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Resumo: No início do século XX, era comum, na crítica de tradição francesa, ver no romance
de Marcel Proust, “Em busca do tempo perdido”, uma espécie de “aplicação literária” das ideias
do filósofo Henri Bergson sobre a memória e o tempo; certamente, esta aproximação entre o
filósofo e o romancista se deu, principalmente, por terem sido contemporâneos, e
consequentemente, partilharem do mesmo ambiente francês de efervescência intelectual e
cultural. Mas seria esta aproximação, com efeito, verdadeira ou, ao menos, a única possível de
ser feita? Ora, é justamente adotando uma posição contrária a esta, isto é, a de distanciamento
entre os dois autores franceses, que Walter Benjamin lê Proust. Sabe-se que Proust possui
grande relevância nas ideias de Benjamin e que, nas vicissitudes de sua leitura, Benjamin, além
de afastar Bergson de Proust, acaba por aproximar Proust de Freud. O objetivo deste texto é
compreender qual o sentido destas relações, ora de aproximação, ora de distanciamento, entre
estes autores e qual a importância delas para o projeto filosófico de Benjamin.
Abstract: In the beginning of the 20th century, it was common in the French tradition criticism
to see in Marcel Proust’s “In Search of Lost Time” a kind of "literary application" of
philosopher Henri Bergson’s ideas regarding memory and time; certainly, this approximation
between the philosopher and the novelist occurred mainly due to their contemporaneity and the
consequent sharing of the same French environment of cultural and intellectual fermentation.
But would this approach be effectively true or even the only one possible to be made? In fact,
adopting a position opposite to the aforementioned – establishing distance between the two
French authors – is how Walter Benjamin reads Proust. It is known that Proust possesses great
relevance over Benjamin’s ideas, and in the vicissitudes of his reading, Benjamin, not only
distances Bergson from Proust but approaches Proust to Freud. The aim of this paper is to
understand the meaning of these relationships, at times as approximation, at times as distance,
between these authors and how they are important for Benjamin’s philosophical project.
* * *
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Apoiando-me em algumas traduções mais recentes para der Erzähler, a saber, the storyteller no inglês,
le conteur no francês e el cuentacuentos no espanhol, preferi traduzir – contrariando, talvez, o próprio
Benjamin, que em certa ocasião traduziu o termo em questão para o francês como le narrateur – este
termo para o português como o contador de histórias. Conforme a leitura que proponho, o “narrador” do
qual trata Benjamin, não é um conceito meramente literário, mas filosófico; daí minha opção, a fim de
diferenciar o “narrador” literário, a entidade fictícia que enuncia o discurso no interior de uma narrativa,
do “contador de histórias” filosófico, o transmissor por excelência da experiência em seu sentido pleno.
Mantive, entretanto, a tradução mais difundida junto ao texto, visto que a introdução de uma nova
terminologia sem advertência poderia confundir o leitor.
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Este ensaio sobre Proust não foi elaborado com a intenção de prefaciar a tradução, tal como ocorrera
com o ensaio sobre “A Tarefa do Tradutor” em relação à tradução dos “Tableaux Parisienses”, de
Baudelaire; dado que o objetivo último do contato com Proust fora a sua tradução para o alemão,
Benjamin teve de empreender uma leitura atenta e minuciosa, que tornou possível as reflexões expostas
neste ensaio.
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Embora Benjamin tenha sido um dos críticos pioneiros na interpretação de Proust desvencilhando-o da
tutela de Bergson, o próprio Proust parecia ser partidário desta ideia. Em uma entrevista, compilada ao
final da edição brasileiro de “No Caminho de Swann”, Proust diz, a respeito do vínculo de sua obra com a
filosofia bergsoniana, que “não seria exato [estabelecer este vínculo], pois minha obra está dominada pela
distinção entre a memória involuntária e a memória voluntária, distinção que não somente não aparece na
filosofia de Bergson, mas é até mesmo contradita por ela” (PROUST, 2006, p. 511). Ou ainda, Leopoldo
e Silva, que, embora bergsoniano, é lúcido o bastante para advertir, num texto sobre a relação entre Proust
e Bergson acerca da apreensão do tempo, que “convém desde logo esclarecer que não se pretende sugerir,
com isto, qualquer tipo de identificação, ainda que parcial, entre a obra romanesca e a teoria filosófica”
(LEOPOLDO E SILVA, 1992, p. 141). Quer dizer: o próprio Proust, bem como um grande estudioso da
obra de Bergson, se opõem à tese de que o romance de Proust seria apenas uma espécie de “aplicação
literária” das ideias filosóficas de Bergson.
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Utilizarei doravante, seguindo a tradução mais corrente, experiência como correspondente a Erfahrung,
bem como vivência para corresponder ao termo Erlebnis.
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desta; com a vida sendo guiada pelo imediatismo, pela efemeridade do instante, a
vivência assume a dianteira, colaborando decisivamente com o declínio da experiência.
E o duelo entre experiência e vivência não se resolve através de uma simples
escolha: nosso tempo, guiado pelo modo de viver imposto pelo capitalismo, segundo
Benjamin, não comporta mais a experiência; para o reestabelecimento da possibilidade
de sua transmissão efetiva, haveria a necessidade de alguns pressupostos, os quais
podem ser localizados de modo preponderante, apenas, num regime pré-capitalista. A
título de exemplo, pode-se destacar a organização social baseada na coletividade (e não
na individualidade e na ruptura com uma tradição unificadora, caras ao mundo
capitalista); ou, do mesmo modo, um modo de produção ou organização do trabalho
baseado no artesanato, responsável por ditar o tempo e o ritmo da atividade humana de
modo geral (e não no modo de produção industrial, que nos impõe uma temporalidade
repetitiva e que extrapola todo e qualquer limite humano e nos produtos impessoais e
desumanizados produzidos no regime fabril); ou ainda, de maneira semelhante, a
transmissão de saberes práticos fundada na experiência da tradição (e não nos livros de
autoajuda, sempre entre os mais vendidos nas livrarias). Nesse contexto capitalista, no
qual impera a impossibilidade da realização plena da experiência, haveria a necessidade
de construir artificialmente novas formas de transmissão da experiência, ou do que
sobra de seu esfacelamento, construção esta que deve ser empreendida “justamente por
aqueles que reconheceram a impossibilidade da experiência tradicional na sociedade
moderna e que se recusam a se contentar com a privaticidade da experiência vivida
individual (Erlebnis)” (GAGNEBIN, 1994, p. 10). Proust é, para Benjamin, um dos
autores mais sensíveis a esta questão, sendo sua memória involuntária um exemplo
paradigmático de transmissão “artificial” da experiência. A respeito disso, Benjamin,
em seu ensaio sobre Proust, cita uma passagem de um autor chamado Max Unold, que
reproduzo aqui:
É, exatamente, por essas razões que Benjamin diz, ao final do trecho citado no
início desta seção, que a experiência nos moldes bergsonianos dificilmente se realizará
por meios naturais: as ideias de Bergson são demasiado idealizadas, não se aplicam à
realidade; Proust, por sua vez, encara a situação com mais lucidez e tenta recriar, na
medida do possível e sob as condições sociais vigentes, a experiência tal como Bergson
a concebera.
Benjamin segue sua análise a partir das noções que, de certo modo, funcionam
como pilares em relação às ideias sobre a memória de cada um dos autores, a saber, a
memória pura em Bergson e a memória involuntária em Proust, e buscará compreendê-
las à luz de sua própria teoria da experiência e da memória. Assim, de acordo com a
leitura benjaminiana, a “memória involuntária” do romance proustiano se diferencia da
“memória pura” bergsoniana precisamente quanto ao que iniciaria o processo de
rememoração: se para Bergson, há a sugestão de que “o recurso à presentificação
intuitiva do fluxo da vida seja uma questão de livre escolha” (BENJAMIN, 1989, p.
106), para Proust “fica por conta do acaso, se cada indivíduo adquire ou não uma
imagem de si mesmo7, e se pode ou não se apossar de sua própria experiência”
(BENJAMIN, 1989, p. 106).
Bergson, a certa altura de seu “Matéria e Memória”, diz que: “Para evocar o
passado em forma de imagem, é preciso poder abstrair-se da ação presente, é preciso
saber dar valor ao inútil, é preciso querer sonhar” (BERGSON, 1999, p. 90). Quer dizer:
o filósofo francês diz aqui que o ato de presentificar o passado depende do abstrair da
ação presente, do valorizar o inútil e do querer sonhar, ou seja, três verbos que
exprimem ações conscientes, que dependem do conhecimento e da intenção do sujeito
da ação. Ora, do ponto de vista proustiano, isso é inconcebível: tomemos, por exemplo,
a paradigmática cena da madeleine, lida ao fim do primeiro capítulo do primeiro volume
de Em busca do tempo perdido. Tratando-se de uma cena de suma importância tanto
para o romance quanto para a interpretação benjaminiana dele, talvez valesse um
esforço de reconstrução da mesma; muito estudiosos de Proust já o fizeram de forma
brilhante, dentre os quais destaco – e reproduzo – um, de autoria de Jeanne Marie
Gagnebin (2006, p. 145):
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Estas palavras fazem alusão ao título do ensaio sobre Proust, “A imagem de Proust”: uma das
interpretações possíveis da imagem da qual fala o título é, justamente, a ideia de uma imagem do passado,
continente da experiência.
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pela biologia; ao afastar Bergson de Proust, Benjamin também quebra, de certo modo, o
elo entre o romance de Proust e a investigação científica, garantido outrora pela relação
a Bergson. Ora, sabe-se que, para Benjamin, Proust não é simplesmente um escritor de
ficção; ele escreve, na verdade, sobre a realidade, porém através da ficção, e seria
importante, para garantir tal vínculo com a realidade, alguma conexão com a
investigação científica. Sem a garantia deste vínculo, Benjamin tem seu projeto de
utilizar a literatura como material para o estabelecimento de um conhecimento crítico
enfraquecido, uma vez que, se a literatura não possui sequer alguma ligação com a
realidade, ela não passa de mera ficção, restando a ela, simplesmente, se tornar objeto
de mera fruição estética. A saída encontrada por Benjamin para reestabelecer esta
ligação é aproximar algumas teses de outro pensador à obra de Proust, um médico
austríaco que se esforçava em consolidar uma nova ciência – no sentido de
Naturwissenchaft – que fazia claras referências à termodinâmica, ciência “modelo” da
época, em seu aparelho conceitual, chamado Sigmund Freud. Vejamos, então, como se
dá tal aproximação empreendida por Benjamin.
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Obviamente, o romance proustiano é também, mas não apenas, esta peça faltante. Atendo-me apenas
no plano das interpretações filosóficas da obra de Proust, basta folhear, por exemplo, o livro de Gilles
Deleuze, “Proust e os signos”, para se encontrar um contraponto interessante. Logo nas primeiras páginas,
o filósofo francês apresenta sua interpretação do romance de Proust, que pode ser resumida enquanto uma
desvalorização da memória e a caracterização da jornada do protagonista como um “relato de um
aprendizado” (DELEUZE, 2003, p. 3); ou seja, a leitura deleuziana é incompatível – mas nem por isso
menos plausível, já que é apoiada por bons argumentos – com a leitura benjaminiana. Para além de
discutir qual das interpretações é correta, pode-se apenas depreender a riqueza e a pluralidade de
interpretações possíveis do monumento romanesco proustiano.
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Referências