
1.500 cm1, 10 bilhões de neurônios e 1014 sinapses.

Ordem-Desordem

Para concebê-la, é preciso entrar na complexidade organi­


zacional dos sistemas vivos, que podem ser chamados de
autómatos naturais (von Neumann), sistemas autoprodu-
tores (Maturana), sistemas auto-organizadores.
Uma diferença fundamental entre os organismos vivos,
concebidos como máquinas naturais, e as máquinas arti­
ficiais, mesmo as mais requintadas, como os compu­
tadores, construídos pelo homem, diz respeito à desordem,
ao "ruído”, ao erro (ver pp. 27-28).
A desordem é todo e qualquer fenômeno que, em re­
lação com o sistema considerado, parece obedecer ao acaso
e não ao determinismo desse sistema, tudo o que não obe­
dece à estrita aplicação mecânica das forças segundo os
esquemas prefixados de organização. O “ruído” é, em i;
termos de comunicação, toda perturbação que altera ou
* Acabo achando sagrada a desordem do meu espírito. (N.
da E.)
iIj
120 O Enigma do Homem

perturba a transmissão de uma informação. O erro é toda


recepção inexata de uma informação em relação com sua
emissão. Ora, no que se refere à máquina artificial, tudo
o que é desordem, ruído ou erro aumenta a entropia do
sistema, isto é, provoca sua degradação, sua degeneres­
cência e sua desorganização. A noção de entropia, quando
as noções de organização e de informação estão ligadas,
está ligada por si própria não só à noção de desordem,
mas também às noções de ruído e de erro (geradores de
desordem).
O organismo vivo, esse, funciona apesar de e com de­
sordem, ruido, erro, os quais, não provocando necessaria­
mente um aumento de entropia do sistema, não são neces­
sariamente degenerativos e até podem ser regeneradores
(von Neumann, 1966). Por outras palavras, a máquina1
humana testemunha uma grande fiabilidade de conjunto,
ainda que suas unidades constitutivas (as moléculas e,
depois, para os sistemas multicelulares, as células, os te­
cidos) sejam elementos pouco fiáveis, isto é, facilmente
degradáveis. Mas este paradoxo se esclarece se considerar­
mos a organização do sistema vivo um processo de auto-
produção permanente ou antopoiesis (Maturana, 1972) ou
de reorganização permanente (Trincher, 196p; Atlan,
1972), a qual reabsorve, expulsa a entropia que se produz
continuamente no interior do sistema e responde aos aten­
tados desorganizadores vindos do meio ambiente.
São estes princípios de organização da vida que são
os da complexidade. É este fenômeno de reorganização
permanente que dá aos sistemas vivos flexibilidade e liber­
dade em relação às máquinas. Enquanto a máquina arti­
ficial deve ser períeitamente determinada e funciona-
lizada, o sistema auto-organizador, por seu lado, é tanto
mais complexo quanto menos estritamente determinado
for, quanto as partes que o constituem forem dotadas de
uma relativa autonomia, quanto as suas complementarie-
dades puderem ser empíricas e logicamente dissociadas de
concorrências ou de antagonismos, isto é, ainda de um
certo "ruído”.
O “ruído” está ligado não só ao funcionamento, mas
ainda mais à evolução do sistema vivo. A mutação é uma
perturbação que pode ser assimilada a um "ruído” no
momento da transmissão da mensagem genética por du­
plicação, "ruído” esse que provoca um “erro” em relação
à informação emitida, erro esse que deveria provocar uma
A Hipercomplexidade 121
degenerescência no novo sistema vivo. Ora, em certos
casos, o “ruído” provoca o aparecimento de uma inovação
e de uma complexidade mais rica. O erro, neste caso, longe
de degradar a informação, enriquece-a (Atlan, 1972).
O “ruído”, longe de provocar uma desordem fatal, suscita
uma nova ordem (von Foerster, 1962). O acaso da muta­
ção, longe de desorganizar o sistema, representa um papel
organizador (Monod, 1971). Por mais surpreendente que
este processo seja, por mais inaproveitável que seja para o
observador, a verdade é que não pode ser concebido de
outra forma a não ser como o desencadeamento, pelo
"ruído”, de um processo desorganizador ou “catastrófico”
(Thom, 1968), processo esse que desencadeia, por sua vez,
uma reorganização sobre uma nova base. Assim, a mu­
dança, a inovação, na ordem viva, só podem ser concebidas
como o produto de uma desordem enriquecedora pelo
fato de esta se tornar fonte de complexidade.
Assim, as mudanças felizes da evolução só podem rea­
lizar-se a partir de perturbações, de “ruídos”, de “erros”,
os quais continuam sendo, ao mesmo tempo, o perigo
mortal para toda auto-reprodução e toda auto-organização.
Desse modo, todo sistema vivo está ameaçado pela
desordem e, ao mesmo tempo, alimenta-se dela. Todo
sistema vivo é, ao mesmo tempo, parasitado pela entropia
e pelo parasita.
Situemo-nos, agora, ao nível dos sistemas vivos alta­
mente evoluídos, como o dos mamíferos. O organismo é
constituído por um número de células que pode ir até
vários bilhões e a organização deste conjunto é fundada
sobre a especialização dos elementos constitutivos (célu­
las e órgãos) e a constituição de níveis hierárquicos em
pirâmide até ao sistema nervoso central e ao cérebro. A es­
pecialização e a hierarquia constituem opressões, inibições
que agem sobre os elementos constitutivos, que restrin­
gem a parte do “ruído” e da desordem. Todavia, por mais
automatizado que seja o funcionamento do organismo, ele
tolera uma certa parte de desordem: células proliferam de
modo incontrolado, vírus inimigos penetram no interior,
sendo somente além de um determinado limite de desor­
dem tolerada que é acionado o sistema imunológico,
"força de restabelecimento da ordem” que detém a desor­
dem interna e destrói o desorganizador externo por meio
da produção de anticorpos.
122 O Enigma do Homem

Se, no interior do organismo, a desordem permanece


dentro de limites rígidos, por outro lado, poderá aumentar
de modo considerável onde se encontra e se rege a com­
plexidade de conjunto de um sistema vivo: no cérebro.
Quanto mais o cérebro é complexo, mais ele constitui
um centro de competência estratégico-heurístico do com­
portamento e da ação, menos reage por meio de respostas
unívocas aos stimuli do meio ambiente, mais, portanto,
suas relações com o sistema genético e o ecossistema são
complexas e aleatórias, mais está apto a utilizar as ocor­
rências aleatórias, mais procede por tentativas e erros e
mais, como veremos, seu funcionamento neuronal inter­
no comporta associações ao acaso, isto é, desordem.
Conforme já vimos, a linha mestra para compreender
a hominização é a complexificação do cérebro e esta mani-
festa-se de modo quantitativo pelo aumento de seu volu­
me. De modo qualitativo, exprime-se pela progressão das
competências estratégicas/heurísticas/inovadoras e pelo
aumento da ação aleatória das associações. A hipótese
que desejamos desenvolver é que o enorme aumento de
complexidade que se opera no cérebro do sapiens, isto é,
a passagem da hominização à humanidade, corresponde a
novo salto qualitativo, que é o da hipercomplexiãaãe.
Vamos diferenciar a hipercomplexidade da complexidade,
não por uma fronteira, mas pela acentuação de certas
características, a atenuação de algumas outras, acentua­
ção e atenuação essas que modificam a configuração do
conjunto, que pode, então, ser considerado um sistema de
um novo tipo. Neste sentido, um sistema hipercomplexo é
um sistema que diminui suas opressões, embora aumen­
tando suas aptidões organizacionais, em especial sua ap­
tidão para a mudança. Assim, em relação com um siste­
ma de menor complexidade, o sistema hipercomplexo é
fracamente hierarquizado, fracamente especializado, não
estritamente centralizado, mas mais fortemente dominado
pelas competências estratégicas e heurísticas, mais depen­
dente das intercomunicações e, em virtude de todas
estas características, mais fortemente sujeito à desordem,
ao “ruído”, ao erro.
Como se sabe, o último continente desconhecido pelo
homem é o homem, com o centro desse continente, o cé­
rebro, não nos sendo apenas desconhecido, mas também
incompreensível. As aproximações biofísicas, bioquímicas,
bioelétricas dão-nos algumas migalhas de conhecimento
A Hipercomplexidade 123

que ainda não se podem juntar e que ainda pecam, todas


elas, por insuficiência de complexidade; as aproximações
sinápticas ainda são demasiado locais (Changeux, 1972),
as globais são ainda demasiado gerais (Atlan, 1972), os
computadores, longe de nos fornecerem um modelo, como
alguns pareciam acreditar, mostram-nos que o essencial
do funcionamento cerebral lhes é radicalmente alheio. O
fabuloso prodígio de desorganização e de reorganização
das miríades de neurônios ainda desafia nosso entendi­
mento. Nesta ignorância, não se trata, para nós, de apre­
sentar a questão anatômica ou fisiológica: vamos apenas
tentar reconhecer os princípios gerais da hipercomple­
xidade.
Efetivamente, o cérebro sapiental é policêntrico, sem
que nele haja predominância de um centro sobre outro;
as relações entre suas regiões estabelecem-se por intera­
ções e interferências, de modo fracamente hierarquizado,
até mesmo com fenômenos de inversão de hierarquia; o
córtex superior é fracamente especializado a não ser no
que se refere às localizações sensoriais, e as unidades ele­
mentares (neurônios) são fracamente diferenciadas entre
si. Enfim, a introdução maciça da desordem e da even­
tualidade está ligada não só aos caracteres anteriormente
enunciados, mas também à enorme população neuronal
que conta com três a quatro vezes mais indivíduos do que
o número de seres humanos sobre a terra.

As Competências e o Instinto em Migalhas

Vamos repetir, uma vez mais: a regressão dos comporta­


mentos geneticamente programados e a constituição de
competências organizacionais, que caracterizam a evolução
biológica hominizante, encontram sua realização no sa-
piens. As “competências”, que resultam do desenvolvi­
mento dos novos territórios corticais, da constituição de
novos centros cerebrais e do relacionamento de centros
que até então não comunicavam entre si, são propriedades
globais resultantes da reorganização e do aumento, em
complexidade, do cérebro: estão aptas a programar, heu­
rísticas (aptas para encontrar uma solução), estratégicas
(aptas para combinar um conjunto de decisões-escolha
em função de um fim), inventivas (aptas para efetuar
combinações novas), em resumo, aptas para organizar or-
124 O Enigma do Homem

dem a partir do “ruído”, isto é, a partir dos dados men­


tais heterogéneos, proliferantes e desordenados, bem como
das mensagens ambíguas transmitidas pelos sentidos.
Essas competências são inatas, no sentido em que
são fundadas sobre uma organização cerebral genetica­
mente determinada; umas constituem imediatamente es­
truturas a priori de organização da percepção (Mehler, no
prelo); outras, a partir de certa fase da ontogênese cere­
bral, estruturas de organização do pensamento e da lin­
guagem, mas elas precisam da experiência sensível para
se atualizarem, isto é, do papel co-organizador do meio
ambiente e da cultura.
Já vimos, antes, como a constituição das competên­
cias inatas e a regressão dos programas genéticos ou “ins­
tintos” . é inseparável da preexistência da cultura, tanto
como sistema organizador quanto como meio ambiente.
Podemos procurar compreender, agora, como elas são in­
separáveis do “ruído” cerebral.
Certos trabalhos recentes de etologia infantil, em es­
pecial de Eibl-Eibesfeldt e de pesquisas como as de Mehler
(no prelo), lançam uma primeira luz sobre este problema.
Com efeito, eles tendem a nos revelar a ^existência, até
3-4 anos de idade, de um embasamento pré-cultural, ou
seja, inato, de comportamentos, de conhecimentos, de co­
municações (Ropartz, 1972); esse embasamento emerge
parcialmente logo que a criança nasce (a criança levando
à boca qualquer objeto, por exemplo) e, principalmente,
quando as crianças constituem entre si uma sociedade es­
pontânea, entregue a si própria, como nas experiências de
creche realizadas por Montagner (no prelo) em que as
relações interindividuais são reguladas por posturas de
solicitação e gestos de pacificação; estes não existem na
sociedade adulta, não podem ter sido ensinados; parecem,
portanto, ser inatos e poderão vir, então, de um fundo
paleominídeo anterior à constituição da linguagem ar­
ticulada.
Ora, à exceção do sorriso, do riso e das lágrimas, bem
como, talvez, de certos outros comportamentos como o
gesto da mão estendida, o eyebrow flash e o ritual de
flerte entre adolescentes (Eibl-Eibesfeldt), esse embasa­
mento “instintual” é progressivamente tragado com o de­
senvolvimento e o acionamento das competências estraté-
gicas/heurísticas e da semiótica cultural, as quais se ama-
A Hipercomplexidade 125

ciam ao mesmo tempo do que a primeira culturização e,


depois, se afirmam de modo decisivo.
Podemos supor que essas mensagens genéticas não
desapareceram, mas foram recalcadas pela entrada em
cena das competências, juntamente com a integração de
tuna primeira informação cultural. Podemos supor, igual­
mente, segundo a sugestão verbal que Aldair Gomez nos
fez, que a mensagem “instintual” é continuamente corta­
da em pequenos pedaços pelas associações neuronais ao
acaso, ou seja, pelo “ruído” cerebral; como, além disso,
a informação cultural, neste contexto, só pode ser "ruído”,
“perturbador” em relação à informação genética, podemos
pensar que, no homo sapiens, há toda uma parte “instin­
tual” que é, sem cessar, "desfeita em migalhas”.
Assim, é sobre e a partir do “ruído de fundo”, isto
é, "encontros de idéias, imagens, recordações que formam
o fundo de nossa vida interior e a que se poderia chamar
o movimento browniano do pensamento” (Auger, 1966),
que se constrói o logos (discurso), palavra, pensamento,
razão, ação, no sentido primordial e profundo do termo
grego. O logos pode ser submerso, sem dúvida, pelo ruído
de fundo, mas, sem esse ruído de fundo, o logos é um
moinho sem água.
De resto, podemos ver que é pelo papel do "ruído”
que as operações cerebrais se diferenciam das de todos
os computadores conhecidos. O computador só pode usar
dados precisos e de modo rigoroso; ele dissocia forçosa­
mente sua memória do tratamento das informações. O
cérebro do sapiens trabalha sobre dados vagos ou incer­
tos, usados mais ou menos globalmente de modo não-ri-
goroso 1, faz interferir rememoração e computação; além
disso, enquanto só se conseguiu conceber separadamente
os computadores analógicos e os computadores digitais,
o espírito humano combina os dois processos de um modo
ainda desconhecido2. Para cada tipo de computador, o

1 O pensamento, coisa que se esquece muitas vezes, é uma arte,


isto é, uma ação de precisão e de imprecisão, de difuso e de, rigor.
2 Entre as inúmeras lacunas de nosso trabalho, a mais impor­
tante, a nossos olhos, diz respeito à natureza analógica/digital do
funcionamento do pensamento (do desenvolvimento do loffos). Es­
tamos convencidos há já muito tempo de que a ciência permanece
extremamente míope quanto ao processo e à natureza do ana-lógico
e de que ela ainda não dispõe dos conceitos próprios para apreen­
dê-la. Ela privilegia aquilo que é quantificável, isto é, aquilo que
126 O Enigma do Homem

digital e o analógico só podem ser "ruído” um em relação


ao outro, isto é, bloquear-se um ao outro. Por outro lado,
são necessários um ao outro no cérebro do sapiens. Por
outras palavras, o cérebro do sapiens, de um modo por
vezes heurístico, sempre aleatório, erróneo muitas vezes
(mas podendo autocorrigir-se), trabalha no, com e pelo
“ruído”, ou seja, adapta-se ao “ruído” e adapta-o a si, le­
vando, assim, a um nível superior, hipercomplexo, o prin­
cípio de order from noise (von Foerster, 1962).

A Louca e a Fada do Lar

A inovação supõe ou provoca, no seio de um sistema vivo,


uma certa desorganização ou relaxamento das opressões,
ligada à ação de um princípio reorganizador. O próprio
da hipercomplexidade é, precisamente, a diminuição das
opressões num sistema que se encontra de fato num certo

pode reduzir-se a unidades discretas descontínuas, “digitalizáveis”,


em detrimento daquilo que também poderia ser apreendido no con-
tinuum, na modulação, na ondulação, tanto no estado estável quanto
na metamorfose. Ainda que estimulados pelas idéias de Bateson
(1955), de Jackson (Watzlawick, Helmick-Beavin, Jackson, 1967),
de Wilden (1972), que exnloraram estes problemas no plano da co­
municação, ainda não conseguimos estabelecer uma base teórica acei­
tável sobre o plano do conhecimento do pensamento e, mais geral­
mente, da auto-organização (de que as homotipias e as homocromias
do mimetismo animal nos dão exemplos). Antes (Morin, 1956, 1972),
já tínhamos encontrado estes problemas no campo do antropocosmo-
morfismo próprio a todo e qualquer pensamento mágico e no campo,
que sentimos estar-lhe ligado, daquilo a que chamávamos as “pro­
jeções-identificações” afetivas (em especial no caso da identificação
mimética do espectador ao herói do filme). Mas este biconceito de
projeção-identificação parece-nos, hoje, inteiramente insuficiente. Pres­
sentimos que nos seria necessário tentar coordenar nossas intuições
separadas no que se refere aos aspectos ondulatórios do mundo
físico, aos fenômenos de ressonância (física, igualmente, mas que
deve exprimir-se de qualquer modo no plano' psicoafetivo), aos fenô­
menos de simpatia, de identificação, de mimese, aos caracteres ana­
lógicos, metafóricos, simuladores dos processos cognitivos e discur­
sivos.
Isto significa que falta não só um contexto teórico, mas também
uma face gigantesca ao esboço sobre a hipercomplexidade cerebral
que tentamos aqui, hipercomplexidade inseparável do desenvolvimento
ao mesmo tempo complementar/concorrente/antagonista do modo de
pensamento, não só análogo ao sentido do computador, mas mais
amplamente analógico, e do modo digital da computação.
A Hipercomplexidade YX1

estado de desordem permanente, constituído pela ação


das livres associações aleatórias.
É sobre e a partir desse "ruído” que se constituem
as combinações do sonho e da fantasia, que se podem
considerar, por vezes, desordem organizando-se em função
de gradientes múltiplos e, outras, organização de um dis­
curso desordenando-se sem cessar, recomeçando ou diver­
gindo em cada i-uptura: é nessa desordem organizadora,
nessa organização desordenada, que há a invenção perma­
nente do sonho. Incansavelmente, na verdade, sonhos e
fantasias produzem combinações novas, estranhas, sur­
preendentes, mistura de incoerência e de coerência, que
os analistas, erradamente, querem reduzir, e a incoerên­
cia aleatória e a diversidade das linhas de força que
atraem os enxames de imagens. Neste sentido, a criação
é permanente, no seio do cérebro humano, o sonho é
poiesis, poesia no sentido originário e profundo do termo,
e, conforme o disse poeticamente Roger Bastide, “já que
continuamos a sonhar, isso significa que a criação ainda
não terminou” (R. Bastide, 1972, p. 47).
Mas a invenção fantástica e onírica são apenas flores­
cências fugitivas que se tornam de novo, imediatamente,
“ruído” e diminuição. Não podem constituir, apenas por
si próprias, a verdadeira invenção cerebral, aquela que se
integra, modificando-as no pensamento organizado e no
logos, e depende da intervenção das competências heurís­
ticas, conforme o veremos um pouco mais longe. Todavia,
fornecem à criação lógica um fluxo já espasmodicamente
criador.
O sonho é um grande mistério, mas é um mistério
da complexidade. Não é próprio a todos os seres vivos;
apareceu, no decorrer da evolução e num certo nível de
complexidade, com o estabelecimento da homeotermia, a
qual, ao libertar o organismo com respeito às variações
de temperatura do meio interior, provocou modificações
do sistema nervoso, de onde saiu o sonho, isto é, uma ati­
vidade cerebral desligada da sujeição imediata do meio
ambiente (Jouvet, no prelo). O sonho, cuja presença
pode ser detectada e medida pela presença do sono pa­
radoxal, existe nos mamíferos, aumenta nos primatas e,
sobretudo, no homem, 15% do tempo de sono no chim­
panzé, 24% no homem (Gastaut e Bert, no prelo), ao que
temos de acrescentar que, no homem, o sonho transborda

í
128 O Enigma do Homem

para fora do sono, sob forma de fantasia ou de “sonho


acordado”.
Hã outro dado que nos demonstra que o sonho não
é uma atividade residual. Excita todos os neurônios ce­
rebrais, incluindo os neurônios da motricidade e é o acio­
namento de um dispositivo inibidor que mantém a imo­
bilidade do sonhador ou que permite ao acordado conti­
nuar sua fantasia enquanto se dedica automaticamente ás
ocupações de vigília. Conforme já vimos antes (capitulo
anterior, p. 115), os sonhos de gato são extremamente es­
tereotipados. Jouvet emitiu a hipótese de que o sonho
representava um papel de reprogramação genética, que,
no organismo desligado da experiência fenomenal, conce­
dia a cada animal sua personalidade especifica; assim, o
gato de apartamento, no seu sono, deixa de ser o gatinho
de luxo e volta a ser o felino predador. Como, além disso,
o feto humano parece encontrar-se em estado de sono pa­
radoxal no ventre de sua mãe, Jouvet reforça sua hipótese,
dando ao sonho uma responsabilidade genética organiza­
cional no momento em que o sistema nervoso se dispõe.
Isto parece confirmado pelo fato de que o recém-nascido
sapiens sonha durante 40 a 70% de seu sono, contra 4 a
5% do chimpanzé recém-nascido, e de que o sorriso, por
exemplo, se esboça no sonho do feto ou do recém-nascido.
Indicação muito preciosa, essa, e que nos confirma
que o sonho, longe de ser um epifenômeno, participa na
auto-organização. Gostaríamos de saber de que natureza
é o sonho do feto ou do recém-nascido, se está relacionado
com o caráter estereotipado próprio ao sonho animal ou
se já é marcado pela desordem, já que é aqui, sem dúvida,
que aparece a característica fundamental do sapiens: não
só uma quantidade maior de sonho, mas também a
irrupção da desordem no sonho e do sonho na vida.
Se o sonho estereotipado do gato indica a presença
imperiosa da mensagem genética na atividade onírica, o
caráter desordenado do sonho humano, por outro lado,
mostra perfeitamente que essa mensagem, nesse nível,
está “em migalhas”. Exprime-se, sem dúvida, mas justa­
mente de modo fragmentário e fragmentado. A mensa­
gem onírica possui, provavelmente, um aspecto genético
e, em especial, de “chamada” sexual, o que vai no sentido
de Freud, que acreditara ter desvendado a obsessão fun­
damental em volta da qual se ordena o sonho. Mas nós
acreditamos mais que a ação aleatória de imagens e de
A Hipercomplexidade 129

fragmentos de sentidos (semantemas) se encadeia e toma


forma segundo não só um único gradiente obsessional,
mas múltiplos gradientes. Não haveria uma chave dos
sonhos, mas sim várias, com a chave de todas as chaves
estando, em nossa opinião, na intercomunicação geral
daquilo que se encontra, mais ou menos separado ou
desunido, em estado de vigília, num prodigioso caldea-
mento de tudo o que é sociocultural, intelectual, afetivo,
genético, ambiental, ocorrencial, recordações recalcadas,
desejos irrealizados, um verdadeiro sabá da hipercomple­
xidade neguentrópica.
Assim, é preciso considerar a proliferação onírico-
-fantástica, não como uma vaga superestrutura, mas sim
como infratextura neguentrópica, não como diminuição
ou puro “ruído” que só se torna audível quando a má­
quina informacional adormece, mas sim como um aspecto
primordial do funcionamento cerebral do sapiens, tendo
nele um enorme desperdício, bem como um princípio de
criatividade.
De resto, o jorramento de uma nova idéia foi sempre
descrito como estando ligado, seja a uma fulguração asso­
ciativa vinda de uma ocorrência fortuita ou notada for­
tuitamente (a maçã de Newton) e tomando a forma de
uma súbita "inspiração”, seja como o fruto de uma fan­
tasia ou mesmo de um sonho noturno. A fonte da cria­
tividade de vigília está, sem dúvida, numa ação aleatória,
infinita e multifatorizada de combinações guiadas por
gradientes obsessionais, em que, subitamente, a “compe­
tência” heurística catalisa e transmuda em mensagem,
idéia, fórmula o que até então não passava de sussurro.
Esse é, por certo, o sentido do brain storming: despertar
a livre fantasia para agarrar a nova idéia. Assim, é pre­
ciso já não dissociar, mas sim associar a imagem onírica
à imaginação criadora, o homem imaginário ao homem
imaginante (Laborit, 1970). A imaginação “louca do lar”
é, ao mesmo tempo, fada do lar, na ação incessante da
fantasia à idéia, da afetividade à praxis e vice-versa, fonte
das inovações de todas as ordens que suscitaram e enri­
queceram a evolução humana.
A Brecha e a Abertura
Entre o cérebro humano e seu meio ambiente, há um
Information gap, que faria do sapiens o animal mais des-
130 O Enigma do Homem

provido se ele não o pudesse encher, pelo menos parcial­


mente, com a experiência cultural acumulada e com o
aprendizado pessoal (learning). Com efeito, não há nem
integração, nem adequação imediata entre o cérebro e o
meio ambiente, com a comunicação entre um e outro sen­
do aleatória, turva, submetida sempre à possibilidade de
erro. Nenhum dispositivo no cérebro permite distinguir
os stimuli externos dos stimuli internos, isto é, o sonho
da vigília, a alucinação da percepção, o imaginário da rea­
lidade, o subjetivo do objetivo. Nenhuma das mensagens
que alcançam o espirito pode ser desambigtiizada em si
mesma. As ambiguidades não podem ser solucionadas
pelo espírito a não ser recorrendo conjuntamente ao con­
trole ambiental (a resistência física do meio, a atividade
motriz no meio) e ao controle cortical (a memória, a ló­
gica). Uma tal verificação não pode ser imediata, já que,
mesmo no sonho, a memória fala. O tempo da verificação
é necessário, o que significa que, afinal de contas, é a
prática que dá a resposta, prática essa cujos resultados
são guardados no saber coletivo (a cultura). Mas, mes­
mo então, a prática e a cultura podem não dissipar a ilu­
são: uma prática milenária de ritos, uma transmissão mi­
lenária de crenças não trazem qualquer certeza sobre a
existência dos espíritos, a onipotência de Deus, a eficácia
operacional da oração.
Em todo caso, resta uma vasta zona de ambiguidade,
uma brecha impossível de determinar entre o cérebro e
o mundo fenomenal, que é enchida com crenças, os “du­
plos", os espíritos, os deuses, as magias e suas herdeiras,
as teorias racionalizadoras. Mas o próprio do sapiens
também é a possibilidade de duvidar da existência dos
espíritos e dos deuses, separar as palavras das coisas, con­
testar as teorias que se fecham de novo sobre o mundo
como se este fosse transparente ao entendimento. Isto
é o mesmo que dizer que ele pode descobrir o que é in­
deciso em princípio e o que é ambíguo de fato, pondo em
causa, afinal, a verdade estabelecida.
Assim, a ilusão, a desordem, o erro, o "ruído” vão
acompanhar sem interrupção a atividade pensante do
sapiens, a qual é ação, ardil, esforço na zona de ambigui­
dade e na brecha de incerteza. Ele volta, incessantemente,
a fechar a brecha por meio de mitologia e ideologia; in­
cessantemente, em algum lugar, alguém volta a abrir a
brecha. Esta faculdade de indecisão é, ao mesmo tempo,
A Hipercomplexidade 131
aquilo que limita para sempre e aquilo que abre indefini­
damente a possibilidade de conhecimento. Aquilo que li­
mita para sempre: nenhum sistema de idéia, nenhuma
teoria poderá jamais se voltar a fechar; uma de suas pro­
posições será sempre impossível de determinar; aquilo
que abre indefinidamente a aventura espiritual: o cére­
bro humano precisa do ecossistema, da cultura, da socie­
dade, da praxis para estabelecer suas verdades, o que o
leva a procurar na e pela natureza, na e pela cultura, na
e pela sociedade, na e pela prática, a solução de suas in­
certezas. Mas, uma vez mais, no novo sistema de ideias,
voltará a encontrar a ambiguidade e a indecidibilidade, o
que o levará a procurar, a elaborar um metassistema. E,
assim, o espírito humano, na sua abertura constitutiva,
é levado quer a fechá-la mitológica e ideologicamente (já
que a ideologia é uma teoria fechada que encontra em si
mesma sua própria prova), quer, embora sabendo-se con­
denado ao inacabamento do conhecimento, a dedicar-se à
busca errante da verdade.

O Cérebro Biúnico, Triúnico e Polifônico

O "logos” é o produto de uma dialética incerta entre o


“ruído” e as competências. Esta dialética resulta da ati­
vidade de conjunto do sistema cerebral. Aqui, de novo,
não queremos, nem podemos encarar o cérebro como um
órgão; procuramos concebê-lo como sistema. Não quere­
mos, nem podemos examinar seu funcionamento, procura­
mos destacar os princípios de sua hipercomplexidade. Não
podemos, nem queremos refletir ao nível da pesquisa;
procuramos formular os problemas que a pesquisa apre­
senta à nossa reflexão antropológica sobre a unidade múl­
tipla do sapiens-demens.
O cérebro humano é biúnico em razão da dualidade
de seus hemisférios que, simétricos nos primatas, são di­
ferenciados no sapiens por certas localizações (assim, o
centro da expressão verbal estaria situado na parte es­
querda). De momento, só podemos sonhar com essa dia-
letização e não com especialização, cujo sentido nos
escapa.
Mas a concepção triúnica do cérebro, proposta por
MacLean (1970), retomada por Laborit (1970), já nos
fornete uma base filogenética e organizacional para con-
132 O Enigma do Homem

ceber os caracteres hipercomplexos que já propusemos


(polintegração, policentrismo, fraca hierarquia entre sub­
conjuntos que são, ao mesmo tempo, complementares,
concorrentes e antagonistas).
Segundo MacLean, podemos considerar o tronco ce­
rebral como sendo a herança do cérebro reptílico nos ma­
míferos (paleocéfalo), o sistema límbico como sendo a
herança da impulsão cerebral dos primeiros mamífercs
(mesocéfalo) e o córtex associativo (neocéfalo) sendo o
desenvolvimento próprio aos mamíferos superiores e aos
primatas, tendo como coroação a enorme massa neocor-
tical do sapiens. MacLean sugere que o “paleocéfalo” se­
ria o centro da procriação, da predação, do instinto de
território, da gregariedade; o “mesocéfalo” seria o dos
fenômenos afetivos; o "neocéfalo”, finalmente, seria o
centro das operações lógicas.
A concepção triúnica pode ser concebida de modo
não-complexo, isto é, considerando o cérebro humano
como constituído por três estratos cerebrais sobrepostos
(o que MacLean não faz), localizando cada um dos fenô­
menos globais (o que, por vezes, ele tende a fazer). To­
davia, também podemos ver nos subconjuntos heranças
filogenéticas, ao mesmo tempo atrofiadas e modificadas
pelas sucessivas reorganizações efetuadas no decorrer da
evolução, mas ainda muito diferentes por numerosas ca-
racterísticas, incluindo as bioquímicas. Neste sentido, se
é que há funções localmente delimitadas neste ou naquele
subconjunto, não poderíamos verdadeiramente concebê-las
a não ser nas interações e nas interferências do conjunto.
O mistério da triunicidade, em resumo, deve ser procura­
do no um em três e não no três em um, não em “três cé­
rebros”, mas sim em três subsistemas de uma máquina
policêntrica. Assim, as relações mútuas, fracamente hie­
rarquizadas, entre os três subconjuntos permitem-nos si­
tuar o paradoxo do sapiens-demens, a ação permanente
e combinatória entre a operação lógica, o impulso afetivo,
os instintos vitais elementares, entre as regulações e o
desregramento.
Pelo lado do sapiens, há o controle e a regulação da
afetividade ao nível do córtex superior. Sem entrar na
concepção de MacLean, um Leroi-Gourhan admira a sa­
piência da ordem que inseriu “o dispositivo de regulação
pré-frontal [... ] entre o córtex da motricidade técnica e
o desencadeamento afetivo” e considera "que não se po-
A HiPERCOMPLEXIDADE 133

deria imaginar ao serviço da inteligência [... ] uma apa­


relhagem mais apropriada do que aquela que tem o
córtex pré-frontal no desenrolar das manifestações afeti­
vas e motrizes” (Leroi-Gourhan, 1964, p. 186). Pelo lado
demens, que Leroi-Gourhan esquece, há um conjunto
triúnico fracamente hierarquizado, em que o dispositivo
de regulação é desregulável sob o impulso afetivo e em
que a motricidade técnica pode encontrar-se ao serviço
das forças delirantes. Dado que há regressão do controle
genético programado e que o controle pelo córtex supe­
rior é frágil e instável, a porta está aberta à hibris afetiva
a qual, além do mais, pode servir-se da maravilhosa má­
quina lógica para racionalizar, justificar, organizar seus
empreendimentos e seus designios; o "poder" pode mesmo
passar para a parte “reptílica” e, em certos casos, de
modo catastrófico, como nos pânicos, em que a vontade
cega de sobreviver é aquilo que precipita para a morte ou,
como em certos casos de mudanças bruscas de circuns­
tâncias, onde, apesar das muito elevadas aptidões adapta-
tivas ou heurísticas do cérebro hipercomplexo, a gregarie-
dade, o medo ou a fúria, não só inibem toda e qualquer
solução ou adaptação, mas provocam, também, regressão,
fracassos, desastres.

O Princípio e o Horizonte da Loucura


t
Podemos compreender, agora, a demência do sapiens,
tendo no espirito:
l.o) a ambiguidade e a indecidibilidade fundamental
na relação entre aquilo que se passa no interior do espí­
rito (subjetividade, imaginário) e aquilo que acontece no
exterior (objetividade, realidade);
2°) o recuo e confusão do programa genético sob o
aumento do ruído e das competências;
3°) a fraca estabilidade do sistema triúnico;
4.°) a fraqueza daquilo que já é um epifenômeno e
ainda não é um epicentro, a consciência, isto é, esse fe­
nômeno em que o sujeito se objetiva como objeto, em que
o objeto é apreendido nas suas aderências subjetivas, em
que o espírito se esforça por controlar a relação entre o
real e o imaginário.
A primeira fonte da “loucura” do sapiens está, evi­
dentemente, na confusão que faz ver o imaginário como
134 O Enigma do Homem

realidade, o subjetivo como objetivo, e que pode condu­


zir à racionalização delirante, no sentido clínico do termo,
em que o excesso de lógica e o excesso de afetividade estão
ligados, com o primeiro justificando, dissimulando e or­
ganizando os impulsos inconscientes e os interesses subje­
tivos. Enquanto a debilidade mental não produz suficiente
sentido, a fonte dessa loucura sapiental está no excesso
semântico, que produz sentido onde, antes, havia ambi­
guidade e incerteza.
Mas, sobretudo, a demência do sapiens culmina e des­
fralda-se quando há ausência, simultaneamente, na e sob
a ação dos impulsos, dos quatro controles fundamentais:
o controle do meio ambiente (ecossistema), o controle
genético, o controle cor tical e o controle sociocultural (o
qual representa um papel primordial para inibir a híbris
e a demência do sapiens); cada um destes controles, con­
forme já dissemos, tem sua “brecha”, sua carência, sua
indecidibilidade ou sua ambiguidade própria. Assim, dado
que as forças dos impulsos estão fracamente sujeitas ao
controle genético, programador ou inibidor, dado que,
correlativamente, o controle do meio ambiente é tardio ou
incerto, dado que o controle regulador do córtex pode ser
facilmente submerso e encontrar-se, a partir de então, su­
jeito às forças dos impulsos, dado que o próprio controle
sociocultural está sujeito às forças de demência nas his­
terias coletivas, repressões maciças, execuções, sacrifícios
humanos, bodes expiatórios, e, evidentemente, as guer­
ras etc., o delírio está, portanto, na conjunção entre, por
um lado, a invasão dessas forças incontroladas dos im­
pulsos, e, por outro lado, sua racionalização e operacionali-
zação pelo aparelho lógico-organizador e/ou pelo aparelho
social-organizador.
Assim, a satisfação do ódio, híbris agressiva não-con-
trolada geneticamente (ao contrário da agressividade ani­
mal), vai racionalizar-se pela idéia de “fazer justiça”, pu­
nir, eliminar um ser maléfico, sendo operacionalizada por
técnicas de execução e de suplício. Deste modo, no sé­
culo XX, a ciência e a lógica, além de guiarem a civiliza­
ção, estão ao serviço das forças da morte (Michel Ser­
res, 1972).
Incessantemente, surgem no homem delírios em que
a hipercomplexidade é destruída, e é justamente com essa
demência horrível que se assusta Koestler (1968), que vê
na instabilidade triúnica uma carência constitutiva e se
A Hipercomplextoade 135
lamenta de que o poder hierárquico escape à razão neo-
cortical. Mas este “vício de fabricação” é a outra face
— demencial — da virtude nativa — genial — do trissis-
tema que, precisamente pelo fato de não ser verdadeira­
mente hierarquizado, é verdadeiramente dialetizado, isto
é, permite a irrigação do logos pelas forças profundas da
afetividade, os sonhos, as angústias, os desejos, fazendo
do cérebro do sapiens, na verdade, um sistema hiper-
complexo.

O Gênio da Espécie
O gênio do sapiens está na intercomunicação entre o ima­
ginário e o real, o lógico e o afetivo, o especulativo e o
existencial, o inconsciente e o consciente, o sujeito e o obje­
to 3, razão de todos os extravios, confusões, erros, deva­
neios, demências, mas razão, também, em virtude dos
mesmos princípios, operando sobre os mesmos dados, de
todos os conhecimentos profundos (em que se combinam,
com a explicação lógica, a intuição e aquilo a que Max
Weber chamava compreensão), todas as sublimações e
invenções nascidas do desejo.
A demência do sapiens é a insuficiência e a ruptura
dos controles, mas o gênio do sapiens é também não ser
totalmente prisioneiro dos controles, nem do controle do
"real” (meio ambiente), nem do da lógica (o neocórtex),
nem do do código genético, nem do da cultura e da socie­
dade, e, ainda, o de poder controlar os controles um
pelo outro.
O gênio do sapiens está na brecha do incontrolável
onde ronda a loucura, na abertura da incerteza e da inde-
cidibilidade onde se fazem as pesquisas, a descoberta, a
criação. Está na ligação entre a desordem eloísta das pro-

3 Recordemos, aqui, que o imaginário tem sua realidade própria


e que aquilo a que chamamos realidade está sempre embebido em
afetividade e imaginário, que o indivíduo tem sempre uma existência
objetiva, mas que a objetividade só pode ser concebida por um indi­
víduo. Isto é o mesmo que dizer que não há, de um lado, o reino
da objetividade e do real que possa ser totalmente isolado da subje­
tividade e do imaginário, nem existem, do outro lado, as miragens
do imaginário e da subjetividade. Há oposição entre esses termos,
mas eles estão abertos inevitavelmente um ao outro de modo com­
plexo, isto é, ao mesmo tempo, complementares, competitivos e
antagonistas.
136 O Enigma do Homem
fundezas inconscientes e essa surpreendente e frágil emer­
gência que é a consciência.
A extrema consciência do sapiens costeia, arrisca, de­
safia, mergulha no delírio e na loucura. A demência é o
preço da sapiência. Neste sentido, registramos as pala­
vras de Lacan: “O ser do homem não só não pode ser
compreendido sem a loucura, mas não seria o ser do ho­
mem se não tivesse em si a loucura como limite da sua
liberdade” (Lacan, 1972).

A Integração Antropológica
O cérebro é um centro organizador do conhecimento, do
comportamento e da ação. É neste campo que se mani­
festa sua aptidão para utilizar a eventualidade — o acon­
tecimento ‘ — para produzir a eventualidade, isto é, opçoes
e decisões.
Mas, ainda mais ampla e profundamente, devemos
ver no cérebro não só o centro organizador do organismo
individual propriamente dito, mas também o centro fede­
rativo-integrador entre as diversas esferas cujas relações
mútuas constituem o universo antropológico: a esfera
ecossistêmica, a esfera genética, a esfera cultural e social
e, é claro, a esfera fenotípica do organismo individual.
Ora, as muito fortes intercomunicações e a muito
fraca hierarquização triúnicas indicam-nos que a ordem
psicológica, a ordem sociocultural e a ordem biológica
não podem ser tidas como compartimentadas e sobrepos­
tas hierarquicamente uma sobre a outra. Assim, há es­
treitas e surpreendentes ligações entre aquilo que parece
mais longínquo e mais irredutível, como, por exemplo,
aquilo que parece mais genético — a sexualidade — e as
atividades superiores do espírito, passando, naturalmente,
pela afetividade (amor). A grande contribuição de Freud,
muitas vezes mal compreendido tanto por seus defensores
quanto pelos detratores da psicanálise, é ter descoberto
o poder invasor total da sexualidade sobre todas as ati­
vidades mentais, até o sonho e a criação intelectual, deri­
vando-as, transformando-as, metamorfoseando-as e fazen-
4 No que se refere a este problema capital, não desejamos
repetir, aqui, aquilo que desenvolvemos nos nossos dois artigos sobre
o Acontecimento, aos quais remetemos o leitor: “O Regresso do Acon­
tecimento” e "O Acontecimento-Esfinge”, in Communications 18,
1972.
A Hipercomplexidade 137

do-se, ela própria, derivar-se, transformar-se, metamorfo­


sear-se — sublimar-se. Todavia, também é preciso ver,
inversamente, a contra-invasão do córtex superior sobre
o sexo, fazendo-o sofrer suas obsessões, suas excitações,
suas inibições.
Como é que nao se vê que aquilo que é o mais bio­
lógico — o sexo, a morte — é, ao mesmo tempo, aquilo
que está mais embebido de símbolos, de cultura! Nossas
atividades biológicas mais elementares, o comer, o beber,
o defecar, estão estreitamente ligadas a normas, interdi­
tos, valores, símbolos, mitos, ritos, isto é, a tudo o que
há de mais especificamente cultural. E, aqui, podemos
compreender que é o sistema único, integrado federativa­
mente, fortemente intercomunicante, do cérebro do sa-
piens, que permite a integração federativa do biológico, do
cultural, do espiritual (elementos ao mesmo tempo com­
plementares, concorrentes, antagonistas, cujos graus de
integração serão muito diferentes segundo os indivíduos,
as culturas e os momentos) num sistema único biopsicos-
sociocultural.
Da mesma forma, o princípio de invenção e de evo­
lução, próprio ao cérebro do sapiens, exprime-se e tra­
duz-se não só na evolução da personalidade ou do pensa­
mento do indivíduo, mas também na evolução técnica/cul-
tural, bem como na complexificação da organização social.
Aqui, trata-se de outro caráter primordial do cérebro, li­
gado ao anterior: a projeção de sua evolutividade sobre
todas as esferas da praxis antropossocial. Compreende-se,
então, que a evolução social não seja unicamente uma se­
quência de mudanças suscitadas pelas perturbações exter­
nas, mas seja também a projeção da evolutividade cere­
bral do sapiens. E aquilo que se projetou sobre o mundo,
quando a evolução se tornou histórica, há alguns milhares
de anos, foi a desordem geradora de entropia e, ao mesmo
tempo, geradora de complexidade. O "ruído" (noise) ce­
rebral projetou-se em ruído e fúria histórica (sound and
fury). Este ruído, tendo nele desperdício, destruição e
criação, está ligado aos desenvolvimentos de todas as or­
dens, que tomam um caráter histórico. A partir de então,
a evolução histórica tomou um caráter errático, errante,
muitas vezes regressivo, inconstante e, muitas vezes, tam­
bém demente. A história nada mais é do que a ligação
aleatória, complementar, concorrente e antagonista, entre
desordem e processo de complexificação.

Você também pode gostar