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GUARULHOS
2017
KATHLEEN FERREIRA ANGULO 1
GUARULHOS
2017
1
E-mail para contato: kathleenf.angulo@gmail.com
Angulo, Kathleen F.
Aprovação: ____/____/________
É chegada a hora de escrever as últimas linhas desse trabalho. A tarefa é difícil pelo
cansaço do momento, pelo receio em cometer alguma injustiça deixando alguém de lado e pela
incerteza do que será daqui para frente. Mas, ao mesmo tempo, é extremamente gratificante
olhar e perceber que consegui finalizar uma dissertação – cujo tema não costuma ser muito
apreciado pelos estratos acadêmicos - sobretudo se levarmos em conta o contexto político-
social que nos desanima e minhas frequentes frustrações com as Ciências Sociais, as quais me
levaram, por um bom tempo, a refletir sobre a minha inserção em outra área de estudos e
profissional. Assim, termino este trabalho com uma sensação de satisfação e orgulho pelo dever
cumprido.
Para conseguir chegar nestas linhas, o apoio do meu orientador, professor Daniel
Vazquez, foi fundamental. Sua acolhida ao projeto (muito criticado dentro das Ciências Sociais
por ser “pouco teórico”) e conhecimento na área de políticas públicas foram essenciais para que
eu acreditasse no potencial do trabalho e fosse estimulada a ler sobre assuntos que não me eram
próximos. Ademais, sua trajetória é exemplo de extrema competência em âmbito acadêmico,
mas também de comprometimento com a transformação social. Agradeço pela orientação, pelo
exemplo e pela figura de destaque na consolidação do campus Guarulhos da Unifesp, minha
instituição de origem e eterna no coração.
Agradeço à Universidade Federal de São Paulo, onde entrei nesse novo mundo e onde
espero que muitos outros também possam entrar. Universidade que, mesmo com todos seus
problemas, permitiu a muitos conquistarem pela primeira vez na família um diploma de
universidade pública ou até mesmo de uma universidade. Que os cursos se consolidem e
permitam a muita gente voar longe. Nesse sentido, agradeço a todos meus professores que me
guiaram nesse caminho fascinante e sem volta chamado Ciências Sociais. Ao professor
Humberto Alves, pelas aulas de métodos quantitativos, pelo livro de Estatística que me
emprestou e eu preciso devolver e pela humildade apesar do currículo que carrega. Ao professor
Bruno Comparato, pela orientação em dois anos de iniciação científica e monografia. À
professora Ana Lúcia Teixeira, pelas aulas magníficas de Max Weber e por ter me ajudado a
fazer o resgate da Bitoca. Ao professor Mauro Rovai, pelas aulas sempre estimulantes e pelo
exemplo de sensatez. À professora Márcia Consolim pela paixão por aquilo que pesquisa e
leciona e à professora Carolina Pulici pela seriedade, dedicação e exemplo de excelência
acadêmica (“sentar na cadeira e estudar até o quadril alargar”). À professora Liana de Paula
pela leitura do projeto de pesquisa.
Deixo aqui meus sinceros agradecimentos a todo corpo docente da Unifesp e aos
funcionários da casa, em especial o Rafael, por toda a ajuda desde o momento de ingresso no
mestrado.
Inevitável agradecer aos meus amigos de curso que vêm compartilhando comigo as
alegrias e os dilemas da área e os receios e revoltas pelo (temer)oso contexto brasileiro. Um
abraço especial a Fernando Filho, Raquel Conceição, Cláudia Garcia, Mônica Oliveira, Jéssica
Mello, Paula Bortolin, Iann Longhini, Ana Florice, Michelle Claro, Lillian Lino, Camila
Machado, Mônica Oliveira e Wilver Portela. Com boa parte destes já desenvolvi projetos muito
especiais como a organização da Semana de Ciências Sociais na época da graduação, a
organização da I Semana de Pós-graduação em Ciências Sociais da Unifesp, a revista Pensata
e a fundação da empresa júnior do curso de Ciências Sociais (Instituto Base Social). Que
consigamos sempre ir além.
A todos meus amigos por compreenderem meu afastamento e ausência. Que o Gabriel
me desculpe pelos convites que não aceitei. Que os amigos da época do IBGE perdoem minhas
faltas nos happy hours e aos amigos das escolas em que leciono pelo suporte e palavras de
motivação. Sou muito grata ao pessoal do Cursinho Livre da Norte, iniciativa que tive a
oportunidade de ajudar a construir. Um agradecimento especial a meus alunos, os quais dividem
comigo esse ambiente conturbado mas extremamente rico chamado escola.
Aproveito também para agradecer aos amigos que dividiram comigo o cotidiano que me
fez querer pesquisar mais sobre os Conselhos Tutelares na época da pesquisa Conhecendo a
Realidade – Edição 2011. Maria Carolina de Camargo Schilittler, Clarissa Inserra Bernini,
Thaísa Ferreira, Ariane Lima e Ricardo Paes, obrigada pela melhor época do CEATS.
À minha família pelo apoio e pelo ânimo que me deu quando eu já estava cansada. Às
minhas tias Shirley, Elizete, Regina, Salete e Silmara, obrigada! Aos meus avôs Dary e José (in
memoriam) pelos exemplos de gentileza e virtuosidade. À minha mãe por toda a garra com que
me criou e pela força que nos impressiona e por ser uma verdadeira comédia. Só tenho a
agradecer ao meu irmão Márcio, pelo incentivo à leitura desde que eu ainda não era gente, pelos
salgadinhos divididos na metade exata do pacote e pelos ensinamentos e exemplos, que saiba
que todo seu esforço pela minha educação valeu a pena. Meus agradecimentos à Dani por fazer
esta pessoa tão especial para mim feliz.
Apesar de ser a única “pessoa” que não poderá ler este texto por justamente não ser uma
pessoa, deixo registrados meus agradecimentos à minha companheira de todas as horas, a
Bitoca. Agradeço pela companhia, alegria e compreensão pela rotina cansativa de uma “mãe”
professora e mestranda.
Por fim, agradeço a quem chegou por último para me acompanhar pelo caminho, mas,
desde que me alcançou, tem sido o meu maior apoio. Ao meu companheiro Thiago Cantareli
pela tese formulada para o congresso sindical do IBGE (pela efetivação dos trabalhadores
temporários) e que não fez muito sucesso, pelas caronas, brigadeiros e conversas. Pelo amor e
apoio incondicional e por ter dito as coisas nas horas certas. Que vejamos juntos um dia um
futuro melhor para nós e para todos.
Pequeno perfil de um cidadão comum
Belchior
RESUMO
A criação dos Conselhos Tutelares (CTs) no Brasil foi estabelecida em 1990 junto com o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Captando as promessas de redemocratização, de
participação social e de reivindicação de direitos, os Conselhos foram pensados e delineados
como órgãos comunitários com representantes eleitos periodicamente, sendo responsáveis por
atribuições que vão desde o atendimento à criança e ao adolescente violado em seus direitos até
à busca pela prevenção da violação, como o assessoramento do Poder Executivo local na
elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da
criança e do adolescente. A literatura sobre o tema é produzida dentro de diversas áreas do
conhecimento – com predominância da área da saúde – e pouco trabalhada pelas Ciências
Sociais, sobretudo quanto à relação dos Conselhos Tutelares com as políticas públicas. De uma
forma geral, as pesquisas ressaltam a importância deste instrumento para a garantia dos direitos
do público infanto-juvenil, mas destacam que: i. os CTs não dispõem de infra-estrutura
adequada para a execução do trabalho, seja ela relacionada aos locais de atendimento, seja ela
relacionada à má formação dos conselheiros e sua baixa remuneração; ii. os CTs não têm seu
papel compreendido nem pela sociedade nem pelo setor público, o que cria uma série de
constrangimentos e dificuldades ao trabalho cotidiano; iii. os CTs têm se distanciado da
proposta prevista no ECA, uma vez que ainda reproduzem o ideário “menorista” e têm se
aproximado do Poder Judiciário em detrimento da aproximação com as comunidades locais e
movimentos sociais. Em busca de entender qual o papel dos Conselhos Tutelares na elaboração
das políticas públicas e quais os fatores para que um Conselho aja com esse fim, esta pesquisa
estudou cinco Conselhos Tutelares da cidade de Guarulhos (SP) durante o ano de 2017. Os
resultados apontam que, dada a fragilidade da relação com os canais da rede de atendimento
municipal, a pouca capacitação que os conselheiros recebem e a pouca regulação da política
pública da infância e da adolescência, os conselheiros executam seu trabalho mobilizando seus
repertórios pessoais, dando espaço à uma atuação despadronizada e com alto grau de
discricionariedade. Para chegar aos resultados, a pesquisa baseou-se em entrevistas
semiestruturadas, as quais possibilitaram a análise das redes sociais (ARS) dos conselheiros.
The creation of the Child Care Councils in Brazil was established in 1990 along with the
Child and Adolescent Statute (ECA). Capturing the promises of redemocratization, social
participation and the demand for rights, the Councils were thought and designed as community
bodies with representatives elected from time to time, being responsible for assignments
ranging from the care of children and adolescents violated in their rights to the search for the
prevention of violation, such as advising the local government in the development of the budget
proposal for plans and programs related to the rights of children and adolescents. The literature
on the subject is produced within several areas of knowledge - with a predominance of the
health area - and little worked by the Social Sciences, especially regarding the relation of the
Child Care Councils with the public policies. In general, the researches highlight the importance
of this instrument for guaranteeing the rights of children and youth, but note that: i. the Child
Care Councils do not have adequate infrastructure for the execution of the work, whether it is
related to the places of care or related to the poor formation of the counselors and their low
remuneration; ii. the Child Care Councils do not have their role understood neither by society
nor by the public sector, which creates a series of constraints and difficulties to the daily work;
iii. the Child Care Councils have distanced themselves from the ECA proposal, since they still
reproduce the "minorist" ideology and have approached the Judiciary to the detriment of the
rapprochement with local communities and social movements. In order to understand the role
of the Child Care Councils in the elaboration of public policies and the factors for a Council to
act for this purpose, this study studied five Child Care Councils of the city of Guarulhos (SP)
during the year 2017. The results point that, given the fragility of the relationship with the
channels of the municipal service network, the lack of training that the counselors receive, and
the poor regulation of public policy for children and adolescents, counselors carry out their
work by mobilizing their personal repertoires, giving space to a unadjusted and with a high
degree of discretion. To reach the results, the research was based on semi-structured interviews,
which made possible the analysis of the social networks (ARS) of the counselors.
Keywords: Child Care Council. Public Policy. Statute of the Child and Adolescent (ECA).
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
INTRODUÇÃO 14
1 . A INFÂNCIA E A ADOLESCÊNCIA NO BRASIL: CARIDADE, PUNITIVISMO E
PROTEÇÃO 22
1.1. HISTÓRICO DO TRATO DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA NO BRASIL 22
1.2. OS MOVIMENTOS SOCIAIS E O PROCESSO DE REDEMOCRATIZAÇÃO
BRASILEIRO 33
1.2.1. A CONSTITUIÇÃO DE 1988: A BASE DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE 34
1.2.2. O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOSLESCENTES E SUAS
PRERROGATIVAS 47
2. CONSELHOS TUTELARES: NOVOS ATORES EM CENA 55
2.1. CONSELHOS TUTELARES: CONCEITO E DESCRIÇÃO 55
2.2. O APARATO NORMATIVO DA POLÍTICA DE PROTEÇÃO E AS AÇÕES DOS
CONSELHOS TUTELARES 61
2.3. O PAPEL DOS CONSELHEIROS TUTELARES A PARTIR DO CONCEITO DE
“BUROCRATAS DE NÍVEL DE RUA” (STREET LEVEL BUREAUCRACY) NA
IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS 82
2.4. REVISÃO DA LITERATURA ESPECÍFICA SOBRE OS CONSELHOS
TUTELARES 87
2.5. 27 ANOS DE ECA E DE CONSELHOS: DIAGNÓSTICOS 103
3. ESTUDO DE CASO SOBRE OS CONSELHOS TUTELARES DE GUARULHOS:
FATORES INSTITUCIONAIS, ORGANIZACIONAIS E RELACIONAIS 112
3.1. O MUNICÍPIO DE GUARULHOS 113
3.2. OS CONSELHOS TUTELARES DE GUARULHOS 129
3.2.1. BREVE REFLEXÃO SOBRE AS DIFICULDADES DA PESQUISA 131
3.2.2. ANÁLISE DOS CONTEXTOS INSTITUCIONAIS/ORGANIZACIONAIS 135
3.2. FATORES RELACIONAIS: O PAPEL DAS REDES SOCIAIS E DO PERFIL
DOS CONSELHEIROS TUTELARES NA ELABORAÇÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS 149
3.2.1. OS CONSELHEIROS TUTELARES POR ELES PRÓPRIOS: TRAJETÓRIAS
E SIGNIFICAÇÃO ÀS SUA AÇÕES 153
CONCLUSÃO 185
REFERÊNCIAS 194
ANEXO A - REPRESENTAÇÃO VISUAL DE GUARULHOS E AS DIFERENÇAS
ENTRE OS BAIRROS (BAIRROS DO CENTRO À ESQUERDA DO AEROPORTO
INTERNACIONAL). 198
ANEXO B – ROTEIRO PARA ENTREVISTAS INDIVIDUAIS COM OS
CONSELHEIROS TUTELARES 200
14
INTRODUÇÃO
Os estudos sobre Conselhos Tutelares têm ganhado cada vez mais novas reflexões,
recortes temporais e espaciais diferentes, bem como têm sido desenvolvidos em diferentes áreas
do conhecimento. Mas, apesar do crescimento das pesquisas nas últimas décadas no Brasil, os
trabalhos acadêmicos sobre Conselhos Tutelares ainda são incipientes, dada a grande
fragmentação organizacional e temática.
Se voltarmos nossa atenção para a literatura que as Ciências Sociais têm produzido acerca
do assunto, perceberemos o pequeno espaço que é atribuído ao tema na área. De forma geral,
os trabalhos que estudam os Conselhos Tutelares no Brasil estão mais voltados à análise da
atuação do Conselho Tutelar em si e em suas interfaces com a violência; a democracia, os
direitos e a cidadania; a educação; a família e a recuperação física/psicológica do(a)
criança/adolescente cujos direitos foram violados. Algumas pesquisas têm realizado
diagnósticos importantes acerca do funcionamento dos Conselhos, como a incapacidade de
tratar das demandas pelas quais são responsáveis, a pouca estrutura da qual dispõem para o
trabalho, a falta de capacitação para exercer o trabalho de conselheiro, a pouca participação dos
Conselhos Tutelares numa forma de atuação conjunta com outros atores políticos dos
municípios brasileiros. De acordo com Lafer (2010), a literatura tem se dedicado a fazer uma
análise normativa no tocante a qual deve ser predominantemente o papel e o foco da intervenção
dos Conselhos Tutelares, sem realizar uma leitura mais crítica no tocante ao papel dos
Conselhos.
Notamos uma grande lacuna no sentido de buscar entender os fatores decisivos para a
participação ativa dos Conselhos na produção das políticas públicas voltadas ao segmento
infanto-juvenil. Como veremos adiante, os Conselhos Tutelares foram idealizados em um
contexto de engajamento civil, reabertura política, incentivo à participação política e
descentralização político-administrativa. Dessa maneira, foram pensados e delineados para
serem um órgão capaz de entender as limitações e necessidades dos municípios onde estão
instalados e cobrarem o Executivo municipal para o provimento de políticas públicas anteriores
à violação de direitos propriamente dita. Ou seja, por serem atores que atuam na ponta,
poderiam e deveriam, mais do que nenhum outro, transformar as demandas observadas em seu
cotidiano de trabalho em ações preventivas das violações.
Há, portanto, uma grande lacuna nos estudos empíricos sobre a atuação dos Conselhos
interligada com a exigência por políticas públicas. Assim, percebe-se um espaço na agenda de
15
pesquisa para as análises sobre Conselhos Tutelares e sua capacidade de articulação política
junto ao poder público e às demais políticas setoriais. A lacuna parece ser ainda maior quando
tentamos buscar os esforços teóricos para a compreensão do papel dos Conselhos Tutelares e
dos conselheiros tutelares. Conforme trabalharemos adiante, no estudo do tema, foi necessário
mobilizar a literatura sobre movimentos sociais, sobre políticas públicas e sobre conselhos
gestores, com o intuito de tratar dos seguintes problemas de pesquisa: como os diferentes
Conselhos organizam-se de forma a transformar suas demandas em diagnósticos e exigências
de políticas que alterem o quadro das violações? Como os conselheiros tutelares agem, o que
influencia e constrange suas ações e discricionariedade?
cobrando o Executivo? No limite, são os conselheiros quem decidem, e por isso, nosso estudo
voltou-se para eles e as questões acima nortearam o desenvolvimento da pesquisa.
Além disso, devemos observar se estas questões podem nos ajudar a entender aquilo que
influencia e impacta diretamente as escolhas que os conselheiros fazem e as questões que
condicionam sua própria maneira de enxergar as políticas e atuar sobre elas.
Por partilharem tanto do mundo das políticas públicas (do Estado) como o mundo dos
usuários (da comunidade), estes agentes e as instituições onde estão inseridos tornam-se um
objeto interessante para ilustrar o processo de construção das políticas públicas, na medida em
que podem efetivar a mediação entre Estado e sociedade civil, justamente por serem eleitos pela
população do município para atuar dentro do Estado. Pretende-se analisar como as regras e
2
Conforme explicado adiante, a cidade de Guarulhos conta com seis Conselhos Tutelares em funcionamento.
Todavia, por limitações da pesquisa, não foi possível realizar as entrevistas em um dos CTs da cidade.
17
instituições colocadas pela política pública produzem incentivos (ou não) para a atuação dos
Conselhos Tutelares e dos seus conselheiros.
O levantamento teórico permitiu a formulação das questões que seriam levadas à pesquisa
de campo. Assim, o passo seguinte foi elaborar os procedimentos para a coleta dos dados, a
qual foi produto da análise de entrevistas semiestruturadas com os conselheiros tutelares.
3
Cada Conselho Tutelar conta com cinco conselheiros em sua equipe. Estivemos presente nos seis CTs da cidade,
todavia, não foi possível encontrar todos os conselheiros, alguns conselheiros não quiseram conceder as entrevistas
e outros não permitiram que as conversas realizadas fossem utilizadas na dissertação. Dessa forma, tivemos 12
entrevistas num universo de 30 conselheiros no âmbito municipal.
4
O questionário aplicado com os conselheiros está no anexo B.
19
O levantamento das redes sociais baseou-se em informações oriundas das entrevistas com
os próprios elos das redes, os conselheiros tutelares no caso. Assim, as informações foram de
origem cognitiva, baseadas no entendimento dos próprios indivíduos a respeito de suas redes
(Marques, 2008). Após o levantamento das redes sociais, foram utilizadas ferramentas
específicas para análise de redes sociais5, que nos permitiram observar tanto dados relativos aos
atributos anteriormente elencados como medidas das próprias redes.
5
Os softwares utilizados para análise foram o Egonet e o Ucinet.
21
Neste capítulo, buscaremos abordar o contexto que deu possibilidade ao advento dos
Conselhos Tutelares. Seguiremos uma linha cronológica sobretudo para demonstrar as
transformações ocorridas no trato dos direitos sociais e, especificamente, dos direitos infanto-
juvenis. Por isso, abordaremos o histórico de proteção à infância e à adolescência no Brasil com
os extintos Códigos de Menores e o período de redemocratização brasileiro com o processo da
Assembleia Nacional Constituinte e os movimentos que deram vozes às demandas dos grupos
subjugados na época da ditadura militar. Também veremos brevemente a explicação da
literatura acerca destes movimentos sociais e, por último, trataremos da normativa que criou os
Conselhos Tutelares: o Estatuto da Criança e do Adolescente.
No Brasil, a primeira Santa Casa foi fundada no ano de 1543, na Capitania de São
Vicente (Vila de Santos). Estas instituições atuavam tanto com os doentes quanto
com os órfãos e desprovidos. O sistema da Roda das Santas Casas, vindo da
Europa no século XIX, tinha o objetivo de amparar as crianças abandonadas e de
recolher donativos. A Roda constituía-se de um cilindro oco de madeira que girava
em torno do próprio eixo com uma abertura em uma das faces, alocada em um tipo
de janela onde eram colocados os bebês. A estrutura física da Roda privilegiava o
anonimato das mães, que não podiam, pelos padrões da época, assumir
publicamente a condição de mães solteiras. Mais tarde em 1927 o Código de
Menores proibiu o sistema das Rodas, de modo a que os bebês fossem entregues
diretamente a pessoas destas entidades, mesmo que o anonimato dos pais fosse
garantido. O registro da criança era uma outra obrigatoriedade deste novo
procedimento. (LORENZI, 2017, p.01).
de atenção a questão das crianças no trabalho das fábricas e o abandono das crianças, que
transitavam pelas ruas passando fome e, não raramente, cometendo delitos.
As imagens acima ilustram como a questão da infância e adolescência era vista dentro da
dimensão caritativa, não se questionando o porquê da desestruturação da família da criança, as
condições em que esta vivia e nem produzindo ações para o rompimento do ciclo do abandono.
Mais ainda: ressalta-se a figura do delegado para tratar destas questões. Dessa feita, por boa
parte do século XX, o Brasil esteve longe de encarar a questão como de seguridade social.
O Código de Menores tinha como público-alvo não todas as crianças, e sim apenas
aquelas tidas como em “situação irregular” – os chamados “menores”. Além de regulamentar
questões como trabalho infantil, tutela e pátrio poder, deliquência e liberdade vigiada, o referido
Código revestia de grande poder a figura do juiz, sendo que o destino de muitas crianças e
adolescentes ficava a mercê de seu julgamento e ética. Trabalhos como o de Veronese (2003)
e Mariano (2006) indicam a predominância que a área jurídica mantinha sobre o assunto. Como
indicado pelos autores, o campo jurídico tornara-se uma das principais arenas de “resolução”
do “problema dos menores” e essa forte associação consolidou o emprego do termo “menor”
para além da esfera jurídica, passando a ser utilizado para identificar a ampla categoria que
6
O Código de Menores de 1927 teve vida longa: sofreu modificações referentes à questão da prática de ato
infracional (neste aspecto, houve modificações implementadas pelo Código Penal de 1940 e pela Lei 5.258 de
1967 que rebaixou a idade penal para 16 anos e restabeleceu o critério de discernimento para os sujeitos entre 16
e 18 anos – abolido do sistema jurídico brasileiro desde 1921. Tal alteração provocou manifestações e reações
contrárias, principalmente no âmbito jurídico. Em razão da celeuma provocada, em 1968, restabeleceu-se a idade
de 18 anos para a responsabilização penal; foi revisto em 1979, período da ditadura militar, sendo que a revisão
do texto não rompeu com sua linha original de arbitrariedade, assistencialismo e repressão; até ser superado com
a promulgação do ECA.
28
Com a instauração da ditadura do Estado Novo em 1937 (Getúlio Vargas), o Brasil vive
o paradoxo do reconhecimento dos direitos sociais por parte do Estado, gerando o que
Wanderley Guilherme dos Santos chamou de “cidadania regulada”, segundo o qual o agente
estatal reconhece como cidadãos aqueles que têm sua ocupação regularizada, espalhando pela
cultura cívica do país a noção de cidadania vinculada ao Estado.
Tais aspectos influenciaram o período subsequente, chamado por Perez e Passone (2010,
p.04) de “democracia populista” (1945-1964).
Segundo Faleiros (1995, p. 72), com o período democrático "inicia-se uma estratégia de
preservação da saúde da criança e de participação da comunidade, e não somente repressiva
e assistencialista". Ganham notoriedade nesse período o discurso das agências multilaterais
7
Para uma leitura mais atenta acerca dos usos do discurso sobre a criança e o adolescente estigmatizados pelo
termo “menor”, principalmente pela mídia, ver PEREIRA E MIRANDA, 2003
http://www.unilestemg.br/revistaonline/volumes/02/downloads/artigo_03.pdf.
29
como o Fundo das Nações Unidas para a Infância – Unicef – e a Organização das Nações Unidas
para Agricultura e Alimentação – FAO, sobretudo com o mundo abalado pela experiência da II
Guerra Mundial.
Para Rizzini (1995), o contraste do marco histórico dos direitos universais da criança com
a realidade brasileira deixou evidente a diferença com que legisladores, juristas e setores do
executivos encaravam a questão da infância e da adolescência no Brasil: "menor como objeto
do direito penal"e os que denfendiam o "menor enquanto sujeito de direitos" (Rizzini, 1995, p.
146).
Por mais que o período de 1945 a 1964 tivesse as características supracitadas, foi
justamente este período que representou os 20 anos de avanço da democracia no Brasil. O golpe
militar de 64 instituiu a ditadura militar e estabeleceu novas diretrizes para a vida em sociedade
e para a relação desta com o Estado. A presença autoritária do Estado tornou-se realidade, houve
recuo em relação aos direitos sociais e os atos institucionais permitiam punições,
marginalizações e exclusões. A nova Carta Magna do país trazida pelo período perpetuou a
prática que seria considerada correta para o período, a prática da exceção.
Quanto ao primeiro ponto, o juiz de menores era a autoridade judiciária competente para
aplicar medidas de “assistência e proteção”, previstas na Lei no 6.697/79, a todos aqueles que
tinham menos de 18 anos de idade. Nesse sentido, o tratamento da questão tinha sua linguagem
própria e o campo de atuação era fechado para o restante da sociedade. Este destaque é
importante, pois uma das funções do Conselho Tutelar é justamente desjudicializar o trato da
31
Adotado no final do século XIX com o objetivo de indicar o limite de idade, o termo
“menor”, com o tempo, passou a ser usado com uma conotação pejorativa, com o intuito de
indicar as “crianças e adolescentes pobres das cidades” (LONDOÑO, 1991). Portanto,
“...mesmo que para as áreas envolvidas diretamente com crianças o termo tivesse uma
definição precisa, a divulgação de ‘menor’ e sua utilização cada vez mais frequente pela
sociedade em geral contribuíram para a produção de uma visão normalmente confusa e
estigmatizante.” (MORELLI, 1997, p. 86).
período foram, em linhas gerais, guiadas por diferentes concepções de infância e adolescência,
além de diferentes concepções acerca da responsabilidade pelos direitos infanto-juvenis. A
seguir, a figura indica as mudanças nas leis de proteção à infância e adolescência:
partir da observância desses itens, trataremos agora do elemento que possibilitou a promulgação
do Estatuto da Criança e do Adolescente: a Constituição de 1988 e seu contexto político-social.
Durante o regime militar, havia no Brasil uma fronteira nítida que distinguia os grupos
sociais oficialmente legítimos daqueles a serem banidos da convivência pública. Como
consequência do autoritarismo do sistema político e do bloqueio seletivo do acesso à
legitimidade pública, alguns dos segmentos sociais puderam se articular somente na decadência
do regime militar (FELTRAN, 2008). Foi na decadência do período ditatorial que o país
retomou seu longo processo de construção democrática, impulsionado, principalmente, pelos
“novos movimentos sociais”, atores populares que reivindicavam, entre outras coisas, a
possibilidade de expressar publicamente suas identidades e interesses. Na década de 1980,
portanto, ficou expressa a demanda por maior participação política. Para os movimentos sociais
da época, a possibilidade de votar em seus representantes não era o único passo para a
construção de uma sociedade democrática. Havia também a necessidade de outras formas de
participação política, de maneiras mais diretas, de modo que a população fosse ativa na vida
pública e não apenas representada (BENEVIDES, 1991).
A ampliação da política para além dos marcos institucionais atraiu boa parte da literatura
política da época, e é através de sua análise que é possível captar a promessa de democratização
social que brotava no Brasil no período. Sader (1988, p.312) refere-se à “ampliação” da política
a partir da criação de “uma nova concepção da política, constituída a partir das questões da
vida cotidiana e da direta intervenção dos interessados”. Tilman Evers (1984, p.12-13)
acrescenta que “os esforços das ditaduras militares para suprimir a participação política (...)
tiveram o efeito exatamente oposto de politizar as primeiras manifestações sociais por
moradia, consumo, cultura popular e religião”. Boaventura de Souza Santos (1994, p.225)
argumenta que “a novidade dos novos movimentos sociais não reside na recusa da política,
mas, pelo contrário, no alargamento da política para além do marco liberal da dicotomia entre
Estado e sociedade civil”.
Pela face autoritária do sistema político e pelo bloqueio seletivo do acesso à legitimidade
pública, alguns dos segmentos sociais puderam se articular somente na decadência do regime
militar. A estes principais atores populares que reivindicavam, entre outras coisas, a
possibilidade de expressar publicamente suas identidades e interesses, deu-se o nome de “novos
movimentos sociais” (Paoli, 1995).
34
Feltran (2008) ressalta que as falas destes atores permitiram mesmo que se conformasse
no país uma espécie de “contra esfera pública8”, a qual abriu espaços renovados de discussão
pública sobre os parâmetros da construção democrática.
A aparição pública dos movimentos populares renovava a cena nacional de disputas pelo
poder, inclusive pelo poder do Estado. Deste modo, boa parte da análise política da época
voltou-se para esta “politização dos cotidianos”. Os atores populares nascentes foram nomeados
como novos “sujeitos políticos”, dos movimentos sociais brotava a promessa de
democratização social.
o movimento social da infância tem sua origem na própria ampliação das bases da
cidadania, incluindo na pauta política a defesa de segmentos tradicionalmente
marginalizados, para a construção de um Estado Democrático de Direitos no Brasil
e temáticas afeitas aos direitos fundamentais da população, como saneamento,
moradia, educação e custo de vida. (CARDOSO, 2010, p. 32).
8
Segundo o autor, ele empresta a expressão de Habermas (1992), que de algum modo já antecipa a crítica que
Fraser (1995) elaboraria à sua noção de espaço público dos anos 1960. Na literatura brasileira, Costa (1997) já
usou a noção habermasiana de “contra esfera pública” ou “esfera pública alternativa” para pensar a transição de
regime.
9
ARRETCHE, Marta. Prefácio. In: VAZQUEZ, Daniel Arias. Execução local sob regulação federal: impactos
da LRF, FUNDEF e SUS nos municípios brasileiros. São Paulo: Annablume, 2012.
35
Antes de Constituição,
III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas
rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes
nos prazos fixados em lei;
10
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 35. ed. São Paulo:
36
Segundo LUSTOSA (1999), a descentralização como tendência tem se colocado sob duas
formas. Na primeira, constitui-se como uma das estratégias idealizadas pelos governos
neoliberais para diminuir a ação do Estado no campo social, com a finalidade de reduzir os
gastos públicos nesse setor. A segunda contrapõe-se ao ideário neoliberal, apresenta propostas
Saraiva, 2005.
11
“Segundo Tocqueville (1937), a proximidade cria mecanismos que tornariam os governos mais responsivos às
preferências dos cidadãos, cabendo ao governo central ações que atendem aos interesses da nação como um
todo.
37
Arretche (2012, p.15) alerta para o risco de analisar o federalismo brasileiro sob a
premissa da ausência de coordenação do governo central e a grande autonomia dos governos
locais. De acordo com a autora, algumas pesquisas haviam carregado a tinta em relação à
suposta fraqueza do Estado central:
adolescente. Esse trabalho, segundo o ECA, deve ser feito pelo Conselho Nacional dos Direitos
da Criança de Adolescente (CONANDA).
Aos estados cabe aplicar tais princípios e regras à sua realidade, numa relação de
articulação com o objetivo de unir os esforços desenvolvidos por ambas as esferas de governo.
Tal trabalho deve também ser colocado em prática por uma instância colegiada, o Conselho
Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA).
A partir deste ponto, demonstraremos como esse desenho foi construído e articulado
durante o processo da Assembleia Nacional Constituinte e quais os principais atores envolvidos
nesse processo.
12
Os trabalhos na ANC foram iniciados em 1º de fevereiro de 1987, com a participação dos parlamentares eleitos
no pleito de 15 de novembro de 1986 (OLIVEIRA, 1993, p.11) e se estenderam até 05 de outubro de 1988, com a
promulgação da Constituição. Foram 487 deputados federais e 49 senadores, assim como mais 23 dos 25 senadores
que foram eleitos em 1982. No total, 559 parlamentares participaram da instação da ANC, com destaque para o
deputado federal Ulysses Guimarães (PMDB-SP), eleito presidente da Assembleia em fevereiro de 1987.
39
De acordo com Brandão (2011, p.98), não só as pautas dos movimentos sociais
chamavam a atenção, mas também seu repertório de ação, que esteve intimamente relacionado
ao próprio processo da Constituinte. O autor analisa que:
Vimos, então, que o período que compreende o final da década de 1970 e o início de 1980
foi marcado pelo surgimento, na cena pública, de grupos sociais até então excluídos das esferas
de decisões, dado o autoritarismo político em vigor no regime militar. Tais grupos, ao
reivindicarem publicamente a superação de suas carências específicas, passaram a interferir na
discussão pública e a constituir espaços para a construção democrática, pautada por liberdades
civis e políticas.
Segundo Feltran (2007), tais grupos eram caracterizados pelos seguintes segmentos
sociais:
Brandão (2011, p.99), em seu estudo sobre a articulação dos movimentos sociais com a
política institucional da Assembleia Nacional Constituinte, destaca que alguns grupos sociais
13
ASSIS, S. G.; SILVEIRA, L. M. B.; BARCINSKI, M.; SANTOS B. R. Teoria e prática dos conselhos
tutelares e conselhos dos direitos da criança e do adolescente. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2009.
41
deram depoimento público pela primeira vez no país: “O Brasil mostrou sua cara, sonhos e
reivindicações”. 14 Especificamente, segundo o autor, os grupos em torno dos direitos da criança
e do adolescente realizaram uma série de intervenções no processo da Constituinte. No dia 07
de abril de 1987,
14
“O processo constituinte”. Assembleia Nacional Constituinte, 1987-1988. Separatas de discursos, pareceres e
projetos. No. 26. Apud BACKES, Ana Luiza & AZEVEDO, Débora Bithiah de (org.). A sociedade no
parlamento: imagens da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988. Brasília: Câmara dos Deputados,
Edições Câmara, 2008, p.74.
15
Constituinte tem lobby de criança. Correio Braziliense, Brasília, p. 17, publicado em 01 de abr. de 1987.
Acesso em: 15 de outubro de 2017. Disponível em:
http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/115353/1987_01%20a%2007%20de%20Abril_014.pdf?seq
uence=1.
42
Brandão (2011), afirma que o mês de maio de 1988 foi o mês com maior número de
demonstrações e caravanas a Brasília. O Movimento Nacional dos Meninos de Rua, junto com
a Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo e com a Comissão Ecumênica do Menor,
“organizou duas manifestações simultâneas no dia 24 de maio, reunindo mil crianças nos
gramados do Congresso Nacional e outras 1.000 crianças na praça da Sé (em São Paulo) para
pressionarem os constituintes a votarem em prol dos direitos das crianças e adolescentes.”
(BRANDÃO, 2011, p. 132).
O autor ressalta que as manifestações das organizações da sociedade civil não tiveram
uma trajetória uniforme e linear de intervenções durante a Constituinte, tendo períodos com
picos de agitação e períodos menos intensos. Tal descrição aplica-se ao caso do pico de
mobilização para a entrega das emendas populares e a falta de engajamento na época da defesa
das mesmas emendas. As galerias, na época da defesa das emendas, estiveram “tão ou mais
vazias que o plenário” (BRANDÃO, 2011, p.109) , com exceção de um dia:
O único dia em que elas encheram, chamando a atenção do senador Afonso Arinos
(PFL – RJ), presidente da Comissão de Sistematização, foi no dia da defesa das
emendas sobre direitos da criança e do adolescente, e sobre ensino público e
gratuito, quando a Fundação Educacional do Distrito Federal levou uma comitiva
de mais de 400 crianças para assistir à reunião. (BRANDÃO, 2011, p.109).
No dia 02 de setembro de 1987, Brasília voltou a ser palco das manifestações das crianças,
pois foi o dia da defesa das emendas sobre os direitos infanto-juvenis. O relator da Comissão
de Sistematização, Bernardo Cabral, teria ficado impressionado com os argumentos e a
mobilização. As entidades “Comissão Nacional Criança Constituinte” e “Fórum Permanente
de Entidades Não Governamentais” ficaram encarregadas de elaborarem um texto síntese de
43
duas emendas populares, as quais, juntas, reuniam 123.355 assinaturas. Bernardo Cabral
garantiu às entidades que iria incluir um capítulo específico sobre os direitos das crianças e dos
adolescentes em seu novo substitutivo. Sobre o texto apresentado pelas entidades, o relator fez
apenas uma única restrição:
“Isto eu não vou colocar”, disse Cabral [...] apontando o parágrafo segundo, que
considera inimputáveis penalmente os menores de 18 anos. “Se eu colocar isto,
vai ser derrubado em plenário. É melhor ficar como está, pois isto o Código Penal
garante”, afirmou sem a concordância dos três interlocutores16. “Vamos garantir
também este artigo”, afirmou [o deputado Nelson Aguiar], depois da entrega da
emenda. Ao fim, a emenda obteve apoio também de todas as lideranças partidárias
na Constituinte, colhendo ainda 184 assinaturas dos parlamentares e
exemplificando um dos casos de maior sucesso das campanhas pelas emendas
populares. (BRANDÃO, 2011, p.110).
O autor versa sobre uma demanda-chave dos movimentos sociais que atuaram antes,
durante e após a Constituinte: o reconhecimento. Por que alguns atores voltariam sua atenção
para investirem na dinâmica social? Norteando-se por Pierre Bourdieu, cujo trabalho apontou
que a busca por reconhecimento é o cerne da “disposição durável para investir no jogo
social”17, Brandão (2011, p.26) afirma que o reconhecimento é central para a ação dos atores
sociais
[...]em função do fato de que, dado que o homem sabe que é mortal e que esta ideia
lhe é insuportável, ele seria um ser sem razão de ser. O homem teria, portanto, essa
urgência de justificação, de legitimação e de reconhecimento da sua existência. Na
ausência de Deus, seria, cada vez mais, o mundo social o único a oferecer, aos
homens, uma justificativa para existir: o reconhecimento.
16
Deputado Nelson Aguiar (PMDB – ES), Vital Didonet (Comissão Nacional Criança Constituinte) e Deodato
Rivera (Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais).
17
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Trad. de Sérgio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2ª ed.,
2007, p.177-179.
44
lograram resultados positivos, justamente para evitar a suposição de que tais organizações
tivessem surgido espontaneamente. Em outras palavras, por mais que este capítulo tenha
começado com a caracterização do período vivido sob o Código de Menores pela chave da
caridade e da repressão para, depois, passar a abordar a CF de 88 como a base da proteção social
de crianças e adolescentes, defendemos que a análise do tema deve considerar os elementos
contraditórios que co-existem ao longo do processo histórico (27 anos após a promulgação do
ECA, ainda têm força vários elementos conservadores). Por esse motivo, é importante buscar
entender como e por que, em determinados momentos históricos, existem ciclos de intensa
mobilização.
[...] Teoria do Processo Político: Charles Tilly elaborou em seu livro From
Mobilization to Revolution (1978) a ideia de Estruturas de Oportunidades Políticas
(EOP). Para o autor, é necessário sempre analisar o conjunto de oportunidades e
ameaças presentes no mundo que cerca o movimento/indivíduos e que tem alguma
probabilidade de afetar o bem-estar e o sucesso dos atores. Dessa forma, do lado
da oportunidade, deve-se identificar a extensão da vulnerabilidade de outros
grupos (incluindo governos) em relação às novas demandas que poderiam, se bem
sucedidas, aumentar a realização dos interesses do contestador. Já do lado das
ameaças, é preciso atentar em que medida outros grupos ameaçam realizar
demandas que, se bem sucedidas, irão reduzir a realização dos interesses do
contestador. Dessa forma, em certos momentos históricos – como defendo [...] que
é o caso da Constituinte [...] -, abre-se uma janela de oportunidades políticas que,
se bem percebidas e interpretadas pelos movimentos sociais e pela população
potencialmente ativa, podem estimular o surgimento e a ebulição de novas
mobilizações sociais. (BRANDÃO, 2011, p. 24).
18
No período entre 1980 e 1993, o Brasil teve “54 mudanças na política de preços; 21 propostas de pagamento da
dívida externa; 16 políticas salariais; 11 índices de preços; 9 planos de estabilização econômica; 5 congelamentos
de preços e salários; e 4 moedas diferentes”. (NETO, 2011, p.08, apud BRANDÃO, 2011, p.35).
45
Apesar de os movimentos sociais terem sido aceitos na cena pública como portadores de
interesses legítimos ao reivindicarem bens sociais publicamente e de terem forjado ações
específicas de ruptura com o autoritarismo político, é importante ressaltar que os mesmos se
19
Francisco Weffort (1992) analisa a transição democrática brasileira sob a ótica das “novas democracias”. “[...]
as ‘novas democracias’ são aquelas cuja construção ocorre em meio às condições políticas de uma transição na
qual foi impossível a completa eliminação do passado autoritário. Além disso, essa construção se dá em meio às
circunstâncias criadas por uma crise social e econômica que acentua as situações de desigualdade social extrema,
bem como de crescente igualdade.” (WEFFORT, 1992, p.85, apud LOUBACK, 2016, p. 69).
46
constituíam como coletividades formadas por uma pluralidade de atores sociais (MELUCCI,
1996; DIANI, 1992). Desta forma, nunca foram hegemônicos, uma vez que se baseavam em
identidades compartilhadas construídas através de relações de conflito e interação.
Nesse período, grande parte da literatura da sociologia e da ciência política voltou seu
olhar para os primeiros passos da democracia institucional. Houve, portanto, o deslocamento
do estudo do tema movimentos sociais para o conjunto de parcerias, conselhos, relações entre
sociedade civil e governos, ou seja, em apostas na ação conjunta entre sociedade civil e Estado.
É exemplar desta migração temática a enorme produção de pesquisas sobre os Orçamentos
Participativos e os Conselhos Gestores, simultânea à gradativa redução do tema “movimentos
sociais” da pauta acadêmica (OTTMAN, 1995).
Por outro lado, há uma leitura que não entende como uma dicotomia a relação entre
Estado e sociedade civil por reconhecer a heterogeneidade desta última. Segundo Gurza-
Lavallle (2012, p. 178), “tornou-se consenso nos últimos anos que as interpretações mais
influentes da sociedade civil carregaram as tintas na estilização normativa da sociedade civil,
47
Para Dagnino, Olvera e Panfichi (2006) e Carlos (2011), a relação sociedade – Estado
combinaria elementos contraditórios em vez de constituírem modelos puros, coerentes e
estáveis. Assim, o engajamento dos atores coletivos constitutivos de instituições participativas
seria acompanhado de processos de reelaboração e ressignificação discursiva acerca da relação
sociedade – Estado, caracterizados por linguagens de contestação e cooperação.
Por mais que a matriz teórica dos movimentos sociais não seja a base para esta
dissertação, as colocações que foram brevemente apresentadas acima colocam-nos questões que
pretendemos trabalhar nos capítulos seguintes, tais como a busca pela compreensão do
potencial transformador dos Conselhos Tutelares idealizado pelo ECA.
Outro ponto fundamental trazido pela Constituição Federal foi o artigo 227, que
introduziu a doutrina de proteção integral à criança e ao adolescente no ordenamento jurídico
brasileiro, e que foi regulamentado pela Lei Federal 8.069/1990, que dispõe sobre o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), regulando, especificamente, os direitos do público infanto-
juvenil em âmbito nacional, distrital, estadual e municipal.
Foram quase dez anos de discussões em espaços variados, até que, em 1999, em torno
dessas premissas, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda,
durante a III Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, consagrou a
expressão “garantia de direitos” e convencionou a denominação “Sistema de Garantias de
Direitos” (SGD). Posteriormente, esse Sistema seria institucionalizado através da Resolução
113 de 19 de abril de 2006, em que o Conanda dispôs sobre os parâmetros do chamado “Sistema
de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente” (SGDCA).
Mesmo havendo eixos diferentes, em alguns pontos as atribuições dos atores que
compõem o SGDCA se confundem, na medida em que os Conselhos dos Direitos (eixo
controle) exercem típica função defensora, como, por exemplo, quando tomam providências
junto ao Ministério Público, diante de uma denúncia de ausência de vagas em creches ou de
atendimento inadequado na área da saúde, que envolva crianças e adolescentes de um
município. Ao mesmo tempo, os Conselhos Tutelares atuam em funções tipicamente
controladoras, quando fiscalizam entidades de atendimento e/ou assessoram o poder público
local na elaboração das peças orçamentárias destes.
fim ou objetivo central – definido como garantia de direitos –, o mesmo constitui uma unidade
completa” (SÊDA, 2008, p.223).
Além de prever que os atores família, Estado e sociedade agissem conjuntamente, são
instituídos os Conselhos dos direitos da Criança e do Adolescente, órgãos paritários e
deliberativos sobre todas as políticas públicas da área da infância, nos níveis municipal
(CMDCA, que possuem e gerenciam autonomamente dotação orçamentária própria, o Fundo
Municipal da Criança e do Adolescente - FUMCAD); estadual (CONDECAs) e nacional
(Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, CONANDA). Além disso, em
cada município são criados os Conselhos Tutelares, que contam com conselheiros eleitos
diretamente, e atribuição de fiscalizar o cumprimento da legislação, assessorar o Poder
Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de
atendimento dos direitos da criança e do adolescente, receber de modo qualificado as denúncias
de desrespeito aos direitos legais de crianças e adolescentes, e encaminhá-las articulando a rede
de proteção (educação formal e complementar, assistência social, equipamentos de saúde,
atendimento psicológico, entidades sociais, centros culturais, esportivos, profissionalizantes,
etc.).
Em seu estudo, a autora demonstra como o uso da língua não é mera questão de
preferência individual, e sim um recurso estratégico permeado por marcas de classe. De acordo
com a autora, no começo do século XIX, o uso do inglês concentrava-se entre os redutos nobres
e da alta burguesia francesa, caracterizando o “inglês aprendido em casa”. Com o passar do
tempo, contudo, esse bem de elite passou a adquirir conotações mercantis, de cunho prático,
populares, pequeno-burguesas, vozes femininas e socialistas, conduzindo à uma recomposição
das suas formas de uso. Nesse sentido, a autora questiona: o que acontece quando um bem
51
Segundo Bourdieu, as ciências sociais, em geral, estão expostas a receber uma série de
problemas legitimados pela sociedade, e dignos de serem discutidos e estudados, mas muitas
vezes o pesquisador torna-se alvo do objeto pesquisado na medida em que fica preso a uma
estrutura de pensamento, “...fica condenado a ser apenas instrumento daquilo que ele quer
pensar.” 21
E, para reconhecer os problemas públicos e oficiais, é necessário antes fazer uma história
social da emergência destes problemas, isto é, a constituição progressiva deste problema para
se tornar um problema a ser pensado e fazer se reconhecer. Seguindo esse raciocínio, buscamos,
com a construção da tabela abaixo, identificar de que forma as concepções de menoridade,
infância e adolescência perpassam o contexto histórico-social brasileiro. No capítulo de análise
dos resultados, demonstraremos como determinadas concepções ainda sobrevivem no ideário e
no vocabulário dos conselheiros tutelares, evidenciando, não raramente, distinções de classe e
demarcações de hierarquias sociais.
20
BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Bertrand: Rio de Janeiro, 1998, p.11.
21
Idem, p.36.
22
Para a construção da tabela, selecionamos os termos que melhor representavam o que foi trabalhado até essa
parte do trabalho. Também agrupamos, numa mesma palavra, termos com significados semelhantes. Como os
Códigos de 1927 e o de 1979 apresentam algumas grafias diferentes, consideramos estas de acordo com a nova
grafia, e as colocamos dentro da categoria que lhe coube. Por exemplo, dentro do termo “criança”, foram agrupadas
52
De acordo com a tabela 1, vimos que os Códigos de 1927, 1979 e Estatuto da Criança e
do Adolescente apresentam termos que são distintos entre si, que têm seu significado social e
político diferentes: se nos Códigos de Menores predomina o uso da palavra “menor” em
detrimento do uso das palavras “criança”, “infância” e “adolescência”, o ECA traz uma nova
abordagem para essas noções, tentando demarcar, pela via gramatical, uma ruptura com o
paradigma menorista. Além disso, o ECA já apresenta as noções de “política” e “proteção”, ao
contrário do Código de 1927, que faz uso frequente do termo “delinquente” numa tentativa de
sanar os problemas aos adolescentes infratores, sem, contudo, articular ações para tal.
Assim, chegamos à conclusão de que o Estado brasileiro contribuiu para reforçar os usos
sociais dos termos relacionados à menoridade durante a vigência dos extintos Códigos de
Menores, muitas vezes atrelando-o, na prática, a práticas de distinção social no trato de crianças
e adolescentes. Passaremos, agora, a entrar em pontos importantes trazidos pelo Estatuto. Tal
caracterização é importante, pois o Estatuto é a referência do nosso objeto de estudo.
Para efeitos de consideração, o ECA estabelece que crianças são pessoas com até 12 anos
incompletos e adolescentes são aqueles entre doze e 18 anos. O Estatuto ainda dispõe sobre as
situações em que se pode compreender como adolescentes aqueles entre 18 e 21 anos,
excepcionalmente.
as palavras “crianças”, “creança”, e “creanças”. Procedemos da mesma forma com os outros termos. Vale ressaltar
também que o uso da palavra “menor”, no ECA, não foi feito com o significado tal como os Códigos de Menores.
Após a elaboração da tabela, voltamos aos textos para elucidar palavras com mais de um sentido, podendo, assim,
fazer tal distinção.
53
Outro indício de que o ECA supera as legislações anteriores encontra-se no artigo 70, que
trata da prevenção da violação aos direitos infanto-juvenis. A prevenção das violações é
novidade no trato da política infanto-juvenil, uma vez que os antigos Códigos preocupavam-se
elaborar resoluções para os casos que viessem a acontecer, mas não definiam uma política
articulada baseada em uma visão comunitária. Aqui, cabe ressaltar o papel essencial das
políticas públicas, uma vez que, de acordo com o Estatuto, diferentes atores deverão atuar de
forma articulada de modo a elaborá-las.
23
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - volume 5. Atual. Maria Celina Bodin de
Moraes. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 183-184.
54
Nesse sentido, para promover a rede de direitos, o ECA delineia sua política de
atendimento em diferentes linhas e com as seguintes diretrizes: i. a municipalização do
atendimento; ii. a criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança
e do adolescente; iii. a criação e a manutenção de programas específicos, observada a
descentralização político-administrativa; iv. a manutenção de fundos nacional, estaduais e
municipais vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e do adolescente; v.
integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança
Pública e Assistência Social, preferencialmente em um mesmo local, para efeito de agilização
do atendimento inicial a adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional; vi. integração
operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Conselho Tutelar e
encarregados da execução das políticas sociais básicas e de assistência social, para efeito de
agilização do atendimento de crianças e de adolescentes inseridos em programas de
acolhimento familiar ou institucional, com vista na sua rápida reintegração à família de origem
ou, se tal solução se mostrar comprovadamente inviável, sua colocação em família substituta;
vii. mobilização da opinião pública para a indispensável participação dos diversos segmentos
da sociedade; viii. especialização e formação continuada dos profissionais que trabalham nas
diferentes áreas da atenção à primeira infância, incluindo os conhecimentos sobre direitos da
criança e sobre desenvolvimento infantil; ix. formação profissional com abrangência dos
diversos direitos da criança e do adolescente que favoreça a intersetorialidade no atendimento
da criança e do adolescente e seu desenvolvimento integral; x. realização e divulgação de
pesquisas sobre desenvolvimento infantil e sobre prevenção da violência.
Nas disposições gerais do ECA, temos que o Conselho Tutelar é um órgão permanente e
autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos
direitos da criança e do adolescente. A autonomia pensada para os Conselhos confere que os
demais serviços públicos não interfiram de maneira equivocada no trabalho do CT ou que o CT
tenha que cumprir ordens das demais instâncias. Como dito, a prioridade é zelar pelo
cumprimento dos direitos infanto-juvenis.
56
O ECA estabelece que cada Conselho será composto de cinco membros, escolhidos pela
população local para mandato de quatro anos, permitida uma nova recondução mediante novo
processo de escolha. Nesse sentido, o Conselho Tutelar é um órgão autônomo, não jurisdicional,
instituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, escolhido diretamente pela
comunidade local para zelar por crianças e adolescentes que tenham seus direitos violados ou
ameaçados. Diante dessa característica democrática do processo de escolha, o Conselho Tutelar
difere de órgãos assemelhados previstos nas legislações anteriores (Código de Menores de 1927
e 1979), que funcionavam, sem qualquer independência, como auxiliares dos juizados de
menores de então. Nesse sentido, o Conselho Tutelar surge como um órgão que visa favorecer
a “desjudicialização”24 no trato dos direitos da criança e do adolescente, pois seus membros são
representantes da comunidade que intervêm na garantia desses direitos por meio de denúncias,
representações e/ou consultas.
24
“Desjudicializar” significa deslocar a esfera de solução de problemas sociais e políticos do Judiciário para os
órgãos politicamente responsáveis. Segundo Barroso (2012, p.24), “judicialização significa que algumas questões
de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias
políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo. Como intuitivo, a judicialização envolve uma
transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no
modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência
mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro.”
25
A atuação do Supremo Tribunal Federal no trato das questões sócio-políticas merece destaque em relação ao
termo “judicialização”. Por não ser objeto de pesquisa, tal assunto não será desenvolvido, mas certamente demanda
observação e pesquisa.
57
Trata-se de uma nova instituição no campo social, cuja origem remonta a duas
vertentes distintas: por um lado, a falência crescente da política do ‘bem estar do
menor’, de caráter segregador e institucionalista, com efeitos cada vez mais
perversos na produção e manutenção do abandono, da delinquência, da miséria da
população jovem e economicamente afastada dos benefícios sociais básicos; por
outro, os movimentos sociais emancipatórios presentes e atuantes na década de
1980.
Verifica-se, pois, a criação do Conselho Tutelar tal como prevista no ECA como um órgão
muito próximo da comunidade, um canal de escuta e possibilidade de providências imediatas,
58
De acordo com a pesquisa de Inês Mindlin Lafer (2010), o texto prévio ao ECA, que foi
substancialmente modificado, previa um desenho institucional e um perfil de conselheiros
distintos da redação final do ECA. No anteprojeto, a previsão era de que os CTs fossem órgãos
administrativos de atendimento aos direitos, vinculados a uma comarca ou foro. Seus membros
deveriam ser pessoas com diploma universitário, preferencialmente nas áreas do Direito,
Educação, Saúde, Psicologia e Serviço social, com indicação do CMDCA e/ou das entidades
da área da infância e da juventude. Seria exigida, também, uma qualificação específica para o
conselheiro, que deveria ter no mínimo dois anos de efetivo exercício na profissão ou atividade
(Lafer, 2010).
O texto anterior ao ECA, nesse sentido, concebia o CT como espaço composto por
pessoas selecionadas por sua origem e formação, concepção distinta da do ECA, o qual concebe
o Conselho como um órgão representativo e político. Ademais, na versão anterior do Estatuto,
ainda que o mandato fosse de dois anos, não haveria limitações quanto ao número de
reconduções pelas quais poderia passar o mandato de um conselheiro, ao passo que o texto final
permite apenas dois mandatos consecutivos de três anos cada.
observação de leis e normas e o controle dos indivíduos, tem sua raiz histórica num tipo de
democracia representativa anglo-americana” (ANDRADE, 2000, p. 28).
Cabe-nos ressaltar que, de acordo com o ECA, os CTs são responsáveis por um amplo
leque de atribuições, as quais, no cotidiano, são raramente contempladas. Como houve a
inclusão de mais uma atribuição em 2014, a atribuição XII (promover e incentivar, na
comunidade e nos grupos profissionais, ações de divulgação e treinamento para o
reconhecimento de sintomas de maus-tratos em crianças e adolescentes), poderíamos
caracterizar esta última como “formativa”. Desse modo, os conselheiros se veem, no dia-a-dia,
com uma série de atribuições a serem cumpridas, que muitas vezes não o são por dificuldades
estruturais e impedimentos outros, desde falta de apoio financeiro ou assistencial do município.
Como veremos no capítulo seguinte, estes fatores junto com demais impeditivos dificultam a
participação dos conselheiros na elaboração de políticas públicas.
2016, conforme estabelecido pela nova redação do ECA. Logo, os conselheiros entrevistados
em nossa pesquisa fizeram parte da primeira eleição para conselheiros tutelares do município
de Guarulhos. 26
26
Durante o desenvolvimento da pesquisa, chegamos a entrar em contato com o Tribunal Regional Eleitoral
pedindo os dados que permitissem comparar se a mudança de processo de escolha para eleição causou algum
impacto, sobretudo em relação ao número de eleitores. Também pedimos informações referentes ao número de
candidatos da última eleição e o perfil dos mesmos. No entanto, a resposta que tivemos foi de que a matéria não
era de competência da Justiça Eleitoral, com a recomendação de que entrássemos em contato com o Conselho
Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Condeca-SP) ou com o Conselho Nacional da Criança e do
Adolescente (Conanda). Apesar de discordar da orientação recebida, pois sabemos que a eleição é de
responsabilidade do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), entramos em
contato com os dois órgãos solicitando as informações, mas não houve resposta. Após o contato com o CMDCA
do município de Guarulhos, recebemos a informação de que as informações sobre a eleição não estavam
consolidadas e que não haveria possibilidade de acesso.
62
No capítulo 1, nossa análise pautou-se nos marcos regulatórios essenciais para a construção
histórica-normativa dos direitos da criança e do adolescente no Brasil: os Códigos de Menores,
a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no 8.069/90).
Como a criação dos Conselhos Tutelares deu-se a partir do ECA, nesse capítulo voltaremos a
abordá-lo, mas dessa vez em uma perspectiva comparativa com algumas resoluções que vieram
depois do Estatuto. Tais resoluções foram expedidas pelo Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente (Conanda) e foram selecionadas para análise por estabeleceram
parâmetros de criação e funcionamento dos Conselhos Tutelares, são elas:
• a Lei n.12.010/09, que dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho
de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga
dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação
das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e
dá outras providências.
A análise das resoluções é importante para compreender o papel e o lugar dos Conselhos
Tutelares, bem como para entender os deslocamentos normativos para o funcionamento dos
CTs. Entendê-las e compará-las dá-nos base para pensarmos a política para a infância e
adolescência de maneira contextualizada.
63
Em fevereiro de 2017, a organização dos Ministérios foi modificada mais uma vez,
trazendo a criação do Ministério dos Direitos Humanos. Nesse sentido, o Ministério da Justiça
passou a ser denominado como Ministério da Justiça e da Segurança Pública. 28
27
BRASIL. Lei n°13.341, de 29 de setembro de 2016. Altera as Leis nos 10.683, de 28 de maio de 2003, que
dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e 11.890, de 24 de dezembro de 2008,
e revoga a Medida Provisória no 717, de 16 de março de 2016. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13341.htm. Acesso em: 05 de fevereiro de
2017.
Notícias Terra – Temer cria ministério dos direitos humanos e Moreira Franco vira ministro. Acesso em 03 de
28
III - dar apoio aos Conselhos Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do
Adolescente, aos órgãos estaduais, municipais, e entidades não-governamentais para tornar
efetivos os princípios, as diretrizes e os direitos estabelecidos na Lei nº 8.069, de 13 de junho
de 1990;
X - gerir o fundo de que trata o art. 6º da lei e fixar os critérios para sua utilização, nos
termos do art. 260 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990;
XI - elaborar o seu regimento interno, aprovando-o pelo voto de, no mínimo, dois
terços de seus membros, nele definindo a forma de indicação do seu Presidente.
Por mais que o CONANDA seja a instância máxima em relação aos direitos infanto-
juvenis, não há uma hierarquia entre os Conselhos (CONANDA, CEDCAs, CMDCAs e CTs),
e sim níveis de atuação diferentes, já que os entes federados são autônomos entre si. Dessa
forma, ao lançar uma resolução, o CONANDA não está tornando obrigatório o cumprimento
do texto, e sim recomendando aos demais Conselhos determinado assunto. Tal desenho é uma
aposta na comunicação e articulação entre os Conselhos dos diversos níveis, contudo, se não há
uma adequada frequência de relacionamento e conhecimento das decisões, a aposta pode abrir
espaço para a manutenção das desigualdades horizontais. Sendo os Conselhos Tutelares os
65
órgãos que atuam “na ponta” e que lidam com diversas demandas, a pouca força regulatória
gera diferentes entendimentos sobre a atuação dos agentes locais, abrindo espaço para atuações
despadronizadas.
A experiência do ECA e dos Conselhos Tutelares passou e passa por um lento processo
de consolidação. Silva (2003), uma das autoras pioneiras no estudo do tema no Brasil e que se
dedicou a pesquisar a constituição dos Conselhos na cidade de São Paulo, registrou que:
A constituição dos Conselhos Tutelares na cidade de São Paulo foi tão difícil de ser
conquistada que o CONANDA, em 1993, expediu uma resolução específica para esse assunto.
Através resolução 008/1993, o órgão criou uma comissão encarregada de examinar a situação
dos Conselhos Tutelares da cidade de São Paulo, trabalho em conjunto com o CMDCA e com
o CEDCA, bem como com o Ministério Público Estadual de São Paulo e o Ministério Público
Federal. Tal comissão, composta por conselheiros tutelares, deveria tratar do assunto da
constituição dos Conselhos com o então prefeito de São Paulo, Paulo Maluf.
29
FOLHA DE SÃO PAULO. Maluf diz não ter ‘verba para marmanjos’. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/5/21/cotidiano/16.html. Acesso em: 03 de março de 2017.
67
melhores salários e condições de trabalho com a seguinte frase: “Não acredito que quem
trabalha com menor deseje ganhar um salário de marajá”. Declarou, ainda, que se a lei
permitisse, a prefeitura de SP trabalharia apenas com conselheiros tutelares voluntários, visão
que reproduz a ideia de que o trabalho com crianças e adolescentes deveria se basear pela
caridade.
A partir da citação do caso acima, vemos que, apesar de terem sido desenhados como
órgãos independentes e autônomos do poder público, os CTs recebem os recursos básicos para
seu funcionamento do Executivo local. Tal condição é ou pode ser fonte potencial de conflitos,
uma vez que os CTs dependem do financiamento da prefeitura, mas muitas vezes veem-se
diante de algumas situações que demandam a interpelação do poder público municipal por
omissão, falta, deficiência ou baixa qualidade de políticas públicas na área.
Fica ressaltado pela resolução 75 que deverá haver, no mínimo, um Conselho Tutelar por
município, independentemente do número de habitantes. Também fica estabelecido que a
recomendação é de um Conselho Tutelar a cada 200.000 habitantes em cada município.
A referida resolução também reforça a autonomia do Conselho Tutelar, uma vez que este
não se subordina aos Poderes Executivo e Legislativo Municipais, ao Poder Judiciário ou ao
Ministério Público. Dessa forma, apesar de integrar o Poder Executivo Municipal, não há uma
relação de hierarquia entre este e o Conselho Tutelar. De forma semelhante, fica estabelecido
que o CT não integra o Poder Judiciário, visto que há uma diferença de atribuições entre um e
outro. A autoridade do Conselho Tutelar baseia-se na aplicação de medidas de proteção, ou
seja, tomar providências, em nome da sociedade e fundadas no ordenamento jurídico, para que
cesse a ameaça ou a violação dos direitos da criança e do adolescente. Contudo, conforme Lafer
(2010) e nossa pesquisa, a autoridade atribuída pelas normas não se reveste de legitimidade no
cotidiano dos Conselhos. Muitos enfrentam uma série de dificuldades para fazer valer suas
decisões perante à comunidade, à sociedade, e, sobretudo, perante o poder público.
A resolução 75, dessa forma, passou a exigir o candidato a conselheiro mais qualificações
individuais, tais como o domínio do vernáculo e a experiência na área. Defendemos que a
adoção de critérios mais restritivos para a candidatura dos conselheiros contribui para o
distanciamento da sociedade civil e para o enfraquecimento da articulação em prol de políticas
públicas. Essa observação será melhor trabalhada na análise da resolução 139/2010.
69
As diretrizes gerais para o processo de escolha dos conselheiros tutelares dispõem, tal
como no ECA, que este deve ser regulamentado pelo CMDCA. Cada CMDCA foi orientado a
seguir as orientações de que o voto deveria ser direto, secreto e facultativo de todos cidadãos
do município maiores de 16 anos, que o processo de escolha deveria ocorrer sob fiscalização
do Ministério Público, que o CMDCA deveria dar ampla publicidade ao processo e de que, em
municípios com mais de um CT, o processo de escolha deveria ser organizado de forma a se
tornar circunscrito à área do CT (por exemplo, para a escolha do CT da região leste, deveriam
votar apenas os eleitores dos bairros pertencentes à essa região). Na resolução 75, ainda são
previstos três anos de mandato para o conselheiro.
Passados três anos da resolução 88, a resolução 112/2006 dedicou-se a tratar da formação
continuada dos operadores do sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente. O
texto do CONANDA reconhece e coloca as inúmeras contradições e dificuldades relativas à
garantia dos direitos de crianças e adolescentes, por isso, segundo o documento, a formação
continuada dos operadores do sistema seria estratégica como forma de enfrentamento da
realidade.
Este texto do CONANDA é o primeiro, das leituras para a pesquisa, a tratar de temas
como diversidade de gênero, raça/etnia, orientação sexual, deficiência e procedência regional.
Num dos parágrafos do subtópico “formação como necessária e estratégica”, há o uso do termo
“sociedade de classes” para tratar das desigualdades no trato de direitos. Nesse sentido, a
resolução prima por articular as discussões forjadas pelos próprios operadores do sistema de
garantia dos direitos da criança e do adolescente e por traçar ações de acordo com o panorama
da questão no Brasil, na busca por “um novo projeto de sociedade”.
30
BRASIL. Resolução nº 88, de 15 de abril de 2003. Altera o dispositivo da Resolução nº 75, de 22 de outubro
de 2001 que dispõe sobre os parâmetros para a criação e funcionamento dos Conselhos Tutelares e dá outras
providências Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8242.htm. Acesso em: 13 de fevereiro de
2017.
71
A resolução também reforça a ideia de que a formação deve facilitar a articulação entre
os Conselhos, sejam de Direitos ou Tutelares. Além disso, define como um dos objetivos o
estímulo ao controle social e ao monitoramento de políticas públicas.
Esta função seria bem desenvolvida se o uso do Sistema para Infância e Adolescência
(SIPIA) fosse colocado em prática. O SIPIA é um sistema nacional de registro e tratamento de
informações sobre a garantia e defesa dos direitos fundamentais preconizados no Estatuto da
Criança e do Adolescente - ECA. Ele tem uma saída de dados agregados em nível municipal,
estadual e nacional e se constitui em uma base única nacional para formulação de políticas
públicas no setor. O SIPIA-CT Web tem como base do sistema o Conselho Tutelar, para o qual
se dirigem de imediato as demandas sobre a violação ou o não atendimento aos direitos
assegurados da criança e do adolescente, todavia, ainda faltam capacitação e condições
adequadas para o uso do sistema.
A formação dos conselheiros, ao longo dos anos, passou a ser objeto de maior atenção
por parte das legislações. Se o ECA previa a necessidade de formação, mas de uma forma não
específica, a resolução 112/2006 reforça a necessidade da formação continuada e apresenta, de
maneira estratégica, os atores que dela devem participar, bem como os temas pertinentes que
garantam um bom desempenho para a garantia, defesa e promoção dos direitos de crianças e
adolescentes.
A resolução 139/2010 é a primeira a estabelecer critérios para a distribuição dos CTs nos
municípios. Dessa forma, os municípios ficaram orientados a distribuir os equipamentos de
defesa de direitos infanto-juvenis de acordo com a configuração geográfica e administrativa da
localidade; o número da população de crianças e adolescentes; a incidência de violações de
direitos de crianças e adolescentes e de acordo com os indicadores sociais. Nesse ponto, a
resolução demanda dos municípios certa estratégia e uso de informações para o estabelecimento
dos Conselhos.
31
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cidades – São Paulo – Guarulhos. Disponível em:
http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=351880. Acesso em: 18 de março de 2017.
73
No que tange aos requisitos para candidatura no processo de escolha do Conselho Tutelar,
observa-se uma mudança no caminho de restringir os requisitos. Conforme vimos acima, a
resolução 75/2001 estabeleceu critérios mais restritivos que o ECA, fato que foi invalidado pela
resolução 88/2003, a qual fez com que os critérios para candidatura se tornassem iguais ao do
ECA. Contudo, a resolução 139/2010 mantém os requisitos básicos (reconhecida idoneidade
moral, idade superior a 21 anos de idade, residir no município e preencher os requisitos
expressos na lei local) e adiciona os seguintes: i. experiência na promoção, proteção e defesa
dos direitos da criança e do adolescente; ii. formação específica sobre o ECA, sob a
responsabilidade do CMDCA local; iii. comprovar conclusão do ensino fundamental e iv. ser
aprovado em prova de conhecimento sobre o direito da criança e do adolescente, de caráter
eliminatório, a ser formulada por uma comissão examinadora designada pelo CMDCA (desde
que prevista em lei local).
32
Ver TATAGIBA, L. Conselhos gestores de políticas públicas e democracia participativa: aprofundando o debate.
Revista Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, pp. 209-213, 2005. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782005000200017&lng=en&nrm=isso>.
Acesso em 11 de março de 2017.
74
Nesse sentido, notamos a existência de uma tensão entre a natureza das normas
estabelecidas pelo ECA e daquelas advindas pela Resolução 139/2010 do CONANDA.
Enquanto o Estatuto prioriza a ampla participação da população na função de conselheiro, a
Resolução estabelece critérios mais restritivos, priorizando a participação de pessoas com
experiência prévia na promoção, defesa e garantia dos direitos da criança e do adolescente.
Sendo o Conselho Tutelar um órgão de participação popular no poder público, a discussão que
se coloca é o impasse que os dois parâmetros legislativos geram, na medida em que o ECA
atrela à candidatura dos conselheiros a representação política em ações envolvendo a área da
infância e juventude, o engajamento cívico e uma cidadania ativa, enquanto a Resolução
139/2010 do Conanda visa trazer à função membros com qualificação na área, priorizando a
profissionalização dos conselheiros e restringindo, assim, o universo de indivíduos que
poderiam se candidatar ao cargo.
Outra novidade trazida pela referida resolução e que foi importante para a pesquisa de
campo é o artigo sobre acesso aos registros do Conselho Tutelar. O acesso total é restrito ao
Ministério Público e à autoridade judiciária, resguardado o sigilo perante terceiros. Nesse
sentido, no caso de pesquisas acadêmicas, cabe-nos pedir o acesso às atas das sessões
deliberativas dos CTs e aos registros que não revelem a identidade de crianças e adolescentes,
pois, segundo a resolução:
Um dos modos de obter informações relativas aos CTs também é por meio da
sistematização das informações elaborada pelos próprios Conselhos. Ponto abordado pela
resolução 139/2010, onde fica recomendado que o poder executivo municipal ou distrital
forneça aos CTs os meios necessários para a sistematização de informações relativas às
demandas e deficiências na estrutura de atendimento à população de crianças e adolescentes,
tendo como base o Sistema de Informação para a Infância e Adolescência – o SIPIA, ou sistema
equivalente. Cabe ao CT, contudo, elaborar e encaminhar um relatório trimestral ao CMDCA,
ao Ministério Público e ao juiz da Vara da Infância e da Juventude, contendo a síntese dos dados
referentes ao exercício de suas atribuições, bem como as demandas e deficiências na
implementação das políticas púbicas.
Pode-se dizer que a resolução 139/2010 é a mais atual em relação às diretrizes gerais.
Cumprindo o papel de resolução, ela revê, atualiza e especifica vários artigos do Estatuto da
Criança e do Adolescente, motivo pelo qual sua análise é de suma importância para qualquer
estudo acerca do Conselho Tutelar. Acima, analisamos os pontos mais importantes para nosso
trabalho, tais como os pontos metodológicos (acesso aos dados, sistematização das
informações), articulação e requisitos para a candidatura ao Conselho Tutelar, mas o texto do
CONANDA trata ainda de muitos outros temas, de acordo com a amplitude presente no ECA.
Para facilitar a visualização dos pontos elencados pelo trabalho nas diferentes legislações,
foi elaborado o seguinte quadro comparativo34:
33
A Resolução 139/2010 (BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Dispõe sobre
os parâmetros para a criação e funcionamento dos Conselhos Tutelares no Brasil, e dá outras providências).
34
É importante salientar que o quadro comparativo não esgotou as possibilidades de comparação entre os três
textos. Sua comparação foi realizada de modo a fornecer mais clareza nos pontos mais destacados pelo nosso
estudo, além do que foi elaborado somente a partir dos textos do ECA, da Resolução 75 e da Resolução 139, não
contemplando, portanto, as outras resoluções.
76
77
Quadro 1 – Quadro comparativo do Estatuto da Criança e do Adolescente, da resolução 75/2001 e da resolução 139/2010 do CONANDA
De acordo com o Quadro 1, fica ilustrado que muitos pontos das resoluções expedidas
pelo CONANDA não foram trazidos pelo ECA, assim como muitos pontos presentes nele foram
especificados nas resoluções posteriores.
De acordo com o texto, as gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus
filhos para adoção devem ser obrigatoriamente encaminhadas à Justiça da Infância e da
Juventude. Antes, era obrigatória a comunicação ao Conselho Tutelar para requisição dos
serviços necessários para sua confirmação e tomada de providências de acordo com as
condições físicas e psicológicas da criança e do adolescente.
psicológica.. Nesses caso, as mães dirigem-se à Vara da Infância e Juventude para promover a
entrega de seus filhos ao juiz, que faz os encaminhamentos às entidades de atendimento
responsáveis. Vale dizer que, se o médico, enfermeiro ou dirigente de estabelecimento de
atenção à saúde de gestante ou o funcionário de programa oficial ou comunitário destinado à
garantia do direito à convivência familiar deixar de efetuar imediato encaminhamento à
autoridade judiciária de caso de que tenha conhecimento de mãe ou gestante interessada em
entregar seu filho para adoção, incorrerá na nova infração administrativa agora criada pelo
dispositivo legal.
O artigo 93 do ECA foi alterado pela referida lei para tornar de competência exclusiva da
autoridade judiciária o afastamento de criança e adolescente da convivência familiar, exceto em
caráter excepcional e de urgência, onde será possível acolher crianças e adolescentes sem prévia
determinação da autoridade competente, todavia, deve-se fazer a comunicação do fato em até
24 horas ao Juiz da Infância e da Juventude sob pena de responsabilidade. Nesse sentido, a
medida protetiva de acolhimento institucional tem características judicializantes na medida em
que se tornou de aplicação exclusiva pelo Juiz da Infância e Juventude, não podendo mais ser
determinada pelo Conselho Tutelar, pois exige ordem judicial formalizada na chamada “guia
de acolhimento”. Porém, qualquer afastamento de criança ou adolescente de seu grupo familiar
pressupõe uma recomendação técnica (estudo diagnóstico) a subsidiar o parecer do Ministério
Público e a decisão judicial ulterior. Ao Conselho Tutelar cabe, nesse caso, elaborar o parecer
técnico que poderá servir de base para a decisão judicial. Nota-se, nesse caso, que o Conselho
Tutelar, que antes podia determinar o abrigamento institucional de criança ou adolescente
(decisão administrativa) perde sua legitimidade nesse quesito com os afastamentos decorrentes
exclusivamente de procedimento judicial.
35
NASCIMENTO, Anderson Rafael. Resistências nas políticas de direitos humanos no Brasil: a atuação do
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente nas alterações do ECA. Teoria & Pesquisa, São
Carlos, vol. 24, n.2, p.61-74, jul./dez.2015.
82
Conforme demonstrado por Vazquez (2012, p.70), nas políticas sociais de educação e
saúde, o princípio constitucional de atuação descentralizada “[...] não era autoexecutável, era
necessário introduzir novas regras para estimular a descentralização e induzir os municípios
a assumirem e ampliarem a oferta descentralizada das políticas sociais [...]”. Nesses termos,
ao definir as diretrizes para um padrão nacional de atuação executado localmente, as políticas
devem incluir mecanismos suficientes que garantam um padrão mínimo de atuação. Caso
contrário, conforme demonstrado por Lotta (2010), abre-se espaço para a adaptação das
políticas e ações independentemente da maneira como foram formuladas. Segundo a autora, os
elementos que influenciam essa capacidade de adaptação das burocracias são: i. a falta de
clareza nos objetivos das políticas, as regras ambíguas ou mal formuladas, o alto número de
agentes governamentais ou de organizações envolvidas na implementação, as diferenças de
valores, os conflitos vivenciados pelos próprios implementadores, entre outros (LOTTA, 2010,
p.260).
Tal discussão está por trás do trabalho dos conselheiros tutelares, agentes locais de
implementação da política da infância e adolescência. Na medida em que o ECA definiu as
diretrizes nacionais de atuação local, mas não garantiu mecanismos suficientes que garantissem
um padrão de atuação e as resoluções/recomendações do CONANDA não apresentam a força
regulatória para moldar o comportamento dos agentes locais, o desenho da política apostou suas
fichas na atuação sobretudo do CMDCA como norteador do trabalho dos conselheiros tutelares.
No entanto, é questionável se somente o CMDCA vem garantindo a aplicação dos princípios
da política. Por esse motivo, a implementação da política da infância e da adolescência leva a
que os elementos elencados por Lotta (2010) se efetivem, abrindo espaço para o exercício da
discricionariedade.
Desse modo, no tópico seguinte, traremos a discussão sobre a burocracia de nível de rua
e do motivo pelo qual os conselheiros tutelares podem ser analisados dentro deste conceito.
A literatura sobre burocracia tem um marco importante no trabalho de Max Weber (1974).
Weber, em seu estudo sobre a nova forma de dominação que ele dominou de “racional-legal”,
defendeu que, diferentemente da dominação tradicional e carismática, a nova forma de
administração caracterizava-se pela aplicação das leis. Dentro desse escopo teórico, a
83
36
“todos os desafiantes procuram, entre outras coisas, entrar na política” (tradução livre da autora).
84
Dagnino (2004), por sua vez, defende que a visão dicotômica entre Estado e sociedade
civil, muitas vezes, gerou a interpretação do Estado como algo intrinsicamente negativo e da
sociedade civil como “polo de virtudes”, o que distorce muitas das análises no campo da ciência
política e demanda a superação da fronteira analítica estabelecida.
No estudo de Tilly, Abers, Serafim e Tatagiba (2014), são identificadas quatro rotinas
comuns de interação entre Estado e sociedade civil no Brasil, sendo elas: i. protestos e ação
direta; participação institucionalizada; política de proximidade e, por fim, iv. ocupação de
cargos na burocracia, sendo esta última uma interpretação da burocracia engajada.
Segundo Ferreira (2016), tal estratégia foi bastante utilizada no governo do Partido dos
Trabalhadores (PT), ainda que não tenha existido apenas nesse contexto e nem exclusivamente
no Brasil. O partido, cujo histórico de aproximação com os movimentos é bastante conhecido,
trouxe diversos militantes para trabalharem dentro do governo.
37
“A compreensão convencional dos movimentos sociais é que seus líderes, participantes e organizações
existem fora do Estado” (tradução livre da autora).
85
Para delimitar o uso do termo, Pettinicchio (2012) estabelece que os burocratas ativistas
não são apenas reativos, e sim proativos em relação às pautas levantadas por movimentos
sociais. De modo geral, fica condicionado que os burocratas ativistas são indivíduos que
utilizam sua discricionariedade e seus valores para provocarem mudanças no interior das
instituições. Contudo, o traço distintivo de um burocrata ativista de um burocrata com atitudes
ocasionais de cunho reativo seria a intencionalidade de sua militância. De acordo com Ferreira
(2016, p. 63), “para que um servidor seja considerado um ativista institucional suas ações
devem ser dirigidas no sentido de promover projetos políticos ou sociais com natureza pública
ou coletiva, independentemente de ele ter ou não vínculos formais com movimentos sociais”.
Apesar de os estudos supracitados terem sido elaborados com burocratas de médio e alto
escalão, os burocratas de rua (street level bureaucracy) também podem por em prática sua
discricionariedade no sentido de “promovorem projetos políticos ou sociais com natureza
pública ou coletiva” (FERREIRA, 2016, p. 63). A categoria de ativismo institucional, não deve
se restringir, portanto, ao meio e ao topo da pirâmide dos estratos da burocracia.
Nesse sentido, um interessante escopo de análise vem sendo desenvolvido quanto ao caso
da implementação das políticas públicas. Já faz parte das análises a incorporação do conceito
de discricionariedade38, com a busca pela compreensão da ação e da interação realizada pelos
implementadores com o objetivo de analisar a ação efetiva do Estado, uma vez que os
implementadores o representam e por ele respondem. São os implementadores que representam
a “porta de entrada” aos serviços do Estado por parte dos cidadãos.
Os burocratas de nível de rua são considerados de baixo escalão e representam a face mais
tangível da política pública para os cidadãos. São eles que estão em constante contato com os
usuários dos serviços, são eles que incorporam os procedimentos da política pública e os
traduzem aos usuários, exercendo discricionariedade e autonomia. Fazem parte deste estrato
professores, assistentes sociais, policiais, agentes comunitários de saúde (LOTTA, 2015) e
conselheiros tutelares, como defendemos, ainda que estes últimos tenham um tempo restrito de
mandato e sejam eleitos pela população local.
No caso dos conselheiros, são eles que representam a faceta mais palpável da política
pública da infância e da adolescência no contato direto com os cidadãos. Eles que realizam o
atendimento e acionam a rede de proteção de acordo com a demanda, podendo inclusive
representar contra o poder público se este não cumpre seu papel na primazia dos direitos
infanto-juvenis. Mesmo que individualmente um conselheiro tutelar não seja próximo de algum
movimento social, suas ações podem reverber na promoção de projetos políticos ou sociais com
natureza coletiva.
Nesse sentido, defendemos que os conselheiros tutelares são burocratas de nível de rua e
de que é possível analisa-los na perspectiva da burocracia ativista. Dado o caráter híbrido de
suas funções e a novidade histórica em termos de proteção social, logicamente o esforço teórico
38
Segundo Lotta (2015), é importante, contudo, distinguir os conceitos de discricionariedade de autonomia.
Enquanto a segunda refere-se a uma certa liberdade para tomar decisões, a primeira diz respeito à margem de
atuação que um burocrata tem para fazer escolhas sobre um curso de ação ou inação, fundamentada na lei.
87
para tal empreendimento torna-se mais complexo. Veremos como justamente essa capacidade
dos Conselhos em promoverem mudanças coletivas vem sendo apontada pela literatura
específica da área como insuficiente, na medida em que os Conselhos têm focado sua ação em
atendimentos individuais em detrimento de projetos políticos. Partiremos, agora, para o exame
da literatura específica sobre os Conselhos Tutelares.
A criação do Conselho Tutelar, definido como “[...] órgão permanente e autônomo, não
jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança
e do adolescente [...]” (ECA, 1990, art.131), suscita o interesse investigativo de estudiosos,
militantes, idealizadores e executores da política social da criança e do adolescente da sua
criação até os dias atuais.
Uma vez que o objetivo central de nossa pesquisa é concentrar a análise sobre como os
Conselhos Tutelares de Guarulhos se articulam para a construção de uma agenda de políticas
públicas da infância e da adolescência, apreendemos que a literatura sobre o tema é escassa.
De modo geral, essa lacuna pode ser explicada pelos poucos estudos sobre Conselhos
Tutelares na área de Ciências Sociais. Em levantamento sobre bibliografia semelhante39, até o
presente momento encontramos 100 trabalhos sobre o tema “Conselho Tutelar”, que se dividem
nas mais diversas áreas de estudos, com predominância da Saúde (43% dos estudos, seguida da
Psicologia40 (24% dos estudos) e do Direito (14%). Apenas 6% dos estudos são da Sociologia41,
5% da Educação um trabalho do Serviço Social. Também chama atenção o período em que a
maioria dos trabalhos foi desenvolvida: 73% deles foi elaborado e publicado no período de
1998 – 2006 e 27% deles na última década, ou seja, a partir de 2007. O último ano em que
houve trabalho publicado sobre Conselho Tutelar foi no ano de 2015.
39
Formamos um banco de dados para registrar os trabalhos encontrados e que permitiu chegar os dados sobre a
literatura.
40
Separamos Psicologia e Saúde. “Saúde” engloba as áreas da Medicina, Enfermagem e até mesmo Odontologia,
cujos trabalhos tendem a avaliar os maus-tratos físicos e a relação do Conselho Tutelar para intermediar e sanar
estes casos, já a Psicologia atua no sentido de tentar compreender as consequências psicológicas dos abusos e das
violações para crianças e adolescentes. A Psicologia também contém trabalhos que analisam exclusivamente a
dinâmica de trabalho do Conselho Tutelar.
41
Na área de Sociologia, estão englobadas as subáreas pertencentes às Ciências Sociais. No caso, três trabalhos
foram publicados pela mesma autora (Estela Scheinvar).
88
Também notamos que os estudos sobre os conselhos gestores são muito mais vastos do
que no caso dos CTs. Também costumam ser assuntos de dissertações e teses, o que não se
aplica aos CTs, visto que poucos trabalhos advindos de mestrado e doutorado foram
encontrados.
Para nos apropriarmos dos conceitos relativos aos Conselhos, realizamos o levantamento
de estudos abrangentes às temáticas: Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e
Conselhos Tutelares, a partir de bancos de dados digitais disponibilizados por instituições de
ensino público e privadas 42 distribuídos em todo o país, em um recorte de tempo dos últimos
26 anos, período de vigência da Lei (8.069/90) que instituiu referidos órgãos43.
Como critérios de busca foram utilizados as palavras chaves: conselho (s) de direito (s),
conselho (s) de direito(s) da criança e adolescente, conselho (s) gestor (es), conselho (s) gestor
42
Scielo, Domínio Público, Instituto Polis e bibliotecas da Universidade de São Paulo (USP), Universidade
Estadual Paulista (UNESP), Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), Programa de Pós Graduação em Políticas
Públicas da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e Projeto Democracia Participativa (PRODEP), do
Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais. A busca também foi feita no Google
Acadêmico.
43
“Art. 88. São diretrizes da política de atendimento: (...) II – criação de conselhos municipais, estaduais e nacional
dos direitos da criança e do adolescente, órgaos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis,
assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federal,
estaduais e municipais (...) Art. 131. O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional,
encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta
Lei. ”
89
(es) de política (s) pública (s), política (s) pública(s) para criança (s) e adolescente (s),
participação popular, conselho (s) tutelar (es) e Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
De uma forma geral, as análises dos autores nos trabalhos levantados descrevem a
formação dos conselhos de direitos a partir de um contexto histórico de democratização da
gestão pública no país nas últimas décadas, contando com a participação fundamental da
sociedade civil. Lubambo e Coutinho (2004) sintetizam esse processo em dois níveis de
transformação: de um lado, o crescimento do controle social sobre as decisões públicas através
de meios de participação diretos e, de outro, o fortalecimento desses mecanismos mediante
criação de instâncias deliberativas compostas por gestores públicos, representantes da
sociedade civil e, por vezes, representantes dos próprios usuários do serviço.
Nesta perspectiva, os conselhos setoriais são uma das formas de constituição de sujeitos
democráticos com o propósito de atuar nas políticas públicas, sem anular ou substituir os
movimentos de pressão organizados. Enquanto no primeiro caso o princípio fundamental em
pauta é a consulta ou o envolvimento direto dos beneficiários na provisão de serviços, no
segundo, é a responsabilização dos gestores por decisões e ações implementadas (LUBAMBO
e COUTINHO, 2004, p. 63).
De acordo com Dervanolski Junior (2009), os Conselhos surgem como espaços públicos
legítimos e essenciais para o exercício da participação social. O autor afirma que esses espaços
públicos são responsáveis por implementar e consolidar a democracia, nos quais as políticas
públicas são “compartilhadas”, efetivando, pois, a democracia participativa e descentralizando
o poder através da participação popular, prestigiando, assim, a promoção da cidadania.
No mesmo sentido, o Conselho Tutelar se revela como órgão de expressão nesse processo
de democratização, na medida em que funciona como “uma ferramenta e um instrumento de
trabalho nas mãos da comunidade, que fiscalizará e tomará providências para impedir a
ocorrência de situações de risco pessoal e social de crianças e adolescentes” (Liberatti, 2003,
90
p. 125). Ou, nas palavras de Sêda (1996, p. 98) o Conselho Tutelar é “uma equipe, formada por
cidadãos, instituída pelo município para zelar, caso a caso, pela garantia dos direitos
individuais das crianças e dos adolescentes e a exercer cobrança eficaz dos deveres
correspondentes”. Deve-se acrescentar à perspectiva de Sêda (1996) que o Conselho Tutelar
também zela pelos direitos coletivos de crianças e adolescentes, não trabalhando, apenas, no
“caso a caso”.
Liberatti (2003) e Sêda (1996) afirmam a posição da sociedade civil como garantidora de
direitos de crianças e adolescentes na participação popular, seja através dos Conselhos de
Direitos, seja por meio dos Conselhos Tutelares. O que vem se questionando é a forma como
se opera essa participação, já que os estudos levantados revelaram uma relação por vezes
conflitante entre esses representantes da sociedade civil e o governo, em razão do perfil do
conselheiro identificado ou das iniciativas e deliberações tomadas nesses espaços.
Assim, outro tema recorrente entre os estudos encontrados foi a questão dos conselhos de
direitos da criança e do adolescente enquanto órgãos de mecanismo de controle social, de
gestão, de implantação e de fiscalização das políticas públicas.
Os estudos de Tatagiba (2005) apontam que ainda não constitui uma “tarefa” simples
avaliar a atuação “deliberativa” dos Conselhos Gestores por dois motivos: por se constituírem
como “experiências recentes” do país e pela dificuldade de se estabelecer critérios “seguros”
para tal análise.
Segundo a autora, as informações mais comuns reveladas na literatura que diz respeito
aos Conselhos indicam que estes não vêm cumprindo com a sua função deliberativa por motivos
variados que perpassam pela concentração da elaboração da pauta por parte dos representantes
da área governamental, “manutenção de padrões clientelistas” entre Estado e sociedade civil,
problemas nas representatividades e inexistência ou falta de efetividade dos fundos de direitos
da criança e do adolescente.
debate e a negociação nos conselhos têm sido limitados pela imposição unilateral dos
interesses temáticos do Estado”.
A maioria dos autores cita que enormes avanços emergiram com a criação dos conselhos
de direitos, entretanto percebem muitas lacunas a serem superadas, como cita Marchesi (2008,
p. 06):
Embora esses espaços tenham sido instalados desde 1991, por todo o território
brasileiro, sua ação ainda se mostra incipiente no controle das políticas sociais. O
desconhecimento acerca das atribuições do conselheiro se apresenta como um dos
maiores entraves a efetivação desses espaços, vale crer no forte papel da sociedade
civil organizada no processo de construção da democracia participativa (...). É
preciso também ampliar o debate sobre as atribuições da sociedade civil dentro de
espaços como os conselhos de direitos.
O traço desse perfil também se reproduz nos estudos de Carvalho (2009) no que diz
respeito aos Conselhos Tutelares. Ao levantar informações acerca dos conselheiros Tutelares
do município de Goiânia, o autor verifica que esse órgão é composto por homens e mulheres,
em uma proporção de 50% para cada um, com a maioria (84%) na faixa etária entre 20 e 40
anos de idade e com curso superior completo (64%) (p. 116 - 118).
No que diz respeito aos Conselhos Tutelares, em uma parte dos trabalhos, destaca-se que
estes representam uma face do processo de consolidação da democracia participativa e da
efetivação da cidadania, na medida em que membros da comunidade podem participar
qualitativamente e conseguir desenvolver ações tanto no tocante à elaboração de políticas
públicas para crianças e adolescentes quanto na execução, monitoramento e avaliação da
política infanto-juvenil. Esta perspectiva ressalta a possibilidade do CT se tornar um mediador
entre o direito garantido em lei e o exercício concreto de direitos. Como exemplo, para a autora
Renata Custódio Azevedo,
Outra parcela dos trabalhos demonstra que, apesar de o ECA ter obedecido a
descentralização administrativa e política prevista na Constituição Federal, a virtude do
desenho institucional não se transfere à prática efetiva sem mediações. Essa parcela de trabalhos
indica, portanto, a dificuldade que as experiências encontram para efetivar o controle social.
Dessa maneira, o Conselho Tutelar pode ser
[...] um espaço fértil de cidadania ativa à medida que nele se processam saberes e
práticas sociais que podem contribuir para construção de uma cultura de direitos e
a prática de sua exigibilidade, pode paradoxalmente reproduzir a cultura do
94
Ainda para Bandeira (2006), um dos maiores desafios para o Conselho Tutelar é se
desvincular da dependência administrativa, política e financeira com o poder público e de se
estabelecer como espaço que visa fortalecer a democracia participativa e o Estado de direito.
Há uma abordagem também que coloca que uma contradição em haver um projeto
aparentemente democrático em uma sociedade capitalista. A raiz do problema seria, portanto,
a subsunção do trabalho pelo capital, o que não dá espaço para que os Conselhos ou qualquer
outro espaço dessa natureza alterem a realidade de exploração, de violência e de pobreza da
população brasileira. Silva (2009) entende que os Conselhos Tutelares são frutos do projeto da
democracia liberal-burguesa e servem ao mesmo:
Mais ainda,
inegavelmente garantem alguns direitos, mas de fato contribuem para que a raiz
da “questão social” continue intocada, sendo tratada pela via administrativa,
escamoteando assim a verdadeira causa que aflige crianças e adolescentes
oriundas da classe trabalhadora, as quais são vítimas de um processo desigual
originado no âmbito da contradição capital/trabalho. (SILVA, 2009, p. 14)
Essa abordagem, portanto, considera que a dualidade não está posta no projeto do
Conselho Tutelar e na prática cotidiana: ela está posta em um projeto democrático existente em
uma sociedade capitalista. Apesar de concordamos que apenas o trabalho do Conselho Tutelar,
de modo algum, extinguirá os problemas sociais que atingem crianças e adolescentes,
defendemos que é necessário olhar para as possibilidades atuais e pensar como aperfeiçoá-las.
Malgrado o fato de o Brasil viver há pouco tempo em um regime democrático, falar de
“direitos” no país soa como se falássemos de “privilégios”. Nesse sentido, o trabalho dos
Conselhos Tutelares não é tarefa fácil, motivo que demanda análises exaustivas acerca de suas
possibilidades e contribuições.
Examinando as funções específicas dos Conselhos Tutelares, além das atribuições que
são conferidas ao CT pelo artigo 136 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
destacamos dos estudos de Carvalho (2009, p. 86-87) outro papel fundamental, e por que não
dizer, desafiador, no desempenho de suas funções: o de articulador das políticas públicas locais,
contribuindo para a superação de práticas políticas fragmentadas, que se confundem com
práticas governistas, função que contribui na construção de novas práticas e concepções de
gestão seja no campo social, cultural ou da própria política:
Esse aspecto de articulador de políticas públicas locais é trabalhado por Lafer (2010)
como a “ambiguidade” do Conselho Tutelar. A ambiguidade do papel do CT, tal como é
descrita pela autora, está diretamente ligada ao conjunto das atribuições legais desses órgãos.
De um lado, eles devem fazer o atendimento dos casos individuais de violações de direito,
96
Lafer (2010) chega a comentar que os CTs parecem terem sido arquitetados para cumprir
uma dupla tarefa – uma ação “no varejo” (atendimento e encaminhamento) -, e o papel “no
atacado” (de pressionar para que os agentes, as estruturas e as políticas públicas propiciem, no
plano coletivo, a garantia dos direitos de crianças e adolescentes e não ocasionem violações).
Lafer (2010), todavia, não chega a explicitar o que seria de fato uma ação “técnica” e uma
ação “política” do Conselho. Ainda que a autora elenque os atendimentos individuais e
cotidianos como “técnicos” e a articulação para políticas públicas como “políticos”, a separação
de tipos de demandas representa mais uma caracterização abstrata e que eclipsa o cotidiano de
trabalho nos Conselhos. Por exemplo, quando um conselheiro/Conselho atende uma família
que requisita vaga em creche e encaminha esta demanda para o Poder Judiciário conseguindo
a vaga para a criança, esta ação foi técnica ou foi política? Concordamos, de fato, que os
Conselhos têm muitas atribuições, mas é necessário examinar com elas se desdobram a fundo.
Por mais que a literatura sobre o significado da articulação no caso dos Conselhos
Tutelares aponta que esta se refere ao diálogo com a rede municipal para a elaboração de
políticas públicas e participação no orçamento, falta, nos trabalhos acima mencionados, olhar
97
Em relação à qual deveria ser a ênfase do trabalho dos Conselhos Tutelares, os autores
que escreveram sobre o tema da ambiguidade dos CTs apresentam diferentes perspectivas.
Kaminski (2005) ressalta que o ideal participativo se encontra na gênese dos Conselhos
Tutelares, motivo pelo qual os Conselhos devem firmar-se como um instrumento de
exigibilidade dos direitos e que deveriam, de maneira prioritária, buscar garantir as ações
preventivas de caráter coletivo. Já Garrido (2005) entende que as atribuições relativas às
reivindicações de direitos e atuação para exigência de políticas públicas são do âmbito do
CMDCA, e não do CT. Dessa forma, defende o autor que o CT deveria concentrar suas ações
no atendimento individual, para que não deixassem de fazer nem uma, nem outra. As questões
coletivas, para o autor, deveriam ser repassadas pelos CTs, que captam os principais anseios da
comunidade, aos CMDCAs.
políticas e serviços públicos e interage com a comunidade local, para a qual deve prestar contas
do seu trabalho.
Voltando a atenção para os trabalhos teóricos que captaram a atuação prática dos
Conselhos Tutelares, os estudos indicam que estes têm dado a primazia às ações relativas aos
casos particulares, em detrimento do apoio ao poder Executivo e ao CMDCA na formulação de
políticas públicas.
As autoras também indicam que os CTs têm atuado de maneira distante dos movimentos
sociais e incorporado práticas e discursos típicos do Poder Judiciário. O resultado, assim, é a
geração de práticas que tendem a trazer para o âmbito privado problemas que têm origem em
questões públicas. O estudo das autoras está de acordo com os dados trazidos pela pesquisa
Conhecendo a Realidade – Edição 2006, que revelou que os conselheiros tutelares apontavam
uma maior facilidade para encaminhar ao Poder Judiciário os casos de sua competência.
Existem algumas explicações por parte da literatura para o predomínio da ação dos
Conselhos Tutelares no plano da vida privada das famílias, e não no plano coletivo. Dentre elas,
destacam-se a distância em relação aos movimentos sociais e ao grande volume de demandas
em geral relativas à família.
99
Um dos pontos elencados por Lafer (2010) em sua pesquisa é a falta de legitimidade que
os CTs encontram para fazerem valer suas decisões. Questiona a autora (Lafer, 2010, p. 37):
A partir do trecho acima, vemos que, para a autora, a escolha dos conselheiros não
centrada em critérios técnicos é um dos fatores que prejudicam a legitimidade dos CTs.
Exigir experiência prévia dos conselheiros tutelares para, assim, ganhar maior
legitimidade perante os demais atores é desconsiderar o tratamento histórico aos direitos
infanto-juvenis no Brasil. Conforme já apresentamos, por mais que a legislação atual represente
um avanço histórico, ainda é predominante a visão “menorista” acerca das crianças e dos
adolescentes, que encontra explicações nos extintos Códigos de Menores. Nesse sentido, as
questões relativas a este público, no Brasil, por mais que não sejam mais secundárias (pelo
menos oficialmente), são repletas de visões estigmatizantes, o que contribui para a falta de
legitimidade do Conselho Tutelar frente à sociedade, e, principalmente, ao poder público.
Assim, são necessárias pessoas mais combativas e que atuem para defender os direitos infanto-
juvenis, fator que não depende diretamente da experiência prévia, e sim de aspectos relacionais
dos conselheiros.
44
ALBERTON, Mariza Silveira. Os Conselhos Tutelares no enfrentamento da violência contra crianças e
adolescentes. In: Cedeca/Bertholdo/Proame. Conselhos Tutelares no Rio Grande do Sul: condições de
atendimento. Porto Alegre, s.n., 2005.
100
O estudo de Flávia Lemos45 é um dos poucos que faz referência à moralização das camadas
populares exercida pelo CTs. Para a autora, o CT é “uma tecnologia de sujeição dos corpos,
típica da sociedade disciplinar e de controle. Um dispositivo de proteção, mas também de
vigilância” (LEMOS, 2004, p. 89). Dessa forma, o poder do CT quanto à vigilância das famílias
para que cumpram as leis e as normas o torna “um dispositivo de governo e tutela de franjas da
população consideradas fragilizadas e sob ameaça” (LEMOS, 2004, p. 89).
Sendo apenas um dos poucos trabalhos que aborda o tema “distinção”, o artigo
“Peculiaridades entre conselho tutelar e crianças encaminhadas pela escola”46, de Priscila
Valverde Fernandes e Elizabeth Maria Andrade Aragão, demonstrou que é procedimento
frequente que o Conselho Tutelar do município de Cariacica (CE) classifique muitos pais como
45
LEMOS, Flávia Cristina Silveira. Conselhos Tutelares: proteção e controle. Revista do Departamento de
Psicologia – UFF, Niterói, 16 (2), p. 85-100, 2004.
46
FERNANDES, Priscila Valverde; ARAGAO, Elizabeth Maria Andrade. Peculiaridades entre conselho tutelar e
crianças encaminhadas pela escola. Fractal, Rev. Psicol., Rio de Janeiro , v. 23, n. 1, p. 219-232, Abr. 2011 .
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-
02922011000100015&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 02 de agosto de 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S1984-
02922011000100015
101
“negligentes” em relação ao acompanhamento da vida escolar. Esse tipo de postura dos pais
acaba transformando-se em caso de Conselho Tutelar, pois na maioria das vezes, eles não
comparecem à escola quando são convocados.
É importante destacar que o Conselho Tutelar não julga, quem o faz é o Poder Judiciário.
O Conselho Tutelar tem em suas atribuições a realização de inquéritos sociais e a realização de
encaminhamentos, observando não apenas leis, mas também normas que são negociadas no
cotidiano. Partindo dessa forma de atuação, entendemos que é possível a reivindicação política,
também pautada em leis, mas que não emitam sentenças e nem apontem medidas particulares.
Badinter (1980)47 mostra que a imagem da "mãe ideal" foi uma construção histórico-
social. Essa sacralização da figura da mãe surge como uma forma de reprimir o poder e a
autonomia da mulher por meio de um discurso que a culpará e a ameaçará, caso não cumpra o
seu dever materno dito natural e espontâneo. Esse pensamento foi consolidado como discurso
científico pela psicanálise, que colocou a mãe como responsável por toda e qualquer
perturbação psíquica que a criança viesse a apresentar.
A socióloga francesa Sandrine Garcia48 também tem se dedicado a estudar essa pressão
social em torno da maternidade. A autora questiona por que, após décadas de igualdade de
47
BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. São Paulo: Círculo do Livro, 1980.
48
GARCIA, S. Mères sous influence. De la cause des femmes à la cause des enfants. La Découverte, "Textes à
l'appui/genre & sexualité", 380 p.
102
direitos entre homens e mulheres, a desigualdade ainda continua latente e prejudicial ao gênero
feminino? Para ela, a desigualdade encontra sua fonte nas condições em que as mulheres se
veem como sujeitos destinados a cumprir as regras da maternidade. No livro “Mères sous
influence”, ela procura demonstrar a existência de “empresários morais”, sujeitos especialistas
em desenvolver os padrões de berçário e de educação.
Assim, o caso dos Conselhos Tutelares no Brasil não parece fugir de um ideal de educação
dos filhos possível apenas pelos estratos mais altos da população brasileira, distinguindo e
estigmatizando as possibilidades de educação operada pelas classes populares. Essa proposta,
como vimos, não está de acordo com o ideal do próprio Conselho Tutelar, cujo papel principal
é atuar como um órgão comunitário em prol dos direitos da criança e do adolescente,
desconcentrando as decisões do Poder Judiciário e promovendo a mobilização das comunidades
onde estão inseridos.
Novamente, é necessário ressaltar aqui que o número de estudos que tratam do assunto
de forma direta ou indireta ainda é muito escasso, demandando maior atenção sobre esse
“desvio” do papel do Conselho Tutelar e do punitivismo que este exerce sobre as classes
populares.
Também sustentamos como objetivo a análise dos diagnósticos mais atuais que temos
sobre a atuação do Conselho Tutelar. Se a primeira parte do capítulo 2 nos forneceu a base
103
teórica para analisar a articulação política dos CTs, a próxima parte busca refletir sobre a
trajetória da efetivação dos princípios do ECA nesses 27 anos.
Como vimos, o ECA estabelece que, em cada município e em cada região administrativa
do Distrito Federal, haverá, no mínimo, um Conselho Tutelar, como órgão integrante da
administração pública local. Os Conselhos Tutelares devem ser mantidos pelo poder público
municipal e a previsão de recursos necessários ao funcionamento deverá constar da lei
orçamentária municipal. Esta obrigatoriedade de um Conselho Tutelar para cada município é
de extrema importância para assegurar a proteção aos direitos a nível local. Apesar de o ECA
ter sido promulgado há quase 27 anos e, de, portanto, tal obrigatoriedade existir por quase
também três décadas, segundo os dados da Pesquisa de Informações Básicas do IBGE (Munic)
de 2014, ainda há 28 municípios brasileiros sem a presença de Conselho Tutelar. É importante
salientar que, no caso dos municípios que não têm Conselho Tutelar, não há punição prevista
em documentos normativos ou, ainda, algum tipo de sanção relacionada ao repasse de verbas.
A falta de regulação e de uma política mais centralizada no trato dos direitos infanto-
juvenis abre espaços para diversas atuações que infringem o Estatuto da Criança e do
Adolescente. Por mais que existam o ECA e as posteriores recomendações do Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), estas abrem espaços para
atuações municipais distintas umas das outras, sem uma política clara e incisiva de controle
sobre os casos que contrariam os textos oficiais. Dessa forma, defendemos uma maior regulação
e protagonismo do CONANDA nesse sentido.
Tabela 2 – Municípios, total e com Conselho Tutelar, por quantidade de habitantes - 2014
M unicípios
M unicípio s
B rasil 5 570 5 542 4 535 20 14 159 609 78 126
Até 5 000 Grandes Regiõ es
1243 1236 956 6 1 Co m Co 45nselho Tutelar,
167 po r algumas
22 características
39
De 5 001a 10 000 e 1216 1209 975 6 2 50 Vinculado 121 14
administrativamente 41 gesto r da
ao ó rgão
De 10 001a classes
20 000 de tamanho da 1383 To tal1373 1178 3 - 33 121 18 20
po pulação do s município s To tal Gabinete o u
De 20 001a 50 000 1080 1077 890(1) 4
A ssistência 4 20 122s
Direito 15
Crianças e 21
Justiça chefia do Out
De 50 001a 100 000 348 348 287 so
1 cial - 4 humano 49 s ado lescentes
4 3
Executivo
De 100 001a 500 000 261 260 221 - 4 5 24 4 2
MBaisrades il
500 000 39 5 5 39
70 28
5 542 - 4 535 3 2 02 5 14 1 15 9 - 609
A té 5 000 1243 1236 956 6 1 45 167
NDe
o rte 5 001a 10 000 450 447
1216 397 1209 1 975 1 46 36 2 6 50 2 121
Até
De 5 1000
0 001a 20 000 78 78
1383 73 1373 - 1178 - 3- 4 - 1 33 - 121
De 5 20
De 001001
a 10a00050 000 81 1080
81 74 1077 - 890 - 4- 7 4 - 20 - 122
De 50 001a 100 000 348 348 287 1 - 4 49
De 10 001a 20 000 109 107 99 - - - 5 2 1
De 100 001a 500 000 261 260 221 - 4 5 24
De 20 001a 50 000
M ais de 500 000
112 111
39
89 39 1 28
- 3- 16 3
2 2
- 5
De 50 001a 100 000 44 44 38 - - 1 4 - 1
N o rt e 450 447 397 1 1 4 36
De 100 001a 500 000 24 24 22 - 1 - - 1 -
A té 5 000 78 78 73 - - - 4
MDe
ais de 5500001
000a 10 000 2 281 2 81 - 74 - -- - - - - - 7
De 10 001a 20 000 109 107 99 - - - 5
N o rdeste 1 794 1 784 1 565 5 3 23 156 9 22
De 20 001a 50 000 112 111 89 1 - 3 16
Até
De 5 50000001a 100 000 232 231
44 201 44 2 -38 -- 24 - 1 1 3 4
De
De 5100001001
a 10a000
500 000 357 35424 313 24 2 122 5- 27 1 1 - 5 -
M ais
De dea500
10 001 000
20 000 577 572 2 517 2 - - 2 7- 40 - 3 - 5 -
De
N o20rde001sat e50 000 445 1 7444
94 3761 7 8 4 1 1 565 - 58 46 3 3 23 9 15 6
De
A té50 001 a 100 000
5 000 122 122
232 102 231 - 201 - 22 17 - 1 - - 24
De100 001
De 5 001
a 500a00010 000 50 357
50 47 354 - 313 - 21 2 1 - 5 - 27
MDe
ais de10500
001a 20 000
000 11 577
11 9 572 - 517
2 -
- - - - 7
- 40
De 20 001a 50 000 445 444 376 1 - 8 46
De 50 001a 100 000
Sudeste 1 668 122
1 660 1 262 122 8 102 6 94- 223 - 10 2 57 17
De 100 001a 500 000 50 50 47 - - 1 2
Até 5 000 376 372 262 3 - 30 60 1 16
M ais de 500 000 11 11 9 - 2 - -
De 5 001a 10 000 389 389 287 2 - 33 46 2 19
S ude s t e 1 668 1 660 1 262 8 6 94 223
De 10 001a 20 000 365 362 291 2 - 19 39 1 10
A té 5 000 376 372 262 3 - 30 60
De
De 20 001a 50a000
5 001 10 000 289 288
389 227 389 1 287 3 27 39 - 2 33 9 46
De
De 501001a 100a 000
0 001 20 000 107 107
365 83 362 - 291 - 21 21 - 1 19 1 39
De100 20
De 001001
a 500a00050 000 125 289
125 100 288 - 227 - 31 16 3 2 7 2 39
MDe
ais de50
500001
000a 100 000 17 11707 12 107 - 83 2 -1 2 - 1 1 - 21
De 100 001a 500 000 125 125 100 - - 3 16
Sul
M ais de 500 000 1 191 1 18617 928 17 3 12 3 30- 140 2 46 1 36 2
Até
S ul5 000 419 1 418
19 1 3081 18 6 1 928 1 14
3 58 3 19 30 17 14 0
De
A té 5 001a 10 000
5 000 279 276
419 209 418 1 308 - 81 36 1 9 14 13 58
De 10 001
De 5 001
a 20a00010 000 230 279
230 187 276 1 209 - 61 23 - 9 8 4 36
De 10 001a 20 000 230 230 187 1 - 6 23
De 20 001a 50 000 157 157 134 - 1 1 13 6 2
De 20 001a 50 000 157 157 134 - 1 1 13
De 50 001a 100 000 54 54 48 - - - 4 2 -
De 50 001a 100 000 54 54 48 - - - 4
De
De100100
001001
a 500a000
500 000 48 4748 39 47 - 39 1 -1 5 1 1 1 - 5
MMaisais
de de
500500
000 000 4 44 3 4 - 3 - - 1 - - - - 1
CCentro
e nt ro -Oeste
-Oeste 467 467
465 383 4 6 5 3 383 1 38 54 1 7 8 9 54
A té 5 000 138 137 112 - - 1 21
Até 5 000 138 137 112 - - 1 21 - 3
De 5 001a 10 000 110 109 92 1 1 4 5
De 5 001a 10 000
De 10 001a 20 000
110 109
102
92 102 1 84
1 4- 5 -
2 1
4 14
De
De 10 20
001a001
20a00050 000 102 10277 84 77 - 64 - 1
1 14 - 3 1 - 8
De
De 2050
001001
a 50a000
100 000 77 7721 64 21 1 16 - 1 8 - 2 - 1 3
De 50100
De 001001
a 100a000
500 000 21 2114 16 14 1 13 - -- 3 - - - 1 1
M ais de 500 000 5 5 2 - - 1 2
De 100 001a 500 000 14 14 13 - - - 1 - -
MFo
aisnte:
de 500 000 5 5 2 - - 1 2 -
IB GE, Direto ria de P esquisas, Co o rdenação de P o pulação e Indicado res So ciais, P esquisa de Info rmaçõ es B ásicas M unicipais 2014.
-
(1) Inclusive o s sem declaração de quantidade.
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa de Informações Básicas M unicipais 2014.
(1) Inclusive os sem declaração de quantidade.
Na tabela 3, a seguir, nota-se que o déficit de CTs é uma realidade de todas as regiões
brasileiras. A diferença é que, de região para região, há mais ou menos estados que ainda não
criaram nenhum Conselho Tutelar. Na região Norte, municípios do Amazonas e do Pará ainda
não tinha implantado Conselhos Tutelares até a pesquisa do IBGE em 2014. Na região
Nordeste, apenas o estado do Maranhão apresentava tal quadro, e com o preocupante número
de dez municípios sem CTs. No Sudeste, tanto Minas Gerais quanto Espírito Santo e São Paulo
ainda não haviam universalizado o número de Conselhos, no Centro-Oeste, apenas o estado do
Mato Grosso e, por fim, na região sul do país, Paraná e Rio Grande do Sul não completavam
100% de municípios com CTs.
49
A “Pesquisa Conhecendo a Realidade”, realizada pelo Centro de Empreendedorismo Social e Administração em
Terceiro Setor (CEATS/ FEA – USP) em 2006 e 2011 sob encomenda do CONANDA, representou um esforço
importante para o mapeamento dos Conselhos Tutelares e de Direitos no Brasil, trazendo vários resultados sobre
o funcionamento dos Conselhos, perfis, dificuldades e outras questões. Contudo, o relatório da pesquisa de 2011
não chegou a ser aprovado pelo CONANDA e, assim, a pesquisa daquele ano não foi publicada. Em alguns
momentos do nosso trabalho, apresentaremos alguns dados da pesquisa de 2006, com a ressalva de que seria
necessária e adequada uma atualização do panorama geral dos Conselhos.
Tabela 172 - Municípios, total e com Conselho Tutelar e algumas caracterí
segundo as Grandes Regiões e as Unidades da 106Federação -
M unicípio s
M unicípios
B Grandes
ra s il Regiões 5 570 Com Conselho
5 Tutelar,
5 4 2por algumas características
4 535 20 14
e Vinculado administrativamente ao órgão gestor da
Nclasses
o rt ede tamanho da Total 450 447 397 1 1
população dos municípios Total (1) Gabinete ou Não é
Ro ndô nia Assistência 52Justiça Direitos52 Crianças e 50 do -vinculado a -
chefia Outro
social humanos adolescentes
Executivo nenhum órgão
A cre 22 22 20 - 1
BA
rasil
mazo nas 5 570 5 542 4 535 62 20 14
61 159 45 609 78 - 126 -
Até 5 000 1243 1236 956 6 1 45 167 22 39
De 5raima
Ro 001a 10 000 1216 1209 975 15 6 152 50 10 121 14 - 41 -
De 10 001a 20 000 1383 1373 1178 3 - 33 121 18 20
P ará 144 142 128 - -
De 20 001a 50 000 1080 1077 890 4 4 20 122 15 21
De 50 001a 100 000
A mapá 348 348 287 16 1 16- 4 16 49 4 - 3 -
De 100 001a 500 000 261 260 221 - 4 5 24 4 2
MTo cantins
ais de 500 000 39 39 28 139 - 1393 2 128 5 1 1 - -
Como vimos, para candidatar-se a membro do Conselho Tutelar, o Estatuto prevê como
requisitos do candidato ter reconhecida idoneidade moral, idade superior a 21 anos e residir no
município. Requisitos adicionais podem ser adicionados a esse conjunto desde que não
contrariem os requisitos mínimos estabelecidos na Lei Federal. O ECA não traça uma série de
107
requisitos específicos, pois objetiva possibilitar a ampla participação da sociedade civil nos
Conselhos. Essa questão será novamente trabalhada ao analisarmos os resultados de nossa
pesquisa.
50
Os bons conselhos: pesquisa “conhecendo a realidade” / FISCHER, Rosa Maria (org.) – São Paulo: 2007.
Disponível em: http://www.andi.org.br/documento/os-bons-conselhos-conhecendo-realidade-pesquisa. Acesso
em: 20 de outubro de 2015.
108
Domicílios – PNAD 200951, do IBGE, revelam que, em 2009, 33% da população brasileira
detinha 11 anos ou mais de estudo (o que compreende, no mínimo, os oito anos do antigo ensino
fundamental e os três anos do ensino médio). Se tivéssemos um mapeamento do perfil dos
conselheiros tutelares mais recente, certamente a escolaridade média dos conselheiros tutelares
teria aumentado, visto que a escolarização da população é uma tendência. Contudo, conforme
ressaltamos anteriormente, por mais que a população tenda a se escolarizar mais com o passar
dos anos, exigir como requisito para ser conselheiro tutelar uma certa escolaridade é restringir
a ampla participação da sociedade nos Conselhos, prerrogativa do ECA.
De acordo com as notas técnicas da pesquisa, o que se entende por “entidade que atua na
área da criança e do adolescente”, são as que têm registro no CMDCA e os exemplos deste
campo podem sem vários, tais como escolas, ONGs e igrejas. Dependendo do município, este
51
Ver IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: Síntese de Indicadores 2009. Rio de Janeiro: IBGE,
2010. Disponível em
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2009/pnad_síntese_2009.pdf.
Acesso em: maio de 2016.
109
critério pode ser bem restritivo, uma vez que, dependendo no número de entidades existentes
no local, poderão haver conselheiros advindos de uma única entidade.
ainda eram um tópico mais distante na realidade dos conselheiros: apenas 54% dos Conselhos
Tutelares tinham jornada de trabalho regular não superior a oito horas diárias e 44 horas
semanais; 50% da amostra estudada tinha licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do
salário, com duração de 120 dias; 46% tinha direito à previdência social, e apenas 41% tinha
direito a férias remuneradas.
Por mais que o objetivo principal do Conselho seja permitir a participação da comunidade
local no trato dos assuntos infanto-juvenis, é difícil imaginar como isso se daria sem
remuneração adequada e sem os direitos trabalhistas assegurados. Nesse caso, o que seria feito
para visar à participação da sociedade seria, na verdade, mão-de-obra barata para o Estado, já
que os conselheiros também atuam no âmbito do atendimento ao público infanto-juvenil
violado em seus direitos. Também vale notar a disparidade de realidades entre os diversos
municípios brasileiros. A falta de regulação e de uma política mais definida e centralizada pode
dar uma maior discricionariedade para o poder público agir da forma que lhe cabe em relação
aos Conselhos Tutelares, prejudicando a defesa dos direitos de crianças e adolescentes.
Nas notas técnicas da pesquisa, tem-se que o índice indica com que eficiência o Conselho
Tutelar julga desempenhar o exercício de suas atribuições básicas: 0 a 0,33, baixa eficiência;
0,33 a 0,67, média eficiência; 0,67 a 1, alta eficiência. Nesse sentido, vemos que a atribuição
de contribuir, junto com o CMDCA, na elaboração de proposta orçamentária é a que os
conselheiros julgaram cumprir com menos eficiência. As outras demandas que requerem um
certo grau de articulação do Conselho com a rede municipal também são cumpridas com menos
eficiência. Entendendo que faltam maiores eforços para compreender o quadro descrito, nossa
pesquisa orienta-se a compreender os fatores para a participação dos Conselhos e dos
conselheiros na articulação para as políticas públicas.
municipalizada, o que, por um lado, permite aos municípios atuarem de acordo com sua própria
realidade, mas, por outro, permite distorções e contravenções, tais como municípios que ainda
não implementaram seu Conselho Tutelar, além de distintas realidades a nível nacional. Esse
tópico pode ser elaborado, principalmente, com o uso dos dados da Pesquisa Conhecendo a
Realidade – Edição 2006, importante estudo a nível nacional que pode contribuir para
acadêmico, gestores e sociedade civil, contudo, em 2017, apontamos para a inexistência de
estudos mais recentes, e defendemos, aqui, sua necessidade. A referida pesquisa demonstrou,
entre outros tópicos, que os Conselhos Tutelares, em 2006, encontravam bastante dificuldades
para se articularem de modo a contribuir para as políticas públicas municipais de infância e
adolescência, o que corrobora nosso argumento e justifica nosso esforço para tentar
compreender os fatores que levam a isso. O capítulo a seguir, nesse sentido, trará nossa própria
leitura a partir da pesquisa de campo com os Conselhos Tutelares de Guarulhos.
Guarulhos foi fundada em 8 de dezembro de 1560 pelo Padre Jesuíta Manuel de Paiva
com o nome de Nossa Senhora da Conceição, em um local até então habitado pelos índios
Guarus, da tribo dos Guaianases. Em 1590 foram descobertas minas de ouro na região onde
atualmente é o bairro de Lavras. As chamadas 'Lavras Velhas do Geraldo' podem ser vistas,
hoje, na margem direita da estrada que se dirige de Cumbica para Nazaré Paulista.
D. Pedro II visitou a região em 1880, a qual foi elevada à Província de Nossa Senhora da
Conceição de Guarulhos. Apenas em 1906 uma Lei Estadual determinou que Guarulhos
recebesse a denominação de cidade.
O início do século XX marcou também a chegada da energia elétrica (Light & Power), dos
pedidos para instalação da rede telefônica, licenças para implantação de indústrias de atividades
comerciais e dos serviços de transporte de passageiros.
Nos anos 50 a inauguração das rodovias Presidente Dutra e Fernão Dias aproxima pessoas e
mercadorias da cidade. Guarulhos se viu unida a São Paulo, no momento histórico de aceleração
115
industrial, e ao Rio de Janeiro, ainda então capital federal e centro de decisões políticas e
econômicas, gerando, portanto, um impulso para instalação de indústrias nos trechos das
rodovias que passam pelo município.
A fase dos anos 1960/1970 é marcada pela estruturação de atividades industriais que em
grande medida pautaram os caminhos da migração para o Estado de São Paulo. Em 1985, foi
inaugurado o aeroporto de Cumbica, hoje denominado “Aeroporto Internacional de São Paulo-
Guarulhos Governador André Franco Montoro”, o maior da América do Sul. 52
52
Guarulhos (SP). Prefeitura. 2014. Disponível em: http://www.guarulhos.sp.gov.br. Acesso em: out.2017.
53
IBGE Cidades. 2017. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/guarulhos/panorama. Acesso em:
out.2017.
54
Conforme tratado no capítulo dois, o número de Conselhos Tutelares no Brasil não chegou a ser universalizado
27 anos após a promulgação do ECA. Há municípios sem a presença de nenhum Conselho Tutelar. Que dirá, então,
municípios que não cumprem a resolução 139 do CONANDA.
55
Reportagem de 2011 apontava o déficit de CTs no município. Mesmo com a criação de outro CT, Guarulhos
precisa de novos Conselhos em outras regiões da cidade. Guarulhos Web. Guarulhos segue com déficit no número
116
% de % de % de % de 15 a
Mortalida % de
criança criança pessoas de 24 anos que
Espacialidades de infantil crianças
s de 0 a s de 6 a 15 a 24 anos não
2010 extremamen
5 anos 14 fora que não estudam,
Apesar de, em 2013, o Produto Interno Bruto (PIB) do município ter sido de R$51,3
57
milhões , em 2015, o salário médio mensal era de 3.2 salários mínimos (R$2.521,60). A
proporção de pessoas ocupadas em relação à população total era de 28.9%. Na comparação com
os outros municípios do estado, ocupava as posições 53 de 645 e 173 de 645, respectivamente.
Já na comparação com cidades do país todo, ficava na posição 154 de 5570 e 591 de 5570,
respectivamente. Considerando domicílios com rendimentos mensais de até meio salário
mínimo por pessoa, tinha 36.1% da população nessas condições, o que o colocava na posição
103 de 645 dentre as cidades do estado e na posição 3333 de 5570 dentre as cidades do Brasil.
Nesse sentido, por mais que seja um município com um dos maiores PIBs do Brasil, o
aparente desenvolvimento econômico não se reverte em bons indicadores sociais.
Em termos educacionais, em 2015, os alunos dos anos inicias da rede pública da cidade
tiveram nota média de 6, 2 no IDEB. Para os alunos dos anos finais, essa nota foi de 4, 6. Na
comparação com cidades do mesmo estado, a nota dos alunos dos anos iniciais colocava esta
cidade na posição 306 de 645. Considerando a nota dos alunos dos anos finais, a posição
passava a 467 de 645. A taxa de escolarização (para pessoas de 6 a 14 anos) foi de 97.1 em
2010. Isso posicionava o município na posição 519 de 645 dentre as cidades do estado e na
posição 3514 de 5570 dentre as cidades do Brasil.
57
Guarulhos Hoje. Guarulhos se mantém como a 13ª. economia entre as cidades brasileiras. Disponível em:
https://www.guarulhoshoje.com.br/2016/12/15/guarulhos-se-mantem-como-a-13o-economia-entre-as-cidades-
brasileiras/. Acesso em: 20 de outubro de 2017.
118
58
Brasil ocupa 73ª posição entre 169 países do idh 2010. Disponível em:
http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/11/brasil-ocupa-73-posicao-entre-169-paises-no-idh-2010.html. Acesso
em: 20 de outubro de 2017.
119
59
Após e-mails, ligações e envios de ofício, nenhuma resposta foi dada pelo órgão. A dificuldade em obter dados
será novamente citada no decorrer do texto, mas foi vivida não só em relação à prefeitura, como também ao
CMDCA e aos Conselhos Tutelares.
125
O município prevê, em sua lei orgânica, o tratamento dos direitos humanos. Todavia, tal
tema não foi incorporado, até 2014, pelo plano plurianual, pela Lei Orçamentária Anual de 2013
(LOA), nem pela Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2014 (LDO). A cidade tem o Fundo
Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente desde 1991 – sendo o Fundo mais antigo
no município - restando, em 2014, criar o fundo municipal dos Direitos Humanos e dos Direitos
do Idoso. Em termos da pauta geral de “direitos humanos”, resta à cidade também criar sua
ouvidoria de direitos humanos e promover a modernização dos canais de recebimento, registro
e acompanhamento de denúncias de violação de direitos: em 2014, o município ainda não tinha
uma página na internet que possibilitasse o registro da violação.
Coincidentemente, a Munic também revela que, em 2014, Guarulhos não tinha tido sua
conferência municipal de direitos humanos realizada nos últimos quatro anos pelo governo
municipal. Esse ponto é importante, pois, dentro do tema geral dos “direitos humanos”, estão
contempladas várias outras pautas, inclusive pautas dos direitos da criança e do adolescente. A
cidade havia tido sua conferência municipal de direitos ou políticas para a criança e o
adolescente, mas não havia tido a de direitos ou políticas para a juventude nem outras muito
importantes tais como a de educação, cultura, saúde, esporte e segurança pública.
18 de junho de 1991 e, atualmente, realiza suas reuniões na primeira terça-feira do mês na Casa
dos Conselhos, espaço localizado no centro de Guarulhos. O CMDCA tem composição paritária
(representação da sociedade civil e do poder público) e conta com a seguinte formação: um
representante da Secretaria da Promoção Social; um representante da Secretaria da Educação e
Cultura; um representante da Secretaria da Saúde; um representante da Secretaria de Esporte e
Turismo; um representante da Secretaria das Finanças; um representante da Secretaria do
Trabalho; um representante da Associação ou Federação de Entidades Sociais, ligado à
Assistência às Crianças e aos Adolescentes; dois representantes de entidades privadas de defesa
e atendimento dos direitos da criança e do adolescente; um representante do Conselho
Municipal de Educação; um representante do Conselho Municipal da Saúde; um representante
do Conselho Municipal de Bairros. Junto com o CMDCA, Guarulhos conta com sete Conselhos
municipais, cada um com suas características próprias.
A análise desse dado permite ressaltar alguns aspectos importantes. Primeiro, o fato do
Conselho ter declarado ter plano de ação e não possuir diagnóstico formal da situação de
crianças e adolescentes do seu território é indicativo de que tais planos podem não estar
fundamentados em dados objetivos e sistematizados. Segundo, se a elaboração do plano de ação
não foi determinada ou influenciada pela existência de um diagnóstico formal, pode-se dizer
que o CMDCA tomou por base dados informais e informações subjetivas para planejar e
priorizar as ações que concretizam suas políticas. Terceiro, tais condições de planejamento
restringem as possibilidades de monitoramento e avaliação das ações implementadas, bem
como da alocação de recursos disponíveis aos Conselhos, como, por exemplo, os advindos dos
Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente, o que coloca em risco a eficiência e a eficácia
de sua atuação.
do que acontece na prática social desses órgãos colegiados, um paradoxo se coloca. Embora as
observações indiquem que os conselheiros são mais experientes e capacitados (em termos de
escolarização e tempo de experiência), bem como que contam com melhores condições de
infraestrutura física para realizarem suas atividades, é possível questionar se esses
investimentos estão sendo suficientes para aperfeiçoar o processo de produção de políticas por
esses Conselhos.
A análise dos resultados da pesquisa permite, contudo, pensar que o gap sinalizado por
Benedito dos Santos (2011)60 entre o modelo idealizado de Conselho de Direitos e o modelo
operacional desenhado pela prática social pode estar condicionando a forma de participação
destes órgãos nos processos de formulação de políticas para infância e adolescência. Afinal, no
atual formato de Conselhos, grande parte da energia de seus membros é investida na
coordenação do processo eleitoral dos Conselheiros Tutelares, na coordenação das ações de
capacitação e na implementação dos planos de medidas proteção especial. Isso significa dizer
que tais atividades são as consideradas prioritárias, na prática, enquanto a pequena
disponibilidade de tempo que os conselheiros dedicam aos Conselhos não abre espaço para o
debate e a elaboração cuidadosa das políticas. No caso do município de Guarulhos, o CMDCA
reúne-se apenas uma vez por mês, com uma reunião de no máximo cinco horas. É muito difícil
acreditar que tal modo de organização dará conta de coordenar as rotinas burocráticas, os planos
de medidas de proteção especial e a formulação de políticas.
60
Ver SOUZA FILHO, R.; SANTOS, B. R.; DURIGUETTO, M. L. (orgs). Conselhos Tutelares: desafios teóricos
e práticos da garantia de direitos da criança e do adolescente. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora,
2011.
128
responsabilizem por todas estas etapas do processo. Conforme mencionado acima, o tempo de
dedicação dos conselheiros de direitos, estejam eles vinculados a órgãos municipais ou
estaduais, ou sejam representantes do governo ou da sociedade civil, não vai além de cinco
horas mensais, sendo que parte desse tempo é ocupada com a realização de assembleias. Nesse
sentido, com o próprio CMDCA sem incidência sobre as políticas públicas do município, fica
difícil os Conselhos Tutelares assumirem esta características.
Estas ações mais destacadas pelos conselheiros municipais de Guarulhos refletem cinco
ordens de prioridades: o fortalecimento dos Conselhos de Direitos e Tutelares, por intermédio
da estruturação física dos órgãos, da articulação e capacitação, a mobilização dos gestores de
políticas sociais básicas locais, a implementação das medidas de proteção especial,
particularmente, as medidas socioeducativas, e as aplicações dos recursos do Fundo dos
Direitos da Criança e do Adolescente e ações de comunicação social, particularmente, para
divulgação de temáticas vinculadas à defesa dos direitos da criança e do adolescente.
às dos Conselhos de Direitos, porém com foco específico numa dada política setorial. O
movimento de articulação entre o CMDCA e os Conselhos de outras áreas é ainda pequeno: o
CMDCA declarou se relacionar “poucas vezes” com outros Conselhos de políticas setoriais.
Segundo, a ênfase dada ao processo de implementação dos planos de medidas de proteção
especial, já mencionada acima, os quais não estão contextualizados no interior de planos mais
amplos de promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente.
O bairro dos Pimentas, segundo o censo de 2000, contava com cerca de 134 mil
habitantes,tendo esse número se elevado para 156.748 no censo de 2010, sendo o bairro mais
populoso de Guarulhos. Limita-se com Itaquaquecetuba (leste), São Miguel Paulista e Jardim
61
Guarulhos. LEI Nº 4.665 DE 07 DE NOVEMBRO DE 1994. Autor: Prefeito Municipal. Cria o Conselho Tutelar,
órgão indispensável à Política Municipal de Atendimento aos Direitos da Criança e do Adolescente e dá outras
providências.
Disponível em: http://leis.guarulhos.sp.gov.br/06_prefeitura/leis/leis_download/04665lei.pdf. Acesso em: 27 de
outubro de 2017.
62
Guarulhos. LEI Nº 5.185 DE 10 de MARÇO DE 1998. Autor: Prefeito Municipal. Institui 3 (três) Conselhos
Tutelares, órgãos indispensáveis à política municipal de atendimento aos direitos da criança e do
adolescente.http://leis.guarulhos.sp.gov.br/06_prefeitura/leis/leis_download/05185lei.pdf. Acesso em: 27 de
outubro de 2017.
130
Helena (sul e sudeste), Cumbica (oeste) e Bonsucesso (norte). Nesse sentido, era urgente a
instalação de um Conselho Tutelar na região, medida que foi tomada em 200463.
O último conselho tutelar criado na cidade foi o do Jardim São João em 201164. Segundo
os conselheiros entrevistados pela pesquisa, o número atual de Conselhos da cidade não é
suficiente para atender as demandas, sobretudo quando a insuficiência de instalações alia-se às
deficiências de infra-estrutura.
Fonte: elaboração própria utilizando o software ArcMap a partir dos dados da prefeitura de Guarulhos.
Observa-se que a reclamação dos conselheiros tutelares, frequente em nosso estudo de
campo, em não ser possível atender todas as demandas encontra respaldo no sentido
geográfico. Guarulhos é uma cidade grande e, na direção nordeste, existem bairros como
Morro Grande, Água Azul e Capelinha, nos quais localizam-se muitos sítios, chácaras,
cachoeiras e pontos turísticos, representando a zona rural da cidade. Por mais que a região
63
Guarulhos. LEI Nº 6.050 DE 01 de DEZEMBRO DE 2004. Autor: Prefeito Municipal. Dispõe sobre criação
do Conselho Tutelar na região dos Pimentas e dá providências correlatas.Acesso em: 27 de outubro de 2017.
Disponível em: http://leis.guarulhos.sp.gov.br/06_prefeitura/leis/leis_download/06050lei.pdf.
64
Guarulhos. LEI Nº 6.924 DE 06 de OUTUBRO DE 2011. Autor: Prefeito Municipal. Acesso em: 27 de
outubro de 2017. Disponível em: http://leis.guarulhos.sp.gov.br/06_prefeitura/leis/leis_download/06924lei.pdf.
131
seja menos populosa, para os conselheiros da região do Bonsucesso, por exemplo, fica
difícil a locomoção.
Nossa pesquisa de campo foi feita com cinco Conselhos Tutelares da cidade. O objetivo
inicial era realizar o campo nos seis CTs existentes, contudo, um dos Conselhos não aceitou
nos receber para a pesquisa, motivo pelo qual realizamos a pesquisa nos cinco CTs. Um dos
compromissos acordados pelo termo de consentimento era o sigilo da identidade dos
conselheiros, motivo pelo qual, ao fazermos referência às trajetórias, redes sociais e falas de
cada um deles, usaremos um nome fictício para designá-los. Um ponto não estabelecido no
termo de consentimento para a concessão de entrevistas, mas questionado pelos conselheiros
foi “mas de que adianta você não divulgar meu nome, mas divulgar de que Conselho eu sou?
Se só eu der entrevista aqui, todo mundo vai saber que fui eu”. Dessa forma, os Conselhos serão
tratados pela denominação CT1, CT2, CT3, CT4 e CT5, sem fazer referência específica à
localização de cada um. A numeração é aleatória e não representa nenhum sentido cronológico
ou geográfico.
Aliás, a dificuldade para realizar o campo foi sentida não somente com os conselheiros
tutelares. Pareceu-nos que havia muita desconfiança por parte dos nossos interlocutores,
seguida pelo desencontro de informações e pela morosidade com a qual uma pesquisa de
mestrado não pode lidar. 65
65
Num artigo do Caderno Temático – suplemento do jornal da UNICAMP -, os docentes da instituição brincam a
dificuldade de explicar para as pessoas no geral o trabalho acadêmico: Conta-se que o famoso matemático inglês
Michael Atiyah resolveu explicar para a sua mãe a natureza de suas atividades. Depois de ter ouvido atentamente
as explicações do filho, a boa senhora teria dito: “Acho que agora entendi o que você faz; mas diga-me uma coisa,
por que pagam você para isso?”. Caderno Temático. Suplemento do jornal da UNICAMP. Os desafios da pesquisa
no Brasil. Campinas, fevereiro de 2002 – ANO I – Nº 12. Acesso em: 21 de outubro de 2017. Disponível em:
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/jornalPDF/ju170tema_p01.pdf.
132
Essa dificuldade foi sentida ao tentarmos explicitar que os interesses por trás da realização
das entrevistas e das observações eram meramente científicas. “Você é jornalista?”, “mas pra
que você quer saber disso? Pra contar pro CMDCA?”, “que certeza eu tenho de que você não
vai divulgar meu nome?”. Por já ter trabalhado em algumas pesquisas de campo e já tendo sido
recenseadora, a insegurança das pessoas em repassar informações não foi propriamente uma
novidade. É comum que as pessoas se perguntem por que tal informação é valiosa para aquela
pessoa e, na medida em que esta pessoa tem interesse, pode ter interesses outros que não sejam
explicitados.
Nisso, é importante que o pesquisador lembre que não está, necessariamente, dialogando
com pessoas que circudam seu universo simbólico. As noções de transparência, ética, sigilo e
desenvolvimento acadêmico não são associadas por todos da mesma maneira e, além disso, vale
lembrar que num país com níveis de desigualdade social como o Brasil, as noções do que é
fazer um mestrado e do trabalho de uma dissertação não são igualmente reconhecidas.
Sendo assim, várias vezes adaptei minha empreitada à uma tarefa conhecida: fazer o
trabalho da faculdade. No CT1, ao ser recebida pelo conselheiro Paulo para minha primeira
entrevista da pesquisa, fui apresentada ao restante das conselheiras da seguinte forma: “essa
mocinha veio fazer o trabalho da faculdade e quer fazer umas entrevistas com a gente”. Sem
fazer grandes problematizações do tratamento pela questão etária e de gênero, confirmei a
apresentação e tentava explicar com mais detalhes nos momentos oportunos.
Importante ressaltar também que as dificuldades não partiram somente dos nossos
interlocutores. Antes de ir presencialmente a campo, decidi verificar se os telefones e endereços
estavam corretos no site da prefeitura de Guarulhos, pois correria menos risco de chegar ao
endereço e não encontrar o Conselho. Felizmente, fiz esta conferência, caso contrário o campo
teria sido muito mais difícil. Abaixo, descrevo um pouco da experiência para chegar ao CT1:
lá, também não o encontro. Decido voltar pra casa e checar em outras fontes.
(Caderno de campo, 12/07/2017).66
66
No caso do CT1, após várias tentativas de contato telefônico, consegui de fato e descobri que o Conselho não
estava funcionando para atendimento presencial. O atendimento à população estava sendo feito apenas por
telefone, pois eles estavam em processo de mudança para um novo endereço.
134
Eu: (esclarecimento).
Ela: Espera, vou passar pra uma das conselheiras.
(depois de seis minutos)
Ela: Olha, a gente não costuma participar disso não.
Eu: Disso o quê? Só queria saber o melhor dia e horário pra me apresentar
pessoalmente.
Ela: Ligue amanhã, que elas já vão ter uma resposta se sim ou não.
Eu: Entendo, mas gostaria de explicar pessoalmente os objetivos do estudo
antes que elas me dissessem sim ou não.
Ela: Ligue amanhã.
[desligou].
(Caderno de campo, 10/07/2017).
Minha estratégia foi ligar para o CT2 em diferentes horários para tentar compreender se
havia dois assistentes e se eles atendiam o telefone em horários diferentes. Tinha o pressuposto
de que, com um segundo assistente, o tratamento seria diferente. Por sorte, havia outro
assistente e, de fato, consegui o intermédio dele para conversar pessoalmente com as
conselheiras na melhor data.
Em suma, pude apreender que se inserir no cotidiano de um órgão público demanda mais
ações que a escrita e o envio de um ofício. Por mais que os Conselhos Tutelares não tenham
sido idealizados como repartições públicas com a figura do tipo ideal do burocrata, no cotidiano
o trabalho nessas instituições segue uma lógica semelhante, com leituras burocráticas sobre
135
suas tarefas. E, nesse sentido, é importante compreendê-los em sua forma real, com suas
diferenças e similaridades, que pedem do pesquisador o jogo de cintura para se adaptar a elas.
Os conselheiros tutelares de Guarulhos recebem, atualmente, R$2.000, por mês, valor que
a prefeitura denomina de “ajuda de custo”, e não de salário. Além da ajuda de custo, os
conselheiros recebem vale alimentação e vale transporte e são assegurados pela lei municipal:
i. cobertura previdenciária; ii. gozo de férias anuais remuneradas, acrescidas de 1/3 (um terço)
do valor da remuneração mensal; iii. licença-maternidade; iv. licença-paternidade; e v.
gratificação natalina.67
Como não há pesquisas regulares sobre a situação dos Conselhos em âmbito nacional, nossa
última referência acerca dos salários dos conselheiros tutelares no Brasil é a Pesquisa
Conhecendo a Realidade – Edição 2006. A publicação constatou que a grande maioria dos
conselheiros tutelares eram remunerados em 2006. Mais da metade dos conselheiros recebia
um salário que se adequava ao salário mínimo da época: entre R$301 a 400,00 mensais. A maior
remuneração da amostra oferecia R$3.106,00 para cada conselheiro. Num olhar regional, a
região Sudeste apresentava os valores mais elevados (em média R$547,00) e a região Nordeste
oferecia as remunerações mais baixas (em média R$421,80). Os Conselhos que não
remuneravam seus conselheiros representavam 4% dos CTs pesquisados.
67
Tais direitos estão em consonância com a Lei nº 12.696/12, que regulamentou os benefícios trabalhistas dos
conselheiros tutelares.
136
Por mais que Guarulhos remunere seus conselheiros acima do salário mínimo vigente,
considerando o custo de vida em uma metrópole e a dedicação exclusiva demandada pelo
trabalho no Conselho, R$2.000,00 parecem não ser suficientes, observação feita por todos os
conselheiros entrevistados em nossa pesquisa.
O voluntarismo que a função exige em alguns casos é conhecido pelo poder público
municipal. Na opinião de Bianca, do CT01, os vereadores e prefeito assimilam o voluntarismo
da profissão justamente pela pessoa ter se candidatado ao cargo, como se fosse algo feito por
amor, relembrando a dimensão caritativa que historicamente esteve atrelada à pauta infanto-
juvenil no Brasil.
137
Uma vez, estava dando uma capacitação em Minas Gerais. O município Y tinha
bancado a formação dos seus conselheiros tutelares. Os conselheiros do município
vizinho ficaram sabendo e me procuraram perguntando se poderiam vir junto. Eles
disseram que o município deles nunca tinha feito capacitação nenhuma com eles e que
pagariam do próprio bolso. Alugaram a van, pagaram e vieram. (Caderno de campo,
28/06/2017).
O último ponto importante trazido pela lei municipal de Guarulhos em relação aos
conselheiros tutelares é o conjunto dos requisitos estabelecidos para candidatura ao cargo.
Como vimos antes, o ECA estabeleceu apenas três critérios para participação no Conselho
Tutelar: ter idade acima de 21 anos; residir no município e ter reconhecida ideoneidade moral.
A Resolução 139/2010 do Conanda adicionou novos requisitos, a saber, experiência prévia na
promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente, formação específica sobre
o Estatuto da Criança e do Adolescente e comprovação de conclusão do ensino fundamental.
Guarulhos, por sua vez, estabeleceu os seguintes requisitos: i. reconhecida idoneidade moral;
ii. idade igual ou superior a vinte e um anos; iii. comprovação de residir, no mínimo, há dois
68
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n° 5.285, de 2016. Institui o piso salarial profissional
nacional para os Conselheiros Tutelares.Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1462474.pdf.
Acesso em: 22 de outubro de 2017.
139
anos no Município; iv. ser eleitor no Município; v. estar no gozo de seus direitos políticos
apresentando no ato da inscrição certidão expedida pela Justiça Eleitoral; vi. apresentar cópia
autenticada do histórico escolar ou declaração de conclusão de curso do ensino médio; vii.
apresentar documento com firma reconhecida que comprove experiência de dois anos de
atividades na área de atendimento ou de defesa dos direitos da criança e do adolescente; e viii.
apresentar declaração de disponibilidade para o exercício de suas funções.
Se, por um lado, essa tendência reflete a tentativa de assegurar a qualidade do
atendimento prestado a crianças e adolescentes em situação de ameaça ou violação de direitos,
por outro, pode produzir como efeito a limitação da participação da sociedade no enfrentamento
dessa situação.
O perfil dos conselheiros estudados pela nossa pesquisa diferencia-se em partes dos
achados da Pesquisa Conhecendo a Realidade – Edição 2006. Tal estudo identificou que 56%
dos conselheiros tutelares tinham o ensino médio completo, seguido de 15% de conselheiros
com ensino superior incompleto e os também 15% com ensino superior completo. No caso de
Guarulhos, a maior parte dos conselheiros entrevistados concluiu apenas o ensino médio (6) ,
mas com uma proporção próxima de conselheiros com ensino superior concluído (4). No caso
destes, as áreas de estudo são: Educação Física (1), Pedagogia (1), Psicologia (1) e Serviço
Social (1). No único caso de abandono do ensino superior, a área de estudo do conselheiro era
Direito. Por ora, interessa-nos a descrição geral do perfil dos conselheiros estudados.
Apresentaremos a percepção deles sobre o impacto deste fator para o trabalho no Conselho na
seção descritiva do perfil de cada um.
4 6
Ensino Médio
Ensino superior incompleto
Ensino superior completo n = 12
Homens; 3
Mulheres; 9
n = 12
Para compreender este dado, é possível uma aproximação com o que Bernadete
Baccini69 discute sobre o papel da mulher na institucionalização do atendimento à criança e ao
adolescente. Segundo a autora, em períodos anteriores, o cuidado da criança pertencia a uma
esfera estritamente privada, onde era observado o protagonismo da mulher. Com o processo de
institucionalização dos direitos e criação de legislação específica, como o ECA, o papel da
mulher frente a esse trabalho não deixou de existir. Isso foi acrescido pelo processo de
reestruturação do trabalho da mulher, a qual passou a atuar no mercado de trabalho,
preferencialmente, em funções que possuíam características próximas ao trabalho que a mulher
exercia outrora no âmbito doméstico, como por exemplo, o cuidado da criança. Portanto, há
uma tendência de feminização do cuidado com a infância, identificada principalmente pelo
69
Cf. BACCINI, B. L. S. Conselhos Tutelares: uma questão de gênero? In: SOUZA FILHO, R.; SANTOS, B. R.;
DURIGUETTO, M. L. (orgs). Conselhos Tutelares: desafios teóricos e práticos da garantia de direitos da criança
e do adolescente. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2011.
141
número de mulheres que ocupam atividades relativas a esse cuidado, tal qual a função de
conselheira tutelar.
2 1
70
É importante ressaltar que tais observações ocorreram nos dias em que fui realizar os primeiros contatos com
os conselheiros ou então as entrevistas. Devido às limitações de campo, não foi possível uma imersão no campo
com observação frequente das rotinas. Mesmo que houvesse tempo, desconfio que não teria sido possível dado o
receio dos conselheiros tutelares em me receber.
142
Com o intuito de orientar a adequação dos espaços físicos dos Conselhos Tutelares, a
Resolução Conanda 139/2010 faz referência à obrigatoriedade de instalações que permitam o
adequado desempenho das atribuições e competências dos conselheiros e o acolhimento digno
ao público. Para tal, deve conter, no mínimo, placa indicativa da sede do Conselho, sala
reservada para recepção e atendimento ao público, sala reservada para o atendimento dos casos,
sala reservada para os serviços administrativos e sala reservada para os conselheiros tutelares.
Ter sala reservada para recepção e atendimento ao público faz-se necessário para
garantir que o atendimento seja rápido, simples e desburocratizado. Este preceito é assegurado
em quatro dos nossos CTs (CT2, CT3, CT4 e CT5). O CT1, por estar em fase de mudança de
espaço, não dispunha mais deste espaço específico, tendo seus atendimentos realizados apenas
por telefone. Mas, segundo os conselheiros, no novo espaço eles contariam com toda a infra-
estrutura necessária.
Este ponto é difícil de ser assegurado nos CTs estudados. Os CTs 02, 03 e 05 contam
com uma sala reservada para atendimento dos casos, mas, segundo os conselheiros, o pouco
espaço dificulta a manutenção desta sala. Como exemplo, vimos que a sala específica para o
atendimento dos casos do CT02 é ocupada também pela documentação e outras papeladas do
Conselho, o que acarreta que, durante os atendimentos, o assistente administrativo entre
constantemente na sala para guardar, retirar ou organizar algo.
71
Cf. BRASIL. Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e Conselho Tutelar: orientações
para criação e funcionamento. Brasília: CONANDA, 2007. Disponível em:
<http://www.sdh.gov.br/clientes/sedh/sedh/spdca/publicacoes/.arquivos/.spdca/orientacoes.pdf>. Acesso em 11
jun. 2017.
143
O CT 04, por sua vez, não conta com uma sala reservada unicamente para o atendimento
dos casos. Ao adentrar o Conselho, deparei-me com um espaço onde há um balcão de
atendimento, atendimento feito pela assistente administrativa. Neste mesmo espaço inicial,
localizam-se os documentos e uma série de arquivos do Conselho. Ao pedir para falar com uma
das conselheiras, a assistente me disse para esperar “a coordenadora”. Fui, então, levada para
outra sala, acreditando que esta seria a sala dos conselheiros. Ao perceber que não havia mais
nenhuma conselheira no espaço, perguntei à Giane (conselheira que me recebia) sobre onde
estavam as outras conselheiras. De acordo com as anotações de campo (20/07/2017),
Giane me explicou que a falta de uma sala específica para a realização dos atendimentos
acaba impondo uma organização diferente para o Conselho. Justamente para não violar a
privacidade dos casos, as conselheiras revezam os dias em que estarão presentes no CT.
Segundo Giane, no dia em que as conselheiras não vão ao Conselho, elas estão na rua
cumprindo alguma tarefa.
Eu: Mas, Giane, se chegar uma família que vem sendo atendida pela Beth [Beth
não estava no Conselho], como você vai fazer?
Ela: Eu entro em contato com a Beth e peço pra ela comparecer. Se não tiver como
ela vir, vejo com a família se dá pra marcar outro dia, já deixo marcado o horário.
Cada uma de nós atende muitos casos, não tem como eu pegar casos que a outra
já tá cuidando. Até saber tudo que tá acontecendo, melhor deixar com cada uma.
(Caderno de campo, 20/07/2017).
instalação física do CT, em que momento o diálogo e a transmissão dos saberes e observações
ocorria?
na figura do juiz que, de forma individualizada, mesmo contando com uma equipe
técnica, pode desconsiderar as análises, os estudos, as ponderações e opiniões da
mesma e impor suas decisões. Também no conselho tutelar, é o conselheiro ou o
técnico quem geralmente toma as decisões, já que, na maioria das vezes, elas não
passam por discussões mais coletivas. (SCHEINVAR, 2007, p.07).
Esta forma de atuação gera atendimentos que passam a depender das características pessoais
dos conselheiros,
dos recursos que consegue agilizar por esforço próprio e pressupõe o entendimento
de que as questões chegam ao conselho tutelar destituídas de suas conexões sociais
e políticas, podendo ser tratadas de forma pontual. Assim sendo, o conselheiro se
torna um especialista em soluções imediatas e localizadas de “problemas
particulares”, levando ao aconselhamento, à filantropia, à vigilância das famílias,
práticas muitas vezes apoiadas em crenças moralistas. Não dispondo de políticas
públicas que consignariam processos mais coletivos de funcionamento, essas
práticas se restringem ao espaço da competência técnica ou do olhar caritativo.
(SCHEINVAR, 2007, p.07).
Por mais que concordemos com a autora de que a rotina de trabalho dos conselheiros
tutelares vem seguido esta lógica motivada por um contexto neoliberal e, portanto, de reforço
da lógica individualizada, fica claro, no caso do CT04, o impacto que a infra-estrutura pode ter
145
na organização dos conselheiros e nas próprias estratégias que eles formulam para realizar seu
trabalho. Para a população, a questão mais flagrante talvez seja a demora no atendimento72, mas
a não coletivização das discussões sobre os casos traz uma série de implicações. Percebemos,
dessa maneira, que o princípio do caráter colegiado do Conselho torna-se uma mera abstração
quando não há espaços físicos que garantam a aplicabilidade do preceito.
Ao perguntar sobre a função de Giane, pergunto se ela assume mais tarefas que as outras
conselheiras e o que exatamente ela entende como coordenação. Giane diz que, por ser a mais
experiente, as conselheiras a reconheceram como aquela que poderia lhe dar mais suporte, seja
para resolução dos casos, seja para demais tarefas do Conselho. Nesse sentido, no CT4, os casos
circulam em dupla. Giane sabe dos atendimentos de cada uma das conselheiras, e é junto com
cada uma delas que Giane vai atuar. Como figura reconhecidamente mais conhecedora das
exigências que a tarefa demanda, Giane assumiu o posto de coordenação e é assim que é
chamada.
O caso descrito é interessante para algumas reflexões. A primeira delas é que Guarulhos
demanda experiência prévia na área da infância e da adolescência de do mínimo dois anos para
alguém poder se tornar conselheiro tutelar. Assim sendo, todas as conselheiras têm experiência
na área (mesmo que “a área” possa abarcar inúmeras ocupações), mas mesmo assim se sentem
mais confortáveis elegendo alguém mais experiente para ajudarem-nas no cotidiano de
72
Imprenscindível citar o texto de Javier Auyero feito a partir de uma etnografia em centros de prestação de
serviços sociais na Argentina. O autor realiza uma “sociologia da espera”: a ideia é entender qual o significado
que a "espera" tem na vida cotidiana de um cidadão. A espera é um elemento de subordinação, já que coloca o
tempo de quem espera como menos valioso do que o tempo do outro. Quando o Estado faz os cidadãos
"esperarem", ele está construindo uma ideia de subordinação, de dominação, ensinando aos cidadãos que eles
devem ser "pacientes" (em sentido duplo) para poderem ser merecedores dos benefícios. Esta subordinação é
criada e recriada por diversos atores estatais através da criação da "espera". E nestes encontros recorrentes dos
cidadãos com o Estado (e suas esperas), as pessoas pobres aprendem que, apesar dos atrasos e aleatoriedades que
o Estado promove, precisam concordar com as demandas impostas pelos agentes estatais e por seus sistemas. Ver
AUYERO, JOSE. Patients of the State: an etnographic account of poor people’s waiting. Disponível em:
http://lasa.international.pitt.edu/LARR/prot/fulltext/vol46no1/Auyero_5-29_46-1.pdf. Acesso em: 01 de
novembro de 2017.
146
Como veremos adiante, a formação continuada oferecida aos conselheiros da cidade não
fornece os elementos necessários para a multiplicidade de tarefas de um conselheiro tutelar.
Esta percepção é compartilhada pelas conselheiras do CT4, que vínhamos examinando. Nesse
sentido, se a formação específica é deficiente e falha, o conselheiro acaba demandando outros
apoios para galgar algum êxito. O apoio, no caso do CT4, é na trajetória particular de Giane,
que acaba sendo reconhecida como alguém que pode nos ajudar. Scheinvar (2007) também
aponta para esta tendência de hierarquização, sem explicar, todavia, os fundamentos de tal
processo:
A maioria dos conselhos tutelares no Brasil tem adotado uma estrutura hierárquica
sustentada na escolha que eles próprios fazem de um conselheiro-presidente,
afastando-se, assim, da proposta de gestão colegiada. (SCHEINVAR, 2007, p.07).
Também deve ser considerada nas análises a trajetória anterior ao Conselho das
conselheiras. O debate, diálogo e a tomada de decisões conjuntamente não integram a cultura
do mundo do trabalho. Por mais que as conselheiras tivessem experiência na área da infância e
da adolescência, esta não é suficiente para prepara-las para o desenho participativo do Conselho
Tutelar. Desta feita, as análises devem considerar que tais noções não fizeram parte da vida dos
conselheiros tutelares por um bom tempo, o que significa dizer que estes não a incorporam
automaticamente em sua rotina. Estamos de acordo com Pateman (1992, p.60) no entendimento
de que
são os indivíduos e seus valores que formam as instituições ao mesmo tempo que
estas devem estimular o desenvolvimento das qualidades psicológicas destes
indivíduos. Por isso, a função da participação na democracia é educativa: quanto
mais o indivíduo participa do processo decisório, mais ele estará apto a participar.
Ao estudarmos o CT5, observamos que este preza pelo diálogo constante dos conselheiros
para execução das tarefas. Segundo os conselheiros entrevistados, no geral, há uma reunião por
dia, mesmo que seja rápida, para que os conselheiros se informem dos últimos acontecimentos.
O colegiado não tem nem discussão...tem que ter o colegiado, aqui a gente garante ele, nos diz
Ivan, conselheiro que assumiu o cargo no início deste ano, um ano depois dos demais. Acho
que é um trabalho tão puxado que, se não tiver conversa, fica todo mundo doido. O colegiado
é o momento mais produtivo, a gente consegue ter muito mais base, continua.
147
No caso do CT5, este Conselho conta com todos os espaços que um Conselho deveria
contar. Há a sala de recepção, de atendimento dos casos, a sala para os próprios conselheiros,
sala de reunião e sala para armazenamento dos materiais administrativos. A gente conserva bem
o Conselho. Pelo o que ouço falar, tem Conselho que não tem nem a identificação dos casos
nas pastas porque diz que não tem material pra fazer. A gente tem as salas, computador,
internet, celular, até que estamos bem, observa Ivan, conselheiro entrevistado. Nesse ponto,
observamos que os conselheiros deste Conselho se utilizam de grupos em aplicativos para
manter a conversa em dias que não estão todos no Conselho. É importante saber o que o outro
tá fazendo. É também segurança, a gente não sabe o que pode acontecer quando outro
conselheiro tá na rua.
tutelares. Esta iniciativa envolveu e ainda envolve a participação dos Conselhos Estaduais dos
Direitos da Criança e do Adolescente, bem como os órgãos estaduais que outrora estiveram
envolvidos nestas formações. É possível que tais órgãos não estejam mais envolvidos
diretamente nessas capacitações, mas sim que elas sejam feitas através das Escolas de
Conselhos. O mesmo seria válido para outras instituições. À medida que as Escolas de Conselho
vão sendo implantadas nos estados do Brasil (ainda que tenham sido em somente 22 estados,
até o momento da pesquisa), espera-se que outras instituições deixem de capacitar os Conselhos
Tutelares das regiões. Pode-se concluir que além de os próprios Conselhos Municipais de
Direitos da Criança e do Adolescente tratarem da capacitação dos Conselhos Tutelares, com
foco nas necessidades específicas do município, há a tendência de que as Escolas de Conselhos
se propaguem por todo o país, com o desafio de unificar e normatizar os conteúdos trabalhados
em todos os estados brasileiros.
73
O Orçamento Criança e Adolescente – OCA - é um instrumento que facilita o controle social do orçamento
público destinado à garantia dos direitos da criança e do adolescente nas instâncias municipal, estadual e federal.
A metodologia do OCA está disponível aos conselheiros na cartilha De olho no orçamento criança – Atuando
para priorizar a criança e o adolescente no orçamento público, editada pela Fundação ABRINQ, INESC e
UNICEF em 2005. Fundação Abrinq. Fundo das Nações Unidas para a Infância. Instituto de Estudos Econômicos.
De olho no orçamento da criança. Disponível em:
<http://www.unicef.org/brazil/pt/de_olho_orcamento_crianca.pdf>. Acesso 13 jun 2016.
149
políticas públicas na área da infância e juventude, tal como preconiza o ECA em seu artigo 136
(incisos III e IX).
3.2. Fatores relacionais: o papel das redes sociais e do perfil dos conselheiros tutelares
na elaboração de políticas públicas
Profissionais
Associações de
Márcio Ivan
Moradores de Bairro
Ivan - Partido
dos
Partidos políticos
Trabalhadores
Associações
(PT)
Associações ligadas à Giane
Paulo Márcio Izilda Ivan
religião Beth
Outros movimentos
sociais
Bianca Ariane Sueli
Nenhuma
Roseli Viviane Carla
Nossa amostra é majoritariamente religiosa. Houve apenas uma conselheira que declarou
ser sem religião. Dentre os religiosos, há a maior presença de católicos; seguidos dos
evengélicos e, por fim, um caso de uma conselheira espírita kardecista. Chama atenção que a
religião, no caso dos conselheiros estudados, se estende também para a participação em
associações religiosas. Muitos conselheiros, inclusive, têm sua experiência na área da infância
e da adolescência prévia ao Conselho Tutelar marcada pela trajetória de atuação no âmbito
religioso. Esta questão é importante, pois veremos como os conselheiros visualizam a esfera
religiosa como solução dos vários problemas enfrentados no dia-a-dia dos Conselhos.
Não foi possível encontrar muitos materiais de campanha utilizados na eleição de 2015
para os Conselhos. No que segue abaixo, vemos como os candidatos chamavam a atenção para
o fato de serem religiosos. Tal característica, portanto, os atribuiria capacidade para uma boa
atuação:
152
Fonte: Guaruevocê. Guarulhos fará seleção de novos conselheiros tutelares. Acesso em: 23 de
outubro de 2017. Disponível em: http://guaruevoce.com.br/guarulhos-fara-selecao-de-novos-
conselheiros-tutelares/
153
De forma geral, como tivemos um número de entrevistas que variou de Conselho para
Conselho (no CT04 conseguimos fazer quatro entrevistas e no CT03 e 05 apenas uma, por
exemplo), é difícil fazer afirmações sobre o perfil geral de cada Conselho com base nas
informações que recolhemos. Em outras palavras, é difícil projetar as características pessoais
de um conselheiro para o Conselho como um todo quando temos apenas um caso estudado. Por
esse motivo, adotamos como critério para apresentação dos dados a classificação obtida a partir
das entrevistas realizadas, ou seja, apresentaremos os resultados por perfil semelhante de
conselheiros, o qual não agrupa necessariamente conselheiros do mesmo CT. O perfil foi
formado a partir das respostas que os conselheiros deram em relação ao encaminhamento das
demandas e as demais impressões semelhantes sobre a atuação do Conselho Tutelar.
Analisaremos, portanto, os diferentes perfis de conselheiros e os sentidos que eles dão para a
atuação do e no Conselho Tutelar.
3.2.1. Os conselheiros tutelares por eles próprios: trajetórias e significação às sua ações
Com alguns conselheiros tutelares, conseguimos fazer entrevistas mais longas e que nos
permitiram aprofundar temas relacionados à pesquisa, mas que não cabiam apenas no momento
de aplicação do questionário. Assim, procederemos agora à explicitação dos perfis de
conselheiros agrupados de acordo com suas percepções sobre as demandas recebidas, a
frequência, a prioridade e a identificação da rede ativada para encaminhar a demanda. Tal
critério foi utilizado por ser o elemento distintitivo entre os conselheiros, sobretudo em relação
à percepção deles sobre a prioridade em atuar no campo das políticas públicas. Nesse sentido,
não serão apresentados os dados relativos ao total de conselheiros estudados (12), e sim os
dados dos conselheiros que tinham elementos em comuns com outros. O interessante é notar
que, dentro de um mesmo Conselho, diferentes conselheiros dão distintas significações às suas
atribuições e formas de agir.
Ariane trabalha no CT02 e está na faixa dos 30-40 anos e reside em Guarulhos há menos
de cinco. Segunda ela, ainda não se adaptou bem à cidade. Ela morava em São Paulo e se mudou
para Guarulhos pois o marido se estabeleceu em outro emprego. É formada em Psicologia –
154
maior escolaridade dos conselheiros entrevistados no CT02 – mas nunca chegou a exercer a
profissão.
A conselheira afirma que o trabalho de um ano e meio no Conselho Tutelar serviu para
desanimá-la ainda mais com os serviços públicos. Como precisa estar em com diversos órgãos
cotidianamente, diz que o governo é muito ineficiente. Ariane pensa em sair do CT em breve,
pois o marido cogita morar no Canadá em busca de melhores condições de vida. Lá as coisas
funcionam.
Izilda, que reside no município desde que nasceu, declara ter a sensação de que o
trabalho no Conselho é necessário porque há um problema nos valores atuais. A conselheira,
que tem de 50 a 60 anos e reside em um bairro periférico de Guarulhos, declara que vê de perto
no cotidiano da sua família, do seu bairro e do seu trabalho os problemas que, uma vez levados
ao Conselho, se transformam em algo muito maior.
No meu Conselho uma das demandas que mais surge é sobre o uso de drogas por parte
dos adolescentes. Eu vejo isso muito no meu bairro. Tem muitas festas que eles fazem e tem o
uso de drogas. O Conselho não consegue resolver isso, nem a polícia. Falta um maior controle
dos pais.
Nesse ponto, Izilda concorda com Ariane ao identificar que o trabalho do Conselho é
dificultado pela situação das outras instâncias do serviço público. Tendo identificado as
demandas mais urgentes no Conselho (requisição de vaga em creche e uso de drogas por
crianças e adolescentes), Izilda relaciona a urgência constante à ineficiência dos aparelhos que
poderiam solucioná-las. Segundo ela, ela quase desistiu de pedir vaga em creche e de ver
adolescente voltar a usar droga.
Viviane, que se encontra na faixa dos 40-50 anos e mora em Guarulhos há pouco mais de
dez, também detém a visão de que o Conselho Tutelar atua basicamente para administrar
155
conflitos familiares. A conselheira, que é protestante, ressalta que muitos casos que chegam ao
CT são relacionados à indisciplina e à administração de conflitos a nível intrafamiliar. Para ela,
deveria haver uma lei destinada a casais que querem ter filhos com o intuito de estabelecer
regras universais. Viviane pensa em fazer uma parceria oficial entre o Conselho e sua igreja
visando atender aos pais que receberam notificação do Conselho.
Para a conselheira, que é mãe de três filhos, as famílias hoje em dia não sabem mais
conviver. Muita coisa que chega aqui é básica, daria pra própria família resolver. Por exemplo,
você tá falando com a criança e vê que a mãe tá no celular, não tá nem prestando atenção.
Precisamos de algo que ensine as pessoas a conviverem.
A parceria oficial entre o CT e a igreja que a conselheira frequenta dar-se-ia por meio
de um curso oferecido em polos de diferentes igrejas do município e ensinaria princípios
bíblicos – os quais, segundo Viviane, apesarem de estarem dentro da visão religiosa – são os
princípios corretos e seguros para a vida em família. A ideia de Viviane tem o apoio de uma
outra conselheira com a qual trabalha. Para as duas, os serviços oferecidos pela rede pública
são muito morosos e muitas vezes nem se sabe se a criança ou o adolescente vai conseguir obtê-
lo.
Por exemplo, em relação às drogas. A demanda do CREAS é muito alta, demora meses
pra conseguir repassar a demanda, e ela é muito urgente. Por isso a gente precisa da igreja,
quem sabe assim a gente não consegue diminuir o número de casos.
Nesse sentido, as conselheiras deste grupo dirigem sua crítica à demora em obter os
serviços públicos para a população atendida diante de situações que, não raramente, são de
extrema urgência. De fato, se nos atentarmos ao leque de atribuições dos conselheiros tutelares,
veremos que suas funções consistem basicamente em repassar em demandas. Todavia, a
especificidade da tarefa é atender os casos e repassar as demandas, o que coloca os conselheiros
numa situação limítrofe ao ter que explicar para a população que a solução dos casos não
depende dele. Por mais que a pesquisa não tenha se dedicado a investigar as impressões da
população sobre o serviço, o resultado dessa equação é fácil de ser adivinhado: pessoas
insatisfeitas com o trabalho dos conselheiros, situação típica de quem atua “na ponta”
(burocratas de nível de rua).
No caso da conselheira Ariane, a solução encontrada por ela é sair do Conselho Tutelar
pensando em sair do país. Já no caso de Izilda e Viviane, esta situação poderia ser formulando
regras universais para as famílias, que tumultuariam menos o cotidiano dos Conselhos se
156
aprendessem a conviver. Viviane, apesar de defender a promulgação de uma lei como essa, se
antecipa na direção de rascunhar um projeto coletivo com as instituições religiosas, nas quais a
conselheira acredita e acha que haverá resultados rápidos e efetivos. O interessante é notar
também que a conselheira pensa na promulgação de uma nova lei para o problema que aponta.
O dispositivo jurídico, dessa feita, torna-se objeto de resolução dos conflitos sociais.
Sendo os serviços públicos fonte de mais problemas que ajudas, as conselheiras deste
grupo não visualizam a parceria com o poder público na formulação de projetos que possam
mudar o quadro de violações. Tal apontamento fica visível em suas respostas sobre a atribuição
de assessorar o poder executivo local, conforme representado na tabela abaixo:
Identificação da
Frequência Prioridade Encaminhamento
demanda
Atender crianças e
Ariane: Escola, CRAS,
adolescentes
Sempre: 3 Emergência: CREAS.
ameaçados ou
(Ariane, 3 (Ariane, Izilda: CRAS, CREAS,
violados em seus
Izilda e Izilda e família.
direitos e aplicar
Viviane) Viviane) Viviane: Escola, CRAS,
medidas de
CREAS, Igreja.
proteção
Atender e
aconselhar os pais Ariane: CRAS, CREAS,
ou responsáveis, CAPS, Alcóolatras
Sempre: 3 Emergência:
aplicando as Anônimos.
(Ariane, 3 (Ariane,
medidas previstas Izilda: CRAS, CREAS,
Izilda e Izilda e
no art. 129, I a VII família.
Viviane) Viviane)
do Estatuto da Viviane: Escola, CRAS,
Criança e do CREAS, Igreja, Hospital.
Adolescente (ECA)
Promover a
execução das Urgente: 2 Ariane: Vara da Infância
Às vezes: 2
decisões do CT, (Ariane e e da Juventude.
(Ariane e
encaminhando à Viviane) Izilda: Vara da Infância e
Viviane)
autoridade Pouco da Juventude.
Raramente: 1
judiciária os casos urgente: 1 Viviane: Vara da Infância
(Izilda)
de (Izilda) e da Juventude,
descumprimento Ministério Público.
157
injustificado de
suas deliberações
Encaminhar ao
Ministério Público
notícia de fato que Sempre: 3 Urgente: 3
constitua infração (Ariane, (Ariane, Ariane, Izilda e Viviane:
administrativa ou Izilda e Izilda e Ministério Público.
criminal contra os Viviane) Viviane)
direitos de criança
ou adolescente
Encaminhar à Sempre: 3 Urgente: 3
Ariane, Izilda e Viviane:
autoridade (Ariane, (Ariane,
Vara da Infância e da
judiciária os casos Izilda e Izilda e
Juventude.
de sua competência Viviane) Viviane)
Tomar providência Ariane: Vara da Infância
para que sejam e da Juventude,
cumpridas as Fundação CASA.
Sempre: 3 Urgente: 3
medidas protetivas Izilda: Vara da Infância e
(Ariane, (Ariane,
aplicadas pela da Juventude, Fundação
Izilda e Izilda e
Justiça a CASA, Famílias.
Viviane) Viviane)
adolescente Viviane: Vara da Infância
autores de atos e da Juventude,
infracionais Fundação CASA, escola.
Requisitar
certidões de
nascimento e de Sempre: 2 Pouco
óbito de criança ou (Izilda e urgente: 3 Ariane: Cartório, Vara da
adolescente Viviane) (Ariane, Infância e da Juventude.
quando necessário Às vezes: 1 Izilda e Izilda: Cartório.
(não incluindo (Ariane) Viviane) Viviane: Cartório, Vara
reconhecimento de da Infância e da
paternidade) Juventude.
Sempre: 3 Urgente: 3 Ariane: Famílias.
Expedir (Ariane, (Ariane, Izilda: Famílias, escolas.
notificações Izilda e Izilda e Viviane: Famílias, escolas,
Viviane) Viviane) hospitais.
Assessorar o Poder Raramente: 3
Pouco
Executivo local na (Ariane, Ariane: (sem indicação).
urgente: 3
elaboração da Izilda e Izilda e Viviane: CMDCA
(Ariane,
proposta Viviane) e Assistência Social.
158
As demandas com as quais as conselheiras têm menos contato são i. promover a execução
das decisões do CT, encaminhando à autoridade judiciária os casos de descumprimento
injustificado de suas deliberações; ii. encaminhar ao Ministério Público ações de perda ou
suspensão de pátrio poder familiar, após esgotadas as possibilidades de manutenção da criança
ou do adolescente junto à família natural e iii. promover e incentivar, na comunidade e nos
grupos profissionais, ações de divulgação e treinamento para o reconhecimento de sintomas de
maus-tratos em crianças e adolescentes. Sobre a demanda de descumprimento injustificado de
suas deliberações, as conselheiras Ariane e Viviane, que responderam “às vezes”, informaram
que a maior descumpridora das deliberações do Conselho é a prefeitura do município em
relação às vagas em creches ou em matrículas no ensino fundamental. As duas reclamam da
quantidade de pedidos e reclamações que ouvem da população nesse ponto, população que não
entende, segundo elas, que “é a prefeitura que resolve”.
Apesar de o Conselho Tutelar ter perdido suas antigas funções no processo de perda ou
suspensão do pátrio poder familiar, as conselheiras Ariane e Viviane declararam lidar a
demanda algumas vezes. Já em relação à promoção para o reconhecimento de sintomas de
160
maus-tratos em crianças e adolescentes, Viviane declarou lidar “às vezes” com a demanda, e a
concretiza em ações de treinamento na igreja da qual participa.
Deve-se ressaltar que o Conselho Tutelar não foi criado para atuar como agente
disciplinador da escola e que a disciplina escolar deve estar prevista no regimento das escolas,
conforme prevê a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN – Lei 9.394/1996).
Segundo a LDBEN e o Plano Nacional da Educação (Lei 10.172/2001), a elaboração do
regimento escolar deve contar com a participação de professores, alunos, pais e da comunidade.
• Análises de rede
A chamada “análise de redes” tem relação intrínseca com a sociologia relacional. Dentro
dessa matriz teórica, a ideia-chave é que “o principal elemento e a fonte da dinâmica dos
processos sociais são as relações entre entidades, grupos sociais e indivíduos” (MARQUES,
2012, p. 11). Nesse sentido, é comum entre alguns estudos realizar apenas a metáfora das “redes
sociais”, querendo fazer referência à premissa básica da sociologia relacional. No entanto,
Nós 24 19 29 24
A partir da tabela 15, vemos que o número de contatos (nós) varia de conselheira para
conselheira, apesar de o número não ser tão destoante. O diâmetro é a medida que indica a
maior distância geodésica entre os nós de uma rede. Observamos, assim, que a rede de contatos
da conselheira Izilda é a menor dentre as três, todavia, a distância da rede acionada para o
encaminhamento das demandas pela conselheira Ariane é a maior, sendo sua rede a menos
articulada. No caso de Izilda, há menos instâncias citadas para o encaminhamento das
165
demandas, já no caso de Ariane estas instâncias são citadas de maneira isolada, não havendo
relação entre elas.
A partir dos sociogramas elencados, apreende-se que os atores com mais destaque
relacionados ao encaminhamento de demandas do grupo 01 são a Vara da Infância e da
Juventude, o CRAS, o CREAS, as famílias e, no caso de Viviane, a Igreja. A Igreja aparece
como ator indicado efetivar as atribuições do Conselho, no caso de Viviane, pela sua presença
em uma associação religiosa, onde Viviane atua na conscientização sobre maus-tratos infantis.
Izilda também integra uma associação religiosa, mas não a elencou dentro da rede social de
efetivação das atribuições.
Sobre o grupo 01, apreendemos que o discurso das conselheiras é de descrédito em relação
ao poder público. Este grupo identifica que os problemas familiares, que seriam maiores e mais
graves hoje em dia, são a fonte da maior parte dos problemas que chegam ao Conselho.
Justamente por precisar acionar constantemente as outras instâncias da rede municipal de
atendimento (as atribuições relativas ao atendimento de crianças, adolescentes e famílias foram
as identificadas como mais frequentes e mais urgentes) e não encontrar o respaldo imaginado,
as conselheiras frustram-se com as possibilidades diante do quadro. No caso do
encaminhamento das demandas, os atores acionados variam, mas não com tantas diferenças. É
interessante notar a diferença de encaminhamento entre as duas conselheiras do mesmo
Conselho (CT02), Ariane e Viviane.
O grupo 02 é formado pelas conselheiras Giane (CT04) e pelo conselheiro Márcio, o qual
faz parte do CT02, mesmo Conselho de Ariane e Viviane, acima mencionadas.
166
O conselheiro Márcio tem 30 anos de idade e reside em Guarulhos desde que nasceu. De
família católica, seguiu os preceitos religiosos da sua formação e ingressou em várias atividades
na igreja em que frequenta. Diz fazer parte do coral e da formação dos jovens, cerne da sua
experiência na área da criança e do adolescente, que registra por volta de oito anos. Márcio
também participa da associação de moradores do bairro onde reside, perto do Conselho e
localizado em uma região periférica de Guarulhos. Tendo morado no mesmo bairro desde
sempre, Márcio afirma que não vê as coisas mudarem. Aqui na avenida principal do bairro tem
loja nova, uma coisa ou outra que abriu, o próprio Conselho é novo, na minha época não tinha.
Se você for ver mesmo pouca coisa mudou. Os problemas são os mesmos, mas parece que
aumentaram.74
Márcio diz que se candidatou ao Conselho porque sua experiência na igreja lhe
mostrou que ele tem habilidade em lidar com os jovens. Também tem uma amiga que é ex-
conselheira tutelar em São Paulo e, segundo essa amiga, a estabilidade era muito boa. Por mais
que o trabalho no Conselho Tutelar não tenha a estabilidade dos demais servidores públicos, o
mandato dificilmente não vai ser rompido antes dos quatro anos, com a possibilidade de
recondução para mais quatro. Num contexto de incertezas profissionais e precarização das
relações de trabalho e tendo o próprio Márcio passado por uma experiência de rompimento de
expectativas – sua não efetivação do escritório de advocacia – ser conselheiro tutelar pode
ganhar contornos vantajosos nesse sentido. Apesar de trazer para esse discurso esta percepção
de que as coisas não mudam, Márcio não associa o Conselho à possibilidade de mudança. Pelo
discurso do conselheiro, há muito mais a visualização da função de conselheiro tutelar como
cargo/carreira, num contexto que se buscam forjar espaços (posições) alternativos no mercado
de trabalho.
74
Os trechos em itálico referem-se à transcrição das falas dos entrevistados.
167
O entrevistado reivindica mais autoridade para o Conselho Tutelar. Eu não sou um cara
que não liga, eu chamo os jovens pra conversar. Mas mesmo assim eles dão de ombros, parece
que não ligam. O difícil, para o conselheiro, é que ninguém entende ao certo seu trabalho. Não
sendo um trabalho respeitado e valorizado pelo poder público, o restante da sociedade terá
dificuldades para compreender os casos a que se destina o Conselho Tutelar. Para o conselheiro,
uma das formas de revestir o trabalho dos conselheiros de mais legitimidade seria cobrando
nível superior dos conselheiros. Márcio discorda do ECA em visualizar apenas o Ensino
Fundamental como requisito de escolaridade para exercer as funções do Conselho Tutelar. Acho
que tem que ter no mínimo nível superior, as pessoas nos levariam mais a sério. Curioso que,
se houvesse o critério de no mínimo ensino superior, o próprio Márcio não poderia ter se
candidatado ao cargo. Todavia, como o conselheiro visualiza completar a faculdade nos
próximos anos, talvez associe que poderia se encaixar no critério em breve.
Ele afirma que chegou a redigir um projeto para levar à Câmara de vereadores, com o
intuito de passar a cobrar dos conselheiros o ensino superior. Márcio declarou que terminou o
projeto há pouco tempo e pretende levar à Câmara ainda nesse ano. O conselheiro demonstra
falta de identificação com os outros conselheiros da cidade. Fiz a capacitação junto com todos
e vi que tem muita gente que fala errado, escreve mal. É muito feio para um conselheiro tutelar.
Um conselheiro com saber mais técnico ou mais capacidade teria mais condições
de discutir as políticas públicas que ele fiscaliza, fazer a melhor ponte entre
situação individual e coletiva, podendo fiscalizar melhor as entidades, produzir
laudos e relatórios mais bem feitos. [...] [e] existe uma deficiência técnica. O
Conselho Tutelar é chamado a intervir em situações extremamente problemáticas,
e muitas vezes ele [o conselheiro] não está capacitado o suficiente para entender a
dinâmica do que está acontecendo. (LAFER, 2012, p. 66).
Tanto no caso do operador de justiça entrevistado por Lafer (2012) quanto no caso do
conselheiro entrevistado pela nossa pesquisa, os dois parecem visualizar o trabalho de
conselheiro tutelar como de um especialista, retirando o caráter de “nível de rua”, que já
defendemos que cabe aos conselheiros tutelares. Não seria necessário a capacidade articuladora,
mas sim ter uma boa redação, um bom discurso e entender dos meandros com os quais a função
se depara.
168
Necessário ressaltar que, justamente, o conselheiro não deve ser um especialista, mas
deve saber e poder contar com especialistas que o auxiliem na execução de suas funções. O
papel do conselheiro é justamente compreender a demanda que recebe, encaminhá-la e cobrar
das instâncias respectivas para que o quadro de violações e ameaças aos direitos se altere. Nesse
sentido, a exigência pelo nível superior pelo entendimento de que traria pessoas mais
qualificadas não é compatível com as exigências da função.
Márcio diz que seu Conselho tem muitas parcerias com a igreja. Nossa sorte é ter a
igreja como parceira. E, por igreja, o conselheiro denomina uma igreja católica do bairro e
outras duas igrejas evangélicas, que são acionadas por outras duas conselheiras do CT.
A outra conselheira do grupo 02 é a conselheira Giane, que atua no CT04. Giane está
na faixa dos 40-50 anos e tem metade da sua vida voltada ao trabalho com crianças e
adolescentes. A conselheira teve experiências diversas dentro da área, seja atuando como
inspetora em escolas públicas, seja atuando como educadora social em orfanatos. Sua
experiência profissional a levou a querer se qualificar, tendo cursado e concluído o curso de
Serviço Social.
O reconhecimento de Giane como a mais experiente pode ter sido facilitado pela sua
formação em Serviço Social e pelo seu tempo de experiência na área, bem maior que o das
outras conselheiras. Mas é importante ressaltar que todas têm experiência na área, e mesmo
assim à Giane é atribuído o posto de liderança para nortear a atuação dentro do CT04.
Giane nos relata que precisa ter uma postura muito incisiva enquanto conselheira tutelar.
Mas, diferente de Márcio, a conselheira não visualiza na formação pessoal do conselheiro a
fonte de legitimidade. Para ela, os agentes públicos que deveriam reconhecer a legitimidade do
Conselho, que já está dada.
Para ela, trabalhar com crianças e adolescentes é difícil, não pelas crianças e
adolescentes em si, mas porque as pessoas ridicularizam e não levam a sério. No caso de não
quererem mais frequentar o Conseg, é justamente este o motivo. Segundo Giane, os
conselheiros do Conselho Comunitário de Segurança têm a ideia de que defender crianças e
adolescentes é algo ruim, muito pelo senso comum que associa essa parcela da população à
delinquência, logo, quem defende os direitos desta parte da população, defende também a
delinquência.
Nesse sentido, o caso do Conseg demonstra como um Conselho que deveria refletir
sobre a segurança pública a partir da perspectiva dos direitos reproduz o ideal “menorista”. O
caso também evidencia um dos motivos para a dificuldade de articulação dos Conselhos
Tutelares com outros espaços: a própria finalidade do Conselho Tutelar é questionada, gerando
entraves para a participação dos conselheiros tutelares.
Dessa forma, Giane avalia a Polícia como um órgão de muita má vontade. Muitas vezes
recebemos denúncias que não nos cabe atender. Uma vez recebi uma ligação de uma mãe que
estava com o filho fugido há três dias. Ela suspeitava que o filho estava na casa de um
traficante. Quando eu liguei para a polícia pedindo que eles fizessem a ronda, ouvi do delegado
170
“ Por que você não levanta da cadeira?” Acabei eu mesma indo, mas não é papel do Conselho
fazer isso. Uma conselheira aqui do CT já teve a viatura baleada numa dessas.
Identificação da
Márcio Giane
demanda
Frequência: Sempre
Prioridade: Urgente
Encaminhar à Encaminhamento da Frequência: Sempre
autoridade judiciária os demanda: Vara da Prioridade: Urgente
casos de sua Infância e da Encaminhamento da
competência Adolescência; demanda: Vara da
Delegacias; Ministério Infância e da
Público Adolescência
Tomar providência
para que sejam Frequência: Sempre Frequência: Sempre
cumpridas as medidas Prioridade: Urgente Prioridade: Urgente
protetivas aplicadas Encaminhamento da Encaminhamento da
pela Justiça a demanda: Defensoria demanda: Ministério
adolescente autores de Pública; Ministério Público; Defensoria
atos infracionais Público; Delegacias Pública; Escolas
Requisitar certidões de
nascimento e de óbito
de criança ou
adolescente quando Frequência: Sempre Frequência: Às vezes
necessário (não Prioridade: Pouco Prioridade: Pouco
incluindo urgente urgente
reconhecimento de Encaminhamento da Encaminhamento da
paternidade) demanda: Registro civil demanda: Registro civil
Frequência: Sempre Frequência: Sempre
Prioridade: Pouco Prioridade: Urgente
Expedir notificações urgente Encaminhamento da
Encaminhamento da demanda: Secretaria de
demanda: Famílias Educação; famílias
Assessorar o Poder
Executivo local na
elaboração da proposta Frequência: Às vezes Frequência: Nunca
orçamentária para Prioridade: Pouco Prioridade: Pouco
planos e programas de urgente urgente
atendimento dos Encaminhamento da Encaminhamento da
direitos da criança e do demanda: CMDCA; demanda: Secretaria de
adolescente Câmara de Vereadores Assistência Social
Encaminhar ao
Ministério Público
ações de perda ou Frequência: Sempre Frequência: Sempre
suspensão de pátrio Prioridade: Urgente Prioridade: Urgente
poder familiar, após Encaminhamento da Encaminhamento da
esgotadas as demanda: Ministério demanda: Ministério
possibilidades de Público Público
172
manutenção da criança
ou do adolescente junto
à família natural
Fiscalizar as entidades
de atendimento
Frequência: Sempre
governamentais e não- Frequência: Sempre
Prioridade: Urgente
governamentais, Prioridade: Urgente
Encaminhamento da
aplicando medidas de Encaminhamento da
demanda: Vara da
advertência e, nos casos demanda: Vara da
Infância e da
de reincidência, Infância e da
Adolescência; Ministério
representando à Adolescência
Público; Delegacias
autoridade judiciária
competente
Promover e incentivar,
na comunidade e nos
grupos profissionais,
ações de divulgação e
treinamento para o Frequência: Nunca
reconhecimento de Frequência: Nunca Prioridade: Emergência
sintomas de maus- Prioridade: Urgente Encaminhamento da
tratos em crianças e Encaminhamento da demanda: Faculdades;
adolescentes demanda: (não se aplica) escolas
Fonte: elaboração própria.
A partir da análise da tabela 16, vemos que, assim como o grupo 01, o grupo 02
identifica as demandas relacionadas ao atendimento direto como de emergência. Contudo,
diferente do grupo 01, este grupo identifica todas as demandas que envolvem alguma autoridade
judiciária como urgentes. Assim, uma das prioridades de Márcio e Giane é encaminhar os casos
que acionam a Justiça. Interessante notar que tal ponto é mais acentuado no caso de Márcio,
boa parte pela sua graduação interrompida em Direito e boa parte pela tentativa de obter a
legitimidade que reivindica para o Conselho Tutelar. Já Giane elenca a Secretaria de Assistência
Social e Educação como órgãos para encaminhar as demandas.
173
Apesar de Márcio ser o mais novo dos conselheiros entrevistados, sua participação em
duas associações, o fato de ter morado em Guarulhos desde que nasceu e o ensino superior
interrompido lhe rendem uma cartela maior de contatos. A partir da rede de contatos formada
pelo apontamento de atores mobilizados no cotidiano do Conselho Tutelar, vimos que Márcio
também lista o maior número de contatos em comparação com Giane e as conselheiras do grupo
01.
Nós 29 25 27
Nesse sentido, Márcio mobiliza um maior número de contatos em seu cotidiano para realizar
seu trabalho como conselheiro, todavia, intensifica sua relação com os atores do Poder
175
Já em relação à conselheira Giane, por mais que também reivindique maior legitimidade às
ações do Conselho, a articulação é bastante dificultada pelo estereótipo que a função carrega e
pela falta de entendimento e apoio, sobretudo do poder público. Mesmo assim, a rede acionada
pela conselheira é maior que a rede das conselheiras do grupo 01, o que pode ser explicado
pelas suas experiências anteriores e pega figura de liderança que a mesma criou dentro de seu
Conselho.
Agora, teceremos as considerações sobre nosso último grupo de análise, o grupo 03.
75
Cf. DIGIÁCOMO, M. J.; DIGIÁCOMO, I. A. Estatuto da Criança e do Adolescente Anotado e Interpretado.
Curitiba: Ministério Público do Estado do Paraná; Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do
Adolescente, 2010. Disponível em:
<http://www.mpdft.gov.br/portal/pdf/unidades/promotorias/pdij/Legislacao%20e%20Jurisprudencia/ECA_come
ntado.pdf>. Acesso em 11 jun. 2016.
76
SÊDA, E. A criança: manual do conselho tutelar. Rio de Janeiro: Edição Adês, 2008, p. 71. Disponível em:
<http://edsonseda.com.br/AmanTut.doc>. Acesso em 11 jun. 2016.
176
Nesse sentido, o que ensejou esta pesquisa foi buscar entender os fatores que levam à
mobilização, participação e articulação exitosas. Em um cenário onde as pesquisas sobre o tema
apontam justamente o distanciamento dos Conselhos da sociedade civil e das instâncias
participativas, buscamos compreender os fatores relacionados ao fenômeno. Dessa forma,
nosso último grupo analisado é formado por dois conselheiros que têm um perfil individual
bastante distinto, mas que trazem a reivindicação de uma melhor articulação para os Conselhos
Tutelares. O grupo é formado por Bianca (CT01) e Ivan (CT05).
Bianca é conselheira do CT01 e está na faixa dos 20-30 anos. Morou em Guarulhos
durante toda sua vida e tem pouca experiência na área da criança e do adolescente (dois a 5
anos). Sua experiência foi obtida a partir de um trabalho na gestão administrativa de uma ONG
que tocava projetos sociais na área. Desde então, Bianca teve contato crescente com a temática
e com os dispositivos normativos da área.
77
Cf. LARA, E. Conquistar a sociedade: Conselhos devem tornar população corresponsável pela infância
e adolescência. In: Bons Conselhos. Ano III. Nº 10. Instituto Telemig Celular, novembro de 2006 a janeiro de
2007.
78
Ver SIMEONE apud LARA, op. cit.
177
Diante disso, é importante salientar que Ivan, por ter assumido o cargo apenas nesse
ano, não recebeu a capacitação que os demais conselheiros do município receberam. Dessa
forma, os elementos indicados pertencem muito mais à sua trajetória pessoal que à sua trajetória
como conselheiro, que ainda é curta.
Ivan está na faixa dos 50-60 anos e sempre residiu no município de Guarulhos. Ele
afirma que acompanhou de perto a instalação do CT em sua região, pois “sempre” foi uma
liderança comunitária, mas não imaginava que viria a trabalhar no Conselho Tutelar. Eu
demorei a entender que era eleição. Cheguei a concorrer, mas não ganhei. Não caiu minha
ficha que tinha que fazer campanha e etc., pra mim isso era só pra cargos do
Legislativo/Executivo.
Identificação da
Bianca Ivan
demanda
Frequência: Sempre
Frequência: Sempre
Prioridade: Urgente
Atender crianças e Prioridade: Emergência
Encaminhamento da
adolescentes ameaçados Encaminhamento da
demanda: Famílias;
ou violados em seus demanda: Família;
Secretaria de Educação;
direitos e aplicar Secretaria da Educação;
Secretaria de Assistência
medidas de proteção Associação religiosa;
Social; Secretaria da
CRAS; CREAS; CAT
Saúde; CRAS; CREAS
Frequência: Sempre
Atender e aconselhar os
Prioridade: Urgente
pais ou responsáveis,
Frequência: Sempre Encaminhamento da
aplicando as medidas
Prioridade: Urgente demanda: Famílias;
previstas no art. 129, I
Encaminhamento da Secretaria de Assistência
a VII do Estatuto da
demanda: Famílias Social; CAT; Secretaria
Criança e do
da Saúde; Associação
Adolescente (ECA)
religiosa.
Promover a execução
das decisões do CT,
encaminhando à Frequência: Sempre Frequência: Sempre
autoridade judiciária os Prioridade: Urgente Prioridade: Urgente
casos de Encaminhamento da Encaminhamento da
descumprimento demanda: Ministério demanda: Ministério
injustificado de suas Público; Defensoria Público; Vara da Infância
deliberações Pública e da Juventude.
Encaminhar ao
Ministério Público
notícia de fato que
constitua infração Frequência: Sempre Frequência: Às vezes
administrativa ou Prioridade: Urgente Prioridade: Urgente
criminal contra os Encaminhamento da Encaminhamento da
direitos de criança ou demanda: Ministério demanda: Ministério
adolescente Público Público
179
esgotadas as
possibilidades de
manutenção da criança
ou do adolescente junto
à família natural
Fiscalizar as entidades
de atendimento
Frequência: Sempre
governamentais e não- Frequência: Sempre
Prioridade: Urgente
governamentais, Prioridade: Urgente
Encaminhamento da
aplicando medidas de Encaminhamento da
demanda: ONGs; Vara
advertência e, nos casos demanda: Vara da
da Infância e da
de reincidência, Infância e da
Adolescência; Ministério
representando à Adolescência
Público
autoridade judiciária
competente
Promover e incentivar,
na comunidade e nos
grupos profissionais,
ações de divulgação e Frequência: Sempre
treinamento para o Prioridade: Urgente
reconhecimento de Frequência: Às vezes Encaminhamento da
sintomas de maus- Prioridade: Urgente demanda: Escolas;
tratos em crianças e Encaminhamento da Igreja; Associação
adolescentes demanda: ONGs; Escolas comunitária
Fonte: elaboração própria.
Justamente por serem os conselheiros que mais buscam parceiros para efetivar o papel do
Conselho Tutelar, é de se esperar que suas redes sociais sejam as maiores dos três grupos, o que
se confirma, como veremos a seguir.
181
Nós 31 35 33
Temos que, no caso de Bianca e Ivan, as redes acionadas por eles no momento do
encaminhamento das demandas são as maiores no nosso grupo estudado. Tendo construído uma
visão do Conselho Tutelar como instrumento estratégico para a alteração do quadro de
violações e direitos, os dois buscam mais parceiros e atores que possam ajuda-los nessa
empreitada. Aqui, recordamos o conceito de burocratas ativistas (PETTINICCHIO, 2012) -
indivíduos que utilizam sua discricionariedade e seus valores para provocarem mudanças no
interior das instituições - , pois, cada a um a seu modo busca “bagunçar” a ordem das coisas
183
mobilizando seus próprios recursos. No caso de Ivan, o conselheiro potencializa suas ações
além do espaço do Conselho, atuando nas associações das quais faz parte.
Tal fato evidencia nossa hipótese de que, na falta de uma maior padronização para a
atuação dos conselheiros, os mesmos absorvem a capacitação incial que recebem, a somam com
seus repertórios pessoais e a transformam em práticas que variam de acordo com sua
discricionariedade. Nesse sentido, é necessário investir em procedimentos mais padronizados
de ação.
08
Organizações da sociedade civil 02
01
04
Fóruns municipais de outras áreas 06
02
07
Fórum Municipal dos Direitos da
03
Criança e do Adolescente
02
03
Conselhos Municipais de outras áreas 05
04
01
Conselho Municipal dos Direitos da
08
Criança e Adolescente
03
03
Câmara Legislativa Municipal 08
01
crianças e adolescentes, que não raras vezes são mantidas por organizações da sociedade civil
ou se constituem como organizações não governamentais.
Sempre 1
Às vezes 2
Raramente 2
Nunca 7
0 2 4 6 8
n = 12
CONCLUSÃO
rotineiras, que não deixam de ser parte das atribuições dos Conselhos, mas que não devem
resumir toda a sua ação, nem ser o conteúdo majoritário da jornada de trabalho dos conselheiros.
Todavia, nossa pesquisa orientou-se a buscar os fatores que levam os Conselhos a se
orientarem por uma forma de ação ou por outra. Por esse motivo, elegemos como categoria de
análise os conselheiros – burocratas de nível de rua que fazem uso de sua discricionariedade –
e mobilizamos a análise de redes sociais como ferramenta metodológica de elucidação, tarefas
até então não realizadas pela literatura da área.
Verificamos que o atendimento direto é a atribuição mais frequente e mais realizadas
pelos conselheiros, todavia, ao contrário de Lafer (2012), evitamos cair em classificações
binárias sobre as funções do Conselho (técnica x política), na medida em que, dado o caráter
híbrido e a especificidade do Conselho Tutelar, não é possível delimitar quando um conselheiro
age técnica ou politicamente.
Nossa pesquisa identificou que tais limitações e distorções originam-se da falta de
reconhecimento de que os Conselhos Tutelares também integram os espaços legítimos de
deliberação sobre políticas públicas, que constitui um Conselho de Direitos, na medida em que
o exercício das atribuições dos primeiros sinaliza a direção da atuação do segundo. Portanto,
esse reconhecimento de ambos é essencial para lhes garantir autonomia e legitimidade para
atuação no campo das políticas públicas. Segundo Frizzo (2006) , a distância entre a concepção
teórico-normativa que permeou a criação dos Conselhos e a atual prática cotidiana evidencia a
distância entre o adequado e o possível na ação cotidiana dos conselheiros que, na maior parte
das vezes, é focada em experiências individuais pouco integradas à comunidade e, por conta
disso, socialmente instáveis. Portanto, o possível, neste caso, longe de ser um limite próprio à
estrutura dos Conselhos, é desenhado a partir da pouca experiência política, agravada pela
carência de formação oferecida aos conselheiros, o que acaba reproduzindo, como já apontado,
uma série de práticas que, muitas vezes, mais se assemelham ao arcabouço institucional de
modelos anteriores do que ao paradigma de proteção integral que se pretende implantar.
Lançando luz sobre estas questões, nossa pesquisa demonstrou que a ação dos
conselheiros não é padronizada dentro do mesmo Conselho Tutelar. Na falta de uma
capacitação mais condizente com os desafios enfrentados pelos conselheiros, do conhecimento
das resoluções e recomendações do CONANDA, os conselheiros mobilizam seus
encaminhamentos de acordo com a rede social que construíram ao longo de suas vidas e
trajetórias próprias.
190
Nesse sentido, os conselheiros que tentam provocar maiores mudanças o fazem porque
pessoalmente visualizam tal ação como adequada para os Conselhos. A forma como eles o
fazem, todavia, é diferente, uma vez que possuem repertórios distintos.
Desse amplo leque de atribuições destacaram-se nas respostas dos conselheiros tutelares
à pesquisa: o encaminhamento à autoridade judiciária dos casos de sua competência e o
encaminhamento ao Ministério Público sobre notícia de fato que constituísse infração
administrativa ou criminal contra os direitos de crianças e adolescentes. Ou seja, a maior parte
191
de sua atuação é dedicada a estas duas funções, ambas de estreito relacionamento com o poder
judiciário.
Uma segunda análise dos resultados da pesquisa deve ser feita sobre a manutenção de
uma tendência, que poderia ser chamada de judicializante na atuação do CT, a qual deveria
privilegiar os aspectos sociais, tais como, estar mais próximo da comunidade contribuindo na
resolução dos problemas que afetam a infância e a adolescência e implementando medidas
capazes de prevenir tais ocorrências. Embora os conselheiros participantes da pesquisa tenham
declarado que sua principal função era a de atender e aconselhar pais ou responsáveis e a de
atender crianças e adolescentes com seus direitos ameaças ou violados, em ambos os casos
aplicando as medidas de proteção previstas no ECA, quando se contrapõem as respostas acima
analisadas acerca do intenso relacionamento desses Conselhos com o Judiciário e o Ministério
Público, pode-se entrever um funcionamento judicializante que reproduz obsoletos modelos do
passado. Vimos também que, em busca de uma maior legitimidade para a atuação do Conselho,
os conselheiros aproximam-se do Poder Judiciário como forma de revestir suas ações de crédito
perante à população e/ou ao poder público.
Uma terceira leitura dos dados da pesquisa a ser ressaltada diz respeito ao papel de
assessoramento ao poder executivo na elaboração da proposta orçamentária para planos e
programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, que deveria estar sendo
192
exercido com mais frequência pelos conselheiros tutelares. Como se viu, os conselheiros que
buscam atuar para a efetivação dessa demanda visualizam o Conselho como aquele que deve
assumir as funções públicas que contribuiriam para que os direitos das criança e jovens se
tornem uma prioridade real do poder público.
Quanto aos dados acerca das pressões e demandas para atender funções que não estão
no escopo de sua missão há que se proceder a uma clarificação das atribuições e
responsabilidades dos Conselhos Tutelares para eles próprios, para os demais atores do SGDCA
e para o conjunto da sociedade. A ação conjunta com o CMDCA pode ser um caminho tanto
para definir esses esclarecimentos, como também para um encaminhamento mais preciso das
demandas aos órgãos que podem e devem atendê-la.
Parece amplamente aceito o fato de que os conselheiros tutelares necessitam ter certo
domínio técnico para cumprir as atribuições designadas ao CT. Isto pode ser deduzido das
mudanças observadas a partir da análise do ECA, das resoluções do CONANDA e da legislação
municipal de Guarulhos no que concerne aos requisitos de curriculum, experiência e
desempenho dos candidatos a ocupar essa posição.
Outros fatores além da melhor qualificação dos conselheiros que poderiam contribuir
para o melhor desempenho dos Conselhos Tutelares não estão presentes na sua realidade
cotidiana, tal como contar também com assessorias técnicas específicas por parte da prefeitura.
Os Conselhos Tutelares estão depositando todo seu esforço de aperfeiçoamento técnico-
gerencial na exigência de incrementar o perfil de competências dos conselheiros, o que não é
suficiente para atingir o objetivo desejado. Por esses motivos, defendemos que melhor que
cobrar mais requisitos de candidatura é investir na capacitação dos conselheiros durante o
mandato, ter Conselhos de Direitos e outras instâncias do SGDCA mais presentes do cotidiano
dos Conselhos e promover uma infra-estrutura adequada para o funcionamento do órgão.
193
Por fim, ressalta-se que, apesar da política para a infância e adolescência estar desenhada
e orientada pelo ECA e pelas resoluções do Conanda que o seguem, sua efetividade se dará
através do continuo fortalecimento dos Conselhos, como atores fundamentais que são no
SGDCA, que deve ser o foco de atuação das lideranças democráticas do poder público e da
sociedade civil empenhadas na garantia da proteção integral de crianças e adolescentes.
194
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I – Bairros de Guarulhos
Fonte: BECCENERI, Leandro. Estudo sobre a segregação social em Guarulhos (trabalho de conclusão
de curso). Guarulhos: 2010.
II – Distribuição de renda
199
Fonte: BECCENERI, Leandro. Estudo sobre a segregação social em Guarulhos (trabalho de conclusão
de curso). Guarulhos: 2010.
200
1. Conselho Tutelar:
2. Conselheiro participante da entrevista:
3. Sexo:
4. Idade:
5. Escolaridade:
6. Religião:
7. Município onde nasceu:
8. Bairro onde reside:
9. Reside neste bairro há quanto tempo?
10. Qual sua experiência profissional anterior ao Conselho Tutelar?
11. É filiado a algum partido político? Se sim, qual?
12. Pertence a algum movimento social? Se sim, qual?
13. É/foi voluntário de alguma ONG? Se sim, qual?
14. Quando decidiu se candidatar a conselheiro tutelar? Por que tomou esta decisão?
15. Em 2016, você recebeu alguma solicitação para apoiar algum candidato nas eleições?
16. Em sua opinião, o número de Conselhos Tutelares é suficiente para atender às demandas
de proteção das crianças e dos adolescentes?
17. Qual sua avaliação sobre a importância do Conselho na elaboração das políticas públicas
de infância e adolescência do município?
18. Para você, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) deve ser reformulado? Em
quais pontos?
1. Indique com que frequência você tem tomado conhecimento das resoluções e do
expediente do CONANDA, do CONDECA, do CMDCA e dos CTs de seu
município.
A) CONANDA
i. Sempre
ii. Ás vezes
iii. Raramente
201
iv. Nunca
B) CONDECA
i. Sempre
ii. Ás vezes
iii. Raramente
iv. Nunca
C) CMDCA
i. Sempre
ii. Ás vezes
iii. Raramente
iv. Nunca
D) Demais CTs
i. Sempre
ii. Ás vezes
iii. Raramente
iv. Nunca
Encaminhamento da demanda:
8. Expedir notificações
Numa escala de 1 a 4, com qual frequência você tem contato com essa demanda?
(sendo 1 sempre – 2 ás vezes – 3 – raramente – 4- nunca)
Numa escala de 1 a 4, qual prioridade você dá para essa demanda? (sendo 1
emergência – 2- urgente- 3 – pouco urgente – 4 – não urgente)
Encaminhamento da demanda:
i. fornecer informações que lhe foram importantes para seu trabalho como
conselheiro tutelar:
ii. fornecer ajuda para problemas ordinários do dia-a-dia:
iii. serem requisitados para fornecer ajuda em momentos cruciais do trabalho: