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Ministério da Cultura,

Fundação Clóvis Salgado e Itaú


apresentam

Fundação Clóvis Salgado


Edição única

Rafael Ciccarini (Org.)


Belo Horizonte
2013

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFMG, MG, Brasil)

H848 Howard Hawks Integral / Rafael Ciccarini (Org.). Ed. única. –


Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2013.
400 p.: il.; 21 cm.

ISBN 978-85-66760-00-2

1. Hawks, Howard, 1896-1977.


2. Diretores e produtores de cinema.
3. Cinema. I. Ciccarini, Rafael, 1978- II. Fundação Clóvis Salgado.
CDD: 791.430233

ISBN 978-85-66760-00-2

9 788566 760002

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SuMÁRIO
Nota do organizador 13
ENSAIOS E ARTIGOS INÉDITOS 15
Howard Hawks, O Cahiers Du Cinéma e as Políticas dos Autores: Ironias da História
[Mário Alves Coutinho] 17
Algumas questões acerca do “Problema Hawks” – Hawks, A Crítica E O Moderno –
Localizando O Problema
[Francis Vogner dos Reis] 25
A aventura do cinema é um Paraíso Infernal
[Paulo Santos Lima] 31
O Método do Discurso
[Bruno Andrade] 39
Revendo Hatari!: caças, corridas e (re) casamento
[Mateus Araújo] 41
Scarface: brutalidade e humor no cinema de Howard Hawks
[Sérgio Alpendre] 45
Herança da virilidade
[Fábio Andrade] 55
De Eva a Lorelei: mulheres no cinema de Howard Hawks
[Carla Maia] 59
Elas por Ele: a representação do feminino no cinema de Howard Hawks
[Marcelo Miranda] 69
Cary Grant: o primeiro Hitchcocko-Hawksiano
[Pedro Maciel Guimarães] 75
Ironia, velocidade, absurdo: Hawks e a Screwball Comedy
[Thiago Stivaletti] 79

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Western Clássico: O Último Pôr do Sol
[Heitor Capuzzo] 83
Os Westerns de uma nota só de Howard Hawks
[Jefferson Assunção] 91
Esboços de uma Obra
[Filipe Furtado] 97
A presença do grupo em Howard Hawks
[Paulo Augusto Gomes] 101
O Piloto Hawks: aviões e carros de corrida
[Paulo Henrique Silva] 105
Minha estética será sua herança
[Rodrigo Fonseca] 111

FORTUNA CRÍTICA 117


O Gênio de Howard Hawks
[Jacques Rivette] 119
Como se pode ser Hichcocko-Hawksiano
[André Bazin] 125
Hawks homem moderno
[Henri Langlois] 127
Hatari!
[Jean Douchet] 131
H. H., ou O Irônico
[Jean-Louis Comolli] 137
Land of Pharaohs, A Terra dos Faraós
[Pedro Costa] 143
Onde Começa o Inferno – Rio Bravo 1959
[Antonio Moniz Vianna] 147
Introdução a Hawks
[Rogério Sganzerla] 151
À Beira do Abismo
[Jonathan Rosenbaum] 155

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Interesseiras de 1953: Os Homens Preferem as Loiras, de Howard Hawks
[Jonathan Rosenbaum] 161
Howard Hawks (30 de Maio de 1896 – 26 de Dezembro de 1977)
[Peter Bogdanovich] 171

FILMOGRAFIA 279
SINOPSES 283
PROGRAMAÇÃO 297
CURSO | debate 305
PALESTRAS 309
SOBRE professor | debatedores | palestrantes | autores 313
AGRADECIMENTOS 319
CRÉDITOS 321

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é
com enorme satisfação que a Fundação dos três corpos artísticos da Fundação (Cia. de
Clóvis Salgado propicia a circulação de Dança Palácio das Artes, Orquestra Sinfônica e
conteúdo curatorial referente à Mostra Coral Lírico de Minas Gerais), além de abrigar
Howard Hawks Integral, realizada em o Centro de Formação Artística (Cefar) – escola
abril de 2013 pelo Cine Humberto Mauro de teatro, dança e música com cerca de 600
- reconhecidamente uma das mais re- alunos e grupos jovens profissionalizantes. A
levantes salas de exibição de circuitos Fundação Clóvis Salgado possui, portanto, um
não comerciais do Brasil que, nos últimos repertório diversificado de programas artísti-
anos, apresenta um aumento significativo de cos. Parcerias com instituições para troca de
público, principalmente em retrospectivas de patrimônios simbólicos podem e devem ser
grandes nomes do cinema mundial. A Mostra potencializadas e dinamizadas para criarmos
de Hawks em Belo Horizonte contou com a experiências ampliadas e renovadas para o
presença maciça dos visitantes que conferiram público.
todos os títulos do cineasta e participaram,
Agradeço à Prefeitura de São Paulo por abrir
gratuitamente, de um curso, palestras e um
novas possibilidades de parceria com a Fun-
debate sobre sua obra.
dação Clóvis Salgado. Estamos instigados a
O Cine Humberto Mauro integra o conjunto de trocar ideias e iniciativas para atender à de-
equipamentos culturais do Palácio das Artes, manda do público, ávido pela experimentação
complexo gerido pela Fundação Clóvis Salgado, proporcionada pela arte.
que reúne quatro galerias de arte, um teatro
de grande porte e dois de médio, espaços edu-
cativo, multiuso e de convívio, e biblioteca. O | Solanda Steckelberg |
Palácio é sede de criação, produção e exibição Presidente da Fundação Clóvis Salgado

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SS
onho antigo, foi somente depois populares, criando obras com camadas diver-
de realizarmos as mostras Luis sas, que podem se articular entre si, mas que
Buñuel, O Fantasma da Liber- também podem ser fruídas por elas mesmas (ou
dade e Chaplin, nas quais foram seja, funcionam para públicos com diferentes
exibidas as obras integrais des- formas de apreensão).
ses dois artistas gigantescos – e
Não obstante todas as suas facetas, podemos
de sentirmos a recepção incri-
dizer que Hawks é o diretor que filma o homem
velmente numerosa e calorosa do público em
em ação, o tempo presente, a aventura da vida e
relação a ambas, bem como sua repercussão
a vida como aventura: é a ação do homem que o
em todo o país –, que nos vimos prontos e per-
define e o insere, dando-lhe significado no mun-
cebemos ser este o momento de empreender
do, e é a partir dela que construirá seus valores e
uma mostra da complexidade de Howard Hawks
sua moral. Cineasta do relato objetivo, não parte
Integral, que agora temos, em valiosa parceria
de elucubrações filosóficas, morais e existenciais
da Fundação Clóvis Salgado com a Prefeitu-
a priori para fazer movimentar seu universo,
ra de São Paulo (por meio do Centro Cultural
mas, compreendendo a natureza essencialmente
São Paulo), o prazer de apresentar ao público.
materialista do cinema, chegará às ideias por
meio da mise-en-scène – e não ao contrário.
Howard Hawks foi um dos maiores nomes do
cinema norte-americano e mundial, dono de uma
Para planejar, conceber, viabilizar e produzir
filmografia de quase cinquenta longas-metra-
todas as atividades concernentes a uma mostra
gens, que começa na década de 1920, atraves-
como essa, desde o primordial – fazer chegar
sa diversos momentos e fases de Hollywood e
ao público cada um dos filmes de Hawks nas
termina somente em 1970. Nesse meio tempo,
melhores condições de exibição possíveis (na
realizou obras-primas que ajudaram a definir
sua maioria em películas 35mm, vindas de vá-
quase todos os gêneros cinematográficos e tra-
rios países diferentes), até as atividades com-
balhou com as maiores estrelas de Hollywood,
plementares (curso e palestra), bem como o
além de obter, principalmente após os anos 1950,
próprio livro/catálogo que agora chega ao leitor
reverencial respeito da crítica cinematográfica
– exigiram da equipe da Gerência de Cinema da
francesa e, em seguida, mundial. Howard Hawks
Fundação Clóvis Salgado e do Centro Cultural
se tornara, junto de Alfred Hitchcock, para além
São Paulo dedicação, paixão, esmero e espírito
de bem sucedido nome da indústria, um modelo
público sem os quais isso seria simplesmente
de autor e artista do cinema. Não por acaso, já
impossível.
houve quem comparasse Hawks a criadores da
grandeza de Mozart e Shakespeare. Trata-se
de artistas que, em suas artes e em seu tempo, | Rafael Ciccarini |
conseguiram, com maestria, equilibrar leveza, Gerente de Cinema da Fundação Clóvis Salgado
legibilidade e profundidade, atingindo o mais
alto nível artístico sem jamais deixarem de ser

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H
H
oward Hawks é um grande nome A mostra em homenagem a Howard Hawks
do cinema clássico americano, chega a São Paulo depois de uma bem suce-
um mestre que teve a versatili- dida realização em Belo Horizonte. Assim que
dade de trabalhar com muitos percebemos que uma mostra dessa qualidade
gêneros industriais, sempre chegava ao Brasil, a Prefeitura propôs uma
deixando a sua digital autoral. parceria com a Secretaria de Cultura de Minas
Exibir e debater os filmes de Gerais para viabilizar uma segunda etapa em
Hawks é um ingrediente indispensável para a São Paulo. Desejamos uma excelente mostra
cultura cinematográfica, na medida em que a a todos.
era de ouro do cinema americano tem aqui um
dos seus percursos mais marcantes em estilo,
criatividade e reflexão sobre o próprio cinema.
O Centro Cultural São Paulo tem a alegria de | Juca Ferreira
acolher esta mostra de filmes que é uma apro- Secretário Municipal de Cultura de São Paulo
ximação importante para que a obra de Hawks
seja mais debatida e conhecida no Brasil.

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SESSÃO DE ABERTURA: 12 de abril, às 20h
Grande Teatro (Palácio das Artes)

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LEVADA DA BRECA (Bringing Up Baby)
EUA, 1938 | Livre | 102'

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NOTA DO orGanizador
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A concepção deste livro/catálogo é tão simples Jaqcues Rivette, André Bazin e Henri Langlois, vem
quanto ousada: oferecer ao mesmo tempo uma suprir uma lacuna editorial quase inexplicável,
série considerável de novos textos que visem dado o seu peso referencial e a quantidade de
compor um panorama do que a crítica de cinema menções a eles em diferentes contextos históricos,
contemporânea tem a dizer sobre um cineasta cinéfilos e críticos – como, aliás, diversos textos
central da história do cinema em diversas de suas inéditos presentes neste mesmo volume poderão
possibilidades de apreensão (afetiva, estética, ética, comprovar. Completando a inevitavelmente ge-
histórica, política e por vezes a mistura de todas nerosa cota francesa, há o texto de Jean Douchet
essas) e também apresentar uma pequena – mas sobre Hatari! e o ensaio “H.H., ou o irônico”, de
substancial – antologia do que de mais importante Jean-Louis Comolli.
se escreveu sobre Howard Hawks.
O leitor também poderá travar contato com escri-
Na primeira parte, composta por textos inéditos, tos de Antônio Moniz Vianna e Rogério Sganzerla,
buscou-se a dificílima tarefa de compor a um dois grandes críticos brasileiros cujo interesse
conjunto de textos que desse conta de algumas em Hawks é indicativo do intrincado movimento
discussões básicas, tais como: o classicismo e a pendular entre o clássico e o moderno engendrado
modernidade em Hawks, o papel decisivo de seu na obra do diretor. À dupla, se soma o cineasta
cinema em diversos gêneros cinematográficos, Pedro Costa, cujo olhar contemporâneo embara-
sua singularidade em relação ao contexto e meio lha ainda mais essas noções trazendo nuances
de produção no qual trabalhou, as questões mo- argutas e sedutoras. Já Jonathan Rosenbaum,
rais e éticas agenciadas, o complexo e paradoxal em dois momentos de inteligência e perspicácia, é
papel da figura feminina em sua obra, a sua vasta um dos representantes da crítica norte-americana
influência para o cinema contemporâneo, entre neste volume.
outros temas.
Por fim, o leitor encontrará também a célebre série
Já na seção Fortuna Crítica, o leitor terá acesso de entrevistas com Hawks realizadas pelo diretor
a ensaios fundamentais não apenas para a com- e crítico Peter Bogdanovich (a quem o organizador
preensão da obra de Howard Hawks, mas também agradece especialmente) e publicadas em seu
para o pensamento acerca do cinema como um “Afinal, quem faz os filmes” – precedida por belo
todo – em especial para a crítica cinematográfi- depoimento de Bogdanovich, que era também seu
ca. Como é amplamente conhecido, coube aos amigo. Ali, se por um lado a personalidade esfín-
estudiosos e críticos franceses a proeminência gica de Hawks vem à tona, frustrando o desejo
na reflexão a respeito do autor cinematográfico, natural do leitor na busca pelo desvendamento
personificada na célebre “Política dos Autores”, dos mistérios do gênio, por outro somos brindados
que teve na figura de Howard Hawks um de seus com sua verve, humor preciso, cuidado e concisão
paradigmas máximos. Eis o motivo, portanto, da com que constrói sua narrativa: Howard Hawks
predominância francófona nesta seção. era também um notável reinventor de si mesmo
e de sua história.
A publicação de textos como “Gênio de Howard
Hawks”, “Como se pode ser Hitchcocko-Hawksiano”
e “Hawks homem moderno”, respectivamente, de
| Rafael Ciccarini |

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Ensaios e artigos
inéditos
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HOWARD HAWKS, O 'CAHIERS DU CINÉMA'
E AS POLÍTICAS DOS AUTORES:
IRONIAS DA HISTÓRIA
A evidência na tela é a prova do gênio de ricanos, sua juventude, é de fazer do tema a razão
Howard Hawks... mesma da encenação”. O primado da encenação já
[Jacques Rivette] estava nessa frase, assim como, através do título
em francês (Suprematie du Sujet), um jogo de pala-
...não podemos amar qualquer filme, se não vras que já sugeria o “eu” do autor, assim como o
amarmos os de Howard Hawks tema (sujet: sujeito, tema). André Bazin, com uma
[Eric Rohmer] precisão cirúrgica, apelidou os proponentes desse
movimento de crítica “hitchcockiana/ hawksiana”.
... a tradição não pode sobreviver na sua própria
fidelidade, na sua própria reprodução; é a ruptura Quem era, então, Howard Winchester Hawks (1896-
que a inova e a faz reviver. 1977), um dos iniciadores (involuntários) da política
[Christophe Bident, em dos autores? Somente o cineasta que praticara
"Maurice Blanchot, partenaire invisible"] quase todos os gêneros (comédia, western, policial,
musical, aventura), fazendo em geral, como era
aceito por quase todos, o melhor filme de cada
I gênero? Para os proponentes da política dos au-
tores, muito mais do que isso. Segundo Jacques
O que eu chamaria de a primeira “política dos au- Rivette, “Hawks dava à sensibilidade moderna,
tores” aconteceu no início da década de cinquenta, uma consciência clássica”. Seu tema maior era
em Paris, na (a partir da) revista Cahiers du Cinéma “o infortúnio cômico da inteligência”. Hawks seria
(primeiro número: abril/1951), e era a afirmação “somente preocupado com as aventuras do intelec-
(descoberta) de alguns cineastas americanos - mas to. Sua maravilhosa mistura da ação e moralidade
não somente; vários europeus entravam nesta é provavelmente o segredo do seu gênio”. Cineasta
categoria: Renoir, Rossellini, Dreyer -, principal- da inteligência, sua câmera sempre estava à altura
mente Howard Hawks (e Alfred Hitchcock). Estes do olhar humano e, como narrador, nunca era
dois diretores seriam, antes de qualquer outra superior aos seus personagens, ou sabia deles
coisa, criadores de formas/pensamentos cine- mais do que suas ações davam a nós, espectadores,
matográficos. Jean-Luc Godard, que pertencia ao o direito de inferir. Um cineasta decididamente
grupo que criou essa política, e foi o que primeiro existencialista...
escreveu conclusivamente na revista sobre um
desses autores americanos, afirmou, no número Ironia das ironias: Hawks seria, portanto, um autor
10, março/1952, que “toda invenção dos filmes ame- que trabalhava “numa forma de arte (Hollywood)

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que era coletiva, comercial, industrial e popular” fórmula. Diretores como Sergei Eisenstein, Jean
(CAUGHIE). Como, então, os criadores desse mo- Renoir, Orson Welles tinham o controle dos seus
vimento definiram “autor”? Segundo Caughie, as filmes, expressavam uma visão do mundo muito
diversas políticas dos autores estabeleceram que pessoal e já eram considerados autores; mas eles
escreviam seus roteiros (ou colaboravam neles),
um filme, ainda que produzido coletivamente, é controlavam a fotografia e dirigiam seus atores de
mais provavelmente considerado valioso quando uma maneira muito pessoal. E aqueles cineastas
é essencialmente o produto do seu diretor; que que eram usados mais como artesãos, junto com
na presença de um diretor que é genuinamente roteiristas que tinham toda liberdade? E quanto ao
um artista (um autor) um filme provavelmente cinema americano – diferente do europeu, mais
será a expressão da sua personalidade indivi- voltado para o diretor e menos aparentemente
dual; e que sua personalidade poderia ser des- industrial – em que o produtor escolhia/contrata-
coberta através de uma consistência temática va o roteirista, o diretor, os atores, o fotógrafo, e
e/ou estilística. controlava tudo: não seria ele o verdadeiro autor?
Os americanos já haviam estabelecido: quem se
responsabiliza pelo dinheiro com o qual o filme é
II feito é o dono dele... A propriedade privada sempre
foi um dogma, naquele país... Criar formas e ideias
Esta palavra (conceito) já havia sido usa- seria mero detalhe...
da, por exemplo, por Alexandre Astruc, no seu
texto-manifesto:
III
Nascimento de uma nova vanguarda: a câmera-
-caneta (1948), para caracterizar o trabalho do O autor cinematográfico era, portanto, uma ideia
diretor: o cinema é uma forma na qual e pela aceitável, antes da década de cinquenta; o que
qual um artista pode exprimir seu pensamento não existia era o acoplamento da palavra política
[...] num tal cinema esta distinção entre o autor à palavra autor: esta foi uma das novidades in-
e o realizador não tem mais nenhum sentido. ventadas por François Truffaut, Jean-Luc Godard,
Eric Rohmer, Jacques Rivette e Claude Chabrol.
André Bazin já tratara Orson Welles como tal: “Wel-
les é decididamente um dos cinco ou seis autores Paradoxalmente, apesar de não ser um termo novo,
do écran mundial dignos deste nome – um dos mesmo aplicado pela crítica de cinema, houve
cinco ou seis que carregam consigo uma visão muita invenção e heterodoxia na criação dessa
de mundo”. nova ideia (ironias da história: a política dos autores
veio a ser uma nova ortodoxia). Em primeiro lugar,
O conceito de autor, portanto – mais empregado não houve propriamente um artigo definitivo e
até então em relação aos escritores, pintores e esclarecedor. O que houve foram textos (muitos)
músicos –, já havia sido empregado para carac- sobre aqueles que a “gang Schérer” – para Bazin,
terizar os criadores cinematográficos, antes que este apelido “carinhoso” descrevia Rohmer, cujo
alguns ensaístas dos Cahiers cunhassem esta verdadeiro nome era Maurice Schérer, mais Tru-

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ffaut, Godard, Rivette e Chabrol – veio a chamar amorosamente, mas efetivamente. Os fundado-
“autores”. Qual foi o primeiro desses textos? Alguns res (e redatores-chefes) dos Cahiers (André Bazin,
dizem que foi a crítica de Godard sobre Pacto Sinis- Lo Duca e Jacques Doniol-Valcroze) não só não
tro (Strangers on a Train, 1951, Hitchcock), número participam desse movimento, como também não
10 da Cahiers. Para outros, foi um texto de Truffaut eram adeptos dele. Mas permitem que ele apareça
sobre um filme de Jacques Becker a que ele deu o e se desenvolva no interior da revista, embora o
título Ali Baba et la “Politique des Auteurs", número critiquem. Bazin, por exemplo, em Como se pode
44 (abril/1955). Ou será que teria sido outro artigo ser hitchcockiano/hawksiano, número 44, feverei-
de Truffaut, sobre Os Corruptos (The Big Heat, 1953), ro/1955, e em Da política dos autores, número 70,
de Fritz Lang, número 31, janeiro/1954? Num texto abril/57, vê as contradições dos seus amigos e
de Alexandre Astruc - outubro/1954, número 39, filhos simbólicos: “não existe, portanto, crítica to-
especial Hitchcock - ele afirmava que o diretor tal do gênio ou do talento que não leve em conta
inglês era algo raro na indústria cinematográfica: primeiro a parte dos determinismos sociais, da
um autor. Mas o começo de tudo não estaria no conjuntura histórica, do background técnico que,
texto de Jacques Rivette, publicado no número em grande parte, os determina”. Outra ironia da
23, maio/1953, que tem o título de O Gênio de Ho- história: no futuro, o Cahiers du Cinéma vai ficar
ward Hawks, e que começa com a célebre frase mundialmente conhecido por ter criado a “política
“a evidência na tela é a prova do gênio de Howard dos autores”... Essa proeminência é “oficializada”
Hawks”?. Ou seria o ensaio Uma Certa Tendência quando Lo Duca deixa a revista, e Eric Rohmer
do Cinema Francês, número 31, janeiro/1954, no passa a ser um dos redatores-chefes (a partir do
qual Truffaut atacava um certo cinema francês, número 69).
dominado por roteiristas (Aurenche e Bost) que
adaptavam mecanicamente grandes obras da
literatura francesa: por que não usar cineastas V
criativos, autorais (Renoir, Ophüls, Bresson, Tati),
incapazes de ser meros serviçais de textos pre- Outra ousadia (ou seria melhor chamar de “as-
existentes, o exato contrário dos diretores sem sassinato simbólico da figura paterna”?): incluir
personalidade artística, meros ilustradores (Lara, no nome do movimento a palavra “política”. Na-
Delanoy, Clement, etc.)? Como alude Astruc, falar quela época, política e ideologicamente está-
de autor (Hawks), a propósito de um cineasta que vamos em plena Guerra Fria, basicamente um
trabalhava numa indústria, que necessariamente confronto Estados Unidos versus União Soviética,
cria produtos em série, para agradar os espec- capitalismo versus comunismo. Detalhe: a maior
tadores, era uma ousadia sem nome. Que não parte da crítica francesa tinha claras simpatias
seria a única. pela esquerda, defendia uma maior reserva de
mercado para o cinema francês, e uma menor
exibição de filmes americanos; Bazin chegou a
IV trabalhar em entidades comunistas, talvez por
ser um socialista/existencialista/católico (ele, Eric
Outra: a “gang Schérer”, que cria a “política dos Rohmer e Alexandre Astruc colaboraram em Les
autores”, toma de assalto a revista, amigavelmente, Temps Modernes, a revista de Jean-Paul Sartre). Ao

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afirmar que Hawks, Hitchcock, a obra americana verdadeiro teórico, mesmo discordando deles -
de Lang, Nicholas Ray, Preminger, Fuller e Walsh para ele, as grandes obras são o resultado não
eram “autores”, eles estavam de alguma maneira somente do trabalho de um autor, mas de um
dizendo que a indústria americana era capaz de momento histórico, uma indústria, e de um gê-
produzir obras-primas (alguns desses diretores nero - ao escrever contra a política dos autores,
eram tidos como de direita e/ou anticomunistas, em última instância, defendeu-a:
como Samuel Fuller; outros, Nicholas Ray, por
exemplo, haviam pertencido ao partido comunista, eles estão menos interessados em justificar-se
e eram claramente rebeldes em relação ao sis- com argumentos razoáveis do que em chocar
tema no interior do qual trabalhavam), apesar do com admirações e asserções expressas abrup-
macarthismo totalitário então vigente no país. Por tamente [...], Perdoem-me se eu me transformo
razões políticas, ideológicas, mas também estéti- no advogado deles por um momento: se eles não
cas, basear qualquer movimento na afirmação de vão fazer isto, eu o farei. Eles escrevem sobre o
que Hawks e Hitchcock - cineastas além do mais que sabem, e é sempre útil ouvir os especialistas.
devotados a gêneros mal avaliados criticamente
(western, policial, musical, comédia, no caso de A crítica de François Truffaut sobre Os Corruptos
Hawks; suspense, no caso de Hitchcock) e, além entrega o jogo logo no título: Amar Fritz Lang. Não
do mais, realizadores de sucesso entre o grande se tratava de gostar da obra, ou dos seus filmes,
público (comerciais, portanto) - eram verdadeiros mas do autor, pessoalmente. Antoine de Baecque,
autores, parecia provocação para a maioria da no seu livro sobre a revista, diz: “a política dos au-
crítica francesa e mundial, além de ser um ataque tores inscreve-se mais na proximidade da criação
à reserva de mercado para o cinema francês. Era, do que na releitura de textos críticos de referência.
portanto, o assassinato simbólico do pai de toda a A política dos autores não é um movimento teórico,
“gang Schérer”. André Bazin: para ele, comprometi- mas uma aproximação íntima do cinema por um
do com algumas políticas de esquerda, na França, ato de amor”.
os verdadeiros autores eram Orson Welles, Jean
Renoir e William Wyler. Quase ao mesmo tempo em que criava a política
dos autores, a “gang Schérer” desenvolvia uma
ideia que teria um futuro tão brilhante quanto a
VI outra: o cinema é arte da encenação (mise-en-
-scène), quer dizer, a arte de relacionar um corpo
Finalmente, a política dos autores não foi pro- (o do ator, ou atores) com o espaço. Baecque/Tou-
priamente uma teoria, e seus criadores estavam biana: “Truffaut, como Godard, Rivette ou Rohmer
longe de ser teóricos do cinema: com mais exatidão colocam um argumento simples: um autor é pri-
podemos dizer que foi um ato de amor pelo cinema meiro e unicamente um encenador (metteur-en-
em geral, por alguns autores em particular, e por -scène)”. Conforme Caughie, “é na encenação – na
uma quantidade enorme de filmes. Eles realmente disposição da cena, no movimento de câmera, no
não escreveram manifestos nem explicitaram em enquadramento da câmera, no movimento de um
longos artigos as suas paixões: simplesmente as plano para outro – que o autor inscreve sua indi-
afirmaram. Tanto foi assim que André Bazin, um vidualidade no filme”. No dizer de Stam, citando

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Astruc, o cineasta deveria ser capaz de dizer “eu”, a existência de gêneros preestabelecidos é enor-
como o romancista ou o poeta. Ao desenvolver memente benéfica para o artista e [...] quase
pelo menos duas ideias - que se complementa- toda arte maior foi construída sobre os cimentos
vam - com o futuro assegurado nas revistas e fortes e familiares de um gênero: as obras de
nos livros que viriam, no mundo inteiro, Truffaut, Shakespeare, as sinfonias de Mozart e a pintura
Godard, Rivette, Chabrol e Rohmer se posiciona- renascentista oferecem paralelos óbvios. [...] A
ram para fazer o que na verdade quiseram desde originalidade destas obras (de Hawks, Hitchcock,
o início: serem autores. Todos os cinco vieram Ray, etc.) não reside na criação de uma lingua-
a ser diretores com uma longa filmografia, tão gem, mas no uso e desenvolvimento que faz o
amados (e odiados) quanto seus antecessores, artista daquela já existente.
Hawks e Hitchcock.
Aqui, Robin Wood encontrava a releitura que André
Bazin havia feito da política dos autores: “o que faz
VII a superioridade mundial de Hollywood é, bem en-
tendido, o valor de alguns homens, mas é também
Enquanto certo cinema americano era valoriza- a vitalidade e, numa certa medida, a excelência de
do em Paris, nos Estados Unidos e na Inglaterra, uma tradição”. Para colocar tudo isso em termos
junto à intelligenzia, ao establishment crítico, e à poundianos, o cinema que defendia a política dos
academia, este mesmo cinema continuava sen- autores, tanto a inglesa como a francesa, não era
do o que sempre fora em praticamente todo o um cinema de invenção, mas de mestres. Dessa
mundo: diversão pouco inteligente, arte vulgar, maneira, os ingleses incorporaram e transcende-
e uma indústria que realizava somente produtos ram a política dos autores original, e criaram o que
estandardizados. chamo de “a segunda política dos autores”. Que
não produziu, como a primeira, autores de cinema,
Foi quando apareceu uma revista na Inglaterra, mas quase que somente ensaístas e teóricos (Ro-
Movie, em 1962 (ela durou até 2000), na qual escre- bin Wood, Colin MacCabe, Peter Harcourt, Geoffrey
veram Ian Cameron, Robin Wood, V. F. Perkins, Jim Nowell-Smith). Somente um deles teve carreira
Hillier e Charles Barr, entre outros. Cineastas que como diretor, Peter Wollen, com oito filmes e um
defenderam e entrevistaram: Hawks, Hitchcock, roteiro para Michelangelo Antonioni.
Fuller, Minnelli. Escreveram livros sobre Hawks
(Wood, Hillier, Wollen - este último não colaborava
na revista), Hitchcock (Wood, Barr), Claude Chabrol VIII
(Wood, Michael Walker), Godard (todos eles). A
influência da política dos autores era óbvia. A política dos autores foi também transplantada
para os Estados Unidos. Os responsáveis foram
Mas esse grupo não ficou somente na repetição. Peter Bogdanovich e Andrew Sarris, que escreviam
Inovou acrescentando ao estudo desses autores na revista Film Culture, editada por Jonas Mekas.
o esclarecimento da articulação que eles faziam Bogdanovich publicou entrevistas (além de artigos)
entre os gêneros e o público (a política dos autores sobre Hawks, Hitchcock, Ford, Preminger, Cukor,
original colocava sua ênfase nos autores). Robin Dwan, Lang, Joseph H. Lewis, McCarey, Josef von
Wood, por exemplo, escreveu no livro Howard Hawks: Sternberg, Ulmer, Walsh: um catálogo igual à po-

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lítica dos autores original, vários deles também poderia ser chamada a terceira versão da política
defendidos por outra escola francesa de crítica dos autores (que Sarris oficializou no número 27 do
cinematográfica, os “mac mahonistas” (radicaliza- Film Culture, Winter/1962, com o ensaio Notes on
ção da política dos autores, que começou também the auteur theory). A partir da década de setenta, a
nos Cahiers). Bogdanovich, posteriormente, veio a terceira política dos autores, tendo atrás de si toda
ser um autor cinematográfico de alguma distinção: a carga acumulada das duas primeiras, influen-
entre seus filmes estão Essa Pequena É uma Parada ciaria decisivamente todo o cinema americano: os
(What's Up, Doc., 1972), homenagem às comédias filmes de Scorsese, Coppola, Cimino, De Palma,
de Hawks, e A Última Sessão de Cinema (The Last Lucas, Spielberg, Tarantino, Jarmusch, Malick,
Picture Show, 1971). Woody Allen, etc. seriam impensáveis sem esses
movimentos críticos anteriores.
Andrew Sarris estendeu teoricamente a política
dos autores na revista em que atuava. Como es-
creveu Caughie, IX

ele pareceu reconhecer a estrutura industrial Pouco anos depois de todas essas versões da po-
do cinema como algo mais do que uma ‘inter- lítica dos autores, o cinema começou a entrar na
academia. Hoje já existem várias escolas de cinema
ferência’ na liberdade de criação do autor; viu
isto mais como algo que produzia uma ‘tensão’ no circuito universitário, e cadeiras de cinema
entre o autor e seu material, uma tensão que espalhadas por várias faculdades; o cinema está
estruturava o 'sentido interior’ do filme. em todas as mesas de discussão da universida-
de, em interface com a literatura, poesia, música,
Como o próprio Sarris escreveu: pintura, televisão, história, filosofia, pedagogia, etc.
Doutorados e mestrados em cinema abundam.
a arte do cinema é a arte de uma atitude, o Todo esse movimento foi, muito provavelmente,
estilo de um gesto. Não é tanto o que, mas o alavancado pela importância que a política dos
como. O que é algum aspecto da realidade res- autores ganhou no mundo inteiro. Outra ironia
tituído mecanicamente pela câmera. O como é da história: o cineasta cuja obra originou essa
o que os críticos franceses designam um tanto política (teoria?) é um dos menos estudados (ou
misticamente como encenação. A política dos conhecidos) nos dias que correm, dentro ou fora
autores é a reação contra a crítica sociológica das universidades, dos livros e dos escritos críti-
que entronizou o que contra o como. Entretan- cos, no mundo inteiro: Howard Hawks. Seria esta
to, seria igualmente falacioso entronar o como mostra, realizada em Belo Horizonte, o começo
contra o que. O mais importante de um estilo de um reconhecimento histórico?
significativo é que ele unificaria o que e o como
numa afirmação pessoal.
X
Mas, ao traduzir politique des auteurs para o inglês,
Sarris a interpretou como “teoria do autor” (auteur Última (será mesmo?) ironia da história: poucos
theory). O que era política para os franceses, se anos depois que apareceram todas essas políticas
transformou em teoria para os americanos, no que dos autores, Roland Barthes, Michel Foucault e a

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semiótica, em Paris, decretaram a morte do autor. McCARTHY, Todd. Howard Hawks, the grey fox of
A partir daí, como ficou exatamente a política dos Hollywood. New York: Grove Press, 1997.
autores? Os leitores que me perdoem, mas isso é
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Cam-
assunto para outro ensaio, e outra mostra, talvez.
pinas: Papirus Editora, 2003.
WOOD, Robin. Howard Hawks. Madrid: Ediciones
| Mário Alves Coutinho | JC, 1982.
__________. Personal views. Explorations in film.
London: Gordon Fraser, 1976.
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University of California Press, 1982.

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ALGUMAS QUESTÕES ACERCA DO
“PROBLEMA HAWKS” – HAWKS, A CRÍTICA
E O MODERNO – Localizando o problema
Alguns tabus que as trincheiras do cinema mo- lação. Pode-se pensar que essa retrospectiva é
derno ergueram contra o ilusionismo do cinema simplesmente a sagração de um artista célebre
clássico de Hollywood, assim como as teorias do que realizou feitos notáveis e que tem um valor
cinema moderno dos anos 1960 e 1970 sugeriram, histórico congelado na tradição do “cinema clás-
sobretudo no que diz respeito à relação do passivo sico americano”, ou seja: uma referência que em
espectador com o cinema clássico, algumas per- uma época e em um lugar teve seu impacto e hoje
versões. Só que com o tempo as fantasmagorias é apenas um elemento a mais de erudição cinéfila.
em torno do cinema clássico serviram mais para Para além do fator de erudição, a oportunidade
estigmatizá-lo (e empalhá-lo) do que para propor é falar de cinema a partir do “problema Hawks”,
uma relação mais complexa e menos neurótica (no que porventura ilumina algumas controvérsias
sentido edipiano) com o insurgente moderno, ainda importantes na atual configuração de valores do
que este lhe tenha feito uma crítica incontornável cinema.
e inevitável. Se a disciplina de História do Cinema,
tal como ensinada nas universidades, surgiu mais Uma pesquisa rápida na internet sobre algumas
ou menos nessa época, é natural que se pensasse discussões atuais envolvendo o nome de Howard
em termos de evolução de uma linguagem que Hawks dá um pouco a dimensão do “problema
partiria de Griffith, se desenvolveria no período Howard Hawks”, que dura um pouco mais de meio
clássico e se esgotaria nos anos 1950 e de que século. Na Juliette, revista de cinema, em uma en-
essa linguagem clássica codificaria formas puras, trevista com Inácio Araújo, em 2010, como reação
etc. É fato que aquilo que foi chamado de período ao fato de o crítico dizer que “Howard Hawks é o
clássico (e seu estilo/forma) pertence ao passado, maior”, a entrevistadora Josiane Orvatich indaga
assim como a oposição cronológica e simétrica do “por quê“?. A pergunta soa como uma surpresa.
moderno também foi algo superado pela Histó- Isso seria somente uma indagação comum (como
ria. Hoje, parece mais necessário procurar uma pode, na verdade, ter sido) se não fosse regra tá-
relação dialética entre o que chamamos de clás- cita na discussão envolvendo o cineasta. Marcelo
sico e moderno do que uma oposição conclusiva, Miranda, em artigo da revista Filmes Polvo, relata
porque esta sempre será arbitrária porque pensa que, ao dar uma aula a partir do filme O Inventor
em categorias por demais normativas, ignorando da Mocidade (Monkey Business, 1952) e do texto O
as inflexões da história do cinema. Gênio de Howard Hawks, de Jacques Rivette, um
dos alunos pediu a explicação dos motivos da re-
A mostra Howard Hawks Integral é, portanto, uma verência a Hawks. Na visão do aluno o filme era,
oportunidade para colocar essas ideias em circu- usando os adjetivos do artigo, “simples”, “comum”

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e “fácil”. Eu mesmo, ao pedir que os alunos de um Hollywood - o que se dirá de Howard Hawks que
curso assistissem a diferentes filmes de Howard não possui nenhuma dessas qualidades?
Hawks para uma aula, recebi como resposta não
É difícil filiar Hawks a um determinado sistema
os artigos pedidos, mas um “agora explica por
de valores expressivo que não pareça anacrô-
que foi importante vermos isso... não entendi. Não
nico, ligado unicamente a um desenvolvimento
tem nenhuma novidade”. Em todos esses casos a
esquemático do que se convencionou chamar de
resposta veio de modo tateante. No caso de Inácio
“linguagem cinematográfica”, mas a valorização
Araújo, sua abordagem se assentou em um aspecto
crítica do cineasta não começou na década de
mais filosófico e intuitivo, Marcelo Miranda fez uma
1950. Já em 1928, Jean Georges Auriol, na revista
defesa calcada em uma crítica a certa preguiça
La Revue du Cinéma, escreve sobre Uma Garota em
e ignorância do espectador contemporâneo, e eu,
Cada Porto (A Girl in Every Port, 1928), penúltimo
em aula, tentei ir ao filme e fazer uma aprecia-
filme silencioso de Hawks. Auriol fala da empatia
ção do estilo do cineasta aliada a uma visão um
suscitada por imagens sedutoras e de um estilo
pouco próxima da que chamei de “filosófica”, de
simples e conciso, apreciação que, convém dizer,
Inácio Araújo, apresentei o texto do Rivette, etc. A
dura até hoje como valor central nos filmes do
invisibilidade do estilo não convenceu, o approach
cineasta. Auriol escreveu isso no crepúsculo de
filosófico não colou e o texto do Rivette pareceu
uma década em que as experiências vanguardistas
por demais tautológico. Bonito, forte, mas que não
(o construtivismo russo, o surrealismo, a escola
transcendia a própria lógica interna que suposta-
impressionista francesa, o expressionismo alemão)
mente afirmaria a si mesma.
buscavam afirmar um “específico cinematográfico”
por meio da montagem e dos recursos plásticos
As reações são compreensíveis, tanto dos alunos
da imagem, diferente do então cinema narrativo
ressabiados quanto dos defensores convictos do
americano enraizado em Griffith e, por outro lado,
cineasta. Hawks não é um formalista como Alfred
do documentário. O crítico foi o primeiro a reco-
Hitchcock; nem possui a dimensão épica e lírica
nhecer que existia algo ali na literalidade e na
de um John Ford; não tem o estilo suntuoso de
concisão e isso era a sua modernidade, diferente
um Otto Preminger; tampouco, o barroquismo de
de certa concepção de modernidade artística das
Orson Welles; está longe de explorar a força do
vanguardas. Auriol provavelmente tinha em mente
artifício como um Vincent Minelli; não é afeito a
o romance americano moderno, sua velocidade e
um trabalho dedicado à plasticidade entre corpus
seu ritmo a partir dos fragmentos, da economia
e décor, como um King Vidor; como também sua
narrativa e de um ímpeto radical de fazer um re-
câmera não visa a uma violência corpo a corpo
lato do homem na sua relação violenta e ridícula
com a matéria que filma, como os rebeldes Sa-
com a sociedade moderna. O cinema em ritmo
muel Fuller e Joseph H. Lewis; não se preocupa
de hardnews.
com uma psicologia mais profunda, como Anthony
Mann; não se utiliza do gênero como crítica obscu-
É possível fazer o elogio ou o confronto com o
ra e contrabandista, como os alemães Fritz Lang
cinema de Howard Hawks sem nostalgia, sem
e Douglas Sirk em Hollywood; e, por fim, não era
apontá-lo como modelo ideal e evitando, sempre
progressista como Elia Kazan ou Charles Cha-
que possível, usar como álibi intelectual e argu-
plin. Se todos esses cineastas são considerados
mento mistificador os versículos do evangelista
hoje artistas - para alguns gostos “apesar” de
Jacques Rivette. Há de se buscar um modo de

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entender Howard Hawks, já que gostar dos seus vens turcos” dos Cahiers du Cinéma. Isso trouxe
filmes não é tarefa tão difícil. Eles primam pelo ao cineasta mais condescendência do que real
princípio do prazer e serão compreendidos em sua legitimação, convenhamos. Hawks, uma extrava-
complexidade se o gozo for destituído de culpa. Se gância de firme convicção dos jovens hitchcocko-
Rivette até agora foi seu melhor exegeta, não foi -hawksianos, tal como escreveu com sinceridade
porque soube decantar o estilo do cineasta por André Bazin em uma carta a Georges Sadoul. Se,
meio de um método analítico minucioso ou ir além nessa equação inusitada, Alfred Hitchcock, por
das imagens (ou supor o que elas sugerem) em exemplo, foi absorvido (e absolvido) pela cultura
termos de símbolo ou qualquer outro tipo de ele- intelectual de cinema e hoje é indiscutivelmente
mento expressivo que garanta uma representação um dos artistas maiores do século XX, qual foi o
de conflitos interiores, mas se ateve ao princípio lugar reservado a Howard Hawks?
elementar do movimento das imagens na ação. A
dificuldade em lidar com o cinema de Hawks é a de Difícil dizer, até mesmo porque a discussão so-
entender seus filmes não ignorando a codificação bre o cinema de Hawks raramente, como vimos,
de seus elementos e procedimentos, mas não se extrapolou os limites do ambiente cinéfilo, mais
atendo a isso como medida de significação e valor especificamente do francês, mais especificamente
(são critérios por demais abrangentes), porque se ainda na tradição dos Cahiers du Cinéma. Mesmo
assim fizermos caímos na cilada da retórica do que o gosto por Hawks tenha sido partilhado por
“cinema clássico”. Entender os filmes de Hawks cineastas tão diferentes entre si, como Martin
não é ignorar essas coisas, mas saber que nelas Scorsese, Quentin Tarantino, Rogério Sganzerla
ele é singular, é radical, e que sua encenação se e John Carpenter, e críticos americanos como
funde de maneira plena ao seu universo filmado. Andrew Sarris e Manny Farber, boa parte dos cri-
Não é um cineasta de camadas como Fritz Lang térios que se adotou para falar de Hawks provém
ou outros herdeiros do expressionismo, é um cine- dos “jovens turcos” hitchcocko-hawksianos: elogio
asta de superfície, o que vemos existe como ação do estilo conciso e direto, elogio da elegância. E
(que é o que define os personagens: o homem é ainda damos voltas em torno dessas fórmulas
o que faz), não há nada a ser desvelado, nem em retóricas, talvez porque ainda sejam as melhores.
À Beira do Abismo (The Big Sleep, 1946), um noir
em que os personagens (seja Marlowe, as ricas É interessante notar que Howard Hawks, ao menos
irresponsáveis ou os criminosos) não dissimulam na pena de alguns críticos dos Cahiers du Cinéma,
o que são, o mistério é o mistério e a ele não pontuou alguns dos momentos históricos da revis-
temos acesso, nem nós, espectadores, nem os ta. Há a intentada autorista desencadeada, sobretu-
personagens (aliás, nem Hawks, nem o autor do do, pelo texto O Gênio de Howard Hawks, de Jacques
livro original Raymond Chandler, nem o roteirista Rivette, publicado em 1953 nos Cahiers du Cinéma
William Faulkner). 23. Uma década mais tarde, em janeiro de 1963, no
número 139 da revista, o editor Eric Rohmer lança
a edição com o dossiê completo Howard Hawks.
O nó górdio Nos anos que se seguiram Jean-Louis Comolli
O fato é que Howard Hawks é, como autor, um nó daria outra abordagem ao cinema de Hawks, um
górdio da história do cinema. Ele é, ainda hoje, o tanto mais cínica em O Irônico Howard Hawks, em
cineasta norte-americano defendido pelos “jo- novembro 1964 no número 160 da revista (junto a

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uma entrevista com o cineasta). No número 180 nada que não seja imanência material e ética da
de julho de 1966, Jean Narboni escreveria, agora atividade humana no mundo. Hitchcock é católico,
sob os auspícios de uma revisão crítica do autoris- sua mise en scène é a liturgia e a representação
mo, Contra o Relógio: Faixa Vermelha 7000 e Michel sádica do pecado original; Hawks é protestante,
Delahye Hawks Forever!. Serge Daney escreve em não é místico, mas ético e pragmático (de ação),
A Velhice do Mesmo, na edição 230 em julho de acredita na literalidade, não no sentido transcen-
1971, texto escrito em meio a uma crise: o distan- dente da representação.
ciamento radical da revista de uma abordagem
estética mais tradicional e a influência lacaniana,
semiológica e estruturalista para o que Hawks Um cinema de ideias em movimento –
era um alvo fácil (e preferencial). Esses exemplos lei, ação e circustâncias
revelam a preferência pelo “problema Hawks”.
Nos Cahiers du Cinéma não se voltou tantas vezes Howard Hawks é um bom princípio para desas-
a outros autores como Roberto Rosselini, Alfred sombrar o olhar porque é fato notório que não há
Hitchcock e nem Jean Renoir, ao menos não em só indigência sensível e intelectual na crítica e no
períodos tão esparsos e em fases tão diferentes. olhar contemporâneos, mas também um assom-
bramento muito problemático com mediações em
Nas universidades norte-americanas, principal- demasia. Às vezes entre o olhar e o filme veem-se
mente nos anos 1970 e 1980, publicaram-se alguns mais fantasmagorias do que o filme em si. Hawks
trabalhos a respeito de Hawks, a maior parte deles não propõe a purificação do olhar (o que seria tolo),
calcados em estudos culturais, na teoria de gê- mas a depuração, que é outra coisa. Por isso, o
neros e na psicanálise lacaniana, coisa comum melhor caminho - ainda - na obra de Hawks é certo
no meio acadêmico americano. A obra de outros didatismo, porque o obscurantismo não funciona
cineastas clássicos, como o próprio Hitchcock muito na objetividade hawksiana e corre-se, assim,
(já que entramos na discussão pela dobradinha risco sério de traí-lo. É necessário pensar o plano,
“hitchcocko-hawksiana”), se prestou a isso. O a ação, o ritmo e a moral, a relação dos elementos,
problema é que não dá pra passar por Hitchcock o humor como constatação da ambiguidade natural
falando de psicanálise sem implicar o simulacro, dos seres e das coisas. Nada excede, nada falta.
o ponto de vista, a autorreferencialidade, o re-
calcado na imagem. Mas em Hawks dá para falar É interessante notar o ritmo de filmes como Uma
de psicanálise sem recorrer a qualquer operação Garota em Cada Porto, Scarface – A Vergonha de uma
estética dos seus filmes. É possível discorrer lon- Nação (Scarface, 1932), Levada da Breca (Bringing
gamente sobre as tipologias dos personagens, a Up Baby, 1938), Paraíso Infernal (Only Angels Have
dramaturgia, o exemplo (mais sofisticado) da tra- Wings, 1939), Jejum de Amor (His Girl Friday, 1940),
dicional representação que o cinema americano O Rio da Aventura (The Big Sky¸ 1952), À Beira do
realizou de uma sociedade feita à (auto) imagem Abismo (The Big Sleep, 1946), Bola de Fogo (Ball of
da supremacia masculina e da guerra dos sexos Fire, 1941) e, principalmente, Terra dos Faraós (Land
sem precisar implicar seu estilo, ainda que seja of the Pharaohs, 1955), Onde Começa o Inferno (Rio
possível, para os mais exagerados, ver falos em Bravo, 1959) e Hatari! (Hatari!, 1962). Em nenhum
chapéus e armas. De Hitchcock pode-se ir às pro- deles há muito tempo a perder. A eficiência de cada
fundezas da imagem, em Hawks não dá para extrair plano, de cada corte, de cada palavra e de cada

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ação impõe uma espécie de economia existencial: a caçada de animais selvagens. A sensação do
o homem não pode depender de nada que não seja perigo é necessária. É um pragmatismo poético,
o próprio empenho. Ele é atrelado inevitavelmente se assim podemos dizer.
(e às vezes tragicamente) à sua responsabilidade.
O diretor transforma uma ideia em um trabalho
O mundo existe e não depende dele. Cada plano
concreto e esse trabalho concreto (a caracteriza-
de Howard Hawks é uma síntese dessa visão de
ção de personagens, os espaços, a duração dos
mundo: muitos figurantes realizando coisas que
planos, os detalhes e as palavras) reflete em suas
não possuem uma função direta na cena (como em,
unidades (planos, cenas, sequências) a ideia geral
principalmente, Paraíso Infernal e Jejum de Amor).
do filme e isso só existe por meio da relação es-
Os protagonistas são até o centro das ações (e da
tabelecida entre todas essas partes. Usar como
gravidade), mas não do mundo. Marlowe entra em
ponto de partida o conceito-termo mise-en-scène
uma livraria em À Beira do Abismo, começa a chover
é reconhecer o efeito da cena sob a força do estilo,
do lado de fora e os figurantes reagem à tempesta-
mas não sua engrenagem e o movimento dessa
de sem que a câmera de Hawks se desloque para
ideia que vira filme. Não esclarece o caminho para
o exterior da livraria dando especial atenção a isso.
esse mistério e abre mão de fazer proposições
Em Hatari!, enquanto Elsa Martinelli está sentada
mais fortes em torno das regras do jogo, no caso,
na varanda, o triângulo amoroso coadjuvante dança
as regras do cinema conhecido como “clássico”.
e toca piano na sala. Vê-se isso por uma fresta, por
uma abertura da porta, de modo indiferente sem
O cinema clássico americano é o cinema das re-
que a câmera precise se deslocar para reafirmar
gras e das leis rígidas. Entretanto, todo cinema
que - em paralelo à conversa de Elsa Martinelli -
lida com regras a priori. Não existe filme - nem
dois homens disputam uma garota. Cada elemento
os de Jean-Marie Straub/Danièle Huillet, nem os
na cena tem uma função primordial: um telefone,
de Isidore Isou, nem os de Jonas Mekas - que não
uma arma ou um bife. Não há nada na direção de
tenha ou estabeleça regras segundos as quais os
arte que chame a atenção pra si mesmo, mesmo
filmes se articulam. São elas que fornecem uma
em uma superprodução como Terra dos Faraós.
estrutura, um esqueleto e, por vezes, possibili-
Essa economia de Hawks passa por uma depu-
tam a articulação de um filme. Howard Hawks
ração (essa parece ser palavra-chave em Hawks)
é o cineasta das leis, o que não significa ser um
em Onde Começa o Inferno. Aqui, nem uma trama
agente da ordem, ele é o cineasta que articula
intrincada há mais. Há estados de ação e espera,
as leis naturais às leis do cinema: a juventude e
nada parece se desenvolver (em termos de “his-
a velhice, a vida e a morte, o macho e a fêmea, o
tória”), mas, no entanto, tudo está em andamento.
dia e a noite. Interessam-lhe as leis, naturais e
Howard Hawks sempre foi cineasta dos detalhes
inventadas, que regem o mundo. Sua obsessão em
(eles são primordiais para a eficiência do que está
filmar a disputa cultura versus natureza, civilização
em atividade), só que esses detalhes vêm menos
versus barbárie é de nos lembrar do perecimento
dos artifícios, sejam eles quais forem, e mais do
das coisas, da passagem do tempo e da morte. O
elemento humano. Ele faz uma coisa que poucos
que faz de Hawks um grande crítico da civilização
cineastas conseguiram fazer: documenta/repre-
é essa vigilância em torno da morte, que o mundo
senta o ritmo do mundo. Se necessário for construir
moderno e industrial tratou de recalcar.
uma pirâmide, não adianta falsear a construção,
representá-la de maneira episódica. É necessário
fazer o esforço e documentá-lo. O mesmo com | Francis Vogner dos Reis |

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A AVENTURA DO CINEMA É
UM Paraíso Infernal
O mais forte distintivo de Howard Hawks coincide Howard Hawks é um aventureiro, como Raoul Wal-
com o do cinema: o movimento. A constatação pa- sh, William A. Wellman e Michael Curtiz; todos
rece contraditória, por ser algo intrínseco ao meio, eles afetados de alguma forma pelos anos 1920 e
comum não a um, mas a todos os realizadores pela modernização de costumes, a literatura de
cinematográficos, mas é exatamente dentro da Fitzgerald, as vanguardas estéticas e as experi-
tradição da linguagem cinematográfica que o tal ências de Ruttmann, Ritchter e Durlac estudando
gênio hawksiano atua e se manifesta. Seu lastro o funcionamento da máquina e efeitos como a
nunca esteve na ruptura ou na criação de novas aceleração do cotidiano. A contingência histórica
formas para revelar o homem e o mundo, caso de explica, em parte, Wellman filmar Asas (Wings), em
Orson Welles, e, sim, no uso mais preciso e sen- 1927, ou, mais tarde, em 1935, Curtiz fazer Capitão
sível dos códigos de representação deste homem Blood (Captain Blood). Esse estar no mundo, sim-
e deste mundo. O extraordinário de Hawks surge, plesmente, predicava o estilo desses cineastas (e
portanto, do típico, senão trivial e natural do cine- não é sempre assim?). Não à toa, Howard Hawks,
ma. Por isso, a cena é o momento mais possível que fora piloto da aviação do exército durante a
de encontrar “índices” desse gênio, cuja maior Primeira Guerra Mundial, faz com especial pro-
beleza está justamente em poder ser “apenas” priedade um longa à la Wellman, A Patrulha da
uma contingência histórica do cinema, inescapá- Madrugada (The Dawn Patrol, 1930), inclusive pi-
vel a qualquer realizador. É nessa “naturalidade” lotando um dos aviões em cena. E, como seus
que seu estilo torna-se menos evidente, menos colegas, Hawks jamais fora digressivo, e seu estilo
“imprescindível” a legitimações e grifes – porque, segue os preceitos da eficiência na representação.
antes, há o cinema (há um trabalho a ser feito). É a práxis, encontrar a forma ideal.
Hawks poderia ser um personagem de Michael
Mann ou de Clint Eastwood, durões determinados a Interessante é que o autoral de sua obra esteja
seguir em frente em suas histórias pessoais. Mas dentro da conformação com uma regra muito
já está representado em algumas típicas personas específica do modelo industrial, a da repetição. É
de seu cinema, como Cary Grant, John Wayne e na recorrência que será possível desenvolver, ao
Humphrey Bogart, que pelejam pelo andamento longo dos filmes e anos, a ideia do movimento das
das coisas (inclusive do dramático, do filme). Assim coisas como motivo, e não apenas uma inerência
se chega à aventura, o gênero no qual a ação tem da contação de histórias. Mais que isso, o funcio-
espaço e tempo, em que é possível sentir a força namento da máquina, a ação propriamente, é uma
que move a máquina do mundo aos 24 quadros forte questão aos personagens, ou seja, um dado
por segundo: o cinema. dramático mais do que contingencial ao gênero.

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Além da contingência cinematográfica, o motus lização desses elementos é, sobretudo nos anos
aparece como questão ao longo da filmografia 1930, bastante moderna. Nessa década, o cinema
hawksiana, ora menos ora mais saliente aos sen- de aventura assinado por Hawks já coloca, à sín-
tidos dos espectadores. Os exemplos mostram o tese, itens desse gênero, tornando-se presenças
movimento em pontos distintos do drama: James digressivas, ou meras estruturas servindo de are-
Cagney não querendo sair do seu bólido em Deliran- nas a histórias que não necessariamente tratam
te (The Crowd Roars, 1932); a relação orgástica com de assuntos “de aventura”. A ação e a velocidade,
a qual os aviadores atuam no espetáculo da guerra essas, sim, presenças no gênero, são a remissão
(de cinema) em A Patrulha da Madrugada; Kathari- mais direta. Em Uma Aventura na Martinica (To Have
ne Hepburn colocando para funcionar a máquina and Have Not, 1944), por exemplo, a aventura serve
desligada de Cary Grant (e do mundo diegético) em como página em branco para se escrever sobre
Levada da Breca (Bringing Up Baby, 1938); o Philip o protagonista, Harry Morgan (Humphrey Bogart),
Marlowe de Bogart tentando consertar, irritado, que repensa seu individualismo para servir a uma
o andamento emperrado da facetada trama de À causa política nobre. A exótica Martinica, os nazis-
Beira do Abismo (The Big Sleep, 1946); John Wayne tas acossando os ativistas da resistência francesa,
levando a cabo, em Rio Vermelho (Red River, 1948), os enormes peixes pescados em alto mar: tudo
o projeto hercúleo de enriquecer, o que na prática isso servirá menos para a velocidade e tensão e
é dar movimento (expansão e deslocamento) à muito mais para Harry e Marie Browning (Lauren
matéria do mundo da qual faz parte o gado e a Bacall) disputarem o poder, num jogo instintivo no
terra. Daí que o grande problema dos personagens qual o homem quer manter sua liberdade (mover-
hawksianos é o impedimento à ação, caso dos -se no mundo como um aventureiro dos mares) e
xerifes de Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, 1959) a mulher pretende a estabilidade da ancoragem
e de El Dorado (El Dorado, 1966). O caso de Onde num porto seguro.
Começa o Inferno é um problema motor, pela falta
de espaço de atuação graças à campana forçada Esse é um tema, aliás, bem presente na obra de
e pela precariedade dos parceiros do herói: um, Hawks, com o macho e a fêmea mantendo suas
descalibrado pelo alcoolismo, e o outro, limitado distinções (só assim faria sentido esgrimirem), mas
pelo aleijo. O quadro é ainda pior porque a tal ve- agora com mulher e homem em pé de igualdade,
locidade irmã da máquina não existe na narrativa com a primeira abalando a dinâmica já estabeleci-
estruturada no tempo morto da espera – Hawks à da, sem necessariamente alterá-la. Samuel Fuller,
beira do cinema moderno dos anos 1960. já em seus dois primeiros longas, Eu Matei Jesse
James (I Shot Jesse James, 1949) e O Barão Aven-
Além desse Hawks autor, há também o diretor de tureiro (The Baron of Arizona, 1950), levaria mais a
cinema moderno (também em grifo itálico) que fundo algo que Hawks já prescrevia nos anos 1930:
rearticula os elementos do cinema de gênero, ou não retificar necessariamente quem está certo
seja, age por puro gosto visual, misturando e usan- e errado, e, sim, o que é certo e errado. Fuller é
do peças muito queridas em tabuleiros diferen- mais moral que Hawks, o que sugere certo teor
tes, abrindo fissuras imperceptíveis, mas visíveis libertário em algumas passagens de sua obra.
(sim, uma contradição, aliás, bem moderna) na Daí a “nova mulher moderna” hawksiana não ser
estrutura ultraeficiente do gênero. A conceitua- necessariamente um antagonista ao homem, pelo

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menos não historicamente ou moralmente. Os Mascarenhas (Edward G. Robinson). Hawks não
machos de Hawks simplesmente “fazem o que tem trabalha com símbolos, mas com representações
de ser feito”, ou seja, põem-se a seguir em frente diretas, e o condricte revelará o homem através
e não deixam o motor apagar. Não são conserva- do paralelismo da montagem, num quase campo-
dores, porque a manutenção pretendida é pela -contracampo intimista.
ação e pelo avanço. O ideal clássico de a ordem ser
mantida ou recuperada fica em apuros nos filmes Os animais também estão em Levada da Breca, o
de Hawks, que imprimem uma ambiguidade (de mais literalmente revolucionário dos filmes de Ha-
papéis, não da moral) através da sobreposição de wks, graças à igualmente agitada Susan (Katharine
camadas e do ritmo acelerado da ação, dos diá- Hepburn), que dá movimento à esfera mortuária na
logos e das soluções dramáticas. O interessante qual se abriga o biólogo David (Cary Grant). Basta-
é que a velocidade não é um capricho, mas uma ria citar o final, quando, por impulso romântico, a
decorrência natural à animalidade que caracte- estabanada moça faz desmoronar o esqueleto de
riza o universo de Hawks: homem e mulher são brontossauro que era a razão de David ser quem é
macho e fêmea, dois mamíferos duelando antes (e também de tratar-se de um “filme de cientista”).
do coito, uma situação tão ancestral quanto a do O longa é uma grande evolução entre o estanque
primeiro raio solar que tocou a esfera terrestre. mortuário e a vida pulsando freneticamente, entre
Nesse encontro com o primitivo e animal, surge o a.c. (antes do cinema) e d.c. (depois de o cinema
uma saudável tensão na encenação hawksiana, em nascer, com o movimento). A chegada de Susan
que a precisão revela uma perda de controle – a não causa uma leve reforma, mas a imposição
mais forte consciência sobre o que significa estar de uma nova ordem, agora finalmente dinâmica,
vivo no mundo. pois ela é um centro de gravidade em torno do
qual tudo orbitará loucamente. É por Susan que o
Amigo da Onça (Tiger Shark, 1932), Levada da Breca longa torna-se uma screwball comedy, modalidade
(1938) e Paraíso Infernal (Only Angels Have Wings, que baseia o humor no movimento acelerado –
1939) trazem algo dessa natureza selvagem. Ha- não apenas movimento, que já faz parte de vários
veria outros, como Jejum de Amor (His Girl Friday, outros tipos de comédia, mas uma tal velocidade
1940), – talvez o mais explícito dos longas de Hawks que enquadra fala e ação num compasso típico
- com o tal movimento das coisas promiscuamente do mais espetacular filme de aventura. Conduzir
espalhado por todos os cantos, quase contaminan- em alta velocidade é possível a poucos cineastas.
do as cenas e, mais profundamente, os interiores
orgânicos do ex-marido (Cary Grant) que pretende Com uma precisão ainda mais dedicada, Hawks
recuperar a mulher moderna (Rosalind Russell) realiza, um ano depois, Paraíso Infernal, obra que,
para fins de exploração (tanto narrativa, pois ela é como Hatari! (Hatari!, 1962), ilustra mais incisiva-
quem pode dar andamento à história e permitir o mente a relação que Hawks estabelece entre o
esperado happy end à comédia romântica, quanto movimento, a cena, os temas, a moral da imagem,
profissional e sexual). O instinto animal de Amigo as escolhas e onde o filme se coloca dentro de um
da Onça é mais escamoteado, pois cabe ao tubarão- projeto de cinema. Esse esclarecimento ajuda,
-tigre ser a representação do instinto sanguinário sobretudo, a encontrar mais acuradamente a ex-
do rude, mas romântico, empresário da pesca Mike celência (o tal gênio) de Hawks num determinado

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instante, filme, momento, cinema, vida. Filme de Visualmente, é o mais conceitual dos trabalhos de
1939, ambientado em Barranca, na América do Sul, Hawks, que não faria mais isso, ou pelo menos com
Paraíso Infernal opera sua narrativa em meia dúzia tal intensidade, até Hatari!. Mas o centro orbital de
de espaços cênicos, sinteticamente construindo Paraíso Infernal é o mesmo do cinema clássico, o
um universo de forças antagônicas, promovido mesmo dos filmes narrativos dos outros cineastas
por uma engrenagem de tensão e perigo que faz e de um código que encontrou uma forma bem
a narrativa alternar momentos de humor e dra- aplicada de falar sobre algo a ver com o mun-
ma romântico a situações infernais de morte e do (e que acaba sendo o próprio mundo): a cena.
espetáculo catástrofe. Barranca é mais um selo Basta um momento, um único, em toda a longa
que reúne diversos itens do cinema de aventura: carreira de Hawks, para definir sua precisão na
tempestades tropicais, neve andina, belos aviões a condução de uma sequência dramática e por que
hélice roçando palmeiras em decolagens e pousos meios ela lança enunciados e transmite sensações
arriscados, um burro chamado Napoleão e que faz e sentidos: o tenso momento quando Geoff, em
companhia ao radioamador que indica as condições terra, orienta pelo rádio como o divertido canastrão
meteorológicas de voo, homens vestidos com seus Jean pode pousar na curtíssima pista que está
jalecos, o cigarro, a montanha, a mulher que se apagada pelo nevoeiro. A ânsia em jantar com a
torna “fatal” porque sabe como amarrar um tough recém-chegada Bonnie faz Jean agir por instinto
guy, a nitroglicerina, a tensão, a ação e o romance. quase suicida, não atuando conforme a direção de
Geoff. A sequência concentra-se essencialmente
É sólida, até coesa, a unidade diegética criada por num plano frontal, com Geoff e seu amigo Kid à
essas peças soltas. Mas a montagem e a ence- frente, e, mais ao fundo, Bonnie e outros – estes
nação indicam um moto perpétuo no qual estão servindo como surround que amplifica a tensão.
o chefe do aeroporto, o piloto Geoff Carter (Cary A câmera concentra-se no rosto de Cary Grant,
Grant), seus mandados, amigo de longa data etc. mas é no corpo que está a verdadeira tensão, a
São os homens, só os homens, todos presos (por de Geoff, pois o contracampo do espaço de pouso
vontade própria – mas só o filme nos revela, em é indevassável (um item de aventura que poderia
imagens, a lógica infernal na qual esses caras en- estar num livro de poemas de John Milton), e Jean,
contram sentido em observar de perto o horizonte dentro do aeroplano, parece estar num lugar quase
sinistro da morte), todos embarcados numa rotina extraterreno. Um lance de finesse cinematográfica,
atípica – como costuma ser a dos personagens de de onde pôr a câmera, onde cortar e quais planos
aventura. Bonnie Lee (Jean Arthur), a mulher que emendar um no outro. Mas há as vozes; são elas
ali chega e esquenta a virilidade de Goeff, parece que enfeixam a manifestação mais sublime da
mais livre...pois é mulher. Esse elemento estranho, linguagem cinematográfica: o timbre de Jean, até
contudo, revelará o reverso destrutivo dessa má- então de personagem cômico, ganha tessitura
quina na qual cada peça tem sua funcionalidade macabra, como uma voz que chega já morta à
muito bem aplicada. Máquina que Geoff tem de escuta; o desesperado e inútil diálogo entre os dois
manter a todo vapor, em perpétuo girar, porque é a mais movimentada das situações estanques
“é o que tem de ser feito”. que o cinema já apresentou em imagem e som.

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A montagem que relaciona planos de naturezas Howard Hawks faz Terra dos Faraós (Land of the
distintas, entre uma trucagem, uma locação, um Pharaohs, 1955), um trabalho de gênero, super-
rosto e um cenário, é uma questão de ordem prá- produção à la DeMille, aventura mais para drama
tica nos filmes de Hawks, – desde seu filme de passado no antigo Egito, mas cujo andamento da
1932, Delirante, e mesmo em Scarface – A Vergonha trama é o de um desfile – literalmente. Junto a Rio
de uma Nação (Scarface, 1932), resolvido em ima- Vermelho, é dos raros filmes morais de Hawks, mas
gens de estúdio, mas contaminando esses espaços esse conteúdo torna-se entreato para as longas e
controlados com injeções da “realidade daqui”. incríveis sequências em plano geral mostrando a
Esse jogo resulta, mais tarde, num expressivo geometria da multidão em movimento, seja uma
tensionamento de tons em Hatari!, que exigirá comemoração ao retorno do faraó, sejam as hor-
uma mestria absoluta do cineasta. Mas, antes, das de trabalhadores construindo uma pirâmide.
a excelência conquistada já no trabalho de 1939 Essas cenas, todas de forte impacto formal, fariam
merece uma aferição “entre amigos”. A precisão sentido num musical. Aqui, a apoteose puxa o cen-
alcançada em Paraíso Infernal ganha evidência com tro de gravidade pra si, e o sentido torna-se pura
Heróis do Ar (Ceiling Zero), que Hawks dirigiu em monumentalidade visual: torna-se o cinema, algo
1936 e que praticamente conta a mesma história de ainda “abstrato” demais para o sistema acatar.
Paraíso Infernal, com um comandante da Federal
Air Lines (Pat O’Brien) mantendo teso o serviço Terra dos Faraós avisa o que virá mais à frente: Onde
aéreo de carga numa base afetada por nevoeiros Começa o Inferno, já digressivo ao western como
colossais. Uma sequência bem similar, de pouso gênero, mas ainda com ossatura bem narrativa,
tenso igualmente concluído em tragédia, é uma e o formidável Hatari! – o trabalho mais concei-
boa régua que indica um refinamento artístico tual, radical, extremo, lindo, romântico, político,
de Hawks. Aqui, o espaço sugere continuidade e moderno, clássico, sonoro, lúdico, inesquecível,
a encenação, mesmo adequada, é mais prolixa e sublime, solar, aventureiro, nostálgico, irônico,
com o foco mais dispersado. A síntese, outra marca franco, livre e revolucionário de Howard Hawks.
hawksiana, demanda olho e prática a esse olho. A revolução, no caso, é íntima à obra do cineasta,
talvez uma resultante processual, embora a onda
O estilo de Hawks, brilhante por ir ao ponto dramá- modernista dos anos 1960 fizesse toda a diferença.
tico sugerindo uma transparência que, na verdade,
surge de um cifrado jogo de procedimentos, sugere As primeiras tomadas de Hatari! apresentam a
certa matemática da linguagem cinematográfica virada. Em meia dúzia delas, todas fixas, vemos
cuja cartografia está lá, à vista, mas sempre pouco alguns homens em prontidão procurando por algo
percebida. Se a ação e o movimento típicos da no extracampo, num ambiente bem familiar, o da
aventura são uma questão para os personagens savana africana e seus animais e vegetação. Um
e são uma intenção formal, o estilo transparente rosto, o de John Wayne, é bem próximo, mas há
indica uma narrativa preocupada com o enredo e outro bem conhecido, o de Bruce Cabot. Eles serão
com a jornada dos personagens. Na prática, é o os únicos veteranos num filme cheio de figuras
cinema clássico... mesmo realizado sob escolhas novas. O plano seguinte, inicialmente fixo e voltado
tão particulares. Mas esse esquema troca o lado a John Wayne na caminhonete, com dois africanos
do pêndulo em Hatari!. Ou antes, em 1955, quando e o motorista mexicano, faz uma panorâmica que

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revela o alvo: o espaço amplo da savana, que é o Wayne sentado na ponta de um caminhão em alta
espaço da ação, o “motivo” do filme. Um espaço velocidade sobre um chroma-key comenta o pro-
anterior a esses homens e que tem sua própria cesso que parte de uma ideia para uma imagem:
dinâmica, diferentemente daquela que existia o milagre da realização cinematográfica.
por conta de Susan, em Levada da Breca, ou de
Geoff, em Paraíso Infernal. Havia mudança com A aventura ainda é uma presença conceitual, mas
Susan e manutenção com Geoff, e ambos eram não a serviço de outrem, de uma história, de ser
responsáveis pelo funcionamento da engrenagem. uma remissão a algo muito íntimo do personagem.
Agora, existe uma lógica anterior e autônoma, e A ação e a velocidade não são mais drama, e, sim,
a entrada em campo necessita respeito, desejo, pura razão. Aquele devir dos filmes de Hawks nos
prazer em arriscar a pele e cultuar um repertó- anos 1930 e 1940 pela pura manutenção maqui-
rio reconhecido pela história do cinema, que é o nal agora parece ser o de um devir do cinema: o
da aventura na África com seus animais, nativos, estar vivo em cena. Nada mais sintomático que a
perigos e mistérios. caçada não ser para matar os bichos, e, sim, para
coletá-los a um zoológico (que nada mais é que
Tudo mudou porque, em 1962, o cinema já podia um museu, um espaço de guarda e culto).
praticar sem receios outra relação com a realidade
do mundo. Mais relê-lo e transportá-lo à maneira Os dramas dos personagens não chegam a ser
cinematográfica do que construí-lo do zero. Não situações, e, sim, evoluções: o desfecho que junta-
importa se antes era menos crível, menos “real” rá John Wayne à moderna fotógrafa feita por Elza
(não era, porque a verdade sempre esteve em Martinelli é um retorno à infância – quando pouco
algo indiscernível e profundo que move as coisas se pensa e muito se corre –, com elefantinhos
do mundo, e o cinema clássico soube muito bem correndo atrás da moça, carrinhos indo de lá pra
colocar tudo isso na tela). O que importa é que, cá e uma lógica que predica ao movimento uma
agora, a terra, os pelos de um leopardo, o colosso possibilidade de encontro. O assunto de Hatari!
de um elefante ou a pele blindada de tão grossa é o cinema, pois sua estrutura de esquetes go-
do rinoceronte (o in loco) tornam a filmagem uma dardianas que apresentam ideias-tema (o banho
aventura real, anterior ao estilo, à direção e à cena. na hiena, o dar de mamar pro elefantinho, a caça
O que foi avante (o filme em si) já deixa clara a ra- ao rinoceronte, a screwball comedy criada pelos
dicalização daquela relação tensa entre o cenário e avestruzes em fuga, o espetáculo piromaníaco
a locação, muitas vezes sintetizada nos planos que para capturar macacos, os nativos e seus ritu-
usavam back projection – uma relação complicada ais) é o acúmulo de material que, na soma, existe
para o cinema desde sempre. Em Hatari!, Hawks como movimento contínuo, assim como é o total
demonstra outra excelência estética, conseguindo e definitivo girar da Terra. Hatari! mostra essa
nos cortes, no ritmo da montagem e do enquadra- pulsação da natureza (a vida) nas tomadas que
mento, relacionar John Wayne e demais naquele mostram animais em carreira, numa situação de
espaço que não é deles, mas que, por conta do beleza que sugere a pintura, a transcendência, a
cinema, se emprestará a eles. A alternância entre genética da criação do mundo.
supostos dublês capotando os carros, capturan-
do animais ou sendo atacados por outros e John

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Hatari! lida com os desejos mais secretos e ab-
surdos do homem e do cinema em querer alterar
a operação de um estado anterior a eles. Esse é
seu lado perversamente lúdico. O lugar de Ha-
wks, mencionado no início deste texto, talvez seja
esse que ele mostra com especial genialidade
em Hatari!. Um cineasta que usou sua precisão
para sugerir, nas entrelinhas, um risco de des-
controle das coisas e que vai ao encontro desse
descontrole real, material, inerente, para rodar
na Tanzânia um projeto arriscado. Seu lugar é
na história do cinema, mas no papel distinto de
cineasta em aventura.

| Paulo Santos Lima |

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O MÉTODO DO DISCURSO
É uma beleza que manifesta a existência pelo são capazes os grandes artistas quando acordam
respirar e o movimento pelo andar. com precisão a gestão do sistema econômico de
[Jacques Rivette, em O Gênio de Howard Hawks] produção às condições materiais que se confor-
marão à expressão concreta da ideia representada
Ele é um dos diretores que sucedem por vezes pela realização (em outras palavras: a maneira
naquilo que é mais difícil: encontrar o tom exato. pela qual se configura a forma cinematográfica), o
Essa exatidão pode concernir um grupo de árvo- que de fato inquietou e alimentou como matéria de
res, a cor azul ou o calor de um rosto. Hawks é reflexão os cineastas modernos – principalmente
provavelmente um dos poucos cineastas america-
na figura do maior de todos, Howard Hawks – foi
nos a ter a noção do que é a execução de um mo-
o trabalho de consecução no tempo e no espaço
vimento e da sua velocidade. Ele sabe o que gosta
do movimento que leva a matéria heterogênea e
de esperar de um ator, e o obtém melhor que os
sensível do mundo (e suas variações em cores,
outros. Um filme de Hawks é um filme limitado,
porém claro. Por vezes conseguimos reconhecer pesos, sensações, profundidades, gestos, textu-
o peso do mundo. ras, superfícies, cadências, acumulações, cama-
das, silêncios) a ser destilada numa forma fílmica
[Marc C. Bernard sobre Hatari!]
definitiva e homogênea (sons e imagens). Talvez
tenha sido isso o que fez Hawks definir, no seu
Ao contrário do que é propalado na astuta confu- estilo lacônico, bem-humorado e sintético, um
são de valores que preside os juízos equivocada e filme como “three good scenes and no bad scenes”.
comumente feitos a respeito do cinema moderno
– Cottafavi, Bergman, Straub & Huillet, Rouch (e Tomemos, por exemplo, Terra dos Faraós (Land
seus principais epígonos, Godard e Rivette) –, este of the Pharaohs, 1955). O filme se constrói exem-
não teve como principais preocupações a qualidade plar e admiravelmente como 1) a análise realista
imanente da representação (disto, ora, já se ocupa- e fascinante da construção das pirâmides; 2) uma
va a arte antiga, bem como os primeiros esboços descrição sóbria e penetrante das vidas e dos sen-
em Lascaux) ou a acusação insistente da heteroge- timentos de alguns seres confundidos por deuses,
neidade dos elementos constitutivos – poderíamos os quais participam, entre outros, da engenharia
mesmo dizer: componenciais – da realização e, por política e social do Egito antigo. Se dessa arqueo-
conseguinte, da arte cinematográfica, seja pelas logia da arquitetura egípcia extraímos os princi-
vias da extrapolação, do isolamento determinante pais predicados do método que Hawks utiliza para
em forma de grafismos ou disjunções, da agitação compor a dramaturgia densa e bastante científica
ou da desarmonia. que é a do filme (tempo e espaço; o tempo da
construção de uma pirâmide, o espaço geométri-
Visto que o cinema constitui-se arte menos por co das atividades humanas que participam dessa
qualquer conceito atribuído àquilo que evidencia construção), de um lado temos, já em 1955 e num
ou não o seu dispositivo que pela disposição de que majestoso peplum hollywoodiano, os cinemas de

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Jean-Daniel Pollet (Mediterrâneo, Bassae), Peter componente mineral integrado a tantos outros no
Hutton (Time and Tide), os Straub (Fortini/Cani, Cedo funcionamento de uma engrenagem (narrativa,
Demais/Tarde Demais), Jean-Claude Rousseau e ontológica) em que o saber e o exercício do mais
James Benning, enquanto do outro lado temos fino intelecto subordinam-se à prática mais com-
Franco Piavoli (Nostos: O Retorno/Nostos: Il Ritorno) pleta de observação do mundo natural.
e Mario Camerini (Ulisses), os Straub (A Morte de
Empédocles/Der Tod des Empedokles), (Antígona/ É, portanto, comparando essa atmosfera insuspeita
Antigone), Vecchiali (Change pas de main) e Rohmer de filmes como Hatari! (Hatari!, 1962) e Faixa Verme-
(A Inglesa e o Duque/L'Anglaise et le Duc). lha 7000 (Red Line 7000, 1965) aos céus carregados
e aos urros dos ventos que sopram a poeira dos
Nos traços da síntese obtida por Hawks, a de um tempos nos filmes de Walsh, ou aos territórios
palimpsesto que cobre a extensão da História pela inóspitos que ainda assim prometem a um indi-
apreensão mineral das trajetórias humanas que a víduo ou uma comunidade de indivíduos o sonho
protagonizam, com as quais somos perfeitamen- do paraíso mítico, como em Ford e Mizoguchi, que
te capazes de nos identificar por um trabalho de depreendemos a verdadeira contribuição de Hawks
redução ao essencial das características que as ao classicismo cinematográfico: jamais afastando-
projetam à eternidade, devemos destacar pelo se da ótica adotada e estipulada pelos Lumière,
menos dois filmes de Godard (O Desprezo, Paixão), Hawks fez do classicismo essa arte da contem-
dois de Straub (Crônica de Anna Magdalena Bach, plação do mundo pela ciência óptica mais precisa
Othon), um de Moullet (Une aventure de Billy le Kid) já criada pelo homem, sedimentando a partir da
e diversos de Oliveira. Um cinema é deflagrado, sua espantosa exatidão biológica no registro das
1. Nota do editor: nas extensões generosas do CinemaScope e num formas visíveis uma verdadeira máquina humana
O Desprezo (Le
Warnercolor chamuscante, no qual a mais alta, in- da representação. É o que vemos em Terra dos
Mépris, 1963),
Paixão (Passion, transigente e proscrita modernidade cinematográ- Faraós, é o que vemos em O Rio da Aventura (The
1982), Crônica de fica (O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, Big Sky, 1952), é o que vemos em todos os filmes
Anna Magdalena Two-Lane Blacktop, A Estratégia da Aranha, Out 1, que importam (consequentemente é o que não
Bach (Chronik der Noli me tangere, I persiani de Cottafavi) deve ser vemos nos filmes de Tarantino): a intrusão do ar e
Anna Magdalena
inscrita. Um cinema que remete unicamente ao das oscilações às quais o mundo está sujeito, seu
Bach, 1968) Othon
(Othon, 1969), Une tempo da agonia, do drama e do entorpecimento da peso também, e finalmente o tempo que leva para
aventure de Billy le experiência vivida, tal como formulada por Bergson as sombras formadas pelo sol se movimentarem
Kid (1971), O Dragão e também por Pedro Costa no seu magnífico texto de um canto a outro de uma clareira nesta Terra
da Maldade Contra sobre o filme em questão1. que participa ativamente das nossas aventuras,
o Santo Guerreiro
tanto nos perigos da ameaça sorrateira como na
(1969), Corrida Sem
Fim (Two-Lane Ousemos, pois: Terra dos Faraós, ou Hollywood tranquilidade de um dia de descanso.
Blacktop, 1971), leva os Lumière ao Egito de Khufu. Para afirmá-lo
A Estratégia da categoricamente seria necessário observarmos
Aranha (Strategia esse céu sem nuvens nem ventos que é talvez o | Bruno Andrade |
del ragno, 1970) Out
verdadeiro protagonista dos filmes a céu aberto de
1, Noli me tangere
(1971), I persiani Hawks, observador indiferente (mesmo na famo-
(1975). sa cena de Rio Vermelho – Red River, 1948), mero

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REVENDO Hatari!:
CAÇAS, CORRIDAS E (RE) CASAMENTO
Hatari! começa in media res, em plena caça. Dis- sim o quadro junto com a expedição motorizada,
pensando toda apresentação inicial dos persona- ambos em alta velocidade.
gens, toda preocupacão de situá-los no tempo e
no espaço, o prólogo do filme mostra-os de início Do país africano, que estava naquele mesmo
numa expedição de captura de animais selvagens, momento se emancipando politicamente do co-
a primeira de uma dezena que ritmará todo o seu lonizador britânico (sua independência política
relato. Mais do que identificar cada personagem ou foi conquistada no mesmo ano da filmagem de
detalhar o contexto em que começamos a vê-los Hatari!, lançado em 1962), quase nada será dito
(e os veremos dali em diante), importa patentear, ao longo do filme. O foco de Hawks é outro, e ele
de cara, o perigo real que envolve essa sua ati- parece honesto em seu approach, que não simula
vidade. Assim, nesta primeira expedição, um dos nenhum interesse pela História do país, mas acaba
caçadores é chifrado na perna por um rinoceronte, explorando, no rastro de sua ficção, um pouco da
em perigosíssima perseguição automobilística paisagem natural e humana da região de Arusha.
ao bicho, forçando o grupo inteiro a interromper Não veremos nenhum plano tradicional de mapas
a caça e a verificar para qual hospital a vítima visando situar geograficamente o espectador, não
deverá ser levada. ouviremos nenhum comentário over inicial de um
narrador simulando um saber sobre o país que
Só depois do acidente é que aparecem o título, os funcionasse como álibi para a escolha dos seus
créditos iniciais do filme, e um pequeno texto assi- cenários naturais.
nalando que ele foi rodado com a colaboração do
governo, do povo e dos animais selvagens da então Em suma, embora careça de real interesse pelo
Tanganika (atual Tanzânia após sua unificação país e por sua gente, Hawks não paga tributo
em 1964 com a ilha de Zanzibar), na África Orien- algum às convenções auto-legitimadoras, tão
tal. Aquelas paisagens iniciais, aqueles animais e correntes, das aventuras africanas filmadas por
aqueles personagens negros que acompanhavam Hollywood, nem embarca em nenhuma antropo-
John Wayne e os outros atores brancos eram de logia de pacotilha. Sua questão não é a legitimi-
Tanganika, da região de Arusha, num ponto situado dade da representação da África, mas sua eficácia.
a cinco horas de carro da sua capital homônima. Se o protagonista Sean Mercer (interpretado por
E o título, Hatari!, cujas letras irrompem abrupta- John Wayne) pergunta à fotógrafa Dallas (Elsa
mente, aos 7’ de filme, pela esquerda do quadro Martinelli) recém-chegada ao acampamento se
junto com o caminhão do grupo transportando o ela sabe manejar uma arma, se já participou de
acidentado para o hospital, significa “Perigo” em uma caça ou se já esteve na África, não é para
suaili, a língua daquele país. O perigo invade as- questionar seu direito de estar ali fotografando

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a aventura, mas para dimensionar qual utilidade pausas que as precedem ou sucedem, mostrando
ela pode ter para aquele grupo. Se os diálogos de o convívio dos caçadores no acampamento e seus
Sean com os nativos são falados em suaili (real arredores. Tal convívio dos personagens é marcado
ou falso?), se alguns parênteses proto ou para- por flertes, rivalidades, antipatias que se transfor-
-etnográficos nos mostram brevemente, aqui e mam em amor e chegam a dar em casamento etc.
ali, um grupo de nativos Masai trabalhando num
poço por eles construído (aos 51’ de filme), ou um O resultado é uma aventura na África cheia de
outro grupo, do povo Warusha, celebrando uma animais e de carros velozes, que ecoa filmes ante-
cerimônia e “adotando” momentaneamente Dallas riores do cineasta, e vai se transformando também
diante do acampamento dos caçadores (aos 92’), numa espécie tardia de “comédia de re-casamento”
estes elementos servem sobretudo para dar à (uma comedy of remarriage no sentido de Stanley
narrativa uma cor local e aumentar seu frescor, Cavell, que examinou sob esta ótica Bringing Up
sem a preocupação de abordar propriamente as Baby e His Girl Friday no seu Pursuits of Happiness:
populações nativas. the Hollywood comedy of remarriage, de 1981). Sean
havia perdido uma noiva que o abandonara após
Na verdade, Hawks decidiu levar à distante savana uma temporada ali na África, que a escaldara para
de Tanganika toda a sua parafernália de produção sempre. Isto o deixou reticente com as mulheres
(segundo depoimentos dele e de seu câmera, nada e o dissuadiu de se envolver com elas, até que sua
menos que três aviões, cerca de 50 veículos entre antipatia inicial pela fotógrafa Dallas se transfor-
jipes, caminhões e caminhonetes, 22 câmeras, masse em atração e o reconvertesse ao amor e
dentre as quais 7 Arriflex, aparelhos de rádio para ao casamento, que sela o filme (numa elipse, pois
que a equipe se comunicasse durante as tomadas, não vemos a cerimônia).
etc.) porque queria realmente fazer uma caça ali,
para transformá-la em filme. Seu roteiro, elabo- A experiência da caça e a do re-casamento, que
rado por Leigh Brackett a partir de uma história avançam em paralelo, são mostradas no registro
de Harry Kurnitz, trazia as linhas gerais de uma da comédia, em que a descontração dá o tom, e
aventura de caça, mas houve muita improvisação vai esvaziando pouco a pouco a sensação geral
no cotidiano das filmagens, ao sabor da própria de perigo que o filme procurou reforçar em seu
experiência da equipe. início. Tratadas em chave cômica, uma série de
situações potencialmente perigosas vai sendo
O filme conta a história de uma temporada de mostrada sem que nenhum personagem sofra
caça levada a cabo por um grupo heteróclito (com mais nada, de modo a produzir em nós a sensação
membros dos EUA, da Alemanha, da França, da de que nada de mau ocorrerá a nenhum deles:
Itália e do México, além de auxiliares da população Dallas leva alguns tombos na carroceria de um
local) encarregado não de matar, mas de capturar caminhão em alta velocidade sem maiores conse-
animais selvagens de Tanganika para zoológicos quências, depois se depara, apavorada, com uma
interessados em comprá-los. A temporada cobre pantera que vem lambê-la em sua banheira mas
um período curto, e seu relato alterna o tempo todo a deixa incólume; mais tarde, outros membros do
sequências de capturas de várias espécies nas grupo brincam com a mão na boca de uma hiena,
savanas pelo grupo motorizado e sequências de capotam seu jipe em alta velocidade e se põem

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de pé pouco depois sem estragos consideráveis, meio do discurso indireto livre, a cosmovisão dos
pegam dezenas de macacos selvagens no braço, caçadores Gaos da fronteira entre o Níger, o Mali e
antes que elefantes invadam lojas da cidade, cô- o Alto Volta (atual Burkina Faso), no outro lado da
modos do acampamento e cheguem a derrubar no África, e era narrado em over por Rouch como um
fim a cama em que Dallas se deitara. Ainda que tradicional Griot africano, contando uma aventura
selvagens, os animais acabam entrando no regime maravilhosa às crianças, de modo a garantir a
geral da descontração que o filme vai instaurando transmissão da experiência. Em Hawks, nenhum
em seu desenrolar. discurso indireto livre: a aventura aparece dire-
tamente, sem a mediação de voz alguma, sob a
Assim, se tudo deveria parecer perigoso após a ótica e os parâmetros de um americano alheio à
“advertência narrativa” inicial do prólogo, tudo África, amador de carros e de caças, pintor de um
acaba parecendo inofensivo depois que a comé- mundo sem Deus, mas regido por uma espécie de
dia toma conta do filme, e impõe uma espécie de camaradagem cósmica para com todos os seres
fraternização geral da experiência. Nesta, sem submetidos ao seu mecanismo.
que nenhum conflito se instaure para valer, tudo
coexiste e se mistura: a natureza e a cultura, os
estrangeiros e os nativos, a atividade exploratória | Mateus Araújo |
dos primeiros e as práticas tradicionais dos segun-
dos, o inglês dos caçadores e as línguas locais, os
tambores africanos e os arranjos musicais de Hen-
ry Mancini, os citadinos incursionando na savana
e os animais selvagens facilmente domesticados.
A aventura automobilística, a caça e a comédia
do amor entre os sexos coexistem também num
regime análogo, cada uma parecendo comentar a
outra: assim como esta comédia, aquela aventura
é uma questão de velocidade; o amor entre os
sexos tem algo de uma caça, e esta, para Hawks,
é uma questão de amor.

O desenrolar horizontal da narrativa, sem mo-


mentos fortes, crescendos ou climax, deixa tudo e
todos em pé de igualdade, sem nenhuma instância
superior situada acima daquelas criaturas que
interagem. Nada de Deus, mas nada tampouco de
algum narrador onisciente contando “de cima” a
história daquela aventura, à diferença do que fazia
mais ou menos na mesma época o Jean Rouch
de A Caça ao Leão com Arco (1958-65), filme cheio
de perigos e divindades que tentava exprimir, por

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SCARFACE: BRUTALIDADE E HUMOR
NO CINEMA DE HOWARD HAWKS
Brutalidade e humor são duas das características fica livre das confusões ao redor quando consegue
que a maior parte dos filmes de Howard Hawks tem se enclausurar por conta própria, observando da
em comum. É em Scarface – A Vergonha de uma pequena janela do navio a Estátua da Liberdade em
Nação (Scarface,1932) que essas características companhia de sua esposa. Em À Beira do Abismo
compõem juntas, pela primeira vez, uma peça e Onde Começa o Inferno, a brutalidade é a mesma
de harmonia e estilização que beira a perfeição. de Scarface – A Vergonha de uma Nação, mas em
doses mais palatáveis. Uma brutalidade que vem
É preciso administrar ingredientes especiais para dos vilões, mas também, quando necessário, dos
se chegar ao tipo de harmonia alcançado por Ha- heróis. Por isso o primeiro foi criticado em sua
wks em seus melhores filmes. Os diálogos que época, sendo reabilitado anos depois, em parte
parecem improvisados (e muitas vezes realmente graças ao carisma da dupla Bogart/Bacall (nunca
são), por exemplo, são ideais para a versatilida- é um ou outro nos filmes em que atuaram juntos,
de de gênios da atuação como Cary Grant e Ann é a química entre eles que provoca a faísca). De
Sheridan, ou para o carisma da dupla Humphrey maneira similar, Walter Brennan, como o coad-
Bogart/Lauren Bacall, ou ainda para a liberdade juvante manco e rabugento do xerife John Wayne,
alcançada pela maneira como John Wayne e Dean é o antídoto para a barbaridade dos bandidos de
Martin encaram a vida e a expressão artística. A Onde Começa o Inferno que atiram pelas costas
Noiva era Ele (I Was a Male War Bride, 1949), À Beira ou à queima roupa, matando com a facilidade de
do Abismo (The Big Sleep, 1946) e Onde Começa o quem bebe um gole de uísque.
Inferno (Rio Bravo, 1959) não são geniais apenas
pelo senso de ritmo único de Hawks, mas também Há outra semelhança entre Howard Hawks e Jerry
porque ele encontrou nesses atores o meio perfeito Lewis: os nomes de seus personagens são parte
para externar suas deliciosas brincadeiras autorais. da comédia, e em muitos casos são curiosamente
onomatopeicos. Em Lewis, temos Herbert He-
Em A Noiva era Ele, a brutalidade está na burocracia ebert, Norman Pheiffier, Clayton Poole, Stanley
dos militares, no mundo corporativo que insiste Belt, Wilbur Hoolick e Eugene Fullstack, para fi-
em colocar a integridade de Cary Grant em apu- carmos só nos personagens que o comediante re-
ros (ele é exatamente como Jerry Lewis seria em presenta. Nos filmes de Hawks, a galeria de nomes
seus filmes futuros, com direção dele próprio ou esdrúxulos é grande também: Dallas, Feathers,
de Frank Tashlin: vítima de uma sociedade que se Stumpy, John T. Chance, Colorado, Mississippi,
movimenta com incrível rapidez – com a diferença Pockets, Brandy, Sean Mercer, Abigail Page, Lore-
de que, em Lewis, essa sociedade é geralmente lei Lee, Barnaby Fulton, Cord McNally, Tuscarora,
individualista). O oficial francês vivido por Grant só Ketcham, Tess Millay, Bertram Potts, Sugarpus

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O’Shea... Uma infinidade de nomes que, baseados em filmes de William Dieterle. Quando foi escalado
ou não em pessoas reais ou já existentes nas his- como o protagonista de Scarface – A Vergonha de
tórias que adaptou, buscam um efeito cômico, um uma Nação, porém, não era uma estrela de cinema,
truque faceiro. Como o escritor F. Scott Fitzgerald, apesar de sua estreia, em The Valiant (1929), de
que em “O Grande Gatsby” lista os frequentadores Wiliam K.Howard, ter lhe rendido a primeira de
de verão da casa do personagem-título, Hawks seis indicações ao Oscar. A arte de Hawks torna-se
diverte-se arrumando nomes engraçados para ainda maior por sua sensibilidade na escolha dos
seus personagens. Por isso é incrível que os atores atores, e não é possível imaginar Tony Camonte
por trás deles façam com que esqueçamos outros sem um ator como Paul Muni para personificá-lo.
personagens que viveram, tomando para si a vida
e o passado dessas pessoas de nome curioso.
A fortuna crítica
Em Scarface – A Vergonha de uma Nação, temos
Ann Dvorak, um furacão de charme e sexualidade, Não é tarefa das mais fáceis escrever sobre Ho-
conquistando George Raft e a nós com sua dan- ward Hawks tendo que lidar com (ou esquecer) a
ça erótica. Dvorak já o chamava para o sexo no incrível fortuna crítica existente sobre sua obra. Ja-
primeiro contato visual, uma lição de direção de cques Rivette escreveu um texto lapidar na Cahiers
Hawks (de continuidade de olhar, de distâncias e du Cinéma sobre a obra de Hawks até O Inventor da
modulação); ela na varanda, ele ao lado do toca- Mocidade (Monkey Business, 1952). Henri Langlois,
dor de realejo: cena de sexo com os olhares que também na Cahiers, dedicou linhas brilhantes à
antecipa a do metrô no início de Anjo do Mal (Pick modernidade do diretor de Scarface – A Vergonha
Up on South Street, 1953), de Samuel Fuller. Cesca de uma Nação, aproveitando a recente descoberta
Camonte, a personagem da adorável Dvorak, é o de Uma Garota em Cada Porto (A Girl in Every Port),
antídoto para a brutalidade masculina. Mas não filme de 1928, exibido na Cinemateca Francesa
estamos num filme de Mizoguchi. A mulher não é do início dos 1960. Todd McCarthy escreveu uma
vítima da brutalidade dos homens, a não ser que o ótima e extensa biografia cobrindo toda a carrei-
homem também seja vítima da mesma brutalidade. ra do mestre. Joseph McBride selecionou textos
clássicos numa boa coletânea (incluindo aí os de
Scarface – A Vergonha de uma Nação é o filme em Langlois e Rivette). E Robin Wood se encarregou
que o humor nasce da brutalidade. Podemos dizer de realizar um fascinante estudo sobre Hawks em
até que depende dela, como na brilhante cena em dois livros separados por mais de trinta anos: Ho-
que o secretário tenta anotar o nome de quem está ward Hawks (publicado em 1968, e no qual separa a
ligando debaixo de uma saraivada de metralhadas. obra completa do diretor de maneira original) e Rio
Nos diálogos, Paul Muni empresta sua experiência Bravo (publicado em 2003, no qual trata, sobretudo,
teatral a seu personagem, Tony Camonte, e exige do que considera a obra-prima do diretor, além
de seus interlocutores uma vibração mágica, al- de outros filmes).
cançada mesmo com sua caracterização como um
pequeno estágio além do homem primata. Muni, O crítico inglês, vivendo então sua juventude, inicia
poucos anos depois, interpretaria Louis Pasteur o livro de 1968 problematizando a diferenciação
(papel pelo qual ganharia o Oscar) e Émile Zola, comumente feita entre arte e entretenimento, evo-

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cando Mozart e Shakespeare e advertindo para o por Peter Bogdanovich com diretores do cinema
perigo de subestimar os filmes de Hawks por nos clássico americano. A entrevista com Hawks se
divertirmos com eles. Wood ainda aponta uma estende por mais de 100 páginas, e é precedida
dificuldade que a crítica sempre teve em equilibrar de um brilhante e confessional ensaio sobre a
duas grandes verdades contraditórias a respeito força dos filmes do diretor, e sobre como sua obra
de Hollywood (lembrando que estamos falando de influenciou a do próprio Bogdanovich, sobretudo
um panorama do final dos anos 1960): o desem- no início de sua carreira.
penho de bilheteria como uma força a “corromper
a tudo e a todos”; e a força criativa “comparada Neste artigo, não pretendo ignorar tamanha fortu-
à Londres Elizabethana ou à Viena de Mozart”, na crítica. Minha intenção é dialogar com ela. Em-
que permite a existência de “centenas de talentos bora questione algumas ideias pontuais, respeito
juntos no desenvolvimento de uma linguagem em o trabalho de todos os autores aqui mencionados.
comum”. Wood considera que as duas verdades em
equilíbrio justificam o fato de haver tantos filmes
interessantes em Hollywood, embora tão poucos Um filme de gângster e uma comédia
sejam “inteiramente satisfatórios”.
Scarface – A Vergonha de uma Nação certamente
O rigor demonstrado pelo autor pode parecer ex- é um dos maiores filmes de Hawks. A meu ver,
cessivo quando olhamos para trás e observamos a primeira obra-prima do diretor, por mais que
o grande número de obras-primas produzidas em Uma Garota em Cada Porto tenha ganhado uma
Hollywood até os anos 1960, mas, retrospectiva- defesa contundente de Henri Langlois na Cahiers
mente, é salutar, considerando o momento atual du Cinéma, e A Patrulha da Madrugada (The Dawn
da crítica em relação ao cinema contemporâneo, Patrol, 1930) e O Código Criminal (The Criminal Code,
e o endeusamento constante de dezenas de filmes 1931) sejam admiráveis. Em Scarface – A Vergonha
com pés de barro por ano. Ou seja, é melhor pecar de uma Nação, brutalidade e humor coexistem
pelo rigor do que pela condescendência. numa combinação perfeita. Wood chega a colocá-
-lo, dentro da categorização que faz dos filmes de
Wood votou em Onde Começa o Inferno como o Hawks, entre as comédias e as aventuras, ao lado
melhor filme de todos os tempos na eleição pro- das comédias, resumindo sua argumentação com
movida pela revista inglesa Sight and Sound, em as seguintes palavras:
2002 (como faleceu em 2009, ficamos sem saber
se teria mantido o voto na recente lista, embora [Scarface] não tem nada em comum com as
tudo indique que sim). Para ele, Hawks era um dos aventuras (tirando o grupo enclausurado); e
poucos diretores que conjugava arte e entreteni- tem quase tudo em comum com as comédias.
mento e que realizava grandes filmes obtendo um A sobreposição e combinação de farsa e horror
equilíbrio perfeito entre as duas grandes verdades antecipa Jejum de Amor (His Girl Friday, 1940), a
sobre Hollywood. inocência destrutiva de Tony [Camonte] antecipa
a de Lorelei Lee; em O Inventor da Mocidade,
Outro livro, este lançado no Brasil, é Afinal, Quem a justaposição de macacos, índios e crianças
Faz os Filmes, coletânea de entrevistas realizadas é claramente relacionada à apresentação dos

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gângsters em Scarface. Acima de tudo, Scar- Essa onipresença da comédia na obra de Hawks
face nos traz o tema essencial das comédias é perceptível em quase todos os filmes desde
mais características de Hawks. Se os filmes Scarface – A Vergonha de uma Nação, e, por mais
de aventura dão extrema importância ao sen- que a divisão seja justificável, é verdade que a
so de responsabilidade, muito da tensão e da fusão entre drama, comédia e aventura existe em
intensidade das comédias deriva da fascinação todos os filmes do diretor. Ela não impede que
exercida pela irresponsabilidade1. consideremos, porém, os dramas de aventura com
elementos cômicos, e as comédias com elementos
A separação proposta por Wood é claramente deri- de aventura e drama. Um autor pode considerar
vada daquela feita por Jacques Rivette em seu texto Scarface – A Vergonha de uma Nação uma comédia
clássico da Cahiers du Cinéma, O Gênio de Howard com muitos elementos de drama e aventura (como
Hawks, publicado em 1953. Para o crítico francês, o faz Wood) e estar tão certo quanto um autor
a obra de Hawks se divide entre comédias e dra- que considere o contrário. Esse filme magistral
mas. A formulação de Rivette é engenhosa. Para permite o relativismo.
ele, tal divisão tem uma “ambivalência notável”2.
E acrescenta que é ainda mais notável Segundo Wood, os filmes de aventura se passam
geralmente fora da América ou em lugar indefinido
a fusão desses elementos para que cada um, ao – Terra dos Faraós (Land of the Pharaohs, 1955), Uma
invés de danificar ao outro, sublinhe a recipro- Aventura na Martinica (To Have or Have Not, 1944),
cidade: um afia o outro. A comédia jamais está Paraíso Infernal (Only Angels Have Wings, 1939) ou
ausente por muito tempo nos enredos mais dra- Hatari! (Hatari!, 1962) – ou fora de uma ideia da
máticos, e ela, longe de comprometer a sensa- América contemporânea à feitura dos filmes (os
1. WOOD, Robin.
Howard Hawks.
ção de tragédia, remove o fatalismo complacente faroestes); enquanto as comédias são ambientadas
British Film para manter os eventos num equilíbrio perigoso, no coração da América, onde tudo acontece e a
Institute, 1968. uma incerteza estimulante que colabora para civilização está à beira da ruína graças ao encanto
Lorelei Lee é a a força do drama3. do homem com o primitivo, tematizado princi-
personagem de palmente em Levada da Breca (Bringing Up Baby,
Marilyn Monroe
em Os Homens
Na verdade, Hawks passeou por todos os gêneros 1938) e O Inventor da Mocidade. À Beira do Abismo,
Preferem as Louras e subgêneros em sua carreira. Fez comédias ro- segundo Wood, seria um filme sui generis, pois fica
(Gentlemen Prefer mânticas, comédias malucas, comédias de humor deslocado em qualquer uma das caracterizações
Blondes, 1953). negro, terror, faroestes, noir, filmes de gângsteres, sugeridas. Nisso discordo, uma vez que o filme é
filmes de guerra, de prisão, aventuras de aviação, uma inusitada comédia noir e se passa na América
de caça, filmes de corrida, épico, musical e até, contemporânea.
segundo o crítico Peter John Dyer em um antigo
2. RIVETTE,
ensaio na Sight and Sound, um filme experimental A separação de Wood tampouco diz onde encaixar
Jacques. O Gênio de
Howard Hawks. In: (Pago para Amar - Paid to Love, de 1927). Contudo, o filme de prisão O Código Criminal, que em muitos
Cahiers du Cinema, podemos dividir sua obra toda entre as comédias aspectos antecipa Scarface – A Vergonha de uma
maio de 1953. e os dramas de aventura (considerando que Wood Nação (e de maneira mais enviesada - a insatis-
complementa Rivette), com Scarface – A Vergonha fação de uma multidão de presos - Delirante - The
de uma Nação encaixando-se perfeitamente nas Crowd Roars, 1932), mas cuja história é ambientada
3. Idem. duas divisões. na América e no qual a noção de responsabilidade

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é cara aos personagens (há um código de ética ao lado de longas mais típicos do gênero, como
no presídio), assim como, por vezes, o senso de Levada da Breca, Jejum de Amor, A Noiva era Ele e
oportunismo e interesse. Pode-se argumentar que O Inventor da Mocidade, e tendo como contraponto
Hawks só se tornaria Hawks em 1932, mas tal interno a brutalidade do mundo do crime. Quando
argumentação é manca: o personagem de Walter lembramos o modo como Hawks retratou Tony
Huston manda criminosos para a clausura en- Camonte, o personagem principal, fazendo com
quanto é promotor de justiça, e é implacável no que andasse com os braços arqueados, realizando
que faz, porque esse é o seu serviço (“sou pago movimentos circulares, como um primata, e se
para isso”, responde Philip Marlowe à observação encantando com uma metralhadora da mesma
“você se arrisca”, em À Beira do Abismo, no exemplo maneira com que uma criança se encanta com
mais comumente usado dessa determinação do um novo brinquedo, a afirmação passa a fazer
herói hawksiano). Da mesma forma, o homem sentido. Há ainda um elemento cômico muito forte
que fora mandado para a prisão pelo próprio di- na presença do secretário de Camonte, sempre
retor, como promotor, por ter cortado a garganta atrapalhado com o telefone. Há o momento já des-
de outro homem, trabalha agora como barbeiro crito da tentativa de ouvir um nome durante uma
do presídio, e lembra verbalmente o motivo pelo emboscada e sob tiros de metralhadoras. Num
qual havia sido preso no exato momento em que outro momento, diz que peças devem fazer rir, e
raspa com uma navalha a barba do diretor que o lamenta ter de ficar em uma que não provoca risa-
prendeu. Quando um é nomeado diretor do presídio, das, apenas para dizer a seu chefe, posteriormente,
ou quando outro está preso e deve trabalhar no com quem ficou a heroína no final. O final desse
presídio, as obrigações mudam um pouco, mas secretário engraçado, por sinal, é trágico. Como 4. Hays Office foi
eles as cumprirão da melhor maneira possível, alguns diretores do auge do cinema italiano nos uma organização
criada por líderes
porque é o que devem fazer. A cena em que Walter anos 1950 e 1960 (Mario Monicelli, Dino Risi, Luigi dos grandes
Huston anda no meio dos presidiários em fúria que Comencini, Valerio Zurlini), Hawks une o trágico estúdios em
urram contra sua chegada como diretor antecipa ao galhofeiro como só alguém que observa muito 1922 para frear a
futuros enfrentamentos na obra de Hawks – Bat bem a vida e o mundo consegue. degradação moral
McPherson encarando companheiros de serviço de Hollywood e
se antecipar a
hostis quando chega ao bar de Paraíso Infernal,
John T. Chance entrando no salão comandado por Scarface e os filmes de gângsteres
futuras censuras
que poderiam vir
inimigos para prender Joe Burdette no início de contra o Hays Office do governo. Em
Onde Começa o Inferno, Philip Marlowe entrando na 1930 a organização
casa de jogos em À Beira do Abismo, Henri Rochard Poucos anos antes da efetivação do nefasto Código criou o Código de
Produção, também
entrando em ambientes exclusivamente femininos Hays, em 1934, Scarface – A Vergonha de uma Na- conhecido como
em A Noiva era Ele. O problema da inadequação, ção teve um grande problema com o Hays Office4. Código Hays, que
portanto, existe, e não só com O Código Criminal; Na mira, a intensa brutalidade dos assassinatos entrou em vigor
é o risco de todas as esquematizações, mesmo as cometidos por Tony Camonte, o protagonista que somente em
mais interessantes (como a de Wood). aparece cercado de mulheres lindas e não é pu- 1934, durando até
1967-68, quando
nido. Hawks recebeu o seguinte recado de seu um esquema de
Scarface – A Vergonha de uma Nação, por outro produtor, Howard Hughes, na véspera de começar indicação por faixa
lado, seria mesmo uma comédia, alinhando-se as filmagens: “Dane-se o Hays Office. Comece o etária o substituiu.

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filme e faça-o da maneira mais realista, excitante como testemunhos da história. É o gênero cujo
e medonha possível”5. período áureo foi o mais curto de Hollywood6, e
seu ciclo foi um dos mais fascinantes da histó-
Hawks o fez. Mas o Hays Office não se danou e, ria do cinema. Sua gênese (como também seu
mesmo antes da entrada em vigor de seu temido enfraquecimento) está, de fato, na Lei Volstead
Código de Produção, exigiu algumas mudanças. (mais conhecida como Lei Seca), que entrou em
Hawks já havia iniciado as filmagens de Delirante e vigor em 1920 e prosseguiu até 1933, período em
a equipe de Hughes teve um trabalho danado para que houve um intenso crescimento do mercado
negociar quais seriam as alterações necessárias à negro de bebidas, comandado por entidades cri-
liberação do filme para exibição comercial. Hawks minosas. Era o auge do gangsterismo nos Esta-
(como também o roteirista Ben Hetch) teve de vol- dos Unidos, atividade que durou justamente até
tar ao trabalho logo adiante para algumas cenas o fim da Lei Seca, quando os principais chefões
extras. Uma dessas alterações incide diretamen- do crime organizado foram presos ou abatidos
te no desfecho da trama, porque era necessário pela polícia federal. Heróis Esquecidos (The Roaring
mostrar Tony Camonte como alguém que, sem sua Twenties,1939) filme de Raoul Walsh lançado em
arma, era um grande covarde. Hawks conseguiu 1939, conta com precisão e de forma revisionista
subverter a exigência da censura mostrando que essa história.
Tony se abala quando mata impulsivamente seu
melhor amigo, e fica ainda mais abalado após a O filme de gângster nasceu ainda antes da Lei
morte de sua irmã, Cesca, com quem tinha uma Seca. O curta-metragem Os Mosqueteiros de Pig
relação incestuosa não consumada (e atenuada na Alley (The Musketeers of Pig Alley, 1912), de David
refilmagem feita por Brian De Palma em 1983). As Wark Griffith, pode ser considerado o primeiro
outras alterações exigidas são mais problemáticas, filme do gênero (se é que se pode confiar em in-
porque menos contornáveis: a inserção de um formações desse tipo). Três anos depois, Raoul
letreiro avisando da vilania dos gângsteres e da Walsh estrearia no cinema com Regeneração, pri-
necessidade de combatê-los, e de dois diálogos meiro longa-metragem do gênero. Antes ainda do
nos quais estão em pauta o papel da imprensa ciclo mais forte do início dos anos 1930, Josef Von
5. Ver McCARTHY,
como glamorizadora do gangsterismo e a facilida- Sternberg realizou Underworld (Paixão e Sangue),
Todd. Howard de com que as armas circulam no país. Hawks não em 1927, filme importantíssimo como base para
Hawks: The Grey Fox as filmou. E, de fato, como lembra Bogdanovich, os que viriam a seguir.
of Hollywood. New tais cenas parecem ser de outro filme. Nada disso
York: Grove Press, impede que se observe a excelência da direção e Scarface – A Vergonha de uma Nação é lançado
1997.
a habilidosa estilização de Scarface – A Vergonha depois de três filmes de 1931 essenciais para o
de uma Nação. sucesso do gênero na época: Alma no Lodo (Little
Caesar, de Mervyn Le Roy), Inimigo Público (The
6. Ver SCHATZ, Extremamente violento para a época, Scarface – A Public Enemy, de William A. Wellman), e o melhor
Thomas. Hollywood Vergonha de uma Nação é o filme que melhor repre- dos três, Ruas da Cidade (City Streets, de Rouben
Genre: Formulas, senta o ciclo de gangster movies do período 1930-32 Mamoulian). Scarface – A Vergonha de uma Nação
Filmmaking and
the Studio System. (em 1931, 51 filmes do gênero foram lançados nos é ainda melhor, e testava os limites do censu-
New York: Random Estados Unidos – número bem impressionante). rável naquele período de certa libertinagem em
House, 1981. Outros seriam feitos futuramente, mas não mais Hollywood. Os gângsteres eram glamorosos, suas

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mulheres, irresistíveis. O apelo desse tipo de filme O incesto
era muito grande junto ao público masculino. Não
é à toa que Tony Camonte é um dos raros prota- Pertencente ou não a um gênero específico, Hawks
gonistas hawksianos que morrem. Era necessário se encarrega de transformar o material em algo
mostrar um fim trágico após tanta celebração. Nos pessoal. Ele ficou atraído pela ideia de Ben Hetch
anos seguintes, com o crime diminuindo e a Lei de fazer alusão aos Bórgias, com Tony Camonte
Seca revogada, os filmes de gângsteres, já sob como Cesar, e Cesca, irmã de Tony, como Lucrécia
o rigor do Código Hays, teriam os policiais como Bórgia. A relação incestuosa entre Tony e Cesca
heróis (geralmente interpretados pelos mesmos é sugerida desde o início, mas torna-se evidente
atores que faziam os gângsteres de antes, espe- a partir da hora em que Tony mata seu fiel escu-
cialmente James Cagney e Edward G.Robinson). deiro e melhor amigo Guino Rinaldo, justamente
porque o encontrou no apartamento novo de sua
Apesar dos obstáculos impostos pelo Hays Office, irmã. Quando se reencontram logo depois, Cesca
Scarface mantém-se de pé como um dos filmes chega a dizer-lhe: “você é eu, e eu sou você”, uma
mais bem dirigidos da época (ou melhor, da his- autêntica declaração de amor.
tória do cinema), com uma fotografia assinada
pelo grande Lee Garmes, responsável, sobretudo Cesca Camonte é uma das mulheres fortes e
pelos momentos mais estilizados, incluindo o ex- conquistadoras do cinema de Hawks. Ela flerta
cepcional plano-sequência que abre o filme, e L. com Guino na varanda de sua casa, depois tenta
William O’Connell, que filmou, entre outros planos conquistá-lo no clube noturno, e finalmente o tem
memoráveis, aquele em que a queda do último pino nas mãos quando Tony se ausenta. Guino sabe que
de boliche simboliza a morte do personagem de nenhum homem pode ter qualquer relacionamen-
Boris Karloff, logo após sua jogada derradeira. O to com Cesca, a amada e espevitada moça de 18
tema da cruz, presente em cenas de assassinato, anos que não cabe mais em si de desejo carnal. A
vem das notícias de jornal da época, cujas fotos vi- determinação de Cesca encontra eco em inúme-
nham com um X marcado no lugar onde havia sido ras mulheres da obra de Hawks. Está presente
encontrado o corpo da vítima. Cruzes ou letras X na aventureira Bonnie Lee de Paraíso Infernal, na
aparecem em todo o filme. A angulação da câmera cantora Marie Browning de Uma Aventura na Mar-
permite que uma placa indicativa de rua faça uma tinica, na enigmática Viviam Rutledge de À Beira
sombra em forma de cruz sobre o corpo que jaz na do Abismo, na Tess Millay de Rio Vermelho (Red
calçada; a sombra de um apoiador para uma perna River, 1948), na Tenente Gates de A Noiva era Ele,
engessada de uma vítima reproduz o formato de na Feathers de Onde Começa o Inferno, na fotógrafa
X na parede; a incidência de alguns focos de luz Dallas de Hatari!, na Abigail Page de O Esporte
forma uma cruz no rosto de um personagem; uma Favorito dos Homens (Man’s Favorite Sport?, 1964),
marca é inserida no quadro indicativo de um strike na loira e na morena que – simbolicamente – ca-
após o assassinato de um personagem na pista sam em Os Homens Preferem as Loiras (Gentlemen
de boliche. As ideias são muitas, amplificando a Prefer Blondes, 1953), e em muitas outras. A mulher
estilização de Scarface – A Vergonha de uma Nação. pode ser frágil fisicamente em seus filmes, quase
Martin Scorsese retomou a ideia em Os Infiltrados sempre complicada e contraditória, mas é uma
(The Departed, 2006), com menor impacto visual. força da natureza capaz de tirar o chão dos heróis
hawksianos. Nos filmes de Hawks, é a mulher que

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conquista o homem, e este sempre está receoso homossexualidade na relação, em consonância
de se entregar por completo. com as apontadas no parágrafo anterior, não deve
ser ignorada. Scarface – A Vergonha de uma Nação
Elas não os fazem chorar. Isso só a amizade mas- também é direto e rápido, como em geral o são
culina consegue; mesmo assim, raramente. Geoff as comédias e boa parte das aventuras do diretor
Carter, em Paraíso Infernal, é o “único herói de (enquanto as aventuras da reta final da carreira
Hawks que chora”7, e o choro é causado pela morte inspiram-lhe uma inusitada cadência, sobretudo
de seu grande amigo Kid. Amigo, parceiro da vida, Onde Começa o Inferno e Hatari!). Essa rapidez de
e uma das muitas sugestões de homossexualidade suas comédias vem muito da forma como os ato-
velada entre os amigos machos de Hawks (con- res falam, com rapidez, como se vivessem com
forme defende Robin Wood). A mais forte dessas pressa. Os rodeios nas falas aparecem, mas de
sugestões é provavelmente a que ocorre em Hatari!, maneira parcimoniosa. Já os momentos cômicos,
entre o alemão e o francês que disputam a mes- como sempre, pululam por entre as cenas de ação,
ma mulher, mas parecem satisfeitos o suficiente envolvendo a trupe de Tony Camonte.
ao descobrir que essa mulher ama um terceiro,
deixando-os livres para uma outra disputa insolu-
cionável. Outra forte sugestão está em Rio Verme- A clausura
lho, quando Matt, o personagem de Montgomery
Clift, e Cherry (não por acaso, um nome feminino), Jacques Rivette fala da clausura à qual são sub-
papel de John Ireland, se envolvem num jogo de metidos os personagens hawksianos, que se mo-
mútua admiração e disputa – iniciada por Cher- vimentam sempre dentro de pequenos espaços ou
ry - pela mais bela pistola, e pela maior rapidez fazendo discretos deslocamentos. Mencionei a li-
no gatilho. Há quem considere a relação entre berdade encontrada na clausura pelo personagem
Matt e Thomas Dunson (o durão interpretado por de Cary Grant em A Noiva era Ele, e certamente este
John Wayne) igualmente homossexual; há quem é um dos exemplos que se encaixam na ideia de
a considere unicamente paternal. Rivette. Outros existem, nos mais diversos filmes.

Apesar de antecipar as mulheres fortes e a amiza- Talvez o primeiro grande exemplo esteja em Scar-
de masculina, Scarface – A Vergonha de uma Nação face – A Vergonha de uma Nação: Tony Camonte
não traz o cadinho de repetições que aparecem conquista a cidade, mas depois fica cercado pela
nos filmes mais pessoais de Hawks: diálogos rei- polícia em seu apartamento-fortaleza. Antes do
terativos, falas que transitam de um personagem cerco, movimenta-se pela casa da sua mãe, onde
7. WOOD, Robin.
Rio Bravo. London: para outros, situações típicas e suas variações mora com a irmã no começo do filme. Anda tam-
BFI Publishing, (mulheres ensinando os homens a tocar piano, bém pelo escritório onde funcionam os negócios
2003. João Bénard mulheres dizendo que são os homens que de- escusos envolvendo bebidas. Quando sai da Zona
da Costa concorda: vem pedir para que elas fiquem, homens com Sul de sua cidade, é alertado para o perigo que
“as únicas lágrimas
medo de se envolver com mulheres...). Algumas isso representa. No único momento em que o
de homem de um
filme de Hawks”, características, porém, estão presentes. A ami- filme mostra que se ausentou, sua irmã (paixão
em texto sobre zade profunda entre Tony e Guino é, afinal, uma de sua vida) casa-se com seu melhor amigo. Em
Paraíso Infernal. nota comum na obra de Hawks, e a sugestão de Paraíso Infernal, os homens vivem num bar de

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uma região isolada entre o mar e as montanhas. muito rapidamente por aqui”, diz Bonnie Lee, em
Ficam presos ali frequentemente por causa do Paraíso Infernal), ou exasperantemente lento (Onde
mau tempo, encontrando brechas momentâneas Começa o Inferno tem mais ou menos 90% de sua
para suas viagens de avião (momentos de liber- duração dedicados à espera de algum aconteci-
dade espacial que o filme não mostra). Humphrey mento). E o mesmo filme pode ser rápido e lento
Bogart permanece entre o hotel e o barco em Uma em momentos subsequentes (Scarface – A Ver-
Aventura na Martinica, e, quando sai para o mar, gonha de uma Nação, Delirante, Uma Aventura na
está mais interessado em seus passageiros do Martinica, Terra dos Faraós, O Esporte Favorito dos
que nas belezas naturais da região. Não olha para Homens, Linha Vermelha 7000/Red Line 7000, de 1965,
a imensidão do mar, mas para o espaço fechado entre outros). De certa maneira, a descoberta da
do barco, a não ser quando é ameaçado por um metralhadora por Tony Camonte em Scarface – A
barco filiado aos nazistas. Em À Beira do Abismo, o Vergonha de uma Nação pode ser uma metáfora da
mesmo Bogart vive entre casas, incluindo aí uma rapidez com que Hawks tempera alguns de seus
em que um assassinato fora cometido, e prepara filmes, e que faz com que os muitos momentos
uma armadilha ao vilão, abatido porque é obrigado cadenciados sejam sensíveis em sua plenitude
a sair da casa onde estava. pelo espectador. Pois Howard Hawks, a raposa
cinzenta de Hollywood, é um dos mais hábeis
A clausura está também em Onde Começa o Inferno manipuladores do ritmo interno dos filmes. Um
(e em suas variações El Dorado, de 1967, e Rio Lobo, autêntico maestro.
de 1970), com o xerife Wayne e seus ajudantes
confinados, como o bandido que prenderam, na
pequena cadeia da cidade. Quando saem, xerife | Sérgio Alpendre |
e ajudantes ficam dentro de um hotel. Hatari! é a
culminação da clausura, com os caçadores pas-
sando a maior parte do tempo na casa no meio da
savana, saindo de vez em quando para capturar
animais selvagens. Esses homens impõem suas
condições enclausuradas aos animais de várias
espécies, e seus momentos de liberdade, durante
a caça, são frequentemente aproximados do risco
de morte. Em O Código Criminal, realizado antes de
Scarface – A Vergonha de uma Nação, os homens
são mandados à cadeia, mas o jovem presidiário
pelo qual a filha do diretor do presídio se apaixona
tem sua liberdade (ainda que um futuro casamento
o espreite, e o filme se encerre em uma sala escura
e ainda dentro do presídio).

O ritmo é perfeito nos melhores filmes de Hawks.


Pode ser aceleradíssimo (“as coisas acontecem

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HERANÇA DA VIRILIDADE
Por mais que Howard Hawks tenha se tornado mas também sempre imprimindo certa marca
uma instituição suficientemente reconhecida no que o colocava muito acima dos bons artífices de
pensamento cinematográfico para dar origem ao Hollywood que lhe eram contemporâneos. Talvez
termo hawksiano, apontar exatamente a herança seja impossível precisar hoje a influência exata
específica de seu cinema não é missão fácil ou en- desse seu “grau zero” da escrita (com a câmera),
carada com frequência. Serge Daney traçou como uma vez que o grau zero muitas vezes seja facil-
específico hawksiano justamente a impossibilidade mente diluído em ausência de estilo... Mas, assim
da escritura, da fixação, como se tudo em seu ci- como Lubitsch garantiu à sua intangibilidade a
nema estivesse inscrito em movimento. Jacques exclusividade do “toque”, o legado do cinema de
Rivette recorria à alternância entre o drama e a Hawks parece melhor ancorado nessa platitude
comédia (não só de um filme para outro, mas como moral que fala pouco da matéria, mas aponta jus-
nuances dentro de cada filme) como a inevitabilida- tamente para sua intangibilidade: há uma enorme
de da responsabilidade. Mais recorrente é a ideia diferença entre uma câmera à altura dos olhos e
de que Hawks seria marcado por uma “câmera à uma à altura do homem.
altura do homem” – expressão tão familiar que já
parece ter perdido autoria, talvez uma bela leitura Deixemos de lado a herança do estilo para falar-
simbólica da “câmera à altura dos olhos” (embora mos, então, da herança do homem. Não somente
em boa parte dos filmes de Hawks ela estivesse, o homem, ser humano, mas também homens e
em realidade, levemente abaixo dos olhos, truque mulheres. O gênero biológico – e sua respectiva
comum para qualquer diretor que quisesse se instabilidade – é uma questão amplamente pre-
distanciar da possibilidade de um teatro filmado, sente no cinema de Howard Hawks, e que cria uma
de Frank Capra a Jerry Lewis). linhagem à parte em seus filmes. Serge Daney
falava do subtexto homoafetivo nos filmes de Ha-
Ainda assim, essa platitude da “câmera à altura wks, algo que hoje nos parece tão sutil quanto a
do homem” parece ser o que melhor dá conta de revelação de que, ao fazer Festim Diabólico, Alfred
certa qualidade intangível do cinema de Howard Hitchock desejava em verdade fazer um filme gay.
Hawks, e que escorre pela transparência curio- Sim, Hollywood, como todo o mundo, se tornou
samente constante de seu estilo – talvez uma das mais frontal na representação da homossexualidade
melhores e mais limpas representações no cinema e da homoafetividade, a ponto de o bromance ter
do tal “grau zero da escrita”, de que falava Roland se tornado um gênero à parte dentro da comédia
Barthes. Mas se a transparência só não é empeci- norte-americana. Estaria, aí, uma manifestação
lho quando se quer olhar através dela, uma breve mais concreta do legado hawskiano?
passada pela lista de filmes do diretor não facilita
a busca por esse específico: Hawks filmou comé- Howard Hawks pode ser um cineasta que filma-
dias, faroestes, dramas, filmes de aventura, sem va “em linha reta”, mas o pensamento demanda
ignorar as convenções de cada um dos gêneros, curvas. Seja em Jejum de Amor (His Girl Friday,

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1940), Levada da Breca (Bringing Up Baby, 1938) ou os filmes de Hawks, o que melhor expressa o devir
A Noiva era Ele (I Was a Male War Bride, 1949), a homem-mulher, e o que melhor se impõe, por
inversão de papéis entre os gêneros biológicos – o contraste, diante do presente. Em primeiro lugar,
masculino e o feminino – é fonte de movimento por Hatari! – a rigor, um filme que não parece ter
constante na obra do diretor. Mesmo um filme outros motivos de existência que não a própria
tradicionalmente mais masculino, como Scarface existência, a própria graça com que vai de um ponto
– A Vergonha de uma Nação (Scarface, 1932), traz a outro – trazer, como já dito, a figura do homem
na insolência de Cesca (Ann Dvorak) o calcanhar ferido, do homem que carrega no semblante a
de Aquiles do (anti) herói. O cinema de Hawks desilusão do fora de quadro, e que reconhece o
lida frontalmente com o processo de emancipa- poder avassalador de uma mulher. Dallas, é claro,
ção feminina, e ele, como tudo em seus filmes, é nada tem a ver com isso – pois Dallas está em
também “fixado em movimento”, como vetores quadro, sempre em quadro – e seu desejo de firmar
rapidamente capturados em pleno voo, sem que o autonomia diante de Sean Mercer (e do mundo) é
instantâneo tirado da trajetória aponte para onde visto logo em suas primeiras aparições: ela deita
ele vai, mas, sim, que vai, que está em processo na cama que quiser, sai para a caçada com as cal-
de ir. Nesse sentido, é notável a mudança que se ças nas mãos e, com sua câmera, está disposta a
imprime no tempo transcorrido entre dois de seus enfrentar os percalços do caminho acidentado para
filmes mais importantes – Jejum de Amor, de 1940, realizar sua própria forma de caçada, capturando
e Hatari! (Hatari!), de 1962 – nos pares românticos os animais das savanas africanas em uma pequena
protagonistas: se, em 1940, Cary Grant ainda era o jaula de acetato, em um fotograma. Suas primeiras
homem dominador, capaz de entortar a ex-mulher tentativas são atrapalhadas e dignas de riso, de
de volta ao seu domínio com o poder da retórica fato, mas se os homens em Hatari! correm atrás
(mesmo que fosse uma “mulher emancipada”), dos animais, é Dallas quem os atrai, perseguida
vinte e dois anos depois permanece a eloquência pelos filhotes de elefante que marcam algumas das
do silêncio doído de John Wayne (justo John Way- principais sequências de comédia do filme. Diante
ne!) diante das investidas francas de Dallas (Elsa dessa mulher que carrega, igualmente, o desejo
Martinelli). Voltaremos a essa relação em breve, de emancipação e a atração simbólica e biológica
mas como ponto de partida basta perceber que a da maternidade (como diria Louis C.K. em um dos
desenvoltura retórica de Cary Grant em Jejum de primeiros episódios de sua série, Louie: quando
Amor encontra paralelo mais claro no audiovisual um homem se sente atraído por uma mulher, ele
norte-americano recente em uma série de ado- na verdade está apenas sendo guiado pelo impulso
ráveis garotas tagarelas, chamada Gilmore Girls, da procriação), os homens de Hawks fazem o que
e que até mesmo quando a produção americana lhes cabe fazer: rir das dificuldades provocadas
recente tem intenção de revisitar a época, como em pela tentativa e, ao mesmo tempo, apreciá-la como
Mad Men, os homens são tratados como paredes intenção. Ao final, é John Wayne – junto a todos os
brancas, e o foco de subjetividade possível recai outros, homens, caçadores e filhotes de elefante
sobre as personagens femininas. – quem irá atrás de Dallas.

Essa “vitória” das mulheres se anuncia de forma Daí, temos um ponto de partida para o presente:
bastante curiosa em Hatari!, que talvez seja, entre a característica comum tanto aos ditos bromances

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quanto a filmes como Passe Livre (Hall Pass, 2011), específicas e até certo ponto paródicas de icono-
dos irmãos Farrely, ou 500 Dias com Ela (500 Days of grafia (ou seja: de negação da realidade) do cinema
Summer, 2009) de Marc Webb, é a de que as mulhe- de gênero: a virilidade. Como no cinema de John
res permanecem autônomas, soberanas em suas Ford (Depois do Vendaval – The Quiet Man,1952; O
vontades, enquanto os homens se debatem com Aventureiro do Pacífico – Donavan's Reef, 1963), a
fragilidades emocionais e as atrapalhadas tentati- virilidade é não só uma moeda de troca, mas uma
vas de superá-las. Não é necessário, sequer, estar fonte de diversão: Kurt (Hardy Krüger) e Chips
ferido; a fragilidade é uma espécie de castração, (Gérard Blain) disputam sua autonomia dentro
de um pecado original que deixou de pesar como do grupo em uma competição de tiro ao alvo, e
um pecado. Há, portanto, uma inversão da figura trocam socos como forma de cumprimento. Ao
dominante do relacionamento, com a diferença final, o que se impõe é principalmente o respeito
de que as mulheres não precisam sequer rir das pela virilidade, como quem prova ser capaz e digno
tentativas de superação. Pois Dallas, afinal, é uma de tomar parte em um grupo.
figura forte, enquanto o protagonista das comé-
dias norte-americanas (mas não só – pensemos, O cinema americano contemporâneo, ao contrário,
por exemplo, em Potiche – Esposa Troféu (Potiche, não apela para esse tipo de espectador – talvez
2010), de François Ozon, que filma de maneira porque os sujeitos viris de hoje em dia não tenham
programática a inversão de papéis entre homens mais interesse no cinema – e seu foco recai não
e mulheres) recentes é um sujeito débil, digno sobre a valentia, mas sobre os que apanharam
de compaixão e identificação, não de escárnio. A no colégio desses mesmos valentões – pense-
inversão de quem tem a “mão” (para citar Seinfeld) mos aqui nas fragilíssimas personagens de Judd
na relação (de poder) não significa apenas uma Apatow, que se reúnem em seus próprios grupos,
alternância de protagonismo – muitos dos filmes partilhando seus próprios interesses, e que, em
continuam sendo feitos por homens, sobre homens um filme como O Virgem de 40 Anos (The 40 Year
– mas o espectador de cinema contemporâneo Old Virgin, 2005) é em realidade quem tem algo
parece buscar, na tela, menos uma idealização a ensinar a todos os outros (o que não exclui a
do que ele poderia vir a ser – quem não gostaria necessidade de aprender). Mas é curioso que em
de ser John Wayne ou Clint Eastwood? – mas, sim, Hatari! a virilidade não só tenha um preço, como
o protagonista possível. Hollywood – que um dia ela se revele abalada desde o primeiro momento.
Erich Von Stroheim disse padecer da “tirania do Não à toa, o filme começa com uma caça malsu-
final feliz” – hoje vive a tirania do homem comum. cedida a um rinoceronte – “deve ser uma fêmea”,
diz um dos personagens “pois ela não sabe para
Hatari!, nesse sentido, é um filme de aventura que onde ir” –, animal cujo chifre se impôs histori-
não pode mais ser feito – a não ser, talvez, pelo camente, da mitologia xamânica aos quadros de
ponto de vista de Pockets, personagem de Red Salvador Dalí, como símbolo supremo da virilidade.
Buttons que, à época em leve descompasso com E, diante do fracasso na captura – que servirá
todos ao redor, hoje nos parece a figura mais atual. como arco dramático ao filme, em sua rotina de
Pois o traço distintivo da parceiragem hawksiana capturas, até chegar novamente ao rinoceronte
parece ter desaparecido por completo do cinema e poder encerrar a temporada –, é curioso que a
norte-americano, a não ser em incursões muito reação não seja a obsessão da perna amputada

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de Ahab em Moby Dick (Moby Dick,1956), mas sim porta, portanto, o que está em quadro, o que se
uma enorme cautela: “deixe o rinoceronte pra lá”, impõe ao quadro, como forçam os limites da ca-
aconselha Índio (Bruce Cabot), após tomar uma deia os antagonistas de Onde Começa o Inferno (Rio
chifrada em uma das pernas. Bravo, 1959). E o que os filmes de Howard Hawks
compartilham, ou reverberam, de maneira mais
Essa reticência é interessante, pois Hatari! não natural na produção recente é, sobretudo, o que
terminará até que ela seja superada. O cinema ele enquadra, a forma como um filme como Hatari!
norte-americano hoje, naturalmente, não vive sem desloca a atenção dos grandes arcos dramáticos
motivos dramáticos tão palpáveis quanto esse. para uma sucessão de encontros, de relações
Mas o rinoceronte não só encolheu de tamanho e entre homens e mulheres, mas também entre
foi criado no quintal (ou no jardim zoológico, o fim homens e homens, que são sua maior fonte de
desejado para todos os animais do filme), como interesse. O que sobrevive de maneira soberana
hoje é apenas uma inofensiva figura de desenho é justamente o sentimento de que há ainda algo
animado (ou CGI, o eufemismo tecnicamente nessas relações que permanece eminentemente
correto). O espírito de aventura contemporâneo – digno do cinema. Todo o resto é apenas reafirmar
quando não confinado ao cinema de gênero mais que o tempo passou e que essa passagem impõe
estratificado – precisa de distância: o espectador mudanças. Nada mais apropriado para o legado
pode se projetar na Terra Média de O Senhor dos de um diretor que dedicou uma vida a, também,
Anéis (The Lord of the Rings, 2001) ou se fantasiar de filmá-las.
super-herói, porque ambas são possibilidades de
fuga que dependem exclusivamente da imaginação.
A aventura de John Wayne e Cia., ao contrário, é | Fábio Andrade |
com o concreto: a África existe, seus animais em
fuga se debatem contra a carroceria dos jipes de
caçada, e John Wayne empurra, de fato, as feras
amarradas ao chão. Se para o protagonista da
época isso se firmava como um potente desafio
à virilidade, para o herói contemporâneo (aquele
sublimado em uma figura como a do Homem-
-Aranha), talvez fosse motivo para uma síndrome
do pânico. Hatari! é hoje um filme impossível não
só por questões morais e jurídicas, mas principal-
mente porque o protagonista contemporâneo ideal
sequer chegaria à África, pois tem medo de avião.

Mas se Daney tinha razão, e Hawks é um cineasta


que filma o que fica inscrito como passagem do
tempo (as cicatrizes), é natural que a essência
desse protagonismo não possa ser embalsamada,
conservada fora dos filmes. Nesse sentido, im-

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DE EVA A LORELEI: MULHERES NO
CINEMA DE HOWARD HAWKS
Amanhece no Jardim do Éden. Adão (George panzé que acidentalmente descobre a fórmula do
O’Brien), o primeiro homem, “que deu uma costela elixir da juventude, dando início a toda a confusão
para aprender o pitoresco esporte do matrimônio”, e diversão do filme, ser do sexo feminino.
e Eva (Olive Borden), a primeira mulher, “uma das
poucas noivas que nunca ameaçou voltar para a “No começo, a mulher tinha três problemas: não
casa da mãe”, despertam para mais um dia no tenho nada para vestir, não tenho nada para vestir,
Paraíso. Vemos uma divertida engenhoca - que não tenho nada para vestir”, lemos no letreiro se-
envolve um macaco atirador de cocos - despertar guinte ao despertar do casal edênico. Eva aparece
Adão e, em pleno cinema mudo, temos a impressão decepcionada diante do guarda-roupa repleto de
de escutar seu ronco na montagem: a imagem de folhas de figueira (as mesmas indicadas no título
seu rosto dormindo é rapidamente intercalada original do filme), revelando uma desmedida pre-
com um serrote. Continuamos a rir enquanto a ocupação com a aparência. Acompanhamos por
impaciente Eva também atira cocos na cabeça mais alguns minutos o cotidiano burlesco do par
do marido dorminhoco, na tentativa de acordá-lo sentado à mesa de café, nesse Éden à la Bedrock,
para o trabalho. O letreiro traz seu protesto: “como mais próximo de um desenho dos Flintstones que
você espera obter qualquer coisa se você não se de uma pintura de Michelangelo ou Bosh. Após
levanta de manhã?” ler seu jornal talhado em pedra, é hora de Adão
ir trabalhar. No transporte público, uma mulher
Adão e Eva... (Fig Leaves, 1926) é o segundo filme de se levanta para lhe ceder o lugar. Só mais uma
Howard Hawks e já anuncia, com humor peculiar, piada, mas a mensagem é clara: no paraíso de
traços que serão decisivos para as formas de re- Hawks, os homens têm a preferência.
tratar a mulher e o homem nos seus filmes futuros.
A começar por esse indócil despertar: tal como a Enquanto Adão vai ao trabalho, Eva fica em casa à
Eva inquieta que perturba o tranquilo repouso de mercê de seus impulsos consumistas, que serão
Adão, as mulheres hawksianas são, muitas vezes, acentuados pela visita da pérfida serpente. Nes-
elementos de perturbação que, literalmente, tiram se ponto, a narrativa dá um salto (através de um
o sossego dos homens. Se é sabido que Hawks, em fade obtido de uma garrafa de cerveja colocada
seus filmes de ação, gosta de expor seus heróis em frente à lente, como conta Hawks em entre-
ao perigo - tiroteios, perseguições, voos radicais, vista1) até os anos vinte, época contemporânea à
corridas de automóvel - nas comédias o perigo produção do filme. Curioso artifício da montagem:
toma corpo e forma de mulher. Ou, quando muito, se, no princípio do mundo, Eva era seduzida pela
de uma fêmea: em O Inventor da Mocidade (Monkey serpente, em tempos modernos quem a corrom- 1. McBRIDE. Hawks
Business, 1952), não é desprezível o fato de a chim- pe é a vizinha Alice, igualmente persuasiva, que par Hawks. Paris:
Ramsay, 1987, p.33.

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ocupa no quadro o exato lugar do réptil na cena Girl Friday, 1940), Tommy (June Travis) em Heróis
anterior. É ela quem vai exercer más influências do Ar (Ceiling Zero,1936), Catherine (Ann Sheridan)
sobre Eva, incentivando seu consumismo e sua em A Noiva era Ele (I Was a Male War Bride,1949),
insatisfação diante do estilo de vida modesto que Dallas (Elsa Martinelli) em Hatari! (Hatari!, 1962),
Adão lhe oferece. A passagem temporal é interca- entre outras - ela permanece confinada a um lugar
lada com outro intertítulo: “sete milhões de anos se passivo, que só existe em função do desejo e da
passaram e a mulher não mudou nem um pouco”. ação do estilista, e sujeita ao julgamento do ma-
rido. Posando e desfilando de modelo, resta a ela
É preciso reconhecer que Adão e Eva... não delineia ocupar a posição de objeto para o olhar masculino,
um perfil favorável às mulheres. Dissimulação, que a cobiça (André) ou que a reprova (Adão). A
manipulação, consumo e vaidade são característi- mulher é a imagem, o homem é o dono do olhar,
cas consideradas inerentes ao ser feminino desde em consonância com o que escreve Laura Mulvey3.
a criação do mundo. Esse tratamento provocou A autora recorre a elementos da psicanálise para
2. ALLEN apud
a indignação de críticas como Jeanne Thomas explorar amplamente o argumento de que o olhar
DURAFOUR, Allen, que designa o filme como uma “anomalia no cinema narrativo clássico é predominantemen-
Jean-Michel. hawksiana”2. De acordo com ela, a obra apresenta te masculino, um olhar ativo e fetichista que leva o
Hawks, cineaste du uma visão reacionária sobre a mulher, retratada espectador a se identificar com a figura do homem
retrait. Villeneuve
d’Asq: Presses
como uma “empregada não-remunerada”, em que fita e deseja a mulher em cena. Ela, por sua vez,
Universitaire du contraste com o retrato do homem, que é dotado de assume uma posição passiva e objetificada. Hawks
Septentrion, 2007, grandeza de alma e capaz de perdoar sua esposa não deixa de estar presente entre os autores desse
p. 296. pela desobediência. Isso porque a Eva moderna, cinema narrativo clássico que inspirou os estudos de
levada pelo desejo de consumir roupas melhores, Mulvey. Convém, entretanto, observar com atenção
começa a trabalhar escondida do marido como outros trabalhos do diretor, antes de chegar a con-
3. MULVEY, Laura. modelo para André, um famoso estilista. Forma- clusões precipitadas.
Prazer visual e -se um ciclo de consumo e desejo no qual mulher
cinema narrativo.
In: XAVIER, Ismail
e vestido são objetos – André que cobiça Eva, que Façamos mais um salto, desta vez não de “sete
(org). A experiência cobiça as criações de André. Isso quase lhe custa o milhões”, mas de cerca de trinta anos. Em 1953,
do cinema. Rio de casamento, para seu desamparo e desespero. Afi- o igualmente cartunesco Os Homens Preferem as
Janeiro: Graal, nal, mesmo com seus impulsos de independência, Loiras (Gentlemen Prefer Blondes) apresenta Lo-
1983.
Eva permanece devota a Adão, personificação do relei Lee, interpretada pela mítica Marylin Mon-
homem ideal, valoroso, viril e trabalhador – perfil, roe. Just a little girl from Bedrock, quer dizer, Little
aliás, de quase todos os heróis hawksianos, ho- Rock, Lorelei é uma cantora que busca ascensão
4. A sequência mens “bons de verdade” (really good), como é dito social através de um casamento bem-sucedido
em que Marylin na cena do recrutamento em seu último filme, Rio com algum milionário que possa lhe cobrir de
performa a canção
não foi dirigida Lobo (Rio Lobo, 1970). belos vestidos e, principalmente, muitos quilates
por Hawks, mas de diamantes – "diamonds are a girl’s best friend"
por Jack Cole, Se a Eva moderna pode adentrar o mundo do tra- (“diamantes são os melhores amigos de uma ga-
responsável pela balho, universo até então restrito aos homens – o rota”), canta Monroe numa das sequências mais
direção de todos os
números musicais que acontece com várias heroínas de Hawks, como famosas da obra4. Lorelei é tão fascinada por ves-
do filme. Hildy (Rosalind Russel), em Jejum de Amor (His tidos e joias quanto Eva – neste aspecto, a mulher

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de fato não mudou nem um pouco. Entretanto, os serem feitos de idiotas. Ou de objetos: numa cena
modos de ação das duas protagonistas apresen- posterior, Lorelei visualiza um grande diamante
tam diferenças significativas. Eva é passiva, levada no lugar da cabeça de Piggy, abastado proprietário
pelo acaso, um tanto ingênua e emocionalmente de uma mina de diamantes na África que se torna,
dependente do marido. Já Lorelei é uma mulher imediatamente, alvo da loira. Dorothy, enquanto
solteira e sedutora, ciente de seu poder de atração isso, diverte-se flertando com toda a equipe de
e capaz de elaborar estratégias para conquistar atletismo a bordo do navio, num número musical
seus “melhores amigos”. Se ambas valorizam a que revela, só pra variar, os corpos masculinos
aparência, é apenas Lorelei quem sabe, de fato, seminus e inteiramente disponíveis ao desejo e
usá-la a seu favor, vestindo a máscara da loira ao olhar da morena.
bela, ingênua e um tanto idiota, mas que de idiota 5. HAWKS apud
DURAFOUR,
mesmo não tem nada. Está certo que estamos numa comédia, gênero Jean-Michel.
em que Hawks abre uma brecha no impenetrá- Hawks, cineaste du
Quem canta em uníssono ao lado de Lorelei na vel universo masculino de seus filmes, povoado retrait. Villeneuve
cena de abertura é Dorothy Shaw (Jane Russel). Ao de xerifes, pilotos e aviadores másculos que não d’Asq: Presses
Universitaire du
contrário da amiga loira, a morena Dorothy busca raro preferem a amizade de um homem ao amor Septentrion, 2007,
homens viris com quem possa viver aventuras de uma mulher. É, sobretudo, nas comédias que p.137 (tradução
amorosas desinteressadas e divertidas. Ainda que as mulheres conquistam o protagonismo, muitas nossa).
distintas em aspirações e comportamento, tanto vezes ocupando as posições de dominação antes
Lorelei quanto Dorothy são womanizers às avessas, reservadas aos homens, como discutiremos adian-
versões femininas de Bill e Spike em Uma Garota te. Sobre as duas garotas de Little Rock, Hawks as 6. No original,
em Cada Porto (A Girl in Every Port, 1928). As duas considera “muito divertidas, perfeitas caricaturas: vie en chanté/
garotas de Little Rock sabem o que querem, e um travestimento do sexo [...]. Não há nada de enchantée - trata-
o querem imediatamente. Cúmplices, elas são real naquilo tudo: nem as mulheres, nem a histó- de de uma fórmula
de Jacques Demy
unidas por laços de amizade muito parecidos aos ria, nem o cenário, nem mesmo o mote de saída. paras as comédias
que identificamos nos protagonistas masculinos Trabalhamos na mais total fantasia”5. musicais, retomada
em outros filmes do diretor. Apesar da cena de por Durafour em
abertura permitir uma interpretação mulveyana, no O mundo cantado/en-cantado6 de Os Homens Pre- Hawks, cineaste du
retrait. Ibid., p. 138.
que se refere aos modos de agenciamento do olhar ferem as Loiras é, de fato, mais fantasioso, colorido
do espectador – como não desejar duas mulheres e brilhante do que o mundo fora da sala de cinema.
assim, lindíssimas, produzidíssimas, apertadíssi- Como sugere Jean-Michel Durafour, Hawks é um 7. Ibid., p.135.
mas em seus espartilhos que lhes conferem cur- habilidoso inventor de mundos, outros mundos, “o A expressão
vas acentuadas e provocantes –, é no contraplano melhor dos mundos”, que substituem o real por “o melhor dos
que Hawks acaba por efetuar uma quebra, ou, no operações de sobreposição ou contraste7. Mesmo mundos” foi
tomada de
mínimo, ridicularizar esse esquema. Gus, o pre- no melhor dos mundos, porém, restam hibridismos empréstimo pelo
tendente de Lorelei, sorri e aplaude efusivamente e contradições. Sabemos bem o quanto de real há autor de um
as duas beldades, completamente embasbacado em nossas ficções e o quanto de invenção há em artigo de Rohmer
atrás dos óculos e da gravata borboleta. Certa- nossa realidade. Uma vez criados os modos de sobre Os Homens
Preferem as Loiras
mente nenhum espectador se identificaria com vida e estados de mundo, esses mesmos modos (Gentlemen Prefer
tão patética e risível figura: é a vez de os homens e estados retroalimentam nossas criações, num Blondes, 1953).

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ciclo de mútua afetação entre real e ficção. Daí e passam a manipular seu poder de atração para
resulta que o universo de Lorelei e Dorothy não é benefício próprio, invertendo em certa medida o
tão fantasioso assim. O materialismo de Lorelei jogo e usando os homens como meios para chegar
é típico do pensamento capitalista que vigora nos aos fins desejados. Mas isso só é possível através
Estados Unidos, por exemplo. Hawks, ironicamen- do retorno ao modelo tradicional de subordinação.
te, endossa e critica tal pensamento. Não o recusa,
mas tampouco adere a ele sem ressalvas. Assim, Baseado num livro de Anita Loos publicado nos
o diretor faz ao mesmo tempo a sátira e a apologia anos 1920 e de forte conotação feminista, o filme
do consumismo e da frivolidade desse mundo de opera um retrocesso em relação ao romance,
aparências em que vive Lorelei. A personagem de segundo Durafour. A retomada da mitologia do
Monroe permanece farsesca, uma paródia de si casamento, no plano do enredo, e mesmo a volta
mesma, farsa reforçada quando vemos a caricatu- do corselete vitoriano responsável por acentuar
ra da caricatura, na sequência do tribunal em que as curvas de Monroe e Russel são escolhas que
Dorothy se faz passar pela amiga, imitando-lhe os devolvem as mulheres ao confinamento, restando
gestos, as expressões e a pretensa estupidez. Tudo às suas personagens nada senão uma tentativa de
nessa mulher é máscara e artifício, seu tom de re-liberação8. Com efeito, convém refletir se, nesse
voz, seu tom de loiro, sua maquiagem, seu corpo jogo que libera as mulheres de sua representa-
modelado a espartilho, e, no entanto, reconhe- ção usual no cinema clássico, recusando-lhes a
cemos nela a cobiça e a ambição que o dinheiro fragilidade e conferindo-lhes uma liberdade de
faz medrar nos corações humanos. De resto, a comportamento supostamente reservada apenas
declaração do diretor é sintomática: só mesmo aos homens, repousa uma representação do fe-
trabalhando “na mais total fantasia” uma mulher minino de fato libertária. Após todas as peripécias,
poderia levar a melhor no universo hawksiano. e guardadas as diferenças, às duas amigas está
8. DURAFOUR,
Jean-Michel.
reservado o mesmo happy-end, no altar e de vestido
Hawks, cineaste du Mas será que levam mesmo a melhor? Não é difícil branco. Como confirma a sequência inicial em que
retrait. Villeneuve perceber o quanto Lorelei e Dorothy encarnam ambas se apresentam cantando juntas enquanto
d’Asq: Presses uma contradição fundamental, no que diz respeito executam uma coreografia perfeitamente espe-
Universitaire du
Septentrion, 2007,
à representação da mulher nos filmes do diretor. lhada, Lorelei e Dorothy são faces de uma mesma
pp.142-143. Ainda que bem sucedidas na realização de seus moeda. Ainda que seus objetos de desejo – dia-
objetivos, e mesmo caracterizadas como mulheres mantes ou homens – as diferenciem, elas seguem
independentes e perfeitamente capazes de guiar igualmente reificadas, prontas para o consumo9.
suas próprias vidas, elas não estão libertadas da
9. A esse respeito, subordinação ao desejo masculino. No único fil- Não que Hawks quisesse o contrário. Ele recusa
conferir TURIN. me de Hawks com protagonismo exclusivamente associações ao feminismo e admite mostrar essas
Gentlemen
Consume Blondes.
feminino (na maior parte de sua obra os prota- mulheres seguras e independentes apenas porque
Movies and Methods, gonistas são homens ou, no máximo, um casal), elas agradam ao público, cumprindo bem a lógica
Vol. II. University of o título não deixa de indicar em função de quem do espetáculo:
California Press, essas mulheres entram em cena: os cavalheiros
Berkeley and Los
Angeles, 1985,
(sujeito) preferem as loiras (objeto direto). Está Fui acusado de fazer a promoção do Movimento
pp.369-378. certo que as mulheres tomam consciência disso de liberação das mulheres, mas nego isso, ca-

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tegoricamente. Acho simplesmente que esse da Breca, mas à custa do dinossauro no qual ele
tipo de mulher me atrai. Eu mostro apenas as trabalhava há anos, que desmorona durante o
pessoas que me agradam. Vi tantos filmes em encontro final do casal. Esse é um filme exemplar
que o herói diz besteiras a uma mulher, à luz da para pensar o potencial da mulher hawksiana de
lua, que inverto isso e deixo a mulher ir à caça, abalar e modificar o universo masculino. Susan
percebe, e isso funciona muito bem.10 vira o mundo de David de ponta-cabeça, numa
série de gags graciosas. O cientista pacato, a des-
Em sua filmografia, de fato, são muitas as mulhe- peito de suas tentativas, parece não desejar se
res que “vão à caça”: além de Lorelei e Dorothy livrar dela, seguindo-a todo o tempo desde que
em Os Homens Preferem as Loiras, podemos citar se conhecem, com o pretexto de que ela tem algo
Lotta (Frances Farmer) em Meu Filho é Meu Rival que lhe pertence. O que ele quer e Susan tem a
(Come and Get It,1936), Susan (Katharine Hepburn) oferecer é o amor em sua potência de desordem
em Levada da Breca (Bringing Up Baby, 1938), Su- e invenção, a possibilidade de escapar da rigidez
garpuss O’Shea (Barbara Stanwyck) em Bola de e da disciplina científica.
Fogo (Ball of Fire, 1941), Slim (Lauren Bacall) em
Uma Aventura na Martinica (To Have and Have Not, Algo análogo se passa em Bola de Fogo, em que
1944), Feathers (Angie Dickinson) em Onde Começa Sugarpuss O’Shea é o elemento que perturba a
o Inferno (Rio Bravo, 1959), para ficar com apenas ordem do universo dos enciclopedistas, tornando-
alguns exemplos. Todas compartilham o modo de -se desejada por todos, com suas lições de dan-
exercer influência sobre os homens com quem se ça e “yum yum”. Em ambos os casos, a mulher
relacionam, a ponto de intimidá-los com sua de- representa uma vida mais aberta ao risco e aos
senvoltura e iniciativa. Eles, desconfiados, tentam impulsos, vida mais selvagem, como a do leopardo
guardar distância da ameaça em potencial que elas que aproxima a dupla de Levada da Breca. Cabe
representam, embora sem muito sucesso – afinal, observar o paralelismo entre mulher e animal que
como resistir ao apelo de mulheres tão belas? Em se estabelece no filme11: ambos são a potência de
casos extremos, as mulheres são as responsáveis alteridade e risco que modificam a rotina monótona
pelo declínio moral dos homens, como acontece e ordenada da vida de David. Susan perturba, mas
com Dude (Dean Martin) em Onde Começa o Inferno, ao mesmo tempo é quem coloca o mundo fossili-
que se torna alcoólatra após uma desilusão amo- zado do cientista, novamente, em movimento. No 10. HAWKS apud
McBRIDE, Joseph.
rosa, história que se repete com Harrah (Robert Éden de Adão e Eva..., onde, a propósito, os dinos- Hawks par Hawks.
Mitchum) em El Dorado (El Dorado, 1966). Quem vem sauros ainda se movem, também se verifica esse Paris: Ramsay,
ao socorro desses homens torturados pelo amor paralelismo entre mulher e animal - lembremos 1987, p.136.
de uma mulher é o amigo herói que lhes serve de da cena em que Eva e o macaco exercem a mesma
exemplo e lhes recupera a moral (em ambos os função “despertador” de Adão, ou da sobreposição
filmes, o papel cabe a John Wayne). É somente da serpente e da vizinha na montagem que vai do 11. O título do filme
entre os homens que o mundo reencontra certa paraíso aos tempos modernos. em Portugal – As
ordem e segurança. Duas Feras – é uma
Outro casal que depende do caos para permane- ótima tradução
desse paralelismo
Com uma mulher, o final até pode ser feliz, mas é cer junto é Hildy (Rosalind Russel) e Walter (Cary entre Susan e o
caótico. Susan e David terminam juntos em Levada Grant), em Jejum de Amor. Hildy, jornalista ta- leopardo Baby.

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lentosa, bem-sucedida, astuta e corajosa, é tão o ex-marido definitivamente, antes de retornar
competente que é considerada por Walter, seu aos seus braços. Entretanto, do mesmo modo
ex-marido e patrão, um perfeito “newspaper man” que seria incorreto resumir Lorelei ao retrato de
(homem de jornal). Supostamente cansada da loira burra e interesseira, é impossível ignorar a
vida de jornalista, ela pede a Walter a demissão coragem e a inteligência de Hildy, que garantem
e o divórcio, para recomeçar a vida ao lado de ótimos momentos na trama. Obstinada e valente,
um novo parceiro, o pacato corretor de seguros ela possui qualidades típicas dos bons heróis ha-
Bruce (Ralph Bellamy): “quero ser uma mulher”, wksianos, sendo, de fato, um perfeito “newspaper
justifica-se. Ser uma mulher, no caso, é deixar de man”. Trata-se de uma recorrência na obra de
se meter nas aventuras e nos perigos do mundo Hawks - essas mulheres que assumem posições
da reportagem para cuidar da casa, do marido e convencionalmente destinadas aos homens. Pen-
dos filhos, isolando-se num universo particular e semos na tenente Catherine (Ann Sheridan) em A
sossegado, bem longe da vida pública. Entre os Noiva era Ele, considerada pela comandante – outra
apelos da vida profissional e pessoal, Hildy se vê mulher, vale notar – como o “homem ideal” para
num impasse permanente. Ela é a contradição Henri (Cary Grant). Tanto em I Was a Male quanto
em pessoa, perdida entre Bruce, que quer levá- em Jejum de Amor, ótimas gags derivam de se-
-la para o interior, e Walter, que a quer de volta melhante jogo: é Catherine quem dirige a moto e
em casa e no trabalho. Na cena em que os três quem se destaca como oficial do exército; é Hildy
almoçam juntos, ela permanece imobilizada entre quem acende o cigarro de Walter e consegue a
um e outro. Sua liberdade de ação é apenas ilusó- notícia para o jornal.
ria. Para Durafour, Hildy é uma mulher impedida
(empêchée): Menos cômica, mas igualmente pertinente ao ar-
gumento, há Cesca, personagem de Ann Dvorak
Mesmo quando ela toma uma decisão, ela ape- em Scarface – A Vergonha de Uma Nação (Scarface,
nas reencerra sobre si os grilhões da lei patriar- 1932) que, após ter o marido Guino assassinado
cal: ela quer deixar Walter, mas para melhor pelo próprio irmão Tony, torna-se ela mesma uma
recair no modelo misógino da dona de casa; gângster, assumindo o lugar do marido morto ao
ela quer deixar Bruce, mas para melhor recair tornar-se braço direito do irmão no cerco final.
sob a lei falocrática de Walter.12 Em El Dorado será a vez de Joey (Michele Carey)
pegar em armas, em defesa da honra do irmão
Walter sabe desde o começo como a história vai Luke (Johnny Crawford), recém-assassinado por
acabar, pois é ele quem permanece no controle Cole Thornton (John Wayne). Nesse filme, o pe-
da situação durante toda a trama. Outra vez o tí- núltimo da carreira de Hawks, a inversão é de
tulo já indica quem é o polo ativo dessa relação, mão dupla, o que já havia acontecido em filmes
12. DURAFOUR,
Jean-Michel. uma vez que o pronome possessivo do título, “his” anteriores: personagens femininos recebem uma
Hawks, cineaste du (dele), deixa claro em função de quem a garota caracterização masculina e vice-versa. Enquanto
retrait. Villeneuve (“girl”) é colocada em cena. E de fato, após pas- Joey é uma mulher masculinizada, pronta para
d’Asq: Presses sar todo o filme decidida a se libertar de Walter e enfrentar um tiroteio, Mississipi é o homem frágil
Universitaire du
Septentrion, 2007, do jornalismo, Hildy finalmente não resiste e se que mal consegue manejar uma arma de fogo, um
p.295 (tradução derrama em prantos pelo medo de ter perdido homem que precisa de alguém mais forte que lhe
nossa).

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14. DURAFOUR,
ofereça proteção, papel que cabe a Joey. A dupla mulher independente, para dizer numa palavra, Jean-Michel.
acaba por formar um “par ideal” às avessas, em é o homem.14 Hawks, cineaste du
retrait. Villeneuve
que persistem os papéis masculinos e femininos, d’Asq: Presses
só que trocados. O autor nota que até mesmo as atrizes escolhi- Universitaire du
das pelo diretor apresentam certas “proprieda- Septentrion, 2007,
As divertidas sequências de Cary Grant traves- des” masculinas: “a voz de barítono de Bacall, os p.294 (tradução
nossa).
tido de mulher em A Noiva Era Ele e Levada da ombros de Jane Russel, o estilo de vestir de He-
Breca são também evidências dessas inversões, pburn”15. Dessa masculinização das personagens,
ainda que nesses casos trate-se mais de troca contudo, resulta uma ambivalência já apontada
de figurino que de papéis propriamente ditos. O no caso de Hildy: ainda que as mulheres adotem
homem se torna feminino aparentemente – por gestos, atitudes e comportamentos convencional-
atitudes caricatas, por certo modo de vestir – e mente reservados aos homens, elas jamais abrem
isso faz dele, via de regra, um alvo de ridicula- mão de sua feminilidade. Hildy ainda chora por
rização e riso. Em contraste, as mulheres são amor, Catherine precisa encontrar o batom antes
13. JOHNSTON.
levadas mais a sério quando bem sucedidas em de seguir a missão. Women’s cinema
adotar um comportamento masculino e lançam as counter-cinema.
mão disso como estratégia para conquistar seu Para Durafour, é preciso assumir essa visão In: KAPLAN, E.
próprio espaço na trama. ambivalente ao analisar a mulher em Hawks. É Ann. Feminism and
film. New York:
isso que permite que um filme como Os Homens Oxford University
A inserção das mulheres no universo marcada- Preferem as Loiras seja visto como feminista por Press, 2000, p.27.
mente masculino dos filmes de Hawks se dá, gros- uns e machista por outros: a mulher permanece
so modo, justamente por essa inversão que confere vinculada ao consumo e ao prazer masculino ao
a elas o poder de comando antes reservado aos mesmo tempo que trata o homem como objeto,
homens. Seja pelo modo como tomam a iniciativa mero meio para alcançar os fins que deseja. Im-
na conquista amorosa (Bringing Up Baby, Gentle- possível resolver a questão, tomar partido, sem
man Prefer Blondes, Rio Bravo), seja pela forma reduzir a dinamicidade do mundo hawksiano: “se
com que tomam parte da ação, enfrentando os o homem é um profissional, ele não pode con-
perigos (El Dorado, Hatari!, Scarface, I Was a Male tinuar assim, se a mulher é independente, ela
War Bride), tudo leva a crer que, “para Hawks, há não pode continuar assim, e inversamente [...]”16
apenas o homem e o não-homem: para ser aceita Como argumento central, o autor designa Hawks
no universo masculino, a mulher deve se tornar como cinéaste du retrait, continuamente a retirar
um homem”13. Durafour desenvolve o argumento: o homem e o mundo de seus lugares fixos. Em
função disso, “posicionar a mulher na afirmação
A independência da mulher hawksiana não é ou no ostracismo-vitimização é, em cada um dos
uma genuína indepedência em si e para si, ela casos, "interromper o mundo hawksiano"17. 15. DYER apud
existe para garantir a do homem. Burdock fala DURAFOUR, Jean-
de uma “independência compulsória”. A mulher Sem necessariamente discordar de Durafour, é Michel. Ibid., p.294
independente é aquela que renuncia aos valores preciso sublinhar que, se esse mundo hawksiano (tradução nossa).
16. DURAFOUR,
domésticos – família, lar, crianças – que amea- comporta inversões e deslocamentos, isto não Jean-Michel. Ibid.,
çam os homens, que têm mais o que fazer [...] A pressupõe, contudo, o estremecimento dos lugares p.301 (tradução
nossa).

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preestabelecidos no que se refere ao tratamento estupidez, sabe muito bem quem é, de onde vem
destinado aos gêneros. O diretor pode até “femi- e o que quer. Esse seria o trunfo que as mulheres
nizar” seus heróis ao travesti-los de mulher para teriam sobre os homens: elas vestem melhor as
provocar riso, ou masculinizar suas heroínas para máscaras sociais (seja a de mulher-profissional,
agradar ao público e fugir do lugar comum, mas a de mulher-vítima ou a de mulher-objeto), e as-
não há, em nenhum de seus filmes, um genuíno de- sim conseguem o que querem (uma carreira, um
sarranjo dos lugares tradicionalmente destinados amor, um diamante) sem perder contato com quem
a homens e mulheres. As personagens femininas “realmente são”.
e masculinas, quer sejam interpretadas por atores
ou por atrizes, seguem à risca os estereótipos e Mas o argumento de Durafour acaba por resvalar
padrões sociais e simbólicos esperados de cada no senso comum de que as mulheres são mais
gênero. capazes de dissimulação, têm mais afinidade com
as máscaras, maior atração pelas aparências. O
Alguns argumentariam que, ao menos, Feathers, autor não chega a se equivocar, pois os filmes
Slim, Lorelei e Dorothy são mulheres liberadas conduzem, de fato, a esse tipo de interpretação,
sexualmente, seguras de si e de seus corpos, que como vimos em diversos exemplos. Num mundo
têm outras preocupações em mente para além “em retirada” é mesmo difícil avançar em direção a
dos cuidados da casa e da maternidade – temas, outros mundos possíveis, em que as trocas entre
aliás, raros, quando não ausentes na filmografia homens e mulheres não sejam apenas de figurino
do diretor, cujas personagens femininas são, via ou de hábitos, mas aconteçam por afetação mútua
de regra, solteiras (que eventualmente se casam e entrelaçamentos mais híbridos e complexos. O
na trama) e sem filhos. Mas seria preciso pergun- savoir femme, afinal, envolve mais do que a mera
tar: é apenas agindo como um homem que uma habilidade de dissimular e vestir máscaras. Ser
mulher pode se libertar? Ou, pergunta ainda mais e parecer não são, necessariamente, tão distin-
complexa: o que, afinal, significa agir como homem guíveis assim. As ambiguidades e ambivalências
ou como mulher? Ao que parece, Hawks prefere podem deixar de ser apenas questão de aparên-
evitar tais questões. Ele trabalha a partir do que se cia, para ser, finalmente, assumidas como parte
18. A autora conhece e espera de cada gênero e, se por vezes constitutiva de cada um de nós. Esse, sim, poderia
agradece a Mateus os embaralha, trata-se de simples permuta num ser o “melhor dos mundos”: longe, bem longe, do
Araújo por ter jogo de cartas marcadas. Jardim do Éden.
generosamente
sugerido e cedido
diversas fontes Nesse jogo, segundo Durafour, a mulher leva van-
bibliográficas sobre tagem por ser mais hábil em simular hábitos e | Carla Maia18|
Howard Hawks e, códigos arbitrários e distinguir “a aparência e o
especialmente,
a Luís Felipe ser” – um saber de mulher (savoir femme) que os
Duarte, tanto homens, com seu típico pragmatismo, sua insis-
pelas conversas, tência em ver as coisas “como elas são”, ainda
leituras e revisões teriam que aprender. Para melhor compreender
cuidadosas do texto
quanto pela ajuda o argumento, basta pensar novamente em Lo-
na obtenção dos relei, que, apesar da máscara da sedução e da
filmes para análise.

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Referências bibliográficas

DURAFOUR, Jean-Michel. Hawks, cineaste du re-


trait. Villeneuve d’Asq: Presses Universitaire du
Septentrion, 2007.

JOHNSTON, Claire. Women’s cinema as counter-


-cinema. In: KAPLAN, E. Ann. Feminism and film.
New York: Oxfor University Press, 2000

McBRIDE, Joseph. Hawks par Hawks. Paris: Ra-


msay, 1987.

MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo.


In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema.
Rio de Janeiro: Graal, 1983.

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ELAS POR ELE: A REPRESENTAÇÃO DO
FEMININO NO CINEMA DE HOWARD HAWKS
Num certo momento de Hatari! (Hatari!, 1962), a ta. Mas, quando o equilíbrio existia, ou mesmo
personagem de Elsa Martinelli pergunta a alguém quando a mulher surgia como desestabilizadora,
por que motivo Sean (John Wayne) parece não de diversas maneiras Hawks tratou a situação
gostar de mulheres, no que o interlocutor respon- avidamente, apesar de a base ser quase sempre
de: “Porque elas são um transtorno”. Em 1964, o a que ele mesmo definiu em entrevista a Peter
crítico e cineasta Rogério Sganzerla escreveu num Bogdanovich:
artigo ao jornal O Estado de S. Paulo: “Em Hawks, a
mulher é fonte de todas as catástrofes”. Ao longo Em geral, começa com um homem esbarrando
de 44 anos de carreira e 43 longas-metragens numa mulher muito atraente: isso faz com que
como diretor, Howard Hawks fez das mulheres, ele fique um pouco receoso, reaja de modo um
por inúmeras vezes, as grandes catalisadoras de pouco desagradável com ela e comece a brigar
seus filmes, as figuras essenciais para que a ação em autodefesa – e termine por se apaixonar.
transcorresse ou mesmo mudasse de rumo. Não
raro, os enredos pareciam se desviar do centro Hawks, em sua objetividade arquetípica, talvez
para atentar ao comportamento feminino e às rea- tenha simplificado, nessa declaração, a própria
ções dos homens a posturas que eles difícilmente maneira de abordar a mulher em seus filmes.
seriam capazes de dominar. No trecho acima citado, ele descreve a superfí-
cie das relações a partir da situação mais casual
Que são essas garotas retratadas por Hawks? Mais possível, definida por Sganzerla, dentro da obra do
que isso: de que maneira o cineasta, cuja princi- realizador americano, como um chavão (“recurso
pal característica formal sempre foi a de filmar de conservação de um universo cinematográfico
com a câmera “à altura dos olhos” e ter fortes ameaçado” e que jamais deveria ser confundido
personagens masculinos como protagonistas, com o lugar-comum). Homens trombando com
inseriu mulheres tão marcantes dentro de suas mulheres é uma situação excessivamente repetida
narrativas? Há diferenças evidentes, muitas delas por Hawks, assim como a invariável atração deles
definidas pelas épocas de determinados filmes por elas, partindo da negação e rejeição até chegar
ou pelo próprio interesse do cineasta em fazer aos “inevitáveis atritos entre herói e heroína que
delas alguém importante na trama. Nem todos culminam, é claro!, com a união” (Sganzerla, de
os filmes de Hawks tiveram mulheres no centro novo). Essas variantes estão no campo da evidên-
da narrativa, assim como – salvo engano – apenas cia, tão caro ao realizador.
um único título do diretor (Os Homens Preferem as
Loiras – Gentlemen Prefer Blondes, em 1953) não Só que Hawks foi muito mais complexo nessa abor-
contou com um homem também de protagonis- dagem inicialmente banal e, por isto, a relação

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homem-mulher é algo tão forte nos filmes que fez, nições da professora e pesquisadora Elódia Xavier
sendo percebida de maneira especial por quem em seu Que Corpo É Esse?, Cesca seria um “corpo
se debruça sobre a obra dele. Impetuosas, auto- disciplinado” (definido pela submissão a um poder
ritárias, sensíveis, provocadoras, manipuladoras, opressivo) que tenta se transformar num “corpo
apaixonadas, decididas, atrapalhadas, insistentes, liberado” (aquele que é sujeito de sua própria histó-
batalhadoras, parceiras: o diretor misturou pra- ria). O processo, porém, é trágico e leva ambos os
ticamente todo tipo de personalidade em suas irmãos à morte. A atração incontrolável pela figura
mulheres. Não à toa, atrizes como Carole Lom- feminina, em Scarface, é a grande motivadora da
bard, Angie Dickinson, Lauren Bacall e Katharine derrocada do personagem central.
Hepburn tiveram alguns de seus momentos mais
brilhantes na carreira ao trabalharem com Hawks. Em Suprema Conquista (Twentieth Century, 1934), a
mulher consegue dar o salto que Cesca não con-
O primeiro título assumido por Hawks como re- seguiu em Scarface. Após três anos sob o jugo
almente seu (“eu sentia que estava em terreno de seu diretor e concubino, a atriz de teatro Lily
familiar”, como disse a Bogdanovich) foi Uma Ga- (Carole Lombard) grita por independência e vai
rota em Cada Porto (A Girl in Every Port), lançado seguir, sozinha, carreira em Hollywood – para de-
em 1928. Para além de retratar, com o costumeiro sespero de Oscar (John Barrymore). Na chave da
encanto, a amizade entre dois homens, o filme comédia maluca (o longa é considerado a primeira
traz Louise Brooks como a mulher que se inter- screwball comedy de Hawks), o filme tem em Lily
põe entre dois marinheiros. Ao mentir a um e se o motivo do enlouquecimento crescente de Oscar.
insinuar ao outro, ela quase causa o rompimento Ela se nega a caminhar aos mandos e desmandos
do companheirismo da dupla. Ainda no cinema dele, passando a ser quase um “corpo liberado”.
silencioso, Hawks trabalha basicamente com a Oscar precisa, portanto, se adequar aos desejos
força visual de Brooks. Ela surge em cena como dela – ou então manipulá-la, como faz ao simu-
precursora das femme fatales que iriam povoar lar a própria morte para que a moça assine um
o cinema policial americano nos anos seguintes. contrato. Apesar da abordagem mais libertária, a
Aqui, a moça acaba inadvertidamente por reforçar mulher, em Suprema Conquista, ainda é incapaz de
o vínculo entre os dois protagonistas, saindo como se liberar completamente do homem, ou mesmo
a grande derrotada da disputa apresentada. de fazer suas escolhas e ser bem-sucedida sem,
para tanto, passar pelas vontades dele, por mais
Quatro anos depois, Scarface – A Vergonha de uma que lute contra isso.
Nação (Scarface, 1932) apresentou Cesca (Ann Dvo-
rak), irmã do mafioso em ascensão, Tony Malo- A representação do feminino na obra de Hawks
ne (Paul Muni), e única pessoa a desequilibrar o dá seu primeiro grande salto em Levada da Bre-
personagem. Nutrindo um amor incestuoso por ca (Bringing Up Baby, 1938). A deixa está na boca
Cesca, Tony a mantém sob domínio o quanto pode, de um psiquiatra, logo nos primeiros minutos de
o que não a impede de se envolver com um dos filme: “O impulso amoroso masculino pode se
principais comparsas do irmão. A garota quer se manifestar no conflito”. De fato, o cientista David
desvincular de Malone e não mais obedecer-lhe (Cary Grant) imediatamente se estranha com a
nem se submeter aos caprichos dele. Pelas defi- maluquinha Susan (Katharine Hepburn), e assim

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será em toda a duração do filme. Obstinada e ob- perigo – no ar, na terra, no mar, na selva, nas pistas
sessiva, Susan se convence de que ama David e de corrida, no Oeste selvagem –, mas não admite
faz absolutamente qualquer coisa para estar perto se entregar novamente aos encantos de quem pode
dele ou mantê-lo próximo a ela. O homem, nesse lhe desajustar o rumo. “(O homem em Hawks) tenta
caso, passa a basicamente reagir à astúcia dela, fugir ao amor, luta contra a mulher, porque tem
reajustando-se às investidas e reconfigurando a consciência da dominação e teme ser cativo. […] A
si mesmo diante das situações que lhe são im- mulher é o elemento de desacordo, seguindo-se
postas. Por mais que, ao fim, David assuma ter o desprezo por ela”, escreveu Sganzerla.
se divertido naquele dia insano ao lado de Susan,
ele não tem exatamente motivos de alegria pelo Em Paraíso Infernal, Bonnie insiste em se fazer
que lhe acontece: ele perde um importante objeto notar por Geoff e, a partir de um dado momento,
de trabalho, perde o próprio casamento, perde um aceita a vida arriscada dele como piloto em troca
investimento no museu onde atua, perde os óculos, de seu afeto. Mas os protagonistas de Hawks são,
é preso, é abandonado pela noiva. Apesar de ser em geral, durões e não se entregam facilmente.
uma comédia no sentido mais evidente, Levada da Até o fim, Geoff dribla as investidas de Bonnie,
Breca também funciona como uma grande tragé- até admitir indiretamente (com uma moeda falsa)
dia – ou a tal catástrofe simbolizada pela mulher que a ama e deseja estar ao lado dela. A insis-
sobre a qual falava Rogério Sganzerla. “O herói tência feminina em enfrentar o medo masculino
hawksiano tem a mulher e do momento em que nos filmes de Hawks se reafirma muitas vezes
se enamora está perdido”, escreveu ele. na permanência delas em ambientes em que não
são necessariamente bem-vindas ou nos quais
No desfecho, porém, David se rende aos encan- não deveriam ficar por mais tempo que o neces-
tos de Susan e assume amá-la, numa última gag sário. “Você não deveria ter ido embora ontem?”;
destrutiva cujo saldo é a destruição do esqueleto “Sim, deveria. Mas resolvi ficar”: eis outro diálogo
de brontossauro cuidadosamente montado pelo bastante comum entre homens e mulheres nos
cientista durante quatro anos. Em Levada da Breca, trabalhos de Hawks, delineando a continuidade
para estar com a mulher que ama, ao homem de relações arranhadas por traumas deles e con-
é necessário rever as próprias convicções e dar vicções delas.
outro rumo a si mesmo. Talvez por isso haja tanta
precaução e desconfiança por parte do piloto Geoff Jejum de Amor (His Girl Friday, 1940) traz uma per-
(Cary Grant) ao conhecer a ex-corista Bonnie (Jean sonagem feminina desvinculada sentimentalmente
Arthur), em Paraíso Infernal (Only Angels Have Win- do protagonista masculino, muito porque ela já foi
gs, 1939). “Alguém te deu uma surra”, murmura casada com ele. Hildy (Rosalind Russell) é a jorna-
a moça, ao perceber que Geoff desconfia de cada lista prestes a se casar com um vendedor de se-
ato dela. A pergunta “que mulher causou isso a guros e ir morar numa pequena cidade do interior.
você?” passa a ser recorrente nos filmes de Hawks, Por motivos que só mesmo uma comédia maluca
sempre dirigida a algum homem traumatizado por consegue sustentar, ela vai pessoalmente dar a
relações do passado. A amargura e a desilusão notícia ao ex-marido, o também jornalista Walter
indispõem o herói hawksiano a se aventurar num (Cary Grant), e se vê engolida por uma sequência
outro relacionamento. Ele suporta todo tipo de de acontecimentos que a levam diretamente de

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volta ao campo de batalha da produção de notícias. motivação parece ser a falta de dinheiro) e por
Hildy não desestabiliza Walter mais do que ele se colocar efetivamente de igual para igual com
mesmo faz com ela, colocando pela primeira vez Harry (Humphrey Bogart) desde a entrada em cena,
em cena na obra do diretor, com tamanho impacto, pedindo fogo para acender o cigarro. Marie se
a equivalência entre os gêneros, corroborando a recusa a falar da vida pregressa, irrita-se ao ser
declaração de Jean-Luc Godard na conferência previamente julgada por seus atos, tem artifícios
sobre campo e contracampo registrada em Nossa diversos para conseguir o que quer e é admirada
Música (Notre Musique, 2004): “Para Hawks, não por Harry por levar um tapa no rosto sem ficar
há diferença entre o homem e a mulher”. abalada. Pelas definições de Elódia Xavier, Marie
é apresentada como um “corpo violento”, ou seja,
Apesar do tufão representado por Hildy em Je- aquele que rompe com a vitimização da mulher
jum de Amor, a personagem ainda é relacionada em prol de um corpo “que impregna a linguagem
a signos relativos ao envolvimento masculino-fe- e luta por dignidade, em contraposição à imagem
minino: ela vai se casar pela segunda vez, tem feminina de delicadeza e passividade”. Harry mal
um ex-marido para quem trabalha, sonha em ter consegue acompanhar as constantes surpresas
uma casa e – seguindo o chavão apregoado por de Marie, encanta-se com a postura e a voz dela
Sganzerla – termina o filme planejando novamente e fica desconcertado com suas insinuações se-
se envolver com Walter. A verdadeira revolução xuais. Ele se vê, possivelmente pela primeira vez,
da mulher na filmografia de Hawks – pouco de- destituído da autoridade plena diante da figura
pois de uma divertida, porém não tão modelar, feminina, percebendo em Marie uma espécie de
abordagem em Bola de Fogo (Ball of Fire, 1941), duplo por quem se apaixona – e vice-versa. Em
com Barbara Stanwyck – viria em 1944, no longa Uma Aventura na Martinica, a máxima godardiana
Uma Aventura na Martinica (To Have and Have Not). sobre a equivalência entre os gêneros na obra de
Conforme o cineasta contou a Peter Bogdanovich, Hawks encontra seu maior exemplo.
Marie (vivida por Lauren Bacall) seria introduzida
no enredo ao ter a bolsa roubada. Hawks achou Marie vai ser base da maioria das mulheres pos-
pouco interessante e pediu que um dos roteiristas, teriormente mostradas em alguns dos principais
Jules Furthman (o outro era William Faulkner), filmes de Hawks, mesmo quando há a diluição
reescrevesse a cena. Furthman inverteu e colocou do papel delas como personagens desestabili-
Marie batendo a carteira de um rico qualquer. zadoras – diluição percebida, em graus variados,
“Uma pobre moça cuja bolsa é roubada numa terra em À Beira do Abismo (1946), no qual as mulheres
estranha é bastante piegas, mas uma garota que estão próximas da caricatura, funcionando mais
apanha uma carteira é bastante intrigante”, disse como femme fatales cuja função maior parece ser
o diretor. a de atrapalhar as investigações do detetive vivido
por Humphrey Bogart; em O Inventor da Mocidade
Esse foi apenas o começo da abordagem inova- (Monkey Business, 1952), tendo Ginger Rogers e
dora de Marie em Uma Aventura na Martinica. De Marilyn Monroe mais como complementos das
fato, ela se diferencia das mulheres anteriormente peripécias científicas de Cary Grant, verdadeiro
mostradas por Hawks por ter pouquíssimas re- astro do show; e em Os Homens Preferem as Loiras
ferências de seu passado (ela surge de repente, (Gentlemen Prefer Blondes, 1953), no qual Monroe
mal diz de onde veio e para onde vai e sua única e Jane Russell dominam a cena, servindo para

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que a fantasia lúdica do filme seja a “pantomima de mulher que você pensa que eu sou”. Conforme o
sobre sexo” declarada por Hawks. crítico Olivier-René Veillon, “a diferença dos sexos
e a diferença social (em determinados filmes de
O faroeste Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, 1959) Hawks) conduzem o jogo amoroso ao sabor de
tem o durão xerife Chance (John Wayne) imedia- suas contradições, revelando-as uma à outra e
tamente reagindo a Feathers (Angie Dickinson) já uma pela outra”.
na primeira vez em que se veem. “O que você está
fazendo aqui?” são as nada simpáticas palavras Comportamento similar tem Dallas (Elsa Martinel-
que o personagem dirige à moça por quem, evi- li), a fotógrafa enviada para registrar as caçadas de
dentemente desde este momento inicial, ele nutre animais na África pela equipe comandada por Sean
forte atração. Ela não se oprime: recosta de lado (John Wayne) em Hatari! (Hatari!, 1962). Fascinada
na porta do quarto e, num sorriso insinuante, diz por ele, a moça não sabe qual a forma adequada
estar procurando uma toalha para tomar banho. de se comportar diante de um homem que espera
Feathers é procurada pela Justiça por roubar no dela outra maneira de agir femininamente – jus-
jogo de cartas. Foi dançarina e logo consegue em- tamente porque tem “as mãos arranhadas”, como
prego como atendente do bar local. Torna-se peça explica um personagem em relação aos traumas
fundamental no conflito armado pelo filme no mo- amorosos do passado de Sean. Mas, nesse filme,
mento em que atira um vaso de flores pela janela Hawks faz sua “revolução masculina”: cansada da
para ajudar a salvar a vida de Chance. Melancólica indiferença e insensibilidade de Sean e sem dispo-
por ter provocado a morte de três pessoas nessa sição para se adequar aos caprichos e à obsessão
ação, embebeda-se. dele pelo ofício (como faz Bonnie em relação a
Geoff em Paraíso Infernal), Dallas vai embora.
Feathers é interesse amoroso de Chance, e por ele
também se vê atraída, mas Hawks nunca reduz a O caçador percebe, então, o quanto não pode viver
personagem somente a isso. A postura petulante e sem a moça e mobiliza toda a equipe (além de três
provocadora dialoga diretamente com o estilo livre filhotes de elefantes) para impedir que ela em-
e solto da Marie de Uma Aventura na Martinica, o barque. Nesse momento, Hatari! faz da busca por
que conduz à desconfiança do xerife – menos por Dallas uma caçada tão ou mais eletrizante do que
não acreditar na moça e muito mais porque ele todas as tentativas de capturar animais selvagens
simplesmente quer se deitar com ela, mas não apresentadas nas duas horas anteriores de filme.
admite personalidade tão ousada. “Vou deixar a Hawks iguala a mulher ao animal indomável que
porta do quarto aberta”, diz a garota, minutos antes ela passou a representar em seus longas, e em
de o xerife ir dormir e para óbvia inquietação dele. Hatari! a fêmea é assumidamente desejada e fer-
Feathers está bastante acima do imaginário de vorosamente perseguida pelo macho, como nunca
Chance em torno do que seja uma mulher naquele antes (nem depois) dentro da obra do diretor. É o
ambiente inóspito do Velho Oeste americano. A ponto de culminância da mulher hawksiana e que
certa altura, ela pergunta como poderia resolver os teve a guinada maior a partir de Uma Aventura na
próprios problemas, no que ele responde: “Pare de Martinica, quando passou, em palavras de Elódia
jogar cartas e de usar plumas”. Resignada, porém Xavier sobre o “corpo liberado”, a “conduzir suas
convicta, ela retruca: “Eu faria isso, se fosse o tipo vidas conforme valores redescobertos através de

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um processo de autoconhecimento e livrou-se | Marcelo Miranda |
dos papéis predeterminados, da disciplina, dos
esquemas coercitivos e repressores”.

Com o desfecho de Hatari!, Hawks pôde até mesmo


desenvolver uma mulher sem envolvimento dire-
to com o protagonista. Em seu filme derradeiro,
Rio Lobo (Rio Lobo, 1970), o cineasta faz de Shasta
(Jennifer O’Neill) “quase desde o primeiro instante
um dos rapazes”, segundo o crítico Filipe Furta-
do. Ela atira sem remorso nos bandidos, cavalga,
reage a ataques, integra-se ao grupo masculino
e não se torna interesse amoroso puro e simples
de ninguém, apenas se envolvendo superficial-
mente com um dos mocinhos (e tendo relação
paternalista com um envelhecido John Wayne).
Não que Hawks faça essa mulher ter “atitudes
de homens”, porque isso seria redutor e sexista.
“As mulheres, não obstante sedutoras, por mais
que o herói se afeiçoe a elas, devem juntar-se a
ele na luta”, escreveu Jacques Rivette nos Cahiers
du Cinéma em 1953. O que o cineasta faz, de fato,
é diminuir as diferenças entre os gêneros, tornar
naturais as semelhanças (sem, para isso, retirar
as individualidades inerentes a eles e a elas) e
aproximar-se ainda mais do que dizia Godard em
Nossa Música sobre a equivalência possível entre
os sexos.

Sintomaticamente, o tiro final de Rio Lobo, aquele


disparo definidor que mata o vilão, é dado por uma
mulher (interpretada por Sherry Lansing). Como
observou Filipe Furtado, esse acabou por ser o
último grande ato do cinema de Hawks. Um fecho
ironicamente condizente com um diretor que con-
seguiu, como talvez nenhum outro na filmografia
americana, retratar com coerência, na evolução
de sua obra, as complexas relações entre homens
e mulheres e de que maneira isso pode ser feito
dentro da linguagem do cinema.

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CARY GRANT:
O PRIMEIRO HITCHCOCKO-HAWKSIANO
No final dos anos 1950, os críticos dos Cahiers du O teórico e diretor Luc Moullet chegou a chamar
Cinéma se gabavam de terem sido hitchcocko- Grant de autor, pela capacidade que ele tinha de
-hawksianos, por terem defendido e elevado ao imprimir uma progressão formal e temática em
estatuto de autor dois cineastas populares nos seus papéis, mais do que (Jacques) Feyder ou
Estados Unidos (Hitchcock e Hawks). A defesa dos (Francis Ford) Coppola1. Na obra intitulada, sin-
diretores que eram mais do que “competentes ar- tomaticamente, Política dos Atores, Moullet realiza
tesãos” da indústria do filme se tornou a ponta de um inventário corporal das “figuras essenciais”
lança teórica do que seria, mais tarde, a Nouvelle usadas por Grant para interpretar seus papéis
Vague e mudaria os rumos do cinema. No entanto, que se mantêm comuns superando até a ideia de
o primeiro hitchcocko-hawksiano não foi Godard, mise en scène e de direção de atores dos cineastas
nem Truffaut e nenhum outro crítico-cineasta, e, com quem colaborou. O zoomorfismo, o aspecto
sim, um ator, Cary Grant. de canguru, o corpo-oblíquo e o recuo do olhar
seriam assim algumas dessas figuras formais
Grant foi um perito em escolher diretores. Da constantes na obra de Grant, pouco importando a
era de ouro de Hollywood, ele trabalhou com os psicologia do personagem e suas características
grandes (além de Hitchcock e Hawks, Leo Mc- físicas e emocionais. É nesses momentos que se
Carey, George Cukor, George Stevens, Josef von reconhece um autor, na repetição dessas orien-
Sternberg, Michael Curtiz, Stanley Donen). Difícil tações corporais plástico-espaciais, da mesma
pensar numa lista de parcerias mais abrangente e, maneira como se reconhece Orson Welles pelos 1. MOULLET,
ao mesmo tempo, seletiva (a filmografia de Grant enquadramentos oblíquos expressivos repetidos Luc. La politique
inclui também nomes de diretores duvidosos, que de filme a filme; Godard, pelo conflito imagem e des acteurs.
não chegam, no entanto, a comprometê-la). banda sonora; ou Antonioni, pelo esvaziamento Paris:Editions de
l’Étoile/Cahiers du
dos espaços. Grant é um dos grandes “atores- Cinéma, 1993, p. 87.
Mas foi com Hitchcock e Hawks que ele estabele- -autores”2 do cinema, na linhagem de outros de
ceu parcerias criativas mais ousadas e duradou- “persona” inapagável e difícilmente manipulável
ras (quatro filmes com o primeiro e cinco com o pelos diretores, como John Wayne, James Cagney,
segundo). Ambos utilizaram a “persona” do ator Catherine Deneuve e Clint Eastwood, atores mais
2. A teoria do ator-
de maneiras radicalmente diferentes, um apos- fortes do que seus personagens e, por vezes, até autor foi criada por
tando no homem elegante, sedutor e vítima em do que seus diretores e suas ideias de cinema e Patrick McGilligan,
potencial (Hitchcock), e o outro, no cômico, no direção. em: Cagney, the
excesso gestual e na ambiguidade sexual (Hawks). actor as auteur.
South Brunswick,
Foram eles os diretores que moldaram a imagem Nos filmes de Hawks, o diretor brinca sempre New York: A.S
de Grant que ficou para a história. com a ambiguidade sexual do astro. Nos meios Barnes; London:
Tantivity, 1975.

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iniciados de Hollywood, Grant foi um dos mais por Hawks, mas de uma maneira geral – é comum
famosos bissexuais. Nas biografias do astro, pu- Grant partir para a violência física com suas par-
blicadas com mais detalhes depois que o ator se ceiras como em Ladrão de Casaca (To Catch a Thief,
afastou das telas, como a de Charles Highman Hitchcock, 1955). A guerra entre os sexos é uma
e Roy Moseley, Cary Grant, the lonely heart (1990), constante das comédias românticas, sobretudo
o fato de ele ter tido diversos romances homos- as dos anos 1930 e 40, identificadas por Stanley
sexuais tornou-se notório. Mesmo assim, Grant Cavell como “comédias do recasamento”3. Nesses
não temia papéis em que sua masculinidade se filmes, eram comuns traições, brigas e subter-
mostrava ameaçada, ao contrário de Rock Hudson, fúgios cômicos que pretendiam juntar-separar
que tinha a intimidade preservada como segredo os cônjuges, tudo visando a burlar o draconiano
de estado pelos estúdios (o ator foi até obrigado código Hays que proibia, entre outras coisas, sexo
a se casar com uma secretária de Henry Wilson, entre pessoas que não fossem legalmente casadas.
o “homem que inventou Rock Hudson”, segundo As brigas levavam à extinção do casamento para
uma biografia do produtor). que a comédia do reencontro – ou dos desencon-
tros – pudesse acontecer. Cary Grant ao lado de
Em A Noiva era Ele (I Was a Male War Bride, 1949), Katharine Hepburn são as estrelas incondicionais
por exemplo, o tema é o travestismo, que Grant das comédias do recasamento e Hawks, um dos
adota para poder acompanhar a esposa, uma oficial seus grandes diretores.
da marinha americana (Anne Sheridan). Não que
se vestir de mulher fosse motivo suficiente para Em Levada da Breca (Bringing Up Baby, 1938), He-
se desconfiar da masculinidade de algum astro pburn é a irresistível desmiolada que tumultua a
(Charles Chaplin, Jack Lemmon, Dustin Hoffman, vida do certinho Grant. Ele foge dela como o diabo
Robin Williams e outros atores supostamente he- da cruz, o que é explicado diegeticamente pelo
terossexuais já recorreram a esse artifício de en- fato de ter uma noiva – de cara bem assexuada,
carnação), mas para os atores em que já existia aliás – e porque ele somente se interessa pelo
essa suspeita, aceitar um papel desses poderia seu trabalho (desculpa comumente usada para
comprometer sua credibilidade heterossexual, ain- se fugir das responsabilidades conjugais). Num
da mais na época de códigos de conduta e filtros dos acessos de private joke mais descarados da
de informação tão rígidos como os dos estúdios história do cinema, Grant grita fininho, imitando
americanos. A comparação com Hudson é ain- voz feminina ao ser pego vestido com um peignoir
da mais condizente, pois ambos tinham fama de de mulher: “I went gay” ("virei uma louca"). Nesse
galãs só que, com o recuo temporal, percebe-se filme, fica clara a vulnerabilidade do personagem
uma necessidade incessante de fazer de Hudson grantiano face à perseverança feminina. Hepburn,
um homem perfeito, enquanto que, para Grant, a justamente uma estrela que usou e abusou da
dualidade passava nas entrelinhas dos diálogos, masculinidade (ela passa a maior parte do tempo
da direção e da psicologia dos papéis. travestida de homem em Vivendo em Dúvida - Sylvia
3. CAVELL, Scarlett, Cukor, 1935), era a rebelde manipuladora
Stanley. Pursuits Na obra de Grant, a ambiguidade sexual se com- e devoradora de homens, assim como em Núpcias
of Happiness: the
Hollywood comedy of pleta de uma relativamente velada misoginia. Em de Escândalo (The Philadelphia Story, Cukor, 1940),
remarriage. Harvard alguns papéis, é possível notar certa aversão ao protótipo do ménage à trois que influenciaria, mais
Film Studies, 1981. sexo feminino, comum não só aos filmes dirigidos tarde, diretores da Nouvelle Vague como Truffaut.

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A obsessão pelo trabalho como maneira de esca- Se analisarmos os finais dos filmes do duo Grant-
par ao namoro está também presente em Jejum -Hawks, temos a certeza de que algo ia realmente
de Amor (His Girl Friday, 1940), em que Grant faz na contracorrente de Hollywood. Dos cinco filmes,
de tudo para competir com sua ex-namorada e nenhum deles tem um happy end nos moldes tradi-
rival no trabalho, vivida por Rosalind Russel. De cionais: beijo apaixonado entre os protagonistas, o
maneira mais frontal, a aversão ao sexo feminino homem numa posição de dominante; a mulher, de
chega quase às vias de fato em Paraíso Infernal presa; música em crescendo; fade para a logomar-
(Only Angels Have Wings, 1939), em que o aces- ca do estúdio ou dos créditos em cima da imagem
so de misoginia de Grant beira a violência física da felicidade encontrada depois de tantos percal-
quando ele berra e se agita contra Jean Arthur, ços (estamos ainda na lógica das comédias de re-
mandando-a ficar quieta. É sintomático ver como casamento). Os finais de Grant-Hawks privilegiam
nos filmes da dupla Grant-Hawks, com exceção de o status quo do filme, trazendo o protagonista de
Katharine Hepburn, as atrizes são constantemente volta para o envolvimento com amigos ou colegas
trocadas e as escolhidas são coadjuvantes de luxo (Grant e seu colega no avião em Paraíso Infernal)
catapultadas ao estatuto de protagonistas (Anne ou para a agitação precedente do ambiente de
Sheridan, Jean Arthur, Rosalind Russel). Até as, trabalho (Jejum de Amor). Raramente, o final abre
mais tarde, estrelas e altamente desejáveis Rita para novas situações em que o casal se encontra-
Hayworth e Marilyn Monroe aparecem em papéis ria sozinho. O beijo apaixonado, quando acontece,
coadjuvantes (em Paraíso Infernal e O Inventor da é permeado por alguma sutileza de direção que
Mocidade - Monkey Business, de 1952 –, respecti- nos leva a crer que não foi tão feliz assim. Em O
vamente), mas não conseguem virar a cabeça do Inventor da Mocidade, parece ser Ginger Rogers
protagonista. que puxa Grant para o beijo final e não o contrário.

Obviamente, muitos poderão dizer que se trata de Já em A Noiva era Ele, o beijo anuncia a “tão es-
uma leitura forçada, que os roteiros dos filmes es- perada” noite de núpcias entre Grant e Sheridan.
trelados por Grant não eram escritos pelos direto- O filme, aliás, se apoia na impossibilidade mo-
res e muito menos pelo ator. Mas nas colaborações mentânea da concretização sexual decorrente do
entre Hawks e Grant percebe-se uma constância casamento, tema análogo tratado por outro filme, E
dos roteiristas, sobretudo Charles Lederer (A Noiva o Noivo Voltou (No Room for the Groom, Douglas Sirk,
era Ele, O Inventor da Mocidade e Jejum de Amor) 1952) em que o ator principal, Tony Curtis, coinci-
e Hagar Wilde (Levada da Breca e A Noiva era Ele). dentemente ou não, era vítima de especulações da
Isso legitima o fato da recorrência de uma imagem mídia sobre sua sexualidade. Em A Noiva era Ele,
alternativa à do astro galanteador nos moldes de a última fala de Grant e um movimento de câmera
James Stewart ou Rock Hudson. E, sobretudo, o nos dizem que essa alegria será curta – Grant diz
fato de a “persona” de Grant influir na criação de que só sairão da cabine quando virem a Estátua da
situações e personagens, como se ele já trouxesse Liberdade; num efeito de montagem, é um plano
com sua imagem todo um arsenal de temas que do monumento, colado ao do beijo, que termina
não poderiam ser ignorados pelos roteiristas e que o filme, mostrando que a elipse tirou rapidinho o
entrariam, positivamente, na forma final do filme. herói dos braços da garota.

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Mas o final que não deixa dúvidas de que Grant
era a presa e as garotas, as caçadoras, é o de
Levada da Breca. O filme brinca o tempo todo com
o medo que Grant tem da liberdade avassaladora
de Hepburn, justificada por sua obsessão em con-
seguir o tal osso que terminaria sua obra prima
da paleontologia. Quando ele não consegue mais
escapar dela, pois ela vai atrás dele até no alto de
sua bancada, Grant não tem outra opção que não
se entregar a Hepburn. O abraço frouxo do herói,
como quem cai de cansaço depois de uma luta
vencida, substitui o beijo apaixonado e a promessa
de vida conjugal desabrochada. Grant é um cor-
po imóvel e extasiado, não pela paixão, mas pela
resignação frente ao sexo feminino.

| Pedro Maciel Guimarães |

Referências bibliográficas

MOULLET, Luc. La politique des acteurs. Paris:


Editions de l’Étoile/Cahiers du Cinéma,1993.

McGILLIGAN, Patrick. Cagney, the actor as auteur.


South Brunswick, New York: A.S Barnes; Tantivity,
London, 1975.

CAVELL, Stanley. Pursuits of Happiness: the


Hollywood comedy of remarriage. Harvard Film
Studies, 1981.

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IRONIA, VELOCIDADE, ABSURDO:
HAWKS E A 'SCREWBALL COMEDY'
Apenas dois anos depois de dirigir um dos marcos dos filmes do que com as cenas de violência. Não
do gênero filme de gângster – Scarface – A Vergonha por acaso, as screwball comedies, na definição
de uma Nação (Scarface, 1932) –, Howard Hawks do crítico Andrew Sarris, notabilizaram-se como
foi um dos fundadores de um gênero que marcou “comédias sexuais sem o sexo”. Toda a verve se-
os anos 1930: a screwball comedy, precursora da xual do gênero passa pelos diálogos, raramente
comédia romântica. pela imagem.

Eram os anos da Grande Depressão, e o público Em 1934, Howard Hawks dirigia Suprema Conquista
americano, desiludido e sem emprego, precisa- (Twentieth Century, 1934), verdadeiro duelo de egos
va mais do que nunca rir. Ao mesmo tempo, a no palco que prenuncia um dos grandes temas
mulher começava a alcançar um espaço maior hawksianos: a vontade de representação como
na sociedade. Nas screwball comedies, homens e parte fundamental da vida. Já um grande astro
mulheres travavam uma intensa disputa, muitas na época, John Barrymore vive Oscar Jaffe, um
vezes em diferentes posições sociais, turbinados grande empresário e diretor de teatro que trans-
por diálogos cuja velocidade nunca mais se repetiu forma uma completa desconhecida, Mildred Plotka
no cinema americano. (Carole Lombard), em Lily Garland, uma diva dos
palcos. Cada diálogo é um movimento de esgrima
Nenhum outro gênero captou com tanto espíri- em direção ao outro, Oscar provando o seu poder
to esse novo momento da sociedade capitalista, sobre Lily a cada ordem dada no ensaio da peça.
pós-industrial, em que o homem teve o seu pa-
pel de provedor questionado pela mais violenta Ao longo do filme, porém, a balança de poder
recessão da história americana e a mulher vivia oscila. Lily torna-se uma grande estrela para
seus primeiros anos de experiência com o voto – o além dos domínios de Oscar, e este fica à beira
sufrágio feminino havia sido aprovado pelo Senado da falência; sua última cartada é convencer Lily
americano em 1919. a montar com ele um grande espetáculo em que
ela viverá Salomé. Oscar e Lily são “farinha do
Naquele mesmo ano de 1934, Hollywood consoli- mesmo saco”, e impregnam cada diálogo de uma 1. SARRIS, Andrew.
You ain't heard
dava a implementação de seu Código de Produção, hiper-dramaticidade típica de quem só enxerga a
nothin' yet: the
ou Código Hays, uma espécie de censura prévia vida como drama. American talking
contra conteúdos “pesados”, com a exigência de film, history &
um certificado de aprovação aos filmes antes de Hawks joga sobre eles o olhar da comédia e, além memory, 1927-1949.
New York: Oxford
serem lançados. Como é tradição, Hollywood sem- da guerra dos sexos, antecipa timidamente, em
University Press,
pre se preocupou mais com o conteúdo sexual algumas poucas cenas, outro pilar da screwball 1998.

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comedy: o humor físico dos atores, na linha de O casamento marcado com sua assistente para dali
Gordo e o Magro, como na cena em que o amigo a algumas horas. Mas, ao contrário da fórmula do
de Oscar faz de tudo para impedi-lo de sair do amor “imprevisível” entre figuras improváveis, o
vagão para contratar atores amadores para o seu interesse de Susan por David é escancarado. Ele
espetáculo. ainda não sabe que a ama, mas o roteiro não faz
mistério. “O instinto amoroso no homem muitas
Olhando em retrospecto, Suprema Conquista não vezes se revela de forma complexa. Meu palpite
levou o mesmo mérito pela fundação do gênero é que ele tem uma fixação por você”, diz um per-
quanto Aconteceu Naquela Noite, de Frank Capra, sonagem a Susan ainda no início, colocando as
no qual Claudette Colbert é uma rica socialite que cartas na mesa.
se envolve sem querer com o repórter pobretão
vivido por Clark Gable. Aconteceu Naquela Noi- Em meio a certa previsibilidade, o roteiro, adap-
te (It Happened One Night, 1934) antecipava com tado de uma história de Hagar Wilde, introduz do
mais ênfase do que Suprema Conquista outro dos nada um bebê leopardo que o irmão de Susan
motores da screwball: a diferença social entre os lhe traz como presente de uma viagem ao Brasil.
personagens (o homem pobre, a menina rica), o Potencializado pelo animal selvagem, que oferece
que dava ainda mais graça ao conflito. O filme de ao mesmo tempo um ponto cômico e uma carga
Capra foi tamanho sucesso de público e crítica que de risco às cenas, Grant e Hepburn protagonizam
se tornou o primeiro filme da história do Oscar a momentos de humor físico únicos em suas carrei-
ganhar os “big five” – as estatuetas de melhor filme, ras. Um caminhão com galinhas tomba no meio
diretor, ator, atriz e roteiro. Foi a consagração da da rua, e Hepburn agarra o leopardo pelo rabo
Academia ao novo gênero popular em Hollywood, para que ele não avance em cima delas. Ao final,
mas sem querer contribuiu para eclipsar os mé- Hepburn derruba sem querer a imensa ossada
ritos do filme de Hawks. de dinossauro que Grant monta em seu museu,
ficando pendurada no ar apenas pelo braço.

O bebê-leopardo A recepção em torno de Levada da Breca mostra


o quanto Hawks flertava de maneira avançada
O contraste social vai aparecer com toda a cla- com a screwball. O filme foi um sucesso de crítica
reza na próxima screwball de Hawks. Em Levada quando foi lançado em 1938, mas fracassou nas
da Breca (Bringing Up Baby, 1938), o diretor pega bilheterias – como a popularidade de Grant era
duas estrelas em ascensão na época (o charmoso alta na época, creditou-se o fracasso a Hepburn,
Cary Grant e a glamurosa Katharine Hepburn) e os a uma possível inadequação da estrela ao seu
coloca em cena para exercitar um inédito humor papel. O tempo provou a permanência da obra de
físico em suas carreiras ao lado de um leopardo. Hawks como uma comédia à frente de seu tempo.
Em 2000, uma enquete do American Film Institute
David (Grant) é um paleontólogo que sonha em classificou Levada da Breca em 14º na lista das
conseguir de uma ricaça atrapalhada, Susan Vance melhores comédias de todos os tempos.
(Hepburn), US$ 1 milhão em doação para o seu
museu. Uma urgência é instaurada: David está de

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Uma curiosidade: Levada da Breca marca o pri- Em Jejum de Amor, Hawks leva ao paroxismo um
meiro uso mais ambíguo da palavra “gay” em um dos pilares da screwball comedy: os diálogos ex-
filme de Hollywood. Ao ser flagrado e indagado cessivos e altamente acelerados, que extraem
pela tia de Susan por que está vestindo a camisola humor da própria velocidade do que é falado. Numa
dela, Grant responde, em tom de ironia: “Because cena, Walter e Hildy falam ao mesmo tempo ao
I went gay all of a sudden!” (“Porque me tornei gay telefone com terceiros. O filme vai num crescendo
de repente!”). O uso da palavra é ambíguo: será de histeria cômica até a meia hora final – talvez a
“gay” já no sentido moderno de “homossexual”, ou mais “falada” da história do cinema –, quando os
ainda no sentido arcaico das peças de Shakespeare diversos personagens entram e saem da sala da
(“alegre”, “leve”)? A dúvida permanece até hoje, redação sem parar (incluindo a improvável futura
mas não deixa de ser um sintoma desse avança- ex-sogra de Hildy).
do flerte com os gêneros que marca a screwball
comedy. Um personagem começa a falar antes de o outro
terminar – artifício que já aparece na peça original
Hawks leva o gênero ainda mais longe, tanto no de Ben Hecht, mas que Hawks ajuda a elaborar.
roteiro quanto na direção, dois anos depois em “Eu percebi que, quando as pessoas falam, elas
Jejum de Amor (His Girl Friday, 1940). Em vez de falam umas por cima das outras, principalmen-
dois desconhecidos que vão se apaixonar, o diretor te aquelas que falam muito rápido ou que estão
inicia o filme com um casal já divorciado, o editor discutindo ou descrevendo alguma coisa. Então
de jornal Walter Burns (Grant) e a ex-repórter Hildy escrevemos os diálogos de modo que o início e
Johnson (Rosalind Russel). Hildy faz o caminho in- o final das frases fossem desnecessários; eles
verso ao de boa parte das mulheres na época: uma estão ali para serem sobrepostos”, declarou Ha-
repórter muito talentosa, ela largou o jornalismo wks anos depois numa entrevista ao diretor Peter
após o divórcio com Walter e planeja casar-se com Bogdanovich, para a TV.
um pacato cidadão de Albany, na periferia de Nova
York, tornar-se mãe e dona de casa.
Influências
Todo o filme, claro, vai no sentido de reconciliar
esse casal cuja sintonia é evidente, e que nun- Boa parte dos críticos considera que a screwball
ca deveria ter se separado. Hildy tenta, mas não comedy sobreviveu como gênero por pouco mais
resiste às perspectivas do novo furo jornalístico de uma década – seus últimos representantes
lançadas por Walter. Como em Suprema Conquista, ainda na primeira metade dos anos 1940. Entre
o homem está numa posição superior e faz de tudo os possíveis fatores, a luta de classes, um dos
para dominar a mulher, que resiste. E esse meio pilares do gênero, perde força com o fim da Grande
de dominação não é mais o âmbito doméstico- Depressão, e mais ainda após o final da Segunda
-conjugal, e, sim, o mundo do trabalho (o teatro Guerra.
em Suprema Conquista; a redação de um jornal
neste último). Com alguma flexibilidade, incluem-se aí alguns
filmes de Ernst Lubitsch (Ninotchka, 1939; Ser ou
não Ser - To Be or Not to Be, 1942), Frank Capra (Esse

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Mundo É um Hospício - Arsenic and Old Lace, 1944) e mulheres ainda tentam acomodar-se a seus novos
dois filmes tardios do próprio Hawks: A Noiva era papéis. De modo geral, muitos dos procedimentos
Ele (I Was a Male War Bride, 1949) e O Inventor da de mise-en-scène que consagraram o gênero, como
Mocidade (Monkey Business, 1952), saborosa relei- os diálogos velozes e o humor físico dos atores,
tura dos elementos que funcionaram em Levada raramente aparecem.
da Breca, com o leopardo sendo substituído por
um chimpanzé. Na TV, o gênero screwball gerou seus derivados,
mas sem a ousadia formal dos filmes dos anos
A influência da screwball se estende até aquela que 1930. O melhor representante do gênero segue
hoje é considerada a melhor comédia de todos os sendo I Love Lucy, a série dos anos 1950 estrelada
tempos: Quanto Mais Quente Melhor (1959), de Billy por Lucille Ball e Desi Arnaz. Os conflitos do casal
Wilder. Embora o triângulo inusitado entre Jack (que também vivia junto fora das telas) e o humor
Lemmon, Tony Curtis e Marilyn Monroe não con- físico de Ball pontuavam os melhores momentos
figure exatamente uma guerra dos sexos, a ironia do programa. O conflito de gêneros ainda é o mote
dos diálogos e o ritmo acelerado de algumas sequ- de diversas séries, mas a acidez e rapidez dos
ências fizeram de Wilder um dos responsáveis por diálogos e o humor físico parecem ter perdido
prolongar o legado de Hawks e Capra no gênero. terreno num veículo no qual o tempo condicionado
da piada, simbolizado pela claque, não permite os
No cinema contemporâneo, os irmãos Coen são os arroubos de genialidade e inspiração que Hawks
únicos grandes tributários das screwball comedies e Capra experimentaram há 80 anos.
em três filmes mais recentes: Arizona Nunca Mais
(Raising Arizona, 1987), comédia repleta de humor
físico sobre um ex-detento e uma policial que de- | Thiago Stivaletti |
cidem sequestrar um bebê; Na Roda da Fortuna
(1994), comédia de diálogos frenéticos e atuações
um tom acima na qual a repórter vivida por Jennifer
Jason Leigh é inspirada na personagem de Rosalind
Russel em Jejum de Amor; e O Amor Custa Caro
(Intolerable Cruelty, 2003), autêntica screwball de
diálogos espertíssimos na qual George Clooney e
Catherine Zeta-Jones acrescentam à guerra dos
sexos um tema contemporâneo: os milionários
contratos pré-nupciais em voga na elite americana.

Nas atuais comédias românticas americanas,


gênero popular por atrair o público feminino, o
tema da guerra dos sexos encontra-se ao mesmo
tempo diluído e atualizado, num momento de pós-
-feminismo em que a mulher já tem garantido o
seu espaço no mercado de trabalho, mas homens e

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WESTERN CLÁSSICO:
O ÚLTIMO PÔR DO SOL
Neste ensaio são apresentadas algumas estra- os pontos-chave dos acontecimentos, conflitos
tégias narrativas do cinema de Howard Hawks, claramente delineados, tempos dramáticos con-
mais precisamente de alguns westerns por ele centrados, ações lógicas, fortes, ininterruptas e,
dirigidos, em contraponto ao estilo dos westerns se possível, inesperadas, para que num curto es-
de John Ford. paço de tempo se obtenha a necessária densidade
narrativa. Diretores icônicos do cinema industrial,
Trata-se também de uma oportuna homenagem ao como John Ford e Alfred Hitchcock, foram mes-
pensamento do crítico Inácio Araújo, que sempre tres em desenvolver estratégias narrativas que
procurou vivenciar o cinema além do aparente- influenciaram várias gerações de cineastas.
mente visível. Numa conversa informal, Inácio
Araújo sugeriu o que poderia ser considerada uma Entre as diversas modalidades dramáticas pro-
característica básica do estilo de Howard Hawks: postas pela produção cinematográfica industrial, o
o interesse em apresentar dramaticamente tudo western pode ser considerado como sendo bastan-
aquilo que era omitido numa narrativa clássica pe- te codificado, embasado numa mitologia construída
los demais realizadores. Essa intrigante e precisa a partir de constantes reiterações.
observação só poderia partir de um estudioso que
ousa extrapolar o lugar comum em que muitas Durante anos, o western foi sinônimo de ação e
vezes a crítica se abriga, servindo de inspiração movimento. Nas primeiras quatro décadas do
para as considerações a seguir. cinema, o gênero não se preocupou tanto com
densidade psicológica ou mesmo com veracida-
A narrativa clássica no cinema industrial norte- de histórica. Dos fatos reais foi retirada apenas
-americano pontua-se na habilidade em prover um a matéria-prima para o entretenimento, sendo
entretenimento eficiente, claro, dinâmico, diverti- forjada uma mitologia pífia, racista, politicamente
do, interessante e muito sedutor, principalmente incorreta, mas muito sedutora e funcional. Na sua
em sua capacidade de surpreender a plateia. Em constante reiteração forjou uma nova visão da
resumo: uma boa história cinematograficamente história do século XIX nos Estados Unidos – uma
bem contada, em que o principal objetivo é o de lenda que se pretendia fato.
envolver emocionalmente o espectador.
Assim, num primeiro momento, a maioria dos
Não há uma receita para obter um bom filme de westerns era centrada na mais pura ação. Para
entretenimento, mas os grandes filmes industriais tal foram minimizadas as contradições e, pela
possuem alguns pontos em comum. Há um claro premência dos conflitos, os personagens eram eri-
enfoque numa narrativa sintética, prevalecendo gidos pela sua capacidade de reação. Os westerns

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eram “branco e preto” não apenas na fotografia, Metaforicamente, a diligência é uma espécie de
mas na sua estruturação dramática. Raros foram purgatório, onde todos devem expiar os seus “pe-
os momentos em que se puderam detectar “meios cados”. Os julgamentos tornam-se desnecessários,
tons” nas narrativas. as desculpas, inúteis. A dama esnobe e moralista,
ao dar à luz, precisa das mãos hábeis do médico
Essa estratégia altamente esquemática fez com alcoólatra, do instinto maternal da prostituta, da
que questões estilísticas fossem minimizadas. Com proteção do jogador, da habilidade do bandido,
isso, muitos filmes se aproximaram em demasia, da serenidade do vendedor ambulante, além da
tanto dramática como artisticamente. Apesar de presteza do cocheiro e da coragem do delegado.
raras exceções com filmes mais empenhados, o O novo tempo está impresso na luz (o bebê que
excesso de produções empurrou o gênero para nasce, o futuro que se apresenta no horizonte
uma segunda categoria de importância dentro da da paisagem). Trata-se de uma redenção: para o
produção industrial. perdão dos pecados. Com isso uma nova história
se forja para uma nova nação com novos homens
John Ford já havia realizado muitos westerns até – e, ironicamente, bem às vésperas de uma nova
propor, em 1939, um marco divisor nessa mo- guerra. Uma nação que não deve precisar de ban-
dalidade dramática: No Tempo das Diligências queiros corruptos: a eles, a cadeia.
(Stagecoach). Trazendo para esse filme um dos
astros da produção B de western, John Wayne, Mas essas inclusões subversivas na narrativa não
como contraponto a uma encenação bem mais ela- chegam a relativizar os limites ideológicos do wes-
borada, Ford introduziu, de forma mais complexa, tern daquele período. Os chamados “índios” con-
aspectos psicológicos que ajudaram a subverter tinuam sendo os selvagens que ameaçam e des-
a mesmice de outrora. troem a civilização branca, além de serem desleais,
ladrões e assassinos. Os mexicanos continuam
Para os amantes da ação pura, isso poderia ser serviçais, atenciosos, inferiores àqueles passa-
um sacrilégio, mas Ford soube estabelecer a ponte geiros que são considerados páreas. A salvação
entre o passado e o que estava por vir. Na sua da cilização branca depende da ação heróica do
diligência encontram-se todos os clichês de perso- exército. O Oeste precisa ser conquistado para
nagens dos filmes de outrora: o médico alcoólatra, se tornar parte da grande nação que se constrói.
a prostituta, o jogador, o banqueiro corrupto, o
frágil vendedor ambulante (que, apesar de vender Após a Segunda Guerra Mundial, John Ford diri-
uísque, é ironicamente tratado como clérigo pela giu vários westerns icônicos, marcados por uma
sua frágil aparência), a esnobe dama grávida em atmosfera soturna, com personagens neuróticos,
busca do marido soldado, o bandido com boa alma, deslocados, vingativos. Um título exemplar dessa
o delegado competente, o cocheiro bobalhão; todos nova etapa é Rastros de Ódio (The Searchers – 1956).
escoltados pela cavalaria do exército, até que o O sul dos Estados Unidos encontra-se dilapidado
destino isole a carruagem, deixando-a à mercê pela perda da Guerra Civil e pela constante ameaça
dos “selvagens índios”. dos “selvagens índios” que, mesmo após os inú-
meros esforços despendidos para a criação das

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reservas, reagem contra a arrogância autoritária gens deslocados e ofuscados pela luminosidade
do homem branco. e cor da paisagem amplificada pelos formatos
panorâmicos que a câmera tanto registrou a partir
O personagem Ethan Edwards, interpretado por de meados dos anos 1950. A melancolia invadia
John Wayne, inicia uma verdadeira via crucis ao a narrativa, comprovando que a necessidade de
tentar resgatar sua sobrinha das mãos dos “ín- heróis ainda ofuscava qualquer construção de um
dios” que a raptaram ainda menina, depois de futuro mais promissor. Mesmo assim, Ford insistia
dizimarem sua família. Passam-se vários anos e em manter o tom épico.
o forte racismo do personagem é destilado como
um veneno que o corrói silenciosamente. Esse Pode-se afirmar que os westerns de Ford pre-
herói derrotado pela Guerra Civil mostra-se can- tendem a construção de uma mitologia forjada à
sado, cínico, destrutivo e não pode ser absorvido custa de uma história virtual que ofusca qualquer
no projeto de um novo tempo que começa a se contato maior com o mundo real. Ao mesmo tempo,
esboçar pelas leis liberais provenientes do lado pretende-se uma homenagem a um passado idílico
vencedor daquela Guerra. como inspiração ao tempo presente, embora este
passado só exista nas dimensões das telas dos
O velho Sul está à míngua e a tradição de outrora, cinemas. O ciclo de filmes desse gênero proposto
forjada à base das armas, da escravatura e do por Ford acabou sucumbindo aos novos tempos,
extermínio dos “índios”, não pode mais ser a tô- sendo vítima dos limites da mesma mitologia que
nica do novo tempo. Esses heróis neuróticos são tanto ajudou a reiterar, numa analogia ao destino
desagradáveis, violentos, corroídos pelos seus sombrio reservado aos seus personagens centrais.
preconceitos arcaicos. Eles precisam de uma re-
denção que, nesse caso, se configura num último Essa melancólica constatação teve um epitáfio
gesto na tentativa de defender o próprio sangue, exemplar, nos momentos finais de O Homem Que
agora contaminado pelo contato com os chamados Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance,
“selvagens”. Esse personagem debate-se entre 1962): o senador Ransom Stoddard continua sendo
a possibilidade de salvar a sobrinha ou matá-la, ovacionado pelo seu suposto heroísmo ao vencer
para que o sangue dos brancos não continue a se o duelo com o bandido Liberty Valance, quando o
miscigenar. Não há mais duelos, glamour, saloons, cadáver do verdadeiro herói da proeza (mais uma
apenas a grandiloquência de um deserto silencioso vez, John Wayne) se encontra num caixão similar
e cruel na aridez de sua infinita beleza. aos reservados a indigentes. Mesmo trazendo à
luz os fatos verdadeiros, o senador não convence
Ao final, a esse ex-soldado só é oferecida a oportu- os jornalistas a corrigir a história. A mitologia tem
nidade de continuar sua trajetória errante e solitá- de ser preservada e os órgãos de imprensa serão
ria, como um pistoleiro cada vez menos necessário os guardiões da lenda.
na nova ordem que se impõe.
Esse epitáfio melancólico serviu como uma metá-
Se no passado o western era flat na sua ausência de fora aos limites da visão de mundo de John Ford,
meios tons, naquele momento se tornava instável, que insistiu em reiterar que a história precisava
obscurecido pela tortuosa trajetória de persona- ser forjada de forma honrosa, mesmo que os fatos

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reais fossem contrários a essa construção vir- se a interiores de cadeias, saloons, quartos de hotel.
tual. Ao final do filme, o jornalista-chefe declara São as relações dialógicas entre os personagens
solenemente: “Este é o Oeste. Quando a lenda se que moldam o movimento. Hawks foi um mestre
torna fato, imprima-se a lenda.” (This is the west, dos diálogos rápidos e cruzados, marcados pelo
sir. When the legend becomes fact, print the legend). recurso da sobreposição de falas. Seu ciclo de
comédias do subgênero screwball desenvolveu um
Já a filmografia de Howard Hawks, apesar de ex- expressivo uso do diálogo ágil; uma herança dos
tensa, apresenta apenas cinco westerns, dos quais filmes de Frank Capra produzidos nos anos 1930.
quatro são estrelados por John Wayne – que se
tornou icônico no gênero, principalmente a partir Rio Vermelho (Red River, 1948) foi o primeiro western
de sua constante atuação nos filmes de John Ford. dirigido por Howard Hawks e, talvez, seja aquele
que possui mais pontos de contato com a obra
Como Wayne tornou-se uma “persona” no cinema, de Ford. A predominância da paisagem externa
seus filmes sugerem uma aparente similaridade interfere na evolução e psicologia dos personagens.
estilística, graças ao carisma do ator que, apesar O movimento é constante e algumas sequências
de possuir limitados recursos dramáticos, conse- tornaram-se emblemáticas por sua construção
guiu imprimir nos filmes que atuou uma persona- épica.
lidade única e marcante. Tem-se a impressão de
que os personagens interpretados por Wayne são Em Rastos de Ódio, o personagem de John Way-
muito semelhantes, embora não o sejam. Para os ne, Thomas Dunson, é também contaminado pelo
espectadores menos avisados é até possível con- rancor de sucessivas perdas traumáticas, mas o
fundir, num western interpretado por ele, o estilo conflito central do juramento de morte que Dunson
de John Ford com o de Howard Hawks. faz ao seu afilhado – e Matthew Garth (Montgo-
mery Clift, da nova geração de astros) – ofusca a
Se os personagens interpretados por John Wayne ação externa. Aquela epopeia transforma-se, aos
se assemelham nas reações, expressões e nos poucos, numa disputa pessoal acirrada. Já em
comportamentos, isto se deve mais ao ator do Hawks, as relações pessoais sempre dominam.
que aos diretores. No caso de Ford e Hawks, as
aparentes semelhanças param por aí. Os westerns de Hawks não se concentram priori-
tariamente na construção de uma mitologia. Seus
Em John Ford, o western exige o constante des- personagens sabem que o passado traumático, as
locamento dos personagens na paisagem e esse sucessivas perdas e o futuro incerto são reitera-
espaço exterior interfere dramaticamente na ções temáticas inevitáveis. Por isso mesmo eles
complexidade psicológica deles – que, em alguns tentam sobreviver com a dignidade possível frente
casos, passam por transformações radicais de aos fatos. Hawks, em seus westerns, optou por
comportamentos e valores. substituir a grandiloquência épica pela aceitação
de que a cada dia se faz necessário travar uma
Já nos filmes do gênero dirigidos por Howard nova luta pela manutenção da vida.
Hawks, a ação muitas vezes fica em segundo plano,
e a paisagem é praticamente estática, restringindo-

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Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, 1959) é um dos o autor do roteiro apresente um novo elemento
filmes mais icônicos de Hawks, embora não seja para que possam reagir. São personagens a ser-
muito excitante descrever sua ação, que se pode viço de uma narrativa detalhadamente construída
resumir num curto parágrafo: as dificuldades de e, de certa forma, previsível. O ritmo da narrativa
um xerife para manter encarcerado um assassino permite ao espectador um tempo para se fami-
– irmão de um poderoso fazendeiro –, enquanto liarizar com aquele cotidiano tão minuciosamente
aguarda a vinda de um juiz para que a lei possa recortado no espaço. Aqui não se trata mais de
ser cumprida. Com essa trama pouco original, purgatório, mas de limbo. Uma espera paciente e
Hawks realiza um dos melhores westerns do ci- cuidadosa, pois o próximo passo pode ser também
nema norte-americano. mortal aos protagonistas dessa trama aparente-
mente tão trivial. Por trás daquela descontraída
Sua estratégia não poderia ser mais trivial. Em rotina, reside a tensão do que está ainda por vir.
seus 141 minutos, Onde Começa o Inferno se con-
centra basicamente nos interiores de uma cadeia, Howard Hawks solicita ao espectador que com-
de um saloon, e de um hotel, localizados na rua plete as entrelinhas, utilizando como referência
principal de uma pequena cidade do Velho Oeste. seu inventário narrativo anteriormente adquirido
Somente nos 20 minutos finais é que tudo se re- nas infinitas horas desfrutadas no cinema. Tra-
solve no inevitável embate entre os representantes ta-se de um pacto em que os grandes gestos e
da lei e os capangas do poderoso fazendeiro. diálogos são minimizados, bastando uma simples
menção para que o espectador imediatamente
Os personagens centrais aguardam o desfecho complete em sua mente o que fora ali apenas
pacientemente, ocupando o longo tempo de espera sugerido. A utilização da metalinguagem é uma
com trivialidades do cotidiano. Os diálogos marcam das estratégias de Hawks. Daí a importância de
a ação interior, revelando nuanças desses seres à se reiterar a presença icônica de John Wayne e de
espera de uma solução externa para o impasse em certas situações já exploradas por uma modalidade
que se encontram e que pode custar suas vidas. dramática tão codificada quanto recorrente, como
é o western no cinema.
Como No Tempo das Diligências, cada personagem
representa um segmento social, mas, nas mãos De certa forma, Howard Hawks relativizou os
de Hawks, as ações dialógicas tridimensionam os cânones do western clássico, abrindo caminho
clichês, sem, contudo, negá-los – pelo contrário. para uma nova releitura. Em El Dorado (El Dorado,
Aos poucos, o espectador é introduzido no universo 1966) a metalinguagem se torna a principal atra-
de cada personagem, sendo permitido um tempo ção narrativa do filme, sendo que as semelhanças
dramático que evita os excessos maniqueístas. temáticas e algumas sequências lembram, em
demasia, Onde Começa o Inferno, a ponto de pare-
Os personagens principais estão à vontade, num cer uma refilmagem. Não há como não comparar
estranho jogo dramático que lembra uma reunião ambos os filmes, pois Hawks cita a si próprio em
familiar na qual todos se conhecem. Os diálogos se diversos momentos.
referem sempre ao tempo presente, pois o passado
já é de domínio comum. Eles estão à espera de que

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Em El Dorado, a maestria do diretor permite a
construção de sequências memoráveis, como os
primeiros minutos do filme em que os dois prin-
cipais personagens são introduzidos ao público. A
tensão inicial entre eles é logo dissolvida quando
Colen Thornton, novamente Wayne, num diálogo
rápido, convence o xerife, interpretado por Robert
Mitchum, de suas boas intenções e, em seguida,
pede para ver a arma que este lhe aponta. Ines-
peradamente, o xerife entrega a arma e o público
percebe que se trata de dois velhos amigos que há
muito não se viam, mas ainda confiam um no outro.

Em seus últimos filmes, Hawks deixou-se absorver


pelo prazer da narrativa, sendo que muitos títulos
privilegiaram questões formais, às vezes despro-
vidos de maior densidade dramática. Ainda assim,
seus westerns abriram as portas para a necessária
renovação exigida pelos novos tempos. O caminho
se encontrou aberto para que Sergio Leone (sendo
seguido, mais tarde, por Sam Peckinpah, Clint
Eastwood, Quentin Tarantino) implodisse de vez
o western clássico, apresentando uma releitura
impactante que encerrou o ciclo que John Ford
tanto ajudara a criar e mitificar.

De certa forma, pode-se afirmar que os westerns de


Howard Hawks foram o último pôr do sol de uma
modalidade dramática que nunca mais retornaria
aos cânones clássicos com o brilho de outrora. Os
novos tempos ensinaram uma lição diversa: agora,
quando a lenda se torna fato, imprima-se o fato.

| Heitor Capuzzo |

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OS WESTERNS DE UMA NOTA SÓ
DE HOWARD HAWKS
Em uma pequena passagem do artigo Western: a única vez em que ele disse a Barbara, uma de
Introdução ao gênero e ao herói, Glauber Rocha se suas filhas, que a amava, foi em seu leito de morte.
detém sobre a principal personagem do gênero, Tal característica, que diz respeito à dificuldade de
o cowboy: “O chapéu é de largas abas, o revólver os homens se expressarem diante das mulheres,
de balas intermináveis é sacado com a veloci- se refletiu em suas personagens. Durante a cena
dade do raio, o cavalo é preto ou branco, fiel até final de Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, 1959), por
o último perigo, os punhos são fortes e ágeis, a exemplo, a jogadora de pôquer Feathers, apaixona-
estrela no peito, o símbolo do bem” (ROCHA, 2006, da pelo xerife John T. Chance – com T de tormento,
p.114). Nesse trecho, Glauber poderia muito bem segundo ela –, se veste com uma roupa sensual
estar se referindo a um western de Howard Hawks, para fazer uma apresentação de dança no saloon.
uma vez que as obras do diretor pertencentes ao Chance diz que, se ela o fizer, será presa, no que
gênero cinematográfico tinham características a jogadora desiste, alegando que finalmente ele
classicistas – presentes na aura de benevolên- declarou o seu amor. O xerife apenas murmura
cia de seus cowboys –, aliadas a um modernismo que não disse que a amava, e sim que a prenderia.
único na construção ambígua das personagens e Feathers responde que o significado é o mesmo.
na representação das mesmas.
Essa cena demonstra que Hawks foi o cineasta
Sobre Hawks, o então crítico de cinema Jacques que provavelmente melhor soube refletir as intem-
Rivette, em sua seminal análise sobre a política péries da relação homem versus mulher em toda
do autor, O Gênio de Howard Hawks, publicada na a vasta história do cinema, com uma misoginia
Cahiers du Cinéma 23, de maio de 1953, disse que: característica na forma de retratar seus persona-
gens. A complexidade por trás de uma declaração
Hawks é o diretor da inteligência e da precisão, de amor por parte do homem, ato aparentemen-
mas é também um maço de forças negras e te tão simples, é algo que se tornou quase uma
fascinações estranhas; ele é um espírito teutô- obsessão para Hawks, e o fato de ele conseguir
nico, atraído por surtos de furor controlado que mostrar o quanto a fêmea entende isso evidencia
geram uma cadeia infinita de consequências. A que o diretor soube como poucos compreender a
existência de sua continuidade é a manifestação mulher moderna.
do Destino (RIVETTE, 1953).
E, por razões óbvias, nos westerns dirigidos por
Além das características descritas por Rivette, Hawks, essa peculiaridade se tornou ainda mais
poder-se-ia dizer também que Hawks era um presente, desde Rio Vermelho (Red River, 1948),
homem viril e de poucas palavras. Tanto é que passando por O Rio da Aventura (The Big Sky, 1952)

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e, mais precisamente, em sua famigerada trilogia xadas pela Segunda Guerra Mundial na sociedade
estrelada pelo cowboy astro dos filmes de John americana. Hawks, um mestre da narrativa nos
Ford: John Wayne (que também participou do filme mais diversos estilos cinematográficos, se infiltrou
de 1948), formada por Onde Começa o Inferno, El logo no gênero americano por excelência, preser-
Dorado (El Dorado, 1966) e Rio Lobo (Rio Lobo, 1970), vando o aspecto clássico e machista do mesmo.
além de o ator haver protagonizado a aventura Isso em um período em que até o conservador John
Hatari! (Hatari!, 1962). Ford já buscava mudar seus preceitos e se rendia
à evolução e ao progresso, principalmente devido
Curiosamente, a incursão de Hawks no universo do aos traumas do pós-guerra que deram origem ao
western se deu em dois trabalhos não creditados: chamado western psicológico.
Viva Villa! (Viva Villa!, 1934) – biografia romanceada
do revolucionário mexicano Pancho Villa, produzida Era como se Hawks estivesse dizendo que o Ve-
por David O. Selznick, e que contou com vários lho Oeste era um território dos homens viris e
diretores demitidos durante as filmagens – e O profissionais e um espaço para a ação e para a
Proscrito (The Outlaw, 1943), produção do milionário simplicidade e não para a reflexão. De qualquer
excêntrico da aviação, Howard Hughes. maneira, o diretor não viria a abandonar seu estilo
moderno para a época, tão presente em obras
Esse último foi um western erótico que levou o gê- anteriores. Moderno não no sentido de trazer no-
nero à evolução e causou polêmica, sendo proibido vos paradigmas e, sim, na forma de conduzir sua
pela censura. A partir dele e de outras obras do narrativa, bem como construir suas personagens,
mesmo período, o crítico de cinema francês André complexas e ambíguas.
Bazin, ao lado do teórico Jean-Louis Rieupeyrout,
criou a expressão metawestern para se referir ao Dentro dessa linha tênue entre o classicismo e a
“western que teria vergonha de ser apenas ele modernidade se construíram os westerns de Ha-
próprio e procuraria justificar sua existência por wks. O cineasta veio a dirigir apenas cinco filmes
um interesse suplementar: de ordem estética, sobre o Velho Oeste e, no entanto, é considerado
sociológica, moral, psicológica, política, erótica” um dos mestres do gênero, ao lado de Andre De
(BAZIN, 1991, p.210). Toth, Andrew V. McLaglen, Anthony Mann, Budd
Boetticher, Clint Eastwood, Delmer Daves, Henry
Hawks iniciou as filmagens de O Proscrito e as Hathaway, John Ford, John Sturges, Raoul Walsh,
abandonou devido a divergências com Hughes, que Sam Peckinpah, Sergio Leone, William A. Wellman,
acabou dirigindo a obra, porém inevitavelmente dentre outros, que certamente dirigiram mais fil-
deixou algumas marcas, principalmente na cena mes do gênero do que Hawks. O que torna essas
final, dominada pelo machismo quando os dois obras de Hawks algumas das melhores da história
protagonistas constatam que, no Velho Oeste, um do cinema é a marca de sua simplicidade.
cavalo era mais importante do que uma mulher
bela, no caso, a sensual Rio vivida por Jane Russell Vejamos Rio Vermelho, o primeiro western oficial de
em seu primeiro trabalho. Hawks. Aparentemente é um filme que conserva
toda a mitologia que moldou o gênero. Porém,
A partir dos anos 1940, o western passou por uma quando analisado a fundo, ele se desfaz em uma
revolução, principalmente devido às chagas dei- representação e celebração da vida.

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Ora, quem imaginaria John Wayne, até então in- de sua amada morta por índios logo no início do
térprete de homens benevolentes, vivendo um ti- filme. E o que dizer do “duelo” final entre Clift e
rano teimoso – lembrando a personagem de Henry Wayne, em que a forma clássica de suspensão
Fonda em Sangue de Heróis (Fort Apache, 1948), de do tempo através do andar das personagens e
John Ford –, capaz de sujeitar seus comandados dos olhares de uma em frente à outra, realizada
a grandes dificuldades para que consiga vender em plano americano que valoriza as armas do
seu gado e, assim, sair da miséria que o tomou mocinho e do vilão – característica comum nos
após a devastação do Texas com o fim da Guerra westerns anteriores –, dá lugar à modernidade
Civil? John Wayne era considerado até então um do estranho andar de Wayne em direção a Clift e
ator popular, um herói americano e um imitador à briga entre ambos em meio à lama, com socos
da persona de John Ford, seu grande mestre, do no lugar de tiros, ocorrendo em poucos segundos.
qual copiou o modo característico e trôpego de
andar, o jeito de se comportar e os gestos. Apenas Não há significados ocultos ali e em nenhuma outra
um diretor como Hawks seria capaz de colocar cena dos filmes de Hawks, há apenas o registro de
Wayne se defrontando com um dos grandes galãs cada ação. Nesse caso específico, cada passo de
da época (Montgomery Clift) sem soar farsesco. Wayne, um andar que mais parece uma marcha
sem charme de um velho homem viril e durão e
E mais, há a relação pai e filho desenvolvida entre reflete em sua mise-en-scène o universo dos ma-
ambas as personagens, rompida devido à tirania chões, ou seja, não há máscaras, as personagens
de Wayne, que acaba percebendo o quanto estava são o que são. Jacques Rivette confirma tal fato
errado depois de uma briga com Clift no meio da ao dizer que Hawks observava as ações
lama. Além disso, há o domínio da narrativa, uma
vez que impera a não ação com poucos aconteci- com meticulosidade e paixão. É as ações que
mentos de fato, com o clímax do desenlace entre ele filma, meditando sobre o poder autônomo
Wayne e Clift se dando apenas na meia hora final da aparência. Não nos preocupamos com os
do filme. Por isso a representação da vida, uma vez pensamentos de John Wayne enquanto ele anda
que nela grandes ações não ocorrem o tempo in- em direção a Montgomery Clift ao final de Rio
teiro, são concentradas em momentos específicos. Vermelho [...]: nossa atenção é direcionada uni-
camente para a precisão de cada passo – o exato
Assim, Hawks acompanha o dia a dia desses ho- ritmo do andar, de cada golpe – e o gradual
mens condutores de gado com uma câmera à altu- colapso do corpo exaurido (RIVETTE, 1953).
ra do olhar do ser humano (sua principal marca) e
à espreita de algum acontecimento, em tom quase Outro ponto interessante na obra de Hawks diz
realista – porém sem a pureza de Anthony Mann respeito ao fato de o diretor haver feito filmes muito
e Budd Boetticher, por exemplo –, quase como se parecidos entre si, alguns quase reinvenções de si
estivesse seguindo aquelas personagens. mesmos, outros reencenações de temas vistos em
realizações anteriores. Esse é também o caso de
Por fim, há uma das marcas mais fortes de Hawks: seus westerns. O Rio da Aventura, por exemplo, é
a obsessão por adereços que completam suas uma espécie de refilmagem de Rio Vermelho, uma
personagens e trazem algum significado para vez que a temática é idêntica, com personagens e
elas - no caso específico de Wayne, uma pulseira situações parecidos entre si. O cenário continua

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sendo o Velho Oeste, a manada de bois que deve sua própria sorte. Dessa forma, ao contrário do
ser conduzida de um local a outro é substituída protagonista Will Kane, de Matar ou Morrer, John
por uma embarcação e a relação pai e filho dá T. Chance (o xerife de Onde Começa o Inferno) conta
lugar à fraternidade entre dois amigos. Todavia, o com a ajuda de seus dois assistentes, o alcóola-
tom de homenagem aos pioneiros da colonização tra Dude, vivido por Dean Martin, e Stumpy, um
americana ainda está presente, assim como os velho manco e banguela, interpretado por Walter
temas da masculinidade e da maturidade, que Brennan, além de Colorado Ryan, um jovem cowboy
chega para um dos protagonistas quando ele se de gatilho rápido, personagem representado por
une em matrimônio com uma índia. Ricky Nelson.

Além disso, a comparação entre Rio Vermelho ao Hawks trabalha com a falta de uma história pro-
lado de O Rio da Aventura com A Grande Jornada priamente dita em boa parte do filme, uma vez que
(The Big Trail,1930), de Raoul Walsh, e Caravana de a narrativa evolui em função das personagens, o
Bravos (Wagon Master, 1950), de John Ford, torna-se que já havia sido experimentado em Rio Vermelho e
inevitável, uma vez que ambos os filmes de Hawks O Rio da Aventura. O próprio diretor, em entrevista
são obras que tratam dos colonizadores pioneiros, ao cineasta e crítico de cinema Peter Bogdanovich
daqueles que construíram a América moderna fala sobre isso:
através de seu sacrifício, tendo sido realizados
em tom elegíaco e de homenagem, porém sem Decidi que o público estava ficando cansado de
a heroicidade e a mitologia do filme de Walsh ou tramas; [...] Rio Bravo1 e Hatari! quase não têm
do de Ford. trama – há mais a caracterização e o diverti-
mento de contar uma história. [...] Quando se
Hawks retornaria ao universo do western apenas faz um filme com enredo, há certa tendência
sete anos após O Rio da Aventura, exatamente com de o público pensar: ‘Ih, já vi isso antes’. [...]
um de seus mais memoráveis filmes: Onde Começa Mas quando não se diz qual é a trama, há uma
o Inferno, espécie de resposta a Matar ou Morrer chance de despertar o interesse. Isso também
(High Noon, 1952), de Fred Zinnemann, maior re- conduz as personagens que motivam a história:
presentante dos chamados westerns psicológicos acontece porque a personagem acredita que a
e analogia sobre a “caça às bruxas” empreendida situação acontece, não porque esteja escrito
pelo Senador Joseph McCarthy contra aqueles que num roteiro.
compactuavam com ideias comunistas.
Se tal estratégia confere um ritmo por vezes lamu-
Apresentando uma história análoga à do filme de rioso a Onde Começa o Inferno, é porque essa era
Zinnemann – xerife é ameaçado por bandidos, só a intenção. Suspender a narrativa em pequenas
que dessa vez por um fora da lei que deseja libertar doses é em si um ato de mergulhar o espectador
seu irmão da cadeia –, Hawks dá um tratamento na própria ação dos mocinhos que irão se defron-
humorístico à sua narrativa, como se dissesse a tar com seus inimigos. Hawks celebra, assim, o
Zinnemann que o western não é um lugar para se profissionalismo do xerife e dos seus comandados
1.Título original
de Onde Começa o discutirem elementos psicológicos e que é um em defender a lei e a ordem, deixando claro que
Inferno. absurdo um xerife do Velho Oeste ser deixado à homens com tamanha responsabilidade nunca ha-

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veriam de ter dúvidas quanto a cumprir seu dever. igualmente uma personagem tomada pela bebida
Os homens sabem que devem proteger a cidade e alcóolica devido a um romance malsucedido, no
é isso que fazem, entendendo que contarão com caso o xerife J. P. Harrah, interpretado por Robert
a solidariedade local, pois Hawks não hesita em Mitchum, auxiliado pelo pistoleiro Cole Thornton,
compreender o fato de a população americana vivido por John Wayne, para combater um grupo
guardar como uma de suas características o as- de bandidos.
pecto de solidariedade.
Apesar de as personagens serem muito parecidas
O tema da amizade viril novamente invade a nar- com as do western anterior de Hawks – inclusive
rativa, dessa vez com a personagem da jogadora um jovem que tem habilidade com facas, Mississip-
de pôquer, Feathers, interpretada pela bela Angie pi, vivido por James Caan, e Bull, um velho caçador
Dickinson, como uma espécie de representação da de índios, ambos lembrando, respectivamente, o
mulher moderna, que tem orgulho de sua femi- Colorado Ryan e o Stumpy de Onde Começa o Inferno
nilidade, mas, ao mesmo tempo, convive de igual –, o diretor acrescenta um novo tema: a velhice
para igual com os homens, inclusive entendendo que toma Harrah e Thornton. Dessa forma, Hawks
a dificuldade que eles têm de expressar seus sen- recorre a objetos que simbolicamente represen-
timentos. Para Hawks, as mulheres atrapalham a tam esse fato: uma bala de revólver alojada perto
ordem natural do mundo dos homens, edificada em da coluna de Thornton e a garrafa de uísque de
cima do trabalho, ou, no caso específico de Chance, Harrah, ambas porque prejudicam os personagens,
um trabalho que leva consigo o perigo, uma vez imobilizando-os para a ação.
que ele está sob fogo cerrado a todo o momento
e tem de recorrer à violência mesmo contra a sua Rio Lobo segue praticamente a mesma trajetória,
vontade. Atrapalham porque geralmente as mu- com John Wayne como um coronel da União em
lheres não compreendem a profissão dos homens. meio à Guerra Civil, tendo de se juntar a um oficial
sulista para se vingar de um traidor que lhe fez
Chance tem um exemplo próximo a si que o faz perder um carregamento de ouro. Apenas a or-
temer um relacionamento: Dude, seu assistente dem é invertida, pois, enquanto em Onde Começa
beberrão, que se tornou um alcóolatra devido ao o Inferno Dude era sequestrado pelos bandidos
fato de ter sido abandonado por sua amada, que para ser feito de refém e trocado pelo preso, em
da mesma forma não entendia sua profissão e a Rio Lobo Wayne e seu parceiro usam um refém
brutalidade em que ele estava inserido. Porém, para substituí-lo por um inocente encarcerado.
Feathers, como dito anteriormente, é uma mulher
moderna, que não abandona o pôquer para se Hawks se celebrizou exatamente por ter conta-
enlaçar com Chance, além de não exigir dele um do praticamente a mesma história a vida inteira,
estilo de vida diferente, longe da violência. inclusive em seus westerns – ou, como diria um
personagem de Rio Lobo, personificação do próprio
As características expostas até aqui se encontram diretor, que é interpelado por alguém por sempre
também nos dois últimos westerns de Hawks: El tocar um mesmo instrumento: “Eu treino essa nota
Dorado e Rio Lobo, reencenações dos mesmos porque é a única que eu sei tocar.” Essa celebração
temas de Onde Começa o Inferno. No primeiro, há da simplicidade da vida nos filmes de Hawks, em

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que as coisas são o que são sem nenhum signi- ROCHA, Glauber. Western: Introdução ao Gênero e
ficado oculto, faz pensar que, se por infelicidade ao Herói. In: O Século do Cinema. São Paulo: Cosac
ou qualquer outro motivo, em algum dia, o cinema Naify, 2006.
deixar de ser o que é ou passar a ser esquecido
por todos – e alguém perguntar o que foi essa arte, VUGMAN, Fernando Simão. Western. In: MASCA-
basta pegar uma velha e empoeirada cópia de RELLO, Fernando (org.). História do Cinema Mundial.
Onde Começa o Inferno ou qualquer outro western Campinas: Papirus, 2006.
ou filme de outro gênero de Hawks e exibi-lo. Isso
poupará qualquer descrição tola e tudo estará
perfeitamente entendido.

| Jefferson Assunção |

Referências bibliográficas
ARAÚJO, Inácio; TOSI, Juliano (org.). Cinema de
Boca em Boca: escritos sobre cinema. São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010.

BAZIN, André. Evolução do Western. In: O Cinema:


ensaios. Trad.: Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1991.

BOGDANOVICH, Peter. Afinal, quem faz os filmes.


Trad.: Henrique W. Leão. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997.

MATTOS, A. C. Gomes de. Publique-se a lenda: a


história do western. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

RIVETTE, Jacques. O Gênio de Howard Hawks. In:


Cahiers du Cinéma. Maio de1953.

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ESBOÇOS DE UMA OBRA
Mais do que qualquer outro dos cineastas ameri- Caminho da Glória - The Road to Glory, de 1926 (o
canos a estrear ainda no período mudo, Howard diretor realizaria outro filme com mesmo nome
Hawks não pertence ao período. É como se seus dez anos depois, mas eles não têm nenhum ponto
filmes mudos estivessem sempre aguardando o de contato para além do título). A julgar pelas des-
momento em que a chegada de diálogos pudesse crições do próprio, tratava-se de um melodrama
liberar por completo a concepção de personagem pesado, que seguia uma das modas da época, o
muito cara ao diretor. Se a chegada do som se reve- que deixou o cineasta muito insatisfeito. Os pri-
laria pouco relevante para King Vidor ou Josef Von meiros longas de Hawks frequentemente expõem
Stenberg e só um elemento a mais para John Ford, essa tensão entre seguir modismos da época e
ele será essencial para Howard Hawks. Pensemos os gostos bem particulares do cineasta, reflexo
no mais antigo dos filmes de Hawks, Adão e Eva... de realizador que ainda não havia conquistado o
(Fig Leaves, 1926). Trata-se de uma comédia de capital para realizar o que quisesse. O mais antigo
guerra dos sexos que surgiu uma boa década antes dos seus filmes sobreviventes, Adão e Eva..., é não
do tempo. A sua concepção de comédia tem pouca só um dos seus melhores trabalhos da época, mas
relação seja com a boa ou com a má comédia muda, um dos que melhor resolvem tal tensão.
o que fica claro, por exemplo, na forma como o
filme coloca ênfase na troca de diálogos nos in- Segundo o diretor – sempre fonte questionável,
tertítulos. Enquanto a maior parte dos cineastas dada a sua mitomania – Adão e Eva... surgiu como
americanos do período tentava tirar a ênfases dos espécie de resposta à sua estreia, numa tentativa
intertítulos (um elemento que era sempre difícil de mostrar que poderia realizar um filme com
de os realizadores controlarem), Hawks colocava grande apelo junto ao público. Suas premissas são
ênfase sobre eles. Os filmes silenciosos de Hawks bem claras, com uma estrutura tirada do muito
apontam para muito do que seria essencial no popular Os Dez Mandamentos (The Ten Comman-
cinema americano da década de 1930, se ainda dments, 1923), original de Cecil B. De Mille (pre-
limitados pela ausência dos diálogos rápidos que lúdio bíblico seguido de ação contemporânea) e
marcariam o período e seguiriam centrais por todo uma trama cômica ligeira de opor seu casal de
o cinema do diretor. Ainda assim, Howard Hawks protagonistas vividos por um par de atores muito
dirigiu oito filmes entre 1926 e o seu primeiro longa populares (George O’Brien e Olive Borden). Co-
sonoro A Patrulha da Madrugada (The Dawn Patrol, meçamos com Adão e Eva reencenando as agru-
1930) e, apesar de representarem a parte menos ras de um casamento num Éden todo anacrônico,
conhecida da sua obra, não deixam de ser filmes com um Adão turrão e uma Eva que não para de
significativos dentro do processo de formação de reclamar de que precisa de vestidos melhores,
um dos olhares mais coesos de todo o cinema. até dissolvermos para os EUA, em 1926, quando
o encanador Adam Smith está às turras com a
Nem todos os filmes mudos de Hawks sobrevive- pressão da esposa, Eve, que quer uma mesada
ram ao tempo. Entre as perdas está a sua estreia maior para poder comprar mais vestidos.

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Se o gancho da estrutura é primeiramente uma Nem sempre, porém, o cineasta conseguira ne-
forma de vender o filme junto ao espectador, ele gociar com tanta propriedade a necessidade de
termina por ser essencial ao projeto como um todo. se adaptar a estilos da moda. Pago para Amar
Permite ao filme costurar uma sensação constante (Paid to Love, 1927) existe em algum ponto entre
de permanência que termina diferenciando-o de F. W. Murnau e Ernst Lubtisch. Realizado na Fox
outras comédias do tipo feitas à época. Não pelo à mesma época que Aurora, o filme não escapa à
contraste, a piada óbvia, ou pela simples repetição, sombra da obra-prima de Murnau, com sua foto-
mas pela forma como a postura de George O’Brien grafia rebuscada, apesar de Hawks manter sua
permanece imutável seja diante da estilização car- câmera próxima à simplicidade que domina sua
tunesca do Éden ou do suposto naturalismo de mise-en-scène. De Lubtisch, Pago para Amar extrai
estúdio das cenas contemporâneas. A comédia é a boa parte do seu universo de exoticismo euro-
mesma no espaço absurdo como na ilusão do real, peu, se aproximando dos vários filmes derivados
assim como o casal. É uma concepção muito pró- de operetas muito populares à época. O cineasta
pria tanto de humor como do tema que garantem emprega um olhar bem mais seco e pragmático
ao filme um ar moderno e apontam para as muitas do que em outros filmes do gênero, mas é ine-
batalhas sexuais posteriores da carreira do diretor, gável que a aristocracia europeia é um espaço
com seu Adão imutável diante de cada situação – a estranho a ele, assim como o romance de verve
aparência aborrecida de George O’Brien nunca foi lubtischiana e, por mais que ele busque preencher
tão bem utilizada, um pouco como a falta de jeito o filme de detalhes que lhe interessem, há um
de John Wayne para encanar o herói romântico desencontro entre cineasta e objeto que nunca
seria nos últimos faroestes – e uma Eva agressiva se resolve de todo.
que sabe o que quer como um primeiro protótipo
da mulher hawksiana. Uma descrição da trama principal é muito infor-
mativa: um país fictício do leste europeu que vê
A pergunta “o que podemos fazer para nos di- um empréstimo ameaçado pela falta de interesse
vertirmos um pouco aqui?”, que é tão frequente do príncipe herdeiro em mulheres, o que obriga
na filmografia do diretor, anima sua abordagem o rei e o embaixador americano a importar uma
aqui. As cenas do Éden, por exemplo, estilizam dançarina para despertar o interesse do rapaz. Só
toda a direção de arte e figurino de forma a criar que eles se conhecem sem saber da identidade um
um absurdo constante e permitir brincar de forma do outro e se apaixonam. Qualquer bom editor diria
jocosa com a percepção do espectador do que que eu apresentei a sinopse de forma a enterrar
seria o Paraíso (que termina soando mais como o que seria o principal. Só que é assim que Pago
uma “idade da pedra” cartunesca do que o habitual para Amar se apresenta (o filme gasta vinte dos
sentido bíblico). Mais tarde, quando o diretor pre- oitenta minutos com a introdução e não porque ele
cisa filmar uma série de desfiles de moda – uma busque algum ritmo mais deliberado). É como se
das complicações da trama é justamente Eve se a moldura do filme tomasse conta dele, sufocasse
tornar secretamente uma modelo –, procura evitar toda a ação central. Hawks parece buscar uma
o tom protocolar da mesma maneira, mesmo que familiaridade maior em detalhes como os hobbies
contando com muito menos elementos para isso. do protagonista ou a maneira como a dançarina

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sugere um primeiro esboço da mulher da vida que, que os particulares específicos da relação dos
de Louise Brooks - em Uma Garota em Cada Porto protagonistas ganhem uma força extra e parece
(A Girl From Every Port, 1928) - a Angie Dickinson - especialmente preocupado em tornar o filme mais
em Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, 1959) -, surge universal do que um simples choque cultural. Fazil
para, de forma mais ou menos benigna, atrapalhar se revela, após sua charmosa meia hora inicial,
a vida dos seus heróis. O resultado final sugere um cruel filme de horror sobre matrimonio e é
dois personagens hawksianos perdidos em meio bem claro que seu cineasta vê seu material como
a maquinações que pouco lhes dizem respeito. o pior desenlace possível para qualquer relação
e não só aquela entre um árabe e uma ocidental.
Já Fazil (Fazil, 1928) sugere um verdadeiro filme de
terror sobre casamento. Trata-se de um roman- Será somente no final da fase muda que Hawks
ce exótico entre o príncipe árabe do título e uma finalmente encontrará o veículo perfeito que, de
burguesa francesa. O tom perverso da narrativa, certa forma, animará muitos dos seus filmes pos-
assim como certas opções visuais sugerem Josef teriores. É uma grande ironia que o filme essencial
Von Sternberg, para quem Hawks recentemen- no qual boa parte do que pensamos como “um
te escrevera Underworld. Fazil (Charles Farrell) filme de Howard Hawks” tenha nascido do desejo
conhece sua noiva (Greta Nissen) numa viagem a do estúdio de desenvolver um veículo para Victor
Veneza; fazem ótimo sexo (estamos ainda alguns McGlen, nos moldes do muito popular Sangue por
anos antes do Código Hays), casam-se no impulso Glória (What Price Glory?, 1926), que Raoul Walsh
e só depois percebem que nenhum dos dois está dirigira dois anos antes. A sensibilidade de Hawks
disposto a mover-se minimamente dentro dos seus é muito distante do seu amigo Walsh (a despeito
hábitos culturais. Segue-se uma hora em que os de frequentemente serem colocados na mesma
dois, sem intenção, torturam constantemente o vala), mas, no processo de respeitar a aventura
outro. um tanto picaresca que se espera de um filme
de McGlen, encontrou o mundo hawksiano por
Não há nada na filmografia de Hawks similar a excelência.
Fazil, mas trata-se menos de uma questão de tom
ou tema do que de apresentação. Geralmente seus O filme se preocupa com a amizade competitiva
filmes mais carregados e apocalípticos são comé- de dois marinheiros (McGlen e Robert Armstrong)
dias que, por conta disso, disfarçam parcialmente que cortam o mundo disputando as mesmas mu-
seu conteúdo (pensemos em como, reduzido à lheres. Uma Garota em Cada Porto é o filme mudo
sua essência, Levada da Breca - Bringing Up Baby, mais prazeroso de Hawks, mas é também um
1938 - é sobre uma mulher que sistematicamen- trabalho quase abstrato. Um filme todo constru-
te destrói toda a vida de um homem), mas aqui ído a partir de uma série de princípios seguidos
estamos no terreno do melodrama mais direto somente pelos seus personagens centrais e no
possível acompanhado de um considerável toque qual, aos poucos, a aventura picaresca inicial vai
de crueldade que o diretor só ocasionalmente re- abrindo espaço para uma série de provações a
serva a alguns personagens à margem das suas testá-los. É o primeiro filme do cineasta no qual a
tramas. Hawks se esforça muito em fazer com moral hawksiana se revela como um todo e dentro

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do prazer da descoberta. É também o filme que como melhor desenvolver sua arte anos mais tar-
a revela de forma mais didática, especialmente de. À época lhe coube realizar esboços por vezes
na forma com que apresenta a amizade dos dois fascinantes como esse belo filme.
protagonistas que encontraria eco na maioria
dos seus filmes posteriores. Podemos aprender
muito sobre a obra de Hawks ao olhar para Uma | Filipe Furtado |
Garota em Cada Porto, dada a disposição do filme
em explicar suas relações e ideias. Se os outros
filmes mudos do cineasta por vezes são anima-
dos às margens, numa tentativa de contrabandear
detalhes pessoais para dentro dos filmes, Uma
Garota em Cada Porto se revela um deleite cena
a cena, nos pequenos detalhes pessoais como as
tatuagens que marcam as mulheres a cada porto,
muito melhor integradas à ação.

Um diferencial entre Uma Garota em Cada Porto e


a maior parte dos filmes posteriores de Howard
Hawks é que se trata de um filme rodado no tempo
presente. Na maior parte dos filmes do cineas-
ta centrados num grupo de aventureiros existe
sempre a ideia de que se trata de filmes sobre
homens ultrapassados que se refugiam em algum
espaço isolado para melhor poder cultivar seus
valores - os aviadores de Paraíso Infernal (Only
Angels Have Wings, 1939) e os caçadores de Hatari!
(Hatari!, 1962) são provavelmente os exemplos mais
bem acabados disso. Nada disso será necessário
para o par de amigos de Uma Garota em Cada Porto.
McGlen e Armstrong são personagens confortá-
veis consigo mesmos como nenhum outro dos
heróis hawksianos, homens do seu tempo e não
desajustados com ele. Mais do que qualquer outro
filme de Hawks, Uma Garota em Cada Porto ajuda a
expor a contradição bem no centro do seu cinema:
trata-se de um artista alinhado muito diretamente
à ficção americana da década de 1920 (A Patrulha
da Madrugada segue o que de mais próximo a He-
mingway o cinema americano chegou, apesar de
se tratar de material original), que só encontrou

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A PRESENÇA DO GRUPO
EM HOWARD HAWKS
Vários são os filmes de Howard Hawks caracteriza- seu autor em que o personagem principal morre.
dos pela presença de um grupo. Ele, que realizou Quase sempre a aventura em Hawks vem mistu-
grandes obras em praticamente todos os gêneros rada com boas doses de humor, mas a condição
cinematográficos, tem filmes marcantes em que de comédia de Bola de Fogo (e de sua refilmagem
indivíduos estão no centro isolado das ações. Mas inferior, A Canção Prometida - A Song is Born, 1948)
no western (Red River, The Big Sky, Rio Bravo, El faz com que alguns personagens se aproximem de
Dorado e Rio Lobo – ou seja, todos os que dirigiu), caricaturas e passem por situações grotescas e
no filme de aventuras (The Dawn Patrol, The Crowd ridículas, o que sempre os faz crescer como seres
Roars, Only Angels Have Wings, Air Force, Hatari!, humanos. Dos grupos, fazem parte elementos de
Red Line 7000), no filme de gângsteres (Scarface), ambos os sexos, embora o número de mulheres
até mesmo na ficção científica (The Thing From seja sempre inferior ao de homens. Há, inclusive,
Another World)1que, mesmo assinado por Christian pelo menos um caso em que elas simplesmente
Nyby, montador de alguns filmes de Hawks, deixa não aparecem: é A Patrulha da Madrugada (The
claro a quem o assiste que se trata essencialmente Dawn Patrol, 1930), no qual uma esquadrilha de
de uma obra do cineasta, fato atestado por muitos aviação, sediada em algum ponto da França, du-
que fizeram parte da equipe técnica, que garantem rante a Primeira Guerra Mundial, não tem espaço
que ele era quem realmente dava as ordens no para a presença feminina. Afinal, a par de apresen-
set de filmagem), lá está o grupo buscando levar a tar um ponto de vista eminentemente masculino
cabo uma tarefa difícil e arriscada. A exceção, no (afinal, são filmes dirigidos por um homem que, 1. Nomes dos
caso, são as comédias, nas quais o fracasso e o no entanto, tiveram como roteirista em muitos filmes em
deboche recaem sobre indivíduos, mas mesmo aí deles uma mulher, a grande Leigh Brackett), a português: Rio
não há unanimidade – e o exemplo mais evidente dificuldade das tarefas, que muitas vezes inclui Vermelho, O Rio
da Aventura, Onde
é Bola de Fogo (Ball of Fire, 1941), em que um gru- a violência, exige o controle que Hawks vê como Começa o Inferno¸
po de eruditos é confinado em uma casa, com o uma característica dos homens. Suas mulheres, El Dorado, Rio
objetivo de preparar uma enciclopédia. sempre muito femininas, não se impõem pela força Lobo, A Patrulha
e, sim, pela malícia; estão sempre no comando da Madrugada¸
Delirante, Paraíso
Nenhum grupo de Hawks se parece com o outro; das situações, mas graças à sua capacidade de Infernal, Águias
cada um apresenta peculiaridades de acordo com desconcertar os machos através de suas reações Americanas,
a história narrada. Assim, em Scarface - a Vergonha imprevisíveis e inesperadas. Não são especialis- Hatari!, Faixa
de uma Nação (Scarface, 1932) o grupo se coloca tas, como seus colegas masculinos; sua função Vermelha 7000,
Scarface – a
à margem da lei e executa ações violentas, das é mais a de prover a estabilidade necessária à Vergonha de uma
quais o assassinato é apenas uma delas. Não é por execução das tarefas. Mas têm características que Nação, O Monstro
outro motivo que se trata de um dos raros filmes de as aproximam muitas vezes do sexo oposto: são do Ártico.

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atrevidas, às vezes arrogantes, vestem-se mui- Também variam bastante as relações entre os
tas vezes à maneira masculina, usando calças componentes do grupo. Quase sempre, a maciça
compridas, e fumam desbragadamente. Quase presença masculina implica uma forte compe-
sempre tomam a iniciativa da conquista, frente a titividade; às vezes, trata-se basicamente disso,
homens aparvalhados diante de seu ímpeto. Mas como o demonstram os filmes sobre automobi-
que ninguém duvide de sua feminilidade: são es- lismo (Delirante - The Crowd Roars, 1932 -, Faixa
sencialmente modernas, na sua maneira de se Vermelha 7000 - Red Line 7000, 1965), nos quais
comportar diante de um mundo que tenderia a a disputa por títulos exige o confronto, deixando
engoli-las, se agissem diferente. quase de lado as relações de amizade e compa-
nheirismo. No outro extremo está uma obra como
Os grupos, nos filmes de Hawks, embora represen- Águias Americanas, na qual o sucesso da missão
tantes legítimos da sociedade na qual se inserem, depende, sobretudo, do compromisso individual
quase nunca estão em contato direto com essa com o objetivo da missão, fazendo de cada um
sociedade. São vistos em núcleos isolados, dis- cúmplice da meta comum. Próximo dessa situação
tantes de qualquer centro urbano. Em O Monstro é o apoio irrestrito dos enciclopedistas à união
do Ártico (The Thing From Another World, 1951), por do jovem professor vivido por Gary Cooper com a
exemplo, toda a ação se passa em uma estação namorada de um gângster. São homens idosos,
polar, na qual cientistas investigam a descoberta que se entusiasmam diante da possibilidade de
de um disco voador acidentado. Com eles, apenas uma relação com a qual não mais podem sonhar,
uma mulher tem papel preponderante. Em Hatari! o que deixa claro sua generosidade. Antagonismos
(Hatari!, 1962), caçadores de animais para zoológi- podem existir, mas, se levados a extremos, seja por
cos (que não os matam, apenas os capturam) estão que motivo for, acabam prejudicando o sucesso
em um acampamento em algum lugar da Tanzânia, final. Mais uma vez, o exemplo é O Monstro do Ártico,
no interior da África; em Águias Americanas (Air em que a posição divergente de alguns cientistas
Force, 1943), boa parte da ação acontece a bordo diante da captura de um alienígena quase provoca
de um avião, uma fortaleza voadora que, durante uma tragédia. Em um nível mais ligeiro, é o que
a Segunda Guerra Mundial, atua no Pacífico. Aqui, acontece em Hatari!, em que dois integrantes do
as mulheres são vistas apenas no momento de se grupo disputam o amor de uma garota – que, no
despedir de seus maridos ou filhos. Em Paraíso final das contas, demonstra sua preferência por
Infernal (Only Angels Have Wings, 1939), o cenário um terceiro. Acontece ainda de, em certos casos,
é o fictício porto sul-americano de Barranca, ex- o grupo se subordinar a temas que, em determi-
portador de banana, no qual também opera uma nada história, interessavam mais a Hawks. É o que
unidade de correio aéreo. As exceções são Scar- acontece em O Rio da Aventura (The Big Sky, 1952),
face - a Vergonha de uma Nação, no qual o grupo em que há, sim, a presença de um grupo, mas
executa suas atividades na cidade grande, e Bola neste caso o cineasta se mostra mais interessado
de Fogo (sempre é bom relembrar: é uma comé- em desenvolver outro de seus temas básicos: a
dia), em que a ação dos enciclopedistas acontece amizade entre dois homens – no caso, entre Kirk
praticamente todo o tempo intramuros, em uma Douglas e Dewey Martin.
casa em Nova York, tornando-os isolados do meio
em que vivem e trabalham.

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Nos grupos hawksianos, a autoridade está sempre uma figura paternal, que se preocupa e zela pelo
implícita, mas raramente é imposta. Cada um re- conforto, bem-estar e segurança de seus compa-
conhece seu espaço e procura se ater a ele. Dispu- nheiros. Para integrar o grupo, cada um tem que
tas, nessa área, acontecem quando subordinados demonstrar perícia e integração ao espírito geral.
investem contra seus superiores, quase sempre Veja-se, por exemplo, a iniciação do francês Chips
ignorando ordens ou orientações que, depois, irão (Gérard Blain) em Hatari!: ele passa por um teste
se provar corretas e necessárias. Em A Patrulha de suas habilidades com uma arma, após haver
da Madrugada, por exemplo, o chefe dos aviadores, demonstrado seu espírito de união, ao doar sangue
vivido por Richard Barthelmess, assume um voo para outro integrante que havia sido ferido por
ignorando as diretrizes de seu comandante – e, por um rinoceronte. Em El Dorado (El Dorado,1966), há
isso, encontra a morte. Em Onde Começa o Inferno também um desses momentos especiais: o jovem
(Rio Bravo, 1959) o delegado Dude (Dean Martin) vivido por James Caan entra em um saloon no qual
atinge na cabeça o xerife que testemunha sua estão John Wayne e o último dos assassinos do
humilhação ao apanhar um dólar em uma escar- homem que o criou. Caan mata esse elemento e é
radeira, a fim de satisfazer seu alcoolismo. Mais àadmirado por Wayne por isso. Na mesa onde estão,
frente, ele novamente agride seu superior e ouve o chefe daquele pistoleiro medíocre comenta com
dele a observação: “É a segunda vez que você me Wayne que não havia necessidade de usar quatro
atinge; não repita mais isso”. Em Paraíso Infernal,homens para matar um velho, ouvindo como res-
o personagem de Thomas Mitchell, cuja visão está posta: “é porque eles não são bons”. Nesse breve
cada dia pior, ignora a orientação do chefe, Cary diálogo, fica clara a postura de Hawks: todo grupo
Grant, e parte para mais uma missão aérea. Volta é composto, obviamente, por indivíduos – mas cada
com o pescoço quebrado e morre em seguida. Mas um deve ser competente o bastante para resolver
há pelo menos um exemplo marcante de excesso seus próprios problemas. Só então ele terá uma
de autoridade, que se vê em Rio Vermelho (Red River,
real contribuição a dar ao conjunto. E, inversa-
1948), quando o homem que comanda o transporte mente, poderá se beneficiar da contribuição dos
da boiada – vivido com enorme competência por demais integrantes, quando se tratar de adminis-
John Wayne – comete inúmeros excessos e acaba trar dificuldades que só um elenco unido poderá
por se comportar como um tirano. É rejeitado por solucionar. Na vida real, contudo, Hawks era mais
seus comandados e vê sua autoridade refutada. rígido que seus personagens. Tornou-se conhecido
Esse conceito de autoridade surge naturalmente o desentendimento que teve com Harry Carey Jr.,
nos filmes de Hawks – ou então não vigora. contratado para viver um papel em Onde Começa
o Inferno. A relação ia bem até o momento em que
Em Hawks, diferentemente do que se vê nos filmes o ator (cujo pai foi um famoso astro do cinema
de seu grande amigo John Ford, a autoridade não mudo, tendo trabalhado várias vezes com Ford e
é uma questão de hierarquia. Trata-se de pessoas sendo também um dos principais personagens em
adultas, que assumem responsabilidades e que Águias Americanas), julgando-se à vontade para
sabem que terão que prestar contas por cada um chamar o diretor de “Howard”, percebeu que ele
de seus atos – não à sociedade, mas a si mesmos. ficou furioso por não ter sido tratado como “Mr.
Assim, o líder (papel sempre vivido por John Way- Hawks”. Foi imediatamente mandado embora e
ne, nos filmes que fez com Hawks) tem muito de seu personagem simplesmente desapareceu do

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filme. No entanto, por razões contratuais, teve venderam informações aos inimigos, as quais aca-
seu nome mantido na ficha técnica, o que causou baram por matar alguns de seus amigos. Ou seja,
espanto em muitos críticos. ele investe contra aqueles que quebraram o código
de ética hawksiano. Não é mesmo fácil recriar uma
Talvez o maior problema nos filmes que dizem obra que beire a perfeição e El Dorado e Rio Lobo
respeito ao grupo esteja em Onde Começa o Inferno são mesmo inferiores a Onde Começa o Inferno,
e nos dois outros que se relacionam diretamente mas de forma alguma são indignos de atenção.
com ele, El Dorado e Rio Lobo (Rio Lobo, 1970). Onde São, até, muito bons filmes, que se diferenciam
Começa o Inferno foi um dos maiores sucessos de do original em detalhes significativos: enquanto
bilheteria de Hawks; imediatamente antes dos ou- Onde Começa o Inferno é uma obra marcadamente
tros dois, ele havia feito alguns filmes – O Esporte solar, El Dorado e Rio Lobo, filmes da velhice, são
Favorito dos Homens (Man’s Favorite Sport?, 1964) e obras noturnas, crepusculares.
Faixa Vermelha 7000 que foram fracassos financei-
ros. Decidiu ele, então, voltar a um porto seguro e Hawks começou a filmar ainda no tempo do cinema
rodou os dois outros westerns, seus últimos filmes. mudo. Sua carreira é uma longa trajetória, do ar-
Não são propriamente refilmagens; melhor seria tesão a serviço dos grandes estúdios ao produtor-
considerá-los variações em torno do mesmo tema. -diretor de seus filmes. Durante esse caminho,
A bem da verdade, são até bastante diferentes, adquiriu também a consciência que caracteriza
embora muitas sejam as citações que o diretor todo grande autor moderno, o que pode ser obser-
faz de si mesmo, em termos de diálogos, cenas vado em dois pequenos detalhes que marcam as
e situações, o que faz com que alguns críticos fichas técnicas de seus filmes, a partir dos anos
desatentos pensem que Hawks está se repetindo. 1950: primeiro, em vez de inscrever “produced and
Nos três filmes, por motivos diferenciados, o grupo directed”, como o fazia a grande maioria de seus
se encontra no interior de uma cadeia, mantendo colegas, ele colocava “directed and produced”, ou
preso um notório fora da lei e sofrendo o assédio seja, invertia a ordem de apresentação, com o
dos rivais. Mas, até que isso aconteça, situações “directed” em letras maiores que o “produced”.
básicas distintas se apresentam. Em El Dorado, a Fica claro o tipo de trabalho que, para ele, era o
primeira parte é marcada pelo que o próprio Hawks mais importante. E seu nome, diferentemente do
denominou “tragédia grega”: a morte de um garoto que acontece com os demais integrantes da ficha
pelo próprio John Wayne. E em Rio Lobo, o painel técnica, não vem em letras maiúsculas: o que é
é ainda mais abrangente e iluminador: a primeira exibido é sua assinatura. Ou seja, ele sabia com
parte diz respeito à Guerra de Secessão, que dividiu segurança qual era o seu lugar e o que tinha a dizer.
os Estados Unidos em duas partes, Norte contra O grupo é tão somente uma das características
Sul. Wayne, nortista, tem como adversários dois marcantes de sua obra. A exemplo do seu amigo
sulistas que, na segunda parte, estarão ao seu Ernest Hemingway, ele poderia dizer em relação
lado. Tudo fica claro: o grupo não se deixa neces- ao mundo em que vivemos: “one man alone ain’t
sariamente influenciar pelas grandes tragédias got no chance”, isto é, “um homem sozinho não
coletivas; o que os move são modos de conduta tem chance”.
individual. O diálogo de Rio Lobo deixa isso claro:
os homens que Wayne odeia não são os sulistas,
mas alguns nortistas, seus colegas de farda, que | Paulo Augusto Gomes |

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O PILOTO HAWKS: AVIÕES E
CARROS DE CORRIDA
O máximo que os protagonistas hawksianos podem Breivold (Howard Hawks: Interviews), o cineasta
esperar do futuro é um café bem quente. É o único sintetiza essa intermediação com a seguinte ob-
desejo de Geoff Carter em Paraíso Infernal (Only servação: “Eu não tenho vontade de fazer um filme
Angels Have Wings, 1939), após deixar o escritório para meu próprio prazer. Felizmente, eu descobri
de seu serviço de encomendas aéreas para realizar que, o que eu gosto, a maioria das pessoas também
mais uma missão perigosa. Todas as atenções gosta. Então, eu só tenho que me deixar ir e fazer
estão voltadas para o presente, buscando cumprir o que me interessa”.
o seu dever e retornar para casa são e salvo até
sua vida ser colocada em risco novamente. Embora tenha entremeado projetos de outros gê-
neros na mesma época, Hawks enfatizou a questão
Os personagens dos filmes sobre aviação e cor- da aviação e da Primeira Grande Guerra, refle-
ridas automobilísticas, duas paixões de Howard xo natural de quem participou do conflito, como
Hawks fortemente representadas nos primeiros integrante do Corpo Aéreo do Exército, em 1918,
trabalhos do diretor, nas décadas de 1930 e 1940, mais tarde alocado para o posto de instrutor de
não são pessimistas ou estão psicologicamente voo - razão de ter assinado nada menos que seis
abalados a ponto de não terem qualquer ambição longas-metragens envolvendo perigosas aventuras
futura – eles até têm, mas seus planos se restrin- nos céus.
gem ao trabalho, como ganhar o próximo Grand
Prix ou fechar um negócio de entrega postal. O interesse pela vida de pilotos destemidos surgiu
em seu sétimo filme, Os Acrobatas Aéreos (The Air
O que os faz traçar metas em curto prazo é o extre- Circus), lançado em 1928. Após dois anos, abor-
mo profissionalismo, uma das características mais dou esse universo mais uma vez em A Patrulha da
marcantes dessa parte da filmografia de Hawks, Madrugada (The Dawn Patrol, 1930), lembrado até
fruto possivelmente da própria personalidade do hoje como uma das melhores produções sobre
realizador. Ele deixou claro em várias entrevistas aviação, ganhadora do Oscar de melhor história
que não objetivava criar uma grande obra pessoal, original. Depois se seguiram Vivamos Hoje (Today
querendo apenas “tell a goodstory” (contar uma We Live,1933), Heróis do Ar (Ceiling Zero,1936), Pa-
boa história) para ficar o mais próximo possível raíso Infernal e Águias Americanas (Air Force,1943).
do gosto do público.
Antes de ser tocado pelo cinema, Hawks era aficio-
E para chegar a esse estágio – simples, mas que nado por todo tipo de veículo a motor, automóveis
não é garantia de êxito – era fundamental tratar de e barcos inclusos. Os carros de corrida entraram
temas que eram de seu domínio. No livro de Scott em sua filmografia em 1932, com Delirante (The

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Crowd Roars) – e retornaram em Faixa Vermelha dor. Os comandantes são sempre os primeiros a
7000 (Red Line 7000), de 1965. Já sobre águas tur- tomar a frente para uma missão mais espinhosa.
bulentas, fez Uma Aventura na Martinica (To Have
and to Have Not, 1944). Todos eles (em menor grau É o próprio La Roche que recebe a ordem e
o longa mais recente, que reflete outra fase do cumpre uma ação suicida na grande investida dos
diretor) ofertam elementos muitos semelhantes. aliados, passando o comando para o tenente Denet
(Fredric March), justamente seu inimigo no amor
pela enfermeira Monique (June Lang). É a maior
Hierarquia prova de que o profissionalismo está em primeiro
lugar. Ao fim, Denet repete, palavra por palavra,
Os personagens centrais obedecem rigidamen- o discurso do capitão na apresentação aos novos
te a uma hierarquia, muito própria da disciplina soldados que chegam à guarnição.
militar, mesmo quando a contestam. Não é raro
encontrar um subalterno questionando a dureza Situação parecida experimenta o piloto Courtney
de seu superior para logo depois, ao ser promovido, (Richard Barthelmess) em A Patrulha da Madru-
se ver repetindo exatamente as falas e os gestos gada. Ele critica as ordens recebidas pelo major
que tanto condenava. Os chefes, na maioria das Brand (Neil Hamilton), que expõem combatentes
vezes, não são bem vistos inicialmente. Isso até ainda muito verdes e levam a muitas baixas. Como
se perceber o quão heroicos são ou foram. em vários outros filmes de Hawks, o comandante
aparece em sua sala, nervoso e ao telefone, com
Se tomarmos como exemplo o capitão francês um copo de bebida à mão, nitidamente ansioso
La Roche, de O Caminho da Glória (The Road to com o pouso dos aviões que retornam do front.
Glory,1936) - filme que não conta com aviadores ou
corredores em sua trama, mas tem como cenário É nessa mesma sala que Courtney estará logo
a Primeira Guerra -, obteremos o resumo perfeito depois, acatando ordens do quartel-general e
desse conflito. Vivido por Warner Baxter, ele é um mandando os mais novos para batalhas que
típico personagem hawksiano que esconde suas ainda não poderiam travar. Seu melhor amigo,
emoções verdadeiras, por intermédio de muito Scott (Douglas Fairbanks Jr.), rompe os laços de
conhaque e aspirina, para não deixar o horror da amizade, por achar que ele está seguindo o perfil
guerra se abater sobre os soldados. do chefe anterior. Até que, como em O Caminho
da Glória, Courtney assume sozinho uma missão
Uma de suas primeiras ações pode ser de uma sem volta, sendo substituído por Scott no comando
condenável frieza num primeiro olhar, quando da frota.
mata um de seus homens moribundo na “terra
de ninguém” (o espaço entre as duas trincheiras A trajetória de Carter (Cary Grant) se desenvolve
inimigas). Após vários combatentes tentarem inu- de forma idêntica em Paraíso Infernal. A primeira
tilmente salvá-lo, servindo de alvo fácil para os impressão que ele provoca também é negativa,
alemães, ele pega seu revólver e atira, encerrando especialmente em Bonnie Lee (Jean Arthur), uma
assim a angústia daqueles que ouviam os gritos de corista que desembarca em Barranca, cidade da
América do Sul próxima à Cordilheira dos Andes.

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Bonnie assume a posição do espectador, ao ser na mesma equipe de corrida, ele se interpõe entre
inserida num universo masculino em que pilotos Greer e seu irmão, Eddie, durante uma prova, para
arriscam o pescoço a cada decolagem. que os dois não provoquem um acidente. É Connors
quem acaba morrendo, abrindo caminho para a
Carter realmente passa a ideia de estar pouco se decadência do grande campeão de Indianápolis.
importando com a vida de seus funcionários. Após
a queda do avião de Joe, responsável por levar Denet mente que uma granada foi acionada, ma-
Bonnie à empresa (que também é restaurante e tando os companheiros, por alguém que já está
hotel), ele come o bife que havia sido reservado morto, quando o verdadeiro culpado foi o trans-
para o morto e inicia uma cantoria animada. A tornado pai de La Roche. Assim identificamos
garota protesta e tardará a entender que é a forma que uma das mais ressaltadas características de
como aqueles homens lidam com a morte, sempre Hawks foi desenvolvida a partir de trabalhos em
tão próxima. que a fraternidade e a lealdade são fundamentais.
Ou seja, em campanhas e atividades de risco nas
Um diálogo entre Carter e o proprietário Dutch quais a família ou as mulheres geralmente não
ilustra essa situação. “Joe morreu voando, não estão presentes.
é? Era o trabalho dele. Só que ele não era tão
bom. Por isso aconteceu”, assinala o personagem Os campos de batalha, as provas automobilísticas
de Grant. “Não sou tão duro quanto você. Eu não e as pistas de aviação são ambientes propícios
deveria estar neste ramo”, responde Dutch. “O que para o desenvolvimento desse tipo de relação, em
adianta lamentar alguém que não tem limites. Se que pode soar estranho um brinde para o próximo
não fosse hoje, seria outro dia”, encerra Carter, piloto que morrer (em A Patrulha da Madrugada),
enquanto toma um drink. estabelecendo relações intensas e talvez curtas,
pois qualquer um pode ficar pelo caminho e não
Está falando de Joe, claro, mas dele também, as- voltar mais. Tudo isso, no entanto, faz muito sen-
sim como de todos os outros que trabalham no tido no ambiente em que estão, tornando-os mais
serviço aéreo. Eles mantêm um código particular humanos.
no que se refere ao alto risco da profissão. Adoram
voar (“é por isso que vêm para cá”, diz Carter para O enfrentamento da morte é constante, aparecendo
Bonnie) e essa paixão supera todo o resto, pondo já nos primeiros minutos de projeção. A primeira
o amor em segundo plano. Hawks deixa claro que sequência de Delirante, antes mesmo dos créditos,
essa dedicação não é compreendida pelas mulhe- é de um grave acidente num GP. Vivamos Hoje
res. Daí a relação ser mais fácil entre os homens. começa com a informação da morte em combate
do pai de Diana (Joan Crawford). Em Uma Aven-
tura na Martinica, um rico pescador americano é
Amizade morto por agentes da Gestapo, no Caribe, durante
a Segunda Guerra.
Há comoventes histórias de amizade nesses filmes,
como o carinho de Connors (Frank McHugh) por As relações se dão nesses espaços de confinamen-
Joe Greer (James Cagney) em Delirante. Parceiro to. Apesar de saírem a campo, são nos instantes

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de folga, na base, que há um compartilhamento de triângulos amorosos (presentes em Vivemos Hoje,
sentimentos. Curiosamente, no seu interior estão Heróis do Ar e O Caminho da Glória).
bares, em muitos casos o principal lugar de convi-
vência. Ali recebem os novatos já como amigos. E Perde-se uma mulher, mas não o amigo. O ciúme
quando há desconfiança sobre quem chega, como só parte da garota. Bonnie se mostra incomoda-
o piloto McPherson (de Paraíso Infernal), basta da com a presença da ex-namorada de Carter, o
uma prova de sacrifício para tudo ser esquecido. mesmo acontecendo entre Marie (Lauren Bacall)
e Morgan (Humphrey Bogart), em Uma Aventura na
Nessas tramas, as substituições são corriqueiras. Martinica. Escritos pelo mesmo roteirista, Jules
Carter manifesta isso claramente, dizendo que Furthman, os dois filmes guardam muitas coin-
sempre haverá alguém no próximo barco para cidências em sua estrutura dramática.
entrar no lugar de um morto ou demitido. Situação
extremamente comum no palco da guerra. A his- Grant e Bogart comandam um negócio de trans-
tória não menciona, mas deixa pistas de que Carter porte para terceiros; moram, divertem-se no
participou da Primeira Guerra. Ele usa jaqueta com bar, flertam e realizam suas principais ações no
uma insígnia indígena do 103º esquadrão aéreo mesmo local; o dono é chamado de Duch (holan-
americano que combateu na França. dês), em Paraíso Infernal, e French (francês), em
Uma Aventura na Martinica; as mulheres estão em
O Caminho da Glória mostra a espera de uma tropa trânsito, mas acabam permanecendo; a relação
de rendição. Pouco depois da troca, os substitutos dos casais começa com troca de farpas e depois
morrem após a colocação de uma mina no subsolo passa para diálogos mais apimentados; e quase
pelos alemães. Em A Patrulha da Madrugada, um imediatamente as garotas percebem que eles ti-
quadro afixado na parede lista os nomes dos pilotos veram problemas amorosos no passado. “Quem
da base. Quando seus aviões caem, são apagados era ela? A que deixou você com tão boa impressão
e substituídos pelos novatos. Para aumentar ainda sobre as mulheres?”, indaga Marie.
mais a sensação (especialmente para o público
americano) de acuamento e distanciamento fami- Outro ponto convergente se dá em A Patrulha da
liar, grande parte dos enredos são localizados em Madrugada e Delirante, quando entra em cena o
outros países – exóticos ou em conflito. irmão mais novo que espera seguir a mesma pro-
fissão do primogênito. O interesse surge como
uma desagradável descoberta em ambos os casos.
Mulheres Joe alerta Eddie que “nem sempre se ganham
prêmios” e que ele “pode ser um herói hoje e um
Com exceção de Os Acrobatas Aéreos e Heróis do vagabundo amanhã”. O que realmente acontece,
Ar, as mulheres aparecem nesses cenários num mas com o mais velho.
posto distante do front, como enfermeiras e secre-
tárias. Ou completamente deslocadas do ambiente. A Patrulha da Madrugada e Delirante, por sinal, fo-
Servem como interesse romântico somente. Como ram refilmados poucos anos depois, com protago-
elas se destacam em meio a tanta testosterona, nistas e diretores diferentes, não raro usando as
é natural que sejam disputadas, fazendo surgir cenas de ação dos originais. Hawks foi frequente-
mente criticado pelos chefões dos estúdios devido

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aos diálogos muito diretos, mas o realizador estava
sendo fiel ao que observara no mundo real. Suas
sequências de ação ainda permanecem entre as
melhores do gênero, mesmo quando se utilizava
de back projection e maquetes.

Reservou para si, numa rara aparição, o papel do


alemão Barão Vermelho em A Patrulha da Madru-
gada, personagem verídico que foi o mais célebre
piloto da história, sepultado por seus inimigos
com todas as honras de um herói de guerra. Essa
escolha não só reflete o seu gosto pela aviação
como também antecipa a posição que ocuparia
mais tarde, como um dos maiores diretores do
cinema mundial.

| Paulo Henrique Silva |

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MINHA ESTÉTICA SERÁ
SUA HERANÇA
Terceiro lugar na lista dos longas-metragens mais elementos narrativos da mais fina flor do cinema
rentáveis de Hollywood, com faturamento de US$ americano clássico em uma história na qual um
1,5 bilhão, Os Vingadores (The Avengers,2012), diri- “Golias” verde (o Hulk, de Mark Ruffalo) ajuda vigi-
gido por Joss Whedon com base na HQ homônima lantes mascarados (o Homem de Ferro, de Robert
da Marvel Comics, foi contaminado pela lógica de Downey Jr., e o Capitão América, de Chris Evans)
Howard Winchester Hawks (1896-1977) em sua e um deus nórdico (o Thor, de Chris Hemsworth) a
concepção. A alusão aos padrões de filmagem combater ETs sanguinários. Pareceria um afã de
e de ordenação de mundo como dramaturgia de buscar valor na tradição para justificar um flipe-
planos feitos pelo cineasta californiano aclamado rama quadrinístico, talhado para faturar milhões
como um dos fariseus da indústria audiovisual a partir da popularidade das HQs de Stan Lee.
americana não é especulação de críticos quadri-
nhófilos e, sim, fruto de uma confissão do próprio No entanto, assim que Os Vingadores (The Avengers,
Whedon. Roteirista de gibis, com experiência na 2012) estreou, críticos das mais variadas nacionali-
direção de séries (The Office, Buffy), ele alegou terdades (incluindo os escribas da Cahiers du Cinéma)
buscado conceitos de enquadramento e discus- apontaram nele vestígios da escrita fílmica de Ha-
sões de valores como honra em Onde Começa o wks: planos à altura dos olhos dos personagens,
Inferno (Rio Bravo, 1959), para muitos a obra-prima de modo a mostrar o quão os homens são im-
hawksiana, que usou Matar ou morrer (1952), de portantes num embate com a natureza; tomadas
Fred Zinnemann (1907-1997), como matéria-prima. ritmadas como a pulsação do corpo; cortes leves
Whedon se encaixa, assim, na linhagem dos “filhos e sutis. Whedon reagiu a essas comparações com
de Hawks”, os herdeiros de sua estética. E são o mestre que tanto admira explicando que não se
muitos os que, com ele, formam uma família de limitou ao western hawksiano e sua recusa em se
admiradores dotada do DNA desse “pai intelectual” limitar às convenções de longas sobre o desbravar
que cevou o imaginário americano com iguarias do oeste selvagem e o nascimento de uma nação.
de muitos gêneros. Hawks quis mais do filão, assim como seus “her-
deiros” quiseram mais de seu cinema – tirando
Whedon foi o primeiro a admitir que seria difí- dele o melhor.
cil, quase impossível, tornar clara a influência de
Hawks, sobretudo vinda de um faroeste, em uma De Hawks, Whedon, como roteirista e realizador,
produção sobre super-heróis, classe alvo de pre- buscou referências a filmes de guerra como Heróis
conceito declarado do elitismo da crítica – mesmo do Ar (Ceiling Zero, 1936) e Sargento York (Sergeant
a dos EUA. Rejeições intelectuais à parte, Whedon York, 1941) para dar mais vitalidade a tomadas de
reconheceu a dificuldade de validar a evocação de combate – sobretudo às aéreas – entre os Vinga-

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dores e os vilões alienígenas. Também buscou algo Dali para diante, Carpenter construiu uma fil-
das screwball comedies de Hawks, e seu tom non- mografia de mais 19 títulos fiel a uma tentativa
sense, para imprimir verossimilhança ao retratar de entender a América a partir da mentalidade
o amor entre o Gavião Arqueiro (Jeremy Renner) do faroeste como metanarrativa de formação.
e a Viúva Negra (Scarlett Johansson) com a dose De acordo com a ilíada do gênero, “escrita” nas
certa de riso, mel e absurdo. Nesse coquetel, um telas por “homeros” como John Ford e Hawks,
fenômeno de bilheteria se formou, alterando as um território é estabelecido como pátria quando
expectativas dos exibidores acerca das adaptações um faz aquilo que é destinado a fazer. Assim, na
de quadrinhos para a tela grande. América assombrada de Hawks, Kurt Russell vai
emergir como um John Wayne irretrocedível em
Mas as referências a Hawks nos EUA vão muito filmes como Fuga de Nova York (Escape from New
além de um entretenimento bilionário, indo às York,1981) e Os Aventureiros do Bairro Proibido (Big
raias da independência criativa. O primeiro nome Trouble in Little China, 1986), fazendo valer a retórica
que salta à mente quando é preciso elencar os hawksiana de que os homens são movidos por
cineastas que melhor se beneficiaram do amor acontecimentos trágicos alheios a suas escolhas e,
a Hawks é John Carpenter, famoso por sucessos que, na luta para debelar esses reveses, dominar
como Halloween – A Noite do Terror Halloween,1978). o meio é a maneira de afirmar o heroísmo como
Embora seja famoso como um artesão do horror, uma condição moderna.
Carpenter, nova-iorquino nascido em Carthage, em
janeiro de 1948, afirmou durante uma homenagem Fora Carpenter, Hawks teve cultores na geração
promovida pela Associação de Críticos de Cinema easy rider como Peter Bogdanovich, que o home-
do Rio de Janeiro (ACC-RJ), em 2002, que todos os nageou citando Levada da Breca (Bringing Up Baby,
seus filmes são faroestes, faroestes hawksianos, 1938) em Essa Pequena é uma Parada (What’s Up,
mesmo aqueles com aspecto futurista de ficção Doc?, 1972), com Barbra Streisand de Katharine
científica ou com roupagem macabra de fábula Hepburn e Ryan O’Neill de Cary Grant. Bogdanovich
satânica. Limado do posto de autor no mainstream voltaria ao mesmo filme no tardio (e acidentado)
hollywoodiano, após anos a fio sem um êxito co- O Miado do Gato (The Cat’s Meow, 2001), no qual a
mercial, Carpenter vive hoje do prestígio conquista- preocupação suprema do diretor era homenagear
do nos anos 1970 e 80 pelo rigor de sua carpintaria seu midas, Orson Welles (1915-1985).
cinemática e por sua observação do medo como
uma sequela civilizatória. A conexão entre ele e Renascentista supremo entre os diretores ame-
Hawks ganhou visibilidade em 1976, quando uma ricanos revelados no fim dos loucos anos 1960,
produção de US$ 150 mil chamada Assalto à 13ª DP Brian Russell De Palma foi a Hawks assumido
(Assault on Precinct 13,1976) virou um sucesso de em Scarface (Scarface,1983), mas provocou a ira
bilheteria e angariou uma multidão de fãs ao narrar dos hawksianos puristas aos fazer uma sinfonia
a tentativa de invasão de uma delegacia decadente de sangue. Com Al Pacino no papel antes dado
por uma gangue. No local, tiras e presos em vias a Paul Muni (1897-1965) em Scarface – A Vergo-
de transferência unem forças como se dava com nha de uma Nação (Scarface, 1932), Pacino deixou
os caubóis de Onde Começa o Inferno. o estereótipo dos gângsteres dos anos 1930 no
passado e redesenhou o lugar do banditismo no

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imaginário cinéfilo dos EUA como uma sequela Onde Começa o Inferno também serviu para en-
social da exclusão econômica e política da Guerra grossar a argamassa de Bravura Indômita (True
Fria. No caso, o que Hawks viu no filme da década GritI, 2010) , dos irmãos Joel e Ethan Coen, com Jeff
de 1930 como um produto da Grande Depressão e Bridges encarnando a alma de John Wayne. Mas foi
do crack da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, a influência das comédias românticas abiloladas
De Palma tratava como o dejeto sociocultural do de Hawks, com destaque para Jejum de Amor e O
cerco do capitalismo a nações do Terceiro Mundo, Amor Custa Caro (Intolerable Cruelty, 2003), com
no caso Cuba. Por isso, Tony Montana, o mafioso George Clooney atacando de Cary Grant. Parceiro
cocainômano de Pacino, é um caubói sociopata, dos irmãos cineastas em vários projetos, Clooney
capaz de matar sem pena para se afirmar como também citou a porção bem-humorada de Hawks
um produto de uma nova e miscigenada América. em O Amor Não Tem Regras (Leatherheads), que
Cultuado hoje, sobretudo entre os bolsões (em dirigiu e estrelou em 2008.
expansão) de hispano-americanos, o épico mar-
ginal de De Palma tornou-se a obra mais citada Longe dos EUA, Hawks foi abraçado como um titã
do diretor. a partir das primeiras discussões da Teoria do
Autor nos Cahiers du Cinéma, com destaque para
Apaixonado por Hawks, capaz de obrigar suas na- um ensaio de 1953, escrito pelo crítico e diretor
moradas a gostar de Onde Começa o Inferno tanto Jacques Rivette, no qual o realizador americano é
quanto gostam dele, Quentin Jerome Tarantino apontado como um farol para as novas gerações
usou o faroeste com John Wayne (1907-1979) e Dean “pela suavidade impressa em seus planos”. Sob
Martin (1917-1995) como modelo para vários de seus a influência teórica de André Bazin (1918-1958),
diálogos festejados. A relação entre os pistoleiros François Truffaut (1932-1984) foi um dos primei-
encarnados por Wayne e Martin foi reproduzida ros a assumir o peso de Hawks sobre a produção
na parceria entre John Travolta e Samuel L. Ja- audiovisual francesa que esperava romper com
ckson em Pulp Fiction – Tempo de Violência (Pulp o classicismo (e o academicismo) para criar uma
Fiction,1994) e em vários núcleos de Jackie Brown imagem moderna. Nos anos seguintes, confor-
(Jackie Brown, 1997). me o franco-suíço Jean-Luc Godard ampliava
seu latifúndio, iniciado com Acossado (À Bout de
Hawks ajudou a diluir o molho de western spaghetti Souffle,1959), e suas alusões ao noir made in USA
à moda Sergio Leone (1929-1989) em Bastardos (inclusive o hawksiano À Beira do Abismo - The Big
Inglórios (Inglourious Basterds, 2009) e Django lLvre Sleep, 1946), sua admiração por Hawks salpicou
(Django Unchained, 2012), dois dos maiores su- fermento sobre a paixão da cinefilia francesa pelo
cessos de bilheteria da carreira de Tarantino, e diretor de Rio Lobo (Rio Lobo, 1970). O próprio Go-
ambos laureados com Oscar, sempre em torno da dard, em uma entrevista, canonizou: “O cinema
figura do ator austríaco Christoph Waltz, espécie é Howard Hawks”, isso anos depois de ter dito “O
de Walter Brennan pós-moderno do diretor de cinema é Nicholas Ray”, em referência ao diretor
Cães de Aluguel (Reservoir Dogs, 1992). Tarantino de Juventude Transviada (Rebel Without a Cause,
ainda usou Jejum de Amor (His Girl Friday, 1940) 1955), outra de suas divindades.
como citação em suas personagens femininas,
sobretudo a de Pam Grier em Jackie Brown.

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Westerns e aventuras de Hawks serviriam de base abraça Hawks como parâmetro. Christophe Gans
para o cinema de ação da França, em especial os levou o instinto de leveza hawksiano - sempre
polars feitos a partir dos anos 1970. Georges Laut- aplicado ao arejamento das narrativas épicas –
ner, um campeão de bilheteria jamais reconhecido para O Pacto dos Lobos (Les Pacte des Loups, 2001),
em sua maestria na condução de sequências de um fenômeno de público. Jean-François Richet
perseguição, foi quem melhor beneficiou-se de fez o mesmo ao rever a cruzada marginal real do
Hawks para retratar tipos brutos em situação de ladrão Mesrine em Inimigo público nº 1 (L’Instinct
risco. Testamento de um gângster (1963), com Lino de Mort, 2008), partes 1 e 2, com Vincent Cassel.
Ventura, já se embebedava do lado negro de Hawks, Richet aplicou as técnicas que aprendeu nos EUA,
em suas incursões à marginalidade, usando os filmando na nação de Hawks no remake de Assal-
planos Scarface – A Vergonha de uma Nação para to à 13ª DP, com Ethan Hawke, em 2005. Ator de
se guiar na análise do padrão mafioso. Tiques de formação, Olivier Marchal também foi aos códigos
Paul Muni como Tony Camonte inspiraram Jean- do diretor de Levada da Breca (Bringing Up Baby,
-Paul Belmondo em sua parceria com Lautner em 1938) – os violentos – para filmar uma série de
O Profissional (Le professionnel,1981) e, em especial, crônicas sobre a marginalidade e a corrupção na
em Tira ou Ladrão (Flic ou Voyou, 1979), considera- polícia, em especial 36 (36 Quai des Orfèvres, 2004)
do por parte da crítica a melhor fita francesa no e Pacto de Sangue (Les Lyonnais 2011).
cruzamento entre os gêneros policial e comédia.
Na Ásia, o japonês Takashi Miike, cultor da bru-
De origem portuguesa, Gérard Pirès criou uma re- talidade como instância de reflexão das pulsões
lação especular entre os filmes urbanos de Hawks, e fraturas emotivas humanas, foi um dos reali-
em especial À Beira do Abismo e longas com tempe- zadores que assumiram Hawks como influência.
ratura de thriller como A Agressão (L’Agression,1975), E esta pode ser vista no thriller Morrer ou Viver
com Catherine Deneuve. Nos momentos em que (Dead or Alive: Hanzaisha, 1999), e sua continuação,
se aproximou mais da estética pop de Hollywood, de 2000, nos quais a relação de respeito e honra
caso de Os Cavaleiros do Ar (Les Chevaliers du Ciel, entre mafiosos da Yakuza transpirava elementos
2005), com Benôit Magimel de aviador, ele usou o de El Dorado, rejeitando a cartilha dos clássicos
senso épico de Hawks em Onde Começa o Inferno de samurai da terra natal do cineasta, a qual Miike
para criar uma reflexão sobre companheirismo e sempre desmistificou.
uma discussão sobre lealdade. Embora seja mais
ligado a Hitchcock por sua relação direta com o No Brasil, Carlos Reichenbach (1945-2012), que
suspense e as tramas de mistério, Claude Chabrol sempre se assumiu fã de Samuel Fuller (1912-1997)
(1930-2010) bebeu no leito do cogito hawksiano no e seu O Cão Branco (White Dog,1982), parafraseou
díptico Poulet au vinaigre (1985) e Inspecteur Lavar- Hawks nos momentos de humor de Falsa loura
din (1986), fazendo do tira vivido por Jean Pouret (2007) e em Corrida em busca do amor (1972), no qual
uma espécie de John Wayne à moda de El Dorado enveredou sem freio pelas estradas da comédia. Se
(El Dorado, 1966), esgotado, mas fiel aos desígnios Glauber Pedro de Andrade Rocha (1939-1981) fazia
do dever policial. seus faroestes de olho em John Ford (1894-1973),
vários dos exemplares do nordstern, o bangue-
Na França atual, um colegiado de realizadores -bangue macaxeira de inspiração no cangaço, tirou
revelados no fim dos anos 1990 ou início dos 2000 de Hawks sua gramática. Sua sombra estende-se

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desde produções hoje esquecidas, como Quelé
do Pajeú (1969), de Anselmo Duarte (1920-2009),
ao cultuado Sargento Getúlio (1983), de Hermano
Penna. No movimento pós-retomada, o rejeitado
As 3 Marias, de Aluízio Abranches, comporta mu-
lheres hawksianas, com o porte de Lauren Bacall,
entre suas valquírias no Nordeste, a começar por
Marieta Severo.

Entre resquícios e tributos, discípulos e entusias-


tas, o cinema contemporâneo celebra Hawks como
um gênio em sua universalidade.

| Rodrigo Fonseca |

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fortuna crÍticA
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GÊNIO DE HOWARD HAWKS1
A evidência é a marca do gênio de Hawks: O In- qual nenhuma ação pode se desatar da trama das
ventor da Mocidade (Monkey Business, 1952) é um responsabilidades. E qual visão poderia ser mais
filme genial e se impõe ao espírito pela evidência. amarga do que aquela que nos é aqui proposta?
No entanto, alguns se recusam a reconhecê-lo, Confesso, portanto, não ter podido me associar
se recusam ainda a se contentar com afirmações. aos risos de uma sala cheia, absorta diante das
Talvez o desconhecimento não tenha outras causas. peripécias calculadas de uma fábula que se pro-
põe a contar, com uma lógica alegre, uma verve
Sua obra se divide, em partes iguais, entre filmes maldosa, as etapas fatais da degradação das in-
dramáticos e comédias: ambivalência notável, mas teligências superiores.
ainda mais notável é a frequente fusão de dois
elementos que parecem se afirmar ao invés de Não é o acaso que nos faz encontrar um círculo de
se prejudicar, e se aguçam reciprocamente. A sábios semelhante àqueles de Bola de Fogo (Ball
comédia nunca está ausente das intrigas mais of Fire, 1942) ou de O Monstro do Ártico (The Thing
dramáticas; longe de comprometer o sentimento from Another World, 1951). Mas trata-se menos de
trágico, ela o protege do conforto da fatalidade, submeter o mundo à visão glacial e desencantada
mantendo-o num equilíbrio perigoso, numa in- da ciência do que de retraçar os acidentes de uma
certeza provocante que lhe amplia os poderes. mesma comédia da inteligência. Hawks não se
As gagueiras não podem preservar da morte o preocupa aqui com a sátira nem com a psicolo-
secretário de Scarface – a Vergonha de uma Na- gia; as sociedades não lhe importam mais que os
ção (Scarface, 1932); o sorriso suscitado por quase sentimentos; indiferente para Capra e Mc Carey, a
tudo ao longo de À Beira do Abismo (The Big Sleep, aventura intelectual é a única que o preocupa: quer
1946) é inseparável do pressentimento de perigo; afronte o antigo e o novo, a soma dos conhecimen-
o paroxismo final de Rio Vermelho (Red River, 1948), tos do passado e uma das formas degradadas da
diante do qual o espectador não pode mais reter a modernidade (Bola de Fogo, A Canção Prometida (A
confusão de seus sentimentos e se pergunta por Song is Born, 1948) ou o homem e a fera Levada da
quem tomar partido, e se deve rir ou se assustar, Breca (Bringing up Baby, 1938), ele insiste sempre
resume um estremecimento pânico de todos os numa mesma narrativa de intrusão do inumano,
nervos, uma embriaguez de vertigem sob a cor- ou de uma versão mais grosseira da humanidade,
da bamba na qual o pé cambaleia sem chegar a numa sociedade altamente civilizada. O Monstro
escorregar, tão insuportável quanto os desfechos faz enfim cair a máscara: nos confins do univer-
de certos sonhos. so, alguns homens de ciência lutam contra uma
criatura pior que inumana, uma criatura de um
E se a comédia dá ao trágico sua eficácia, ela não outro mundo; e seus esforços tentam inicialmente 1. Publicado
pode renunciar, talvez não ao trágico – não com- enquadrá-la na lógica do saber humano. originalmente nos
Cahiers du Cinéma,
prometamos por excesso os melhores raciocínios
no 23, maio de 1953,
–, mas a um sentimento severo da existência na p. 16-23.

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Mas o inimigo agora invadiu o próprio homem: de declínios paralelos: lembremos como os temas
o veneno da mocidade, a tentação da juventude da perdição e da maldição impuseram outrora ao
que há tempos sabemos não ser o ardil mais sutil cinema alemão a mesma progressão rigorosa do
do diabo – ora macaco, ora bassê – quando uma amável ao odioso.
rara inteligência o derrota. E a mais nefasta das
ilusões, contra a qual Hawks se obstina com um Do close da macaca até o momento em que a roupi-
pouco de crueldade: a adolescência, a infância são nha do “homenzinho” escorrega com naturalidade,
estados bárbaros dos quais a educação nos salva; o espírito é solicitado por uma vertigem constante
a criança se distingue mal do selvagem que imita do despudor; e o que é a vertigem, senão ao mesmo
em seus jogos; ao beber o licor precioso, o velho tempo medo, condenação – e fascínio? A atração
mais digno é absorvido na imitação de um maca- dos instintos, o abandono aos poderes terrestres e
co. Reconhecemos aqui uma concepção clássica primitivos, o mal, a feiúra, a tolice, todas as más-
do homem, que só poderia ser grande através caras do demônio são, nestas comédias em que a
da aquisição e da maturidade; termo final de seu própria alma é tentada pela fera, articuladas a uma
progresso, sua velhice o julga. lógica extrema; a inteligência mais aguda se volta
contra si mesma. A Noiva era Ele (I Was a Male War
Mas pior que o infantilismo, o emburrecimento ou a Bride, 1949) escolhe simplesmente como tema a
perda de autoridade é o fascínio que eles exercem impossibilidade de dormir, até o embrutecimento
sobre a própria inteligência; o filme é a história e as piores concessões.
deste fascínio, mas ao mesmo tempo o propõe
ao espectador como prova de seu poder. Assim a Melhor que ninguém, Hawks sabe que a arte é,
crítica se submete de início aos olhares que ela primeiro, ir até o fim, e mesmo da infâmia, já que
propõe. Os macacos, os índios, os peixes não são este é o terreno da comédia; ele nunca teme as
mais do que aparências de uma mesma obsessão peripécias mais duvidosas, desde o momento em
pelo elementar, em que se confundem os ritmos que as pressente, menos preocupado em decep-
selvagens, a suave tolice de Marilyn Monroe, mons- cionar a baixeza de espírito do espectador do que
tro fêmea que as astúcias dos figurinos conduzem em satisfazê-la ultrapassando-a. Tal é o gênio
à deformidade, ou os élans de antiga bacante de de Molière, cujo frenesi lógico suscita menos fre-
Ginger Rogers, cujo rosto marcado se crispa na quentemente o riso do que o prende na garganta;
adolescência. A euforia maquinal das ações confe- tal é aquele de Murnau, cujo admirável Tartufo
re à feiúra ou ao infame um lirismo, uma densidade (Tartüff, 1925), a cena célebre da Sra. Marthe e
expressiva que os elevam à abstração; o fascínio várias sequências de A Última Gargalhada (Der
dela se apodera, junta a beleza à lembrança das Letzte Mann, 1924) ainda oferecem modelos de um
metáforas; e podemos chamar de expressionista cinema molieresco.
a arte com a qual Cary Grant deforma os gestos
até o signo; no instante em que ele se maquia de Há em Hawks, cineasta da inteligência e do rigor,
índio, como evitar a memória do célebre plano de mas ao mesmo tempo das forças obscuras e dos
O Anjo Azul (Der Blaue Engel, Sternberg, 1930) em fascínios, um gênio germânico atraído pelos delí-
que Jannings contempla no espelho seu rosto de- rios metódicos em que se engendram infinitamente
gradado. Não é ocioso aproximar essas narrativas as consequências, em que a continuidade cumpre

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o papel da fatalidade. Os heróis lhe interessam me- ligado, e o sentimento de espaço ao do tempo;
nos por seus sentimentos do que por seus gestos, assim, em alguns filmes onde a comédia é mais
que ele persegue com uma atenção apaixonada; presente Uma Aventura na Martinica (To Have and
ele filma ações, especulando somente sobre o Have Not, 1944), À Beira do Abismo os personagens
poder de suas aparências; o que nos importam os são circunscritos entre três cenários nos quais
pensamentos de John Wayne andando em direção giram em vão. Adivinhamos a gravidade de cada
a Montgomery Clift, ou os de Bogart durante uma deslocamento de um homem que não podemos
surra? Damos atenção apenas à precisão de cada abandonar. Evoquemos Scarface – a Vergonha de
um dos passos – e ao ritmo claro do andar –, de uma Nação, cujo reinado se concentra das cidades
cada golpe – e ao desfalecimento progressivo do que ele dominava ao quarto onde é caçado; os cien-
corpo golpeado. tistas, fechados em seu acampamento pelo medo
da Coisa; lembremos como os aviadores presos
Mas Hawks resume ao mesmo tempo as mais no campo pelo nevoeiro escapavam às vezes em
altas virtudes do cinema americano, o único que direção aos planaltos Paraíso Infernal (Only Angels
sabe nos propor uma moral, da qual fornece a en- Have Wings, 1939) como Bogart em direção ao mar,
carnação perfeita; síntese admirável que contém, fora do hotel onde ele perambula inutilmente do
talvez, o segredo de seu gênio. O fascínio que ele porão ao seu quarto (Uma Aventura na Martinica);
impõe não é o da ideia, mas o da eficácia; o ato mesmo que encontremos um eco burlesco des-
retém nossa atenção menos por sua beleza do que tes temas em Bola de Fogo, em que o gramático
por sua própria ação no interior de seu universo. escapa do universo fechado das bibliotecas em
direção aos perigos da cidade, ou em O Inventor da
Esta arte impõe uma honestidade fundamental Mocidade, em que as fugas traduzem os acessos de
revelada pelo emprego do tempo e do espaço; juventude (assim como A Noiva Era Ele retomava
nenhum flashback, nenhuma elipse, a continuida- noutro registro os motivos do itinerário), o espaço
de é sua regra; nenhum personagem se desloca sempre exprime o drama; as variações do cenário
sem que saibamos, não há surpresa que o herói modelam a continuidade do tempo. Os passos do
não divida conosco. O lugar e o encadeamento de herói traçam as figuras de seu destino.
cada gesto tem força de lei, mas de lei biológica,
que encontra sua prova mais decisiva na vida da A monotonia é apenas uma máscara; maturações
criatura; cada um dos planos possui a beleza eficaz lentas e profundas dissimulam um progresso obs-
de uma nuca ou de um tornozelo; sua sucessão, tinado, conquistas feitas passo a passo ao mesmo
lisa e rigorosa, encontra o ritmo das pulsações do tempo sobre o chão e sobre si próprio - até um
sangue; o filme inteiro, corpo glorioso, é animado paroxismo. Eis o cansaço considerado como ele-
por uma respiração leve e profunda. mento dramático: a exasperação de homens que
se contiveram durante duas horas, condensaram
A obsessão da continuidade ordena o gênio de Ha- pacientemente sob nossos olhares a cólera, o ódio
wks; ela lhe dita o senso da monotonia e o associa ou o amor, e os expulsam bruscamente, como
com frequência à ideia de percurso e de itinerário baterias lentamente saturadas cujas descargas
Águias americanas (Air Force, 1943), Rio Vermelho, devem finalmente faiscar; o sangue frio exaspera
pois eis um universo homogêneo em que tudo está o calor do sangue deles; a calma que buscam

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nos obriga a pressentir sua agitação, partilhar o Não podemos evocar Uma Aventura na Martinica
frêmito secreto de seus nervos e de sua alma – sem rever imediatamente a luta com o peixe que
até que o caldo entorne; um filme de Hawks não abre o filme. A conquista do universo não se faz
passa frequentemente de uma espera ansiosa da sem conflitos, e este é o meio natural dos heróis
gota d’água. de Hawks: lutas corporais, calorosas, qual contato
mais apertado se pode desejar com um outro ser?
As comédias dão um outro rosto a esta monotonia: Assim eles se amam, mesmo que numa perpétua
a repetição substitui nelas o progresso, como a oposição, num duelo encarniçado em que o peri-
retórica de Raymond Roussel substitui a de Pé- go incessante os embriaga da evidência de seu
guy; os mesmos fatos, retomados o tempo todo, sangue (À Beira do Abismo, Rio Vermelho). Da luta
agravados por uma fúria maníaca, uma paciência nasce a estima: a palavra admirável encerrando
de obcecado, turbilhonam sem cessar, como que ao mesmo tempo o conhecimento, a apreciação
aspirados por algum torvelinho derrisório. e a simpatia; o adversário se torna parceiro. Mas
que desgosto se é preciso combater um inimigo
Qual outro gênio, mais entusiasmado pela conti- que a recusa; Marlowe, tomado por uma súbita
nuidade, saberia mais apaixonadamente se agarrar aspereza, precipita os acontecimentos e se apressa
às consequências dos atos, às relações que os em concluí-los.
unem? Suas influências, suas repulsões, suas atra-
ções suscitam um universo contínuo e coerente, A maturidade reside nestes homens refletidos,
universo newtoniano no qual se impõem a lei da heróis de um universo adulto, no mais das vezes
gravitação universal e o sentimento profundo da quase exclusivamente viril, do qual o trágico é a
gravidade da existência. Os gestos do homem são narrativa das relações interiores – mas o cômico
contados e medidos por um mestre preocupado é a intrusão e a confrontação dos elementos es-
com suas responsabilidades. trangeiros, ou a substituição do livre arbítrio, da
decisão voluntária - na qual o homem se exprime
Os tempos destes filmes é o tempo da inteligência, e se afirma em seu ato como numa criação - pelos
mas de uma inteligência artesanal, diretamente mecanismos.
aplicada ao mundo sensível, e que procura a efi-
cácia segundo a ótica precisa de um ofício ou de Eu não gostaria de parecer elogiar aqui um gênio
alguma forma de atividade humana às voltas com estrangeiro a seu tempo; mas a evidência dos seus
o universo, ciosa de conquistas; Marlowe exerce vínculos com o nosso século me dispensam de
um ofício como o cientista e o aviador; e quando desenvolver esse ponto, e eu gostaria mais de
Bogart aluga seu barco, ele mal olha o mar, me- sugerir como, se ele privilegia por vezes a pin-
nos preocupado com a beleza das ondas do que tura do derrisório e do absurdo, Hawks se aplica
com a de seus passageiros; todo rio é feito para primeiro a devolver um sentido e o gosto de viver
ser atravessado, todo rebanho para prosperar e a estes fantasmas, e a lhes conferir uma insólita
ser vendido ao preço mais alto. Mesmo seduto- grandeza, de alguma nobreza há muito secreta;
ras, mesmo amadas, as mulheres devem ajudar como ele dá uma consciência clássica à sensibi-
a investigação. lidade moderna. Rio Vermelho e Paraíso Infernal
não pedem outro parentesco que o de Corneille;

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a ambiguidade e a complexidade são os privilégios espírito e do homem, ligados por aquilo que os
dos mais nobres sentimentos, que alguns ainda justifica e lhes confere o sentido mais alto.
crêem monótonos, enquanto se esgotam rápido
os instintos, as barbáries, os móveis das almas Se é verdade que o fascínio nasce dos extremos
baixas; – razão pela qual os romanos modernos e de tudo o que ousa o excesso, quando a des-
são tediosos. mesura se chama também grandeza, - supomos
que ela não desdenha as forças em movimento,
Como eu poderia enfim me impedir de evocar estas que unem os prestígios elementares dos grandes
introduções admiráveis em que o herói se instala élans terrestres à precisão intelectual das potên-
na sua duração com uma fluida plenitude. Ne- cias abstratas, as tempestades às equações, e são
nhuma preliminar, nenhum artifício de exposição; afirmações vivas – cada filme de Hawks só oferece
uma porta se abre e, eis que desde o primeiro primeiro à beleza esta afirmação tranquila e certa,
plano, a conversa se entabula e nos familiariza sem retorno nem remorso. Ele prova o movimento
calmamente com seu ritmo pessoal; desde este caminhando, e a existência, respirando. O que é, é.
instante em que nós o surpreendemos, como
poderíamos abandoná-lo, companheiros de sua
viagem, ao longo de seu desenrolar, tão certo e | Jacques Rivette |
regular quanto o da película no projetor. Tempo
de uma caminhada tão leve e constante como a
dos montanheses partindo com um passo medido *Traduzido do francês por
que conservarão nas trilhas mais árduas, ao fim Maria Chiaretti e Mateus Araújo
das etapas mais longas. **Texto gentilmente cedido pelo autor

Assim ficamos certos desde as primeiras pulsa-


ções que eles também não desistirão, mas cum-
prirão pelo excesso todas as suas promessas; eles
não pertencem à raça dos covardes nem dos inde-
cisos; na verdade, nada pode se opor à admirável
obstinação, à teimosia dos heróis de Hawks; uma
vez na estrada, eles irão, por uma forma extrema
da lógica, até o fim de si próprios e daquilo que
prometeram, pouco importam as consequências; é
preciso terminar o que se começou; que diferença
faz terem sido carregados de início contra seus
desejos? Prosseguindo, arrematando, provarão
sua liberdade e sua honra de serem homens. A
lógica não é para eles alguma fria faculdade in-
telectual, mas a coerência do corpo, o acordo e a
continuidade de seus atos, a fidelidade a si mes-
mo. A potência da vontade assegura a unidade do

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COMO SE PODE SER
HITCHCOCKO-HAWKSIANO?1
O número que os Cahiers du Cinéma consagraram do sistema crítico implícito que lhes confere co-
a Alfred Hitchcock fez algum barulho. Ele suscitou, erência e solidariedade. É por isso que convergi-
além de cartas venenosas, críticas violentas de mos com eles sobre Renoir, Bresson ou Rossellini,
alguns de nossos colegas (Georges Sadoul, Denis por exemplo, sem que isso nos obrigue a admirar
Marion...) e, mais recentemente, de Lindsay An- Os Homens Preferem as Loiras (Gentlemen Prefer
derson na Sight and Sound. É que, reconheçamos Blondes, Hawks, 1953).
francamente, ele dava destaque à pequena equipe
de nossos colaboradores que não perde nenhuma Esclareço este fato, talvez um pouco inutilmente,
ocasião de enaltecer com entusiasmo cineastas para que não se conclua que nos convertemos
americanos como Howard Hawks, Otto Preminger, nem que estamos agindo por inconsciência, mas
Nicholas Ray ou o Fritz Lang dos “filmes B”. Suas sobretudo para afirmar que é com todo conhe-
preferências chocam, é verdade, a opinião mais cimento de causa que deixamos estas opiniões
corrente, e como eles se preocupam menos em paradoxais e “escandalosas” se exprimirem nos
justificá-las com argumentos racionais do que Cahiers du Cinéma. E o fazemos não por um libe-
em escandalizar com admirações e afirmações ralismo indiferente que abriria nossas colunas a
abruptas, a irritação de seus censores é, sob a qualquer posição crítica, mas porque a despeito
ironia ou a indignação, tão passional quanto os de tudo aquilo que pode irritar alguns de nós, e
juízos incriminados. das divergências que os opõem a estes jovens
Turcos, consideramos na verdade a opinião deles
O fato de voltarmos ainda a Hichcock por ocasião respeitável e fecunda.
desta entrevista gravada no magnetofone não é,
porém, uma provocação de nossa parte, e eu gos- Respeitável porque aqueles que os conhecem
taria de aproveitar para justificar junto aos leitores podem atestar, não digo naturalmente sua sin-
surpresos ou apreensivos a posição da direção de ceridade, mas sua competência. Não gosto muito
redação dos Cahiers du Cinéma neste caso. que Lachenay me responda invocando o número
de vezes que eles viram os filmes incriminados,
Aqueles que nos dão a honra de nos ler com su- este é um argumento de autoridade que se voltaria
ficiente atenção puderam certamente perceber contra eles a respeito de filmes que eles reprovam.
que nenhum dos responsáveis por esta revista Mas é bem verdade que falamos diferentemente 1. Do original
francês.“Comment
partilha dos entusiasmos de Schérer, de Truffaut, de um filme que vimos cinco ou dez vezes. O fato peut-on être Hitch-
de Rivette, de Chabrol ou de Lachènay em rela- de que sua erudição não se baseie nos mesmos cocko-Hawksien?”,
ção aos cineastas em questão, assim como não critérios de valor do que a dos críticos tarimbados Cahiers du Cinéma,
partilha, para além destas admirações pessoais, ou britânicos não retira nada de sua eficácia. Eles no 44, février 1954,
p. 17-18.

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falam do que conhecem e é sempre proveitoso do expressionismo alemão não nos aparece bem
escutar os especialistas. mais hoje na sua mise en scène do que nos seus
assuntos? Mais precisamente, de seu “projeto”
É por isso também que seu pressuposto é fecundo. moral, não era aquilo que se dissolvia perfeita-
Em matéria de crítica, não creio muito na existên- mente no universo visual que permanece em nosso
cia de verdades objetivas ou, mais exatamente, espírito como mais significativo? De minha parte,
prefiro os julgamentos contrários, que me forçam deploro como muitos outros a esterilização ide-
a consolidar os meus, à confirmação dos meus ológica de Hollywood, sua timidez crescente em
princípios por argumentos fracos. Se mantenho tratar com liberdade os “grandes assuntos” e é por
meu ceticismo em relação à obra de Hitchcock, isso também que Os Homens Preferem as Loiras
ao menos é pelas melhores razões, e não pos- me dá saudade de Scarface – a Vergonha de uma
so mais ver um filme de Howard Hawks com os Nação (Scarface, Hawks, 1932) ou de Paraíso Infernal
mesmos olhos. (Only Angels Have Wings, Hawks, 1939). Mas sou
grato aos admiradores de O Rio da Aventura (The
Se nos perguntam agora o que justifica que es- Big Sky, Hawks, 1952) ou de O Inventor da Mocidade
tas opiniões se exprimam justamente nos Cahiers, (Monkey Business, Hawks,1952) por descobrirem
responderei primeiro que as revistas de cinema com os olhos da paixão o que a inteligência formal
não são tão numerosas quanto as literárias e que da mise en scène de Hawks esconde de inteligência
a dignidade de se exprimir já é uma condição sufi- tout court, a despeito da tolice explícita dos rotei-
ciente para que nós as acolhamos. Mas me atrevo a ristas. E se eles erram em não ver ou em querer
adiantar que há entre nós todos, apesar de nossas ignorar esta tolice, ao menos preferimos de fato,
discussões, algo em comum, não direi no amor nos Cahiers, essa posição à posição oposta.
ao cinema, que é óbvio, mas na recusa vigilante,
sob todos os nossos juízos, de reduzir o cinema
àquilo que ele exprime. | André Bazin |

É verdade que nossos entusiastas de um certo


cinema americano parecem incorrer na heresia *Traduzido do francês por
oposta. Me lamento por eles, que provocam assim Maria Chiaretti e Mateus Araújo
um mal entendido que a posição deles ganharia
ao elucidar, e me desculpo por me tornar por um
instante, um pouco por culpa deles, seu advogado.
Mas se eles prezam a esse ponto a mise en scène
é por verem nela, em grande medida, a matéria
mesma do filme, uma organização dos seres e das
coisas que é, por si só, seu sentido, tanto moral
quanto estético. O que Sartre escrevia sobre o
romance é verdade para todas as artes, para o
cinema e para a pintura. Toda técnica remete a
uma metafísica. A unidade e a mensagem moral

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HAWKS HOMEM MODERNO1
Uma Garota em Cada Porto (A Girl in Every Port, correntes da arte contemporânea, o que impres-
1928) foi, ao que parece, a revelação da temporada siona é perceber o quanto a arte de Hawks é atual.
Hawks no Museu de Arte Moderna de New York. Daí ela estar na ponta dos movimentos da arte.
Assim, para a New York inteira de 1962, Louise A arte que ele criou é a de uma América que se
Brooks surgia de repente em seu estrado com o revelou hoje e que existia, mas cujo devir estava
rosto do Século, como outrora diante dos espec- ainda em potência.
tadores do Cinéma des Ursulines2. Assim, cinco anos antes da aparição da primeira
Em Paris, Uma Garota em Cada Porto fôra um acon- construção moderna nas ruas de New York, 53
a

tecimento na temporada de 1928. rua – quinze anos antes do surgimento dos primei-
ros arranha-céus modernos que transformaram
Era ainda a Paris dos artistas de Montparnasse e Manhattan -, Hawks, como Gropius, concebe seus
de Picasso, dos surrealistas e da Sétima Arte, de filmes como se concebe máquinas de escrever,
Diaghilev, das “Noites de Paris”, dos “Seis”, de um motor, pontes.
Gertrud Stein, das obras-primas de Brancusi...
E é por isso que hoje, quando a América ganhou
E foi por isso que, há alguns anos, numa noite o rosto de Hawks, seus filmes antigos como Deli-
de confidência, Blaise Cendrars não hesitou em rante (The Crowd roars, 1932) impressionam tanto
situar Uma Garota em Cada Porto no surgimento na televisão.
do cinema contemporâneo.
Nesses filmes esquecidos da Warner, New York e
Para a Paris de 1928, que rejeitava o expressio- a América ficaram surpresas ao se reconhecerem,
nismo, Uma Garota em Cada Porto era um filme de tal modo eles se assemelham ao mundo de hoje.
concebido no presente, e se identificava com a
recusa do passado. Foi o que levou a se escrever que Hawks é o mais
americano dos cineastas.
Assisti-lo é olhar para si mesmo, para o futuro
que leva, através de Scarface – a Vergonha de uma Americano, é bem verdade, não mais que um Griffi-
Nação, ao cinema do nosso tempo. th ou um Vidor, mas sua obra, em seu espírito e em
sua fisionomia, nasceu da América contemporânea 1.“Hawks homme
*** e se revela a única com a qual esta possa se iden- moderne”, Cahiers
du Cinéma, n.139,
Hawks é um homem totalmente moderno. tificar melhor e totalmente, em nossa admiração janvier 1963, p.1-4.
e em nossa crítica:
O que impressiona hoje neste longo olhar lançado
ao conjunto de suas obras, é perceber o quanto ... este filme não tem nenhuma relação com
o cinema de Hawks está à frente daquele de seu minha obras... Eu não estava interessado em
tempo. filmá-lo, mas era obrigado pelo contrato... Ele foi 2. Sala de cinema
radicional de Paris,
realizado logo depois de Aurora [1928] de Murnau, fundada em 1926
Mais exatamente, como a arte cinematográfica
que introduziu o estilo alemão em Hollywood... e existente ainda
está geralmente defasada em relação às grandes
As pessoas gostavam, eu não... Eu sempre tive hoje. [N.d.T.]

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uma cabeça voltada para a mecânica, e experi- cupa com essa construção, com volumes e linhas,
mentei um monte de recursos mecânicos para portanto. Ele é o Le Corbusier do cinema falado.
me afastar deles depois... Hoje, minha câmera
permanece à altura do olho... Uso o trabalho de Suas obras têm então uma nudez quase abstrata,
câmera mais simples do mundo... como se fossem feitas de concreto.
O essencial. A verdade dos diálogos, a verdade
Quantos pedidos de desculpas por três ou quatro
das situações, a verdade dos assuntos, dos am-
planos concedidos à Fox em Pago para Amar (Paid
bientes, dos seres. Uma dramaturgia que nasce
to Love, 1927), que ultrapassa Lubitsch!
de um encaixe de fatos, de falares, de ruídos, de
O filme deve tê-lo pesado. movimentos, de situações, como na montagem
de um motor. Nenhum supérfluo, nenhuma pau-
Assim, no momento em que Paris rejeitava o ex-
sa, nenhum meandro, nenhuma carne, mas que
pressionismo, no momento mesmo em que Babel-
progressão nesta conquista até Heróis do Ar! Ali,
sberg subjugava os Estados Unidos e Hollywood,
tudo está consumado, nos antípodas do teatro
Hawks o rejeitava e pelos mesmos motivos, por
filmado, salvo para aqueles que, beneficiados de-
julgá-lo contrário à disciplina dos novos tempos.
mais por esta forma nova e acostumado demais a
Curiosamente, Uma Garota em Cada Porto, tão novo ela, já não veem mais a sua originalidade e o seu
para os contemporâneos, o é hoje muito menos extraordinário sucesso.
que Adão e Eva... (Fig Leaves, 1926), em que a arte
O diálogo: o que se diz, o que se é, o que se faz.
de Hawks se revela e se anuncia em toda a sua
Como ele insiste no diálogo e no falar. Na sig-
liberdade.
nificação do diálogo, na sua construção, na sua
Mas Adão e Eva... era então um filme novo demais velocidade.
para que os contemporâneos não se ofuscassem.
“... não, isto não vem da montagem, isto vem do
Com a chegada do filme sonoro, colocou-se o pro- diálogo, diretamente escrito como uma conversa
blema da construção cinematográfica em função real...”
do falado, da decupagem dos diálogos em função
“... O que precisamos é ouvir as coisas essenciais.”
do movimento.
3. Construídos “... Se tenho uma cena para filmar que conside-
nos anos de 1910, Uma dramaturgia nova ia nascer, ela ainda estava
adquiridos pela ro interessante, é melhor filmá-la no ritmo mais
para ser descoberta, explorada, estabelecida.
UFA nos anos de rápido possível...”
1920 e apropriados Haws se lança de frente nesta empreitada, sem
mais tarde No meio destes filmes de homens, uma exceção:
trapacear.
pelos nazistas,
os estúdios de
Suprema Conquista (Twentieth Century, 1934), todo
Ele se coloca logo no coração do problema: a cons-
Babelsberg iluminado pelo brilho da feminilidade de Caro-
trução dramática cinematográfica em função do
constituíram le Lombard, e isso basta. Graças a isso tudo se
por muito tempo papel que desempenham, na existência, a palavra
equilibra, tudo ganha vida, no traçado de uma de-
o coração e o som.
da indústria
cupagem em que o diálogo se fez cinema.
cinematográfica De A Patrulha da Madrugada (Dawn Patrol, 1930) a
O período marcado por Scarface – a Vergonha de
alemã. [N.d.T.] Heróis do Ar (Ceiling Zero, 1936), Hawks só se preo-
uma Nação (Scarface, 1932) chega ao seu fim.

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Uma curta parada em 1937. Toda a inteligência de Hawks se confirma e se
impõe em Terra dos Faraós (Land of the Pharaohs,
A explosão de Levada da Breca (Bringing Up Baby,
1955), o único filme de grande espetáculo que tem
1938).
um estilo, um rigor e belezas plásticas dos quais,
E subitamente, em 1939, naquela noite no Cine há muito, perdêramos a noção.
Marivaux em que se exibia Paraíso Infernal (Only
Angels Have Wings, 1939), um encanto renascia, | Henri Langlois |
esse encantamento aparentado ao sonho, que
parecia perdido após a chegada da palavra.
*Traduzido do francês por Íris Araújo e Mateus Araújo
Do cinema, novamente dominado, renascia a ma-
gia. E, com ela, Hawks reencontrava esta liberdade
total que o livrava de todo peso. Já se anunciavam
as cintilâncias, os reflexos, o maravilhoso de Rio
Vermelho (Red River, 1948) e de O Rio da Aventura
(The Big Sky, 1952).
De A Patrulha da Madrugada a Paraíso Infernal, o
círculo se fechou.
Ainda um exercício de estilo, pelo prazer de se
auto-desafiar: Jejum de Amor (His Girl Friday, 1940).
E eis as grandes obras-primas.
Hawks não é mais que ele mesmo, como outrora,
nos seus inícios, no tempo do cinema mudo.
Um mesmo arabesco e esta arte de gerar, de um
nada, o maravilhoso da vida.
A época do cimento passou. Uma Aventura na
Martinica (To Have and Have Not, 1945) e À Beira
do Abismo (The Big Sleep, 1946) dissimulam sua
força lógica atrás do brilho de uma arte densa e
translúcida como o extraordinário impulso vegetal
da nova Nova York.
A arte construtivista, quase abstrata, de Hawks
se faz cor.
Mais despojado – e por ser colorido -, Onde Começa
o Inferno (Rio Bravo, 1959) é uma construção de
movimentos psicológicos.

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Hatari!1
Hatari! (Hatari!, 1962) talvez não seja o melhor filme um respeito absoluto de suas propriedades, uma
de Hawks. Ele aparece, porém, como sua obra mais recusa de interpretá-las a priori, uma vontade de
reveladora. Uma ausência, bem relativa, de rigor desvendar-lhe os segredos pelo conhecimento e
no argumento, uma certa indolência na conduta pelo método das ciências físicas. A forma “imagi-
do relato, conjugadas a uma improvisação diária, nante”, para retomar uma palavra de Bachelard,
e não contentes em enfeitá-la com um encanto submete-se totalmente à realidade e se proíbe
singular, se transformam em virtudes, se conside- toda concepção que não seja factual. Ela é o fruto
rarmos que elas autorizam o autor a empreender de uma aceitação do mundo tal qual ele é, e não
sua primeira obra meditativa. Liberado do “como” de uma fuga diante dele.
da ação e dos conflitos dramáticos que ela suscita,
seu devaneio pode ganhar livre curso no “porque” O fundo do problema será então, para Hawks, a
dessa ação, a razão de ser do homem, da mulher constatação da necessidade física no homem. Este
e do mundo. Ele o arrasta para um verdadeiro tem apenas um dever, que é seu privilégio: provar
retorno às fontes, as do mundo pós-edênico de pelo trabalho sua superioridade sobre a matéria,
Adão e Eva... (Fig Leaves, 1926) de onde sua obra seja ela de que natureza for. O único problema
surgiu. Não surpreende que após esse longo pé- verdadeiro que se coloca para ele é o da conserva-
riplo, Hatari! reúna a obra de Hawks numa suma ção, do aumento ou do desperdício de sua própria
que evoca cada uma de suas partes por meio de energia e da energia do mundo.
uma cena, uma situação, uma palavra, um per-
sonagem, referências cuja “retrospectiva” facilita Tragédia ou comédia – mas sempre sua grandeza,
consideravelmente a decifração. mesmo no ridículo - esta energia que ele mobiliza
para captar ou sujeitar a da matéria. Vemos assim
O que Hatari! nos ensina então sobre Howard a alternância incessante, em Hawks, da energia
Hawks que já não soubéssemos, sobretudo após estática, que é a soma das tensões, e da ener-
o estudo capital de Jacques Rivette (Cahiers du gia atual, que é o produto da massa multiplicada
Cinéma nº 23)? Nada demais, confesso, a não ser pela velocidade. Sucedem-se, nos seus filmes, as 1. Publicado
talvez uma outra forma de considerar sua imagi- cenas em que os personagens se apertam num originalmente,
nação criadora. Esta última tira sua força de uma espaço restrito – que é para eles menos refúgio sem título, nos
sensibilidade em contato direto com o mundo; do que lugar onde sofrem a influência do tempo e Cahiers du cinéma,
n.139, janvier 1963,
de uma necessidade de se confrontar com ele, das tensões, tanto internas quanto externas, que p.51-56, e recolhido
não para dominá-lo, mas para melhor conhecê-lo ele faz nascer – e aquelas em que, entregues ao depois, sob o
e se conhecer; de um sentimento propriamente espaço reconquistado, eles liberam essa energia título “Howard
físico das verdadeiras relações de força. Como a condensada e a aumentam, seja por meio de um Hawks – Hatari”,
em Jean Douchet,
cada vez que um termo caracteriza e engloba uma bólido (aviões ou carros), seja por uma ação rápida L’Art d’aimer, Paris:
forma de imaginação, este termo físico deve ser e eficaz (as aventuras perigosas), ou ao contrário Cahiers du cinéma
entendido aqui em sua plena acepção. Ele implica gastam-na com empreitadas vãs (as comédias). / Ed. Etoile, 1987,
um contato imediato e instintivo com a matéria, Notemos de passagem que Hatari! mistura estes p.38-43.

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três últimos elementos e que seu refúgio, a casa chega quando o homem cede à sua emotividade,
dos caçadores, se torna um lugar sem conflito, sua sensibilidade, sua excitabilidade, sua afetivi-
quase de repouso. Donde a dinâmica interna dos dade; quando ele deixa de considerar a matéria
filmes de Hawks, submetida, como o resto de sua como uma soma de energia a vencer, mas se deixa
imaginação, não à necessidade de seu devaneio seduzir pela aparência do mundo, a natureza.
íntimo, mas àquela mesma da dinâmica. Uma mola
se comprime lentamente, depois se distende de A natureza é aqui a inimiga, a sedutora, a fon-
uma vez. Compressão-explosão, compressão-ex- te de degradação. Ela é a armadilha fatal que a
plosão, a marcha mesma de um motor alimentado matéria lança ao homem para esgotar sua ener-
pela energia da matéria, a vida que cria seu próprio gia criadora. O drama, com efeito, vem do fato
e incessante movimento. de que o homem também, em Hawks, pertence
ao universo da física. Ele não é mais do que um
Aí, talvez, resida o segredo do estilo hawksiano. A animal superior. Ao abdicar de suas qualidades
economia e a eficácia de seus meios são apenas superiores, a inteligência, a vontade, a reflexão, a
uma estrita aplicação da lei da conservação da maturidade, etc, ele torna a cair imediatamente
energia. O simples evidenciar das forças presentes na classe do primeiro animal que o precede na
no mundo cria um conflito e evita toda dramati- escala das espécies, a do macaco. É assim com
zação, que é uma representação, logo uma con- “Pockets”. Este personagem de minus habens (de
cepção a priori do mundo. Hatari!, deste ponto de parco entendimento), de resto engraçado e sim-
vista, é exemplar. Hawks consegue este milagre pático (mas os macacos não costumam sê-lo?),
de despertar nosso interesse por personagens que merece que nos detenhamos nele por um instante.
estão nas condições requeridas para uma bela Incapaz de enfrentar a energia do mundo, figurada
crise teatral e entre os quais não acontece prati- aqui pelos animais selvagens2, ele também quer
camente nada. Os dramas são pacificados, antes revelar-se homem. Tentativa derrisória, fadada
mesmo de irromperem. Basta-nos vermos essa ao ridículo. Não podendo associá-los em si mes-
reunião de personalidades e de temperamentos mo, ele dissocia a criação da energia e, após um
para sentirmos a possibilidade de um conflito. E fabuloso desperdício dessa última, chega, com a
esta possibilidade basta para preencher, frustran- ajuda de um foguete, a aprisionar seus irmãos,
do-a completamente, nossa expectativa. os macacos. Vitória, é bem verdade, mas vitória
grotesca acentuada por esta cena em que, traves-
É que o verdadeiro conflito de Hatari! não é en- tidos de marcianos e cavaleiros da Idade Média, os
tre os homens, mas entre o homem e o mundo. caçadores partem à conquista dos quadrúpedes,
2. Dos quais o O homem deve se impor fisicamente ao mundo, verdadeira sátira de todas as cruzadas passadas
rinoceronte, com imprimir-lhe sua marca pelo trabalho. O dispêndio e futuras, quando elas permanecem exteriores à
o qual começam e de energia que daí resulta constitui não só a prova verdadeira aventura do homem.
acabam as cenas
de seu gênio criador, mas sobretudo sua razão de
de caça do filme,
é o representante estar no mundo. Daí, a importância da profissão Essa aventura, puramente interior, reside nesta
mais típico e em Hawks. O homem se define em relação ao seu luta entre sua energia e sua natureza, atraída ine-
ameaçador, por ofício, ao qual deve consagrar toda a sua energia. xoravelmente pela natureza. O drama nasce de sua
sua massa enorme
A tragédia ou a comédia começam quando esta úl- afetividade, que é sua miséria, mas sobretudo sua
dotada de uma
temível velocidade. tima é desviada de seu único objetivo. A catástrofe grandeza. Suprimam essa afetividade, conservem

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apenas a energia e terão um ser monstruoso, uma Para Hawks, a tragédia ou a comédia da guerra
coisa vinda de um outro mundo que seria neces- dos sexos não se baseia só nesta distinção entre
sário destruir imediatamente. Para se preservar de um lado o homem habitado por sentimentos
desse perigo (Hatari), convém preservar-se num fortes, isto é, por uma sensibilidade dominada pela
esplêndido isolamento. O que fazem, no início do razão e pela vontade, e de outro a mulher possuída
filme, John Wayne e seus companheiros. por suas emoções, entregue à sua intuição ou aos
seus instintos. A diferença é de ordem ainda mais
Era não contar com a aliada mais sutil da natureza: física. Fisiologicamente, a mulher está ligada à
a mulher. Se a obra de Hawks, eminentemente natureza. Ela sofre suas influências e está subme-
americana, é profundamente misógina, isto se tida a seus ciclos. Ela possui os seus caprichos, a
deve talvez ao espírito pioneiro que animava os instabilidade, as variações. Ela está em perpétua
desbravadores de Hollywood, Griffith, Ince, Sennett,mudança, porque o tempo regula e condiciona a
Walsh, Dwan, Ford e Hawks. Mas, à diferença dos sua vida. Ela é dependente. O homem, ao contrário,
outros, Hawks tratou de evidenciar desde cedo a não deve nada fisiologicamente ao tempo, que só
dupla relação contraditória que une o homem de age exteriormente sobre ele. Ação suficiente, aliás,
ação à mulher. Por um lado, o herói teme a mu- para degradá-lo. A infância, a juventude e a velhice
lher, considerada como um duplo entrave à sua são estados que prejudicam a sua plenitude. Mas
ação: se ele se sente forte, a fraqueza da mulher a maturidade o liberta do tempo. Só conta então
que ele deve proteger o prejudica; se porém ele para ele o confronto com o espaço que contém o
sente um fraco por ela, a natureza maternal de mundo, a matéria, a natureza. Independente, ele
sua parceira, seu lado “refúgio” se torna invasi- é o senhor.
vo e atrapalha seu trabalho. Por outro lado, e ao
mesmo tempo, o herói deseja a mulher como fonte A solidão, como um universo estritamente viril,
de sua ação, aí também de uma maneira dúplice convém então perfeitamente ao homem forjado
e contraditória: ele sonha com ela como algo que pela amizade e pela rivalidade esportiva, que é
justifica seu esforço, isto é, aumenta sua energia, justamente conquista do espaço. O homem só exis-
mas também – a causa virando fim - como digna te quando persegue o espaço. A mulher só existe
de receber sozinha esta energia. Essa diversidade quando caça o homem. Daí o impossível diálogo
da mulher em relação ao homem aventuroso, da entre eles. A mulher precisa ligar-se a um senhor,
qual os outros cineastas americanos dão conta mas, através disso, liga o homem à natureza e ao
pintando vários tipos de mulheres (a mãe, a es- tempo. Tanto assim que o herói hawksiano, que
posa, a noiva, a aventureira, etc) se encontra, em se move sempre num presente voltado para um
Hawks, reunida em cada uma de suas heroínas. futuro próximo ou longínquo, só tem passado em
Tanto que seus filmes não passam de uma sequ- relação às mulheres. Isto vale para John Wayne,
ência de variações sobre as múltiplas e complexas cuja conduta inteira não passa de uma aceleração,
combinações permitidas por essa dupla relação a fim de esquecer uma lembrança amorosa. Para
contraditória de uma mulher ao mesmo tempo alcançar seus fins, a mulher procura então pene-
recusada e desejada como contrária e contudo trar nesse universo masculino, pelo viés de uma
necessária ao homem. Daí a mulher nunca ter sido profissão. A profissão lhe dá a sensação de escapar
tão bela, nem tão depreciada e acusada. à sua condição, de dominar por sua vez o espaço

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e o mundo, de ser igual ao homem. Na verdade, a entrada de todas essas cabras encarregadas
ela só gera catástrofes. Como a mulher não pode de amamentar o jovem animal, que penetram e
escapar de sua natureza, ela introduz necessaria- devastam o campo dos rudes caçadores, os quais
mente a natureza, seus transbordamentos, suas se ridicularizam neste novo ofício de proteger a
forças descontroladas, seu desperdício de energia, natureza E esta não para de progredir. Logo, ao
neste domínio reservado aos homens. Ela destrói invés de um só, três elefantinhos vem se refugiar
seu trabalho, que é controlar e reger a natureza. e são os selvagens que liberam sua afetividade,
E o faz ainda mais pelo fato de o homem se iludir ela também transbordante. A ponto de, no fim das
com esta audácia aparente que, ao mesmo tempo, contas, a própria natureza se revoltar para se pro-
o deslumbra e o enternece. Ele se deixa invadir teger de tal ímpeto do coração (a ameaça da mãe
pela emoção e pela sensibilidade. Aí ele se perde. elefante no ponto da água). Evidentemente, Dallas
cairá no fim das contas em sua própria armadilha.
Já era assim em Adão e Eva..., desde o momento Seu amor pela natureza lhe será devolvido ao cên-
em que Eva aceita em segredo o trabalho de ma- tuplo, no momento em que ela procura fugir. E a
nequim (para satisfazer um puro desejo de luxo). natureza, então triunfante, invade o domínio dos
É assim ao cêntuplo em Hatari!. Duas mulheres. homens. Toda a energia é aniquilada. Sozinhas, a
Uma, Brandy (M. Girardon), educada nesse meio massa e a força de inércia começam seu trabalho
de homens, é considerada por eles como um ra- de devastação (os elefantinhos que esmagam a
paz. “Era”, mais exatamente, já que sua primeira cama, no plano que fecha o filme).
aparição, a primeira aparição feminina do filme,
nos mostra Kurt (H. Kruger) abotoando-lhe o ves- Mas seria injusto acusar só a mulher. Nos filmes
tido, e percebendo que esse bom amigo se tornou de Hawks, a mulher é o que o homem é no mais
na verdade uma bela moça. No entanto, nada a profundo de seu ser. Ela realiza sua verdadeira
distinguirá, em seu comportamento, dos outros aspiração. Ora, se desde os primeiros planos de
caçadores, até que ela, enamorada, manifeste Hatari!, o sentimento da natureza se revela tão
subitamente sua feminilidade. Ela se revela então forte, com esses poentes, essas grandes planícies,
mais mulher do que as outras. Desdenhando os essas esplêndidas montanhas e todos esses ani-
dois jovens garanhões, ela corre para o mais fraco, mais em liberdade, é que ele já está fortemente
o mais sem graça, o menos homem, aquele a quem ancorado no coração de todos esses caçadores.
ela pode melhor estender sua natureza protetora É que ele já implica uma degradação na sua vida
e maternal, e que aliás não pede nada mais do que espiritual ou moral. Esse antigo toureiro, esse ex-
se deixar mimar: Pockets (Red Buttons), o homem -automobilista, esse aventureiro decadente, este
irmão do macaco. Isto para a primeira mulher. descendente de índios, em suma todos esses ho-
mens que confrontaram o espaço e o mundo, se
A outra, Dallas, vem à África pela sua “profissão”. enganam, se embalam com ilusões. Eles aplicam
Ela parte, pois, à conquista do espaço, temeridade sua energia, sua sede de espaço, ao serviço de
que pagará com uma bela sequência de tombos uma causa, de um trabalho, que sentem no fun-
e solavancos. Mas sua modéstia e sua confissão do de si mesmos como desonroso: privar seres
“tocante” lhe valem o perdão do clã dos homens. vivos, mesmo que não passem de animais, de seu
Ei-la livre para começar seus estragos. Ela salva espaço e, portanto, de sua energia. Daí estarem
um filhote de elefante de uma morte cruel. E eis tão prontos, por má consciência, para ceder à na-

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tureza, a lhe conceder um amor que vai contra a Sean se suicidou. “Hatari”, perigo, ou o fim físico - e
sua natureza de homem. Só Pockets é capaz de logo, para Hawks, fim espiritual e moral do homem.
se maravilhar com uma captura de animais, até
chorar por isso como uma mulherzinha, por crer Mas também o fim de uma empreitada que parece
que ela lhe torna um homem, o que o condena se confundir com uma filmagem (com sua vida de
ainda mais irremediavelmente. Mas nunca, em equipe, seu plano de trabalho improvisado a cada
momento algum, os outros se gabarão de sua noite, suas pausas e seus esforços), e talvez a de um
caça. O índio, grande mulherengo aliás, mal vem cineasta. Existe aqui um tom de confidência propria-
contemplar o rinoceronte abatido, para exorcizar mente inabitual em Hawks. Hatari! é um documentá-
a má sorte. rio sobre o que foi sua vida, portanto sua profissão de
diretor. Ele nos entrega aí o segredo de sua estética e
É talvez por sentir mais profundamente do que de sua moral, esta vontade de cercar mais de perto a
os outros esse mal estar, que Sean se refugia em realidade, verdadeira façanha esportiva, para melhor
seu esplêndido isolamento e procura, por todos os laçá-la com sua câmera. E nos revela o retrato de um
meios, impedir a invasão da natureza. É uma luta homem generoso que uma atitude altiva procurava
contra si mesmo que ele deve empreender, ainda dissimular e que esconde, sob um humor divertido,
mais forte por ser ele o mais ligado a esse lugar da distante e às vezes feroz, uma ternura secreta pela
África (sua primeira mulher o abandonara por hor- estranha fauna humana que o cerca. No declínio de
ror à natureza). Ele é o centro energético do grupo, uma vida muito completa, Hawks cede à lembrança,
o núcleo do átomo em torno ao qual gravitam todos ao charme de sua existência profissional, ao seu
os outros. Mas é um núcleo prestes a se romper. amor sempre combatido pela mulher, ao entusias-
Ele se enamora de Dallas, porque ela encarna sua mo e à beleza da juventude. Estaria ele renegando
inclinação para a natureza, e mais profundamente toda a sua obra? Mais simplesmente, o que vemos
ainda sua aspiração ao repouso, isto é, seu so- aí é uma lição de sabedoria de um grande clássico
nho – sonho impossível que o arruinará – de uma que sempre enfrentou o mundo e que sabe, por ter
reconciliação, pelo amor, do homem, do espaço e constantemente lutado contra ele, que o próprio do
do mundo. Por isso, ele se entrega ao tempo, um homem, sua grandeza e sua fraqueza, é esse apego
tempo desembaraçado de toda energia estática, à ordem das coisas que ele deve, contudo, reger sem
que escoa sem choque, sem conflito nem tensão, amor. A nostalgia transparece sob a alegria franca
numa espécie de boa harmonia natural e edênica. e cordial. Uma certa amargura, sob a simplicidade
Esse pecado contra o que ele é fisicamente, um da maestria. Um desencantamento, sob o embe-
núcleo, só pode acarretar logo sua desintegração. vecimento com a vida, mais intenso do que nunca.
Todos aqueles que o cercam - elétrons ou pró- O pessimismo responde ao otimismo e vice-versa.
tons, pouco importa –, que lhe davam e tiravam a
energia, se dispersarão. Uns, como nossos dois
jovens heróis viris, para reencontrar sua função | Jean Douchet |
energética de homem conquistador do espaço;
os outros, para se degradarem um pouco mais.
Núcleo despojado para sempre de sua energia, *Traduzido do francês por Íris Araújo e Mateus Araújo
matéria humana doravante abandonada à massa, **Texto gentilmente cedido pelo autor

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H. H., OU O IRÔNICO1
Quem é H.H.? Se prestamos atenção, é o que sa- E mesmo se de um filme a outro o trajeto de H.H.
bemos cada vez menos. A cada novo filme dele, parece linear de tão obstinado, trata-se aqui da
seus filmes antigos saem realçados, mas para retidão do sofista. Longe de concluir, a conclusão
melhor se perderem de vista. de um filme deixa-o em suspenso, não excluindo de
resto que ele seja arrematado, não excluindo tam-
O mais recente, O Esporte Favorito dos Homens pouco a eventualidade de conclusões mais efetivas,
(Man’s Favorite Sport?, 1964), remete pelo detalhe mas não incluindo de forma alguma essas outras
a Levada da Breca (Bringing Up Baby, 1938), pelo soluções, nem aquelas igualmente pendentes dos
fundo a A Noiva era Ele (I Was a Male War Bride, outros filmes, que pudessem servir para este.
1949) e, pelo resto, a O Inventor da Mocidade (Monkey
Business, 1952), mas assinalar tais incidências não Não há nenhum destes filmes que não termine
resolve nada, muito pelo contrário: a pretexto de exatamente numa meia-volta, que não se desvie
explicar, por exemplo, o que pode ser central de si mesmo e do seu encaminhamento por uma
nestes filmes diversos, elas apenas multiplicam, inversão final, que não termine, portanto, preci-
umas pelas outras, as imagens ora diretas, ora samente no limiar de toda conclusão, ou já muito
invertidas deste centro engenhoso. E bem esperto além: baste aqui o fim de Rio Vermelho (Red River,
de quem o encontra, de quem nele se encontra. 1948), que parece anular todo o filme – mas evi-
Quando as mulheres são homens, nem por isso os dentemente não o faz –, e tanto mais porque este
homens chegam a ser completamente mulheres; passa o tempo todo se negando, se contrariando, e
há inversão dos dois lados, mas cada sexo fica começa de modo espantoso pelo fim de um outro
a meio caminho do outro, de tal forma que uma filme, pela conclusão de um verdadeiro “western”,
gata não encontraria seus filhotes; mais ainda, do qual Rio Vermelho então seria somente o co-
em Levada da Breca, o amor – ou essa fúria que mentário e a crítica. Mas há também os fins de
o substitui – tende a despojar o homem de seus Sargento York (Sergeant York, 1941), Uma Aventura
equipamentos profissionais; em O Esporte Favorito na Martinica (To Have and Have Not, 1945), À Beira
dos Homens em compensação, o mesmo amor – ou do Abismo (The Big Sleep, 1946), O Inventor da Mo-
esta cegueira que o substitui – vai entulhá-lo até cidade, Levada da Breca, que são só elipses, como
o ridículo com os mesmos equipamentos; de um a de O Esporte Favorito dos Homens, ou inversões
filme a outro, o passo do nosso autor é tão retilíneo (como a de A Noiva era Ele), princípios mesmos
que não cessaríamos de andar em círculos! Está das comédias, mas apesar de tudo surpreenden-
para chegar o dia em que o plano detalhado das temente frequentes nos “dramas” (dramas bem 1. Publicado
situações hawksianas e de suas relações será curiosos). Eis, portanto, um cineasta que foi visto originalmente,
elucidado; desde já podemos estar certos de que por muito tempo, não sem razão, como exemplar sob o título “H.H.,
se adicionarmos, uma a uma, todas estas situações, do mais clássico cinema; e de quem se disse, não ou l'ironique”, nos
Cahiers du Cinéma,
elas se anularão. sem razão, que seu gênio era o da evidéncia. Por n.160, novembro
mim, tudo bem. Mas, à luz dos filmes, é preciso 1964, p. 48-53.

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perguntar que espécie de “classicismo” é esta, cima – ainda que calorosamente - pelo cineasta.
e entender a noção de evidência como algo bem Tome John Wayne, tanto em Rio Vermelho quanto
diferente da simplicidade e da imediatez, embo- em Hatari! (Hatari!, 1962) ou Onde Começa o Inferno
ra ela redunde nestes dois privilégios. Perguntar (Rio Bravo, 1959): é certamente com o mais duro
se não devemos simplesmente reconsiderar, em dos heróis, com o mais verdadeiro, que você está
função do senhor Howard Hawks e de seus fil- lidando. Ou pelo menos você, nós espectadores,
mes geralmente bem situados no Box Office, todo o vemos assim. Muito diferente é o ponto de vis-
um sistema de referências, nossas excelentes ta hakwsiano. É bem provável que Hawks zombe
pequenas ideias arraigadas sobre o “clássico”, dos heróis, dos seus heróis. Para ele, cineasta,
sobre a sabedoria dos grandes americanos, sobre a perfeição não é um bom assunto. Os homens
os “heróis” matriciais também, sobre todo esse perfeitos no seu gênero não têm nenhum interesse,
aparato de mitos que não contribuíram pouco para os simples não têm história – ou então é preci-
o nosso amor ao cinema americano, mito dos ho- so pedi-la a Rosselini ou a Olmi, e não a Hawks.
mens livres e responsáveis, das mulheres não Daí não devermos tomar por favas contadas sua
fatais mas vindas na boa hora e sabendo disso, pretensa paixão (é ele quem a menciona) pelos
mitos de simplicidade e pureza que conduziriam “especialistas”. Estranha paixão, que consiste em
todos, se tomássemos o cuidado de examiná-los jogar esses “especialistas” nas mais grosseiras
mais de perto, ao mito bem mais consistente do armadilhas da vida, e que se serve da especialidade
avô que fascina as crianças. deles para ridicularizá-los, isto é, humanizá-los.
Este xerife implacável, sóbrio, sólido, é um fra-
Por que hesitar mais diante de uma evidência esta cassado, nos diz a câmera de Hawks num aparte.
sim bem real, pois inquietante: Hawks nunca foi, Mas guarde isto para você, pois os heróis devem
nem antes nem agora, um clássico no sentido clás- sempre ter razão. E no entanto, não. A vida de
sico do termo, nem o “cineasta da simplicidade”, e Wayne, o caçador audacioso, o caubói ambicioso,
menos ainda o cineasta da evidência (contrassenso o xerife íntegro, é uma sequência de fracassos
mal inferido da ideia de Rivette). Pelo menos, ele e renúncias. Ele não só é infeliz (daí seduzir as
tem a evidência do lince, a de ver sem ser visto. mulheres) como sempre perde o essencial, por
culpa de sua “especialidade” ou, mais diretamente,
Se existe uma constante em seus filmes, é que em porque Hawks não filma verdadeiros heróis, nem
cada um ele fala do Homem. É o bastante, suponho, homens ideais.
para que sejam atribuídas a esse Homem, com
base apenas nesta maiúscula, todas as virtudes É que H.H. filma em duas frentes. Não é um ingê-
que os adolescentes atribuem à maturidade dos nuo, não nasceu ontem. Ele sabe o que funciona
homens. É o bastante, em todo caso, para que no cinema, o exemplar. Sabe também que é um
não se examine melhor de qual homem Hawks pouco da natureza do cinema apostar no sonho e
nos fala, e como fala dele. Não é certamente o servir de exemplo.
homem livre, realizado, modelar, que ele escolhe
como seu assunto e seu modelo. Por mais heroi- Ele faz portanto um cinema exemplar, cheio de
cos que sejam seus heróis, eles não deixam de seres que podem, à primeira olhadela (é raro
ser um pouco derrisórios, um pouco olhados de darmos uma segunda), passar por exemplares,

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perfeitos, maravilhosos. Assim, ele conquista um Tornou-se um clichê dizer que a moral de seus
pouco as multidões e o coração dos adolescentes heróis e de suas fábulas seja a do enfrentamento.
sonhadores. Neste sentido, é demagogo, mas não Mas o fato é que eles se apagam o quanto antes,
por sua culpa: o cinema é ainda mais demagógico, cuidando de não passar vexame3. Penso no mais
e é preciso fazer cena com o cinema2. Felizmente citado de todos, o Bogart de Uma Aventura na Mar-
para nós (e para o cinema), Hawks é sincero de- tinica ou de À Beira do Abismo: como não ver que
mais – ou lúcido demais – para acreditar um só ele só age quando não pode fazer de outra forma,
segundo em seus protótipos. Ele satisfaz portanto e que esta ação, longe de beneficiá-lo de algum
o público, e se reserva ao mesmo tempo o direito modo, constitui para ele só a última forma de es-
de apostar a fundo na inteligência desse público: capar sem deixar muitas plumas na briga. Bogart
ele mostra um pouco o lugar dos heróis, mas cuida não é o durão de bom coração, nem o ranzinza
sempre de colocá-los num momento ou noutro briguento, é uma espécie de amador leviano, que
ao avesso, numa extremidade pouco valorizante, se gaba o quanto pode, e submerge gentilmente
na qual eles só se medem pela incapacidade de diante das mulheres, após tê-las feito correr por
viverem verdadeiramente, de ultrapassarem seus um tempo em que se divertiu um pouco. Marlowe
esquemas. é um canhestro, como mostram os massacres
que ele não pode impedir. De resto, nem ele com-
É uma boa lição de lógica, uma boa lição de cinema. preende grande coisa em À Beira do Abismo; é
Ouça-o quem quiser, e é isso o gênio de Hawks, somente depois de ter passado por quarenta e
deixar a porta aberta. E talvez também aprovei- seis buracos de ratos, por algumas trevas e por
tar a corrente de ar para desaparecer: ele é, por belíssimas mentiras– todos os personagens de
excelência, o homem e o artista inapreensíveis. Hawks mentem sobre si mesmos e sobre o que
farão, e não só pelo jogo, mas por medo do jogo
Sua obra também o é. A única coisa que continua- – que ele atingirá – oh! não nos excitemos – um
mos a saber um pouco dele, e dela, não é o que eles certo nível de consciência e de moral. 2. No trocadilho
são, mas é a propósito deles: ele, sempre um dos intraduzível do
original, “il faut
maiores cineastas – que sua própria grandeza só Se os seus personagens mentem muito, Hawks tam- bien faire du
permite entrever por partes: ela, de todas as obras pouco se priva disso... cinéma avec le
provavelmente a mais acabada, e a mais completa, cinéma”. [N.d.T.].
o que também complica tudo. Nenhum “tema”, Basta pensar na filmagem de Hatari! em que ele
nenhum assunto, parece, que não tenham sido disse e repetiu mil vezes que Wayne e os outros
abordados e gentilmente desmistificados ou per- não foram dublados, quando sabemos que o foram
versamente mitificados, tudo se passando, porém, do início ao fim, e que o filme é pura trucagem. 3. O autor
como se apenas o Homem e seu ideal estivessem Me apresso em dizer, aliás, que isto o deixou ain- explorava aqui um
jogo de palavras
em questão. Mas vimos que Hawks só realça esse da mais bonito. Mas voltemos a Hatari! Eis um intraduzível
homem porque ele é de palha. Palha igualmente, filme que aparece, por sua vez, como um mito. É em português
se não viga, a atitude, o famoso comportamento a Aventura, a África, o Amor... Mas passando ao entre “faire
deste homem hawksiano, o melhor em tudo, exceto outro polo, é antes um filme sobre a velhice, o face” (enfrentar),
“s’effacer” (se
naquilo em que ele precisa muito sê-lo. fracasso, o ridículo. apagar) e “perdre
la face” (passar
vexame). [N.d.T.}.

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Notemos que, em quase todos os casos (Hatari! O que concluir disso, senão que, bem ao contrário
incluído), o ofício exaltante no qual os heróis en- do que um imaginário piedoso suscitou de retratos
frentam o mundo (é preciso colocar tudo isso entre dignos e preocupações humanitárias, Hawks é
aspas) não passa de uma brincadeira de criança. no fim das contas o mais secreto humorista do
século; e como o humor não ganha nada em ficar
Não fácil, certamente, mas criancice apesar de secreto, ninguém o percebia. Se seus heróis são
tudo: conduzir carros, caçar a fera, brincar de tolos, ignorantes, desajeitados, se carecem de
caubóis, de polícia e ladrão, brincar de aviõezinhos, fineza e tato, se são inadaptados, fracassados, isto
de guerra, de detetive. Convenhamos que tudo isso não é um acaso, mas um inferno bem merecido,
carece de seriedade e parece lazer. Crianças, ou uma vez que tantos defeitos conseguem passar por
já velhos. Hawks não ilustra essas bagatelas por graças exemplares. É a revanche da inteligência.
prazer, acreditem. Não, se sua obra só filma fan- Uma inteligência ainda mais hábil por cuidar ob-
toches e futilidades, não é por impotência, ou tudo sessivamente de embaralhar as pistas, misturar as
o que se queira nesse registro. É talvez - mas esta brincadeiras, travestir o cálculo de improvisação,
chave é inapreensível precisamente por ter sido a mentira de sinceridade, o fútil de essencial, o
espantosamente roubada - é talvez, convenhamos, homem de mulher, e a própria tolice de forte pen-
para mostrar que são precisamente bagatelas e samento. Inteligência ainda mais evidente por se
fantoches simpáticos que se esgotam no primeiro empenhar em fazer uma crítica sob os traços de
choque com a vida, que são só mentiras reduzidas uma apologia, por chegar portanto a apagar-se
a nada pelo menor drama, pela menor realidade: completamente, a conseguir que a ignorem. Com
o amor, a morte. Esta chave da obra hawksiana (e toda a distância que o separa de seus heróis e de
não é por nada que H.H. o coloca antes de todos seus filmes, Hawks deve se divertir muito.
os seus outros filmes) é Scarface – a Vergonha de
uma Nação (Scarface, 1932) e seu herói lamentá- Assim escondida, a lição que ele dá só pode fun-
vel. Todos os outros não passam de sucedâneos cionar ainda mais insidiosamente. A serviço da
diversos dessa criança trágica. Tudo o que Hawks mentira, o cinema diz a verdade; ele mente em
diz de Scarface só faz sentido quando se pensa benefício da verdade, prestando-lhe assim o me-
também nos personagens de Paraíso Infernal (Only lhor serviço.
Angels Have Wings, 1939), de O Rio da Aventura (The
Big Sky, 1952) ou de todos os outros. Uma inteligência que se dissimula, um autor que
só entrega de si, em sua obra, mentiras (os filmes
Achava-se até agora que entre os filmes sérios e em que ele se confessa mais claramente são Scar-
as comédias de Hawks havia um hiato. De forma face – a Vergonha de uma Nação, Suprema Conquista
alguma. São as mesmas marionetes, manipuladas (Twentieth Century, 1934), O Esporte Favorito dos
pelos mesmos demônios com os mesmos fios Homens), um jogo perpétuo de inversões, falsas
frágeis, são as mesmas mascaradas amargas, rimas e falsos valores propostos como verdadeiros,
a mesma gratuidade confessada sem vergonha, uma ironia ainda mais terrível por estar oculta; e
a mesma poeira nos olhos que esvoaça à menor ao mesmo tempo uma obra em que o propósito
dificuldade, diante da menor necessidade da vida. nunca é desmentido, e nunca se erra o alvo, em
qualquer nível que seja; um cinema cujo emprego

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o faz corresponder à sua natureza, este recuo
do autor, da obra, dos filmes. Eis o que faria de
Hawks um clássico bem falso se ele não fosse
desde sempre um verdadeiro moderno.

| Jean-Louis Comolli |

*Traduzido do francês por Íris Araújo e Mateus Araújo


**Texto gentilmente cedido pelo autor

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O MISTÉRIO DA GRANDE PIRÂMIDE1
Turn your watch back about one hundred dos passos dela é o tempo da melodia, é o rastejar
thousand years... da cobra. Os três tempos diferentes são agora e
I’ll meet you by the third pyramid... por longos instantes um só tempo. O plano que se
Oh! C’mon!” segue dura dois, três segundos, menos talvez. O
corpo da mãe voa na sala, impulsionado por uma
força descomunal e esmaga-se sobre a cobra, ao
No filme Land of Pharaohs, A Terra dos Faraós (1955), lado da criança. A imagem desaparece no negro
há um plano insuportável. É perto do fim, é o último assim mesmo, a arder gelada.
plano da sequência em que a Rainha Nailla morre
para salvar o seu filho, o Príncipe Zanin. Depois ouve-se um grito e vemos um gesto de
alívio; a Princesa Nelifer respira fundo.
Interior, noite. No palácio do Faraó. Imóvel e nu,
sentado de pernas cruzadas, o pequeno príncipe Tudo o que se passou neste extraordinário plano
toca uma flauta que lhe fora oferecida pela Prin- não pode ser dito. Ele não é a imagem do filme
cesa Nelifer, a jovem amante do Faraó. A Terra dos Faraós mas todo o filme está contido
nele. A pressão do Tempo, a Morte no plano, no
Concentrado como num pequeno hieróglifo, repete filme, explode-nos na cara. E a ferida que agora
infinitamente a única música que a Princesa lhe nos rasga já a tínhamos pressentido no passado,
ensinou: uma melodia infantil, simples e hipnótica. arranhões à flor da pele, no trabalho com as pedras,
O ar quente da noite egípcia torna-se ainda mais e não cicatrizará no futuro do filme que continua.
lento e mais pesado. A Rainha, a mãe, prepara-
-lhe a cama, dobra toalhas, ouve e sorri. Não sei Não há remédio; não podemos deixar de ver.
quanto tempo depois, um homem de pele escura e 1. Originalmente
olhos a faiscar surge entre as cortinas da varanda; Deve haver um limite para além do qual a imagem publicado no
traz uma cesta de verga e uma cobra lá dentro; estática, frontal, ascética se torna insuportável e catálogo Howard
Hawks, organizado
livre, o réptil desliza aos esses pela laje, encantado esse traço invisível, essa ferida, jamais poderemos por João Bénard
pela música. A mãe passa as mãos pelos longos deixar de vê-la. O Tempo e o Espaço tão saturados, da Costa: COSTA,
cabelos negros e diz ao filho que já é muito tarde. tão cheios de vazio e de tudo entram em guerra e Pedro – O Mistério
A criança pede-lhe mais tempo, continua a tocar, a imagem só tem uma salvação: fazer um gesto, da Grande
Pirâmide. In
engana-se, troca as notas e pára. A cobra pára tornar-se criadora ou destruidora. O movimento Howard Hawks
também. Mas a música recomeça e a cobra vai- recém-nascido será sempre belo e implacável. (coordenação:
-se aproximando. Quando a mãe a descobre, ela Howard Hawks sabia. Conhecia o segredo. Só que João Bénard da
já está muito perto de Zanin. Tem pouco tempo levou muitos anos de vida e muitos filmes para Costa). Lisboa:
Cinemateca
para agir. Então passa-se uma coisa estranha: chegar a este confronto mortal. Portuguesa;
a mãe começa a avançar em direcção ao perigo Fundação Calouste
repetindo, quase num murmúrio, “não pares de Face a face como num duelo do seu filme seguinte. Gulbenkian, 1990,
tocar”, “é tão bonita”, “não pares...”. E a cadência p. 300-306.

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E a face impenetrável, as ossadas vazias e pulve- aquele sorriso? Nos filmes de Howard Hawks não
rizadas que ele vê ao fundo dessa rua de poeiras há suspense: espera-se a morte, corre-se para
sem defesa, interrogam-no, em silêncio. O due- ela e basta. Num plano de Hawks ninguém entra
lo com o Absoluto, a magnífica construção que ou sai; está-se preso e nunca se sai vivo, é tudo.
Hawks decidiu começar e acabar em A Terra dos Hawks trabalha arduamente para isso: constrói
Faraós devolveu-lhe uma violência surda e um planos sobre planos como túmulos; gigantescos
terror cego que sempre lá estiveram, que eram cemitérios. Mas uma pirâmide leva tanto tempo a
dele. Um homem sonha com o Absoluto, submete- construir... Uma ciência do pesadelo. Um homem
-se aos ritmos cósmicos, e perde-se nele. Aquele sonha com o absoluto e perde-se nele.
plano que me mete medo é antecedido por um
grande-plano – um dos raros grandes-planos A Terra dos Faraós é um longo pesadelo. É um filme
do filme – um traveling do belo rosto da Rainha negro, sufocante e perdido desde o princípio. Só
Nailla. O tempo dilata-se e comprime-se, torna-se lá poderemos entrar perdidos também. Hawks,
elástico e múltiplo e a câmara de Hawks não nos meio cego e mudo como os seus arquitectos e
ajuda a ir mais depressa. E era preciso ajudá-la sacerdotes, dá a mão ao seu Faraó frágil e ner-
porque ela sabe o segredo mas não o sabe dizer. voso – que como o Príncipe Mychkine, “não tem
Ela é luminosa e sombria, ela conhece a maldição o gesto feliz” – e entram nos corredores secretos,
ancestral, lembra-se de tudo, é ela a destruição, atravessam grandes mastabas, vigiados e prote-
era preciso ir mais depressa, salvar a bela Nailla gidos por grandes massas de esfinges monolíti-
doente, morta entre os vivos. E, pouco a pouco, de cas, alternadamente, plano a plano, à esquerda
repente, o medo absoluto que transparece nela, e à direita dos enquadramentos. Cá fora, à luz do
é enevoado por outra coisa ainda mais terrível: Deus Rá, vistos do alto da pirâmide, eles todos,
nos lábios finos desta mulher começa a nascer perfilados, nos castanhos e nos ocres do grande
um sorriso muito pequeno, muito evidente; um Trauner, um pouco enegrecidos pelo basalto e
movimento. Mas o plano não a socorre, não há fulminados pela magia de Garmes e Harlan, sujos
impulso que a salve, que a projecte no plano se- pelo tempo, pelo clima e pelo esforço, mas sempre
guinte. Hawks corta e monta. Quando ela voa já serenos, impenetráveis, longínquos, camponeses
é outra coisa, já lá estava e começou no corte: é, e operários egípcios, trabalhadores do grande tú-
num mesmo tempo e num mesmo espaço, o que mulo, artesãos das suas próprias sepulturas, em
é e o que já não é, o que mexia ainda agora vai marchas longas como o Nilo, vigiados por lentas
parar para sempre. Exacta, fugaz e inocente. Morta panorâmicas imóveis que não os deixam sair de
entre os vivos. Desapareceu no negro e agora já campo, bem enquadrados os milhares de bra-
não nos lembramos do seu belo rosto de esfinge. ços e troncos pouco humanos, em profundidade,
Porquê? E, no entanto, longe dali, noutro tempo, com os perfis hieráticos, à esquerda e à direita,
há outra mulher que respira fundo, aliviada. Ha- Osiris, Isis, Aton e as suas vozes de além-túmulo,
wks, o homem, fez tudo o que havia a fazer nesse de cinema. Nunca vamos com o Faraó pelo Vale
plano. Filmou o mais antigo e o mais moderno, afora; Menfis, Tebas, Heliopolis; ver os tesouros,
a imobilidade e o movimento, o tempo imóvel. viver as aventuras; ficam os fechados nos planos
Perseguiu a fusão rebelde dos contrários, a pura e as chaves da morte perderam-se. Uma pirâmide
beleza desesperada do gesto. Mas como nasceu leva muito tempo a construir... Montagem paralela,

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pedra sobre pedra, as imagens dissolvem-se umas rosto de Nelifer desfoca-se, perde contornos, perde
nas outras como num sonho, e tudo é pesado e real Identidade.
porque o tempo se vai gravando na película e daqui a
pouco diremos: eles todos, estão mortos, podemos O morre sem saber. Quem é esta mulher?
rever A Terra dos Faraós, mas os figurantes egíp-
cios já não estão vivos. Mas agora podemos vê-los Nem quero pensar!
dissolverem-se uns nos outros, gémeos como dois
grãos de areia, grãos de tempo, egípcios-segundos, A Terra dos Faraós é a história de um homem ob-
egípcios-minutos, filhos do Grande Deserto que va- cecado em guardar o maior dos segredos mas que
mos voltar a usar para fazer os nossos filmes do não sabia esconder nada ao seu amigo de infância.
futuro, para esculpir o tempo. A Terra dos Faraós toma À imagem do seu herói, Howard Hawks perdeu-se
o espaço e o tempo como personagens principais: a entre o pequeno código, que toda a vida o regeu,
grande pirâmide para sempre, protegendo os mortos e esse outro Grande Código do qual não sabemos
contra os vivos. O combate de Keóps (o conflito, se se acabou por encontrar as chaves.
preferirem) é com o tempo. Irmão do trágico Scarface,
o pobre bandido da cara arranhada, o Faraó quer No Apocalipse (1.18): “Eu tenho as chaves da Morte”.
equilibrar-se na sua própria carcaça, podre dentro
e fora; só quer voltar para casa para arrumar o seu No Livro dos Mortos Egípcio, um hieroglifo: “Não,
cadáver; manter o delicado equilíbrio, atravessar ou- tu não estavas morto quando partiste!”
tra vez as ante-câmaras de colunas altas, o precioso
ponto de prumo entre a admirável postura hierática De William Faulkner, argumentista deste filme:
do semi-Deus e o patético trambolhão do inchado e “Eles todos, perfilados sobre o fundo do verde
velho Hawkins. Dar dignidade ao tempo que já falta. luxuriante do Verão e a ruína do Inverno, antes
E então regressam as assombrações, os grandes- que floresça de novo a Primavera, agora sujos,
-planos: déja-vus na sepultura lógica deste pesadelo. um pouco enegrecidos pelo tempo e pelo clima e
Num campo, o Faraó empapado em sangue, contra pelo esforço mas sempre serenos, impenetráveis,
os anéis de ouro de uma sólida coluna; e um rosto longínquos, não como sentinelas, não como se
bovino, suado e disforme; mas os olhos alarmados defendessem com os enormes e monolíticos pesos
como os de Scarface. No contra-campo, a princesa os vivos contra os mortos. Mas antes os mortos
Nelifer, aquela que, por natureza, jamais poderá contra os vivos, contra a angústia e a dor da raça
descansar o seu corpo de pin-up, em segredo, no humana. Nos bancos de jardim e nas salas de
segredo do Faraó. E o que já acontecera acontece espera, há um peso de vagabundos que, se não
outra vez: o tempo pára e dispara, todos os ritmos existisse, nos transformaria em estrelas cadentes.”
são diferentes e existem no mesmo plano: o pobre
olhar impotente do Faraó fixa a mulher coberta com
as suas jóias e no rosto dela nasce um sorrriso. Sem | Pedro Costa |
saber ou poder escolher, Hawks faz o derradeiro
sacrifício do cinema: não corta nem lança o plano
ao negro. A voz dela desliga-se da boca, do êxtase *Texto gentilmente cedido por: Cinemateca Portuguesa,
passa ao prazer, a obscuridade obscurece-se e o Fundação Calouste Gulbenkian e Pedro Costa.

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Onde Começa o Inferno1
Rio Bravo 1959 continuam, lutadores indomáveis há mais de trinta
anos. O western, por exemplo – e o western é o
DIREÇÃO E PRODUÇÃO Howard Hawks ■ ROTEIRO Jules cinema (americano) por excelência -, é deles ou
Furthman e Leigh Brackett ■ FOTOGRAFIA (Technicolor) de seus discípulos, como Anthony Mann e Budd
Russell Harlan ■ DIREÇÂO DE ARTE Leo K. Kuter ■ Boetticher, ou ainda dos que os seguem eventual-
MÚSICA Dimitri Tiomkin ■ INTÉRPRETES John Wayne, mente (John Sturges, Delmer Daves). Os westerns
Dean Martin, Ricky Nelson, Angie Dickinson, Walter de Ford e Hawks, mais que os de Wellman, têm
Brennan, Ward Bond, John Russell, Pedro Gonzales- com freqüência a mesma gente. O herói máximo
-Gonzales, Estelita Rodriguez, Claude Akins, Malcolm dessa mitologia, em Stagecoach [No tempo das
Atterbury, Harry Carey Jr., Bob Steele, Myron Healey, diligências] e The searchers [Rastros de ódio] ou
Fred Graham. em Red River [Rio Vermelho] e Rio Bravo, é John
Wayne, um dos poucos atores verdadeiramente
Armada Production-Warner (EUA), 140 minutos, cor, 1959. grandes do cinema contemporâneo.

Rio Bravo já foi o título brasileiro de um western


Quatro anos separam Rio Bravo do filme que o de Ford (não um dos maiores), que no original
precede cronologicamente na obra de Howard era Rio Grande. Era outro filme, tendo como herói
Hawks, Land of the Pharaohs [Terra dos faraós]. de outra história o mesmo John Wayne, herói do
Um dos maiores diretores americanos ficou ina- Rio Bravo de Hawks e de hoje. Não se confundam
tivo quatro anos. Isto é Hollywood, pode-se dizer, as coisas — mas, se há um diretor que às vezes
ao mesmo tempo em que, diante de Rio Bravo, se pode ser confundido no Velho Oeste com Ford, é
tem a rara ocasião de dizer: isto é cinema. Não Hawks, esse diretor. Entre o velho Rio Grande e o
convém especular sobre o problema, no momento; novo Rio Bravo, as vantagens estão com o último,
basta salientar que, nos quatro anos de silêncio de que é, aliás, o melhor western desde The searchers.
Hawks, um qualquer Martin Ritt fez seis ou sete
fitas com facilidade e conforto, ou melhor, seis Para realizar Rio Bravo, teve Howard Hawks de 1. Publicado sob
ou sete vezes exibiu submissão e incompetência, organizar a sua unidade produtora, a Armada, e o título “Onde
candidatando-se assim a longa e próspera carreira pôde em conseqüência agir com bem entendida. Começa o Inferno”,
em Um filme por dia
na “indústria”. Isto é Hollywood, não há dúvida – e Cercou-se de velhos companheiros de outras lutas: – Crítica de choque
não é cinema. o cenarista Jules Furthman (seu colaborador em (1946-73); (Org.) Ruy
várias fitas, como Come and get it [Meu filho é meu Castro; pesquisa
A rentrée de Howard Hawks é mais uma evidên- rival]; Only angels have wings [Paraíso Infernal]; To editorial Eduardo
Moniz Vianna. São
cia de que o verdadeiro cinema está nas mãos have and have not [Uma Aventura na Martinica]; The Paulo: Companhia
dos veteranos. Só três cineastas seriam capazes big sleep [À Beira do Abismo]) e o fotografo Russell das Letras, 2004,
de realizar um filme como este – só John Ford, Harlan. Entre os atores, também velhos amigos p. 239-245. © by
William A. Wellman e Howard Hawks, os três que seus (Walter Brennan, John Wayne), ou amigos herdeira de Antonio
Moniz Vianna

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de Wayne (Gonzales-Gonzales) – formando-se no ou morrer]. Nada disso: o xerife de Rio Bravo tem
elenco um pequeno núcleo fordiano, constituído as linhas mais retas e graves da tradição – não
por Wayne, Ward Bond, John Russell, Harry Ca- difere substancialmente de Wyatt Earp, o modelo
rey Jr. Ainda segundo seus hábitos, Hawks deu clássico, nem o imita; extrai das reações mais
a Dean Martin uma oportunidade semelhante à permanentes e universais a sua personalidade
que oferecera em Red River a Montgomery Clift e própria. Inabalável, irremovível da posição tomada
a Dewey Martin em The big sky [Rio da aventura]. E no principio, que defenderá mesmo depois de es-
metamorfoseou um jovem cantor de rock-’n’-roll, gotar todas as astúcias, esse xerife é personagem
Ricky Nelson, em um pistoleiro meio no formato de tragédia, gênero que a roupagem característica
de Billy the Kid; com isto, faz o diretor a ligação do Oeste está com freqüência revestindo – é um
entre os tempos do Wild West e o mundo (civilizado) herói trágico, vença ou não, morra ou viva, e sem
atual, através do fenômeno comum, sempre ame- ter alterada essa condição mesmo no happy ending
ricano (de onde se propaga também pelo cinema), ruidoso e bem-humorado que Howard Hawks ar-
da “juventude transviada”. Essa ligação havia sido ranja para Rio Bravo repetindo o que já fizera em
tentada, infrutiferamente, com o uso de Elvis Pres- Red River. Estes dois filmes, embora diferentes em
ley em Love me tender [Ama-me com ternura], de situações e narrativa, têm a mesma linha, a linha
Robert D. Webb, e onde o ás do R&R surgiu como mestra de um estilo. E o xerife de Rio Bravo poderá
um dos notórios irmãos Reno – mas o requebrado ser visto como o criador de gado que atravessou o
era outro, naturalmente; e foram outros, também, Red River, inabalável e invencível; se aquele John
em ritmo Actor’s Studio, os requebros de Paul Wayne, cumprida aquela tarefa, resolvesse fixar-
Newman em The left handed gun [Um de nós mor- -se na cidade texana de Rio Bravo, certamente
rerá]. Com um diretor de pulso firme, Ricky Nelson agiria como o John Wayne que vemos aqui tendo
realmente se transfigura, lembrando por vezes o no peito a estrela de lata de xerife.
estilo de Audie Murphy. Por fim, no que se refere
ao elenco, Hawks, o inventor de várias estrelas Rio Bravo é o melhor western saído de Hollywood
de estranho fascínio (Ella Raines, Lauren Bacall, desde The searchers – o melhor de três safras,
Elizabeth “Coyote” Threatt), agora dá oportunidade portanto. Nesses três anos, valorizados pelos en-
à talentosa beleza de Angie Dickinson, até então saios de Anthony Mann (The tin star [O homem dos
mais ou menos despercebida. olhos frios]; Man of the West [O homem do Oeste]),
o gênero número 1 proporcionou ainda triunfos
E todo o elenco funciona admiravelmente, é claro, avulsos a vários diretores, como o insuperável
tendo atrás um grande diretor e, no meio deles, Joseph H. Lewis (Terror in a Texas town [Reinado
Wayne, o grande líder. Há quem diga ainda que de terror]) e Jack Arnold (No name on the bullet)
só Ford faz de Wayne um artista; quem isso afir- [Balas que não erram]); ou regenerou momenta-
ma certamente não se lembra do Wayne de Red neamente o estilo de dois homens vencidos pela
River – ou ainda não o viu em Rio Bravo, onde o indústria, como Henry King (The bravados [Estigma
ator atinge outro de seus clímaces. Na história do da crueldade]) e Edward Dmytryk (Warlock [Minha
western são poucos os xerifes tão extraordinários vontade é lei]).
como o deste filme, mas não porque Wayne, aqui,
seja mais heróico ou mais matreiro, nem porque Com o ultimo, único bom filme de Dmytryk em
tenha medo como Gary Cooper em High noon [Matar muitos anos, aparenta-se um pouco a história

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de Rio Bravo. Os personagens não são os mes- Apesar de todas as analogias referidas, Rio Bravo,
mos, mas as situações às vezes têm uma tensão com seus 140 minutos de projeção, não conta uma
semelhante, com os pistoleiros profissionais do longa história – a bem dizer, desenvolve uma série
homem mais poderoso da zona rondando os law- de incidentes em volta de um tema-pretexto: o xe-
men. Os westerns têm sempre pontos de contato rife prende um assassino, que é irmão do rancheiro
uns com os outros: não há gênero tão fiel às suas mais influente da região, e tudo fará para guardá-lo
tradições; nenhum outro, aliás, pode repetir-se na cadeia até a chegada do delegado federal daí a
sem correr os mais sérios riscos, ao passo que no alguns dias, resistindo às ameaças, provocações
western é normal, se não obrigatória (e admirável), e todos os pistoleiros alugados contra ele, tendo
a retomada de posições. Se Rio Bravo lembra um a ajuda apenas de um bêbado e um velho coxo. A
pouco Warlock, este lembra ainda mais, na linha narrativa começa em silêncio, veementemente: o
de certos personagens, um clássico de Ford, My bêbado (Dean Martin) entra no saloon sem dinheiro,
darling Clementine [Paixão dos fortes] e, por tabela, o arrogante desordeiro (Claude Akins) mostra-lhe
o filme que John Sturges fez no rastro de Ford, uma moeda antes de atirá-la dentro da escar-
mestre de todos: Gun-fight at the O.K. Corral [Sem radeira, Martin já se apresta para a humilhação
lei e sem alma]. Ao mesmo tempo, Rio Bravo se de apanhá-la quando, com um pontapé no vaso,
afasta de Warlock por recusar o enfeite, ou certos John Wayne entra em cena. Poucas palavras são
efeitos, inclusive de suspense, que, bem maneja- ditas até que Akins saia do saloon, onde o xerife,
dos por Dmytryk, não influenciariam um homem agredido por Martin, está desmaiado, Martin se
como Howard Hawks – dono de estilística própria, contorce de dor, e um terceiro homem, que ten-
sóbria e simples, com impacto certo e forte, como tara evitar a agressão do bêbado, está morto. O
só os veteranos de sua altura sabem provocar. Na assassino, atravessando a rua, entra em outro
troca de ideias e situações que se observa sem- bar, faz-se cercar de seus homens – mas é inútil:
pre que um grande western sucede a outro, Rio o ensangüentado xerife surge para prendê-lo, o
Bravo parece começar onde parou um velho filme, desesperado Martin intervém desta vez do lado
Red River, do mesmo diretor; e termina no tiroteio de Wayne: é a prisão para Akins.
entre as duas facções, a da lei e ordem e a dos
outlaws, como no filme de Ford que historiou a É a tensão para a narrativa, daí por diante. Uma
batalha dos Earp e Doc Holliday com os Clantons tensão que Hawks suspende, sem cortar, por di-
– sendo curioso notar que o ator que viveu Old Man versas vezes – para que ingresse na aventura, por
Clanton naquele amanhecer fordiano alinha-se exemplo, a jogadora Feathers (Angie Dickinson),
agora ao lado da lei: Walter Brennan, este o mais ou para o show extraordinário de Walter Brennan,
hawksiano do grupo aqui reunido, e que, como o reclamando de tudo, contra todos, divertindo-se
guarda da cadeia de Rio Bravo, iguala a linha de em torturar o arrogante prisioneiro (mostrando-
seu sinistro papel em My Darling Clementine (1946) -lhe a cama ou não pondo açúcar em seu café) e
e de seu tragicômico personagem de The Westener atirando ante a aproximação de qualquer suspeito:
[O galante aventureiro] (1940), de Wyler, com mais até Dean Martin, ao aparecer limpo e de chapéu
uma memorável performance. novo à porta da cadeia, leva tiro de Brennan. Em
outra ocasião, o velho coxo, que de tudo quer sa-
ber, até canta “Cindy” após ouvir Dean Martin e

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© by herdeira de Antonio Moniz Vianna
Ricky Nelson em dueto (“My rifle, pony and me”).
Raros são os diretores como Hawks, capazes de
fazer uma fita de classe de Rio Bravo a partir de
pequenos incidentes que parecem flutuar (e se
ligam todos à perfeição) em clima da história mais
clássica e, também, menos complexa estrutural-
mente. Hawks não teve muito mais história – tinha
apenas mais movimento – ao fazer Red River, mas
fez também um dos westerns com lugar marcado
na história do cinema.

Disse Hawks, de uma feita: “Decido realizar um


filme quando o assunto me interessa: pode ser
sobre corridas de automóveis ou sobre aviação, um
western ou uma comédia – mas o melhor drama
é aquele do homem em perigo. Não há ação a
menos que haja perigo; e, se se chega à ação real,
da mesma forma há perigo: ficar vivo ou morrer,
este é o maior drama que nós temos”. Desde a
primeira cena, todos os seus personagens, e não
apenas John Wayne no centro, estão sob o signo do
perigo: aguardando-o, preparando-o, enfrentando-
-o. Não apenas Wayne e seus amigos – um dos
quais, o velho Ward Bond, surge à frente de uma
caravana (como em sua série famosa da televi-
são) e, por querer ajudar o xerife, é abatido por
um pistoleiro no meio da rua, aos vinte minutos
de filme. Também sabe que estará em perigo o
irmão do assassino, que manda tocar a “Degola”,
canção mexicana tocada incessantemente contra
os defensores do Álamo, como a advertir Wayne
de que não terá misericórdia, se o herói persistir
em reter o prisioneiro. A tensão é criada de todos
os lados, o perigo se esconde em todos os cantos
– num vão mais escuro da rua, num sótão ou na
aproximação de alguns cavaleiros. É o cinema
como Hawks o entende.

| Antonio Moniz Vianna |

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INTRODUÇÃO A HAWKS1
É mais difícil discorrer sobre o cinema norte- não agem como herói ou heroína”. Filmes de ação
americano do que sobre o francês ou italiano. Sua pura, simplificados e sem mistérios, são os que
verdadeira importância não está perfeitamente mais se aproximam do padrão clássico, do “filme
definida e não são todos os “cine-entusiastas” norte-americano”, por excelência.
que valorizam justamente. Pode-se dizer que
reina uma incompreensão geral em relação aos O seu estilo caracteriza-se pela presença e o
filmes ianques, devido à falsa acusação de que uso da velocidade. Como se sabe, Howard Hawks
“são comerciais”. A situação estende-se a Howard formou-se realizando comédias-pastelões, nos
Hawks, o mais norte-americano dos cineastas. primeiros anos da década de 1920. Essa escola
procurava a velocidade, a síntese na narração
Não se pode negar que este realizador tenha um (as peripécias tinham que ser filmadas no menor
estilo próprio e definido. Em Hawks, a caracterís- tempo possível, a encenação deveria “caber” nas
tica fundamental é a espontaneidade; anti-intelec- duas bobinas. Influenciado por esta pratica, im-
tual por excelência, o que é sintoma de liberação, pôs a velocidade num filme que é uma autentica
realiza filmes que não cuidam de qualquer ativi- tragédia, Scarface, narrado em ritmo rápido, vinte
dade intelectual. Desenvolve temas sensoriais, por cento mais ligeiro que o comum da época. A
invariavelmente instintivos, já que provindos da tragédia, tradicionalmente desenvolvida em ritmo
condição animal do homem, como, por exemplo, lento, viria a ser também solucionada em narração
o da destruição, o amor incestuoso (Scarface, A apresentada pelo cinema moderno, através de
Vergonha de uma Nação-1932), a posse da mulher. realizadores como Sugawa, Yoshida, Fuller.

Se dividirmos o cinema em dois tipos, instintivo e A velocidade é um fator de economia, já que a


reflexivo, constataremos que H.W. inscreve-se no narrativa é “condensada” no menor tempo possível.
primeiro. Antissistemático por natureza, realiza O cinema de Hawks caracteriza-se pela essen-
obras que, como ele mesmo confessa, a intriga cialidade, a economia (“é necessário apreender-
não lhe é de nenhuma importância. se às coisas essenciais” diz ele). Devido a isto, e 1. Originalmente
também por serem instintivos, seus filmes não publicado no
A oposição ao expressionismo dá uma medida se demoram em atmosferas e situações, ou em Suplemento
Literário do
da espontaneidade; aquele estilo baseia-se no efeitos plásticos. Em suma, são filmes de ação. jornal O Estado
maniqueísmo, nas sistematizações e contrastes de São Paulo:
definidos (bem versus mal, luz versus sombras etc.). Tudo, em Hawks, é usado em função do movimento SGANZERLA,
O estilo hawksiano é instintivo. De fato, a fotografia (principalmente a câmera que não para de loco- Rogério.
Introdução a
é “limpa” e despojada, as situações são evidentes mover-se e os diálogos, rápidos e entrecortados. Hawks. Jornal
e o conflito dos personagens de nenhuma maneira Declara ele que, se não esta satisfeito com uma O Estado de S.
simboliza a “eterna luta entre o bem e o mal”. São, cena, refilma-a em ritmo mais rápido, geralmente Paulo: 19 dez.
como declara, “simplesmente pessoas normais; alcançando, assim, o resultado pretendido. 1964. Suplemento
Literário, p.5.

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A velocidade não é só movimento estilístico ou tomóvel: do avião, em Patrulha perdida (1930) Air
de economia, mas também tema. Seus filmes force (1943), Only angels have wings (1939); do navio,
baseiam-se no movimento dos objetos, dos per- em Tiger shark (1932); do carro de corrida, em The
sonagens e principalmente da câmera (Scarface); crowd roars (1932): do trem em Twentieth century
as perseguições automobilísticas, a velocidade (1934). Em toda a sua obra há a presença destes
dos combates aéreos, os perigos marítimos, os meios mecânicos, podendo-se afirmar que ela é
tiroteios e caçadas filmados em veículos são ele- um imenso painel sobre os meios modernos de
mentos característicos do universo do autor. Diz- automação.
se que seu próximo filme versará sobre corridas
automobilísticas; nada mais hawksiano. Pode-se, Já disse que Hawks “usa os animais como persona-
com toda certeza, chamá-lo “o cineasta da velo- gens ambientados na “intriga” na mesma medida
cidade”, traço tão típico da vida contemporânea. em que usa Elsa Martinelli ou Red Buttons; chega,
inclusive, a filmar os animais em close, o que não
Alexandre Astruc declara que “a história da téc- acontece com os personagens humanas”.
nica cinematográfica pode ser considerada, em
conjunto, como a história da liberação da câmera”. Pode-se observar que o animal e a máquina estão
De fato, no cinema moderno compreendeu-se a situados no plano diverso do ocupado pelo homem.
sua importância e mesmo Jean Renoir confessa Estão todos no mesmo nível, rivalizando-se lutando
que “a religião do cinema é a câmera”. Hawks entre si, para ver quem sairá vencedor. Assim, por
deu-lhe autonomia desde as primeiras fitas. Deve- exemplo, o homem precisa lutar contra o animal,
se salientar que o ritmo rápido não é conseguido vencê-lo (Hatari!, a máquina no avião de Air force)
através do corte e montagem, como geralmente ou terá de submeter-se. É, pois, perfeitamente
acontece, mas no aparelho de filmagem. H.W., definida a intrusão do nível animal e mecânico
como acontece com os realizadores modernos, no nível humano.
despreza a montagem. Assim, a câmera é “liber-
tada”, com as cenas mais longas possíveis, sem O que justamente não está no nível do homem é
cortes. Em Hatari!, por exemplo, a velocidade é a mulher e, é claro, também ao da máquina e do
alcançada unicamente com a atuação da câmera: animal. Talvez porque a mulher não apresenta o
é montada em um caminhão, que corre em alta movimento e a ação física como características. A
velocidade, podendo assim registrar a impetuosa energia feminina é essencialmente interior.
movimentação das calçadas.
Em Hawks, a mulher é a fonte de todas as catástro-
A câmera cínica segue o personagem, percorrendo fes. Nos filmes do mais americano dos cineastas,
o caminho, registrando a sua busca. E é a função como não poderia deixar de ser, vislumbra-se o
2. SGANZERLA,
Rogério. A do aparelho. E não só com relação aos homens; tema da dominação do homem pela mulher. Já
“câmera” cínica. segue e examina também os animais e as má- se sabe o que o matriarcalismo significa nos EUA,
Jornal O Estado quinas. Principalmente as máquinas. O próprio talvez seja esta a causa da assiduidade do tema
de S. Paulo. São
cineasta confessa porém incontida atração por no cinema de Hollywood.
Paulo: 11 jul. 1964
(Suplemento elas. Em Scarface há a apologia da metralhadora
Literário, p.5) (“este hino à metralhadora triunfante”) e do au-

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Um crítico francês afirma que a obra de Hawks,
com uma única exceção, é totalmente composta
de “filmes de homens”. Mas, em compensação, o
herói hawksiano teme a mulher e do momento em
que se enamora está perdido. Tenta fugir ao amor,
luta contra a mulher, porque tem e consciência
da dominação e teme ser cativo.

No universo Hawksiano a mulher é o elemento de


desacordo, seguindo-se o desprezo por ela (como
em Welles, Fuller, George Cukor, Charles Victor e
no Godard de Acossado). André Bazin, observa que
O proscrito (1943) está baseado no desprezo pela
mulher, declarando que já não há aquele proces-
so clássico de os heróis retirarem a proteção da
heroína. A situação agora inverte-se: os homens
não cessam de humilhá-la, abandoná-la, e recu-
sar propostas. “Nesta incrível contraconquista do
Santo Graal, é a mulher que necessita do homem
e que passa pelas piores provas a fim de alcançar
um olhar do seu senhor e mestre”. Não há nenhum
motivo para a existência da mulher a não ser o
mais óbvio de todos: o erotismo.

| Rogério Sganzerla |

*Texto gentilmente cedido por: Helena Ignez e Mercúrio


Produções

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À Beira do Abismo1
Avaliação **** Obra-prima em si, mas mais um triunfo da acomodação do que
Dirigido por Howard Hawks de uma autoexpressão desenfreada.
Escrito por William Faulkner, Leigh Brackett e Jules Desde que Hawks foi descoberto como um autor
Furthman por dois críticos excêntricos nos anos 1950 – Manny
Com Humphrey Bogart, Lauren Bacall, John Ridge- Farber nos Estados Unidos e Jacques Rivette na
ly, Martha Vickers, Dorothy Malone, Pat Clark, Regis França – abordagens críticas ao seu trabalho
Toomey, Charles Waldron, Sonia Darrin e Elisha Cook Jr. têm sido prejudicadas por sua própria noção de
si mesmo como nada mais do que um cavalheiro
qualquer e um trabalhador contestador. Sua ideia
Por toda a sua reputação como um clássico, e principal de autoexpressão foi descobrir quem
apesar da grandeza de Howard Hawks como ci- contratar, como moldar e mimar seus empregados,
neasta, À Beira do Abismo (The Big Sleep, 1946) e como divertir-se com eles, enquanto mantinha
nunca realmente pertenceu à linha de frente de o seu próprio estúdio com uma gestão adequada.
seu trabalho – pelo menos não com a mesma in- Assemelhando-se a um pianista líder de banda,
tensidade de Scarface – a Vergonha de uma Nação Basie ou Ellington, ele entendeu como usar seu
(Scarface, 1932), Suprema Conquista (Twentieth Cen- pessoal para se dar bem. Às vezes isso era uma
tury, 1934), Paraíso Infernal (Only Angels Have Wings, questão de colocar um jogador contra o outro, e
1939), Uma Aventura na Martinica (To Have and to às vezes era simplesmente saber quando mandar
Have Not, 1944), Rio Vermelho (Red River, 1948), O um embora e quando agir solo, e quando fornecer
Rio da Aventura, O Inventor da Mocidade (Monkey acordes para outro jogador. Como Todd McCarthy
Business, 1952), Os Homens Preferem as Loiras confirma em sua nova biografia de Howard Hawks
(Gentlemen Prefer Blondes, 1953) e Onde Começa o de 756 páginas: “A Grande Raposa de Hollywood”,
Inferno (Rio Bravo, 1959), para citar minha própria Hawks nem se preocupou em dirigir os números
lista de favoritos. Ao contrário de Uma Aventura musicais de Os Homens Preferem as Loiras. Mas
na Martinica - a colaboração anterior de Hawks isso não diminui mais a sua estatura (ou a do filme)
com Humphrey Bogart e Lauren Bacall, com os do que a recente revelação de que Billy Strayhorn,
escritores Jules Furthman e William Faulkner, o na realidade, escreveu muitas das melhores mú- 1. Originalmente
diretor de fotografia Sid Hickox e o compositor Max sicas de Ellington, o que reduziria a grandeza do publicado sob o
Steiner – o filme não se qualifica nem como um título “The Big
compositor (ou de “Take the ´A´ Train”). A me- Sleep” no jornal
manifesto pessoal sobre o comportamento social lhor música de Ellington e os melhores filmes de Chicago Reader, 20
e sexual, nem como uma meditação abstrata em Hawks são ambos principalmente sobre a alegria de junho de 1997.
estilo jazz e set fanfarrão2 em um espaço confina- de pessoas vivendo e trabalhando juntas, e nosso
do, embora o filme periodicamente nos lembre de conhecimento de seus prós e contras – e em alguns
que exercícios deste tipo são o que Hawks fez de casos até mesmo fracasso — nessas transações 2. No termo
melhor. Na maioria das vezes, a energia do filme sutis, só aumenta o nosso conhecimento do senso original usado,
e seu aprumo são dedicados a sobreviver à sua de estilo do artista e de seu gosto. Como Farber “braggadocio set”.
trama labiríntica sem tropeços – um feito notável [N.d.T.].

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certa vez escreveu, “todo o sistema do fazer ci- de À Beira do Abismo e depois de Uma Aventura na
nematográfico de Hawks parece se tratar de uma Martinica. Seu agente altamente influente, Charles
preocupação com as ligações, um negócio que Feldman, pediu à Warner para rever À Beira do
envolve pessoas, tramas e abas de chapéu de oito Abismo, a fim de reparar o dano, e a maior parte
polegadas”, e é lógico que muitas dessas conexões das refilmagens e reedições – e, em pelo menos
aconteceram tanto fora da tela, quanto dentro dela. um caso, redublagem – foram realizadas em estrita
Para demonstrar essa ideia, dê uma boa olha- conformidade com as suas sugestões.
da nas duas versões de À Beira do Abismo que a Para complicar e, ocasionalmente, aumentar tais
história nos deixou – a primeira lançada para as revisões, havia oscilante relação entre Bacall e
tropas americanas no exterior em agosto de 1945, Bogart, que se apaixonaram durante as filmagens
e outra, muito mais conhecida, exibida dentro do de Uma Aventura na Martinica. Durante as primei-
país um ano depois. A versão restaurada da pri- ras filmagens de À Beira do Abismo, Bogart ainda
meira – exibida esta semana na Facets Multimedia era casado com outra pessoa e tentava fazer tal
juntamente com um subsequente documentário casamento funcionar e Hawks, que provavelmente
em que o arquivista Robert Gitt mostra como e tinha seus próprios projetos para Bacall, estava
porque a maioria das alterações do filme foram interessado em manter suas duas estrelas sepa-
feitas – revela não apenas as razões pelas quais um radas quando não estavam trabalhando juntos. No
fantástico filme ficou melhor ou pior, mas como, momento em que os três se reuniram para filmar
por razões comerciais, foi transformado em outro as novas cenas para a segunda versão, Bogart e
tipo de filme (também incrível). Ele também ajuda Bacall tinham se tornado inseparáveis, e como
a nos mostrar como o segundo filme foi lido ou consequência a relação de Hawks com ambos
mal interpretado em termos da autoexpressão de havia esfriado.
vários artistas: Hawks, Bogart, Bacall, Faulkner,
Furthman, e Brackett. Embora muitas das mudanças no filme, como o
diálogo do cavalo de corrida, fossem claras me-
Durante anos, supunha-se fortemente que o céle- lhorias, muito de esclarecimento da trama foi
bre e delicioso diálogo repleto de duplos sentidos excluído no processo, levando a uma boa dose de
a respeito de cavalos de corrida entre Bogart e especulação, durante meio século, sobre quem
Bacall em um bar – uma cena encontrada ape- realmente matou o motorista, Owen Taylor. Daí
nas na segunda versão – foi escrito por Faulkner, surgiu a lenda, espalhada por Hawks, que nin-
embora alguns comentaristas tenham julgado ser guém que trabalhava no filme sabia a resposta,
de Furthman. Agora sabemos que foi escrito pelo e que quando o diretor ligou para Chandler para
relativamente desconhecido (e não creditado) Philip perguntá-lo, ele respondeu que também não sabia.
Epstein, que também assinou o roteiro de Casa- Mas, na verdade, o roteiro de Faulkner e Brackett
blanca (Casablanca, 1942). Muito tempo depois de respondia a essa pergunta em sua versão de pré
os outros três escritores terem deixado o projeto, -lançamento, e quando suas explicações foram
Jack Warner contratou Epstein para reforçar a removidas, uma trama já intrincada de mistério se
interação entre Bogart e Bacall e, assim, melhorar tornou impossível de ser acompanhada em seus
a imagem de Bacall, que tinha sido manchada por pormenores.
sua aparição no mal recebido Quando os Destinos
se Cruzam (Confidential Agent, 1945), lançado antes

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O biógrafo McCarthy cria uma tese interessante as duas versões de À Beira do Abismo como emble-
a partir da comparação das duas versões na qual mas de fios dialéticos da personalidade artística
diz: “À Beira do Abismo se revela como o indis- de Hawks — impulsos beligerantes, presentes na
cutível ponto de virada na carreira do diretor. O maior parte de sua carreira.
primeiro corte representa o culminar da dedicação
de Hawks à narrativa, aos princípios da narra- Durante a década de 1960, quando a personalidade
tiva clássica, com o tipo de lógica que depende de Hawks, assim como as suas credenciais artís-
do intrincado entrelaçamento de fios dramáticos. ticas ainda eram uma questão polêmica, muita
No corte revisto, menos linear, vemos o diretor tinta foi desperdiçada sobre os méritos relativos
abandonar essas virtudes de longa data a favor de à versão de Chandler de À Beira do Abismo, e a
‘cenas’, cenas muitas vezes eletrizantes em efeitos versão de John Huston de Relíquia Macabra/O Fal-
individuais, mas que foram ponderadas fortemente cão Maltês (The Maltese Falcon, 1941), escrito por
a favor de personagens em detrimento do enredo Dashiell Hammett, — certamente um caso em
e da complexidade dramática. Quando Hawks viu que se comparam coisas diferentes. Naquela épo-
que poderia seguir em frente, esse acontecimento ca, eu estava inclinado a tomar o lado de Hawks,
o encorajou a prosseguir por este caminho para mas hoje, quando as linhas de batalha estão dese-
o resto de sua carreira, com resultados diversos, nhadas de maneiras diferentes, encontro fatores
em termos tanto da intenção quanto da qualidade suplementares demais em jogo para necessaria-
de seu trabalho”. mente chegar a tal conclusão. Obviamente que a
escrita de Hammett é superior tanto ao roteiro
A hipótese de McCarthy — que foi elaborada depois de Chandler quanto ao de Huston, baseados em
de ele ter visto a restauração de Gitt da versão de Hammett — para não mencionar uma boa dose
pré-lançamento e durante os estágios finais da do “clássico” Hemingway. É menos óbvio, mas
escrita de seu livro, quando seu impulso de gritar ainda assim defensável que o À Beira do Abismo de
“Eureka!” deve ter sido irresistível — é sedutora, Hawks seja superior ao romance de Chandler (pelo
mas longe de indiscutível. Afinal, o filme seguinte menos se preferimos o estoicismo adolescente à
de Hawks depois de À Beira do Abismo foi o linear (e autopiedade adolescente e fazemos vista grossa
um pouco episódico) Rio Vermelho; e uma narrativa para a compreensão mais ampla de Chandler sobre
muito mais clássica foi usada em filmes como A a corrupção). E, obviamente, Huston é mais fiel à
Noiva era Ele (I Was a Male War Bride, 1949), O Mons- sua fonte do que Hawks e seus escritores são às
tro do Ártico (The Thing from Another World, 1951), deles. Mas tenho que admitir que acho o fatalis-
O Rio da Aventura (The Big Sky¸ 1952) e Terra dos mo machista de ambos os diretores precário em
Faraós (Land of the Pharaohs, 1955). Eventualmente, termos de uma visão moral abrangente. O Sam
ele alcançou um estilo mais solto, menos linear Spade de Huston provavelmente é mais misógino
de fazer cinema, em filmes como Onde Começa o do que o de Hammett e o Philip Marlowe de Hawks
Inferno e Hatari! (1962) — a menos que se conclua possui uma moral mais elitista do que o de Chan-
que ele já estava se concentrando em “cenas” ao dler, mas, em cada caso, a mudança florece um
invés de uma narrativa linear em uma comédia traço do diretor que é o outro lado da moeda do
como Suprema Conquista, de 1934, ou que o final que o faz brilhar.
relativamente abrupto de Rio Vermelho está em
conformidade com a segunda forma de Hawks. Em À Beira do Abismo temos de pesar a força sexual
Mas McCarthy certamente tem razão ao destacar e atraente de Bogart para com a personagem de

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Lauren Bacall e os vários flertes ingênuos que do grupo, perguntei a Hawks algumas coisas tí-
ele encontra em seu caminho — a vendedora de picas de cinéfilo (“É verdade que Andy Williams
livros de Dorothy Malone e a motorista de táxi dublou parte da voz de Bacall em Uma Aventura
de Joy Barlowe — contra o desprezo que ele e o na Martinica”?) e obtive as respostas padrão (“Sim,
filme reservam para Carmen, a irmã de Vivian e ele dublou, e também o fez Hoagy Carmichael e
uma trambiqueira chamada Agnes (Sonia Darrin), vários outros, mas era a própria voz de Bacall
ambas descartadas como mulheres fatais, roe- em À Beira do Abismo” – na melhor das hipóteses
doras desumanas embaladas com o sex appeal. uma meia-verdade, porque a voz de Bacall acabou
A atmosfera acolhedora criada por Hawks, com sendo utilizada no corte final de Uma Aventura na
tamanho fascínio e glamour, é sempre baseada Martinica também). A principal impressão que tive
em tais exclusões não negociáveis. dele foi o que meu irmão mais velho do Alabama
teria chamado um bom e velho garoto – o tipo arro-
Se essas exclusões parecem mais problemáti-
gante, amável e atlético que andava por vestiários
cas aqui do que em Uma Aventura na Martinica e
e passava seu tempo contando suas histórias de
Rio Bravo, isso se deve em grande parte porque À
superioridade, onde ele estava sempre certo e
Beira do Abismo tem, em geral, menos afeição e
todo mundo sempre errado.
compaixão (excluindo certa ternura para com as
mulheres mencionadas acima e um ou outro bode Os fios de desespero atados por essa pose são
expiatório, principalmente o General Sternwood e naturalmente endêmicos para tal personalidade.
a inesquecível Harry Jones de Elisha Cook Jr.) e McCarthy escreve, em sua introdução, que Hawks
muito pouco do mesmo “esprit de corps”, além da “sentia-se tão inseguro como diretor em seus pri-
música de Bacall no cassino. Para mim, essa é a meiros filmes que ele frequentemente tinha de
grande limitação de ambas as versões de À Beira parar o carro, no caminho para o trabalho, para
do Abismo – o impulso de transformar algumas vomitar”. Mas, se não fosse por tal desespero, du-
pessoas em objeto e expulsá-las da raça humana, vido que ele seria lembrado como o grande diretor
o que parece mais uma falha de imaginação do que foi: é o lado mais sombrio, mais niilista de sua
que uma posição moral esclarecida. (Uma posição arrogância – sua percepção do vazio – que confere
semelhante, mas muito mais feia, domina o último a seus melhores trabalhos seu peso metafísico
filme de Hawks, Rio Lobo (1970), e similares formas (Existe algum diretor que transmite uma maior
de insensibilidade em Levada da Breca (Bringing sensação de puro medo?). Sabemos, por várias
Up Baby, 1938) e Jejum de Amor (His Girl Friday, fontes, que Hawks foi desdenhoso em relação a
1940) impedem-me de incluí-los na minha lista pessoas que cometeram suicídio – Andrew Sarris
dos favoritos de Hawks). tem algumas coisas muito sugestivas para dizer
sobre este assunto em The American Cinema -
Nunca precisamente conheci Hawks, mas há 25
mas certamente este era o tipo de cobertura de
verões, quando o Festival de Cinema de San Se-
autoproteção assumida por alguém para quem
bastian, onde ele trabalhava como presidente do
o suicídio era, por vezes, uma tentação genuína.
júri, ofereceu aos seus convidados um dia de via-
gem a Pamplona para participar de uma tourada, De fato, as duas versões de À Beira do Abismo – um
passei partes de uma tarde como parte de sua noir cuja quase generalizada escuridão e frieza
comitiva. (Foi durante o período de Franco, quando são quebradas irregularmente por pequenos ni-
vantagens deste tipo eram comuns.) Como outros nhos quentes de camaradagem e luxúria amigável

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– evocam um universo instável, onde diversão e
uma incerteza profunda se encontram. A versão
anterior busca de maneira mais lúcida uma linha
de pensamento intuitiva para esse mundo incerto.
E a primeira versão persegue mais lucidamente
uma cadeia de pensamento dedutivo nesse mundo
incerto – não apenas quando se trata de explicar
a morte do motorista, mas também quando Mar-
lowe percorre o entorno de uma casa onde um
assassinato acabou de acontecer (uma cena para
a qual não restam palavras, de cinema puro, la-
mentavelmente cortada na versão de lançamento,
boa o suficiente para remeter à abertura de Onde
Começa o Inferno). Na verdade, a versão de pré
-lançamento oferece um exemplo muito melhor
do encantamento de Hollywood do que qualquer
versão atual que você provavelmente encontrará.

| Jonathan Rosenbaum |

*Traduzido do inglês por Luciana Tanure.


**Texto gentilmente cedido pelo autor.

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INTERESSEIRAS DE 1953:
OS HOMENS PREFEREM AS LOIRAS,
DE HOWARD HAWKS1
a uma explosão de música no centro da tela,
Da revista Sight and Sound, inverno de 1984/1985. por detrás de uma cortina preta, com figurinos
Anos depois de escrever e publicar este artigo, vermelho-alaranjado que combinam entre si e
lembrei-me de ter visto um teste do Cinemascope acaloram a cena — cobertas com lantejoulas e
com meu pai em uma convenção de exibidores ornamentadas com penas — olhando uma para a
cinematográficos em Atlanta, em 1953, do qual outra, lançando peles de arminho brancas para a
fazia parte uma refilmagem da canção “Diamonds câmera e para fora do quadro, cantando vigorosa-
are a Girl’s Best Friend” em CinemaScope. Não mente em uníssono. Eletrizante como a abertura
tenho ideia se isso ainda existe, mas pode ajudar de qualquer outro filme de Hollywood que vem à
a explicar a razão de algumas pessoas lembrarem mente, esta materialização jazzística nos pega
ou identificarem, erroneamente, todo o filme como tão de surpresa que mal nos damos conta das
sendo em CinemaScope. modulações fugazes da cena, enquanto a dupla
dinâmica canta um único refrão. A cortina preta
Para aqueles que possam estar intrigados com muda para um azul chocante, em seguida, para
a antepenúltima ilustração, esta é a personagem um roxo forte; as duas mulheres trocam suas po-
Dominique Labourier se apresentando em uma sições no palco por duas vezes enquanto dançam
boate em Céline e Julie vão de Barco (Céline et Julie por alguns degraus de uma escada; e a enxurrada
vont em Bateau, 1974), em uma sequência que traça de complexos gestos que fazem uma para a outra
um paralelo preciso à sequência do tribunal de — tudo graciosamente articulado pela hábil coreo-
Os Homens Preferem as Loiras (Gentlemen Prefer grafia de Jack Cole — fazem com que o espectador
Blondes, 1953). - J. R. se sinta invadido por elas, tanto enquanto equipe
quanto individualmente: uma dupla ameaça.

Primeiro número: Impressionante demonstração das estratégias do


"We’re Just Two Little Girls from Little Rock” cine-punho, como tudo em Potemkin, essa aber- 1. Originalmente
publicado sob
tura de Os Homens Preferem as Loiras é apenas o título “Gold
Eu não acredito no cine-olho, eu acredito no cine- o primeiro de uma série de choques rudes. O se- Diggers of 1953” na
-punho. — Sergei Eisenstein gundo vem momentos depois — após os créditos revista britânica
terem aparecido sob a mesma cortina de palco e Sight & Sound , Vol
LIV n. 1 (Inverno
Antes mesmo dos créditos do título aparecerem, uma versão de coral de “Diamonds Are a Girl´s de1984-85); p
Marilyn Monroe e Jane Russell chegam em meio Best Friend” (em uma passagem de relativo des- 45-49.

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canso, durante a qual nos somos levados por nada e do que ela queria deles, Russell prontamente se
menos do que mais sete mudanças de cor inten- torna o “eu” na mesma narrativa: “Agora, um dia
sa) — quando, depois que “Little Rock” recomeça, destes, com minhas roupas chiques / Vou voltar
o filme corta de uma cena de Monroe cantando para casa e dar um soco no nariz”, antes que elas
sozinha para um ângulo inverso de um Tommy concluam em uníssono: “Daquele que partiu meu
Noonan vestido com um paletó de gala assistindo, coração... em Little Rock.”
acenando e palidamente soprando um beijo, sen-
tado a uma mesa de cabaré. A presença irregular, De fato, embora nem Lorelei Lee (Monroe), nem
passiva e decisivamente não heroica de Noonan Dorothy Shaw (Russell) tenham sido apresentadas
na cena — como um substituto não convidado do ainda como personagens, o filme já está oferecen-
espectador de cinema, como uma superfície neutra do ambas como Lorelei, a interesseira. Se nos vol-
ou assexuada na qual o dinamismo da Monroe tarmos para o romance de Anita Loos de 1925, que
pode refletir – cria uma montagem dialética de serviu de fonte para o filme, escrito em forma de
colisão, como um raio atingindo um prato cheio diário de Lorelei, descobrimos que ela é a única que
de mingau, tão intensa, em sua própria forma, vem de Little Rock, e a sua partida é precipitada
quanto a primeira aparição de Monroe e Russell. pelo fato específico de ter atirado em um amante
infiel. No entanto, com uma transmutação mági-
A partir de agora, todas as cartas de Howard Ha- ca possível graças à linguagem dos musicais, no
wks estão na mesa. O espectador é avisado de filme concede-se a Lorelei não apenas um centro
que o desenfreado espetáculo das duas estrelas mais suave, mas também uma essência espiritual
femininas e o repouso desvitalizado das cenas multiplicada por dois e distribuída de forma igual
da reação masculina compreendem os limites para Dorothy.
dialéticos deste universo cartoon do filme; e as
únicas personagens a serem vistas como iguais Hawks é famoso como um diretor que nunca se
serão as duas estrelas. De fato, em um mundo dignou a filmar um flashback, e os passados que
cujas premissas são a competição e a corrupção, ele dá a seus personagens antes de suas aparições
a amizade não-competitiva das duas forma uma na tela são geralmente escassos. Às vezes isso
frente de união que é o único centro moral do filme. envolve um caso de amor infeliz, como em Para-
íso Infernal (Only Angels Have Wings, 1939) e Onde
Se pararmos, finalmente, para considerar a letra Começa o Inferno (Rio Bravo, 1959); aqui, o passado
da canção delas, a noção de proximidade espiritual é mencionado o mais rápido possível, apenas para
se torna ainda mais impressionante quando per- motivar vagamente o interesse de Lorelei pelo
cebemos que elas estão assumindo precisamente dinheiro, e então rapidamente esquecido, para
a mesma identidade. Elas começam como “duas que o resto do filme possa gozar a imanência de
garotinhas de Little Rock”, que “viviam no lado um tempo presente contínuo. A primeira coisa a
errado das pistas”. Mas depois que Monroe toma destacar é que a ausência de qualquer desconti-
a palavra para descrever como, depois de “alguém” nuidade narrativa entre música e história faz com
partir seu coração em Little Rock e ela “levantar e que os números sejam uma forma de ser para
deixar os pedaços por lá”, finalmente partiu para ambas as personagens, em vez de uma atuação; e
Nova York, com uma visão mais dura dos homens dentro deste ser, Dorothy está disposta a assumir

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ou compartilhar a identidade de Lorelei, sem aviso, serem uma coisa em um momento e outra coisa
explicação, ou arrependimento. em outro momento, mas de serem, simultanea-
mente, pólos opostos.”
Apesar do único musical puro de Hawks ser pos-
sivelmente o mais popular de seus filmes hoje, os Na medida em que Lorelei/Monroe é percebida
críticos, em geral, tendem a ficar confusos quanto como uma personagem isolada, a observação de
a ele. Tratado apenas marginalmente em livros Dyer é irrefutável. Mas vista como uma função
dedicados ao diretor, o filme recentemente rece- essencial de uma máquina diabólica que também
beu uma atenção maior de escritoras feministas, incorpora Russell, Noonan, e Reid, ela projeta uma
que muitas vezes discordam sobre suas carac- coerência e legibilidade tão bem definida quanto
terísticas essenciais. Para Maureen Turin (“Gen- a deles. Na verdade, a capacidade inata do filme
tlemen Consume Blondes”, Wide Angle, número para sugerir legibilidade e ilegibilidade, feminismo
1) o musical é sexista, racista e colonialista; para e machismo, otimismo e pessimismo, beleza e
Lucie Arbuthnot e Gall Seneca (”Text and Pre-Text: bizarrice a um só tempo faz dele o produto capi-
Gentlemen Prefer Blondes,” Film Reader, número talista ideal, maleável para cada necessidade do
5) é jubilantemente feminista e, pelo menos por consumidor: uma destilação de Hollywood que
sugestão, proto-lésbico. Molly Haskell (“Howard também é uma paródia desta, um excesso calcu-
Hawks,” em Cinema: Um Dicionário Crítico), de lado/inocente de efeitos que premia igualmente
forma não menos convincente, acha-o “o mais personagens e espectadores, para que todos re-
perto de uma sátira a que os filmes de Hawks cebam o que pensam querer.
podem chegar sobre a natureza (e perversão) das
relações sexuais nos Estados Unidos, em especial Isso pode ajudar a explicar por que um número
nos obcecados-por-seios anos 50”. surpreendente de espectadores contemporâne-
os, Maureen Turin entre eles, enganosamente se
Como cegas tateando diferentes partes de um recordem do filme como sendo em CinemaScope,
elefante, cada uma dessas escritoras aborda algo porta-estandarte da amplitude da década de 1950.
diferente – o que ajuda a explicar a razão de o filme É certo que o filme foi lançado pela Fox apenas
conseguir acomodar alguns dos pontos de vista alguns meses antes de a empresa lançar o Cine-
e fantasias de heterossexuais e homossexuais de maScope, com O Manto Sagrado (The Robe, 1953)
ambos os gêneros. Se restarem dúvidas, (como é e Como Agarrar um Milionário I (How to Marry a
o caso de Robin Wood, Gerald Mast, Leland Pogue Millionaire, 1953), este último estrelado por Monroe
e Donald Willis em seus livros sobre Hawks), estas e apresentando um tema relacionado ao musical.
têm, sobretudo, a ver com os papéis masculinos Mas somos tentados a acrescentar outra razão
sem graça, Noonan e Elliott Reid. Mas Richard para esse erro, que é a própria estética: Os Homens
Dyer vai além em “Stars”, em detalhes criterio- Preferem as Loiras nos apresenta o efeito geral
sos, e encontra incoerência no cerne do filme, na do processo de CinemaScope, sem efetivamente
figura de Lorelei como interpretada por Monroe: utilizá-lo. Tente imaginar, por exemplo, a cena
“uma disjunção muito grande” entre a inocência da final - Reid, Russell, Monroe e Noonan, todos de
imagem de Marilyn e a frieza da personagem Lo- frente para a câmera e para o altar do casamento,
relei: “Esta não é uma questão de Lorelei/Monroe

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com bastante espaço entre eles – e o formato Gus. Dorothy convidou a equipe e os seus amigos
naturalmente se impõe. para visitar seu quarto para uma festa, e depois de
fazer uns poucos movimentos de dança com um
atleta, ela começa a cantar sua despedida eufórica
Segundo número: “Bye Bye Baby” – irracionalmente – para vários deles, antes que o
grupo a responda em um coro e algumas de suas
A trama do filme – as façanhas de Lorelei e Dorothy amigas sigam o exemplo.
enquanto navegam de Nova York a Paris e de volta
à Île de Paris – desenvolve a essência dos cinco Talvez essas mulheres estejam se despedindo da
números musicais e dá ao espectador a chance equipe, o que dá aos coros masculinos e femini-
de se recuperar do último enquanto se prepara nos, se não a Dorothy, alguma razão para cantar a
para o próximo. Lorelei, pensando exclusivamente canção. Mas a cena vem imediatamente depois de
em dinheiro, é enviada a Paris com uma carta uma cena “íntima” entre Lorelei e Gus, o que a faz
de crédito de seu noivo abastado Gus (Noonan). parecer se relacionar com eles ainda mais, embora
Dorothy, buscando unicamente o amor (ou sexo), eles já estejam ausentes do enquadramento. O
ganha uma carona como acompanhante de Lorelei, uso repetido da palavra “papai” por Lorelei, como
enquanto o pai cético de Gus contrata o detetive um apelido para Gus, na inimitável voz de bebê de
particular Malone (Reid) para espionar Lorelei Monroe, faz com que ela ou Gus sejam o “bebê” da
e reportar quaisquer indiscrições. Enquanto as canção seguinte, mais do que ninguém, embora o
estrelas embarcam no navio, juntamente com sentimento fique estranhamente deslocado.
membros de uma equipe de Jogos Olímpicos que
imediatamente despertam o interesse de Dorothy, Um apelo para a fidelidade, expresso na forma
todos são dirigidos a cabines adjacentes. Dorothy paradoxal de uma animada canção de ninar, seria
é acompanhada pela equipe de revezamento e totalmente lógico apenas se Gus a cantasse para
outras pessoas, Lorelei é acompanhada por Gus, Lorelei. Mas Lorelei acabou de subverter esta pos-
com presentes de despedida, e duas versões de sibilidade teórica, provocando Gus ao dizer que ele
“Bye Bye Baby” logo se iniciam. “pode ser um moço bem impertinente, às vezes”,
virando assim o jogo e impedindo quaisquer acu-
Nos filmes não musicais de Hawks, as canções sações da parte dele. E logo que Dorothy e seus
geralmente comemoram grupos e alianças re- acompanhantes completam seus dois coros, é
centemente formadas (Jean Arthur e aviadores Lorelei que leva Gus de volta para a privacidade
em Paraíso Infernal, Barbara Stanwyck e donos de da cabine ao lado para cantar uma versão mais
boate em Bola de Fogo (Ball of Fire, 1941), Lauren lenta e mais sensual da mesma melodia.
Bacall e Hoagy Carmichael em Uma Aventura na
Martinica (To Have and to Have Not, 1944)). Aqui, o Ao ver Monroe provocando-o – tocando a lapela de
mesmo processo está em jogo, a partir do calor Gus, acariciando seu ombro e forçando-o a manter
que se espalha entre Dorothy e a equipe de reve- contato visual com ela enquanto ele enrubesce e
zamento e irradia para fora. Mas, estranhamente, empalidece – não há como não lembrar Chaplin
Dorothy novamente canta uma música que faz com suas vítimas femininas em Monsieur Verdoux,
sentido apenas para Lorelei, que se despede de confiantemente executando seu próprio narcisis-

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mo sexual, glissandos para cima e para baixo. A Se parece que o espectador “macho” acaba de
troca de sexo (ou a sua promessa) por dinheiro é ser descartado, esta impressão é apenas meia
igualmente cunhada em ambas as personagens, e verdade. Assim como Dorothy está sempre pronta
o fato de que, em cada caso, está sendo realizada para substituir Lorelei, também o detetive Malone,
por uma estrela carismática – Chaplin perto do irregular e sem carisma como Gus, espera a bordo
fim de seu reinado, Monroe no início virtual de para assumir o cargo de espectador masculino
sua carreira – tempera o registro com um sabor substituto. Como Dorothy, ele é menos identificado
decididamente brechtiano. (Se Monroe e Chaplin com a riqueza, portanto, mais “normal”, nos ter-
são igualmente predadores, o espectador cer- mos do filme. Mas a distinção é apenas superficial:
tamente se qualifica como parte de sua presa.) na maior parte do filme, ele protege os interesses
Hawks está, novamente, usando Gus como um de Gus e seu pai tão fielmente quanto Dorothy
pôster para o espectador malicioso na plateia, mas protege e defende Lorelei.
ao desdobrar essa inquietante equação no meio do
bem-humorado altruísmo de Dorothy, ele elimina Nunca duas mulheres se deram tão bem juntas
o possível ferrão do insulto e confunde a questão. em um musical. — Norman Mailer

Naturalmente, quando Lorelei está prestes a con- Essencial para o sucesso de Os Homens Preferem
cluir a sua versão vamp, Dorothy, agora a observa- as Loiras é a extraordinária sintonia entre Jane
dora encantada, bate na parede para anunciar sua Russell e Marilyn Monroe, que constantemente
presença, Lorelei aumenta o tempo da música, e melhora a interação entre Dorothy e Lorelei. Esta
a multidão se junta para um coro final. O sino do noção de documentário imposta sobre ficção está
navio toca, uma voz grita “Todos à terra” e todo relacionada ao toque de Hawks para incutir um
o feliz grupo - Gus e Lorelei, Dorothy e o time – ambiente descontraído em seus sets. Recordemos
correm para o convés em meio a festivas flâmulas. o romance real que se desenvolveu entre Bacall e
No momento que a voz de Lorelei brevemente Bogart durante as filmagens de Uma Aventura na
prevalece sobre as outras, enquanto ela se pre- Martinica e a graciosa incorporação do alcoolismo
para para conceder a Gus um beijo de despedida de Dean Martin em Onde Começa o Inferno. Neste
(acompanhada, como de costume, por efeitos so- último, o embaraço de John Wayne quando se
noros de desenhos animados para indicar a reação confrontou com as roupas íntimas de Angie Di-
apaixonada dele), sua hipocrisia inspirada, talvez ckinson parece expressar tanto o desconforto do
fria, já está indistintamente fundida com a bramda, ator quanto o do personagem. De fato, tirando os
talvez calorosa, sinceridade de Dorothy, de modo desinteressantes vilões de ambos os filmes, pode-
que uma se torna a faceta tranquila da outra. Aqui -se argumentar que Walter Brennan é o único ator
e em outros lugares, elas conjuntamente projetam de destaque, em ambos os filmes, que constrói
uma verdadeira imagem de artificialidade ou uma uma personagem totalmente fictícia; os outros são
imagem artificial da verdade - as duas possibili- tratados, de modo geral, como hóspedes.
dades agrupadas em uma única personalidade
agressiva, procurando homens. É interessante notar, portanto, que Monroe e
Russell realmente se tornaram amigas enquan-
to trabalhavam em Os Homens Preferem as Loiras

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- apesar do fato de que Russell recebeu 200 mil Uma câmera de recuo expõe uma tela cheia de
dólares por seu papel (e destaque nos cartazes), corpos masculinos fortes atravessando o quadro
enquanto Monroe, com seu salário da Fox e ainda em vários exercícios, e Dorothy começa entoar seu
sem ser considerada estrela, recebeu 500 dólares lamento frenético enquanto abre caminho por um
por semana. Hawks uma vez explicou a “química” labirinto de corpos indiferentes. Na maior parte
incomum de suas presenças na tela, descrevendo da cena, ela parece tão alienada desse espetáculo
Monroe como uma fantasia e Russell como “real”. desumanizado como eles também estão dela, e
Mutatis mutandis, isso antecipa a estratégia de alguns olhares esporádicos que ela dá, céticos ou
Jacques Rivette, entusiasta de Hawks, que duas suplicantes, são todos correspondidos por equiva-
décadas depois une Juliet Berto, que mais parece lentes olhares vazios. Em algumas cenas iniciais,
um desenho, com a mais técnica e pé no chão Do- vislumbra-se um grupo de mulheres paqueradoras
minique Labourier, em Céline e Julie vão de Barco. na piscina, uma das quais Dorothy aborda; por
(Não por acaso, as duas atrizes francesas já eram volta da metade do número, a câmera frontal a
amigas). Para compreender a lógica curiosa des- isola em close-up, enfatizando seu distanciamento.
ses filmes, a travessia das personalidades para as No entanto, chegando ao final, quando ela se in-
personificações teatrais, é preciso ver, em última clina perto da borda da piscina para que os atletas
análise, as duas atrizes como lados dialéticos, mas possam mergulhar por cima dela, ela é derruba-
compatíveis, de um único personagem feminino, da na piscina, o que rapidamente a reintegra na
e todos os homens no elenco como variações de comunidade ao seu redor. Um grupo de homens
um único personagem masculino. a levanta sobre os ombros; um garçom lhe serve
uma bebida, e enquanto ela finaliza a canção, os
homens já retomaram o contato visual amigável.
Terceiro número:
"Ain’t There Anyone Here For Love?" Resumindo, sua canção tem quatro destinatários –
a outras mulheres, a si mesma, à câmera, a todos
Assim que a viagem começa, Lorelei, sob o olhar - enquanto implicitamente dirige-se também para
atento do bisbilhoteiro Malone, verifica a lista de uma Lorelei fora de cena, cuja obsessão infantil
passageiros à procura de acompanhantes “ade- por dinheiro parece equivalente ao narcisismo
quados” (ou seja, ricos) para Dorothy. “Eu quero sem amor em sendo mostrado aqui. No entanto,
que você encontre a felicidade e pare de se divertir”, a fisicalidade pura desta afetada sequência ma-
ela insiste, se opondo ao interesse de Dorothy pela terialista é apenas o culminar de um traço que
equipe olímpica. Dorothy segue para a piscina e caracteriza todo o filme até agora: o amontoado
academia, onde, cercada por atletas musculosos, de corpos maciços (ou massas de corpos) na tela.
descobre que todos eles têm de estar na cama às Praticamente todas as cenas são comandadas
nove. Um apito os intima aos seus exercícios e um pela dupla de estrelas; a autoanulação (tímida ou
coro masculino começa a contar até quatro para reservada) dos dois atores principais, e as multi-
incitá-los a sair. O número subsequente inverte a dões de extras e do número da academia só es-
premissa dos dois últimos, ao privilegiar o ponto de clarecem essa profusão de corpos, tornando-a
vista de um espectador do sexo feminino, Dorothy, mais flagrante e funcional. Tentando conciliar as
isolando-a de Lorelei. unidades contrárias em relação ao narcisismo e à

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amizade, o filme usa esses corpos juntamente com duas mulheres, o que justifica a citação acima, e
diamantes (opaco versus brilho; calor versus frio) termina com Malone perdendo seu casaco e calças
como adereços do debate filosófico entre Dorothy e sendo despachado por elas em um roupão de
e Lorelei que a mise-en-scène está continuamente banho rosa... Depois de uma maratona de compras
expondo. em Paris, Dorothy e Lorelei são confrontadas por
Malone, Lady Beekman e um advogado, que exi-
gem a tiara de volta. Lorelei se recusa a entregá-
Quarto número: -la, insistindo que era um presente, e Malone se
“When Love Goes Wrong, Nothing Goes Right” distancia ainda mais de Dorothy ao convencer o
pai de Gus a cancelar sua carta de crédito.
Se não podemos esvaziar seus bolsos entre nós,
não somos dignas do nome Mulher. - Dorothy para O menos eficaz e mais convencional número do
Lorelei. filme acontece quando as heroínas encontram-se
sem dinheiro em um café de Paris. Pela primeira
Apesar da aparente igualdade estabelecida na tra- vez, Dorothy, que começa o número, chama para si
ma e na divisão de números musicais, Dorothy ocu- a responsabilidade de determinar seu significado,
pa a segunda posição em relação a Lorelei sempre o qual é essencialmente social e não narcisista,
que o dinheiro está em jogo, o que acontece a maior com uma multidão de parisienses da classe tra-
parte do tempo. No navio, por exemplo, somos balhadora que compõem o seu público solidário. O
apresentados a um outro par de substitutos dos problema de Lorelei com Gus ainda não foi tratado
espectadores masculinos, ricos e encantados por com a presença dele, então na verdade seu papel
Lorelei: Piggy (Charles Coburn), um septuagenário na música tem mais a ver com a sua solidariedade
infantil, e Henry Spofford III (George Winslow), uma pela situação romântica de Dorothy. Lorelei domi-
criança madura. Monroe e esses dois atores são na apenas quando há dinheiro a ser ganho: aqui
refugiados do filme de Hawks de 1952, O Inventor não há, então ela rapidamente assume a identidade
da Mocidade (Monkey Business, 1952), uma comédia populista de Dorothy – e dilui sua sexualidade com
de humor negro sobre o envelhecimento, e seus os valores da comunidade e se torna, fora de sua
papéis aqui representam desenvolvimentos de característica, uma pessoa “ do povo”.
seus antigos personagens cartunísticos. Piggy é
ainda visto por Lorelei como um diamante carica- Até agora, o olhar do espectador tem sido o de
tural literal - uma imagem de pedra brilhante, sem alguém deitado de bruços e enterrado, murado na
idade, superposta a seu semblante de tonel velho. escuridão, recebendo nutrição cinematográfica de
forma bem semelhante à de um paciente sendo
Enquanto Dorothy se apaixona por Malone, Lorelei alimentado por via intravenosa. “Aqui estou numa
convence Piggy a lhe dar uma tiara de diamantes varanda enorme, posso me mover sem esforço
que pertence à sua esposa (a esnobe Lady Beek- e livremente escolho o que me interessa, numa
man, única vilã do filme). Seus mundos colidem palavra começo a ser cercado...” – Roland Barthes,
quando Malone tira uma fotografia de Piggy abra- “Sobre o CinemaScope,” 1954.
çando Lorelei, e Dorothy descobre que ele é um de-
tetive. Isso leva a farsa a ser desmascarada pelas

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Considerando a resposta quase baziniana de Bar- se torna mais completa, mais digna de ser vista,
thes para o CinemaScope como um cinema de também a partir da varanda da História: um debate
escolha, o frequente engano de que Os Homens da década de 1950 sobre as virtudes da acumulação
Preferem as Loiras é anamórfico, sugere uma per- versus partilha. O filme honra ambas, mas não há
cepção inconsciente de um filme cuja “visão bino- dúvida sobre qual é a mais sexy - a menos que a
cular” (frase de Barthes no artigo citado) propõe partilha seja estritamente entre Lorelei e Dorothy,
dois pontos separados de entrada em quase todos como na primeira e na última cena.
os números. Visto através da lente de Dorothy, é
um mundo caloroso e de bom companheirismo; a
partir do ângulo de Lorelei é um mundo de objetos Quinto número (e Reprise):
frios para se possuir. Sobrepondo os dois ângulos, “Diamonds Are a Girl’s Best Friend”
Hawks cria um panorama confuso, porém tranqui-
lizador, onde os homens indiferentes desejam ser O filme oferece dois clímax, um no palco e outro
possuídos como objetos quentes, e as mulheres na sala de audiências, com uma versão da música
são predadoras narcisistas, mas amigáveis que interpretada por cada heroína. Ambas demonstram
possibilitam esse desejo. Se tentarmos determinar a fascinação não sentimental de Hawks em rela-
qual mulher é a mais inteligente, o filme oferece ção ao excesso, também visível em sua maneira
apenas sinais contraditórios. Lorelei destila mala- de lidar com a violência (em Scarface), a morte
propismos e rouba a tiara sem pestanejar, mas é (À Beira do Abismo (The Big Sllep, 1946), Terra dos
uma estrategista brilhante; Dorothy parece prática, Faraós (Land of the Pharaohs, 1955), a juventude e
mas se apaixona por um traste sem rosto, sem a passagem do tempo (O Inventor da Mocidade), e
perspectivas e, despreocupadamente, defende um exposto também no primeiro e no terceiro números
ladrão amoral. deste filme. A versão de Lorelei é a mais lembrada,
pois expressa sua sombria declaração final da
Barthes viu o CinemaScope como um veículo para maneira mais opulenta possível; e é também o
um “Potemkin ideal, onde você poderia finalmente número mais conhecido de Monroe. Emoldurada
dar as mãos com os insurgentes, compartilhar a por dois encontros com Gus, e intercaladas com
mesma luz e experimentar as trágicas escadas três tomadas dele em sua mesa de cabaré, a cena
[de Odessa] em sua máxima força... A varanda da representa uma afronta pessoal a ele da mesma
História está pronta”. Em contraste, ele lamentou a forma em que “Bye Bye Baby”, embora desta vez,
mitologia de O Manto Sagrado, deixando de observar pelo menos, represente um ato honesto.
qualquer incompatibilidade entre a habilidade de
analisar este último e a montagem rápida que Cortinas verdes saem de cena e revelam um
torna Potemkin possível. Na medida em que a conjunto de vermelho-alaranjado (lembrando os
“frontalidade estendida” de Monroe e Russell é figurinos de “Little Rock”) dominado por um lustre
vista apenas a partir da varanda da Mitologia, a enorme; mulheres sorridentes posam como está-
visão binocular de Os Homens Preferem as Loiras tuas segurando candelabros; casais ao redor deles
não é menos incompleta. Adicione dialética, luta valsam em trajes formais. Lorelei, inicialmente
de classes e as políticas do espetáculo como in- despercebida em seu vestido noturno rosa, chega
vestida - três dos pivôs de Potemkin – e a imagem ao centro da tela, repleta de diamantes, e diz “não”

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repetidamente em uma ária de brincadeira para Ela entra sensual, vestindo peles, mostra as per-
um grupo de homens segurando corações da cor nas para ganhar tempo e, finalmente, realiza um
da decoração, batendo neles levemente com um improviso de “Diamonds” – tirando seu casaco
leque preto. de peles para revelar uma roupa chamativa, re-
alizando uma paródia burlesca de Lorelei que é
A sequência exulta em irritantes contradições. Lo- tão devastadora quanto a própria autoparódia que
relei indiretamente dispensa Dorothy junto com Lorelei realizara anteriormente. Os homens na
os homens, colocando os diamantes em primeiro sala do tribunal mudam rapidamente para uma
lugar, e sua principal preocupação é com os estra- platéia interessada, batendo palmas, até que o
gos da idade: “Os homens se tornam frios quando juiz (Marcel Dalio) finalmente consegue restaurar
as mulheres envelhecem, e todos nós perdemos a ordem. Neste momento, a vulgaridade de sua
nossos encantos no final.” Em outro refrão, ela performance e as reações a ela já mancharam de
implicitamente exalta o adultério, de forma fra- vez o recurso de Lorelei de forma tão decisiva como
ternal, para um grupo de mulheres em rosa à sua a prestatividade de Dorothy já havia comprometido
volta - exclamando “mas traga aquela pedra, ou a sua. De uma só vez, a presteza social de Dorothy
nada vai rolar”, o que destrói a ideia da influência torna-se demagogia, por influência de Lorelei, e a
comunal de Dorothy. O mundo desumanizado que justiça prontamente entra em colapso.
a rodeia é de fato o mundo de sua imaginação
glamourosa; berrante, mas petrificada, revelando O melhor e o pior de ambas as personagens já
um perfil sombrio e mortal de aquiescência e dor. foram revelados. Tudo o que resta é o retorno da
tiara (que Malone devolve a Piggy, depois que ele
Em seu último refrão, Lorelei arrebata uma das pede demissão de seu trabalho para conquistar
faixas de diamantes que os homens-cadáveres Dorothy de volta) e a conquista do pai de Gus por
estão obedientemente balançando no palco e joga Lorelei (Taylor Holmes, um velhote encarquilhado
para Gus em sua mesa – rejeitando e exigindo dia- originário de Preston Sturges). Ambas as cenas
mantes num mesmo gesto desafiante. Gus engole reduzem a trama a uma charada, dando-nos pas-
sua bebida, não aplaude o número, e quando ele sos “lógicos” que nos levam a um círculo perfeito.
aparece nos bastidores de novo está pronto para A tiara cerimoniosamente passa de Piggy para
terminar o noivado. Mas, para dar coerência às Malone para Dorothy – disfarçada de Lorelei –
contradições, Dorothy convence Lorelei a persu- para o juiz, para o advogado e de volta a Piggy
adir Gus a lhe dar os 15 mil dólares necessários mais uma vez; e Lorelei usa a mesma técnica no
para pagar a indenização da tiara (que desapa- pai de Gus que ela já havia praticado no próprio
receu misteriosamente); e Lorelei já confessou: Gus - enquanto a questão de quão inteligente ela
“Eu realmente amo Gus... não há outro milionário realmente é analisada por meio de mais alguns
no mundo com uma disposição tão gentil”. Uma diálogos contraditórios e engraçadinhos.
calculista profissional, Lorelei estima que receber
o dinheiro de Gus levará uma hora e quarenta e Reprises finais: “Little Rock” e “Diamonds”
cinco minutos, e enquanto ela o alicia chamando-o
de “papai”, Dorothy sai disfarçada com policiais Lembre-se, querida, no dia do seu casamento, você
para representar Lorelei no tribunal. pode dizer sim. - Dorothy para Lorelei

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Vestidas em branco virginal e carregando buquês
que combinam, Lorelei e Dorothy cantam “Little
Rock”, com um final alterado, enquanto marcham
grandiosamente pelas escadas e no corredor em
direção a seus noivos. Enquanto a câmera se move
de (1) Dorothy olhando de seu anel de diamantes
para Malone para (2) Lorelei olhando de seu anel
de diamantes para Gus e (3) de volta a Dorothy
e Lorelei juntas, olhando para nós, um coro ce-
leste fora de cena nos lembra de que “de corte
quadrado ou em forma de pêra, essas rochas não
perdem a forma” - o que implica que as deman-
das díspares do humanismo e do capitalismo, do
narcisismo e do altruísmo, podem finalmente se
encontrar quando o círculo perfeito se torna um
anel de casamento. Mas o último olhar furtivo de
cumplicidade entre Dorothy e Lorelei sugere que
elas, coletivamente, nos venderam uma fraude,
um objeto impossível - um CinemaScope da mente,
um Potemkin capitalista.

| Jonathan Rosenbaum |

*Traduzido por Luciana Tanure


** Gentilmente cedido pelo autor

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HOWARD HAWKS1
(30 DE MAIO DE 1896 – 26 DE DEZEMBRO DE 1977) descontraído que conheci – no trabalho ou fora
dele – e, ao mesmo tempo, o que se mostrava
mais claramente no comando total. Típico também
A audácia de cavalgar eram seus modos confiantes, como, por exemplo,
na ocasião que perguntou a Robert Mitchum se ele
Ao entrar no set sonoro obscurecido em que Ho- concordaria de participar de El Dorado [El Dorado].
ward Hawks dirigia John Wayne e um punhado Mitchum me contou que Hawks lhe telefonou e
de outros atores naquele que seria o seu último perguntou: “Bob, neste verão estarei fazendo um
filme, Rio Lobo [Rio Lobo] – não dos melhores, como filme com Duke em Old Tucson – você estará dis-
Howard seria o primeiro a admitir -, a primeira ponível?”. Ao que Mitchum respondeu: “Hum, sim,
coisa que ouvi foi a voz (e o fraseado) inconfundível sim, claro, Howard. Hum, mas, ah, qual... qual é
de Wayne. “Chris, se você vai pegar essa arma”, a história, Howard?”. Rápida e bruscamente, com
dizia ele a Chris Mitchum (o filho mais novo de um que de irritação, Hawks respondeu: “Ah, sem
Robert, “pelo amor de Deus então faça isso desse história, Bob...”. Ao contar o caso Mitchum riu e
jeito.” Depois, apertou os olhos na claridade dos disse que concordou em participar do filme sem
refletores e, olhando para a escuridão por detrás ler uma só palavra do roteiro. Esse era também
da câmera, perguntou: “Não é isso, sr. Hawks?”. o comportamento de Wayne com Hawks – Duke
Hawks estava de pé, não muito longe, com as contou-me que, desde a primeira película que
mãos caracteristicamente apoiadas por detrás fizeram juntos, Red River [Rio Vermelho], “Tudo
dos quadris, o lábio inferior estendido em medi- que eu perguntava a Howard era a data de início”.
tação. “É isso mesmo, Duke”, respondeu com voz
profunda e calma. Wayne se voltou para os demais Alguns anos antes, eu tinha ficado em Old Tucson
atores, tomou de uma cadeira e, enquanto falava, (conhecido set de cidade do Oeste situado perto de
empurrou-a para um lado: “e você... poderia dizer Tucson, Arizona) por uma semana, durante a qual
a segunda fala... mais depressa, Chris. Não é isso, foram realizadas filmagens noturnas de El Dorado,
sr. Hawks?” – e, mais uma vez, o olhar de Wayne estrelando Wayne e Mitchum, e havia testemunha-
se dirigia para o espaço atrás da câmera. Hawks do o tipo de controle que Hawks mantinha, o seu 1. Publicado
repetiu: “É isso mesmo, Duke”. Pouco mais tarde, extraordinário rapport com os atores e o profundo no Brasil
perguntei ao Hawks se ele importava com aquela respeito que estes tinham pelo diretor. Dois anos originalmente
pela Companhia
atitude de Wayne, de ficar dirigindo os atores da- antes disso eu tinha observado a mesma atitude, das Letras:
quela forma. “Ah, não”, afirmou com segurança tanto na equipe como nos atores, nas filmagens de BOGDANOVICH,
“Duke e eu já fizemos tantos filmes juntos que ele Man´s favorite sport? [O esporte favorito do homem], Peter. . Trad.:
sabe o que quero. Economiza o meu fôlego.” com Rock Hudson e Paula Prentiss. Howard Hawks Henrique W.
Leão. São Paulo:
era, provavelmente, o diretor favorito de Cary Grant: Companhia das
Essa espécie de confiança diretiva era muito típica juntos, eles fizeram cinco filmes – mais do que Letras, 1997, p.
de Hawks. Howard era, decerto, o diretor mais Cary realizaria com qualquer outro diretor (desde 292-444.

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meados da década de 30, ele podia escolher com Circle, não foi capa da revista Time, nem sequer
quem trabalhar). Don Siegel, que, por ter dirigido recebeu prêmios da Academia; foi indicado uma
o departamento de montagem da Warners durante vez para o Oscar (por Sergeant York [Sargento York],
o final da década de 30 e início da de 40, tinha filme que valeu a Gary Cooper o prêmio de Melhor
observado todos os principais diretores enquanto Ator), e recebeu um Oscar honorário pouco antes
eles trabalhavam, disse-me que Hawks era o que de morrer – a usual tentativa tardia de compensar
mais parecia ser um diretor; alto, delgado, com anos de desleixo oficial.
cabelos prateados, ele certamente se encaixa-
va nessa imagem. Don afirmou que, quando se Pergunte ao frequentador médio de cinema acima
entrava num set em que Hawks dirigia, sabia-se de certa idade sobre Montgomery Clift, e ele decer-
imediatamente quem mandava. to não saberá que a sua primeira aparição na tela
foi em Red river, de Hawks – mas não o faça com
A elite americana sempre foi incrivelmente esnobe pessoas demasiadamente jovens, porque talvez
para com as coisas mais populares. Foi preciso a ignorem completamente qualquer coisa sobre o
intervenção de Truffaut para tornar “respeitável” ator, exceto que envergava roupa cáqui. Os ciné-
o período americano de Hitchcock; e, enquanto filos veteranos poderão muito bem se lembrar de
a turma artística de Nova York adejava em torno clássicos tão extraordinariamente distintos quanto
de Kurosawa, este dizia que tinha aprendido tudo o primeiro Dawn patrol [Patrulha da Madrugada],
o que sabia com John Ford, um diretor cuja obra o primeiro Scarface [Scarface, a vegonha de uma
pós-guerra era execrada pelo pessoal da moda. nação] o primeiro The thing (que ele produziu e
Assim como tinha acontecido com o jazz, foram os supervisionou de perto), James Cagney em Ceiling
franceses os primeiros a levarem Hawks a sério, zero [Heróis do Ar], outra vez Cary Grant em Only
embora os seus filmes tenham sempre se constitu- angels have wings [Paraíso Infernal] ou vestido de
ído em sucessos populares em toda parte e apesar mulher-soldado em I was a male war bride [A Noiva
do seu poder independente em Hollywood ter per- era Ele]. Ante tudo isso, pode-se fazer, surpreso,
manecido virtualmente incontestado por mais de a pergunta: “Foi o mesmo sujeito quem dirigiu
quarenta anos – de 1930 até quando parou de filmar, todos esses filmes?”.
seis anos antes de sua morte, em 1977. Não sendo
nem obviamente artístico nem dotado de preocu- Sim, foi: bem como cerca de trinta outros, incluindo
pações sociais, nunca foi preferido pelos fazedores Twentieth Century [Suprema Conquista], o melhor
da moda. Os seus filmes nunca foram alvo do culto de John Barrymore – que foi, também, a primei-
particularmente chique, apesar de alguns deles ra comedia tipicamente lombardiana de Carole
terem atingido notoriedade pela sua conexão com Lombard; as duas primeiras e mais memoráveis
certos atores – como os Bogarts arquetípicos de combinações de Humphrey Borgat/Lauren Bacall,
To have and have not [Uma Aventura na Martinica] e To have and have not e o melhor trabalho de Philip
The big sleep [À Beira do Abismo], a Marilyn ideal de Marlowe, The big sleep; o melhor filme sobre jornais
Gentlemen prefer blondes [Os Homens Preferem as já realizado, His girl Friday; e, no dizer de Norman
Loiras], o Cary Grant personificado de Bringing up Mailer, “o primeiro filme que nos permitiu falar de
baby [Levada da Breca] e His girl Friday [Jejum de [Marilyn Monroe] como uma grande comediante”, o
Amor]. Nunca foi canonizado pelo N.Y.Film Critics musical ruidoso Gentlemen prefer blondes – embora

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as habilidades cômicas de Monroe já se tivessem interior e visão com o mínimo de falta de jeito. Os
revelado claramente em Monkey business [O Inven- seus melhores filmes têm a complexidade engolida
tor da Mocidade], de Hawks, lançado um ano antes, de uma boa dança”. Mas foi o diretor francês Jac-
estrelando (de novo) Cary Grant. Hawks dirigiu ques Rivette quem acertou na mosca: “se Hawks
também o que talvez sejam os dois desempenhos encarna o cinema clássico americano, se empres-
arquetípicos de John Wayne, Red river e Rio Bravo tou nobreza a todos os gêneros, isso foi porque,
[Onde Começa o Inferno]. em todos os casos, ele encontrou a qualidade e a
grandeza essenciais de cada gênero em particular
Sabe-se que John Ford – que creditava a si a trans- e misturou os seus temas pessoais com aqueles
formação de Wayne em estrela – tinha ciúmes que a tradição americana já tinha enriquecido e
do desempenho mais maduro, mais soturno e de tornado profundos.”. A grande variedade dos fil-
mais sucesso de Wayne em Red river; ele tentou mes de Hawks – não há, de fato, nenhum tipo de
superar Hawks ao escalar um Wayne ainda mais filme que ele não tenha feito – revela um desejo
velho para o filme sequinte que fez com Duke, She incansável de autodesafio, uma espécie de quase
wore a yellow ribbon [Legião Invencível]. Barbara renovação.
Ford afirmou que, na época, a observação do seu
pai foi de que até Red river ele “não sabia que o É o que fazem as suas personagens – isso faz
filho da mãe conseguia representar”. Hawks me parte tanto de seu profissionalismo quanto da sua
contou que Ford visitou a ele e a Wayne durante bravura. Hawks o exprime com simplicidade: “para
as filmagens da última película de Duke realizada mim, o melhor drama é aquele que lida com o
por Hawks, cinco anos após o ultimo trabalho de homem em perigo”.
direção de Ford. Hawks conta que eles estavam
almoçando, quando de repente Jack, que estava Conheci o sr. Hawks – era como todos o chama-
sentado à sua frente, levantou os olhos para ele vam em público – em abril de 1962, durante uma
e disse, incisivamente: “seu filho da puta”. Hawks entrevista que realizei com ele no seu escritório
perguntou, intrigado: “O que há Jack?”. Howard na Paramount, em Hollywood, para a monografia
sorriu ao prosseguir na história: “E ele só baixou que acompanharia a primeira retrospectiva dele
os olhos para seu prato e não disse mais nada”. nos Estados Unidos, The Cinema of Howard Hawks,
Hawks deu de ombros, riu e soube que aquilo ti- que eu estava preparando para o Museu de Arte
nha sido o maior cumprimento que Ford poderia Moderna. (Sete anos depois, o assunto foi objeto
prestar. de um curso de seis meses que ministrei na Uni-
versidade da Califórnia em Los Angeles, algo com
Orson Welles se referiu a Hawks como sendo, entre que Howard se divertiu). A monografia (reimpres-
os diretores americanos, “certamente o de maior sa depois em Londres e em Paris) inclui apenas
talento”. O critico francês Henri Agel escreveu: pequena parte daquelas conversas, as quais se
“Hawks é um dos raros aristocratas da tela, a sua expandiram durante os dez anos subsequentes. A
ética é a da nobreza humana”. O critico heterodoxo entrevista com Hawks é a mais longa deste livro.
americano Manny Farber disse: “ Howard Hawks Desenvolvemos, também, um tipo de amizade que
é a figura-chave no filme masculino de ação, por- não experimentei com nenhum outro diretor – não
que é o que mostra o máximo de velocidade, vida tão próxima quanto a que mantive com Welles,

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porém, menos complicada. À diferença de Orson, para mim”. O lendário Edward G. Robinson (que
Howard sempre tinha satisfação em falar sobre não conheci pessoalmente) escreveu: “Quando
os seus filmes, ou sobre filmes em geral – es- cheguei a Hollywood pela primeira vez no início
tava sempre repleto de sugestões de conselhos da década de 30, vindo dos palcos da Broadway,
sábios e de orgulho pelas realizações, tanto suas eu não conhecia as técnicas de produção cine-
quanto minhas. Um dos aspectos que Welles e eu matográfica. Participei de alguns filmes, mas não
tínhamos em comum era a admiração por Hawks. aprendi realmente o espírito daquele novo veículo.
Foi então que conheci um diretor jovem, agradável
Durante a preparação da retrospectiva, pedi a al- e imaginoso chamado Howard Hawks. O primeiro
gumas pessoas que tinham trabalhado com Hawks filme que fiz com ele foi Tiger shark [O tubarão]o
que fizessem declarações sobre ele. Limitações de outro foi Barbary coast [Duas almas se encontram].
espaço impediram que esses testemunhos fossem Howard compreendia a diferença entre o cinema
publicados, mas o interessante é que todos os e o teatro. Sabia, instintivamente, que um filme
atores se mostraram em concordância. A carta precisa contar sua história por meio de imagens.
que Dean Martin me enviou, relatando as suas Naquela época, os roteiros – e especialmente os
experiências durante as filmagens de Rio Bravo, de Hawks – constituíam-se em esboços vagos, e
ocorridas apenas três anos antes, foi muito sucin- não naquilo que conhecemos hoje. Mas Hawks
ta: “Todo dia ele me dizia: ‘Dino, não se preocupe tinha uma boa história básica, ainda que abstrata.
com a cena seguinte. Inventaremos alguma coisa.’ Ele descrevia o que queria e se apoiava na minha
Acho que ele é o máximo”. As observações de Kirk experiência no palco para improvisar e transmitir
Douglas foram mais detalhadas: “Nunca consegui ao público o feeling de uma cena mais por meio
antecipar o que se passava em sua mente fértil. da ação do que do diálogo. O desenvolvimento que
Durante as filmagens de The big sky [Rio da aven- Hawks imprimia a uma história não era desseme-
tura], muitas vezes deparávamos com uma cena lhante à improvisação”.
que não tinha sido bem escrita. Todos sentávamos
e ficávamos esperando em silêncio. Howard ficava Os editores da influente revista francesa Cahiers du
com um grande bloco de papel amarelo no colo. Cinéma, da Nouvelle Vague, chamavam Hawks de
Durante longo tempo ele permanecia olhando fi- o “mais inteligente” diretor americano. O próprio
xamente para aquilo, até que, de repente, come- Jean-Luc Godard escreveu: “Os grandes cineastas
çava a escrever; o resultado era a solução para sempre se limitaram a si próprios por obedece-
uma boa cena. É uma sujeito estimulante com rem às regras do jogo. Não fiz isso, porque sou
quem trabalhar”. (Vi exatamente a mesma coisa apenas um cineasta menor. Tomem-se, por exem-
acontecer repetidamente em El Dorado, realizado plo, os filmes de Howard Hawks, particularmente
quinze anos depois). Mencionando os dois pri- Rio Bravo. É uma obra com insight psicológico e
meiros filmes que fez, dirigidos e produzidos por percepção estética extraordinários, mas, ao lado
Hawks, Lauren Bacall escreveu: “Howard Hawks disso, Hawks realizou o filme de tal forma que
mudou a minha vida. Ele atendeu à prece eterna de insight pode passar despercebido, sem pertubar
toda atriz jovem – ele me descobriu. Também me o público que foi ao cinema assistir a um western
ensinou lições inestimáveis. É uma pessoa e um como qualquer outro. Hawks é maior, porque teve
diretor singular e, por motivos óbvios, inesquecível

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sucesso ao encaixar num tema batido tudo aquilo não envelheceram tanto quanto outros, mesmo os
que considera mais preciso”. melhores – ele conseguiu tocar parcelas eternas
da psique americana.
“O misteriosamente romântico Howard Hawks”, foi
assim que o escritor Bem Hecht o descreveu na Já se disse que os bons diretores são exatamente
sua autobiografia, A child of the century, “ronro- como os seus filmes. Isso era decerto verdadeiro
nante de melodrama”. Exatamente: Howard estava em relação a Hawks; compreendê-lo um pouco,
sempre alinhado, vestido com bom gosto, e era bem como a seus heróis, depende de compreender
capaz atrair atenção instantânea ao falar de um a profundidade de seu profissionalismo. Em The
grande filme, uma grande sequência, um grande big sleep, quando Bogart diz a Bacall que ela é
momento. A sua fala era tão contida quanto um “boa, danada de boa” entendemos que ele a ama.
diálogo de Hemingway; o seu maior herói era ele Os homens de Hawks difícilmente poderiam ser
mesmo, um papel que desempenhava melhor que chamados de típicos – o mais frequente é que
qualquer um dos seus atores. Howard era frio e podíamos ser alternadamente críticos e abusivos;
muito aceso para as mulheres. Elas realmente portanto, era ainda mais notável quando chegavam
gostavam dele, embora Cybill Shepherd – nos anos a expor os seus sentimentos, não importa o quão
70, privamos inúmeras vezes da companhia de velados permanecessem. Eu já conhecia Hawks
Hawks – sempre me tivesse dito: “Certamente fazia dois ou três anos quando soube que, afinal,
eu não gostaria de estar casada com ele”. Na sua ele tinha algum interesse em mim. Um dia, no
época, Hawks era frequentemente confundido com seu set, antes de fazer meu primeiro filme, numa
John Huston, John Ford, ou Howard Hughes. Ele época em que eu ainda escrevia artigos para re-
gostava de contar histórias sobre essas confusões. vistas, ele me apresentou a uma pessoa dizendo:
“Por causa de Wayne, as pessoas sempre pensavam “De vez em quando, ele escreve algo de bom”. Um
que quem tinha dirigido Red river tinha sido Ford; prêmio Pulitzer2, Nobel ou Oscar não me teriam
assim, elas se aproximavam dele e diziam: ‘Ah, dado mais felicidade. Depois de assistir ao meu
sr. Ford, adorei Red river’, ao que Jack sempre primeiro filme, Hawks gastou dez minutos para
respondia ‘muitíssimo obrigado!’” Os ombros de dissecá-lo com uma objetividade desapaixonada,
Hawks sacudiam quando ele soltava o seu riso tão precisa quanto inatacável. Depois, disse: “Mas
deliciosamente quieto. a ação é boa – e isso é difícil de conseguir”. Vindo
de um mestre inconteste da ação, recebi aquilo
Mesmo após numerosas retrospectivas, diversos como se estivesse sendo armado cavaleiro. Ha-
livros sérios dedicados a analisar os seus filmes wks tinha uma capacidade especial de montar a
e um programa na rede nacional de televisão re- sua câmera e deixa-la infalivelmente na posição
tratando George Plimpton como “caubói de papel” certa pra transmitir o que acontecia e os cortes
num set de Hawks, este ainda permanece o menos que envolviam quase fisicamente o espectador
compreendido dos grandes diretores americanos. no movimento, e isso era realizado de forma tão
Mas sua obra representa um dos conjuntos fílmicos imperceptível e com tamanha ausência de esforço
mais vívidos, variados e, apesar disso, consisten- aparente que o espectador não tinha consciên- 2. Prêmio
anual conferido
tes, além de ser, ironicamente, o mais americano cia de estar sendo manipulado. Esses momentos a trabalhos
deles. Isso talvez explique por que os seus filmes geralmente passavam de modo demasiado ve- jornalísticos e
literários.

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loz; Hawks nunca se demorava muito em coisas mos, Howard recitou todo o poema do qual esse
alguma. Certa vez, ele me disse algo de que me verso tinha sido retirado.
lembrei muito frequentemente durante a feitura
de todos os meus filmes: “Sempre corte a ação em Nesse fatalismo galante é inerente a típica atitude
meio a um movimento, pois dessa forma o público das personagens de Hawks perante um mundo in-
não perceberá o corte”. Pouco depois da estreia certo e perigoso: para sobreviver, é preciso ignorar
de The wild bunch [Meu ódio será sua herança], de conscientemente a tragédia. Em Only angels have
Sam Peckinpah – com a ação e as cenas de mor- wings, após a morte de um piloto chamado Joe, a
tes baseadas em câmera exageradamente lenta mulher recém-chegada lamenta o fato, mas os
-, Hawks foi assisti-lo para checar o desempenho demais pilotos, amigos do falecido, perguntam-
de um ator. Perguntei-lhe a sua opinião sobre o -lhe: “Quem é Joe?”. O filho mais velho de Hawks
filme. “Bem, que diabo”, respondeu ele, “consigo se feriu gravemente num acidente automobilístico
matar e enterrar quatro camaradas no tempo que enquanto o diretor filmava Red river. John Wayne
ele gasta para matar um.” me contou que nunca se esquecerá da frieza ab-
soluta de Hawks – ele prosseguiu com a tarefa em
A Hawks não podia se fazer perguntas sobre sua mãos. Sentei-me atrás dele durante o desastroso
arte. “Faça filmes que ganhem dinheiro”, ele dizia. teste de público de um dos seus filmes (Red line
“E pelo amor de Deus, não comece a se interessar 7000 [Faixa vermelha 7000]). O público vaiou, riu nos
por mensagens.” Da mesma forma, nos filmes de momentos errados, pessoas se retiraram antes
Hawks, jamais ocorrem diálogos a respeito do sig- do filme terminasse; Hawks só ficou ali sentado
nificado daquilo que as personagens fazem. “Você vendo o filme, ao lado do seu filho menor, Gregg.
se arrisca”, diz um sujeito a Bogart em The big sle- Saiu depois que o sacrifício terminara e, no dia
ep. “Sou pago para isso”, ele responde. Enquanto seguinte, já estava refazendo as cenas. Quando da
um filme de guerra como All quiet on the western morte do seu irmão Bill, telefonei para sua casa
front [Sem novidades no front] hoje parece datado, em Palm Springs; disse-lhe que sentia muito. “Sei
The dawn patrol, de Hawks (lançado no mesmo ano, disso”, disse ele com emoção na voz; e com isso
1930) tem a sua autoridade resguardada (apesar a conversa terminou.
do fraco desempenho de Neil Hamilton) porque as
personagens não especulam sobre as agruras da Em 1967, fui até Palm Springs filmar uma entrevista
humanidade nem filosofam sobre a bestialidade com Hawks para a BBC (foi ao ar sob o título de
da guerra; em vez disso, a aceitam sem afetação The great professional). A casa de Howard ficava
como um fato das suas vidas e lidam com esse na Stevens Road; quando cheguei com a equipe
fato da melhor forma que conseguem. Em 1929, de filmagem, por algum motivo Hawks decidiu
o irmão mais novo de Howard – seu parente mais que deveríamos entrar no deserto próximo e fazer
próximo e diretor promissor – morreu num aci- algumas tomadas de nós dois a bordo de um buggy
dente de avião enquanto rodava seu segundo filme. dirigido pelo seu filho Gregg – o qual, embora com
Enquanto os soldados de Western Front discutem pouco mais de doze anos de idade, já tinha vencido
a utopia, os aviadores de Hawks em Dawn Patrol diversas corridas de motocicleta. Quando saímos
– que foi o primeiro filme realizado por Howard da cidade (e quando a equipe se arrumava), Hawks
após a morte do irmão – erguem um brinde ao sugeriu a Gregg que me levasse a um passeio pelas
“próximo homem que morrer”. Quando conversa- dunas; com isso, montou uma situação clássica

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à sua moda, na qual Gregg era o menino precoce desastre, algum conhecimento privado – do qual
– como o pequeno George Winslow em Gentlemen eles parecem detentores – a respeito de como
prefer blondes, a personagem mais esperta do as coisas são, ou talvez de como deveriam ser.
filme – e eu, o professor cheio de si (Grant) de Rivette estava certo: tinham a ver com nobreza,
Bringing up baby, que rasteja atrás de um cão, ou honra e, apesar disso, com alguma ambiguidade.
o especialista em pescaria (Hudson) de Man´s fa- Em El Dorado, um pistoleiro de aluguel (Christo-
vorite sport?, no qual o pescador é apanhado pelo pher George) é caracterizado logo de início como
peixe; o próprio Hawks desempenharia o papel de alguém impiedosamente galante: depois de im-
herói – Duke Wayne num momento tragicômico. pedir os seus homens de emboscar um pistoleiro
O senso de humor de Howard era perverso; uma rival, John Wayne, George dá ao ato o nome de
das lembranças prediletas que guardo dele são “cortesia profissional”. Logo, porém, fica claro que
as suas rememorações ligeiramente inebriadas embora os dois homens nutram respeito e, até,
de determinados momentos de pastelão nos seus afeição um pelo outro, não deixarão de executar
filmes. Ou de como ele descrevia a ocasião em o seu trabalho, caso venham a se encontrar em
que um amigo seu caiu de uma arvore e quebrou campos opostos. Quando chega esse momento,
o braço. Esse tipo de coisa lhe provocava grande Wayne derruba Chris George com um tiro de ri-
divertimento. Será que ele me aprontou delibera- fle à queima-roupa. “Você não me deu nenhuma
damente a cena de comédia que se seguiu? chance”, diz George, e Wayne responde: “Você é
bom demais para receber chances”. George morre
Greeg e eu não tínhamos percorrido as dunas com um sorriso irônico: o preço definitivo para o
por mais de cinco minutos quando encalhamos cumprimento definitivo. Naquele momento, chega
na areia. Durante uma hora vaguei perdido pelas ao clímax uma ideia que Hawks tinha exprimido
dunas de Palm Springs, até que Hawks apareceu pela primeira vez 37 anos antes, em The dawn
a bordo de uma motocicleta e nos resgatou. No patrol, quando o moribundo piloto britânico troca
entanto, ao chegar, antes que eu pudesse lhe dizer continências com o piloto alemão vitorioso, antes
que Gregg estava bem em algum ponto mais adian- que seu avião faça o mergulho final.
te, por uma fração de segundo a sua expressão
se mostrou mais ansiosa e preocupada do que eu Bem Hecht também estava certo; Hawks era um
jamais tinha visto nele; mas, ao mesmo tempo, grande romântico. Os seus filmes eram povoados
muito fria – fosse o que fosse que tivesse de ouvir, a de heróis – haviam poucos vilões e quase nenhum
sua situação seria enfrentada com igual elegância. covarde. No mundo caótico, um homem precisa
Em Hawks, comédia e drama eram frequentemen- fazer o melhor que pode; se puder fazê-lo com
te intercambiáveis. Ele afirmou que, ao ler uma honra, tanto melhor. O poema de Edgar Allan Poe
história, primeiro procurava determinar e poderia do qual El Dorado empresta o nome – (“era só
resultar numa comédia; não sendo isso possível, algo que sabia de cor”, Hawks dizia) trata de um
ele a tratava como drama – algo que Gregg e eu cavaleiro que envelhece e se desanima de conti-
poderíamos muito bem ter produzido. nuar procurando a lendária terra dourada; perto
do fim da vida, um espírito lhe diz que, talvez, ele
Com Hawks, bem como com suas personagens, há nunca encontre, mas:
uma sensação inegável que existe alguma força
interior operando através de qualquer crise ou “Cavalgue com audácia”,

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Respondeu a sombra sentada do outro lado de uma mesa. Howard tinha
“se procura o El Dorado!”3 feito essa cena tantas vezes que não se preocupou
em incluir uma tomada em que ela tira a arma de
Hawks e suas personagens sabiam disso instin- dentro da bolsa antes de atirar. Assinalei isso a
tivamente: O que afinal interessa não é atingir o ele, que sorriu e chamou o produtor-associado
objetivo, mas quão bem ele foi procurado. Paul Helmick: “Paul – Peter quer uma tomada
de Jennifer tirando a arma da bolsa. Você pode
Certa vez, no set de Rio Lobo, Hawks fez um pro- fazer isso para ele?”. Helmick sorriu para mim,
nunciamento – algo raro. Ele e eu estávamos con- acedeu e foi organizar a tomada que foi incluída
versando um pouquinho, quando o seu diretor- no filme. Sempre me lembrarei do divertimento
-assistente lhe disse que todos estavam apostos de Howard com o incidente.
á sua espera; Howard se afastou de mim alguns
passos e foi em direção ao elenco, parou e falou No meu primeiro filme, que tinha Boris Karloff aos
numa voz elevada, num volume que eu ainda não 79 anos de idade, fiz passar numa TV uma sequen-
havia testemunhado. Trazia as mãos apoiadas na cia de The criminal code [o código penal], de Hawks,
parte de trás dos quadris, as pernas juntas, o lábio porque trazia um jovem Boris Karloff fazendo um
inferior se estendendo meditativamente entre as papel ameaçador. Boris me contou que, graças a
frases – porque Hawks jamais falava depressa; Hawks, aquele tinha sido o seu “primeiro papel
falava de forma calma, refletida e relaxada – exa- de fato importante”, fala que incluí no filme. Ao
tamente o oposto do ritmo dos seus filmes. “Bem, falar de Hawks no filme, a minha personagem diz:
se existe alguém aqui hoje que reconhece certas “Ele realmente sabe como contar uma história”,
falas e situações”, disse ele, “se há qualquer pes- ao que Karloff acrescenta, improvisando: “Sabe
soa que acha familiares algumas dessas coisas...”; mesmo”. No meu segundo filme, eu precisava
fez uma pausa e, sem tirar as mãos de detrás das de uma sequência de western que se passasse
costas, voltou-se apenas o bastante para fitar di- na tela do cinema de uma pequena cidade; usei
retamente os meus olhos, disse: “... é melhor que para isso o início da viagem da boiada em Red river,
fique calado!” Wayne, que me conhecia entendeu devido ao seu senso de otimismo e aventura, tão
a brincadeira e riu alto, pois sabia, também, que contrastante com a desolação na qual os texanos
Hawks estava, principalmente, brincando consigo tinham caído. O meu terceiro filme foi feito como
mesmo: o diretor era famoso por usar frases e uma comédia na tradição de Bringing up baby, mas
situações semelhantes de um filme em outro. Uma incluindo uma perseguição à la Buster Keaton. Dei
cena de Hawks feita por Bogart e Bacall foi repetida ao protagonista o nome de Howard (em homena-
cinco anos depois numa comédia dirigida por ele, gem a Hawks); o apelido que a protagonista usava
com Cary Grant e Ann Sheridan. Doze anos mais para ele era Steve. Steve tinha sido o apelido que a
tarde, John Wayne e Elsa Martinelli fizeram outra segunda mulher de Howard (Slim Hawks) tinha lhe
variação numa aventura de Hawks. Um toque par- dado. Ele próprio havia empregado esse expediente
3. Ride, boldly ride”,/
ticularmente hawksiano – atirar com um revólver em To have and have not no qual Bacall chama
the shade have
replied,/”if you seek de dentro de uma gaveta ou por debaixo de uma Bogart de “Steve”, embora o nome deste fosse
for Eldorado!” mesa – foi usado em Rio Lobo pela protagonista Harry (e Bogart a chamava de Slim, o apelido que
(Jennifer O´Neill), que atira na sua adversária, Hawks tinha posto na sua mulher, a qual depois

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se tornaria a senhora Leland “Slim” Hayward). Eu como junto ao público. Em janeiro de 1961, quando
disse a Howard que tinha “roubado algumas coisas” programamos o filme para ser exibido durante
de Bringing up baby e lhe perguntei se ele leria o uma noite (em 16mm) no cinema New Yorker, e
roteiro e me daria sua opinião. Havíamos, de fato, no ano seguinte, durante a retrospectiva Hawks
usado exatamente a mesma piada do paletó que do Museu de Arte Moderna de Nova York já havia
é arrancado, bem como a premissa básica: um vinte anos que o filme não era exibido numa sala
professor avoado (e noivo), doido atrás de uma nova-iorquina (ou de qualquer outra cidade do
bolsa de financiamento, é perseguido e quase des- Estados Unidos): toda uma geração. Foi a nova
truído antes de ser ressuscitado por uma mulher geração, e a seguinte, que adotou o filme, fazendo
amalucada, excêntrica e apaixonada. com que a comédia se transformasse num objeto
de culto. Lembro-me de que, quando assisti a Baby
Estávamos fazendo o primeiro ensaio num pal- pela primeira vez – eu tinha 21 anos, e o filme, 22 -,
co da Warners, com todo o elenco, quando um com um senso de descoberta que quase não teve
diretor-assistente se aproximou e me disse que paralelo na minha história de frequentador de
Howard Hawks estava ao telefone à minha procura. cinema, ri às gargalhadas e soltei exclamações
O elenco fez sons exageradamente admirativos, e de admiração – eles tinham de fato feito aquilo!
ri ao me encaminhar para o aparelho, que estava A ideia de fazer um par romântico participar de
no meio do palco. Após confirmar que tinha lido cenas de pastelão era bastante nova no cinema;
o roteiro, Hawks disse: “você não roubou o leo- Hawks já tinha feito o mesmo em Twentieth Cen-
pardo” – um dos aspectos principais e uma das tury, realizado pouco menos de cinco anos antes.
personagens (na verdade, duas) de Bringing up O fracasso de Baby, assinalou o encerramento
baby. Ri e disse que não poderia roubar o leopardo. brilhante do ciclo amalucado dos anos 30; -Hawks
"Não, creio que não", respondeu Howard. “Bem, tinha definido um gênero.
você não roubou o dinossauro” – outro expediente
fundamental que permeia o filme de Hawks. Ri de Quando What´s up, doc? [Esta pequena é uma pa-
novo e disse que não poderia roubar o dinossauro, rada] se tornou sucesso em quase todo o mundo,
ao que ele respondeu com uma ponta de tristeza, Howard ficou muito orgulhoso, no papel de seu pai
que também acreditava que não. “Bem, está OK; espiritual. (Embora tenha sido o espírito de Buster
você está trabalhando com quem?” Disse-lhe que Keaton que inspirou a perseguição que constitui a
estava trabalhando com Barbra Streisand e Ryan sequência mais popular do filme.) Quando Hawks
O´Neal, que eles não eram exatamente Katharine viajou ao Rio de Janeiro para uma retrospectiva,
Hepburn e Cary Grant, mas ... Aí, Hawks me inter- bateu algumas fotos das marquises dos cinemas
rompeu: “Você pode ter certeza de que não são”. com o título do filme em espanhol [sic]. Eu dis-
Ri. Howard fez uma pausa e depois disse: “Bem, se à impressa que o filme tinha sido “inspirado
eles funcionarão direito; só não deixe que eles em Bringing up baby”, o que se transformou em
assumam ares”. Disse que não deixaria e agradeci. “uma homenagem” a Bringing up baby, ou ainda
Ele disse: “OK, garoto, boa sorte”. Embora, certa “um virtual remake” de Bringing up baby. (O meu
vez, tenhamos discutido o assunto, nenhum de exemplo predileto é a matéria que afirma que o
nós dois mencionou o fato de Bringing up baby ter filme é um plágio de Bringing up father – popular
sido um fracasso retumbante, tanto junto à crítica história em quadrinhos.) Para Howard – que não

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fazia nenhum filme havia dois anos e não volta- de Hawks. Aquele tinha sido um comentário típi-
ria a filmar, morrendo cinco anos mais tarde –, co dele. No entanto, fiquei magoado e, durante
o sucessor de What´s up, doc? Foi também seu: vários meses, não o procurei – eu não sabia do
a tradição de certo tipo de comédia, da qual ele acidente que ele sofrera nem que a sua saúde
tinha sido pioneiro, estava sendo reafirmada e não andava boa. Quando eu estava prestes a lhe
revigorada para um novo público. telefonar novamente, Hawks morreu, na metade
do seu 81º ano. Contudo, o fatalismo estóico de
Muitas das coisas que Howard me disse ecoam Hawks abrangia todas as possibilidades, e ele era
na minha cabeça e em todos os filmes que fiz. Em dotado de agudo senso da natureza das relações
1965, no set de El Dorado, ele me disse: “se você não entre os jovens e os velhos. Quando conversáva-
mostrar, o público não reconhecerá a geografia do mos sobre esse conflito, que aparece em alguns
lugar. Se você não a exibir, ela se tornará aquilo dos seus filmes, Hawks comentou que, na vida, o
que você quiser”. Em outras palavras: um filme homem mais jovem geralmente vence, mesmo
é um mundo que o diretor faz. Hawks construiu quando está errado. Ele diria que esse é o modo
o mundo a seu jeito: foi um cineasta impressio- como as coisas são.
nantemente moderno – a sua obra permanece
sintonizada com a passagem do tempo em grau No enterro de Hawks tentei manter o espírito que
muito maior do que a maioria. Ele tinha uma sen- ele tinha exemplificado nos seus filmes – a ten-
sibilidade aguda para os arquétipos humanos e a tativa de ignorar a morte –, e procurei focalizar a
capacidade de compreender as contradições da atenção sobre a herança positiva que ele havia
natureza humana em forma mítica. Tinha também deixado. Mas John Wayne parecia arrasado. Fez
um faro quase infalível para os equívocos do cine- uma despedida breve. Depois, quando o procurei
ma: conselhos inestimáveis, que procurei seguir, para exprimir as minhas condolências, ele disse,
e a respeito dos quais me arrependi sempre que abismado: “Agora Howard também se foi”, uma
não o fiz. referência oblíqua à morte de Ford, quatro anos
antes. Pálido e muito abalado, Duke balançou
O meu último contato com ele ocorreu seis meses tristemente cabeça e se afastou. Já se passaram
antes da sua morte – que se deu em consequência vinte anos desde a morte de Hawks, e eu ainda
de um acidente no qual ele tropeçou em seu cão – me lembro muito dele, cito-o frequentemente e
uma cena de comédia hawksiana que acabou em sinto a sua falta.
morte. Após eu ter feito três filmes fracassados,
ele teria dito a um crítico, conhecido de ambos, que As regras do jogo
me preocupasse, e acrescentado: “Diga a Peter
que ele deveria me visitar e receber mais algu- As conversas aqui reproduzidas foram organiza-
mas aulas”. É claro que Hawks tinha razão, mas das cronologicamente acompanhando a carreira
eu ainda era bastante jovem e, decerto, inseguro, de Hawks; elas foram travadas ao longo de um
de modo que encarei esse comentário como uma período de vários anos: no seu escritório na Pa-
espécie de traição – esquecendo-me não apenas ramount, em 9 e 10 de abril de 1962; em locações
da advertência de Mary Ford, de “nunca acreditar de filmes em Palm Springs, em 1967; na sua casa
no que se ouve”, mas também da personalidade de Palm Springs, em 23 e 24 de abril de 1972. Em

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Hollywood, eu tinha começado por lhe perguntar e havia enriquecido – era um financista de grande
se, quando criança, ele havia tido algum interesse sucesso. Começou conosco ganhando cinquenta
particular por fazer filmes... dólares por semana. A moça dos seriados, Ali-
ce Terry, tornou-se uma estrela e se casou com
Howard Hawks: Não, eu só queria um emprego Rex Ingram, que era um dos melhores diretores
para as férias de verão. Alguém que eu conhecia na da época – foi ele quem fez Four horsemen of the
Paramount me arranjou trabalho na contra-regra. Apocalypse [1921]; Alice era uma moça lindíssima.
Isso aconteceu por volta de 1916. Na verdade, tudo Ela ganhava trinta dólares por semana. Depois de
começou com Douglas Fairbanks, que estava fa- alguns filmes, Monty Banks começou a se sentir
zendo um filme numa locação e telefonou para como um reizinho. Por isso, um dia, estávamos
dizer que precisava de um set moderno. Naquela filmando, e o mandei subir no telhado e entrar na
época só havia um diretor de arte na Paramount, chaminé; quando desceu, todo coberto de fuligem,
e o sujeito estava em outra locação; assim, eles eu lhe disse: “você está demitido”, e terminei o
não sabiam o que fazer. Eu disse: “Bem, sou capaz filme com outro sujeito enegrecido. Ele se ajo-
de construir um set moderno” – tinha tido alguns elhou e implorou para voltar, e acabou voltando,
anos de treinamento em arquitetura na escola. Fiz mas toda vez que apresentava o menor sinal de
o set, e Fairbanks gostou do resultado. Tornamo- recaída, eu dizia: “Peguem uma escada e o façam
-nos amigos, e foi assim que comecei. Ele estava subir no telhado”
começado um romance com Mary Pickford, e era
eu o sujeito que geralmente era escalado para Você financiou aqueles filmes de um rolo com o
buscá-los para o trabalho. seu próprio dinheiro?

Qual foi o primeiro filme que você dirigiu ou Sim, eu tinha o bastante para isso. Na verdade, a
produziu? Warner Brothers estava em algum tipo de dificul-
dade; eu lhes adiantei um pouco de dinheiro, eles
Bem, fiz uma porção de filmes de um rolo: um me pagaram algumas semanas depois e, além
seriado chamado Welcome Comedies [1918-9] para disso, me deram um contrato para fazer aqueles
Jack Warner. Na época eles trabalhavam num pe- filmes. Jack Warner e eu somos amigos há muito,
queno estúdio na Main Street, na altura da rua 18. muito tempo.

Você dirigiu esses filmes? Quantas Welcome Comedies você fez?

Ah, fiz alguns; mas havia outro sujeito. Nós nos Ah, fizemos o suficiente para firmar o seriado. Aí o
revezávamos. vendi e usei o dinheiro para fundar a Associated
Producers [em 1919] com os bons diretores:
Quem estrelava? Allen Holubar, que era um individualista, Allan
Dwan e, é claro, Marshall Neilan. Eles próprios
Um sujeito a quem dei o nome de Monty Banks escolhiam as histórias; afinal, naquela época eu
[nome verdadeiro: Mario Bianchi]. Ele tinha se não era ninguém, e não poderia discutir com su-
casado com Gracie Fields, a comediante inglesa, jeitos que eram realmente bons. Mas comecei a

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aprender a dirigir. Eu via um filme à tarde e, à noite, Como operava a sua companhia independente?
mais um ou dois — para estudar, porque coloquei
na cabeça que queria ser diretor. Enquanto tra- A First National pagava certa quantia na entrega do
balhei com eles, não conheci o bastante sobre negativo e depois ganhávamos uma porcentagem.
esse trabalho. Os profissionais eram eles, eu Na verdade, ganhávamos bastante dinheiro só
apenas conseguia o dinheiro no banco e fazia esse na entrega do negativo. Ganhamos um monte
tipo de coisa. Lembro-me de uma ocasião em que de dinheiro no primeiro ano. No segundo ano,
precisava de um pouco mais de dinheiro, mas o todos os diretores arranjaram namoradas, e nós
banqueiro não queria me emprestar - endure- perdemos dinheiro, porque eles procuravam es-
ceu bastante. Perguntei-lhe, então: “Qual é a trelar as namoradas nos seus filmes, e os filmes
idade mínima legal para se conseguir dinheiro não eram grande coisa.
emprestado?”. Acontece que eu ainda não tinha
21 anos, e apesar disso tomava dinheiro empres- Como foi que você se tornou produtor da
tado dele o tempo todo; consegui o dinheiro extra Paramount?
bem rapidinho.
Bem, Irving Thalberg tinha conversado com Jesse
O que, na sua opinião, você aprendeu com esses Lasky a meu respeito. Perguntei o que ele queria,
diretores? e Lasky disse: “Quero que você me arranje qua-
renta histórias e assuma a produção delas. Você
Gostava do senso de humor de Neilan, e vi como consegue fazer isso?”. Respondi: “Conseguirei, se
funcionava bem. Aprendi que, quando nós temos você me der bastante dinheiro”. E ele retrucou:
satisfação com algo, podemos ir em frente, pois o “Você terá todo dinheiro de que precisar”. Assim,
público também se agradará. Descobri que, se você comprei dois Joseph Conrad, dois Rex Beach,
acha uma coisa engraçada, o público também vai dois Jack London, dois Zane Grey. Li uma porção de
achar. Não é necessário parar e se perguntar se coisas e comprei cerca de trinta histórias; depois,
você gosta. Descobri que, quando se gosta de um bolei títulos e começamos a trabalhar como se
ator, o mesmo acontece com o público. Mas, às fossem originais. Na prática, não fiz quarenta.
vezes, é bastante difícil descobrir os atores, então, Comecei a trabalhar e, depois de completar cerca
são usados substitutos. Marshall Neilan tinha de dez, contratei dois bons jornalistas, que se
grande senso de humor e, apesar disso, os seus tornaram os melhores legendadores do ramo –
filmes não eram pastelões. As suas histórias sem- Malcolm Stuart Boylan e [H. M.] Beanie Walker,
pre tinham bom fundamento, mas o seu método que era repórter esportivo. Eu não era produtor, e
de tratá-las de forma leve — ou de interromper também não era, realmente, do departamento de
no meio algo muito dramático e introduzir algu- roteiros — não tinha um cargo oficial, porque
ma coisa engraçada — sempre aparecia. Isso me dissera que não queria isso -, mas entrava no
pareceu uma boa ideia. Também admirava Allan escritório do Sr. Lasky sempre que queria. Eu
Dwan. Ele era profissional - firme, duro, com abria a sua porta, fazia uma bola de golfe rolar
bom toque. Ele não se demorava nas coisas — para dentro, daí a pouco ele saía, e íamos jogar
ele as encarava e ia em frente. golfe e conversar sobre o trabalho. O meu setor
escolhia os elencos e os designava aos diretores,

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era também responsável pela edição e inclusão e, quando íamos a alguma festa, costumáva-
de legendas. Na verdade, fazíamos toda a pro- mos tirar na moeda quem iria dirigir. De vez em
dução. Fui eu quem deu origem à maldição quando chegávamos perto de brigar feio, mas
dos “produtores associados”: havia coisas de- nunca atingimos exatamente esse ponto. Fle-
mais a fazer e, por isso, contratei alguns sujeitos ming começou como mecânico de automóveis.
para me ajudarem. Em certo ponto, DeMille tinha Ele costumava ganhar a metade do que ganhava
concluído um filme que não tinha resultado muito um piloto, só acertando os carros. Depois ele se
bom, e me perguntou se eu poderia fazer algo tornou cameraman, atividade que exerceu até
a respeito; usei as legendas para transformá-lo eu me tornar produtor da Paramount — quando
numa espécie de comédia. fiz dele diretor.

Você e Victor Fleming eram bons amigos, não é? Quanto tempo você ficou na Paramount antes de
Como vocês se conheceram? começar a dirigir?

Foi numa corrida de automóvel — eu o joguei na Nunca dirigi enquanto estive lá — eles não per-
cerca. Quando olhei para trás vi que, enquanto a mitiam; diziam que dispunham de bastantes
cerca se despedaçava, ele estava com o polegar diretores, mas não conseguiam ninguém para
no nariz, sem prestar atenção aonde estava indo, fazer o meu trabalho. Por isso me demiti. Irving
dizendo o que pensava de mim. Venci a corrida e, Thalberg me disse que me transformaria em dire-
depois, quando o vi se aproximar de mim, ima- tor se eu fosse para a Metro-Goldwyn e o ajudasse
ginei que haveria briga. Em vez disso, ele disse: durante um ano. Bem, fui para lá e descobri que
“Aquilo foi muito bom — mas não tente fazer de estava fazendo o mesmo trabalho que fazia na
novo, nunca mais”. Fomos tomar uns drinques Paramount. Tínhamos setenta redatores e vinte
e nos tornamos muito bons amigos. Aliás, ele diretores. Eu não conseguia sequer conversar
foi me visitar em casa e acabou morando lá por com cada uma dessas pessoas mais do que duas
cinco anos. ou três vezes por semana.

Você construía os seus próprios automóveis e Você montava as histórias?


aviões de corrida?
Sim. Tínhamos uma turma fabulosa de estrelas, e
Bem, disputei corridas por cerca de três anos, o estúdio inteiro trabalhava no processo. O diretor
e nós mesmos tínhamos de preparar os carros. fazia um filme e o mostrava a Thalberg; depois,
Fleming e eu construímos dois aviões. Um deles como todo mundo era contratado e os sets ainda
era muito veloz, mas também muito pesado. Nós estavam montados, ele podia mandá-los refilmar
o chamávamos de “Maravilha de Ferro Fundido” ou adicionar cenas e mudar tudo. Trabalhei nisso
[Cast-Iron Wonder]. Sabíamos que, se conseguís- com ele. Refizemos filmes. Quando se observa os
semos tirá-lo do chão, poderíamos fazê-lo voar erros que se cometeu, torna-se possível corrigi-
mais depressa do que qualquer outro, mas o trem -los. Hoje em dia isso não pode mais ser feito. De
de aterrissagem se quebrava toda vez que pousá- todo modo, depois de algum tempo percebi que
vamos! Ambos tínhamos automóveis Dusenberg ali também não me permitiriam dirigir. Eu não

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tinha assinado um contrato com aquelas pessoas que todos os críticos gostam, mas que ninguém
— nunca acreditei nisso —, então, simplesmente mais vai gostar, por isso, pelo amor de Deus, vá
me demiti. fazer coisas que entretenham”. Assim, escrevi
uma história chamada Fig leaves [1926]; o filme
Um dia, estava jogando golfe quando encontrei Sol recuperou o seu custo com a bilheteria de uma só
Wurtzel, da William Fox Company. Ele me pergun- sala de exibição.
tou o que eu estava fazendo, e respondi: “Jogando
golfe”. E ele: “Não, o que você está fazendo?”. Ao Em Fig leaves você fez troça das mulheres como
que respondi: “Jogando golfe”. “Mas você não está faria 27 anos mais tarde com Gentlemen prefer
trabalhando para a Metro?”. Respondi: “Não, blondes.
saí de lá”. Ele retrucou: “Bem, você começou a
trabalhar para a Fox nesta manhã”. E eu disse: Pode-se fazer troça com quem quiser, desde que
“Não quero o mesmo tipo de trabalho. Não quero isso divirta as pessoas e não recaia na maldade.
me envolver com histórias de ninguém, só com Fig leaves era mais próximo do tipo de coisa que
as minhas próprias”. Ele respondeu: “OK, você Neilan costumava fazer. Toma-se Adão e Eva se
começou a dirigir para a Fox nesta manhã”. Foi levantando pela manhã e se transforma isso numa
assim que comecei a dirigir. sequência cômica completa, pelo expediente de
transferir as situações atuais para aquele período:
Como foi dirigir o seu primeiro filme, The road o cão de estimação se transforma no dinossauro de
to glory [Caminho da glória, 1926] — você ficou estimação, o jornal se transforma numa placa de
nervoso? pedra atirada na varanda, Eva diz “não tenho nada
para vestir!”. Apenas tentei dizer que as pessoas
Não, eu contava com um bom cameraman — não mudaram muito e que, hoje, são iguais ao que
Joe August —, e também já havia feito algumas eram. Na verdade, os meus primeiros filmes bons
comédias. Já tinha circulado bastante, e não tinha foram comédias. Fig leaves e The cradle snatchers
medo de dirigir. [1927] tiveram, ambos, muito sucesso.

A história do filme era bastante triste — você es- Quando fez essas comédias, você sentiu neces-
tava deprimido quando a escreveu? sidade de som?

Sim, eu tinha trabalhado tempo demais para a Ah, sempre desejei dispor de som. Pensava que,
Metro-Goldwyn. no instante em que o som aparecesse no cinema,
eu o usaria com facilidade. Mas, em vez disso,
Você não gosta muito do filme. passei um ano e meio sem fazer nenhum filme.
Eles diziam: “O que é que você entende disso?”.
Na época, achava-se que o melhor era fazer si- Eu respondia: “Bem, nada”. Jack Ford e eu nos
tuações dramáticas. Os críticos favoreciam esse encontrávamos na mesma posição. Jack teve de
tipo de coisa; eu achava isso absurdo. Então, Sol fazer um filme de dois rolos para provar que sa-
Wurtzel — que tinha grande influência sobre mim – bia usar o som [Napoleon’s barber [O barbeiro de
me disse: “Você mostrou que sabe fazer filmes de Napoleão], 1928].

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Você achava que o som surgiria algum dia no um diretor alemão, apareceu e começou a fazer
cinema? essas coisas [Sunrise [Aurora], 1927], e nós tenta-
mos levar a melhor sobre ele. Aí, por considerarem
Ah, claro, eu pensava nisso — tinha de pensar. que o nosso filme era muito interessante, eles o
Não se esqueça de que eu havia tido uma car- seguraram durante um ano e meio; quando o
reira curta como redator de legendas — na ver- liberaram, todo mundo já tinha feito tudo o que
dade, ganhei mais do que o suficiente para viver nós havíamos inventado. Por isso acho que aque-
trabalhando dois dias por semana na redação de le não foi um bom trabalho. Eles gostaram — mas
legendas. As legendas eram capazes de mudar eu, não. Não gosto de trucagens. Só tentei fazer
completamente uma história, mudar todo o isso daquela vez. Sempre gostei de mecânica,
clima. Eu conseguia transformar o protagonista tentei usar um monte de coisas mecânicas, mas
na figura má e vice-versa — e fiz isso algumas depois as abandonei completamente. O melhor
vezes. Arranjei alguns inimigos e alguns amigos. a fazer é contar uma história como se ela es-
Mas sabia que qualquer tipo de trabalho em que tivesse passando diante dos olhos. Contá-la a
se conseguisse fazer mudanças completas como partir dos seus próprios olhos. Fazer com que o
essas não podia ter grande estabilidade. Deveria público veja exatamente o que veria se estivesse
ser possível registrar a coisa em preto e branco dentro do filme. Basta contar a história normal-
e gravar as falas. Na época se faziam diversas mente. Hoje, na maior parte do tempo, a minha
experiências com a gravação de vozes, por isso câmera permanece no nível dos olhos. De vez
sabíamos que o recurso estaria disponível tão logo em quando, movimento a câmera como se uma
o ajeitassem e o fizessem funcionar. Nos filmes pessoa estivesse andando e olhando as coisas.
mudos, dizíamos para um ator: “Agora, atravesse Quando não se deseja realizar cortes, pode-se
aquela porta, diga ‘cass-pass-pass!’ e assuma aproximar e afastar a câmera para conseguir
um aspecto bem furioso ao dizê-lo”. Depois, com ênfase. Mas, exceto por essas circunstâncias, só
as legendas, colocávamos o que queríamos na uso a câmera mais simples que existe.
sua boca.
A girl in every port [1928] é o primeiro filme que
O que você achou de Paid to love [1927]? tem a sua marca indiscutível.

Não trabalhei essa história e não tinha nenhuma Bem, por aquela época eu já estava descobrin-
simpatia especial por ela. Não queria fazê-la, mas do o que fazer. Tivemos muita sorte, porque nos
fui obrigado por causa do meu contrato. deixaram fazer o que quiséssemos. Só fizemos as
cenas que quisemos. É claro que em A girl in every
Nesse filme você empregou uma porção de to- port foi a primeira vez que consegui trabalhar com
madas com a câmera em movimento, além de o tipo de pessoa que conhecia. Até esse filme, eu
outros truques. havia trabalhado com personagens que tinham
resultado da imaginação de outras pessoas. Mas
Eu estava começando a dirigir, e fazia experiên- nesse filme — bem como nos westerns, nos filmes
cias. É divertido inventar essas coisas — fica-se de corredores de automóvel e em coisas assim —
pensando que seria uma coisa nova. F. W. Murnau,

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eu sentia que estava em terreno familiar, porque Você pensa que é desse jeito que funciona na vida
conhecia as pessoas. real?

A amizade que existe entre os dois homens é muito Acho que sim.
semelhante à amizade masculina de muitos dos
seus filmes posteriores. O filme fez sucesso?

Usei esse tipo de amizade em diversos filmes. Bastante. Winnie Sheehan, que chefiava a Fox na
Na verdade, é uma história de amor entre dois época, não gostava do filme porque ele tinha sido
homens. O centro é a afeição e a lealdade que chefe de polícia, e no filme eu fazia gozações com
eles têm um pelo outro. Descobri que funciona, policiais. Fomos à exibição de teste, e nunca vi o
por isso continuo a explorar isso. público reagir tão bem. Mas, quando saímos, ele
disse: “Este é o pior filme que a Fox realizou em
E quanto à ideia de os homens brigarem antes anos”. Respondi: “Você não passa de um idiota”.
de se tornarem amigos? Eles estão se testando Bem, a partir desse instante Sheehan passou a não
mutuamente? gostar muito de mim. Eu aprontava uma história,
mas ele não me deixava filmá-la. E não havia nada
Provavelmente. Para verificar se o outro cara no meu contrato que eu pudesse fazer a respeito.
gosta do mesmo jeito. E se é capaz de aguentar.
Eles brigam e terminam por se tornar amigos. Talvez por isso ele tenha lhe dado Fazil [1928] para
filmar.
Nos seus filmes, o relacionamento entre homens
e mulheres também é desse tipo. Eles geralmente Ah, sem dúvida. Não gostei da história, e não
começam não gostando um do outro. queria fazê-la, mas tinha de contá-la, e por isso
arranjei um jeito. Acho que me acomodei ao
Muito frequentemente. Em geral, começa com velho ditado: “Leste é leste e oeste é oeste, e os
um homem esbarrando numa mulher muito dois nunca se encontrarão”.
atraente: isso faz com que ele fique um pouco
receoso, reaja de modo um pouco desagradável Em certo ponto, Fazil pensa em se suicidar, mas
com ela e comece a brigar em autodefesa— e lhe dizem que o suicídio é um ato de covardia.
termine por se apaixonar. Você acha isso?

Na verdade, os homens dos seus filmes se comu- Definitivamente. Zanuck quis que eu fizesse um
nicam entre si muito melhor do que com as mu- filme chamado Fourteen hours [Horas interminá-
lheres. Você faz um homem dizer coisas a outros veis] [1951; Henry Hathaway] — sobre o sujeito que
homens que ele jamais diria para uma mulher. fica numa marquise e ameaça se atirar de lá—, e
eu lhe disse que só o faria se Cary Grant estivesse
Sim, claro. tendo um caso com uma garota, o marido dela
4. East is East and
West is West and chegasse em casa, Cary fugisse para fora da janela
never the two shall e fingisse querer se suicidar...
meet.

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Bem, em alguns dos seus filmes, você fez com Sim. Na época se chamava Corpo de Sinaleiros,
que personagens cometessem suicídios — saindo mas nunca fui para o teatro de guerra. Eles não ti-
em missões que sabiam não ter retorno. Estou nham aviões. Estávamos no Texas — supostamente
pensando em Only angels have wings [1939], The para voar—, mas lá havia 2 ou 3 mil cadetes e
dawn patrol [1930] e Ceiling zero [1935]. apenas sete ou oito aviões. Eles não tinham aviões
em quantidade suficiente para treinar as pesso-
Eles morriam por um motivo — tinham um objetivo as. Assim, nós nos oferecíamos para fazer quase
definido; não creio que jamais tenha feito um filme qualquer coisa só para sair de lá. Candidatei-me
em que alguém simplesmente desista de viver. a vigia de bombardeiros e fui para o Fort Monroe,
na Virgínia. Estava lá quando o Armistício chegou.
No final, após tê-la envenenado, Fazil lhe diz que a
ama, algo que não tinha dito durante todo o filme. O que acontecia em The air circus?
Essa é uma característica extremada, presente em
muitas das suas personagens masculinas. Um monte de casos e situações isoladas — mui-
to pouca história. Era só sobre como os rapazes
Ah, isso vem de pessoas que conheço, e que se daquele período em particular aprendiam a voar.
sentem embaraçadas em dizer “eu te amo”. Elas Alguns se assustavam e outros ficavam meio doi-
não querem se expor a esse ponto; não querem se dos. E o ator, Arthur Lake, que fazia o rapaz, na
meter numa situação na qual precisem pedir favo- verdade fez o seu primeiro vôo solo nesse filme. O
res. Em Only angels have wings, creio que usamos filme foi feito no Campo Clover, em Santa Monica.
o expediente de forma muito eficaz. Cary Grant não O campo recebeu esse nome em homenagem a
pede a ela que fique, mas acaba por fazer isso, a Green Clover, que tinha morrido voando e que ha-
seu próprio modo, quando lhe dá aquela moeda. via sido companheiro de quarto do meu irmão Ken.
Ele diz: “Cara você fica, coroa você vai”, mas ele
sabia que a moeda tinha cara dos dois lados. O que Lewis Seiler dirigiu no filme?

Não existem mais cópias de The air circus [1928]? Eu o dirigi sozinho, mas eles queriam incorporar
algumas sequências faladas, e, para isso, trouxe-
The air circus foi realizado nos primeiros dias da ram um sujeito de Nova York que, disseram, era
aviação, quando muita gente estava aprendendo uma autoridade em diálogos. Na verdade, era um
a voar — usavam-se aviões que tinham sobrado comediante de teatro burlesco. Quando li as coisas
da guerra, e existiam muitas escolas de aviação. que ele escreveu, eu disse: “Ninguém fala desse
Eu havia sido piloto durante a Primeira Guerra jeito. Se quiser fazer assim, vá em frente, mas
Mundial e voava na época, e assim imaginei que não quero ter nada a ver com o diálogo". Então
poderia ser interessante. Lew Seiler entrou e fez as partes com diálogos.
Na verdade, não fiz nenhum filme falado até The
Você foi segundo-tenente no Corpo Aéreo durante dawn patrol. Aquelas cenas com diálogos foram a
a guerra? coisa mais horrível que eu jamais tinha visto. Um
dos rapazes se fere e há uma cena na qual a sua
mãe chora, soluça e diz coisas tristes. Péssimo.

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O título me faz lembrar de um romance de William fazer dele um filme sonoro — preparamos uma
Faulkner chamado Pylon, que sempre imaginei ambientação com diálogos completos. Depois
que seria algo que você teria gostado de filmar. de fazermos as primeiras duas ou três cenas,
eles apareceram no set e disseram que tinham
Fui eu quem o convenceu a escrevê-lo. Perguntei- acabado de receber um telegrama da Inglaterra
-lhe quando escreveria uma história sobre pesso- informando que não haviam conseguido obter
as que ele conhecia e, assim, escaparia daquelas os direitos para uma versão falada e, por isso, o
personagens “do fundão do Sul” sobre as quais filme tinha de ser mudo. Bem, aquilo estragou tudo.
ele escrevia. Eu lhe disse: “Por que não escreve Nós não tínhamos planejado que fosse mudo.
uma história sobre alguns sujeitos que você co- Assim, só nos divertimos. Fizemos algumas
nheceu e que sabiam voar?” — Bill também era cenas ótimas, porque Ray Griffith falava num
aviador. E ele respondeu: “Ah, lembro-me de dois sussurro muito rouco — teria sido maravilhoso
sujeitos e de uma garota; a garota estava grávida se um detetive fizesse perguntas daquele jeito.
e não sabia qual dos dois era o pai. Um era piloto
e o outro fazia o número de caminhar pela asa do Bem, mesmo assim você fez com que Griffith pa-
avião durante o vôo. Posso escrever uma história recesse bastante boboca. Você não fez de Trent um
sobre eles”. Aí, eu disse: “Sim, só que essa história herói típico — era mais um comediante.
já foi escrita, ambientada num circo”. Lembra-
-se daquele maravilhoso filme sobre o circo, que Foi planejado como comédia.
os alemães fizeram— Varieté [1926; E. A. Dupont]?
Mas Bill contou a história através dos olhos de um Mas o romance original não era.
repórter bêbado; ele foi às corridas aéreas de
Nova Orleans e permaneceu alto durante todo Não, sei disso, mas era a única coisa que podíamos
o tempo em que escreveu a história. Não creio fazer para torná-lo interessante.
que o resultado tenha sido muito bom.
É claro que a iluminação e a atmosfera geral são
Anos mais tarde, o livro deu lugar a um filme in- bastante sinistras.
teressante, chamado The tarnished angels [Almas
maculadas] [1958; Douglas Sirk]. Bem, creio que a trama constitui um clássico. Um
homem descobre que outro homem está tendo um
Não vi o filme. Mas a trama é boa. Ficou excelente caso com a sua mulher, então, ele o atrai e lhe diz:
em Varieté. “Olhe, fulano sabe que você veio aqui, é tudo uma
armação; vou me matar e você vai levar a culpa”.
Você disse que Trent’s last case [1929] nunca foi
distribuído nos Estados Unidos. Você saiu da Fox depois de ter feito Trent’s last
case ou o seu contrato venceu?
Acho que não foi. Provavelmente, só foi exibido fora
do país. Nunca soube que tivesse passado num Entre o término do filme e a minha saída se
cinema nos Estados Unidos, porque na época os passou cerca de um ano e meio. Eu estava sob
filmes sonoros já tinham aparecido. A intenção era contrato, mas eles não, me davam nada para fa-

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zer. Procurei um advogado e perguntei: “Posso de Sheehan na Fox e disse: “Por favor, quero 120
processar essa gente?”. Ele respondeu: “Você mil dólares por um ano e meio de ociosidade do
pode processá-los, mas eles podem dizer que você meu cliente”.
não está capacitado a fazer filmes. Creio que as
chances de vencer são as mesmas para os dois A carta saiu pela culatra.
lados”. Perguntei: “O que devo fazer?”. E ele dis-
se: “Espere até que consiga provar que é capaz Saiu pela culatra e lhes custou 120 mil dólares!
de fazer um filme, e aí você conseguirá receber o
seu dinheiro”. Assim ficou até que, finalmente, fiz E você permaneceu na Warners.
The dawn patrol, na Warners.
Cheguei a um entendimento com a Warners. Se
Como foi que isso aconteceu? tivessem uma história, eu simplesmente voltaria
e a realizaria. O mesmo com a Columbia.
Richard Barthelmess. Ele leu a história, resolveu
fazê-la, decidiu que me queria e pronto. Mas você nunca mais trabalhou sob contrato para
nenhum estúdio.
Você chegou a processar a Fox?
Não. Eu tive sorte. Eles queriam, mas eu não assi-
Depois de The dawn patrol, a Warners quis que eu nava contratos. Nunca acreditei em contratos. Se
fizesse outro filme, mas não gostei da história. Com alguém tivesse uma história que me interessasse,
isso, eles seguraram o meu pagamento. Chamei o queria ser capaz de ir até o estúdio e realizá-la.
meu advogado e perguntei: “O meu contrato não Outro motivo é que, quando se está sob contrato
fica automaticamente rescindido?”. E ele respon- com um estúdio e se deseja fazer um filme com
deu: “Sim, se você tiver uma testemunha”. Levei um ator que está sob contrato com outro estúdio,
uma testemunha, pedi o meu pagamento, e eles isso não é possível. Era muito melhor permanecer
se recusaram a pagar; então, eu lhes escrevi uma livre, e só o que fiz foi manter essa liberdade.
carta dizendo que não estava mais preso ao contra-
to. Pois bem, o juiz começou a se confundir. Per- O que você achou de The dawn patrol?
guntou: “Vocês estão processando Hawks porque
querem se livrar dele ou porque querem segurá- Na verdade, The dawn patrol foi o primeiro filme
-lo?”. E eles responderam: “Porque queremos dramático sonoro realizado sem excessos de re-
segurá-lo”. Bem, durante o processo — quando presentação. Era muito tranquilo. Durante as fil-
a Warners estava me processando para me se- magens recebi trinta ou quarenta memorandos
gurar —, Winnie Sheehan, da Fox, escreveu uma da chefia dizendo que eu tinha tido uma oportu-
carta de recomendação à Warners, afirmando que nidade maravilhosa de fazer uma boa cena, mas
os meus serviços eram únicos e extraordinários não havia feito nada com ela. Acontece que era
e não podiam ser substituídos. Ele pensou que, só um modo diferente de fazer a coisa. Eu estava
ao escrever uma carta beneficiando a Warners, mostrando que eles estavam emocionalizando 5. Servile son of a
aquilo era uma oportunidade de ir à forra. Bem, o demais e que, pela contenção, nos afastávamos bitch alitera os "s"
meu advogado pegou a carta, entrou no escritório daquilo. Quando Irving Thalberg percebeu isso, iniciais.

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disse: “Ah, seu filho da mãe, você vai nos causar Com as mesmas tomadas?
um monte de problemas, porque outras pessoas
vão tentar fazer a mesma coisa e não vão saber Sim. Os atores eram outros. Errol Flynn, David
como”. Bem, custou um pouco para que eles per- Niven.
cebessem o fato, mas, naquela altura, é claro que
todo mundo estava assumindo uma atitude mais A mim parece que foi com o advento do som que
discreta na representação, até mesmo nas coisas você atingiu a maioridade como diretor. É como
de Ronald Colman. Aí apareceu [Elia] Kazan com se você estivesse esperando por isso, pois todos
Brando e Jimmy Dean e começou a incrementar de os temas que desenvolveu nos seus filmes pos-
novo a representação. Kazan fez um estrago teriores, e todas as qualidades que demonstrou
danado num filme em que todo mundo repre- como diretor, começaram realmente com The
sentou dessa forma. Esqueci-me de qual filme dawn patrol.
era — era um melodrama completo. O que se deve
fazer é caminhar com tranqüilidade, depois soltar Nos filmes mudos havia figuras às quais se davam
os fogos de artifício e em seguida cair outra vez. certos nomes— piloto de corrida, aviador, marinhei-
ro —, mas sem personalidade. Às vezes era possível
Imagino que o único ator que não funcionou bem extrair uma personagem a partir das coisas que
em The dawn patrol foi Neil Hamilton. fazia, mas, como ele não podia falar, a sua perso-
nalidade permanecia incompleta. Na maioria dos
É muito difícil para um ator de teatro veterano. É filmes mudos havia uma só dimensão.
provável que Neil estivesse um pouco “no palco”.
Richard Barthelmess funcionou tranquilamente Mas, certamente, fizeram-se grandes filmes mu-
todo o tempo. E Fairbanks era novo em folha. Foi dos: Griffith, Buster Keaton, Lubitsch, Stroheim.
o seu primeiro filme. Era possível controlá-lo.
Ah, claro. Falo por mim.
A ação era muito realista.
The dawn patrol começa com a morte de um avia-
Tudo era real — mesmo as aterrissagens forçadas. dor. Vários dos seus filmes de aventura começam
Em diversas cenas eu pilotei um avião com a desse jeito — por dramatizar imediatamente o
câmera por trás de mim. Aquelas cenas em que perigo daquilo que os homens fazem.
eu pilotava o avião com a câmera foram usadas
numa porção de filmes. Bem, sim, quando se está fazendo um filme so-
bre aviões, acontece alguma coisa com um avião.
A Warners não usou algumas das suas tomadas Se é uma história de guerra, alguém leva um tiro.
aéreas em The last flight [O último vôo] [1931; Red line 7000 [1965] começava com um terrível
William Dieterle]? acidente automobilístico. Com isso, faz-se o
público perceber que está lidando com a vida e a
Fizeram muito mais do que isso — eles pega- morte. É simples.
ram todas elas e fizeram outro Dawn Patrol oito
anos depois!

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Acho que a melhor cena de The dawn patrol é aque- Barthelmess fez a cena tão bem — tomando um
la em que os pilotos cantam juntos no bar. drinque, sem arrogância nem nada, só a canção.
Acho que ele manejou muito bem a coisa.
Depois da guerra, o meu irmão Ken e eu conhe-
cemos um sujeito pequenininho que enfrentava Como foi que a história surgiu?
uma roda de garçons; ele chamou um deles de
“filho da puta servil”, aliteração da qual gostei.5 Tirei a ideia de uma história — creio que de Irvin
Bem, um dos garçons o acertou, o meu irmão acer- Cobb — sobre uma noite de um esquadrão britânico
tou o garçom, e logo estava criada uma confusão, que estava sofrendo bastante com o inimigo. Deu-
e todos íamos para a cadeia. Então, eu disse ao -me a sensação completa da situação. A história
tira: “Você quer dizer que este sujeitinho aqui é um ciclo, pois o filme começa com um sujeito
acertou o seu olho?”. Ele nos deixou ir embora, mandando os pilotos para cumprirem missões
e fomos para o Clube Delta Kappa Epsilon, onde impossíveis e, no fim, outro sujeito fica com essa
estávamos hospedados — tiveram de carregar tarefa lamentável. O primeiro foi Neil Hamil-
o sujeitinho para dentro. ton. Depois, Barthelmess. E depois Fairbanks. Fiz
a mesma coisa em The road to glory [1936].
O meu irmão disse: “Aquele sujeito decerto
começou alguma coisa”. O camarada se ergueu Você fez isso diversas vezes.
na cama, nu, e perguntou numa voz tranqüila: “Eu
só comecei ou também terminei?”, o que nos Dramaticamente, é muito bom — um sujeito luta 6. Batalha da
Primeira Guerra
obrigou a nocauteá-lo de novo. Acontece que ele com alguém que tem um trabalho duro a fazer Mundial em que o
era o editor do jornal de Princeton, tinha servido e acaba por se encontrar na mesma posição. gás de mostarda
na Legião Estrangeira e havia estado em Verdun6; Isso sempre resulta numa grande história — não emitido pelos
ele ensinou ao meu irmão a seguinte canção: é possível errar. franco-britânicos
contra os alemães
foi soprado de
Sob o som das vigas, O filme também transmite o respeito que os volta pelo vento,
As paredes à nossa volta são nuas ingleses tinham pelos alemães e vice-versa. A afetando milhares
Nelas ecoam nosso riso sensação é a de que são todos profissionais e, de soldados
aliados.
E parece que os mortos ali estão. portanto, incapazes de se odiarem uns aos outros.
Por isso, fiquem junto dos seus copos É o trabalho deles. 7. Beneath the
sounding rafters,/
Este mundo é feito de mentiras... The walls all
Um brinde aos que já morreram Está certo. Era homem contra homem, mas eles around us are bare/
E urra para o próximo que vier a morrer.7 se respeitavam. They echo the peals
of laughter/ And
it seems the dead
Ele se lembrou, e eu também. Depois, fiquei Isso é resumido da melhor maneira na cena, no are there./ So stand
altamente surpreso ao verificar que havíamos fim do filme, em que o aviador alemão e Barthel- by your glasses
roubado um poema de Bartholomew Dowling. mess batem continência um para o outro. O filme steady/ This world
É um poema de Dowling adaptado a uma músi- é permeado por um sentido de cavalheirismo. is a world of lies...
/ Here's a health to
ca de Yale. Não sei por que fiz essa adaptação e the dead already,/
também não sei por que me lembro dos versos. And hurrah for the
next man who dies.

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Talvez eu seja melhor ator do que você. Você sabia Bem, o que Cobb escrevera era que eles tinham
que eu pilotei o avião e fiz o papel do oficial alemão? de enfrentar aviões muito melhores e não havia
muitas esperanças.
É mesmo? Nesse filme, bem como em vários ou-
tros, você não mostra as personagens no mundo Quem é John Monk Saunders? O crédito da his-
exterior — você as mantém encerradas numa área tória é dele.
e no seu trabalho.
Ele tinha escrito um filme de muito sucesso, cha-
Sim. Enfrentei um problema com isso em Hata- mado Wings [Asas] [1927; William Wellman], e achei
ri! [Hatari!] [1962]. Só as retirei do ambiente de que uma história escrita por mim não seria muito
trabalho uma vez. Procurei mantê-las nos seus vendável; por isso, paguei-lhe 10 mil dólares para
lugares, mas naquele filme isso não funcionou. que ele a assinasse. E funcionou. David Selznick
procurou John Monk Saunders para tentar com-
Por que você faz isso? prar a história. Ele queria dar o filme para Billy
Wellman, e não para mim, e, ao verificar que não
Há pessoas cujas atividades o público está acom- podia fazer isso, procurou-me para ver se eu o
panhando. Por que colocá-las em algum outro faria; disse-lhe que ele não era uma pessoa com
lugar? Não acredito nisso. Não quando se dispõe quem eu desejaria trabalhar, pois tinha tenta-
de uma boa história. É melhor ficar onde se está. do me passar a perna. Perguntei-lhe: “Você não
Por outro lado, se a história não é boa, então é sabe que quem escreveu a história fui eu?”. Ele
melhor procurar um lugar para onde ir. O que foi disse: “Não”. “Bem”, respondi, “prefiro não fazer
que você fez com The last picture show [A última o filme a fazê-lo com você.” Por isso, fiz com
sessão de cinema] [1971]? Barthelmess, na Warners.

Jamais deixei a cidade. É engraçado — quase fiz o filme com Jack Gilbert.
Gilbert nunca havia trabalhado num filme sono-
Você não foi para a guerra ou para o México — não ro, mas era o maior astro de filmes mudos que
foi para lugar algum. já tinha existido; Louis B. Mayer me pediu para
trazer Gilbert e conversar com ele. Gilbert disse
Bem, havia pessoas que estávamos observando a Mayer que ele faria o filme sem receber ne-
— por que levá-las para algum lugar estranho? nhum salário; isso era tudo o que Mayer desejava,
porque disse a Gilbert que não o deixaria fazer o
Parece uma boa ideia. filme mesmo que ele pagasse por isso. O que ele
queria era humilhar Gilbert. Peguei Mayer pela
The dawn patrol tem um forte senso de fatalismo. lapela, bati com a sua cabeça na parede e lhe disse:
Um sujeito diz: “Nada termina, Courtney, as coi- “Nunca mais me envolva nos seus esqueminhas
sas vão acontecendo”. Há uma sensação de que nojentos”. Durante certo tempo, a minha situação
a guerra nunca terminará. junto a Mayer não ficou muito boa...

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Consta que Howard Hughes discutiu feio com você No início da guerra, ele e o seu companheiro de
durante a filmagem. quarto, o meu companheiro de quarto e dois dos
nossos melhores amigos se alistaram no Corpo
Hughes tinha alugado todos os aviões disponíveis Aéreo juntamente comigo. Dois deles morreram no
para fazer Hell’s angels [Anjos do inferno] [1930], campo de treinamento em Issoudon, na França, e
mas havia muito tempo que eu voava com aqueles dois colidiram um contra o outro quando tentavam
sujeitos. Eles pegaram o dinheiro de Hughes mas derrubar um balão, na Itália. Anos depois, o meu
vieram voar para mim! irmão morreu no mesmo tipo de acidente. De modo
que só sobrei eu. Não sei, sempre pensei que isso
O que ele fez? tinha resultado da sorte. Nunca me afetou como
piloto.
Bem, ele me processou, só para atrasar o meu
filme. Mas não funcionou. Um dia saí para jogar Ken morreu numa tomada aérea, não foi?
golfe e um sujeito me chamou e disse: “O sr. Hu-
ghes gostaria de jogar golfe com o senhor”. Fui Sim. Ele estava dirigindo o seu segundo filme.
ao telefone e disse: “Não vou jogar golfe com você.
Você está me processando”. Ele respondeu: “Vou Com foi que ele entrou para o cinema?
desistir da ação”. E eu disse: “Bem, conheço o
seu advogado, e quando ele telefonar para cá e Bem, eu havia estreado bem, e ele também se in-
disser que retirou a ação, então jogarei golfe com teressava por cinema. Ken trabalhou na Fox como
você”. Ele o mandou fazer isso e, quando apareceu, assistente de um bom diretor — não me recordo o
perguntei: “Como é que você está jogando?”. ‘Ah, nome dele —, e eles decidiram lhe dar uma opor-
praticamente nada. E você?” Respondi: “Também tunidade. Ele tinha mostrado ter boas ideias. O
não ando jogando muito”. Completei em 71 tacadas, primeiro filme que fez era muito bom [Masked emo-
e ele, em 72, mas eu tinha lhe dado uma tacada. tions, 1929]. O segundo, Big time [1929], era sobre um
Dividimos meio a meio, e decidimos nos associar casal do vaudeville, uma história muito sentimental.
para fazer Scarface [1932]. Foi estranho, no dia em que morreu, ele havia me
pedido para aparecer num campo de aviação onde
Parece uma cena típica de Hawks — dois sujeitos estavam fazendo tomadas de saltos de paraquedas
antipatizam um com o outro, entram em compe- e me contou o que iriam fazer. Eu lhe disse: “Preste
tição e acabam amigos. bastante atenção. Há o perigo de vocês se choca-
rem no ar e, além disso, há um sujeito voando com
Claro — isso acontece o tempo todo. vocês que não me parece muito bom. Certa vez, eu
estava voando com ele durante uma tempestade,
Os seus filmes sempre têm uma atitude fatalista e ele desistiu, amedrontou-se. Na verdade, ele não
perante a morte, mas The dawn patrol parece par- deveria nunca se meter em situações difíceis, pois
ticularmente depressivo. Muitas vezes imaginei não consegue manter a cabeça no lugar”. Nisto, o
se isso não teria sido influenciado pela morte do diretor-assistente o chamou, e Ken me disse: “OK,
seu irmão Ken, ocorrida no ano anterior. venha para cá”. Mas eu respondi: “Não vou. Já vi
saltos de paraquedas demais, vou voltar para casa

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e trabalhar um pouco”. Quando cheguei em casa, para o pátio”. Ele sai para o pátio, e a cena que
disseram-me que tinha havido um acidente. Per- incluímos no filme foi exatamente o que aconte-
guntei: “Eles se chocaram no ar?”. E eles respon- ceu, exceto pelo fato de Huston ser guarda, e não
deram que sim. Aconteceu sobre o mar. prisioneiro. Ele andou no meio dos presidiários,
desafiando-os a fazer alguma coisa.
Como foi fazer The criminal code [1931]?
Em todo o filme, empreguei ex-presidiários como
Encontrei Harry Cohn num trem quando estáva- extras para dar autenticidade; eles participaram
mos indo assistir a um jogo de futebol americano muito na composição de várias cenas. A peça tinha
em San Francisco. Ele perguntou: “Por que você fracassado na Broadway. Os dois primeiros atos
não faz um filme para mim? A qualquer momento eram muito bons, mas o terceiro era ruim. En-
que você aparecer dizendo que quer fazer algu- tão, chamei dez ex-presidiários e lhes perguntei:
ma coisa, pode considerar que já estará fazendo”. “Como isto deveria terminar?”. E eles me disseram
Acontece que, oito meses ou um ano antes, Vic sem deixar margem a dúvidas.
Fleming tinha assinado com a Columbia. Ele me
disse: “Preste atenção, o dinheiro lá é fácil. Harry Geralmente se pensa que “olho por olho “ é a
Cohn não consegue contratar atores, por isso base do código do crime, mas tenho a impressão
quer diretores. Acabei de fazer um trato com ele de que você não concorda com isso.
para fazer um filme, e ele está me pagando 100
mil dólares. Eu lhe disse para procurá-lo”. Pois Não procurei seguir isso até o fim. Estava interes-
bem, na época Vic estava ganhando cerca de 20 sado no sujeito que envia pessoas para a prisão e
mil dólares, e eu, 35 mil. Assim, quando Cohn se vê forçado a conviver com elas. Adorei a cena
me procurou, fui até lá, e ele perguntou: “Por em que Walter está sentado na cadeira de bar-
que você não aparece de vez em quando para beiro e fica encarando o sujeito que o barbeia.
me ver?”. “Não sei”, respondi. “Bem”, disse ele, “Eu não conheço você?” E o sujeito responde:
“tenho aqui uma peça e não sei muito bem o que “Conhece”. “Fui eu quem lhe enviou para cá, não
fazer com ela. Talvez você saiba.” E ele me deu foi?” “Foi.” E Walter diz: “Não me lembro por quê”.
The criminal code. E, ao levantar o queixo de Walter, ele diz: “Por ter
cortado a garganta de um cara”. Gostei daquilo.
Vic Fleming estivera trabalhando com Walter Permiti que a cena se estendesse por cem pés
Huston, eu o conhecia, e imaginei que ficaria — só em cima dos olhos de Walter. Foi a primeira
ótimo no papel. Ele foi um dos melhores atores vez que descobri que quase toda tragédia pode
que já tivemos. A personagem que ele fazia se também divertir.
baseava num promotor da Califórnia que tinha
recebido uma sentença de prisão, e eles tinham Como foi que se desenvolveu a cena em que Phillip
de mantê-lo no hospital do presídio para protegê- Holmes sabe da morte da mãe? Aquilo estava
-lo, porque o lugar estava repleto de gente que originalmente no roteiro?
ele havia condenado — e, tenho certeza, muitas
dessas condenações tinham sido armadas. Um Acho que não. É que quando uma cena se mos-
dia, ele disse: “Não agüento mais isto. Quero sair tra sentimental demais, eu tento evitar que per-

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maneça desse jeito. Em Only angels have wings fiz atraente. Boris Karloff tinha acabado de fazer The
um sujeito conversar com um amigo que havia criminal code. Ele disse: “Não me importa que seja
participado de um acidente de avião. Ele lhe diz: pequeno — quero um papel no filme”. Ele julgou
“Você quebrou o pescoço, rapaz”. Só uma de- que seria bom para ele. Vince Barnett estivera
claração; só tento evitar que as coisas fiquem trabalhando como garçom — insultava pessoas
melodramáticas. Vou contra isso, completamente. no Coconut Grove. Assim, reunimos alguns atores,
dirigimo-nos a um estúdio pequeno e empoeirado e
De onde surgiu a história de Scarface? o abrimos. Éramos uma entidade em nós mesmos,
e fizemos um filme. A coisa toda foi um desafio, e
Hughes tinha uma história sobre dois irmãos. foi tudo muito divertido. O filme resultou muito
Um era policial, e o outro, gângster. A mesma bom e se tornou uma espécie de lenda.
história que já ouvimos centenas de vezes. Ele
queria que eu a fizesse. Tive uma ideia e disse a A primeira tomada do filme é excepcional — deve
Ben Hecht: “Você faria um filme?”. Ben reagiu: “O ter sido necessário um arranjo muito elaborado
quê?”. E eu disse: “Um filme de gângsteres”. Ele para consegui-la.
respondeu: “Você não vai querer fazer isso”. E eu
disse: “Ora, Ben, este caso é um pouco diferente. É Não, porque eu contava com um cameraman muito
a família Borgia na Chicago atual, e Tony Camonte bom — Lee Garmes. Ele usava metade da luz
é César Borgia”. E ele respondeu: “Começamos de um cameraman comum. Havia mais luz nas
amanhã de manhã". Gastamos onze dias para casas do que no nosso set. Também tínhamos
escrever a história e os diálogos. Aí mostramos acabado de arranjar filme mais sensível. Hughes
para Hughes; ele deu um sorrisinho e disse: via as tomadas, telefonava e dizia: “É um material
“Esta é uma história e tanto. Cadê o irmão?”. excelente. Vá em frente”. Você se lembra que há
“Bem, Howard”, respondi, “você pode usar aquela cerca de cinco desastres no filme? Bem, eu tinha
história de novo.” E ele perguntou: “E quanto ao feito um desastre para a sequência do reinado do
elenco?”. “Não sei, não temos acesso a ninguém. terror. “Oh, Deus”, disse ele, “esse foi um desastre
Todos os bons atores e atrizes estão sob contrato, magnífico. Quando você vai fazer mais?” “Bem”,
e os estúdios não vão emprestá-los. Acho melhor respondi, “ainda não pensei nisso. Você acha que
ir até Nova York.” Ele respondeu: “OK. Mantenha- seria uma boa ideia?” E ele: “Acho”. Lembro-me de
-me informado”. que quando Lewis Milestone viu o filme, disse:
“Você vai mesmo incluir tudo isso?”. Respondi:
Assim, fui a Nova York e encontrei Paul Muni no “Estou pensando”. “Oh, Deus”, ele disse, “mas é
teatro judaico no centro da cidade, perto da rua excessivo.” Que diabo, acho que aquilo é uma das
29. Vi Osgood Perkins numa peça, protagonizando coisas boas que o filme tem.
uma história de amor. Vi George Raft numa luta de
boxe. Ann Dvorak era corista na Metro-Goldwyn, Bem, o filme é sobre a violência.
ganhando quarenta dólares por semana; livrei-a
do seu contrato porque um vice-presidente da E era muito mais violento do que qualquer filme
Metro-Goldwyn gostava de mim. Karen Morley saía que já tinha sido feito até aquela altura.
com um sujeito que eu conhecia, e eu a achava

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E também permanecia afastado do tipo de mo- decidimos não fazer nenhum corte”. O filme foi I
ralismo de Public enemy [Inimigo público] [1931; was a male war bride [1949]. Tudo depende do tipo
William Wellman] ou Little Caesar [Alma no lodo] de comitê que você encontra e de qual é o clima
[1930; Mervyn LeRoy]. dominante. Às vezes era a Legião da Decência
Católica que controlava as coisas, outras vezes,
Exceto quanto àquela sequência que foi intro- a organização Hays. É impossível saber quem
duzida em benefício dos sensores, em que os será o juiz. Um filme pode ser o anátema para
prefeitos das cidades discutem... uma pessoa e a delícia para outra.

Aquilo parece que foi filmado por outra pessoa. Não foram eles também que o obrigaram a incluir
aquele subtítulo, “Vergonha de uma nação”?
E foi. Foi feito para aplacar os censores. Quando
Hughes me consultou sobre aquilo, respondi: “Não Ah, claro. A guerra por causa disso durou mais
pode prejudicar o filme. Todo mundo vai perceber de um ano.
que não faz parte do filme”. Quem escreveu fo-
ram os censores; alguém filmou. Eu não estava O tema do incesto era bastante ousado, e você foi
lá quando foi feito. Não queria ter nenhuma muito claro quanto a isso.
relação com aquilo. Houve algumas coisas que
tiveram de ser feitas por causa dos censores. Fomos muito influenciados pela história incestu-
Realizamos um final muito diferente na mor- osa dos Borgia, mas os censores não entenderam
te de Muni. Em alguns estados, ele teve de ser as nossas intenções e objetaram, porque sentiram
enforcado. E como já não podíamos contar com que o relacionamento entre irmão e irmã era
Muni, tivemos de fazer a cena só com pés, alça- belo demais para que pudesse ser atribuído a
pão, corda, carrasco e música. Eles não gostaram um gângster. Mas houve uma coisa engraçada
do outro final. quando fiz aquela cena importante entre eles: eu
a ensaiei várias vezes. Eu estava balançando a
Você está se referindo ao final em que atiram em Muni, cabeça, e Lee Garmes me perguntou: “O que há?”.
ele cai na sarjeta e aparece escrito com lâmpadas E eu respondi: “Lee, há algo de errado aqui. Não
de néon “O mundo é seu"? deveria ser possível ver os seus rostos quando se
ouvem falas como essas”. Ele disse: “Você pode
Eles disseram que era heróico demais. Eles que- aguardar dez minutos?”. Ele mandou buscar umas
riam que Muni fosse castigado pela lei. cortinas com padronagem muito pronunciada, de
forma que a luz mal conseguia passar. Apagou
Mas é a polícia que o mata. todas as luzes frontais e filmou só com a luz
de fundo. Fez uma cena realmente muito boa
Eles queriam que ele encontrasse o seu fim pela a partir daquilo. Por isso, sempre que você se
lei. Em outro filme que fiz, eles primeiro disse- encontrar encalacrado numa cena em que acha
ram que exigiriam uma porção de cortes, mas que as pessoas não devem ser vistas, filme de
no dia seguinte se reuniram, chamaram-me e uma forma que dificulte a visão. Isso é capaz de
disseram: “Bem, gostamos tanto do filme que curar uma porção de males.

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No final, a irmã diz: “Por que você não atira em se: “OK. Eu faço”. E realmente representou bem
mim?”. E ele responde algo como: “Você é eu — eu como o diabo.
sou você — sempre foi assim”. Tem-se a impres-
são de que, mesmo sabendo que não sairia vivo Como se originou o gesto de Raft, de ficar lançando
daquele quarto, ele se sentia bem por saber que uma moedinha no ar?
ela estava junto dele.
Em Chicago tinham ocorrido dois ou três assas-
Sim, ele se sentia forte com ela, devido ao relacio- sinatos, e junto à primeira vítima foi encontrado
namento entre os dois. Toda vez que havia uma um níquel. Era um sinal de desprezo. Quando
cena entre aqueles dois, começávamos a analisar escalamos Raft para o filme, pareceu uma boa
o seu relacionamento e concluíamos com algu- coisa usar uma moeda como marca daquele
ma especulação a respeito do que seria, e não homem. Era o seu primeiro filme, e a moeda aju-
apenas sobre qual seria o efeito na cena. Uma dava a preencher espaços. Aquilo se tornou a sua
dessas especulações era a força que ele retirava marca registrada. Ele se habituou tanto àquilo
dela, como disse no filme, e a sua solidão após ela que conseguia atirar a moeda sem olhar, o que
ter morrido nos seus braços. Era normal — ou, ao lhe deu algo — um sujeito fazendo aquilo e só
menos, era normal para mim e para Ben. dizendo as suas falas. Anos depois, em Rio Lobo,
havia no elenco um sujeito muito agradável, mas
Vocês não tentaram condenar as personagens ou que era um ator muito ruim, e eu não queria lhe
fazer moralismo a respeito de se eram boas ou más. dizer: “Você é um péssimo ator”. Por isso, fiz com
O final, na verdade, é tocante. que ele ficasse caçando uma garrafa de uísque
ao longo de toda a cena em que ele aparece. Ele
Quando ia fazer a cena final, Muni, que era es- só tinha de dar as deixas para John Wayne — e
perto, sabia que havia tido um belo desempenho e fez isso direito.
que tinha a chance de se tornar um grande nome
por causa do filme. Quando chegou o momento Aqueles gângsteres sentados durante aquela
de ele cair morto na rua com a cabeça enfiada conferência pareciam realmente gângsteres, e
no que o cavalo tinha deixado ali, Muni quis fazer não extras.
a cena de modo muito dramático. Desceu as es-
cadas, parecia amedrontado — como se um ator Eram os sujeitos da contra-regra, do guarda-
estivesse representando alguém amedrontado -roupa, os motoristas — pessoas da equipe—,
—, não estava representando honestamente. todo mundo desempenhou algum papel.
Conversei com ele sobre isso, e ele fez a cena do
mesmo jeito. Então, saí e fui jogar uma partida de E você?
pôquer; ele foi ficando cada vez mais inquieto. Por
fim, aproximou-se e perguntou: “Quando é que Eu fui o cara deitado na cama só de cueca e cami-
vamos rodar a cena?”. E eu respondi: “Quando seta, com os braços e pernas abertos em forma de
você decidir fazê-la do jeito que deve ser feita”. cruz, numa daquelas fusões “o X marca o lugar”.
Cerca de cinco minutos depois ele voltou e dis-

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Por que você usou tantos “X” ao longo de todo o o deixamos ali no chão. Ele só apareceu quando
filme? Eles aparecem em todo lugar. já estávamos no meio da refeição.

Naquela época, os jornais publicavam fotos de Quando Muni maneja uma metralhadora pela
cenas de assassinato e sempre escreviam na le- primeira vez, há um forte senso de realização; e
genda: “o X marca o lugar em que o corpo foi quando atira com ela pela primeira vez, diz: "Saia
encontrado”. Por isso usamos “X” em todo o filme. da frente, Johnny, vou cuspir”.
Eu pagava um bônus para qualquer pessoa ligada
ao filme que aparecesse com uma ideia nova sobre É, essa é uma das melhores falas do filme.
onde colocar um “X”.
Foi Hecht quem a escreveu?
Como surgiu a ideia de fazer Muni assobiar sempre
que estava prestes a matar alguém? Claro. Hecht era infernalmente bom. Nós conver-
samos sobre isso — sobre como fazer com que
Combinava com as características da perso- as personagens não parecessem estereotipadas
nagem. Disseram-me que Colisimo, o gângster, —, e eu lhe disse: “Sabe, Ben, precisamos fazer
tinha uma grande coleção de discos de Caruso, e com que Camonte não se transforme num as-
por isso decidimos usar um trecho de [I] Pagliacci sassino”. Ele respondeu: “E se o fizermos usar
no início — também porque é muito fácil de asso- uma metralhadora pela primeira vez?”. Eu disse:
biar. Aquilo se transformou em algo que Muni fazia. “Ah. Sim, se for como um garoto com um brinque-
do novo, podemos conseguir uma cena realmente
As cenas de comédia com Vince Barnett e o tele- boa”. E ele a escreveu muito bem.
fone são particularmente eficazes, porque você
o faz morrer ao telefone. Em Ceiling zero há tam- De novo, no princípio a mulher é muito dura e o
bém uma personagem engraçada que tem um antagoniza.
fim triste. O público fica tocado com algo de que
tinha rido antes. Bem, detesto essas coisas em que um olha para
o outro e os dois desmaiam.
Parece-me que aquilo já tinha sido feito antes —
a base para as maiores tragédias é a comédia. Gostei da maneira como você fez ambos, Muni
Certa vez, divertimo-nos muito ao fazer a cena e Perkins, oferecerem fósforos à namorada de
da morte de Barnett, um pouco para brincar com Perkins; ela usa o fósforo de Muni, e assim ficamos
ele. Virei-me para alguém e disse: “Puxa, foi bom, sabendo que ela o prefere. Isso foi algo inventado
hem!?”. E ele começou a se levantar do chão. Eu no set ou estava no roteiro?
disse: “O que você está fazendo? Fique deitado aí,
você está morto. Não faça isso. Raios, vamos ter de Ah, não, isso é pensado na hora. É exatamente
fazer tudo de novo”. Bem, nós já tínhamos feito uma como Bacall parar na porta e perguntar: “Alguém
boa tomada. “E desta vez não se mova.” Fiz outro tem um fósforo?”. Bogart pega uma caixa de
take completo e disse à equipe: “Vão almoçar”, e fósforos, olha para a moça e, em vez de levá-la até

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ela, atira a caixa na sua direção. Toda a sua atitude no rosto e me diz: “Mas por que você faria isso?”,
em relação a ela é mostrada naquele instante. penso: Oh, Santo Deus, vou ficar longe desse
cara. Bem, o filme foi todo construído sobre esse
A garota de Perkins se sente claramente atraída princípio. Mesmo em meio às coisas mais duras
pelo animalismo de Muni. havia uma espécie de abordagem semicômica.

Bem, aquilo saiu da personagem. Muni não acha- Como foi a história de The crowd roars [Delirante]
va que pudesse fazer aquele tipo de papel, mas [1932]?
era tão bom como ator que conseguia represen-
tar qualquer coisa. Ele vestia casaco e chapéu Originalmente, The crowd roars era uma história
especiais e caminhava sobre uma passarela alta sobre circo que a Warners possuía chamada The
assim. Todas as suas cenas eram contracenadas barker [Sangue de boêmio] [1928; George Fitzmau-
com homens baixos — George Raft e Perkins —, rice], eu apenas mudei a ambientação para as
eu nunca o coloquei perto de um homem grande. corridas. Jack Warner a leu e disse: “Esta é uma
Tinha de fazer com que ele parecesse alto e forte. boa história”. E eu lhe disse: “Tem de ser — per-
tence a você”. ‘Ah, eu sabia: havia algo de familiar
Embora tenha sido realizado ao final de um ciclo na história — você a roubou, não é?” E eu disse:
popular de filmes de gângsteres, Scarface é, de “Claro”. Walter Huston fazia o papel do mestre
longe, o melhor deles — é como se você tivesse de cerimônias de um circo que vivia com uma
assistido a todos e resolvido fazer aquilo melhor. garota; o seu filho vai visitá-lo; ele não quer que
o rapaz saiba da garota, então, ela convence uma
Acho que os caras geralmente tentavam parecer amiga a seduzir o rapaz. Na verdade, a história é
tão durões nos filmes de gângsteres que sempre a mesma — só os transformei em irmãos.
faziam tudo com mão pesada. Nós trabalhamos
de forma diferente. O nosso filme foi realizado de Cagney me disse que na Warners havia pouca liber-
um jeito um tanto brincalhão. A animosidade ficou dade, que todo mundo era sujeito a uma supervisão
reservada para as cenas pessoais. O resto era feito muito intensa, mas que você não tinha problemas.
sem exibições de sentimentos. Eu objetava quanto Ele disse que ninguém parecia interferir nos seus
ao modo como era feito em tantos filmes — aquela filmes, que até mesmo os seus cronogramas eram
ênfase exagerada na tentativa de parecer durão. mais dilatados. Isso é verdade?
Frederic Remington fez um esquete maravilhoso
de um sujeito pequeno com bigode comprido, Sim. Eu disse a Warner que só trabalharia dessa
chapelão alto e um par de revólveres enormes. forma, e ele respondeu “OK”. Era engraçado — fi-
Ele ficava encostado num poste, mascando um zemos uma pequena exibição do que já tínhamos
canudo e olhando para alguém com uma espécie filmado de The dawn patrol. Ele havia designado um
de meio sorriso no rosto. O sujeito de aspecto mais produtor para o filme, e um dia me chamou. “O sr.
perigoso que já se viu. Se entro numa discussão North diz que você está mudando os diálogos.”
com alguém barulhento e durão, penso: Pego “Bem, é claro que estou”, respondi. “O caso é
esse sujeito antes que ele entenda o que está que isso o preocupa.” “Não vejo por que deveria
acontecendo. Mas se um sujeito tem um sorrisinho preocupá-lo. Ele não sabe que quem escreveu o

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roteiro fui eu?” "Ah, Santo Cristo”, disse Jack, “é na minha frente gritou: “Pensei que você não fosse
claro que foi você quem o escreveu.” Ele então parar nunca. Você estava bem atrás de mim, e eu
disse a North: “É claro que ele pode mudar o que não conseguia parar”. Nós tínhamos saído da pista
ele mesmo escreveu, não é?”. E essa foi a última e entrado num milharal. Ele havia atravessado a
vez que tive um problema com Warner. cerca, e eu o tinha seguido. Eu pretendia fazer essa
cena em The crowd roars não fazendo.
No final de The crowd roars, os dois irmãos estão
numa ambulância e começam a apostar corrida A sua intenção era dizer alguma coisa sobre o
com outra ambulância — eles nunca desistem. público que vai às corridas para ver o espetáculo
e a carnificina provável?
É o jeito de ser daqueles caras — eles são doidos.
Dirigi carros de corrida por cerca de cinco anos É exatamente por isso que o público vai às corri-
— comecei quando tinha uns dezesseis e ganhei das: porque é perigoso; não havendo o perigo, o
a vida com aquilo. Então, passei a trabalhar em público vai embora. Isso também valia para os
conjunto com um sujeito mais velho que possuía circos aéreos que existiam antigamente: sempre
um carro mas não era um piloto tão rápido quanto havia duas ou três mortes, e o público comparecia
eu. Ele me perguntou: “Por que você participa para testemunhá-las.
disto?”. Respondi: “Gosto de vencer corridas”. “E
você não está tão interessado no dinheiro?” “Não, O enredo básico de Tiger shark [1932] não foi em-
só o suficiente para manter as coisas andando.” prestado da peça de Sidney Howard, They knew
“Se eu o ajudar, você divide o dinheiro comigo?” what they wanted [Não cobiçarás a mulher alheia],
Respondi: “Claro”. Então ele propôs: “Bem, você filmado em 1940 por Garson Canin?
parte na frente, e eu garanto que consiga uma boa
vantagem; durante algum tempo não deixarei Ah, sim, claro. Warner queria que eu trabalhasse
ninguém chegar perto de você”. Fizemos isso e em algum filme que eu não queria. Disse-lhe que
funcionou bastante bem. Participamos de uma estava viajando para o Havaí para pescar, e ele
corrida em que a pista estava muito empoeirada, respondeu: “OK, faça um filme sobre a pesca
e ele perguntou: “Você já correu na poeira?”. — pagarei todas as suas despesas”. “Bem”, eu
Respondi que não, e ele continuou: “Olhe, veja disse, “então é melhor você mandar também
aquele sujeito ali; ele está muito próximo de você, um redator.” Ele respondeu: “OK, quem?”. Disse-
e corre muito bem na poeira. Fique bem atrás dele. -lhe o nome de quem eu queria e adicionei: “Não
Siga-o aonde ele for. Não se preocupe, apenas o quero que ele vá imediatamente — quero antes
siga. Conte as voltas —preste atenção na arqui- me divertir um pouco — mas estarei pensando
bancada ou algo assim ao passar por ela, e conte na história”. Assim, quando ele chegou, eu já
as voltas — ultrapasse-o na última volta e vença tinha decidido roubar a ideia de They knew what
a corrida”. Eu disse: “OK”. Fiz isso durante 45 they wanted.
minutos da corrida, quando de repente o car-
ro começou a sacolejar e coisas começaram É claro que, depois de Tiger shark, a Warners fez
a passar pela janela. Achei melhor diminuir a diversos filmes com o mesmo enredo, em am-
velocidade; quando fiz isso, o sujeito que estava bientações diferentes: Manpower [Aquela mulher]

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[1941; Raoul Walsh] era sobre homens que tra- ver se você é mesmo bom”. No dia seguinte, ele
balhavam nas linhas de alta-tensão; The wagons apareceu vestindo o gancho. Era um homem e
roll at night [Tragédia no circo] [1941; Ray Enright] tanto. Quando lhe disse: “Coloque um brinco na
tinha por ambiente um circo... orelha”, ele o fez — fez tudo o que eu quis.

Eles contavam com um sujeito muito bonzinho Aquela personagem foi se desenvolvendo cada
chamado Byrnie Foy, que fazia todos esses fil- vez mais à medida que trabalhávamos. Quando
mes baratos. Uma vez, ele me disse: “Howard, não começamos o filme, era uma pessoa sombria,
sei o que faria se você parasse de fazer filmes”. imaginando que haveria mais drama e chances
Perguntei por quê. “Bem, toda vez que ouço falar de violência quando ele descobrisse a infidelidade
que você está fazendo um filme sobre alguma da sua mulher. No primeiro dia, filmamos até as
coisa, dou início a outro filme.” Aí, perguntei: “E três horas da tarde. Parei tudo e disse a Robinson:
que diabo você fez com Tiger shark?” ‘Ah”, ele “Eddie, este vai ser o filme mais chato do mundo,
respondeu, “aquilo foi fatal. Fiz um filme sobre a não há nada para aliviá-lo, tudo o que temos é um
pesca de camarões.” sujeito sombrio e desagradável”. “Bem”, disse
ele, “qual é a solução?” Então lhe contei sobre
Na verdade, em Tiger shark a única semelhança um sujeito que eu conhecia, que falava muito e
com They knew what they wanted é o problema muito depressa, e com isso escondia bastante da
básico; no filme, a maioria das coisas corresponde sua timidez e humildade. Expliquei-lhe bastante
a desvios em relação à peça. bem a personagem e lhe disse: “Se você quiser
tentar, dou-lhe um início de diálogo; mas não sei
Ah, sim. É preciso ir em frente e construir os se conseguirei acompanhá-lo – você vai ter de
seus próprios relacionamentos e as suas próprias improvisar”. Ele respondeu: “Ah, acho que vai fi-
personagens. Não se toma uma cena e simples- car tudo bem. Vamos tentar”. Na manhã seguinte
mente se parafraseiam os diálogos. Duvido que se começamos daquele jeito e assim prosseguimos
possa encontrar uma só cena em They knew what até o fim do filme. E transformamos um homem
they wanted que seja parecida com uma cena de lento, silencioso e limitado numa personagem
Tiger shark. Só serve como base. Quando se começa muito volátil, que era capaz de ser muito dura e
a fazer um filme sobre um pescador, pensa-se: com quem era possível se condoer.
“Que raios posso fazer com ele?”. Atribuir-lhe um
gancho em lugar da mão ajudou bastante a perso- A personagem de Robinson tinha diversas seme-
nagem. Ele ficou ainda mais afastado da moça, fez lhanças com Muni em Scarface. Era mais humano,
com que se tornasse mais perigoso, de forma in- mas possuía algumas características em comum:
teressante. Lembro-me de que, quando conversei o primitivismo, o fato de não entender direito os
com Robinson sobre o gancho, ele disse: “Howard, insultos.
um bom ator não precisa de um gancho”. Eu res-
pondi: “OK”. Ele disse: “Bem, vamos conversar...”. Ah, é claro, estávamos fazendo a mesma coisa
E respondi: “Não fale mais comigo. Vá e faça o seu — tentávamos despertar simpatia para com Muni.
trabalho — seja bom ator. Neste instante, perdi o Sempre prefiro fazer com que o público goste das
interesse em você. Não use o gancho. Vá, e vamos

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minhas personagens. Não quero torná-las desa- teriam sido necessárias muitas explicações se a
gradáveis, a menos que se ganhe algo com isso. moça tivesse escolhido Gable.

Em Scarface, isso é particularmente interessante Em Tiger shark, assim como mais tarde em The
porque a personagem é, essencialmente, um ho- road to glory [1936], você não condena as mulheres
mem primitivo. Quando você lhe dá características pela sua infidelidade.
atraentes, o público desenvolve simpatia por ela,
quase a despeito de si próprio. Creio que, em ambas as histórias, as mulheres
não tinham amado os homens. A mulher de Tiger
Gosta-se dele, e ele se transforma num assassino shark tinha se casado com Robinson porque estava
de verdade — na cena com a metralhadora e nas cheia de problemas e porque ele a desejava mesmo
coisas que se seguem a isso. É claro que ele acaba nos termos dela — o que a unia a ele era ternura,
como vilão, mas nessa altura ele já conta com a e não amor. Esse é um expediente dramático que
simpatia das pessoas. Por outro lado, num filme induz uma mulher a se casar com alguém. É sem-
chamado Land of the pharaohs [Terra dos faraós] pre interessante se ela se apaixona depois, mas
[1955], por exemplo, nenhuma das personagens não era a minha intenção que ela viesse a amá-lo.
tinha nada que trabalhasse a nosso favor. Era tudo
errado. Foi a única vez que fiz isso. Jack Hawkins Como foi que se desenvolveu aquela cena em que
fazia o homem mais egoísta do mundo. Pessoas Robinson coça as costas de Richard Arlen? Você
trabalhavam sem parar para preparar a vida dele termina o filme desse jeito: ele pára de coçar e
após a morte; a mulher que amava o enganava morre.
com o auxiliar no qual ele confiava. Nesse filme as
personagens eram realmente muito ruins. A culpa Se eu batesse em alguém e Vic Fleming estivesse
foi minha. Teria sido muito fácil consertar isso. por perto, eu esfregava os dedos, ele se aproxi-
mava e colocava as juntas no lugar. Usei isso em
Em Tiger shark, bem como em diversos dos seus A girl in every port
filmes, você faz com que dois homens concorram
pela mesma mulher; um deles é mais boa-pinta, Como foi que você realizou as sequências de pesca?
ou mais jovem, e é sempre esse que acaba por
vencer. Na sua opinião, essa é a ordem natural Elas são todas reais — viajamos 4 mil quilôme-
das coisas? tros de barco para consegui-las. A tripulação foi
escolhida a dedo: o capitão era o presidente da
Diria que sim— a menos que haja algum outro tipo Associação de Pescadores de Atum da Califórnia.
de desvantagem. Quando escrevi a história de Test Ele tinha feito parte do meu esquadrão durante a
pilot [Piloto de provas] [1938; Victor Fleming] para guerra e possuía um belíssimo barco de pesca de
Gable e Tracy, não creio que o público aceitasse atum que levava um avião, com isso, era possível
muito bem o fato de que Tracy fica com a moça e sair e procurar os cardumes. Ele também tinha um
Gable morre. Não funciona desse modo. Os dois sino de mergulho, que lhe permitia fotografar
eram astros muito conhecidos e populares, mas debaixo da água. A sua tripulação tinha cerca
de quinze pessoas. Todos tinham camarotes que

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davam para fora e a melhor comida do mundo. Os Arlen e a mulher estão fazendo uma cena de amor,
homens trabalharam em troca de participação e se ouve Robinson, que está lá fora atirando nos
nos lucros. Eles se divertiram fazendo o filme, e tubarões. Aí, depois de algum tempo, percebe-se
acho que a película reflete isso. Tínhamos outro que os tiros pararam; quando eles dirigem o olhar
barco, que foi usado pelo meu assistente, Dick para o lado, sabe-se a que estão reagindo. Mas você
Rosson. Ele foi até a ilha de Sacora e voltou com não mostra Robinson — vemos apenas as reações
dois tubarões; foi lá que eles fizeram todas as dos dois.
cenas de pesca de atum — não se pescava atum
por aqui —, conseguiram um material magnífico. Estávamos numa situação na qual podíamos fazer
isso. Um barco, duas pessoas juntas e outro
Há uma sequência curiosa, em que todos eles espan- homem por perto — sabe-se que ele vai acabar
cam o tubarão que tinha comido as pernas do velho. aparecendo. Quando se ouvem os seus tiros, sabe-
-se o que ele está fazendo, mas quando o ruído
Aquilo saiu direto da realidade. Quando Dick Ros- cessa, não se sabe, e com isso a tensão começa
son voltou de Sacora, ele me disse: “Aqueles pes- a aumentar — é o que se espera.
cadores odeiam os tubarões. Odeiam. Quando
apanham um, eles o matam a cacetadas”. Achei É um uso excelente do som, permitindo duas coisas
que aquilo daria uma boa cena. diferentes acontecerem na mesma cena. Seria im-
possível fazer isso num filme mudo.
Rosson fez as filmagens da segunda unidade – as
sequências de pesca –, e depois você as montou? É, seria. Santo Deus, não seria óbvio se a cena
cortasse para ele? Num caso desses, eu nem
Sim. Foi ele provavelmente quem filmou a sequên­ sequer filmaria Robinson, porque, se o fizesse,
cia de espancamento do tubarão. mais tarde alguém poderia dizer: “Agora é melhor
cortar para aquele sujeito”. Não filmando, eu podia
Todas as sequências de pesca são muito bem-feitas. dizer: “Não posso cortar para nada”.

Ah, são fabulosas. Dick Rosson era o melhor di- Em outras palavras, você só filma aquilo que sabe que
retor de ação do cinema. Ele ia para onde tivesse vai usar – você não se previne com tomadas adicionais.
de ir, e eu só precisava lhe mandar um telegrama
dizendo: “Filme um sujeito com suéter listrado Se eu tenho algo de que gosto muito e acho que
saindo correndo da cabina e fazendo alguma coi- alguém poderia enfiar o dedo, eu não me previno.
sa depois”- — e a cena vinha exatamente como Mas com uma cena da qual eu não gostasse mui-
eu a teria realizado. Foi com ele que começou a to e estivesse perfeitamente disposto a eliminar,
direção da segunda unidade. O irmão dele, Art então eu filmava muita proteção.
Rosson, fazia o mesmo — ele trabalhou comigo
em Red river [1948]. O seu outro irmão, Harold, foi Em diversos dos seus outros filmes, forças externas
o carneraman de El Dorado [1967]. Éramos todos – como os tubarões, nesse caso – determinam a vida
muito bons amigos. das personagens.

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Em qualquer situação perigosa é o que tende e não perturbe o público; se neste filme você con-
a acontecer; naquele caso, o perigo era muito seguir duas cenas boas e pelo resto do tempo não
real. Os homens responsáveis pela pesca sempre perturbar o público, terá feito um bom trabalho. Se
enfrentavam problemas com tubarões. Eles os eu fizer quatro boas cenas, terei feito um bom filme
odiavam de forma estranha, venenosa. se não perturbar o público o resto do tempo”. Por
isso, ele sempre se aproxima e pergunta: “Esta é
Era assim também em Captain Courageous [Marujo uma daquelas?”, e eu respondo: “Acabe logo com
intrépido] [1937; Victor Fleming]— você trabalhou isso, rapaz”. Hoje, ele chega para um pobre ator
naquele roteiro? e lhe diz: “Ei, preste atenção, muito tempo atrás
Hawks me disse isso, então, pelo amor de Deus,
Não muito. Trabalhei um pouco com Vic Fle- diga as suas falas e acabe logo com isso.” Hoje
ming, mas apenas do modo como trabalhávamos ele faz todo o meu trabalho. Quando se trabalha
em tudo o que qualquer um de nós fazia, porque com alguém bom como Duke, torna-se muito fácil
estávamos ambos contando constantemente a realizar boas cenas, porque ele ajuda e inspira
mesma história sobre dois amigos, e buscando todos os outros atores.
ideias diferentes. Ele fez isso em Captain Coura-
geous, em Test pilot e em diversos outros filmes. Consta que você dirigiu algumas cenas de The pri-
Não foi ele quem fez aquele filme sobre a Legião zefighter and the lady [1933].
Estrangeira?
Aquilo foi só provisório. Escrevemos a história
Você se refere a Lives of a Bengal lancer [Lanceiros para Clark Gable e Jean Harlow – e nos deram
da Índia] [1935]? Max Baer e Myrna Loy. O contrário, exatamente.
Eu apenas disse: “Não posso fazer isso”. Eles
Não, esse quem fez foi [Henry] Hathaway. Bem, então perguntaram: “Bem, você daria o impulso
Hathaway era assistente de Fleming e, prova- inicial em Max Baer?”. E eu respondi: “Filmarei
velmente, um dos melhores contadores de a introdução e tentarei ensiná-lo”. Fizemos duas
história com uma câmera — ele aprendeu tudo ou três boas cenas de abertura e aí [Woody] Van
com Fleming. Dyke entrou e filmou o resto.

Os seus filmes geralmente se seguram melhor do Não era um grande filme, não é?
que os dele.
Bem, nós tínhamos imaginado outra coisa — Jo
Creio que tive sorte. Reparei que algumas das von Sternberg e eu trabalhamos no roteiro. Louis
cenas daqueles dois sujeitos eram muito boas, B. Mayer teve uma ideia brilhante: se cada um de
algumas perturbavam. É uma questão de gos- nós era capaz de fazer bons filmes separada-
to, mas sempre luto contra cenas que podem vir mente, imaginou que juntos faríamos um filme
a aborrecer o público. Em Red river, eu disse a duplamente bom. Saímos e demos risada daquilo.
Wayne: “Olhe, não se esforce tanto em todas as Disse a Jo: “Bem, cada um poderá escrever a sua
cenas. Se é uma cena realmente boa, vá e trabalhe história, e elas serão diferentes. Você faz uma
bastante, mas se não é, acabe com ela depressa coisa grande a partir de uma base pequena; eu

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pego uma coisa grande e a reduzo. Chegaremos moça de “Feathers” [“Penas”] e aquela história
até esse ponto, vamos até lá e cada um conta a com a escarradeira.
sua história para Mayer. Depois nos separamos,
e um de nós prosseguirá e fará o filme". Quando Ah, claro. Trabalhei naquela história e imaginei
fomos até Mayer, eu disse: “Ih, Jo, estou com que usaria algumas coisas outra vez. Eram boas,
uma sensação horrível de que este filme vai cair e eu tinha certeza de que continuariam boas.
no meu colo”. "Ah”, disse ele, “isso é praticamen-
te certo.” E, claro, Mayer gostou mais da minha Today we live [Vivamos hoje] [1933] foi o primeiro
história, e fui eu que tive de ficar. Nem sei como filme realizado a partir de uma história de [William]
foi que fizeram os créditos – nós não queríamos Faulkner, não é verdade? Você também foi a pri-
ser mencionados. Foi uma confusão danada. Tive meira pessoa a contratá-lo como roteirista.
problemas na Metro, porque eles não queriam
pessoas individualistas trabalhando com eles. Sim, eu li um conto dele chamado “Turnabout”,
Eles só queriam passar as nossas histórias adiante publicado no Saturday Evening Post, e o comprei.
e fazer os diretores as filmarem. Não era o meu Eu não o conhecia – ninguém o conhecia –, mas
jeito de trabalhar. imaginei que seria uma boa ideia ele mesmo
escrever o roteiro. Assim, pedi que o chamassem.
Como foi o seu relacionamento com Sternberg? Ele entrou no meu escritório, e eu lhe disse: “O
meu nome é Hawks”. Ele respondeu: “Eu sei, vi
Jo sempre assumia ares, mas nunca fez isso o seu nome num cheque”. Lembro-me muito
comigo. Eu estava trabalhando para a Paramount bem disso, porque fiquei com vontade de matá-
e tínhamos uma grande história, chamada Un- -lo. Faulkner não disse mais nada, só ficou ali,
derworld [Amor e sangue] [1927]. Ben Hecht escre- sentado; e quanto mais ele ficava ali sentado, mais
veu o roteiro para George Bancroft, mas quem o furioso eu ficava e mais eu falava. Disse a ele o
dirigiria seria Arthur Rosson. Arthur viajou para que iríamos fazer com a sua história. “Bem”, eu
obter informações sobre prisões ou algo assim, disse, “é isso.” “OK”, ele respondeu, “vou-me
e começou a se embebedar. Eles o tiraram do embora.” E eu disse: “Espere um instante. O que
filme e o substituíram por Von Sternberg — Já você vai fazer? Quando é que o verei de novo?”.
tinha realizado um filminho e conseguido fazer Ele respondeu: “Em quatro ou cinco dias”. E eu
um trabalho muito bom. O elenco foi escolhido, os disse: “Oh, sr. Faulkner, não são necessários qua-
diálogos foram escritos, os sets foram construídos, tro ou cinco dias para digerir o que eu acabei de
todas as cenas já estavam com os seus esquetes lhe dizer-. Ele respondeu: “Não, para escrever”.
prontos, e Jo entrou e fez um dos melhores filmes E eu: “O senhor está brincando!?”. E ele: “Não.
já realizados. A partir daí, ele passou a querer O senhor foi bastante claro sobre o que deseja.
trabalhar sem supervisão ou qualquer coisa desse Lembro-me de tudo. Não vai demorar mais do que
tipo, e praticamente conseguiu. cinco dias”. “Bem”, respondi, “eu estava esperando
conhecê-lo. Gostaria de tomar um drinque?” E ele
Você repetiu algumas das coisas de Underworld disse: “Adoraria”.
em Rio Bravo [1959] — por exemplo, chamar a

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Assim, depois de termos liquidado umas duas chegava ao set, ela prendia uma gardênia na
garrafas de uísque, levei um sujeito realmente minha lapela, me dava um beijo de bom-dia, e
bêbado para casa. Na manhã seguinte, ele se começávamos a filmar. Bem, ela usava aqueles
levantou e começou a trabalhar, e em cinco ou vestidos Joan Crawford. Eu dizia “OK, fique aí pa-
seis dias já tinha o roteiro. Foi um dos melhores rada” e pegava uma esponja embebida em lama
roteiros que já li. Levei-o a Thalberg e disse: “Olhe, e esborrifava aquilo nela. Um dia, perguntei: “Por
tranque todas as suas portas durante uma hora que tenho de fazer isto todos os dias?”. “Porque
e meia e leia isto, por favor”. Ele fez isso, depois gosto que as minhas roupas sejam lavadas todas
saiu da sala e disse: “Esta história é notável”. Eu as noites, para que de manhã eu me sinta limpa.”
respondi: “Se mudarmos alguma coisa, será Ela queria que as suas falas fossem do mesmo
como andar por cima dela com os pés enlamea- tipo das dos homens. O que se podia fazer? Tí-
dos”. E ele me disse: “Bem, vá fazê-la”. nhamos de deixá-la fazer isso. Parte daquilo até
que não resultou ruim.
Aí Thalberg ficou doente, e o estúdio precisava de
um filme que estrelasse Joan Crawford; assim, eles Foi o próprio Faulkner quem incluiu as partes de
me chamaram e disseram: “Quando é que você vai Crawford?
começar, Howard?”. Respondi: “Em cerca de duas
semanas”. “Bem, quem você vai usar?” “Tenho Foi ele. Eu lhe disse: “Tenho outro trabalho para
Gary Cooper, Franchot Tone e Bob Young.” Todos você – ainda não terminamos”. Ele disse: “Pensei
eram artistas novos. ‘Ah, que bom”, disseram, que tínhamos terminado”. Respondi: “Não, eles
“a moça é Joan Crawford.” E eu respondi: “Você querem Joan Crawford no filme”. ‘Ah, rapaz”,
está pensando na história errada; nesta não há disse ele. “Bem”, eu disse, “só há um modo de
nenhuma moça”. Eddie Mannix me disse: “Howard, ela ir para a guerra: como motorista de ambulân-
você é capaz. Se deixarmos de lançar um filme cia.” Ele respondeu: “Creio que podemos fazer
com ela, isso vai nos custar 1 milhão de dólares”. isso”. E fizemos. Naquela altura, Faulkner e eu
“Bem”, disse eu, “você já conversou com ela?” “Sim. tínhamos ficado amigos. Ele escreveu cinco ou
Provavelmente ela está lá chorando – já deve seis histórias para mim — ou algo perto disso;
ter lido a história –, por isso é melhor você dar era bom trabalhador e grande escritor.
um pulo lá e conversar com ela.”
Os dois ou três primeiros rolos — em que a persona-
Procurei-a e, é claro, lá estava ela com as lágrimas gem de Crawford é apresentada etc. — não parecem
enchendo a sua xícara de café. Ela perguntou: “Eles ter sido feitos por você. É só quando eles chegam a
estão de brincadeira, Howard?”. Disse-lhe que não, Londres, as cenas com a ambulância e a guerra; é
e ela recomeçou a chorar. Eu lhe disse: “Preste como se o filme devesse ter começado naquele ponto,
atenção, você tem de fazer isso, e eu também. Se é ali que ele se transforma num filme de Hawks.
você fizer drama, vai ser um inferno. Mas se deci- Até mesmo a iluminação muda drasticamente.
dirmos nos divertir, vai ser agradável. O que você
quer fazer?”. “Vamos nos divertir”, ela respondeu. Precisávamos incluí-la no filme, por isso filmamos
E eu disse: “OK”. Nós tínhamos saído juntos uns a história pregressa de Crawford e os dois meninos
três ou quatro anos antes. Toda manhã, quando

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crescendo. Mas a parte do barco é fabulosa. E a não sabia nada do que tinha ocorrido. Quando
história era boa. cheguei de volta ao estúdio, haviam inventado uma
saída; Louis Mayer tinha arranjado uma solução.
Depois de ter visto o filme, eu lhe disse que Joan Cra- Ele iria retirar Tracy do filme e substituí-lo por
wford vestia um vestido ridículo, com gola pontuda. alguém. Mayer me disse: “Quero que você de-
clare que não conseguia controlá-lo”. Respondi:
Aquilo agredia os olhos de todo mundo. “Mas isso não é verdade”. “Bem, quero que você
diga isso.” Eu o agarrei e lhe disse: “Não vou dizer
Você não conseguia convencê-la? nada disso. Vou contar exatamente o que acon-
teceu. Durante as filmagens ninguém poderia ter
Ela tinha as suas limitações. Era mais uma perso- se comportado melhor”.
nalidade do que uma atriz, e havia coisas que ela
simplesmente não conseguia fazer. Como é que Então, Mayer também o substituiu.
eu iria explicar àquelas pessoas que a inclusão
da maior estrela do cinema iria estragar o filme? Não, eu saí do filme. Todo mundo me pediu para
voltar, mas me recusei. Eu disse: “Não quero mais
Você não fez muitos filmes na Metro. saber desses sujeitos”. Então [Jack] Conway entrou
na coisa — ele me telefonou e perguntou: “O que
Não, não — não era agradável trabalhar daquela faço com isto?”. E lhe expliquei da melhor forma
forma. A minha carreira na Metro terminou com que consegui pelo telefone.
as filmagens de Viva Villa! [1934]. Você sabe o que
aconteceu com aquilo. Do seu trabalho, quanto restou no filme? Você
diria que dirigiu metade do filme pronto?
Bem, não exatamente.
Creio que mais do que isso. Fiz a história e todos os
Eu tinha terminado as filmagens no México, e exteriores. As cenas de interiores não são minhas,
Lee Tracy, que fazia o repórter Johnny, pergun- exceto aquelas rodadas no México. É claro que a
tou: “Posso passear?”. Bem, fiz com que ele fosse personagem feita por Lee Tracy foi completa-
com um major mexicano, um sujeito bom e durão, mente alterada pela sua substituição por Stu
para evitar que se metesse em confusões. O Erwin. Tínhamos uma cena realmente muito boa
major foi dormir, Tracy se embebedou, saiu para para o final. Villa estava morrendo na entrada de
o terraço do hotel e urinou. Infelizmente, naquele um açougue, com a cabeça recostada sobre um
instante passavam por debaixo do terraço os ca- pedaço de carne, e perguntou ao repórter que
detes de Chapultepec. tinha escrito todas aquelas matérias gloriosas
sobre ele: “Johnny, li a respeito do que pessoas
E isso provocou um incidente nacional. famosas disseram ao morrer. O que vou dizer,
Johnny?”. E o repórter não sabia o que respon-
Aquilo foi visto como um insulto, e com razão. Eu der. “O que vou dizer, Johnny?” “Bem”, e Johnny
estava voltando para casa e, quando atingi a fron- começou a compor a matéria ao falar, “quando os
teira, os repórteres caíram em cima de mim. Eu fiéis seguidores souberam que o seu grande líder

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estava morrendo, chegaram de todos os lugares lhes dizer uma coisa” — e nesse instante soa
e lhe fizeram companhia, numa homenagem um despertador.
silenciosa.” “Vamos lá, Johnny, diga-me o que
eu vou dizer.” Então Johnny respondeu: “Perdoe- Sim, isso está no filme. O que foi que David Sel-
-me, meu México — se eu lhe fiz mal, foi porque znick fez no filme?
eu o amo”. E ele respondeu: “Isso é bom, Johnny.
Isso é bom. Olhe, não diga a minha mulher que Durante muito tempo ele tinha tentado fazer um fil-
eu estava comprando costeletas de porco para me a partir de Viva Villa!, mas não havia consegui-
Rosita, está bem?”. E morreu ao dizer isso. Fiz do. Ele me perguntou se eu conseguiria fazê-lo,
a cena num pequeno açougue cheio de moscas. e eu respondi: “Claro, se Ben Hecht participar
e você não interferir”. Assim, Ben e eu fomos
Gostei especialmente da sequência “Villa precisa à Cidade do México, recolhemos uma porção
de você”, a reunião dos homens de Villa após o de informações de primeira mão e terminamos
assassinato de Madero. o roteiro — o roteiro foi realmente terminado
lá. Foi aí que David assumiu e começou a fazer
Não sei o que eles fizeram com aquilo. Rodei as imposições, mas no fim não conseguiu nada.
cenas no palácio, no México — a entrada triunfal
de Villa. Havia chiclete na sola do seu sapato, e E você saiu da MGM.
ele se sentou no trono para raspar o chiclete. E
Tracy escreveu: “Pés de peão são limpos no trono Procurei o vice-presidente, Eddie Mannix, e lhe
do México”. Fiz cenas em que Villa tinha coisas disse: “Não quero mais trabalhar para Mayer —
demais em que pensar; ele foi para o banheiro, nós não combinamos”. Eddie respondeu: “Bem,
mandou colocar um tampo sobre a banheira, Howard, você tem um contrato, e lá diz que você ou
que usou como escrivaninha enquanto se sentava dirige ou escreve ou produz, nós não vamos liberar
na privada. você”. Assim, eu rascunhava alguma coisa num
pedaço de papel e lhes enviava. Depois de dez
Houve também muitos incidentes que não conse- semanas fazendo isso, ele me chamou e disse:
guimos encaixar. Eu queria fazer uma cena sobre “Isto não está funcionando, está?”. Respondi: “Eu
as acompanhantes das tropas — mulheres que se- sabia que não poderia funcionar”. “OK, você está
guiam os soldados mexicanos, faziam a sua comida liberado.” E eu disse: “Fiquei parado durante dez
e assim por diante; após as batalhas, as mulheres semanas, e agora quero que você me pague 5
iam para o campo, encontravam os seus homens mil dólares por essas dez semanas. Quero férias
mortos, então os encostavam de pé a uma árvore, de dez semanas, preciso disso”. E ele concordou.
colocavam um copo numa mão e um cigarro na
outra, embebedavam-se e, durante aquela noite, Aí, procurei Harry Cohn e lhe perguntei: “Você faria
os tratavam como se estivessem vivos. Twentieth Century [1934] se eu conseguisse John
Barrymore?”. Ele respondeu: “Claro”. Conversei
Fiz uma cena em que Vila dá adeus às suas tro- com Barrymore, e ele disse que faria o filme,
pas. Não sei se a cena foi usada. Havia milhares mas só dispunha de duas semanas. Respondi
deles, e Villa estava num terraço: “Só quero que bastavam. Em pouco mais de uma semana,

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escrevi o roteiro junto com Hecht e MacArthur — pente, o cachorro olhou para a perna de Keaton
paguei-os do meu bolso. Rodei o filme inteiro em e urinou nela. Keaton olhou fixamente para o
três semanas, e as minhas dez semanas estavam cachorro, subiu, pegou um guarda-chuva, abriu-o
terminadas quando fizemos uma exibição de teste. e disse: “OK, cachorro, venha cá”. Sem mudar a
Telefonei a Eddie Mannix e lhe perguntei: “Quer expressão do rosto.
assistir a um teste de público?”. E ele: “Teste do
quê?”. “De um filme que fiz depois de sair daí.” E, Fico imaginando se foi dele que você tirou a ideia
depois de ver o filme, ele perguntou: “Você quer de que numa comédia ninguém deve tentar ser
dizer que fez isto durante as dez semanas em engraçado. Ele nunca fazia isso.
que estávamos lhe pagando 5 mil dólares para
que você tirasse férias?” “Sim”, respondi. Éramos Ele era o paradigma disso. Não fazia caretas, como
bons amigos, mas nunca mais retornei à Metro. Laurel e Hardy. Na verdade, Hardy não fazia muitas
caretas, ele tinha algumas boas. Laurel sempre
Aquela foi a sua primeira comédia sonora, e o guinchava. Leo McCarey teve muito a ver com essa
ritmo é incrivelmente rápido. escola de comédias baseadas no exagero. Se dois
sujeitos batem os seus carros na rua e come-
Imagino que o ritmo se estabeleceu logo na pri- çam a discutir, sempre acabam por arruinar
meira cena entre Barrymore e Lombard. Carole quinhentos automóveis. Se uma torta é atirada
entrou em cena e soltou o verbo para cima de em alguém, logo há centenas de tortas voando
Barrymore, ele respondeu, e isso deu o tom para por todo lado.
o resto do filme. Era um filme totalmente em alta
pressão, devido àquele relacionamento. Não se faz É evidente que você se divertia em gozar a insa-
isso na montagem. Faz-se escrevendo delibera- nidade peculiar ao teatro.
damente os diálogos como se fossem conversas
normais. Geralmente, as pessoas interrompem Bem, sempre se pode brincar com a seriedade
umas às outras; escrevem-se os diálogos dessa das outras pessoas. Para mim, isso não é sagrado
forma, permitindo que as falas se superponham, — eu nunca sequer estive nos bastidores de um
mas sem perder nada. É só um truque. teatro. Mas o relacionamento entre aquelas duas
pessoas — ele a importunando e tentando impor
Você sofreu influência de Keaton? Os seus filmes não a sua vontade, os dois berrando um para o outro
se parecem com os dele, mas sempre imaginei que — era perfeitamente normal e natural para elas.
vocês dois têm um sentido semelhante de estilo,
de ritmo e de humor. Entenda que Hecht e MacArthur tinham escrito
a peça para a mulher de Gregory Ratoff, Eugenie
Ah, eu gostava muito de Keaton. Éramos amigos. Leontovich, que era uma atriz russa muito esti-
Ele fazia coisas estranhas, e aprendi bastante as- lizada, muito divertida à sua maneira. Quando a
sistindo aos seus filmes. Eu tinha um cachorro peça foi exibida em Hollywood, o papel do homem
novo — um grande cão policial —, Keaton estava foi desempenhado por um sujeito muito desagra-
segurando a sua coleira, e o cachorro queria sair, dável que usava uma peruca. Mas quando chegou
e Keaton continuou segurando, até que, de re- o momento de fazer o filme, Gregory disse: “Vou

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8. General escocês
que serve ao rei fazer esse papel”, e mudou tudo — fez com que ela e muitos anos.” Eu disse: “Então, por que raios
Duncan na peça parecesse nada. Na peça, ela era uma estrela russa você está me perguntando? Eu nunca me maquiei,
Macbeth, de William
Shakespeare. controlada e formidável, com toda graça e gestos não saberia o que fazer. Você não consegue pensar
destinados a diminuir o homem com quem traba- em alguma coisa?”. No dia seguinte, ele apareceu
lhava; quando vi aquilo, Gregory estava passando como um coronel do Kentucky com um narigão com
por cima dela, tirando tudo das suas mãos. Quase prido. Na cena seguinte do trem, Barrymore tirou
provocou o divórcio entre os dois. o nariz falso, e a equipe começou a rir —não sei
se é possível ouvir no filme. Foi ideia dele. No fim
Enfim, quando fui fazer o filme, procurei Gregory e lhe
ele põe o dedo no nariz.
disse: “Uma vez que o homem não será você, quero
que me diga tudo o que alterou”. E ele me mostrou e É claro que você o filmou de perfil.
me ajudou bastante, e depois daquilo nos tornamos
amigos. Eu disse a Hecht e MacArthur: “A nossa Bem...
tarefa em relação a Lombard é fazer com que ela
seja a Lizzy Glutz da Terceira Avenida”. Eles disseram: A cena em que ele enlouquece após ela tê-lo dei-
“Ótimo”. Assim, reescrevemos todas as falas da garota. xado é uma paródia hilariante de Shakespeare.
Eles mantiveram as falas do homem essencialmen-
9. A fala a que o te como estavam. Havia muito mais no filme do que “O que vamos fazer aqui?”, ele perguntou. “Bem,
texto se refere
é a seguinte: na peça; no teatro, a mulher era uma grande estrela, imaginei que você poderia descer a escada como
MACBETH — She muito acima dele, falava restritivamente do produtor o fantasma de Banquo8 e finalizar a cena com
should have died e assim por diante. Ela não dizia “seu canastrão”, uma lata de tinta, cobrindo o nome dela em todos
hereafter;/ There ou nada do gênero. Lembro-me de quando fizemos os lugares em que ele aparece.” Barrymore olhou
would have been
a time for such a essa cena. Ela disse a sua fala, “seu canastrão”, e em volta e disse: “Parece que isto vai ser divertido”.
word./ To-morrow, eu comecei a rir. Barrymore perguntou: “Por que Não lhe pedi para dizer por onde andaria, apenas
and to-morrow, and você está rindo?”. E respondi: “Bem, ela está dizendo ajustei a câmera para poder segui-lo. E enquanto
to-morrow,/ Creeps isso como se tivesse esperado dez anos para dizer a andava por ali, ele dizia: “Fora, fora, mancha mal-
in this petty pace
from day to day/ To você”. E com isso ele decolou. dita...”9— esse tipo de coisa. Foi muito engraçado.
the last syllable of
recorded time,/ And Mas Barrymore estava fazendo troça da sua pró- De modo que você improvisou bastante com
all our yesterdays pria imagem de grande ator. Barrymore e Lombard.
have lighted fools/
The way to dusty
death. Out, out, brief Ah, sim, claro. Eu não sabia muita coisa sobre a peça, Quando se trabalha com pessoas tão boas quan-
candle! /Life is a só tinha visto uma produção e, se não fosse pela ajuda to eles, é ridículo pensar que se vai ficar preso
walking shadow, a de Gregory Ratoff, não teria percebido o que poderia às falas do roteiro. Porque, quando Barrymore
poor player/ That
struts and frets bis ser mexido. E é preciso lembrar que Lombard não engatava — e ele era capaz disso —, eu só dizia:
hour upon the stage/ havia assistido à peça — era uma completa novidade “Vá em frente”. E Lombard lhe respondia; ela
And then is heard para ela. Fosse como fosse, Barrymore perguntou: era uma pessoa e tanto, maravilhosa. Um dia,
no more: it is a tale/ “Howard, que tipo de maquiagem devo usar para o Carole me procurou e disse: “Não sei o que fazer,
Told by an idiot,full
of sound and fitry,/ disfarce que adoto ao entrar no trem?”. Respondi: Cohn está me passando cantadas”. Eu disse:
Signifying nothing. “Há quanto tempo você se maquia?”. “Há muitos “Você quer acabar com isso?”. “Quero.” Assim,

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armamos uma situação: eu estava no escritório Quando disse: “Podem revelar”, Barrymore gri-
de Cohn, tendo uma discussão muito séria com tou: “Isso foi fantástico!”. Ela começou a chorar
ele, quando Lombard entrou e disse: “Decidi dizer e saiu correndo do set. Depois disso, sempre que
‘sim’”, e começou a agir como se fosse tirar as começava a fazer um filme, ela me enviava um
roupas. Ele respondeu: “Ei, espere um pouco!”. telegrama dizendo: “Vou começar a bater nele”.
E ela: “Pensei que você...”. Eu interrompi: “Se isto
é o tipo de estúdio que você dirige, é melhor eu Você se lembra de Barbary coast [1935]?
sair daqui”. E ele: “Opa, espere, não vá!”. Ela dis-
se: “Bem, decida-se”. E ele respondeu: “Saia Não me lembro muito bem da história, exceto
daqui!”. “Está bem”, concordou Carole, e depois que se tratava de uma garota que chegava à baía
disso nunca mais enfrentou problemas com ele. de San Francisco num navio que tinha contornado
o cabo Horn apenas para descobrir que o homem
A cena na cabine do trem em que Lombard tenta acer- com quem iria se casar havia sido morto numa
tar Barrymore parece particularmente improvisada. mesa de jogo. Não gostei muito do filme. Achei que
era artificial — feito mais ou menos sob medida;
Aquela foi a primeira cena que rodamos. Lombard houve também um monte de problemas.
nunca havia feito aquele tipo de comédia, mas eu
a escalara porque a tinha visto numa festa após Como é que Goldwyn fez com que você o filmasse?
tomar uns drinques — era hilariante, desinibida,
e tinha tudo o que era exigido para o papel. No Goldwyn fazia bons filmes, e imaginei que po-
entanto, ao entrar no set pela primeira vez, pas- deríamos fazer uma boa história sobre a Costa
sou a derramar emoções por todo lado — ela se Bárbara — mas no final tínhamos reescrito tanto
esforçava muito, e o resultado era horroroso. do roteiro, que Ben Hecht (creio que foi ele) re-
Barrymore foi muito paciente. Tentamos algu- sumiu assim a coisa: “Minam Hopkins chega à
mas vezes, mas ela continuou tão tensa e artificial Costa Bárbara como uma garota Goldwyn confusa
como antes. Aí eu lhe disse: “Venha, vamos andar e surpresa”.
um pouco”. Saímos, e lhe perguntei quanto esta-
va ganhando para fazer o filme. Ela me contou, As alterações foram causadas por Goldwyn?
e eu disse: “O que você responderia se eu lhe
dissesse que, nesta manhã, você mereceu todo Era o que ele queria. Na verdade, isso foi o que
o seu salário e não terá mais de representar?”. sobrou de uma história de Hecht e MacArthur
Ela ficou espantada. Continuei: “Esqueça a cena. chamada “A man called Chamalis”. A propósito,
O que você faria se alguém lhe dissesse tal e tal eles a venderam duas ou três vezes. O filme po-
coisa?”. Ela respondeu: “Eu lhe daria um chute deria ter resultado muito bom. De vez em quan-
no saco”. Então eu lhe disse: “Bem, ele lhe falou do eles batiam numa história como essa — uma
coisa parecida; por que você não lhe dá uns chu- prostituta e um poeta e a coisa desandava.
tes?”. E ela exclamou: “Você está brincando?”.
“Não.” Voltamos para o set, e lhe dei algum tempo Você quer dizer que eles ficavam pretensiosos?
para pensar; e quando tentamos rodar de novo a
cena, fizemos uma só tomada, e foi o bastante.

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Sim. O poeta citava poesia, Minam Hopkins era a histórias sobre a mecânica do correio aéreo. Foi
mulher malvada da Costa Bárbara. Tudo saiu fora escrita por Frank Wead, um sujeito que sabia do
de controle. Mas Goldwyn gostou. Eu não gostei, que estava falando; ele tinha sido um grande piloto
mas estava encalacrado. até se machucar. Frank fraturou a espinha numa
queda e ficou preso a uma cadeira de rodas, foi
Essa foi a primeira vez que você usou Walter Brennan? por isso que começou a escrever. Ele não tinha
experiência nisso, mas se saiu muito bem. Es-
Sim. Lembro-me de que, depois da pré-estreia, um creveu sobre homens que passam cantadas em
sujeito apareceu na minha frente com lágrimas garotas. Mas a primeira vez que chegamos nisso, e
nos olhos dizendo: “Não sei como lhe agradecer”. Jimmy Cagney passou uma cantada, eu lhe disse:
Fiquei imaginando quem seria. Por fim, o sujeito, “Oh, Santo Deus”. Jimmy perguntou: “Qual é o
percebendo que eu não o estava reconhecendo, problema?”. “Jim, estamos ferrados. Você não
virou-se de costas, tirou a dentadura e perguntou: pode passar mais cantadas — se fizer isso, vai
“Quem é?”. E eu: “Santo Deus, Walter”. Eu nunca o parecer um idiota.” Então, fizemos uma pequena
tinha visto sem maquiagem; Walter Brennan era competição: explicamos o nosso problema a todo
na verdade muito mais jovem do que o papel que mundo e pedimos que nos dissesse — incluindo
desempenhara naquele filme. cabeleireiras, todo mundo — qual deveria ser o
próximo lance. Um sujeito baixinho disse: “Sabe,
É verdade que você gostou tanto dele que passou se me dou mal, digo à moça: ‘OK, comecei torto.
a escrever cenas que o incluíam? Não vou fazer isso de novo, prometo. Vamos em
frente’. E então, se quero mesmo começar algo,
Ele só deveria participar do filme por dois ou três digo: ‘Prometi me comportar, mas você também
dias, mas acabou ficando várias semanas. Walter precisa se comportar’. E assim, de repente, quem
ganhou um Oscar pelo filme seguinte que fiz com começa a passar cantadas é ela”. Perguntei: “Jim,
ele, Come and get it [Meu filho é meu rival] [1936]. isso vai funcionar?”. E ele respondeu: “Sim”. Então
fizemos desse jeito.
Como foi que você perdeu o controle de Barbary
Coast? Mas isso foi só uma fase do filme. As outras cenas
estavam na peça e eram boas — só reescrevemos
Com Goldwyn ninguém conseguia manter o con- o romance. A garota do filme, June Travis, nunca
trole. Só controlei um dos seus filmes, Come and tinha estado diante de uma câmera — aquele era o
get it, mas isso foi porque ele não estava presente. seu primeiro filme. Recentemente, quando voltei
a Chicago para um festival de cinema, recebi um
Até o momento em que você estava filmando o final. telefonema: era June Travis. Ela estava morando
Sim. E aí ele refez o final. lá e estrelando uma peça com Douglas Fairbanks
Jr. Parecia estar bem e contente.
Como foi que se deu Ceiling zero?
Há uma cena em que Cagney beija [Pat]O’Brien;
Como você sabe, sou muito interessado por avi- você fez os atores realizarem isso em diversos fil-
ões, e esse filme foi de fato uma das primeiras mes —mais vezes até do que beijos entre homens

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e mulheres. Você acredita que quando homens se Eles me disseram que você é mulherengo.” Res-
beijam há humor, mas quando isso ocorre entre pondi: “E o que você acha disso?”. “Bem”, disse
um homem e uma mulher é piegas? ela, “você nunca tentou nada comigo.” Respondi:
“Você não sabe o que é ser mulherengo”. E ela
Sim. Escrevi as falas de Test pilot no trem, a Fle- perguntou: “E o que é?”. Respondi: “Nunca se
ming, e ele observou: “Gable e Tracy não vão dizer passa uma cantada numa garota antes de dormir
essas falas”. Então, perguntei a Vic: “Você sabe as com ela”. “Como? E como é que você vai para a
falas?”. “Sim.” “Bem, vamos nós dois fazer a cena cama com ela?” Respondi: “Bem, é ela quem passa
para eles.” Mostrei-lhe como representar a cena. a cantada”. Com isso a moça ficou toda confusa.
Então fomos ao estúdio, e eu disse: “É péssimo que Por fim, ela se deu conta de que eu estava só
dois sujeitos que não sabem representar mostrem brincando. Mas você já viu coisa mais ridícula do
como fazer uma cena a dois atores que ganham que um sujeito passando uma cantada em alguém?
uma fortuna. Vic, vamos lhe mostrar como fazer a
cena”. Eles não julgavam que fôssemos capazes. Em Ceiling zero, quem morre é o cara engraçado
Lemos as falas exatamente como estavam escritas, [Stuart Erwin].
e eles disseram: ‘Ah, isso é outra coisa”. Fizemos
a cena de um ponto de vista completamente di- Bem, tirando os protagonistas, essa é a persona-
verso do que eles tinham imaginado. gem de que mais se gosta.

Sarcasticamente. De modo que, se é preciso matar alguém... Claro.

Ah, muito. Se um sujeito diz: “Por que estamos O’Brien oferecer cigarros a Cagney — isso é parecido
fazendo isto?”, e o outro responde: “Porque eu com o que acontece em Rio Bravo e Only angels have
te amo”, ninguém vai acreditar nisso, vai? Vão wings — é uma forma de mostrar amizade sem ter
dar risada. de falar sobre isso.

Há uma cena engraçada, em que Cagney finge Em Rio Bravo saiu melhor, porque um dos sujeitos
chorar, mas está apenas fazendo teatro para a estava amedrontado, então, quando Wayne enro-
garota. lou um cigarro e o deu a Martin, a cena resultou
muito melhor. É claro que lá pela terceira vez que
Na peça, o sujeito entrega a chave do seu quarto à se faz alguma coisa, ela precisa resultar melhor.
moça. Do jeito que fizemos, é a moça quem entrega
a chave ao sujeito — o inverso. Em 1935 a censura era bem intensa, mas quando
Cagney diz “quero ficar sozinho”, ela responde “você
Nos seus filmes são sempre as mulheres que não tem de ficar sozinho”, e ele retruca “você é um
passam as cantadas. amor”, o convite sexual era evidente, mas mesmo
assim você conseguiu fazer isso passar.
Claro. Certa vez, uma garota muito bonita que
conheço me encontrou e me pediu um drinque.
“Bem”, disse ela, “conheci alguns dos seus amigos.

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Ah, nos costumávamos fazer passar muitas trincheiras, um material noturno excelente. Usei
coisas. Depende um pouco de como a fala é boa parte daquelas tomadas.
dita; se é dita com um sorrisinho, então não passa.
Essa foi a ideia de Zanuck?
A personagem de Cagney era basicamente irres-
ponsável — era impossível para ele pertencer a uma Ele me mostrou aquilo e disse: “Podemos fazer
equipe, ao passo que voar naquelas condições sig- alguma coisa?”. E eu respondi: “Sim, podemos
nificava fazer parte de um time —, não era possível fazer outro filme a partir disso”. Assim, assumo
ser um solista. Essa ideia é ainda mais claramente toda a responsabilidade.
delineada em Air Force [Força de heróis].
Foi Joel Sayre quem redigiu o pré-roteiro?
Sim, isso acontecia com muitas pessoas após os
primeiros dias de pilotagem, porque eram muito Ele tinha trabalhado um pouco tentando extrair
individualistas e não conseguiam se adequar. Não alguma história daquelas tomadas. Eu não queria
prestavam como pilotos comerciais, nem mais simplesmente mandá-lo passear, e por isso ele
tarde, como pilotos do Exército. Porque qualquer ficou trabalhando até que eu conseguisse trazer
bom piloto de caça precisa ser totalmente egoísta. Bill Faulkner. Sayre era um sujeito muito agradável
Para que funcione direito, ele precisa pensar que e um redator bastante competente. Aí, Faulkner e
é melhor do que o sujeito que vai enfrentar. eu escrevemos a história. Na verdade, baseava-
-se naquele sujeito do qual lhe falei, o tal que
No final, Cagney parte para uma missão suicida, o meu irmão e eu conhecemos em Nova York, e
porque sabe que não será mais capaz de voar, e que nos ensinou aquela canção de Yale. Ele tinha
assim preferia morrer. sofrido choque de guerra, e vivia de tomar brandy
e aspirina. Falou-nos sobre uma moça com a qual
Isso precisa ser deduzido — nós não dissemos morava, que tomava conta dele, aparentemente
isso —, mas é evidente. por motivos patrióticos. Contei a Faulkner sobre
o sujeito, e copiamos a ideia. Não acho que, no
Há uma porção de coisas que as suas personagens filme, a garota estivesse apaixonada por [Warner]
não dizem. Há uma porção de coisas que você não diz. Baxter. É claro que não se pode concluir muita
coisa a partir do filme, porque June Lang era
Creio que sim. incapaz de representar; era muito difícil fazê-la
refletir qualquer tipo de emoção.
The road to glory, que você fez em 1936, tinha algo
a ver com The road to glory, que você fez em 1926? Por que você a escolheu?

Não. Nada Fiz porque Zanuck tinha compra- Eu estava fazendo testes num domingo com
do um filme francês chamado Les croix de bois umas dez moças, e June apareceu. Eu não sa-
[Raymond Bernard, 1932], que tinha algumas ce- bia de onde ela havia surgido, e na verdade tinha
nas fabulosas — cenas maravilhosas de grandes aparecido lá por conta própria. Ninguém a tinha
massas humanas se movendo no front e dentro de chamado. Ela era tão ruim que eu disse ao ca-

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meraman: “Meu Deus, precisamos ficar com e, de vez em quando, eu o tomava emprestado
ela um pouco mais de tempo — essa moça é para fazer uma cena. Gostei da cena em que eles
tão ruim que se imprimirmos o filme isso vai recebem capacetes de aço e ele diz: “Estamos
destruí-la para sempre”. Por isso trabalhei com sentados sobre uma mina, e eles nos dão ca-
ela e fiz uma cena; Zanuck, Schenck, todo mundo pacetes”; então ele vira o capacete para cima
ficou completamente enlouquecido com ela. Eles e se senta sobre ele como se fosse um penico. O
a contrataram, e eu me ferrei. público se desmanchava.

Nas filmagens você não conseguiu trabalhar com Quanto de sua concepção restou em Come and get it
ela como fez no teste? depois que você foi substituído por [William] Wyler?

Eu tive de fazer isso, e não foi por culpa dela — June Ah, tudo. Wyler só filmou cerca de trinta metros
era só uma criança, com dezesseis ou dezessete de cenas que eu tinha escrito, de modo que, na
anos de idade, e estava contracenando com Warner verdade, o filme é meu.
Baxter. Uma garota linda, que trabalhou muito
duro, mas era só uma criança, que pensava como Wyler disse que nada poderia ser feito com a segunda
uma criança. Era muitíssimo difícil fazer um filme metade, que a primeira metade era intrinsecamente
adulto com ela. Assim, fizemos o melhor de que boa, mas a segunda não.
fomos capazes. Ela não aborrecia ninguém, por-
que era tão bonita, tão bela de se olhar. O seu A segunda metade nunca foi boa, de modo que
papel não era muito importante no filme, mas ele está correto em dizer que não havia muito o
sei que teríamos conseguido mais se tivéssemos que ser feito com ela. A primeira metade é uma
contado com uma atriz mais experiente. bela história de amor, até que o homem larga a
mulher devido à sua ambição, e ela se casa com
Fiz um teste com uma moça ótima, mas que o seu melhor amigo. Anos mais tarde, depois da
tinha sotaque do Texas, e não havia meio de morte dela, o sujeito se apaixona pela filha, mas
imaginar que ela pudesse ser francesa. Tinha um a perde para o próprio filho. Bem, é uma história
encontro com Jack Warner, e aproveitei para lhe bastante besta. A primeira parte era sobre o corte
dizer: “Hoje fiz um teste com uma garota que você da madeira, com o desenvolvimento de algumas
deveria contratar”. E ele a contratou — era Ann boas personagens; mas, quando chegou a hora de
Sheridan. contar a segunda história, empacamos.

Você só a escalou num filme dez anos depois. Acontece que Sam Goldwyn era vidrado em escri-
tores proeminentes, e como Edna Ferber tinha
Sim, em I was a male war bride. escrito umas coisas importantes, ele comprou
o romance, e estava decidido a realizá-lo. Eu não
Lionel Barrymore estava muito bem no filme. queria fazer o filme, mas a mulher de Goldwyn me
implorou que o aceitasse. Ele havia contratado
Ah, sim, bem como Gregory Ratoff. Ele estava uma garota, que se casou com um persa, ou coisa
trabalhando em outro filme no mesmo estúdio assim não me lembro do seu nome —, uma loira

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linda, e queria que ela fizesse o papel de Frances as cenas que eu tinha escrito e lhe deu o crédito
Farmer. Aí Sam adoeceu, afastou-se para fazer de co-direção.
uma operação, e eu fiz o filme sem ela.
A única parte que não parece ter sido dirigida por você
Bem, a história de Edna Ferber era sobre uma é o final.
pequena garota manca que cantava tão mal que
era vaiada pelos lenhadores. Eu a transformei Exatamente — nunca cheguei a ver o filme.
numa mulher grande, voluptuosa, cheia de au-
dácia — completamente diferente. Quando Sam Perto do início do filme há uma grande briga num
voltou, eu estava terminando o filme; Frances saloon, em que os caras atiram bandejas metálicas
Goldwyn me procurou e disse: “Howard, ele uns contra os outros.
quer ver o filme”. E eu respondi: “Ele ainda está
doente?”. “Sim.” “Então não o deixe ver o filme; Ah, eu tinha visto isso acontecer num saloon de
invente uma desculpa. Não o deixe ver o filme até San Francisco. Acabou com o lugar. Percebi que
que esteja se sentindo bem.” Ela respondeu: seria muito fácil incluir aquilo num filme e fazer
“Não consigo impedi-lo”. “Bem, então se prepa- parecer real.
re — ele vai desmaiar.” E, com todos os diabos,
ele desmaiou mesmo, ou fingiu desmaiar — mas A sua família não era do negócio da madeira?
certamente ficou chocado.
Era. O meu avô tinha uma fábrica de papel, e
No dia seguinte ele me chamou. Fui até lá, Sam também o meu tio. Em Wisconsin tudo eram
começou a falar, e eu lhe disse: “Espere um ins- madeireiras e fábricas de papel. Do outro lado
tante, Sam, você está doente?”. “Sim, sim, es- da rua ficava a famosa fábrica da Kimberly-Clark,
tou.” Então eu disse: “OK. Há uma solução. Você que faz copos de papel e coisas desse tipo.
tem alguém em quem confie — alguém a quem
você possa dizer o que deseja que seja feito?”. Como o seu avô se chamava?
Ele respondeu “sim”. Eu lhe disse: “Bem, preste
atenção, diga-lhe e deixe que ele me diga. Não Charles Howard. Ele era uma das quatro per-
brigue comigo”. Ele respondeu: “OK”. Assim, ele sonagens do livro de Edna Ferber. Ela me per-
instruiu um sujeito, o cara me transmitiu, e eu guntou como é que eu sabia tanto sobre aquilo, e
escrevi algumas cenas. Depois, Sam me chamou eu lhe contei que o meu avô era Charlie Howard;
outra vez. Disse: “É exatamente o que eu que- ela disse, então: ‘Ah, diabos, você conhece isso
ria — quem foi que você pegou para escrever?”. mais do que eu”.
Respondi: “Quem escreveu fui eu”. E ele então
disse: “Diretores não deveriam escrever”. Então Quem filmou as sequências de derrubada de árvores
eu pedi demissão. Irving Thalberg me chamou foi Rosson, não é?
e me pediu que voltasse, por ele, mas eu lhe
disse: “Não vou trabalhar para aquele idiota”. Sim, foi Rosson.
Que ideia um diretor não poder escrever! Com
isso, Goldwyn designou William Wyler para fazer Você não queria ter filmado aquilo você mesmo?

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Ah, não, ele fazia aquilo tão bem. Aconteceu uma capaz de fazer o papel”. Fiz com que ela lesse um
coisa incrível naquelas filmagens: um dos sujeitos pouco, e comecei a me entusiasmar e lhe disse que
que estava cortando a parte superior de uma árvo- iria fazer um teste. Começamos a discordar porque
re foi até o topo e lá morreu de ataque cardíaco. Os ela apareceu cheia de maquiagem e querendo
outros lenhadores gastaram um tempão decidindo “representar”; deixei-a fazer como ela queria, de-
o que fazer para conseguir o seguro mais alto pois lhe mostrei o teste e perguntei: “Qual é a sua
possível para a viúva. Eles tinham receio de que, opinião?”. Ela respondeu: “Estou horrível”. Aí eu
se o deixassem cair de lá de cima, ele se partisse disse: “OK, onde é que você mora?”. E, naquela
em pedaços ao chegar ao chão — estava tão frio no noite, peguei-a em casa, e percorremos alguns
topo da árvore que pensaram que, provavelmente, pequenos cafés até encontrar alguém que se
o sujeito tinha se congelado. Usei o mesmo grupo comportava do modo como eu queria que ela
de lenhadores em The big sky [1952]. representasse: uma garçonete numa cervejaria.
Eu disse a Frances: “Durante dez noites você
O que você achou de trabalhar com Gregg Toland? virá a este lugar. Deixe que lhe passem cantadas.
O pior que poderá lhe acontecer é lhe passarem
Gostei muito dele. Trabalhei com quatro gran- as mãos nas pernas”. Ela era uma moça grande
des cameramen. Com Toland e Russ Harlan era e forte que sabia se cuidar. “Depois faremos outro
mais fácil trabalhar. James Wong Howe e Lee teste.” Depois de dez dias ela voltou e fez o teste,
Garmes eram tão bons quanto os dois primei- sem maquiagem nem nada, mudando apenas a
ros, mas não tinham a mesma naturalidade; atitude. Ah, ela era maravilhosa, provavelmente
eram muito sérios, e com eles o trabalho fica- a melhor atriz com a qual já trabalhei, fora
va mais parecido com tarefa. O cameraman faz Lombard e Rosalind Russell.
uma diferença enorme — não apenas no que diz
respeito à qualidade da imagem, mas também Você a contratou?
em relação à equipe e ao espírito que a envolve.
O cameraman pode destruir tudo. Já trabalhei Não, ela era contratada da Paramount.
com alguns muito bons, mas pelos quais eu não
daria um centavo sequer. Depois de ter come- Você teve de usá-la por empréstimo?
çado o trabalho, eu me arrependia e não sabia
o que fazer, porque alguns deles não estavam Sim. Ela começou a enfrentar grandes dificulda-
interessados em fazer filmes — eles deixavam des, porque o estúdio começou a lhe impor coisas
tudo para os seus operadores. e a forçá-la a participar de filmes ruins. Frances
brigava e discutia, e fazia com que os diretores
Qual foi a sua impressão de Frances Farmer? Ela foi a detestassem — porque tinham de fazer um
extraordinária no filme. filme em xis dias e como raios iriam conseguir
com aquela moça discutindo tudo? Eu vivia lhe
Ela entrou para fazer o papel de uma garota dizendo: “Pelo amor de Deus, faça a coisa. Faça
sueca. Ela estava ganhando 75 dólares na Pa- o que lhe dizem para fazer”. Mas ela começou
ramount, e eu disse: “Por Deus, você deveria ser a ficar deprimida, passou a beber e acabou se
a atriz principal neste filme”. Frances disse: “Sou tornando alcoólatra. Uma coisa triste. Frances

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também teve um caso com Clifford Odets, o que Quando eu era produtor na MGM, fiz um roteiro
não ajudou em nada. Ela tinha uma bela aparên- que achava bom. Ninguém sabia da sua existên-
cia e habilidade para representar —podia fazer cia, e eu estava debatendo comigo mesmo se
qualquer coisa —, tinha grande personalidade. deveria roubá-lo ou viver com medo pelo resto
da vida. Decidi submetê-lo à leitura de Fleming,
Quando a conheci, ela não bebia — nem sequer e ele disse que adoraria realizá-lo. Eu disse “OK”.
fumava —, era a pessoa fisicamente mais limpa que Eu não tinha contado a ninguém que estava tra-
já se viu. O seu aspecto era sempre de alguém que balhando naquilo.
estava brilhando. Certa vez lhe enviei umas coisas
por meio de um mensageiro e, ao retornar, ele Muito do filme parece mostrar que você teve algu-
me disse: “Sr. Hawks, sabe o que a moça estava ma coisa a ver com ele, como a história de grudar
fazendo? Ela estava com uma toalha de mesa um chiclete no avião para dar sorte e o antagonis-
enrolada na cintura como se fosse um vestido mo sexual entre Gable e Myrna Loy. Há cenas que
longo e recitando Shakespeare enquanto varria você repetiu mais tarde, em Only angels have wings,
a casa” — uma imagem e tanto. sem falar nas cenas que já comentamos, em que
Tracy diz a Gable “eu te amo”, e em seguida lhe
Gostei muito da cena em que ela canta “Aura Lee”. dá uma mordida na cabeça. Mas, apesar de tudo,
Test pilot não é realmente um bom filme.
A mulher que trabalhava no café (aquele que Fran-
ces frequentou durante dez dias para observar) Não. A história era bastante boa, mas é muito
se inclinava para falar com alguém numa mesa; difícil trabalhar com algo que outra pessoa ima-
havia um piano; a sua música começava, ela se ginou, como Fleming teve de trabalhar e fazê-la
virava e cantava; no meio, ela se voltava e falava funcionar. Não interferi enquanto ele fazia o filme,
alguma coisa para as pessoas da mesa, depois só dei a partida.
voltava a cantar e de repente dizia: “Sim, claro,
vejo vocês amanhã”, e continuava a cantar. Fran- Você não é creditado pelo roteiro.
ces a viu fazer isso, e pusemos no filme muitas
coisas dessas. Não, eu não queria levar o crédito por trabalhos
de redação devido ao dinheirão dos ganhos de
O que você fez com ela faz lembrar o que você faria mais capital. Veja, se eu comprasse uma história e
tarde com Lauren Bacall, o que, por sua vez, me faz contratasse um redator de segunda pagando 3500
lembrar do que Sternberg tinha feito com Dietrich. dólares e depois reescrevesse todo o roteiro e o
vendesse por 125 mil dólares, isso representava
Ah, bem, sabe que quando Marlene assistiu Bacall um ganho de capital. Mas se eu levasse o crédito
em To have and have not, ela disse: “Seu filho da mãe. por escrever, não ganharia nada, porque uma
Isso sou eu quinze anos atrás”. E eu respondi: “É história foi comprada e o meu esforço faz com
verdade. E quinze anos depois de Bacall, faremos que ela passe a valer mais, isso não é ganho de
de novo com alguma outra atriz”. capital. Mas eu ganhei muito dinheiro reescre-
vendo roteiros.
Quanto de Test pilot [1938] você mesmo escreveu?

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Você fez isso muitas vezes? muito talento, mas só trabalhava bem comigo,
com Victor Fleming ou alguém assim — era pre-
Muitas vezes. ciso lhe dizer o que escrever, e nesse caso o que
escrevia era realmente bom.
Isso tende a bagunçar os créditos dos filmes.
Como foi que aconteceu Bringing up baby [1938]?
Pode reparar, no início, eu escrevia muitas histó-
rias, e de repente parei isso porque um sujeito Eu estava trabalhando na RKO e li uma história
esperto me disse: “Não faça desse jeito”. Para maravilhosa, escrita por Hager Wilde. Ela não en-
fazer um filme para a Fox, impus a condição de tendia coisa alguma de escrever para o cinema, e
lhes vender seis ou sete histórias que eu havia assim Dudley Nichols entrou para trabalhar com
comprado e em cima das quais tinha escrito ela no roteiro.
roteiros, mas havia decidido não realizar. Era
um investimento grande, do qual eu queria me Qual era a base da história?
livrar. Obtive um preço excelente e mais o ganho
de capital. Era só a história de uma moça que tinha ar-
ranjado um leopardo. Desbastamos a trama e
Consta que você contribuiu em diversas histórias incluímos coisas — como a montagem do bron-
feitas para Clark Gable na MGM sem nunca ter tossauro que desmorona no fim. Dudley Nichols
sido creditado: Red dust [Terra de paixões] [1932; era um roteirista excelente.
Victor Fleming], China Seas [Mares da China] [1935;
Tay Garnett]. O filme não é basicamente sobre um sujeito que
tem uma vida anti-séptica, e que é virada de per-
Sim, sempre achei que o forte de Gable era fazer nas para o ar com o aparecimento daquela moça
o vilão. Em Red dust ele estava na sua melhor meio amalucada?
forma — tudo o que tinha de fazer era ser um
completo grosseirão, mas as pessoas gostavam A coisa toda é um exagero completo. Não é direta
dele, em especial as mulheres, elas o adoravam. em momento nenhum. Via-se aquilo se desenvolver
Mais tarde, Gable passou a fazer papéis principais, em Gary. Do ponto de vista da moça, percebia-se
mas nunca tão bem como antes. Eles refilmaram logo de início que ela tinha assestado as baterias
Red dust e lhe deram o nome de Mogambo [Mogam- contra ele.
bo] [1953], você sabia disso?
A certa altura, o psiquiatra diz: “O impulso amoro-
Claro, foi John Ford quem o dirigiu — foi um bom so muitas vezes se revela em termos de conflito”
filme, nas duas versões. — isso é engraçado, acontece em quase todos os
seus filmes.
A trama é boa. John Lee Mahin, que eu tinha tra-
zido de Nova York para fazer Scarface, trabalhou Sei disso.
no filme. Ele era jovem, atuava na publicidade e
era protegido de Hecht e de MacArthur. Tinha

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No filme você pretendia exprimir alguma opinião aprendi uma lição com esse filme: não pretendo
sobre cientistas e acadêmicos? nunca mais fazer com que todos sejam malucos.
Se o jardineiro fosse normal, se o xerife fosse
Não, quando se realiza um filme desse tipo, a graça
apenas um interiorano perplexo — mas todos
está em se aproximar ao máximo da caricatu- eram muito esquisitos. Isso foi um equívoco que
ra. Acontece que, no instante em que se faz a percebi, e que não cometi mais. Creio que o filme
caricatura de alguma coisa, se é acusado de se teria tido mais sucesso de bilheteria se tivesse
desgostar daquilo. Mas na verdade o que se faz incluído algumas pessoas sãs — todo mundo era
é apanhar aspectos que produzem uma boa ca- gira. Mas Harold Lloyd me disse que o filme foi a
ricatura— a atitude dos jornalistas, a atitude doscomédia mais bem construída a que ele já tinha
cientistas—, e isso leva as pessoas a pensarem assistido.
que se está fazendo gozação com essas atividades.
É por isso que é divertido fazer um cientista, ou A iluminação era muito mais escura do que na
um inventor, ou alguém que se encontra numa maioria das comédias.
situação especial.
Os backgrounds eram escuros, mas a luz no ros-
Você diria que, no fim do filme, Grant abandona a to dos atores era normal. É só uma técnica de
sua carreira científica? iluminação.

Bem, digamos que ele está confuso. Ele se divertiu As cenas em que Grant e Hepburn procuram pelo
muito, e se alguém tivesse de escolher entre as osso têm um caráter muito sombrio, embora muito
duas moças, decerto escolheria Hepburn. Como eu engraçado.
disse, começamos com uma caricatura completa
do homem e depois reduzimos essa intensidade, Bem, para Cary aquilo era uma completa tragédia,
para lhe dar a sensação de normalidade, pois não é mesmo? Veja, o cientista é envolto por certa
certamente não se divertiria na vida se continu- dignidade. Assim, se fica de gatinhas à procura
asse da outra maneira, não é mesmo? O final é de algo pelo chão, ele se torna ridículo. Nisso
bastante feliz. No início é preciso quase exagerar Chaplin sempre era muito bom. Quanto mais
para que, à medida que o filme progrida, ele se cheias de si as pessoas são, mais se torna fácil
torne mais normal devido à sua associação com rir delas. A cena em que Katie Hepburn perde a
a garota. Grant disse: “Estou deixando a minha parte de trás do seu vestido é engraçada porque
caracterização cair”. E eu respondi: “Não, isso é ela estava toda arrumada, e querendo parecer
por causa da influência dela. Você está se tornando superior a toda a situação.
um pouco normal”.
Essa é uma das melhores sequências do filme.
Então, para você, quem é normal é Hepburn.
E tinha o melhor diálogo, mas ninguém nunca o
Creio que o filme tinha uma falha grave e aprendi ouviu. Ele pisa no vestido dela e com isso arran-
muito com isso. Não havia nenhuma pessoa nor- ca toda a parte traseira, e ela está vestindo uma
mal no filme. Todo mundo era lunático. Mas calcinha engraçadinha; ele corre, tira a cartola e a

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segura por trás dela. "Que raio você está fazendo?” o osso?”. E ela respondia: “Está na caixa”, ou algo
‘Ah”, diz ele, “sinto-me com um perfeito idiota.”10 assim. Bem, eles começaram a rir. Eram dez horas
O público sempre ria tanto que os censores não da manhã, e às quatro da tarde ainda estávamos
ouviam a fala. Foi só quando o filme começou a ser tentando fazer a cena, e eu já começava a duvidar
exibido na TV que se pôde ouvir direito o diálogo. de que conseguiríamos. Tentei mudar o diálogo.
Não adiantou nada — eles continuavam rindo.
Em certa altura Grant afirma: “Isto é provavelmen- Acontece que eles estavam atribuindo sentidos
te a coisa mais tola que já me aconteceu” mas a obscenos às falas, e não conseguiam deixar de rir.
sua personagem era tratada muito seriamente,
ela não era cômica. Lembro-me de outra ocasião em que fazíamos
uma cena e Katie falava tanto que não conseguia
Ah, ele era perfeitamente sério. Ele caía em algum me ouvir. Gritamos: “Silêncio!”. Ela não ouviu. “Si-
lugar junto com ela e terminava com uma rede lêncio!”, de novo, e ela continuou não ouvindo; por
de pesca sobre o rosto. Ela começava a rir, e ele isso, mandei todo mundo parar, e de repente, no
dizia: “Por favor...”. E não fazia nada com a rede. meio de uma frase, ela parou e perguntou: “O
“Parece que sempre que estou com você alguma que há?”. Respondi perguntando quanto tempo
coisa me acontece”, ele diz, e esse é exatamente teríamos de aguentar a imitação de papagaio que
o modo como um homem pensa. Ele não precisa ela estava fazendo. Ela então me disse: “Gostaria
de falas engraçadas — as situações nas quais se de falar com você”, e me conduziu para os fun-
via é que o tornavam engraçado. dos do set. “Você não devia me dizer esse tipo
de coisa”, afirmou; “é capaz que alguém deixe
Certa vez você me disse que no início Hepburn não cair um refletor em sua cabeça. Essas pessoas
sabia realmente como fazer as cenas e que por são minhas amigas.” Olhei para cima, e lá esta-
isso você levou Walter Catlett para ajudar. va um sujeito que manejava um dos refletores.
Aquele cara tinha sido eletricista na época em que 10. Intraduzível: I
Como era um antigo comediante, Catlett era eu era contra-regra, eu o conhecia há muitos e feei a perfect ass.
Ass significa tanto
capaz de lhe transmitir o modo de fazer aquele muitos anos. Perguntei-lhe: “Peta, se você tives- “idiota”, “burro”
tipo de coisa. Num instante, ela apanhou a ideia se de escolher entre deixar cair um refletor na como “bunda”.
e se desculpou. Katie disse: “Nunca fiz este tipo srta. Hepburn ou deixar cair em mim, quem você
de comédia, e me pareceu que eu deveria sem- escolheria?”. Ele respondeu: “O senhor poderia
pre tentar ser engraçada. Acabo de descobrir sair da frente, por favor, sr. Hawks?”. Katie olhou
que não se deve tentar ser engraçado, mas, ao para cima, depois para mim, e disse: “Acho que
contrário, quanto mais sério se agir, quanto me enganei”. E eu respondi: “Katie, ele não está
mais honestamente se comportar, mais gozada errado, quem está errada é você. Digo-lhe uma
a cena resulta”. coisa: se aquilo acontecer de novo, dou-lhe um
chute no traseiro”. Ela respondeu: “Você não terá
E não pense que não foi difícil fazer o filme! Aquele de fazer isso”. E daquele momento em diante ela
maldito leopardo — e depois o cachorro, correndo foi simplesmente maravilhosa.
por todo lado com o osso. Katie e Cary faziam
uma cena em que ele dizia. “O que aconteceu com

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Sabe, ela é tão intensa que não consegue suportar Você trabalhou por muito tempo com Hecht e
as esperas que acontecem num set de filmagens. MacArthur?
Mas Hepburn deu charme à personagem. Ela era
insistente, mas jamais inadequada. Ao procurar Tínhamos um roteiro completo — que Stevens
outra pessoa de modo tão insistente ela poderia usou —, mas o seu ritmo é muito mais lento do
ter se tornado muito inadequada, mas conseguiu que o meu, de forma que ele teve de eliminar uma
evitar isso. porção de coisas para chegar à duração exigida.
Guardei um dos roteiros antigos — ainda poderia
Alguém escreveu que esse filme mostra a regres- usar bastante do que há ali.
são do ser humano ao animal primitivo; leu-se
uma porção de coisas no filme. O seu elenco era o mesmo que o dele: Grant, Fair-
banks, McLaglen?
Sei disso. Em Paris, trinta pessoas me pergun-
tavam: “O que você achava que estava fazendo?”. Não me lembro, mas creio que na época esse era o
“Nada”, eu respondia, “só achei que era engraçado.” único tipo de elenco que poderia ter elevado tanto
o orçamento. Naquele tempo era possível fazer um
Foram Hecht e MacArthur que escreveram Gunga filme bastante bom com meio milhão de dólares.
Din [1939; George Stevens] para você?
Como se originou a história de Only angels have
Escrevemos a história e a aprontamos, e, se bem wings?
me lembro, o orçamento era de 1.8 milhão de
dólares; o sujeito que mandava na RKO na época Only angels have wings nasceu de uma história
conversou comigo e disse que gostaria de fazer real. Existiu um pequeno campo de aviação como
o filme por 1,2 milhão. Respondi: “Não acho que aquele — um sujeito conversava pelo rádio com
seja possível. Creio que se possa talvez cortar 200 os pilotos que passavam por ali. Um dia, uma
mil dólares”. “Bem, eu posso cortar outros 200 mil corista parou lá, encontrou o sujeito, bebeu um
dólares, de modo que já chegamos a 1,4 milhão de pouco, dormiu com ele e se apaixonou. Ficou por
dólares.” Aí eu lhe disse: “Bem, o que acontece ali e os dois se casaram. Era um dos casais mais
se nós dois cortarmos as mesmas coisas?”. Eu felizes que já conheci.
me aborreci com aquilo. Ele tinha produzido
os filmes Astaire-Rogers, mas o seu balanço no Havia uma história maravilhosa a seu respeito que
estúdio estava equilibrado — não havia lucro nem não pude usar no filme. Fui à festa de aniversário
prejuízo —, mesmo com todos aqueles sucessos do casamento, e um sujeito com o rosto cheio de
que tinha alcançado. Isso significava que o resto cicatrizes — tinha sofrido muitas queimaduras num
dos seus filmes não haviam conseguido coisa desastre — levantou-se e fez um discurso. Disse:
alguma. Disse-lhe: “Não creio que eu deseje "Hoje faz um ano que vocês se casaram. Lá pelas
confiar no seu julgamento”. Isso não ajudou em duas horas vocês se livraram de nós. Entraram
nada na nossa relação. Então ele decidiu fazer o na cama às duas e dez; depois se levantaram
filme com George Stevens; acho que custou 2,8 — alguém saiu da cama”; e, por três ou quatro
milhões de dólares. minutos, descreveu as atividades do casal, até que

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ela disse: “Seu filho da mãe, você estava espiando”. -brisa aconteceu de verdade. Atravessou o para-
E ele disse “não”, e mostrou um gráfico, feito por -brisa, acertou o anteparo por trás do co-piloto e
uma máquina que havia nos aviões alemães e que o amassou. Não sei se partiu o pescoço de alguém,
registrava os movimentos do aparelho desde o como no filme, ou se só os machucou — mas acon-
momento em que o motor era ligado, a corrida teceu de verdade. Certa vez, uma ave atravessou
na pista e assim por diante; eles tinham pen- a parte anterior do avião que eu estava pilotando
durado o aparelho sob o colchão nupcial. Com e me assustou muito, porque as consequências
isso, obtiveram um registro completo da noite podem ser graves. Não existe prazer em voar na
de núpcias. Ela adorou aquilo. Eles penduraram África: fica-se ali sentado vigiando aquelas aves
o gráfico sobre a lareira. Aquela personagem era enormes, porque, se trombar com uma delas, a
real — foi Jean Arthur quem representou o papel. sua sorte acaba.

A personagem de Dick Barthelmess também É interessante que em 1939, uma época em que se
era real. Certa vez, Howard Hughes estava fa- voava muito no mundo inteiro, você tenha escolhido
zendo um filme. Ele tinha preparado um bom- um lugar tão remoto para ambientar a sua história.
bardeiro que deveria subir, entrar em chamas e
cair em parafuso; dois sujeitos deveriam saltar Era o único lugar no mundo em que ainda preva-
de paraquedas. Um deles saltou e o outro per- leciam aquelas condições e era perfeito para um
maneceu lá dentro acendendo calmamente os drama. Tinha todas as qualidades de Ceiling zero.
dispositivos de fumaça, até que o avião caiu ao solo. Aqueles sujeitos eram durões. Na época eles não
Quando vi o avião começar a cair, entrei num carro se encontravam naquele campo em particular,
e fui até lá; o sujeito estava dentro, morto como mas eu os conheci, e eles me contaram sobre o
um prego. Depois encontramos o sujeito que tinha campo. Eu apenas combinei as suas histórias.
saltado. Ele não deveria ter saltado antes de ter
se assegurado de que o outro também estava O filme foi todo feito em estúdio?
pronto para saltar. Bem, ele passou o resto da
vida tentando provar que era corajoso. Compa- As cenas aéreas foram feitas fora, mas o grande
recia a todos os circos aéreos com um pequeno desastre no campo foi realizado no terreno do es-
avião que ele mesmo tinha construído, até que túdio. Construímos uma rampa, ligamos os mo-
não aguentou mais e se matou. Barthelmess fazia tores, derrubamos o avião, e ele se esborrachou.
essa personagem.
E quanto ao Porto de Baranca?
Vocé reescreveu o roteiro à medida que progredia?
Aquilo foi um belo trabalho feito no interior de
Sim, claro. Quando se trabalha com atores tão uma tenda.
bons, é fácil discutir uma cena e perguntar: “E
agora, o que acontece? O que você estaria sen- Uma tenda!?
tindo?”. E incluíamos aquilo no filme. Mas muitos
dos incidentes eram coisas que tinham realmente
acontecido. A cena em que a ave atravessa o para-

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Em North Hollywood. Uma coisa linda — o came- está fazendo aqui?”. Ela responde: “Bem... es-
raman era Joe Walker — o cameraman de Capra; tou tentando encontrar algo para comer”. “Você
as cenas aéreas foram feitas por Elmer Dyer. deveria ter ido embora.” “Bem, não fui.” “E por que
você não foi?” “Eles não tinham bananas.” Eu
O filme representou a culminância de muitas ideias queria que ela ficasse confusa em relação ao que
com as quais você tinha lidado antes, mas me estava comendo — mexesse o café com a faca,
parece que você não ficou contente com o desem- passasse manteiga no pão com o garfo — para
penho de Jean Arthur no filme. que todos os seus gestos provocassem riso. Jean
não queria fazer a cena assim. Disse-me: “Não
Não. Jean não queria tentar nada que já não ti- consigo fazer esse tipo de coisa”. Bem, o que se
vesse feito antes. Ela era muito boa no seu próprio poderia fazer? Não era possível forçá-la. Ela teria
estilo, mas ficava assustada ao tentar alguma coisa sido capaz. Era só medo, e não a culpo por isso.
diferente. Quando terminamos, eu lhe disse: “Você
é uma das poucas pessoas com quem já trabalhei O relacionamento entre Thomas Mitchell e Grant é
e que não creio ter ajudado em nada. Algum dia parecido com o que existe entre Brennan e Bogart
você vai ver o que eu queria, pois vou fazer essa em To have and have not.
personagem de novo”. Bem, alguns anos mais
tarde, quando viu [Lauren] Bacall [em To have and Ah, claro. São muito semelhantes.
have not], ela me disse: “Fui uma idiota. Daqui
para a frente, sempre que você quiser fazer um Mitchell faz mais, é muito mais capaz e não é um
filme, não precisa sequer me contar a história: eu bêbado, mas se não morresse no final de Only an-
a farei”. Ela é muito boa — foi apenas um desajuste gels have wings, será que ele não teria terminado
localizado que a impediu de fazer o que eu desejava. como Brennan em To have and have not?

Grant passa a se comportar antagonisticamente Muito possivelmente. É o mesmo relaciona-


em relação a ela no instante em que descobre mento, um homem depende do outro, e o outro
que é uma corista — convence-se de que ela não guia o primeiro. No filme com Bogart havia uma
presta; o mesmo que Bogart e Wayne fazem em To longa fala sobre isso, quando o sujeito faz Brennan
have and have not e Rio Bravo. De onde saiu isso? se calar. Ele diz a Bogart: “Você toma conta dele,
não é?”. E Bogart olha e diz: “Ele pensa que toma
Ah, não sei. Mas naquela época eu tinha aprendido conta de mim”.
um pouco sobre como realizar cenas, e acho que
aquela em que Arthur e Grant parecem que vão Creio que muitas das suas personagens se inter-
dormir juntos, e ele vai até a porta, abre-a e diz: -relacionam; é quase como se Grant em Only angels
“Siga o seu nariz e você encontrará o navio”, era o have wings, Bogart em To have and have not e Way-
ápice desse tipo de coisa. No dia seguinte, desco- ne em Rio Bravo fossem a mesma pessoa — em
bre que ela não partiu. Bem, em cenas como essa diferentes estágios da vida.
não é preciso falar nada, mas foi aí que Jean e eu
discordamos sobre como fazer a cena. Quando ele É muito possível — os relacionamentos com as de-
depara com ela no dia seguinte e diz: “O que você mais personagens são quase os mesmos. Quanto

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à cena em que Grant diz a Mitchell “você quebrou Essa atitude parece muito associada a homens que
o pescoço, rapaz” — bem, vi aquilo acontecer no se dedicam a ocupações perigosas — na verdade,
campo March. O sujeito disse que preferia es- eles não aceitam a morte.
tar sozinho quando morresse, porque não sabia
como iria enfrentar a coisa, por isso não queria Se eles ficassem de luto a cada vez que alguém
ninguém por perto, especialmente os seus amigos. do esquadrão morresse, gastariam todo o seu
Fizemos isso no filme; Grant sai e fica parado sob tempo no luto e não serviriam muito para pilotar.
a chuva. Que diabo, para realizar essas cenas não
é necessário fazer nada! Mais tarde, quando Jean Arthur começa a com-
preender, ela diz: “Sempre detestei enterros, eles
Creio que era a rudeza de Grant que dava eficácia nunca trazem ninguém de volta; aqui há pessoas
à cena. com essa atitude, e eu me comportei como uma
idiota”. Você pensa isso a respeito de enterros e
Em Rio Lobo, em que fizemos a mesma coisa, Way- das coisas que os envolvem?
ne queria agir mais delicadamente, mas eu lhe
disse: “Não, não — basta acertá-lo com a coisa”. Acho que sim, claro.

A morte de Noah Beery Jr. no início estabelece uma Quando Grant fala sobre a garota pela qual tinha
certa atitude. Grant lhe diz: “Não assuma mais se apaixonado no passado — que o deixou por não
riscos, eu lhe disse para fazer apenas o necessá- suportar o fato de ele ser piloto — Jean Arthur per-
rio”. Depois que ele cai com o avião, diz: “Era o seu gunta: “O que aconteceu com ela?”, e ele responde:
trabalho — mas ele não era bom o suficiente. Foi “Oh, não sei — ouvi dizer que se casou com outro
por isso que morreu”. Em outras palavras, você piloto”. Em outras palavras, as mulheres são tão
culpa o próprio sujeito por ter assumido o risco. doidas quanto os homens.
É assim que você pensa?
Ah, sim. Havia uma história que eu queria contar,
Ah, claro. Ele aceitou o trabalho, mas não era mas não pude incluir no filme. sobre um sujeito
suficientemente capaz. É preciso fazer isso. O baixinho que não conseguia pilotar, mas era capaz
que você faria? Faria Grant chorar pelos cantos de tentar qualquer coisa, por mais maluca que fosse.
por ter enviado um sujeito ao encontro da morte? Ele vestiu um paraquedas, partiu com uma moto-
cicleta o mais rápido que foi capaz, saiu voando do
No entanto, mais adiante na cena, você vira o ar- penhasco de Santa Monica e puxou a corda, mas
gumento e indica que não foi culpa de ninguém, o paraquedas não abriu; ele se chocou contra rins
que foi o destino. cabos telegráficos e como resultado ficou com uma
perna dez centímetros mais curta do que a outra,
Bem, depois que tudo acaba, é o que resta. acabou com a perna. E havia uma moça que andava
Acredito firmemente nisso. Ninguém causa por ai e dormia com qualquer um que lhe desse
nada, exatamente — são as coisas que estão carona num avião — era muito bonita. Ela se casou
destinadas a acontecer. De modo que se deve com aquele sujeito da perna. Eles eram muito felizes
virar ao contrário e dizer isso. juntos. Tentei várias vezes incluí-los num filme.

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Em Only angels have wings há uma tomada com alguma desculpa para não deixar que o ator se
aves no solo e aviões voando. sinta mal demais. Sempre que tentam fazer algo e
não conseguem, é melhor não forçar. Porque Bar-
Ah, sim, em Ceiling zero chamamos aquilo de “tem- thelmess estava chorando de verdade. Ah, Deus,
po de aves no chão” — quando as aves pousam e eu comecei a rir histericamente, e ele perguntou:
começam a andar pelo chão. Acho que é uma exce- “Que diabo está acontecendo?”. Respondi: “Você
lente descrição. parece uma vaca doente”. E continuei: “Sente-se
aí e só deixe as lágrimas saírem dos seus olhos.
Esse não foi um dos primeiros filmes de Rita Vamos colocar uma cebola na sua frente ou algo
Hayworth? assim”. Creio que foi isso o que fizemos.

Foi. Eles queriam que eu fizesse um teste com ela. Grant é uma personagem muito mais vulnerável do
Disse-lhes que, se fizesse, provavelmente não a usa- que qualquer outro protagonista dos seus filmes.
ria, mas ela era tão bonita que fomos em frente e
fizemos o filme. Bem, estávamos pedindo um monte Muito mais sensível. Bogart passava direto por
de coisas para uma garota que estava só começando. cima disso. Wayne ficava...não lacrimoso, mas
piegas. É preciso vigiar essas coisas nele, e é
Ela era boa. preciso vigiar Grant para não parecer sensível
demais. É preciso vigiar Bogart para que ele não
Boa é pouco. No filme ela deveria chorar, e quando pareça insensível. Anda-se numa corda bamba
percebi que não ia funcionar, transferi a cena para o com uma série dessas coisas — mas eles são
exterior e acionei as máquinas de chuva. Ela saiu, a todos tão bons que não é um problema muito
chuva a atingiu e escorreu pelo seu rosto, e parecia grande. Certa vez tive de dizer a Wayne: “O que
que estava de fato chorando. Lembre-se — a chuva você está tentando fazer, pelo amor de Deus? A
sempre produz boas cenas de choro. cabana do Pai Tomás? Vamos lá...”. “OK, OK”, ele
respondeu, “eu só estava tentando incluir al-
Você também fez isso com Grant. Na verdade, acho guma coisa na cena.” E eu disse: “Bem, esta é
que é o único filme seu em que o herói chora. O uma daquelas cenas em que não se tenta incluir
que combina com a ideia de Grant, Bogart e Wayne nada. Só diga as suas falas e vá em frente”. E ele
serem a mesma pessoa em diferentes estágios respondeu: “Está bem, está bem — não precisa
da vida. Um homem jovem é capaz de chorar por continuar falando. Eu parei de falar — pare você
alguma coisa que uma pessoa de meia-idade ou também”. Tudo o que ele realmente quer é tentar
mais velha talvez não chorasse. Também tive a fazer uma cena melhor.
sensação de que esses estágios tinham alguma
coisa de autobiográfico. Você sempre tende a fazer cenas trágicas sem
exagero.
Fiz Barthelmess chorar numa cena de Dawn patrol,
mas ele soava como um bezerro. Às vezes, tentamos O tipo de homem que prefiro retratar não dramatiza
fazer coisas, e elas não funcionam, então dizemos: as coisas — ele reduz a importância delas. Co-
“Bem, espere um instante”, e normalmente acho nheci muitos pilotos e vi muitos pousos forçados,

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e eles não ficam choramingando a respeito do Em His girl Friday as falas eram particularmente
que pode acontecer quando batem no chão. Um adaptáveis a essa técnica. Notei que, quando as
pode perguntar: “Isso já aconteceu com você?”. pessoas conversam, elas falam em cima da fala
“A mim, não.” “Bem, vai ser engraçado assistir a dos outros, em especial quando falam depressa
isso.” Eles assumem essa atitude. Dramatizar ou quando estão discutindo ou descrevendo algo.
não lhes faria nada bem. E creio que o público Por isso, escrevemos os diálogos de maneira que
suspira de alívio quando uma situação familiar o início e o fim das frases se tornavam desneces-
aparece e você não o chateia com ela — fazer e ir sários; estavam lá só para serem superpostos.
em frente. O filme médio fala demais. É preciso Quando um novo ator entrava no filme, demorava
fazer as cenas e deixar que o público trabalhe alguns dias para se orientar, mas todo mundo
um pouco, para que passe a tomar parte do fil- se empenhou e tudo funcionou bem. Há uma
me. Qualquer roteiro fácil de ler não presta. Se qualidade natural, e, estranhamente, torna-se
começa com “Ele olhou para ela e a saudade de bastante dramático.
dez anos apareceu nos seus olhos”, o diretor se
meteu num problema. Nunca conheci um ator The front page[1931; Lewis Milestone] original era
capaz de fazer isso. Se é preciso ler três vezes bastante ágil, não é verdade?
para entender, então talvez haja chance de se fazer
um filme a partir do roteiro. Bem, não sei. Na época, era considerado um marco
entre os filmes sobre o jornalismo. Recebeu crí-
Como foi que você decidiu mudar o repórter que era ticas excelentes, e se dizia que era muito rápido.
homem em The front page [Última hora] para uma Quando estava fazendo o meu filme, três ou qua-
mulher em His girl Friday [1940]? tro jornalistas que apareceram no estúdio falaram
sobre a agilidade do primeiro. Então arranjei dois
Certa noite eu queria provar para alguém que The projetores, e passamos simultaneamente parte do
front page tinha um dos melhores diálogos mo- filme antigo e parte do meu — e eles disseram:
dernos que já tinham sido escritos; pedi a uma “Que diabo! O outro filme é lento!”. Então, acho
moça que lesse as partes de Hildy, enquanto eu que conseguimos o que queríamos, ou seja, fazer
lia as do editor. Depois de certo tempo, parei e com que o filme fosse ágil.
disse: “Raios, é melhor ainda entre um homem e
uma mulher do que entre dois homens”. Então, Além da velocidade, você enxerga alguma seme-
chamei Ben Hecht: “O que você acha de mu- lhança entre His girl Friday e Twentieth Century —
dar tudo de modo que Hildy passe a ser uma por exemplo, no fato de Grant e Barrymore serem
garota?”. Ele respondeu: “Acho uma grande impiedosos?
ideia”. Então ele veio para cá e o fizemos com
Charlie Lederer. Creio que são semelhantes porque foram escritos
pelas mesmas pessoas. Mas, na verdade, Twentieth
Você superpôs os diálogos ainda mais do que tinha Century era uma farsa, ao passo que His girl Friday
feito em Twentieth Century ou em Bringing up baby. não era — baseava-se apenas em coisas críveis,
sem um único momento de farsa. Em Twentieth
Century havia dúzias delas: a maquiagem de Bar-

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rymore ao entrar no trem disfarçado de coronel engraçado que aparece com o perdão e o prefeito
do Kentucky, o sujeitinho maluco que percorria exagerado, todo o resto era bastante normal.
o trem colando adesivos religiosos por toda parte.
Foi ideia sua fazer com que Grant e Russell tives-
Por outro lado, é a mesma coisa de sempre: é sem sido casados no passado?
muito fácil fazer comédia a partir de uma tragédia.
Aquele pobre-diabo que tinha sido mandado para Não, a ideia foi de Charlie Lederer. Quando tive a
a cadeia estava sendo vítima de uma armação. Eu ideia de trocar o repórter por uma repórter, cha-
diria que His girl Friday tem um texto muito me- mei Gene Fowler e lhe perguntei se ele gostaria
lhor do que o outro, embora eu tenha realmente de trabalhar na coisa. Ele respondeu que não
adorado Twentieth Century. É claro que, sempre estava disposto a participar de uma maluqui-
que se comprime uma parcela considerável das ce daquela ordem. Assim, como disse, chamei
realizações das pessoas numa sessão de duas Ben, que me afirmou: “Estou trabalhando numa
horas, obtém-se uma sensação de caricatura, por- história para a qual preciso de alguma ajuda. Se
que num período de tempo tão curto ninguém você me ajudar, vou até aí e o ajudo a fazer a troca”.
conseguiria fazer o que aquela repórter e aquele Bem, já estávamos trabalhando na história havia
editor fizeram. O editor era baseado num editor algum tempo quando Charlie Lederer apareceu
de Chicago que Hecht e MacArthur conheciam, com aquela solução; isso melhorou muito todas
mas eles concentraram anos dos seus feitos e as cenas, e deu mais definição às personagens.
aventuras num só período, por isso o resultado foi Agora sabíamos do que estávamos falando — duas
uma versão compacta e supercarregada do caráter pessoas que tinham sido casadas, que haviam se
daquele sujeito. Ninguém seria capaz, na realidade, amado e se divorciado. Depois disso não custou
de existir e se conduzir naquela velocidade o tem- muito para a história sair. Antes dessa solução
po todo, nem de imaginar todas aquelas coisas estávamos um pouco amarrados, porque o rela-
malucas. A repórter também se baseava numa cionamento entre os dois era nebuloso.
personagem real, eles apenas inventaram uma
história a respeito do seu relacionamento. O crédito pelo roteiro é todo de Lederer.

Você tratou o prisioneiro e a sua namorada de Hecht não esperava ser creditado. Lederer era o
forma bastante séria. seu protegido. Eles colaboravam com muita fre-
qüência. Se um deles ficava encalacrado, o outro
Eu lhe disse que tinha cometido um equívoco ao ajudava.
fazer com que todas as personagens de Bringing
up baby fossem amalucadas, de modo que aquele Grant diz algo como ‘A última pessoa que me disse
pobre sujeito e a garota não tentam fazer rir isso foi Archie Leach, logo antes de cortar a própria
em nenhum instante. Como mantivemos as garganta”; esse era o nome verdadeiro de Grant.
outras pessoas normais, conseguimos extrair mais Como é que isso surgiu?
divertimento das personagens principais, Grant
e [Rosalind] Russell. Fora um repórter, o sujeito Ah, pensamos numa fala, e ele perguntou: “Que
nome devo usar?”. E eu respondi ‘Archie Leach”,

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e ele o disse. O mesmo acontece quando ele diz de outro roteirista. Não é verdade, sr. Cooper?”. E
a uma moça que leve algo para o namorado de ele: “Sim”. E conseguimos tudo isso.
Russell, e ela pergunta: “Como ele é?”. “Ele se
parece com aquele ator, Ralph Bellamy.” Bem, o Quatro roteiristas foram creditados. Quem foi que
ator era Ralph Bellamy. Não imaginávamos que trabalhou de verdade?
o público acharia isso tão engraçado, mas foi o
que aconteceu. Quem fez tudo foi John Huston. Ele permane-
ceu somente três ou quatro dias à minha frente
Como foi que aconteceu Sergeant York [1941]? enquanto escrevia as cenas. Já tínhamos per-
corrido cerca de um terço do caminho quando
A Warners me passou o roteiro dizendo que, se encontrei Jack Warner e lhe perguntei: “O que
eu não o fizesse, o transformariam num filme “B”. você está achando do nosso filme?”. E ele res-
Procurei Jesse Lasky, que era o responsável pela pondeu: “Tenho estado tão ocupado que não
produção, pedi-lhe que desligasse o seu telefone e estou acompanhando”. Então disse a ele: “Bem,
me dissesse por que tinha comprado a história. Ele vamos nos sentar aqui até que você vá até a sala
me contou a história, que era formidável, então eu de projeções e assista ao filme”. Ele foi, e quando
lhe disse: “Acho que posso conseguir Gary Cooper voltou disse: “Isso é a melhor coisa que eu já vi”.
e fazer o filme com ele”. Na época, Cooper era uma
grande estrela. Fui para casa, procurei-o pelo Esse não foi também o filme mais caro que você
telefone e lhe perguntei: “Não foi Lasky quem já realizou?
lhe deu o seu primeiro trabalho?”. “Sim”, disse
ele. E eu retruquei: “Bem, foi ele quem me deu Acho que sim. Tínhamos 78 cenários. Sabe o que
o meu primeiro trabalho, e agora ele precisa de isso significaria num filme feito hoje? Eu lhes dizia
ajuda”. Cooper disse: “Vou até aí”, e veio. para construir os cenários a partir de esboços que
lhes dava, eles só precisavam construir as partes
Ele me disse: “Mostre-me essa arma nova que de que eu ia precisar. Se eu tivesse de realizar
você comprou”. Ele não desejava falar sobre o um close ou reverter algo, eles tinham apenas de
filme, e eu lhe disse: “Preste atenção, Cooper, fazer um pequeno fundo, permitindo-me filmar
temos de conversar sobre o filme”. “Bem, você no dia seguinte. Tudo foi especialmente duro,
quer conversar sobre o quê? Você sabe que vai fa- porque construímos sets ao ar livre e, naquele
zer o filme, não sabe?” Então eu disse: “Ok, venha ano, a Califórnia sofreu com chuvas espantosas
comigo até o estúdio e sempre que eu disser ‘não e muitas vezes ficamos impedidos de usá-los. A
é verdade, sr. Cooper?’ responda ‘sim’”. Fomos até caça à raposa teve de ser filmada em estúdio fe-
lá e conversamos com os executivos da Warners. chado. Lembro-me de que a raposa fugiu e se
“Faremos o filme se vocês não interferirem. Não escondeu sob o palco; os cães corriam até o lugar
é verdade, sr. Cooper?” “Sim”, ele disse. “Mas se em que ela estava escondida e paravam no meio
vocês começarem a nos atrapalhar terá de haver da sequência de caça. Cooper teve de arar o solo
uma multa, não é verdade, sr. Cooper?” “Sim.” E eu em ambiente fechado. A Warners tinha os maiores
disse: “Vamos ter de mudar a história. Precisamos palcos da indústria do cinema. Eles construíram

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uma colina rotatória que girávamos para realizar Tenho certeza de que outras pessoas faziam isso
diferentes tomadas. quando caçavam perus, mas York não.

Certa vez, você me disse que estava preocupado Ele realmente lambia o dedo e o passava na mira
em fazer com que a história fosse crível, porque, do fuzil?
embora a realidade do caso fosse extraordinária,
pensou que ninguém acreditaria. Não creio — aquilo foi inventado por Cooper
e por mim. Depois de ver o filme, York fez um
Sim. Na verdade, York capturou oitenta e tantos comentário interessante: “Bem, deixe-me colo-
alemães, e, quando pensava em como fazer essas car da seguinte forma: eu dei a árvore e Hawks
cenas, não me parecia que poderíamos torná-las colocou as folhas”.
lógicas. Por isso, começamos desde o início com
um tiro disparado contra um peru; ele piou, o peru O final do filme, que suponho ter sido construí-
esticou a cabeça por detrás de uma pedra, e York do para ser feliz, trazia um lado bem definido de
o acertou. Na guerra, ele estava olhando para uma ironia e pathos.
fila de alemães escondidos atrás de uma trincheira
— os alemães estavam todos agachados —fizemos Creio que se eu aparecesse com a ideia de que um
com que York piasse, eles esticavam a cabeça, e dos nossos maiores heróis de guerra era alguém
York os acertava. O público se divertiu com aquilo que não acreditava na luta, as pessoas provavel-
e não levou muito a sério. Bem, desse jeito ele fez mente ririam e o julgariam bastante estranho. A
oitenta prisioneiros e os levou para a retaguarda; história é estranha. Foi dito a um homem muito
quando encontrou um grupo de americanos, quis religioso que viajasse e fizesse tudo aquilo que a
se livrar dos alemães, mas não conseguiu, então sua religião dizia para não fazer, e ao fazê-lo se
teve de continuar. Assim, nos divertimos, e a falta torna o maior dos heróis. Era provável que a sua
de lógica passou despercebida. mente fosse tomada pela confusão, e imagino que
isso seja uma forma de tragédia.
E, no entanto, era verdade.
Fiz a ele centenas de perguntas, como você faz,
Sim, era, inteiramente. Mas por outro lado, creio e ele as respondeu. Perguntei- lhe como tinha
que aquilo aconteceu num momento da guerra se tornado religioso. “Foi no meio da estrada”,
em que os alemães queriam se render. De qual- disse-me ele. Como visualizei isso? Imaginei a
quer maneira, lá estávamos fazendo aquilo em sua mula sendo atingida por um raio no meio da
preto-e-branco, sem mencionar qualquer data estrada. Os redatores haviam escrito uma cena
em particular de que as pessoas pudessem se notável, mostrando como ele tinha se tornado
recordar, e só tínhamos de tornar aquilo mais religioso, mas não acreditei nela. Disse que,
lógico. Tivemos muita sorte. se alguém falasse comigo daquele jeito, eu não
aceitaria a religião. Assim, arranjamos para que
Foi você quem inventou a história de York fazer o peru umas pessoas do Tennessee cantassem; elas
aparecer piando como ele ou isso aconteceu mesmo? se entusiasmaram, e nós o situamos numa pe-
quena casa; ao ouvi-Ias cantar, a religião o tomou.

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Mas, de novo, se reparar bem, a coisa está sendo nada”. E isso resultou numa cena muito melhor.
amenizada. Não se deve ofender as pessoas com Quando ele parte, a sua irmã pergunta: “Mãe,
declarações grandiosas; se elas querem acredi- por que ele está indo embora?”. E a mãe responde:
tar, ótimo, mas não se deve lhes enfiar as coisas “Não sei direito”. Elas não sabiam, e ele também
goela abaixo. não. Estava partindo para a guerra, e imaginei
que seria melhor não tomar partido na discussão.
Depois de ter acabado o filme, fui até lá para sentir Quer dizer, eu não era capaz de fazer isso, então
se havia feito um bom trabalho. Ouvi algumas deixamos daquele jeito, e as pessoas gostaram.
pessoas fazendo comentários, e uma delas disse:
“O sujeito que fez este filme certamente sabia Esse filme resultou na sua única indicação para o
o que estava querendo. As pessoas parecem Oscar. O que você acha dos prêmios da Academia?
mesmo gente das montanhas, até falam como
elas”. Bem, eu tinha contado com a colaboração Acho que alguns dos filmes premiados não são
de algumas dessas pessoas; elas liam as falas, grande coisa, por isso, acho que o Oscar não sig-
os atores tentavam imitá-los, e as coisas muda- nifica muito para mim. Vi muitos filmes dos quais
vam. Mas aquelas pessoas são muito infantis e não gostei, mas eles foram indicados e receberam
extremamente retrógradas. As pequenas cenas o Oscar. Isso nada tem a ver com o fato de eu
na venda indicam isso. nunca ter sido premiado. Os banquetes do Oscar
são tão ridículos — não concordo com aquilo.
De modo que não estávamos lidando com um Ouvi muitos discursos de aceitação do prêmio que
homem sofisticado — ele estava perplexo, e ten- teriam dado boas comédias...
tamos retratar uma pessoa perplexa. Não tentei
fazer sermões nem provar nada — só imaginei Como foi que aconteceu Ball of fire [Bola de fogo]
o que me parecia existir naquela pessoa e tentei [1942]?
mostrar isso. Cooper se ajustou tão bem que foi
um prazer fazer o filme. Não tivemos nenhum tipo Goldwyn me chamou, e [Charles] Brackett e Billy
de problema — nadamos a braçadas ao longo das Wilder me contaram a história. Eu disse: “OK, eu
filmagens. faço”. Aí fui pescar com Hemingway por umas
três semanas. Voltei imaginando que eles já
A cena em que York dá adeus a sua mãe ao partir tinham adiantado bastante do trabalho, e per-
para a guerra é uma das melhores do filme. guntei: “Como estão indo?”. “As coisas não vão
bem.” “O que está acontecendo?” “Não sabemos
Margaret Wycherly — ela era realmente uma atriz do que se trata.” Respondi: “É Branca de Neve e os
soberba. Quando estávamos ensaiando, eu lhe sete anões”. E Billy disse: “Terminamos numas
disse para cortar uma fala. ‘Ah, essa é uma das duas semanas!”.
minhas melhores falas”, respondeu ela. Bem,
fizemos a cena, e eu disse que cortássemos mais Ball of fire não tem o mesmo ritmo nem a mesma
algumas falas; daí a pouco ela falou: “Não vai so- intensidade das suas outras comédias.
brar nada para eu dizer”. Respondi: “Essa é uma
boa ideia— vamos fazer a cena sem que você diga

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Bem, era sobre pessoas pedantes. Quando se para a aparência das pessoas, como era o caso
realizam falas de professores, elas não podem daqueles professores velhos. Quanto mais forte a
soar como se fossem de repórteres policiais. Por iluminação, melhor o aspecto das pessoas. Nunca
isso, reduzimos o ritmo naturalmente — não ha- usei grande profundidade de foco em filmes em
via nada a fazer a respeito disso. Era também que isso atrapalhasse.
um pouco mais afastado da realidade e um pouco
mais alegórico. Era, verdadeiramente, A Branca Qual foi o seu papel na realização de The outlaw
de Neve e os sete anões — em que a dançarina de [O proscrito] [1943; Howard Hughes]?
strip-tease era Branca de Neve. O filme não tinha
a mesma realidade das outras comédias, e não Descobri a história, escrevemos o roteiro e íamos
podíamos lhe dar a mesma velocidade. fazer um pequeno western com aquilo. Ouvi a his-
tória no México — era uma das lendas que envolvia
Também não é tão engraçado, não tem a mesma Billy the Kid. Era uma ideia simples — Billy the
energia. Kid e o xerife Pat Garrett eram grandes amigos.
Quando Billy se apaixona, Pat Garrett dá um tiro
Bem, a premissa não era tão divertida. Em primeiro no rosto de alguém, mas diz que foi Billy the Kid,
lugar, não havia nada de engraçado a respeito e, então, Billy e a garota partem para o México,
da garota, já se fica limitado por aí. É claro que onde vivem felizes para sempre. Era só uma len-
Brackett e Wilder eram roteiristas excepcionais, da. Começamos com essa premissa, incluímos
capazes de fazer qualquer coisa ficar boa. Doc Holliday, e eu encontrei Jack Buetel e Jane
Russell — depois fomos para o Arizona e começa-
Esse foi o seu terceiro filme com Cooper, mas o mos a filmar. Trabalhamos durante três ou quatro
primeiro com Stanwyck. Como ela era? semanas, e aí Howard Hughes e eu conversamos:
eu queria fazer Sergeant York, e ele queria dirigir.
Ótima, gostei dela, demo-nos bem. Ela é pro- Assim, ele prosseguiu e terminou o filme.
vavelmente uma das melhores atrizes — tem um
instinto fenomenal. Como foi que evoluiu a ênfase nos seios de Jane
Russell?
Goldwyn interferiu de algum modo?
Não sei. Creio que o crédito por isso deve ser dado
Não, nem um pouco. a Hughes.

O cameraman era Gregg Toland, o mesmo de Foi você quem a descobriu.


Citizen Kane [Cidadão Kane] [1941; Orson Welles],
e reparei que você usou bastante o tipo de tomada Sim, mas ela era só um rosto e uma grande
de grande profundidade de foco que eles tinham personalidade — e era parecida com a garota
feito tão bem naquele filme. sobre a qual tínhamos escrito.

Não é possível fazer isso em todos os filmes — E Hughes inventou a publicidade sobre os sutiãs
só se pode fazê-lo quando não se dá a mínima especiais e assim por diante?

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Bem, eu não teria feito aquilo, mas ele fez e teve Em Air Force, eles estão ouvindo as primeiras no-
grande sucesso. tícias sobre o ataque a Pearl Harbor, e Garfield
diz: “Ei, quem está no rádio, Orson Welles?”. A
No filme restou algo que você tenha filmado? transmissão radiofônica de Welles sobre a invasão
de marcianos [outubro de 1938] deve ter sido um
Ah, claro. A apresentação de Doc Holliday, a apre- evento e tanto, para que uma fala como aquela ain-
sentação de Billy the Kid, as cenas em que Billy da funcionasse num filme feito cinco anos depois.
conhece a garota: alguém atira nele enquanto
ele está entrando num estábulo — e, quando ele Se foi! Pelo amor de Deus — as pessoas pensaram
agarra o pretendente a assassino, descobre que que era tudo verdade.
é uma mulher.
Como foi que você recriou Pearl Harbor na noite
Você iniciou o filme em 1940, mas ele só foi dis- após o ataque? Você tinha fotografias ou cenas de
tribuído três anos depois. noticiário cinematográfico nas quais se basear?

Bem, Hughes gastou um par de anos para dirigi-lo. Havia algumas fotos, no entanto, é muito fácil fazer
cenas noturnas daquele jeito — não se enxerga
É interessante comparar Air Force, feito em 1943, muito bem, exceto as coisas que se deseja mostrar
com They were expendable [Fomos os sacrifica- —, é mais a impressão do que a realidade. Mas a
dos], de John Ford, feito dois anos depois, devido única coisa boa a respeito dos sets de Air Force era
à semelhança entre os dois filmes. Você acha que o senso de realidade: tentamos nos prender aos
Ford foi influenciado pelo seu filme? fatos — não queríamos enfeitar nada, apenas
procuramos fazer as coisas parecerem normais.
Influenciamo-nos mutuamente inúmeras vezes.
Não sei como alguém poderia fazer um western Como foi que você e Nichols trabalharam a trama?
sem ser influenciado porJohn Ford. Sempre assisti
a tudo o que ele fez, e creio que ele tenha visto Tínhamos um painel grande, cartões e alfinetes.
todos os meus filmes. Sei que John assistiu a Red Se queríamos incluir uma cena no filme, ela era
river. Ele disse: “Não tinha ideia de que aquele incluída naquilo, e depois traçávamos linhas en-
grandalhão sabia representar”, referindo-se a tre os cartões para imaginar como poderiam se
Wayne, e logo após lhe atribuiu papéis que real- conectar entre si. Logo começamos a conversar
mente o impulsionaram. a respeito das personagens, a coisa foi tomando
vida e se tornou fácil. Também trabalhamos desse
Você se refere a She wore a yellow ribbon [1949; jeito em Scarface. Tínhamos diversas coisas que
John Ford], no qual ele faz um homem ainda mais queríamos usar e que faziam parte da história, e as
velho do que em Red river? colocávamos no quadro para não as esquecermos.

Certo. Imagino que também foi útil poder contar com


uma quantidade específica de pessoas no elenco.

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Ah, sim, claro, cada qual com a sua história. O velho isso por instinto ou reservou de propósito os closes
sargento saiu direto da minha própria experiência. para estágios posteriores dos seus filmes?
Certa vez, eu estava a caminho de Washington
para conversar com o general Arnold, e viajei Não gosto de closes, a menos que tenham um
no trem na companhia de outro general. Contei- propósito, que sejam necessários. Se é possível
-lhe sobre o filme que estava fazendo, então ele exibir os sentimentos de uma cena pelas atitudes
saiu por alguns instantes e voltou na companhia e posições das pessoas, é melhor reservar os
do seu ordenança. Assim que os dois apareceram closes apenas para assinalações muito especí-
de volta, o general disse: “Descansar, sargento”, ficas; essas são ocasiões em que considero que
e contou vários episódios ocorridos, a relação que vale a pena fazer closes, porque afeta o público,
mantinha com o seu piloto e coisas desse tipo. No e esse é o motivo de fazê-los. Os closes devem
filme, essa personagem foi interpretada, e muito ser usados com economia — não como na TV,
bem, por Harry Carey. A propósito, uma das me- em que se faz tudo em close.
lhores cenas do filme foi escrita da noite para o
dia por William Faulkner, a meu pedido. Faulkner Como o público ainda não tinha sido exposto a um
se encontrava no estúdio, e eu lhe disse: “Não close como aquele, o seu impacto resulta muito
consigo uma boa cena de morte para o nosso maior.
piloto”. Ele perguntou: “Posso ver o que já foi feito
do filme?”. Assistiu às tomadas até entender os Muito maior. Também é melhor reservar esses
procedimentos de decolagem, em que todos os grandes closes até que o público comece a co-
membros da equipe do avião avisam pelo rádio nhecer um pouco das personagens, para que o
que está tudo bem. Depois voltou e construiu a rosto e o pensamento da personagem ganhem
cena da morte daquele jeito, uma repetição dos mais significação.
procedimentos de decolagem: o último vôo daquele
piloto. Creio que é uma cena realmente muito boa. A construção é clássica: você inicia com um avião
que é parte de um grupo de aviões; o avião se
A cena do avião, em que eles ouvem o discurso separa do grupo e prossegue por si só. No final,
de Roosevelt, mostra um lado da história que se ele volta a se reunir ao grupo, retornando ao seu
refere aos dramas pessoais. lugar na unidade maior. Isso foi discutido entre
você e NichoIs ou apenas aconteceu desse jeito?
Uma das primeiras coisas que são feitas ao reali-
zar um filme como aquele é arranjar um arquivo Ah, creio que foi um pouco das duas coisas. Você
com as manchetes dos jornais da época. Aí, tenta- percebe que algo está funcionando bem de certo
-se usar o que aconteceu, relacionando com os jeito e diz “Estamos fazendo isto”, e depois diz,
membros da equipe. Como a única conexão que “Está bem”.
podiam ter era ouvir Roosevelt no rádio, fizemos
uma cena disso. Por algum motivo, esse filme não é muito conhe-
cido, mas acho que é um dos melhores sobre a
O primeiro close importante do filme é a morte Segunda Guerra.
daquele rapaz que salta de paraquedas. Você fez

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Eu gosto do filme. Creio que o momento em que o Depois fizemos algumas cenas com a ajuda da
fizemos era uma época de estrelas, e, uma vez que Marinha canadense.
havia um monte de estrelas, o filme provavelmente
não foi muito bem manejado. Você considera esse filme seu?

Além de fazer Air Force você se envolveu de algum Não. Quem o realizou foi Dick Rosson.
modo com a guerra?
Foi você quem descobriu Elia Raines para esse
Sim, trabalhei para o general Arnold, reescrevi o filme?
Manual de artilharia e montei escolas por todo o
país para ensinar artilharia aérea às pessoas. Por Sim. Foi o primeiro filme dela. Mas é muito difícil
acaso, estava no escritório de Arnold e li o Manual fazer um bom filme a partir do nada, daquele jeito,
de artilharia durante o almoço. Antes que pudesse porque sempre se fica sujeito a limites estabe-
falar com ele, encontrei a equipe de artilharia lecidos pelo Exército, pela Marinha e assim por
do general Clarence Tinker e lhe fiz perguntas diante. Há gente demais com ideias a respeito
sobre o seu trabalho. “Vocês não seguem o que de como o filme deve ser feito.
diz o Manual, seguem?” Eles se entreolharam e
responderam: “Não, é impossível acertar alguma Você não enfrentou esse problema com Air Force.
coisa daquele jeito”. E eu disse: “Eu sei que não.
Muito bem, agora vocês estão amarrados. Venham Não. Mas eu sabia o que eles estavam esperando.
comigo até o escritório de Arnold”. Fiz com que
eles entrassem e disse: “General, trouxe esta Como foi que se deu To have and have not?
turma para confirmar o que vou lhe dizer. Se
alguém seguir o Manual de artilharia, não acertará
Disse a Hemingway que seria capaz de fazer
em nada”. Bem, Arnold era um sujeito razoável, e um filme a partir do seu pior livro, e ele per-
assim não custou convencê-lo; então tive de sair e
guntou, um tanto agastado: “E qual é o meu pior
reescrever o Manual de artilharia. Tive de incluir os
livro?”. Respondi: “Aquele monte de lixo chamado
modos diferentes de ensinar as pessoas a mover To have and have not”. Ele respondeu: “Bem, eu
os canhões para conseguir acertar nos alvos. precisava de dinheiro”. E eu: ‘Ah, essa parte não
Por algum tempo fiquei bastante ocupado. Fui me interessa”. Ele disse: “Você não é capaz de
general por cerca de uma semana. fazer um filme com aquilo”. “Sim, sou.” Assim,
durante cerca de dez dias ficamos pescando e
O que você fez em Corvette K-225 [Corvetas em conversando sobre como aquelas personagens se
ação] [1943]? conheceram, que tipo de pessoas eram e como
terminaram. Quando voltei, comprei a história e
O almirante Nelles e a Marinha canadense pedi- comecei a partir das premissas que Hemingway
ram que fizéssemos o filme. Escrevi a história e e eu tínhamos desenvolvido.
preparei tudo para filmar. Dick Rosson o filmou
durante uma viagem de ida e volta à Inglaterra. A premissa era contar o que tinha acontecido antes
de o livro começar?

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Sim, mas usar ainda parte daquele negócio de Sim, a minha secretária a trouxe de Nova York. Eu
revolução. O filme teve grande sucesso. só lhe tinha pedido para descobrir informações
sobre a moça onde havia estudado, de onde tinha
E você conseguiu que Faulkner trabalhasse numa vindo, qual a sua experiência —, ela entendeu mal
história de Hemingway. e lhe mandou um bilhete para que viesse até aqui.
A moça parecia ter a capacidade de fazer tudo
Ah, tudo bem quanto a isso. Faulkner achava que certo. Ela trabalhava muito, e a incluímos no filme
Hemingway era bom. Heminway gostava do traba-
lho de Faulkner e tinha certo ciúmes dele. Cada Como a personagem dela se desenvolveu?
qual fazia comentários a respeito do estilo do outro.
Quando começamos a trabalhar na história,
Na verdade eles não trabalharam juntos. [Jules] Furthman escreveu uma cena na qual
roubam a bolsa de uma moça que se encontra
Ah, não. num porto remoto. Li a cena e disse: “Ora, ora,
uma pobre mocinha que tem a sua bolsa roubada é
É verdade que a primeira vez que você viu Lauren tão sexy...”. Ele disse: “Está bem, está bem”, voltou
Bacall foi na capa de uma revista? e escreveu a apresentação da garota, fazendo-a
bater uma carteira — e aquilo a tornou interes-
Não — a minha mulher, Slim Hawks, a viu numa sante. É algo de que o público se lembra e tem
foto bem pequena na revista Vogue. Ela me mos- muito a ver com a apreciação que fazem do filme
trou a foto e disse que a moça era bonita. e da personagem. Uma pobre moça cuja bolsa
é roubada numa terra estranha é bastante pie-
E por isso que Bogart a chama de “Slim” no filme gas, mas uma garota que apanha uma carteira é
— uma referência à sua mulher? bastante intrigante. Aí Bogart diz: ‘Venha comigo,
quero ver a cara dele quando você lhe devolver
Sim — só uma brincadeira. a carteira-. E o sujeito pergunta a Bacall: “Onde
você encontrou esta carteira?”. E ela responde:
Slim Hawks chamava você de “Steve”, como Bacall “Fui eu quem a pegou”. O público gostou disso, da
fazia com Bogart no filme, apesar do seu nome honestidade pura envolvida.
ser Harry?
Descobrimos que Bacall se tornava muito atra-
Sim — usamos aquilo também. Vic Fleming e eu ente quando era insolente. Era o único modo de
sempre nos chamávamos um ao outro de “Ed”. Eu prestar atenção a ela, pois era capaz de fazê-lo
chamava: “Ei, Ed”, e ele respondia: “O que há, Ed?”. com um simples sorriso. Assim, disse a Bogie:
Apanham-se essas coisas e se usam nos filmes. “Vamos tentar fazer uma coisa interessante. Você
Não sei qual é o efeito— algo ligeiramente insólito. deve ser o homem mais insolente das telas, e agora
O público se interessa, sem saber bem por quê. vou fazer com que a moça seja ainda mais insolen-
te do que você”. Essa insolência bem-humorada
Seja como for, você viu uma fotografia de Bacall e... constituía um antagonismo sexual que permitiu
realizar cenas de forma muito fácil. Não funcio-

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naria com John Wayne, por exemplo, porque ele Sim. Não queríamos transmitir a ideia de que
não é do tipo insolente. Ah, bem, em Hatari! há aquele sujeito era limitado demais — apenas que
uma cena em que a garota diz: “Certa vez um touro lhe faltava uma ou outra coisa. Brennan estava
me atacou”; e ele responde: “Você tem certeza engraçado naquele filme.
de que não foi o contrário?”. Bem, esse tipo de
coisa era mais apropriado para Bogie. Há uma longa sequência central em que Bacall
rejeita Bogart várias vezes.
A cena em que Bogart e Bacall se conhecem — o
modo como se olham e os cortes para focalizar Quando eu disse a Bogart que iríamos fazer com
Marcel Dalio, que os observava — foi feita cla- que ela parecesse ainda mais insolente do que ele,
ramente para indicar que algo explosivo estava ele disse: “Bem, não creio que você terá grande
para acontecer. chance de conseguir isso”. Respondi: “Digo-lhe
uma coisa, em todas as cenas que vocês fizerem
Aquilo era para dar ênfase. Às vezes é muito juntos, ela vai lhe deixar sem graça”. “Bem”, disse
melhor fazer uma coisa dessas em silêncio do ele, “creio que devo retirar o que acabei de dizer.”
que por meio de falas. E a presença do outro É claro que tudo ficou muito mais fácil porque os
sujeito, que olha de uma pessoa para a outra, dois se apaixonaram um pelo outro.
mostra que ele está enxergando algo.
Ouvi dizer que nem sempre Bogart era a pessoa
De onde saiu a piada de Brennan a respeito da mais fácil com quem lidar quando fazia filmes,
abelha morta? mas que com você ele agia de outro modo.

Conheci um sujeito que costumava perguntar: Nós nos demos bem. No primeiro dia em que
“Você já foi picado por uma abelha morta?”. E as trabalhamos juntos, creio que tomou um ou dois
pessoas diziam: “Como assim? Como é que uma drinques na hora do almoço. Quando ele voltou,
abelha morta é capaz de picar?". “Ah, elas conse- eu lhe disse: “Vamos conversar com Warner”. Ele
guem", ele continuava. "Já pisei em abelhas e elas perguntou: “Para quê?”. E eu disse: “Ou eu arranjo
me picaram.” “Ah, é? E como foi isso?” “Preste outro protagonista ou você consegue um outro
atenção, quando encontrar uma abelha morta, diretor. Não quero ninguém que beba durante
pise nela...” E ele prosseguia nessa toada, só de o dia. Não acho que exista alguém tão bom as-
brincadeira. As pessoas se confundiam. Achei que sim. Tenho de extrair o máximo das pessoas, e,
aquilo era engraçado e por isso incluí no filme. se não puder, não vou querer fazer o filme”. E
ele respondeu: “Não quero ir conversar com
Aquilo se transformou numa espécie de iniciação: Warner”. “Bem, o que você quer fazer?” “Não
o modo como a pessoa reage à história mostra o vou beber.” Eu disse “OK”. Ele não bebeu durante
tipo de gente que é. Brennan passa a gostar de as filmagens, e nos demos muito bem um com
Bacall porque ela lhe dá a mesma resposta que o outro. Creio que era apenas um hábito dele,
Bogart havia dado antes: “Não. E você?”. E depois: entende o que digo? Se ele se interessasse pelo
“Por que você não a picou de volta?”. que estava fazendo, trabalhava muito seriamente.
Se não tivesse interesse, não trabalhava. Creio que

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ele apenas tinha saído, tomado dois drinques e isso não acontecia. Estávamos trabalhando uma
voltado — ele não estava bêbado —, mas na minha personagem capaz disso, e Bacall se encaixou
opinião aquilo não ajudava de modo algum no seu perfeitamente no papel. Também ensaiamos muito,
trabalho. antes de iniciar as filmagens, que atitude adotar
quando fizesse aquilo, e ela fez o que devia. Não
Entendo que você tentou envolvê-lo muito no filme, pedimos montes de emocionalismo, choros, me-
por isso ele não trabalhou simplesmente como ator. dos e terrores — nada disso. Ela simplesmente
manteve uma atitude fria e irônica, e o público
Faço isso com todo mundo — ao menos tento fazer gostou muito daquilo.
isso —, quando prestam para alguma coisa. Pes-
soas como Wayne, Cooper, Mitchum, Dean Martin. Essa foi a primeira vez que você usou aquela his-
Sempre se consegue ajuda de quem é realmente tória de fazer a garota beijar o sujeito, e depois,
bom. Era muito fácil trabalhar com Bogart — foi quando ele a beija de volta, ela diz: “É ainda melhor
uma pessoa muito subestimada como ator; sem quando você ajuda”.
a sua ajuda, eu não teria conseguido fazer o que
fiz com Bacall. Não são muitos os atores que sim- Sim.
plesmente ficariam sentados esperando que uma
garota roubasse a cena. Mas ele se apaixonou Você usou a mesma coisa em diversos filmes, com
por ela e vice-versa, e isso facilitou as coisas. pequenas variações; como isso começou?

Bacall gostou de ser transformada? Foi só algo que incluí.

Não sei bem se entendo o que você quer dizer. Ela E quanto a “se precisar de alguma coisa, basta
estava perfeitamente contente e realizou todo o assobiar”?
filme numa espécie de aura de felicidade.
Isso foi uma cena que eu tinha escrito para testá-
Quero dizer que ela obviamente permitiu que você -la. Quando a escrevi não tinha ideia de que a
a manipulasse para transformá-la no que você incluiria no filme, mas funcionou tão bem que
queria para o papel. resolvi usá-la. Tivemos um trabalhão danado
para conseguir encaixar. Aquilo na verdade in-
Ah, claro, ela fazia tudo o que lhe era pedido. fluenciou muito as cenas iniciais.
Ela não tinha nenhuma experiência.
O teste foi feito com Bogart?
Ela era uma pessoa insolente?
Não, ela não trabalhou com Bogart até termos
Não. Descobrimos que ela só era capaz de di- iniciado o filme.
zer uma fala insolente com um sorrisinho, sem
maldade. As pessoas gostavam daquilo. Certas O teste foi bom?
pessoas, quando dizem uma fala daquele tipo,
causam um ressentimento imediato. Com ela,

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Ah, sim, muito bom. Ela estava tão assustada— É verdade. Muito frequentemente, o sujeito mais
estava segurando uns papéis, e eles tremiam e fraco coloca o mais forte em situação difícil por
faziam ruído, mas era patente que ela conseguia causa disso.
se conduzir, mesmo assustada.
O papel foi delineado para satisfazer a imagem
Bogart faz questão de dizer que está envolvido que você tinha de Bogart?
com os revolucionários apenas porque está sendo
pago. Quando alguém afirma que não se pode Creio que isso acontece em todos os meus fil-
confiar nele, Bogart pega o dinheiro e diz: “Agora mes. Praticamente tudo é reescrito depois que
você pode confiar em mim”. Isso foi feito para se define quem vai fazer um papel. Nunca tento
mostrar que ele não estava interessado nas ra- obrigar as pessoas a representar algo que não
mificações políticas da história ou que você não são. É muito mais fácil escrever explorando o
estava interessado? que elas fazem melhor e deixá-las representar
essas coisas. Não demora muito. Mas, quando
Ele seria um idiota caso se interessasse pelas começamos a trabalhar juntos, eu perguntei
ramificações políticas da história, porém, mais a Bogart: “Você nunca sorri?”. ‘Ah”, disse ele,
tarde se interessou pelo homem. Isso é parte do “meu lábio é partido. Não consigo sorrir.” E eu
desenvolvimento da história. E produz uma boa respondi: “Partido coisa nenhuma — na outra
personagem. Ele se envolve por causa do dinheiro e noite, quando nos embebedamos, você sorriu
não toma partido. Aí, a bravura do homem começa bastante. Pelo amor de Deus, dê um sorriso
a interessá-lo. de vez em quando”. E ele começou a fazer isso,
gostou da coisa e continuou a sorrir. E fez isso em
Há também uma completa ausência de fingimento todos os filmes posteriores nos quais trabalhou,
entre Bogart e Brennan. Logo de início Bogart lhe e aquilo produziu nele uma diferença pequena,
diz o que há de errado com ele, e a certa altura mas importante — nos papéis que era capaz de
chega a esbofeteá-lo para trazê-lo ao chão. Em fazer e nas coisas que conseguia fazer. Nós nos
certo sentido, aquilo mostra o respeito que ele demos bem porque ele se dispunha a fazer qual-
tem por Brennan. quer coisa.

Ah, claro, mostra o respeito dele; e quando ele Há uma cena sexy entre Bogart e Bacall em que
se mostra tão enfurecido com o sujeito que diz ele diz: “Dê a volta em torno de mim”. Ela caminha
alguma coisa contra Brennan, sabe-se como ele à sua volta e diz: “Sim, percebo — sem cordinhas”.
se sente. É uma relação bastante comum entre Aí eles se entreolham, e, pouco depois, ela lhe dá
um homem forte e um homem fraco — uma um leve tapa no rosto, e torna-se claro que ambos
adoração por parte do mais fraco. Já se viu isso estão pensando em ir para a cama o mais cedo
no cinema meia dúzia de vezes. possível. Como é que se desenvolve uma cena
como essa?
O sentimento parece mútuo.
Eu só fico mexendo — trabalhando. Diálogos sur-
gem facilmente quando as atitudes são corretas.

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Apenas se brinca com as coisas tentando se afas- Você sabe que nunca me interesso por esse tipo
tar da mesmice de sempre. É também um exemplo de coisa.
do que Hemingway chamava de “diálogo oblíquo”,
e que eu chamo de “diálogo de três tabelas” 11 Nesse caso, o que o filme significou para você?
Não se diz coisa alguma — apenas se deixa que
as falas batam de um lado a outro duas ou três No que me importava, tudo não passava de pano
vezes, para que o significado seja apanhado. de fundo para uma história de amor que trans-
corria num lugar pouco comum. Tínhamos um
É curioso o modo como Bogart desgosta ativa- bom gancho, fornecido por Hemingway. Se bem
mente do capanga silencioso, e passa a provocá-lo. me lembro, a sua história se passava em Cuba,
Você também fez ele fazer isso em The big sleep. e tratava de uma revolução. O filme se passa na
Martinica.
Isso dá tanta substância a uma personagem re-
presentada por Bogart. Ele indica o sujeito com a De modo que você não se importa com as tramas
cabeça e pergunta: “E ele, não diz nada?”. Quero políticas do filme?
dizer, é tão completamente amalucado que dá a
Bogart o comando da situação. Bem, dá para perceber pelo pouco tempo que se
gasta com isso. Na verdade, o roteirista ficou
É a própria Bacall quem canta no filme ou é ver- muito preocupado. Ele me disse: “Vou pedir
dade que a voz é de Andy Williams? demissão”. Perguntei: “Por quê?”. E ele res-
pondeu: “Já fizemos quatro rolos de filme, e você
Andy Williams era a única pessoa com a voz tão está com medo de contar o enredo. Quer fazer o
grave quanto a de Bacall, por isso fizemos as gra- favor de fazer essas cenas?”. Respondi: “Acho
vações com ela; mais tarde, quando Lauren estava que fico evitando as cenas porque elas são muito
cantando ao som da gravação de Andy, decidi que chatas”. Imagino que tínhamos necessidade de
ela cantava bastante bem, então gravei a sua voz. um enredo, um enredo secundário, mas apenas
como desculpa para certas cenas. Tiramos uma
Quer dizer então que a voz é mesmo de Bacall? cena ótima a partir do sujeito ferido, na qual
uma moça desmaia e a outra abana éter sobre
Sim. ela. E, quando Bogart carrega a moça desmaiada,
Bacall diz: “Você está tentando adivinhar o peso
Afirma-se que, implicitamente, o filme é antifascis- dela?”, esse tipo de coisa. Isso remonta a Dietrich.
ta, pois a única vez em que Bogart entra realmente Em Morocco [Marrocos] [1930; Josef von Sternberg],
11. A alusão aqui é em ação é quando os amigos dele são impedidos quando Dietrich entra e descobre Cooper com
ao jogo de sinuca. de exercer a sua liberdade individual. duas moças nativas no colo, ela como que o
cumprimenta — não fica zangada. Bacall era uma
Não sei sequer o que significa “antifascista”, de versão um pouquinho mais quente de Dietrich.
modo que não poderia dizer.

Como o filme foi realizado durante a guerra...

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De alguma maneira você foi levado a fazer o filme O roteiro é creditado a Faulkner, Brackett e Fur-
por influência de Casablanca [Casablanca] [1942; thman. Eles trabalharam em rodízio?
Michael Curtiz]?
Faulkner e Brackett fizeram o roteiro em cerca
Ah, não, de jeito nenhum. Isso nunca passou pela de oito dias. Não creio que Furthman tenha traba-
minha cabeça. Primeiro de tudo, convidaram-me lhado muito. Eu lhes disse: “Não mexam no livro,
para dirigir Casablanca. Era uma peça chamada apenas produzam um roteiro a partir dele. O livro
A night at Rick’s. Na época ninguém tinha ainda é bom demais”.
imaginado que Bergman e Bogart participariam do
filme — mas achei que se tratava de uma espécie É verdade que nenhum de vocês conseguiu decidir
de comédia musical, e tive muito cuidado em não quem mata determinada personagem do filme?
fazer uma comédia musical a partir de To have
and have not. Da minha parte, Casablanca tinha Ah, sim, é verdade. Discutimos sobre quem havia
um ar horrível de comédia musical. “Lembro-me matado fulano, mas não conseguimos chegar a
daquelas pessoas se levantando e cantando o hino nenhuma conclusão, e por isso enviamos um
nacional francês e pensei: “Ah, não consigo fazer telegrama a Raymond Chandler. Ele telegrafou
cenas como essa”. É claro que Mike Curtiz traba- de volta um nome, e nós respondemos: “Mas não é
lhou essas cenas lindamente, e o filme inteiro possível ser ele — ele estava na praia no momento
resultou diferente por causa dos dois protago- do crime”. Quando fiz esse filme, descobri que não
nistas. Eles fazem o público acreditar em algo. é realmente necessário dar explicações para as
Quando assisti a Casablanca, apreciei o filme, coisas. Quando as cenas são boas, o filme é bom
mas nunca acreditei que eu pudesse fazer coisa — não importa se a história não é grande coisa.
parecida.
O filme foi feito principalmente no estúdio?
Como foi fazer The big sleep [1946]?
Sim. O meu trato com a Warners era de que, quanto
Na pré-estreia de To have and have not, o público menos o filme custasse mais eu ganharia. Assim,
reagiu tão bem que, quando retornávamos de carro, procurei o chefe do departamento de produção
Jack Warner disse: “Precisamos fazer outro filme e lhe disse: “Preste atenção, quero ganhar algum
com esses dois”. Respondi: “Você tem razão”. dinheiro. Tudo o que você disser será feito”. Ele
“Você conhece alguma história?” “Sim. Um pou- me designou uns quatro diretores de arte, que me
co semelhante a The Maltese falcon [romance de procuravam e perguntavam: “Esta cena requer
Dashiell Hammett]”,12 e ele disse: “Você faria o um prédio de apartamentos. Serve um edificio de
filme?”. Respondi: “Sim”. Não lhe contei a história. escritórios?”. E eu respondia: “Claro”. Eles diziam:
No dia seguinte, comprei os direitos de repro- “Você vai a San Pedro para cenas externas. E se 12. O falcão
maltês. São Paulo:
dução cinematográfica para The big sleep e, na lhe mostrarmos que consegue filmar num tanque, Brasiliense, 1984.
próxima vez que me encontrei com Jack Warner, aqui mesmo?”. E eu respondia: “OK”. O filme Trad. (1945) Candida
mostrei-lhe o filme. custou muito menos do que o anterior, embora Villalva.
tivesse o mesmo elenco e a mesma duração.

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Como foi que você descobriu Dorothy Malone? foi feito duas vezes”. E eu respondi: “Não, nunca foi
feito. Alguém imaginou que conseguiria escrever
Não me lembro — simplesmente a encontrei. Creio tão bem ou melhor do que Hammett e, com isso,
que ela foi levada, nunca tinha feito coisa alguma alterou a história. Faça do jeito que ele escreveu”.
antes. As primeiras cenas que fez foram naquele Foi o que ele fez. No ano seguinte, Huston con-
filme. correu ao Oscar. Hammett e Chandler eram tão
superiores àquele estilo, que até hoje sobressaem.
Ela era boa. Bastava fazer um trabalho decente que o filme
saía bom. Eles sabiam escrever! Os diálogos de
Realmente boa. Lembro-me de que ela precisava Chandler são, de certo modo, tão bons quanto os
pegar um copo com água e, de tanto que tremia, a de Hecht e de MacArthur, embora mais limitados.
água derramou. Quando paramos para almoçar, o Na verdade, ele escreveu apenas sobre Marlowe,
contra-regra preparou um peso de chumbo que mas era extraordinariamente bom.
foi colocado no fundo do copo de papel para que
ela pudesse segurá-lo sem tremer. Inventamos a Você suavizou a personagem feita por Martha Vi-
cena dela, que só se concretizou por causa da leve- ckers — no livro, ela é uma ninfomaníaca envolvida
za e da alegria da moça, e de como nos divertimos. pesadamente com drogas.

Também tive a impressão de que você estava fa- Não, acho que ela fez uma ninfomaníaca.
zendo um pouco de gozação com os filmes de
detetives particulares, pois toda mulher do filme De forma mais oblíqua.
dava em cima dele.
A personagem original era complicada e desa-
Bem, não se pode levar a sério uma coisa dessas. gradável. Martha não era feia. O estúdio tinha
É melhor extrair algum divertimento. assinado com ela um contrato de longo prazo
pagando-lhe muito mais dinheiro do que ela ja-
Você gostou do filme The Maltese falcon [Relíquia mais havia visto na vida; com o primeiro paga-
macabra] [1941; John Huston]? mento, ela comprou vestidos com rendas, laços
e coisas assim e voltou tentando representar a
Era eu quem iria realizá-lo. Quando Johnny mulher ingênua — foi despedida seis meses depois.
Huston terminou de escrever Sergeant York, Um dia, ela me procurou, chorando. Perguntei:
recomendei à Warner que o transformasse em “Por que você simplesmente não continua a fazer
diretor. Warner mandou chamá-lo, Huston veio a personagem que fizemos?”. Ela respondeu:
e perguntou: “O que devo escrever?”. Eu res- “Ora, aquela moça era ninfomaníaca”. E eu disse:
pondi: “Não escreva nada, Johnny — não para “Bem, não é uma personagem ruim”. Ah, como
o seu primeiro filme —, você já vai ter muito ela era boa!
trabalho só para dirigir. Eles têm uma história
que eu estava pensando em fazer. Faça-a você Ao trabalhar com um ator como Bogart, você tem
— The Maltese falcon” . “Bem”, disse ele, “muito a tendência de realçar maneirisrnos, como aquela
obrigado.” Mas depois ele voltou e disse: “O filme já

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história de ficar puxando a ponta da orelha, que ele vista do público. E desarmou os críticos, porque
faz ao longo de todo o filme. eles tentavam ser tão espertos quanto o sujeito
do filme, e fracassavam.
Aquilo foi planejado de antemão. Note que não há
nenhuma cena no filme da qual ele não participe. E quanto ao título, se refere a que, na sua opinião?
Não havia outras pistas. O público só descobria
o que estava acontecendo junto com ele. Eu sem- Não sei, provavelmente à morte — só soa bem.
pre conseguia fechar as cenas com ele puxan-
do a orelha e pensando. Bogart era realmente Como acontece com diversos dos seus filmes, Red
subestimado como ator. Afinal de contas, toda river começa muito depressa e a exposição do tema
cena se iniciava com ele entrando e terminava aparece só bem mais tarde.
com ele saindo — e são poucos atores no mundo
que conseguem aparecer em todas as cenas sem Bem, creio que o público fica um pouco estimula-
cansar o público. Mas não creio que as pessoas do quando precisa dar tratos à bola sobre o que
se cansassem com Bogart. teria acontecido. Creio que é um pouco maçante
conduzir o público por todos os detalhes logo de
A ideia principal era tentar fazer com que toda início, porque nesse caso se sabe o que vai acon-
cena fosse divertida. Cerca de oito meses após tecer e, quando acontece, a cena não resulta boa.
termos terminado, o estúdio me pediu para fazer Mas pode começar com uma boa cena e depois
algumas cenas adicionais com Bogart e Bacall — voltar para explicar a história.
disseram que não tinham cenas dos dois juntos
em quantidade suficiente. Isso aconteceu durante Há uma ambigu idade considerável na personagem
a estação de corridas em Santa Anita, onde eu de Wayne. Era essa a opinião que você tinha dele
tinha alguns cavalos; por isso, fiz com que eles como pessoa?
conversassem sobre montar a cavalo e o filme
terminou com aquela fala: “Depende de quem Wayne é um homem que cometeu um grande en-
monta”. Bem, aquilo só refletia o fato de eu estar gano e perdeu a moça que realmente amava por
pensando em corridas, por isso imaginei montar causa da sua ambição e do seu grande desejo
uma pequena discussão amorosa sobre cavalos. de possuir terras. É claro que o fato de ele ter
cometido um engano fez com que ficasse ainda
O enredo significou pouco para você. mais ansioso para realizar os seus planos. Pois
alguém que comete um grande equívoco para
Não importava nem um pouco. Tudo o que estáva- conseguir algo não se deixa deter por coisas
mos tentando era fazer que toda cena entretives- pequenas. Tinha construído um império que es-
se o público. Não consigo acompanhar o enredo. tava desmoronando. Ele avisou os outros sobre
Umas noites atrás vi uma parte do filme na TV, a situação e disse que ninguém poderia desistir.
prestando atenção em algumas das coisas que Mas eles desistiram. Ao contar uma história
ele diz, e o resultado foi que fiquei totalmente assim, andávamos na corda bamba: o público
confuso, pois fazia vinte anos que eu não via o continuaria a simpatizar com Wayne ou não? Por
filme. Mas a película foi muito boa, do ponto de sorte, conseguimos uma boa caracterização, e o

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público se identificou com Wayne. Digamos que os bom, considerando que não tinha experiência.
seus motivos eram completamente autocentra- A outra teria sido seis vezes melhor.
dos. Em Only angels have wings, ao contrário, Cary
Grant não tinha qualquer motivação egoísta. Ele Que outra?
estava fazendo um trabalho para um homem
de quem gostava — alguém que não era capaz Quem era para fazer o filme: Maggie Sheridan.
de cumprir a tarefa sozinho —, e, portanto, se
tratava de amizade pura. Mas de todo modo isso Mais tarde, você a usou em The thing [O monstro do
é aceito, porque é uma premissa perfeitamente Ártico] [1951]?
boa para basear a história.
Sim.
O fato de, logo no início, ele não levar consigo a mulher
que ama chega quase a motivar todo o filme E por que ela não fez o papel?

É verdade, isso tinha a ver com a sua atitude e Ela apareceu um dia antes de viajarmos para o
todo o resto. Ele cometeu um engano: deveria Arizona, com todo o figurino já feito e tudo o mais,
ter levado a moça. E, com a morte dela, aquilo fechou a porta e disse: “Estou grávida”. Então fiquei
permaneceria com ele pelo resto da sua vida. Na encalacrado. Eu tinha um contrato com Joanne
verdade, o seu amor se voltou para o menino Dru para fazer comédias — musicais, coisas leves,
por causa dela. A namorada de Clift [Joanne Dru] mas não para fazer aquele tipo de coisa—, e eles
diz isso no fim — numa cena bastante piegas, tiveram de fazer vestidos novos e mandá-la para
mas verdadeira — “Parem de lutar. Vocês se lá. Um sujeito tinha ensinado a Maggie como dis-
amam”. Não imaginei que a cena fosse crível, tribuir cartas, e toda a ideia era colocar em dúvida
mas funcionou bem. que aquela mulher pudesse ser uma prostituta,
uma vez que manejava as cartas tão bem — esse
Você nunca gostou daquela cena. tipo de coisa. Ela tinha umas coisas bastante boas
para fazer no filme. Mas Maggie se casou com
Nunca gostei. Não sei — eu tinha outra ideia. Creio um sujeito muito maçante e, por uns cinco anos,
que a cena não parece verossímil. levou uma vida maçante. Quando voltou, não era
a mesma pessoa. Se tivesse trabalhado em Red
Então, não é tanto a cena que o aborrece, mas a sua river teria se transformado numa grande estrela.
execução.
O roteiro foi escrito por Borden Chase?
Sim. Isso acontece o tempo todo quando se faz
cinema. Inclui-se uma cena que se queria fazer e, Ele escreveu a história original, mas tivemos de
de repente, não se consegue o que se queria. Mas reescrever o roteiro porque Borden tinha ficado
não havia nada a fazer, estávamos presos aquilo. muito ligado ao original, e eu queria modificá-lo.
Não imaginei nenhum outro jeito de terminar o
filme, porque aquilo era o final. Creio que ela Quanto você mudou?
simplesmente falhou. Ela fez um trabalho muito

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Antes eu tinha trabalhado na história do King Ran- de estragar tudo, e não quis brincar com aquilo
ch, e estava com aquilo gravado na mente. Por de novo.
isso, creio que estava em busca de uma história
um pouco maior do que a de Borden. Ele estava Em Red river há uma personagem que usa chapéu-
mais preocupado com os carroções e coisas as- -coco, e alguém faz uma gozação a esse respeito.
sim. Também acho que ele foi influenciado pelos O sujeito do chapéu lhe dá um soco e diz algo
editores da Saturday Evening Post. como “gosto de usar este chapéu”. Em El Dorado
esse detalhe levaria à construção de toda uma
A transição de dez anos funcionou muito bem. personagem.

Aquilo não causava preocupação porque quem Em El Dorado usamos uma cartola, e no caso de Red
fazia a transição era o menino — ele cresceu, e river era um derby, mas usei todo tipo de chapéu
Wayne envelheceu. E quando se levantou dos jo- esquisito. Quando se faz um filme de guerra ou
elhos enfrentou alguns problemas, como teria de caubóis, muitas vezes é difícil distinguir entre
acontecido a um homem mais velho. Creio que as personagens. Ninguém sabe quem é quem, por
tudo se delineou bem depressa. isso chapéus ajudam bastante. Em Red river, fiz
um sujeito usar um derby, outro, um chapéu do
Foi a primeira vez que você fez algo semelhan- exército Confederado —todos os tipos de chapéus;
te. Geralmente os seus filmes têm uma unidade é só por querer diferenciá-los. Como em Hata-
temporal e espacial, mas este filme percorria um ri!, geralmente, eles andam por aí com aqueles
período longo. chapéus de safári — bem, um dos sujeitos usava
um gorro tricotado, de modo que o público cer-
Sim, a história exigia isso. Queríamos saltar do tamente sabia de quem se tratava, mesmo à
desejo do homem de possuir muito gado a um distância. Na verdade, Wayne usou o meu chapéu
ponto em que ele já o possuísse, pois a história era de pescaria. Um dia eu estava usando o chapéu,
essa. O modo como tinha conseguido isso só foi e Wayne quis usá-lo no filme. Mandei comprar
revelado mais tarde. E fizemos algumas cenas uma caixa daqueles gorros, porque sabia que se
em que ele toma o gado dos mexicanos. perderiam, e onde é que conseguiríamos encontrar
duplicatas na África?
Na época você foi criticado devido ao final do filme,
por não matar Wayne nem Clift; alguma vez você Gosto do chapéu que Wayne usa em Rio Bravo —
se arrependeu disso? caindo aos pedaços. Creio que era o mesmo desde
Stagecoach [No tempo das diligências] [1939; John
Não, creio que a premissa da última cena seja Ford], e o chapéu havia envelhecido. Ele me disse
lógica. Se tivéssemos exagerado um pouco ou ido que o usou pela última vez no seu filme — depois
longe demais, bem, como disse, não tinha outro disso teve de aposentá-lo.
jeito de terminar. Decerto teria odiado matar um
deles. Frustra-me começar a matar gente sem Lembro-me de Jack Warner ter assistido a toma-
motivo. Fiz isso em The dawn patrol, mas, quando das de Rio Bravo e ter dito: “Quando é que Dean
terminei, percebi quão perto eu tinha chegado Martin vai começar a trabalhar?”. “Bem”, respondi,

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“ali está ele, aquele vagabundo vestindo camise- o gado de novo e filmamos — assim, mostramos
ta cor-de-rosa.” “Raios”, disse ele, “parece que três vezes mais gado do que tínhamos na verdade.
Hawks usou toda a coleção de chapéus velhos de Fizemos isso em vários pontos do filme, e não se
Charley Grapewin [personificador conhecido por percebe. Em Land of the pharaohs, nas sequên-
fazer papéis de velhos indigentes]” — achei isso cias de construção de pirâmides, a câmera se
bem engraçado. move continuamente, nós cortamos na metade,
movemos as coisas e as pessoas para a frente
A sequência de grandes closes no início do movi- e continuamos, sem que o público percebesse.
mento de gado é parecida com o expediente que
você empregou para “a grande matéria” de His Então na verdade você tinha muito menos gado
girl Friday, embora neste afinalidade fosse outra. do que imaginávamos.

Ah, não, neste caso a coisa era completamente Ah, sim. Tínhamos apenas 1500 cabeças, mas era o
outra. Para fazer com que o início do movimento suficiente para trabalhar. Tente dizer a 1500 vacas
de gado resultasse importante, era preciso usar o que fazer!
alguma coisa para produzir impacto. Eu ainda
não tinha usado closes. Comecei com closes Onde o filme foi rodado?
de pessoas gritando, misturados com música;
primeiro se ouve a música, e ela começa a cres- No Arizona, entre Tucson e a fronteira, numa
cer, de modo que, quando eles tocam o gado, já pequena fazenda que pertencia ao secretário
significa algo. Em His girl Friday, a finalidade era da Marinha, que havia sido colega de escola do
que seis pessoas diferentes contassem uma his- meu irmão. Chama-se Rainwater Ranch, ou algo
tória; e era perfeitamente lógico fazer do jeito que assim. A película foi filmada inteira lá. Além de set,
eu fiz, porque todos eram repórteres falando cada a cidade do filme também nos servia de moradia.
um ao seu telefone, e assim só cortávamos de
um para o outro. Como seria ouvir seis pessoas Quem construiu a cidade?
contando simultaneamente a mesma história
pelo telefone? Pegamos uma fala de cada um. Algumas fachadas falsas — nada demais. Uma
cidade com dois pedaços, um central e outro nos
Como você fez aquela tomada extensa que parte arrabaldes, e alguns edifícios falsos. A mim pa-
de Wayne, percorre todo o gado e volta a Wayne? receu uma cidade de verdade. Sabia que aquelas
1500 cabeças de gado fechadas em currais levariam
Mandamos buscar uma mesa giratória motori- consigo a câmera e todo o resto se uma lâmpada
zada, na qual instalamos a câmera, permitindo explodisse.
assim que ela mantivesse uma rotação constante;
começamos com Wayne e fomos girando a câ- O diretor da segunda unidade foi Arthur Rosson.
mera, enquadrando o gado, até certo ponto em
que havia uma estaca de cerca. Aí, levamos o gado Sim — fez o estouro da boiada e coisas assim.
para a frente, entre essa estaca e outro marco, e
giramos de novo a câmera; finalmente, movemos

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Quem realizou aquelas lindas cenas panorâmicas Não, mas a personagem concordava.
do movimento do gado?
Você discorda fundamentalmente daquela personagem?
Fomos nós. A maioria foi filmada de manhãzinha,
ou tarde da noite. Só fizemos as cenas. Se o ca-Creio que naquela altura todos ficaríamos em de-
meraman chegasse antes de mim, simplesmente sacordo com Wayne. Acho notável que ele tenha
se preparava e começava a cena. conseguido atravessar aquela personagem. Até
ele ficou em dúvida em certos pontos. Eu lhe disse:
Gosto da tomada em que Brennan lança o rifle “Agora é tarde para ter dúvidas — vá lá e faça”.
para Wayne e ele atira nos três desertores, com
afogueira no primeiro plano. Dúvidas quanto à simpatia do público por ele?

Wayne é como um gato com aquele rifle — o jeito Sim. Eu lhe disse: “Creio que tudo vai dar certo. A
com que ele o maneja! melhor coisa a seu favor é que o rapaz o defende
o tempo todo”. Veja, mesmo depois que a mão de
Foi você quem filmou a travessia do rio em Red Wayne se enche de farpas, e o sujeito quer pegar
river? a arma para acabar com ele, Clift se antepõe e
diz: “Entreguem-lhe a arma — dêem a arma a
Sim. Aquilo foi difícil de fazer, porque em nenhum ele”. Ele queria matar o sujeito. É um modo oblíquo
rio do Arizona havia tanta água. Construímos uma de mostrar aceitação, mas lá estava e ajudou a
represa, mas quando íamos filmar, a represa personagem de Wayne.
cedeu. Construímos de novo e filmamos. Mesmo
assim, não havia água bastante. Creio que o rio Como era trabalhar com Clift? Ele era de alguma
fazia uma curva, que amorteceu a correnteza. forma difícil?

Quem atravessa o carroção é, aparentemente, o Ah, ninguém tão bom é difícil. Tudo o que se
próprio Brennan; acho que você lhe disse para precisa fazer é tirar certas ideias da sua cabeça.
olhar para trás, de modo a fazer o público perceberVeja, quando começou, ele deveria ser durão, mas
que era ele mesmo. pessoas assim são expulsas da tela por Wayne
num piscar de olhos. Por isso, eu o interrompi e
Ah, foi ele — ele sabia manejar uma parelha. Tí- disse: “Preste atenção, Monty, a melhor coisa a
nhamos feito a travessia algumas vezes, de forma fazer é exatamente o contrário. De outra forma,
que ele se acostumou; naquela altura sabíamos você não vai a lugar nenhum. Pegue uma caneca
que o fundo do rio era bom, então ele atravessou de café, beba dela, e só veremos os seus olhos. O
o carroção e tudo deu certo. público não saberá se você está sorrindo ou não.
Comporte-se como se não se importasse de modo
Em certa altura do filme alguém diz a Wayne: “Acho algum”. Foi o que ele fez, e quando terminamos
que você deve dizer à turma que eles fizeram um a cena, Wayne se aproximou de mim e disse: “Ei,
bom trabalho”. E ele responde: “Por que deveria? É aquele guri vai dar certo — ele vai ser um bom ator”.
o serviço deles”. Você concorda com essa atitude? Respondi: “Pode estar certo de que ele será bom”.

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Depois enxergou outra oportunidade de fazer uma montando bem. Dava para perceber. Ensinei-lhe
cena dramática — ele queria se zangar com um como saltar para a sela pulando antes no estribo.
sujeito —, mas eu queria que ele representasse Ele trabalhava — realmente trabalhava duro.
a coisa com as mãos tremendo e dizendo: “Você
está com sorte. Veja como você chegou perto”. Joanne Dru fala bastante no filme, como Angie Di-
Bem, depois que Clift percebeu como essas coisas ckinson faz em Rio Bravo.
funcionavam bem, tornou-se cada vez mais fácil
trabalhar com ele. Bem, quando o agressor é uma garota, ou se faz
isso ou se acaba com um filme mudo nas mãos.
A cena em que eles deixam Wayne encostado no seu É aí que as suas reações se tornam interessantes.
cavalo é especialmente boa. Creio que a moça tem de falar, pois do contrário
fica tudo muito chato.
Aquilo foi engraçado, porque Monty Clift tinha fa-
lado sobre essa grande cena que se aproximava E, uma vez que você acredita que é ela quem deve
— na qual ele se dirige até Wayne e lhe diz que, com falar, você exagera um pouco para dar graça.
sorte, levará a boiada dele até Abilene —, e eu lhe
disse: “Não tenha tanta certeza”. Quando fez a Claro. É para realçar a futilidade daquilo contra o
cena, Wayne estava com as costas voltadas para que está lutando — ela trabalha contra o apareci-
Monty e para Walter, de modo que Monty teve de mento de problemas, não é isso?
falar para a sua nuca, até que Wayne se voltou e
disse: “Vou matá-lo. Algum dia você vai olhar e eu Considerando a época, a cena em que Wayne oferece
estarei lá. Vou matá-lo, Matt”, e se virou de novo a Joanne Dru metade de tudo o que ele tem para que
e não olhou mais para ele. Aquilo deixou Clift ela lhe dê um filho foi bastante ousada. É também
embaraçado. Eu disse: “Agora é melhor sair daí" uma proposta estranha.
— eles cortaram isso do som —, e ele se voltou e
se afastou sem saber para onde andava. Ele não Creio que ele jamais tornaria a se apaixonar,
sabia o que fazer. mas ele queria um filho. Acho que fazia bom ju-
ízo dela, de modo que serviria para ser a mãe do
Esse foi o primeiro filme de Clift — como você o achou? seu filho. E ela responde à altura: “Dunson, por
Millay” — porque ela queria dizer: “Você só quer
Não me lembro exatamente — creio que por cruzar, como se estivesse cruzando gado”. Creio
intermédio de algum empresário. Gostei da sua que foi uma boa resposta. Não tinha certeza de
atitude geral. Ele nunca tinha montado a cavalo, que conseguiríamos fazer isso passar por eles,
e como dispunha de algum tempo antes do início mas deixaram. Acontece que quando o filme vai
das filmagens, chegou com duas semanas de an- bem, eles deixam passar um monte de coisas.
tecedência, e toda manhã, depois do café, saía
com um caubói levando um lanche, e cavalgavam Numa das poucas cenas do filme que se passam em
o dia inteiro — subiam colinas e desciam lugares ambiente fechado — quando eles se inscrevem para
íngremes, atravessavam rios e assim por dian- levar a boiada junto com todos os outros —, a única
te. Quando as filmagens começaram, ele estava fonte de luz é aquele refletor desmaiado.

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A fotografia sai bem assim, é só isso. Uso bastante Então a versão distribuída para os cinemas com a
esse expediente. narração de Brennan era a final?

Os seus filmes são em geral bastante escuros. Sim. Deus sabe de onde saiu a outra. Eu nem se-
quer a assisti, só a vi quando passou na TV.
Ah, creio que é porque o resultado é mais dramático
Certa vez você me disse que Red river foi o único
Como você teve a ideia de fazer com que, no final, dos seus filmes do qual você possuía uma cópia.
Wayne saísse andando em meio ao gado?
E isso não é mais verdade.
Primeiro perguntei a ele se levaria o cavalo em
meio às vacas, e ele respondeu: “O cavalo seguirá Por quê?
até certo ponto, mas depois vai parar”. Então eu
disse: “Bem, quando ele estiver pronto para parar, Porque a emprestei para alguém que nunca a
desmonte e ande em meio às vacas”. Espantamos devolveu.
o gado que estava à sua frente. O ruído daquelas
coisas que ele levava também ajudava as vacas Esse foi o filme tecnicamente mais difícil que você
a saírem da frente em tempo de ele passar. E já fez?
elas saíam bem em cima da hora. Tivemos sorte
em conseguir filmar aquilo. Coisas assim sempre Ah, sim, considerando as dificuldades. Quero di-
dependem da sorte. zer, levantava-se de manhã, e o para-brisa do
automóvel estava coberto por meio centímetro de
Vi duas versões diferentes do filme. Uma delas co- gelo; ia-se a cavalo para a locação das filmagens.
meça mostrando as páginas de um livro intitulado E quando chegava a hora do almoço começava a
Annals of the great West [Anais do grande Oeste] — as chover, e tínhamos de comer num prato molhado.
páginas vão sendo viradas e o público precisa ler o Ficamos três meses desse jeito, ao ar livre. Houve
que está escrito. Na outra, que é muito melhor, Walter muito poucas cenas de interiores.
Brennan narra o que estava escrito.
Onde você filmou essas cenas?
A versão do livro foi a primeira tentativa, e não
prestava: era lenta, porque era necessário parar Algumas lá, mas a maioria no estúdio de Goldwyn.
para a leitura; não sei por que fizeram cópias da- Não deu muito trabalho.
quilo. Mas todas as cópias para a TV parecem ter
sido feitas a partir dessa versão; e, na televisão, Enquanto você estava no Arizona foi possível ver
não é possível sequer ler, porque as letras são provas diárias das filmagens?
muito pequenas. A intenção era fazer a introdu-
ção narrada, porque isso a tornaria mais curta Víamos às vezes, mas não normalmente. Havia um
e a aproximaria do público, pois a voz era muito montador no estúdio que finalizava as tomadas.
especial. Mas trabalhamos muito tempo na locação, e não
pude ver o que ele estava fazendo. Quando assisti,

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estava tudo errado. Achei que não tinha sido Você incluiu uma delas em The last picture show
eu que havia filmado aquilo. As minhas tomadas — aquelas de [John] Ford.
buscavam as reações das pessoas, e ele não in-
cluiu uma só reação em todo o seu trabalho de Então você teve sorte, principalmente.
montagem. Foi então que convoquei Chris Nyby
— quando começamos, ele estava fazendo outro Claro. E se consegue tudo o que se deseja, sem
trabalho — e lhe perguntei: “O que vamos fazer confusão. Ford, é claro, era mestre nessas coisas.
com isto?”. Ele respondeu: “Vamos recopiar Usou o mau tempo maravilhosamente. Ele não
tudo”, e recomeçamos tudo desde o início. se importa se os closes combinam. Monta um
tableau, uma tomada de longe, fixa aquilo na
No filme há uma cena notável, que é quando a mente do público e depois corta para um close;
sombra de uma nuvem cobre as pessoas no en- ninguém percebe as diferenças de iluminação.
terro de Harry Carey Jr.
Você planeja de antemão cenas de mau tempo?
Estávamos trabalhando num vale, completa-
mente cercados por montanhas. Bem, nuvens Em El Dorado, ensaiei uma cena de pôr-do-sol,
costumam se acumular em montanhas. Em Tuc- preparei os refletores — era numa porta ou numa
son, quando se filma em direção ao norte, o céu é janela —, marquei o lugar da câmera com um
limpo; mas ao sul estão as montanhas, e quando prego e fui fazer outras coisas. Esperamos cerca
se filma naquela direção, sempre há nuvens. Assim, de dez dias, filmando outras coisas, até que sur-
preste atenção, quando estiver escolhendo loca- giu um pôr-do-sol muito bom; então corremos e
ções, lembre-se disso. Seja como for, estávamos filmamos. Antes de viajarmos para a África para
filmando, e o vento soprava no alto; foi aí que as fazer Hatari!, Jack Ford me disse: “Prepare-se para
nuvens se aproximaram rapidamente. Podíamos uma boa cena de chuva. Ensaie tudo de antemão,
ver a nuvem passando por sobre as montanhas, porque lá as gotas de chuva são as maiores do
então gritei para Wayne: “Se você se atrapalhar, mundo. É o único lugar do mundo para filmar chu-
continue a falar sobre qualquer coisa e, quando va”. De modo que eu disse ao cameraman, Russ
eu disser, saia”. E quando começamos a cena Harlan, que se preparasse. Mas não caiu uma
em que Wayne lê a prece, a nuvem passou bem gota de chuva durante todo o tempo que ficamos
por cima da cena. Ele estava lendo uma oração lá! Quando voltamos, contei a Ford e lhe disse:
fúnebre, e o efeito foi muito bom. “Não me dê mais conselhos...”.

Na verdade, foi uma tomada bastante elaborada: Fale sobre A song is born [A canção prometida]
eles saem de perto da cova e a câmera gira de [1948].
volta — tudo sem cortes.
Certa vez me encontrei com Goldwyn, e ele disse
Bem, ele veio andando, pegou um chicote, voltou- que estava encalacrado com uma história para
-se, disse o nome daquele sujeito, e aí cortamos. Danny Kaye. Perguntei: “Por que você não refaz
Às vezes essas tomadas funcionam muito bem. aquele filme que fiz para você? Ball of fire. Só que,
em vez de escrever uma enciclopédia, os profes-

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sores estudam música”. Ele respondeu: “Essa é Eu nem sequer assisti às cenas montadas. Nunca
uma grande ideia”. Bem, cerca de uma semana vi o filme. No início, tentei realizá-lo como uma
depois ele me chamou e disse: “Decidimos situar espécie de desafio. Poderia ter sido divertido, mas
o filme por volta de 1922, com o tipo de música quando acabávamos de trabalhar um número
que eles tocavam em Nova Orleans na época. O musical, chegavam ordens de fazer outro. Foi
que você acha?”. Respondi: “Acho horrível. É ridí- tudo muito difícil.
culo fazer Danny Kaye procurar músicas novas e
esbarrar numa banda de Nova Orleans. É idiota”. E Qual foi a origem da ideia de I was a male war bride?
ele disse: “Acho que você tem razão”. Pouco depois
ele me procurou de novo, querendo que eu fizesse Era de um livro que Zanuck tinha comprado. Ele
o filme, mas eu não queria. Ele me perseguiu. Eu mandara fazer um roteiro, e me pediu para ir até
vinha para Palm Springs, e lá vinha ele atrás. Por lá. Um mensageiro trouxe duas cópias do roteiro, e
fim, ele me fez uma oferta que foi muito difícil de ele disse: “Leia uma enquanto eu leio a outra”. Co-
recusar; creio que depois ele ficou zangado consigo mecei a ler e olhei para ele, para ver se iria cometer
mesmo por ter feito a oferta, porque era ridícula. suicídio; Zanuck estava abalado. Quando terminou
E o filme só deu problemas. de ler, perguntou-me: “O que você acha?”. E
eu respondi: “O mesmo que você: é péssimo”.
Não era um filme muito bom. Mais ou menos nessa altura, chegou Joe Schenck
e disse: “Continue a falar”. E Zanuck: “O que há
Acho que é um filme horrível! de errado aqui?”. Eu lhes disse o que pensava,
e então, com aquele jeito manso que tinha, Joe
Você o filmou quase do mesmo jeito que tinha disse: “Howard, você começou a trabalhar para
filmado o anterior — os ângulos e a disposição a Fox esta manhã”. E eu respondi: “Ah, não, Joe”.
das cenas são quase iguais. Muitas das sequências E ele: “Eu lhe fiz alguns favores, não é verdade?”.
parecem as mesmas, exceto pelo fato de ser em Era verdade, de modo que eu disse: “OK. Escreva
cores, de forma que, visualmente, a sensação é o contrato”. Foi o que ele fez, pagavam-me 10 mil
sólida; mas Virginia Mayo e Danny Kaye simples- dólares por semana — mesmo durante todo o
mente não são Barbara Stanwyck e Gary Cooper: tempo em que Cary ficou de cama com hepatite.

Nem de longe. Bem, eles cometeram um erro. Por cerca de dois meses, não é?
Mostraram a Virginia Mayo as cenas que Barbara
Stanwyck tinha feito; aquilo nos fritou, porque, Seis meses! E Ann Sheridan pegou pneumonia.
como você diz, ela não é Barbara Stanwyck. Ficamos na Europa um tempão.

E ela tentou ser? O esboço final foi feito por Charlie Lederer?

Imagino que sim. É, tentou. Sim, ele foi para a Europa e ficou lá por um bom
tempo enquanto filmávamos na Alemanha, porque
Fico com a sensação de que você não se interessou decidimos usar a paisagem e as coisas que en-
muito pelo projeto. contrávamos — como aquela parte nos trilhos de

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trem —, esse tipo de coisa. Também perdemos um charuto do bolso e lhe pedi que o acendesse;
um tempo enorme porque pegamos um clima nunca vi no rosto de ninguém expressão que se
horroroso. Estávamos num vale e não podíamos igualasse à do general naquele instante. Ele não
filmar porque as laterais eram um preto só. sabia do que se tratava. Grant começou a rir e
disse: “Você tem razão”. Assim, fizemos a mesma
E o que fizeram? coisa — Grant representou naturalmente, sem
tentar parecer feminino. O resultado foi muito
Esperamos. engraçado, com aquela peruca e o seu jeito de
andar — ele foi formidável. Depois de War bride,
Na verdade, a situação do filme não é essencial- Zanuck disse: “Tenho uma grande ideia: você e
mente engraçada. Poderia se tornar bem séria. Grant fazerem Charley’s aunt” [famosa comédia
teatral em que um homem se disfarça de sua
Creio que, provavelmente, as melhores comédias própria tia]. Respondi: "Acabamos de fazer isso”.
são feitas desse tipo de coisa. Duas pessoas se
casam, e a burocracia as impede de dormir juntas. Gostei da cena em que as mulheres que se casam
Existe uma versão polonesa da mesma história, com os soldados precisam dizer se já haviam
realizada dramaticamente, chamada Osmy dziem tido problemas femininos ou se já tinham ficado
tysgonia [O oitavo dia da semana] [1958]; Aleksander grávidas. A cena havia sido muito bem escrita, e
Ford]; há uma sequência engraçada, mas é basi- a ideia era que Grant, por ser homem, ficasse
camente uma completa tragédia. His girl Friday é embaraçado. Então eu lhe disse: “Tente fazer
sobre um presidiário fugitivo que é um assassino. o contrário. Faça com que o sargento se sinta
Isso não soa como boa situação cômica. A graça embaraçado por fazer essas perguntas. Diga: Ah,
em Bringing up baby era um leopardo perigoso. muitas vezes, sargento. Ah, tive muitos proble-
Mencione qualquer coisa engraçada que Chaplin mas”. E o resultado foi muito engraçado; do
tenha realizado: a sua personagem emergia da outro jeito, não tinha graça. É isso que é bom em
tragédia, da fome, da pobreza etc. Sempre pensei: Grant. Pode-se dizer a ele: “Cary, vamos tentar o
“Ele tem razão. É esse o modo de fazer”. contrário. Isso vai mudar as suas falas, mas não
se preocupe. Diga o que quiser, e se não conseguir
Grant se manteve sério ao fazer a parte em que pensar em nada, deixe que eu escreva as falas
se disfarça de mulher. para você”. Mas ele pensa nas coisas certas, e
seguimos em frente com o que ele pensou. Em
Quando iniciamos, ele começou a ensaiar ten- Bringing up baby havia uma cena na qual ele se
tando ser extremamente feminino, mas eu lhe zangava. Eu lhe disse: “Muito chato. Você fica zan-
disse: “Gary, não creio que isso deva ser feito dessa gado do mesmo jeito que Joe Doaks, ali da esquina.
forma”. “Ah”, disse ele, “mas eu acho que sim.” Você não consegue pensar em alguém que age
Eu não disse mais nada; vesti um uniforme de de modo engraçado quando se zanga?”. Então
auxiliar militar, com as pernas aparecendo além me lembrei de um sujeito que relincha como um
da barra da saia, coloquei uma peruca ruiva e cavalo quando se zanga — e foi o que Cary fez.
fui a uma festa que estava sendo oferecida por
um general — ele não sabia quem eu era. Tirei Ann Sheridan também estava excelente.

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Ela é uma das poucas pessoas no mundo que se feliz cada vez que morria um soldado inglês — algo
tornou uma grande estrela fazendo filmes ruins. assim.
Tente se lembrar de algum filme que ela tenha feito.
Já se afirmou que em The thing a sua intenção era
É difícil. criticar os cientistas.

Ela passa, embora os seus filmes sejam ruins. Ah, aquilo só se desenvolveu daquele jeito. Tí-
nhamos de dar plausibilidade ao fato de eles te-
War bride fez sucesso? rem permitido que “a coisa” vivesse, e o fizemos
transformando os cientistas em caras do mal.
Sim, muito. Mesmo com todos os custos adicionais Mas isso decorria de uma dedicação honesta
e com os problemas de cronograma que tivemos, por parte deles.
Zanuck me disse que deu um bom lucro. Se não
fosse pelos custos extras, o lucro teria sido grande, O filme fez sucesso?
porque a bilheteria foi imensa.
Muito. E foi muito barato. Ninguém que tenha
De onde você tirou a ideia para The thing [dirigido trabalhado no filme recebeu mais de quinhentos
por Christian Nyby]? dólares por semana. Os sets custaram pouco,
porque trabalhamos dentro de um refrigerador.
Certa noite, quando estávamos na Alemanha E o roteiro funcionou, de modo que as filmagens
rodando War bride, comprei uma revista de fic- transcorreram muito depressa.
ção científica, na qual havia um conto chamado
“Who goes there?”. Imaginei que seria divertido Por que você não o dirigiu pessoalmente?
fazer uma experiência com a ficção científica. A
história só tinha quatro páginas, e demoramos Chris Nyby tinha feito um trabalho excepcional
apenas sete ou oito dias para escrever o roteiro. quando montou Red river, e nos foi de grande
Nos primeiros dois dias tivemos problemas para valia, por isso deixei que dirigisse. Ele queria se
encontrar um modo de contar a história. Final- transformar em diretor, e eu tinha um trato com
mente, tivemos a ideia de fazer isso através dos a RKO que me permitia fazer isso.
olhos de um repórter.
Você visitou o set?
Charlie Lederer trabalhou no roteiro com você.
Durante os ensaios; também os ajudei nos diálo-
Charlie e Ben Hecht. gos superpostos — mas creio que Chris fez um
bom trabalho.
O nome de Hecht não é mencionado.
Evidentemente, há duas versões de The big sky:
Não, porque Ben estava enfrentando problemas a versão original era muito maior, e foi cortada
na época — ele tinha insultado a Inglaterra. Du- depois do lançamento.
rante a crise de Israel, Ben declarou que ficava

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A estreia foi em Chicago, num cinema muito bom, Em Idaho. A fotografia é ótima — um background
e a bilheteria era fabulosa. Pediram-me que fosse fabuloso, com nuvens fantásticas e água. A água
até lá; olhamos pela janela do hotel, e as filas para é ótima para filmar, por causa dos reflexos.
comprar ingresso davam a volta no quarteirão. Eles
disseram: “Queríamos que você visse isso porque, O final tem um toque trágico. Dewey Martin fica
se você cortar vinte minutos do filme, poderemos com a moça, mas não porque a ame, e sim porque,
incluir outro filme no programa”. E eu respondi: se não permanecer com ela, perderá a amizade
“Se vocês retirarem vinte minutos, não resta- de Kirk Douglas, que é na verdade quem a ama.
rá filme nenhum. Não é possível fazer isso e
ficar com o mesmo filme”. Mas eles tinham o Sim, isso é essencialmente o que queríamos fazer,
direito de fazer os cortes e os fizeram. Numa mas não acho que eu tenha feito um bom trabalho.
semana, as filas desapareceram. O filme também É estranho, mas não creio que houvesse qualquer
desapareceu. calor no relacionamento daqueles dois. Eu tinha
planejado que houvesse, mas o resultado não
O que eles cortaram? foi esse. Acho que falhei ao contar a história da
amizade entre dois homens. Sempre encarei Kirk
Não sei. Creio que retiraram diversas cenas e só como um dos grandes vilões do cinema — todas
mantiveram as suas conclusões. Vi o resultado as vezes que representou esse tipo de papel se
na TV e não reconheci o filme. Faltava tanta coisa deu muitíssimo bem. E quando ele procura ser
que nem sequer consegui recuperar as partes agradável demais ou caloroso, não dá certo. Creio
cortadas. Eles retiraram a maior parte da história que Kirk não era a pessoa certa a ser incluída
entre a garota índia e Dewey Martin. As cenas que naquele filme para o fim que eu pretendia.
construíam o relacionamento desapareceram,
e de repente se apresenta um relacionamento Conte-me como foi fazer “The ransom of Red Chief”,
estranho, que não se sabe de onde surgiu. o episódio que você fez para O. Henry’s Full House
[1952].
Como você descobriu Dewey Martin?
Fiz aquilo para prestar um favor a Zanuck; depois
Dewey tinha feito um grande trabalho em The que concordei em fazê-lo, passei simplesmente
thing, e funcionou bem até adquirir maus hábitos. a transformá-lo num pastelão. Ora bolas, eram
Eu o incluí no elenco de Land of the pharaohs, mas Oscar Levant e Fred Allen; sendo assim, o que
quando ele se apresentou à locação já estava muito havia de errado naquilo? Bem, quando o estúdio
mais interessado em publicidade do que em ser assistiu ao filme, ficou horrorizado; eles disseram:
ator. Praticamente o cortei do filme — quase não “Isto não é O. Henry”. E eu respondi: “Não ligo a
fiz cenas com ele. mínima. Se O. Henry é ruim, vou mudar isso”.
E a história não era boa — não iria funcionar de
Onde o filme foi rodado? A fotografia é belíssima. outra forma.

Como foi trabalhar com Fred Allen?

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Ah, foi ótimo trabalhar com ele; e com Oscar se transformado num sujeito antiquado; aí ele
tudo transcorreu direito. Fred não sabia as falas rejuvenesceria e permaneceria jovem pelo resto
— entende o que digo? Ele tinha de fazer um papel, da vida. O ponto era esse. Mas aí Ginger também
mas ele era bom. Atrás das câmeras ele era uma quis beber a poção da juventude. Tentei convencê-
pessoa muito sedutora. -la a não fazer aquilo; disse-lhe: “Olhe, você vai ter
de acompanhá-lo, e isso não vai ajudá-la nem um
Na sua opinião, por que Monkey business [1952] pouquinho” Mas eles tinham lhe prometido que,
não teve sucesso? se fizesse o filme, a parte em que ela também
toma a poção poderia ser incluída. Na verdade,
Creio que a premissa de Monkey business não era creio que a concepção que eu tinha da história
realmente crível, e foi por esse motivo que o filme não foi transmitida.
não resultou tão engraçado quanto deveria. Os
episódios que envolviam diretamente o macaco Uma vez que quem inventa a fórmula é na verdade
eram inacreditáveis. Os outros pareciam funcionar o macaco, o filme de fato não é um comentário
direito, mas creio que fizemos o público entrar sobre toda essa história de poções da juventude?
no filme do jeito errado. Não acho que se possa
acreditar que um macaco seja capaz de misturar Não creio que eu tenha me aprofundado dessa ma-
uma poção, portanto, como farsa, ficou exagerado. neira. Só pensei que seria engraçado se o macaco
Além disso, as cenas em que Ginger Rogers se misturasse os ingredientes. No entanto, como
transforma numa adolescente por causa da po- disse, talvez isso tenha resultado bobo demais.
ção eram muito repetitivas; Cary Grant aproveitou
melhor, porque ele as fez antes, e o seu papel Gentlemen prefer blondes [1953] foi o seu primeiro
tinha sido mais bem escrito. Talvez o filme não musical. O que foi que o estimulou a fazê-lo?
devesse ter sido feito daquela forma. Acho que
teria sido muito melhor mantê-la saudável, pois Eu nunca havia feito um musical, e imaginei que
ela teve de repetir toda a cena de Cary, e ele é um seria divertido tentar. Recebi mais ou menos
sujeito difícil de acompanhar — especialmente carta branca para fazer o filme, que possuía os
considerando-se o material que ele tinha. Aquilo ingredientes que eu imaginava necessários para
desestabilizou o filme. Quando Cary fez a cena, o um musical. A peça era boa, e eu gosto muito de
assunto era novo para o público, mas quando foi Jane Russell; assim, no momento em que eles a
a vez dela, ficou repetitivo. convenceram a fazer o filme, tornou-se fácil. De
modo geral, creio que o filme saiu direito.
Você concorda em que o filme conta a história da
restauração de um casamento? Na primeira cena Você não considerou irônico o fato de algumas
ela fala com ele como se ele fosse uma criança, pessoas terem achado que Monroe e Russell es-
mas no final o relacionamento entre os dois tinha tavam sexy em Gentlemen prefer blondes, quando
amadurecido. o que você pretendia era o contrário?

Na verdade, eu queria fazer o filme com uma Sim, é irônico. Na verdade, para mim, elas eram
mulher bastante jovem e mostrar que Cary havia muito divertidas, uma caricatura total, uma pan-

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tomima sobre sexo — não havia sexo normal ali. uma fantasia completa. Eu costumava dar risada
Jane Russell deveria representar a sanidade, e toda vez que fazíamos uma cena em que as duas
Marilyn, uma garota que se preocupava apenas apareciam juntas — cabelo branco e cabelo preto—,
em arranjar um bom casamento do ponto de elas eram tão caricaturais!
vista financeiro. Ela tinha um pequeno código
pessoal e vivia de acordo com esse código. Fox Ambas eram caricaturas de garotas sexy, embora
havia escrito o roteiro de forma que a garota que nenhuma das duas parecesse sexy no filme.
queria o dinheiro se casava por amor e a garota
que queria o amor se casava por dinheiro. Eu lhe Nenhuma das duas era sexy na vida real. Jane
disse: “Isso é tão antigo, por que não fazer a coisaRussell conheceu um rapaz no colégio, ficou noiva,
honestamente? Só levar o filme até o fim direito”. casou-se com ele e nunca saiu com outro homem
O menino era a pessoa mais madura do filme, e em toda a sua vida até terem se divorciado. Esse
creio que era muito divertido. Fizemos o filme o era o grande símbolo sexual. Quando o seu ma-
mais espalhafatoso e reluzente que pudemos, rido Bob [Waterfield], que era zagueiro dos Rams,
de propósito, com um figurino completamente viajava, ela batia na minha porta e me perguntava
vulgar. Não havia preocupação com a realidade. se podia fazer o jantar — era apenas uma pessoa
Estávamos fazendo uma comédia musical, pura solitária. Monroe não conseguia ninguém que a
e simplesmente. convidasse para sair. Um empresário gozado, com
um metro e meio de altura, costumava levá-
O filme teve grande sucesso. -la aos lugares. No entanto, para o público do
cinema, ambas eram símbolos sexuais. Era tudo
Sim — foi o musical de maior sucesso que a Fox uma armação.
já realizou — ou, pelo menos, foi isso que eles
me disseram. Musicais são, geralmente, muito Não realizei os grandes números musicais do
restritivos, caso se pretenda que o público faça filme — insisti em que não os faria. O que fiz fo-
alguma ideia do que está acontecendo. E não se ram números como o das duas cantando juntas
pode dublar um musical, mas, mesmo assim, o “We’re just two little girls from Little Rock” — esse
filme ganhou um monte de dinheiro na Europa. tipo de coisa. Depois que eu tinha acabado, eles
fizeram aqueles números espalhafatosos, como
Como você disse, é um filme de aspecto extre- “Diamonds are a girl’s best friend”.
mamente vulgar.
Isso foi feito com a minha permissão — eu só não
Zanuck acreditava em cores. Eu gosto de cores queria ter o trabalho de realizá- los. E quanto
pastel. Os laboratórios da Fox eram todos voltados mais números eles faziam, mais berrante e vulgar
para a cor — obtinham-se cores que saltavam da o filme foi se tornando. Mas Santo Deus, Monroe
tela e tinham impacto sobre o público —, não fazia era vulgar. O que se podia fazer a respeito?
sentido amenizar aquilo. O filme não envolvia
qualquer realismo: as garotas eram irreais, a Quem dirigiu aquelas sequências?
história era irreal, os cenários e toda a premissa
da coisa eram irreais. Estávamos trabalhando com

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O diretor de dança — Jack Cole, um dos melhores realizado o filme assim, mas não conseguimos
que há. nenhum e o trabalho tinha de ser feito.

Como foi trabalhar com Russell e Monroe? Talvez tenha sido intencional, mas o filme resulta
um tanto cínico.
Duas pessoas completamente diferentes entre si.
A Jane bastava ensaiar duas vezes e ela atingia Bem, era cínico. Quer dizer, quando se vê uma
o máximo. No caso de Monroe, quanto mais se moça como Monroe andando por aí vestindo pra-
insistisse, melhor ela ficava. ticamente nada sem que ninguém preste atenção
nela e quando uma corista passa e todo mundo
Como você se deu com Monroe? Mais tarde, ela assobia para ela, fica evidente que o filme é uma
evidentemente se tornou bastante difícil. paródia.

Monroe só se assustava muito em aparecer — tinha Como foi fazer Land of the pharaohs?
grande complexo de inferioridade –, eu tinha pena
dela. Conheci outras pessoas como Marilyn. Fiz o Fiquei interessado na ideia de um homem todo-
melhor que pude e tentei não me aborrecer demais -poderoso que vivia de modo relativamente sim-
com aquilo. O papel que tinha desempenhado em ples, e que gastou toda a vida construindo aquele
Monkey business havia sido bem pequeno, por isso negócio imenso e em nome de uma segunda vida.
não tinha ficado muito assustada; mas quando Conversei com Faulkner sobre a história, e, embora
pegou um papel grande. . . Por exemplo, quando estvessemos imaginado que conseguiríamos fazer
a pusemos para cantar, por duas ou três vezes algo com aquilo, nos enganamos. Pensamos que
ela tentou fugir do estúdio de gravação. Tivemos poderia ser uma história interessante — a cons-
de agarrá-la e segurá-la para que não saísse. E, trução de uma pirâmide —, mas precisávamos
na verdade, Marilyn cantava bastante bem. Jane de alguma trama, e na verdade não chegamos
Russell me ajudou bastante. Sem ela eu não teria nem perto disso. Creio que o filme tem algumas
conseguido fazer o filme. Jane animou Marilyn grandes cenas, mas isso é tudo.
com conversas do tipo “você consegue”. Ela estava
assustada, isso é tudo — e, quando se assustava, Na verdade, não é um filme que se possa defender
não conseguia trabalhar direito. muito facilmente como trabalho unificado, creio
que isso aconteceu com quase todo mundo que
Todos os homens do filme são apagados. tentou realizar esses grandes filmes bíblicos ou
históricos.
O filme teria sido estragado se os homens fos-
sem diferentes. As garotas é que precisavam ser O único capaz de fazê-los era [C. B.] DeMille —
dominantes. Marilyn queria se casar por dinheiro, eram tão horríveis que ficavam bons.
e foi isso o que conseguiu — o homem tinha de
ser um filhinho de papai. Jane se casa por amor, Provavelmente porque ele acreditava nos filmes.
então poderíamos ter escolhido algum bastião da
masculinidade, provavelmente poderíamos ter

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Ah, tenho certeza de que sim — esse era o negócio não sei como é que um faraó fala. Faulkner tam-
dele. Quando se pensa em algumas das cenas bém não sabia. Ninguém sabia. Finalmente, Bill
que realizou — e, apesar disso, quando juntas, perguntou: “Há algum motivo pelo qual não pos-
funcionavam. DeMille foi, de longe, o diretor mais so fazê-lo falar como se fosse um sulista dono de
popular que existiu — foi ele quem agradou à maior uma plantação de algodão?”. Respondi: “Não. Vá
quantidade de pessoas. Creio que muitos de nós em frente desse jeito”. Mais tarde, Harry Kurnitz
teriam gostado de fazer filmes que ganhassem disse que ele deveria falar um pouco como o rei
aquela quantidade de dinheiro. Ele era uma figura Lear. Por fim, mudei tudo e fiz os diálogos serem
e tanto. Quando realizou King of kings [O rei dos reis] coloquiais, porque o estilo sulista não combinava
[1927], os executivos da Paramount estavam recla- bem; o mesmo aconteceu com o rei Lear.
mando dos custos; ele saiu e voltou com um che-
que administrativo cobrindo todo o dinheiro gasto, A última fala, “temos um longo caminho a percor-
e disse: “Cavalheiros, vocês não precisam mais rer”, pretendeu se referir à humanidade?
reclamar - aqui está o que o filme custou até o
último centavo — eu fico com o filme”. Bem, é Àquela fase da história da humanidade. Mas o faraó
claro que eles não concordaram, mas DeMille era uma personagem demasiadamente estreita e
estava de posse do cheque e com tudo pronto unilateral. Tinha uma crença à qual se prendia, e
para fazer a transação. Ele tinha um ego imen- aquilo se repetia vezes demais. Fiquei com a sen-
so. Quando chegava ao set de manhã, era como sação de que estávamos fazendo cenas repetitivas,
Deus. Todo mundo fazia silêncio. Ele tinha um e era muito difícil aprofundá-las, porque a única
escritório enorme, com teto abobadado e vidros coisa que sabíamos a respeito dos egípcios era
fumê, luzes especiais e lugares desconfortáveis que tinham aquele estranho desejo de acumular
para as pessoas se sentarem (exceto ele próprio). uma grande fortuna para usá-la na segunda vida,
como a chamavam. Assim, fica-se sem saber o
Imagino que você estava tentando fazer um es- que tentar. Não se sabe se é preciso fazer com
petáculo inteligente. que a moça seja um pouco pior, ou o faraó um
pouco mais dominador. Perde-se todo o senso
Acho que o que se precisa é de uma boa história. de valores. Quando não se sabe o que está por
Ben-Hur foi malfeito nas duas vezes [1926, Fred trás de alguém nem se tem um interesse direto
Niblo; 1959, William Wyler], mas ainda assim as na coisa, não se tem um filme.
pessoas gostaram, porque, quando se analisam
os filmes, há neles tudo para uma boa história. Foi você quem inventou o processo de fechar a
pirâmide com areia?
Você acha que não resolveu a história principal
de Land of the pharaohs. Era um modo bastante plausível de fazer aquilo.
Veja, ninguém nunca descobriu como aquilo era
Não se sabe por que uma pessoa como aquela feito. É difícil acreditar na quantidade de traba-
pensa do jeito que pensa — nunca resolvemos lho aplicada para construir uma pirâmide — e só
isso. E quando não se sabe como o protagonista podia ser feita em algum lugar onde todo o país
pensa, não se sabe o que ele vai fazer. Também pudesse trabalhar naquilo —, mas ninguém

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sabia exatamente como faziam. Imaginamos simples de conseguir isso é empregar as insta-
que eles construíam grandes rampas de areia e lações físicas de um estúdio. Eu me determinei
empurravam os blocos ladeira acima, colocavam a voltar atrás e recuperar um pouco do espírito
os blocos nos seus lugares e iam subindo. Isso era com que fazíamos filmes. Usávamos situações
lógico. Diversos cientistas afirmaram que o nosso cômicas sempre que podíamos, e pensei que ha-
método de selar as tumbas era provavelmente a víamos ficado sérios demais. Acredito que em Rio
coisa mais lógica que já tinham visto, porque fun- Bravo havia muitas situações cômicas, como se
cionaria. Fui parcialmente tomado pelos aspectos tivéssemos começado a fazer uma comédia.
da engenharia da coisa.
Decidi também que o público estava ficando
Land of the pharaohs foi o único filme que você cansado de tramas; como você sabe Rio Bra-
realizou em CinemaScope; qual é a sua opinião vo e Hatari! quase não têm trama — há mais a
sobre sobre o processo e sobre o formato? caracterização e o divertimento de se contar
uma história. As pessoas parecem gostar mais
Não acho que o CinemaScope seja um bom su- disso do que do outro jeito. Não quero dizer
porte. Entre outras coisas, distrai — é difícil pres- que caso apareça uma grande história não se
tar atenção e é difícil realizar cortes. Se o formato deva realizá-la, mas creio que as tramas mé-
do CinemaScope fosse bom, os pintores o teriam dias estão um tanto batidas. Com a chegada da
usado com mais freqüência — e eles fazem isso TV, usaram-se tantos milhares de enredos que as
há mais tempo do que nós. pessoas começaram a se cansar. Quando se faz um
filme com enredo, há certa tendência de o público
Após The big sky, que foi arruinado pela escolha pensar: “Ih, já vi isso antes”. As pessoas perdem
do elenco e pelas mudanças de montagem; de o interesse. Mas quando não se diz qual é a
Monkey business, que para você foi um fracasso; trama, há uma chance de despertar o interesse
de Gentlemen prefer blondes, que na verdade você delas. Isso também conduz a personagens que
não levou a sério; e de Land of the pharaohs, que motivam a história: isso acontece porque a per-
também não resultou como você teria preferido, sonagem acredita que a situação acontece, não
você parou de filmar por cerca de três anos. O porque isso esteja escrito num roteiro.
que você fez?
Mas os seus filmes giravam principalmente em
Estava ficando cansado de fazer filmes, e pensei torno de personagens, e não de situações, não é?
que seria melhor arranjar algumas ideias novas
e começar de novo. Eu tinha trabalhado continu- Bem, às vezes, você leva algum tempo até perce-
amente por um bom período, de modo que sim- ber que faz isso inconscientemente, mas a partir
plesmente me dei um pouco de tempo; comecei daí passa a fazer de propósito, e isso torna o
a pensar sobre o modo como costumávamos fazer trabalho muito mais simples. E, de certo modo,
filmes e como os estávamos fazendo na época. Re- mais difícil, porque simplesmente seguir uma
visei a confecção de muitos filmes dos quais tinha trama não é muito complicado; mas, quando
gostado. Hoje em dia, eles querem que fiquemos não se tem um enredo, já não é tão fácil contar
presos a roteiros — e a forma mais fácil, mais uma história.

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Creio que Rio Bravo é um dos seus melhores fil- incluído diálogos, mas, propositadamente, não
mes, provavelmente o melhor depois de Red river. o fez — quando, por exemplo, o sujeito que leva
Você acha que isso aconteceu porque você fez uma o tiro disparado pelo vilão bate no seu ombro e
pausa e revisou o que estava fazendo? sacode a cabeça, como se dissesse – “você não
devia ter feito isso”.
Sim, creio que sim. Quando cheguei e disse: “Quero
fazer Rio Bravo”, Jack Warner exclamou: “Ora, Durante os três anos em que fiquei afastado, a
você não vai querer fazer um western, vai?”. E eu TV havia pegado, mas eu tinha passado o tempo
respondi: “Sim, vou querer”. E, na verdade, esse na Europa, de modo que não tinha assistido a
filme deu início a todo um novo ciclo de westerns. nada. Quando voltei, vi que usavam chamadas
Se você prestar atenção, perceberá que naquela para abrir um programa, depois passavam a
época ninguém estava fazendo grandes westerns. um comercial, em seguida vinham os créditos e
depois o filme. Achei que aquilo era interessante,
A sequência de abertura é especialmente interes- então decidi tentar. Na verdade, caso se analise Rio
sante, considerando o contexto de que estamos Bravo, pode-se perceber que o filme é feito quase
falando — foi o seu primeiro filme em três anos. como aquelas histórias da televisão — é dividido
Você entrou no filme com muito espírito, iniciando- em três partes completas. Funcionaria perfeita-
-o com uma longa sequência silenciosa. mente como seriado de TV. Assim, na verdade eu
só usei aquele novo negócio que tinha surgido, e
Claro, fizemos isso deliberadamente. funcionou muito bem.

Voltando para a essência do que é um filme. Depois da introdução, você mantém a câmera
focalizada em Wayne, que sai andando para se
Sim, voltando à origem. As personagens eram encontrar com [Ward] Bond e relaxar.
apresentadas logo na primeira sequência, sem a
necessidade de se falar nada. Sabe-se que Wayne Aquele jeito de andar é quase uma marca re-
era xerife numa cidade pesada, onde havia gente gistrada de Wayne. Quando ele era mais jovem,
rica e ruim. Sabe-se que Dean Martin era um bê- parecia um gato — o modo como andava—, como
bado — um bêbado que tinha caído muito —, mas se caminhasse sobre os dedos. Gosto de vê-lo
era amigo de Wayne; e que, apesar disso, quando fazer isso.
apanhado, o amigo era capaz de agredir o xerife.
Como surgiu a ideia para o filme?
Apanhado numa situação embaraçosa?
Começou com algumas cenas de um filme cha-
Sim — com a mão dentro de uma escarradeira, mado High noon [Matar ou morrer] [1952; Fred
onde o sujeito mal-encarado tinha atirado uma Zinnemann], em que Gary Cooper corre de um
moeda para ele pegar. lado para o outro tentando encontrar ajuda, mas
ninguém colabora. E isso é uma coisa um tanto
Na verdade, a primeira sequência é um tanto es- tola para se fazer, ainda mais porque, no fim do
tilizada. Em alguns momentos você poderia ter filme, ele se mostra capaz de liquidar a tarefa

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sozinho. Pensei então que faríamos o contrário, Por que foi que você escolheu Dean Martin, que
a partir de um ponto de vista realmente profis- nunca tinha feito nada parecido antes?
sional. Quando oferecem ajuda a Wayne, ele diz:
“Se eles realmente forem bons, vou usá-los. Se Sempre gostei dele — eu o conhecia pessoalmente.
não, vou ter de tomar conta deles”. Fizemos tudo O seu empresário me procurou e disse: “Você o
desse jeito — exatamente o contrário do que tinha receberia e conversaria com ele?”. Respondi: “OK,
me aborrecido em High noon —, e funcionou; as amanhã às nove e meia da manhã”. “Bem”, ele
pessoas gostaram. É claro que nos divertimos respondeu, “não sei.” E eu disse: “Preste atenção,
muito ao fazer aquele filme. Refiro-me às reações se ele pretende participar disto, faça com que es-
malucas — só que não creio que sejam malucas, teja aqui às nove e meia da manhã”. Dean chegou
acho que são normais; acontece que, devido aos e disse: “Estou um pouco sonado. Fiz um show
maus hábitos que havíamos adquirido, elas pa- em Vegas até a meia-noite, levantei cedo, aluguei
reciam doidas. um avião para chegar aqui e enfrentei um trânsito
danado no caminho”. E eu lhe disse: “Você teve
Em certo sentido, o papel de Martin era um pou- essa trabalheira toda para chegar aqui às nove e
co como o de Barthelmess em Only angels have meia?”. E ele respondeu “sim”, e conversamos
wings — um homem que precisa de uma nova por alguns minutos. “Bem, é melhor você ir ao
chance na vida. guarda-roupa para fazer o seu figurino.” “Como
assim?” Respondi: “Você vai fazer o filme — vá
Em certo sentido, sim. Mas era uma história sobre pegar o seu figurino”. E foi o que fizemos. Eu sabia
a amizade. Em determinada altura, Wayne me que, se tinha sido capaz de fazer aquele esforço,
disse: “Ei, Martin está ficando com toda a atenção, ele iria trabalhar duro, e, nesse caso, eu não teria
não é?”. Respondi: “É verdade”. “E o que eu faço?” problemas, porque Dean é uma personalidade e
E eu lhe disse: “O que aconteceria com você se o tanto. E foi o que aconteceu — ele trabalhou muito
seu melhor amigo fosse um bêbado que estivesse naquele bêbado.
tentando se reabilitar? — você não o vigiaria?”. E
ele respondeu: “OK, sei o que fazer”. Certa vez, Martin me disse que a última cena que
você filmou com ele foi a mais difícil da carreira
O mexicano diz a Wayne que ele não entende as dele — a tomada no estábulo, em que ele sucumbe.
mulheres, o que, de alguma forma, é verdadeiro Ele não achava que seria capaz de fazê-la, caso
nas personagens de Wayne na maioria dos filmes você não a tivesse deixado para o final. Você fez
dele. isso de propósito?

Sim. Em Rio Lobo [1970] fizemos com que uma Sim. Ele pretendia fazer uma espécie de bêbado
garota o chamasse de “confortável”, “velho” e de boate com ressaca de boate, e eu lhe disse:
assim por diante. Se há algo no ator com o que “Dean, conheci um sujeito que bateu nele mesmo
eu possa brincar, eu brinco — incluo nas falas. porque ficou com câimbras”. Ele me olhou, e eu
Ninguém fica aborrecido. continuei a falar. “Vamos tentar desse jeito.” E ele
fez um belo trabalho. Descobriu que era capaz de
representar aquela cena, e o resultado foi ótimo.

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Trabalhou tão duro — treinou o uso de armas e -lhe: “O que você fez?”. E ele respondeu: “Bem,
se tornou realmente bom naquilo. Os que são de imaginei que haveria faturas de cores diferentes
fato bons, trabalham. lá dentro, mas é a coisa mais horrível que já vi”.
Então reconstruiu a casa e fizemos a explosão
Há uma tomada no bar, feita de baixo para cima, normalmente; mas foi muito engraçado — parecia
incluindo Wayne e Martin e o sujeito ferido que uma imensa e maravilhosa bomba explodindo em
vigia lá do alto. Para você, esse é um tipo de to- Monte Carlo.
mada pouco comum.
Muitas coisas foram inventadas à medida que você
O que era pouco comum era a posição em que prosseguia no filme?
o sujeito se encontrava. Aquilo foi feito só para
mostrar onde o sujeito se encontrava em rela- Não, apenas aperfeiçoamentos das persona-
ção a eles — para juntá-los numa cena só. Mas gens. Aconteciam pequenas coisas — quando, por
você tem razão, na verdade não gosto desse tipo exemplo, Dean Martin tenta enrolar um cigarro,
de tomada. Em El Dorado, tinha uma luta no alto ele não conseguia controlar os dedos, então, Way-
da torre da igreja e não havia modo de filmá-la a ne ficou lhe passando cigarros feitos. De repente,
não ser olhando para cima; por isso, de novo fiz percebe-se que eles são muito bons amigos, pois
algo que normalmente não faço. do contrário Wayne não estaria fazendo aquilo. A
cena surgiu porque um dia Martin me disse: “Bem,
Você quer dizer o homem cair em direção à se as minhas mãos tremem, como é que posso
câmera? enrolar esta coisa?”. Aí Wayne disse: ‘Aqui está,
eu faço para você”, e, de repente, aquilo passou
Sim. Não tínhamos set. Fizemos daquele jeito a funcionar a nosso favor. Pode-se ter nas mãos
para evitar a construção de um set e mais um uma cena perfeitamente boa, mas à medida que a
dia de filmagem. personagem vai se tornando mais clara, percebe-
-se que a cena tem pouca ou nenhuma carac-
As tomadas funcionam em ambos os filmes. terização, de modo que se começa a rechear a
personagem com caráter. A cena é, na verdade,
Elas não atrapalham nem um pouco. Se bem me a mesma, mas ele usa falas diferentes, e se obtêm
lembro, estávamos em cima, o homem olhava atitudes diferentes.
para baixo, e quando Dean Martin vê o sangue
pingando no bar, dá um passo para trás, volta-se A questão central em Rio Bravo não é Wayne, é a
e atira no sujeito. Aí, o cara cai, morto, e bate no história de Dean Martin — tudo acontece por causa
chão. Mas naquele filme todo mundo era enco- do bêbado. Acontece logo no início da história e
rajado a encontrar soluções novas. A explosão segue ao longo de todo o filme. É claro que, para
de dinamite, no final, foi criação do diretor de arte. Wayne, o resultado foi um grande papel, porque
Na primeira vez ele exagerou. Colocou papéis passa por tudo aquilo por causa da sua amizade.
vermelhos, amarelos e verdes na explosão, então, Ele fica imaginando quão bom o sujeito é, se está
quando a casa explodiu, pareciam fogos de artifí- arruinado ou será capaz de sair do buraco. Wayne
cio chineses. Começamos todos a rir. Perguntei- observa o desenvolvimento de um homem, tudo

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termina bem, e o amigo fica contente por causa “Praticamente garanto isso”. Ele é muito mais
disso. perigoso do que seria se parecesse durão.

Creio que o momento culminante de Martin é De onde surgiu a ideia de Brennan fazer troça de
quando ele derrama a bebida de volta para a Wayne, imitando-o?
garrafa sem desperdiçar uma gota.
Sempre os encorajo a fazer essas coisas. Ficamos
Imagino que isso é o que um dramaturgo diria. mexendo nas cenas até que cornecem a pare-
Mas não creio — acho que se sabe que aquilo cer boas, é tudo. Às vezes resultam em coisas
acontecerá, e Martin só tenta fazer o melhor que estranhas.
pode. Creio que o melhor momento é quando ele
intimida os caras durões no bar. É interessante comparar a personagem de Angie
Dickinson à de Grace Kelly em High noon. Ambas
Concordo, mas dramaticamente a cena da garrafa envolvem com a violência, mas, no seu filme, Angie
é o clímax. fica muito perturbada com o que está fazendo, ao
passo que Kelly lida bem com aquilo, embora faça
Ah, claro. Mas muito frequentemente apenas o papel de uma quaker.
deixo que esses chamados clímaxes venham e
vão bem depressa. Sei o que o público espera, Sei disso. Creio que o que fizemos era muito mais
ele fica lá esperando acontecer e se sente muito honesto. Grace Kelly levou aquilo como se fosse
melhor quando a coisa passa. natural, ao passo que Angie Dickinson diz: “Ati-
rei um vaso de flores pela janela, e três homens
Quando Martin é capturado e pedem resgate por morreram”, e se embebeda por causa disso. Ela
ele, Wayne coloca a amizade acima das considera- representou isso de forma meio engraçada.
ções profissionais. Você acha que isso é incomum?
Ela é uma das melhores atrizes com quem você
Não, não acho. Geralmente, um amigo faz qualquer trabalhou desde Bacall — fico surpreso de você
coisa por outro. nunca tê-la usado de novo.

Você faz Brennan parecer incompetente no filme, Ela tinha um contrato comigo. Um dia me
mas ele é exatamente o contrário. procurou, querendo fazer um filme com Jean
Negulesco. Perguntei: “Do que se trata?”, e
Ah, ele é incrivelmente competente. Ele reconhece ela respondeu: “De uma freira”. ‘Ah, maravilho-
de imediato quando está sendo enganado, atira so! Esse é exatamente o papel sexy que ficamos
com a sua espingarda e despedaça um sujeito. procurando todo esse tempo. Se há alguma coisa
Apanha a coisa imediatamente, e a sua atitude que interessa a todo mundo é uma freira.” Mas
é muito eficiente. Quando Wayne diz ao seu pri- ela queria fazer o papel, disse que era material
sioneiro: “Se houver algum problema, você vai para Oscar [Jessica [A greve do sexo], 1962]. Bem,
levar um tiro acidental”, Brennan ri e acrescenta: o resultado foi simplesmente uma porcaria. Ela
passou de um filme ruim a outro. Uma pena.

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Repare que as maiores estrelas do cinema fo- No final de Rio Bravo, Wayne diz a Angie Dickinson:
ram feitas numa época em que não tinham coisa “Vou lhe prender”. E ela responde: “Pensei que
alguma a dizer a respeito dos papéis que faziam. você nunca fosse dizer isso”. “Dizer o quê?” “Que
Por exemplo, na MGM nunca se jogava um ator você me ama.” “Não foi o que eu disse — disse que
num filme por simples conveniência; só recebiam vou lhe prender” “Bem, é a mesma coisa.” É algo
papéis que combinavam com eles. Se o filme não que as suas personagens fazem com frequência:
resultava direito, acrescentavam-se cenas até que não dizem diretamente o que pensam ou sentem.
se tornasse passável; eles desenvolveram o maior
grupo de estrelas que jamais houve no negócio Bem, ele já tinha dito tudo o que era capaz de
do cinema. Mas as estrelas começaram a mimar dizer. É o “diálogo de três tabelas” de que lhe
a si próprias, escolhendo papéis. Clark Gable e falei. Diz-se quase o contrário do que se pretende.
Claudette Colbert não queriam fazer It happened one Hemingway usou muito isso. Noël Coward usava
night [Aconteceu naquela noite] [1954; Frank Capra] isso bastante — ele chamava de outro nome.
de jeito nenhum, e ambos ganharam prêmios da Significa dizer alguma coisa rodeando, não sendo
Academia por esse filme. Cary Grant não ia fazer direto — parece que as pessoas gostam. Deixa-
Bringing up baby. John Wayne nunca acreditou em -se o público dar a interpretação que quiser. Ao
nenhuma das histórias que fiz com ele. mesmo tempo, as pessoas deixam de sentir que
estão ouvindo outra vez a mesma coisa de sempre.
Nem mesmo Red river?
Como foi que você decidiu usar Ricky Nelson?
Não! Quando o procurei, ele achou que a história
não prestava — só gostou de ter arranjado tra- Vi Ricky Nelson em diversos programas de televi-
balho. Creio que a maioria dos atores não sabe. são, e pedi a seu pai que me enviasse as últimas
Os que têm mais sucesso trabalham com em- coisas que ele havia feito. Gostei e lhe mandei uma
presários com alguma capacidade de julgamento. cópia do roteiro. O pai respondeu que ele tinha
Um bom empresário sempre é capaz de descobrir gostado do roteiro, e fim. Nós o incluímos no filme.
se o filme vai ser razoavelmente bom — conhece
o retrospecto do diretor e do roteirista e sabe Você fez com que ele adotasse o mesmo manei-
quanto dinheiro vai ser gasto no filme. Consegue rismo de esfregar o nariz com o dedo indicador
avaliar bastante bem se o filme vai prestar. Mas que Clift havia usado em Red river.
Angie é só um exemplo gritante, há muitos ou-
tros. Por outro lado, Grace Kelly se recusava a Fizemos tudo para ajudá-lo. Durante dois ou
fazer filmes pequenos. Eles sabiam que ela tinha três dias, cheguei a filmar cenas de que não
dinheiro e não precisava se preocupar com isso, precisávamos.
de modo que tinham de lhe fazer mesuras.
Só para deixá-lo relaxado?
Ela teve uma carreira bastante boa até desistir.
Sim. E, dentro de alguns poucos dias, julguei que
E ela não era excepcional. A sua carreira foi boa ele estava indo bem. Imagino que a sua presença
porque ela só fez bons filmes. trouxe cerca de 1,5 milhão de dólares a mais para

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a receita do filme. No Japão, os anúncios do filme quele filme. Informei que usaríamos pedaços dela
traziam a foto de Ricky Nelson no meio, com Wayne e a guardaria para uma canção futura. Lembramo-
e Martin, menores, dos dois lados. Calhou de nós -nos disso, mudamos a letra e a usamos em Rio
o termos aproveitado quando estava no ápice da Bravo. Uma bela canção. Fez muito sucesso na
sua popularidade. Quando fomos a uma toura- Europa; ele ganhou um dinheirão com ela.
da em Tucson, durante as filmagens, as pessoas
prestaram muito pouca atenção a Wayne — só Não foi Tiomkin quem compôs a música que as
ficaram olhando para Rick Nelson. Creio que ele personagens dizem que o Exército mexicano can-
é uma boa pessoa. tava enquanto mantinham o Alamo sob cerco?

Não é exatamente um Montgomery Clift, mas... Sim. Ouvi o que eles realmente tocavam e disse a
Dimi: “Com certeza você é capaz de escrever algo
Ah, meu Deus, não, mas atores como Monty não melhor do que isso”. Foi o que ele fez.
se encontram em qualquer esquina.
Creio que Wayne usou o tema quando dirigiu The
Alguns críticos consideraram muito “comercial” Alamo [Alamo] [1960].
dar aos dois cantores presentes no filme a opor-
tunidade de cantar. No entanto, em diversos filmes Sim. Lembro-me que ele me disse, rindo: “Seu
de aventuras (Only angels have wings, To have and filho da mãe — tive de comprar aquilo de Dimi!”.
have not, Hatari!) você incluiu sequências musi-
cais realizadas por atores que não eram cantores, Hatari! foi principalmente improvisado durante
de modo que imagino que fazer aquilo foi muito as filmagens?
natural para você.
Bem, não se pode ficar sentado num escritório
Sei que alguns críticos disseram isso. Respondo e escrever o que um rinoceronte vai fazer. Do
apenas que gosto desse tipo de coisa e que pre- momento em que víamos um deles até o instante
tendo continuar a fazer isso. É tudo. Creio que a em que o capturávamos ou ele nos escapava, não
cena resultante é boa. Acho que as pessoas gos- se passavam mais do que quatro minutos. Assim,
tam, e, afinal, o que fazemos é entretenimento — é tínhamos de montar cenas numa pressa dos
melhor fazer do que não fazer. Divertiu-me, e, se diabos. A história estava delineada quando co-
me diverte, geralmente diverte outras pessoas. É meçamos, mas era impossível escrever aquelas
isso. Não presto muita atenção a críticos. cenas. Tivemos sorte de capturar todo tipo de
animal africano — tudo o que queríamos. Ge-
A canção que Martin canta na cadeia não é feita ralmente, tem-se sorte quando se consegue um
sobre o tema musical de Red river? terço do que se deseja.

A música tinha sido escrita às pressas por Dimitri Antes de começarmos a filmar, tive a ideia de cap-
Tiomkin para ser usada em Red river. Ela não ficou turar mil macacos reunidos numa árvore. Cien-
pronta a tempo de irmos para a locação, então, tistas ingleses tinham desenvolvido um novo
tivemos de usar outra cançãozinha de caubói na- método de capturar pequenos animais. Eu os vi

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usar um foguete para estender uma grande rede Você se refere àquela história de Lennie pedir vá-
por sobre um lago cheio de patos, prender um rias vezes a George que lhe contasse a respeito
anel nas suas patas e soltá-los. Faziam isso dos coelhos?
para acompanhar os seus hábitos migrató-
rios. Imaginei que seria muito engraçado usar Sim. Levei um exemplar do livro e dei a Red para
um foguete para lançar uma rede por sobre uma que o lesse; escrevi algumas falas e lhe disse: “Vá
árvore repleta de macacos. Perguntei ao sujeito em frente e faça”. Saiu certo na primeira tomada.
dos efeitos especiais [Richard Parker] se ele era
capaz de fazer aquilo. Ele perguntou: “Você está Você usou dublês nas cenas de captura de animais?
falando sério?”. “Sim”, respondi. Aí ele gastou 40
mil dólares tentando diferentes maneiras de fazer Ah, não, não houve nenhum dublê — quem cap-
uma rede cobrir uma árvore com mil macacos. turou os animais foram os atores. Perseguimos
Quando chegou o momento de filmar, ele estava dezesseis rinocerontes e capturamos quatro
uma pilha de nervos. com laços. Há muta excitação quando se captu-
ra um desses bichos. Eles também capturaram
É por isso que a personagem de Red Buttons fica diversos animais que não aparecem no filme. Eu
tão nervosa no filme? rodei o suficiente para mais uma hora de filme.
Nos divertimos muito.
Ouça, o sujeito que realmente teve de fazer o
trabalho estava muito mais nervoso do que Red Há uma cena em que o rinoceronte foge, e vocês
Buttons parecia estar. Ele adiava a filmagem à o capturam de novo. Aquilo aconteceu mesmo?
menor sugestão de uma brisa — ele não queria
que houvesse nenhum vento —, isso durou cinco Sim. Ele fugiu, e eu disse: “Isto é bom demais.
dias. Tivemos de afastar as pessoas trezentos Deixe-o fugir e depois o capturamos de novo”.
metros e colocá-las atrás de barricadas, porque
não sabíamos onde o foguete cairia. Na verdade, Você contou com ajuda de um consultor técnico.
nenhum de nós acreditava que a coisa ia funcionar.
Mas funcionou maravilhosamente bem, e logo da Havia dúzias deles.
primeira vez. Ele era a pessoa certa para fazer o
serviço. O foguete passou diretamente por cima Mas só um é creditado no filme.
da árvore e caiu como havíamos previsto.
Willy DeBeer. Aquele velhote é quem mais en-
Como se desenvolveu a ideia de fazer com que tende de capturar animais na África.
Buttons pedisse várias vezes a Wayne que des-
crevesse a captura dos macacos? A captura do leopardo parece tão fácil.

Você já leu Of mice and men [de John Steinbeck]? Bem, é uma armadilha. Monta-se uma jaula,
prende-se uma isca, o leopardo chega, dispara
o mecanismo e a jaula se fecha sobre ele. Bas-
ta voltar de manhã e pegá-lo. Era exatamente o

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jeito de fazer. No filme não usamos as capturas Não, refiro-me a dramas à antiga. As pessoas
de elefantes, porque o público passa a gostar já viram isso. É preciso realizá-los de alguma
tanto dos bebês elefantes que seria uma pena forma diferente, pois do contrário vai fazer o
mostrar aquilo. público assistir à mesma coisa de sempre. Mas
sabemos que o público nunca assistiu à captura de
Você filmou pessoalmente todas as cenas de um rinoceronte. Aquilo era novidade. É claro que,
captura? originalmente, tínhamos uma história realmente
boa. Hatari! poderia ter sido muito melhor se
Paul Helmick filmou algumas das capturas se- eu tivesse podido contar com dois protagonistas.
cundárias, mas eu fiz todas as que mostravam
Wayne e os atores principais. Helmick fez as Você quer dizer alguém que contracenasse com
outras tomadas — como a corrida em meio à Wayne.
manada de girafas, as tomadas laterais, as pa-
norâmicas, coisas assim. Sim. Em certa época, quem iria trabalhar no filme
era Gable. Tivemos de reescrever toda a história
Nos seus filmes, é frequente que haja intercâmbio no momento em que soubemos que não poderí-
entre comédia e tragédia. amos trabalhar com dois protagonistas. Era para
ser dois sujeitos — dois amigos — que participam
Desde que se parta de uma base sólida, pode- daquelas capturas de animais, e ambos vão atrás
-se fazer graça sem que haja um enredo cômico. da mesma garota. E não apenas de uma, mas
Geralmente começamos de modo sério, só para de uma porção de mulheres. Pode-se imaginar
interessar as pessoas e ver para onde a história o que era. Mas a Paramount não queria pagar por
se encaminha. Depois, pode-se começar a fazer um segundo protagonista, e, assim, me encala-
graça com as personagens. Hatari! começa quase crei. Não se pode simplesmente sair à rua e
como uma tragédia — só depois que descobrem encontrar alguém forte o suficiente para encarar
que o sujeito vai sobreviver e todos ficam bêbados Wayne, então terminei com um rapaz francês e
é que começa a ficar engraçado. Dessa forma, a outro alemão, atores perfeitamente bons, mas
comédia vai tomando as pessoas — ninguém diz que não podiam competir com Wayne.
ao público que ele deve rir. E quanto mais perigo
há, quanto mais excitação, mais fácil é conseguir Você reescreveu a história?
uma risada.
Sim — completamente.
Você gosta mais de fazer filmes com bastante
comicidade do que tragédias? Então você de fato não ficou contente com o filme?

Conte-me sobre algumas situações dramáticas Não havia nada que eu pudesse fazer a respeito.
novas e terei todo o prazer em realizá-las. Gable queria trabalhar no filme, mas quando ele
morreu [em novembro de 1960], a Paramount se
Bem, Hatari! é bastante dramático. amedrontou e não quis pagar outro protagonista.
Lembre-se de que as estrelas estavam ganhan-

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do rios de dinheiro, e um segundo protagonista “Ah, o senhor escreve, sr. Faulkner?”. E Bill disse:
aumentaria em 1 milhão de dólares o orçamento “Sim. E o senhor, sr. Gable, trabalha com o quê?”.
do filme.
Qual é a sua opinião sobre o resultado de Man’s
Ninguérn conseguiu pensar em outro astro que favorite sport? [1964]?
valesse o milhão de dólares?
Foi escrito para Cary Grant, e era difícil para
Eles só não queriam gastar o dinheiro — tinham qualquer outra pessoa fazer o papel. Mas lhe digo
ordens de não gastar mais dinheiro. que tínhamos um filme bastante bom, até que a Pa-
ramount o estragou ao remontá-lo. Sempre houve
Você pensou em alguém, além de Gable, que pu- um aspecto na indústria do cinema — não sei se
desse ter sido chamado? você já enfrentou isso: as pessoas que entram
com o dinheiro se reservam o direito de montar
Ah, claro, certamente arranjaríamos alguém. Mas o filme. Com isso, são capazes de se encrencar
eles só disseram que não gastariam o dinheiro de bastante. Eles queriam cortar Giant [Assim caminha
um segundo protagonista. Creio que a história a humanidade] [1956], mas George Stevens não os
tinha alguns pontos fracos, mas era divertida, e deixou fazer isso. Ele tinha razão. Depois, ele
o filme acabou saindo direito; no entanto, acho fez um filme chamado The diary of Anne Frank [O
que poderíamos ter feito um filmaço. Wayne precisa diário de Anne Frank] [1959], eles queriam cortá-lo,
trabalhar com alguém que seja realmente bom. Stevens não deixou, e dessa vez quem errou foi
Sempre que o pus para trabalhar com alguém ele. O que se pode fazer? Eles têm muito a perder.
bom, fiz um bom filme. Eu sei, melhor do que
qualquer um, que Wayne não consegue fazer cenas O estúdio ficou maravilhado com o teste de público
com pessoas comuns — isso não funciona, porque de Man’s favorite sport?, mesmo considerando que
elas não aguentam. Rock Hudson não era comediante. Eles disseram:
“Este filme é, de longe, o que teve melhor receptivi-
É pena que você nunca tenha realizado um filme dade em toda a história da Universal”. Obviamente,
estrelando Gable. imaginei que ele seria distribuído daquele jeito.
Mas três dias depois os gênios entraram em ação
Sim. Éramos bons amigos. Lembro-me de ter e disseram: “Seria melhor se você cortasse um
apresentado Gable e William Faulkner um ao pouco do filme”. Respondi: “Bem, não saberia
outro. Íamos caçar. Eles não se conheciam, bem o que cortar, do contrário, já o teria feito.
e eu não contei a nenhum dos dois quem era Mas aceito sugestões”. Com isso, o advogado e
o outro. Estávamos conversando e, não sei por o chefe da companhia foram ao sujeito que en-
que, aconversa passou para o assunto de escri- cabeçava o departamento de montagem — já
tores, e Gable perguntou: “Quais são os melhores fazia vinte anos desde a última vez que ele tinha
escritores do mundo, na sua opinião?”. E Faulkner montado pessoalmente um filme — e disseram:
disse: “Willa Cather, Ernest Hemingway, John Dos “Queremos sugestões”. O pobre coitado teve
Passos, Thomas Mann e eu”. E Gable perguntou: de escrever tudo e, quando me deram para ler,
perguntei: “Digam-me, esta é a lista das coisas

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que vocês querem manter ou que querem cortar?”. Sergeant York, eu não tinha sequer terminado
“Bem, cortar.” Então eu disse: “Não, esta é a lista de fazer os cortes que queria, quando Warner
das coisas que devem ficar” . Eles foram checar assistiu ao filme e ordenou: “Pode mandar copiar
e descobriram que, realmente, era a lista do que — não vamos mexer com isto”. Já um filme como
deveria permanecer. Scarface não foi submetido a teste. Eu insistia na
necessidade de testar comédias, mas nunca me
Eles acabaram praticamente realizando a tarefa importei em fazer o mesmo com filmes dramá-
de cortar vinte minutos do filme. Quando fizeram ticos; quando termino, é daquele jeito que quero
um novo teste de público, as opiniões não foram que seja distribuído. Já com uma comédia, seria
tão boas. Da primeira vez, ninguém tinha saído no loucura não testá-la, porque pequenas mudanças
meio do filme; da segunda, dez ou doze pessoas na montagem podem fazer com que uma coisa
saíram e duas ou três disseram que o filme era resulte engraçada ou não, ou uma gargalhada da
lento; ao passo que da primeira vez ninguém tinha plateia pode se estender para algo que vem em
dito isso. Então, eles cortaram mais vinte minutos seguida. Apesar disso, nunca causou mal nenhum
e lançaram o filme. Um dia encontrei o sujeito uma risada se superpor a alguma coisa — o re-
que tinha feito os cortes; ele estava junto com um sultado também é bom.
executivo do estúdio, e disseram: “Conseguimos
estragar o seu filme, não é verdade?". E eu disse: Não esperar que os risos acabem?
"Certamente".
Isso. Se não fosse por uma cláusula contratual,
Encurtar uma comédia pode arruiná-la. Caso eu teria enfrentado muitos problemas com I was
se retire uma cena que tinha sido inserida para a male war bride, porque, quando Zanuck assistiu
tornar a cena seguinte engraçada, o resultado é ao filme, ele chamou-me e disse: “Bem, Howard,
que a graça se perde. De repente, o filme fica lento. a culpa não é sua — todos os problemas que
Todas as “escadas” que havia em Man’s favorite você enfrentou. O filme não é grande coisa”.
sport? foram cortadas. Simplesmente cortaram E continuou: “O melhor a fazer é reduzir bas-
direto para as cenas que tinham produzido risos. tante a sua duração e distribuí-lo”. Eu respondi:
Bem, com isso, jogaram fora as risadas. “Não, primeiro vamos testá-lo”. "Ah, não”, disse
ele. “Bem”, respondi, “está no meu contrato.” E
Na verdade, Hudson não era apropriado para o ele: “Se você insiste...”. “Sim, eu insisto.” Bem,
papel. nenhum dos meus filmes teve um teste tão bom.
Aí perguntei a Zanuck: “O que você pretende
Não, mas seria injusto dizer que a culpa foi dele. cortar?”. “Nada. Mande fazer as cópias.” “Não”,
A julgar pela receptividade que o filme obteve no respondi, “vou cortar cerca de oito metros do filme.”
primeiro teste de público — e não há motivos para Ele perguntou: “Onde?”, e eu respondi: “Você não
duvidar daquele resultado —, tínhamos uma boa sabe montar uma comédia — por que eu deveria
película. A Universal interferiu e a estragou. Mas ficar falando com você?”. Cortei e não lhe disse
só se bate nesse tipo de gente de vez em quando: o que tinha cortado. Ele assistiu ao filme outra
afora esse filme e The big sky , nunca tive problemas vez, só para ver, mas não creio que pudesse dizer
com cortes. No geral, ocorreu o contrário. Em onde eu tinha feito os cortes.

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Algumas vezes inverti sequências de filmes e isso satisfeito com o elenco. De início, imaginei que
os ajudou. Sou bom montador, porque sou com- a moça azarada [Gail Hire] seria quem se sairia
pletamente impiedoso com as minhas próprias melhor — o seu desempenho foi ótimo no teste
coisas; por outro lado, sei que, se certas coisas que fiz. Mas quando lhe disse que o papel era seu,
forem eliminadas, alguns valores se perdem. Em ela mudou. Quer dizer, uma garota vem trabalhar
Rio Bravo havia uma sequência ótima, que cortei e é uma personalidade: tem ideias próprias a
porque duas ou três pessoas eram mortas. Era respeito do que vestir, sobre como se comportar.
uma dessas cenas em que os caras do bem cami- Em outras palavras, é um pouquinho rebelde. Aí
nhavam rua abaixo em patrulha, alguns homens consegue o papel e, de repente, pensa: “Sou uma
viravam uma esquina e uma luta começava; o guri estrela de cinema — todo mundo precisa gostar
se atirava no meio da rua e os cavalos saltavam de mim, todo mundo tem de me adorar”. Mas não
sobre ele. Cortei toda a sequência, porque me se quer que elas sejam adoradas, nem mesmo
dei conta de que nenhum dos caras do bem se necessariamente gostadas — o que se quer é
feria, e eles estavam matando uma quantidade que impressionem as pessoas, que as façam
exagerada de caras do mal. O estúdio ficou furioso. pensar “não sei se gosto ou não dessa garota”.
Mais tarde, fiz de novo a sequência em El Dorado, É muito difícil fazê-las desempenhar o papel de
e funcionou bem. uma pessoa desagradável - elas não querem isso;
querem vencer concursos de popularidade. Isso
Você se refere à cena em que James Caan salta acontece o tempo todo.
para o meio da rua?
Você julga que o roteiro teria funcionado se o elen-
Sim. No outro filme, quem fazia isso era Ricky co fosse outro?
Nelson. Aquilo se faz com um truque de divisão
de imagem. Disse ao cameraman: “Foi assim que Todos os papéis tinham a mesma importância de
fizemos antes, e funcionou, de modo que vamos um protagonista. E era uma época particularmente
repetir”. difícil de se conseguir atores homens. Usei alguns
que não deveriam ter usado.
Como aconteceu Red line 7000?
As corridas foram montadas?
Estávamos esperando por Wayne para fazer El
Dorado — uma longa, longa espera. Tínhamos Não, eram cenas de corridas de verdade. Algu-
de fazer alguma coisa naquele meio tempo, e mas cenas precisavam de cortes, mandamos uma
começamos a trabalhar na história de Red line equipe para filmar essas coisas, mas dispúnhamos
7000. Mas nunca tivemos tempo de escolher o de material excelente.
elenco direito, de modo que iniciamos o filme
sem que estivéssemos prontos. Eles estavam Esse foi o primeiro dos seus filmes ambientado
precisando desesperadamente de filmes, e fica- no que se diz ser supostamente o mundo realista
ram pressionando até me deixar a ponto de jogar dos anos 60, e há algo de berrante e desagradável
tudo para o alto e mandá-los para o inferno. Mas no filme, como se você não gostasse da atmosfera
fizemos o filme, e eu não fiquei nem um pouco que estava filmando.

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Ah, creio que isso só refletia a minha atitude em também foi morto. Ela começou a pensar que
relação às pessoas. Mas o filme foi duro de ser era realmente azarada. O engraçado é que acabou
feito. Tínhamos de fazer tomadas de ação para por se casar com um sujeito muito bom e morreu
serem inseridas em trechos documentais, mas muito antes dele. Mas estávamos fazendo uma
era difícil, porque muito frequentemente não dis- história real. Infelizmente, nenhuma das cenas
púnhamos do equipamento técnico adequado. Por que fizemos era tão boa quanto as da vida real.
exemplo, para fazer um carro derrapar artificial-
mente, é preciso que o estúdio disponha de muito Havia muitas cenas boas no filme e uma história
poder financeiro, porque para isso é preciso uma bastante decente, mas era impossível acompanhá-
motoniveladora das grandes. Depois de algumas -la. Isso foi culpa minha — fui eu que estraguei o
tentativas frustradas, conseguimos finalmente o filme —, só isso. Você tem razão quando diz que as
dinheiro. Mas hoje em dia é difícil fazer um filme melhores personagens eram, de longe, a da garota
como aquele, porque os departamentos do estúdio francesa e a de Jim Caan. Aquilo se sustentava e
não oferecem mais a mesma ajuda que antes. era interessante. Mas não se podia fazer grande
Todos têm medo de gastar dinheiro demais, não coisa com o resto dos atores. Uma vez que se entra
existe organização. numa coisa dessas, a sua sorte acaba.

O filme não tem trilha sonora — quase toda a Alguns críticos avant-garde consideram que esse
música soa como se fosse um disco. é um dos seus melhores filmes.

Claro, porque não era possível desenvolver temas No estrangeiro, eles também pensam assim —
para as personagens — não serviria de nada —, especialmente na França. Não tenho nada a dizer.
de modo que o melhor a fazer era acompanhar
as cenas. Por exemplo, no início, quando eles vão Você não concorda?
falar com a garota e pensam que está chorando
porque o seu namorado morreu, ela estava tocando Pelo amor de Deus, acho que o filme não presta.
música barulhenta na vitrola. Teoricamente, era E creio que a responsabilidade é minha. Toda a
para ser uma boa cena. ideia de fazer cinema é arranjar uma história e
colocar algumas pessoas diante da câmera. Fica-
Teoricamente o filme é bom. Porém, afora as cenas -se interessado nelas e se desenvolve a história
de corridas, as únicas que funcionam de verdade até se obter um clímax. Nesse caso, abandonei
são aquelas entre Caan e Marianna Hill. o filme e fui fazer outra coisa. O filme nunca
teve chance.
Esses dois sabiam representar, o resto não. O
filme deveria ter muitas cenas boas. Conheci Originalmente, El Dorado era para ser algo como
uma garota que achava ser azarada e pensava uma tragédia grega.
que, se dormisse com alguém, causaria a morte
da pessoa. Ela tinha sido casada, e o marido havia Sim, o livro era isso; já tínhamos o roteiro com-
morrido. O seu filho correu para o meio da rua e pleto. Era uma boa história, muito trágica. Não
foi morto. Casou-se de novo com um sujeito que me lembro muito bem, exceto quanto àquele

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pistoleiro famoso voltar para a cidade e descobrir muito bem com aquela faca. Quando descobre que
que a sua garota tinha se transformado na prosti- é capaz de manejar o revólver, Wayne lhe arranja
tuta local. Ele sai, deixa a moça e tem um ataque uma espingarda serrada, e ele se sai bem com
cardíaco. Todo mundo morre. Li a história e disse aquilo.
a Leigh Brackett: “Se fizermos isto cairemos no
ostracismo”. “OK”, disse ela, “o que vamos man- Sim, mas quando Wayne tenta ensiná-lo a atirar,
ter?” Lembro-me de que mantivemos uma coisa: desiste bem depressa. Você acredita que as pes-
Wayne atira na barriga do rapaz. Transformamos soas ou têm talento ou não têm?
o ataque cardíaco numa bala alojada nas costas
de Wayne, que de vez em quando o paralisava. Ah. claro. Em cinco minutos é possível dizer se
Mudamos bastante a coisa toda. elas prestam ou não.

O que o interessou em especial? Como foi que você o fez recitar o poema “Eldorado”,
de Edgar Allan Poe?
Como de hábito, creio que o relacionamento entre
os dois homens. Creio que porque eu conhecia um jóquei mexicano
que montava cavalos quarto de milha e costuma-
É muito parecido com o relacionamento que você va recitar o poema. A ideia comum a respeito de
retratou em Rio Bravo. Eldorado é a de um pote de ouro no fim de um
arco-íris. Mas, na verdade, cada pessoa tem uma
Quase a mesma coisa — quando uma coisa fun- noção diferente acerca do que há no fim do arco-
ciona, não faz mal repetir. -íris. E Jimmy Caan jez aquilo ficar muito simpático
— algo que valeu a pena usar.
Mas neste caso a história do bêbado foi feita mais
como comédia. Mas o poema exprime o tema do filme, e de tantos
outros dos seus filmes: o que conta não é que al-
O que se pode fazer? Da primeira vez fizemos de guém atinja o objetivo, mas como faz para atingi-lo.
um jeito, e tínhamos de mudar - de modo que só
nos divertimos. Espere um instante — você está complicando
demais. Brackett e eu simplesmente gostamos
A personagem de Caan era nova para você — ele da ideia, então lhe pedi que trabalhasse naquilo.
era quase um amador. “Bem”, disse ela, poderíamos dar o papel para Jim
Caan.” Isso é tudo.
Não estou certo de que fosse novo, mas na TV se
vêem tantos desses guris capazes de fazer qual- Gosto da cena em que o médico está cuidando
quer coisa que imaginei que seria interessante usar do tiro que Robert Mitchum levou e interrompe
alguém que parecesse desajeitado. No filme, ficou o trabalho porque se interessa pelo problema de
bastante divertido quando Wayne tenta ensiná-lo a Wayne.
atirar, pois ele não tinha muito jeito para aquilo. É
claro que não era tão amador assim — funcionava

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É o que eu penso dos médicos. Lá estava o pobre mais ponderada do que seria se simplesmente
Mitchum tentando estancar o sangue com a mão, tivesse bancado o durão.
e o médico, discutindo o ferimento antigo de Wayne.
Especialmente quando ele permite que Wayne se
Como era trabalhar com Mitchum? vá, dizendo “considere como uma cortesia profis-
sional”. No fim, isso se torna irônico, porque Wayne
Ele é ótimo, uma das pessoas mais fáceis de lidar; o mata sem lhe dar nenhuma chance.
se diverte com tudo o que faz. Certa vez, eu lhe
disse: “Você é uma farsa, é um dos sujeitos que Ah, claro. Wayne lhe diz: “Você é bom demais para
conheço que mais trabalham”. E ele respondeu: que eu possa lhe dar uma chance.” Isso era a coisa
“Não espalhe”. mais elogiosa que ele poderia dizer a respeito do
sujeito.
Um crítico escreveu que o ferimento nas costas
de Wayne é um símbolo da idade, do fato de ele O respeito que os adversários têm uns pelos outros
estar envelhecendo. percorre todo o seu trabalho, remontanto até a
The dawn patrol.
As pessoas descobrem símbolos em tudo. Ele tinha
de ser atingido nas costas por uma garota, isso é Uma maneira de dizer que alguém é bom no que
tudo — só isso. E ele está ficando velho. Que coisa! faz é mostrar que outras pessoas o respeitam.
Não é necessário se estender inutilmente para
A iluminação do filme é excepcional, especial- provar o quanto são bons. Quando alguém que é
mente nas cenas noturnas. bom no que faz afirma a mesma coisa a respeito de
outra pessoa, isso se transmite automaticamente.
Não é mesmo? Harold Rosson é um cameraman e
tanto. O problema foi que as pessoas começaram Rio lobo não foi escrito originalmente para Wayne
a falar sobre Oscar, e ele foi ficando cada vez mais e Mitchum?
lento, até que quase me enlouqueceu.
Foi sim, e não ajudou nem um pouco não podermos
A personagem de Chris George é um vilão inte- contar com Mitchum. Era, definitivamente, uma
ressante, por causa do seu profissionalismo: ele história construída para duas personagens fortes;
fica tão desagradado com o seu próprio capanga como não pudemos fazer isso, ficamos impedidos.
quando descobre que o sujeito só conseguiu matar
o amigo de Caan com a ajuda de três outros. Foi outra vez uma questão de dinheiro?

Geralmente os caras do mal ficam sentados e Sim. Creio que a indústria do cinema tinha deci-
agem como um bando de bobocas que balançam dido que um filme de Wayne tem certos limites, e
as cabeças e concordam uns com os outros; aquilo que obteriam o mesmo retorno com Wayne, fosse
trouxe algo mais. Quando se faz o contrário, isso dá sozinho, fosse acompanhado. Mas isso não é ver-
estatura ao vilão. Ele se tornou uma pessoa bem dade. Sempre se obtém mais de Wayne quando

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ele é colocado com outro bom ator. El Dorado teve Porque o diretor é quem conta a história, e deve
muito mais sucesso do que Rio Lobo. ter o seu próprio método de contá-la.

Você se arrepende de ter feito esse filme? E quanto a Hitchcock?

Não, não me arrependo, mas gostaria de tê-lo Creio que ele era muito bom no tipo de coisa que
realizado do jeito certo. Havia coisas que achei fazia. É claro que você está falando de pessoas
boas no filme, como aquela história do trem. Mas muito individuais. Outros diretores fizeram filmes
depois que a garota [Jeniffer O’Neill] entrou, ficou perfeitamente bons — como Mike Curtiz, que não
maçante — ela era chata. No início foi ótima, mas impunha a sua marca aos filmes que fazia.
depois ficou preocupada em agir como estrela;
não trabalhou. Então a sua definição de um bom diretor...

Gostei da trama secundária da mulher com a ci- É um bom contador de histórias e um sujeito que
catriz no rosto [Sherry Lansing]; ela era muito boa. sabe escolher as histórias que conta. Geralmen-
te, Jack Benny não contava histórias típicas de
Sim. era, e havia coisas boas no filme. No entanto, Bob Hope: cada qual tinha o seu método de con-
como a garota principal era muito sem graça, as tar uma história. Gradualmente, você descobre
cenas saíram todas pela culatra. Não havia nada que certas coisas funcionam e passa a usá-las;
a ser feito — as cenas simplesmente não resulta- com isso se firma um estilo e uma marca, e as
vam; não era possível desenvolvê-las. Ficávamos pessoas passam a ser capazes de dizer como os
contentes quando conseguíamos cenas passáveis. seus filmes são.

Quais foram os diretores de que você mais gostou Você já pensou no cinema como arte?
ao longo dos anos?
Não.
Ah, no início, creio que Lubitsch — eu achava os
seus filmes formidáveis —, e tinha também grande O que é o cinema para você?
admiração por Leo McCarey. Gostava das coisas
de Capra e de Keaton. Sempre gostei especialmen- Um negócio. Divertimento.
te de Ford. É difícil dizer, houve tantas mudanças.
Aprendi muito com a técnica dos filmes de Harold Quais dos seus filmes foram, comercialmente, os
Lloyd, e os estudei. Creio que Von Sternberg fez de maior sucesso?
um bom trabalho; ele deu caráter aos seus fil-
mes. Gostava de quase todo mundo que me fazia Não sei dizer. Atravessei um período de elevação
perceber quem diabos estava fazendo o filme. contínua dos preços dos ingressos. Se Sergeant
Não gostava dos diretores cujos filmes eram York fosse realizado hoje, faria uma montanha de
preparados, e eles apenas eram executantes, dinheiro.
não acrescentando nenhuma individualidade.

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Você se refere à diferença entre o preço do in- Creio que Scaiface é o meu favorito, porque não
gresso, de um dólar, naquela época, contra três tivemos a ajuda de ninguém — tinhamos sido
ou quatro dólares hoje? excluídos. Não podíamos entrar em nenhum
estúdio, por isso abrimos o nosso próprio. Não
Ah, com cinquenta centavos se ia ao cinema. Mas conseguíamos pegar ninguém de empréstimo —
hoje, se o público gosta de um fiilme, vai assisti- tivemos de encontrar atores por nós mesmos.
-lo às multidões, e um filme impopular não Alguns usaram pseudônimos, para não serem
consegue nada. Naquele tempo, mesmo um filme incluidos nas listas negras dos estúdios, porque na
assim ganharia algum dinheiro. época eles não queriam saber de filmes indepen-
dentes. Aquele filme foi realizado com as maiores
Quando foi que você começou a ter participação dificuldades; foi um trabalho difícil, mas mesmo
nos filmes que fazia? assim fizemos um bom filme. Gostei também de
Red river. Foi divertido fazer Rio Bravo . E Bringing up
Mais ou menos na época em que passei a trabalhar baby. Gosto das comédias — gosto de ouvir as pessoas
para a Columbia [1931]. Comecei com cerca de dez rirem, que é quando sei que apreciaram o filme.
ou quinze por cento. A partir daí, à medida que os
meus filmes começaram a ganhar dinheiro, eu fui Você acredita que o profissional — o tipo de pessoa
ficando cada vez com mais. Creio que no primeiro com quem você mais lidou — se interessa mais em
filme de Bogart e Bacall a minha participação foi fazer o seu trabalho direito do que em qualquer
de quarenta por cento, depois de cinquenta. outra coisa que possa ganhar com isso?

Então você deve saber quais dos seus filmes ti- Sim, acredito nisso. Há certo orgulho nas pessoas
veram maior sucesso; com qual deles você acha que são boas no que fazem — um piloto de corrida,
que ganhou mais dinheiro? um piloto de avião, um jogador de beisebol, um
jogador de hóquei, coisas assim —, o principal é
Creio que com Rio Bravo. fazer bem o trabalho. Eles se esquecem de todo o
resto para fazer aquilo direito, é o trabalho deles;
Uma bilheteria de 1 ou 2 milhões de dólares sig- espera-se que façam assim. Veja uma equipe de
nifica uma montanha de dinheiro. acrobacias aéreas — se um deles não é bom, to-
dos ficam encrencados. Se alguém se apavora
Nunca pensei que faria um filme que atingisse capturando animais, isso pode causar problemas
a bilheteria de 1 milhão. Mas, na época faziamos para todo mundo. A sua sobrevivência depende
filmes que custavam 35 ou 40 mil dólares. É por da habilidade de outras pessoas, e assim eles
isso que digo que um flme conseguia ter os cus- não podem depender de gente que não é boa o
tos cobertos com a bilheteria de uma única sala. suficiente.
É verdade.
Tenho uma fita — um registro completo — da con-
Se você tivesse de listar os seus filmes prediletos, versa entre as tripulações de aviões britânicos
quais escolheria? que bombardearam três represas na Alemanha
e, com isso, mudaram o curso da guerra. Quem

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me enviou foi Churchill. Eles atingiram o local de Dados biográficos
manhãzinha, e o líder disse: “Fiquem por perto
que eu vou fazer uma passagem e verificar se há Nascimento: Howard Winchester Hawks, Goshen,
cabos estendidos”. Um dos outros diz: “Pago-lhe Indiana, 30 de maio de 1896. Pai: Frank Winchester
uma cerveja quando você voltar”. Depois, o sujei- Hawks. Mãe: Helen Howard. Irmãs: Grace (morta
to diz: “Não há cabos, vocês podem ir”. O outro aos dezenove anos vítima de tuberculose); Helen
diz: “Vou me deslocar um pouco para o lado e um (morta na infância). Irmãos: William (agente tea-
pouco mais à frente, e talvez consiga atrair o fogo tral/produtor de cinema; morto em 1969); Ken-
deles”. Mais tarde, descobri que eles só consegui- neth (diretor; morto em acidente de aviação, 1929).
ram fazer passar metade dos pilotos — o primeiro, Em 1906, a família se mudou de Lake Winnebago,
o terceiro, o quinto—, pois os outros — segundo, Wisconsin, para Pasadena, Califórnia. Formação:
quarto e sexto — foram abatidos. Eu ia filmar isso. Troop Polytechnic; Ginásio Glendora; Academia
E aqueles garotos — o mais velho tinha 21 anos de Philips Exeter; Universidade de Cornell (engenharia).
idade, mas na verdade tinha cinquenta ou sessenta Trabalho de verão: departamento de contra-regra,
em matéria de treinamento e profissionalismo. Famous Players, Estúdio Lasky. Durante a Primeira
É essa a sua atitude. Não se trata de algo que Guerra Mundial, serviu como tenente no Corpo de
eu tenha inventado; é só algo que testemunhei e Sinaleiros (mais tarde, Corpo Aéreo do Exército
que me interessou, e por isso usei. dos Estados Unidos); graduado in absentia (devido à
guerra) por Cornell. Casamentos: Anthole Shearer,
Os homens dos seus filmes nunca reclamam das 1928-40; Nancy (“Slim-) Gross, 1941-8; Dee Hartford,
circunstâncias perigosas que cercam a existência 1953-9. Filhos: (com Anthole) David, Barbara e Peter
deles. Ward (que adotou o nome de Hawks); (com Nancy)
Kitty; (com Dee) Gregg. Morte: Palm Springs, Ca-
Ah, às vezes. Em Rio Bravo, Dean Martin admite lifórnia, 26 de dezembro de 1977.
estar mortalmente assustado — possivelmente
porque imagina que, por ter sido bêbado, pode
não ser bom o suficiente para cumprir o trabalho | Peter Bogdanovich |
—, mas ele logo supera isso. Perceba, eles sabem
que não se ganha nada com isso. É parte do jogo.
Eles sobem em aviões e os testam; entram em *Texto gentilmente cedido por: Companhia das Letras
carros e os testam. E, por terem sido escolados e Peter Bogdanovich
no Exército, aceitam ordens, quaisquer que sejam
elas. É isso o que faz um exército funcionar. Mas
é apenas a aceitação calma de um fato. Em Only
angels have wings, depois que Joe morre, Cary Grant
diz: “Ele não era bom o suficiente”. Bem, é a única
coisa que permite às pessoas prosseguirem. Eles
têm de dizer: "Joe não era bom o suficiente, sou
melhor do que Joe, de modo que vou em frente
e vou fazê-lo”. E depois descobrem que não são
melhores do que Joe, mas aí já é tarde demais.

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1936: The road to glory (Co-D NC, com Raymond
Filmes13 Bernard)
1917: A little princess (contra-regra; Co-D NC); In again,
1938: Test pilot [Piloto de provas] (Rt NC); Bringing up
out again (AD)
baby [Levada da Breca] (& P)
1918-9: Comédias Welcome (t e 2-Rs, P ou D)
1939: Only angels have wings [Paraíso Infernal] (& P, H)
1920: Come and get it [Meu filho é meu rival] (AD);
1940: His girl Friday [Jejum do amor] (& P)
Dinty (AD)
1941: Sergeant York [Sargento York]
1921: Bob Hampton of Placer (P)
1942: Ball of fire [Bola de fogo]
1923: Quicksands (P, Rt)
1943: The outlaw [O proscrito] (D NC);14 Air Force [Força
1924: The heritage of the desert (H, Ed); The dawn of a
de heróis]; Corvette K-225 [Corvetas em ação] (P)
tomorrow (H, Ed); Tiger lave (Rt); Empty hands (Rt,
Ed); Open ali night (Sup); North of 36 (Sup) 1944: To have and have not [Uma Aventura na Mar-
tinica] (& P)
1925: The Devil’s cargo (Sup); The dressmaker from
Paris (Co-S); The code of the West (Sup); Adventure 1946: The big sleep [À Beira do Abismo] (& P)
(Sup); The light of Western stars (Sup); Lord Jim (Sup)
1948: Red river [Rio vermelho] (& P); A song is born [A
1926: The road to glory [Caminho da glória] (1º com D); canção prometida]
Honesty— The best policy (S); Figleaves (& S)
1949: I was a male war bride [A Noiva era Ele]
1927: The cradle snatchers; Paid to lave
1951: The thing (from another world) (P, D NC)
1928: A girl in every port (& S); Fazil; The air circus (Co-D)
1952: The big sky [Rio da aventura] (& P); O. Henry’s
1929: Trent’s last case full house: “The ransom of red chief” [Páginas da
vida] (D); Monkey business [O Inventor da Mocidade]
1930: The dawn patrol [Patrulha da madrugada] (& Rt)
1953: Gentlemen prefer blondes [Os Homens Preferem
1931: The criminal code [O código penal]
as Loiras] (D NC para Jack Cole)
1932: Scarface [Scarface, a vergonha de uma nação]
1955: Land of the pharaohs [Terra dos faraós] (& P)
(& P); The crowd roars [Delirante] (& S); Tigershark [O
tubarão] 1959: Rio Bravo [Onde Começa o Inferno] (& P)
1933: The prizefighter and the lady (D NC); Today we 1962: Hatari! [Hatari!] (& P)
live [Vivamos hoje] (& P)
1964: Man’s favorite sport? [O esporte favorito do
1934: Viva Villa! [Viva Villa!] (D NC); Twentieth Century homem] (& P)
[Suprema Conquista] (& P)
1965: Red line 7000 [Faixa vermelha 7000] (& P)
1935: Barbary coast [Duas almas se encontram];
1967: El Dorado [El Dorado] (& P) 14. Direção
Ceiling zero [Heróis do ar] 13. Publicado
creditada a
1970: [Rio Lobo] [Rio Lobo] (& P) conforme
Horward a edição
Hughes
brasileira. [N.d.E]

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filmografia
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Caminho da Glória (The Road to Glory, EUA, 1926, 93’) | Cópia Perdida
Adão e Eva… (Fig Leaves, EUA, 1926, 70’)
Enquanto os Maridos se Divertem (The Cradle Snatchers, EUA, 1927, 70´)
Pago para Amar (Paid to Love, EUA, 1927, 76’)
Uma Garota em cada Porto (A Girl in Every Port, EUA, 1928, 62’)
Fazil (Fazil, EUA, 1928, 88’)
Os Acrobatas Aéreos (The Air Circus, EUA, 1928, 118’) | Cópia Perdida
O Último Caso de Trent (Trent’s Last Case, EUA, 1929, 66’)
A Patrulha da Madrugada (The Dawn Patrol, EUA, 1930, 108’)
O Código Criminal (The Criminal Code, EUA, 1931, 97’) | Não creditado oficialmente como diretor
Scarface – A Vergonha de uma Nação (Scarface, EUA, 1932, 93’)
Delirante (The Crowd Roars, EUA, 1932, 85’)
Amigo da Onça (Tiger Shark, EUA, 1932, 77’)
Vivamos Hoje (Today we Live, EUA, 1933, 113’)
O Lutador e a Garota (The Prizefighter and the Lady, EUA, 1933, 102’) |
Não creditado oficialmente como diretor
Viva Villa! (Viva Villa!, EUA, 1934, 115’) | Não creditado oficialmente como diretor
Suprema Conquista (Twentieth Century¸ EUA, 1934, 91’)
Duas Almas se Encontram (Barbary Coast, EUA, 1935, 91’)
Heróis do Ar (Ceiling Zero, EUA, 1936, 95’)
Caminho da Glória (The Road to Glory¸ EUA, 1936, 103’)
Meu Filho é meu Rival (Come and Get It, EUA, 1936, 99’)
Levada da Breca (Bringing Up Baby, EUA, 1938, 102’)
Paraíso Infernal (Only Angels Have Wings, EUA, 1939, 121’)
Jejum de Amor (His Girl Friday, EUA, 1940, 92’)
Sargento York (Sergeant York, EUA, 1941, 141’)
Bola de Fogo (Ball of Fire, EUA, 1941, 111’)
Águias Americanas (Air Force, EUA, 1943, 124’)

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O Proscrito (The Outlaw, EUA, 1943, 116’) | Não creditado oficialmente como diretor
Corvette K-225 (Corvette K-225, EUA, 1943, 98’) | Não creditado oficialmente como diretor
Uma Aventura na Martinica (To Have and to Have Not, EUA, 1944, 100’)
À Beira do Abismo (The Big Sleep, EUA, 1946, 114’)
Rio Vermelho (Red River, EUA, 1948, 133’)
A Canção Prometida (A Song is Born, EUA, 1948, 113’)
A Noiva era Ele (I Was a Male War Bride, EUA, 1949, 105’)
O Monstro do Ártico (The Thing from Another World, EUA, 1951, 87’) |
Não creditado oficialmente como diretor
O Rio da Aventura (The Big Sky¸1952, 134’)
Páginas da Vida (Full House, EUA, 1952, 117’) * Episódio: O Resgate do Chefe Vermelho
O Inventor da Mocidade (Monkey Business, EUA, 1952, 97’)
Os Homens Preferem as Loiras (Gentlemen Prefer Blondes, EUA, 1953, 91’)
Terra dos Faraós (Land of the Pharaohs, EUA, 1955, 105’)
Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, EUA, 1959, 141’)
Hatari! (Hatari!¸EUA, 1962, 157’)
O Esporte Favorito dos Homens (Man’s Favorite Sport?, EUA, 1964, 120’)
Faixa Vermelha 7000 (Red Line 7000, EUA, 1965, 110’)
El Dorado (El Dorado, EUA, 1966, 126’)
Rio Lobo (Rio Lobo, EUA, 1970, 114’)

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sinopses
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ESPELHOS D´ALMA (THE ROAD TO GLORY) | Cópia perdida
93min | 1926
May McAvoy sofre um acidente causado por ela mesma e fica cega. Depois do acontecido,
ela deposita toda sua esperança em orações e na fé, no desejo de recuperar sua visão.

ADÃO E EVA... (FIG LEAVES)


70min | 1926 | Exibição digital
Adão é um encanador casado com Eva, uma dona de casa obcecada por organização. Eles
vivem felizes, até que ela acidentalmente conhece um arrogante estilista. Eva transforma-
-se em sua modelo, exercendo a profissão durante o dia e escondido do marido, que desa-
provaria o emprego. Ao longo da história, Adão e Eva passam por dilemas parecidos ao de
seus ancestrais da Bíblia.

ENQUANTO OS MARIDOS SE DIVERTEM (THE CRADLE SNATCHERS)


70min | 1927 | 35mm
Enquanto os maridos se divertem é um filme mudo baseado na peça de Russell Medcraft e
Norma Mitchell (1925) de mesmo nome. Três esposas, cansadas das aventuras dos maridos,
decidem contratar três estudantes para causar ciúme nos cônjuges.

Pago para Amar (PAID TO LOVE)


76min | 1927 | Exibição digital
Um banqueiro americano vai para um pequeno país na região dos Bálcãs para ajudar a fraca
economia do lugar. Ele investe seu dinheiro na região durante a crise com a intenção de
obter bom retorno financeiro e acaba se tornando amigo do Rei. Ambos armam um esque-
ma para arrumar uma esposa para o príncipe herdeiro. O príncipe não demonstra nenhum
interesse pela questão até que conhece uma atraente dançarina de cabaré que o Rei e o
amigo escolheram para casar com ele.

UMA GAROTA EM CADA PORTO (A GIRL IN EVERY PORT)


62min | 1928 | 35mm
Dois marinheiros se tornam amigos muito próximos após disputarem uma garota. Juntos,
Spike e Salami viajam por todo o mundo em busca de mulheres, aventuras e mais mulheres.
A amizade deles é colocada à prova quando Spike decide se casar com Marie, uma golpista
francesa.

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FAZIL (FAZIL)
88min | 1928 | Exibição digital
Um príncipe árabe, nascido e criado no deserto, e uma bela francesa de Paris se apaixo-
nam e se casam, mas as enormes diferenças de criação e culturas os afastam de maneira
aparentemente irreparável.

OS ACROBATAS AÉREOS (THE AIR CIRCUS) | Cópia perdida


118min | 1928
Esse é o primeiro dos diversos filmes de aviação de Howard Hawks, além de ser sua primeira
obra com diálogos sonoros. Os acrobatas Speed Dolittle (Arthur Lake) e Buddy Blake (David
Rollins) são dois cadetes de uma escola de voo. Após se gabarem de suas proezas para a
bela Sue Manning (Sue Carol), os garotos descobrem que ela é uma talentosa aviadora que
facilmente pode deixá-los para trás.

O ÚLTIMO CASO DE TRENT (TRENT´S LAST CASE)


66min | 1929 | 35mm
O Último Caso de Trent foi lançado em duas versões: muda e falada. O filme é baseado no livro
homônimo escrito pelo britânico E. C. Bentley. O Sr. Mandelson comete suicídio e mascara
como homicídio para acusar seu pior inimigo. Ele convida o detetive Philip Trent para pre-
senciar o fato sem que ele saiba de suas intenções. As coisas se complicam, pois as pistas
são inúmeras e dificultam a vida de Trent.

A Patrulha da Madrugada (THE DAWN PATROL)


108min | 1930 | 35mm
A Patrulha da Madrugada retrata a Primeira Guerra Mundial. Pilotos de uma base aérea
da Royal Flying Corps (RFC) tentam lidar com o estresse do combate noturno por meio da
bebida. Os dois ases do grupo, Courtney (Richard Barthelmess) e Scott (Douglas Fairbanks
Jr.), não suportam o comandante Brand e o acusam de enviar novos recrutas direto para
combate. Nesse filme, Hawks também atua no papel de um piloto alemão.

O CÓDIGO CRIMINAL (THE CRIMINAL CODE) | Não creditado oficialmente como diretor
97min | 1931 | Exibição digital
Segundo filme sonoro de Hawks, O Código Criminal retrata o drama do jovem Bob Graham
(Phillips Holmes), que vê sua vida tomar outro rumo após uma briga em uma casa noturna
que resultou na morte de outro homem.

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SCARFACE – A VERGONHA DE UMA NAÇÃO (SCARFACE)
93min | 1932 | 35mm
Ascensão e queda do gângster Tony Scarface Camonte (Paul Muni), que cria um império
do crime na Chicago dos anos 1920, sacrificando para isso os amigos, a família e a própria
sanidade.

DELIRANTE (THE CROWD ROARS)


85min | 1932 | Exibição digital
O famoso campeão de automobilismo Joe Greer retorna à sua cidade natal para competir
em uma corrida. Lá ele descobre que seu irmão caçula também aspira se tornar um pi-
loto profissional. Joe fica irritado quando outro competidor morre durante a corrida e dá
a chance da vitória ao irmão. Ao mesmo tempo, a sorte de Joe parece desaparecer e seu
irmão conquista a fama.

AMIGO DA ONÇA (TIGER SHARK)


77min | 1932 | Exibição digital
Mesmo sem uma das mãos – perdida ao salvar seu amigo Pipes Boley de um tubarão - Mike
é um ótimo pescador. Ele vive feliz com sua esposa, Quita, porém, não percebe que Pipes e
Quita estão se apaixonando.

VIVAMOS HOJE (TODAY WE LIVE)


113min | 1933 | Exibição digital
Durante a Primeira Guerra Mundial, Diana (Joan Crawford), uma mulher inglesa, se envol-
ve em um triângulo amoroso. Há anos ela namora um oficial inglês, mas quando conhece
Bogard (Gary Cooper), um piloto de caça norte-americano, ela descobre o verdadeiro amor.

O LUTADOR E A GAROTA (THE PRIZEFIGHTER AND THE LADY) |


Não creditado oficialmente como diretor
102min | 1933 | Exibição digital
Um ex-marinheiro se torna boxeador. Ele se apaixona por uma jovem e, quando tudo vai
bem, é baleado durante uma disputa pelo título de peso pesado.

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VIVA VILLA! (VIVA VILLA!) | Não creditado oficialmente como diretor
115min | 1934 | Exibição digital
Biografia ficcionada do jovem Pancho Villa, que foge para as montanhas depois de matar
um homem para vingar o assassinato de seu pai.

Suprema Conquista (TWENTIETH CENTURY)


91min | 1934 | 16mm
Um extravagante diretor de teatro transforma uma talentosa corista na mais nova sensação
dos palcos da Broadway. Cansada do autoritarismo de seu criador, a garota resolve ir para
Hollywood, onde rapidamente se consagra como uma grande estrela de cinema. Ele, por
sua vez, tem que encarar a ruína financeira depois de uma série de produções fracassadas.

DUAS ALMAS SE ENCONTRAM (BARBARY COAST)


91min | 1935 | Exibição digital
Uma corrida pelo ouro californiano atrai aventureiros dos quatro cantos do mundo, que
chegam por terra ou por mar à cidade de São Francisco. Na véspera do ano novo, um barco
atraca com pessoas que só têm uma coisa em mente: ouro! Contrastando com os demais
viajantes, estão a bordo Marcus Aurelius Cobb, um jornalista que pretende fundar um jornal
na cidade, e Mary Rutledge, que veio de Nova Iorque para se casar com um homem influente
na região.

Heróis do Ar (CEILING ZERO)


95min | 1936 | Exibição digital
Três pilotos veteranos de guerra, Dizzy Davis, Texas Clark e Jake Lee, trabalham na mesma
companhia área. Dizzy está paquerando uma jovem piloto e, por isso, troca o seu voo com o
de Texas. Porém, devido às péssimas condições temporais, o avião de Texas sofre um aci-
dente pouco antes de pousar. Dizzy sente-se culpado e sai no próximo avião em condições
ainda piores, com o intuito de testar um novo dispositivo antigelo.

CAMINHO DA GLÓRIA (THE ROAD TO GLORY)


103min | 1936 | Exibição digital
O tenente Denet, oficial do exército francês, luta com todas as forças para impedir o avanço
alemão durante a Primeira Guerra Mundial. O que ele não sabe é que sua obsessão pela
vitória o está transformando, aos olhos de seus homens, em seu pior inimigo.

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MEU FILHO É MEU RIVAL (COME AND GET IT)
99min | 1936 | Exibição digital
O filme apresenta os conflitos de uma família do meio-oeste americano às voltas com
dinheiro, poder e romance. Barney irá disputar com seu próprio filho, Richard, o amor da
mesma mulher.

LEVADA DA BRECA (BRINGING UP BABY)


102min | 1938 | 35mm
David Huxley (Cary Grant) está esperando a encomenda de um osso que ele precisa para o
museu de história onde trabalha. À procura de sua encomenda, David acaba conhecendo
Susan (Katharine Hepburn), uma moça rica e atrapalhada. Susan o coloca em inúmeras
confusões, e uma delas inclui uma onça brasileira chamada “Baby”.

Paraíso Infernal (ONLY ANGELS HAVE WINGS)


121min | 1939 | 35mm
Bonnie Lee (Jean Arthur), uma jovem de passagem por uma pequena república da América
Latina, se apaixona por Geoff Carter (Cary Grant), comandante de uma companhia de car-
teiros aéreos que arriscam diariamente suas vidas em voos perigosos.

Jejum de Amor (HIS GIRL FRIDAY)


92min | 1940 | 35mm
Hildy Johnson (Rosalind Russell) faz uma visita ao escritório de seu ex-marido, Walter Burns
(Cary Grant), para lhe dizer que está envolvida com outro homem e que vai se casar no dia
seguinte. Walter decide que não pode deixar isso acontecer e cria uma série de situações
para fazer Hildy desistir do casamento e voltar para seu antigo trabalho como repórter.

SARGENTO YORK (SERGEANT YORK)


141min | 1941 | 35mm
Quando estoura a guerra em 1914, Alvin C. York (Gary Cooper) não se alista, alegando ser um
pacifista. Porém, é forçado a servir e acaba se tornando um famoso herói de guerra. Apesar
de seus ideais, sua ira vem à tona quando vários companheiros são mortos pelo inimigo e
ele vence uma batalha contra os alemães, praticamente sozinho, usando técnicas de caça.

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BOLA DE FOGO (BALL OF FIRE)
111min | 1941 | 35mm
Oito professores estão voltados exclusivamente para a elaboração de uma enciclopédia. Um
deles, Bertram Potts (Gary Cooper), prepara a parte de literatura inglesa e quer incluir a
linguagem popularesca. Ele encontra em Sugarpuss O´Shea (Barbara Stanwyck), uma sexy
cantora de boate, uma fonte inesgotável desses termos. No início ela não colabora, mas logo
muda de ideia quando descobre que a Promotoria pretende detê-la para um interrogatório
até conseguir provas contra seu namorado, um gângster.

ÁGUIAS AMERICANAS (AIR FORCE)


124min | 1943 | Exibição digital
Mary Ann, o avião B-17 da Força Aérea Americana, decola na Califórnia em direção ao Havaí
numa missão de rotina. É o dia 6 de dezembro de 1941, justamente quando os japoneses
atacam Pearl Harbor. A tropa recebe um aviso de seus superiores de que devem se dirigir
para uma ação de combate na Ilha Wake, nas Filipinas. Essa batalha ficou conhecida como
“Mar de Corais”.

O PROSCRITO (THE OUTLAW) | Não creditado oficialmente como diretor


116min | 1943 | Exibição digital
Este singular faroeste aborda o legendário Billy The Kid e, especialmente, sua amizade com
Doc Holliday e Pat Garrett, xerife do Novo México. The Kid demonstra interesse na bela e
insinuante Rio McDonald, a garota de Doc. Inicia-se, então, um dos capítulos mais estranhos
e sensuais da história do faroeste.

CORVETTE K-225 (CORVETTE K-225) | Não creditado oficialmente como diretor


98min | 1943 | Exibição digital
História de uma embarcação naval canadense da Segunda Guerra Mundial, cujo pano de
fundo é o drama de um de seus capitães.

Uma Aventura na Martinica (TO HAVE AND HAVE NOT)


100min | 1944 | 35mm
O capitão expatriado Harry Morgan (Humphrey Bogart) enfrenta várias complicações após
ajudar um fugitivo da Resistência Francesa e sua bela esposa Marie (Lauren Bacall) a escapar
dos nazistas, em plena Segunda Guerra Mundial.

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À Beira do Abismo (THE BIG SLEEP)
114min | 1946 | Exibição em duas versões (35mm e digital)
Los Angeles, anos 1940. O detetive particular Philip Marlowe (Humphrey Bogart) é contra-
tado para ficar de olho na filha caçula de um general, mas acaba se envolvendo em uma
complexa teia de assassinatos, chantagem e traição. O filme, baseado em livro homônimo
de Raymond Chandler, tem roteiro assinado por William Faulkner.

RIO VERMELHO (RED RIVER)


133min | 1948 | 35mm
O filme retoma a incrível atmosfera do velho-oeste americano, ainda no tempo das diligên-
cias, quando os primeiros grandes criadores de gado trabalhavam duro para fortalecer a
economia do sul dos Estados Unidos. Thomas Dunson (John Wayne) construiu um império
com seu filho adotivo, Matthew Garth (Montgomery Clift), e fará qualquer coisa para proteger
seu meio de vida - inclusive duelar contra ele.

A CANÇÃO PROMETIDA (A SONG IS BORN)


113min | 1948 | Exibição digital
Honey Swanson (Virginia Mayo) decide se esconder em um instituto de música enquanto seu
namorado é investigado pela polícia. Swanson consegue mais do que imaginava quando o
principal professor do lugar, Hobart Frisbee, se apaixona por ela.

A Noiva era Ele (I WAS A MALE WAR BRIDE)


105min | 1949 | 35mm
O capitão francês Henri Rochard (Cary Grant) se apaixona pela tenente americana Catherine
Gates (Ann Sheridan) e eles decidem se casar. Para que consiga entrar despercebido nos
EUA, Rochard se disfarça de mulher e embarca em um navio ocupado somente por esposas
de oficiais.

O MONSTRO DO ÁRTICO (THE THING FROM ANOTHER WORLD) | Não creditado oficialmente
como diretor
87min | 1951 | 35mm
Uma criatura alienígena incrustada em uma placa de gelo há milhares de anos em algum
lugar do círculo polar ártico é descoberta na atualidade, junto ao seu enorme disco voador. A
criatura, quando reanimada, revela-se hostil e interessada nos seres humanos unicamente

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como sua nova fonte de alimento. Em 1982 a obra ganhou uma refilmagem, A Coisa: o enigma
de outro mundo, pelo diretor John Carpenter.

O Rio da Aventura (THE BIG SKY)


122min e 134min | Exibição em duas versões (35mm e digital) | 1952
Um grupo de homens embarca em uma jornada pelo Rio Missouri em busca de peles de
animais. Entre eles está o negociante Jim Deakins (Kirk Douglas). Tudo vai bem, até que
chegam a um território indígena e começam a enfrentar diversos problemas.

PÁGINAS DA VIDA (FULL HOUSE)*


Episódio: O Resgate do Chefe Vermelho
117min | 1952 | Exibição digital
* Obra coletiva,
com episódios
O escritor John Steinbeck nos apresenta cinco episódios baseados em contos do escritor
dirigidos por americano O. Henry. Esse importante literato norte-americano é conhecido por suas his-
HOWARD HAWKS, tórias curtas e de final surpreendente. Neste filme, cada episódio é dirigido por um grande
HENRY HATHAWAY cineasta. No segmento de Howard Hawks, O Resgate do Chefe Vermelho (The Ransom of Red
HENRY KING,
HENRY KOSTER e
Chief), dois vigaristas planejam sequestrar um garoto de uma pequena vila rural e pedem
JEAN NEGULESCO. um alto resgate por ele.

O Inventor da Mocidade (MONKEY BUSINESS)


97min | 1952 | 35mm
O cientista Barnaby Fulton (Cary Grant) está trabalhando na fórmula da juventude e testando-
-a em chimpanzés com a ajuda de sua esposa Edwina (Ginger Rogers). Quando a macaca
Esther, sua cobaia, coloca o composto no bebedouro do laboratório, sua fórmula fica exposta
para qualquer um que beba água. O Inventor da Mocidade é o primeiro filme no qual Marilyn
Monroe trabalha com Hawks.

OS HOMENS PREFEREM AS LOIRAS (GENTLEMEN PREFER BLONDES)


91min | 1953 | 35mm
Lorelei (Marilyn Monroe) e Dorothy (Jane Russell) são duas belas dançarinas que embarcam
em um cruzeiro rumo a Paris, bancado pelo noivo de Lorelei. Porém, seu sogro contrata um
detetive particular para segui-la e tentar confirmar sua desconfiança de infidelidade da moça.

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TERRA DOS FARAÓS (LAND OF THE PHARAOHS)
105min | 1955 | Exibição digital
No antigo Egito, um faraó decide construir uma pirâmide na qual será enterrado juntamente
com seu tesouro, esperando desfrutar do mesmo em uma segunda vida. Para garantir que
nada será roubado ele aceita a proposta de um arquiteto, que é prisioneiro juntamente com o
seu povo. Se o arquiteto construir essa magnífica pirâmide, os cativos serão gradativamente
libertados durante a construção.

Onde Começa o Inferno (RIO BRAVO)


141min | 1959 | 35mm
John Wayne é John T. Chance, xerife de uma pequena cidade do Texas que precisa enfren-
tar um exército de pistoleiros dispostos a libertar um rico proprietário de terras preso por
assassinato. Para a missão ele conta com a ajuda de um quarteto inusitado: um bêbado, um
velho resmungão, um jovem e inexperiente pistoleiro e uma bela garota.

Hatari! (Hatari!)
157min | 1962 | 35mm
Um grupo de aventureiros vive da caça de animais selvagens na África para serem vendidos
a zoológicos ao redor do mundo. A rotina de trabalho muda com a chegada de uma bonita
fotógrafa, especializada em retratar o reino animal.

O ESPORTE FAVORITO DOS HOMENS (MAN´S FAVORITE SPORT)


120min | 1964 | 35mm
Roger (Rock Hudson) é o melhor vendedor de artigos para pesca e escritor de um renomado
livro de táticas para o esporte. O único problema é que o jovem jamais pescou na vida. A con-
fusão começa quando uma garota convence seu chefe a inscrevê-lo em um torneio de pesca.

FAIXA VERMELHA 7000 (RED LINE 7000)


110min | 1965 | 16mm
Jim Loomis e Mike Marsh são pilotos de corrida na equipe de Pat Cassarian. Jim aguarda
sua noiva Holly, mas antes de sua chegada um acidente acontece. O jovem e talentoso Ned
Arp se junta ao time e imediatamente tenta seduzir Julie, a irmã de Pat. O terceiro membro
da equipe é o mulherengo Dan McCall, que decide trazer de Paris a namorada Gabrielle.

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EL DORADO (EL DORADO)
126min | 1966 | 35mm
O pistoleiro Cole Thornton (John Wayne) é convocado à cidade de El Dorado para realizar um
serviço. Ao chegar, encontra J.P. Harrah (Robert Mitchum), um velho amigo que se tornou
xerife do lugar. Harrah lhe conta que o trabalho é uma encomenda do coronel Bart Jason e
que sua missão é expulsar a família McDonald de suas terras.

RIO LOBO (RIO LOBO)


114min | 1970 | 35mm
Depois da Guerra Civil, o ex-oficial Cord McNally (John Wayne) sai à procura do traidor que
arruinou os planos de seu pelotão e causou a morte de um amigo próximo.

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pRogramação
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05 SEX

julho
16h MOSTRA HOWARD HAWKS | Rio Lobo (Rio Lobo,
EUA, 1970) | (12 anos) | 35mm | 114’
18h MOSTRA HOWARD HAWKS | O Monstro do
Ártico (The Thing from Another World, EUA, 1951) |
(16 anos) | 35mm | 87’ | (Não creditado oficialmente
02 TER como diretor*)
16h MOSTRA HOWARD HAWKS | Scarface - A 20h MOSTRA HOWARD HAWKS | A Noiva era Ele (I
Vergonha de uma Nação (Scarface, EUA, 1932) | (14 Was a Male War Bride, EUA) | (12 anos) | 35mm | 105’
anos) | 35mm | 93’
06 SÁB
18h MOSTRA HOWARD HAWKS | Uma Aventura na
Martinica (To Have and Have Not, 1944) | (14 anos) | 14h MOSTRA HOWARD HAWKS | Corvette K-225
35mm | 100’ (Corvette K-225, EUA, 1943) | (12 anos) | (Exibição
digital) | 98’ | (Não creditado oficialmente como
20h MOSTRA HOWARD HAWKS | Onde Começa o
diretor*)
Inferno (Rio Bravo, EUA, 1959) | (12 anos) | 35mm | 141’
16h MOSTRA HOWARD HAWKS | Paraíso Infernal
03 QUA (Only Angels Have Wings, EUA, 1939) | (Livre) | 35mm
| 121’
16h MOSTRA HOWARD HAWKS | À Beira do Abismo
(The Big Sleep, EUA, 1946) | (14 anos) | (Exibição 18h15 MOSTRA HOWARD HAWKS | O Esporte
digital) | 114’ Favorito dos Homens (Man's Favorite Sport?, EUA,
1964) | (12 anos) | 35mm | 120’
18h MOSTRA HOWARD HAWKS | Rio Vermelho (Red
River, EUA, 1948) | (16 anos) | 35mm | 133’ 20h15 MOSTRA HOWARD HAWKS | Os Homens
Preferem as Loiras (Gentlemen Prefer Blondes,
20h30 MOSTRA HOWARD HAWKS | Sargento York EUA, 1953) | (Livre) | 35mm | 91’
(Sergeant York, EUA, 1941) | (Livre) | 35mm | 141’
07 DOM
04 QUI
16h MOSTRA HOWARD HAWKS | Jejum de Amor (His
16h MOSTRA HOWARD HAWKS | Suprema Conquista Girl Friday, EUA, 1940) | (Livre) | 35mm | 92’
(Twentieth Century¸ EUA, 1934) | (Livre) | 35mm | 91’
18h MOSTRA HOWARD HAWKS | O Inventor da
18h MOSTRA HOWARD HAWKS | Faixa Vermelha Mocidade (Monkey Business, EUA, 1952) | (Livre) |
7000 (Red Line 7000, EUA, 1965) | (12 anos) | 16mm |
35mm | 97’
110’
20h MOSTRA HOWARD HAWKS | Hatari!
20h MOSTRA HOWARD HAWKS | Bola de Fogo (Ball (Hatari!¸EUA, 1962) | (Livre) | 35mm | 157’
of Fire, EUA, 1941) | (16 anos) | 35mm | 111’
09 TER
16h MOSTRA HOWARD HAWKS | Faixa Vermelha

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7000 (Red Line 7000, EUA, 1965) | (12 anos) | 16mm | 20h MOSTRA HOWARD HAWKS | Sargento York
110’ (Sergeant York, EUA, 1941) | (Livre) | 35mm | 141’
18h MOSTRA HOWARD HAWKS | Bola de Fogo (Ball
of Fire, EUA, 1941) | (16 anos) | 35mm | 111’ 13 SÁB
20h15 MOSTRA HOWARD HAWKS | Paraíso Infernal
(Only Angels Have Wings, EUA, 1939) | (Livre) | 35mm 16h MOSTRA HOWARD HAWKS | À Beira do Abismo
| 121’ (The Big Sleep, EUA, 1946) | (14 anos) | (Exibição
digital) | 114’
10 QUA 18h MOSTRA HOWARD HAWKS | Rio Lobo (Rio Lobo,
16h MOSTRA HOWARD HAWKS | O Esporte Favorito EUA, 1970) | (12 anos) | 35mm | 114’
dos Homens (Man's Favorite Sport?, EUA, 1964) | (12 20h MOSTRA HOWARD HAWKS | Scarface - A
anos) | 35mm | 120’ Vergonha de uma Nação (Scarface, EUA, 1932) | (14
18h15 MOSTRA HOWARD HAWKS | A Noiva era Ele (I anos) | 35mm | 93’
Was a Male War Bride, EUA) | (12 anos) | 35mm | 105’
20h15 MOSTRA HOWARD HAWKS | Hatari! 14 DOM
(Hatari!¸EUA, 1962) | (Livre) | 35mm | 157’ 16h MOSTRA HOWARD HAWKS | Suprema Conquista
(Twentieth Century¸ EUA, 1934) | (Livre) | 35mm | 91’
11 QUI 18h15 MOSTRA HOWARD HAWKS | Uma Aventura na
16h MOSTRA HOWARD HAWKS | O Inventor da Martinica (To Have and Have Not, 1944) | (14 anos) |
Mocidade (Monkey Business, EUA, 1952) | (Livre) | 35mm | 100’
35mm | 97’ 20h MOSTRA HOWARD HAWKS | Rio Vermelho (Red
18h MOSTRA HOWARD HAWKS | O Monstro do River, EUA, 1948) | (16 anos) | 35mm | 133’
Ártico (The Thing from Another World, EUA, 1951) |
(16 anos) | 35mm | 87’ | (Não creditado oficialmente 16 TER
como diretor*) 16h MOSTRA HOWARD HAWKS | Amigo da Onça
20h MOSTRA HOWARD HAWKS | Onde Começa o (Tiger Shark, EUA, 1932) | (12 anos) | (Exibição digital)
Inferno (Rio Bravo, EUA, 1959) | (12 anos) | 35mm | | 77’
141’ 18h MOSTRA HOWARD HAWKS | Levada da Breca
(Bringing Up Baby, EUA, 1938) | (10 anos) | (Exibição
12 SEX digital) | 102’
16h MOSTRA HOWARD HAWKS | Jejum de Amor (His 20h MOSTRA HOWARD HAWKS | Vivamos hoje
Girl Friday, EUA, 1940) | (Livre) | 35mm | 92’ (Today we live, EUA, 1933) | (Livre) | (Exibição digital)
| 113’
18h MOSTRA HOWARD HAWKS | Os Homens
Preferem as Loiras (Gentlemen Prefer Blondes, 17 QUA
EUA, 1953) | (Livre) | 35mm | 91’
16h MOSTRA HOWARD HAWKS |Terra dos Faraós

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(Land of the Pharaohs, EUA, 1955) | (12 anos) | (Exibição digital) | 91’
(Exibição digital) | 105’ 20h MOSTRA HOWARD HAWKS | O Rio da Aventura
18h MOSTRA HOWARD HAWKS |Uma Garota em (The Big Sky¸1952) | (14 anos) | (Exibição digital) | 134’
cada Porto (A Girl in Every Port, EUA, 1928) | (12 anos)
| (Exibição Digital) | 62’ 21 DOM
20h MOSTRA HOWARD HAWKS | Viva Villa! (Viva 14h MOSTRA HOWARD HAWKS | Heróis do Ar
Villa!, EUA, 1934) | (Livre) | (Exibição digital) | 115’ | (Ceiling Zero, EUA, 1936) | (Livre) | (Exibição digital) |
(Não creditado oficialmente como diretor*) 95’
16h MOSTRA HOWARD HAWKS | Águias Americanas
18 QUI (Air Force, EUA, 1943) | (10 anos) | (Exibição digital) |
16h MOSTRA HOWARD HAWKS | A Patrulha da 124’
Madrugada (The Dawn Patrol, EUA, 1930) | (10 anos) | 18h15 MOSTRA HOWARD HAWKS | Corvette K-225
(Exibição Digital) | 108’ (Corvette K-225, EUA, 1943) | (12 anos) | (Exibição
18h MOSTRA HOWARD HAWKS | Adão e Eva… (Fig digital) | 98’ | (Não creditado oficialmente como
leaves, EUA, 1926) | (14 anos) | (Exibição digital) | 70’ diretor*)
20h MOSTRA HOWARD HAWKS | El Dorado (El 20h MOSTRA HOWARD HAWKS | Delirante (The
Dorado, EUA, 1966) | (12 anos) | (Exibição digital) | 126’ Crowd Roars, EUA, 1932) | (12 anos) | (Exibição digital)
| 85’
19 SEX
23 TER
16h MOSTRA HOWARD HAWKS | Pago para Amar
(Paid to Love, EUA, 1927) | (12 anos) | (Exibição digital) 16h MOSTRA HOWARD HAWKS| A Canção Prometida
| 76’ (A Song is Born, EUA, 1948) | (Livre) | (Exibição digital)
| 113’
18h MOSTRA HOWARD HAWKS | Meu Filho é meu
Rival (Come and Get It, EUA, 1936) | (14 anos) | 18h MOSTRA HOWARD HAWKS |Terra dos Faraós
(Exibição digital) | 99’ (Land of the Pharaohs, EUA, 1955) | (12 anos) |
(Exibição digital) | 105’
20h MOSTRA HOWARD HAWKS | O Proscrito (The
Outlaw, EUA, 1943) | (12 anos) | (Exibição digital) | 116’
20h MOSTRA HOWARD HAWKS | Adão e Eva… (Fig
leaves, EUA, 1926) | (14 anos) | (Exibição digital) | 70’
| (Não creditado oficialmente como diretor*)

20 SÁB 24 QUA
16h MOSTRA HOWARD HAWKS | O Código Criminal 16h MOSTRA HOWARD HAWKS| Levada da Breca
(Bringing Up Baby, EUA, 1938) | (10 anos) | (Exibição
(The Criminal Code, EUA, 1931) | (12 anos) | (Exibição
digital) | 102’
digital) | 97’ | (Não creditado oficialmente como
diretor*) 18h MOSTRA HOWARD HAWKS| | Páginas da Vida
(Full House, EUA, 1952) | Episódio: O Resgate do
18h MOSTRA HOWARD HAWKS | Duas Almas se
Chefe Vermelho | (14 anos) | (Exibição digital) | 117’
Encontram (Barbary Coast, EUA, 1935) | (16 anos) |

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20h15 MOSTRA HOWARD HAWKS| Vivamos hoje Glória (The Road to Glory¸ EUA, 1936) | (12 anos) |
(Today we live, EUA, 1933) | (Livre) | (Exibição digital) (Exibição digital) | 103’
| 113’
16h MOSTRA HOWARD HAWKS | Viva Villa! (Viva
Villa!, EUA, 1934) | (Livre) | (Exibição digital) | 115’ |
25 QUI (Não creditado oficialmente como diretor*)
16h MOSTRA HOWARD HAWKS| Fazil (Fazil, EUA, 18h15 MOSTRA HOWARD HAWKS | O Código
1928) | (12 anos) | (Exibição digital) | 88’
Criminal (The Criminal Code, EUA, 1931) | (12 anos) |
18h MOSTRA HOWARD HAWKS | Delirante (The (Exibição digital) | 97’ | (Não creditado oficialmente
Crowd Roars, EUA, 1932) | (12 anos) | (Exibição digital) como diretor*)
| 85’
20h MOSTRA HOWARD HAWKS| A Canção
20h MOSTRA HOWARD HAWKS | Meu Filho é Prometida (A Song is Born, EUA, 1948) | (Livre) |
meu Rival (Come and Get It, EUA, 1936) | (14 anos) | (Exibição digital) | 113’
(Exibição digital) | 99’
30 TER
26 SEX 16h MOSTRA HOWARD HAWKS| | Páginas da Vida
16h MOSTRA HOWARD HAWKS | Duas Almas se (Full House, EUA, 1952) | Episódio: O Resgate do
Encontram (Barbary Coast, EUA, 1935) | (16 anos) | Chefe Vermelho | (14 anos) | (Exibição digital) | 117’
(Exibição digital) | 91’
18h MOSTRA HOWARD HAWKS | Pago para Amar
18h MOSTRA HOWARD HAWKS |Uma Garota em (Paid to Love, EUA, 1927) | (12 anos) | (Exibição
cada Porto (A Girl in Every Port, EUA, 1928) | (12 anos) digital) | 76’
| (Exibição Digital) | 62’
20h MOSTRA HOWARD HAWKS | Águias
20h MOSTRA HOWARD HAWKS | O Rio da Aventura Americanas (Air Force, EUA, 1943) | (10 anos) |
(The Big Sky¸1952) | (14 anos) | (Exibição digital) | 134’ (Exibição digital) | 124’

27 SÁB 31 QUA
16h MOSTRA HOWARD HAWKS | El Dorado (El
Dorado, EUA, 1966) | (12 anos) | (Exibição digital) | 126’ 16h MOSTRA HOWARD HAWKS | Heróis do Ar
18h15 MOSTRA HOWARD HAWKS | MOSTRA (Ceiling Zero, EUA, 1936) | (Livre) | (Exibição digital)
HOWARD HAWKS| Fazil (Fazil, EUA, 1928) | (12 anos) | | 95’
(Exibição digital) | 88’ 18h MOSTRA HOWARD HAWKS | Amigo da Onça
20h MOSTRA HOWARD HAWKS | A Patrulha da (Tiger Shark, EUA, 1932) | (12 anos) | (Exibição
Madrugada (The Dawn Patrol, EUA, 1930) | (10 anos) | digital) | 77’
(Exibição Digital) | 108’ 20h MOSTRA HOWARD HAWKS | O Proscrito (The
Outlaw, EUA, 1943) | (12 anos) | (Exibição digital) |
28 DOM 116’ | (Não creditado oficialmente como diretor*)
14h MOSTRA HOWARD HAWKS | Caminho da

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curso|debate
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CURSO: HAWKS: O GÊNIO À ALTURA DO HOMEM
Inácio Araújo (SP)
17, 18 e 19 de Abril | no Cine Humberto Mauro
Ementa
1. A formação do estilo
O que é a “câmera à altura do homem”.
Todo o significado dessa opção será esmiuçado ao longo do curso, mas o essencial do
sentido é: trata-se de o homem estar à altura da câmera.
Proximidade e contrastes com outros cineastas: De Mille e Ford.
2. Entre Ser e Parecer
A formação das ideias.
Marshall Nolan e a importância do humor.
A descoberta de Murnau (e a tentativa de imitá-lo),
A escrita como modo de liberar-se do texto
3. Som, narração, modernidade
O som como território essencial do cinema hawksiano.
A mutilação como elemento de mise-en-scène
Funções da mulher - relação homem/mulher, tensões e modulações.
A narrativa em módulos.
4. O homem e o mundo
Os elementos do mundo: o ar, a água, o fogo, a terra.
O homem e os objetos: o animado e o inanimado.
O homem e suas eras: a infância, a maturidade, a velhice
O homem, a aventura, a natureza: a aventura como domínio de si e da natureza; a aventu-
ra como conhecimento de si.

Minuta
Howard Hawks é um cineasta da modernidade. Cineasta do homem em conflito com uma
natureza que precisa domar para se impor como senhor do mundo. Lutando no ar ou na
terra, no drama ou na comédia, o sentimento essencial que transmite Hawks é o de crença
no progresso e na razão.

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Ainda que se possa colocar em questão, hoje, parte considerável desse pensamento, a ma-
neira encontrada por Howard Hawks para encená-lo o designa como um dos mais inventivos
e sólidos cineastas de todos os tempos.
Cineasta do ser e do aparecer (a exemplo de Jean Renoir), das coisas que só se justificam ao
acontecer, Hawks é o cineasta que deixa Deus de lado para mobilizar as forças da natureza
(fogo, água, terra, ar) como companheiras, amigas e inimigas dessa aventura ao longo da
qual o homem deve desvendar a si mesmo: saber quem é, é o grande desafio a que deve
responder o herói hawksiano.

DEBATE
11 de Maio, às 16 horas | no Cine Humberto Mauro
Com a presença de: Geraldo Veloso (Cineasta/MG), André Setaro (Crítico e Jornalista/BA) e
Bruno Andrade (Crítico e pesquisador/SC) |
Mediador: Rafael Ciccarini

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palestraS
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ABRIL
18 QUI | 19h15 | no Cine Humberto Mauro
Palestra: Os profissionais de Hawks: Crônicas da existência
Luiz Soares Junior (Professor e crítico da Revista Cinética/PE)
A palestra pretende tratar dos grupos de profissionais que constituem os personagens dos
filmes de Hawks- os afetos e questões existenciais que se refletem nestas interações onde
à vita contemplativa e digressiva do cinema de Ford, por exemplo, é substituída a vita activa
de uma intervenção e uma inervação do mundo, no mundo; é na deflagração e no trabalho
do mundo pela ação dos corpos que os afetos são mobilizados, as mazelas e agruras da
existência são suplantadas e convertidas em meio para a realização de uma presença plena,
de uma radical imanência, traduzida com lapidar fulgurância por Rivette na fórmula: Um
cinema da evidência. Em Hawks, são os corpos e suas posições no quadro, são seus recí-
procos deslocamentos e embates que instauram o mundo; a relação figura e fundo inexiste,
porque é apenas na ação e no movimento dos homens entre si que um mundo é forjado, na
frontal e central metalurgia desta demiurgia da ação.

25 QUI | 19h30 | no Cine Humberto Mauro


PALESTRA: Howard Hawks, “Rio Vermelho”, o Grupo e a Política dos Autores
Palestrante: Prof. Dr. Mário Alves Coutinho (Escritor e pesquisador/MG)
Howard Hawks, em Rio Vermelho (e em toda sua obra) é o cineasta da câmera ao nível do
olhar humano, do elogio ao profissionalismo, e é, também, o narrador que somente sabe
alguma coisa de seus personagens pelos seus atos, e, sobretudo, o diretor cujos perso-
nagens somentes atuam em grupo, quase nunca solitariamente. Com muita propriedade,
um grupo de críticos franceses (Godard, Rivette, Rohmer, Truffaut) baseou toda uma teoria
cinematográfica na sua obra e na de Hitchcock: a política dos autores.

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MAIO
02 QUI | 19h | no Cine Humberto Mauro
PALESTRA: A Comédia Excêntrica dos Anos 1930
Profª Drª Ana Lúcia Andrade (EBA/UFMG)
As estratégias de um popular subgênero do cinema norte-americano, consolidadas por
alguns de seus diretores mais marcantes: Howard Hawks, Frank Capra, Ernst Lubistch,
Billy Wilder, Preston Sturges.

09 QUI | 19h | no Cine Humberto Mauro


PALESTRA: Hatari: novos horizontes para o filme de aventura
Prof. Dr. João Luiz Vieira (UFF-RJ)
Autor inquestionável dentro de gêneros bastante codificados, Hawks aqui amplia o universo
do filme de aventura, combinando sofisticação (Henry Mancini, elegantes mulheres) com o
mundo masculino dos buddies em caçadas pela África.

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SobrE
PROFESSOR
Inácio Araújo é crítico de cinema do jornal Folha de São Paulo. É montador de 13 filmes de longa-
-metragem e autor ou coautor de seis roteiros cinematográficos. Escreveu ficção: o romance Casa de
Meninas (1987, reed. 2004), o romance juvenil Uma Chance na Vida (1992) e os contos de Os Fantasmas
e os Homens (inédito). Publicou, sobre cinema: Hitchcock, o Mestre do Medo e Cinema: O Mundo em
Movimento, além de artigos em diversas antologias. Uma antologia de seus artigos foi reunida por
Juliano Tosi em Críticas de Inácio Araujo (Editora Imprensa Oficial - SP).

DEBATEDORES
André Setaro dá início à sua carreira de comentarista cinematográfico em agosto de 1974, com uma
coluna diária no jornal soteropolitano Tribuna da Bahia, e, a partir de 1994, semanalmente. Publica
diversos artigos em outros jornais e revistas e é autor de dois verbetes da Enciclopédia do Cinema
Brasileiro (editada pelo SENAI). Professor adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade
Federal da Bahia (desde abril de 1979), onde leciona disciplinas da área do audiovisual. Em abril de
2010 lança Escritos sobre cinema - Trilogia de um tempo perdido (3 volumes), editado pela Edufba em
parceria com a Editora Azougue. Possui uma coluna sobre cinema na revista eletrônica Terra Maga-
zine e um blog no espaço virtual desde 2005: Setaro’s Blog.

Bruno Andrade (currículo em AUTORES)

Geraldo Veloso nasceu em 1944, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Já realizou como profissional
(montagem, produção, roteirização, direção, etc.) mais de 120 filmes de longa, curta e média metra-
gens, ao longo de mais de 45 anos, no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Minas Gerais e no exterior.
Possui trabalhos como crítico, pesquisador, professor, conferencista e um livro em fase de finaliza-
ção: A Longa Trajetória de Theobaldo Odisseu de Almeida. Dirigiu os filmes Perdidos e Malditos, Homo
Sapiens, Toda a Memória das Minas e, com outros três diretores, Circo das Qualidades Humanas, entre
outros. Criou e coordenou, por 10 anos, o programa Cine Magazine, na Rede Minas de Televisão.
Atualmente coordena o Consórcio Mineiro de Audiovisual e prepara a produção de um novo projeto,
Alguns Vieram Correndo, que deverá dirigir, com roteiro de sua autoria.

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Rafael Ciccarini é professor e crítico de cinema. Graduado em História, mestre  em Artes/Cinema
e doutorando  em Artes/Cinema, todos pela UFMG. Professor das disciplinas História e Teoria do
Cinema e Teorias da Imagem e do Som no Curso Superior de Cinema da UNA. Professor de História
do Cinema Brasileiro na Pós- Graduação do IEC/PUC Minas. É, também, editor da revista eletrônica
Filmes Polvo e coautor do livro Antologia Revista de Cinema. Atualmente é Gerente de Cinema da Fun-
dação Clóvis Salgado, na qual, entre outras atividades, é responsável pela programação e gestão do
Cine Humberto Mauro.

PALESTRANTES
Ana Lúcia Andrade é professora de Cinema do Departamento de Fotografia, Teatro e Cinema da Es-
cola de Belas Artes da UFMG. Roteirista e crítica de cinema, é autora dos livros O filme dentro do filme;
a metalinguagem no cinema (Editora UFMG, 1999) e Entretenimento inteligente: o cinema de Billy Wilder
(Editora UFMG, 2004). Jornalista formada pela PUC-MG, é mestre em Artes Visuais (pela Escola de
Belas Artes da UFMG) e doutora em Ciências da Comunicação - Cinema pela Escola de Comunica-
ções e Artes da USP.

João Luiz Vieira é professor titular do Departamento de Cinema e Vídeo e do Programa de Pós-
-Graduação em Comunicação da UFF. Pesquisador, ensaísta, curador, conferencista e crítico, tem
oferecido diversos cursos nos últimos anos relacionados a mostras retrospectivas realizadas no
CCBB de São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro (John Ford, Yasujiro Ozu, Douglas Sirk, entre outros), e
participado das mostras de cinema de Tiradentes e Ouro Preto, com as quais colaborou nas home-
nagens recentes a Carlos Manga e Roberto Farias. No momento, realiza pesquisas sobre a chegada
do Cinerama no Brasil e o cinema de sensações do “realismo imersivo”.

Luiz Soares Júnior nasceu em Recife em 1976. É mestre em Filosofia - A Arte como Advento da Verda-
de em Heidegger - pela Universidade Federal de Pernambuco. Crítico de cinema e tradutor, escreve
para a revista Cinética e mantém um blog de traduções de crítica francesa de cinema: Dicionários de
cinema. Ministra cursos sobre cinema, como “Pasolini e o cinema da contaminação”, “O Fassbinder
maneirista: Mise-en-scène, fetiche e poder” e “O ponto de vista impossível no cinema: o morto, o
animal, o divino”. 

Mário Alves Coutinho (currículo em AUTORES)

AUTORES
Bruno Andrade é crítico de cinema e pesquisador. Foi redator da revista eletrônica Contracampo,
de 2002 a 2005, e colaborador da Revista Paisá e do jornal Correio Braziliense. Participou do conselho
executivo da revista eletrônica La Furia Umana. É fundador e editor da Foco - Revista de Cinema desde
abril de 2009.

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Carla Maia é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da FAFICH/UFMG.
Ensaísta e pesquisadora de cinema, atua também como curadora, professora e produtora. Já orga-
nizou diversas mostras de filmes e debates, entre elas, retrospectivas de Chantal Akerman, Pedro
Costa e Naomi Kawase. É diretora do documentário Roda, codirigido por Raquel Junqueira. Integra o
coletivo Filmes de Quintal, que realiza o forumdoc.bh: Festival do Filme Documentário e Etnográfico
de Belo Horizonte.

Fábio Andrade é crítico de cinema, roteirista, montador e músico; formado em Jornalismo e Cinema
pela PUC-Rio. É editor da revista Cinética e integrante fundador do Driving Music. Em cinema, realiza
trabalhos com diretores como Eryk Rocha, Bruno Safadi, Geraldo Sarno e Paula Gaitán. 

Filipe Furtado é redator da revista Cinética, ex-editor de Paisà, e mantém o blog Anotações de um
Cinéfilo (http://anotacoescinefilo.com).

Francis Vogner dos Reis é mestrando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA-USP. É crítico de
cinema, tendo colaborado com as revistas Cahiers du Cinéma España, Filme Cultura, Teorema, Miradas
del Cine (Cuba), La Furia Umana (Itália), revista Interlúdio, Foco - Revista de Cinema, e foi redator da
revista Cinética por cinco anos. Participou do júri do Festival Internacional de Curtas-Metragens de
São Paulo (2008) e dos júris da Crítica no Festival de Gramado (2010) e no Festival de Cinema Latino
Americano de São Paulo (2010). É curador da Mostra de Cinema de Tiradentes e roteirista do filme
Carisma Imbecil, de Sergio Bianchi (em finalização).

Heitor Capuzzo é professor titular da School of Art, Design and Media da NTU – Singapore. Foi, tam-
bém, professor da Escola de Belas Artes da UFMG e da State University of New York - University at
Buffalo. Doutor em Cinema pela Escola de Comunicações e Artes da USP, com pós-doutorado na
School of Cinematic Arts da USC – Los Angeles, onde atuou como professor visitante. Foi crítico de ci-
nema do Diário do Grande ABC. Publicou: Cinema – a aventura do sonho; O cinema além da imaginação;
Alfred Hitchcock: o cinema em construção; Lágrimas de luz; e organizou a coletânea O cinema segundo
a crítica paulista.

Jefferson Assunção é graduado em Cinema e Vídeo pelo Centro Universitário UNA. É pesquisador da
obra de John Ford e do gênero western. Atualmente é sócio da empresa Artesãos Tagarelas e crítico
de cinema dos blogs A Tela do Aventurar e O Formalismo, além de cineasta e poeta. Seu mais recente
curta-metragem, A Mortalha da Morte, foi selecionado para a 7ª Mostra de Cinema de Ouro Preto.
Atualmente está dirigindo um longa-metragem intitulado Resíduos da memória.

Marcelo Miranda é jornalista e crítico de cinema em Belo Horizonte. Foi repórter do jornal O Tem-
po entre 2006 e 2012. É coeditor da revista eletrônica de cinema Filmes Polvo e colaborador da Inter-
lúdio. Escreveu nas revistas impressas Teorema, Monet e Filme Cultura e nos jornais Estado de Minas,
Valor Econômico e Zero Hora. Foi membro da comissão de seleção do Festival Internacional de Curtas
de BH de 2007 a 2011, esteve na comissão de seleção de longas do 43º Festival de Brasília, em 2010, e
foi júri da mostra Aurora, na 16ª Mostra de Cinema de Tiradentes em 2013.

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Mário Alves Coutinho é doutor em literatura comparada (FALE/UFMG) e pós-doutor pelo Departa-
mento de Comunicação Social/UFMG. Livros publicados: Escrever com a câmera: a literatura cinema-
tográfica de Jean-Luc Godard; Tudo que vive é sagrado (tradução, poemas de William Blake e D. H. La-
wrence); Canções da inocência e da experiência (tradução, poemas de William Blake); O livro luminoso
da vida (tradução, ensaios literários de D. H. Lawrence); Godard, cinema, literatura. Organizou o livro:
Presença do CEC. Roteiros (já filmados): Idolatrada (longa-metragem, 1983); João Rosa (1981) e O Ho-
rizonte de JK (2002); roteiro/direção de ensaios sobre diretores/filmes para a Rede Minas - Programa
Cine Magazine.

Mateus Araújo é doutor em Filosofia pela Université de Paris I (Sorbonne) e pela UFMG; ensaísta,
tradutor e pós-doutorando em Cinema (ECA-USP / FAPESP). Publicou cerca de 50 ensaios sobre
filósofos, cineastas e pensadores do cinema. Foi curador, na França e no Brasil, de mostras e co-
lóquios sobre Glauber Rocha, Jean Rouch e Pierre Perrault. Organizou ou co-organizou os volumes
coletivos Glauber Rocha / Nelson Rodrigues (Magic Cinéma, 2005), Jean Rouch 2009: Retrospectivas e
Colóquios no Brasil (Balafon, 2010), Straub-Huillet (CCBB, 2012) e Charles Chaplin (Fundação Clóvis Sal-
gado, 2012). Traduziu Glauber na França (Le Siècle du Cinéma, 2006), onde viveu e trabalhou de 1998
a 2012, e uma série de autores franceses no Brasil. É um dos editores da revista Devires (Cinema e
Humanidades, UFMG).

Paulo Augusto Gomes é cineasta, roteirista, pesquisador e ensaísta. Realizou, entre outros, os lon-
gas-metragens Idolatrada e O Circo das Qualidades Humanas, e os curtas Minas Portuguesa e O Doce
Segredo de Bárbara. Publicou o livro Pioneiros do Cinema em Minas Gerais e possui capítulos em várias
antologias de cinema, algumas ainda inéditas.

Paulo Henrique Silva é diretor da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) e, desde
1995, escreve reportagens e críticas sobre cinema no jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte. Formado
em Jornalismo no Uni-BH e pós-graduado em Gestão Estratégica da Comunicação, pela PUC-MG, é
autor de um dos artigos do livro Os Filmes que Sonhamos, organizado por Frederico Machado.

Paulo Santos Lima é crítico de cinema e jornalista. Colaborador do jornal Valor Econômico e das revis-
tas Bravo! e Monet. Escreveu para a Folha de São Paulo e é redator fixo da revista Cinética. Ministrou
os cursos “Filmes de gângster - Dos anos 1930 aos anos 2000” (CCSP) e “Martin Scorsese - Da Nova
Hollywood à atual Hollywood” (Espaço Itaú de Cinema). Foi curador de mostras como O cinema fran-
cês pós-Nouvelle Vague e Do curta ao longa - A criação autoral no cinema paulista da retomada, todas
no CCBB do Rio de Janeiro e São Paulo.

Pedro Maciel Guimarães é pesquisador em História e Estética do Cinema e Audiovisual e crítico. Fez
mestrado e doutorado na Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3 e publicou o livro Créer ensemble:
la poétique de la collaboration dans le cinéma de Manoel de Oliveira (Editions Universitaires Européen-
nes-EUE, Sarrebruck - Alemanha, 2010). É autor de textos em todos os volumes da coleção Folha Cine
Europeu e curador e organizador do catálogo da mostra Douglas Sirk, o príncipe do melodrama.

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Rodrigo Fonseca é crítico de cinema e escritor. Formado pela UFRJ, trabalha desde 2005 como re-
pórter e crítico do Segundo Caderno do jornal O Globo, no qual mantém a coluna diária Filmes na TV.
Roteirista do programa Cone Sul, do Canal Brasil, é autor do romance Como era triste a chinesa de
Godard e dos livros Meu compadre cinema - Sonhos, saudades e sucessos de Nelson Pereira dos Santos
e Cinco mais cinco - Os melhores filmes brasileiros em bilheteria e crítica, este feito em parceria com
Carlos Diegues e Luiz Carlos Merten. É diretor do curta-metragem Corpo de Cristo, codirigido por
Arnaldo Bloch, e produtor do projeto LOGO +, para curtas digitais. 

Sérgio Alpendre é crítico de cinema, professor, pesquisador e jornalista. Atualmente colabora com o
UOL Cinema e com a Folha de São Paulo, é coordenador do Núcleo de História e Crítica da Escola Ins-
piratorium e edita a revista virtual Interlúdio. Ministra cursos de cinema e de crítica por todo o Brasil.
Fundou e editou a Revista Paisá (2005-2008). Foi redator da Contracampo, de 2000 a 2010. Curador das
mostras Retrospectiva do Cinema Paulista e Tarkovski e seus Herdeiros.

Thiago Stivaletti é jornalista e crítico de cinema, graduado em jornalismo pela ECA-USP e pós-gradu-
ado em Cinema e Sociedade pela Universidade de Nanterre (França). Cobre o Festival de Cannes para
o portal UOL e foi membro do comitê de seleção de filmes da 36ª Mostra Internacional de Cinema de
São Paulo. Mantém o blog Longos Planos (longosplanos.wordpress.com).

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agradecimentos
Andrew Youdell (BFI) • BH Video • Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFMG • Biblioteca
do Congresso Americano (Library of Congress) • BFI - British Film Institute • Carla Maia
• Carlos Alberto Mattos • César Guimarães • CTAV – Centro Técnico Audiovisual • Centro
Universitário UNA • Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema • Companhia das Letras •
Daniel Ribão • Eduardo Valente • Fundação Calouste Gulbenkian – Biblioteca de Arte • Giovana
Carvalho • Fundação de Parques Municipais/Prefeitura de Belo Horizonte • Helena Ignez •
Isadora Alba Veronezze Moniz Vianna • Jacques Rivette • Jean Douchet • Jean-Louis Comolli
• Joe Hunsberger (UCLA) • Jonathan Rosenbaum • José Ricardo da Costa Miranda Junior
• Juliana Ciccarini • Júlio Pessoa Nogueira • Lynanne Schweighofer (Library of Congress)
• Maria Chiaretti • Mark Spratt • Markus Wessolowski (Österreichisches Filmmuseum) •
Mateus Araújo • Mercúrio Produções • Pedro Costa • Peter Bogdanovich • Rob (Library
of Congress) • Steven K. Hill (UCLA) • Österreichisches Filmmuseum - The Austrian Film
Museum • Todd Wiener (UCLA) • UCLA Film & Television Archive • Véronique Manniez-Rivette.

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crÉDItoS
FUNDAÇÃO CLÓVIS SALGADO

HOWARD HAWKS INTEGRAL CATÁLOGO HOWARD HAWKS INTEGRAL


CURADOR ORGANIZADOR
Rafael Ciccarini Rafael Ciccarini
PESQUISA & PRODUÇÃO DE CÓPIAS REVISÃO
Fábio Savino (Bubbles Project) Trema Textos
TRADUÇÃO E LEGENDAS TRADUÇÃO DE TEXTOS
Alexandre Souto Íris Araújo
Luciana Tanure
CÓPIAS DOS ACERVOS
Maria Chiaretti
Österreichisches Filmmuseum - The Aus-
Mateus Araújo
trian Film Museum
BFI – British Film Institut CESSÃO DE TEXTOS
Chapel Distribution Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema
Classic Films Companhia das Letras
Library of Congress Fundação Calouste Gulbenkian – Biblioteca
Park Circus de Arte
Theatre du Temple Helena Ignez
UCLA Film & Television Archive Isadora Alba Veronezze Moniz Vianna
Jacques Rivette
PROJEÇÃO
Jean Douchet
Mercídio Alvinho Scarpelli
Jean-Louis Comolli
Rufino Gomes Araújo
Jonathan Rosenbaum
IMAGENS Mercúrio Produções
Divulgação Pedro Costa
Peter Bogdanovich
VINHETA
Véronique Manniez-Rivette
Bruno Rocha
PRODUÇÃO EDITORIAL
Alexandra Duarte
Bruno Hilário
Luciana Eastwood Romagnolli
Ursula Rösele

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FUNDAÇÃO CLÓVIS SALGADO

GERÊNCIA DE CINEMA ASSESSORIA DE IMPRENSA NACIONAL


HOWARD HAWKS INTEGRAL
GERENTE
Marcelo Miranda
Rafael Ciccarini
PUBLICIDADE
ASSESSORA
Larissa Batista
Ursula Rösele
Samanta Coan
ASSISTENTE Bruno Mourão
Alexandra Duarte Ricardo Teixeira (estagiário)
PRODUÇÃO IDENTIDADE VISUAL E DESIGN GRÁFICO
Luciana Eastwood Romagnolli HOWARD HAWKS INTEGRAL
Ana C. Bahia
ASSISTENTE DE PRODUÇÃO
Bruno Hilário RELAÇÕES PÚBLICAS
Sílvia Michelle de Avelar Bastos Barbosa
EQUIPE TÉCNICA
Andyara Almeida (estagiária)
Mercídio Alvinho Scarpelli
Milton Célio Rodrigues ASSISTENTE DE COMUNICAÇÃO
Rufino Gomes Araújo Thiago Amador
AUXILIAR DE SERVIÇOS ADMINISTRATIVOS REVISÃO EDITORIAL
Creuma Damasio Maria Eliana Goulart
Roseli Pessoa Miranda
FOTOGRAFIA
ESTAGIÁRIO Paulo Lacerda
Marco Antônio Pereira
SECRETÁRIA
Mônica Pereira
ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
APOIO ADMINISTRATIVO
ASSESSORA-CHEFE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL Pâmela Camilo
Paula Senna
ASSESSORIA DE IMPRENSA E WEBSITE
Gustavo Monteiro
Maíra Bueno
André Campos
Gabriela Rosa
Gabriel Pinheiro (estagiário)
Patrícia Henrique (estagiária)

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GOVERNADOR DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Antônio Augusto Junho Anastasia
VICE-GOVERNADOR DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Alberto Pinto Coelho
SECRETÁRIA DE ESTADO DE CULTURA DE MINAS GERAIS
Eliane Parreiras
SECRETÁRIA ADJUNTA DE ESTADO DE CULTURA DE MINAS GERAIS
Maria Olívia de Castro e Oliveira

FUNDAÇÃO CLÓVIS SALGADO


PRESIDENTE
Solanda Steckelberg
VICE-PRESIDENTE
Bernardo Rocha Correia
DIRETORA ARTÍSTICA
Edilane Carneiro
DIRETORA DE ENSINO & EXTENSÃO
Patrícia Avellar Zol
DIRETORA DE MARKETING, INTERCÂMBIO & PROJETOS ESPECIAIS
Cláudia Garcia Elias
DIRETORA DE PLANEJAMENTO, GESTÃO & FINANÇAS
Luiz Guilherme Melo Brandão
DIRETORA DE PROGRAMAÇÃO
Sandra Fagundes Campos

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ITINERÂNCIA HOWARD HAWKS SÃO PAULO

Prefeitura de São Paulo Coordenação Técnica de Projetos


Fernando Haddad Priscilla Maranhão e equipe
Secretaria de Cultura  
Juca Ferreira
Mostra Howard Hawks
Curador de Audiovisual CCSP
Centro Cultural São Paulo Célio Franceschet
Direção Geral Curadora Associada
Ricardo Resende Letícia Santinon
Projeto Gráfico
Divisão Administrativa
Helio Valeiro
Gilberto Labor e equipe

Divisão de Curadoria e Programação


Assessoria de Imprensa do
Giuliano Tierno de Siqueira e equipe
Centro Cultural São Paulo
Juliana Lazarim
Divisão de Acervo, Documentação e
Conservação Nelson de Souza Lima
Heloisa M. P. de Abreu Meirelles e equipe Zaira Hayek
Alvaro Olyntho (estagiário)
Divisão de Bibliotecas
Waltemir Jango Belli Nalles e equipe
Enquadramento Produções
Divisão de Produção e Apoio a Eventos produção executiva
Luciana Mantovani e equipe Leonardo Mecchi
produção local
Divisão de Informação e Comunicação Lara Lima
Gustavo Wanderley e equipe

Divisão de Ação Cultural e Educativa


Giuliano Tierno de Siqueira e equipe

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