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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

KATHLEEN FERREIRA ANGULO

CONSELHOS TUTELARES E ARTICULAÇÃO POLÍTICA

GUARULHOS
2017
KATHLEEN FERREIRA ANGULO 1

CONSELHOS TUTELARES E ARTICULAÇÃO POLÍTICA

Dissertação apresentada à Universidade


Federal de São Paulo como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Ciências
Sociais
Área de concentração: Pensamento social,
Estado e ação coletiva
Orientação: Prof. Dr. Daniel Arias Vazquez

GUARULHOS
2017

1
E-mail para contato: kathleenf.angulo@gmail.com
Angulo, Kathleen F.

Conselhos Tutelares e Articulação Política / Kathleen Ferreira Angulo. – 2017.


2 f.

Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal de São


Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, 2017.
Orientação: Prof. Dr. Daniel Arias Vazquez.

1. Conselho Tutelar. 2. Políticas Públicas. 3. Estatuto da Criança e do


Adolescente. I. Prof. Dr. Daniel Arias Vazquez. II. Conselhos Tutelares e
Articulação Política.
KATHLEEN FERREIRA ANGULO
CONSELHOS TUTELARES E ARTICULAÇÃO POLÍTICA

Dissertação apresentada à Universidade


Federal de São Paulo como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Ciências
Sociais
Área de concentração: Pensamento social,
Estado e ação coletiva

Aprovação: ____/____/________

Prof. Dr. Daniel Arias Vazquez


Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

Prof. Dr. Anderson Rafael Nascimento


Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Prof. Dr. Rodrigo Pereyra de Sousa Coelho


Faculdade Santa Lúcia
A todos que sonham e trabalham por uma
sociedade mais justa e igualitária.
AGRADECIMENTOS

É chegada a hora de escrever as últimas linhas desse trabalho. A tarefa é difícil pelo
cansaço do momento, pelo receio em cometer alguma injustiça deixando alguém de lado e pela
incerteza do que será daqui para frente. Mas, ao mesmo tempo, é extremamente gratificante
olhar e perceber que consegui finalizar uma dissertação – cujo tema não costuma ser muito
apreciado pelos estratos acadêmicos - sobretudo se levarmos em conta o contexto político-
social que nos desanima e minhas frequentes frustrações com as Ciências Sociais, as quais me
levaram, por um bom tempo, a refletir sobre a minha inserção em outra área de estudos e
profissional. Assim, termino este trabalho com uma sensação de satisfação e orgulho pelo dever
cumprido.

Para conseguir chegar nestas linhas, o apoio do meu orientador, professor Daniel
Vazquez, foi fundamental. Sua acolhida ao projeto (muito criticado dentro das Ciências Sociais
por ser “pouco teórico”) e conhecimento na área de políticas públicas foram essenciais para que
eu acreditasse no potencial do trabalho e fosse estimulada a ler sobre assuntos que não me eram
próximos. Ademais, sua trajetória é exemplo de extrema competência em âmbito acadêmico,
mas também de comprometimento com a transformação social. Agradeço pela orientação, pelo
exemplo e pela figura de destaque na consolidação do campus Guarulhos da Unifesp, minha
instituição de origem e eterna no coração.

Agradeço à Universidade Federal de São Paulo, onde entrei nesse novo mundo e onde
espero que muitos outros também possam entrar. Universidade que, mesmo com todos seus
problemas, permitiu a muitos conquistarem pela primeira vez na família um diploma de
universidade pública ou até mesmo de uma universidade. Que os cursos se consolidem e
permitam a muita gente voar longe. Nesse sentido, agradeço a todos meus professores que me
guiaram nesse caminho fascinante e sem volta chamado Ciências Sociais. Ao professor
Humberto Alves, pelas aulas de métodos quantitativos, pelo livro de Estatística que me
emprestou e eu preciso devolver e pela humildade apesar do currículo que carrega. Ao professor
Bruno Comparato, pela orientação em dois anos de iniciação científica e monografia. À
professora Ana Lúcia Teixeira, pelas aulas magníficas de Max Weber e por ter me ajudado a
fazer o resgate da Bitoca. Ao professor Mauro Rovai, pelas aulas sempre estimulantes e pelo
exemplo de sensatez. À professora Márcia Consolim pela paixão por aquilo que pesquisa e
leciona e à professora Carolina Pulici pela seriedade, dedicação e exemplo de excelência
acadêmica (“sentar na cadeira e estudar até o quadril alargar”). À professora Liana de Paula
pela leitura do projeto de pesquisa.
Deixo aqui meus sinceros agradecimentos a todo corpo docente da Unifesp e aos
funcionários da casa, em especial o Rafael, por toda a ajuda desde o momento de ingresso no
mestrado.

À CAPES pela bolsa concedida para os estudos.

Aos comentários dos professores Anderson Nascimento e Rodrigo Coelho na minha


banca de qualificação, os quais foram de extrema valia para o aperfeiçoamento do trabalho.

Inevitável agradecer aos meus amigos de curso que vêm compartilhando comigo as
alegrias e os dilemas da área e os receios e revoltas pelo (temer)oso contexto brasileiro. Um
abraço especial a Fernando Filho, Raquel Conceição, Cláudia Garcia, Mônica Oliveira, Jéssica
Mello, Paula Bortolin, Iann Longhini, Ana Florice, Michelle Claro, Lillian Lino, Camila
Machado, Mônica Oliveira e Wilver Portela. Com boa parte destes já desenvolvi projetos muito
especiais como a organização da Semana de Ciências Sociais na época da graduação, a
organização da I Semana de Pós-graduação em Ciências Sociais da Unifesp, a revista Pensata
e a fundação da empresa júnior do curso de Ciências Sociais (Instituto Base Social). Que
consigamos sempre ir além.

A todos meus amigos por compreenderem meu afastamento e ausência. Que o Gabriel
me desculpe pelos convites que não aceitei. Que os amigos da época do IBGE perdoem minhas
faltas nos happy hours e aos amigos das escolas em que leciono pelo suporte e palavras de
motivação. Sou muito grata ao pessoal do Cursinho Livre da Norte, iniciativa que tive a
oportunidade de ajudar a construir. Um agradecimento especial a meus alunos, os quais dividem
comigo esse ambiente conturbado mas extremamente rico chamado escola.

Aproveito também para agradecer aos amigos que dividiram comigo o cotidiano que me
fez querer pesquisar mais sobre os Conselhos Tutelares na época da pesquisa Conhecendo a
Realidade – Edição 2011. Maria Carolina de Camargo Schilittler, Clarissa Inserra Bernini,
Thaísa Ferreira, Ariane Lima e Ricardo Paes, obrigada pela melhor época do CEATS.

Aos meus interlocutores – os conselheiros tutelares – que aceitaram me ouvir e


compartilhar as conversas que se tornaram materiais de pesquisa. Que todos possam
experimentar dias melhores no trabalho do Conselho Tutelar. Não deixo de agradecer inclusive
aos conselheiros que rejeitaram participar do estudo, visto que, mesmo não tendo aceitado, me
receberam e me ouviram. Que a academia um dia dialogue com as instituições de fora de seu
muro e os trabalhos acadêmicos sejam melhor compreendidos.
À minha “nova” família pela acolhida e compreensão pelos finais de semana em que
ocupei a mesa da sala com meus materiais, pelas festas em que deixei de socializar e pelos
passeios de bicicleta que ficaram em segundo plano. Edison, Roseli, Taciane e Viviane
Cantarelli, meu muito obrigada.

À minha família pelo apoio e pelo ânimo que me deu quando eu já estava cansada. Às
minhas tias Shirley, Elizete, Regina, Salete e Silmara, obrigada! Aos meus avôs Dary e José (in
memoriam) pelos exemplos de gentileza e virtuosidade. À minha mãe por toda a garra com que
me criou e pela força que nos impressiona e por ser uma verdadeira comédia. Só tenho a
agradecer ao meu irmão Márcio, pelo incentivo à leitura desde que eu ainda não era gente, pelos
salgadinhos divididos na metade exata do pacote e pelos ensinamentos e exemplos, que saiba
que todo seu esforço pela minha educação valeu a pena. Meus agradecimentos à Dani por fazer
esta pessoa tão especial para mim feliz.

Apesar de ser a única “pessoa” que não poderá ler este texto por justamente não ser uma
pessoa, deixo registrados meus agradecimentos à minha companheira de todas as horas, a
Bitoca. Agradeço pela companhia, alegria e compreensão pela rotina cansativa de uma “mãe”
professora e mestranda.

Por fim, agradeço a quem chegou por último para me acompanhar pelo caminho, mas,
desde que me alcançou, tem sido o meu maior apoio. Ao meu companheiro Thiago Cantareli
pela tese formulada para o congresso sindical do IBGE (pela efetivação dos trabalhadores
temporários) e que não fez muito sucesso, pelas caronas, brigadeiros e conversas. Pelo amor e
apoio incondicional e por ter dito as coisas nas horas certas. Que vejamos juntos um dia um
futuro melhor para nós e para todos.
Pequeno perfil de um cidadão comum

Era um cidadão comum como esses que se vê


na rua
Falava de negócios, ria, via show de mulher
nua
Vivia o dia e não o sol, a noite e não a lua
Acordava sempre cedo (era um passarinho
urbano)
Embarcava no metrô, o nosso metropolitano...
Era um homem de bons modos:
"Com licença; - Foi engano"
Era feito aquela gente honesta, boa e comovida
Que caminha para a morte pensando em
vencer na vida
Era feito aquela gente honesta, boa e comovida
Que tem no fim da tarde a sensação
Da missão cumprida
Acreditava em Deus e em outras coisas
invisíveis
Dizia sempre sim aos seus senhores infalíveis
Pois é; tendo dinheiro não há coisas
impossíveis
Mas o anjo do Senhor (de quem nos fala o
Livro Santo)
Desceu do céu pra uma cerveja, junto dele, no
seu canto
E a morte o carregou, feito um pacote, no seu
manto
Que a terra lhe seja leve

Belchior
RESUMO

A criação dos Conselhos Tutelares (CTs) no Brasil foi estabelecida em 1990 junto com o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Captando as promessas de redemocratização, de
participação social e de reivindicação de direitos, os Conselhos foram pensados e delineados
como órgãos comunitários com representantes eleitos periodicamente, sendo responsáveis por
atribuições que vão desde o atendimento à criança e ao adolescente violado em seus direitos até
à busca pela prevenção da violação, como o assessoramento do Poder Executivo local na
elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da
criança e do adolescente. A literatura sobre o tema é produzida dentro de diversas áreas do
conhecimento – com predominância da área da saúde – e pouco trabalhada pelas Ciências
Sociais, sobretudo quanto à relação dos Conselhos Tutelares com as políticas públicas. De uma
forma geral, as pesquisas ressaltam a importância deste instrumento para a garantia dos direitos
do público infanto-juvenil, mas destacam que: i. os CTs não dispõem de infra-estrutura
adequada para a execução do trabalho, seja ela relacionada aos locais de atendimento, seja ela
relacionada à má formação dos conselheiros e sua baixa remuneração; ii. os CTs não têm seu
papel compreendido nem pela sociedade nem pelo setor público, o que cria uma série de
constrangimentos e dificuldades ao trabalho cotidiano; iii. os CTs têm se distanciado da
proposta prevista no ECA, uma vez que ainda reproduzem o ideário “menorista” e têm se
aproximado do Poder Judiciário em detrimento da aproximação com as comunidades locais e
movimentos sociais. Em busca de entender qual o papel dos Conselhos Tutelares na elaboração
das políticas públicas e quais os fatores para que um Conselho aja com esse fim, esta pesquisa
estudou cinco Conselhos Tutelares da cidade de Guarulhos (SP) durante o ano de 2017. Os
resultados apontam que, dada a fragilidade da relação com os canais da rede de atendimento
municipal, a pouca capacitação que os conselheiros recebem e a pouca regulação da política
pública da infância e da adolescência, os conselheiros executam seu trabalho mobilizando seus
repertórios pessoais, dando espaço à uma atuação despadronizada e com alto grau de
discricionariedade. Para chegar aos resultados, a pesquisa baseou-se em entrevistas
semiestruturadas, as quais possibilitaram a análise das redes sociais (ARS) dos conselheiros.

Palavras-chave: Conselho Tutelar. Políticas públicas. Estatuto da Criança e do Adolescente.


ABSTRACT

The creation of the Child Care Councils in Brazil was established in 1990 along with the
Child and Adolescent Statute (ECA). Capturing the promises of redemocratization, social
participation and the demand for rights, the Councils were thought and designed as community
bodies with representatives elected from time to time, being responsible for assignments
ranging from the care of children and adolescents violated in their rights to the search for the
prevention of violation, such as advising the local government in the development of the budget
proposal for plans and programs related to the rights of children and adolescents. The literature
on the subject is produced within several areas of knowledge - with a predominance of the
health area - and little worked by the Social Sciences, especially regarding the relation of the
Child Care Councils with the public policies. In general, the researches highlight the importance
of this instrument for guaranteeing the rights of children and youth, but note that: i. the Child
Care Councils do not have adequate infrastructure for the execution of the work, whether it is
related to the places of care or related to the poor formation of the counselors and their low
remuneration; ii. the Child Care Councils do not have their role understood neither by society
nor by the public sector, which creates a series of constraints and difficulties to the daily work;
iii. the Child Care Councils have distanced themselves from the ECA proposal, since they still
reproduce the "minorist" ideology and have approached the Judiciary to the detriment of the
rapprochement with local communities and social movements. In order to understand the role
of the Child Care Councils in the elaboration of public policies and the factors for a Council to
act for this purpose, this study studied five Child Care Councils of the city of Guarulhos (SP)
during the year 2017. The results point that, given the fragility of the relationship with the
channels of the municipal service network, the lack of training that the counselors receive, and
the poor regulation of public policy for children and adolescents, counselors carry out their
work by mobilizing their personal repertoires, giving space to a unadjusted and with a high
degree of discretion. To reach the results, the research was based on semi-structured interviews,
which made possible the analysis of the social networks (ARS) of the counselors.

Keywords: Child Care Council. Public Policy. Statute of the Child and Adolescent (ECA).
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1- Benedicto dos Santos ............................................................................................. 24


Figura 2 - Caso José Falcone ................................................................................................. 26
Figura 3 - Contextualização histórica do atendimento à infância no Brasil (1889 – 1985)
.................................................................................................................................................. 32
Figura 4 - Defesa da revisão do ECA em 1993 ..................................................................... 66
Figura 5 - Localização dos Conselhos Tutelares do município de Guarulhos ................ 130
Figura 6 - Material de campanha – Eleição para os Conselhos Tutelares (Guarulhos, 2015)
................................................................................................................................................ 152
Figura 7 - Rede social da conselheira Ariane ..................................................................... 162
Figura 8 - Rede social da conselheira Izilda ....................................................................... 163
Figura 9 - Rede social da conselheira Viviane ................................................................... 164
Figura 10 - Rede social do conselheiro Márcio .................................................................. 173
Figura 11 - Rede social da conselheira Giane .................................................................... 174
Figura 12 - Rede social da conselheira Bianca ................................................................... 181
Figura 13 - Rede social do conselheiro Ivan ....................................................................... 182
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABMP Associação Brasileira de Magistrados, Promotores e Defensores


Públicos da Infância e Juventude
CEDCA Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente
CF/88 Constituição Federal de 1988
CLT Consolidação das Leis do Trabalho
CMDCA Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
CNBB Confederação Nacional dos Bispos do Brasil
CNP Conselho Nacional de Propaganda
CNS Conselho Nacional de Saúde
Conanda Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
CONASP Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária
CT Conselho Tutelar
DBF Declaração de Benefícios Fiscais
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
FIA Fundo da Infância e da Adolescência
FMDCA Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
Funabem Fundação Nacional do Bem Estar do Menor
Fórum DCA Fórum Nacional Permanente de Entidades Não Governamentais de
Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (DCA)
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Ipea Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas
LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
LDO Lei de Diretrizes Orçamentárias
LOA Lei do Orçamento Anual
MNMMR Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua
MP Ministério Público
MPF Ministério Público Federal
Munic Pesquisa de Informações Básicas Municipais
OCA Orçamento Criança e Adolescente
ONG Organização Não Governamental
PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PPA Plano Plurianual
SDH/PR Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
Sinase Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
SIPIA Sistema de Informação da Infância e Adolescência
SGD Sistema de Garantia de Direitos
SGDCA Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente
SPDCA Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente
Suas Sistema Único de Assistência Social
SUS Sistema Único de Saúde
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 14
1 . A INFÂNCIA E A ADOLESCÊNCIA NO BRASIL: CARIDADE, PUNITIVISMO E
PROTEÇÃO 22
1.1. HISTÓRICO DO TRATO DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA NO BRASIL 22
1.2. OS MOVIMENTOS SOCIAIS E O PROCESSO DE REDEMOCRATIZAÇÃO
BRASILEIRO 33
1.2.1. A CONSTITUIÇÃO DE 1988: A BASE DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE 34
1.2.2. O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOSLESCENTES E SUAS
PRERROGATIVAS 47
2. CONSELHOS TUTELARES: NOVOS ATORES EM CENA 55
2.1. CONSELHOS TUTELARES: CONCEITO E DESCRIÇÃO 55
2.2. O APARATO NORMATIVO DA POLÍTICA DE PROTEÇÃO E AS AÇÕES DOS
CONSELHOS TUTELARES 61
2.3. O PAPEL DOS CONSELHEIROS TUTELARES A PARTIR DO CONCEITO DE
“BUROCRATAS DE NÍVEL DE RUA” (STREET LEVEL BUREAUCRACY) NA
IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS 82
2.4. REVISÃO DA LITERATURA ESPECÍFICA SOBRE OS CONSELHOS
TUTELARES 87
2.5. 27 ANOS DE ECA E DE CONSELHOS: DIAGNÓSTICOS 103
3. ESTUDO DE CASO SOBRE OS CONSELHOS TUTELARES DE GUARULHOS:
FATORES INSTITUCIONAIS, ORGANIZACIONAIS E RELACIONAIS 112
3.1. O MUNICÍPIO DE GUARULHOS 113
3.2. OS CONSELHOS TUTELARES DE GUARULHOS 129
3.2.1. BREVE REFLEXÃO SOBRE AS DIFICULDADES DA PESQUISA 131
3.2.2. ANÁLISE DOS CONTEXTOS INSTITUCIONAIS/ORGANIZACIONAIS 135
3.2. FATORES RELACIONAIS: O PAPEL DAS REDES SOCIAIS E DO PERFIL
DOS CONSELHEIROS TUTELARES NA ELABORAÇÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS 149
3.2.1. OS CONSELHEIROS TUTELARES POR ELES PRÓPRIOS: TRAJETÓRIAS
E SIGNIFICAÇÃO ÀS SUA AÇÕES 153
CONCLUSÃO 185
REFERÊNCIAS 194
ANEXO A - REPRESENTAÇÃO VISUAL DE GUARULHOS E AS DIFERENÇAS
ENTRE OS BAIRROS (BAIRROS DO CENTRO À ESQUERDA DO AEROPORTO
INTERNACIONAL). 198
ANEXO B – ROTEIRO PARA ENTREVISTAS INDIVIDUAIS COM OS
CONSELHEIROS TUTELARES 200
14

INTRODUÇÃO

Os estudos sobre Conselhos Tutelares têm ganhado cada vez mais novas reflexões,
recortes temporais e espaciais diferentes, bem como têm sido desenvolvidos em diferentes áreas
do conhecimento. Mas, apesar do crescimento das pesquisas nas últimas décadas no Brasil, os
trabalhos acadêmicos sobre Conselhos Tutelares ainda são incipientes, dada a grande
fragmentação organizacional e temática.

Se voltarmos nossa atenção para a literatura que as Ciências Sociais têm produzido acerca
do assunto, perceberemos o pequeno espaço que é atribuído ao tema na área. De forma geral,
os trabalhos que estudam os Conselhos Tutelares no Brasil estão mais voltados à análise da
atuação do Conselho Tutelar em si e em suas interfaces com a violência; a democracia, os
direitos e a cidadania; a educação; a família e a recuperação física/psicológica do(a)
criança/adolescente cujos direitos foram violados. Algumas pesquisas têm realizado
diagnósticos importantes acerca do funcionamento dos Conselhos, como a incapacidade de
tratar das demandas pelas quais são responsáveis, a pouca estrutura da qual dispõem para o
trabalho, a falta de capacitação para exercer o trabalho de conselheiro, a pouca participação dos
Conselhos Tutelares numa forma de atuação conjunta com outros atores políticos dos
municípios brasileiros. De acordo com Lafer (2010), a literatura tem se dedicado a fazer uma
análise normativa no tocante a qual deve ser predominantemente o papel e o foco da intervenção
dos Conselhos Tutelares, sem realizar uma leitura mais crítica no tocante ao papel dos
Conselhos.

Notamos uma grande lacuna no sentido de buscar entender os fatores decisivos para a
participação ativa dos Conselhos na produção das políticas públicas voltadas ao segmento
infanto-juvenil. Como veremos adiante, os Conselhos Tutelares foram idealizados em um
contexto de engajamento civil, reabertura política, incentivo à participação política e
descentralização político-administrativa. Dessa maneira, foram pensados e delineados para
serem um órgão capaz de entender as limitações e necessidades dos municípios onde estão
instalados e cobrarem o Executivo municipal para o provimento de políticas públicas anteriores
à violação de direitos propriamente dita. Ou seja, por serem atores que atuam na ponta,
poderiam e deveriam, mais do que nenhum outro, transformar as demandas observadas em seu
cotidiano de trabalho em ações preventivas das violações.

Há, portanto, uma grande lacuna nos estudos empíricos sobre a atuação dos Conselhos
interligada com a exigência por políticas públicas. Assim, percebe-se um espaço na agenda de
15

pesquisa para as análises sobre Conselhos Tutelares e sua capacidade de articulação política
junto ao poder público e às demais políticas setoriais. A lacuna parece ser ainda maior quando
tentamos buscar os esforços teóricos para a compreensão do papel dos Conselhos Tutelares e
dos conselheiros tutelares. Conforme trabalharemos adiante, no estudo do tema, foi necessário
mobilizar a literatura sobre movimentos sociais, sobre políticas públicas e sobre conselhos
gestores, com o intuito de tratar dos seguintes problemas de pesquisa: como os diferentes
Conselhos organizam-se de forma a transformar suas demandas em diagnósticos e exigências
de políticas que alterem o quadro das violações? Como os conselheiros tutelares agem, o que
influencia e constrange suas ações e discricionariedade?

Nesta dissertação, temos em mente o caráter híbrido da profissão “conselheiro tutelar”.


Conforme veremos adiante, são poucos os esforços na literatura da área para delimitar
teoricamente o que representa ser conselheiro tutelar, pois suas funções e características diferem
dos conselheiros gestores e de outras caracterizações já elaboradas. Nesse sentido, por um lado,
trabalhamos com o entendimento dos conselheiros tutelares como sujeitos políticos que operam
o cálculo de sobrevivência política e econômica, já que são eleitos, dependem da aprovação dos
munícipes para uma eventual recondução, podem, através de seu mandato de conselheiro,
galgar novos cargos políticos e, além disso, dedicam-se exclusivamente ao Conselho, sendo sua
fonte de renda exclusiva, por outro, sua caracterização teórica aproxima-se do conceito de
burocratas de nível de rua:

Eu argumento que as decisões de burocratas do nível da rua, as rotinas que eles


estabelecem e os artifícios que eles inventam para tratar com as incertezas e as
pressões do trabalho efetivamente tornam-se as políticas públicas que eles
executam. Eu sustento que a política pública não é mais bem compreendida como
feita nas legislaturas ou nas suítes dos administradores do alto escalão no último
piso. Estas arenas decisórias são relevantes, claro, mas elas não representam o
quadro completo. À combinação dos lugares onde as políticas são constituídas,
devem-se adicionar os escritórios lotados e os encontros diários dos trabalhadores
do nível da rua (LIPSKY, 1980, p.13).
A combinação desses motes analíticos possibilita levar em conta a discricionariedade, as
formas como os conselheiros constroem suas ações, os processos de interação e os fatores que
contribuem para isso. Se o ECA e as resoluções posteriores prescrevem as ações que deverão
ser realizadas e as legislaturas determinam a elegibilidade dos que serão afetados pelas políticas,
no plano micro a aplicação dos textos normativos e o atendimento das famílias e indivíduos são
dependentes da discrição dos conselheiros. Que conduta familiar ameaça os direitos infanto-
juvenis? Quais famílias serão encaminhadas para a rede de proteção, quais serão penalizadas e
quais terão o atendimento finalizado o mais breve possível? O que determina que os
conselheiros influam na elaboração de políticas públicas? Em qual momento e por que agir
16

cobrando o Executivo? No limite, são os conselheiros quem decidem, e por isso, nosso estudo
voltou-se para eles e as questões acima nortearam o desenvolvimento da pesquisa.

Observamos, nesta dissertação, os detalhes do que chamamos de “articulação política”,


ou seja, o movimento político realizado pelos conselheiros em prol dos direitos infanto-juvenis.
Consideramos, sobretudo, que este processo é complexo e envolve pessoas, vontades,
necessidades, relações de poder, recursos, disputas, capitais culturais, políticos e sociais.
Consideramos, também, que um Conselho Tutelar influenciador de políticas públicas não é o
suficiente para alterar o quadro de violações em um país com níveis de desigualdade alarmantes
como o Brasil, mas é importante que um órgão que atua “na ponta” seja capaz de transformar
suas demandas em políticas preventivas à violação.

Além disso, devemos observar se estas questões podem nos ajudar a entender aquilo que
influencia e impacta diretamente as escolhas que os conselheiros fazem e as questões que
condicionam sua própria maneira de enxergar as políticas e atuar sobre elas.

No segundo semestre de 2017, estudamos a atuação de cinco Conselhos Tutelares do


município de Guarulhos (SP)2. Conforme veremos no capítulo dois, os Conselhos Tutelares
recebem, a cada dia, demandas diferentes umas das outras, organizam-se de formas diferentes
para atenderem os pedidos da comunidade no seu entorno e se articulam de forma diferente
para cobrarem ações e planos do Executivo. Assim, apesar de atuarem como servidores do
município atendendo famílias e outras pessoas, estes órgãos têm a particularidade de serem
eleitos pelos munícipes. Dividem, portanto, suas obrigações em atender a população com a rede
de relações construídas em sua cidade e com a atribuição de se articular por melhorias nas
políticas infanto-juvenis.

Por partilharem tanto do mundo das políticas públicas (do Estado) como o mundo dos
usuários (da comunidade), estes agentes e as instituições onde estão inseridos tornam-se um
objeto interessante para ilustrar o processo de construção das políticas públicas, na medida em
que podem efetivar a mediação entre Estado e sociedade civil, justamente por serem eleitos pela
população do município para atuar dentro do Estado. Pretende-se analisar como as regras e

2
Conforme explicado adiante, a cidade de Guarulhos conta com seis Conselhos Tutelares em funcionamento.
Todavia, por limitações da pesquisa, não foi possível realizar as entrevistas em um dos CTs da cidade.
17

instituições colocadas pela política pública produzem incentivos (ou não) para a atuação dos
Conselhos Tutelares e dos seus conselheiros.

Além disso, devido à particularidade própria da profissão, procuraremos compreender


também como o envolvimento relacional dos conselheiros pode impactar o processo de
articulação e como as diferentes características dos Conselhos e conselheiros podem produzir
diferentes comportamentos. A pesquisa de campo, realizada nos Conselhos Tutelares do
munípio de Guarulhos, foi definida a partir das seguintes questões:

1) Como ocorre a articulação dos conselheiros dos Conselhos Tutelares do município de


Guarulhos para a garantia de políticas públicas, considerando a prática e a interação a elas
relacionadas?
2) Como os fatores institucionais/organizacionais e os fatores relacionais impactam na
atuação dos conselheiros em prol dos direitos infanto-juvenis?
3) Qual o resultado da operação das legislações federais e municipais e das capacitações
para a prática dos conselheiros?

Em termos metodológicos, as fases que compuseram a pesquisa foram: i. análise da


bibliografia que fornecesse o aparato teórico para o entendimento das questões levantadas pela
pesquisa; ii. leitura e sistematização de materiais impressos e digitais (livros, cartilhas,
documentos legais e sites que abordassem o objeto estudado); iii. consulta com os conselheiros
tutelares dos cinco Conselhos instalados no município, envolvendo a realização de entrevistas
semiestruturadas; e, por fim, vi. produção de sociogramas, com o objetivo de ilustrar e
possibilitar uma análise mais apurada acerca das instituições e atores sociais envolvidos na
articulação dos Conselhos.

Os passos constituíram-se, primeiramente, a partir da análise da bibliografia, leitura e


sistematização dos documentos impressos e digitais. Essa fase representou o levantamento a
fim de abordar o panorama da infância e da adolescência no Brasil, os movimentos sociais que
reivindicaram esses direitos, a forma pela qual essas demandas foram institucionalizadas e as
consequências para a política pública da infância e da adolescência. Dessa forma, pretendeu-se
ilustrar o movimento que desembocou na criação dos Conselhos e o que a criação dos
Conselhos representava. Para tanto, localizamos o tema geral da dissertação em termos
históricos e sociológicos.
18

O levantamento teórico permitiu a formulação das questões que seriam levadas à pesquisa
de campo. Assim, o passo seguinte foi elaborar os procedimentos para a coleta dos dados, a
qual foi produto da análise de entrevistas semiestruturadas com os conselheiros tutelares.

Os sujeitos mobilizados para a pesquisa empírica foram os Conselhos e conselheiros


tutelares da cidade de Guarulhos/SP. Não fez parte desta pesquisa o campo com as famílias,
crianças e adolescentes, escolas e/ou outros órgãos que atuam próximos dos Conselhos
Tutelares. Os Conselhos foram divididos de acordo com a localização geográfica (ver anexo
A).

Com um universo de 12 interlocutores3, foram realizadas entrevistas semiestruturadas


com o objetivo de conhecer o perfil dos conselheiros e atuação no Conselho Tutelar. As
entrevistas semiestruturadas combinaram perguntas abertas e fechadas, onde o informante teve
a possibilidade de discorrer sobre o tema proposto4. Segundo Selltiz (1987), o pesquisador deve
seguir um conjunto de questões previamente definidas, mas ele o faz em um contexto muito
semelhante ao de uma conversa informal. O entrevistador deve ficar atento para dirigir, no
momento que achar oportuno, a discussão para o assunto que o interessa fazendo perguntas
adicionais para elucidar questões que não ficaram claras ou ajudar a recompor o contexto da
entrevista, caso o informante tenha “fugido” ao tema ou tenha dificuldades com ele (Boni e
Quaresma, 2005). Esse tipo de entrevista é muito utilizado quando se deseja delimitar o volume
das informações, obtendo assim um direcionamento maior para o tema, intervindo a fim de que
os objetivos sejam alcançados.

A principal vantagem da entrevista semiestruturada é que essa técnica quase


sempre produz uma melhor amostra da população de interesse. Outra vantagem
diz respeito à dificuldade que muitas pessoas têm de responder por escrito. Nesse
tipo de entrevista isso não gera nenhum problema, pode-se entrevistar pessoas que
não se dispuseram a responder algo por escrito. Além do mais, esse tipo de
entrevista possibilita a correção de enganos dos informantes, enganos que muitas
vezes não poderão ser corrigidos no caso da utilização do questionário escrito.
(BONI e QUARESMA, 2005, p. 08).

3
Cada Conselho Tutelar conta com cinco conselheiros em sua equipe. Estivemos presente nos seis CTs da cidade,
todavia, não foi possível encontrar todos os conselheiros, alguns conselheiros não quiseram conceder as entrevistas
e outros não permitiram que as conversas realizadas fossem utilizadas na dissertação. Dessa forma, tivemos 12
entrevistas num universo de 30 conselheiros no âmbito municipal.
4
O questionário aplicado com os conselheiros está no anexo B.
19

Ademais, no caso dos Conselhos Tutelares, como cada Conselho se organiza


internamente de diferentes formas, foi possível captar comentários e observações que não
teriam espaço em um questionário estritamente fechado.

A entrevista semiestruturada também tem como vantagem a sua elasticidade quanto à


duração, permitindo uma cobertura mais profunda sobre determinados assuntos. Além disso, a
interação entre o entrevistador e o entrevistado favorece as respostas espontâneas. Elas também
são possibilitadoras de uma abertura e proximidade maior entre entrevistador e entrevistado, o
que permite ao entrevistador tocar em assuntos mais complexos e delicados, ou seja, quanto
menos estruturada a entrevista maior será o favorecimento de uma troca mais afetiva entre as
duas partes (Selltiz, 1987). Desse modo, este tipo de entrevista colabora muito na investigação
dos aspectos afetivos e valorativos dos informantes que determinam significados pessoais de
suas atitudes e comportamentos. As respostas espontâneas dos entrevistados e a maior liberdade
que estes têm podem fazer surgir questões inesperadas ao entrevistador que poderão ser de
grande utilidade em sua pesquisa.

Quanto às desvantagens da entrevista semiestruturada, estas dizem respeito muito mais


as limitações do próprio entrevistador, como por exemplo: a escassez de recursos financeiros e
o dispêndio de tempo. Por parte do entrevistado há insegurança em relação ao seu anonimato e
por causa disto muitas vezes o entrevistado retém informações importantes, fato que ocorre em
demais procedimentos de origem cognitiva (Selltiz, 1987). Para dirimir a desvantagem relativa
à insegurança em relação ao anonimato, garantimos aos entrevistados que não revelaríamos sua
identificação, como o fizemos. Por este motivo, não serão identificados quais Conselhos exatos
nos receberam para as entrevistas e nem os nomes dos conselheiros que as concederam, sendo
identificados apenas pelo número e por nomes fictícios.

Após a leitura documental e a aplicação das entrevistas, os dados foram analisados e a


partir daí construídos os sociogramas, com o intuito de identificar as redes sociais dos
conselheiros, ou seja, para quais organizações os conselheiros tutelares mais encaminham suas
demandas, além de relações de proximidade cotidianas. Esse movimento foi inspirado
sobretudo pelos resultados de pesquisas que apontam a proximidade dos Conselhos com órgãos
do Judiciário acima das outras esferas, tais como as secretarias municipais e de movimentos
sociais (Nascimento e Scheinvar, 2007). Todavia, pesquisas como a de Nascimento e Scheinvar
(2007) não desenvolveram ferramentas metodológicas para analisar os fenômenos que
pretendem descrever. Nesse sentido, buscamos, por este meio, instrumentos analíticos para a
comparação entre os conselheiros e para a explicação dos fatores determinantes/relevantes para
20

as escolhas dos conselheiros no encaminhamento das demandas e na articulação com as demais


políticas públicas.

O levantamento das redes sociais baseou-se em informações oriundas das entrevistas com
os próprios elos das redes, os conselheiros tutelares no caso. Assim, as informações foram de
origem cognitiva, baseadas no entendimento dos próprios indivíduos a respeito de suas redes
(Marques, 2008). Após o levantamento das redes sociais, foram utilizadas ferramentas
específicas para análise de redes sociais5, que nos permitiram observar tanto dados relativos aos
atributos anteriormente elencados como medidas das próprias redes.

No primeiro capítulo, buscaremos abordar o contexto que deu possibilidade ao advento


dos Conselhos Tutelares. Por isso, abordaremos os processos de mudança e conservação
presentes no campo dos direitos da criança e do adolescente no Brasil. Assim, veremos que, por
um momento, o trato da questão era feito de forma caritativa e punitivista, visão que buscou ser
rompida com a Constituição Federal de 88 e com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Fazem
parte do capítulo, portanto, a análise da Constituição Federal de 1988, o período de
redemocratização brasileiro, os movimentos sociais que deram vozes às demandas dos grupos
subjugados na época da ditadura militar, a explicação da literatura acerca destes movimentos
sociais e, por fim, o exame do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

No segundo capítulo, trataremos especificamente dos Conselhos Tutelares.


Descreveremos e apresentaremos seus principais conceitos, para, em seguida, apresentar os
documentos legais que buscam nortear a ação dos Conselhos, as recomendações do Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Este panorama legal nos permitiu tratar,
em seguida, da literatura específica sobre os Conselhos Tutelares, colocando-a em diálogo com
a posterior apresentação dos números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
a respeito dos Conselhos Tutelares no Brasil. Assim, fazem parte do capítulo a descrição e a
análise dos Conselhos Tutelares. Qual o objetivo da criação dos Conselhos? Quais os
parâmetros para seu funcionamento? Quem pode ser conselheiro? Quais as atribuições de um
Conselho Tutelar? Foi elaborado um quadro comparativo com o intuito de avaliar a diferença
dos documentos que nortearam as mudanças relativas a essas institucionalidades (ECA e as
posteriores Resoluções do CONANDA). No capítulo dois, também fizemos um esforço para

5
Os softwares utilizados para análise foram o Egonet e o Ucinet.
21

caracterizar teoricamente os conselheiros tutelares, já que não encontramos este exercício na


literatura da área.

No terceiro capítulo, serão apresentados os Conselhos Tutelares de Guarulhos. Assim,


justificaremos a escolha do município para o trabalho de campo e daremos início às análises
dos campos estudados, observando os fatores institucionais/predominantes em âmbito
municipal, dentro da organização própria de perfil de conselheiros, observando: a organização
da equipe e rotina de trabalho, organização e articulação dos conselheiros com o Executivo
municipal e com outros grupos influenciadores das políticas públicas, o recebimento das
demandas e de que forma elas são encaminhadas e para quais órgãos e o processo formativo
dos conselheiros tutelares do município de Guarulhos. Aqui, apresentaremos os resultados das
entrevistas com os conselheiros e os sociogramas formulados. Faremos as devidas
considerações sobre as consequências desses fatores para a formulação de políticas públicas e,
por fim, concluiremos sobre o avanço desta pesquisa em relação à literatura abordada.
22

1 . A INFÂNCIA E A ADOLESCÊNCIA NO BRASIL: CARIDADE, PUNITIVISMO E


PROTEÇÃO.

Neste capítulo, buscaremos abordar o contexto que deu possibilidade ao advento dos
Conselhos Tutelares. Seguiremos uma linha cronológica sobretudo para demonstrar as
transformações ocorridas no trato dos direitos sociais e, especificamente, dos direitos infanto-
juvenis. Por isso, abordaremos o histórico de proteção à infância e à adolescência no Brasil com
os extintos Códigos de Menores e o período de redemocratização brasileiro com o processo da
Assembleia Nacional Constituinte e os movimentos que deram vozes às demandas dos grupos
subjugados na época da ditadura militar. Também veremos brevemente a explicação da
literatura acerca destes movimentos sociais e, por último, trataremos da normativa que criou os
Conselhos Tutelares: o Estatuto da Criança e do Adolescente.

1.1. HISTÓRICO DO TRATO DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA NO BRASIL

No Brasil, as legislações específicas sobre as crianças e os adolescentes (tratados como


menores de 18 anos) anteriores ao ECA dirigiam-se quase que exclusivamente aos segmentos
pobres da população, de modo a servir muito mais ao controle, estigmatização e criminalização
do que para garantir-lhes direitos.

Devido ao processo de formação do Estado brasileiro, a Igreja Católica assumia a tutela


de populações economicamente desprovidas, órfãos e doentes através de instituições como a
Santa Casa de Misericórdia.

No Brasil, a primeira Santa Casa foi fundada no ano de 1543, na Capitania de São
Vicente (Vila de Santos). Estas instituições atuavam tanto com os doentes quanto
com os órfãos e desprovidos. O sistema da Roda das Santas Casas, vindo da
Europa no século XIX, tinha o objetivo de amparar as crianças abandonadas e de
recolher donativos. A Roda constituía-se de um cilindro oco de madeira que girava
em torno do próprio eixo com uma abertura em uma das faces, alocada em um tipo
de janela onde eram colocados os bebês. A estrutura física da Roda privilegiava o
anonimato das mães, que não podiam, pelos padrões da época, assumir
publicamente a condição de mães solteiras. Mais tarde em 1927 o Código de
Menores proibiu o sistema das Rodas, de modo a que os bebês fossem entregues
diretamente a pessoas destas entidades, mesmo que o anonimato dos pais fosse
garantido. O registro da criança era uma outra obrigatoriedade deste novo
procedimento. (LORENZI, 2017, p.01).

O começo do século XX reflete o desenvolvimento do processo de industrialização e traz


mudanças substanciais para o Brasil. O período representa a fase de transição da chamada
economia agroexportadora para a substituição de importações. Nesse sentido, o cotidiano das
famílias passa a ser alterado de acordo com a transição estrutural do país. Passam a ser objetos
23

de atenção a questão das crianças no trabalho das fábricas e o abandono das crianças, que
transitavam pelas ruas passando fome e, não raramente, cometendo delitos.

A figurava abaixo demonstra como a questão era tratada pelas autoridades:


24

Figura 1- Benedicto dos Santos

Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.


25

Na figura acima, o diretor de um estabelecimento de acolhimento, em correspondência


com o Secretário da Justiça e da Segurança Pública, o comunica do caso do “menor” Benedicto
dos Santos, cujo destino seria entregue a um orfanato ou a uma outra instituição de caridade.

Outro documento, datado de 1914, provém de um delegado abrindo o processo acerca do


“menor” José Falcone, de oito anos de idade. Tomando conhecimento de que a criança andava
pelas ruas da circunscrição “em más companhias”, o delegado resolveu abrir processo para
averiguação, cuidando das devidas “formalidades legais”. O delegado ainda ressalta que a
condição atual da criança era de vícios e que ele era órfão de pais.
26

Figura 2 - Caso José Falcone

Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.


27

As imagens acima ilustram como a questão da infância e adolescência era vista dentro da
dimensão caritativa, não se questionando o porquê da desestruturação da família da criança, as
condições em que esta vivia e nem produzindo ações para o rompimento do ciclo do abandono.
Mais ainda: ressalta-se a figura do delegado para tratar destas questões. Dessa feita, por boa
parte do século XX, o Brasil esteve longe de encarar a questão como de seguridade social.

É importante observar também como as crianças abandonadas passam a se tornar uma


“questão”, demandando a intervenção do Estado. Sendo assim, não é surpresa constatar que, no
momento em que o Estado voltou sua atenção ao público infanto-juvenil, o fez de maneira a
encarar este segmento como “em situação irregular”. Destaca-se como exemplo da doutrina da
situação irregular o primeiro Código de Menores, promulgado em 1927 6. Já em seu 1° artigo,
informava:

O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18


annos de idade, será submettido pela autoridade competente ás medidas de
assistencia e protecção contidas neste Codigo. (Grafia original). Código de
Menores – Decreto N. 17. 943 A – de 12 de outubro de 1927.

O Código de Menores tinha como público-alvo não todas as crianças, e sim apenas
aquelas tidas como em “situação irregular” – os chamados “menores”. Além de regulamentar
questões como trabalho infantil, tutela e pátrio poder, deliquência e liberdade vigiada, o referido
Código revestia de grande poder a figura do juiz, sendo que o destino de muitas crianças e
adolescentes ficava a mercê de seu julgamento e ética. Trabalhos como o de Veronese (2003)
e Mariano (2006) indicam a predominância que a área jurídica mantinha sobre o assunto. Como
indicado pelos autores, o campo jurídico tornara-se uma das principais arenas de “resolução”
do “problema dos menores” e essa forte associação consolidou o emprego do termo “menor”
para além da esfera jurídica, passando a ser utilizado para identificar a ampla categoria que

6
O Código de Menores de 1927 teve vida longa: sofreu modificações referentes à questão da prática de ato
infracional (neste aspecto, houve modificações implementadas pelo Código Penal de 1940 e pela Lei 5.258 de
1967 que rebaixou a idade penal para 16 anos e restabeleceu o critério de discernimento para os sujeitos entre 16
e 18 anos – abolido do sistema jurídico brasileiro desde 1921. Tal alteração provocou manifestações e reações
contrárias, principalmente no âmbito jurídico. Em razão da celeuma provocada, em 1968, restabeleceu-se a idade
de 18 anos para a responsabilização penal; foi revisto em 1979, período da ditadura militar, sendo que a revisão
do texto não rompeu com sua linha original de arbitrariedade, assistencialismo e repressão; até ser superado com
a promulgação do ECA.
28

incluía crianças ou adolescentes em situação de pobreza ou considerados abandonados,


desvalidos, delinquentes, adquirindo, ao longo do século XX, uma conotação estigmatizante.7

Com a instauração da ditadura do Estado Novo em 1937 (Getúlio Vargas), o Brasil vive
o paradoxo do reconhecimento dos direitos sociais por parte do Estado, gerando o que
Wanderley Guilherme dos Santos chamou de “cidadania regulada”, segundo o qual o agente
estatal reconhece como cidadãos aqueles que têm sua ocupação regularizada, espalhando pela
cultura cívica do país a noção de cidadania vinculada ao Estado.

Com a Constituição de 1937,

o autoritarismo populista passou a consolidar o serviço social oferecido pelo


Estado, na medida em que incorporava o trabalhador e sua família à sociedade
(Carvalho, 2004, p.111), caracterizando-se pela legislação sobre o trabalho e a
articulação entre entes estatais e privados na provisão de serviços assistenciais. Na
área infanto-juvenil, aprofundou-se a prática higienista e repressiva, que
privilegiava o internamento dos menores como principal tática de contenção e
atendimento à criança ou adolescente destituídos de status social. A criação do
Departamento Nacional da Criança – DNCr –, do Serviço de Assistência ao Menor
– SAM – e da Legião Brasileira de Assistência – LBA –, marcaram o atendimento
às famílias, crianças e jovens no período. (PEREZ; PASSONE, 2010, p. 04).

Tais aspectos influenciaram o período subsequente, chamado por Perez e Passone (2010,
p.04) de “democracia populista” (1945-1964).

A fase em questão manteve a forma centralizadora de administração e marcou o período


nacional-desenvolvimentista, cujas atenções voltavam-se à expansão da industrialização, ao
fortalecimento do mercado interno e à expansão do sistema de proteção social. Fazem parte
desse período a criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDBEN) e a criação do Ministério da Educação e Cultura, cujas
ações permitiram a implantação da suplementação alimentar da criança na escola.

Segundo Faleiros (1995, p. 72), com o período democrático "inicia-se uma estratégia de
preservação da saúde da criança e de participação da comunidade, e não somente repressiva
e assistencialista". Ganham notoriedade nesse período o discurso das agências multilaterais

7
Para uma leitura mais atenta acerca dos usos do discurso sobre a criança e o adolescente estigmatizados pelo
termo “menor”, principalmente pela mídia, ver PEREIRA E MIRANDA, 2003
http://www.unilestemg.br/revistaonline/volumes/02/downloads/artigo_03.pdf.
29

como o Fundo das Nações Unidas para a Infância – Unicef – e a Organização das Nações Unidas
para Agricultura e Alimentação – FAO, sobretudo com o mundo abalado pela experiência da II
Guerra Mundial.

Em 1958, acontece o 9º Congresso Panamericano da Criança, em Caracas, que deu


enfoque aos direitos do “menor”. Já, em 1959, a Declaração Universal dos Direitos da Criança
passa a considerar a criança como sujeito de direitos. Segundo Perez e Passone (2010, p.04),

destacam-se entre os princípios e direitos prescritos pela declaração: o direito à


igualdade, sem distinção de raça religião ou nacionalidade; o direito à especial
proteção para o seu desenvolvimento físico, mental e social; o direito à
alimentação, moradia e assistência médica adequadas para a criança e a mãe; o
direito à educação gratuita e ao lazer infantil; o direito a ser protegido contra o
abandono e a exploração no trabalho, entre outros. Instituiu-se, desta forma, como
movimento social internacional, a infância como espaço social privilegiado de
direitos e a criança foi considerada como pessoa em desenvolvimento, portadora
de necessidades especiais e passíveis inclusive de proteção legal.

Para Rizzini (1995), o contraste do marco histórico dos direitos universais da criança com
a realidade brasileira deixou evidente a diferença com que legisladores, juristas e setores do
executivos encaravam a questão da infância e da adolescência no Brasil: "menor como objeto
do direito penal"e os que denfendiam o "menor enquanto sujeito de direitos" (Rizzini, 1995, p.
146).

Por mais que o período de 1945 a 1964 tivesse as características supracitadas, foi
justamente este período que representou os 20 anos de avanço da democracia no Brasil. O golpe
militar de 64 instituiu a ditadura militar e estabeleceu novas diretrizes para a vida em sociedade
e para a relação desta com o Estado. A presença autoritária do Estado tornou-se realidade, houve
recuo em relação aos direitos sociais e os atos institucionais permitiam punições,
marginalizações e exclusões. A nova Carta Magna do país trazida pelo período perpetuou a
prática que seria considerada correta para o período, a prática da exceção.

Em termos de infância e adolescência, dois documentos nortearam e perpetuaram o


projeto político vigente: i. a lei que criou a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Lei
4.513 de 1/12/64) e ii. o Código de Menores de 79 (Lei 6697 de 10/10/79).

A Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) propunha-se a ser a grande


instituição de assistência à infância, cuja linha de ação tinha na internação, tanto dos
abandonados e carentes como dos infratores, seu principal foco. Circunscrito à FUNABEM, o
30

Conselho Nacional da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor formava uma instância


consultiva do poder público para a formulação e execução de políticas públicas voltadas à
infância e juventude. Era um importante órgão da Política Nacional do Bem-Estar do Menor,
na medida em que elaborava os seus estatutos, definia a Política do Bem-Estar do Menor,
aprovava os planos de trabalho, deliberava sobre o orçamento e prestação de contas fornecida
pela diretoria da Fundação, autorizava as práticas relativas a bens patrimoniais, criava e
extinguia cargos, fixava remuneração dos membros da Diretoria, instituía comissões regionais
e, enfim, era legitimado a exercer os poderes não atribuídos a outros órgãos pela lei que instituiu
a Funabem e seus estatutos. Verifica-se, portanto, que o tratamento deste Conselho de políticas
para a infância e adolescência, no Brasil, bem como a criação e estruturação de todas as regras
participativas eram, em princípio, resultantes da iniciativa do poder público, restando à
população a simples adesão. O Conselho constituía um órgão consultivo de governo,
legitimando a atuação estatal.

Já o Código de Menores de 1979 era uma demonstração do aparato repressivo do período,


somado à base caritativa trazida pelo Código de Menores de 1927. Segundo o documento, eram
consideradas em situação irregular crianças e adolescentes que se encontravam privados

de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que


eventualmente, em razão de: falta, ação ou omissão dos pais ou responsável;
manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; fossem vítimas
de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;
estivessem em perigo moral, devido a encontrar-se, de modo habitual, em
ambiente contrário aos bons costumes; exploração em atividade contrária aos bons
costumes; privados de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos
pais ou responsável; fossem detentoras de desvio de conduta, em virtude de grave
inadaptação familiar ou comunitária; ou ainda autores de infração penal.
(BRASIL, 1979).

É interessante notar dois pontos: o primeiro deles é a figura da “autoridade judiciária”


como elemento central da política e o segundo é a perpetuação do termo “menor” para designar
crianças e adolescentes que representassem um problema para o Estado.

Quanto ao primeiro ponto, o juiz de menores era a autoridade judiciária competente para
aplicar medidas de “assistência e proteção”, previstas na Lei no 6.697/79, a todos aqueles que
tinham menos de 18 anos de idade. Nesse sentido, o tratamento da questão tinha sua linguagem
própria e o campo de atuação era fechado para o restante da sociedade. Este destaque é
importante, pois uma das funções do Conselho Tutelar é justamente desjudicializar o trato da
31

infância e da adolescência, deslocando a esfera de solução dos “problemas” e as inovações da


política da Justiça para a própria sociedade.

Já em relação à perpetuação do termo “menor”, Morelli (1997) descreve o século XX


como o século em que crianças e adolescentes tornaram-se ocupantes de um amplo espaço na
sociedade ocidental. Tal direcionamento das atenções deu-se tanto para a família como para
especialistas de diversas áreas. No campo dos direitos, ainda segundo o autor, essa concepção
careceria de entendimentos mais progressistas, já que crianças e adolescentes seriam encarados
não como sujeitos, mas como objetos de tutela total. É por isso, então, que apesar de
progressivamente o reconhecimento da infância e da adolescência ter sido difundido, desde o
início do século XX pudemos observar uma cisão entre os termos “criança” e “menor”.

Adotado no final do século XIX com o objetivo de indicar o limite de idade, o termo
“menor”, com o tempo, passou a ser usado com uma conotação pejorativa, com o intuito de
indicar as “crianças e adolescentes pobres das cidades” (LONDOÑO, 1991). Portanto,
“...mesmo que para as áreas envolvidas diretamente com crianças o termo tivesse uma
definição precisa, a divulgação de ‘menor’ e sua utilização cada vez mais frequente pela
sociedade em geral contribuíram para a produção de uma visão normalmente confusa e
estigmatizante.” (MORELLI, 1997, p. 86).

A utilização da palavra “menor” no processo de implantação no Brasil do serviço de


identificação no início do século XX era direcionada ao tratamento de crianças ou adolescentes
que representassem um “problema” para vida em sociedade. A criança, ser em formação e
passível de tutela não tinha a mesma representação que um menor, figura associada, na maioria
das vezes, à caracterização da delinquência.

Essa imagem da figura do menor atrelada à delinquência ainda é constantemente


construída e reproduzida sobretudo pela mídia. Sobre a mídia e seu empenho em construir e
reforçar uma imagem pejorativa de crianças e adolescentes (sobretudo das que se encontram
em conflito com a lei, na maioria das vezes também pertencentes aos estratos marginalizados
da sociedade), Carneiro (1996, p. 28) ressalta que “...a força das imagens não se encontra na
veracidade dos fatos que elas tentam representar e sim na capacidade que têm de interferir no
comportamento humano, gerando sentimentos e atitudes de medo, repulsa, ódio, inveja,
submissão, adoração, entre outros.”

Vimos, até então, a política da infância e da adolescência no Brasil do início do século


XX até meados do período da Ditadura Militar. As mudanças normativas observadas nesse
32

período foram, em linhas gerais, guiadas por diferentes concepções de infância e adolescência,
além de diferentes concepções acerca da responsabilidade pelos direitos infanto-juvenis. A
seguir, a figura indica as mudanças nas leis de proteção à infância e adolescência:

Figura 3 - Contextualização histórica do atendimento à infância no Brasil (1889 – 1985)

Fonte: PEREZ E PASSONE, 2010, p. 03.

O panorama histórico do tratamento da infância e da adolescência pelas políticas sociais


objetivou demonstrar as mudanças em relação ao desenho da política dentro de cada momento
até o período que antecedeu a Constituição de 1988. De acordo com Pereira (1998), as
principais mudanças ocorridas nas legislações que visavam atender à população infanto-juvenil
(Código de Menores de 1927, Código de Menores de 1979 e Estatuto da Criança e do
Adolescente) foram: i. A concepção político-social implícita; ii. A visão da criança e do
adolescente; iii. Os mecanismos de participação e iv. A fiscalização do cumprimento da lei. A
33

partir da observância desses itens, trataremos agora do elemento que possibilitou a promulgação
do Estatuto da Criança e do Adolescente: a Constituição de 1988 e seu contexto político-social.

1.2 OS MOVIMENTOS SOCIAIS E O PROCESSO DE REDEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRO

Durante o regime militar, havia no Brasil uma fronteira nítida que distinguia os grupos
sociais oficialmente legítimos daqueles a serem banidos da convivência pública. Como
consequência do autoritarismo do sistema político e do bloqueio seletivo do acesso à
legitimidade pública, alguns dos segmentos sociais puderam se articular somente na decadência
do regime militar (FELTRAN, 2008). Foi na decadência do período ditatorial que o país
retomou seu longo processo de construção democrática, impulsionado, principalmente, pelos
“novos movimentos sociais”, atores populares que reivindicavam, entre outras coisas, a
possibilidade de expressar publicamente suas identidades e interesses. Na década de 1980,
portanto, ficou expressa a demanda por maior participação política. Para os movimentos sociais
da época, a possibilidade de votar em seus representantes não era o único passo para a
construção de uma sociedade democrática. Havia também a necessidade de outras formas de
participação política, de maneiras mais diretas, de modo que a população fosse ativa na vida
pública e não apenas representada (BENEVIDES, 1991).

A ampliação da política para além dos marcos institucionais atraiu boa parte da literatura
política da época, e é através de sua análise que é possível captar a promessa de democratização
social que brotava no Brasil no período. Sader (1988, p.312) refere-se à “ampliação” da política
a partir da criação de “uma nova concepção da política, constituída a partir das questões da
vida cotidiana e da direta intervenção dos interessados”. Tilman Evers (1984, p.12-13)
acrescenta que “os esforços das ditaduras militares para suprimir a participação política (...)
tiveram o efeito exatamente oposto de politizar as primeiras manifestações sociais por
moradia, consumo, cultura popular e religião”. Boaventura de Souza Santos (1994, p.225)
argumenta que “a novidade dos novos movimentos sociais não reside na recusa da política,
mas, pelo contrário, no alargamento da política para além do marco liberal da dicotomia entre
Estado e sociedade civil”.

Pela face autoritária do sistema político e pelo bloqueio seletivo do acesso à legitimidade
pública, alguns dos segmentos sociais puderam se articular somente na decadência do regime
militar. A estes principais atores populares que reivindicavam, entre outras coisas, a
possibilidade de expressar publicamente suas identidades e interesses, deu-se o nome de “novos
movimentos sociais” (Paoli, 1995).
34

Feltran (2008) ressalta que as falas destes atores permitiram mesmo que se conformasse
no país uma espécie de “contra esfera pública8”, a qual abriu espaços renovados de discussão
pública sobre os parâmetros da construção democrática.

A aparição pública dos movimentos populares renovava a cena nacional de disputas pelo
poder, inclusive pelo poder do Estado. Deste modo, boa parte da análise política da época
voltou-se para esta “politização dos cotidianos”. Os atores populares nascentes foram nomeados
como novos “sujeitos políticos”, dos movimentos sociais brotava a promessa de
democratização social.

Ao passo que o campo político-institucional se consolidava para abarcar a participação


da sociedade civil, os marcos legais acompanhavam as reivindicações dos movimentos sociais.
Como exemplo, a Constituição de 1988, que ganhou o significativo apelido de “Constituição
Cidadã”, veio legitimar e prever o exercício da cidadania e da participação popular. Além disso,
também afirmou direitos de novas categorias de cidadãos. É desse processo que nasceu o
movimento pró direitos infanto-juvenis:

o movimento social da infância tem sua origem na própria ampliação das bases da
cidadania, incluindo na pauta política a defesa de segmentos tradicionalmente
marginalizados, para a construção de um Estado Democrático de Direitos no Brasil
e temáticas afeitas aos direitos fundamentais da população, como saneamento,
moradia, educação e custo de vida. (CARDOSO, 2010, p. 32).

1.2.1. A CONSTITUIÇÃO DE 1988: A BASE DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

A reconstrução democrática no Brasil acompanhou a tendência de descentralização


observada na Europa – com a saída da longa tradição centralizadora do período absolutista – e
na América Latina - com o fim das ditaduras militares na segunda metade do século XX9. Nesse
sentido, como forma de contraponto ao centralismo da ditadura, a Constituição de 88 conferiu
destaque para os governos subnacionais.

8
Segundo o autor, ele empresta a expressão de Habermas (1992), que de algum modo já antecipa a crítica que
Fraser (1995) elaboraria à sua noção de espaço público dos anos 1960. Na literatura brasileira, Costa (1997) já
usou a noção habermasiana de “contra esfera pública” ou “esfera pública alternativa” para pensar a transição de
regime.
9
ARRETCHE, Marta. Prefácio. In: VAZQUEZ, Daniel Arias. Execução local sob regulação federal: impactos
da LRF, FUNDEF e SUS nos municípios brasileiros. São Paulo: Annablume, 2012.
35

Antes de Constituição,

o sistema federativo brasileiro estava organizado de forma dual e hierárquica – em


um plano, a União e os estados e, no plano sub-estatal, os municípios. A Carta
Magna de 1988 alterou essa estrutura, elevando o município a ente federado, em
uma posição equivalente aos estados e ao governo federal, constituindo um pacto
federativo tipicamente brasileiro. Desse modo, do ponto de vista legal, instituíram-
se novas relações entre os entes federados que se devem pautar pelos princípios
do compartilhamento das responsabilidades e pela colaboração recíproca.
(SILVA, 2009, p.01-02).

No seu artigo 18, a Constituição estabelece que “A organização político-administrativa


da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios, todos autônomos” e, no artigo 30, ficam estabelecidas as competências dos
municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas
rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes
nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os


serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem
caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado,


programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela
Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços


de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante


planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a


legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.10

10
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 35. ed. São Paulo:
36

A institucionalização do processo de descentralização político-administrativa


desencadeou uma profunda modificação no aparato político-institucional, ao mesmo tempo que
constituiu as bases para a construção de um novo formato de cidadania, ao reconhecer o
município como locus competente para elaborar e propor políticas sociais como dever do
Estado e direito de todos.

A mudança de paradigma relaciona a categoria da descentralização ao conceito de


municipalização. JOVCHELOVITCH (1995), ao analisar o processo sobre a municipalização,
destaca que ele pode ser compreendido como um meio que permite uma aproximação maior
dos serviços à população, mediante a articulação das forças entre a prefeitura e as organizações
locais, e não somente como modelo de repasse de serviços e encargos das diversas instâncias
para o município. Para JOVCHELOVITCH (1998, p. 49) a municipalização, do ponto de vista
político, reforça a ideia de autonomia, pois se encontra diretamente relacionada com o processo
decisório, por apresentar as condições reais de participação e de controle social sobre o papel
do Estado, tanto na elaboração e deliberação quanto também na efetivação dos planos e políticas
no âmbito local. Além disso, a municipalização permite responder de forma mais ágil às
demandas postas pelos cidadãos e ao mesmo tempo reduz a responsabilidade do Estado na
execução das políticas sociais.

Nesse sentido, a municipalização, tal como a descentralização, constitui-se como


estratégia de consolidação democrática11. Por isso, na ótica de JOVCHELOVITCH (1998, p.
40) essas categorias envolvem a participação, mostrando “que a força da cidadania está no
município. É no município que o cidadão nasce, vive e constrói sua história. É aí que o cidadão
fiscaliza e exercita o controle social”.

Segundo LUSTOSA (1999), a descentralização como tendência tem se colocado sob duas
formas. Na primeira, constitui-se como uma das estratégias idealizadas pelos governos
neoliberais para diminuir a ação do Estado no campo social, com a finalidade de reduzir os
gastos públicos nesse setor. A segunda contrapõe-se ao ideário neoliberal, apresenta propostas

Saraiva, 2005.
11
“Segundo Tocqueville (1937), a proximidade cria mecanismos que tornariam os governos mais responsivos às
preferências dos cidadãos, cabendo ao governo central ações que atendem aos interesses da nação como um
todo.
37

que ampliam a esfera pública, envolvendo conjuntamente Estado/Sociedade, possibilitando a


efetivação de novas práticas sociais e políticas, assim como a inserção de novos valores na
sociedade contemporânea.

Arretche (2012, p.15) alerta para o risco de analisar o federalismo brasileiro sob a
premissa da ausência de coordenação do governo central e a grande autonomia dos governos
locais. De acordo com a autora, algumas pesquisas haviam carregado a tinta em relação à
suposta fraqueza do Estado central:

Os estudos sobre descentralização – incluindo os que eu mesma havia feito nos


anos 90 – exageraram a extensão em que a Constituição de 1988 havia transferido
autoridade aos governos subnacionais. Na verdade, não havíamos prestado
suficiente atenção aos poderes jurisdicionais da União já na primeira versão da
CF88, isto é, anteriormente à chamada onda re-centralizadora dos anos 90. Nossos
estudos mostraram que a União exerce um papel regulatório e redistributivo, que
não pode ser ignorado nos estudos sobre a provisão descentralizada de serviços. A
União conta com diversos recursos institucionais e fiscais para afetar as decisões
dos governos locais, mesmo quando estes são politicamente autônomos.

Dessa maneira, a autora defende que o manejo da categoria “federalismo” não é


suficiente, pois este ofusca as políticas regulatórias e redistributivas da União no trato das
políticas sociais. Vazquez (2012), em seu livro sobre os impactos da LRF, do FUNDEF e do
SUS nos municípios brasileiros, critica uma parte da literatura da área, sobretudo “as análises
comparativas internacionais que insistem em classificar a federação brasileira como altamente
descentralizada.” (VAZQUEZ, 2012, p.26). Segundo o autor, contrariando a ideia de que a
década de 90 trouxe consigo uma transformação do federalismo brasileiro, o desenho federativo
observado na CF88 demandava posterior regulamentação, o que foi feito com as políticas de
caráter universal, ou seja, com as políticas de educação e saúde, cuja competência de oferta é
compartilhada pelos três níveis de governo.

A análise dos mecanismos regulatórios será melhor desenvolvida no capítulo seguinte


com a apresentação dos documentos normativos e no capítulo final, onde avaliaremos se tais
mecanismos são reconhecidos como parâmetros para o comportamento dos agentes locais. Por
ora, cabe observamos como a política da infância e da adolescência estrutura-se obedecendo a
lógica municipalista.

Na perspectiva da gestão descentralizada, cabe à União elaborar os princípios e as regras


gerais, como também a coordenação nacional da política de atendimento à criança e ao
38

adolescente. Esse trabalho, segundo o ECA, deve ser feito pelo Conselho Nacional dos Direitos
da Criança de Adolescente (CONANDA).

Aos estados cabe aplicar tais princípios e regras à sua realidade, numa relação de
articulação com o objetivo de unir os esforços desenvolvidos por ambas as esferas de governo.
Tal trabalho deve também ser colocado em prática por uma instância colegiada, o Conselho
Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA).

Aos municípios competem a tarefa de suplementar a legislação federal e estadual, além


de legislar sobre seus assuntos locais, bem como a execução direta das políticas e programas
em parceria com entidades não-governamentais e pelo Conselho Municipal dos Direitos da
Criança e do Adolescente (CMDCA). Na esfera municipal também estão localizados os
Conselhos Tutelares, os quais são autônomos, mas devem ser vinculados administrativamente
ao órgão da administração municipal ou, na inexistência deste, ao Gabinete do Prefeito e, no
caso do Distrito Federal, do Governador.

A partir deste ponto, demonstraremos como esse desenho foi construído e articulado
durante o processo da Assembleia Nacional Constituinte e quais os principais atores envolvidos
nesse processo.

Em seu trabalho sobre os conceitos de igualdade, cidadania e democracia nos discursos


do campo popular ao longo da Assembleia Constituinte de 1987-198812, Joyce Louback (2016)
defende a singularidade da dinâmica das discussões sobre os temas abordados nas subcomissões
temáticas da Assembleia Nacional Constituinte. A autora aponta que uma noção comum ao
campo popular era a de radicalização da democracia, projeto oriundo de anos de repressão pela
ditadura militar. Para ela,

Os projetos políticos de todos os movimentos sociais e os demais grupos que se


manifestaram na ANC estavam comprometidos com seus princípios, normas
internas e, evidentemente, suas reivindicações, que não eram oriundas de uma
matriz comum – como a luta de classes ou os direitos dos trabalhadores. A
Constituição brasileira contempla a multiplicidade da sua sociedade e outras

12
Os trabalhos na ANC foram iniciados em 1º de fevereiro de 1987, com a participação dos parlamentares eleitos
no pleito de 15 de novembro de 1986 (OLIVEIRA, 1993, p.11) e se estenderam até 05 de outubro de 1988, com a
promulgação da Constituição. Foram 487 deputados federais e 49 senadores, assim como mais 23 dos 25 senadores
que foram eleitos em 1982. No total, 559 parlamentares participaram da instação da ANC, com destaque para o
deputado federal Ulysses Guimarães (PMDB-SP), eleito presidente da Assembleia em fevereiro de 1987.
39

Constituições latino-americanas possuem esta mesma vocação. (LOUBACK,


2016, p. 49).

De acordo com Brandão (2011, p.98), não só as pautas dos movimentos sociais
chamavam a atenção, mas também seu repertório de ação, que esteve intimamente relacionado
ao próprio processo da Constituinte. O autor analisa que:

A segunda fase de mobilização social na Constituinte vai da conquista do


mecanismo das emendas populares no Regimento Interno da ANC em 25 de março
de 1987 até o dia 13 de agosto de 1987, o fim do prazo de entrega das emendas
populares à Comissão de Sistematização. As reuniões dos movimentos sociais
com os constituintes (praticamente inexistentes na fase anterior) foram a principal
atividade em abril. Este crescimento da interlocução entre movimentos e
parlamentares coincide com a instalação das subcomissões temáticas, onde os
movimentos apresentaram suas propostas. Entre 07 de abril e 25 de maio, as
subcomissões e comissões temáticas realizaram 192 audiências públicas, nas quais
974 pessoas representaram as mais diversas categorias sociais e profissionais.
Segundo João Gilberto Lucas Coelho, “era organização de prostituta, era
organização de menino e menina de rua, eram organizações as mais variadas de
setores normalmente desorganizados em qualquer sociedade. Aqui eles
apareceram, vieram depor”.

Vimos, então, que o período que compreende o final da década de 1970 e o início de 1980
foi marcado pelo surgimento, na cena pública, de grupos sociais até então excluídos das esferas
de decisões, dado o autoritarismo político em vigor no regime militar. Tais grupos, ao
reivindicarem publicamente a superação de suas carências específicas, passaram a interferir na
discussão pública e a constituir espaços para a construção democrática, pautada por liberdades
civis e políticas.

Segundo Feltran (2007), tais grupos eram caracterizados pelos seguintes segmentos
sociais:

(...) i) grupos pauperizados das periferias urbanas, reivindicando melhorias sociais


objetivas em seus locais de moradia, organizados por vertentes da Igreja Católica
inspiradas pela teologia da libertação; ii) grupos de sindicalistas que reivindicavam
melhores condições salariais e de trabalho, renovando o ideário socialista-operário
do período, na esteira das mobilizações dos metalúrgicos do ABC; iii) setores
jovens da classe média e das elites intelectuais de esquerda, que nas universidades
haviam conhecido o marxismo e os movimentos “libertários” do norte (...).
(FELTRAN, 2007, p. 86)
40

Nesse contexto, localizavam-se alguns movimentos sociais que criticavam a política


nacional de atendimento de crianças e adolescentes, destacando-se, principalmente, a Pastoral
do Menor e o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), que se tornaram
referências não apenas quando se tratava de ações localizadas, mas também na promoção de
articulações nacionais e internacionais em favor do público infanto-juvenil.

Destacaram-se ainda entidades de direitos humanos e organizações não governamentais


que passaram a apresentar emendas para a defesa dos direitos da criança e do adolescente
pautadas por discussões internacionais, como, por exemplo, as Regras de Beijing (1985) e a
Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989). Entre os representantes
desses movimentos, havia um clamor por legislações de cunho mais humanista, que assegurasse
a atenção à infância e adolescência de acordo com a tendência internacional de garantia dos
direitos humanos, surgida no Pós-Guerra. Como resultado deste momento, foram redigidas
quatro emendas populares que reafirmavam o tema dos direitos da criança e do adolescente,
assinados por integrantes da Igreja Católica (Mitra do Rio, Confederação Nacional dos Bispos
do Brasil – CNBB e Pastoral do Menor).

Em 1988, também foi criado o Fórum Nacional Permanente de Entidades Não


Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA) e lançadas
outras duas campanhas que reuniram pessoas com o objetivo de propagar os direitos de crianças
e adolescentes: Criança e Constituinte e Criança Prioridade Nacional. A primeira teve a
iniciativa do Ministério da Educação e buscava dar subsídios para a proposição que o Executivo
faria à Assembleia Constituinte, com ênfase, sobretudo, em propostas relacionadas à criança na
faixa etária de zero a seis anos. A segunda partiu de entidades da sociedade civil e culminou
em uma emenda popular de mesmo nome que contou com o apoio de intensa campanha na
mídia, desenvolvida pelo Conselho Nacional de Propaganda (CNP), e contabilizou 250 mil
assinaturas de eleitores. O teor dessa emenda foi incluído “(...) quase na íntegra, nos artigos
227 e 228 da Constituição Federal de 1988 (...)”13. Tal cenário favoreceu a aprovação e
exigência de aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990.

Brandão (2011, p.99), em seu estudo sobre a articulação dos movimentos sociais com a
política institucional da Assembleia Nacional Constituinte, destaca que alguns grupos sociais

13
ASSIS, S. G.; SILVEIRA, L. M. B.; BARCINSKI, M.; SANTOS B. R. Teoria e prática dos conselhos
tutelares e conselhos dos direitos da criança e do adolescente. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2009.
41

deram depoimento público pela primeira vez no país: “O Brasil mostrou sua cara, sonhos e
reivindicações”. 14 Especificamente, segundo o autor, os grupos em torno dos direitos da criança
e do adolescente realizaram uma série de intervenções no processo da Constituinte. No dia 07
de abril de 1987,

realizaram manifestações em vários estados. O principal dos atos do “Dia Nacional


Criança e Constituinte” foi no interior do Salão Negro do Congresso Nacional,
quando os organizadores se encontraram com os constituintes acompanhados de
50 crianças das aldeias “SOS” de Brasília – que recitaram trechos do poema “Os
Direitos da Criança” e entregaram flores aos constituintes. Foi, segundo o
presidente da comissão, Vital Didonet, uma “intimação poética e contundente”.
(BRANDÃO, 2011, p.99).

Notável a matéria do jornal Correio Braziliense sobre o “Dia Nacional Criança e


Constituinte” – promogramação estabelecida a partir da Comissão Nacional Criança e
Constituinte, que reunia representantes de vários Ministérios e de entidades como a Federação
Nacional dos Jornalistas, OAB, Unicef e Sociedade Brasileira de Pediatria -, que mescla tons
de sátira à organização das crianças com tons de espanto à proporção do movimento. Datado
de abril de 1987, o jornal anuncia que “Constituinte tem lobby de criança”. Por mais que seja
engraçado pensar num lobby de crianças num processo de redação da Carta Magna de um país,
o jornal descreve o movimento como o “maior lobby já surgido na Assembleia Nacional
Constituinte” e que “pressionados, oito parlamentares [...] sentaram-se à mesa e de forma
paciente ouviram as reivindicações. [...] Afinal, o pior: prometeram atuar de forma a atender
aos lobistas nas suas principais reivindicações por considerarem que o futuro do país está a
eles vinculado.” 15

Na continuação da matéria, o jornal descreve a figura de uma das participantes do


processo:

14
“O processo constituinte”. Assembleia Nacional Constituinte, 1987-1988. Separatas de discursos, pareceres e
projetos. No. 26. Apud BACKES, Ana Luiza & AZEVEDO, Débora Bithiah de (org.). A sociedade no
parlamento: imagens da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988. Brasília: Câmara dos Deputados,
Edições Câmara, 2008, p.74.
15
Constituinte tem lobby de criança. Correio Braziliense, Brasília, p. 17, publicado em 01 de abr. de 1987.
Acesso em: 15 de outubro de 2017. Disponível em:
http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/115353/1987_01%20a%2007%20de%20Abril_014.pdf?seq
uence=1.
42

Olhos de Jaboticaba acesíssimos, roupa visivelmente preparada para a grande


ocasião, um jeito todo especial de acomodar-se na cadeira, Maria Quitéria Mendes
era uma das mais atentas lobistas. Não queria perder nada. Afinal, era a primeira
vez que não só vinha ao Congresso como ao próprio Plano Piloto. Aos 10 anos,
cursando a terceira série, ela foi uma das 580 crianças da Escola-Classe 46 da
Ceilândia que foram ao Congresso, numa oportunidade surgida a partir da
programação estabelecida pela Comissão Nacional Criança e Constituinte[..]

Segundo o periódico, “as crianças deixaram o Congresso [...] satisfeitas, repetiam o


canto que haviam entoado em coro logo que a sessão teve inicio. De autoria do próprio grupo,
com o título ‘Constituinte, vote por mim’, a canção terminava dizendo: ‘Basta você se lembrar/
Criança em você há/ É só em nós pensar’.

Brandão (2011), afirma que o mês de maio de 1988 foi o mês com maior número de
demonstrações e caravanas a Brasília. O Movimento Nacional dos Meninos de Rua, junto com
a Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo e com a Comissão Ecumênica do Menor,
“organizou duas manifestações simultâneas no dia 24 de maio, reunindo mil crianças nos
gramados do Congresso Nacional e outras 1.000 crianças na praça da Sé (em São Paulo) para
pressionarem os constituintes a votarem em prol dos direitos das crianças e adolescentes.”
(BRANDÃO, 2011, p. 132).

O autor ressalta que as manifestações das organizações da sociedade civil não tiveram
uma trajetória uniforme e linear de intervenções durante a Constituinte, tendo períodos com
picos de agitação e períodos menos intensos. Tal descrição aplica-se ao caso do pico de
mobilização para a entrega das emendas populares e a falta de engajamento na época da defesa
das mesmas emendas. As galerias, na época da defesa das emendas, estiveram “tão ou mais
vazias que o plenário” (BRANDÃO, 2011, p.109) , com exceção de um dia:

O único dia em que elas encheram, chamando a atenção do senador Afonso Arinos
(PFL – RJ), presidente da Comissão de Sistematização, foi no dia da defesa das
emendas sobre direitos da criança e do adolescente, e sobre ensino público e
gratuito, quando a Fundação Educacional do Distrito Federal levou uma comitiva
de mais de 400 crianças para assistir à reunião. (BRANDÃO, 2011, p.109).

No dia 02 de setembro de 1987, Brasília voltou a ser palco das manifestações das crianças,
pois foi o dia da defesa das emendas sobre os direitos infanto-juvenis. O relator da Comissão
de Sistematização, Bernardo Cabral, teria ficado impressionado com os argumentos e a
mobilização. As entidades “Comissão Nacional Criança Constituinte” e “Fórum Permanente
de Entidades Não Governamentais” ficaram encarregadas de elaborarem um texto síntese de
43

duas emendas populares, as quais, juntas, reuniam 123.355 assinaturas. Bernardo Cabral
garantiu às entidades que iria incluir um capítulo específico sobre os direitos das crianças e dos
adolescentes em seu novo substitutivo. Sobre o texto apresentado pelas entidades, o relator fez
apenas uma única restrição:

“Isto eu não vou colocar”, disse Cabral [...] apontando o parágrafo segundo, que
considera inimputáveis penalmente os menores de 18 anos. “Se eu colocar isto,
vai ser derrubado em plenário. É melhor ficar como está, pois isto o Código Penal
garante”, afirmou sem a concordância dos três interlocutores16. “Vamos garantir
também este artigo”, afirmou [o deputado Nelson Aguiar], depois da entrega da
emenda. Ao fim, a emenda obteve apoio também de todas as lideranças partidárias
na Constituinte, colhendo ainda 184 assinaturas dos parlamentares e
exemplificando um dos casos de maior sucesso das campanhas pelas emendas
populares. (BRANDÃO, 2011, p.110).

O autor versa sobre uma demanda-chave dos movimentos sociais que atuaram antes,
durante e após a Constituinte: o reconhecimento. Por que alguns atores voltariam sua atenção
para investirem na dinâmica social? Norteando-se por Pierre Bourdieu, cujo trabalho apontou
que a busca por reconhecimento é o cerne da “disposição durável para investir no jogo
social”17, Brandão (2011, p.26) afirma que o reconhecimento é central para a ação dos atores
sociais

[...]em função do fato de que, dado que o homem sabe que é mortal e que esta ideia
lhe é insuportável, ele seria um ser sem razão de ser. O homem teria, portanto, essa
urgência de justificação, de legitimação e de reconhecimento da sua existência. Na
ausência de Deus, seria, cada vez mais, o mundo social o único a oferecer, aos
homens, uma justificativa para existir: o reconhecimento.

No estudo de períodos históricos importantes de reivindicação de direitos, pode-se


incorrer no erro de entendê-los dentro de uma certa ordem binária, como se, ao longo do tempo,
as sociedades tivessem momentos apenas de avanço ou momentos de apenas retrocesso. Em
relação às conquistas obtidas na Constituição de 1988 com o engajamento dos defensores dos
direitos de crianças e adolescentes, é necessário entender como estes se organizaram e assim

16
Deputado Nelson Aguiar (PMDB – ES), Vital Didonet (Comissão Nacional Criança Constituinte) e Deodato
Rivera (Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais).
17
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Trad. de Sérgio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2ª ed.,
2007, p.177-179.
44

lograram resultados positivos, justamente para evitar a suposição de que tais organizações
tivessem surgido espontaneamente. Em outras palavras, por mais que este capítulo tenha
começado com a caracterização do período vivido sob o Código de Menores pela chave da
caridade e da repressão para, depois, passar a abordar a CF de 88 como a base da proteção social
de crianças e adolescentes, defendemos que a análise do tema deve considerar os elementos
contraditórios que co-existem ao longo do processo histórico (27 anos após a promulgação do
ECA, ainda têm força vários elementos conservadores). Por esse motivo, é importante buscar
entender como e por que, em determinados momentos históricos, existem ciclos de intensa
mobilização.

Uma das formas de compreender o caso da Constiuinte 1987-188 é através do conceito


de “janela de oportunidades”, utilizado por Brandão (2011, p. 24). A deterioração econômica
vivida na década de 8018, os aparatos repressivos do Estado e as cisões internas do regime
representaram uma combinação de fatores que geraram consequências para além da abertura
política. O conceito está relacionado à

[...] Teoria do Processo Político: Charles Tilly elaborou em seu livro From
Mobilization to Revolution (1978) a ideia de Estruturas de Oportunidades Políticas
(EOP). Para o autor, é necessário sempre analisar o conjunto de oportunidades e
ameaças presentes no mundo que cerca o movimento/indivíduos e que tem alguma
probabilidade de afetar o bem-estar e o sucesso dos atores. Dessa forma, do lado
da oportunidade, deve-se identificar a extensão da vulnerabilidade de outros
grupos (incluindo governos) em relação às novas demandas que poderiam, se bem
sucedidas, aumentar a realização dos interesses do contestador. Já do lado das
ameaças, é preciso atentar em que medida outros grupos ameaçam realizar
demandas que, se bem sucedidas, irão reduzir a realização dos interesses do
contestador. Dessa forma, em certos momentos históricos – como defendo [...] que
é o caso da Constituinte [...] -, abre-se uma janela de oportunidades políticas que,
se bem percebidas e interpretadas pelos movimentos sociais e pela população
potencialmente ativa, podem estimular o surgimento e a ebulição de novas
mobilizações sociais. (BRANDÃO, 2011, p. 24).

18
No período entre 1980 e 1993, o Brasil teve “54 mudanças na política de preços; 21 propostas de pagamento da
dívida externa; 16 políticas salariais; 11 índices de preços; 9 planos de estabilização econômica; 5 congelamentos
de preços e salários; e 4 moedas diferentes”. (NETO, 2011, p.08, apud BRANDÃO, 2011, p.35).
45

No caso dos direitos infanto-juvenis, os movimentos internacionais pelo reconhecimento


de crianças e adolescentes como sujeito de direitos, o contexto que permitia visualizar um novo
futuro (e crianças e adolescentes são conhecidos como “o futuro de um país”), o fato de as
camadas conservadoras colidirem com várias pautas progressistas – o que dificultava o trabalho
de contrarreação – e a dinâmica pedagógica própria da Constituinte, que permitiu aos grupos
entenderem e participarem dos rituais próprios da política institucional, transformaram-se em
uma potente força de ação e transformação.

Vale lembrar que o desfecho democrático materializado na Constituição de 1988 demarca


a relevância da ação da sociedade civil, mas não podemos perder de vista seus limites e
problemas19. A característica conciliatória do processo é ressaltada por Comparato (1986, p.06,
apud BRANDÃO, 2011, p.35) “o regime instaurado em 1964 não foi propriamente derrotado
pelos adversários. Ele evoluiu e se transformou por si mesmo, sob o comando das mesmas
forças que sempre o controlaram: os militares e os empresários” e por Louback (2006, p. 34):

Neste processo de observação da participação popular na ANC, fatalmente tende-


se a destacar as eventuais vitórias dos movimentos sociais no que tange à redação
da Constituição. No entanto, é preciso salientar que diante da formação do que se
convencionou chamar de uma maioria parlamentar denominada Centro
Democrático (ou “Centrão” [...]), as decisões sobre o que devia estar na
Constituição foram restritas a um bloco cuja formação ideológica abrigava
posicionamentos mais conservadores. Esta tensão constante é a marca deste
período e lança questões sobre a influência dos debates da Constituinte e a decisão
dos membros do parlamento.

Nesse sentido, é interessante acompanhar as diferentes percepções analíticas da literatura


das Ciências Sociais sobre o processo de mobilização e impacto da nova ordem política para os
movimentos sociais.

Apesar de os movimentos sociais terem sido aceitos na cena pública como portadores de
interesses legítimos ao reivindicarem bens sociais publicamente e de terem forjado ações
específicas de ruptura com o autoritarismo político, é importante ressaltar que os mesmos se

19
Francisco Weffort (1992) analisa a transição democrática brasileira sob a ótica das “novas democracias”. “[...]
as ‘novas democracias’ são aquelas cuja construção ocorre em meio às condições políticas de uma transição na
qual foi impossível a completa eliminação do passado autoritário. Além disso, essa construção se dá em meio às
circunstâncias criadas por uma crise social e econômica que acentua as situações de desigualdade social extrema,
bem como de crescente igualdade.” (WEFFORT, 1992, p.85, apud LOUBACK, 2016, p. 69).
46

constituíam como coletividades formadas por uma pluralidade de atores sociais (MELUCCI,
1996; DIANI, 1992). Desta forma, nunca foram hegemônicos, uma vez que se baseavam em
identidades compartilhadas construídas através de relações de conflito e interação.

Essa noção de heterogeneidade é importante para distinguirmos os trabalhos que surgiram


após a chamada inserção institucional dos movimentos sociais. Em meados dos anos 90, é
possível identificar a passagem da “contra esfera pública” movimentista dos anos 70 e 80 para
sua inserção institucional. É certo que as mudanças foram sentidas na pele pelos atores deste
processo, os quais se tornaram atores políticos instituídos.

Nesse período, grande parte da literatura da sociologia e da ciência política voltou seu
olhar para os primeiros passos da democracia institucional. Houve, portanto, o deslocamento
do estudo do tema movimentos sociais para o conjunto de parcerias, conselhos, relações entre
sociedade civil e governos, ou seja, em apostas na ação conjunta entre sociedade civil e Estado.
É exemplar desta migração temática a enorme produção de pesquisas sobre os Orçamentos
Participativos e os Conselhos Gestores, simultânea à gradativa redução do tema “movimentos
sociais” da pauta acadêmica (OTTMAN, 1995).

Já a literatura do início dos anos 2000 questionava a capacidade destes movimentos


continuarem a interferir nas pautas da discussão pública. Questionava, também, a possibilidade
destes atores societários serem representativos dos interesses dos setores populares. Feltran
(2008a) e Gurza-Lavallle, Houtzager & Castello (2006) são exemplos de autores que realizam
esta discussão. Há trabalhos que versam sobre o tema da inserção institucional e que
estabelecem um debate crítico entre si: uma primeira leitura é daqueles que argumentam que a
combatividade dos atores populares era maior quando agiam por fora dos mecanismos
institucionais por haver uma separação entre a política institucionalizada e os movimentos
sociais (CARLOS, 2011). Teóricos como Meyer e Tarrow (1998), Piven e Cloword (1979) e
McCarthy e Zald (1973) são expoentes da análise da ação coletiva a partir de estruturas
dicotômicas: contenção – institucionalização, outsider - insider, autonomia – cooptação. Na
análise de Carlos (2011), o enfoque estritamente organizacional associado à desmobilização,
burocratização e deslocamento da base social desconsidera os incentivos à participação pelo
desenho inovativo das instituições participativas.

Por outro lado, há uma leitura que não entende como uma dicotomia a relação entre
Estado e sociedade civil por reconhecer a heterogeneidade desta última. Segundo Gurza-
Lavallle (2012, p. 178), “tornou-se consenso nos últimos anos que as interpretações mais
influentes da sociedade civil carregaram as tintas na estilização normativa da sociedade civil,
47

bem como o fato de perpassarem-na divergências e conflitos, e de ser portadora de


características eventualmente associáveis a efeitos positivos ou negativos.”

Para Dagnino, Olvera e Panfichi (2006) e Carlos (2011), a relação sociedade – Estado
combinaria elementos contraditórios em vez de constituírem modelos puros, coerentes e
estáveis. Assim, o engajamento dos atores coletivos constitutivos de instituições participativas
seria acompanhado de processos de reelaboração e ressignificação discursiva acerca da relação
sociedade – Estado, caracterizados por linguagens de contestação e cooperação.

Por mais que a matriz teórica dos movimentos sociais não seja a base para esta
dissertação, as colocações que foram brevemente apresentadas acima colocam-nos questões que
pretendemos trabalhar nos capítulos seguintes, tais como a busca pela compreensão do
potencial transformador dos Conselhos Tutelares idealizado pelo ECA.

Vimos que o processo de redemocratização do Brasil, legitimado com a proclamação da


Constituição Federal em 1988, garantiu direitos sociais e civis fundamentais, dentre os quais o
de participação popular, que é essencial à proposição da existência dos conselhos. A concepção
de democratização estava relacionada à descentralização das decisões da esfera pública e à
criação de espaços de participação da sociedade civil e de deliberação prévia às decisões que
diziam respeito à condução de políticas públicas. Por isso, em seu artigo 204, a Constituição
Federal trouxe a participação da sociedade em diversos campos da política (como saúde,
educação, cultura e na temática da infância e adolescência).

Outro ponto fundamental trazido pela Constituição Federal foi o artigo 227, que
introduziu a doutrina de proteção integral à criança e ao adolescente no ordenamento jurídico
brasileiro, e que foi regulamentado pela Lei Federal 8.069/1990, que dispõe sobre o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), regulando, especificamente, os direitos do público infanto-
juvenil em âmbito nacional, distrital, estadual e municipal.

1.2.2 – O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOSLESCENTES E SUAS PRERROGATIVAS

Com o intuito de implementar a proteção integral prevista no texto constitucional, bem


como neste modelo de administração política, o Estatuto dá margem à criação de um sistema
(específico) de proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes em que se observa: a)
a prevalência do melhor interesse da criança e do adolescente na efetivação e desenvolvimento
das políticas públicas; b) a prioridade absoluta para o atendimento de crianças e adolescentes,
pelo Estado e pela sociedade; c) a descentralização político-administrativa na coordenação e
48

execução dos programas e políticas públicas; d) a manutenção de fundos públicos especiais


para financiamento da política dirigida a essa faixa etária; e) a integração operacional de
entidades governamentais e não governamentais; e f) a mobilização social em favor da
efetivação dos direitos da criança e do adolescente.

Foram quase dez anos de discussões em espaços variados, até que, em 1999, em torno
dessas premissas, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda,
durante a III Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, consagrou a
expressão “garantia de direitos” e convencionou a denominação “Sistema de Garantias de
Direitos” (SGD). Posteriormente, esse Sistema seria institucionalizado através da Resolução
113 de 19 de abril de 2006, em que o Conanda dispôs sobre os parâmetros do chamado “Sistema
de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente” (SGDCA).

As ações do SGDCA estão pautadas em três eixos estratégicos: a promoção, a defesa e o


controle social. O eixo estratégico da promoção de direitos humanos prevê a elaboração e
efetivação de políticas públicas que garantam o desenvolvimento pleno de crianças e
adolescentes nos campos da educação, saúde, assistência social, cultura, lazer, trabalho,
moradia etc., na medida em que haja o atendimento das necessidades desse público (direitos
fundamentais). Nesse eixo também está prevista a elaboração de uma política de atendimento
para aqueles cujos direitos já se encontram ameaçados e/ou violados, a qual deve estar
relacionada intersetorialmente com as demais políticas públicas. O eixo da defesa de direitos
humanos caracteriza-se basicamente pela garantia do acesso à justiça, através de instâncias
públicas e de mecanismos jurídicos de proteção legal, visando atender crianças e jovens cujos
direitos se encontram ameaçados ou já foram violados. E o eixo do controle para a efetivação
dos direitos humanos de crianças e adolescentes relaciona-se ao acompanhamento, avaliação e
monitoramento dos mecanismos de promoção e defesa de direitos.

O Estatuto também determinou a criação dos Conselhos Tutelares e de Direitos como


forma de gerir, deliberar e controlar a política de atendimento a crianças e adolescentes, por
meio da corresponsabilidade entre sociedade civil e governo nos diversos conselhos gestores.
A estrutura formal do Estatuto, pautada por novas formas de conceber políticas públicas na área
da infância e adolescente a partir de conselhos gestores, atrela-se ao modelo de administração
política formalizada com a Constituição de 1988. Esse modelo associa participação popular à
deliberação política, incorporando, na cena pública, atores sociais até então destituídos de poder
de decisão.
49

O ECA representou uma mudança substancial no trato da criança e do adolescente, ao


buscar romper, no plano legal, com o paradigma da situação irregular, em que crianças e
adolescentes eram tidas como objeto da lei e eram responsabilizadas pela violação dos seus
próprios direitos. A nova doutrina evoluiu “da situação irregular do menor” para a situação
irregular da família, da sociedade e do Estado, preconizando novas medidas, também para os
responsáveis ativos da situação irregular (AMARAL E SILVA, 2005).

Como parte integrante do SGDCA, os Conselhos Tutelares se situam no eixo de defesa


dos direitos humanos de crianças e adolescentes. Ou seja, o marco regulatório atribui aos
Conselhos Tutelares, em síntese, defender esses direitos sempre que se encontrarem violados,
seja pela ação ou omissão da família, do Estado ou da sociedade, ou da própria criança ou
adolescente.

Mesmo havendo eixos diferentes, em alguns pontos as atribuições dos atores que
compõem o SGDCA se confundem, na medida em que os Conselhos dos Direitos (eixo
controle) exercem típica função defensora, como, por exemplo, quando tomam providências
junto ao Ministério Público, diante de uma denúncia de ausência de vagas em creches ou de
atendimento inadequado na área da saúde, que envolva crianças e adolescentes de um
município. Ao mesmo tempo, os Conselhos Tutelares atuam em funções tipicamente
controladoras, quando fiscalizam entidades de atendimento e/ou assessoram o poder público
local na elaboração das peças orçamentárias destes.

Tal articulação de interfaces encontra respaldo no princípio da incompletude institucional


presente no artigo 86 do Estatuto. O princípio pressupõe a construção de interfaces com
diferentes sistemas e políticas, respeitando as especificidades e definindo campos de atuação
articulada que ampliem as condições para a realização dos direitos. Embora a responsabilidade
pela concretização dos direitos básicos e sociais seja da pasta responsável pela política setorial,
a articulação das várias áreas pode ampliar a efetividade das ações. Sendo assim, a prática dos
programas socioeducativos e a rede de serviços devem ser norteadas por este princípio
fundamental de todo o direito da infância e da adolescência.

Com o intuito de se alcançar a observância da prioridade absoluta assegurada pelo


paradigma da proteção integral, substitutiva do paradigma da situação irregular, o SGDCA se
caracteriza, em síntese, por uma interação de espaços, instrumentos e atores integrantes de cada
eixo, que se complementam e retroalimentam. Esse é o motivo pelo qual, aparentemente,
“invadem” as funções de um e outro conselhos em cada eixo. Assim, como um sistema que é,
forma “uma teia de relações entrelaçadas que, de modo ordenado, contribuem para o mesmo
50

fim ou objetivo central – definido como garantia de direitos –, o mesmo constitui uma unidade
completa” (SÊDA, 2008, p.223).

Além de prever que os atores família, Estado e sociedade agissem conjuntamente, são
instituídos os Conselhos dos direitos da Criança e do Adolescente, órgãos paritários e
deliberativos sobre todas as políticas públicas da área da infância, nos níveis municipal
(CMDCA, que possuem e gerenciam autonomamente dotação orçamentária própria, o Fundo
Municipal da Criança e do Adolescente - FUMCAD); estadual (CONDECAs) e nacional
(Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, CONANDA). Além disso, em
cada município são criados os Conselhos Tutelares, que contam com conselheiros eleitos
diretamente, e atribuição de fiscalizar o cumprimento da legislação, assessorar o Poder
Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de
atendimento dos direitos da criança e do adolescente, receber de modo qualificado as denúncias
de desrespeito aos direitos legais de crianças e adolescentes, e encaminhá-las articulando a rede
de proteção (educação formal e complementar, assistência social, equipamentos de saúde,
atendimento psicológico, entidades sociais, centros culturais, esportivos, profissionalizantes,
etc.).

Ao estudarmos os documentos normativos da área da infância e da adolescência, nos


questionamos como seria possível captar as mudanças trazidas pelos ECA em relação aos
Códigos que o antecederam. Uma das formas de comparação possível é observar a gramática
de cada uma das leis e qual o significado social do uso dos termos encontrados. O procedimento
da estatística textual, da sua organização em agrupamentos, da sua exibição em tabela, da qual
decorre a análise dos dados encontrou respaldo no trabalho da autora Marie-Pierre Pouly
(2011). Com o objetivo de organizar de maneira exaustiva as palavras de importação inglesa
no livro “À Recherche du temps perdu”, de Marcel Proust, Marie-Pierre contabiliza o número
de vezes em que determinada palavra de importação inglesa aparece no texto, divide-as em
categorias e visualiza, assim, a que contexto essas palavras remetem e a que visão de mundo.

Em seu estudo, a autora demonstra como o uso da língua não é mera questão de
preferência individual, e sim um recurso estratégico permeado por marcas de classe. De acordo
com a autora, no começo do século XIX, o uso do inglês concentrava-se entre os redutos nobres
e da alta burguesia francesa, caracterizando o “inglês aprendido em casa”. Com o passar do
tempo, contudo, esse bem de elite passou a adquirir conotações mercantis, de cunho prático,
populares, pequeno-burguesas, vozes femininas e socialistas, conduzindo à uma recomposição
das suas formas de uso. Nesse sentido, a autora questiona: o que acontece quando um bem
51

simbólico constitutivo de um habitus aristocrático tem sua transmissão disseminada (em


particular por intermédio do sistema escolar)?

De acordo com Bourdieu (1998), “...as relações de comunicação são, de modo


inseparável, sempre, relações de poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder
material e simbólico acumulados pelos agentes.”20 A partir disso, decorre uma relação de luta,
não no sentido exclusivamente material, mas, principalmente, simbólica, onde as diferentes
classes estão envolvidas para imporem a definição do mundo social conforme seus interesses,
conforme seus valores de classe.

Segundo Bourdieu, as ciências sociais, em geral, estão expostas a receber uma série de
problemas legitimados pela sociedade, e dignos de serem discutidos e estudados, mas muitas
vezes o pesquisador torna-se alvo do objeto pesquisado na medida em que fica preso a uma
estrutura de pensamento, “...fica condenado a ser apenas instrumento daquilo que ele quer
pensar.” 21

E, para reconhecer os problemas públicos e oficiais, é necessário antes fazer uma história
social da emergência destes problemas, isto é, a constituição progressiva deste problema para
se tornar um problema a ser pensado e fazer se reconhecer. Seguindo esse raciocínio, buscamos,
com a construção da tabela abaixo, identificar de que forma as concepções de menoridade,
infância e adolescência perpassam o contexto histórico-social brasileiro. No capítulo de análise
dos resultados, demonstraremos como determinadas concepções ainda sobrevivem no ideário e
no vocabulário dos conselheiros tutelares, evidenciando, não raramente, distinções de classe e
demarcações de hierarquias sociais.

Tabela 1: Frequência textual dos termos-chave no Código de 1927, no Código de 1979 e


no Estatuto da Criança e do Adolescente.22

20
BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Bertrand: Rio de Janeiro, 1998, p.11.
21
Idem, p.36.
22
Para a construção da tabela, selecionamos os termos que melhor representavam o que foi trabalhado até essa
parte do trabalho. Também agrupamos, numa mesma palavra, termos com significados semelhantes. Como os
Códigos de 1927 e o de 1979 apresentam algumas grafias diferentes, consideramos estas de acordo com a nova
grafia, e as colocamos dentro da categoria que lhe coube. Por exemplo, dentro do termo “criança”, foram agrupadas
52

Fonte: elaboração própria.

De acordo com a tabela 1, vimos que os Códigos de 1927, 1979 e Estatuto da Criança e
do Adolescente apresentam termos que são distintos entre si, que têm seu significado social e
político diferentes: se nos Códigos de Menores predomina o uso da palavra “menor” em
detrimento do uso das palavras “criança”, “infância” e “adolescência”, o ECA traz uma nova
abordagem para essas noções, tentando demarcar, pela via gramatical, uma ruptura com o
paradigma menorista. Além disso, o ECA já apresenta as noções de “política” e “proteção”, ao
contrário do Código de 1927, que faz uso frequente do termo “delinquente” numa tentativa de
sanar os problemas aos adolescentes infratores, sem, contudo, articular ações para tal.

Assim, chegamos à conclusão de que o Estado brasileiro contribuiu para reforçar os usos
sociais dos termos relacionados à menoridade durante a vigência dos extintos Códigos de
Menores, muitas vezes atrelando-o, na prática, a práticas de distinção social no trato de crianças
e adolescentes. Passaremos, agora, a entrar em pontos importantes trazidos pelo Estatuto. Tal
caracterização é importante, pois o Estatuto é a referência do nosso objeto de estudo.

Para efeitos de consideração, o ECA estabelece que crianças são pessoas com até 12 anos
incompletos e adolescentes são aqueles entre doze e 18 anos. O Estatuto ainda dispõe sobre as
situações em que se pode compreender como adolescentes aqueles entre 18 e 21 anos,
excepcionalmente.

as palavras “crianças”, “creança”, e “creanças”. Procedemos da mesma forma com os outros termos. Vale ressaltar
também que o uso da palavra “menor”, no ECA, não foi feito com o significado tal como os Códigos de Menores.
Após a elaboração da tabela, voltamos aos textos para elucidar palavras com mais de um sentido, podendo, assim,
fazer tal distinção.
53

Já em seu quarto artigo, o ECA estabelece que é dever da família, da sociedade, da


comunidade e do poder público assegurar os direitos de crianças e adolescentes. Tais direitos
englobam o direito à vida, à saúde, à alimentação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Essa é uma
das grandes mudanças operadas entre o Código de Menores e o ECA. Enquanto o primeiro
responsabilizava as próprias crianças e adolescentes e, não raro, as famílias por problemas
sociais, o segundo entende que a responsabilidade pela garantia de direitos encontra-se além do
âmbito individual e familiar. Nesse sentido, os próprios governos podem ser responsabilizados
por não estabelecerem em seus projetos de governo e/ou em suas práticas cotidianas a
prioridade da criança e do adolescente. Tanto que, dentro do mesmo artigo, fica estabelecido
que a garantia de prioridade compreende: i. a primazia de receber proteção e socorro em
quaisquer circunstâncias; ii. a precedência de atendimento nos serviços públicos ou de
relevância pública; iii. a preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas
e por fim, iv. a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a
proteção à infância e à juventude.

O ECA, ao estabelecer o princípio acima descrito e ao criar os Conselhos Tutelares, cria


também uma potente ferramenta de intervenção nos poderes privados. O Estatuto vai na
contramão do princípio da intervenção mínima do Estado nas relações familiares, segundo a
qual “a intervenção estatal somente se justifica como meio garantidor da realização pessoal
dos membros de uma família, devendo o Estado respeitar a autonomia privada e acatá-la como
princípio fundamental”.23

Outro indício de que o ECA supera as legislações anteriores encontra-se no artigo 70, que
trata da prevenção da violação aos direitos infanto-juvenis. A prevenção das violações é
novidade no trato da política infanto-juvenil, uma vez que os antigos Códigos preocupavam-se
elaborar resoluções para os casos que viessem a acontecer, mas não definiam uma política
articulada baseada em uma visão comunitária. Aqui, cabe ressaltar o papel essencial das
políticas públicas, uma vez que, de acordo com o Estatuto, diferentes atores deverão atuar de
forma articulada de modo a elaborá-las.

23
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - volume 5. Atual. Maria Celina Bodin de
Moraes. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 183-184.
54

Nesse sentido, para promover a rede de direitos, o ECA delineia sua política de
atendimento em diferentes linhas e com as seguintes diretrizes: i. a municipalização do
atendimento; ii. a criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança
e do adolescente; iii. a criação e a manutenção de programas específicos, observada a
descentralização político-administrativa; iv. a manutenção de fundos nacional, estaduais e
municipais vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e do adolescente; v.
integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança
Pública e Assistência Social, preferencialmente em um mesmo local, para efeito de agilização
do atendimento inicial a adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional; vi. integração
operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Conselho Tutelar e
encarregados da execução das políticas sociais básicas e de assistência social, para efeito de
agilização do atendimento de crianças e de adolescentes inseridos em programas de
acolhimento familiar ou institucional, com vista na sua rápida reintegração à família de origem
ou, se tal solução se mostrar comprovadamente inviável, sua colocação em família substituta;
vii. mobilização da opinião pública para a indispensável participação dos diversos segmentos
da sociedade; viii. especialização e formação continuada dos profissionais que trabalham nas
diferentes áreas da atenção à primeira infância, incluindo os conhecimentos sobre direitos da
criança e sobre desenvolvimento infantil; ix. formação profissional com abrangência dos
diversos direitos da criança e do adolescente que favoreça a intersetorialidade no atendimento
da criança e do adolescente e seu desenvolvimento integral; x. realização e divulgação de
pesquisas sobre desenvolvimento infantil e sobre prevenção da violência.

No título V, capítulo I, o ECA estabelece os parâmetros para a Criação dos Conselhos


Tutelares, sobre os quais trataremos no capítulo seguinte. A partir da contextualização sócio-
histórica sobre os direitos infanto-juvenis no Brasil realizada no capítulo 01, veremos de que
forma os Conselhos foram arquitetados. Veremos, a partir de agora, como o própria ECA foi
modificado de sua promulgação até os dias atuais: vários artigos foram modificados ao longo
dos anos, sobretudo os relacionados aos direitos trabalhistas dos conselheiros. Analisaremos,
no capítulo seguinte, como o ECA preconizou os Conselhos para depois prosseguirmos com o
estudo destes importantes atores.
55

2 CONSELHOS TUTELARES: NOVOS ATORES EM CENA

Nesse capítulo, trataremos especificamente dos Conselhos Tutelares. No primeiro


momento, apresentaremos conceitos básicos sobre os Conselhos, de modo a explicar quem pode
ser conselheiro, quais os requisitos para o exercício da função, se há remuneração, quantos
Conselhos devem existir em cada município, e assim por diante. Tais diretrizes foram
formuladas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por isso o constante diálogo com
o Estatuto ao longo do texto.

A partir disso, analisaremos as resoluções e recomendações do Conselho Nacional dos


Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), documentos oficiais que buscam
estabelecer parâmetros para a atuação dos Conselhos. Será elaborado um quadro comparativo
com o intuito de avaliar a diferença dos documentos legais (ECA e as posteriores resoluções do
CONANDA) que estimularam as mudanças relativas a essas institucionalidades. Através da
leitura dos mecanismos jurídicos-institucionais, buscou-se refletir em que medida estes abrem
espaço para a autonomia e discricionariedade dos conselheiros. Nesse sentido, a pesquisa de
campo possibilitou mensurar o grau de conhecimento dos conselheiros, como burocratas de
nível de rua, das resoluções do CONANDA, avaliando se as ações destes agentes são, de fato,
orientadas pelas regras definidas centralmente.

Em seguinda, trataremos da literatura específica sobre os CTs, colocando-a em constante


diálogo com os demais textos apresentados no capítulo. Assim feito, com o objetivo de refletir
sobre a situação atual dos Conselhos no Brasil, apresentaremos dados da Pesquisa Conhecendo
a Realidade de 2006, que foi um estudo importante a nível nacional e descreveu o panorama de
atuação dos Conselhos Tutelares no Brasil e dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE).

2.1. CONSELHOS TUTELARES: CONCEITO E DESCRIÇÃO

Nas disposições gerais do ECA, temos que o Conselho Tutelar é um órgão permanente e
autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos
direitos da criança e do adolescente. A autonomia pensada para os Conselhos confere que os
demais serviços públicos não interfiram de maneira equivocada no trabalho do CT ou que o CT
tenha que cumprir ordens das demais instâncias. Como dito, a prioridade é zelar pelo
cumprimento dos direitos infanto-juvenis.
56

Em seguida, fica estabelecido que, em cada município e em cada região administrativa


do Distrito Federal, haverá, no mínimo, um Conselho Tutelar, como órgão integrante da
administração pública local. Os Conselhos Tutelares devem ser mantidos pelo poder público
municipal e a previsão de recursos necessários ao funcionamento deverá constar da lei
orçamentária municipal. Esta obrigatoriedade de um Conselho Tutelar para cada município é
de extrema importância para assegurar a proteção aos direitos a nível local.

O ECA estabelece que cada Conselho será composto de cinco membros, escolhidos pela
população local para mandato de quatro anos, permitida uma nova recondução mediante novo
processo de escolha. Nesse sentido, o Conselho Tutelar é um órgão autônomo, não jurisdicional,
instituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, escolhido diretamente pela
comunidade local para zelar por crianças e adolescentes que tenham seus direitos violados ou
ameaçados. Diante dessa característica democrática do processo de escolha, o Conselho Tutelar
difere de órgãos assemelhados previstos nas legislações anteriores (Código de Menores de 1927
e 1979), que funcionavam, sem qualquer independência, como auxiliares dos juizados de
menores de então. Nesse sentido, o Conselho Tutelar surge como um órgão que visa favorecer
a “desjudicialização”24 no trato dos direitos da criança e do adolescente, pois seus membros são
representantes da comunidade que intervêm na garantia desses direitos por meio de denúncias,
representações e/ou consultas.

Para Louback (2016), a democracia no Brasil foi incrementada a partir da judicialização25


da vida pública. Segundo a autora,

No percurso de consolidação da democracia houve um aumento da visibilidade da


magistratura e do peso da sua atuação, transformando significativamente a vida
pública do país. Algumas perspectivas tentam dar conta do processo de ampliação
da ação judicial, fenômeno que foi levado a cabo a partir da ‘normatização dos
direitos’ e a preocupação com a garantia do estado de direito, entre outros fatores

24
“Desjudicializar” significa deslocar a esfera de solução de problemas sociais e políticos do Judiciário para os
órgãos politicamente responsáveis. Segundo Barroso (2012, p.24), “judicialização significa que algumas questões
de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias
políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo. Como intuitivo, a judicialização envolve uma
transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no
modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência
mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro.”
25
A atuação do Supremo Tribunal Federal no trato das questões sócio-políticas merece destaque em relação ao
termo “judicialização”. Por não ser objeto de pesquisa, tal assunto não será desenvolvido, mas certamente demanda
observação e pesquisa.
57

(CITTADINO, 2004, p.106). As relações entre os três poderes tornaram-se objeto


de disputa, na medida em que os atores de cada uma destas instâncias abdicaram
ou assumiram responsabilidades fundamentais, que reverberaram de modo a
incorporar ou afastar os cidadãos da participação na esfera pública. A cidadania
ganhou corpo em um contexto constitucional que se abriu a iniciativas coletivas e
individuais. Há, então, um movimento de acesso a instâncias de representação que,
em uma órbita própria, trataram de incorporar cada vez mais as demandas oriundas
da sociedade, e que também redefiniu o escopo da sua atuação. As ações civis
públicas e as ações populares são o reflexo do que Vianna e Burgos caracterizam
como ‘(...)o desmonte do embrião do Welfare State brasileiro, o esvaziamento das
instituições da vida republicana e da vida associativa’, que ‘(...) vão canalizar para
o interior do Judiciário as demandas reprimidas por direitos’ (Vianna e Burgos,
2005, p.781).” (LOUBACK, 2016, p.66-67).

O ECA, por seu turno, vai na contramão do movimento de “judicialização da vida


pública”. Ao acabar com o Juizado de Menores e, por consequência, com a figura do juiz de
menores, o ECA retira o protagonismo das ações relativas à infância e à adolescência da Justiça
e transfere para a sociedade civil, com a atuação também do poder público. Voltaremos nessa
questão da judicialização mais adiante, uma vez que pesquisas como a de Nascimento e
Scheinvar (2007) indicam a proximidade do CT com o Judiciário, reproduzindo a lógica
anterior ao ECA. Os resultados da nossa pesquisa também apontam para esta proximidade,
sobretudo como forma de os conselheiros ganharem legitimidade para sua atuação.

A criação dos Conselhos Tutelares, enquanto órgãos geridos por representantes da


sociedade com o objetivo de zelar pelos direitos das crianças e dos adolescentes, pauta-se na
ideia de que a sua composição se daria por pessoas com um perfil apaziguador, sensato,
mediador, negociador, líderes comunitários que atuariam de modo auxiliar e defenderiam os
direitos da comunidade, substituindo a figura centralizadora do “juiz de menores” na questão
social da criança e do adolescente. Segundo Kátia Frizzo (2006, p.122):

Trata-se de uma nova instituição no campo social, cuja origem remonta a duas
vertentes distintas: por um lado, a falência crescente da política do ‘bem estar do
menor’, de caráter segregador e institucionalista, com efeitos cada vez mais
perversos na produção e manutenção do abandono, da delinquência, da miséria da
população jovem e economicamente afastada dos benefícios sociais básicos; por
outro, os movimentos sociais emancipatórios presentes e atuantes na década de
1980.

Verifica-se, pois, a criação do Conselho Tutelar tal como prevista no ECA como um órgão
muito próximo da comunidade, um canal de escuta e possibilidade de providências imediatas,
58

não burocratizadas, na resolução de situações de violações que envolvam o público infanto-


juvenil, cuja defesa, com base no paradigma da proteção integral e princípio da prioridade
absoluta, não podem esperar. Dessa forma, pode-se dizer que os Conselhos Tutelares são
instrumentos estratégicos para a exigibilidade dos direitos da população infanto-juvenil no
âmbito do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente.

Para candidatar-se a membro do Conselho Tutelar, o Estatuto prevê como requisitos do


candidato ter reconhecida idoneidade moral, idade superior a 21 anos e residir no município.
Requisitos adicionais podem ser adicionados a esse conjunto desde que não contrariem os
requisitos mínimos estabelecidos na Lei Federal. Como vemos, o ECA não traça uma série de
requisitos específicos, pois objetiva possibilitar a ampla participação da sociedade civil nos
Conselhos.

De acordo com a pesquisa de Inês Mindlin Lafer (2010), o texto prévio ao ECA, que foi
substancialmente modificado, previa um desenho institucional e um perfil de conselheiros
distintos da redação final do ECA. No anteprojeto, a previsão era de que os CTs fossem órgãos
administrativos de atendimento aos direitos, vinculados a uma comarca ou foro. Seus membros
deveriam ser pessoas com diploma universitário, preferencialmente nas áreas do Direito,
Educação, Saúde, Psicologia e Serviço social, com indicação do CMDCA e/ou das entidades
da área da infância e da juventude. Seria exigida, também, uma qualificação específica para o
conselheiro, que deveria ter no mínimo dois anos de efetivo exercício na profissão ou atividade
(Lafer, 2010).

O texto anterior ao ECA, nesse sentido, concebia o CT como espaço composto por
pessoas selecionadas por sua origem e formação, concepção distinta da do ECA, o qual concebe
o Conselho como um órgão representativo e político. Ademais, na versão anterior do Estatuto,
ainda que o mandato fosse de dois anos, não haveria limitações quanto ao número de
reconduções pelas quais poderia passar o mandato de um conselheiro, ao passo que o texto final
permite apenas dois mandatos consecutivos de três anos cada.

Para assegurar condições de trabalho aos conselheiros, direitos trabalhistas foram


inclusos no ECA em 2012, visando garantir aos conselheiros benefícios trabalhistas, tais como:
i. cobertura previdenciária; ii. gozo de férias anuais remuneradas, acrescidas de 1/3 (um terço)
do valor da remuneração mensal; iii. licença maternidade; iv. licença paternidade; v.
gratificação natalina. Não existe um piso nacional para a remuneração dos conselheiros
tutelares. De acordo com o ECA, a lei municipal ou distrital deverá dispor sobre a remuneração
dos respectivos membros.
59

No tocante às atribuições dos Conselhos, a lista é extensa. Em sua dissertação também


sobre os Conselhos Tutelares, Lafer (2010) destacou a ambiguidade presente nas atribuições
dos Conselhos Tutelares, o que implica numa tensão recorrente nos trabalhos dos CTs. Tal
argumento é baseado no amplo leque de atribuições, conforme previstas no ECA: i. atender as
crianças e adolescentes nas hipóteses previstas nos arts. 98 e 105, aplicando as medidas
previstas no art. 101, I a VII; ii. atender e aconselhar os pais ou responsável, aplicando as
medidas previstas no art. 129, I a VII; iii. promover a execução de suas decisões, podendo para
tanto: a) requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social, previdência,
trabalho e segurança; b) representar junto à autoridade judiciária nos casos de descumprimento
injustificado de suas deliberações; iv. encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que
constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança ou adolescente; v.
encaminhar à autoridade judiciária os casos de sua competência; vi. providenciar a medida
estabelecida pela autoridade judiciária, dentre as previstas no art. 101, de I a VI, para o
adolescente autor de ato infracional; vii. expedir notificações; viii. requisitar certidões de
nascimento e de óbito de criança ou adolescente quando necessário; ix. assessorar o Poder
Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de
atendimento dos direitos da criança e do adolescente; x. representar, em nome da pessoa e da
família, contra a violação dos direitos previstos no art. 220, § 3º, inciso II, da Constituição
Federal; xi. representar ao Ministério Público para efeito das ações de perda ou suspensão do
poder familiar, após esgotadas as possibilidades de manutenção da criança ou do adolescente
junto à família natural e, finalmente, xii. promover e incentivar, na comunidade e nos grupos
profissionais, ações de divulgação e treinamento para o reconhecimento de sintomas de maus-
tratos em crianças e adolescentes.

Para Lafer (2010), são as atribuições IX e X (a atribuição de assessorar o Poder Executivo


local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos
direitos da criança e do adolescente e a atribuição de representar, em nome da pessoa e da
família, contra a violação dos direitos previstos no art. 220, § 3º, inciso II, da Constituição
Federal) que trazem uma “ambiguidade” para o desenho dos CTs, os quais possuem duas
vertentes político-ideológicas distintas. Na mesma direção, Andrade (2000) se vale dos estudos
de Bobbio para defender que a vertente de “direita” desenha o CT “enquanto participação dos
indivíduos não na busca da eliminação das desigualdades, mas como mecanismo de controle
e regulação de condutas individuais” ( p. 27). Assim, tal ideal estaria identificado com a
“participação do indivíduo nas decisões públicas por meio de uma delegação voltada para a
60

observação de leis e normas e o controle dos indivíduos, tem sua raiz histórica num tipo de
democracia representativa anglo-americana” (ANDRADE, 2000, p. 28).

Já a vertente de “esquerda”, segundo Andrade (2000), teria se inspirado no “modelo dos


conselhos operários, os quais, através da participação social, buscavam a eliminação das
desigualdades e a transformação da sociedade”, sendo o CT um órgão “com expressão mais
de esquerda e com atribuições de direita” (p. 27-8). Através do exposto, o que infletiria para a
esquerda seria: a) sua composição por via democrática, ainda que de maneira ambígua, pois,
embora integrem a estrutura do Estado, são totalmente compostos por membros da sociedade
civil, composição bem diferente da maioria dos conselhos participativos, que são paritários; b)
sua atribuição de assessorar o Executivo na elaboração da proposta orçamentária da área, o que
possibilitaria aos CTs se instituírem, de fato, como órgãos co-gestores, como intermediários
entre o Estado e a sociedade. Já a inflexão para a direita seria representada pelas atribuições
relativas ao atendimento e ao controle das famílias, processo que, não raramente, envolve
códigos morais baseados em distinções sociais cristalizadas nos conselheiros.

Cabe-nos ressaltar que, de acordo com o ECA, os CTs são responsáveis por um amplo
leque de atribuições, as quais, no cotidiano, são raramente contempladas. Como houve a
inclusão de mais uma atribuição em 2014, a atribuição XII (promover e incentivar, na
comunidade e nos grupos profissionais, ações de divulgação e treinamento para o
reconhecimento de sintomas de maus-tratos em crianças e adolescentes), poderíamos
caracterizar esta última como “formativa”. Desse modo, os conselheiros se veem, no dia-a-dia,
com uma série de atribuições a serem cumpridas, que muitas vezes não o são por dificuldades
estruturais e impedimentos outros, desde falta de apoio financeiro ou assistencial do município.
Como veremos no capítulo seguinte, estes fatores junto com demais impeditivos dificultam a
participação dos conselheiros na elaboração de políticas públicas.

Finalizando o exame da concepção do Conselho Tutelar presente no ECA, o Estatuto


dispõe que a escolha dos conselheiros deve ser pautada de acordo com um processo idôneo,
sendo a escolha dos membros do CT estabelecida em lei municipal e realizada sob a
responsabilidade do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA)
e fiscalizada pelo Ministério Público. O artigo 139 do ECA foi alterado em 2012, e passou a
dispor que o processo de escolha dos conselheiros tutelares será unificado em todo o território
nacional a cada 4 (quatro) anos, no primeiro domingo do mês de outubro do ano subsequente
ao da eleição presidencial. Dessa forma, a última eleição ocorrida para conselheiro tutelar a
nível nacional foi em outubro de 2015, e os conselheiros tomaram posse em 10 de janeiro de
61

2016, conforme estabelecido pela nova redação do ECA. Logo, os conselheiros entrevistados
em nossa pesquisa fizeram parte da primeira eleição para conselheiros tutelares do município
de Guarulhos. 26

O Conselho Tutelar tem, no processo de escolha de seus membros, a garantia de


renovação periódica e da continuidade de suas ações, dado seu caráter de órgão permanente e
autônomo, encarregado de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. A
criação de legislações que regulam a troca de gestão dos conselheiros tutelares faz parte do
movimento de consolidação do órgão no poder público, de acordo com a natureza que lhe foi
investida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, e também torna o processo mais
transparente, idôneo e democrático.

Em suma, apreendemos que o ECA concebeu os Conselhos Tutelares como instrumentos


estratégicos para a defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Para tanto, determinou a
existência de pelo menos um Conselho em todos os municípios brasileiros, com o apoio da
prefeitura e do CMDCA local para sua estruturação e manutenção. Também preconizou os
Conselhos como uma forma de participação diferente dos conselhos gestores, uma vez que os
conselheiros tutelares são membros da sociedade civil escolhidos pela sociedade civil, os quais
vão, dentro das possibilidades, dialogar e fiscalizar o próprio Estado para fazer valer a
prioridade a crianças e adolescentes. Também vimos que, de acordo com o ECA, a política para
a criança e o adolescente deve ser municipalizada, o que, por um lado, permite aos municípios
atuarem de acordo com sua própria realidade, mas, por outro, permite distorções e
contravenções, tais como municípios que ainda não implementaram seu Conselho Tutelar, além
de distintas realidades a nível nacional.

2.2. O aparato normativo da política de proteção e as ações dos Conselhos Tutelares

26
Durante o desenvolvimento da pesquisa, chegamos a entrar em contato com o Tribunal Regional Eleitoral
pedindo os dados que permitissem comparar se a mudança de processo de escolha para eleição causou algum
impacto, sobretudo em relação ao número de eleitores. Também pedimos informações referentes ao número de
candidatos da última eleição e o perfil dos mesmos. No entanto, a resposta que tivemos foi de que a matéria não
era de competência da Justiça Eleitoral, com a recomendação de que entrássemos em contato com o Conselho
Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Condeca-SP) ou com o Conselho Nacional da Criança e do
Adolescente (Conanda). Apesar de discordar da orientação recebida, pois sabemos que a eleição é de
responsabilidade do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), entramos em
contato com os dois órgãos solicitando as informações, mas não houve resposta. Após o contato com o CMDCA
do município de Guarulhos, recebemos a informação de que as informações sobre a eleição não estavam
consolidadas e que não haveria possibilidade de acesso.
62

No capítulo 1, nossa análise pautou-se nos marcos regulatórios essenciais para a construção
histórica-normativa dos direitos da criança e do adolescente no Brasil: os Códigos de Menores,
a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no 8.069/90).
Como a criação dos Conselhos Tutelares deu-se a partir do ECA, nesse capítulo voltaremos a
abordá-lo, mas dessa vez em uma perspectiva comparativa com algumas resoluções que vieram
depois do Estatuto. Tais resoluções foram expedidas pelo Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente (Conanda) e foram selecionadas para análise por estabeleceram
parâmetros de criação e funcionamento dos Conselhos Tutelares, são elas:

• a Resolução 008/1993, que constitui comissão encarregada de examinar a


situação dos Conselhos Tutelares na cidade de São Paulo;

• a Resolução 75/2001, que dispõe sobre os parâmetros para a criação e


funcionamento dos Conselhos Tutelares e dá outras providências;

• a Resolução 88/2003, que altera o dispositivo da Resolução nº 75, de 22 de


outubro de 2001;

• a Resolução 112/2006, que dispõe sobre os parâmetros para a formação


continuada dos operadores do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente;

• a Resolução 139/2010, que dispõe sobre os parâmetros para a criação e


funcionamento dos Conselhos Tutelares;

• a Resolução 152/2012, que dispõe sobre as diretrizes de transição para o primeiro


processo de escolha unificado dos conselheiros tutelares em todo território nacional e, por
fim,

• a Lei n.12.010/09, que dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho
de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga
dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação
das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e
dá outras providências.

A análise das resoluções é importante para compreender o papel e o lugar dos Conselhos
Tutelares, bem como para entender os deslocamentos normativos para o funcionamento dos
CTs. Entendê-las e compará-las dá-nos base para pensarmos a política para a infância e
adolescência de maneira contextualizada.
63

Antes de abordamos as resoluções e recomendações do Conselho Nacional dos Direitos


da Criança e do Adolescente (CONANDA) para o funcionamento dos Conselhos Tutelares,
cabe abordamos qual o papel do CONANDA no SGDCA.

A criação do CONANDA era prevista pela promulgação do Estatuto da Criança e do


Adolescente em 1990. No entanto, foi oficialmente decretada sua criação através da lei n°. 8.242
, de outubro de 1991. Sendo a instância máxima no tocante aos direitos da criança e do
adolescente, o CONANDA é um órgão colegiado permanente de caráter deliberativo e
composição paritária. Com a nova organização dos Ministérios elaborada em 2016, o
CONANDA, que era vinculado à Secretaria Especial de Direitos Humanos, passou a ser
vinculado ao Ministério da Justiça e da Cidadania, mas continuou com suas atribuições
conforme legislação original:

Os órgãos extintos farão parte da composição do Ministério da Justiça e Cidadania,


incluindo o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR); o
Conselho Nacional de Juventude (Conjuve); o Conselho Nacional de Combate à
Discriminação; o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; o
Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência; o Conselho Nacional
27
dos Direitos do Idoso e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.

Em fevereiro de 2017, a organização dos Ministérios foi modificada mais uma vez,
trazendo a criação do Ministério dos Direitos Humanos. Nesse sentido, o Ministério da Justiça
passou a ser denominado como Ministério da Justiça e da Segurança Pública. 28

São competências do CONANDA:

I - Elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da


criança e do adolescente, fiscalizando as ações de execução, observadas as linhas de ação e

27
BRASIL. Lei n°13.341, de 29 de setembro de 2016. Altera as Leis nos 10.683, de 28 de maio de 2003, que
dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e 11.890, de 24 de dezembro de 2008,
e revoga a Medida Provisória no 717, de 16 de março de 2016. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13341.htm. Acesso em: 05 de fevereiro de
2017.
Notícias Terra – Temer cria ministério dos direitos humanos e Moreira Franco vira ministro. Acesso em 03 de
28

março de 2017. Disponível em: https://noticias.terra.com.br/brasil/temer-cria-ministerio-dos-direitos-humanos-e-


moreira-franco-vira-ministro,00955878bb6e95b476f57e5fe9614a05j1h8dz9y.html
64

as diretrizes estabelecidas nos arts. 87 e 88 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto


da Criança e do Adolescente);

II - zelar pela aplicação da política nacional de atendimento dos direitos da criança e


do adolescente;

III - dar apoio aos Conselhos Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do
Adolescente, aos órgãos estaduais, municipais, e entidades não-governamentais para tornar
efetivos os princípios, as diretrizes e os direitos estabelecidos na Lei nº 8.069, de 13 de junho
de 1990;

IV - avaliar a política estadual e municipal e a atuação dos Conselhos Estaduais e


Municipais da Criança e do Adolescente;

V - acompanhar o reordenamento institucional propondo, sempre que necessário,


modificações nas estruturas públicas e privadas destinadas ao atendimento da criança e do
adolescente;

VIII - apoiar a promoção de campanhas educativas sobre os direitos da criança e do


adolescente, com a indicação das medidas a serem adotadas nos casos de atentados ou
violação dos mesmos;

IX - acompanhar a elaboração e a execução da proposta orçamentária da União,


indicando modificações necessárias à consecução da política formulada para a promoção dos
direitos da criança e do adolescente;

X - gerir o fundo de que trata o art. 6º da lei e fixar os critérios para sua utilização, nos
termos do art. 260 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990;

XI - elaborar o seu regimento interno, aprovando-o pelo voto de, no mínimo, dois
terços de seus membros, nele definindo a forma de indicação do seu Presidente.

Por mais que o CONANDA seja a instância máxima em relação aos direitos infanto-
juvenis, não há uma hierarquia entre os Conselhos (CONANDA, CEDCAs, CMDCAs e CTs),
e sim níveis de atuação diferentes, já que os entes federados são autônomos entre si. Dessa
forma, ao lançar uma resolução, o CONANDA não está tornando obrigatório o cumprimento
do texto, e sim recomendando aos demais Conselhos determinado assunto. Tal desenho é uma
aposta na comunicação e articulação entre os Conselhos dos diversos níveis, contudo, se não há
uma adequada frequência de relacionamento e conhecimento das decisões, a aposta pode abrir
espaço para a manutenção das desigualdades horizontais. Sendo os Conselhos Tutelares os
65

órgãos que atuam “na ponta” e que lidam com diversas demandas, a pouca força regulatória
gera diferentes entendimentos sobre a atuação dos agentes locais, abrindo espaço para atuações
despadronizadas.

A experiência do ECA e dos Conselhos Tutelares passou e passa por um lento processo
de consolidação. Silva (2003), uma das autoras pioneiras no estudo do tema no Brasil e que se
dedicou a pesquisar a constituição dos Conselhos na cidade de São Paulo, registrou que:

A experiência dos conselhos mostra que é mais difícil concretizar os ideais


democráticos do que defendê-los no plano da teoria, pois o dia-a-dia obriga a
conviver com segmentos indiferentes à luta democrática e à defesa de direitos.
Talvez o caso dos conselhos tutelares em São Paulo revele, entre outras coisas,
que a consolidação de uma democracia, sobretudo uma democracia participativa,
depende de repetidas experiências como esta e do aprimoramento de mecanismos
judiciais e políticos de fiscalização do poder público para que este seja
constrangido a observar a lei. Seja como for, a sobrevivência e a consolidação da
democracia dependem de um duro e lento aprendizado (...) (SILVA, 2003, p.
137).

Tais “alertas” sobre o longo processo de consolidação do Estatuto já podiam ser


observados em 1993, três anos após sua promulgação. Uma matéria veiculada no jornal “O
Estado de São Paulo” apontava uma dura realidade brasileira no trato da questão infanto-
juvenil, a qual dificilmente seria mudada devido à “burocracia”. Ponto importante de frisar
nesta reportagem é a posição do então senador Francisco Rollemberg (PFL-SE), o qual foi o
relator do projeto que extinguiu o Código de Menores e, em 1993, já defendia, segundo a
reportagem, a revisão do ECA para “conciliá-lo às condições econômicas dos governos federal,
estaduais e municipais”.
66

Figura 4 - Defesa da revisão do ECA em 1993

Fonte: Acervo do O Estado de São Paulo.

A constituição dos Conselhos Tutelares na cidade de São Paulo foi tão difícil de ser
conquistada que o CONANDA, em 1993, expediu uma resolução específica para esse assunto.
Através resolução 008/1993, o órgão criou uma comissão encarregada de examinar a situação
dos Conselhos Tutelares da cidade de São Paulo, trabalho em conjunto com o CMDCA e com
o CEDCA, bem como com o Ministério Público Estadual de São Paulo e o Ministério Público
Federal. Tal comissão, composta por conselheiros tutelares, deveria tratar do assunto da
constituição dos Conselhos com o então prefeito de São Paulo, Paulo Maluf.

O mandato (1993-1996) do prefeito Paulo Maluf na cidade de São Paulo representou um


período difícil para os órgãos e os conselheiros. De acordo com uma reportagem29 da Folha de
São Paulo, de 1996, o então prefeito respondeu às reivindicações dos conselheiros tutelares por

29
FOLHA DE SÃO PAULO. Maluf diz não ter ‘verba para marmanjos’. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/5/21/cotidiano/16.html. Acesso em: 03 de março de 2017.
67

melhores salários e condições de trabalho com a seguinte frase: “Não acredito que quem
trabalha com menor deseje ganhar um salário de marajá”. Declarou, ainda, que se a lei
permitisse, a prefeitura de SP trabalharia apenas com conselheiros tutelares voluntários, visão
que reproduz a ideia de que o trabalho com crianças e adolescentes deveria se basear pela
caridade.

Nesse período, conselheiros tutelares da capital registraram boletins de ocorrência para


que o poder público fosse advertido dos descasos da prefeitura. Alguns Conselhos da cidade
deixaram de funcionar por falta de apoio financeiro, institucional e jurídico.

A partir da citação do caso acima, vemos que, apesar de terem sido desenhados como
órgãos independentes e autônomos do poder público, os CTs recebem os recursos básicos para
seu funcionamento do Executivo local. Tal condição é ou pode ser fonte potencial de conflitos,
uma vez que os CTs dependem do financiamento da prefeitura, mas muitas vezes veem-se
diante de algumas situações que demandam a interpelação do poder público municipal por
omissão, falta, deficiência ou baixa qualidade de políticas públicas na área.

Nesse sentido, dez anos após a promulgação do ECA, a resolução 75/2001 do


CONANDA veio reforçar e esclarecer o papel e o lugar dos Conselhos Tutelares na
administração pública. Conforme indicado pelo texto da resolução, o objetivo dela é estabelecer
os parâmetros para a criação e funcionamento dos Conselhos Tutelares. Por parâmetros,
entendem-se os referenciais que norteiam a criação e o funcionamento dos Conselhos Tutelares,
assim como os limites institucionais a serem cumpridos por seus membros e pelo Poder
Executivo Municipal.

Fica ressaltado pela resolução 75 que deverá haver, no mínimo, um Conselho Tutelar por
município, independentemente do número de habitantes. Também fica estabelecido que a
recomendação é de um Conselho Tutelar a cada 200.000 habitantes em cada município.

A legislação municipal fica incumbida de explicitar a estrutura administrativa e


institucional necessária ao adequado funcionamento do Conselho Tutelar, que deverá ser criado
e instalado como órgão da administração municipal. A lei orçamentária municipal deverá prever
as seguintes despesas relativas ao CTs: despesa com a remuneração dos conselheiros,
capacitação, aquisição e manutenção de bens móveis e imóveis, pagamento de serviços de
terceiros e encargos, diárias, material de consumo, passagens e outras despesas. Fica vedada a
utilização dos recursos do Fundo da Criança e do Adolescente para a implantação e manutenção
do Conselho Tutelar, seja para remuneração ou custeio de despesas.
68

A referida resolução também reforça a autonomia do Conselho Tutelar, uma vez que este
não se subordina aos Poderes Executivo e Legislativo Municipais, ao Poder Judiciário ou ao
Ministério Público. Dessa forma, apesar de integrar o Poder Executivo Municipal, não há uma
relação de hierarquia entre este e o Conselho Tutelar. De forma semelhante, fica estabelecido
que o CT não integra o Poder Judiciário, visto que há uma diferença de atribuições entre um e
outro. A autoridade do Conselho Tutelar baseia-se na aplicação de medidas de proteção, ou
seja, tomar providências, em nome da sociedade e fundadas no ordenamento jurídico, para que
cesse a ameaça ou a violação dos direitos da criança e do adolescente. Contudo, conforme Lafer
(2010) e nossa pesquisa, a autoridade atribuída pelas normas não se reveste de legitimidade no
cotidiano dos Conselhos. Muitos enfrentam uma série de dificuldades para fazer valer suas
decisões perante à comunidade, à sociedade, e, sobretudo, perante o poder público.

As prescrições da resolução 75/2001 acerca dos requisitos para a candidatura no processo


de escolha do Conselho Tutelar são interessantes pontos de análise. Como vimos, o ECA
estabelece apenas três requisitos a candidatura ao Conselho: ser maior de 21 anos; residir no
município e ter reconhecida idoneidade moral. Os requisitos eram menos restritivos para
permitir que a sociedade pudesse participar mais facilmente do Conselho. Já a resolução 75
aumenta a lista de requisitos, a saber: ser maior de 21 anos; residir no município; ter reconhecida
idoneidade moral; observar os dispositivos na lei local que observe o princípio do melhor
interesse da criança e do adolescente; domínio do vernáculo e, por fim, experiência na área.

O requisito “domínio do vernáculo” e o último requisito “experiência na área” não são


claramente explicados. Malgrado o primeiro passar a impressão de que os conselheiros
deveriam ter capacidades mínimas de comunicação oral e escrita, não fica clara se a
recomendação visa exigir algum tipo de capacitação. Como os candidatos comprovariam o
domínio do vernáculo? Apenas quando assumissem seus postos como conselheiros e
precisassem colocar a capacidade em prática? Da mesma maneira, fica difícil entender o que
seria aceito como experiência na área para efetuar o trabalho de um conselheiro tutelar. O
entendimento possível é de que os CMDCAs ficariam responsáveis por validar a experiência
ou não de um candidato a conselheiro tutelar.

A resolução 75, dessa forma, passou a exigir o candidato a conselheiro mais qualificações
individuais, tais como o domínio do vernáculo e a experiência na área. Defendemos que a
adoção de critérios mais restritivos para a candidatura dos conselheiros contribui para o
distanciamento da sociedade civil e para o enfraquecimento da articulação em prol de políticas
públicas. Essa observação será melhor trabalhada na análise da resolução 139/2010.
69

As diretrizes gerais para o processo de escolha dos conselheiros tutelares dispõem, tal
como no ECA, que este deve ser regulamentado pelo CMDCA. Cada CMDCA foi orientado a
seguir as orientações de que o voto deveria ser direto, secreto e facultativo de todos cidadãos
do município maiores de 16 anos, que o processo de escolha deveria ocorrer sob fiscalização
do Ministério Público, que o CMDCA deveria dar ampla publicidade ao processo e de que, em
municípios com mais de um CT, o processo de escolha deveria ser organizado de forma a se
tornar circunscrito à área do CT (por exemplo, para a escolha do CT da região leste, deveriam
votar apenas os eleitores dos bairros pertencentes à essa região). Na resolução 75, ainda são
previstos três anos de mandato para o conselheiro.

Como Conselho que é, o Conselho Tutelar é um órgão colegiado, devendo suas


deliberações ser tomadas pela maioria de votos de seus integrantes, em sessões deliberativas
próprias, realizadas da forma como dispuser o Regimento Interno, sem prejuízo do horário de
funcionamento previsto na legislação municipal específica. Quando um conselheiro se
encontrar sozinho em um plantão, e havendo urgência, ele poderá tomar decisões monocráticas,
submetendo-as a posterior aprovação do colegiado, o mais breve possível. Contrariar a decisão
do colegiado, mesmo que seja para aplicar medida de proteção, é item passível de punição de
acordo com a resolução 75, sendo uma das proibições na conduta dos conselheiros.

Ficou estabelecido que o CT deverá funcionar de acordo com as orientações da lei


municipal, mas que deverá observar a recomendação de funcionar ao menos oito horas por dia
de preferência em horário comercial. Também deverão ocorrer plantões, momentos nos quais
os conselheiros ficam disponíveis por celular ou outra forma de localização para atenderem as
demandas à noite e/ou aos finais de semana. Também fica recomendado que os conselheiros
tutelares devem obedecer ao regime de dedicação exclusiva.

Finalizada a apresentação e a análise da resolução 75, observamos que a resolução


88/2003 voltou a tratar dos requisitos para candidatura ao cargo de conselheiro tutelar. Como
vimos acima, a resolução 75 estabeleceu requisitos mais específicos para a candidatura, mas,
passados dois anos, o CONANDA (com uma composição diferente da de 2001), voltou a
aproximar os requisitos daqueles estabelecidos no ECA:

Art. 1º. O artigo 11 da Resolução nº 75, de 22 de outubro de 2001, do CONANDA,


passa a vigorar com a seguinte redação: “Art.11. Para a candidatura a membro do
Conselho Tutelar devem ser exigidos de seus postulantes a comprovação de
reconhecida idoneidade moral, idade superior a vinte e um anos e residência fixa
no município, além de outros requisitos que podem estar estabelecidos na lei
70

municipal e em consonância com os direitos individuais estabelecidos na


Constituição Federal.30

Passados três anos da resolução 88, a resolução 112/2006 dedicou-se a tratar da formação
continuada dos operadores do sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente. O
texto do CONANDA reconhece e coloca as inúmeras contradições e dificuldades relativas à
garantia dos direitos de crianças e adolescentes, por isso, segundo o documento, a formação
continuada dos operadores do sistema seria estratégica como forma de enfrentamento da
realidade.

Este texto do CONANDA é o primeiro, das leituras para a pesquisa, a tratar de temas
como diversidade de gênero, raça/etnia, orientação sexual, deficiência e procedência regional.
Num dos parágrafos do subtópico “formação como necessária e estratégica”, há o uso do termo
“sociedade de classes” para tratar das desigualdades no trato de direitos. Nesse sentido, a
resolução prima por articular as discussões forjadas pelos próprios operadores do sistema de
garantia dos direitos da criança e do adolescente e por traçar ações de acordo com o panorama
da questão no Brasil, na busca por “um novo projeto de sociedade”.

Em seguida, a resolução desenvolve a centralidade dos Conselhos de Direitos enquanto


agentes formadores. Contudo, a relação dos Conselhos Tutelares com os Conselhos de Direitos
costuma não ocorrer com tanta frequência, sobretudo no caso do CEDCA e do CONANDA.
No capítulo 3, apresentaremos o resultado da investigação sobre a formação dos conselheiros
tutelares de Guarulhos e da frequência de relacionamento com o CMDCA, CEDCA e
CONANDA.

Os eixos norteadores estabelecidos pelo CONANDA para a formação dos integrantes do


Sistema de Garantia são: i. processo de formação ancorado à discussão de um projeto de
sociedade; ii. afirmação dos princípios de direitos humanos; iii. fomento de processos de
educação formal e não-formal; iv. direcionamento ao desenvolvimento de potencialidades
humanas, e elevação da autoestima dos grupos socialmente excluídos.

30
BRASIL. Resolução nº 88, de 15 de abril de 2003. Altera o dispositivo da Resolução nº 75, de 22 de outubro
de 2001 que dispõe sobre os parâmetros para a criação e funcionamento dos Conselhos Tutelares e dá outras
providências Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8242.htm. Acesso em: 13 de fevereiro de
2017.
71

A resolução também reforça a ideia de que a formação deve facilitar a articulação entre
os Conselhos, sejam de Direitos ou Tutelares. Além disso, define como um dos objetivos o
estímulo ao controle social e ao monitoramento de políticas públicas.

Outra recomendação importante é a construção de bancos de informações a partir de


diagnósticos, levantamentos e reconhecimentos de materiais. São sugeridos os levantamentos
feitos a partir da produção dos estados, das secretarias, ministérios, universidades e outros
parceiros. Segundo o texto, a construção dos bancos facilitaria o provimento de uma série de
informações relativas às crianças e aos adolescentes e que, no dia-a-dia, não são bem articuladas
e/ou pouco acessíveis. Nesse sentido, é importante pensar de que forma os Conselhos Tutelares
consolidam as informações acerca de seus atendimentos e ações, uma vez que, como órgãos na
“ponta” do sistema, podem fornecer grandes subsídios para as políticas públicas e demais
atuações.

Esta função seria bem desenvolvida se o uso do Sistema para Infância e Adolescência
(SIPIA) fosse colocado em prática. O SIPIA é um sistema nacional de registro e tratamento de
informações sobre a garantia e defesa dos direitos fundamentais preconizados no Estatuto da
Criança e do Adolescente - ECA. Ele tem uma saída de dados agregados em nível municipal,
estadual e nacional e se constitui em uma base única nacional para formulação de políticas
públicas no setor. O SIPIA-CT Web tem como base do sistema o Conselho Tutelar, para o qual
se dirigem de imediato as demandas sobre a violação ou o não atendimento aos direitos
assegurados da criança e do adolescente, todavia, ainda faltam capacitação e condições
adequadas para o uso do sistema.

Em seguida, a resolução sugere os conteúdos formativos que poderiam compor a


formação. Acerca do conteúdo de “políticas públicas e garantia de direitos”, os sub-tópicos são
apenas dois e não esgotam a possibilidade de avanços e dinâmicas de acordo com a realidade
local: i. direitos humanos e relações de igualdade e diversidade: gênero, raça e etnia, geração,
orientação sexual, deficiências; ii. políticas públicas federais, estaduais e municipais para
crianças e adolescentes, seguridade social e políticas redistributivas.

No capítulo de análise de resultados, apresentaremos os resultados obtidos a partir da


aplicação dos questionários com os conselheiros tutelares de Guarulhos a respeito de suas
formações. Como recomendado pelo CONANDA, os conteúdos formativos podem e devem ser
sobre vários temas, uma vez que as próprias atribuições do CT são, também, várias.
72

A formação dos conselheiros, ao longo dos anos, passou a ser objeto de maior atenção
por parte das legislações. Se o ECA previa a necessidade de formação, mas de uma forma não
específica, a resolução 112/2006 reforça a necessidade da formação continuada e apresenta, de
maneira estratégica, os atores que dela devem participar, bem como os temas pertinentes que
garantam um bom desempenho para a garantia, defesa e promoção dos direitos de crianças e
adolescentes.

Já a resolução 139/2010 estabelece que a formação continuada dos conselheiros deve


estar prevista na Lei Orçamentária Local, uma novidade nos termos das diretrizes. A referida
resolução também mantém o veto à utilização do Fundo da Criança e do Adolescente para
implantação ou manutenção do Conselho Tutelar, com a exceção se for utilizado na formação
e qualificação dos conselheiros tutelares para o exercício de suas funções.

De modo geral, a resolução 139/2010 é a que apresenta o maior número de inovações


desde o texto do ECA. Ela, inclusive, atualiza várias das diretrizes da resolução 75/2001, como,
por exemplo, nos critérios para criação de um Conselho Tutelar. A resolução 139/2010 segue
com a recomendação de no mínimo um Conselho Tutelar por município, mas preconiza que
deverá haver um Conselho Tutelar para cada 100.000 habitantes. Nesse sentido, o município de
Guarulhos, que tem a população estimada de 1.337.08731, estaria com um déficit representativo
no número de Conselhos Tutelares, pois, atualmente, conta com seis CTs no município. Cada
CT do município, assim, abarca cerca de 220.000 habitantes, o dobro do preconizado pela
resolução.

A resolução 139/2010 é a primeira a estabelecer critérios para a distribuição dos CTs nos
municípios. Dessa forma, os municípios ficaram orientados a distribuir os equipamentos de
defesa de direitos infanto-juvenis de acordo com a configuração geográfica e administrativa da
localidade; o número da população de crianças e adolescentes; a incidência de violações de
direitos de crianças e adolescentes e de acordo com os indicadores sociais. Nesse ponto, a
resolução demanda dos municípios certa estratégia e uso de informações para o estabelecimento
dos Conselhos.

31
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cidades – São Paulo – Guarulhos. Disponível em:
http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=351880. Acesso em: 18 de março de 2017.
73

Em caso de ausência de dotação orçamentária específica para a implantação e manutenção


do Conselho Tutelar, o referido texto abre espaço para que mais atores e agentes interpelem o
poder público para o provimento dos recursos. Assim, fica dada ao CT, ao CMDCA ou a
qualquer outro cidadão a possibilidade de requerer ao Poder Executivo, Legislativo e Ministério
Público as medidas administrativas e judiciais cabíveis.

Especifica também a vinculação administrativa pertinente aos Conselhos:


preferencialmente ao órgão da administração municipal e, na inexistência deste, ao gabinete do
prefeito ou do governador, no caso do Distrito Federal.

No que tange aos requisitos para candidatura no processo de escolha do Conselho Tutelar,
observa-se uma mudança no caminho de restringir os requisitos. Conforme vimos acima, a
resolução 75/2001 estabeleceu critérios mais restritivos que o ECA, fato que foi invalidado pela
resolução 88/2003, a qual fez com que os critérios para candidatura se tornassem iguais ao do
ECA. Contudo, a resolução 139/2010 mantém os requisitos básicos (reconhecida idoneidade
moral, idade superior a 21 anos de idade, residir no município e preencher os requisitos
expressos na lei local) e adiciona os seguintes: i. experiência na promoção, proteção e defesa
dos direitos da criança e do adolescente; ii. formação específica sobre o ECA, sob a
responsabilidade do CMDCA local; iii. comprovar conclusão do ensino fundamental e iv. ser
aprovado em prova de conhecimento sobre o direito da criança e do adolescente, de caráter
eliminatório, a ser formulada por uma comissão examinadora designada pelo CMDCA (desde
que prevista em lei local).

Equilibrar as dimensões de participação popular e qualificação do conselheiro é um


desafio apontado por Tatagiba (2005)32. Para a autora, que estudou o caso dos conselhos de
políticas setoriais, uma saída interessante é a manutenção do amplo acesso ao cargo de
conselheiro atrelado a investimentos na qualificação continuada desses profissionais. Os
critérios de seleção para a candidatura dos conselheiros e a capacitação oferecida aos eleitos
seriam, portanto, dois pontos fundamentais na legitimação do Conselho Tutelar enquanto órgão
do poder público, porque garantem que à figura do conselheiro maior conhecimento técnico,

32
Ver TATAGIBA, L. Conselhos gestores de políticas públicas e democracia participativa: aprofundando o debate.
Revista Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, pp. 209-213, 2005. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782005000200017&lng=en&nrm=isso>.
Acesso em 11 de março de 2017.
74

possibilitando o empoderamento necessário a uma intervenção na esfera pública com qualidade


e eficácia, sem abandonar o princípio da ampla representatividade social.

Nesse sentido, notamos a existência de uma tensão entre a natureza das normas
estabelecidas pelo ECA e daquelas advindas pela Resolução 139/2010 do CONANDA.
Enquanto o Estatuto prioriza a ampla participação da população na função de conselheiro, a
Resolução estabelece critérios mais restritivos, priorizando a participação de pessoas com
experiência prévia na promoção, defesa e garantia dos direitos da criança e do adolescente.
Sendo o Conselho Tutelar um órgão de participação popular no poder público, a discussão que
se coloca é o impasse que os dois parâmetros legislativos geram, na medida em que o ECA
atrela à candidatura dos conselheiros a representação política em ações envolvendo a área da
infância e juventude, o engajamento cívico e uma cidadania ativa, enquanto a Resolução
139/2010 do Conanda visa trazer à função membros com qualificação na área, priorizando a
profissionalização dos conselheiros e restringindo, assim, o universo de indivíduos que
poderiam se candidatar ao cargo.

Outro ponto importante da resolução 139/2010 é a abordagem da articulação dos


Conselhos. Segundo o texto, cabe aos CTs articular em ações para o estrito cumprimento de
suas atribuições de modo a agilizar o atendimento junto aos órgãos governamentais e não
governamentais encarregados da execução das políticas de atendimento de crianças,
adolescentes e suas respectivas famílias. Articular junto às Polícias Civil e Militar, Ministério
Público, Judiciário e CMDCA, de modo que seu acionamento seja efetuado com o máximo de
urgência, sempre que necessário. Em conjunto com o CMDCA, o CT deverá promover ampla
e permanente mobilização da sociedade acerca da importância do seu papel. No capítulo de
análise de resultados, analisaremos a qualidade e a intensidade da relação dos Conselhos
Tutelares do município de Guarulhos com os atores elencados acima.

Outra novidade trazida pela referida resolução e que foi importante para a pesquisa de
campo é o artigo sobre acesso aos registros do Conselho Tutelar. O acesso total é restrito ao
Ministério Público e à autoridade judiciária, resguardado o sigilo perante terceiros. Nesse
sentido, no caso de pesquisas acadêmicas, cabe-nos pedir o acesso às atas das sessões
deliberativas dos CTs e aos registros que não revelem a identidade de crianças e adolescentes,
pois, segundo a resolução:

Aos demais interessados ou procuradores legalmente constituídos terão acesso às


atas das sessões deliberativas e registros do CT que lhes digam respeito,
75

ressalvadas as informações que coloquem em risco a imagem ou a integridade


física ou psíquica da criança ou adolescente, bem como a segurança de terceiros.33

Um dos modos de obter informações relativas aos CTs também é por meio da
sistematização das informações elaborada pelos próprios Conselhos. Ponto abordado pela
resolução 139/2010, onde fica recomendado que o poder executivo municipal ou distrital
forneça aos CTs os meios necessários para a sistematização de informações relativas às
demandas e deficiências na estrutura de atendimento à população de crianças e adolescentes,
tendo como base o Sistema de Informação para a Infância e Adolescência – o SIPIA, ou sistema
equivalente. Cabe ao CT, contudo, elaborar e encaminhar um relatório trimestral ao CMDCA,
ao Ministério Público e ao juiz da Vara da Infância e da Juventude, contendo a síntese dos dados
referentes ao exercício de suas atribuições, bem como as demandas e deficiências na
implementação das políticas púbicas.

O CONANDA também estabelece que os órgãos públicos responsáveis pelo atendimento de


crianças e adolescentes com atuação no município devem auxiliar o CT na coleta de dados e no
encaminhamento de informações relativas às demandas e deficiências das políticas públicas ao
CMDCA. Caso o(s) Conselho(s) Tutelar(es) do município não use(m) o SIPIA, cabe ao
CMDCA local definir o plano de implantação.

Pode-se dizer que a resolução 139/2010 é a mais atual em relação às diretrizes gerais.
Cumprindo o papel de resolução, ela revê, atualiza e especifica vários artigos do Estatuto da
Criança e do Adolescente, motivo pelo qual sua análise é de suma importância para qualquer
estudo acerca do Conselho Tutelar. Acima, analisamos os pontos mais importantes para nosso
trabalho, tais como os pontos metodológicos (acesso aos dados, sistematização das
informações), articulação e requisitos para a candidatura ao Conselho Tutelar, mas o texto do
CONANDA trata ainda de muitos outros temas, de acordo com a amplitude presente no ECA.

Para facilitar a visualização dos pontos elencados pelo trabalho nas diferentes legislações,
foi elaborado o seguinte quadro comparativo34:

33
A Resolução 139/2010 (BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Dispõe sobre
os parâmetros para a criação e funcionamento dos Conselhos Tutelares no Brasil, e dá outras providências).
34
É importante salientar que o quadro comparativo não esgotou as possibilidades de comparação entre os três
textos. Sua comparação foi realizada de modo a fornecer mais clareza nos pontos mais destacados pelo nosso
estudo, além do que foi elaborado somente a partir dos textos do ECA, da Resolução 75 e da Resolução 139, não
contemplando, portanto, as outras resoluções.
76
77
Quadro 1 – Quadro comparativo do Estatuto da Criança e do Adolescente, da resolução 75/2001 e da resolução 139/2010 do CONANDA

Quadro comparativo do Estatuto da Criança e do Adolescente, da resolução 75/2001 e da resolução 139/2010

Em cada Município e em cada Região Administrativa do Distrito Federal haverá, no


mínimo, 1 (um) Conselho Tutelar como órgão integrante da administração pública
ECA
local, composto de 5 (cinco) membros, escolhidos pela população local para mandato
Critérios para a criação de de 4 (quatro) anos, permitida 1 (uma) recondução, mediante novo processo de escolha.
um Conselho Tutelar
Deverá haver um Conselho Tutelar para cada 200.000 habitantes do município ou do
RESOLUÇÃO 75/2001 distrito.

A cada 100.000 habitantes. Para cada região, circunscrição administrativa ou


RESOLUÇÃO 139/2010
microrregião
ECA Não há referência
Critérios de distribuição dos RESOLUÇÃO 75/2001 Não há referência
Conselhos Tutelares nos
municípios ou no Distrito Configuração geográfica e administrativa da localidade; número da população de
Federal RESOLUÇÃO 139/2010 crianças e adolescentes; incidência de violação de direitos de crianças e adolescentes
e indicadores sociais

ECA Reconhecida idoneidade moral; idade superior a 21 anos e residir no município.

Requisitos para candidatura


ao Conselho Tutelar Reconhecida idoneidade moral; idade superior a 21 anos de idade; residir no
RESOLUÇÃO 75/2001 município; dispositivos na lei local que observe o princípio da defesa do melhor
interesse da criança e do adolescente; domínio do vernáculo e experiência na área.
78

Reconhecida idoneidade moral; idade superior a 21 anos de idade; residir no


município; preencher requisitos expressos na lei local; experiência na promoção,
proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente; formação específica sobre
RESOLUÇÃO 139/2010 o ECA, sob a responsabilidade do CMDCA local; comprovar conclusão do ensino
fundamental; ser aprovado em prova de conhecimento sobre o direito da criança e do
adolescente, de caráter eliminatório, a ser formulada por uma comissão examinadora
designada pelo CMDCA (desde que prevista em lei local).
ECA Não há referência
RESOLUÇÃO 75/2001 Não há referência

Articular em ações para o estrito cumprimento de suas atribuições de modo a agilizar


Articulação e mobilização o atendimento junto aos órgãos governamentais e não governamentais encarregados
do Conselho Tutelar da execução das políticas de atendimento de crianças, adolescentes e suas respectivas
RESOLUÇÃO 139/2010 famílias. Articular junto às Polícias Civil e Militar, Ministério Público, Judiciário e
CMDCA, de modo que seu acionamento seja efetuado com o máximo de urgência,
sempre que necessário Em conjunto com o CMDCA, o CT deverá promover ampla e
permanente mobilização da sociedade acerca da importância do seu papel.

ECA Não há referência


RESOLUÇÃO 75/2001 Não há referência
Garantido de forma restrita ao Ministério Público e à autoridade judiciária,
Acesso aos registros do
resguardado o sigilo perante terceiros. Aos demais interessados ou procuradores
Conselho Tutelar
legalmente constituídos terão acesso às atas das sessões deliberativas e registros do
RESOLUÇÃO 139/2010
CT que lhes digam respeito, ressalvadas as informações que coloquem em risco a
imagem ou a integridade física ou psíquica da criança ou adolescente, bem como a
segurança de terceiros.
Fonte: elaboração própria.
79

De acordo com o Quadro 1, fica ilustrado que muitos pontos das resoluções expedidas
pelo CONANDA não foram trazidos pelo ECA, assim como muitos pontos presentes nele foram
especificados nas resoluções posteriores.

As resoluções posteriores à 139/2010 dedicaram-se ao estabelecimento de diretrizes sobre


o processo de escolha dos conselheiros tutelares. Como exemplo, a resolução 152/2012, que
estabeleceu as diretrizes para o processo de escolha unificado dos conselheiros tutelares em
território nacional. O texto da resolução apresenta normas que orientam a transição para o
modelo de escolha unificada, esclarecendo as diversas situações que poderiam ocorrer antes da
data estabelecida.

O texto delimita a data do processo de escolha unificado para 04 de outubro de 2015, ou


seja, um ano após às eleições presidenciais. Dessa forma, o processo de escolha para os
conselheiros tutelares em todo território nacional será sempre no ano subsequente ao ano
eleitoral, com a posse em janeiro do ano próximo, com o mandato de quatro anos e permitida
uma recondução. Nesse sentido, as eleições municipais dos Conselhos Tutelares ocorreram em
2015, e os conselheiros tutelares entrevistados na pesquisa tomaram posse em 10 de janeiro de
2016.

Apesar de não integrar as resoluções e recomendações do CONANDA, a lei n. 12.010/09,


conhecida como “Lei da Adoção”, trouxe mudanças para a atuação dos Conselhos Tutelares. A
lei altera o ECA para regulamentar os prazos para adoção, regras para a entrega voluntária e
adoção internacional, assim como o direito à convivência familiar.

A lei, cujo objetivo oficial é regular a intervenção estatal em relação à convivência


familiar, ressalta que o poder público deve voltar sua atenção à orientação, apoio e promoção
social da família natural, junta à qual a criança e o adolescente devem permanecer, ressalvada
absoluta impossibilidade, demonstrada por decisão judicial fundamentada.

De acordo com o texto, as gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus
filhos para adoção devem ser obrigatoriamente encaminhadas à Justiça da Infância e da
Juventude. Antes, era obrigatória a comunicação ao Conselho Tutelar para requisição dos
serviços necessários para sua confirmação e tomada de providências de acordo com as
condições físicas e psicológicas da criança e do adolescente.

A mudança efetuada reforça o acolhimento e orientação às mães e também às gestantes


que expressem o desejo de entregar os filhos para adoção e obriga o encaminhamento destas,
nessa hipótese, à Justiça da Infância e da Juventude, para recebimento de assistência
80

psicológica.. Nesses caso, as mães dirigem-se à Vara da Infância e Juventude para promover a
entrega de seus filhos ao juiz, que faz os encaminhamentos às entidades de atendimento
responsáveis. Vale dizer que, se o médico, enfermeiro ou dirigente de estabelecimento de
atenção à saúde de gestante ou o funcionário de programa oficial ou comunitário destinado à
garantia do direito à convivência familiar deixar de efetuar imediato encaminhamento à
autoridade judiciária de caso de que tenha conhecimento de mãe ou gestante interessada em
entregar seu filho para adoção, incorrerá na nova infração administrativa agora criada pelo
dispositivo legal.

O artigo 93 do ECA foi alterado pela referida lei para tornar de competência exclusiva da
autoridade judiciária o afastamento de criança e adolescente da convivência familiar, exceto em
caráter excepcional e de urgência, onde será possível acolher crianças e adolescentes sem prévia
determinação da autoridade competente, todavia, deve-se fazer a comunicação do fato em até
24 horas ao Juiz da Infância e da Juventude sob pena de responsabilidade. Nesse sentido, a
medida protetiva de acolhimento institucional tem características judicializantes na medida em
que se tornou de aplicação exclusiva pelo Juiz da Infância e Juventude, não podendo mais ser
determinada pelo Conselho Tutelar, pois exige ordem judicial formalizada na chamada “guia
de acolhimento”. Porém, qualquer afastamento de criança ou adolescente de seu grupo familiar
pressupõe uma recomendação técnica (estudo diagnóstico) a subsidiar o parecer do Ministério
Público e a decisão judicial ulterior. Ao Conselho Tutelar cabe, nesse caso, elaborar o parecer
técnico que poderá servir de base para a decisão judicial. Nota-se, nesse caso, que o Conselho
Tutelar, que antes podia determinar o abrigamento institucional de criança ou adolescente
(decisão administrativa) perde sua legitimidade nesse quesito com os afastamentos decorrentes
exclusivamente de procedimento judicial.

Aqui, encerramos a análise do Estatuto da Criança e do Adolescente e das resoluções


expedidas pelo CONANDA para os Conselhos Tutelares. A partir da compreensão dos
documentos normativos, pudemos entender melhor qual o papel, lugar, atribuições, composição
e outros itens relativos a esse “novo” órgão de defesa da criança e do adolescente. Outro
objetivo também era compreender as mudanças definidas ao longo dos 27 anos de promulgação
do Estatuto, e pensar de que forma essas orientações normativas impactam na realidade dos
Conselhos - no nosso caso, na realidade dos Conselhos Tutelares de Guarulhos. Além disso,
sendo as normas uma expressão de seu contexto, pudemos observar mudanças importantes que
expressam diferentes visões sobre o papel e o lugar do Conselho Tutelar.
81

No caso do CONANDA, Conselho expedidor dos textos normativos, como defendido,


em 2015, por Anderson Rafael Nascimento35, passou o tempo da criação de expectativas sobre
a participação expressiva da sociedade civil neste e em outros Conselhos criados no bojo da
Constituição de 88. Segundo o autor, a própria literatura sobre conselhos e participação social
no Brasil se deslocou, de forma a captar limites na representação de tais espaços e na relação
sociedade civil – Estado, sendo mais coerente, como esforço teórico, compreender os polos
entre os quais os conselhos transitam.

Em suma, apreendemos que o ECA concebeu os Conselhos Tutelares como instrumentos


estratégicos para a defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Para tanto, determinou a
existência de pelo menos um Conselho em todos os municípios brasileiros, com o apoio da
prefeitura e do CMDCA local para sua estruturação e manutenção. Também preconizou os
Conselhos como uma forma de participação diferente dos conselhos gestores, uma vez que os
conselheiros tutelares são membros da sociedade civil escolhidos pela sociedade civil, os quais
vão, dentro das possibilidades, dialogar e fiscalizar o próprio Estado para fazer valer a
prioridade a crianças e adolescentes. Também vimos que, de acordo com o ECA, a política para
a criança e o adolescente deve ser municipalizada, o que, por um lado, permite aos municípios
atuarem de acordo com sua própria realidade, mas, por outro, permite distorções e
contravenções, tais como municípios que ainda não implementaram seu Conselho Tutelar, além
de distintas realidades a nível nacional. Através da análise dos textos expedidos pelo
CONANDA, é possível questionar se tais documentos são conhecidos e observados pelos atores
da política pública da infância e da adolescência, sobretudo os implementadores da política, os
conselheiros tutelares. Isto fica ainda mais sobressalente no caso dos Conselhos Tutelares que
não têm proximidade com o CMDCA, uma vez que esta é a instância deliberativa de políticas
públicas no município. Nesse sentido, essa falta de uma regulação mais incisiva abre espaço
para diferentes entendimentos e aplicações, bem como para uma maior discricionariedade da
ação dos agentes da política, em especial dos conselheiros tutelares como burocratas de nível
de rua, com influência sobre a forma de oferta e os resultados da política.

35
NASCIMENTO, Anderson Rafael. Resistências nas políticas de direitos humanos no Brasil: a atuação do
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente nas alterações do ECA. Teoria & Pesquisa, São
Carlos, vol. 24, n.2, p.61-74, jul./dez.2015.
82

Conforme demonstrado por Vazquez (2012, p.70), nas políticas sociais de educação e
saúde, o princípio constitucional de atuação descentralizada “[...] não era autoexecutável, era
necessário introduzir novas regras para estimular a descentralização e induzir os municípios
a assumirem e ampliarem a oferta descentralizada das políticas sociais [...]”. Nesses termos,
ao definir as diretrizes para um padrão nacional de atuação executado localmente, as políticas
devem incluir mecanismos suficientes que garantam um padrão mínimo de atuação. Caso
contrário, conforme demonstrado por Lotta (2010), abre-se espaço para a adaptação das
políticas e ações independentemente da maneira como foram formuladas. Segundo a autora, os
elementos que influenciam essa capacidade de adaptação das burocracias são: i. a falta de
clareza nos objetivos das políticas, as regras ambíguas ou mal formuladas, o alto número de
agentes governamentais ou de organizações envolvidas na implementação, as diferenças de
valores, os conflitos vivenciados pelos próprios implementadores, entre outros (LOTTA, 2010,
p.260).

Tal discussão está por trás do trabalho dos conselheiros tutelares, agentes locais de
implementação da política da infância e adolescência. Na medida em que o ECA definiu as
diretrizes nacionais de atuação local, mas não garantiu mecanismos suficientes que garantissem
um padrão de atuação e as resoluções/recomendações do CONANDA não apresentam a força
regulatória para moldar o comportamento dos agentes locais, o desenho da política apostou suas
fichas na atuação sobretudo do CMDCA como norteador do trabalho dos conselheiros tutelares.
No entanto, é questionável se somente o CMDCA vem garantindo a aplicação dos princípios
da política. Por esse motivo, a implementação da política da infância e da adolescência leva a
que os elementos elencados por Lotta (2010) se efetivem, abrindo espaço para o exercício da
discricionariedade.

Desse modo, no tópico seguinte, traremos a discussão sobre a burocracia de nível de rua
e do motivo pelo qual os conselheiros tutelares podem ser analisados dentro deste conceito.

2.3. O PAPEL DOS CONSELHEIROS TUTELARES A PARTIR DO CONCEITO DE “BUROCRATAS


DE NÍVEL DE RUA” (STREET LEVEL BUREAUCRACY) NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS.

A literatura sobre burocracia tem um marco importante no trabalho de Max Weber (1974).
Weber, em seu estudo sobre a nova forma de dominação que ele dominou de “racional-legal”,
defendeu que, diferentemente da dominação tradicional e carismática, a nova forma de
administração caracterizava-se pela aplicação das leis. Dentro desse escopo teórico, a
83

burocracia, conceito importante para a compreensão do modelo do autor, designa um quadro


de funcionários que, organizados dentro de uma forma específica e submetidos a normas de
conduta também específicas e determinadas, exerceriam autoridade legal.

O sociólogo alemão, nesse sentido, visualiza o aparato burocrático como campo do


domínio racional-legal, não havendo (e não devendo haver) espaço para o intento político,
sendo esta uma atitude não pertencente ao domínio técnico, o qual deveria relegar as paixões e
os julgamentos ao domínio da política.

Com o surgimento de novos trabalhos sobre o tema, os estudos foram aproximando a


política do campo burocrático e aprofundando o conhecimento sobre os tipos de burocracia.
Segundo Lotta (2016), para avançar na compreensão da relação entre Estado e sociedade civil
traçada pelos burocratas, é importante diferenciar os estratos da burocracia. Os burocratas no
“topo” da burocracia são os atores que ocupam os altos cargos, geralmente cargos
comissionados. Estes estão mais próximos dos representantes eleitos pela população
(vereadores, deputados, prefeitos, governadores e presidente) e mais próximos das escolhas
partidárias. No meio, encontra-se a categoria de burocratas de médio escalão (BME), figuras
que se localizam no campo intermediário entre o alto escalão – o gabinete da política pública -
e o baixo escalão – a ponta da política. Cavalcante e Lotta (2015) ressaltam que esta categoria
costuma ser invisível para os estudos e para a população, mas se tratam de atores relevantes e
imprescindíveis. Por fim, os burocratas de baixo escalão (street level bureaucracy) representam
o mais baixo estrato da política, estando em contato direto com a população atendida.

Já em relação à aproximação entre política e burocracia, por um momento, os movimentos


sociais foram considerados conceitualmente separados do Estado, como em Tilly (1978, p.3-
4), que diferencia os challengers dos polity members: “All challengers seek, among other
things, to enter the polity36”. Jenkins e Klandermans (1995) chegam a afirmar que os
movimentos sociais constituíam um potencial rival para o sistema político representativo.
Pettinicchio (2012, p.499) reforça a visão dicotômica entre Estado e movimentos sociais: “the

36
“todos os desafiantes procuram, entre outras coisas, entrar na política” (tradução livre da autora).
84

conventional understanding of social movements is that their leaders, participants and


organizations exist outside of the state”37.

Dagnino (2004), por sua vez, defende que a visão dicotômica entre Estado e sociedade
civil, muitas vezes, gerou a interpretação do Estado como algo intrinsicamente negativo e da
sociedade civil como “polo de virtudes”, o que distorce muitas das análises no campo da ciência
política e demanda a superação da fronteira analítica estabelecida.

Agora, como a literatura interpretou a militância/engajamento dos atores que constituem


o Estado, ou seja, os burocratas? Pires e Alves (2013), em seu importante estudo sobre os
burocratas da carreira de desenvolvimento de políticas sociais (médio escalão) do Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), demonstraram que os referidos
profissionais tinham um perfil altamente engajado do ponto de vista político e social, integrando
o conceito de “burocratas ativistas”.

No estudo de Tilly, Abers, Serafim e Tatagiba (2014), são identificadas quatro rotinas
comuns de interação entre Estado e sociedade civil no Brasil, sendo elas: i. protestos e ação
direta; participação institucionalizada; política de proximidade e, por fim, iv. ocupação de
cargos na burocracia, sendo esta última uma interpretação da burocracia engajada.

A ocupação de cargos na burocracia seria uma estratégia de movimentos sociais para


levar suas pautas e reivindicações para dentro do Estado, no geral em governos percebidos
como aliados. Nesse sentido, esta perspectiva lança luz sobre a dinâmica de influência de
movimentos sociais sobre o Estado, dando elementos para reforçar a ideia de que Estado e
sociedade civil não são esferas isoladas.

Segundo Ferreira (2016), tal estratégia foi bastante utilizada no governo do Partido dos
Trabalhadores (PT), ainda que não tenha existido apenas nesse contexto e nem exclusivamente
no Brasil. O partido, cujo histórico de aproximação com os movimentos é bastante conhecido,
trouxe diversos militantes para trabalharem dentro do governo.

A prática acima descrita (ativismo no interior do Estado) por servidores públicos é


conhecida por ativismo institucional. Abers e Tatagiba (2014) pontuam que o termo se refere a

37
“A compreensão convencional dos movimentos sociais é que seus líderes, participantes e organizações
existem fora do Estado” (tradução livre da autora).
85

práticas de servidores que ingressam na burocracia com o objetivo de contribuir em agendas ou


projetos políticos postos em cena por movimentos sociais.

Já a contribuição de Abers (2015) para o estudo do ativismo institucional reside em


demonstrar que os burocratas ativistas não têm, necessariamente, vínculo com a participação
direta em movimentos sociais. Por mais que o burocrata ativista possa ter alguma identificação
com o movimento social em si e/ou com alguma pauta de um movimento social, sua relação
não é necessariamente orgânica. Dessa forma, Ferreira (2016) descreve o ativista institucional
ou o burocrata ativista como aquele servidor público que pratica o ativismo institucional com o
mínimo de regularidade.

Para delimitar o uso do termo, Pettinicchio (2012) estabelece que os burocratas ativistas
não são apenas reativos, e sim proativos em relação às pautas levantadas por movimentos
sociais. De modo geral, fica condicionado que os burocratas ativistas são indivíduos que
utilizam sua discricionariedade e seus valores para provocarem mudanças no interior das
instituições. Contudo, o traço distintivo de um burocrata ativista de um burocrata com atitudes
ocasionais de cunho reativo seria a intencionalidade de sua militância. De acordo com Ferreira
(2016, p. 63), “para que um servidor seja considerado um ativista institucional suas ações
devem ser dirigidas no sentido de promover projetos políticos ou sociais com natureza pública
ou coletiva, independentemente de ele ter ou não vínculos formais com movimentos sociais”.

A autora elabora um quadro conceitual elencando as práticas de ativismo institucional


encontradas na bibliografia e em sua pesquisa empírica, no caso com os servidores de carreira
do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. De acordo com o estudo, foram
encontrados 11 tipos de práticas, as quais poderiam ser mobilizadas por servidores
independentemente do nível hierárquico, do órgão e da política em que trabalham. Ainda de
acordo com a autora, as práticas e táticas variam de acordo com o contexto político-
institucional.

Apesar de os estudos supracitados terem sido elaborados com burocratas de médio e alto
escalão, os burocratas de rua (street level bureaucracy) também podem por em prática sua
discricionariedade no sentido de “promovorem projetos políticos ou sociais com natureza
pública ou coletiva” (FERREIRA, 2016, p. 63). A categoria de ativismo institucional, não deve
se restringir, portanto, ao meio e ao topo da pirâmide dos estratos da burocracia.

O trabalho de Lipsky (1980) é um marco para os estudos que ampliam o entendimento do


papel dos burocratas de nível de rua. Lipsky reconhece o papel dos burocratas enquanto
86

implementadores das políticas públicas, desenvolvendo o conceito de street-level bureaucracy.


Apesar de, no Brasil, haver uma quantidade limitada de trabalhos na área, é fundamental a tese
de Lotta (2010) sobre os agentes comunitários de saúde. A autora estuda como as ações são
colocadas em prática e quais são os fatores que influenciam na mudança de rumos e nos
resultados das políticas públicas, sendo, no caso estudado, o Programa Saúde da Família (PSF).

Nesse sentido, um interessante escopo de análise vem sendo desenvolvido quanto ao caso
da implementação das políticas públicas. Já faz parte das análises a incorporação do conceito
de discricionariedade38, com a busca pela compreensão da ação e da interação realizada pelos
implementadores com o objetivo de analisar a ação efetiva do Estado, uma vez que os
implementadores o representam e por ele respondem. São os implementadores que representam
a “porta de entrada” aos serviços do Estado por parte dos cidadãos.

Os burocratas de nível de rua são considerados de baixo escalão e representam a face mais
tangível da política pública para os cidadãos. São eles que estão em constante contato com os
usuários dos serviços, são eles que incorporam os procedimentos da política pública e os
traduzem aos usuários, exercendo discricionariedade e autonomia. Fazem parte deste estrato
professores, assistentes sociais, policiais, agentes comunitários de saúde (LOTTA, 2015) e
conselheiros tutelares, como defendemos, ainda que estes últimos tenham um tempo restrito de
mandato e sejam eleitos pela população local.

No caso dos conselheiros, são eles que representam a faceta mais palpável da política
pública da infância e da adolescência no contato direto com os cidadãos. Eles que realizam o
atendimento e acionam a rede de proteção de acordo com a demanda, podendo inclusive
representar contra o poder público se este não cumpre seu papel na primazia dos direitos
infanto-juvenis. Mesmo que individualmente um conselheiro tutelar não seja próximo de algum
movimento social, suas ações podem reverber na promoção de projetos políticos ou sociais com
natureza coletiva.

Nesse sentido, defendemos que os conselheiros tutelares são burocratas de nível de rua e
de que é possível analisa-los na perspectiva da burocracia ativista. Dado o caráter híbrido de
suas funções e a novidade histórica em termos de proteção social, logicamente o esforço teórico

38
Segundo Lotta (2015), é importante, contudo, distinguir os conceitos de discricionariedade de autonomia.
Enquanto a segunda refere-se a uma certa liberdade para tomar decisões, a primeira diz respeito à margem de
atuação que um burocrata tem para fazer escolhas sobre um curso de ação ou inação, fundamentada na lei.
87

para tal empreendimento torna-se mais complexo. Veremos como justamente essa capacidade
dos Conselhos em promoverem mudanças coletivas vem sendo apontada pela literatura
específica da área como insuficiente, na medida em que os Conselhos têm focado sua ação em
atendimentos individuais em detrimento de projetos políticos. Partiremos, agora, para o exame
da literatura específica sobre os Conselhos Tutelares.

2.4. REVISÃO DA LITERATURA ESPECÍFICA SOBRE OS CONSELHOS TUTELARES

A criação do Conselho Tutelar, definido como “[...] órgão permanente e autônomo, não
jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança
e do adolescente [...]” (ECA, 1990, art.131), suscita o interesse investigativo de estudiosos,
militantes, idealizadores e executores da política social da criança e do adolescente da sua
criação até os dias atuais.

Uma vez que o objetivo central de nossa pesquisa é concentrar a análise sobre como os
Conselhos Tutelares de Guarulhos se articulam para a construção de uma agenda de políticas
públicas da infância e da adolescência, apreendemos que a literatura sobre o tema é escassa.

De modo geral, essa lacuna pode ser explicada pelos poucos estudos sobre Conselhos
Tutelares na área de Ciências Sociais. Em levantamento sobre bibliografia semelhante39, até o
presente momento encontramos 100 trabalhos sobre o tema “Conselho Tutelar”, que se dividem
nas mais diversas áreas de estudos, com predominância da Saúde (43% dos estudos, seguida da
Psicologia40 (24% dos estudos) e do Direito (14%). Apenas 6% dos estudos são da Sociologia41,
5% da Educação um trabalho do Serviço Social. Também chama atenção o período em que a
maioria dos trabalhos foi desenvolvida: 73% deles foi elaborado e publicado no período de
1998 – 2006 e 27% deles na última década, ou seja, a partir de 2007. O último ano em que
houve trabalho publicado sobre Conselho Tutelar foi no ano de 2015.

39
Formamos um banco de dados para registrar os trabalhos encontrados e que permitiu chegar os dados sobre a
literatura.
40
Separamos Psicologia e Saúde. “Saúde” engloba as áreas da Medicina, Enfermagem e até mesmo Odontologia,
cujos trabalhos tendem a avaliar os maus-tratos físicos e a relação do Conselho Tutelar para intermediar e sanar
estes casos, já a Psicologia atua no sentido de tentar compreender as consequências psicológicas dos abusos e das
violações para crianças e adolescentes. A Psicologia também contém trabalhos que analisam exclusivamente a
dinâmica de trabalho do Conselho Tutelar.
41
Na área de Sociologia, estão englobadas as subáreas pertencentes às Ciências Sociais. No caso, três trabalhos
foram publicados pela mesma autora (Estela Scheinvar).
88

Os trabalhos tendem a concentrar a análise no tratamento de crianças e adolescentes


vítimas de maus-tratos na relação entre o Conselho Tutelar e a escola. Visam levantar,
descrever, identificar e analisar a criação, a implementação e a prática dos Conselhos, bem
como apreender as mediações postas entre estes e o Estado, a sociedade e o próprio público
infanto-juvenil. De forma geral, as análises dos trabalhos abarcam a atuação do Conselho
Tutelar em si e em suas interfaces com a violência; a democracia, os direitos e a cidadania; a
educação; a família.

Conforme ressaltado na introdução, apesar da existência de vários estudos sobre


Conselhos Tutelares, os focos são muitos e os autores são de diferentes áreas. Longe de ser uma
crítica, mas sinalizamos esse ponto justamente por encontrar certa dificuldade em achar
pesquisas dentro das Ciências Sociais sobre os Conselhos Tutelares.

Também notamos que os estudos sobre os conselhos gestores são muito mais vastos do
que no caso dos CTs. Também costumam ser assuntos de dissertações e teses, o que não se
aplica aos CTs, visto que poucos trabalhos advindos de mestrado e doutorado foram
encontrados.

Para nos apropriarmos dos conceitos relativos aos Conselhos, realizamos o levantamento
de estudos abrangentes às temáticas: Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e
Conselhos Tutelares, a partir de bancos de dados digitais disponibilizados por instituições de
ensino público e privadas 42 distribuídos em todo o país, em um recorte de tempo dos últimos
26 anos, período de vigência da Lei (8.069/90) que instituiu referidos órgãos43.

Como critérios de busca foram utilizados as palavras chaves: conselho (s) de direito (s),
conselho (s) de direito(s) da criança e adolescente, conselho (s) gestor (es), conselho (s) gestor

42
Scielo, Domínio Público, Instituto Polis e bibliotecas da Universidade de São Paulo (USP), Universidade
Estadual Paulista (UNESP), Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), Programa de Pós Graduação em Políticas
Públicas da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e Projeto Democracia Participativa (PRODEP), do
Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais. A busca também foi feita no Google
Acadêmico.
43
“Art. 88. São diretrizes da política de atendimento: (...) II – criação de conselhos municipais, estaduais e nacional
dos direitos da criança e do adolescente, órgaos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis,
assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federal,
estaduais e municipais (...) Art. 131. O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional,
encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta
Lei. ”
89

(es) de política (s) pública (s), política (s) pública(s) para criança (s) e adolescente (s),
participação popular, conselho (s) tutelar (es) e Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Para o alcance do objetivo geral da pesquisa, é importante diferenciar a literatura dos


conselhos gestores e a dos Conselhos Tutelares, uma vez que ambos atuam em diferentes
momentos do SGDCA, com composições e atribuições distintas.

De uma forma geral, as análises dos autores nos trabalhos levantados descrevem a
formação dos conselhos de direitos a partir de um contexto histórico de democratização da
gestão pública no país nas últimas décadas, contando com a participação fundamental da
sociedade civil. Lubambo e Coutinho (2004) sintetizam esse processo em dois níveis de
transformação: de um lado, o crescimento do controle social sobre as decisões públicas através
de meios de participação diretos e, de outro, o fortalecimento desses mecanismos mediante
criação de instâncias deliberativas compostas por gestores públicos, representantes da
sociedade civil e, por vezes, representantes dos próprios usuários do serviço.

Nesta perspectiva, os conselhos setoriais são uma das formas de constituição de sujeitos
democráticos com o propósito de atuar nas políticas públicas, sem anular ou substituir os
movimentos de pressão organizados. Enquanto no primeiro caso o princípio fundamental em
pauta é a consulta ou o envolvimento direto dos beneficiários na provisão de serviços, no
segundo, é a responsabilização dos gestores por decisões e ações implementadas (LUBAMBO
e COUTINHO, 2004, p. 63).

Tatagiba (2005) destaca que a “novidade histórica” nesse processo consiste na


“intensificação” e “institucionalização” do diálogo entre governo e sociedade dentro de espaços
públicos e participativos, com o intuito, dentre outros, de destinar de forma mais justa e eficiente
valores referentes aos recursos públicos.

De acordo com Dervanolski Junior (2009), os Conselhos surgem como espaços públicos
legítimos e essenciais para o exercício da participação social. O autor afirma que esses espaços
públicos são responsáveis por implementar e consolidar a democracia, nos quais as políticas
públicas são “compartilhadas”, efetivando, pois, a democracia participativa e descentralizando
o poder através da participação popular, prestigiando, assim, a promoção da cidadania.

No mesmo sentido, o Conselho Tutelar se revela como órgão de expressão nesse processo
de democratização, na medida em que funciona como “uma ferramenta e um instrumento de
trabalho nas mãos da comunidade, que fiscalizará e tomará providências para impedir a
ocorrência de situações de risco pessoal e social de crianças e adolescentes” (Liberatti, 2003,
90

p. 125). Ou, nas palavras de Sêda (1996, p. 98) o Conselho Tutelar é “uma equipe, formada por
cidadãos, instituída pelo município para zelar, caso a caso, pela garantia dos direitos
individuais das crianças e dos adolescentes e a exercer cobrança eficaz dos deveres
correspondentes”. Deve-se acrescentar à perspectiva de Sêda (1996) que o Conselho Tutelar
também zela pelos direitos coletivos de crianças e adolescentes, não trabalhando, apenas, no
“caso a caso”.

Liberatti (2003) e Sêda (1996) afirmam a posição da sociedade civil como garantidora de
direitos de crianças e adolescentes na participação popular, seja através dos Conselhos de
Direitos, seja por meio dos Conselhos Tutelares. O que vem se questionando é a forma como
se opera essa participação, já que os estudos levantados revelaram uma relação por vezes
conflitante entre esses representantes da sociedade civil e o governo, em razão do perfil do
conselheiro identificado ou das iniciativas e deliberações tomadas nesses espaços.

Assim, outro tema recorrente entre os estudos encontrados foi a questão dos conselhos de
direitos da criança e do adolescente enquanto órgãos de mecanismo de controle social, de
gestão, de implantação e de fiscalização das políticas públicas.

Os resultados descritos sugerem um descompasso entre ideia e prática dos membros


conselheiros, falta de informação e desconhecimento do governo e sociedade civil nas
atribuições, apresentando sérias dificuldades para efetivação desses órgãos.

Os estudos de Tatagiba (2005) apontam que ainda não constitui uma “tarefa” simples
avaliar a atuação “deliberativa” dos Conselhos Gestores por dois motivos: por se constituírem
como “experiências recentes” do país e pela dificuldade de se estabelecer critérios “seguros”
para tal análise.

Segundo a autora, as informações mais comuns reveladas na literatura que diz respeito
aos Conselhos indicam que estes não vêm cumprindo com a sua função deliberativa por motivos
variados que perpassam pela concentração da elaboração da pauta por parte dos representantes
da área governamental, “manutenção de padrões clientelistas” entre Estado e sociedade civil,
problemas nas representatividades e inexistência ou falta de efetividade dos fundos de direitos
da criança e do adolescente.

A “harmonia” e “pacificação” nos debates também se revelam pontos negativos na


atuação dos Conselhos, segundo Tatagiba (2005, p.211): “No momento da proposição dos
temas, os estudos confirmaram uma tendência indicada na bibliografia sobre os conselhos: o
91

debate e a negociação nos conselhos têm sido limitados pela imposição unilateral dos
interesses temáticos do Estado”.

Marchersi (2008) sinaliza como um dos problemas que dificultam a implementação do


controle da gestão da política via Conselhos o histórico no país no que se refere à condução da
política e destinação de recursos com “fins eleitoreiros”.

A maioria dos autores cita que enormes avanços emergiram com a criação dos conselhos
de direitos, entretanto percebem muitas lacunas a serem superadas, como cita Marchesi (2008,
p. 06):

Embora esses espaços tenham sido instalados desde 1991, por todo o território
brasileiro, sua ação ainda se mostra incipiente no controle das políticas sociais. O
desconhecimento acerca das atribuições do conselheiro se apresenta como um dos
maiores entraves a efetivação desses espaços, vale crer no forte papel da sociedade
civil organizada no processo de construção da democracia participativa (...). É
preciso também ampliar o debate sobre as atribuições da sociedade civil dentro de
espaços como os conselhos de direitos.

Nos estudos levantados, verificamos como destaque o trabalho de Fuks, Perissinotto e


Ribeiro (2003, p.127), que buscou traçar um perfil (socioeconômico, cultural e partidário) dos
conselheiros, membros de Conselhos Gestores do Paraná. Segundo os autores, foi identificado
um “perfil de elite” desses representantes:

Primeiramente, destacamos que apenas 33,3% dos conselheiros possuem renda


mensal inferior a dez salários mínimos, com 22,7% recebendo mais de vinte
salários e 17,3% mais de quarenta. Outro dado relevante é o que se refere à
escolaridade dos membros dessas organizações, pois, entre graduados e pós-
graduados, encontramos um percentual acumulado de 66,7%, além de não existir
nenhum analfabeto e apenas 5% terem somente o Ensino Fundamental.

Ao comentar esse estudo, além dessas características mencionadas, Tatagiba (2005)


chama a atenção ao dado que revela que em todos os conselhos analisados, um considerável
número de conselheiros, incluindo aqueles representantes da sociedade civil, trabalhavam no
serviço público.

Em estudo semelhante entre Conselhos Gestores de Maringá, Tonella (2004) também


identifica um perfil elitizado preponderante nesses grupos:

A partir dos dados apresentados, é possível apontar um perfil ‘típico’ dos


conselheiros em termos sociodemográficos. Eles são brancos, igualmente
divididos entre mulheres e homens, de religião católica, com alta escolaridade,
92

predominando aqueles com curso superior. Estão inseridos no mercado formal de


trabalho, concentrados no serviço público municipal e recebendo a partir de 5
salários. Percebe-se, dessa forma, que a extensa faixa da população mais pobre e
alvo preferencial dos programas tratados pelos conselhos não está representada
nesses órgãos (p.145).

No mesmo sentido, em pesquisa realizada junto ao Conselho Municipal dos Direitos da


Criança e do Adolescente (CMDCA) do município de Xaxim (Santa Catarina-SC), os dados
levantados por Dervanolski Junior (2009) revelaram que os membros desse conselho
distribuem-se em uma larga faixa etária, correspondente ao todo, entre 20 e 60 anos de idade,
havendo quanto ao sexo a predominância de mulheres, num percentual de 80% e sobre a
escolaridade, os dados confirmam a tendência apontada por Fuks; Perissinotto; Ribeiro (2003)
e Tonella (2004), ou seja, que a maioria dos conselheiros tem ensino superior completo e pós-
graduação.

O traço desse perfil também se reproduz nos estudos de Carvalho (2009) no que diz
respeito aos Conselhos Tutelares. Ao levantar informações acerca dos conselheiros Tutelares
do município de Goiânia, o autor verifica que esse órgão é composto por homens e mulheres,
em uma proporção de 50% para cada um, com a maioria (84%) na faixa etária entre 20 e 40
anos de idade e com curso superior completo (64%) (p. 116 - 118).

Considerando a média de escolarização brasileira encontrada entre a população com 25


anos de idade ou mais que, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de
2009 (PNAD/2009), é de 10,6% para aqueles que têm ensino superior completo e 33% para
aqueles com ensino médio completo, aliada às informações referentes à renda e atuação no
serviço público, o grupo de conselheiros analisado por Carvalho (2009) possui um perfil com
escolaridade superior à média nacional, o que faz o autor apontar a questão da alta escolaridade
como fator preocupante na atuação dos Conselhos (de direitos e tutelares), pois, segundo o
autor, indicam elitização na representação nesses espaços públicos, destoante da premissa de
espaços populares participativos, para o qual foram criados.

Considerando as informações sobre escolaridade revelada na Pesquisa “Conhecendo a


Realidade” de 2006, que constataram que a maioria dos conselheiros de direitos e conselheiros
tutelares tem ensino médio completo e, portanto, superior à média nacional; e as orientações
trazidas pela Resolução 139 do CONANDA, a perspectiva dos estudos citados apontam para
uma possível “elitização” dos Conselhos. Dessa forma, a questão que se coloca é até que ponto
isto se confirma ou se, por outro lado, existe o fortalecimento dessas institucionalidades a partir
93

da formação de seus conselheiros. De acordo com nosso ponto de vista, a crescente


escolarização dos conselheiros é avaliada como positiva, até porque, ao avalia-la isoladamente,
não é possível apreender o fenômeno da elitização. O problema é as legislações municipais
criarem formas de restringir a ampla participação da sociedade nas instâncias participativas. O
esforço deve ser para incentivar a formação pessoal dos conselheiros e investir na capacitação
coletiva dos mesmos.

No que diz respeito aos Conselhos Tutelares, em uma parte dos trabalhos, destaca-se que
estes representam uma face do processo de consolidação da democracia participativa e da
efetivação da cidadania, na medida em que membros da comunidade podem participar
qualitativamente e conseguir desenvolver ações tanto no tocante à elaboração de políticas
públicas para crianças e adolescentes quanto na execução, monitoramento e avaliação da
política infanto-juvenil. Esta perspectiva ressalta a possibilidade do CT se tornar um mediador
entre o direito garantido em lei e o exercício concreto de direitos. Como exemplo, para a autora
Renata Custódio Azevedo,

[...] a criação do CT no Brasil como espaço público de participação da sociedade


civil denota uma marcada intencionalidade de construir um processo de busca
democrática e democratizante de intervenção na realidade de “não cidadania” de
crianças e adolescentes. Nesse contexto, ele demarca sua “funcionalidade” social
e política por se situar num campo entre o Estado e a sociedade, tendo a capacidade
de tensionar o poder público, a sociedade, as comunidades e os indivíduos pela
garantia dos direitos previstos no ECA. O CT pode influenciar nos rumos políticos
da cidadania, pois possui como atribuição assessorar o poder público, fiscalizar e,
se for o caso, denunciar entidades e pessoas em se tratando de ameaça ou violação
de direitos de C/A (AZEVEDO, 2007, p. 05).

Outra parcela dos trabalhos demonstra que, apesar de o ECA ter obedecido a
descentralização administrativa e política prevista na Constituição Federal, a virtude do
desenho institucional não se transfere à prática efetiva sem mediações. Essa parcela de trabalhos
indica, portanto, a dificuldade que as experiências encontram para efetivar o controle social.
Dessa maneira, o Conselho Tutelar pode ser

[...] um espaço fértil de cidadania ativa à medida que nele se processam saberes e
práticas sociais que podem contribuir para construção de uma cultura de direitos e
a prática de sua exigibilidade, pode paradoxalmente reproduzir a cultura do
94

burocratismo, do legalismo e do aparelhamento que [...] legitimam a democracia


formal capitalista e a aparência da universalidade dos direitos sociais [...]. Os
Conselhos se figuram então como um [...] importante instrumento de exercício da
cidadania e das novas e dificílimas aprendizagens democráticas para o controle
social do Estado [...]. (BANDEIRA, 2006, p. 178)

Ainda para Bandeira (2006), um dos maiores desafios para o Conselho Tutelar é se
desvincular da dependência administrativa, política e financeira com o poder público e de se
estabelecer como espaço que visa fortalecer a democracia participativa e o Estado de direito.

Há uma abordagem também que coloca que uma contradição em haver um projeto
aparentemente democrático em uma sociedade capitalista. A raiz do problema seria, portanto,
a subsunção do trabalho pelo capital, o que não dá espaço para que os Conselhos ou qualquer
outro espaço dessa natureza alterem a realidade de exploração, de violência e de pobreza da
população brasileira. Silva (2009) entende que os Conselhos Tutelares são frutos do projeto da
democracia liberal-burguesa e servem ao mesmo:

[...] a mera participação de representantes da classe trabalhadora nos mecanismos


jurídico políticos, a exemplo dos Conselhos Tutelares, não rompe com a estrutura
social que historicamente se construiu, e tampouco com as estruturas político-
partidárias de cariz autoritário e tradicional. Pelo contrário, entendemos que o
atual processo participativo, dinamizado no âmbito da democracia burguesa
vigente na sociedade brasileira, vem reforçando a ideologia da classe dominante
[...] a democracia no sistema capitalista se constitui num mecanismo de dimensão
meramente formal, uma vez que não implica a libertação da classe trabalhadora
das amarras do capital. Muito pelo contrário [...], a democracia proporciona uma
liberdade limitada, tendo em vista o fato de que os direitos apregoados nas
legislações burguesas de base democrática não erradicam de fato as desigualdades
sociais, nem suprimem a exploração existente na relação capital/trabalho. (SILVA,
2009, p. 13)

Mais ainda,

[...] este instrumento jurídico-político instalado no país, encontra sérios limites


para sair da esfera eminentemente normativa e transitar para o campo da
implementação efetiva de políticas sociais públicas governamentais. [...] os
Conselhos Tutelares, no atual estágio da democracia contemporânea, representam
tão somente uma inovação da democracia participativa, em virtude de apenas
efetivarem ações pontuais, clientelistas, repressivas e assistencialistas, que
95

inegavelmente garantem alguns direitos, mas de fato contribuem para que a raiz
da “questão social” continue intocada, sendo tratada pela via administrativa,
escamoteando assim a verdadeira causa que aflige crianças e adolescentes
oriundas da classe trabalhadora, as quais são vítimas de um processo desigual
originado no âmbito da contradição capital/trabalho. (SILVA, 2009, p. 14)

Essa abordagem, portanto, considera que a dualidade não está posta no projeto do
Conselho Tutelar e na prática cotidiana: ela está posta em um projeto democrático existente em
uma sociedade capitalista. Apesar de concordamos que apenas o trabalho do Conselho Tutelar,
de modo algum, extinguirá os problemas sociais que atingem crianças e adolescentes,
defendemos que é necessário olhar para as possibilidades atuais e pensar como aperfeiçoá-las.
Malgrado o fato de o Brasil viver há pouco tempo em um regime democrático, falar de
“direitos” no país soa como se falássemos de “privilégios”. Nesse sentido, o trabalho dos
Conselhos Tutelares não é tarefa fácil, motivo que demanda análises exaustivas acerca de suas
possibilidades e contribuições.

Examinando as funções específicas dos Conselhos Tutelares, além das atribuições que
são conferidas ao CT pelo artigo 136 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
destacamos dos estudos de Carvalho (2009, p. 86-87) outro papel fundamental, e por que não
dizer, desafiador, no desempenho de suas funções: o de articulador das políticas públicas locais,
contribuindo para a superação de práticas políticas fragmentadas, que se confundem com
práticas governistas, função que contribui na construção de novas práticas e concepções de
gestão seja no campo social, cultural ou da própria política:

Trata-se de uma nova forma de processar as demandas por necessidades


sociais básicas, mediante uma discussão pública dos problemas e da inclusão de
novos atores no campo social e nos processos de interlocução e negociação. Esta
ação estratégica ampliada pressupõe conhecimento das estruturas de poder em que
os conselhos estão inseridos, considerando que os CTs lidam com questões
cruciais dos cidadãos, em especial de famílias situadas em setores empobrecidos
do ponto de vista socioeconômico e cultural (CARVALHO, 2009, p. 86-
87).

Esse aspecto de articulador de políticas públicas locais é trabalhado por Lafer (2010)
como a “ambiguidade” do Conselho Tutelar. A ambiguidade do papel do CT, tal como é
descrita pela autora, está diretamente ligada ao conjunto das atribuições legais desses órgãos.
De um lado, eles devem fazer o atendimento dos casos individuais de violações de direito,
96

identificando necessidades e encaminhando os casos para os serviços especializados, sem se


constituir, porém como um serviço técnico de atendimento (artigo 136 do ECA, incisos I a VII
e inciso XI). De outro, devem ter um papel de assessoramento do Executivo na elaboração da
proposta orçamentária da área, atuando em um plano coletivo (artigo 136 do ECA incisos IX e
X). É dessa ambiguidade que decorre a variação da ênfase, que pode recair ou no campo
“técnico” de atuação, ou no “político”, e que constitui, portanto, um primeiro indicador do
desenho institucional. Há, de acordo com a leitura de Lafer (2010) sobre a literatura, uma
espécie de tensão entre a ênfase no aspecto técnico do CT (saber tecnicamente fazer os
atendimentos de crianças, adolescentes e suas famílias) ou a ênfase no seu aspecto político, isto
é, no seu caráter de órgão representativo da comunidade. Ou seja, trata-se de discutir quais têm
sido a interpretação e a ação dominantes dos CTs, e mesmo de apreender os efeitos desta
ambiguidade em seu funcionamento.

Lafer (2010) chega a comentar que os CTs parecem terem sido arquitetados para cumprir
uma dupla tarefa – uma ação “no varejo” (atendimento e encaminhamento) -, e o papel “no
atacado” (de pressionar para que os agentes, as estruturas e as políticas públicas propiciem, no
plano coletivo, a garantia dos direitos de crianças e adolescentes e não ocasionem violações).

Já Andrade (2000) trata da dicotomia entre as atribuições idealizadas para o CT de modo


a coloca-las em dois polos ideológicos distintos por defender que, na concepção de “esquerda”,
estaria a ideia da participação da sociedade civil com cidadãos escolhidos pela comunidade
local, bem como por sua atribuição de assessorar o Poder Executivo na elaboração da proposta
orçamentária da área, já na concepção de “direita”, residiria a atribuição de exercer controle
sobre as famílias, fazendo com que os cidadãos observem as leis e as normas.

Lafer (2010), todavia, não chega a explicitar o que seria de fato uma ação “técnica” e uma
ação “política” do Conselho. Ainda que a autora elenque os atendimentos individuais e
cotidianos como “técnicos” e a articulação para políticas públicas como “políticos”, a separação
de tipos de demandas representa mais uma caracterização abstrata e que eclipsa o cotidiano de
trabalho nos Conselhos. Por exemplo, quando um conselheiro/Conselho atende uma família
que requisita vaga em creche e encaminha esta demanda para o Poder Judiciário conseguindo
a vaga para a criança, esta ação foi técnica ou foi política? Concordamos, de fato, que os
Conselhos têm muitas atribuições, mas é necessário examinar com elas se desdobram a fundo.

Por mais que a literatura sobre o significado da articulação no caso dos Conselhos
Tutelares aponta que esta se refere ao diálogo com a rede municipal para a elaboração de
políticas públicas e participação no orçamento, falta, nos trabalhos acima mencionados, olhar
97

para os Conselhos de forma a captar o cálculo de sobrevivência política operado pelos


conselheiros tutelares. Nesse sentido, não basta dizer que os Conselhos estão se articulando
pouco politicamente, e sim apontar os motivos para tal acontecimento. Como devem se dedicar
exclusivamente ao Conselho Tutelar, os conselheiros estão interpretando seu cargo como uma
profissão e, nesse sentido, o cálculo de sobrevivência econômica fala mais alto que a
sobrevivência política? Por interpretarem o cargo como profissão, os conselheiros estão
preferindo ganhar mais popularidade entre a comunidade para garantir a recondução do
mandato e criando poucos resíduos com o poder público? Ou, no sentido contrário, se os
Conselhos estão se articulando muito politicamente, quais os motivos? Os conselheiros
estariam interpretando o cargo de conselheiro como trampolim político para a vereança ou
cargos de confiança e, nesse sentido, estão se articulando mais com o poder público em
detrimento do atendimento às famílias? Há conselheiros que equilibram as duas esferas levando
em consideração a sobrevivência tanto política quanto econômica? Por mais que as perguntas
sejam várias e muitas até mesmo não possam ser respondidas, nossa pesquisa perpassará por
essas questões ao trabalhar com os conselheiros tutelares como nível de análise, com base no
estudo de caso dos CTs do município de Guarulhos, tendo em mente que há espectros que ainda
faltam ser abordados.

Em relação à qual deveria ser a ênfase do trabalho dos Conselhos Tutelares, os autores
que escreveram sobre o tema da ambiguidade dos CTs apresentam diferentes perspectivas.
Kaminski (2005) ressalta que o ideal participativo se encontra na gênese dos Conselhos
Tutelares, motivo pelo qual os Conselhos devem firmar-se como um instrumento de
exigibilidade dos direitos e que deveriam, de maneira prioritária, buscar garantir as ações
preventivas de caráter coletivo. Já Garrido (2005) entende que as atribuições relativas às
reivindicações de direitos e atuação para exigência de políticas públicas são do âmbito do
CMDCA, e não do CT. Dessa forma, defende o autor que o CT deveria concentrar suas ações
no atendimento individual, para que não deixassem de fazer nem uma, nem outra. As questões
coletivas, para o autor, deveriam ser repassadas pelos CTs, que captam os principais anseios da
comunidade, aos CMDCAs.

Para Ferreira (2002), com quem concordamos, é justamente a pluralidade de atribuições


do CT que permite afirmar que o controle e promoção da política de atenção à infância passou
das mãos do Poder Judiciário para a sociedade civil, representada no modelo do CT. Nesse
sentido, o CT se torna um agente político e social, na medida em que exige o provimento de
98

políticas e serviços públicos e interage com a comunidade local, para a qual deve prestar contas
do seu trabalho.

Voltando a atenção para os trabalhos teóricos que captaram a atuação prática dos
Conselhos Tutelares, os estudos indicam que estes têm dado a primazia às ações relativas aos
casos particulares, em detrimento do apoio ao poder Executivo e ao CMDCA na formulação de
políticas públicas.

O importante estudo de Nascimento e Scheinvar (2007) aponta a predominância na


atuação de casos de forma a adequar comportamentos. Assim, os CTs estão voltando mais sua
atenção para ações relativas à falta, omissão ou abuso dos pais.

As autoras também indicam que os CTs têm atuado de maneira distante dos movimentos
sociais e incorporado práticas e discursos típicos do Poder Judiciário. O resultado, assim, é a
geração de práticas que tendem a trazer para o âmbito privado problemas que têm origem em
questões públicas. O estudo das autoras está de acordo com os dados trazidos pela pesquisa
Conhecendo a Realidade – Edição 2006, que revelou que os conselheiros tutelares apontavam
uma maior facilidade para encaminhar ao Poder Judiciário os casos de sua competência.

Como o CT se caracteriza como um colegiado, é importante para garantir que as decisões


sejam tomadas de maneira democrática e consensual pela gestão do Conselho, podendo haver,
inclusive, sanções para quem descumpre esta característica do Conselho Tutelar. Contudo,
ainda de acordo com o estudo de Nascimento e Scheinvar (2007), a maioria dos CTs estudados
adota uma estrutura hierárquica de funcionamento, deixando de lado a questão colegiada. Isso
resulta no agir individual do conselheiro, o que implica que sua decisão estará de acordo
unicamente com sua visão sobre o caso e sobre seus valores, que antecedem a prática
conselhista.

Os CTs estariam trabalhando em regime de urgência para solucionar as práticas do dia a


dia, sem tempo para as “grandes questões”, ou seja, as práticas reivindicatórias. “Não dispondo
de políticas públicas...estas práticas se restringem ao espaço da competência técnica ou do
olhar caritativo” (Nascimento e Scheinvar, 2007, p.159).

Existem algumas explicações por parte da literatura para o predomínio da ação dos
Conselhos Tutelares no plano da vida privada das famílias, e não no plano coletivo. Dentre elas,
destacam-se a distância em relação aos movimentos sociais e ao grande volume de demandas
em geral relativas à família.
99

Um dos pontos elencados por Lafer (2010) em sua pesquisa é a falta de legitimidade que
os CTs encontram para fazerem valer suas decisões. Questiona a autora (Lafer, 2010, p. 37):

Dadas essas condições de funcionamento, infra-estrutura e remuneração, assim


como a escolha não centrada em critérios técnicos, a relação distante com
movimentos sociais e o fato de os CTs não terem poder próprio de sanção em caso
de não cumprimento de suas determinações, pergunta-se: que legitimidade os CTs
podem obter?

A partir do trecho acima, vemos que, para a autora, a escolha dos conselheiros não
centrada em critérios técnicos é um dos fatores que prejudicam a legitimidade dos CTs.

Lafer (2010) parece concordar com Alberton (2005)44 no tocante à exigência de


experiência prévia para ser conselheiro tutelar. Para Alberton (2005), a experiência prévia na
área deveria ser um pré-requisito nacional: os conselheiros deveriam estar capacitados
previamente, dominando os princípios, leis e convenções da área dos direitos humanos da
infância, com experiência no trato com esse público. Ainda para a autora, a aprendizagem do
ofício em serviço seria prejudicial e se faria às custas da vulnerabilidade e da fragilidade das
crianças e adolescentes atendidos. A autora reforça a resolução 75/2001 do CONANDA, que
faz exigência da experiência prévia.

Exigir experiência prévia dos conselheiros tutelares para, assim, ganhar maior
legitimidade perante os demais atores é desconsiderar o tratamento histórico aos direitos
infanto-juvenis no Brasil. Conforme já apresentamos, por mais que a legislação atual represente
um avanço histórico, ainda é predominante a visão “menorista” acerca das crianças e dos
adolescentes, que encontra explicações nos extintos Códigos de Menores. Nesse sentido, as
questões relativas a este público, no Brasil, por mais que não sejam mais secundárias (pelo
menos oficialmente), são repletas de visões estigmatizantes, o que contribui para a falta de
legitimidade do Conselho Tutelar frente à sociedade, e, principalmente, ao poder público.
Assim, são necessárias pessoas mais combativas e que atuem para defender os direitos infanto-
juvenis, fator que não depende diretamente da experiência prévia, e sim de aspectos relacionais
dos conselheiros.

44
ALBERTON, Mariza Silveira. Os Conselhos Tutelares no enfrentamento da violência contra crianças e
adolescentes. In: Cedeca/Bertholdo/Proame. Conselhos Tutelares no Rio Grande do Sul: condições de
atendimento. Porto Alegre, s.n., 2005.
100

Nesse sentido, concordamos com a perspectiva de Tatagiba (2005), ao tratar dos


conselhos gestores. É muito importante que os conselheiros estejam muito bem preparados para
lidar com as várias demandas que recebem diariamente, contudo, prezar pela capacitação dos
agentes é diferente do poder público exigir como pré-requisito o conhecimento/experiência em
infância e adolescência, critério que pode restringir o acesso de boa parte da população ao
Conselho.

Também identificamos poucos estudos que analisam as possíveis distinções de classe ou


estigmatização de crianças e adolescentes produzidas pelos conselheiros, argumento frequente
de movimentos sociais em relação ao Conselho Tutelar. Conforme abordamos acima, os
estudos sobre o tema “Conselho Tutelar” são vastos e diversos. A partir da análise da literatura,
foi possível identificar vários trabalhos sobre a relação entre o Conselho Tutelar e a escola e
sobre o tratamento de crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos. A maioria dos estudos é
realizada por profissionais da área de Psicologia e de Saúde Pública, gerando, assim, poucos
trabalhos que analisem as possíveis distinções de classe ou estigmatização de crianças e
adolescentes produzidas pelos próprios conselheiros.

O estudo de Flávia Lemos45 é um dos poucos que faz referência à moralização das camadas
populares exercida pelo CTs. Para a autora, o CT é “uma tecnologia de sujeição dos corpos,
típica da sociedade disciplinar e de controle. Um dispositivo de proteção, mas também de
vigilância” (LEMOS, 2004, p. 89). Dessa forma, o poder do CT quanto à vigilância das famílias
para que cumpram as leis e as normas o torna “um dispositivo de governo e tutela de franjas da
população consideradas fragilizadas e sob ameaça” (LEMOS, 2004, p. 89).

Sendo apenas um dos poucos trabalhos que aborda o tema “distinção”, o artigo
“Peculiaridades entre conselho tutelar e crianças encaminhadas pela escola”46, de Priscila
Valverde Fernandes e Elizabeth Maria Andrade Aragão, demonstrou que é procedimento
frequente que o Conselho Tutelar do município de Cariacica (CE) classifique muitos pais como

45
LEMOS, Flávia Cristina Silveira. Conselhos Tutelares: proteção e controle. Revista do Departamento de
Psicologia – UFF, Niterói, 16 (2), p. 85-100, 2004.
46
FERNANDES, Priscila Valverde; ARAGAO, Elizabeth Maria Andrade. Peculiaridades entre conselho tutelar e
crianças encaminhadas pela escola. Fractal, Rev. Psicol., Rio de Janeiro , v. 23, n. 1, p. 219-232, Abr. 2011 .
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-
02922011000100015&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 02 de agosto de 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S1984-
02922011000100015
101

“negligentes” em relação ao acompanhamento da vida escolar. Esse tipo de postura dos pais
acaba transformando-se em caso de Conselho Tutelar, pois na maioria das vezes, eles não
comparecem à escola quando são convocados.

Nascimento e Scheinvar (2007), trabalhando a questão da jurisdicionalização das práticas


do Conselho Tutelar, afirmam que os conselheiros, comumente, têm definido as condutas
familiares, utilizando-se, para isso, de práticas jurídicas. No Brasil, o atendimento às crianças
e aos jovens vem sendo tradicionalmente realizado por entidades de assistência ou pelo
judiciário, sendo que a justiça sentencia e os equipamentos sociais executam as políticas de
assistência. Entretanto, afirmam as autoras, “...tem sido feitos julgamentos sobre as pessoas e
sobre suas vidas e não das condições sociais em que vivem. ” (Fernandes e Aragão, 2011, p.
03).

É importante destacar que o Conselho Tutelar não julga, quem o faz é o Poder Judiciário.
O Conselho Tutelar tem em suas atribuições a realização de inquéritos sociais e a realização de
encaminhamentos, observando não apenas leis, mas também normas que são negociadas no
cotidiano. Partindo dessa forma de atuação, entendemos que é possível a reivindicação política,
também pautada em leis, mas que não emitam sentenças e nem apontem medidas particulares.

Para as conselheiras entrevistadas pelas autoras, a rebeldia apresentada pelos alunos é


entendida como consequência de uma má educação recebida, fruto da saída das mães de dentro
dos lares para o mundo do trabalho.

Badinter (1980)47 mostra que a imagem da "mãe ideal" foi uma construção histórico-
social. Essa sacralização da figura da mãe surge como uma forma de reprimir o poder e a
autonomia da mulher por meio de um discurso que a culpará e a ameaçará, caso não cumpra o
seu dever materno dito natural e espontâneo. Esse pensamento foi consolidado como discurso
científico pela psicanálise, que colocou a mãe como responsável por toda e qualquer
perturbação psíquica que a criança viesse a apresentar.

A socióloga francesa Sandrine Garcia48 também tem se dedicado a estudar essa pressão
social em torno da maternidade. A autora questiona por que, após décadas de igualdade de

47
BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. São Paulo: Círculo do Livro, 1980.
48
GARCIA, S. Mères sous influence. De la cause des femmes à la cause des enfants. La Découverte, "Textes à
l'appui/genre & sexualité", 380 p.
102

direitos entre homens e mulheres, a desigualdade ainda continua latente e prejudicial ao gênero
feminino? Para ela, a desigualdade encontra sua fonte nas condições em que as mulheres se
veem como sujeitos destinados a cumprir as regras da maternidade. No livro “Mères sous
influence”, ela procura demonstrar a existência de “empresários morais”, sujeitos especialistas
em desenvolver os padrões de berçário e de educação.

Assim, o caso dos Conselhos Tutelares no Brasil não parece fugir de um ideal de educação
dos filhos possível apenas pelos estratos mais altos da população brasileira, distinguindo e
estigmatizando as possibilidades de educação operada pelas classes populares. Essa proposta,
como vimos, não está de acordo com o ideal do próprio Conselho Tutelar, cujo papel principal
é atuar como um órgão comunitário em prol dos direitos da criança e do adolescente,
desconcentrando as decisões do Poder Judiciário e promovendo a mobilização das comunidades
onde estão inseridos.

Novamente, é necessário ressaltar aqui que o número de estudos que tratam do assunto
de forma direta ou indireta ainda é muito escasso, demandando maior atenção sobre esse
“desvio” do papel do Conselho Tutelar e do punitivismo que este exerce sobre as classes
populares.

Nesta síntese, procuramos evidenciar que a literatura sobre os Conselhos Tutelares,


menos vasta do que aquela sobre os conselhos gestores, tem produzido bons diagnósticos do
perfil dos conselheiros e das condições de funcionamento dos CTs. Embora inegável a
importância e inovações trazidas com esses órgãos, muitos ainda são os seus desafios a serem
enfrentados. Desta forma, faz-se necessária a realização de uma pesquisa que evidencie a
projeção dos Conselhos nas políticas públicas, carência esta em que a dissertação buscou atuar.
É importante ressaltar também que não foi encontrado um trabalho com uma proposta como a
nossa, motivo pelo qual buscou-se aqui preencher uma lacuna acerca da análise sobre a
influência dos Conselhos Tutelares no campo das políticas públicas, com os procedimentos
metodológicos adequados para tal esforço.

Também sustentamos como objetivo a análise dos diagnósticos mais atuais que temos
sobre a atuação do Conselho Tutelar. Se a primeira parte do capítulo 2 nos forneceu a base
103

teórica para analisar a articulação política dos CTs, a próxima parte busca refletir sobre a
trajetória da efetivação dos princípios do ECA nesses 27 anos.

2.5. 27 ANOS DE ECA E DE CONSELHOS: DIAGNÓSTICOS

Como vimos, o ECA estabelece que, em cada município e em cada região administrativa
do Distrito Federal, haverá, no mínimo, um Conselho Tutelar, como órgão integrante da
administração pública local. Os Conselhos Tutelares devem ser mantidos pelo poder público
municipal e a previsão de recursos necessários ao funcionamento deverá constar da lei
orçamentária municipal. Esta obrigatoriedade de um Conselho Tutelar para cada município é
de extrema importância para assegurar a proteção aos direitos a nível local. Apesar de o ECA
ter sido promulgado há quase 27 anos e, de, portanto, tal obrigatoriedade existir por quase
também três décadas, segundo os dados da Pesquisa de Informações Básicas do IBGE (Munic)
de 2014, ainda há 28 municípios brasileiros sem a presença de Conselho Tutelar. É importante
salientar que, no caso dos municípios que não têm Conselho Tutelar, não há punição prevista
em documentos normativos ou, ainda, algum tipo de sanção relacionada ao repasse de verbas.

A falta de regulação e de uma política mais centralizada no trato dos direitos infanto-
juvenis abre espaços para diversas atuações que infringem o Estatuto da Criança e do
Adolescente. Por mais que existam o ECA e as posteriores recomendações do Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), estas abrem espaços para
atuações municipais distintas umas das outras, sem uma política clara e incisiva de controle
sobre os casos que contrariam os textos oficiais. Dessa forma, defendemos uma maior regulação
e protagonismo do CONANDA nesse sentido.

Tabela 2 – Municípios, total e com Conselho Tutelar, por quantidade de habitantes - 2014
M unicípios

Com Conselho Tutelar, por algumas características


Grandes Regiões
e Vinculado administrativamente ao órgão gestor da
classes de tamanho da Total
população dos municípios Tabela 171 - Municípios, total e com Conselho Tutelar, por algumas Gabinete ou
características
Não é
do conselho,
Total (1)
segundo as GrandesAssistência
Regiões eJustiça Direitosde tamanho
as classes Crianças e da população dos municípios
chefia do Outro 104
vinculado a - 2014
social humanos adolescentes
Executivo nenhum órgão

M unicípio s
B rasil 5 570 5 542 4 535 20 14 159 609 78 126
Até 5 000 Grandes Regiõ es
1243 1236 956 6 1 Co m Co 45nselho Tutelar,
167 po r algumas
22 características
39
De 5 001a 10 000 e 1216 1209 975 6 2 50 Vinculado 121 14
administrativamente 41 gesto r da
ao ó rgão
De 10 001a classes
20 000 de tamanho da 1383 To tal1373 1178 3 - 33 121 18 20
po pulação do s município s To tal Gabinete o u
De 20 001a 50 000 1080 1077 890(1) 4
A ssistência 4 20 122s
Direito 15
Crianças e 21
Justiça chefia do Out
De 50 001a 100 000 348 348 287 so
1 cial - 4 humano 49 s ado lescentes
4 3
Executivo
De 100 001a 500 000 261 260 221 - 4 5 24 4 2
MBaisrades il
500 000 39 5 5 39
70 28
5 542 - 4 535 3 2 02 5 14 1 15 9 - 609
A té 5 000 1243 1236 956 6 1 45 167
NDe
o rte 5 001a 10 000 450 447
1216 397 1209 1 975 1 46 36 2 6 50 2 121
Até
De 5 1000
0 001a 20 000 78 78
1383 73 1373 - 1178 - 3- 4 - 1 33 - 121
De 5 20
De 001001
a 10a00050 000 81 1080
81 74 1077 - 890 - 4- 7 4 - 20 - 122
De 50 001a 100 000 348 348 287 1 - 4 49
De 10 001a 20 000 109 107 99 - - - 5 2 1
De 100 001a 500 000 261 260 221 - 4 5 24
De 20 001a 50 000
M ais de 500 000
112 111
39
89 39 1 28
- 3- 16 3
2 2
- 5
De 50 001a 100 000 44 44 38 - - 1 4 - 1
N o rt e 450 447 397 1 1 4 36
De 100 001a 500 000 24 24 22 - 1 - - 1 -
A té 5 000 78 78 73 - - - 4
MDe
ais de 5500001
000a 10 000 2 281 2 81 - 74 - -- - - - - - 7
De 10 001a 20 000 109 107 99 - - - 5
N o rdeste 1 794 1 784 1 565 5 3 23 156 9 22
De 20 001a 50 000 112 111 89 1 - 3 16
Até
De 5 50000001a 100 000 232 231
44 201 44 2 -38 -- 24 - 1 1 3 4
De
De 5100001001
a 10a000
500 000 357 35424 313 24 2 122 5- 27 1 1 - 5 -
M ais
De dea500
10 001 000
20 000 577 572 2 517 2 - - 2 7- 40 - 3 - 5 -
De
N o20rde001sat e50 000 445 1 7444
94 3761 7 8 4 1 1 565 - 58 46 3 3 23 9 15 6
De
A té50 001 a 100 000
5 000 122 122
232 102 231 - 201 - 22 17 - 1 - - 24
De100 001
De 5 001
a 500a00010 000 50 357
50 47 354 - 313 - 21 2 1 - 5 - 27
MDe
ais de10500
001a 20 000
000 11 577
11 9 572 - 517
2 -
- - - - 7
- 40
De 20 001a 50 000 445 444 376 1 - 8 46
De 50 001a 100 000
Sudeste 1 668 122
1 660 1 262 122 8 102 6 94- 223 - 10 2 57 17
De 100 001a 500 000 50 50 47 - - 1 2
Até 5 000 376 372 262 3 - 30 60 1 16
M ais de 500 000 11 11 9 - 2 - -
De 5 001a 10 000 389 389 287 2 - 33 46 2 19
S ude s t e 1 668 1 660 1 262 8 6 94 223
De 10 001a 20 000 365 362 291 2 - 19 39 1 10
A té 5 000 376 372 262 3 - 30 60
De
De 20 001a 50a000
5 001 10 000 289 288
389 227 389 1 287 3 27 39 - 2 33 9 46
De
De 501001a 100a 000
0 001 20 000 107 107
365 83 362 - 291 - 21 21 - 1 19 1 39
De100 20
De 001001
a 500a00050 000 125 289
125 100 288 - 227 - 31 16 3 2 7 2 39

MDe
ais de50
500001
000a 100 000 17 11707 12 107 - 83 2 -1 2 - 1 1 - 21
De 100 001a 500 000 125 125 100 - - 3 16
Sul
M ais de 500 000 1 191 1 18617 928 17 3 12 3 30- 140 2 46 1 36 2
Até
S ul5 000 419 1 418
19 1 3081 18 6 1 928 1 14
3 58 3 19 30 17 14 0
De
A té 5 001a 10 000
5 000 279 276
419 209 418 1 308 - 81 36 1 9 14 13 58
De 10 001
De 5 001
a 20a00010 000 230 279
230 187 276 1 209 - 61 23 - 9 8 4 36
De 10 001a 20 000 230 230 187 1 - 6 23
De 20 001a 50 000 157 157 134 - 1 1 13 6 2
De 20 001a 50 000 157 157 134 - 1 1 13
De 50 001a 100 000 54 54 48 - - - 4 2 -
De 50 001a 100 000 54 54 48 - - - 4
De
De100100
001001
a 500a000
500 000 48 4748 39 47 - 39 1 -1 5 1 1 1 - 5
MMaisais
de de
500500
000 000 4 44 3 4 - 3 - - 1 - - - - 1

CCentro
e nt ro -Oeste
-Oeste 467 467
465 383 4 6 5 3 383 1 38 54 1 7 8 9 54
A té 5 000 138 137 112 - - 1 21
Até 5 000 138 137 112 - - 1 21 - 3
De 5 001a 10 000 110 109 92 1 1 4 5
De 5 001a 10 000
De 10 001a 20 000
110 109
102
92 102 1 84
1 4- 5 -
2 1
4 14
De
De 10 20
001a001
20a00050 000 102 10277 84 77 - 64 - 1
1 14 - 3 1 - 8
De
De 2050
001001
a 50a000
100 000 77 7721 64 21 1 16 - 1 8 - 2 - 1 3
De 50100
De 001001
a 100a000
500 000 21 2114 16 14 1 13 - -- 3 - - - 1 1
M ais de 500 000 5 5 2 - - 1 2
De 100 001a 500 000 14 14 13 - - - 1 - -
MFo
aisnte:
de 500 000 5 5 2 - - 1 2 -
IB GE, Direto ria de P esquisas, Co o rdenação de P o pulação e Indicado res So ciais, P esquisa de Info rmaçõ es B ásicas M unicipais 2014.
-
(1) Inclusive o s sem declaração de quantidade.
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa de Informações Básicas M unicipais 2014.
(1) Inclusive os sem declaração de quantidade.

Apesar de percentualmente o número não parecer representativo (menos de 1%), é


questionável o longo processo de reconhecimento dos direitos infanto-juvenis e a demora em
implementá-los. Ademais, se observarmos a tabela acima, notaremos que a ausência de
Conselho não se faz apenas em pequenos municípios (com até 5.000 habitantes), mas chega a
105

existir em municípios maiores (de 100.001 a 500.000 habitantes). Reforçamos aqui a


necessidade de estudos de âmbito nacional sobre os Conselhos Tutelares e de Direitos, inclusive
de âmbito exploratório, pois nos daria chance de ter informações mais precisas sobre esses
municípios, além de ajudar a sociedade civil a pressionar os poderes públicos para criação dos
Conselhos Tutelares onde não existem. 49

Na tabela 3, a seguir, nota-se que o déficit de CTs é uma realidade de todas as regiões
brasileiras. A diferença é que, de região para região, há mais ou menos estados que ainda não
criaram nenhum Conselho Tutelar. Na região Norte, municípios do Amazonas e do Pará ainda
não tinha implantado Conselhos Tutelares até a pesquisa do IBGE em 2014. Na região
Nordeste, apenas o estado do Maranhão apresentava tal quadro, e com o preocupante número
de dez municípios sem CTs. No Sudeste, tanto Minas Gerais quanto Espírito Santo e São Paulo
ainda não haviam universalizado o número de Conselhos, no Centro-Oeste, apenas o estado do
Mato Grosso e, por fim, na região sul do país, Paraná e Rio Grande do Sul não completavam
100% de municípios com CTs.

Tabela 3 – Municípios, total e com Conselho Tutelar, segundo as Grandes Regiões e as


Unidades da Federação - 2014

49
A “Pesquisa Conhecendo a Realidade”, realizada pelo Centro de Empreendedorismo Social e Administração em
Terceiro Setor (CEATS/ FEA – USP) em 2006 e 2011 sob encomenda do CONANDA, representou um esforço
importante para o mapeamento dos Conselhos Tutelares e de Direitos no Brasil, trazendo vários resultados sobre
o funcionamento dos Conselhos, perfis, dificuldades e outras questões. Contudo, o relatório da pesquisa de 2011
não chegou a ser aprovado pelo CONANDA e, assim, a pesquisa daquele ano não foi publicada. Em alguns
momentos do nosso trabalho, apresentaremos alguns dados da pesquisa de 2006, com a ressalva de que seria
necessária e adequada uma atualização do panorama geral dos Conselhos.
Tabela 172 - Municípios, total e com Conselho Tutelar e algumas caracterí
segundo as Grandes Regiões e as Unidades da 106Federação -

M unicípio s

Co m Co nselho Tutelar, po r algum

Grandes Regiõ es Vinculado administrativa


Tabela
e 171 - Municípios, total e com Conselho Tutelar, por algumas características do conselho,
Unidades da Federação To tal
segundo as Grandes Regiões e as classes de tamanho Todatalpopulação
(1) dos municípios - 2014
A ssistência Direito s Cria
Justiça
so cial humano s ado le

M unicípios

B Grandes
ra s il Regiões 5 570 Com Conselho
5 Tutelar,
5 4 2por algumas características
4 535 20 14
e Vinculado administrativamente ao órgão gestor da
Nclasses
o rt ede tamanho da Total 450 447 397 1 1
população dos municípios Total (1) Gabinete ou Não é
Ro ndô nia Assistência 52Justiça Direitos52 Crianças e 50 do -vinculado a -
chefia Outro
social humanos adolescentes
Executivo nenhum órgão
A cre 22 22 20 - 1

BA
rasil
mazo nas 5 570 5 542 4 535 62 20 14
61 159 45 609 78 - 126 -
Até 5 000 1243 1236 956 6 1 45 167 22 39
De 5raima
Ro 001a 10 000 1216 1209 975 15 6 152 50 10 121 14 - 41 -
De 10 001a 20 000 1383 1373 1178 3 - 33 121 18 20
P ará 144 142 128 - -
De 20 001a 50 000 1080 1077 890 4 4 20 122 15 21
De 50 001a 100 000
A mapá 348 348 287 16 1 16- 4 16 49 4 - 3 -
De 100 001a 500 000 261 260 221 - 4 5 24 4 2
MTo cantins
ais de 500 000 39 39 28 139 - 1393 2 128 5 1 1 - -

N o rte 450 447 397 1 1 4 36 6 2


N o rde s t e 1 794 1 784 1 565 5 3
Até 5 000 78 78 73 - - - 4 1 -
De 5 001a 10 000
M aranhão 81 81 74 217 - 207- - 176 7 - - - -
De 10 001a 20 000 109 107 99 - - - 5 2 1
P iauí
De 20 001a 50 000 112 111 89224 1 224- 3 202 16 2 - - -
De 50 001a 100 000 44 44 38 - - 1 4 - 1
Ceará 184 184 178 1 1
De 100 001a 500 000 24 24 22 - 1 - - 1 -
MRio
ais deGrande
500 000 do No rte 2 2 2 167 - 167- - 133 - - 2 - -
N o rdeste 1 794 1 784 1 565 5
P araíba 223 2233 23
199 156 9
1 22
-
Até 5 000 232 231 201 2 - - 24 1 3
De 5 001a 10 000
P ernambuco 357 354 313 185 2 1851 5 127 27 1 1 5 1
De 10 001a 20 000 577 572 517 - - 7 40 3 5
De 20 001as
A lago a 50 000 445 444 376 102 1 102- 8 88 46 3 - 9 -
De 50 001a 100 000 122 122 102 - - 2 17 1 -
Sergipe 75 75 71 - 1
De 100 001a 500 000 50 50 47 - - 1 2 - -
MBaisahia
de 500 000 11 11 9 417 - 4172 - 391 - - - - -
Sudeste 1 668 1 660 1 262 8 6 94 223 10 57
Até 5 S
000ude s t e 376 372 1262
668 3 1 660- 301 2 6 2 60 18 16 6
De 5 001aGerais
M inas 10 000 389 389 287853 2 847- 33 737 46 2 3 19 1
De 10 001a 20 000 365 362 291 2 - 19 39 1 10
Espírito
De Santo
20 001a 50 000 289 288 227 78 1 773 7 75 39 2 - 9 -
De 50 001a 100 000 107 107 83 - - 1 21 1 1
Rio de Janeiro 92 92 69 - 3
De 100 001a 500 000 125 125 100 - - 3 16 2 2
MSão P aulo
ais de 500 000 17 17 12645 - 6442 1 381 2 1 5 - 2

Sul 1 191 1 186 928 3 3 30 140 46 36


S ul 1 19 1 1 18 6 928 3 3
Até 5 000 419 418 308 1 1 14 58 19 17
De 5 001a 10 000
P araná 279 276 209399 1 397- 8 349 36 9 2 13 1
De 10 001a 20 000 230 230 187 1 - 6 23 9 4
Santa
De 20 001aCatarina
50 000 157 157 134295 - 2951 1 211 13 6 1 2 -
De
Rio50 001a 100 000 do Sul
Grande 54 54 48497 - 494- - 368 4 2 - - 2
De 100 001a 500 000 48 47 39 - 1 1 5 1 -
M ais de 500 000 4 4
C e nt ro - O e s t e 43 6 7 -
465- -
383 1 -
3 -
1
C entro -Oeste 467 465 383 3 1 8 54 7 9
M ato Gro sso do Sul 79 79 63 - -
Até 5 000 138 137 112 - - 1 21 - 3
M ato
De 5 001Gro sso
a 10 000 110 109 92 141 1 1391 4 127 5 2 1 4 -
De 10 001a 20 000 102 102 84 - - 1 14 3 -
Go iás 246 246 193 2 1
De 20 001a 50 000 77 77 64 1 - 1 8 2 1
De 50 001a 100
Distrito 000
Federal 21 21 16 1 1 1- - - 3 - - 1 -
De 100 001a 500 000 14 14 13 - - - 1 - -
M ais de 500 000 5 5 2 - - 1 2 - -
Fo nte: IB GE, Direto ria de P esquisas, Co o rdenação de P o pulação e Indicado res So ciais, P esquisa de Info rmaçõ es B ásicas M unicipa
(1) Inclusive o s sem declaração de quantidade.
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa de Informações Básicas M unicipais 2014.
(1) Inclusive os sem declaração de quantidade.

Como vimos, para candidatar-se a membro do Conselho Tutelar, o Estatuto prevê como
requisitos do candidato ter reconhecida idoneidade moral, idade superior a 21 anos e residir no
município. Requisitos adicionais podem ser adicionados a esse conjunto desde que não
contrariem os requisitos mínimos estabelecidos na Lei Federal. O ECA não traça uma série de
107

requisitos específicos, pois objetiva possibilitar a ampla participação da sociedade civil nos
Conselhos. Essa questão será novamente trabalhada ao analisarmos os resultados de nossa
pesquisa.

Nos dados da pesquisa “Conhecendo a Realidade”, de 200650, tem-se que os conselheiros


tutelares, a nível nacional, tinham, preponderantemente, formação no nível médio, seguida de
superior completo e superior incompleto.

Gráfico 1 - Escolaridade dos conselheiros (Brasil e regiões)

Fonte: Pesquisa Conhecendo a Realidade - edição 2006.

Analisando os dados da pesquisa supracitada com os dados do IBGE, temos que a


escolarização dos conselheiros tutelares a nível nacional estava acima da média da
escolarização da população brasileira. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de

50
Os bons conselhos: pesquisa “conhecendo a realidade” / FISCHER, Rosa Maria (org.) – São Paulo: 2007.
Disponível em: http://www.andi.org.br/documento/os-bons-conselhos-conhecendo-realidade-pesquisa. Acesso
em: 20 de outubro de 2015.
108

Domicílios – PNAD 200951, do IBGE, revelam que, em 2009, 33% da população brasileira
detinha 11 anos ou mais de estudo (o que compreende, no mínimo, os oito anos do antigo ensino
fundamental e os três anos do ensino médio). Se tivéssemos um mapeamento do perfil dos
conselheiros tutelares mais recente, certamente a escolaridade média dos conselheiros tutelares
teria aumentado, visto que a escolarização da população é uma tendência. Contudo, conforme
ressaltamos anteriormente, por mais que a população tenda a se escolarizar mais com o passar
dos anos, exigir como requisito para ser conselheiro tutelar uma certa escolaridade é restringir
a ampla participação da sociedade nos Conselhos, prerrogativa do ECA.

Já os requisitos para aceitação da candidatura para conselheiro tutelar, em 2006,


demonstravam que a maioria dos municípios brasileiros seguiam os três requisitos mínimos
estabelecidos pelo ECA, e que cada município também adotou requisitos próprios de acordo
com a lei municipal.

Um dado que chama a atenção é, novamente, de acordo com a pesquisa Conhecendo a


Realidade Edição 2006, a experiência exigida na área da criança e do adolescente (55% dos
municípios brasileiros, em 2006, adotavam o requisito para candidatura, tal como em
Guarulhos); o requisito de estar ligado a uma entidade que atua na área da criança e do
adolescente (24%) e ter indicação favorável de alguma autoridade do poder público (5%). O
segundo requisito destacado nos dá indícios de que experiência na área do atendimento às
crianças, adolescentes e às famílias é bastante ressaltado, o que não acontece no caso das
políticas públicas. De acordo com os dados da referida pesquisa, não há municípios que
solicitem, por exemplo, experiência prévia no campo das políticas públicas. Por mais que, de
acordo com nossa análise e orientação, não seja esse o caminho para os Conselhos Tutelares
(restrição da sociedade civil para participação no Conselho), vemos, a partir daí, a prevalência
de um critério sobre o outro.

De acordo com as notas técnicas da pesquisa, o que se entende por “entidade que atua na
área da criança e do adolescente”, são as que têm registro no CMDCA e os exemplos deste
campo podem sem vários, tais como escolas, ONGs e igrejas. Dependendo do município, este

51
Ver IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: Síntese de Indicadores 2009. Rio de Janeiro: IBGE,
2010. Disponível em
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2009/pnad_síntese_2009.pdf.
Acesso em: maio de 2016.
109

critério pode ser bem restritivo, uma vez que, dependendo no número de entidades existentes
no local, poderão haver conselheiros advindos de uma única entidade.

Já o requisito de ter indicação favorável de alguma autoridade do poder público


descaracteriza totalmente o papel e o intuito do Conselho Tutelar, baseado na autonomia da
sociedade civil para zelar pelo cumprimento dos direitos infanto-juvenis, e não atuar em prol
de uma orientação do poder público.

Gráfico 2 – Requisitos para aceitação de candidatura para conselheiro tutelar (Brasil)

Fonte: Pesquisa Conhecendo a Realidade edição 2006.

Para assegurar condições de trabalho aos conselheiros, direitos trabalhistas foram


inclusos no ECA em 2012, visando garantir aos conselheiros benefícios trabalhistas, tais como:
i. cobertura previdenciária; ii. gozo de férias anuais remuneradas, acrescidas de 1/3 (um terço)
do valor da remuneração mensal; iii. licença maternidade; iv. licença paternidade; v.
gratificação natalina. Não existe um piso nacional para a remuneração dos conselheiros
tutelares. De acordo com o ECA, a lei municipal ou distrital deverá dispor sobre a remuneração
dos respectivos membros.

Segundo a pesquisa Conhecendo a Realidade, em 2006 a remuneração individual média


dos conselheiros tutelares (R$504,00) era próxima do salário mínimo nacional da época e 96%
dos Conselhos pesquisados remuneravam seus conselheiros. Contudo, os direitos trabalhistas
110

ainda eram um tópico mais distante na realidade dos conselheiros: apenas 54% dos Conselhos
Tutelares tinham jornada de trabalho regular não superior a oito horas diárias e 44 horas
semanais; 50% da amostra estudada tinha licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do
salário, com duração de 120 dias; 46% tinha direito à previdência social, e apenas 41% tinha
direito a férias remuneradas.

Como a pesquisa é de 2006 e, em 2012, os direitos trabalhistas foram assegurados aos


conselheiros por via da lei, é de se esperar que nesses 11 anos de diferença o respaldo trabalhista
aos conselheiros tenha crescido nos municípios brasileiros.

Por mais que o objetivo principal do Conselho seja permitir a participação da comunidade
local no trato dos assuntos infanto-juvenis, é difícil imaginar como isso se daria sem
remuneração adequada e sem os direitos trabalhistas assegurados. Nesse caso, o que seria feito
para visar à participação da sociedade seria, na verdade, mão-de-obra barata para o Estado, já
que os conselheiros também atuam no âmbito do atendimento ao público infanto-juvenil
violado em seus direitos. Também vale notar a disparidade de realidades entre os diversos
municípios brasileiros. A falta de regulação e de uma política mais definida e centralizada pode
dar uma maior discricionariedade para o poder público agir da forma que lhe cabe em relação
aos Conselhos Tutelares, prejudicando a defesa dos direitos de crianças e adolescentes.

Em relação à auto avaliação dos conselheiros tutelares acerca de seu desempenho e de


identificação das principais dificuldades operadas no exercício de suas atribuições básicas,
segundo a pesquisa Conhecendo a Realidade – Edição 2006, os respondentes afirmaram que se
consideravam muito eficientes na maioria dos itens arrolados em uma lista com 11 itens, que
constam do gráfico seguinte. A única função na qual se consideraram pouco eficientes foi a de
contribuir, por meio do CMDCA, com a elaboração da proposta orçamentária municipal. A
ação na qual se consideraram mais eficientes foi a de encaminhar à autoridade judiciária os
casos de sua competência, com índice nacional de 0,81. Também se consideraram muito
eficientes no que diz respeito a atender e aconselhar os pais ou responsáveis, com índice de
0,79.

Gráfico 3 – Índice de Avaliação do Conselho Tutelar sobre a eficiência no exercício de


suas atribuições (Brasil)
111

Fonte: Pesquisa Conhecendo a Realidade – Edição 2006.

Nas notas técnicas da pesquisa, tem-se que o índice indica com que eficiência o Conselho
Tutelar julga desempenhar o exercício de suas atribuições básicas: 0 a 0,33, baixa eficiência;
0,33 a 0,67, média eficiência; 0,67 a 1, alta eficiência. Nesse sentido, vemos que a atribuição
de contribuir, junto com o CMDCA, na elaboração de proposta orçamentária é a que os
conselheiros julgaram cumprir com menos eficiência. As outras demandas que requerem um
certo grau de articulação do Conselho com a rede municipal também são cumpridas com menos
eficiência. Entendendo que faltam maiores eforços para compreender o quadro descrito, nossa
pesquisa orienta-se a compreender os fatores para a participação dos Conselhos e dos
conselheiros na articulação para as políticas públicas.

Em suma, apreendemos que o ECA determinou a existência de pelo menos um Conselho


em todos os municípios brasileiros, com o apoio da prefeitura e do CMDCA local para sua
estruturação e manutenção. Também preconizou os Conselhos como uma forma de participação
diferente dos conselhos gestores, uma vez que os conselheiros tutelares são membros da
sociedade civil escolhidos pela sociedade civil, os quais vão, dentro das possibilidades, dialogar
e fiscalizar o próprio Estado para fazer valer a prioridade a crianças e adolescentes. Também
vimos que, de acordo com o ECA, a política para a criança e o adolescente deve ser
112

municipalizada, o que, por um lado, permite aos municípios atuarem de acordo com sua própria
realidade, mas, por outro, permite distorções e contravenções, tais como municípios que ainda
não implementaram seu Conselho Tutelar, além de distintas realidades a nível nacional. Esse
tópico pode ser elaborado, principalmente, com o uso dos dados da Pesquisa Conhecendo a
Realidade – Edição 2006, importante estudo a nível nacional que pode contribuir para
acadêmico, gestores e sociedade civil, contudo, em 2017, apontamos para a inexistência de
estudos mais recentes, e defendemos, aqui, sua necessidade. A referida pesquisa demonstrou,
entre outros tópicos, que os Conselhos Tutelares, em 2006, encontravam bastante dificuldades
para se articularem de modo a contribuir para as políticas públicas municipais de infância e
adolescência, o que corrobora nosso argumento e justifica nosso esforço para tentar
compreender os fatores que levam a isso. O capítulo a seguir, nesse sentido, trará nossa própria
leitura a partir da pesquisa de campo com os Conselhos Tutelares de Guarulhos.

3. ESTUDO DE CASO SOBRE OS CONSELHOS TUTELARES DE GUARULHOS:


FATORES INSTITUCIONAIS, ORGANIZACIONAIS E RELACIONAIS
113

Visando analisar a atuação dos conselheiros tutelares, foram selecionados os seis


Conselhos Tutelares do município de Guarulhos para obtenção das informações, com o objetivo
de observar realidades diferentes dentro de um mesmo município. A decisão de estudar
diferentes Conselhos num mesmo município deu-se, sobretudo, pela possibilidade de avaliar
diferentes tipos de atuação. Oficialmente, todos os Conselhos seguem a mesma norma,
oficialmente todos têm o mesmo CMDCA disponível, oficialmente todos têm a atribuição de
assessorar o Executivo municipal no planejamento de planos e programas que contemplem os
direitos da criança e do adolescente, mas será que todos o fazem? Será que uns fazem mais que
os outros? Quais os motivos que levam a essas diferentes formas de atuação?

Como forma de aprofundamento da pesquisa de campo, também entramos em contato


com o CMDCA do município para colher informações básicas e gerais, de forma que não
gastássemos tempo colhendo informações que são universais para todos os CTs da cidade, como
salário, carga horária, formação, etc. Nesse sentido, também faremos alguns apontamentos
sobre o CMDCA a partir de uma entrevista com seus conselheiros, na medida em que este
representa elemento-chave para a compreensão da influência sobre as políticas públicas de
infância e adolescência. O CMDCA não foi estudado mais a fundo porque se reúne apenas uma
vez por mês, o que dificultava o recolhimento de informações dentro do cronograma
estabelecido.

A justificativa pela escolha do município de Guarulhos baseia-se pelas características


populacionais, sociais e econômicas do mesmo; pelo fato de a Unifesp se localizar no
município, o que provia mais condições sobretudo para a pesquisa de campo e, por fim, pelo
fato de ainda não haver estudos sobre os Conselhos do município. Dessa maneira, esperamos
que nosso estudo também contribua para a avaliação da política pública municipal, cumprindo
com a função social da universidade e com seu papel na produção do conhecimento, a partir da
realidade em que ela está inserida.

Para apresentar os resultados da pesquisa, dividiremos esse capítulo nos seguintes


tópicos: contextualização do município de Guarulhos (histórico, dados e resultados da pesquisa
sobre o CMDCA e localização dos Conselhos Tutelares), a descrição do nosso campo seguida
da análise dos fatores institucionais, organizacionais e relacionais. Os fatores relacionais serão
apresentados a partir do uso dos sociogramas, utilizando a noção de “rede”, portanto, não só
como um conceito, mas também como metodologia de análise. Por fim, seguiremos com a
conclusão sobre o que foi apresentado.

3.1. O município de Guarulhos


114

Guarulhos foi fundada em 8 de dezembro de 1560 pelo Padre Jesuíta Manuel de Paiva
com o nome de Nossa Senhora da Conceição, em um local até então habitado pelos índios
Guarus, da tribo dos Guaianases. Em 1590 foram descobertas minas de ouro na região onde
atualmente é o bairro de Lavras. As chamadas 'Lavras Velhas do Geraldo' podem ser vistas,
hoje, na margem direita da estrada que se dirige de Cumbica para Nazaré Paulista.

D. Pedro II visitou a região em 1880, a qual foi elevada à Província de Nossa Senhora da
Conceição de Guarulhos. Apenas em 1906 uma Lei Estadual determinou que Guarulhos
recebesse a denominação de cidade.

No Brasil Colônia, durante os séculos XVII e XVIII, foram delimitadas sesmarias


organizando a ocupação da região. Os sesmeiros se dedicaram à agricultura e à mineração e,
como atividade de apoio, criavam gado.

O trabalho escravo foi realizado principalmente por negros de origem sudanesa,


denominados Gegês, e foi utilizado em larga escala. Segundo o tombamento das propriedades
rurais da Capitania de São Paulo de 1817, registraram-se 183 escravos na Freguesia da
Conceição dos Guarulhos, pertencentes a 28 lavradores das seguintes áreas: Bom Jesus, Bom
Sucesso, Guavirotuba, Itaverava, Lavras, Pirucaia, São Gonçalo, São Miguel (Pimentas) e
Varados.

Em 1915 Guarulhos recebe o Ramal Guapyra - Guarulhos, da estrada de ferro da Cantareira,


possibilitando o escoamento de madeira, pedra e tijolos, fabricados em diversas olarias da
região e amplamente utilizados na construção civil na capital. A cidade ganhou cinco estações:
Vila Galvão, Torres Tibagy, Gopoúva, Vila Augusta e Guarulhos, além do prolongamento até
a Base Aérea.

O início do século XX marcou também a chegada da energia elétrica (Light & Power), dos
pedidos para instalação da rede telefônica, licenças para implantação de indústrias de atividades
comerciais e dos serviços de transporte de passageiros.

Na década de 40 foi inaugurada a Biblioteca Pública Municipal, o primeiro Centro de Saúde


da cidade e a Santa Casa de Misericórdia, além de indústrias do setor elétrico, metalúrgico,
plástico, alimentício, de borracha, calçados, peças para automóveis, relógios e couros. Em 1945,
a Base Aérea de São Paulo (BASP) foi transferida do Campo de Marte, em São Paulo, para o
bairro de Cumbica em Guarulhos.

Nos anos 50 a inauguração das rodovias Presidente Dutra e Fernão Dias aproxima pessoas e
mercadorias da cidade. Guarulhos se viu unida a São Paulo, no momento histórico de aceleração
115

industrial, e ao Rio de Janeiro, ainda então capital federal e centro de decisões políticas e
econômicas, gerando, portanto, um impulso para instalação de indústrias nos trechos das
rodovias que passam pelo município.

A fase dos anos 1960/1970 é marcada pela estruturação de atividades industriais que em
grande medida pautaram os caminhos da migração para o Estado de São Paulo. Em 1985, foi
inaugurado o aeroporto de Cumbica, hoje denominado “Aeroporto Internacional de São Paulo-
Guarulhos Governador André Franco Montoro”, o maior da América do Sul. 52

Devido à industrialização ocorrida no município, o afluxo do contingente humano incentivou


a formação de loteamentos efetuados sem grandes preocupações com a urbanização, a infra-
estrutura e os serviços de utilidades públicas. O crescimento populacional da cidade de
Guarulhos é um reflexo do processo de urbanização que afetou o Brasil, especialmente nos
últimos 50 anos.

O município localiza-se na região metropolitana de São Paulo (SP) e tem a extensão


territorial de 318.675km², fazendo limite com a cidade de São Paulo pela zona leste e norte e
estando próximo de cidades como Mairiporã, Itaquaquecetuba e Arujá.

• Dados populacionais e socioeconômicos

De acordo com o Censo de 2010, a população de Guarulhos é de 1.221.979 pessoas, sendo


a população estimada para 2017 de 1.349.113 pessoas. Sendo assim, a cidade é a segunda mais
populosa do estado de São Paulo, ficando atrás somente da capital paulista. Em termos
populacionais, Guarulhos fica à frente de cidades como Campinas, São Bernardo do Campo e
Santo André.53

Se nos atentarmos à resolução 139 do CONANDA, a qual orienta o número de um


Conselho Tutelar para cada 100.000 habitantes, Guarulhos teria um déficit de sete Conselhos
Tutelares54. O número atual de Conselhos na cidade (seis) segue a resolução 75, 55
a qual

52
Guarulhos (SP). Prefeitura. 2014. Disponível em: http://www.guarulhos.sp.gov.br. Acesso em: out.2017.
53
IBGE Cidades. 2017. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/guarulhos/panorama. Acesso em:
out.2017.
54
Conforme tratado no capítulo dois, o número de Conselhos Tutelares no Brasil não chegou a ser universalizado
27 anos após a promulgação do ECA. Há municípios sem a presença de nenhum Conselho Tutelar. Que dirá, então,
municípios que não cumprem a resolução 139 do CONANDA.
55
Reportagem de 2011 apontava o déficit de CTs no município. Mesmo com a criação de outro CT, Guarulhos
precisa de novos Conselhos em outras regiões da cidade. Guarulhos Web. Guarulhos segue com déficit no número
116

recomenda um Conselho a cada 200.000 habitantes. Todavia, cabe ao Executivo municipal


avaliar a necessidade de mais Conselhos Tutelares de acordo com a distribuição geográfica,
com o número de demandas e com a população de crianças e adolescentes.

A pirâmide etária do município assemelha-se à tendência nacional de alargamento nas


faixas que representam a população mais velha e de diminuição do número de nascimentos. No
caso, Guarulhos tem a maior parte da população na faixa dos 30-39 anos (207.824 pessoas). Já
se somarmos a população de 0-19 anos56, a qual depende dos serviços do Conselho Tutelar,
chegaremos ao número de 403.179.000 pessoas. Sendo assim, o número de crianças e jovens
representa 29,88% da população do município.

Sobre a parcela de crianças e jovens do município, os dados de 2013 do Atlas do


Desenvolvimento Humano revelam que Guarulhos tem a maior parte dos indicadores próximos
aos indicadores brasileiros. É de se destacar a taxa de mortalidade infantil, que, em 2013, foi de
13,34 óbitos a cada mil nascidos vivos contra 13,15 do município de São Paulo. É de se
preocupar, todavia, que, ao avaliar a série histórica, Guarulhos teve um bom período de
elevação da taxa de mortalidade infantil, seguido de um declínio, e, em 2013, o número tenha
subido novamente.

Tabela 04 – Dados relativos à parcela de crianças e adolescentes – comparação Brasil


x São Paulo x Guarulhos.

% de % de % de % de 15 a
Mortalida % de
criança criança pessoas de 24 anos que
Espacialidades de infantil crianças
s de 0 a s de 6 a 15 a 24 anos não
2010 extremamen
5 anos 14 fora que não estudam,

de conselhos tutelares. Disponível em:


http://www.guarulhosweb.com.br/noticia.php?nr=38518&t=Guarulhos+segue+com+deficit+no+numero+de+con
selhos+tutelares. Acesso em 29 de setembro de 2017.
56
Na verdade, os serviços do Conselho Tutelar aplicam-se à faixa de 0-18 anos, salvos os casos excepcionais.
Todavia, como a pesquisa do IBGE contempla os 19 anos, a população desta idade foi incluída nos números
apresentados.
117

fora da da estudam, não te pobres


escola escola não trabalham 2010
2010 2010 trabalham e e são
são vulneráveis
vulneráveis
Brasil 56,85 3,31 11,61 16,7 33,34 11,47
São Paulo (SP) 45 3,98 5,6 13,15 35,77 1,84
Guarulhos
50 2,92 7,06 13,34 34,71 3,36
(SP)
Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano 2013.

Apesar de, em 2013, o Produto Interno Bruto (PIB) do município ter sido de R$51,3
57
milhões , em 2015, o salário médio mensal era de 3.2 salários mínimos (R$2.521,60). A
proporção de pessoas ocupadas em relação à população total era de 28.9%. Na comparação com
os outros municípios do estado, ocupava as posições 53 de 645 e 173 de 645, respectivamente.
Já na comparação com cidades do país todo, ficava na posição 154 de 5570 e 591 de 5570,
respectivamente. Considerando domicílios com rendimentos mensais de até meio salário
mínimo por pessoa, tinha 36.1% da população nessas condições, o que o colocava na posição
103 de 645 dentre as cidades do estado e na posição 3333 de 5570 dentre as cidades do Brasil.

Nesse sentido, por mais que seja um município com um dos maiores PIBs do Brasil, o
aparente desenvolvimento econômico não se reverte em bons indicadores sociais.

Guarulhos apresenta 88, 4% de domicílios com esgotamento sanitário adequado e apenas


35, 4% de domicílios urbanos em vias públicas com urbanização adequada (presença de bueiro,
calçada, pavimentação e meio-fio).

Em termos educacionais, em 2015, os alunos dos anos inicias da rede pública da cidade
tiveram nota média de 6, 2 no IDEB. Para os alunos dos anos finais, essa nota foi de 4, 6. Na
comparação com cidades do mesmo estado, a nota dos alunos dos anos iniciais colocava esta
cidade na posição 306 de 645. Considerando a nota dos alunos dos anos finais, a posição
passava a 467 de 645. A taxa de escolarização (para pessoas de 6 a 14 anos) foi de 97.1 em
2010. Isso posicionava o município na posição 519 de 645 dentre as cidades do estado e na
posição 3514 de 5570 dentre as cidades do Brasil.

57
Guarulhos Hoje. Guarulhos se mantém como a 13ª. economia entre as cidades brasileiras. Disponível em:
https://www.guarulhoshoje.com.br/2016/12/15/guarulhos-se-mantem-como-a-13o-economia-entre-as-cidades-
brasileiras/. Acesso em: 20 de outubro de 2017.
118

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município, em 2010, era de 0,763


(superior à média nacional brasileira de 0,699 no mesmo ano58).

• Capacidades administrativas para execução da política

A rede de planos, programas, ações e a rede de atendimento da prefeitura compõe-se da


seguinte maneira:

Tabela 05 – Programa, plano ou ação desenvolvido pela gestão municipal

Fonte: IBGE, Pesquisa de Informações Básicas Municipais – 2014.

Tabela 06 – Instrumentos que tratam dos direitos humanos

Fonte: IBGE, Pesquisa de Informações Básicas Municipais – 2014.

Tabela 07 – Recebimento, registro e tratamento das denúncias de violação dos direitos


humanos

58
Brasil ocupa 73ª posição entre 169 países do idh 2010. Disponível em:
http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/11/brasil-ocupa-73-posicao-entre-169-paises-no-idh-2010.html. Acesso
em: 20 de outubro de 2017.
119

Fonte: IBGE, Pesquisa de Informações Básicas Municipais – 2014.

Tabela 08 – Fundos municipais

Fonte: IBGE, Pesquisa de Informações Básicas Municipais – 2014.

Tabela 09 – Conferências municipais de Guarulhos


120

Fonte: IBGE, Pesquisa de Informações Básicas Municipais – 2014.

Tabela 10 – Capacitação em direitos humanos realizada pela gestão municipal no ano de


2013

Fonte: IBGE, Pesquisa de Informações Básicas Municipais – 2014.

Tabela 11 – Conselhos municipais


121
122

Fonte: IBGE, Pesquisa de Informações Básicas Municipais – 2014.

Tabela 12 – Crianças e adolescentes


123
124

Fonte: IBGE, Pesquisa de Informações Básicas Municipais – 2014.

Como os Conselhos Tutelares estão em constante diálogo com a rede de atendimento


municipal, conhecer a estrutura do município é importante para entender como esta influi sobre
a própria dinâmica dos CTs. A título de esclarecimento, foram utilizados os dados da Pesquisa
de Informações Básicas Municipais (Munic/2014) do IBGE pois os mesmos não foram
fornecidos pela Secretaria de Assistência Social do Município59.

De maneira geral, temos que o município de Guarulhos, em 2014, desenvolvia o plano de


promoção dos direitos do idoso. As outras pautas (tais como promoção dos direitos do público
LGBTT, promoção da diversidade religiosa, enfrentamento ao trabalho escravo e
enfrentamento à violência contra jovens) não vinham sendo contempladas pelo Executivo
municipal.

59
Após e-mails, ligações e envios de ofício, nenhuma resposta foi dada pelo órgão. A dificuldade em obter dados
será novamente citada no decorrer do texto, mas foi vivida não só em relação à prefeitura, como também ao
CMDCA e aos Conselhos Tutelares.
125

O município prevê, em sua lei orgânica, o tratamento dos direitos humanos. Todavia, tal
tema não foi incorporado, até 2014, pelo plano plurianual, pela Lei Orçamentária Anual de 2013
(LOA), nem pela Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2014 (LDO). A cidade tem o Fundo
Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente desde 1991 – sendo o Fundo mais antigo
no município - restando, em 2014, criar o fundo municipal dos Direitos Humanos e dos Direitos
do Idoso. Em termos da pauta geral de “direitos humanos”, resta à cidade também criar sua
ouvidoria de direitos humanos e promover a modernização dos canais de recebimento, registro
e acompanhamento de denúncias de violação de direitos: em 2014, o município ainda não tinha
uma página na internet que possibilitasse o registro da violação.

Coincidentemente, a Munic também revela que, em 2014, Guarulhos não tinha tido sua
conferência municipal de direitos humanos realizada nos últimos quatro anos pelo governo
municipal. Esse ponto é importante, pois, dentro do tema geral dos “direitos humanos”, estão
contempladas várias outras pautas, inclusive pautas dos direitos da criança e do adolescente. A
cidade havia tido sua conferência municipal de direitos ou políticas para a criança e o
adolescente, mas não havia tido a de direitos ou políticas para a juventude nem outras muito
importantes tais como a de educação, cultura, saúde, esporte e segurança pública.

As Conferências Municipais da Criança e do Adolescente são espaços amplos e


democráticos, abertos à discussão, cuja principal característica é a reunião de representantes
governamentais e da sociedade civil para debater e deliberar sobre prioridades a serem
assumidas através do estabelecimento de metas. A diferença entre elas e os Fóruns refere-se à
composição, uma vez que os últimos contam com a participação preponderante de membros da
sociedade civil, ou seja, os fóruns são espaços democráticos da sociedade civil dedicados à
participação, mobilização e articulação em determinada matéria. Nesse sentido, é importante
que os municípios concentrem seus esforços no fortalecimento destes espaços sobretudo de
maneira articulada. Também é de suma importância que os conselheiros tutelares participem
destes espaços porque possibilita a esse órgão o alinhamento sobre o debate e decisão da política
municipal da infância.

O IBGE não conseguiu obter as informações relativas à capacitação em direitos humanos


realizada pela gestão municipal no ano de 2013. Veremos, nos resultados da pesquisa, a
capacitação que os conselheiros tutelares receberam no período 2016-2017.

O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) do município


– peça de suma importância para a exigência dos direitos infanto-juvenis – é um órgão
deliberativo e controlador da política de atendimento à criança e ao adolescente. Foi criado em
126

18 de junho de 1991 e, atualmente, realiza suas reuniões na primeira terça-feira do mês na Casa
dos Conselhos, espaço localizado no centro de Guarulhos. O CMDCA tem composição paritária
(representação da sociedade civil e do poder público) e conta com a seguinte formação: um
representante da Secretaria da Promoção Social; um representante da Secretaria da Educação e
Cultura; um representante da Secretaria da Saúde; um representante da Secretaria de Esporte e
Turismo; um representante da Secretaria das Finanças; um representante da Secretaria do
Trabalho; um representante da Associação ou Federação de Entidades Sociais, ligado à
Assistência às Crianças e aos Adolescentes; dois representantes de entidades privadas de defesa
e atendimento dos direitos da criança e do adolescente; um representante do Conselho
Municipal de Educação; um representante do Conselho Municipal da Saúde; um representante
do Conselho Municipal de Bairros. Junto com o CMDCA, Guarulhos conta com sete Conselhos
municipais, cada um com suas características próprias.

Os Conselhos Municipais de Direitos da Criança e do Adolescente têm sua missão


precípua de: (1) formular a política de promoção, proteção e defesa dos direitos humanos de
crianças e adolescentes e (2) monitorar e avaliar a sua implantação. Embora demonstre
consciência da importância dessas atribuições, o CMDCA de Guarulhos não possui diagnóstico
formal, e sim apenas o plano de ação aprovado e resoluções contendo recomendações para a
adoção de políticas públicas. Todas essas atribuições institucionais são consideradas vitais para
o cumprimento da missão dos Conselhos, mas, na prática, elas não vêm sendo desempenhadas
a contento.

A análise desse dado permite ressaltar alguns aspectos importantes. Primeiro, o fato do
Conselho ter declarado ter plano de ação e não possuir diagnóstico formal da situação de
crianças e adolescentes do seu território é indicativo de que tais planos podem não estar
fundamentados em dados objetivos e sistematizados. Segundo, se a elaboração do plano de ação
não foi determinada ou influenciada pela existência de um diagnóstico formal, pode-se dizer
que o CMDCA tomou por base dados informais e informações subjetivas para planejar e
priorizar as ações que concretizam suas políticas. Terceiro, tais condições de planejamento
restringem as possibilidades de monitoramento e avaliação das ações implementadas, bem
como da alocação de recursos disponíveis aos Conselhos, como, por exemplo, os advindos dos
Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente, o que coloca em risco a eficiência e a eficácia
de sua atuação.

Se os baixos indicadores de engajamento dos Conselhos de Direitos, mensurados pelos


instrumentos formais de formulação de políticas públicas, representam de fato a medida efetiva
127

do que acontece na prática social desses órgãos colegiados, um paradoxo se coloca. Embora as
observações indiquem que os conselheiros são mais experientes e capacitados (em termos de
escolarização e tempo de experiência), bem como que contam com melhores condições de
infraestrutura física para realizarem suas atividades, é possível questionar se esses
investimentos estão sendo suficientes para aperfeiçoar o processo de produção de políticas por
esses Conselhos.

A análise dos resultados da pesquisa permite, contudo, pensar que o gap sinalizado por
Benedito dos Santos (2011)60 entre o modelo idealizado de Conselho de Direitos e o modelo
operacional desenhado pela prática social pode estar condicionando a forma de participação
destes órgãos nos processos de formulação de políticas para infância e adolescência. Afinal, no
atual formato de Conselhos, grande parte da energia de seus membros é investida na
coordenação do processo eleitoral dos Conselheiros Tutelares, na coordenação das ações de
capacitação e na implementação dos planos de medidas proteção especial. Isso significa dizer
que tais atividades são as consideradas prioritárias, na prática, enquanto a pequena
disponibilidade de tempo que os conselheiros dedicam aos Conselhos não abre espaço para o
debate e a elaboração cuidadosa das políticas. No caso do município de Guarulhos, o CMDCA
reúne-se apenas uma vez por mês, com uma reunião de no máximo cinco horas. É muito difícil
acreditar que tal modo de organização dará conta de coordenar as rotinas burocráticas, os planos
de medidas de proteção especial e a formulação de políticas.

É possível que a formulação e o planejamento de políticas passe ao largo dos Conselhos


de Direitos, como apontou Luciana Tatagiba (2007), ao estudar o CMDCA de São Paulo entre
2004 e 2007. De acordo com a autora, esse Conselho exerceu, no período estudado, maior
influência na fase de implementação ou execução da política e dos programas do que no
planejamento e elaboração de políticas abrangentes em nível macro dos direitos de crianças e
adolescentes.

Quando se enfoca o desempenho dos Conselhos no processo de formulação de políticas,


como mencionado por Tatagiba (2007), muitos buscam também influenciar sua execução,
apesar de que o formato e estrutura desses órgãos não oferecem suporte para que eles se

60
Ver SOUZA FILHO, R.; SANTOS, B. R.; DURIGUETTO, M. L. (orgs). Conselhos Tutelares: desafios teóricos
e práticos da garantia de direitos da criança e do adolescente. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora,
2011.
128

responsabilizem por todas estas etapas do processo. Conforme mencionado acima, o tempo de
dedicação dos conselheiros de direitos, estejam eles vinculados a órgãos municipais ou
estaduais, ou sejam representantes do governo ou da sociedade civil, não vai além de cinco
horas mensais, sendo que parte desse tempo é ocupada com a realização de assembleias. Nesse
sentido, com o próprio CMDCA sem incidência sobre as políticas públicas do município, fica
difícil os Conselhos Tutelares assumirem esta características.

A formulação de políticas e planos que contribuam efetivamente para a garantia da


proteção integral de toda e cada uma das crianças brasileiras deve também constar entre as
prioridades das políticas de fortalecimento dos Conselhos de Direitos. Uma das finalidades dos
Conselhos de Direitos é a articulação/integração de todas as políticas para infância e
adolescência. Contudo, as ações que apareceram em primeiro lugar no discurso de dois
conselheiros de direitos entrevistados em nossa pesquisa em referência ao plano de ação foram
as de apoio ou capacitação dos conselheiros tutelares. Na sequência, vieram o apoio às ações
existentes no município, a divulgação de temas ligados à área e a mobilização dos gestores de
políticas básicas locais. As ações quem enfocam as medidas socioeducativas e as aplicações do
Fundo Municipal foram mencionadas com menos frequência.

Estas ações mais destacadas pelos conselheiros municipais de Guarulhos refletem cinco
ordens de prioridades: o fortalecimento dos Conselhos de Direitos e Tutelares, por intermédio
da estruturação física dos órgãos, da articulação e capacitação, a mobilização dos gestores de
políticas sociais básicas locais, a implementação das medidas de proteção especial,
particularmente, as medidas socioeducativas, e as aplicações dos recursos do Fundo dos
Direitos da Criança e do Adolescente e ações de comunicação social, particularmente, para
divulgação de temáticas vinculadas à defesa dos direitos da criança e do adolescente.

Chama à atenção em nossa pesquisa a falta de referência mais explícita às políticas


sociais básicas, apesar das pastas da Educação, Assistência Social e Saúde estarem
representadas na composição do Conselho. Entre as áreas da administração pública municipal
não representadas encontravam-se Transporte, Habitação e Segurança Pública.

Cabe o questionamento: em que pese a falta de presença, ou a presença em número


reduzido, de algumas das pastas gestoras de políticas sociais básicas na composição do
CMDCA, por que razões a presença de representatividade das áreas da Educação, Assistência
Social e Saúde não resultou em maior e melhor integradas políticas sociais? Os dados da nossa
pesquisa oferecem alguns subsídios para aprofundamento dessa questão. Primeiro, porque as
outras políticas setoriais também possuem seus próprios Conselhos com atribuições similares
129

às dos Conselhos de Direitos, porém com foco específico numa dada política setorial. O
movimento de articulação entre o CMDCA e os Conselhos de outras áreas é ainda pequeno: o
CMDCA declarou se relacionar “poucas vezes” com outros Conselhos de políticas setoriais.
Segundo, a ênfase dada ao processo de implementação dos planos de medidas de proteção
especial, já mencionada acima, os quais não estão contextualizados no interior de planos mais
amplos de promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente.

O CMDCA de Guarulhos, assim como os CTs da cidade, encontra-se vinculado


administrativamente à Assistência Social, dado esse que é consistente com aqueles apontados
pela Munic 2009, os quais indicaram que órgãos gestores da política de Assistência Social
ofereciam suporte administrativo para 88% dos Conselhos Municipais. Possivelmente essa
vinculação tenha facilitado a maior presença de assistentes sociais no quadro técnico
permanente do CMDCA, em comparação com os profissionais das áreas jurídica, educacional
e da saúde. A seguir, veremos como se deu o desenho e a prática dos Conselhos Tutelares no
município.

3.2. OS CONSELHOS TUTELARES DE GUARULHOS

Guarulhos passou a ter seu primeiro Conselho Tutelar em 07 de novembro de 199461,


que atuou sozinho no município por quatro anos. Em 1998, com a criação dos Conselhos
Tutelares do Jardim Cumbica e do Bonsucesso62, o primeiro Conselho Tutelar da cidade passou
a atuar somente na zona central. Na época, aventou-se a possibilidade de criação do Conselho
Tutelar do Pimentas, mas tal medida foi abortada por razões orçamentárias.

O bairro dos Pimentas, segundo o censo de 2000, contava com cerca de 134 mil
habitantes,tendo esse número se elevado para 156.748 no censo de 2010, sendo o bairro mais
populoso de Guarulhos. Limita-se com Itaquaquecetuba (leste), São Miguel Paulista e Jardim

61
Guarulhos. LEI Nº 4.665 DE 07 DE NOVEMBRO DE 1994. Autor: Prefeito Municipal. Cria o Conselho Tutelar,
órgão indispensável à Política Municipal de Atendimento aos Direitos da Criança e do Adolescente e dá outras
providências.
Disponível em: http://leis.guarulhos.sp.gov.br/06_prefeitura/leis/leis_download/04665lei.pdf. Acesso em: 27 de
outubro de 2017.
62
Guarulhos. LEI Nº 5.185 DE 10 de MARÇO DE 1998. Autor: Prefeito Municipal. Institui 3 (três) Conselhos
Tutelares, órgãos indispensáveis à política municipal de atendimento aos direitos da criança e do
adolescente.http://leis.guarulhos.sp.gov.br/06_prefeitura/leis/leis_download/05185lei.pdf. Acesso em: 27 de
outubro de 2017.
130

Helena (sul e sudeste), Cumbica (oeste) e Bonsucesso (norte). Nesse sentido, era urgente a
instalação de um Conselho Tutelar na região, medida que foi tomada em 200463.

O último conselho tutelar criado na cidade foi o do Jardim São João em 201164. Segundo
os conselheiros entrevistados pela pesquisa, o número atual de Conselhos da cidade não é
suficiente para atender as demandas, sobretudo quando a insuficiência de instalações alia-se às
deficiências de infra-estrutura.

Atualmente, os Conselhos Tutelares distribuem-se espacialmente da seguinte maneira:

Figura 5 - Localização dos Conselhos Tutelares do município de Guarulhos

Fonte: elaboração própria utilizando o software ArcMap a partir dos dados da prefeitura de Guarulhos.
Observa-se que a reclamação dos conselheiros tutelares, frequente em nosso estudo de
campo, em não ser possível atender todas as demandas encontra respaldo no sentido
geográfico. Guarulhos é uma cidade grande e, na direção nordeste, existem bairros como
Morro Grande, Água Azul e Capelinha, nos quais localizam-se muitos sítios, chácaras,
cachoeiras e pontos turísticos, representando a zona rural da cidade. Por mais que a região

63
Guarulhos. LEI Nº 6.050 DE 01 de DEZEMBRO DE 2004. Autor: Prefeito Municipal. Dispõe sobre criação
do Conselho Tutelar na região dos Pimentas e dá providências correlatas.Acesso em: 27 de outubro de 2017.
Disponível em: http://leis.guarulhos.sp.gov.br/06_prefeitura/leis/leis_download/06050lei.pdf.
64
Guarulhos. LEI Nº 6.924 DE 06 de OUTUBRO DE 2011. Autor: Prefeito Municipal. Acesso em: 27 de
outubro de 2017. Disponível em: http://leis.guarulhos.sp.gov.br/06_prefeitura/leis/leis_download/06924lei.pdf.
131

seja menos populosa, para os conselheiros da região do Bonsucesso, por exemplo, fica
difícil a locomoção.

Conforme dito acima, em que pese a implantação gradual de Conselhos na cidade, é


necessário também uni-la à adequada infra-estrutura que garanta o trabalho dos conselheiros.
Nesse ponto, seguiremos para as análises dos fatores institucionais e organizacionais que podem
influenciar a ação dos conselheiros.

3.2.1 BREVE REFLEXÃO SOBRE AS DIFICULDADES DA PESQUISA

Nossa pesquisa de campo foi feita com cinco Conselhos Tutelares da cidade. O objetivo
inicial era realizar o campo nos seis CTs existentes, contudo, um dos Conselhos não aceitou
nos receber para a pesquisa, motivo pelo qual realizamos a pesquisa nos cinco CTs. Um dos
compromissos acordados pelo termo de consentimento era o sigilo da identidade dos
conselheiros, motivo pelo qual, ao fazermos referência às trajetórias, redes sociais e falas de
cada um deles, usaremos um nome fictício para designá-los. Um ponto não estabelecido no
termo de consentimento para a concessão de entrevistas, mas questionado pelos conselheiros
foi “mas de que adianta você não divulgar meu nome, mas divulgar de que Conselho eu sou?
Se só eu der entrevista aqui, todo mundo vai saber que fui eu”. Dessa forma, os Conselhos serão
tratados pela denominação CT1, CT2, CT3, CT4 e CT5, sem fazer referência específica à
localização de cada um. A numeração é aleatória e não representa nenhum sentido cronológico
ou geográfico.

Aliás, a dificuldade para realizar o campo foi sentida não somente com os conselheiros
tutelares. Pareceu-nos que havia muita desconfiança por parte dos nossos interlocutores,
seguida pelo desencontro de informações e pela morosidade com a qual uma pesquisa de
mestrado não pode lidar. 65

65
Num artigo do Caderno Temático – suplemento do jornal da UNICAMP -, os docentes da instituição brincam a
dificuldade de explicar para as pessoas no geral o trabalho acadêmico: Conta-se que o famoso matemático inglês
Michael Atiyah resolveu explicar para a sua mãe a natureza de suas atividades. Depois de ter ouvido atentamente
as explicações do filho, a boa senhora teria dito: “Acho que agora entendi o que você faz; mas diga-me uma coisa,
por que pagam você para isso?”. Caderno Temático. Suplemento do jornal da UNICAMP. Os desafios da pesquisa
no Brasil. Campinas, fevereiro de 2002 – ANO I – Nº 12. Acesso em: 21 de outubro de 2017. Disponível em:
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/jornalPDF/ju170tema_p01.pdf.
132

Essa dificuldade foi sentida ao tentarmos explicitar que os interesses por trás da realização
das entrevistas e das observações eram meramente científicas. “Você é jornalista?”, “mas pra
que você quer saber disso? Pra contar pro CMDCA?”, “que certeza eu tenho de que você não
vai divulgar meu nome?”. Por já ter trabalhado em algumas pesquisas de campo e já tendo sido
recenseadora, a insegurança das pessoas em repassar informações não foi propriamente uma
novidade. É comum que as pessoas se perguntem por que tal informação é valiosa para aquela
pessoa e, na medida em que esta pessoa tem interesse, pode ter interesses outros que não sejam
explicitados.

Nisso, é importante que o pesquisador lembre que não está, necessariamente, dialogando
com pessoas que circudam seu universo simbólico. As noções de transparência, ética, sigilo e
desenvolvimento acadêmico não são associadas por todos da mesma maneira e, além disso, vale
lembrar que num país com níveis de desigualdade social como o Brasil, as noções do que é
fazer um mestrado e do trabalho de uma dissertação não são igualmente reconhecidas.

Sendo assim, várias vezes adaptei minha empreitada à uma tarefa conhecida: fazer o
trabalho da faculdade. No CT1, ao ser recebida pelo conselheiro Paulo para minha primeira
entrevista da pesquisa, fui apresentada ao restante das conselheiras da seguinte forma: “essa
mocinha veio fazer o trabalho da faculdade e quer fazer umas entrevistas com a gente”. Sem
fazer grandes problematizações do tratamento pela questão etária e de gênero, confirmei a
apresentação e tentava explicar com mais detalhes nos momentos oportunos.

Importante ressaltar também que as dificuldades não partiram somente dos nossos
interlocutores. Antes de ir presencialmente a campo, decidi verificar se os telefones e endereços
estavam corretos no site da prefeitura de Guarulhos, pois correria menos risco de chegar ao
endereço e não encontrar o Conselho. Felizmente, fiz esta conferência, caso contrário o campo
teria sido muito mais difícil. Abaixo, descrevo um pouco da experiência para chegar ao CT1:

Encontrei o telefone e o endereço pelo portal da Prefeitura. Tentei o contato com


o CT, mas sem sucesso. Fui, então, presencialmente me apresentar e falar da
pesquisa, mas, chegando no endereço presente do portal do município, não
encontrei o Conselho Tutelar. Perguntei para as pessoas do entorno, que não
souberam me informar. Pelo celular, busquei no Facebook se o Conselho tinha
uma página, algo que pudesse me informar sua localização. Achei uma postagem
do CT4 sobre a mudança de endereço do CT1. Achei estranho, pois não era nada
oficial. Decidi, então, tentar outras vezes o contato telefônico antes de proceder à
instalação física. Ligo, ligo e nada. Verifico, então, que o suposto novo endereço
do CT1 não era tão longe de onde eu estava, então decido seguir pra ele. Chegando
133

lá, também não o encontro. Decido voltar pra casa e checar em outras fontes.
(Caderno de campo, 12/07/2017).66

Na busca pelo cadastro atualizado dos CTs, ao ir presencialmente no CT1, perguntei se


eles tinham o endereço e telefone dos outros cinco Conselhos Tutelares da cidade. Meu espanto
quando um conselheiro do CT não sabia que existiam seis CTs na cidade, o que me fez inclusive
ficar em dúvida sobre a informação. Esperava, na verdade, que um conselheiro que me
recebesse pudesse me ajudar como intermediário na conversa com os demais conselheiros, mas
no desenrolar do campo fui percebendo que isto não iria acontecer, primeiro porque os
conselheiros não costumam manter contato com os conselheiros das outras regiões (fato
importante para a pesquisa) e segundo que me ajudar com a pesquisa não era nada urgente
diante das demandas que os conselheiros recebem a cada dia. Nesse sentido, ao conseguir
atualizar o telefone e endereço de cada Conselho, acabei repassando as informações aos
conselheiros que me pediam.

Para agendar a conversa com os conselheiros do CT2, após tentativa frustada no


primeiro número que constava no site da Prefeitura, entrei em contato telefônico com o segundo
número informado e me deparei com uma personagem que não tinha levado em consideração
no cotidiano dos Conselhos: a assistente administrativa. Tal profissional é colocada à disposição
dos Conselhos pelo Executivo municipal e cumprem rotinas administrativas, tais como
atendimento telefônico, organização de documentos, organização de rotina, agendamento de
reuniões etc. Esta equipe se faz necessária para garantir que os conselheiros desempenhem
integralmente suas funções, dando prioridade absoluta à política de atendimento às crianças e
aos adolescentes. Todos CTs estudados em Guarulhos contam com o profissional. Necessário
lembrar que o assistente administrativo não é, de forma alguma, a figura que realizará os
atendimentos. Suas funções objetivam exclusivamente auxiliar o trabalho dos conselheiros, e
não agir por eles.

A assistente me atendeu, me apresentei brevemente, expliquei meus objetivos e sondei


qual seria o melhor dia para conhecer e conversar com os conselheiros.

Ela: Você quer fazer estágio?

66
No caso do CT1, após várias tentativas de contato telefônico, consegui de fato e descobri que o Conselho não
estava funcionando para atendimento presencial. O atendimento à população estava sendo feito apenas por
telefone, pois eles estavam em processo de mudança para um novo endereço.
134

Eu: (esclarecimento).
Ela: Espera, vou passar pra uma das conselheiras.
(depois de seis minutos)
Ela: Olha, a gente não costuma participar disso não.
Eu: Disso o quê? Só queria saber o melhor dia e horário pra me apresentar
pessoalmente.
Ela: Ligue amanhã, que elas já vão ter uma resposta se sim ou não.
Eu: Entendo, mas gostaria de explicar pessoalmente os objetivos do estudo
antes que elas me dissessem sim ou não.
Ela: Ligue amanhã.
[desligou].
(Caderno de campo, 10/07/2017).

As dificuldades acima elencadas têm meramente o objetivo de refletir sobre o fazer


pesquisa com instituições públicas. Ao ler vários trabalhos sobre Conselhos Tutelares, gestores,
burocracia e burocratas, percebi que os trabalhos desta área tendem a não relatar o processo de
fazer pesquisa. A impressão que se passa é de que tal processo não teve seus descaminhos. No
geral, esta descrição do processo de pesquisa é muito mais desenvolvida pela Antropologia,
mas, obviamente, pode e deve ser incorporada pelos estudiosos das instituições para provocar
reflexões estratégicas.

Nesse sentido, eu percebi que Joana (nome fictício para a assistente


administrativa) seria um problema no intermédio no contato com as conselheiras.
Fiquei em dúvida se deveria ir direto pessoalmente ao Conselho, mas de qualquer
jeito ela estaria lá e não me atenderia. Será que só ela trabalha lá? Ligar amanhã
em outro horário pra saber. (Caderno de campo, 10/07/2017).

Minha estratégia foi ligar para o CT2 em diferentes horários para tentar compreender se
havia dois assistentes e se eles atendiam o telefone em horários diferentes. Tinha o pressuposto
de que, com um segundo assistente, o tratamento seria diferente. Por sorte, havia outro
assistente e, de fato, consegui o intermédio dele para conversar pessoalmente com as
conselheiras na melhor data.

Em suma, pude apreender que se inserir no cotidiano de um órgão público demanda mais
ações que a escrita e o envio de um ofício. Por mais que os Conselhos Tutelares não tenham
sido idealizados como repartições públicas com a figura do tipo ideal do burocrata, no cotidiano
o trabalho nessas instituições segue uma lógica semelhante, com leituras burocráticas sobre
135

suas tarefas. E, nesse sentido, é importante compreendê-los em sua forma real, com suas
diferenças e similaridades, que pedem do pesquisador o jogo de cintura para se adaptar a elas.

3.2.2. ANÁLISE DOS CONTEXTOS INSTITUCIONAIS/ORGANIZACIONAIS

A lei municipal n° 6.971/11 é o instrumento normativo que provê a regulamentação


acerca dos Conselhos Tutelares de Guarulhos. Segundo tal dispositivo, os CTs vinculam-se
administrativamente à Secretaria de Assistência Social, tendência observada na maior parte do
país. Ao pesquisar o tema em questão, a Munic 2009 constatou que a maioria (83%) dos 5.472
Conselhos Tutelares do país se encontrava vinculada ao órgão gestor da assistência social,
enquanto 11% dos Conselhos estavam vinculados a outro órgão e 5% a nenhum órgão. É
importante ressaltar que a vinculação administrativa não significa subordinação, uma vez que
os CTs são autônomos.

Os conselheiros tutelares de Guarulhos recebem, atualmente, R$2.000, por mês, valor que
a prefeitura denomina de “ajuda de custo”, e não de salário. Além da ajuda de custo, os
conselheiros recebem vale alimentação e vale transporte e são assegurados pela lei municipal:
i. cobertura previdenciária; ii. gozo de férias anuais remuneradas, acrescidas de 1/3 (um terço)
do valor da remuneração mensal; iii. licença-maternidade; iv. licença-paternidade; e v.
gratificação natalina.67

Como não há pesquisas regulares sobre a situação dos Conselhos em âmbito nacional, nossa
última referência acerca dos salários dos conselheiros tutelares no Brasil é a Pesquisa
Conhecendo a Realidade – Edição 2006. A publicação constatou que a grande maioria dos
conselheiros tutelares eram remunerados em 2006. Mais da metade dos conselheiros recebia
um salário que se adequava ao salário mínimo da época: entre R$301 a 400,00 mensais. A maior
remuneração da amostra oferecia R$3.106,00 para cada conselheiro. Num olhar regional, a
região Sudeste apresentava os valores mais elevados (em média R$547,00) e a região Nordeste
oferecia as remunerações mais baixas (em média R$421,80). Os Conselhos que não
remuneravam seus conselheiros representavam 4% dos CTs pesquisados.

67
Tais direitos estão em consonância com a Lei nº 12.696/12, que regulamentou os benefícios trabalhistas dos
conselheiros tutelares.
136

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), a “lei municipal ou


distrital disporá sobre o local, dia e horário de funcionamento do Conselho Tutelar, inclusive
quanto à remuneração dos respectivos membros”. Nesse sentido, observando a disposição
orçamentária, os municípios deverão estabelecer a remuneração ou não de seus conselheiros,
fato que explica a disparidade regional observada na pesquisa Conhecendo a Realidade de
2006. O tipo de relação e de contrato de trabalho entre os conselheiros tutelares e o poder
executivo municipal e distrital apresenta-se de maneira mais clara na Resolução 139/2010 do
Conanda do que nos artigos do ECA. Neste, a indicação é de que cabe ao poder executivo
municipal e distrital definir qual será a relação contratual de trabalho estabelecida com
conselheiros tutelares, o que se alinha ao princípio da descentralização político-administrativa,
conferindo autonomia aos municípios e ao Distrito Federal para a definição dessas questões.
Em contrapartida, a Resolução Conanda 139/2010 recomenda que os conselheiros tutelares
tenham as mesmas vantagens e direitos sociais garantidos aos demais servidores municipais,
apontando de maneira assertiva que é dever do poder executivo municipal/distrital assegurá-
los.

Por mais que Guarulhos remunere seus conselheiros acima do salário mínimo vigente,
considerando o custo de vida em uma metrópole e a dedicação exclusiva demandada pelo
trabalho no Conselho, R$2.000,00 parecem não ser suficientes, observação feita por todos os
conselheiros entrevistados em nossa pesquisa.

Beth, conselheira do CT04, contou-nos que considera o salário baixo, sobretudo se


levarmos em conta o quanto os conselheiros retiram do próprio bolso.

“É carro que quebra, é água, café, açúcar e outras coisas


pro Conselho. A gente pede, coloca no orçamento, mas às
vezes demora tanto pra consertarem as coisas que a gente
vai lá e paga. Não dá pra esperar tanto assim”. (Caderno
de campo, 07/08/2017).

O voluntarismo que a função exige em alguns casos é conhecido pelo poder público
municipal. Na opinião de Bianca, do CT01, os vereadores e prefeito assimilam o voluntarismo
da profissão justamente pela pessoa ter se candidatado ao cargo, como se fosse algo feito por
amor, relembrando a dimensão caritativa que historicamente esteve atrelada à pauta infanto-
juvenil no Brasil.
137

Eles devem pensar assim: ué, você não se candidatou, não


quis ser conselheira? Se já tava sabendo do salário, por
que vai reclamar agora? (Caderno de campo, 08/08/2017).

Nesse sentido, na visão de Bianca, o processo eleitoral ao qual os conselheiros se


submetem seria utilizado pelos gestores como forma de aceitação implícita das condições de
trabalho.

Propércio Rezende, ex-conselheiro tutelar do município de Itanhanhém, consultor e


capacitador de conselheiros tutelares e de direitos, foi entrevistado por nossa pesquisa com o
objetivo de ser um interlocutor com uma visão de ex-conselheiro tutelar e capacitador, ou seja,
por ser uma figura que circunda o universo da garantia dos direitos infanto-juvenis e que poderia
fazer avaliações comparativas nesse seu período de atuação. Propércio relata-nos que, em seu
cotidiano de capacitações, não raro vê conselheiros pagando a capacitação ou deslocamento
para a capacitação do próprio bolso.

Uma vez, estava dando uma capacitação em Minas Gerais. O município Y tinha
bancado a formação dos seus conselheiros tutelares. Os conselheiros do município
vizinho ficaram sabendo e me procuraram perguntando se poderiam vir junto. Eles
disseram que o município deles nunca tinha feito capacitação nenhuma com eles e que
pagariam do próprio bolso. Alugaram a van, pagaram e vieram. (Caderno de campo,
28/06/2017).

Os conselheiros entrevistados na nossa pesquisa, no entanto, não deram respostas


unânimes quando a pergunta foi “Como mudar o salário?”. As respostas englobavam a
necessidade de leis federais, a mobilização dos próprios conselheiros frente à prefeitura, a
mobilização dos próprios conselheiros em âmbito nacional, e – resposta mais frequente –
fazendo a sociedade tomar conhecimento da situação. Segundo Bianca, a sociedade no geral
não conhece a gente. A gente tem que buscar formas de divulgar nosso trabalho, de mostrar
nossa importância.

Há um projeto de lei, de autoria do deputado federal Weverton Rocha (PDT-MA) que


objetiva instituir um piso salarial nacional para os conselheiros tutelares. Dessa feita, nenhum
município ou o Distrito Federal poderiam pagar menos do que R$3.520,00 para seus
conselheiros tutelares, submetidos a jornada de 40 horas semanais. A justificativa do projeto é:

[...]em muitos municípios os membros do Conselho Tutelar têm sido deixados de


lado em relação às políticas públicas voltadas à proteção da infância e da
138

juventude. Há notícia, como ocorre na grande maioria dos municípios do Estado


do Maranhão, de que os conselheiros percebem salário equivalente a tão somente
um salário mínimo, o que corresponde a remuneração diária de R$ 29,33 (vinte e
nove reais e trinta e três centavos). Devido a sua importância social, e em virtude
da proteção integral à criança e ao adolescente estabelecida no art. 227 da
Constituição Federal, entendemos que a remuneração dos conselheiros tutelares
deve equivaler a valor superior a um salário mínimo; e a única maneira de se
garantir esse direito é com a edição de lei nacional que estabeleça piso
remuneratório para essa categoria de trabalhadores. Assim, propomos este projeto
a fim de que o piso salarial nacional dos Conselheiros Tutelares seja fixado no
valor de R$ 3.520 (três mil, quinhentos e vinte reais), equivalentes a quatro
salários-mínimos, não podendo os entes públicos fixaram remuneração em
patamar inferior.68

Apesar da reivindicação do projeto, o mesmo não explica como municípios com


diferentes realidades orçamentárias conseguirão cumprir com o estabelecido caso o PL seja
aprovado. O projeto também não contempla as penalidades que os municípios enfrentariam no
caso de descumprimento da lei, nem os órgãos que ficariam responsáveis por tal regulação.
Todavia, num contexto em que ainda há municípios que ainda não criaram seus Conselhos
Tutelares e que oferecem salários tão distintos ao redor do país, o projeto torna-se uma
referência importante para a reflexão sobre uma maior regulação da política pública direcionada
aos CTs.

O último ponto importante trazido pela lei municipal de Guarulhos em relação aos
conselheiros tutelares é o conjunto dos requisitos estabelecidos para candidatura ao cargo.
Como vimos antes, o ECA estabeleceu apenas três critérios para participação no Conselho
Tutelar: ter idade acima de 21 anos; residir no município e ter reconhecida ideoneidade moral.
A Resolução 139/2010 do Conanda adicionou novos requisitos, a saber, experiência prévia na
promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente, formação específica sobre
o Estatuto da Criança e do Adolescente e comprovação de conclusão do ensino fundamental.
Guarulhos, por sua vez, estabeleceu os seguintes requisitos: i. reconhecida idoneidade moral;
ii. idade igual ou superior a vinte e um anos; iii. comprovação de residir, no mínimo, há dois

68
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n° 5.285, de 2016. Institui o piso salarial profissional
nacional para os Conselheiros Tutelares.Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1462474.pdf.
Acesso em: 22 de outubro de 2017.
139

anos no Município; iv. ser eleitor no Município; v. estar no gozo de seus direitos políticos
apresentando no ato da inscrição certidão expedida pela Justiça Eleitoral; vi. apresentar cópia
autenticada do histórico escolar ou declaração de conclusão de curso do ensino médio; vii.
apresentar documento com firma reconhecida que comprove experiência de dois anos de
atividades na área de atendimento ou de defesa dos direitos da criança e do adolescente; e viii.
apresentar declaração de disponibilidade para o exercício de suas funções.
Se, por um lado, essa tendência reflete a tentativa de assegurar a qualidade do
atendimento prestado a crianças e adolescentes em situação de ameaça ou violação de direitos,
por outro, pode produzir como efeito a limitação da participação da sociedade no enfrentamento
dessa situação.
O perfil dos conselheiros estudados pela nossa pesquisa diferencia-se em partes dos
achados da Pesquisa Conhecendo a Realidade – Edição 2006. Tal estudo identificou que 56%
dos conselheiros tutelares tinham o ensino médio completo, seguido de 15% de conselheiros
com ensino superior incompleto e os também 15% com ensino superior completo. No caso de
Guarulhos, a maior parte dos conselheiros entrevistados concluiu apenas o ensino médio (6) ,
mas com uma proporção próxima de conselheiros com ensino superior concluído (4). No caso
destes, as áreas de estudo são: Educação Física (1), Pedagogia (1), Psicologia (1) e Serviço
Social (1). No único caso de abandono do ensino superior, a área de estudo do conselheiro era
Direito. Por ora, interessa-nos a descrição geral do perfil dos conselheiros estudados.
Apresentaremos a percepção deles sobre o impacto deste fator para o trabalho no Conselho na
seção descritiva do perfil de cada um.

Gráfico 4 - Escolaridade dos conselheiros tutelares

4 6

Ensino Médio
Ensino superior incompleto
Ensino superior completo n = 12

Fonte: elaboração própria a partir dos dados da pesquisa de campo.


140

Outra observação acerca do panorama geral dos CTs estudados é a composição


predominantemente feminina. Segundo os conselheiros, em apenas um Conselho da cidade a
composição é de maioria masculina. De resto, todos apresentam uma proporção de 4
conselheiras para um conselheiro. Esta tendência acompanha os achados da Pesquisa
Conhecendo a Realidade – Edição 2006, que indicou presença majoritária de mulheres como
ocupantes do cargo no CT (81%). No nosso caso, tal composição dá-se da seguinte forma:

Gráfico 5 - Sexo dos conselheiros

Homens; 3

Mulheres; 9

n = 12

Fonte: elaboração própria a partir dos dados da pesquisa de campo.

Para compreender este dado, é possível uma aproximação com o que Bernadete
Baccini69 discute sobre o papel da mulher na institucionalização do atendimento à criança e ao
adolescente. Segundo a autora, em períodos anteriores, o cuidado da criança pertencia a uma
esfera estritamente privada, onde era observado o protagonismo da mulher. Com o processo de
institucionalização dos direitos e criação de legislação específica, como o ECA, o papel da
mulher frente a esse trabalho não deixou de existir. Isso foi acrescido pelo processo de
reestruturação do trabalho da mulher, a qual passou a atuar no mercado de trabalho,
preferencialmente, em funções que possuíam características próximas ao trabalho que a mulher
exercia outrora no âmbito doméstico, como por exemplo, o cuidado da criança. Portanto, há
uma tendência de feminização do cuidado com a infância, identificada principalmente pelo

69
Cf. BACCINI, B. L. S. Conselhos Tutelares: uma questão de gênero? In: SOUZA FILHO, R.; SANTOS, B. R.;
DURIGUETTO, M. L. (orgs). Conselhos Tutelares: desafios teóricos e práticos da garantia de direitos da criança
e do adolescente. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2011.
141

número de mulheres que ocupam atividades relativas a esse cuidado, tal qual a função de
conselheira tutelar.

Encerrando a apresentação geral sobre os conselheiros estudados, a faixa etária concentra-


se na faixa dos 41 a 50 anos, com seis casos, seguido de três conselheiros tutelares com 30 a 40
anos, dois com 51 a 59 anos e apenas um caso com idade entre 21 a 29 anos.

Gráfico 6 - Idade dos conselheiros

2 1

21 a 29 anos 30 a 40 anos 41 a 50 anos 51 a 59 anos n = 12

Fonte: elaboração própria a partir da pesquisa de campo.

Quanto às características organizacionais dos Conselhos, apresentaremos os elementos


de organização que foram observados nos diferentes Conselhos Tutelares. Tentamos observar,
sobretudo, como tais fatores influenciam a ação dos conselheiros. A questão que está por trás
das próximas análises é quais são as condições institucionais/organizacionais que permeiam a
atuação dos conselheiros e como elas ampliam, limitam ou direcionam sua atuação – inclusive
influenciando o exercício da discricionariedade70.

O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece parâmetros referentes ao espaço físico


do Conselho Tutelar e orienta que todo município regularize, através de lei municipal,

70
É importante ressaltar que tais observações ocorreram nos dias em que fui realizar os primeiros contatos com
os conselheiros ou então as entrevistas. Devido às limitações de campo, não foi possível uma imersão no campo
com observação frequente das rotinas. Mesmo que houvesse tempo, desconfio que não teria sido possível dado o
receio dos conselheiros tutelares em me receber.
142

orçamento próprio para funcionamento do Conselho. Assim, a lei orçamentária municipal ou


distrital deve, preferencialmente, estabelecer dotação específica para implantação, manutenção
e funcionamento dos Conselhos Tutelares.

Com o intuito de orientar a adequação dos espaços físicos dos Conselhos Tutelares, a
Resolução Conanda 139/2010 faz referência à obrigatoriedade de instalações que permitam o
adequado desempenho das atribuições e competências dos conselheiros e o acolhimento digno
ao público. Para tal, deve conter, no mínimo, placa indicativa da sede do Conselho, sala
reservada para recepção e atendimento ao público, sala reservada para o atendimento dos casos,
sala reservada para os serviços administrativos e sala reservada para os conselheiros tutelares.

Ter sala reservada para recepção e atendimento ao público faz-se necessário para
garantir que o atendimento seja rápido, simples e desburocratizado. Este preceito é assegurado
em quatro dos nossos CTs (CT2, CT3, CT4 e CT5). O CT1, por estar em fase de mudança de
espaço, não dispunha mais deste espaço específico, tendo seus atendimentos realizados apenas
por telefone. Mas, segundo os conselheiros, no novo espaço eles contariam com toda a infra-
estrutura necessária.

Em 2007, o CONANDA lançou um manual de orientações para criação e funcionamento


de Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente e Conselhos Tutelares, apoiado no
Estatuto da Criança e do Adolescente.71 Nesse manual, é sugerido que a sede do Conselho
Tutelar contenha, no mínimo, uma sala ou espaço reservado para o atendimento dos casos,
garantindo o direito ao atendimento privado e evitando que os atendidos fiquem expostos ao
público ao relatar seus problemas.

Este ponto é difícil de ser assegurado nos CTs estudados. Os CTs 02, 03 e 05 contam
com uma sala reservada para atendimento dos casos, mas, segundo os conselheiros, o pouco
espaço dificulta a manutenção desta sala. Como exemplo, vimos que a sala específica para o
atendimento dos casos do CT02 é ocupada também pela documentação e outras papeladas do
Conselho, o que acarreta que, durante os atendimentos, o assistente administrativo entre
constantemente na sala para guardar, retirar ou organizar algo.

71
Cf. BRASIL. Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e Conselho Tutelar: orientações
para criação e funcionamento. Brasília: CONANDA, 2007. Disponível em:
<http://www.sdh.gov.br/clientes/sedh/sedh/spdca/publicacoes/.arquivos/.spdca/orientacoes.pdf>. Acesso em 11
jun. 2017.
143

O CT 04, por sua vez, não conta com uma sala reservada unicamente para o atendimento
dos casos. Ao adentrar o Conselho, deparei-me com um espaço onde há um balcão de
atendimento, atendimento feito pela assistente administrativa. Neste mesmo espaço inicial,
localizam-se os documentos e uma série de arquivos do Conselho. Ao pedir para falar com uma
das conselheiras, a assistente me disse para esperar “a coordenadora”. Fui, então, levada para
outra sala, acreditando que esta seria a sala dos conselheiros. Ao perceber que não havia mais
nenhuma conselheira no espaço, perguntei à Giane (conselheira que me recebia) sobre onde
estavam as outras conselheiras. De acordo com as anotações de campo (20/07/2017),

me chamou atenção que apenas uma conselheira (Giane, a quem a assistente


administrativa se referiu como coordenadora) estava realizando os atendimentos.
Minha demanda podia esperar, então deixei todos que chegaram depois de mim
serem atendidos para eu ser a última. Não entendi por que apenas uma atendendo,
esse esquema pode ser bem demorado para quem aguarda o atendimento.

Giane me explicou que a falta de uma sala específica para a realização dos atendimentos
acaba impondo uma organização diferente para o Conselho. Justamente para não violar a
privacidade dos casos, as conselheiras revezam os dias em que estarão presentes no CT.
Segundo Giane, no dia em que as conselheiras não vão ao Conselho, elas estão na rua
cumprindo alguma tarefa.

A organização do CT 04, dessa forma, cria um padrão de atendimento individualizado,


onde os casos se tornam daquela determinada conselheira. A conselheira me confirmou que
elas evitam atender o caso que não seja delas.

Eu: Mas, Giane, se chegar uma família que vem sendo atendida pela Beth [Beth
não estava no Conselho], como você vai fazer?

Ela: Eu entro em contato com a Beth e peço pra ela comparecer. Se não tiver como
ela vir, vejo com a família se dá pra marcar outro dia, já deixo marcado o horário.
Cada uma de nós atende muitos casos, não tem como eu pegar casos que a outra
já tá cuidando. Até saber tudo que tá acontecendo, melhor deixar com cada uma.
(Caderno de campo, 20/07/2017).

Ademais, esta forma de organização abre amplo espaço ao exercício da


discricionariedade, na medida em que as decisões são tomadas, em sua maioria, conforme o
julgamento da própria conselheira. Conforme o desenrolar da conversa, fui percebendo que o
CT4 não costumava por em prática o próprio caráter de Conselho, que consiste no diálogo entre
os conselheiros sobre os casos. Se raramente todas as conselheiras estavam presentes na
144

instalação física do CT, em que momento o diálogo e a transmissão dos saberes e observações
ocorria?

De fato, a rotina de atendimento deste Conselho específico lembrava a rotina de um órgão


público, em que os cidadãos retiram a senha e esperam pelo seu atendimento individualizado.
Tal percepção vai ao encontro da de Scheinvar (2007), para quem os CTs vêm se constituindo
“em mais um território da ação personalizada”:

De maneira geral, os casos não são objeto de análise em grupo, tornando-se


atendimentos estritamente individuais. Os encaminhamentos tendem a ser
definidos apenas pela pessoa que atende o caso, que o faz sem contar com os
recursos necessários e, portanto, a partir de circunstâncias inadequadas para
assegurar a garantia de direitos e a condição cidadã. Essa tendência às práticas
individualizadas é tomada como a mais adequada, muitas vezes tidas como
inquestionáveis, não se tornando um veículo para denunciar as omissões das
políticas públicas (Scheinvar, 2007, p.07)

Para a autora, a postura de individualização dos casos assemelha-se às práticas do Judiciário,


na medida em que reproduzem a lógica das sentenças centralizadas

na figura do juiz que, de forma individualizada, mesmo contando com uma equipe
técnica, pode desconsiderar as análises, os estudos, as ponderações e opiniões da
mesma e impor suas decisões. Também no conselho tutelar, é o conselheiro ou o
técnico quem geralmente toma as decisões, já que, na maioria das vezes, elas não
passam por discussões mais coletivas. (SCHEINVAR, 2007, p.07).

Esta forma de atuação gera atendimentos que passam a depender das características pessoais
dos conselheiros,

dos recursos que consegue agilizar por esforço próprio e pressupõe o entendimento
de que as questões chegam ao conselho tutelar destituídas de suas conexões sociais
e políticas, podendo ser tratadas de forma pontual. Assim sendo, o conselheiro se
torna um especialista em soluções imediatas e localizadas de “problemas
particulares”, levando ao aconselhamento, à filantropia, à vigilância das famílias,
práticas muitas vezes apoiadas em crenças moralistas. Não dispondo de políticas
públicas que consignariam processos mais coletivos de funcionamento, essas
práticas se restringem ao espaço da competência técnica ou do olhar caritativo.
(SCHEINVAR, 2007, p.07).

Por mais que concordemos com a autora de que a rotina de trabalho dos conselheiros
tutelares vem seguido esta lógica motivada por um contexto neoliberal e, portanto, de reforço
da lógica individualizada, fica claro, no caso do CT04, o impacto que a infra-estrutura pode ter
145

na organização dos conselheiros e nas próprias estratégias que eles formulam para realizar seu
trabalho. Para a população, a questão mais flagrante talvez seja a demora no atendimento72, mas
a não coletivização das discussões sobre os casos traz uma série de implicações. Percebemos,
dessa maneira, que o princípio do caráter colegiado do Conselho torna-se uma mera abstração
quando não há espaços físicos que garantam a aplicabilidade do preceito.

Outro distanciamento do caráter coletivo do Conselho Tutelar é a hierarquização


assumida no cotidiano dos Conselhos. Isto ficou evidenciado pelo vocativo usado pela
assistente administrativa e demais conselheiras para chamar Giane: “coordenadora”. A própria
coordenadora se assumia enquanto tal.

Ao perguntar sobre a função de Giane, pergunto se ela assume mais tarefas que as outras
conselheiras e o que exatamente ela entende como coordenação. Giane diz que, por ser a mais
experiente, as conselheiras a reconheceram como aquela que poderia lhe dar mais suporte, seja
para resolução dos casos, seja para demais tarefas do Conselho. Nesse sentido, no CT4, os casos
circulam em dupla. Giane sabe dos atendimentos de cada uma das conselheiras, e é junto com
cada uma delas que Giane vai atuar. Como figura reconhecidamente mais conhecedora das
exigências que a tarefa demanda, Giane assumiu o posto de coordenação e é assim que é
chamada.

O caso descrito é interessante para algumas reflexões. A primeira delas é que Guarulhos
demanda experiência prévia na área da infância e da adolescência de do mínimo dois anos para
alguém poder se tornar conselheiro tutelar. Assim sendo, todas as conselheiras têm experiência
na área (mesmo que “a área” possa abarcar inúmeras ocupações), mas mesmo assim se sentem
mais confortáveis elegendo alguém mais experiente para ajudarem-nas no cotidiano de

72
Imprenscindível citar o texto de Javier Auyero feito a partir de uma etnografia em centros de prestação de
serviços sociais na Argentina. O autor realiza uma “sociologia da espera”: a ideia é entender qual o significado
que a "espera" tem na vida cotidiana de um cidadão. A espera é um elemento de subordinação, já que coloca o
tempo de quem espera como menos valioso do que o tempo do outro. Quando o Estado faz os cidadãos
"esperarem", ele está construindo uma ideia de subordinação, de dominação, ensinando aos cidadãos que eles
devem ser "pacientes" (em sentido duplo) para poderem ser merecedores dos benefícios. Esta subordinação é
criada e recriada por diversos atores estatais através da criação da "espera". E nestes encontros recorrentes dos
cidadãos com o Estado (e suas esperas), as pessoas pobres aprendem que, apesar dos atrasos e aleatoriedades que
o Estado promove, precisam concordar com as demandas impostas pelos agentes estatais e por seus sistemas. Ver
AUYERO, JOSE. Patients of the State: an etnographic account of poor people’s waiting. Disponível em:
http://lasa.international.pitt.edu/LARR/prot/fulltext/vol46no1/Auyero_5-29_46-1.pdf. Acesso em: 01 de
novembro de 2017.
146

trabalho. Perguntamo-nos, então, o que qualifica um conselheiro tutelar a conseguir exercer


suas funções?

Como veremos adiante, a formação continuada oferecida aos conselheiros da cidade não
fornece os elementos necessários para a multiplicidade de tarefas de um conselheiro tutelar.
Esta percepção é compartilhada pelas conselheiras do CT4, que vínhamos examinando. Nesse
sentido, se a formação específica é deficiente e falha, o conselheiro acaba demandando outros
apoios para galgar algum êxito. O apoio, no caso do CT4, é na trajetória particular de Giane,
que acaba sendo reconhecida como alguém que pode nos ajudar. Scheinvar (2007) também
aponta para esta tendência de hierarquização, sem explicar, todavia, os fundamentos de tal
processo:

A maioria dos conselhos tutelares no Brasil tem adotado uma estrutura hierárquica
sustentada na escolha que eles próprios fazem de um conselheiro-presidente,
afastando-se, assim, da proposta de gestão colegiada. (SCHEINVAR, 2007, p.07).

Também deve ser considerada nas análises a trajetória anterior ao Conselho das
conselheiras. O debate, diálogo e a tomada de decisões conjuntamente não integram a cultura
do mundo do trabalho. Por mais que as conselheiras tivessem experiência na área da infância e
da adolescência, esta não é suficiente para prepara-las para o desenho participativo do Conselho
Tutelar. Desta feita, as análises devem considerar que tais noções não fizeram parte da vida dos
conselheiros tutelares por um bom tempo, o que significa dizer que estes não a incorporam
automaticamente em sua rotina. Estamos de acordo com Pateman (1992, p.60) no entendimento
de que

são os indivíduos e seus valores que formam as instituições ao mesmo tempo que
estas devem estimular o desenvolvimento das qualidades psicológicas destes
indivíduos. Por isso, a função da participação na democracia é educativa: quanto
mais o indivíduo participa do processo decisório, mais ele estará apto a participar.

Ao estudarmos o CT5, observamos que este preza pelo diálogo constante dos conselheiros
para execução das tarefas. Segundo os conselheiros entrevistados, no geral, há uma reunião por
dia, mesmo que seja rápida, para que os conselheiros se informem dos últimos acontecimentos.
O colegiado não tem nem discussão...tem que ter o colegiado, aqui a gente garante ele, nos diz
Ivan, conselheiro que assumiu o cargo no início deste ano, um ano depois dos demais. Acho
que é um trabalho tão puxado que, se não tiver conversa, fica todo mundo doido. O colegiado
é o momento mais produtivo, a gente consegue ter muito mais base, continua.
147

No caso do CT5, este Conselho conta com todos os espaços que um Conselho deveria
contar. Há a sala de recepção, de atendimento dos casos, a sala para os próprios conselheiros,
sala de reunião e sala para armazenamento dos materiais administrativos. A gente conserva bem
o Conselho. Pelo o que ouço falar, tem Conselho que não tem nem a identificação dos casos
nas pastas porque diz que não tem material pra fazer. A gente tem as salas, computador,
internet, celular, até que estamos bem, observa Ivan, conselheiro entrevistado. Nesse ponto,
observamos que os conselheiros deste Conselho se utilizam de grupos em aplicativos para
manter a conversa em dias que não estão todos no Conselho. É importante saber o que o outro
tá fazendo. É também segurança, a gente não sabe o que pode acontecer quando outro
conselheiro tá na rua.

A edição de 2006 da pesquisa Conhecendo a Realidade constatou que a capacitação


inicial para o conselheiro tutelar, ainda que não fosse prevista em lei, era uma prática adotada
por parte significativa dos Conselhos respondentes, pois 68% deles informaram ter um ou mais
conselheiros com capacitação inicial. Esta prática tinha, basicamente, a proposta de apresentar
os procedimentos operacionais do Conselho Tutelar, suas atribuições e temas relacionados à
infância e adolescência, como forma de qualificar os conselheiros como agentes de proteção
dos direitos da criança e do adolescente.
O percentual de Conselhos cujos conselheiros não tinham recebido qualquer capacitação
inicial também foi considerado elevado (32%) na época e se pôde concluir que a falta de
investimentos para o preparo desses conselheiros no exercício de suas atribuições seria uma das
causas para a ausência de ferramentas e procedimentos geradores de eficiência e de efetividade
das atividades dos Conselhos Tutelares. Os dados da pesquisa nacional subsidiaram, juntamente
com outros dados, a formulação da política de criação de Escolas de Conselhos pelo
CONANDA como forma de estimular e organizar a capacitação de conselheiros tutelares e de
direitos.
Em Guarulhos, os conselheiros receberam capacitação no decorrer do mandato,
precisamente após seis meses do início das atividades. A Secretaria de Desenvolvimento e
Assistência Social foi a principal responsável pela capacitação dos Conselhos Tutelares a qual
teve uma carga de 75 horas.
Um dos estudos que precisa ser realizado dentro do tema é o impacto das Escolas de
Conselhos na formação dos conselheiros. Para constituir a Escola de Conselhos, a Secretaria de
Direitos Humanos, em parceria com o Conanda, habilitou instituições interessadas em
desenvolver ações de formação continuada para os conselheiros de direitos e conselheiros
148

tutelares. Esta iniciativa envolveu e ainda envolve a participação dos Conselhos Estaduais dos
Direitos da Criança e do Adolescente, bem como os órgãos estaduais que outrora estiveram
envolvidos nestas formações. É possível que tais órgãos não estejam mais envolvidos
diretamente nessas capacitações, mas sim que elas sejam feitas através das Escolas de
Conselhos. O mesmo seria válido para outras instituições. À medida que as Escolas de Conselho
vão sendo implantadas nos estados do Brasil (ainda que tenham sido em somente 22 estados,
até o momento da pesquisa), espera-se que outras instituições deixem de capacitar os Conselhos
Tutelares das regiões. Pode-se concluir que além de os próprios Conselhos Municipais de
Direitos da Criança e do Adolescente tratarem da capacitação dos Conselhos Tutelares, com
foco nas necessidades específicas do município, há a tendência de que as Escolas de Conselhos
se propaguem por todo o país, com o desafio de unificar e normatizar os conteúdos trabalhados
em todos os estados brasileiros.

Retornando ao caso de Guarulhos, os temas abordados no programa de formação foram


voltados, principalmente, para demandas vivenciadas no atendimento direto à população –
enfrentamento à violência e ao abuso sexual; enfrentamento ao uso/abuso de álcool e drogas;
convivência familiar e comunitária; prevenção e erradicação do trabalho infantil e crianças e
adolescentes em situação de rua. Foi observado que os principais temas das capacitações
forneceram aos conselheiros conteúdos educativos para lidar com questões referentes ao
atendimento direto ao público. Nesse sentido, os Conselhos Tutelares buscaram qualificar seus
conselheiros para lidaram com questões cotidianas do seu trabalho, principalmente os aspectos
do atendimento. Formações com conteúdos que se referiam à atuação para as políticas públicas
– por exemplo, “Orçamento Criança e Adolescente73” ou ainda “o conceito de rede local de
atendimento e de defesa” – não foram abordadas. Esses dados indicam que o foco em
determinados temas na capacitação dos conselheiros pode representar um obstáculo ao
equilíbrio no desempenho de funções e dificultar a atuação do conselheiro na elaboração de

73
O Orçamento Criança e Adolescente – OCA - é um instrumento que facilita o controle social do orçamento
público destinado à garantia dos direitos da criança e do adolescente nas instâncias municipal, estadual e federal.
A metodologia do OCA está disponível aos conselheiros na cartilha De olho no orçamento criança – Atuando
para priorizar a criança e o adolescente no orçamento público, editada pela Fundação ABRINQ, INESC e
UNICEF em 2005. Fundação Abrinq. Fundo das Nações Unidas para a Infância. Instituto de Estudos Econômicos.
De olho no orçamento da criança. Disponível em:
<http://www.unicef.org/brazil/pt/de_olho_orcamento_crianca.pdf>. Acesso 13 jun 2016.
149

políticas públicas na área da infância e juventude, tal como preconiza o ECA em seu artigo 136
(incisos III e IX).

3.2. Fatores relacionais: o papel das redes sociais e do perfil dos conselheiros tutelares
na elaboração de políticas públicas

No subitem anterior, analisamos o histórico, os indicadores e a situação do CMDCA no


município de Guarulhos. Além disso, tratamos dos fatores institucionais e organizacionais e de
seus impactos para o cotidiano de trabalho dos Conselhos Tutelares. Nesse tópico, voltaremos
nosso olhar para outro conjunto de fatores importantes para compreender a articulação dos
Conselhos Tutelares na elaboração de políticas públicas: o perfil dos conselheiros e os fatores
relacionais.

A fim de entendermos o papel dos conselheiros tutelares na elaboração das políticas


públicas de infância e adolescência, é importante observar algumas características que podem
impactar a forma como atuam. Para tanto, valer-nos-emos de análises relacionadas a questões
individuais (como idade, experiências anteriores ao Conselho, anos de moradia na cidade,
escolaridade etc.). Em primeiro lugar, apresentaremos um perfil dos conselheiros entrevistados,
a fim de compreendermos algumas características básicas deles e que diferenciam cada um dos
Conselhos. A tabela a seguir apresenta as características sistematizadas do perfil dos
conselheiros.

Tabela 13: Características dos conselheiros estudados


150

CT01 CT02 CT03 CT04 CT05


Giane - 40 a 50 anos
Bianca - 20 a 30 anos Márcio - 20 a 30 anos
Izilda - 50 a 60 Beth - 40 a 50 anos Ivan - 50 a 60
Idade Paulo - 40 a 50 anos Ariane - 30 a 40 anos
anos Carla - 30 a 40 anos anos
Roseli - 40 a 50 anos Viviane - 40 a 50 anos
Sueli - 48 anos
1 homem 1 homem
Sexo 01 mulher 04 mulheres 01 homem
2 mulheres 2 mulheres
Márcio - Mais de 20 anos Giane - Mais de 40 anos
Bianca - Mais de 20 anos
Tempo de residência no Ariane - Menos de cinco Izilda - Mais de Beth - Mais de 40 anos Ivan - Mais de
Paulo - Mais de 20 anos
município anos 50 anos Carla - Mais de 30 anos 50 anos
Roseli - Mais de 40 anos
Viviane - Mais de dez anos Sueli - Mais de 40 anos
Márcio - cinco a dez anos Giane- 20 a 30 anos
Bianca - dois a cinco anos
Tempo de experiência na área anos Izilda - dez a 20 Beth - dez a 20 anos
Paulo - dez a 20 anos 30 a 40 anos
da infância e da adolescência Ariane - dez a 20 anos anos Carla - cinco a dez anos
Roseli - 20 a 30 anos
Viviane - cinco a dez anos Sueli - cinco a dez anos
Paulo
Ensino Médio Viviane Izilda Sueli Ivan
Roseli
Ensino superior
Márcio - Direito
incompleto
Escolaridade Giane - Serviço Social
Ensino superior completo Ariane - Psicologia Carla - Pedagogia
Beth - Educação Física

Pós-graduação Bianca - Administração


Giane
Católica Paulo Márcio Sueli Ivan
Carla
Protestante Roseli Viviane Izilda Beth
Religião
Espírita kardecista Bianca

Sem religião Ariane

Profissionais

Associações de
Márcio Ivan
Moradores de Bairro
Ivan - Partido
dos
Partidos políticos
Trabalhadores
Associações
(PT)
Associações ligadas à Giane
Paulo Márcio Izilda Ivan
religião Beth
Outros movimentos
sociais
Bianca Ariane Sueli
Nenhuma
Roseli Viviane Carla

Fonte: elaboração própria.

Os conselheiros entrevistados para a pesquisa possuem uma idade média de 43 anos,


sendo a idade mais baixa a de 28 anos e a mais alta a de 58 anos (dois casos). Nossa amostra é
sobretudo feminina, com a proporção de nove mulheres para três homens. O tempo médio de
residência em Guarulhos é de 36 anos, com conselheiros que moram no município desde que
nasceram e um caso de uma conselheira que mora há apenas quatro anos. O tempo médio de
experiência na área da infância e da adolescência é de 15 anos. Este item pode ser bastante
amplo e abarca diferentes tipos de experiência, tais como catequistas, voluntariado em
organização não governamental que atende criança e adolescente, professores, cuidadores, etc.
Nossa amostra, em sua maioria, chegou até o Ensino Médio em anos de escolarização (requisito
para ser conselheiro tutelar em Guarulhos). Já as áreas de formação das conselheiras que
concluíram o ensino superior são diversas, indo do Serviço Social à Educação Física. Apenas
151

uma conselheira, coincidentemente a mais nova, concluiu pós-graduação (Administração de


empresas).

Nossa amostra é majoritariamente religiosa. Houve apenas uma conselheira que declarou
ser sem religião. Dentre os religiosos, há a maior presença de católicos; seguidos dos
evengélicos e, por fim, um caso de uma conselheira espírita kardecista. Chama atenção que a
religião, no caso dos conselheiros estudados, se estende também para a participação em
associações religiosas. Muitos conselheiros, inclusive, têm sua experiência na área da infância
e da adolescência prévia ao Conselho Tutelar marcada pela trajetória de atuação no âmbito
religioso. Esta questão é importante, pois veremos como os conselheiros visualizam a esfera
religiosa como solução dos vários problemas enfrentados no dia-a-dia dos Conselhos.

Não foi possível encontrar muitos materiais de campanha utilizados na eleição de 2015
para os Conselhos. No que segue abaixo, vemos como os candidatos chamavam a atenção para
o fato de serem religiosos. Tal característica, portanto, os atribuiria capacidade para uma boa
atuação:
152

Figura 6 - Material de campanha – Eleição para os Conselhos Tutelares (Guarulhos, 2015)

Fonte: Guaruevocê. Guarulhos fará seleção de novos conselheiros tutelares. Acesso em: 23 de
outubro de 2017. Disponível em: http://guaruevoce.com.br/guarulhos-fara-selecao-de-novos-
conselheiros-tutelares/
153

De forma geral, como tivemos um número de entrevistas que variou de Conselho para
Conselho (no CT04 conseguimos fazer quatro entrevistas e no CT03 e 05 apenas uma, por
exemplo), é difícil fazer afirmações sobre o perfil geral de cada Conselho com base nas
informações que recolhemos. Em outras palavras, é difícil projetar as características pessoais
de um conselheiro para o Conselho como um todo quando temos apenas um caso estudado. Por
esse motivo, adotamos como critério para apresentação dos dados a classificação obtida a partir
das entrevistas realizadas, ou seja, apresentaremos os resultados por perfil semelhante de
conselheiros, o qual não agrupa necessariamente conselheiros do mesmo CT. O perfil foi
formado a partir das respostas que os conselheiros deram em relação ao encaminhamento das
demandas e as demais impressões semelhantes sobre a atuação do Conselho Tutelar.
Analisaremos, portanto, os diferentes perfis de conselheiros e os sentidos que eles dão para a
atuação do e no Conselho Tutelar.

3.2.1. Os conselheiros tutelares por eles próprios: trajetórias e significação às sua ações

Com alguns conselheiros tutelares, conseguimos fazer entrevistas mais longas e que nos
permitiram aprofundar temas relacionados à pesquisa, mas que não cabiam apenas no momento
de aplicação do questionário. Assim, procederemos agora à explicitação dos perfis de
conselheiros agrupados de acordo com suas percepções sobre as demandas recebidas, a
frequência, a prioridade e a identificação da rede ativada para encaminhar a demanda. Tal
critério foi utilizado por ser o elemento distintitivo entre os conselheiros, sobretudo em relação
à percepção deles sobre a prioridade em atuar no campo das políticas públicas. Nesse sentido,
não serão apresentados os dados relativos ao total de conselheiros estudados (12), e sim os
dados dos conselheiros que tinham elementos em comuns com outros. O interessante é notar
que, dentro de um mesmo Conselho, diferentes conselheiros dão distintas significações às suas
atribuições e formas de agir.

Grupo 1: Demandas por problemas familiares, descrença no setor público e poucas


articulações.

Ariane, Izilda e Viviane

Ariane trabalha no CT02 e está na faixa dos 30-40 anos e reside em Guarulhos há menos
de cinco. Segunda ela, ainda não se adaptou bem à cidade. Ela morava em São Paulo e se mudou
para Guarulhos pois o marido se estabeleceu em outro emprego. É formada em Psicologia –
154

maior escolaridade dos conselheiros entrevistados no CT02 – mas nunca chegou a exercer a
profissão.

É a única dos conselheiros entrevistados que se declarou “sem religião”, motivo


provável para traçar menos paralelos da atuação no Conselho com a esfera religiosa. Apesar de
atualmente não participar de nenhuma associação, Ariane diz que foi voluntária por um tempo
numa ONG que cuidava de crianças em orfanatos, trajetória que serviu de base para sua
experiência na área da criança e do adolescente e que a ensejou a entrar no CT. Eu não estava
trabalhando, e como tinha tido contato com as crianças do abrigo, achei que pudesse ajudar.
Eu pensava que era concurso, depois que fui entender que era eleição e que o cargo não era
efetivo.

A conselheira afirma que o trabalho de um ano e meio no Conselho Tutelar serviu para
desanimá-la ainda mais com os serviços públicos. Como precisa estar em com diversos órgãos
cotidianamente, diz que o governo é muito ineficiente. Ariane pensa em sair do CT em breve,
pois o marido cogita morar no Canadá em busca de melhores condições de vida. Lá as coisas
funcionam.

Izilda, que reside no município desde que nasceu, declara ter a sensação de que o
trabalho no Conselho é necessário porque há um problema nos valores atuais. A conselheira,
que tem de 50 a 60 anos e reside em um bairro periférico de Guarulhos, declara que vê de perto
no cotidiano da sua família, do seu bairro e do seu trabalho os problemas que, uma vez levados
ao Conselho, se transformam em algo muito maior.

No meu Conselho uma das demandas que mais surge é sobre o uso de drogas por parte
dos adolescentes. Eu vejo isso muito no meu bairro. Tem muitas festas que eles fazem e tem o
uso de drogas. O Conselho não consegue resolver isso, nem a polícia. Falta um maior controle
dos pais.

Nesse ponto, Izilda concorda com Ariane ao identificar que o trabalho do Conselho é
dificultado pela situação das outras instâncias do serviço público. Tendo identificado as
demandas mais urgentes no Conselho (requisição de vaga em creche e uso de drogas por
crianças e adolescentes), Izilda relaciona a urgência constante à ineficiência dos aparelhos que
poderiam solucioná-las. Segundo ela, ela quase desistiu de pedir vaga em creche e de ver
adolescente voltar a usar droga.

Viviane, que se encontra na faixa dos 40-50 anos e mora em Guarulhos há pouco mais de
dez, também detém a visão de que o Conselho Tutelar atua basicamente para administrar
155

conflitos familiares. A conselheira, que é protestante, ressalta que muitos casos que chegam ao
CT são relacionados à indisciplina e à administração de conflitos a nível intrafamiliar. Para ela,
deveria haver uma lei destinada a casais que querem ter filhos com o intuito de estabelecer
regras universais. Viviane pensa em fazer uma parceria oficial entre o Conselho e sua igreja
visando atender aos pais que receberam notificação do Conselho.

Para a conselheira, que é mãe de três filhos, as famílias hoje em dia não sabem mais
conviver. Muita coisa que chega aqui é básica, daria pra própria família resolver. Por exemplo,
você tá falando com a criança e vê que a mãe tá no celular, não tá nem prestando atenção.
Precisamos de algo que ensine as pessoas a conviverem.

A parceria oficial entre o CT e a igreja que a conselheira frequenta dar-se-ia por meio
de um curso oferecido em polos de diferentes igrejas do município e ensinaria princípios
bíblicos – os quais, segundo Viviane, apesarem de estarem dentro da visão religiosa – são os
princípios corretos e seguros para a vida em família. A ideia de Viviane tem o apoio de uma
outra conselheira com a qual trabalha. Para as duas, os serviços oferecidos pela rede pública
são muito morosos e muitas vezes nem se sabe se a criança ou o adolescente vai conseguir obtê-
lo.

Por exemplo, em relação às drogas. A demanda do CREAS é muito alta, demora meses
pra conseguir repassar a demanda, e ela é muito urgente. Por isso a gente precisa da igreja,
quem sabe assim a gente não consegue diminuir o número de casos.

Nesse sentido, as conselheiras deste grupo dirigem sua crítica à demora em obter os
serviços públicos para a população atendida diante de situações que, não raramente, são de
extrema urgência. De fato, se nos atentarmos ao leque de atribuições dos conselheiros tutelares,
veremos que suas funções consistem basicamente em repassar em demandas. Todavia, a
especificidade da tarefa é atender os casos e repassar as demandas, o que coloca os conselheiros
numa situação limítrofe ao ter que explicar para a população que a solução dos casos não
depende dele. Por mais que a pesquisa não tenha se dedicado a investigar as impressões da
população sobre o serviço, o resultado dessa equação é fácil de ser adivinhado: pessoas
insatisfeitas com o trabalho dos conselheiros, situação típica de quem atua “na ponta”
(burocratas de nível de rua).

No caso da conselheira Ariane, a solução encontrada por ela é sair do Conselho Tutelar
pensando em sair do país. Já no caso de Izilda e Viviane, esta situação poderia ser formulando
regras universais para as famílias, que tumultuariam menos o cotidiano dos Conselhos se
156

aprendessem a conviver. Viviane, apesar de defender a promulgação de uma lei como essa, se
antecipa na direção de rascunhar um projeto coletivo com as instituições religiosas, nas quais a
conselheira acredita e acha que haverá resultados rápidos e efetivos. O interessante é notar
também que a conselheira pensa na promulgação de uma nova lei para o problema que aponta.
O dispositivo jurídico, dessa feita, torna-se objeto de resolução dos conflitos sociais.

Sendo os serviços públicos fonte de mais problemas que ajudas, as conselheiras deste
grupo não visualizam a parceria com o poder público na formulação de projetos que possam
mudar o quadro de violações. Tal apontamento fica visível em suas respostas sobre a atribuição
de assessorar o poder executivo local, conforme representado na tabela abaixo:

Tabela 14 – Identificação da demanda, frequência, prioridade e encaminhamento


das conselheiras do grupo 01.

Identificação da
Frequência Prioridade Encaminhamento
demanda

Atender crianças e
Ariane: Escola, CRAS,
adolescentes
Sempre: 3 Emergência: CREAS.
ameaçados ou
(Ariane, 3 (Ariane, Izilda: CRAS, CREAS,
violados em seus
Izilda e Izilda e família.
direitos e aplicar
Viviane) Viviane) Viviane: Escola, CRAS,
medidas de
CREAS, Igreja.
proteção
Atender e
aconselhar os pais Ariane: CRAS, CREAS,
ou responsáveis, CAPS, Alcóolatras
Sempre: 3 Emergência:
aplicando as Anônimos.
(Ariane, 3 (Ariane,
medidas previstas Izilda: CRAS, CREAS,
Izilda e Izilda e
no art. 129, I a VII família.
Viviane) Viviane)
do Estatuto da Viviane: Escola, CRAS,
Criança e do CREAS, Igreja, Hospital.
Adolescente (ECA)
Promover a
execução das Urgente: 2 Ariane: Vara da Infância
Às vezes: 2
decisões do CT, (Ariane e e da Juventude.
(Ariane e
encaminhando à Viviane) Izilda: Vara da Infância e
Viviane)
autoridade Pouco da Juventude.
Raramente: 1
judiciária os casos urgente: 1 Viviane: Vara da Infância
(Izilda)
de (Izilda) e da Juventude,
descumprimento Ministério Público.
157

injustificado de
suas deliberações

Encaminhar ao
Ministério Público
notícia de fato que Sempre: 3 Urgente: 3
constitua infração (Ariane, (Ariane, Ariane, Izilda e Viviane:
administrativa ou Izilda e Izilda e Ministério Público.
criminal contra os Viviane) Viviane)
direitos de criança
ou adolescente
Encaminhar à Sempre: 3 Urgente: 3
Ariane, Izilda e Viviane:
autoridade (Ariane, (Ariane,
Vara da Infância e da
judiciária os casos Izilda e Izilda e
Juventude.
de sua competência Viviane) Viviane)
Tomar providência Ariane: Vara da Infância
para que sejam e da Juventude,
cumpridas as Fundação CASA.
Sempre: 3 Urgente: 3
medidas protetivas Izilda: Vara da Infância e
(Ariane, (Ariane,
aplicadas pela da Juventude, Fundação
Izilda e Izilda e
Justiça a CASA, Famílias.
Viviane) Viviane)
adolescente Viviane: Vara da Infância
autores de atos e da Juventude,
infracionais Fundação CASA, escola.
Requisitar
certidões de
nascimento e de Sempre: 2 Pouco
óbito de criança ou (Izilda e urgente: 3 Ariane: Cartório, Vara da
adolescente Viviane) (Ariane, Infância e da Juventude.
quando necessário Às vezes: 1 Izilda e Izilda: Cartório.
(não incluindo (Ariane) Viviane) Viviane: Cartório, Vara
reconhecimento de da Infância e da
paternidade) Juventude.
Sempre: 3 Urgente: 3 Ariane: Famílias.
Expedir (Ariane, (Ariane, Izilda: Famílias, escolas.
notificações Izilda e Izilda e Viviane: Famílias, escolas,
Viviane) Viviane) hospitais.
Assessorar o Poder Raramente: 3
Pouco
Executivo local na (Ariane, Ariane: (sem indicação).
urgente: 3
elaboração da Izilda e Izilda e Viviane: CMDCA
(Ariane,
proposta Viviane) e Assistência Social.
158

orçamentária para Izilda e


planos e Viviane)
programas de
atendimento dos
direitos da criança
e do adolescente
Encaminhar ao
Ministério Público
ações de perda ou
suspensão de Emergência:
Às vezes: 2
pátrio poder 2 (Izilda e
(Ariane e
familiar, após Viviane) Ariane, Izilda e Viviane:
Viviane)
esgotadas as Pouco Ministério Público.
Raramente: 1
possibilidades de urgente: 1
(Izilda)
manutenção da (Ariane)
criança ou do
adolescente junto à
família natural
Fiscalizar as
entidades de
atendimento
governamentais e
não-
Sempre: 2
governamentais, Urgente: 3
(Izilda e
aplicando medidas (Ariane,
Viviane)
de advertência e, Izilda e Ariane: Vara da Infância
Às vezes: 1
nos casos de Viviane) e da Juventude.
(Ariane)
reincidência, Izilda: Vara da Infância e
representando à da Juventude.
autoridade Viviane: Vara da Infância
judiciária e da Juventude,
competente Ministério Público.
Promover e
incentivar, na
comunidade e nos
Urgente: 2 (
grupos Às vezes: 1
Izilda e
profissionais, ações (Viviane)
Viviane)
de divulgação e Raramente: 2
Pouco
treinamento para o (Ariane e
urgente: 1
reconhecimento de Izilda) Ariane: (sem indicação).
(Ariane)
sintomas de maus- Izilda: Famílias.
tratos em crianças Viviane: Famílias e
e adolescentes Igreja.
159

Fonte: elaboração própria.

A partir da análise da tabela acima, vimos que as demandas que o grupo 01


uniformemente encara como mais frequentes são i. atender crianças e adolescentes ameaçados
ou violados em seus direitos e aplicar medidas de proteção; ii. atender e aconselhar os pais ou
responsáveis, aplicando as medidas previstas no art. 129, I a VII do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA); iii. encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração
administrativa ou criminal contra os direitos de criança ou adolescente; iv. encaminhar à
autoridade judiciária os casos de sua competência; v. tomar providência para que sejam
cumpridas as medidas protetivas aplicadas pela Justiça a adolescente autores de atos
infracionais e vi. expedir notificações. As demandas “requisitar certidões de nascimento e de
óbito de criança ou adolescente quando necessário (não incluindo reconhecimento de
paternidade)” e “fiscalizar as entidades de atendimento governamentais e não-governamentais,
aplicando medidas de advertência e, nos casos de reincidência, representando à autoridade
judiciária competente” foram identidicadas como muito frequentes (sempre) por Viviane e
Izilda, mas como menos frequente (às vezes) para Ariane. Mesmo Ariane integrando o mesmo
conselho de Viviane (CT02), a percepção sobre frequência, prioridade e encaminhamento não
é a mesma entre as duas.

As demandas com as quais as conselheiras têm menos contato são i. promover a execução
das decisões do CT, encaminhando à autoridade judiciária os casos de descumprimento
injustificado de suas deliberações; ii. encaminhar ao Ministério Público ações de perda ou
suspensão de pátrio poder familiar, após esgotadas as possibilidades de manutenção da criança
ou do adolescente junto à família natural e iii. promover e incentivar, na comunidade e nos
grupos profissionais, ações de divulgação e treinamento para o reconhecimento de sintomas de
maus-tratos em crianças e adolescentes. Sobre a demanda de descumprimento injustificado de
suas deliberações, as conselheiras Ariane e Viviane, que responderam “às vezes”, informaram
que a maior descumpridora das deliberações do Conselho é a prefeitura do município em
relação às vagas em creches ou em matrículas no ensino fundamental. As duas reclamam da
quantidade de pedidos e reclamações que ouvem da população nesse ponto, população que não
entende, segundo elas, que “é a prefeitura que resolve”.

Apesar de o Conselho Tutelar ter perdido suas antigas funções no processo de perda ou
suspensão do pátrio poder familiar, as conselheiras Ariane e Viviane declararam lidar a
demanda algumas vezes. Já em relação à promoção para o reconhecimento de sintomas de
160

maus-tratos em crianças e adolescentes, Viviane declarou lidar “às vezes” com a demanda, e a
concretiza em ações de treinamento na igreja da qual participa.

Já a demanda que as três identificaram com a menor frequência (raramente) é a de


assessorar o Executivo local. Esta percepção sobre a demanda estende-se também às respostas
sobre a prioridade com a qual esta demanda é tratada: as três declararam ser “pouco urgente”.
Tal percepção sobre a prioridade só é compartilhada com a de “requisitar certidões de
nascimento e óbito”. Sobre o assessoramento ao poder executivo na elaboração da proposta
orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente,
não atender plenamente a essa demanda aponta o desafio a ser enfrentado a fim de assegurar
que os conselheiros tutelares atuem não também politicamente, contribuindo para a proposição
de políticas públicas para crianças e adolescentes por meio da participação no orçamento
municipal.

As conselheiras Ariane e Viviane também informaram ser solicitadas, por autoridades


públicas e pela população, a realizarem funções que não fazem parte das suas atribuições legais.
Nesse sentido, revelam o impasse entre atender ou não a demanda que chega ao Conselho. É o
caso da mediação de problemas de disciplina escolar e da fiscalização sistemática em bares,
restaurantes, boates e congêneres em busca de identificação de crimes ou infrações
administrativas contra crianças e adolescentes. Os exemplos citados demonstram equívocos no
entendimento sobre a atuação do Conselho Tutelar por parte das autoridades públicas, da
população e do próprio Conselho, na medida em que este último realiza funções que não lhe
são legalmente atribuídas, quando deveria se opor a tal exercício, ao mesmo tempo em que não
exerce as atividades que lhe são designadas.

Deve-se ressaltar que o Conselho Tutelar não foi criado para atuar como agente
disciplinador da escola e que a disciplina escolar deve estar prevista no regimento das escolas,
conforme prevê a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN – Lei 9.394/1996).
Segundo a LDBEN e o Plano Nacional da Educação (Lei 10.172/2001), a elaboração do
regimento escolar deve contar com a participação de professores, alunos, pais e da comunidade.

No mesmo sentido, o Conselho Tutelar não é o órgão legalmente responsável por


fiscalizar bares, restaurantes, boates e congêneres. A venda de bebidas alcoólicas, por exemplo,
é proibida a crianças e adolescentes. A fiscalização sobre o ato de vender bebidas fica a cargo
do órgão municipal de fiscalização do comércio. Essa é diferente da atribuição do Conselho
Tutelar, que é a de requisitar serviços de saúde à criança e ao adolescente que faça uso de bebida
alcoólica, ou ainda aos seus pais, que podem ser encaminhados a programa oficial ou
161

comunitário de proteção à família ou dirigidos a programa oficial ou comunitário de auxílio,


orientação e tratamento a alcoólatras, dependendo do caso.

• Análises de rede

Segundo Eduardo Marques (2012, p.09),

as redes sociais compõem o tecido das relações entre indivíduos, grupos e


entidades nas sociedades, estruturando os campos onde os fenômenos sociais
acontecem. Em escala micro-social, as relações construídas de forma diuturna por
indivíduos e entidades tecem padrões de relação no interior dos quais se desenrola
a sociabilidade cotidiana, onde se resolvem problemas e se buscam ajudas, onde
se encontra trabalho e onde se constroem e transformam laços sociais. Por outro
lado, a teia constituída pelos vínculos entre indivíduos, grupos e organizações
estrutura as relações de poder e os conflitos políticos presentes no Estado e em seu
entorno imediato, envolvendo organizações sociais, agências e agentes estatais e
usuários das políticas. Ao mesmo tempo, outros padrões de relações, por vezes
interpenetrados com aqueles, estruturam os campos de entidades civis e
organizações políticas que influenciam o provimento de bens e serviços pelo
Estado. Por fim, no que diz respeito às desigualdades sociais, a distribuição do
bem-estar é fortemente influenciada pela mediação exercida pelas redes no acesso
dos indivíduos às várias fontes de bens e serviços, materiais e imateriais, sejam
elas providas pelos mercados e pelo Estado, sejam envolvidas com a própria
sociabilidade no cotidiano.

A chamada “análise de redes” tem relação intrínseca com a sociologia relacional. Dentro
dessa matriz teórica, a ideia-chave é que “o principal elemento e a fonte da dinâmica dos
processos sociais são as relações entre entidades, grupos sociais e indivíduos” (MARQUES,
2012, p. 11). Nesse sentido, é comum entre alguns estudos realizar apenas a metáfora das “redes
sociais”, querendo fazer referência à premissa básica da sociologia relacional. No entanto,

Foi a utilização da metodologia de redes que permitiu os avanços mais


significativos para o entendimento da política e da sociedade na literatura
internacional, ao possibilitar a análise sistemática de padrões relacionais
complexos e de grandes dimensões que não poderiam ser analisadas
sistematicamente através da mera mobilização das metáforas. Nesse sentido, não
se trata apenas de reafirmar a importância das relações (o que pode ser capturado
pela metáfora), mas de sustentar que as estruturas relacionais compostas pelos
padrões de relações importam e que suas diversas configurações em termos de
composição, forma e estrutura podem ter efeitos distintos sobre variados processos
sociais. Nesse sentido, não se trata apenas de determinar que as relações importam,
mas de especificar de que forma elas produzem efeito. (MARQUES, 2012, p. 10).
162

Sendo assim, diante de pesquisas como a de Nascimento e Scheinvar (2007), que


identificaram a proximidade do Conselho Tutelar com os órgãos do Judiciário em detrimento
de movimentos sociais e instâncias políticas, evidenciou-se a necessidade de utilizar as
ferramentas metodológicas acerca das relações que os Conselhos Tutelares estabelecem. No
nosso caso, não tratamos da “rede” de cada Conselho, e sim de cada conselheiro, procurando
compreender as possíveis diferenças entre os conselheiros de um mesmo Conselho.

Abaixo, seguem os sociogramas elaborados a partir das instâncias acionadas para o


encaminhamento das demandas por cada conselheira do grupo 01.

Figura 7 - Rede social da conselheira Ariane

Fonte: elaboração própria.


163

Figura 8 - Rede social da conselheira Izilda

Fonte: elaboração própria.


164

Figura 9 - Rede social da conselheira Viviane

Fonte: elaboração própria.

Tabela 15 – Média de medidas de tamanhos de redes sociais profissionais

Ariane Izilda Viviane Média grupo


01

Nós 24 19 29 24

Diâmetro 6,7 5,8 4,1 5,53

Fonte: elaboração própria.

A partir da tabela 15, vemos que o número de contatos (nós) varia de conselheira para
conselheira, apesar de o número não ser tão destoante. O diâmetro é a medida que indica a
maior distância geodésica entre os nós de uma rede. Observamos, assim, que a rede de contatos
da conselheira Izilda é a menor dentre as três, todavia, a distância da rede acionada para o
encaminhamento das demandas pela conselheira Ariane é a maior, sendo sua rede a menos
articulada. No caso de Izilda, há menos instâncias citadas para o encaminhamento das
165

demandas, já no caso de Ariane estas instâncias são citadas de maneira isolada, não havendo
relação entre elas.

A partir dos sociogramas elencados, apreende-se que os atores com mais destaque
relacionados ao encaminhamento de demandas do grupo 01 são a Vara da Infância e da
Juventude, o CRAS, o CREAS, as famílias e, no caso de Viviane, a Igreja. A Igreja aparece
como ator indicado efetivar as atribuições do Conselho, no caso de Viviane, pela sua presença
em uma associação religiosa, onde Viviane atua na conscientização sobre maus-tratos infantis.
Izilda também integra uma associação religiosa, mas não a elencou dentro da rede social de
efetivação das atribuições.

Os sociogramas de Ariane e Viviane são interessantes para ilustrar como, dentro de um


mesmo Conselho, nem sempre os conselheiros acionam a mesma rede para o encaminhamento
das demandas. Como Ariane mora há menos tempo no município, conhece pouco as
instituições, não frequenta mais nenhuma associação ou nenhum espaço religioso, elencou
menos contatos que Viviane. Tal dado indica que o trabalho no Conselho não gera,
necessariamente, procedimentos comuns entre os conselheiros, sendo a rede pessoal a que
ganha destaque.

Sobre o grupo 01, apreendemos que o discurso das conselheiras é de descrédito em relação
ao poder público. Este grupo identifica que os problemas familiares, que seriam maiores e mais
graves hoje em dia, são a fonte da maior parte dos problemas que chegam ao Conselho.
Justamente por precisar acionar constantemente as outras instâncias da rede municipal de
atendimento (as atribuições relativas ao atendimento de crianças, adolescentes e famílias foram
as identificadas como mais frequentes e mais urgentes) e não encontrar o respaldo imaginado,
as conselheiras frustram-se com as possibilidades diante do quadro. No caso do
encaminhamento das demandas, os atores acionados variam, mas não com tantas diferenças. É
interessante notar a diferença de encaminhamento entre as duas conselheiras do mesmo
Conselho (CT02), Ariane e Viviane.

A seguir, prosseguiremos com a análise do nosso segundo grupo de conselheiros, o grupo


02.

Grupo 02: Em busca de legitimidade para a ação dos conselheiros

O grupo 02 é formado pelas conselheiras Giane (CT04) e pelo conselheiro Márcio, o qual
faz parte do CT02, mesmo Conselho de Ariane e Viviane, acima mencionadas.
166

O conselheiro Márcio tem 30 anos de idade e reside em Guarulhos desde que nasceu. De
família católica, seguiu os preceitos religiosos da sua formação e ingressou em várias atividades
na igreja em que frequenta. Diz fazer parte do coral e da formação dos jovens, cerne da sua
experiência na área da criança e do adolescente, que registra por volta de oito anos. Márcio
também participa da associação de moradores do bairro onde reside, perto do Conselho e
localizado em uma região periférica de Guarulhos. Tendo morado no mesmo bairro desde
sempre, Márcio afirma que não vê as coisas mudarem. Aqui na avenida principal do bairro tem
loja nova, uma coisa ou outra que abriu, o próprio Conselho é novo, na minha época não tinha.
Se você for ver mesmo pouca coisa mudou. Os problemas são os mesmos, mas parece que
aumentaram.74

O conselheiro chegou a cursar dois anos de Direito numa faculdade particular de


Guarulhos. Segundo ele, não foi possível continuar o curso. Ele era estagiário num importante
escritório de advocacia de Guarulhos, mas, não tendo seu contrato prorrogado, não encontrou
mais nada na área e não conseguiu se manter no curso. Diz que pretende voltar, que já procurou
a faculdade para recomeçar em 2018.

Márcio diz que se candidatou ao Conselho porque sua experiência na igreja lhe
mostrou que ele tem habilidade em lidar com os jovens. Também tem uma amiga que é ex-
conselheira tutelar em São Paulo e, segundo essa amiga, a estabilidade era muito boa. Por mais
que o trabalho no Conselho Tutelar não tenha a estabilidade dos demais servidores públicos, o
mandato dificilmente não vai ser rompido antes dos quatro anos, com a possibilidade de
recondução para mais quatro. Num contexto de incertezas profissionais e precarização das
relações de trabalho e tendo o próprio Márcio passado por uma experiência de rompimento de
expectativas – sua não efetivação do escritório de advocacia – ser conselheiro tutelar pode
ganhar contornos vantajosos nesse sentido. Apesar de trazer para esse discurso esta percepção
de que as coisas não mudam, Márcio não associa o Conselho à possibilidade de mudança. Pelo
discurso do conselheiro, há muito mais a visualização da função de conselheiro tutelar como
cargo/carreira, num contexto que se buscam forjar espaços (posições) alternativos no mercado
de trabalho.

74
Os trechos em itálico referem-se à transcrição das falas dos entrevistados.
167

O entrevistado reivindica mais autoridade para o Conselho Tutelar. Eu não sou um cara
que não liga, eu chamo os jovens pra conversar. Mas mesmo assim eles dão de ombros, parece
que não ligam. O difícil, para o conselheiro, é que ninguém entende ao certo seu trabalho. Não
sendo um trabalho respeitado e valorizado pelo poder público, o restante da sociedade terá
dificuldades para compreender os casos a que se destina o Conselho Tutelar. Para o conselheiro,
uma das formas de revestir o trabalho dos conselheiros de mais legitimidade seria cobrando
nível superior dos conselheiros. Márcio discorda do ECA em visualizar apenas o Ensino
Fundamental como requisito de escolaridade para exercer as funções do Conselho Tutelar. Acho
que tem que ter no mínimo nível superior, as pessoas nos levariam mais a sério. Curioso que,
se houvesse o critério de no mínimo ensino superior, o próprio Márcio não poderia ter se
candidatado ao cargo. Todavia, como o conselheiro visualiza completar a faculdade nos
próximos anos, talvez associe que poderia se encaixar no critério em breve.

Ele afirma que chegou a redigir um projeto para levar à Câmara de vereadores, com o
intuito de passar a cobrar dos conselheiros o ensino superior. Márcio declarou que terminou o
projeto há pouco tempo e pretende levar à Câmara ainda nesse ano. O conselheiro demonstra
falta de identificação com os outros conselheiros da cidade. Fiz a capacitação junto com todos
e vi que tem muita gente que fala errado, escreve mal. É muito feio para um conselheiro tutelar.

O discurso de Márcio alinha-se ao discurso de um dos entrevistados por Inês Mindlin


Lafer (2012). A autora cita um operador de um operador de Justiça de Santos, para quem:

Um conselheiro com saber mais técnico ou mais capacidade teria mais condições
de discutir as políticas públicas que ele fiscaliza, fazer a melhor ponte entre
situação individual e coletiva, podendo fiscalizar melhor as entidades, produzir
laudos e relatórios mais bem feitos. [...] [e] existe uma deficiência técnica. O
Conselho Tutelar é chamado a intervir em situações extremamente problemáticas,
e muitas vezes ele [o conselheiro] não está capacitado o suficiente para entender a
dinâmica do que está acontecendo. (LAFER, 2012, p. 66).

Tanto no caso do operador de justiça entrevistado por Lafer (2012) quanto no caso do
conselheiro entrevistado pela nossa pesquisa, os dois parecem visualizar o trabalho de
conselheiro tutelar como de um especialista, retirando o caráter de “nível de rua”, que já
defendemos que cabe aos conselheiros tutelares. Não seria necessário a capacidade articuladora,
mas sim ter uma boa redação, um bom discurso e entender dos meandros com os quais a função
se depara.
168

Necessário ressaltar que, justamente, o conselheiro não deve ser um especialista, mas
deve saber e poder contar com especialistas que o auxiliem na execução de suas funções. O
papel do conselheiro é justamente compreender a demanda que recebe, encaminhá-la e cobrar
das instâncias respectivas para que o quadro de violações e ameaças aos direitos se altere. Nesse
sentido, a exigência pelo nível superior pelo entendimento de que traria pessoas mais
qualificadas não é compatível com as exigências da função.

É interessante notar também o ressentimento quanto à falta de status do trabalho de


conselheiro. Ao afirmar frequentemente que o poder público precisa tratar com mais respeito
os conselheiros, se os conselheiros tivessem nível superior seriam pessoas mais respeitáveis.
Nesse sentido, os conselheiros seriam eleitos em um grupo mais restrito de pessoas, e não onde
a maioria está (apenas Ensino Médio).

Márcio diz que seu Conselho tem muitas parcerias com a igreja. Nossa sorte é ter a
igreja como parceira. E, por igreja, o conselheiro denomina uma igreja católica do bairro e
outras duas igrejas evangélicas, que são acionadas por outras duas conselheiras do CT.

A outra conselheira do grupo 02 é a conselheira Giane, que atua no CT04. Giane está
na faixa dos 40-50 anos e tem metade da sua vida voltada ao trabalho com crianças e
adolescentes. A conselheira teve experiências diversas dentro da área, seja atuando como
inspetora em escolas públicas, seja atuando como educadora social em orfanatos. Sua
experiência profissional a levou a querer se qualificar, tendo cursado e concluído o curso de
Serviço Social.

Giane é a conselheira do CT04 que é conhecida como a “coordenadora” do CT. Como


já abordamos, o CT04 não dispõe da infra-estrutura adequada para o trabalho do CT, o que
levou suas conselheiras a adotarem uma rotina própria de organização. Giane afirma que seu
posto de “coordenadora” foi atribuído ao longo do primeiro ano de trabalho no CT, pois, com
o desenrolar do trabalho, ela foi se mostrando como “mais experiente” e “mais informada”
sobre as exigências da função.

O reconhecimento de Giane como a mais experiente pode ter sido facilitado pela sua
formação em Serviço Social e pelo seu tempo de experiência na área, bem maior que o das
outras conselheiras. Mas é importante ressaltar que todas têm experiência na área, e mesmo
assim à Giane é atribuído o posto de liderança para nortear a atuação dentro do CT04.

Sobre a necessidade de “eleger” uma figura de coordenação no interior do Conselho,


consideramos que a formação continuada seria um fator importante para as conselheiras se
169

visualizarem como igualmente capazes para o exercício da função. O que é constantemente


alegado é que a formação não prepara os profissionais para os problemas reais, sendo assim,
mais do que oferecer uma capacitação de 75 horas, porém sazonal (como foi em Guarulhos), é
necessário oferecer formações continuadas com estudos e discussões de casos reais com os
operadores do SGDCA. Ademais, o próprio acompanhamento mais próximo do trabalho do
Conselho Tutelar pode ajudar a lidar com as diferentes situações.

Giane nos relata que precisa ter uma postura muito incisiva enquanto conselheira tutelar.
Mas, diferente de Márcio, a conselheira não visualiza na formação pessoal do conselheiro a
fonte de legitimidade. Para ela, os agentes públicos que deveriam reconhecer a legitimidade do
Conselho, que já está dada.

Segundo a conselheira, ela e as conselheiras com as quais trabalha são frequentemente


hostilizadas, seja pela população do bairro onde se localiza o Conselho seja pelas autoridades
com as quais têm contato. Conta-nos que elas receberam no bairro o apelido de “meninas super-
poderosas”. Quando questionadas o porquê do apelido, nos diz que a gente não é de muitos
amigos. O Conselho Comunitário de Segurança (Conseg) vive chamando a gente pra ir em
reunião. A gente foi em duas até, mas não vamos mais.

Para ela, trabalhar com crianças e adolescentes é difícil, não pelas crianças e
adolescentes em si, mas porque as pessoas ridicularizam e não levam a sério. No caso de não
quererem mais frequentar o Conseg, é justamente este o motivo. Segundo Giane, os
conselheiros do Conselho Comunitário de Segurança têm a ideia de que defender crianças e
adolescentes é algo ruim, muito pelo senso comum que associa essa parcela da população à
delinquência, logo, quem defende os direitos desta parte da população, defende também a
delinquência.

Nesse sentido, o caso do Conseg demonstra como um Conselho que deveria refletir
sobre a segurança pública a partir da perspectiva dos direitos reproduz o ideal “menorista”. O
caso também evidencia um dos motivos para a dificuldade de articulação dos Conselhos
Tutelares com outros espaços: a própria finalidade do Conselho Tutelar é questionada, gerando
entraves para a participação dos conselheiros tutelares.

Dessa forma, Giane avalia a Polícia como um órgão de muita má vontade. Muitas vezes
recebemos denúncias que não nos cabe atender. Uma vez recebi uma ligação de uma mãe que
estava com o filho fugido há três dias. Ela suspeitava que o filho estava na casa de um
traficante. Quando eu liguei para a polícia pedindo que eles fizessem a ronda, ouvi do delegado
170

“ Por que você não levanta da cadeira?” Acabei eu mesma indo, mas não é papel do Conselho
fazer isso. Uma conselheira aqui do CT já teve a viatura baleada numa dessas.

Veremos agora a percepção desses dois conselheiros acerca da frequência, prioridade e


encaminhamento das demandas com as quais têm contato.

Tabela 16 - Identificação da demanda, frequência, prioridade e encaminhamento dos


conselheiras do grupo 02.

Identificação da
Márcio Giane
demanda

Frequência: Sempre Frequência: Sempre


Atender crianças e Prioridade: Emergência Prioridade: Emergência
adolescentes ameaçados Encaminhamento da Encaminhamento da
ou violados em seus demanda: Polícia; Vara demanda: Família;
direitos e aplicar da Infância e da Defensoria Pública;
medidas de proteção Juventude; Defensoria Associação religiosa;
Pública; CRAS; CREAS CRAS; CREAS
Atender e aconselhar os Frequência: Sempre Frequência: Sempre
pais ou responsáveis, Prioridade: Urgente Prioridade: Urgente
aplicando as medidas Encaminhamento da Encaminhamento da
previstas no art. 129, I demanda: CRAS; demanda: CAPS; CRAS;
a VII do Estatuto da CREAS; Defensoria CREAS; Centro de
Criança e do Pública; Delegacia da Atendimento ao
Adolescente (ECA) Mulher Trabalhador (CAT)
Promover a execução
das decisões do CT,
encaminhando à Frequência: Sempre
autoridade judiciária os Prioridade: Urgente Frequência: Sempre
casos de Encaminhamento da Prioridade: Urgente
descumprimento demanda: Ministério Encaminhamento da
injustificado de suas Público; Defensoria demanda: Ministério
deliberações Pública Público
Encaminhar ao
Ministério Público
notícia de fato que
constitua infração Frequência: Sempre Frequência: Às vezes
administrativa ou Prioridade: Urgente Prioridade: Urgente
criminal contra os Encaminhamento da Encaminhamento da
direitos de criança ou demanda: Ministério demanda: Ministério
adolescente Público Público
171

Frequência: Sempre
Prioridade: Urgente
Encaminhar à Encaminhamento da Frequência: Sempre
autoridade judiciária os demanda: Vara da Prioridade: Urgente
casos de sua Infância e da Encaminhamento da
competência Adolescência; demanda: Vara da
Delegacias; Ministério Infância e da
Público Adolescência
Tomar providência
para que sejam Frequência: Sempre Frequência: Sempre
cumpridas as medidas Prioridade: Urgente Prioridade: Urgente
protetivas aplicadas Encaminhamento da Encaminhamento da
pela Justiça a demanda: Defensoria demanda: Ministério
adolescente autores de Pública; Ministério Público; Defensoria
atos infracionais Público; Delegacias Pública; Escolas
Requisitar certidões de
nascimento e de óbito
de criança ou
adolescente quando Frequência: Sempre Frequência: Às vezes
necessário (não Prioridade: Pouco Prioridade: Pouco
incluindo urgente urgente
reconhecimento de Encaminhamento da Encaminhamento da
paternidade) demanda: Registro civil demanda: Registro civil
Frequência: Sempre Frequência: Sempre
Prioridade: Pouco Prioridade: Urgente
Expedir notificações urgente Encaminhamento da
Encaminhamento da demanda: Secretaria de
demanda: Famílias Educação; famílias
Assessorar o Poder
Executivo local na
elaboração da proposta Frequência: Às vezes Frequência: Nunca
orçamentária para Prioridade: Pouco Prioridade: Pouco
planos e programas de urgente urgente
atendimento dos Encaminhamento da Encaminhamento da
direitos da criança e do demanda: CMDCA; demanda: Secretaria de
adolescente Câmara de Vereadores Assistência Social
Encaminhar ao
Ministério Público
ações de perda ou Frequência: Sempre Frequência: Sempre
suspensão de pátrio Prioridade: Urgente Prioridade: Urgente
poder familiar, após Encaminhamento da Encaminhamento da
esgotadas as demanda: Ministério demanda: Ministério
possibilidades de Público Público
172

manutenção da criança
ou do adolescente junto
à família natural

Fiscalizar as entidades
de atendimento
Frequência: Sempre
governamentais e não- Frequência: Sempre
Prioridade: Urgente
governamentais, Prioridade: Urgente
Encaminhamento da
aplicando medidas de Encaminhamento da
demanda: Vara da
advertência e, nos casos demanda: Vara da
Infância e da
de reincidência, Infância e da
Adolescência; Ministério
representando à Adolescência
Público; Delegacias
autoridade judiciária
competente
Promover e incentivar,
na comunidade e nos
grupos profissionais,
ações de divulgação e
treinamento para o Frequência: Nunca
reconhecimento de Frequência: Nunca Prioridade: Emergência
sintomas de maus- Prioridade: Urgente Encaminhamento da
tratos em crianças e Encaminhamento da demanda: Faculdades;
adolescentes demanda: (não se aplica) escolas
Fonte: elaboração própria.

A partir da análise da tabela 16, vemos que, assim como o grupo 01, o grupo 02
identifica as demandas relacionadas ao atendimento direto como de emergência. Contudo,
diferente do grupo 01, este grupo identifica todas as demandas que envolvem alguma autoridade
judiciária como urgentes. Assim, uma das prioridades de Márcio e Giane é encaminhar os casos
que acionam a Justiça. Interessante notar que tal ponto é mais acentuado no caso de Márcio,
boa parte pela sua graduação interrompida em Direito e boa parte pela tentativa de obter a
legitimidade que reivindica para o Conselho Tutelar. Já Giane elenca a Secretaria de Assistência
Social e Educação como órgãos para encaminhar as demandas.
173

Figura 10 - Rede social do conselheiro Márcio

Fonte: elaboração própria.


174

Figura 11 - Rede social da conselheira Giane

Fonte: elaboração própria.

Apesar de Márcio ser o mais novo dos conselheiros entrevistados, sua participação em
duas associações, o fato de ter morado em Guarulhos desde que nasceu e o ensino superior
interrompido lhe rendem uma cartela maior de contatos. A partir da rede de contatos formada
pelo apontamento de atores mobilizados no cotidiano do Conselho Tutelar, vimos que Márcio
também lista o maior número de contatos em comparação com Giane e as conselheiras do grupo
01.

Tabela 17 – Média de medidas de tamanhos de redes sociais profissionais

Márcio Giane Média grupo 02

Nós 29 25 27

Diâmetro 4,3 4,8 4,55

Fonte: elaboração própria.

Nesse sentido, Márcio mobiliza um maior número de contatos em seu cotidiano para realizar
seu trabalho como conselheiro, todavia, intensifica sua relação com os atores do Poder
175

Judiciário. O conselheiro se aproxima do perfil descrito por Nascimento e Scheinvar (2007) de


conselheiros que produzem o aparato judicializante, justamente o caminho contrário da
proposta do Conselho Tutelar.

Já em relação à conselheira Giane, por mais que também reivindique maior legitimidade às
ações do Conselho, a articulação é bastante dificultada pelo estereótipo que a função carrega e
pela falta de entendimento e apoio, sobretudo do poder público. Mesmo assim, a rede acionada
pela conselheira é maior que a rede das conselheiras do grupo 01, o que pode ser explicado
pelas suas experiências anteriores e pega figura de liderança que a mesma criou dentro de seu
Conselho.

Agora, teceremos as considerações sobre nosso último grupo de análise, o grupo 03.

Grupo 03: Por um Conselho mais engajado.

A mobilização e a participação são atribuições previstas na função do conselheiro


tutelar, tendo como objetivo possibilitar o diálogo entre o Conselho Tutelar e as demais esferas
públicas e comunitárias também responsáveis pela garantia dos direitos humanos de crianças e
adolescentes. O Conselho Tutelar surge, pois, como meio de a comunidade exercer sua
corresponsabilidade no zelo pelos direitos juvenis e como uma forma de “desjudicializar” o
atendimento de criança e adolescente previsto nos revogados Códigos de Menores de 1927 e
1979, em que o então chamado juiz de menores tinha poder discricionário sobre criança e
adolescente.75 Daí a importância da mobilização do Conselho Tutelar, pois “comunidades não
mobilizadas não têm como exercer cidadania nem como cumprir funções sociais que a tornem
real no conjunto das relações sociais”.76

No cumprimento dessas funções, na defesa de direitos do público infanto-juvenil, os


Conselhos de Direito e Tutelares precisam utilizar estratégias de mobilização social para

75
Cf. DIGIÁCOMO, M. J.; DIGIÁCOMO, I. A. Estatuto da Criança e do Adolescente Anotado e Interpretado.
Curitiba: Ministério Público do Estado do Paraná; Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do
Adolescente, 2010. Disponível em:
<http://www.mpdft.gov.br/portal/pdf/unidades/promotorias/pdij/Legislacao%20e%20Jurisprudencia/ECA_come
ntado.pdf>. Acesso em 11 jun. 2016.
76
SÊDA, E. A criança: manual do conselho tutelar. Rio de Janeiro: Edição Adês, 2008, p. 71. Disponível em:
<http://edsonseda.com.br/AmanTut.doc>. Acesso em 11 jun. 2016.
176

alcançar a comunidade,77 as quais podem consistir no uso de meios comunitários de divulgação,


tais como boletins de igrejas, informativos de associação de moradores e rádios comunitárias.78
Podem também fazer uso dos mecanismos de participação democrática previstos na
Constituição Federal e em leis posteriores, como é o caso de audiências e consultas públicas,
conferências, participação em conselhos gestores de políticas públicas, orçamentos
participativos etc.

Nesse sentido, o que ensejou esta pesquisa foi buscar entender os fatores que levam à
mobilização, participação e articulação exitosas. Em um cenário onde as pesquisas sobre o tema
apontam justamente o distanciamento dos Conselhos da sociedade civil e das instâncias
participativas, buscamos compreender os fatores relacionados ao fenômeno. Dessa forma,
nosso último grupo analisado é formado por dois conselheiros que têm um perfil individual
bastante distinto, mas que trazem a reivindicação de uma melhor articulação para os Conselhos
Tutelares. O grupo é formado por Bianca (CT01) e Ivan (CT05).

Bianca é conselheira do CT01 e está na faixa dos 20-30 anos. Morou em Guarulhos
durante toda sua vida e tem pouca experiência na área da criança e do adolescente (dois a 5
anos). Sua experiência foi obtida a partir de um trabalho na gestão administrativa de uma ONG
que tocava projetos sociais na área. Desde então, Bianca teve contato crescente com a temática
e com os dispositivos normativos da área.

Bianca é a conselheira mais escolarizada na nossa amostra, tendo concluído a pós-


graduação também na área de Administração. Quando perguntada sobre por que escolheu
trabalhar na ONG sendo que o mercado em sua área de atuação poderia lhe render melhores
remunerações, ela diz que não teve muitas oportunidades depois que já graduada. Mas, segundo
ela, agora quer continuar trabalhando em ações que gerem “impacto social”.

Para a conselheira, o grande problema no trabalho do CT é que os conselheiros não


visualizam o longo prazo. É meio óbvio que ficar apenas atendendo e repassando [as
demandas] não é sustentável. É o popular enxugar gelo. Os conselheiros têm que trabalhar
pra diminuir os atendimentos.

77
Cf. LARA, E. Conquistar a sociedade: Conselhos devem tornar população corresponsável pela infância
e adolescência. In: Bons Conselhos. Ano III. Nº 10. Instituto Telemig Celular, novembro de 2006 a janeiro de
2007.
78
Ver SIMEONE apud LARA, op. cit.
177

O discurso de Bianca é interessante pois aponta que o trabalho de atendimento – repasse


de demandas dos Conselhos não deve ser o projeto dos conselheiros. A conselheira defende
uma atuação dos próprios conselheiros para que arquitetem, no longo prazo, a atenuação das
demandas que chegam a eles. Todavia, quando perguntada como se daria essa arquitetura para
diminuir o quadro de ameaças e violações, Bianca foi pouco específica, indicando apenas que
a sociedade tem que conhecer o papel do Conselho.

Já Ivan, conselheiro que substituiu um conselheiro afastado do CT05 e tomou posse


apenas em 2017, é mais cirúrgico nas estratégias para mobilização e articulação do Conselho
Tutelar. Em sua entrevista, o conselheiro citou o CMDCA, os Fóruns, os demais Conselhos
municipais e a câmara de vereadores como parceiros fundamentais para o Conselho Tutelar
conseguir também influir nas políticas públicas.

Diante disso, é importante salientar que Ivan, por ter assumido o cargo apenas nesse
ano, não recebeu a capacitação que os demais conselheiros do município receberam. Dessa
forma, os elementos indicados pertencem muito mais à sua trajetória pessoal que à sua trajetória
como conselheiro, que ainda é curta.

Ivan está na faixa dos 50-60 anos e sempre residiu no município de Guarulhos. Ele
afirma que acompanhou de perto a instalação do CT em sua região, pois “sempre” foi uma
liderança comunitária, mas não imaginava que viria a trabalhar no Conselho Tutelar. Eu
demorei a entender que era eleição. Cheguei a concorrer, mas não ganhei. Não caiu minha
ficha que tinha que fazer campanha e etc., pra mim isso era só pra cargos do
Legislativo/Executivo.

O conselheiro é catequista em uma paróquia de sua região e através da igreja que


conheceu uma conselheira, a qual lhe falou das funções do Conselho. Além de pertencer à
associação de sua igreja, Ivan é líder comunitário e filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT).

Bianca e Ivan reivindicam para o Conselho o papel de articulador de políticas. Todavia,


Bianca tem uma visão um pouco difusa sobre as formas de ação para tal, já Ivan combina mais
elementos estratégicos em seu discurso. Sendo parte de organizações políticas, suas indicações
para a articulação política do CT mobilizam atores mais precisos, enquanto Bianca não sabe ao
certo quais são.

A seguir, veremos como Bianca e Ivan percebem a frequência, prioridade e


encaminhamento das demandas com as quais trabalham.
178

Tabela 18 - Identificação da demanda, frequência, prioridade e encaminhamento dos


conselheiros do grupo 03.

Identificação da
Bianca Ivan
demanda

Frequência: Sempre
Frequência: Sempre
Prioridade: Urgente
Atender crianças e Prioridade: Emergência
Encaminhamento da
adolescentes ameaçados Encaminhamento da
demanda: Famílias;
ou violados em seus demanda: Família;
Secretaria de Educação;
direitos e aplicar Secretaria da Educação;
Secretaria de Assistência
medidas de proteção Associação religiosa;
Social; Secretaria da
CRAS; CREAS; CAT
Saúde; CRAS; CREAS
Frequência: Sempre
Atender e aconselhar os
Prioridade: Urgente
pais ou responsáveis,
Frequência: Sempre Encaminhamento da
aplicando as medidas
Prioridade: Urgente demanda: Famílias;
previstas no art. 129, I
Encaminhamento da Secretaria de Assistência
a VII do Estatuto da
demanda: Famílias Social; CAT; Secretaria
Criança e do
da Saúde; Associação
Adolescente (ECA)
religiosa.
Promover a execução
das decisões do CT,
encaminhando à Frequência: Sempre Frequência: Sempre
autoridade judiciária os Prioridade: Urgente Prioridade: Urgente
casos de Encaminhamento da Encaminhamento da
descumprimento demanda: Ministério demanda: Ministério
injustificado de suas Público; Defensoria Público; Vara da Infância
deliberações Pública e da Juventude.
Encaminhar ao
Ministério Público
notícia de fato que
constitua infração Frequência: Sempre Frequência: Às vezes
administrativa ou Prioridade: Urgente Prioridade: Urgente
criminal contra os Encaminhamento da Encaminhamento da
direitos de criança ou demanda: Ministério demanda: Ministério
adolescente Público Público
179

Frequência: Sempre Frequência: Sempre


Prioridade: Urgente Prioridade: Urgente
Encaminhar à
Encaminhamento da Encaminhamento da
autoridade judiciária os
demanda: Vara da demanda: Vara da
casos de sua
Infância e da Juventude; Infância e da
competência
Delegacias; Ministério Adolescência; Ministério
Público Público
Frequência: Sempre
Tomar providência Prioridade: Urgente
para que sejam Frequência: Sempre Encaminhamento da
cumpridas as medidas Prioridade: Urgente demanda: Ministério
protetivas aplicadas Encaminhamento da Público; Defensoria
pela Justiça a demanda: Defensoria Pública; Vara da Infância
adolescente autores de Pública; Ministério e da Juventude;
atos infracionais Público; Fundação Fundação CASA;
CASA Secretaria da Educação
Requisitar certidões de
nascimento e de óbito
de criança ou
adolescente quando Frequência: Às vezes
necessário (não Frequência: Sempre Prioridade: Pouco
incluindo Prioridade: Urgente urgente
reconhecimento de Encaminhamento da Encaminhamento da
paternidade) demanda: Registro civil demanda: Registro civil
Frequência: Sempre
Frequência: Sempre Prioridade: Urgente
Prioridade: Urgente Encaminhamento da
Expedir notificações
Encaminhamento da demanda: Secretaria de
demanda: Famílias; Educação; Secretaria da
ONGs Saúde; famílias
Assessorar o Poder Frequência: Sempre
Executivo local na Prioridade: Urgente
elaboração da proposta Encaminhamento da
orçamentária para Frequência: Às vezes demanda: CMDCA;
planos e programas de Prioridade: Urgente Secretaria de Assistência
atendimento dos Encaminhamento da Social; Câmara de
direitos da criança e do demanda: CMDCA; Vereadores; Conselhos
adolescente Câmara de Vereadores setoriais
Encaminhar ao Frequência: Às vezes Frequência: Às vezes
Ministério Público Prioridade: Urgente Prioridade: Urgente
ações de perda ou Encaminhamento da Encaminhamento da
suspensão de pátrio demanda: Ministério demanda: Ministério
poder familiar, após Público Público
180

esgotadas as
possibilidades de
manutenção da criança
ou do adolescente junto
à família natural
Fiscalizar as entidades
de atendimento
Frequência: Sempre
governamentais e não- Frequência: Sempre
Prioridade: Urgente
governamentais, Prioridade: Urgente
Encaminhamento da
aplicando medidas de Encaminhamento da
demanda: ONGs; Vara
advertência e, nos casos demanda: Vara da
da Infância e da
de reincidência, Infância e da
Adolescência; Ministério
representando à Adolescência
Público
autoridade judiciária
competente
Promover e incentivar,
na comunidade e nos
grupos profissionais,
ações de divulgação e Frequência: Sempre
treinamento para o Prioridade: Urgente
reconhecimento de Frequência: Às vezes Encaminhamento da
sintomas de maus- Prioridade: Urgente demanda: Escolas;
tratos em crianças e Encaminhamento da Igreja; Associação
adolescentes demanda: ONGs; Escolas comunitária
Fonte: elaboração própria.

Bianca e Ivan foram os únicos conselheiros dentre os conselheiros entrevistados a


indicarem como urgentes a atribuição de “assessorar o poder executivo local na elaboração de
proposta orçamentária” e de “promover e incentivar, na comunidade e nos grupos profissionais,
ações de divulgação e treinamento para o reconhecimento de sintomas de maus-tratos em
crianças e adolescentes”. Por esse motivo, foram elencados como os conselheiros que buscam
maior articulação para o Conselho.

É interessante notar como a conselheira Bianca elenca como “urgente” todas as


atribuições do CT. Varia a frequência com a qual a conselheira se depara com determinado
caso, mas não há sobreposição de prioridades.

Justamente por serem os conselheiros que mais buscam parceiros para efetivar o papel do
Conselho Tutelar, é de se esperar que suas redes sociais sejam as maiores dos três grupos, o que
se confirma, como veremos a seguir.
181

Figura 12 - Rede social da conselheira Bianca

Fonte: elaboração própria.


182

Figura 13 - Rede social do conselheiro Ivan

Fonte: elaboração própria.

Tabela 19 - Média de medidas de tamanhos de redes sociais profissionais

Bianca Ivan Média grupo 03

Nós 31 35 33

Diâmetro 3,6 3,5 3,55

Fonte: elaboração própria.

Temos que, no caso de Bianca e Ivan, as redes acionadas por eles no momento do
encaminhamento das demandas são as maiores no nosso grupo estudado. Tendo construído uma
visão do Conselho Tutelar como instrumento estratégico para a alteração do quadro de
violações e direitos, os dois buscam mais parceiros e atores que possam ajuda-los nessa
empreitada. Aqui, recordamos o conceito de burocratas ativistas (PETTINICCHIO, 2012) -
indivíduos que utilizam sua discricionariedade e seus valores para provocarem mudanças no
interior das instituições - , pois, cada a um a seu modo busca “bagunçar” a ordem das coisas
183

mobilizando seus próprios recursos. No caso de Ivan, o conselheiro potencializa suas ações
além do espaço do Conselho, atuando nas associações das quais faz parte.

Nossa apresentação sobre a percepção dos conselheiros sobre a frequência, prioridade e


encaminhamento das demandas evidenciou que os conselheiros do mesmo Conselho Tutelar
lidam com diversos tipos de demanda e, no geral, têm uma percepção semelhante sobre a
frequência com que esta demanda é vivenciada no dia-a-dia do CT. Todavia, o modo com que
estabelecem a prioridade e o encaminhamento das demandas faz-se de maneira distinta,
mobilizando muitas vezes atores que pertencem à trajetória pessoal dos próprios conselheiros.

Tal fato evidencia nossa hipótese de que, na falta de uma maior padronização para a
atuação dos conselheiros, os mesmos absorvem a capacitação incial que recebem, a somam com
seus repertórios pessoais e a transformam em práticas que variam de acordo com sua
discricionariedade. Nesse sentido, é necessário investir em procedimentos mais padronizados
de ação.

A justificativa dos conselheiros para o acionamento de seus repertórios pessoais é a


ineficiência dos serviços públicos, seja pela morosidade, qualidade dos serviços ou pouca
atenção ao Conselho Tutelar. Assim, percebendo a rede de serviços públicos como algo frágil,
os conselheiros buscam executar seu trabalho naquilo que encontram solidificação, que são os
contatos que construíram ao longo da sua vida.

No caso dos conselheiros que mais mobilizaram os recursos relacionais, identificamos


que estes o fazem independente de sua formação acadêmica ou da experiência na área da criança
e do adolescente. Eles visualizam a função no Conselho Tutelar como aquela que une um
conjunto de requisitos e habilidades e, por isso mesmo, visualizam a articulação para as políticas
públicas na mesma ordem de prioridades que as demais demandas. Tais conselheiros também
têm voz ativa em seus respectivos Conselhos e, através dessa característica, acabam
multiplicando seu repertório de ações e exemplos.

Finalizando o exame do aspectos relacional dos conselheiros tutelares, buscamos


entender a relação dos conselheiros com os demais operadores do SGDCA. Nesse ponto,
apresentaremos as informações colhidas com a totalidade da nossa amostra (12), não mais por
grupos baseados em perfis semelhantes. O Conselho Tutelar, enquanto membro do SGDCA,
compõe o chamado eixo da defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes. Assim,
como parte do sistema, é necessária sua articulação com os demais atores, motivo pelo qual
nossa pesquisa buscou verificar como se dá a frequência de relacionamento com esses atores.
184

A frequência de relacionamento foi tratada, na pesquisa, como o aspecto quantitativo dessa


relação, ou seja, o número de vezes que o Conselho Tutelar interagia com determinado órgão.

No diálogo entre os conselheiros tutelares participantes da pesquisa e os atores


pertencentes ao eixo do controle da política pública da infância e adolescência do SGDCA, a
frequência de relacionamento mais recorrente foi com o CMDCA, mas não de maneira tão
recorrente a ponto de caracterizar esse dado como positivo. Na medida em que ambos os
Conselhos foram criados como mecanismos democráticos de condução da garantia prioritária
de direitos de crianças e adolescentes, é esperada uma frequência de relacionamento maior entre
Conselhos Tutelares e CMDCA. Uma das razões para a frequência de relacionamento não tão
intensa é a periodicidade das reuniões do CMDCA, as quais acontecem, via de regra, apenas
uma vez por mês e com duração de cinco horas, sendo um impeditivo para a relação constante
com os CTs.

Gráfico 07 - Frequência de relacionamento entre os conselheiros tutelares e os atores do


eixo controle do SGDCA
185

Nunca Poucas vezes Muitas vezes

08
Organizações da sociedade civil 02
01

04
Fóruns municipais de outras áreas 06
02

07
Fórum Municipal dos Direitos da
03
Criança e do Adolescente
02

03
Conselhos Municipais de outras áreas 05
04

01
Conselho Municipal dos Direitos da
08
Criança e Adolescente
03

03
Câmara Legislativa Municipal 08
01

Fonte: elaboração própria.

Por outro lado, os conselheiros tutelares participantes da pesquisa relacionam-se de


forma menos frequente com as organizações não governamentais ou da sociedade civil, sendo
que oito deles informaram nunca se relacionarem com essas organizações. Esse dado se mostra
contraditório porque essas organizações compõem também obrigatoriamente o CMDCA de
forma paritária aos representantes da área governamental. Além disso, deve-se considerar que,
entre as atribuições legais do Conselho Tutelar, está a fiscalização das entidades que atendem
186

crianças e adolescentes, que não raras vezes são mantidas por organizações da sociedade civil
ou se constituem como organizações não governamentais.

Por fim, questionamos os conselheiros acerca do conhecimento das resoluções do


CONANDA. Os resultados indicam que a instância não é muito presente e reconhecida no
cotidiano dos conselheiros entrevistados pela pesquisa. Tal aproximação e reconhecimento é
importante, pois o CONANDA formula resoluções e recomendações estabelecendo parâmetros
para o funcionamento dos Conselhos Tutelares.

Gráfico 08 – Conhecimento das resoluções do CONANDA

Sempre 1

Às vezes 2

Raramente 2

Nunca 7

0 2 4 6 8
n = 12

Fonte: elaboração própria.

Esses dados apontam fragilidade na relação entre o CONANDA e os Conselhos


Tutelares, pois se o produto das deliberações da política da infância não atinge o Conselho
Tutelar, é pouco provável que o debate que antecede tais decisões igualmente chegue. Por outro
lado, verifica-se também certa postura passiva dos Conselhos Tutelares ao não buscar conhecer
as resoluções. Tal elemento propulsiona a reprodução de ações despadronizadas por parte dos
conselheiros.
187
188

CONCLUSÃO

Conselhos Tutelares: desafios à legitimação no campo das políticas públicas

Enquanto nova instituição na arena da gestão social, o Conselho Tutelar formula e


sustenta um produtivo debate sobre o papel de órgãos gestores regidos pela participação direta
dos cidadãos, contribuindo para a consolidação da democracia brasileira. Todavia, a
constituição da efetiva autonomia de tais Conselhos pode apresentar ainda alguma fragilidade
quando comparada à de outros órgãos e mecanismos historicamente consolidados na
administração pública brasileira. Algumas pesquisas recentes (Nascimento e Scheinvar, 2007)
sobre a dinâmica de funcionamento dos Conselhos Tutelares mostram que, por mais que os
Conselhos estejam compostos por representantes de movimentos sociais e entidades, a
participação dessas pessoas, muitas vezes, se restringe às atividades rotineiras e não às ações
deliberativas de interesse público. Nesse sentido, os atuais Conselhos apresentam, ainda,
alguma dificuldade de romper com os antigos modelos institucionais nos quais se subordinavam
ao poder público, como era o caso dos Conselhos de Assistência e Proteção dos Menores, que
tinham a função de auxiliar o juiz de menores e seus comissários de vigilância. Ainda que a
diferença entre os Conselhos de Assistência e Proteção dos Menores e os Conselhos Tutelares
e de Direitos esteja alicerçada na disparidade entre os paradigmas da situação irregular dos
primeiros e o da proteção integral dos segundos, percebe-se que antigas práticas se perpetuam,
o que constitui um dos principais desafios colocados ao exercício das atividades dos
conselheiros tutelares e de direitos e ao desempenho efetivo do papel democrático e
democratizante desses Conselhos.
Após um levantamento exaustivo da bibliografia sobre a área, identificamos as principais
dificuldades relacionadas aos CTs: i) limitações quanto à infraestrutura disponível para o
funcionamento dos Conselhos, precárias condições de trabalho e baixa oferta de oportunidades
de capacitação para os Conselheiros; ii) limitação do poder de ação dos Conselhos, que são
restringidos por outros órgãos e instituições do poder público, ou ainda, pelas próprias carências
da rede social do município; iii) Conselhos que se submetem à “tutela” de outras instituições,
desvirtuando o exercício das suas atribuições legais; iv) Conselhos que não se apropriam dos
espaços públicos propícios à articulação e mobilização dos cidadãos em torno da política
infanto-juvenil. . Estas são problemáticas que podem ser acrescidas, fato de que sobrepõem
funções burocráticas que concorrem com a sua função política. É natural, portanto, que o ideal
de Conselho enquanto espaço político para expressão comunitária concorra com as atividades
189

rotineiras, que não deixam de ser parte das atribuições dos Conselhos, mas que não devem
resumir toda a sua ação, nem ser o conteúdo majoritário da jornada de trabalho dos conselheiros.
Todavia, nossa pesquisa orientou-se a buscar os fatores que levam os Conselhos a se
orientarem por uma forma de ação ou por outra. Por esse motivo, elegemos como categoria de
análise os conselheiros – burocratas de nível de rua que fazem uso de sua discricionariedade –
e mobilizamos a análise de redes sociais como ferramenta metodológica de elucidação, tarefas
até então não realizadas pela literatura da área.
Verificamos que o atendimento direto é a atribuição mais frequente e mais realizadas
pelos conselheiros, todavia, ao contrário de Lafer (2012), evitamos cair em classificações
binárias sobre as funções do Conselho (técnica x política), na medida em que, dado o caráter
híbrido e a especificidade do Conselho Tutelar, não é possível delimitar quando um conselheiro
age técnica ou politicamente.
Nossa pesquisa identificou que tais limitações e distorções originam-se da falta de
reconhecimento de que os Conselhos Tutelares também integram os espaços legítimos de
deliberação sobre políticas públicas, que constitui um Conselho de Direitos, na medida em que
o exercício das atribuições dos primeiros sinaliza a direção da atuação do segundo. Portanto,
esse reconhecimento de ambos é essencial para lhes garantir autonomia e legitimidade para
atuação no campo das políticas públicas. Segundo Frizzo (2006) , a distância entre a concepção
teórico-normativa que permeou a criação dos Conselhos e a atual prática cotidiana evidencia a
distância entre o adequado e o possível na ação cotidiana dos conselheiros que, na maior parte
das vezes, é focada em experiências individuais pouco integradas à comunidade e, por conta
disso, socialmente instáveis. Portanto, o possível, neste caso, longe de ser um limite próprio à
estrutura dos Conselhos, é desenhado a partir da pouca experiência política, agravada pela
carência de formação oferecida aos conselheiros, o que acaba reproduzindo, como já apontado,
uma série de práticas que, muitas vezes, mais se assemelham ao arcabouço institucional de
modelos anteriores do que ao paradigma de proteção integral que se pretende implantar.
Lançando luz sobre estas questões, nossa pesquisa demonstrou que a ação dos
conselheiros não é padronizada dentro do mesmo Conselho Tutelar. Na falta de uma
capacitação mais condizente com os desafios enfrentados pelos conselheiros, do conhecimento
das resoluções e recomendações do CONANDA, os conselheiros mobilizam seus
encaminhamentos de acordo com a rede social que construíram ao longo de suas vidas e
trajetórias próprias.
190

Nesse sentido, os conselheiros que tentam provocar maiores mudanças o fazem porque
pessoalmente visualizam tal ação como adequada para os Conselhos. A forma como eles o
fazem, todavia, é diferente, uma vez que possuem repertórios distintos.

Excesso de atribuições, falta de estrutura e capacidade dos conselheiros ou


necessidade de revisitação do “modelo” de conselhos tutelares?

As análises sobre os problemas de funcionamento dos Conselhos Tutelares quase


sempre recaem sobre a falta de estrutura ou de capacitação dos conselheiros. Contudo dados
desta pesquisa indicam que parte do problema pode estar também no próprio modelo de
Conselho, particularmente num descompasso entre as atribuições a ele designadas e a estrutura
organizacional com que efetivamente opera. Este distanciamento entre o Conselho Tutelar
idealizado na lei e os que estão sendo construídos merece atenção dos formuladores de políticas
públicas, particularmente aquelas voltadas para ao fortalecimento do SGDCA e do papel do
Conselho Tutelar nesse sistema.

Recapitulando as atribuições do CT estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do


Adolescente, as quais podem, inclusive, terem sido ampliadas nas leis municipais específicas
de criação de cada um deles, tem-se: atendimento à crianças e adolescentes cujos direitos
estejam ameaçados ou violados e aplicação das medidas de proteção; atendimento,
aconselhamento e aplicação das medidas de responsabilização à pais ou responsável legal;
representação em nome da criança ou adolescente ou da família em casos de violação dos
direitos das mesmas por programas ou programações de rádio e televisão; representação e
encaminhamento ao Ministério Público para efeito das ações de perda ou suspensão do pátrio-
poder; encaminhamento ao MP as notícias de fatos que constituam infração administrativa ou
penal contra os direitos da criança ou adolescente; representação e encaminhamento à
autoridade judiciária nos casos de descumprimento injustificado de suas próprias deliberações;
encaminhar ao Judiciário ao casos de sua competência; assessoramento ao Poder Executivo
local na elaboração da proposta orçamentária referentes aos planos e programas de atendimento
dos direitos da criança e do adolescente; fiscalização de entidades governamentais e não
governamentais responsáveis pelo planejamento e execução de programas de proteção e
socioeducativas, juntamente com o Judiciário e o Ministério Público.

Desse amplo leque de atribuições destacaram-se nas respostas dos conselheiros tutelares
à pesquisa: o encaminhamento à autoridade judiciária dos casos de sua competência e o
encaminhamento ao Ministério Público sobre notícia de fato que constituísse infração
administrativa ou criminal contra os direitos de crianças e adolescentes. Ou seja, a maior parte
191

de sua atuação é dedicada a estas duas funções, ambas de estreito relacionamento com o poder
judiciário.

Ademais, os conselheiros tutelares respondentes também informaram ser solicitados,


por autoridades públicas e pela população, a realizarem funções que não fazem parte das suas
atribuições legais como a mediação de problemas de disciplina escolar e a fiscalização
sistemática em bares, restaurantes, boates e congêneres em busca de identificação de crimes ou
infrações administrativas contra crianças e adolescentes.

Algumas interpretações desse cenário podem ser feitas. A primeira é a necessidade de


avaliar se todas as atribuições definidas para os Conselhos Tutelares são realmente pertinentes
e exequíveis. Em que pese o fato de que a maioria dos Conselhos esteja localizada em
municípios com menos de 20 mil habitantes, o volume de casos de ameaça e violação de direitos
tende a ser alto em quase todas as localidades independentemente do porte, o que torna o
exercício das duas principais atribuições – o atendimento de crianças com direitos ameaçados
ou violados e de seus pais – a atividade preponderante de cada conselho. Ou seja, se esse amplo
conjunto de atividades e responsabilidades permanecer atribuído ao CT, faz-se necessário
estabelecer os parametros mínimos de estruturação baseados no volume médio de casos
atendidos e na extensão territorial coberta por sua atuação.

Uma segunda análise dos resultados da pesquisa deve ser feita sobre a manutenção de
uma tendência, que poderia ser chamada de judicializante na atuação do CT, a qual deveria
privilegiar os aspectos sociais, tais como, estar mais próximo da comunidade contribuindo na
resolução dos problemas que afetam a infância e a adolescência e implementando medidas
capazes de prevenir tais ocorrências. Embora os conselheiros participantes da pesquisa tenham
declarado que sua principal função era a de atender e aconselhar pais ou responsáveis e a de
atender crianças e adolescentes com seus direitos ameaças ou violados, em ambos os casos
aplicando as medidas de proteção previstas no ECA, quando se contrapõem as respostas acima
analisadas acerca do intenso relacionamento desses Conselhos com o Judiciário e o Ministério
Público, pode-se entrever um funcionamento judicializante que reproduz obsoletos modelos do
passado. Vimos também que, em busca de uma maior legitimidade para a atuação do Conselho,
os conselheiros aproximam-se do Poder Judiciário como forma de revestir suas ações de crédito
perante à população e/ou ao poder público.

Uma terceira leitura dos dados da pesquisa a ser ressaltada diz respeito ao papel de
assessoramento ao poder executivo na elaboração da proposta orçamentária para planos e
programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, que deveria estar sendo
192

exercido com mais frequência pelos conselheiros tutelares. Como se viu, os conselheiros que
buscam atuar para a efetivação dessa demanda visualizam o Conselho como aquele que deve
assumir as funções públicas que contribuiriam para que os direitos das criança e jovens se
tornem uma prioridade real do poder público.

Quanto aos dados acerca das pressões e demandas para atender funções que não estão
no escopo de sua missão há que se proceder a uma clarificação das atribuições e
responsabilidades dos Conselhos Tutelares para eles próprios, para os demais atores do SGDCA
e para o conjunto da sociedade. A ação conjunta com o CMDCA pode ser um caminho tanto
para definir esses esclarecimentos, como também para um encaminhamento mais preciso das
demandas aos órgãos que podem e devem atendê-la.

Domínio técnico, capacitação e assessoria técnica

Parece amplamente aceito o fato de que os conselheiros tutelares necessitam ter certo
domínio técnico para cumprir as atribuições designadas ao CT. Isto pode ser deduzido das
mudanças observadas a partir da análise do ECA, das resoluções do CONANDA e da legislação
municipal de Guarulhos no que concerne aos requisitos de curriculum, experiência e
desempenho dos candidatos a ocupar essa posição.

No entanto, mostramos que, mesmo atendendo todos os requisitos estabelecidos, um dos


Conselhos atribui à uma das conselheiras a função de “coordenadora”, pois deposita nela a
capacitação necessária para lidar com as demandas. Nesse sentido, mesmo cobrando
experiência na área e Ensino Médio completo, tais critério ainda permitem que existam
conselheiros inseguros para executar plenamente suas funções.

Outros fatores além da melhor qualificação dos conselheiros que poderiam contribuir
para o melhor desempenho dos Conselhos Tutelares não estão presentes na sua realidade
cotidiana, tal como contar também com assessorias técnicas específicas por parte da prefeitura.
Os Conselhos Tutelares estão depositando todo seu esforço de aperfeiçoamento técnico-
gerencial na exigência de incrementar o perfil de competências dos conselheiros, o que não é
suficiente para atingir o objetivo desejado. Por esses motivos, defendemos que melhor que
cobrar mais requisitos de candidatura é investir na capacitação dos conselheiros durante o
mandato, ter Conselhos de Direitos e outras instâncias do SGDCA mais presentes do cotidiano
dos Conselhos e promover uma infra-estrutura adequada para o funcionamento do órgão.
193

O aumento da exigência de conhecimentos técnicos e de dedicação exclusiva pode ser


interpretado como uma tendência de maior profissionalização dos conselheiros tutelares.
Contudo, embora o movimento se justifique no sentido de assegurar a qualidade do atendimento
prestado a crianças e adolescentes em situação de ameaça ou violação de direitos, pode resultar
também num processo de elitização dos conselheiros, já observado nas pesquisas relativas aos
conselhos gestores (também denominados de conselhos de políticas públicas). O processo de
elitização pode comprometer a participação popular e comunitária nas ações de justiça social,
dentre as quais se situa o Conselho Tutelar. Esse processo de elitização pode estar também
sendo impulsionado pela possibilidade de transformação da função de conselheiro tutelar em
cargo/carreira, num contexto que se buscam forjar espaços (posições) alternativos no mercado
de trabalho.

Por fim, ressalta-se que, apesar da política para a infância e adolescência estar desenhada
e orientada pelo ECA e pelas resoluções do Conanda que o seguem, sua efetividade se dará
através do continuo fortalecimento dos Conselhos, como atores fundamentais que são no
SGDCA, que deve ser o foco de atuação das lideranças democráticas do poder público e da
sociedade civil empenhadas na garantia da proteção integral de crianças e adolescentes.
194

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do Adolescente.
198

ANEXO A - REPRESENTAÇÃO VISUAL DE GUARULHOS E AS DIFERENÇAS


ENTRE OS BAIRROS (BAIRROS DO CENTRO À ESQUERDA DO AEROPORTO
INTERNACIONAL).

I – Bairros de Guarulhos

Fonte: BECCENERI, Leandro. Estudo sobre a segregação social em Guarulhos (trabalho de conclusão
de curso). Guarulhos: 2010.

II – Distribuição de renda
199

Fonte: BECCENERI, Leandro. Estudo sobre a segregação social em Guarulhos (trabalho de conclusão
de curso). Guarulhos: 2010.
200

ANEXO B – ROTEIRO PARA ENTREVISTAS INDIVIDUAIS COM OS


CONSELHEIROS TUTELARES

Bloco I – Perfil, identificação e opiniões

1. Conselho Tutelar:
2. Conselheiro participante da entrevista:
3. Sexo:
4. Idade:
5. Escolaridade:
6. Religião:
7. Município onde nasceu:
8. Bairro onde reside:
9. Reside neste bairro há quanto tempo?
10. Qual sua experiência profissional anterior ao Conselho Tutelar?
11. É filiado a algum partido político? Se sim, qual?
12. Pertence a algum movimento social? Se sim, qual?
13. É/foi voluntário de alguma ONG? Se sim, qual?
14. Quando decidiu se candidatar a conselheiro tutelar? Por que tomou esta decisão?
15. Em 2016, você recebeu alguma solicitação para apoiar algum candidato nas eleições?
16. Em sua opinião, o número de Conselhos Tutelares é suficiente para atender às demandas
de proteção das crianças e dos adolescentes?
17. Qual sua avaliação sobre a importância do Conselho na elaboração das políticas públicas
de infância e adolescência do município?
18. Para você, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) deve ser reformulado? Em
quais pontos?

Bloco II – Encaminhamento de demandas e aspectos relacionais

1. Indique com que frequência você tem tomado conhecimento das resoluções e do
expediente do CONANDA, do CONDECA, do CMDCA e dos CTs de seu
município.
A) CONANDA
i. Sempre
ii. Ás vezes
iii. Raramente
201

iv. Nunca
B) CONDECA
i. Sempre
ii. Ás vezes
iii. Raramente
iv. Nunca
C) CMDCA
i. Sempre
ii. Ás vezes
iii. Raramente
iv. Nunca
D) Demais CTs
i. Sempre
ii. Ás vezes
iii. Raramente
iv. Nunca

Identificação da demanda – frequência – prioridade – fluxo - identificação da rede


ativada

1. Atender crianças e adolescentes ameaçados ou violados em seus direitos e aplicar


medidas de proteção
Numa escala de 1 a 4, com qual frequência você tem contato com essa demanda?
(sendo 1 sempre – 2 ás vezes – 3 – raramente – 4- nunca)
Numa escala de 1 a 4, qual prioridade você dá para essa demanda?
(sendo 1 emergência – 2- urgente- 3 – pouco urgente – 4 – não urgente)
Encaminhamento da demanda:

2. Atender e aconselhar os pais ou responsáveis, aplicando as medidas previstas no


art. 129, I a VII do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
Numa escala de 1 a 4, com qual frequência você tem contato com essa demanda?
(sendo 1 sempre – 2 ás vezes – 3 – raramente – 4- nunca)
Numa escala de 1 a 4, qual prioridade você dá para essa demanda? (sendo 1
emergência – 2- urgente- 3 – pouco urgente – 4 – não urgente)
202

Encaminhamento da demanda:

3. Promover a execução das decisões do CT, encaminhando à autoridade judiciária


os casos de descumprimento injustificado de suas deliberações
Numa escala de 1 a 4, com qual frequência você tem contato com essa demanda?
(sendo 1 sempre – 2 ás vezes – 3 – raramente – 4- nunca)
Numa escala de 1 a 4, qual prioridade você dá para essa demanda? (sendo 1
emergência – 2- urgente- 3 – pouco urgente – 4 – não urgente)
Encaminhamento da demanda:

4. Encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração


administrativa ou criminal contra os direitos de criança ou adolescente
Numa escala de 1 a 4, com qual frequência você tem contato com essa demanda?
(sendo 1 sempre – 2 ás vezes – 3 – raramente – 4- nunca)
Numa escala de 1 a 4, qual prioridade você dá para essa demanda? (sendo 1
emergência – 2- urgente- 3 – pouco urgente – 4 – não urgente)
Encaminhamento da demanda:

5. Encaminhar à autoridade judiciária os casos de sua competência


Numa escala de 1 a 4, com qual frequência você tem contato com essa demanda?
(sendo 1 sempre – 2 ás vezes – 3 – raramente – 4- nunca)
Numa escala de 1 a 4, qual prioridade você dá para essa demanda? (sendo 1
emergência – 2- urgente- 3 – pouco urgente – 4 – não urgente)
Encaminhamento da demanda:

6. Tomar providência para que sejam cumpridas as medidas protetivas aplicadas


pela Justiça a adolescente autores de atos infracionais
Numa escala de 1 a 4, com qual frequência você tem contato com essa demanda?
(sendo 1 sempre – 2 ás vezes – 3 – raramente – 4- nunca)
Numa escala de 1 a 4, qual prioridade você dá para essa demanda? (sendo 1
emergência – 2- urgente- 3 – pouco urgente – 4 – não urgente)
Encaminhamento da demanda:
203

7. Requisitar certidões de nascimento e de óbito de criança ou adolescente quando


necessário (não incluindo reconhecimento de paternidade)
Numa escala de 1 a 4, com qual frequência você tem contato com essa demanda?
(sendo 1 sempre – 2 ás vezes – 3 – raramente – 4- nunca)
Numa escala de 1 a 4, qual prioridade você dá para essa demanda? (sendo 1
emergência – 2- urgente- 3 – pouco urgente – 4 – não urgente)
Encaminhamento da demanda:

8. Expedir notificações
Numa escala de 1 a 4, com qual frequência você tem contato com essa demanda?
(sendo 1 sempre – 2 ás vezes – 3 – raramente – 4- nunca)
Numa escala de 1 a 4, qual prioridade você dá para essa demanda? (sendo 1
emergência – 2- urgente- 3 – pouco urgente – 4 – não urgente)
Encaminhamento da demanda:

9. Assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para


planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente
Numa escala de 1 a 4, com qual frequência você tem contato com essa demanda?
(sendo 1 sempre – 2 ás vezes – 3 – raramente – 4- nunca)
Numa escala de 1 a 4, qual prioridade você dá para essa demanda? (sendo 1
emergência – 2- urgente- 3 – pouco urgente – 4 – não urgente)
Encaminhamento da demanda:

10. Encaminhar ao Ministério Público ações de perda ou suspensão de pátrio poder


familiar, após esgotadas as possibilidades de manutenção da criança ou do
adolescente junto à família natural
Numa escala de 1 a 4, com qual frequência você tem contato com essa demanda?
(sendo 1 sempre – 2 ás vezes – 3 – raramente – 4- nunca)
Numa escala de 1 a 4, qual prioridade você dá para essa demanda? (sendo 1
emergência – 2- urgente- 3 – pouco urgente – 4 – não urgente)
Encaminhamento da demanda:
204

11. Fiscalizar as entidades de atendimento governamentais e não-governamentais,


aplicando medidas de advertência e, nos casos de reincidência, representando à
autoridade judiciária competente
Numa escala de 1 a 4, com qual frequência você tem contato com essa demanda?
(sendo 1 sempre – 2 ás vezes – 3 – raramente – 4- nunca)
Numa escala de 1 a 4, qual prioridade você dá para essa demanda? (sendo 1
emergência – 2- urgente- 3 – pouco urgente – 4 – não urgente)
Encaminhamento da demanda:

12. Promover e incentivar, na comunidade e nos grupos profissionais, ações de


divulgação e treinamento para o reconhecimento de sintomas de maus-tratos em
crianças e adolescentes
Numa escala de 1 a 4, com qual frequência você tem contato com essa demanda?
(sendo 1 sempre – 2 ás vezes – 3 – raramente – 4- nunca)
Numa escala de 1 a 4, qual prioridade você dá para essa demanda? (sendo 1
emergência – 2- urgente- 3 – pouco urgente – 4 – não urgente)
Encaminhamento da demanda:

13. Liste cinco atores/instituições/órgãos/organizações com os quais você se relaciona mais


frequentemente no seu trabalho como conselheiro(a) tutelar:
14. Liste cinco pessoas que você considera importantes para a defesa dos direitos da criança
e do adolescente. Em seguida, indique a ocupação de cada uma delas.
15. Liste cinco atores/instituições/órgãos/organizações que você considera fundamentais
para o trabalho do Conselho Tutelar:
16. Dos atores/instituições/órgãos/organizações/pessoas que você citou acima, quais seriam
os mais indicados para:

i. fornecer informações que lhe foram importantes para seu trabalho como
conselheiro tutelar:
ii. fornecer ajuda para problemas ordinários do dia-a-dia:
iii. serem requisitados para fornecer ajuda em momentos cruciais do trabalho:

17. Se não fosse o trabalho do Conselho Tutelar, cada um dos


atores/instituições/órgãos/organizações defenderia o direito de crianças e adolescentes?
205

(2) Muito provavelmente / (1) Provavelmente/ (0) Não é provável.


206

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