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Sobre a natureza dos sonhos monstruosos

(República, IX, 571a-572b)

- Resta-nos, portanto, analisar o homem tirânico, - Mas, em meu entender, quando uma pessoa,
como se transforma a partir do democrático, e, possuidora de saúde e de temperança, só se
uma vez originado, qual é o seu carácter, e que entrega ao sono depois de ter despertado o seu
espécie de vida leva, se desgraçada ou feliz. raciocínio e de o ter banqueteado com belos
pensamentos e especulações, entregando-se à
-Efectivamente é esse o que ainda nos resta
meditação interior, pondo de lado o desejo, sem
analisar.
ser por carência nem por excesso, a fim de ele
- Mas sabes - perguntei eu -o que ainda me falta? adormecer e não causar perturbações, pela sua
alegria ou pela sua tristeza, à parte melhor, e a
-O que é? deixa só, pura e independente, para observar e
- O que se refere aos desejos, sua qualidade e ansiar por perceber aquilo que ignora, do passado,
número, é assunto que me parece que não do presente ou do futuro; quando, da mesma
dilucidámos suficientemente. Faltando-nos isso, a maneira, depois de amansar o elemento irascível,
investigação a que nos abalançámos será menos e, sem se irritar com ninguém, adormecer com um
clara. coração não agitado, mas depois de ter
tranquilizado estas duas partes da alma, e de ter
-Já não virá a propósito fazê-lo? posto em movimento a terceira, na qual reside a
- Vem perfeitamente. Ora repara naquilo que eu reflexão, assim se entregar ao descanso, sabes
quero ver neles. É o seguinte: de entre os prazeres bem que é nessas condições sobretudo que se
e desejos não-necessários, há alguns que me atinge a verdade, e que aparecem menos as visões
parecem ilegítimos, que provavelmente são inatos anómalas dos sonhos.
em toda a gente, mas, se forem castigados pelas - É inteiramente assim que eu penso.
leis e pelos desejos melhores, com o auxílio da
razão, em alguns homens, ou se dá a libertação - Deixámo-nos levar, contudo, longe de mais, ao
total deles ou os que restam são poucos e débeis; tratar deste assunto. O que queremos saber é o
ao passo que em outros se tornam mais fortes e seguinte: que existe em cada um de nós uma
mais numerosos. espécie de desejos terrível, selvagem e sem leis,
mesmo nos poucos de entre nós que parecem ser
- Mas de que desejos é que estás a falar? comedidos. É nos sonhos que o facto se torna
- Daqueles que despertam durante o sono, sempre evidente. Vê lá tu se estou a dizer bem, e se
que dorme a parte da alma que é dotada de razão, concordas.
cordata e senhora da outra, e quando a parte
animal e selvagem, saciada de comida e de bebida,
se agita, repudia o sono e procura avançar e
satisfazer os seus gostos. Sabes que nessas
condições ela ousa fazer tudo, como se estivesse
livre e forra de toda a vergonha e reflexão. Não
hesita, no seu pensamento, em tentar unir-se à
própria mãe ou a qualquer homem, deus ou
animal, em cometer qualquer assassínio, nem em
se abster de alimento de espécie alguma. Numa
palavra, não há insensatez nem impudor que ela
passe adiante.
- Exactamente.

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