Você está na página 1de 5

CORONAVIRUS E O DIREITO DE FAMÍLIA

Júlio César Ballerini Silva, Advogado, Professor, Magistrado Aposentado, Mestre em


Processo Civil e Especialista em Direito Privado.

Na minha série de artigos sobre os impactos que a


pandemia tem causado nos mais variados âmbitos do direito, não poderia me furtar
de analisar certos aspectos da questão no que tange às relações familiares. Isso
porque, em jogo, situações de recomendação de isolamento social compulsório -
inclusive, em alguns casos, como fato de príncipe (tenho até receio de me manifestar
sobre o mérito disso pois outro dia ao me referir sobre a cautela que se deveria ter
com tais questões - fui acusado de ser um terraplanista - nada contra, nem a favor,
mas o risco de ser estereotipado hoje em dia, por fas ou por nefas é muito grande).

Não pretendo causar comoção, nem tampouco


convulsionar os ânimos de quem quer que seja, minha intenção, como professor, ex
magistrado e agora advogado é a de fomentar diálogos dos quais se possa extrair
algum tipo de proveito para o avanço das ciências jurídicas de que somos bacharéis.

No âmbito familiar a primeira questão óbvia a


saltar os olhos, seria no sentido da extensão do direito de visitação de menores sob
regime de morada de outro cônjuge (e a agora refinadíssima questão da custódia
dos seres senscientes em casos de separação ou divórcio).

No caso dos animais de estimação ainda não se


aprovou a lei, mas a jurisprudência já está sacramentando a ideia da família
multiespécie, ou seja, a partir do momento em que se formarem vínculos de
afetividade entre animais e seus donos, os mesmos (que ainda não são seres
senscientes por mera tecnicalidade - a lei aprovada no Senado, retirando os animais
da categoria dos bens, elevando-os à categoria diversa, deve voltar à Câmara antes
de ser sancionada por ter sofrido alterações).

No caso dos filhos ou pessoas menores de idade


(parentesco socioafetivo, por exemplo) a questão se acha bem tratada nos termos da
lei. Mas em que a pandemia irá afetar tudo isso ?
Pelo óbvio que em tempos de coronavírus,
sobretudo em lares em que se conviva com pessoas idosas (avós por exemplo), não
parece razoável que as visitas sejam realizadas na mesma periodicidade como
vinham sendo, até porque, nos Estados em que se impôs o toque de recolher e há o
clima alarmista de viaturas policiais recomendando que a população fique em casa
(vi isso com meus olhos em Poços de Caldas - MG E NÃO ME CONSIDERO UM
TERRAPLANISTA, NEM TAMPOUCO ACHO QUE SE CUIDE DE UMA
GRIPEZINHA - MAS HÁ MUITO ESPAÇO ENTRE UMA GRITARIA E OUTRA) tem-
se que as próprias opções de lazer (parques, shoppings centers etc) se encontram
fechadas ao público.

Não se está dizendo que visitas devam ser


interrompidas de hora para outra - sobretudo porque crianças dependem de convívio
equilibrado com seus genitores (e pessoas em fase de separação podem usar
animais de estimação como poderosas muletas emocionais para saírem de crises),
mas se recomenda prudência e cautela - analisando-se caso a caso - e aí vai-se
uma exortação a meus colegas advogados - primemos pela mediação para não
assoberbarmos o Poder Judiciário que já estará atulhado com revisões contratuais e
pedidos de falência e recuperação judiciais - infelizmente.

Talvez seja prudente que se permita ao pai que


fica normalmente um dia com a criança, que fique, numa semana, com ela três ou
quatro dias, mas que demore depois uns quinze dias para pegá-la novamente - isso
evitará com que ambos saiam às ruas perambulem e se exponham.

De igual modo, não se pode esquecer de que


crianças, adolescentes e sobretudo os idosos (sempre esquecidos) tem direito à
convivência familiar (artigos 227 e 229 CF), sendo certo que situações de abandono
e falta de interesse pelos mesmos levam á indenizações (abandono afetivo direto e
inverso pela incidência da teoria do desamor).

Em tempos de quarentena e isolamento,


procuremos trazer os idosos e vulneráveis para mais perto de nós, isso, antes de um
dever legal, implica em evidente dever moral (aqui o jus equivaleria ao fas do direito
quiritário romano - jus quiritum), não nos desatentemos da necessidade de que não
os deixemos sós e isolados neste momento delicado (no caso dos idosos porque são
grupos de risco e de grande vulnerabilidade neste momento).

Experiências positivas da Ordem Demolay (da qual


meu filho faz parte, para meu orgulho) tem designado jovens voluntários para
fazerem tarefas para pessoas idosas não terem que sair de casa nesse momento,
disponibilizando número de whatsapp para tais tarefas (exemplo que dá muito certo
em Comarcas menores).

Entre cônjuges e companheiros tem0s o dever


legal de mútua assistência que abrange deveres de cuidado em tempos como estes,
sobretudo no que tange à necessidade de cuidar daqueles que vivem conosco em
comunhão plena de vida (artigo 1.513 CC um dos pilares da família matrimonial). Se
um dos dois cair doente, o outro deverá se portar ao lado para auxiliá-lo e dar
conforto em horas como estas - é bom que isso seja lembrado.
Ainda nesta seara, temos os impactos que esta
crise trará nos encargos alimentares sobretudo quando os beneficiários forem
pessoas maiores e capazes como se dá, por exemplo, nos chamados alimentos
transitórios - aqueles alimentos temporários que se fixam para o padrão de vida de
um dos cônjuges se ajuste à nova realidade.

Isso porque, nesta pandemia, e já tenho notícias


de muitas pessoas de meu convívio - grande número de contratos tem sido desfeito
e cogitações de demissões tem sido suscitadas (se fruto de uma crise bem
orquestrada e planejada ou se houve má gestão da situação isso é outra questão -
não sou terraplanista insisto discuto o problema em outro artigo de minha autoria
disponível aqui no Jusbrasil), fato é que não parece haver garantias de mantença de
padrão de vida para ninguém (até o próprio funcionalismo público pode vir a sofrer
efeitos daninhos em Estados e Municípios em crise).

Nesse cenário, alimentos transitórios devem ser


revistos, se os fatores que levaram à sua criação e fixação houverem sido alterados.
Observe-se que a regra geral hoje prevalente no bojo das relações familiares é no
sentido de que ambos tenham plena disponibilidade e aptidão para o trabalho após a
separação ou o divórcio - de modo que algumas distorções levam à essa fixação
provisória de alimentos transitórios para uma fase de adaptação tão só (isso não
confunde, por exemplo, com situações em que as pensões entre cônjuges serão
fixadas até o fim da vida pela inaptidão completa para o trabalho).

Se o alimentante, no entanto, quando a fixação


ocorreu e transitou em julgado tinha justas expectativas de renda em alguns milhares
de reais e tais expectativas se reduzem drasticamente pelas opções do Poder
Público em manter a economia estagnada, sobretudo em Estados estratégicos para
o país (há notícias de que no dia de hoje - 31 de março se distribuiu uma ação
popular contra o governo do Estado de SP para auditar esta paralisação - proc. nº
10172108720208260053 que tramita na 5a Vara da Fazenda Pública do Foro Central
da Comarca da Capital) nada mais óbvio do que concluir no sentido de que as justas
expectativas de mantença de um padrão de vida não mais se justificariam.

A questão tomará contornos ainda mais graves no


caso dos encargos alimentares que envolvam o dever de sustento (caso de menores
de 18 anos como beneficiários da pensão) eis que estes, por dispositivo de vocação
constitucional são proibidos de trabalhar para manter o próprio sustento, mas em
havendo provas contundentes no sentido de que o alimentante experimentou
diretamente os efeitos da diminuição de sua capacidade econômica os números do
setor de vestuário, por exemplo, são alarmantes nesta quinzena (empresários deste
ramo estão sendo muito prejudicados pelas opções governamentais), pelo óbvio que
não conseguirão uma moratória mas pareceria draconiano que fossem enviados ao
cárcere como forma de coerção em casos como tal, eis que não haveria que se falar
em inadimplemento voluntário de encargo alimentar numa situação como esta.

Como venho apontando em outros textos sobre o


tema, se fazem presentes os requisitos clássicos da chamada teoria da imprevisão,
para o homem médio, se tem que a pandemia seria fato novo imprevisível e
inevitável, não gerado por ele e que desequilibra de modo trágico as equações
financeiras e o equilíbrio, por vezes tênue, que se estabeleceu em torno delas - isso
é a mola mestra por trás do desencadeamento das chamadas tutelas constitutivas
estimatórias ou seja, ações revisionais - haverá verdadeiro boom em questão de dias
por mais que otimistas vaticinem em contrário e asseverem que a MP  881 convertida
na Lei n 13.874 de 2019 tenha tornado a revisão dos pactos em uma exceção pela
atual redação do artigo 421 CC (e os encargos alimentares, em boa medida são
fixados por pactos, como igualmente são fixados por pactos os regimes de visita e
compartilhamento de guardas - tudo isso hoje em xeque e passível de revisão).

Convém que se tentem negociações para


reduções de tais encargos, até porque, muitas vezes, o outro cônjuge também pode
estar atravessando os mesmos problemas, na mesma dimensão e despesas como
plano de saúde e mensalidade escolar não param de chegar. Insisto, advogados,
nestes tempos, terão que se portar, como diria Pontes de Miranda, não como
advogados, mas como sociólogos, enfrentando problemas sociais e visando antes de
mais nada a conciliação eis que a maquina estatal aparentemente por maiores que
sejam os esforços de seus operadores não dará conta do recado, não com a
agilidade que a crise exigirá.

Você também pode gostar