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VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP

Da “memória involuntária” à “incompatibilidade consciência-


memória”: aproximações benjaminianas entre Proust e Freud

Fernando Araújo Del Lama1

Resumo: No início do século XX, era comum, na crítica de tradição francesa, ver no romance
de Marcel Proust, “Em busca do tempo perdido”, uma espécie de “aplicação literária” das ideias
do filósofo Henri Bergson sobre a memória e o tempo; certamente, esta aproximação entre o
filósofo e o romancista se deu, principalmente, por terem sido contemporâneos, e
consequentemente, partilharem do mesmo ambiente francês de efervescência intelectual e
cultural. Mas seria esta aproximação, com efeito, verdadeira ou, ao menos, a única possível de
ser feita? Ora, é justamente adotando uma posição contrária a esta, isto é, a de distanciamento
entre os dois autores franceses, que Walter Benjamin lê Proust. Sabe-se que Proust possui
grande relevância nas ideias de Benjamin e que, nas vicissitudes de sua leitura, Benjamin, além
de afastar Bergson de Proust, acaba por aproximar Proust de Freud. O objetivo deste texto é
compreender qual o sentido destas relações, ora de aproximação, ora de distanciamento, entre
estes autores e qual a importância delas para o projeto filosófico de Benjamin.

Palavras-chave: Walter Benjamin. Marcel Proust. Sigmund Freud. Memória. Experiência.

Abstract: In the beginning of the 20th century, it was common in the French tradition criticism
to see in Marcel Proust’s “In Search of Lost Time” a kind of "literary application" of
philosopher Henri Bergson’s ideas regarding memory and time; certainly, this approximation
between the philosopher and the novelist occurred mainly due to their contemporaneity and the
consequent sharing of the same French environment of cultural and intellectual fermentation.
But would this approach be effectively true or even the only one possible to be made? In fact,
adopting a position opposite to the aforementioned – establishing distance between the two
French authors – is how Walter Benjamin reads Proust. It is known that Proust possesses great
relevance over Benjamin’s ideas, and in the vicissitudes of his reading, Benjamin, not only
distances Bergson from Proust but approaches Proust to Freud. The aim of this paper is to
understand the meaning of these relationships, at times as approximation, at times as distance,
between these authors and how they are important for Benjamin’s philosophical project.

Keywords: Walter Benjamin. Marcel Proust. Sigmund Freud. Memory. Experience.

*  *  *  

I
 

A literatura assume muitos saberes. Num romance como Robinson


Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico,
botânico, antropológico (Robinson passa da natureza à cultura). Se,
por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas
disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, é a
disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão
presentes no monumento literário. É nesse sentido que se pode dizer
                                                                                                                       
1
Graduando em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Bolsista PIBIC/CNPq. Orientador: Prof. Dr.
Marcus Sacrini Ayres Ferraz. E-mail: fernando.lama@usp.br
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que a literatura, quaisquer que sejam as escolas em nome das quais


ela se declara, é absolutamente, categoricamente realista: ela é a
realidade, isto é, o próprio fulgor do real (BARTHES, 1988, p. 16-7,
grifos nosso).

Este é um trecho de autoria de Roland Barthes, extraído de sua aula inaugural no


Collége de France. Parece-me, porém, que se ele fosse encontrado em algum texto de
Walter Benjamin, não seria tão estranho ao leitor, exceto, talvez, pelo exemplo, que
provavelmente não seria o romance de Daniel Defoe, mas algum outro autor mais
próximo do universo benjaminiano. No entanto, o que eu gostaria de enfatizar aqui é
que, a meu ver, Benjamin partilha desta ideia de uma relação íntima entre literatura e
realidade, tanto é que ele lança mão de alguns exemplos literários, que assumem papéis
importantes em algumas de suas principais ideias filosóficas: o contista russo Nikolai
Leskov, por exemplo, se torna o exemplo paradigmático do “contador de histórias” 2 (ou
“narrador”), fundamental para sua teoria sobre a atrofia da experiência; o grande poeta
Charles Baudelaire é, para Benjamin, incontornável quando o assunto é modernidade,
sendo sua figura mais emblemática; o romancista Marcel Proust, por sua vez, é
personagem fundamental para compreender outras ideias, às quais, doravante, passarei a
me dedicar.
Para orientar o texto, formulei, então, a seguinte questão: no interior desta gama
de “empréstimos literários” da filosofia benjaminiana, qual é, de fato, a função de
Proust em sua filosofia? Buscando responder a esta questão, percebi outra, correlata e
menos explorada, porém não menos interessante do que a primeira: por que a presença
de algumas ideias desenvolvidas por Sigmund Freud passa a ser fundamental para
garantir a validade da contribuição proustiana? Em outras palavras: qual é o sentido da
aproximação entre Proust e Freud estabelecida por Benjamin? Parte-se da hipótese de
que Proust, ou, mais precisamente, a noção de memória involuntária, exerce uma
função primordial para se pensar soluções ao problema da atrofia da experiência na
modernidade, função esta que só é compatível com um modelo de aparelho psíquico

                                                                                                                       
2
Apoiando-me em algumas traduções mais recentes para der Erzähler, a saber, the storyteller no inglês,
le conteur no francês e el cuentacuentos no espanhol, preferi traduzir – contrariando, talvez, o próprio
Benjamin, que em certa ocasião traduziu o termo em questão para o francês como le narrateur – este
termo para o português como o contador de histórias. Conforme a leitura que proponho, o “narrador” do
qual trata Benjamin, não é um conceito meramente literário, mas filosófico; daí minha opção, a fim de
diferenciar o “narrador” literário, a entidade fictícia que enuncia o discurso no interior de uma narrativa,
do “contador de histórias” filosófico, o transmissor por excelência da experiência em seu sentido pleno.
Mantive, entretanto, a tradução mais difundida junto ao texto, visto que a introdução de uma nova
terminologia sem advertência poderia confundir o leitor.
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dotado de algumas peculiaridades, que Benjamin buscará na obra de Freud. Para


sustentá-la, proponho o seguinte percurso: em primeiro lugar, comentarei brevemente os
dois textos benjaminianos que mencionam Proust, a fim de justificar minha opção por
priorizar um deles, a saber, os poucos parágrafos do ensaio “Sobre alguns temas em
Baudelaire”. Em segundo lugar, analisarei o modo como Benjamin interpreta e mobiliza
a noção proustiana de memória involuntária em favor de sua teoria da experiência. Por
último, farei algumas considerações a respeito do papel de Freud, ou melhor, da
hipótese freudiana acerca da incompatibilidade entre memória e consciência, na
concatenação dessas ideias. Posto isso, passemos ao primeiro tópico.

II

O ensaio intitulado “A imagem de Proust”, de 1929, é certamente o escrito mais


famoso de Benjamin sobre Proust. Sabe-se que ele traduziu para o alemão alguns dos
volumes do monumento romanesco de Proust, e que este ensaio foi produzido neste
contexto3; ele foi publicado numa revista chamada Die Literarische Welt, claramente
inclinada à literatura e com a qual Benjamin manteve “colaboração regular”
(BENJAMIN, 2011, p. 9). Neste ensaio, Benjamin exerce seu método de “crítica
imanente” da literatura, que “pressupõe”, segundo Ernani Chaves, “como uma espécie
de propedêutica, que o estudo de uma obra literária não se esgota na própria obra, mas,
ao contrário, exige que atravessemos, criticamente, as sucessivas camadas que, a partir
das diversas interpretações acabam por aderir à obra” (2008 p. 34); Jeanne Marie
Gagnebin aborda outros pontos do método benjaminiano, como a exigência do trabalho
de comentário previamente à elaboração crítica (cf. 1985, p. 119 ss.), esboçado pela
autora a partir, sobretudo, do ensaio de Benjamin sobre as “Afinidades Eletivas”, de
Goethe.
Seguindo seu método, no ensaio sobre Proust, Benjamin parece tentar dar conta
do monumento literário proustiano de forma mais livre e abrangente, levando em conta
alguns de seus componentes, tais como seus aspectos estruturais, “que conjuga a poesia,

                                                                                                                       
3
Este ensaio sobre Proust não foi elaborado com a intenção de prefaciar a tradução, tal como ocorrera
com o ensaio sobre “A Tarefa do Tradutor” em relação à tradução dos “Tableaux Parisienses”, de
Baudelaire; dado que o objetivo último do contato com Proust fora a sua tradução para o alemão,
Benjamin teve de empreender uma leitura atenta e minuciosa, que tornou possível as reflexões expostas
neste ensaio.
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a memorialística e o comentário” (BENJAMIN, 1994, p.36), ou mesmo as


considerações acerca da densidade do texto “tecido” por Proust (cf. BENJAMIN, 1994,
p. 37). Ora, por se tratar de um ensaio no qual o objetivo é, fundamentalmente, fazer a
crítica do romance proustiano, ele versa, com efeito, sobre o romance de Proust; deste
modo, ele se aproxima mais dos demais ensaios de crítica literária, como aqueles
dedicados a Kafka e a Goethe, do que dos ensaios mais tardios de Benjamin, os quais
possuem vieses filosóficos e sociológicos melhores delineados.
O outro ensaio benjaminiano no qual há referências a Proust é “Sobre alguns
temas em Baudelaire”, de 1939; como o próprio nome revela, este não é inteiramente
sobre Proust, porém possui algumas passagens dedicadas a ele. Diferentemente do que
faz em seus ensaios de crítica literária, Benjamin não se limita a analisar um poema ou
um livro de Baudelaire, mas busca evidenciar alguns traços característicos da
modernidade a partir da obra do poeta francês, ou seja, um esforço em levar a literatura
para além da escritura. Aliás, num Curriculum Vitae, o próprio Benjamin se refere a
este texto como “um fragmento de uma série de estudos que propõem analisar a
literatura do século XIX como instrumento para um conhecimento crítico deste período”
(2011, p. 10). Vale lembrar, ainda com o intuito de melhor caracterizar seu conteúdo,
que este ensaio foi publicado na revista do Instituto de Pesquisa Social, a Zeitschrift für
Sozialforschung, que também publicou outros artigos de Benjamin, mais ligados,
também, às suas reflexões tardias (cf. BENJAMIN, 2011, p. 10).
É de se estranhar o fato de um texto que leva o nome de Baudelaire no título
iniciar, de fato, a apresentação de suas reflexões sobre o poeta apenas depois de uma
longa introdução. As primeiras seções, em especial, atuam, em relação ao texto em sua
integralidade, como uma espécie de propedêutica, no sentido de passagem obrigatória,
indispensável4: ora, se o grande tema tratado no texto é, certamente, mostrar como
Baudelaire transforma, através de sua poesia, a “vivência do choque” em “experiência
do choque”, torna-se necessário, para compreender corretamente a exposição de
Benjamin, ter em mente o contexto no qual Baudelaire vivia, mais precisamente, a
situação da experiência neste contexto; para tanto, o filósofo se vale destas seções
iniciais para “pintar”, ainda que de modo bastante sumário, as condições da experiência
na época em questão. Para tanto, Benjamin mobilizará um caleidoscópio de autores:
                                                                                                                       
4
Este é um procedimento mais ou menos usual na filosofia de Benjamin, fazendo eco, por exemplo, ao
“Prefácio Epistemológico-Crítico”, em relação à tese sobre a “Origem do drama trágico alemão”, e às
teses “Sobre o conceito de História”, em relação ao ambicioso e inacabado projeto das “Passagens”.
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chega a impressionar a quantidade de autores que Benjamin faz referência e tenta


mobilizar a favor de suas ideias, como Henri Bergson, Paul Valéry, Edgard Alan Poe e,
claro, aqueles que vão nos interessar mais a partir de agora, Proust e Freud. São, com
efeito, poucos os parágrafos dedicados por Benjamin a estes dois últimos; e é neles que
a figura de Proust, via noção de memória involuntária, surge como uma espécie de
“metáfora literária” de algumas ideias de Benjamin a respeito da memória e da
experiência. Comparado ao ensaio anterior, dedicado exclusivamente a Proust, este
último parece ir mais diretamente ao que, no romancista, será interessante às ideias de
Benjamin; poder-se-ia dizer, talvez, que neste último texto, o filósofo procura
apreender, mais do que no primeiro, o espírito por trás da letra proustiana, que se
encontra, para ele, na noção de memória involuntária, que embora só seja cunhada, por
uma única vez, nas primeiras páginas do último volume do romance, “O Tempo
Redescoberto”, pode ser entrevista já desde o primeiro volume, “No Caminho de
Swann”, a partir da cena da madeleine (cf. PROUST, 2006, p. 71 e ss.), se fazendo
presente, desde então, em toda a trama. Em suma, Benjamin escreve, neste ensaio, sobre
suas próprias ideias, porém, com o auxílio de Proust.
Ora, como uma das propostas deste trabalho é identificar o papel de Proust na
filosofia de Benjamin, creio que seja melhor privilegiar os parágrafos dedicados a
Proust no ensaio sobre Baudelaire, tendo o ensaio sobre o próprio Proust como suporte.
Passemos, então, a analisá-lo mais detidamente.

III

Benjamin inicia a segunda seção de seu texto com as seguintes palavras:

Matière et Memoire define o caráter da experiência na durée (duração)


de tal maneira que o leitor se sente obrigado a concluir que apenas o
escritor seria o sujeito adequado de tal experiência. E, de fato, foi
também um escritor quem colocou à prova a teoria da experiência de
Bergson. Pode-se considerar a obra de Proust, Em Busca do Tempo
Perdido, como a tentativa de reproduzir artificialmente, sob as
condições sociais atuais, a experiência tal como Bergson a imagina,
pois cada vez se poderá ter menos esperanças de realizá-la por meios
naturais (1989, p. 105).

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Ora, a primeira menção a Proust no texto já é buscando opô-lo a Bergson,


caracterizando-o como aquele que põe em xeque a teoria bergsoniana5. Para Benjamin,
esta oposição é fundamental, uma vez que, o que está em jogo para Benjamin aqui é sua
teoria sobre a atrofia da experiência; exploremos, pois, tal oposição, recuperando os
pressupostos necessários.
Para Benjamin, a noção de experiência possui uma relação bastante intrincada
com as noções de memória e de narração (ou “arte de contar histórias”): grosso modo, o
acesso à memória é o que permitiria a transmissão, via narração, da experiência. Para
uma melhor compreensão destas ideias, vale relembrar a distinção, feita por Benjamin,
entre experiência e vivência. Sobre tal distinção, Leandro Konder (1999, p. 83) ensina:

O nosso crítico distinguia entre duas modalidades de conhecimento,


indicadas por duas palavras diversas em alemão: Erfahrung e Erlebnis.
‘Erfahrung’ é o conhecimento obtido através de uma experiência que
se acumula, que se prolonga, que se desdobra, como numa viagem (e
viajar, em alemão, é fahren); o sujeito integrado numa comunidade
dispõe de critérios que lhe permitem ir sedimentando as coisas, com o
tempo. ‘Erlebnis’ é a vivência do indivíduo privado, isolado; é a
impressão forte, que precisa ser assimilada às pressas, que produz
efeitos imediatos.

Segundo o diagnóstico benjaminiano, nosso tempo é marcado por um processo


de declínio das ações experiência6; na acelerada modernidade capitalista, não há mais
tempo para ouvir histórias, únicas vias de transmissão da experiência em seu sentido
pleno; preferem-se, hoje, os jornais, fonte de informação concisa e de fácil assimilação,
logo, mais compatível com o acelerado cotidiano moderno. O problema é que esse tipo
de informação não se integra à experiência do indivíduo, deixando-o pobre em termos

                                                                                                                       
5
Embora Benjamin tenha sido um dos críticos pioneiros na interpretação de Proust desvencilhando-o da
tutela de Bergson, o próprio Proust parecia ser partidário desta ideia. Em uma entrevista, compilada ao
final da edição brasileiro de “No Caminho de Swann”, Proust diz, a respeito do vínculo de sua obra com a
filosofia bergsoniana, que “não seria exato [estabelecer este vínculo], pois minha obra está dominada pela
distinção entre a memória involuntária e a memória voluntária, distinção que não somente não aparece na
filosofia de Bergson, mas é até mesmo contradita por ela” (PROUST, 2006, p. 511). Ou ainda, Leopoldo
e Silva, que, embora bergsoniano, é lúcido o bastante para advertir, num texto sobre a relação entre Proust
e Bergson acerca da apreensão do tempo, que “convém desde logo esclarecer que não se pretende sugerir,
com isto, qualquer tipo de identificação, ainda que parcial, entre a obra romanesca e a teoria filosófica”
(LEOPOLDO E SILVA, 1992, p. 141). Quer dizer: o próprio Proust, bem como um grande estudioso da
obra de Bergson, se opõem à tese de que o romance de Proust seria apenas uma espécie de “aplicação
literária” das ideias filosóficas de Bergson.
6
Utilizarei doravante, seguindo a tradução mais corrente, experiência como correspondente a Erfahrung,
bem como vivência para corresponder ao termo Erlebnis.
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desta; com a vida sendo guiada pelo imediatismo, pela efemeridade do instante, a
vivência assume a dianteira, colaborando decisivamente com o declínio da experiência.
E o duelo entre experiência e vivência não se resolve através de uma simples
escolha: nosso tempo, guiado pelo modo de viver imposto pelo capitalismo, segundo
Benjamin, não comporta mais a experiência; para o reestabelecimento da possibilidade
de sua transmissão efetiva, haveria a necessidade de alguns pressupostos, os quais
podem ser localizados de modo preponderante, apenas, num regime pré-capitalista. A
título de exemplo, pode-se destacar a organização social baseada na coletividade (e não
na individualidade e na ruptura com uma tradição unificadora, caras ao mundo
capitalista); ou, do mesmo modo, um modo de produção ou organização do trabalho
baseado no artesanato, responsável por ditar o tempo e o ritmo da atividade humana de
modo geral (e não no modo de produção industrial, que nos impõe uma temporalidade
repetitiva e que extrapola todo e qualquer limite humano e nos produtos impessoais e
desumanizados produzidos no regime fabril); ou ainda, de maneira semelhante, a
transmissão de saberes práticos fundada na experiência da tradição (e não nos livros de
autoajuda, sempre entre os mais vendidos nas livrarias). Nesse contexto capitalista, no
qual impera a impossibilidade da realização plena da experiência, haveria a necessidade
de construir artificialmente novas formas de transmissão da experiência, ou do que
sobra de seu esfacelamento, construção esta que deve ser empreendida “justamente por
aqueles que reconheceram a impossibilidade da experiência tradicional na sociedade
moderna e que se recusam a se contentar com a privaticidade da experiência vivida
individual (Erlebnis)” (GAGNEBIN, 1994, p. 10). Proust é, para Benjamin, um dos
autores mais sensíveis a esta questão, sendo sua memória involuntária um exemplo
paradigmático de transmissão “artificial” da experiência. A respeito disso, Benjamin,
em seu ensaio sobre Proust, cita uma passagem de um autor chamado Max Unold, que
reproduzo aqui:

‘ele conseguiu tornar interessantes as histórias de cocheiro. Ele diz:


imagine, caro leitor, ontem eu mergulhei um bolinho numa xícara de
chá, e então me lembrei que tinha morado no campo, quando criança.
Para dizer isso, Proust usa oitenta páginas, e o faz de modo tão
fascinante que deixamos de ser ouvintes, e nos identificamos com o
próprio narrador desse sonho acordado’ (BENJAMIN, 1994, p. 39,
grifos nosso).

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É, exatamente, por essas razões que Benjamin diz, ao final do trecho citado no
início desta seção, que a experiência nos moldes bergsonianos dificilmente se realizará
por meios naturais: as ideias de Bergson são demasiado idealizadas, não se aplicam à
realidade; Proust, por sua vez, encara a situação com mais lucidez e tenta recriar, na
medida do possível e sob as condições sociais vigentes, a experiência tal como Bergson
a concebera.
Benjamin segue sua análise a partir das noções que, de certo modo, funcionam
como pilares em relação às ideias sobre a memória de cada um dos autores, a saber, a
memória pura em Bergson e a memória involuntária em Proust, e buscará compreendê-
las à luz de sua própria teoria da experiência e da memória. Assim, de acordo com a
leitura benjaminiana, a “memória involuntária” do romance proustiano se diferencia da
“memória pura” bergsoniana precisamente quanto ao que iniciaria o processo de
rememoração: se para Bergson, há a sugestão de que “o recurso à presentificação
intuitiva do fluxo da vida seja uma questão de livre escolha” (BENJAMIN, 1989, p.
106), para Proust “fica por conta do acaso, se cada indivíduo adquire ou não uma
imagem de si mesmo7, e se pode ou não se apossar de sua própria experiência”
(BENJAMIN, 1989, p. 106).
Bergson, a certa altura de seu “Matéria e Memória”, diz que: “Para evocar o
passado em forma de imagem, é preciso poder abstrair-se da ação presente, é preciso
saber dar valor ao inútil, é preciso querer sonhar” (BERGSON, 1999, p. 90). Quer dizer:
o filósofo francês diz aqui que o ato de presentificar o passado depende do abstrair da
ação presente, do valorizar o inútil e do querer sonhar, ou seja, três verbos que
exprimem ações conscientes, que dependem do conhecimento e da intenção do sujeito
da ação. Ora, do ponto de vista proustiano, isso é inconcebível: tomemos, por exemplo,
a paradigmática cena da madeleine, lida ao fim do primeiro capítulo do primeiro volume
de Em busca do tempo perdido. Tratando-se de uma cena de suma importância tanto
para o romance quanto para a interpretação benjaminiana dele, talvez valesse um
esforço de reconstrução da mesma; muito estudiosos de Proust já o fizeram de forma
brilhante, dentre os quais destaco – e reproduzo – um, de autoria de Jeanne Marie
Gagnebin (2006, p. 145):

                                                                                                                       
7
Estas palavras fazem alusão ao título do ensaio sobre Proust, “A imagem de Proust”: uma das
interpretações possíveis da imagem da qual fala o título é, justamente, a ideia de uma imagem do passado,
continente da experiência.
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[...] voltando para casa numa noite fria de inverno, o escritor


[protagonista ou herói do romance] aceita a oferta de sua mãe de lhe
preparar um chá. Ele é servido com um bolinho seco, tipo nossa broa
de milho, cujo nome é ‘madeleine’. O primeiro gole de chá, misturado
ao sabor desse bolo bastante comum na França, produz uma impressão
como que mágica na alma do narrador, há pouco ainda submersa pela
melancolia e pela escuridão de uma triste tarde chuvosa. De repente,
ele vê luz, sente calor, alegria, um prazer intenso o atravessa cuja
causa ele ignora. Percebe, então, depois de um longo esforço de
atenção espiritual, que a ‘madeleine’ ressuscitou uma lembrança,
esquecida no fundo da memória: o sabor do mesmo bolinho misturado
ao chá que ele tomava enquanto criança, na casa de veraneio de sua
família, aos Domingos, quando ia cumprimentar sua tia-avó, a Tante
Léonie.

Nesta cena, fica clara a discrepância em relação às ideias de Bergson: o


personagem do romance não toma o chá com a intenção de lembrar-se de sua infância;
ele é, ao contrário, acometido de modo involuntário e completamente passivo pela
sensação que o leva às imagens de seu passado. O elo causal entre o sabor do chá com a
madeleine e o assalto pelas lembranças do passado é estabelecido apenas num momento
de reflexão posterior.
Dito de outro modo: enquanto para Bergson o desencadear do processo de
rememoração está muito mais próximo das capacidades subjetivas e da mente
consciente, em Proust, pelo contrário, ele está mais próximo do mundo e das sensações
que ele pode oferecer8. É verdade que há, para Proust, uma memória que opera sob a
tutela da consciência – a “memória voluntária, a memória da inteligência” (PROUST,
2008, p. 70). Contudo, esta memória voluntária é incomparavelmente inferior,
qualitativamente falando, às lembranças fornecidas pela memória involuntária.
Tal distanciamento promovido por Benjamin entre os dois autores franceses é de
fundamental importância, uma vez que, tomando sua teoria da experiência como
parâmetro, ambos os autores não podem permanecer aliados, como queria a crítica
literária de tradição francesa, pois são contraditórios. Cabe observar, porém, que a
filosofia de Bergson mantinha relações, reconhecidas pelo próprio Benjamin (cf.
BENJAMIN, 1989, p. 104-5), com a investigação científica, orientando-se, sobretudo,
                                                                                                                       
8
O mecanismo de funcionamento da memória involuntária é adaptado por Proust a partir de uma crença
céltica de que as almas dos falecidos são deslocadas para algum ser inferior, como um animal ou algum
objeto qualquer; quando entramos em contato com o “guardião da alma” e a reconhecemos, o encanto se
quebra. “É assim”, diz Proust, “com nosso passado” (2006, p. 71): de nada adianta buscar evocá-lo com o
esforço de nossa inteligência. Ele permanece distante de nosso alcance intelectual, aprisionado em algum
objeto material (e na sensação que dele proviria). “Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos
antes de morrer, ou que não o encontremos nunca” (PROUST, 2006, p.71).
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pela biologia; ao afastar Bergson de Proust, Benjamin também quebra, de certo modo, o
elo entre o romance de Proust e a investigação científica, garantido outrora pela relação
a Bergson. Ora, sabe-se que, para Benjamin, Proust não é simplesmente um escritor de
ficção; ele escreve, na verdade, sobre a realidade, porém através da ficção, e seria
importante, para garantir tal vínculo com a realidade, alguma conexão com a
investigação científica. Sem a garantia deste vínculo, Benjamin tem seu projeto de
utilizar a literatura como material para o estabelecimento de um conhecimento crítico
enfraquecido, uma vez que, se a literatura não possui sequer alguma ligação com a
realidade, ela não passa de mera ficção, restando a ela, simplesmente, se tornar objeto
de mera fruição estética. A saída encontrada por Benjamin para reestabelecer esta
ligação é aproximar algumas teses de outro pensador à obra de Proust, um médico
austríaco que se esforçava em consolidar uma nova ciência – no sentido de
Naturwissenchaft – que fazia claras referências à termodinâmica, ciência “modelo” da
época, em seu aparelho conceitual, chamado Sigmund Freud. Vejamos, então, como se
dá tal aproximação empreendida por Benjamin.

IV

Na seção seguinte àquela dedicada a Proust, Benjamin escreverá alguns


parágrafos sobre Freud, mais precisamente, sobre a hipótese freudiana acerca da
incompatibilidade entre os sistemas psíquicos percepção-consciência e memória,
desenvolvida em seu texto “Além do Princípio de Prazer” (FREUD, 2010). É verdade
que este não é, de fato, o tema central do artigo de Freud; a introdução do conceito de
pulsão de morte é aquilo que se situa “além do princípio do prazer”, sendo sua
adequação aos desenvolvimentos psicanalíticos de até então o mote central do texto.
Entretanto, dado o escopo deste trabalho, me limitarei apenas aos interesses
benjaminianos no texto de Freud, interesses estes que residem, precisamente, no tema
secundário acerca da relação entre os estímulos do mundo exterior e sua recepção – e
captação – pelo aparelho psíquico.
Em sua especulação acerca da constituição e atuação do aparelho psíquico,
Freud afirma que o que é objeto da consciência não pode conservar nenhum traço
mnemônico, pois se o fizesse, inviabilizaria uma nova percepção, afirmação esta que
pode ser expressa na fórmula freudiana “a consciência surge no lugar do traço de

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lembrança” (FREUD, 2010, p. 186); disso se segue que a consciência e o registro


mnemônico não podem ser compatíveis, devendo operar cada qual num sistema distinto
(cf. FREUD, 2010, p. 185-6). Em seu texto, Freud elabora toda uma história conjectural
a respeito da origem do organismo vivo (cf. FREUD, 2010, p. 187 ss.), elemento que
julgo não ser imprescindível para os propósitos de meu texto. Porém, cabe ressaltar um
ponto específico, a saber, o surgimento da barreira protetora (Reizschutz): “Esse
pequeno pedaço de substância viva flutua num mundo externo carregado de fortes
energias, e seria liquidado pela ação dos estímulos que vêm dele se não fosse dotado de
uma proteção contra estímulos” (FREUD, 2010, p. 188).
Segundo Oswaldo Giacóia Jr. (2010, p. 51-2), de forma bastante clara:

Dada a magnitude dos estímulos externos, contra sua incidência é


necessário que o aparelho desenvolva uma camada de proteção, uma
vez que, sem esse escudo, as quantidades de excitação provenientes do
ambiente levariam à destruição do aparelho. Desse modo, os
elementos físicos que constituem a base somática do sistema
percepção/consciência precisam ter se tornado, de alguma maneira,
calcinados, inorgânicos, de forma a não possibilitar o registro
duradouro (mnêmico) de traços de excitação, que nele se esgotam
inteiramente, sem deixar resíduos.

Assim, o sistema percepção-consciência, além de tornar conscientes as


excitações recebidas, teria a função primordial de proteger o organismo, por intermédio
de uma barreira protetora, o organismo contra os estímulos externos que visam
desestabilizar seu fluxo interno de troca de energias. Segundo Benjamin, essa ameaça de
desestabilização pelos estímulos externos é chamada por Freud de choque9, e quanto
maior for sua recorrência, mais o sistema percepção-consciência se esforçará para inibi-
lo, com o intuito último de preservar o organismo, já que “para o organismo vivo, a
proteção contra estímulos é tarefa quase mais importante do que a recepção de
estímulos” (FREUD, 2010, p. 189). Em outras palavras, numa situação de recepção
                                                                                                                       
9
Conforme ressalta Rouanet (cf. ROUANET, 2008, p. 73 e ss.), a leitura de Benjamin não é totalmente
exata, uma vez que para ele não há distinção, clara em Freud, entre estímulos traumáticos e não
traumáticos, flagrante em afirmações como: “O fato de o choque ser assim amortecido e aparado pelo
consciente emprestaria ao evento que o provoca o caráter de experiência vivida em sentido restrito”
(BENJAMIN, 1989, p. 110). . Para Freud, o mecanismo do choque não é, como o quer Benjamin, a regra
de funcionamento da barreira protetora, mas é desencadeado apenas pelo estímulo traumático; este é,
segundo Freud, aquele que é interceptado pela barreira, mas, dada sua força, rompe a proteção e invade o
organismo, desestabilizando-o, sem se tornar representação consciente. No entanto, esse equívoco de
interpretação não invalida a argumentação benjaminiana, pois, como afirma Maria Rita Kehl: “O que
interessa ao argumento de Walter Benjamin não é o evento excepcional que caracteriza o trauma, mas a
velocidade com que a consciência é assolada pelo prosaico e corriqueiro choque” (2009, p. 175).
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excessiva de estímulos (na leitura benjaminiana, os causadores do choque), o sistema


percepção-consciência, através da barreira protetora, passa a ser mais frequentemente
exigido, passando a se sobressair em relação aos demais sistemas.
Alguns anos mais tarde, Freud (cf. 2011, p. 270 e ss.) compara seu modelo de
aparelho psíquico a um brinquedo, o Bloco Mágico, a fim de mostrar como se daria o
seu funcionamento. O brinquedo é composto por uma tábua de cera e por uma folha,
separável em duas camadas: a parte de cima é composta de uma película de celuloide
transparente, a de baixo é de um papel encerado e translúcido. Escreve-se no bloco com
um estilete pontiagudo que, ao fazer ranhuras na superfície do papel, deixa marcas,
possíveis de serem lidas, no papel encerado. Quando as notas não forem mais
necessárias, basta levantar a folha, gesto que apaga tudo o que havia sido “escrito”.
Freud observa que, depois de uma anotação, se as camadas da folha forem descoladas, é
possível ler o que fora escrito apenas no papel encerado. Poder-se-ia perguntar se a
película de celuloide é de fato necessária; porém, ao se tentar “escrever” diretamente no
papel encerado, nota-se que, devido a sua fragilidade, ele provavelmente seria
danificado. Percebe-se, então, que a película atua como uma espécie de proteção ao
papel encerado. Ora, se o compararmos ao aparelho psíquico, notam-se algumas
semelhanças entre a tábua de cera e o inconsciente e entre a folha e o sistema
percepção-consciência, com a película de celuloide correspondendo à barreira protetora
e o papel encerado à parte perceptiva do sistema. Freud indica, ainda, que “se
pensarmos que, enquanto uma mão escreve na superfície no Bloco Mágico, a outra
levanta da tabuinha de cera periodicamente a folha de cobertura, temos uma
representação concreta do modo como procurei imaginar a função de nosso aparelho
psíquico perceptivo” 10 (FREUD, 2011, p. 274).
Assim, segundo Olgária Matos (2010, p. 266-7):

No ‘bloco mágico’, no qual tudo o que é grafado apaga-se assim que


se levanta a folha transparente sobre a qual se escreve, Freud
considera que a inscrição das excitações vivenciadas nos sistemas
psíquicos atestam a incompatibilidade entre a consciência e a
                                                                                                                       
10
Não há, a meu ver, um brinquedo no Brasil correspondente ao que Freud descreve em seu artigo; talvez
o que mais se aproxime do brinquedo descrito por Freud é a “lousa mágica”, brinquedo semelhante,
embora confeccionado em plástico, porém sem a necessidade de algo como a película de celuloide, tendo
em vista que, na versão brasileira do brinquedo, não se usa um estilete, mas um bastão de plástico que,
quando pressionado contra a camada mais superficial, adere à peça sólida as regiões pressionadas,
tornando-as legíveis pelo contato com essa. Ou seja: a “lousa mágica” não serviria de metáfora para
Freud, já que lhe falta, precisamente, a barreira protetora.
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memória. As excitações não podendo se tornar inconscientes são


estocadas em outra parte que não a consciência, a saber, em dois
outros sistemas, o pré-consciente e o consciente: ‘a consciência
nasceria no lugar do rastro mnésico.

Ora, a esta altura do texto, já podemos organizar o ideário nele exposto:


Benjamin atribui ao sistema percepção-consciência o trato das vivências e os limites de
atuação da memória da inteligência, aquela capaz de tornar conscientes apenas os
registros dos sistemas pré-consciente e consciente. A memória, ou sistema mnemônico,
daria conta do registro das experiências, e, sendo incompatível com a consciência,
configura, assim, o âmbito da memória involuntária.
Ora, se levarmos em conta o modo de vida ao qual estamos submetidos no
capitalismo, modo de vida este que exige o máximo de nossa atenção consciente, a fim
de dar conta do bombardeio infindável de estímulos com os quais nos deparamos e
temos de lidar a todo instante, como aqueles vivenciados em nosso contato com a
multidão, esse mar de pessoas que inunda os centros urbanos, passamos, deste modo, a
viver majoritariamente sob o predomínio das vivências; como exposto acima, uma vez
que se passa a viver sob o signo da vivência, anula-se a possibilidade da experiência. E
o que significa esta substituição de uma pela outra? Segundo Rouanet, em síntese: “A
consciência está, pois, continuamente mobilizada contra a ameaça do choque, donde
Benjamin conclui que quanto maiores os riscos objetivos de que esse choque venha a
produzir-se, mais alerta fica a consciência, o que significa, aceita a tese da relação
inversa entre consciência e memória, que esta se empobrece correspondentemente,
passando a armazenar cada vez menos traços mnêmicos” (ROUANET, 1981, p. 45)
Quer dizer: o capitalismo fabrica indivíduos desprovidos de memória, isto é, de um
passado que conserva sua experiência, inviabilizando, assim, sua transmissão. Em
outras palavras: o homem moderno, por não conseguir memorizar nada, torna-se um
homem sem passado, condenado a viver num eterno presente, já que tampouco pode
imaginar um futuro diferente baseando-se em suas memórias.

À guisa de conclusão, espero ter conseguido deixar clara a maneira como


Benjamin entrelaça algumas ideias de Proust (memória involuntária) e Freud
(incompatibilidade entre os sistemas psíquicos percepção-consciência e memória), sem
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conexão aparente, em favor de sua teoria da experiência. Se, ao afastar Bergson de


Proust, ainda que em prol de sua teoria da experiência, Benjamin rompe o elo da
literatura com a cientificidade, o substituto de Bergson é fruto de uma escolha
minuciosa, já que Freud, além de ter concebido hipóteses harmoniosas com as ideias de
Benjamin, era, também, alguém próximo das ciências, devolvendo, assim, a
“proximidade das coisas” ao romance de Proust, proximidade esta de fundamental
importância na proposta benjaminiana de pensar a modernidade a partir da literatura da
época moderna. Ele poderia muito bem ter se apoiado apenas nas palavras de Proust, em
“A Fugitiva”, citadas por Malcolm Bowie: “o pensamento [consciente] possui um poder
de renovação, ou melhor, uma impotência de conservação” (BOWIE, 1987, p. 69,
tradução minha), ou seja, exatamente o que Freud propõe em seu texto. Embora este
volume não tenha sido objeto da tradução feita por Benjamin, o que está formulado
nestas palavras de Proust, de certo modo, perpassa todo o romance, sendo improvável
que isto tenha escapado a um leitor atento como fora o filósofo alemão. Isso, a meu ver,
apenas reforça minha hipótese acerca da escolha de Freud em substituição a Bergson.
Cabem, no entanto, algumas observações finais: evidentemente, Proust nunca
leu Benjamin, logo, ele não poderia ter escrito seu romance pensando em fazer de seu
protagonista uma espécie de “redentor”, aquele que descobriu, ainda que por acaso, um
modo de acessar sua experiência e, deste modo, poder transmiti-la adiante. Isso é,
evidentemente, fruto da interpretação de Benjamin. Porém, essa interpretação não
possui nada de absurdo, e é incorporada organicamente ao restante de seu projeto
filosófico. Quer dizer: Benjamin, a meu ver, não distorce o romance de Proust, a fim de
fazê-lo dizer o que ele não diz; pelo contrário, a sutileza com que Benjamin mobiliza as
ideias do romance e as dispõe a seu favor, nos faz, por alguns instantes, acreditar que,
de fato, o romance proustiano é a peça faltante no quebra-cabeça filosófico
benjaminiano11.

                                                                                                                       
11
Obviamente, o romance proustiano é também, mas não apenas, esta peça faltante. Atendo-me apenas
no plano das interpretações filosóficas da obra de Proust, basta folhear, por exemplo, o livro de Gilles
Deleuze, “Proust e os signos”, para se encontrar um contraponto interessante. Logo nas primeiras páginas,
o filósofo francês apresenta sua interpretação do romance de Proust, que pode ser resumida enquanto uma
desvalorização da memória e a caracterização da jornada do protagonista como um “relato de um
aprendizado” (DELEUZE, 2003, p. 3); ou seja, a leitura deleuziana é incompatível – mas nem por isso
menos plausível, já que é apoiada por bons argumentos – com a leitura benjaminiana. Para além de
discutir qual das interpretações é correta, pode-se apenas depreender a riqueza e a pluralidade de
interpretações possíveis do monumento romanesco proustiano.
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E o mesmo se aplica a Freud: ele não estava pensando em elaborar, sob a


encomenda de Benjamin, um modelo de aparelho psíquico que se encaixasse
exatamente na crítica cultural e na problemática da atrofia da experiência; no entanto, o
aparelho psíquico, tal como Freud o concebe, cumpre muito bem esse papel na
constelação em que Benjamin o insere.
Ademais, é verdade que não é algo novo estabelecer aproximações entre Proust e
Freud: no texto de Ernani Chaves, há referências a Jacques Riviére e outros autores, que
indicam aproximações bastante tímidas entre os dois autores (cf. CHAVES, 2008, p. 34-
5); Bowie, por sua vez, enumera uma série de temas existentes nas obras dos dois
autores, como por exemplo, as temáticas do sadismo, do masoquismo, do
homossexualismo, da análise de sonhos e das regras de interpretação, dentre outras (cf.
BOWIE, 1987, p. 68-9). Porém, o grande diferencial da aproximação entre Proust e
Freud tratada aqui é que, diferentemente das aproximações mencionadas – meros
cruzamentos de temas que aparecem na obra romanesca de Proust e na psicanálise de
Freud –, a aproximação empreendida por Benjamin dá um passo além: a convergência
entre literatura e psicanálise, em Benjamin, opera de modo tão intenso que impossibilita
a distinção dos elementos amalgamados; assim, citando estas ideias, isto é, retirando-as
de seus contextos originais e reinserindo-as numa nova constelação, Benjamin produz
um terceiro elemento, a saber, sua própria filosofia, que se apresenta sob a forma de
crítica da cultura e se sustenta através de uma teoria da experiência.

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