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OS MAIAS

Lê atentamente o texto que se segue.

“Vilaça, sem óculos, um pouco arrepiado, passava a ponta da toalha molhada


pelo pescoço, por trás da orelha, e ia dizendo:
− Então o nosso Carlinhos não gosta de esperar, hem? Já se sabe, é ele quem
governa… Mimos e mais mimos, naturalmente…
Mas o Teixeira, muito grave, muito sério, desiludiu o Sr. administrador. Mimos e
mais mimos, dizia Sua Senhoria? Coitadinho dele, que tinha sido educado com uma
vara de ferro! Se ele fosse a contar ao Sr. Vilaça! Não tinha a criança cinco anos já
dormia num quarto só, sem lamparina; e todas as manhãs, zás, para dentro de uma
tina de água fria, às vezes a gear lá fora… E outras barbaridades. Se não soubesse a
grande paixão do avô pela criança, havia de se dizer que a queria morta. Deus lhe
perdoe, ele, Teixeira, chegara a pensá-lo… Mas não, parece que era sistema inglês!
Deixava-o correr, cair, trepar às árvores, molhar-se, apanhar soalheiras, como um
filho de caseiro. E depois o rigor com as comidas! Só a certas horas e de certas
coisas… e às vezes a criancinha com os olhos abertos, a aguar! Muita, muita dureza!
E o Teixeira acrescentou:
− Enfim, era a vontade de Deus, saiu forte. Mas que nós aprovássemos a
educação que tem levado, isso nunca aprovámos, nem eu, nem a Gertrudes.
Olhou outra vez o relógio, preso por uma fita negra sobre o colete branco, deu
alguns passos lentos pelo quarto: depois, tomando de sobre a cama a sobrecasaca
do procurador, foi-lhe passando a escova pela gola, de leve e por amabilidade,
enquanto dizia, junto ao toucador onde o Vilaça acamava as duas longas repas
sobre a calva:
− Sabe Vossa Senhoria, apenas veio o mestre inglês, o que lhe ensinou? A
remar! A remar, Sr. Vilaça, como um barqueiro! Sem contar o trapézio, e as
habilidades de palhaço; eu nisso nem gosto de falar… Que eu sou o primeiro a dizê-
lo: o Brown é boa pessoa, calado, asseado, excelente músico. Mas é o que eu tenho
repetido à Gertrudes: pode ser muito bom para inglês, mas não é para ensinar um
fidalgo português… Não é. Vá Vossa Senhoria falar a esse respeito com a Sr.ª D. Ana
Silveira…
Bateram de manso à porta, o Teixeira emudeceu. Um escudeiro entrou, fez sinal
ao mordomo, tirou-lhe do braço respeitosamente a sobrecasaca, e ficou com ela
junto do toucador, onde o Vilaça, vermelho e apressado, lutava ainda com as repas
rebeldes.
O Teixeira, da porta, disse com o relógio na mão:
− É o jantar. Tem Vossa Senhoria dois minutos, Sr. Vilaça.
E o administrador daí a um momento abalava também, abotoando ainda o
casaco pelas escadas.
Os senhores já estavam todos na sala. Junto do fogão, onde as achas consumidas
morriam na cinza branca, o Brown percorria o Times. Carlos, a cavalo nos joelhos
do avô, contava-lhe uma grande história de rapazes e de bulhas; e ao pé o bom
abade Custódio, com o lenço de rapé esquecido nas mãos, escutava, de boca aberta,
num riso paternal e terno.
− Olhe quem ali vem abade – disse-lhe Afonso.
O abade voltou-se, e deu uma grande palmada na coxa:
− Esta é nova! Então é o nosso Vilaça! E não tinham dito nada! Venham de lá
esses ossos, homem!...
Carlos pulava nos joelhos do avô, muito divertido com aqueles longos abraços
que juntavam as duas cabeças dos velhos – uma com as repas achatadas sobre a
calva, outra com uma grande coroa aberta numa mata de cabelo branco.”
Eça de Queirós, Os Maias

1. Situa a acção no espaço e refere o motivo que levou Afonso da Maia a instalar-se
naquele local.

2. Explicita a expressividade das comparações usadas pelo Teixeira, quando este se


refere à educação de Carlos.

3. “Vá Vossa Senhoria falar a esse respeito com a Sr.ª D. Ana Silveira…”. Refere em
que medida a educação de Carlos e a de Eusebiozinho diferem e como é que essas
diferenças vão condicionar o futuro de ambos.

4. Explica a expressividade dos diminutivos sublinhados e dá exemplos de um uso


diferenciado, também nesta obra.

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