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Belo Horizonte, Dezembro de 2019

Informe especial Latinoamérica


“La grieta de la Pátria Grande”

10

Marcilio Rosa
Conversamos com o cantor e
instrumentista sobre o desafio de
lançar uma carreira solo;

02
Que Morram os Artistas
Entrevista com Ione Medeiros,
diretora do grupo Oficcina Multi-
media, sobre a relação entre arte
e sociedade;
08
Rômulo Avelar
O principal multiplicador da Gestão
Cultural de Belo Horizonte dará alguns
conselhos para aqueles que querem ex-
perimentar a aventura de viver de arte.

17

N.1
O CÃO
por Altamides Jardim

Quem quiser uivar que uive


sem cobrar testemunhas
do seu cão
como parente da lua:
a lua está em todas as partes.

Uive quem quiser,


mas deixe ao cão
Seu instinto visionário
De impactar a lua com seu pranto.

Uive sem reparos,


sem fechamento de orelhas,
no fundo de si próprio,
em pernas de pau de agonia,
e deixe o cão
enrolado na sua infidelidade
perseguindo a lebre do seus sonhos.

A lua virá até ele,


Quando ele a precisar.

Altamides Jardim (1903-1995) nasceu em 24 de dezembro, próximo ao povoado de “Cabellos”, hoje “Baltasar Brum”
(Artigas- Uruguai). Foi escritor, poeta e professor de literatura. Morou em Salto, Uruguai, em 1934. Sempre partici-
pou ativamente dos movimentos culturais, sendo encarregado da filial da AIAPE (Agrupação de Intelectuais, Artistas,
Profissionais e Escritores, em tradução livre), que depois se tornou a Associação Cultural Horacio Quiroga.

Contra Capa
N.2
Editorial
“É possível viver de Arte”
por Germán Milich Escanellas te - é necessário empobrecer as sociedades, querer trabalhar para os poderosos?
torná-las alcoólatras e, principalmente, en- Todos vão perceber que merecem
tretê-las.
O
algo melhor, um melhor trabalho, um
i. Tudo bem? Se você está lendo esta melhor salário, uma vida com mais
revista é altamente provável que seja qualidade.
artista ou que goste de arte e intua que seja O grande problema dos poderosos é que de-
algo que represente muito mais do que mero pendem dos trabalhadores para se enrique-
entretenimento. Mas, ao mesmo tempo, cerem. Por isso essa raiva toda. No fundo, Portanto, os empresários vão tentar nos ti-
aceita a tese oficial de que é impossível vi- detestam depender dos trabalhadores. rar os meios que nos ajudam a perceber que
ver de arte. Sabe por quê? Porque esse é o podemos aspirar a mais. Vão nos doutrinar
plano. dizendo que trabalhar 10 horas por dia ga-
Dependem porque não gostam de executar
nhando um salário mínimo num ambiente
determinadas tarefas. Daí a importância da
opressor e machista é ser um vencedor.
Eu também tenho a minha teoria da cons- mão de obra sem pensamento crítico: para
piração. Eu acho que o projeto de poder que ela conte seu dinheiro, cuide de seus fi-
tem como prioridade que pensemos lhos, lave suas privadas, para que ela prepare Por esses motivos o projeto é que a ARTE
que não é possível viver de arte. Que e sirva suas refeições, para que produza sua não seja democratizada. Por isso se
sermos fadados a ter uma economia pre- riqueza e faça prosperar seus negócios. Para premia com fama e dinheiro a quem é fun-
cária, num entorno social que não percebe que ela seja o suporte de sua qualidade de cional. Por essa razão se reafirma constan-
nossa utilidade é o castigo reservado aos vida. temente o paradigma de que não é possível
artistas por querer, obstinadamente, sermos viver de arte e, do mesmo modo, para que
livres. os jovens que estão pensando em se torna-
É mentira que a gente não quer trabalhar.
rem artistas profissionais desistam ou, caso
Nós queremos trabalhos qualificados.
continuem, pelo menos que se insiram no
A arte é por natureza contrária ao pa- Queremos ser muito mais do que apenas
aparelho oficial de comunicação e abando-
triarcado. A arte aperfeiçoa nosso pensa- empregados dos poderosos. E a ARTE nos
nem as suas ideias.
mento, qualifica nossa índole, amplia nos- permite interpretar o mundo no qual esta-
sos horizontes e, também, (isso é o que não mos inseridos e tomar decisões melhores
querem que percebamos) aumenta nosso sobre nosso destino. Mas nós continuamos. Seguimos escreven-
valor de mercado. do nossos poemas, tocando violão e en-
saiando peças de teatro. Você está lendo essa
O glamuroso establishment - para se
revista, porque nós não queremos trabalhar
Para que o patriarca possa te oprimir é pre- manter - necessita de trabalhadores que:
para eles - de jeito nenhum - e temos a cer-
ciso que você seja pobre. A América Latina é teza de que SIM! É POSSÍVEL VIVER DE
famosa por suas riquezas e por sua tragédia.
• aceitem sua posição como se fosse ARTE!
São elas que sustentam as ínfulas europeias
a ordem natural das coisas;
há vários séculos. Ouro, prata, pedras pre-
• não tenham uma vida própria.
ciosas, ÁGUA, oxigênio, lítio, clima tropi- A Imensa Minoria
cal para a agricultura extensiva, MÃO DE
OBRA e mercados populosos. Por isso eles não querem que a ARTE che- Editor responsável:
gue a todos. Para eles, quanto menos arte Germán Milich Escanellas
melhor. A arte é um privilégio de classe. Jornalista revisor:
Para que todo esse vasto território continue
exportando matéria prima e importando Cirdes Lopes
valor agregado - ou seja, para que o padrão Se os artistas começarem a prospe- Designer:
colonial de comportamento continue vigen- rar e a produzir mais arte, quem vai Thiago Moreira Faria.

Leia:

contra O Cão 08 “Que morram os artistas”


2 Marcílio Rosa Entrevista com Ione Medeiros.
Um Pedaço de Paz. 10 “La Grieta de la Patria Grande”
4 SINDMUSI MG Informe especial Latinoamérica.
Queremos mais que Sobrevivência! 17 É possível viver de arte
6 Literatura Entrevista com Romulo Avelar.
Três textos de Ricardo Luiz. 21 Placa Marielle Franco
N.3
Marcílio Rosa
Um Pedaço de Paz
Marcílio Rosa lançou no dia 22 de novembro, no Cine Theatro Brasil,
seu primeiro álbum solo “Um pedaço de paz”. Perguntamos sobre o iní-
cio de sua carreira e como ele faz para viver de arte.

AIM - O que o levou a pensar que ser fingido. Se uma pessoa não é po-
cantar poderia ser uma profis- Como artista empreendedor eu tenho litizada e pega uma bandeira para au-
são? um pouco mais de controle sobre a mentar suas vendas, ou o contrário, é
geração do meu trabalho e ao mesmo muito politizada e tem que calar para
Marcílio - A primeira vez tempo vou aumentando minha rede não perder seu público, aí com certeza
que pensei em viver de arte foi como de trabalho. Precisamos equipes de se produz algo inorgânico.
músico, então eu resolvi estudar o má- trabalho além da parte criativa, venda,
ximo possível para aumentar as chan- produção, marketing, divulgação, cap- O artista também tem que ter cuida-
ces. Coloquei na equação econômica tação de sponsors, etc. do se for se posicionar, pois é uma
o fator da vocação, trabalhar naquilo pessoa pública. Pesquisar antes de se
que você ama faz mais prazerosa a jor- Mas, além disso, o ponto mais impor- posicionar. Hoje existem muitas “fake
nada e aumenta as chances de sucesso. tante, é a missão do artista de levar news”. Acho que aí a responsabilidade
arte para as pessoas, independente de e a sabedoria são fundamentais para
Quando comecei a ser contratado ser eu sozinho, ou com uma banda me contornar esses obstáculos.
para tocar com bandas já consegui en- acompanhando, ou até com outros ar-
xergar uma forma de trabalhar como tistas. Na carreira solo consigo exercer A verdade é o caminho. A minha mis-
músico. E agora depois de um tempo minha missão independente de qual- são é inspirar pessoas, sensibilizar. Eu
trabalhando como freelancer que toca quer coisa ou pessoa. sou cristão e Cristo tem um olhar po-
com outros músicos, resolvi lançar lítico e muito sensível.
minha carreira solo. AIM - O que você acha mais im-
portante em um artista: posicio- AIM - Qual é sua estratégia, seu
Isso tem vantagens e desvantagens. namento ou qualidade? modelo de negócio para ter uma
Como “músico freelancer”, por exem- renda e poder viver da arte?
plo, você tem o cachê garantido, mas Marcílio - O artista sempre
se você é “músico empreendedor” tan- se posiciona e sempre procura a quali- Marcílio - Como já disse
to pode ganhar como perder dinheiro. dade. Essa diferenciação entre posição antes, minha principal estratégia foi
Isso é um risco maior, mas também e qualidade existe só entre quem não estudar o máximo possível, ser bom
uma chance de crescer economica- trabalha com arte. É mais uma de- no que eu faço, se poderia dizer que
mente. manda do espectador. Talvez quando é algo assim como ser a solução de
se fala de posicionamento na verda- quem precisa de um músico. É impor-
Eu dependia de outros para poder to- de é uma pressão para que um artista tante dedicar muito tempo ao estudo e
car, dependia que outros aprovassem tome a posição que o público quer. a qualificação. A segunda foi estudar
projetos, que vendessem, ou seja, que gestão cultural para aprender a gerir
tivessem a condição de me contratar. A conjunção de posicionamento e minha carreira.
Isso não era bom, pois ficava sem tra- qualidade chama-se VERDADE. O
balho em algumas épocas do ano e artista tem que ser verdadeiro e se Sobre minha estratégia na carreira
sem ter o que fazer. comportar como ele é. Só não pode solo, seriam 3 pilares: o primeiro é
Marcílio Rosa. Foto de Felipe Fantoni.

a sustentabilidade. Eu preciso tra- e vende o ingresso. Não podemos só ra, aproveitar as oportunidades e criar
balhar com um nível de investimento divulgar que vai ter o show, temos que harmonia entre a técnica e as nossas
coerente com a minha realidade e re- vender os ingressos. Eu acho que isso necessidades.
ceber algum cachê nos shows que eu pode ser o ponto mais diferencial para
fizer para que possa tentar equilibrar uma carreira sustentável, uma “atitude A própria realidade cria um contex-
ao máximo. de venda”. to filosófico, pois a filosofia é a ferra-
menta para interpretar a realidade e os
Sempre vi muitos artistas fazendo AIM - Você acha que influencia artistas participam disso muitas vezes
shows em que só pagavam os músicos na sua composição a necessida- de forma inconsciente, eles sentem
e não recebiam nada. E logo, logo, eles de de agradar ao público? as reverberações daquele contexto. O
paravam de fazer shows e arrumavam mercado também vai influenciar. Sin-
outro trabalho, desvinculado a sua Marcílio - Eu acho que o ar- to que se fala mais de mercado e de
carreira. É claro que em momentos tista tem que ser verdadeiro, fazer o arte, mas que a filosofia tem um papel
estratégicos é importante fazer shows que ele gosta e o que ele acredita. Ao determinante, inclusive para desen-
de investimento, shows com real po- mesmo tempo, tem que ser inteligen- volver melhor as vendas.
tencial de visibilidade e de alavancar te. Testar os momentos do show, testar
sua carreira. Fazer shows com a ban- os vários elementos da sua arte e ver o Seja o que for, a medida que mais vive-
da reduzida, de forma que eu receba que seu público gosta mais. Tudo que mos da arte mais necessário torna-se
algum cachê, ou até fazer shows sozi- eu faço eu gosto, mas nem tudo que eu o aprofundamento nestes temas para
nho, também é sustentabilidade. Ter faço o público gosta tanto. Então vou enriquecer nosso ciclo produtivo.
um show que seja fácil de vender e direcionar e filtrar tudo que eu gosto
gerar renda. de fazer, de tocar, e selecionar aquelas AIM - E o que vem depois do lan-
que o público respondeu melhor. Mas çamento?
Outro pilar é o marketing digi- sempre dentro da minha arte e da for-
tal. Estou estudando e investindo no ma que eu acredito. Marcílio - Depois do lan-
marketing digital e acredito que hoje çamento vem a agenda, começar a
seja a forma mais acessível de desco- AIM - Arte, mercado e filosofia programar toques e paralelamente
brir quem é seu público, de se intera- têm alguma relação determinan- cultivar o hábito de encontros com
gir com o público, criar o relaciona- te ou são coisas diferentes que compositores e artistas para ter pre-
mento e concretizar a venda. não se misturam? sença. Estou pensando também em
incursionar nos conteúdos digitais,
E o terceiro é uma real atuação É uma pergunta difícil, mas faz sen- enfim tenho muitas ideias. Mas agora
nas vendas, venda do show, ou, se tido. A Arte é a técnica, a qualidade. o foco é o show, um passo de cada vez.
você promove o show, a venda dos in- O Mercado é a subsistência material,
gressos. Eu acho que não pode só di- é onde trocamos nosso serviço pelas
vulgar, tem que vender, vender o show coisas que necessitamos e a Filosofia é
ou se não, inventa o show (promove) a sabedoria a forma de levar a carrei-

N.3
SINDMUSI MG
Queremos mais que
Sobrevivência!
por Gilberto Mauro e Antônio Viola.

continua deslumbrante nes- de autônomo. E como se não


te país. Sua maior expressão bastasse, os Sindicatos, repre-
artística. Alguém tem dúvida sentantes legais da organiza-
quanto a isso? Creio que não. ção coletiva, foram duramen-
E é aí que sentimos o te atingidos economicamente
vazio, surdo silêncio. Onde com o fim do Imposto Sindical,
está aquele primor? Aquele através do qual os trabalhado-
esplendor? Ora, está aí. Onde? res colaboravam com um dia
Aí em baixo. Oprimido. De de salário por ano.
certa forma, nunca deixou Os músicos já vivem
E a música? de estar. Toda arte é política. uma realidade de extrema
A música vai mui- Mesmo indiretamente. Ela é precarização nas relações de
to bem obrigado. Essa reflexo e proposta. Em épo- trabalho. Poucos somos os
arte ampla, generosa. Arte ca do imenso esforço dessas que têm emprego fixo. Essa
imprescindível na engrena- forças do capital lutarem para nova realidade nos leva, por-
gem do sistema de consumo. que expressão cultural forma- tanto, para a precarização da
Cultura dilacerada. Alguns dora de opinião seja calada, precarização. Por outro lado,
passam no crivo do padrão de ela está bem viva. Mas sobre- é justamente diante desse
plástico, marcas de cerveja e vivendo precariamente. O quadro nada favorável que
letargia, muito bem acabados RAP é a maior dicotomia desta se torna mais importante a
em produto de normatização, sistêmica. Viva o RAP. O que união de esforços para con-
lodaçal movediço midiático, os alemães iriam dizer sobre quistarmos uma rede de pro-
mortífero. Disso, atolados até este mercado cultural se vis- teção e solidariedade.
o pescoço. sem isso? Não faço a menor Aqui, no nosso sindi-
Mas muita falta de ideia. cato, lutamos por assistência
entendimento colocar eles A bem da verdade, pre- jurídico-trabalhista, convê-
como alvo. Não sou crítico cisamos falar do trabalho. Na nios médicos, entre outros e
musical e nem quero ser. O música está o grande proleta- estabelecemos uma tabela de
alvo é outro. O alvo é a máqui- riado da arte. O músico não preços por serviço que seja ao
na. Sempre foi ela. Sim. Tudo vive de vento, mesmo que seja mesmo tempo minimamente
é fenômeno social. A arte flautista. Mesmo que a maio- justa e realista. Uma luta pelo
também. Isso se chama poé- ria dos músicos sejam profis- couvert-artístico revertido
tica. Mas o culto da não-cultu- sionais liberais, somos todos integralmente para os músi-
ra, da não educação, da explo- vítimas de uma reforma tra- cos, políticas de valorização
ração da ignorância reflete a balhista que, ao contrário do de nossa atividade em todas
qualidade artística. Dentro, que se apregoava, trouxe mais as suas vertentes, são con-
ao lado, desta máquina de desemprego. quistas possíveis. Mas para
triturar midiática, a música, Tudo isso ao custo de isso faz-se necessária uma
o trabalhador dela. Digno, precarização nas relações de campanha de sindicalização
como sempre foi. trabalho, tendo sido a classe massiva, que abranja também
E a música? Ela vai trabalhadora perversamente o interior do estado, tão esque-
bem. Muito bem, obrigado! penalizada com a perda de cido pelas gestões anteriores.
Não que a MPB irá revelar direitos e garantias. E agora, Sendo muitos seremos fortes!
novos ícones. Não. Não se já perdemos de vista a possibi-
trata disso. E nem falar dis- lidade de conseguir aposentar,
so agora. A produção musical mesmo pagando nossas guias

N.4
Decálogo do Perfeito Contista
por Horacio Quiroga
I VII
Segue um mestre para aprender a falar Não adjetives sem necessidade. Inúteis
com Deus. serão quantos enfeites coloridos aderi-
res a um substantivo fraco. Se encon-
II trares o perfeito, somente ele terá uma
Crê que tua arte é um cume inacessível, cor incomparável. Mas é preciso en-
nem sonhes com dominá-la. Isso será contrá-lo.
algo que conseguirás sem sequer per-
ceber. VIII
Toma teus personagens pela mão e le-
III va-os firmemente até o fim, sem ver
Resiste o quanto puderes à imitação, nada além do caminho que traçastes
mas se a tentação for demasiado forte para eles. Não te distraias vendo o que
imita sem remorso. O desenvolvimento a eles não importa ver. Não abuses do
da personalidade, mais que nenhuma leitor. Um conto é um romance sem
outra coisa, requer muita paciência. roupa nem maquiagem. Tenha isso
como uma verdade absoluta, ainda que
IV não o seja.
Não deves ter fé cega na tua capacidade
para o triunfo, mas na força com que IX
o desejas. Ama tua arte com todo o teu Nunca escrevas sob o império da emo-
coração. ção. Deixa ela te consumir primeiro e,
depois, tenta recuperá-la. Se fores ca-
V paz de revivê-la, terás alcançado a me-
Não comeces a escrever sem saber des- tade do caminho.
de a primeira palavra aonde queres
chegar. Num conto bem-feito, as três X
primeiras linhas têm a mesma impor- Não lembres de teus amigos ao escrever,
tância das três últimas. nem imagines a impressão que causará
tua história. Escreve como se teu rela-
VI to não interessasse a mais ninguém se-
Se quiseres expressar com exatidão não ao pequeno mundo de teus perso-
esta circunstância: “desde o rio sopra- nagens, dos quais tu poderias ter sido
va um vento frio”, não há na língua hu- um. Não há outro modo de dar vida ao
mana mais palavras que as apontadas conto.
para expressá-la. Uma vez dono de tuas
palavras, não te preocupes em observar
se apresentam consonância ou disso-
nância entre si.

Horacio Quiroga (1878 – 1937) nasceu em Salto, Uruguai. Foi poeta, romancista, diplomata e dramaturgo. Conviveu em
Paris com Rúben Darío. Trabalhou como fotógrafo em uma expedição às ruínas jesuíticas de Misiones, onde morou.
Algumas de suas obras: Os recifes de coral - 1901; Contos de amor, de loucura e de morte - 1917; Contos da selva - 1918;
Os desterrados - 1926; e Além 1935, última obra do autor.

N.5
L i t e r a t u r a
Solidão
A solidão é um quadro de Munch na parede É o ponto final da carta
Uma cadeira de balanço vazia É um jogo de xadrez interminável que
Um copo de vinho pela metade se arrasta por dias, meses, anos
Uma folha em branco É o labirinto de Borges
Um cão sem dono São portas que se abrem para infinitas portas
É o quarto de Van Gogh triste e pobre que não levam a lugar nenhum
É o mar sem ondas Solidão sou eu ou você escrevendo
NY sem as torres gêmeas Num dia de chuva

O escritor e o anjo literário


Num escritório de um escritor, às e o meu editor me esfola vivo se eu crítica, porque, veja bem, na página 28,
21 horas de terça-feira, um diálogo não conseguir entregar os primeiros se eu fosse o escritor, colocaria mais
com um ser estranho está prestes a capítulos. um pouco de sensualidade nessas suas
acontecer: - É por isso que eu estou aqui meu caro, mulheres. E este tal de Bob Preston
- Oi, eu sou Gabriel! Nataniel: para ajudá-lo. poderia ser saxofonista ao invés de um
- Quem? Como você entrou aqui sem - E desde quando anjo entende de crooner de um Night Club. Sem falar
bater à porta? Isto é invasão de priva- literatura? que ali na página 48 ficaria melhor
cidade, não sabia?! - Olha, não me subestime assim. Sai- Manhattan e não o Central Park. E, na
- Eu não preciso bater à porta de nin- ba você que, nesses muitos anos, eu página 55, eu assassinaria usando uma
guém, meu caro, pois eu sou um Anjo conheci muitos escritores, como Tols- “lugger” que é mais sofisticada que as
da guarda e vim aqui para lhe proteger. tói, Oscar Wilde, James Joyce e Kafka. outras armas.
- Proteger?? Anjo? Ora, essa é a coisa Muitas vezes me pediam opinião sobre - Droga de vida! Que sujeito mais folga-
mais idiota e fantástica que eu já ouvi. literatura. Fui eu quem incentivou do! Vai entrando sem ser convidado,
Você bebeu ou é uma espécie de louco? Kafka a terminar o “Metamorfose”. mexendo nas minhas coisas, dando
- Nada disso! Eu sou seu Anjo da guarda - Tá bom! Eu vou fingir que acredito. palpites no meu romance. Que sujei-
e estou aqui para lhe proteger. Agora, para com essa falação dos dia- tinho arrogante e metido a besta!
- De novo essa ladainha, seu maluco? E bos e deixa-me escrever, por favor. - Cara, fica frio! Isso é apenas uma crí-
sem essa. Anjo da guarda tem auréola, - Dos diabos, não. É de anjo mesmo! tica construtiva, entende?
asinhas e anda de branco. Você é um cabeça dura! Não vê que - “Cara” é o diabo, seu “nojentinho”!
- Pelo visto você nunca assistiu “Asas eu estou aqui para proteger você dos - Bom, o papo está bom, mas eu preciso
do desejo” do Win Wenders, né? Sai- críticos ensandecidos e dos leitores ir embora. Tenho um outro escritor
ba você que, depois daquele filme, o insatisfeitos? para proteger. Ele é indiano e mui-
meu chefe, Deus, naturalmente resol- - Ora, vá pro diabo que o carregue! to polêmico. Às vezes ele se esconde
veu mudar, inovar, fazer uma reenge- - Convenhamos, depois de ‘”Vidas Apa- em cada lugar que eu tenho que ficar
nharia. Foi feita uma votação, coisa rente”, aquele romance que se desen- atento para não perdê-lo de vista. Uma
de democracia, entende? E foi abolida volve em Paris, você se acomodou, hora está na Inglaterra e na outra some
definitivamente aquela roupa branca caiu numa fórmula, abraçou a lite- de vez…
com asinhas. Segundo o nosso consul- ratura ‘’clichê’’ e começou a escrever - E quem é este escritor, eu o conheço?
tor de modas, ficou ultrapassado. Ago- “coisinhas”. -Bem, manja! Salman Rushdie de “Ver-
ra a gente só usa terno preto, sapatos, - O que?? Coisinhas? Seu petulante sos Satânicos”.
meias e de preferência Armani. de uma figa! Saiba você que os meus - Salmannn....!!!!!
- Escuta aqui seu anjo ou quem quer romances foram publicados mundo
que seja, não sei se você notou, mas afora. Traduzidos no Japão, na Rússia
eu estou tentando escrever um roman- e você vem me falar de “coisinhas”?
ce, sem falar que eu tenho um prazo - É, sei lá! Parece que você perdeu a veia

N.6
por Ricardo Luiz Almeida Pinto Ferreira

A máquina de escrever

Epitáfio Paredes morava num perfeito. Colocou a folha em No dia seguinte, o zelador inco-
apartamento em BH e estava branco e começou a escrever. modado com o cheiro forte que
muito mal de saúde. Por esse Ele escrevia devagar, quase vinha do apartamento do Sr.
motivo havia pedido ao seu como se estivesse saboreando Paredes resolveu investigar.
amigo editor de livros que as palavras. Não tinha pressa. Chamou o seu nome e tocou a
publicasse como último pedi- Perfeccionista, pensava em campainha do interfone várias
do um livro de contos. cada palavra, adjetivo e subs- vezes. Preocupado, utilizando
Como eram muito amigos, tantivo. Escrevia como se o de uma chave de fenda, abriu
Toledo, o editor, não pôde tempo não existisse lá fora. a porta e se aproximando do
negar esse desejo e tirando da Muitos dias se passaram e Epi- quarto se deparou com o velho
sua escrivaninha deu a ele o táfio continuava escrevendo morto sobre a cama.
contrato. seus contos. Não se cansava Respeitosamente, o zelador
Depois de assinado, os ami- o danado. Às vezes dava uma ajeitou o morto e cerrou os
gos apertaram as mãos e se pausa para almoçar e dormir seus olhos. Observou o quarto
despediram. um pouco, mas o seu entusias- e viu sobre a mesa a máquina
Epitáfio estava muito feliz e, mo era tamanho que quase de escrever várias folhas escri-
chegando em casa, a primei- não conseguia pegar no sono. tas e um bilhete que pedia para
ra providência que tomou foi Numa manhã de quarta-feira, que aquele livro fosse entregue
tirar da prateleira que ficava enquanto escrevia o capítulo na rua Barata Ribeiro Nº 127,
em seu quarto a velha máquina 25 do seu livro, sentiu uma Copacabana-RJ, aos cuidados
de escrever. pequena dor no peito. Parou de do Sr. Toledo de Alcântara
A máquina era antiga. Uma digitar e deitou em sua cama. Machado.
remington preta. Seria nes- Tremia, suava. Sabia que esta- No mesmo dia e às pressas, os
sa que o professor de latim e va morrendo e que era inevitá- poucos amigos e ex alunos de
filosofia aposentado iria come- vel o fim. Vivera bem seus 88 filosofia, depois de terem sido
çar a escrever seus contos. O anos. Só lamentava que iria avisados pelo zelador da mor-
editor ainda tentou convencê- desta para melhor sem con- te do professor, mais do que
-lo de levar emprestada uma cluir o seu livro de contos. rapidamente providenciaram
máquina de escrever elétrica No momento em que seu o seu enterro. No cemitério,
ou contratar alguém para digi- coração parou de bater, algo além de seus ex alunos, ami-
tar seus manuscritos usando o surpreendente aconteceu: a gos compareceram e o zelador
computador, mas Epitáfio era máquina de escrever começa- que emocionado segurava nas
avesso à tecnologia e sempre ra a escrever sozinha e de uma mãos o livro datilografado de
gostava de repetir que a tecno- forma mais rápida. Como se Epitáfio.
logia matava a poesia da vida. estivesse possuída pelo espec- Sr. Toledo reconheceu o livro
Frase essa que às vezes causa- tro de Epitáfio ou tivesse adqui- datilografado e se apresentou
va risadas entre seus amigos e rido poderes mágicos. ao zelador que, muito emotivo,
antigos alunos da federal. Dia e noite se ouvia o barulho entregou o livro. Nada se falou.
Naquele dia ele estava mui- da máquina de escrever que O silêncio se fez absoluto. Per-
to feliz e orgulhoso. Antes de trabalhava incessantemen- maneceram ali até o momento
começar a escrever, verificou te. Alguns vizinhos ficaram em que a última pétala de rosa
se a máquina funcionava e, impressionados com a vitali- fora jogada sobre ele.
com um pequeno pano, tirou dade e a força de vontade do
a poeira que se encontrava velho professor de latim. Esses
nela. Tudo estava organizado, mal suspeitavam do ocorrido.

Ricardo Luiz é graduado em marketing e relações públicas. Iniciou sua carreira como escritor ainda ado-
lescente e desde então já produziu vários contos e dois romances a serem editados além de peças de teatro
e roteiros humorísticos. Dono de uma escrita mais profunda e comprometida com a boa literatura, ele hoje
volta o seu olhar a questões políticas e sociais.

N.07
“Que morram
os artistas”
Entrevista com Ione Medeiros, Diretora do Grupo Oficcina Multimédia

AIM: Para começar, falemos do nos- Nosso compromisso é com a arte. Não problemáticas comuns a todos.
so antagonista: o público. O que opina com a expectativa do público. Nós
sobre o conceito de público-alvo? temos fé na arte, acreditamos que se AIM: Quais problemáticas?
a arte acontece a expectativa do públi-
Ione: Público-alvo é um conceito do co passa para segundo plano. Digamos Ione: Muitas. A questão da sobre-
mundo do mercado, não é inerente ao que um de nossos problemas de inser- vivência do planeta, a desigualdade
mundo da arte. A informação como ção laboral é que temos pouco público social, a própria evolução do homem, a
produto, a seleção de pessoas para com expectativa de arte e muito públi- criação de uma visão coletiva da socie-
serem atingidas e a geração de deman- co com uma expectativa de, apenas, dade, a necessidade de afeto, a angústia
da não são assuntos da arte. O assunto entretenimento. da vida, a esfera da morte, o sentido da
da arte é qualificar, ampliar, gerar ver- A função da arte não é dou- existência...
sões. Aí sim estamos falando de desa- trinar, nem passar mensagem, nem
fios inerentes à arte. Mas segmentar comunicar: a função da arte é algo AIM: Talvez ficar na superfície das
público é muito mais uma necessidade individual, uma negociação íntima de coisas seja uma forma de defesa do
que diz respeito à venda de um produto cada artista com a arte. ser humano, de poder suportar sua
que a um processo artístico. condição efêmera?
Para mim, público é qualquer AIM: Mas você quer atingir o
indivíduo que se desloca para ir ao tea- público? Ione: Pode ser. Talvez muitas pes-
tro, sem discriminar ninguém, não soas acham inútil falar da morte ou
se deve afunilar nenhum espetáculo Ione: Bom, ninguém quer fazer de problemas tão profundos porque
com o pretexto de que isso não é para uma peça que seja para não assistir, em definitiva são problemas para os
esse público, porque se desvaloriza mas está fora de nosso âmbito de tra- quais o homem não tem solução, mas
a capacidade de percepção intuitiva balho calcular quantas pessoas ou a pelo menos falar daquilo que nos afli-
inconsciente. quem vamos atingir. A tendência na ge evita com que se manifeste de uma
Existem momentos que o hora de formatar projetos culturais é maneira mais nociva, como a violência
imaginário do ser humano vai por pensar na quantidade, inclusive é um e o preconceito.
caminhos impossíveis de se padroni- dos critérios principais na hora de
zar. Também é discutível o conceito escolher ou dar espaço para qualquer AIM: Você acha a classe artística
de público. Em definitiva, o que exis- manifestação. folgada?
te são pessoas que estão ali assistindo. Mas se você direciona a sua
Se você afunila essas pessoas dizendo proposta para qualquer tipo de resul- Ione: Sim. Para começar acho que
qual é o espetáculo para ela se encai- tado, neste caso quantitativo, você está não toma partido, não vejo um posicio-
xar, você está privando-as de entrar traindo uma das funções do artista, namento claro, não vejo uma inquie-
em contato com um material menos que é entrar com alguma coisa da qual tação. Qual é o compromisso que nós
deglutido. não tenha confirmação do resultado. temos? Parece que nenhum. O grande
Quando a lógica do mercado O artista propõe uma reflexão do seu sintoma é a falta de interesse. E falta
entra no processo criativo provoca tempo, com sua linguagem. um trabalho real, horas de trabalho.
uma forte necessidade de agradar. Eu Isso não significa que eu não Fazer uma coisa bem feita leva traba-
não concordo com isso, não acho que esteja preocupada com a comunica- lho, não é nenhum mistério.
nossa função se limite a agradar, nos- ção, significa que não estou preocu- Nós sentimos a falta de um
sa função também é uma descoberta pada com a tranquilidade do público. ponto de encontro onde falar coisas
criativa e não uma preocupação de Não considero que refletir sobre o ser além das leis de patrocínio e se a gente
“se o público agradou ou se o público humano e seu tempo se caracterize entrou, se a gente não entrou ou se a
entendeu”. como entretenimento. Considero isso gente captou. É um tema importante
O público sempre espera algo uma função antropológica e social mas não é o único. Sentimos a falta de
de nós, mas isso é um problema dele. cuja utilidade é colocar no debate debate sobre a inserção dos artistas na

N.08
“Que morram os artistas” é uma lendária
peça de teatro do dramaturgo e diretor polaco
Tadeusz Kantor. A peça surgiu de uma reclamação
que Tadeusz escutou de uma das moradoras do
condomínio onde ele ensaiava com sua trupe. Em
sua objeção, a moradora estava se queixando dos
barulhos provocados pelos ensaios. Na ocasião,
o porteiro tentou justificar: - É que são artistas.
Ao que a vizinha retrucou imediatamente: - Que
morram os artistas, eu quero é silêncio!
Tal experiência resultou nessa peça de teatro
na qual o diretor nos fala sobre como a sociedade
nos enxerga como artistas. Eles querem nossos
espetáculos, porém não gostam de financiar nos-
sos ensaios.
Tendo essa obra como referência, fomos à
casa de Ione Medeiros, uma das principais artis-
tas pesquisadoras do Brasil, para conversar sobre
essa relação entre arte e sociedade. Ione Medeiros. Foto de Leo Fontes.

nossa época. a ser as mesmas, estaremos reprodu- Eu tento fazer o melhor que
Nosso desejo é não direcionar zindo um teatro inútil, sem valor. Um posso. É muito provável que não con-
a discussão do ator só para a questão teatro morto. siga, mas tenho que tentar ter respon-
da verba. Falta discussão filosófica, sabilidade sobre o que eu faço. Em pri-
falta discussão de linguagem, existe Na história das artes, os grupos de meira instância porque estou fazendo
muita permissividade, por mais que vanguardas sempre são pequenos e uso de um gesto ancestral e em segun-
a época seja um pouco difusa com sustentam uma geração. Que obra da porque estou ocupando um espaço,
muita coisa aparecendo, deve existir deixou o dadaísmo? Um grupinho de então tenho que ocupar bem.
responsabilidade. pessoas que destruiu toda uma forma Eu tenho uma sensação de gra-
de pensar acadêmica e sobrevive até tidão quando entro num palco e tem
AIM: Você acha inevitável um con- hoje sem nenhuma obra. A sua obra tantas pessoas aí para trabalhar numa
fronto entre as gerações? é o próprio movimento que criaram. coisa que faz parte de um mundo que
não é pragmático. Porque a arte não é
Ione: Eu gosto da visão dos orientais O teatro é a arte mais direta. A pragmática, você não faz arte para ter
e o conceito de mestre que de alguma única onde está presente a fragilidade um resultado amanhã, aliás você nem
forma propõe uma alternativa à visão humana como componente fundamen- sabe qual vai ser o resultado.
ocidental do filho querendo superar o tal, porque você está aí podendo errar Existe um caminho real que
pai, porque, na realidade, seria muito em qualquer momento e essa fragili- é inadiável que é o autoconhecimen-
bom se a gente conseguisse aprender dade é o que emociona neste mundo to. Descobrir em você mesmo por que
com o outro. Temos uma falta de mes- facilitador e de carícias em troca de você faz arte. O inconsciente é um nível
tres e um excesso de patriarcas. consumo, onde você é agradado para profundo onde o ego fica menor e você
Se conseguíssemos enxergar consumir. não fica a serviço de uma ideia sua que
os outros como mestres e aprender e Como você lida com essa rea- é superficial.
ensinar com generosidade, evoluiría- lidade se o teatro é uma manifestação Esse chegar no inconsciente é
mos muito mais. que não tem como objetivo agradar? o período de caos, onde você não tem
Como você mantém a essência humana domínio, onde você está procurando
AIM: Em relação ao questionamen- em meio de tanta dispersão? A resposta signos e símbolos. Onde a coisa pre-
to “é possível viver de arte?”, você acha sobre “se é possível viver da arte” eu cisa ser organizada em termos de lin-
que nós artistas estamos errando em acho que é. Sim é possível se acredi- guagem, onde você não pode ter pressa
algo? tarmos na arte. nem deixar passar, porque o ritmo de
essa obra que quer existir faz com que
Ione: Sim. Um dos maiores erros é AIM: Qual é o caminho que você você dilua seus desejos em função do
quando o próprio teatro não acredita acha que um artista deve seguir para que é preciso fazer. Por isso eu sem-
em si mesmo. Nós artistas não pode- conseguir isso? pre falo que só acredito em revoluções
mos sucumbir. Se você se entrega, se individuais.
você deixa de acreditar, se começa a Ione: Uma coisa que eu acho impor- A sociedade toda é feita de fun-
fazer um teatro televisivo com uma tante é tomar posição. Quem lida com ções, então para você se inserir eco-
mensagem cuja única finalidade seja cultura tem uma responsabilidade. A nomicamente de uma forma orgânica,
acariciar, provocar descargas de adre- falta de posicionamento claro é extre- primeiro tem que se preparar para
nalinas, estamos destruindo nossa fun- mamente prejudicial. Tem critérios desempenhar da melhor forma pos-
ção principal que é a que nos justifica que a gente tem que seguir. Não signi- sível essa função. Criar é trabalhoso
economicamente. fica estabelecer o que academicamente e caro, demanda recursos, necessita
Se trairmos as funções do tea- é certo ou errado, mas sim estabelecer de tempo e ferramentas aguçadas: o
tro que são arcaicas e que continuam critérios e ter rigor para segui-los. corpo, a voz e a sensibilidade.

N.09
A Imensa Minoria

de Santa Tereza/BH

para toda América Latina

“La Grieta de la Patria Grande”

“L
a Grieta” é uma expressão usada na Amé- Eu não faço que as coisas aconteçam. Eu
rica hispânica para denominar o abismo não obrigo a ninguém agir de determinada
provocado pela polarização entre esquerda forma. Eu apenas coloco o cenário. Sou
e direita. Em apenas uns poucos meses, fomos tes- uma caixa de surpresas e nunca me veem
temunhas de como Bolívia, Chile, Colômbia, Equa- chegar.
dor, Haiti, Nicarágua, Peru e Venezuela entraram em
crises políticas, marcadas por protestos nas ruas, re-
pressão das forças armadas, violência e mortes. Robert De Niro no filme “O advogado do diabo”.

Tanto na Bolívia quanto na Nicarágua e na Venezuela


o assunto é a democracia justificando golpes de esta- Que ninguém te veja chegar
dos. Já no Chile, Equador, Colômbia, Haiti e Peru o
tema é a falta de oportunidades de um sistema que Ninguém viu chegar o impeachment de Lugo, nem o de
se autoproclama meritocrático. O povo que tem ido Dilma, nem os protestos no Chile, no Equador ou na Co-
às ruas não se preocupa com a esquerda ou com a lômbia. Nem o golpe de estado na Bolívia. Ninguém viu a
direita. Muito pelo contrário, esse mesmo povo tem ultradireita chegar no Uruguai, integrando a coalizão do
demonstrado a sua rejeição à autoridade vigente. governo que ganhou as eleições e representando 10% desse
eleitorado.

Mas, será que tudo isso é espontâneo ou foi plane-


jado e está sendo executado por grupos poderosos? Do mesmo modo, ninguém viu chegar Alberto Fernández,
Nunca saberemos. Como dizia Artaud, até o ser hu- presidente eleito na Argentina, que até maio de 2019 era
mano mais sábio é nada mais que um bruxo cami- um verdadeiro desconhecido. Quando foi anunciada sua
nhando nas trevas. candidatura, os analistas diagnosticaram: péssima jogada.
Três meses depois as primárias das eleições lhe davam uma
vantagem de 15% sobre Macri. Com o passar de apenas 5
meses, Alberto Fernández ganhava as eleições no primeiro
O advogado do diabo turno com 8% de diferença sobre o segundo colocado.

Nunca deixes que te vejam chegar, isso


arruína tudo! Deves te manter sempre pe- Da mesma maneira, ninguém viu Bolsonaro chegar. Nin-
queno, inócuo, ser sempre o menor, o guém acreditava que ele seria levado a sério. Foi um fe-
tolo, o leproso, o vagabundo desempre- nômeno bastante estranho que evidenciou quão ingênua
gado. Olha para mim, subestimado desde o pode chegar a ser a esquerda. É como ter um tigre de bicho
início, nunca ninguém pensaria que sou o de estimação. Ele vai crescendo até que um dia você não
amo do universo. pode controlá-lo mais.

*imagem da página retirada de acervo do Google e pós-produzida.

N.10
Bolsonaro cresceu perante os olhos da esquerda e da so- As narrativas
cialdemocracia sem que eles o enxergassem, até que fosse
tarde. Uma total falta de visão e timing político. Talvez
uma grande demonstração de desinteresse por parte da po- Temos a ótica bolivariana de “la Pátria Grande”, a neo-libe-
pulação. Ficamos presos numa novela mexicana entre polí- ral da meritocracia e a nacionalista da moral cívica, como
ticos, enquanto para os cidadãos virou um filme de terror. as três principais vertentes ideológicas do mapa político-
-narrativo. Acontece que governar massas é a arte da sim-
plificação. Portanto, no nosso relato, temos só três visões
predominantes que são estimuladas pelos meios de comu-
Democracia nicação:

Se temos algo para aprender é que a legislação está se tor- 1. a progressista trabalhadora que não quer
nando insuficiente para as novas sociedades. A América trabalhar para outros;
Latina já tem vários casos de ditaduras constitucionais, de 2. a empresarial capitalista que necessita de
esquerda, de direita e de centro. A verdade é que não sabe- pessoas que trabalhem para eles;
mos onde está o poder. 3. a nacionalista militarista que é o sustento da
moral patriarcal utilizando a força como verdade
última.
Talvez seja a hora de começarmos a estudar mais sobre de-
mocracia. Tudo demonstra que o clamor popular pode ser Esses três fatores se equilibram e são interdependentes: os
um ditador que se impõe sobre a verdade e a Constituição. que têm a força de trabalho, os que têm o capital e os que
Os analistas estão desorientados porque não estão conse- têm a força bruta.
guindo prever mais nada.
a. Segundo os progressistas, os militaristas os
querem obrigar a trabalhar para os capitalistas.
O que os analistas deveriam saber é que se trata disso mes- b. Segundo os capitalistas, os progressistas não
mo: de que ninguém os veja chegar. Essa é a premissa de querem trabalhar nem se esforçam por ascender
estrategistas e assessores. Tudo o que chame atenção, tudo socialmente.
o que seja espetacular é distração ou consequência, nun- c. Segundo os militaristas, tudo é uma vergonha,
ca causa. Enquanto corremos para apagar um incêndio, o país é uma bagunça e precisa de ordem.
alguém está detonando outra bomba onde menos imagi-
namos. A Culpa
É aí onde entra a CULPA. Para que todo esse coquetel
Nesse jogo, o verdadeiro perigo é quem está escondido e não exploda. A culpa é a ferramenta para que o pro-
em silêncio, na calada da noite, assistindo por strea- gressista trabalhe para um capitalista. A culpa é a que
ming o circo pegar fogo. permite que a força bruta fique escondida e não seja
necessária para manter o status quo. O capitalista
investe muito dinheiro em publicitar a superstição de que
Hamlet latino. o trabalho é sagrado.

Ser ou não ser golpe? Quem trabalha deve pensar que a oportunidade de tra-
balhar é o pagamento. O trabalhador deve receber pouco
A nova onda começou em Honduras em 2009. Depois foi para reduzir os custos laborais. Deve trabalhar muito para
a vez do Paraguai, depois do Brasil e finalmente a Bolívia. aumentar a capacidade produtiva e, principalmente, deve
Todos vivem o mesmo dilema: é golpe ou não? Sem men- ser grato com o capitalista que lhe dá a oportunidade de ter
cionar o famoso caso da Venezuela que vivencia seu dilema um emprego medíocre e salvar a sua alma.
pessoal e único: é ditadura ou não é?
E caso não seja suficiente com isso, temos o futebol para
Existem ditaduras democráticas ou democracias ditato- reforçar a catarse e sublimar a insatisfação.
riais? Existem golpes parlamentares ou golpes judiciários?
A democracia é a ditadura da maioria ou o governo da
Constituição? #SQN
Só Que Não! O entretenimento não está sendo suficiente,
São tantas perguntas que a única resposta clara é que a de- nem o futebol e nem a religião. A força de trabalho não está
mocracia é um modelo muito complexo e está tendo di- aceitando mais trabalhar por culpa, nem por diversão, nem
ficuldades para se consolidar. O principal desafio do mo- por catarse.
mento é controlar a narrativa. É por isso que os meios de
comunicação são uma peça chave para instalar uma dra-
maturgia funcional aos seus interesses. Isso significa que será necessário distribuir riqueza ou ati-
var a força bruta. E dessa forma girará a roda da história:
golpe a golpe, verso a verso.

N.11
BRAXIT?
Enquanto nossa atenção está captada pelos acontecimentos
dos protestos na América Latina, no Brasil, sem muita pu-
blicidade, aconteceu o BRICS e, nesse encontro silencioso,
os EUA e a China pactuaram, indiretamente, uma trégua
pontual e estratégica intermediada por Bolsonaro.

Trocaram torre por torre: pelo reconhecimento da China


ao governo de facto da Bolívia, Trump aceitou que fos-
se assinado um acordo bilateral de comércio com o Brasil. A Guerra do 5G
Sendo assim, a Huawei - com a sanção por espionagem e
roubo intelectual suspensa por Trump - poderá abrir a sua
primeira planta fora de fronteiras. O Brasil será o motor do O tema que cria toda essa turbulên-
5G na região. cia mundial é a luta por saber quem
prevalecerá na carreira tecnológica
em miras do 5G, a nova internet
E o que Trump ganha com isso? Evita a interferência da que deixará tudo mais rápido, aces-
China na Bolívia. Em troca lhe brinda o principal mercado sível e com alta qualidade. O próxi-
da região e lhe dá chance de crescimento econômico ao mo salto tecnológico.
Brasil de maneira que na primeira ocasião possa provocar
um “brexit”¹ latino: o BRAXIT. Isto é: a saída do Brasil do
Mercosul. Se isso acontecer, a saúde econômica das repú-
GAFA VS HAT -
blicas “bolivarianas” vai ser debilitada.
(Google, Apple, Facebook e Amazon VS
Bolsonaro é o homem de confiança de Trump no BRICS. Huawei, Alibaba e Tik Tok)

Até 1999, vivíamos em 3 dimensões. A partir


¹ Brexit é um neologismo que une as pa- do começo da famosa “Era de Aquário” pas-
lavras BRITAIN e EXIT e que se utiliza samos para a 5ª: a globalização. A 4ª que é
para denominar a saída da Grã-Bretanha a percepção do planeta Terra como um único
da União Econômica Europeia. território foi adquirida automaticamente. An-
tes disso, a guerra era pela supremacia comer-
cial, geopolítica e na corrida espacial. Hoje se
BRICS incorporou na agenda a supremacia na tecno-
logia de comunicações através da INTERNET.

É óbvio, quem vai querer ficar no Mercosul se no BRI-


CS tem muito mais possibilidades de levar adiante seu Big Data War
projeto “terraplanista”, lutando contra o socialismo e
negando a globalização? Além do mais, sendo um de-
clarado aliado de Trump, pode ajudar a criar diálogos A guerra é de informação, a tecnologia permite
com China e Rússia. criar algoritmos que processam dados de manei-
ra exponencial em segundos. Isso permite de algum
modo manipular a opinião pública. E as empresas tec-
Enquanto tudo pegava fogo, o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, nológicas têm nacionalidade, detrás de todos os focos de
China e África do Sul) estava reunido em Brasília plane- instabilidade está instalada a batalha declarada entre EUA
jando como entrar no G7. Ser do BRICS é muito particu- vs China ou melhor dizer: Google, Apple, Facebook e
lar. Você não é rico, mas ninguém faz bullying com um Amazon VS Huawei, Alibaba e Tik Tok.
cara que tem um revólver.
Uma guerra de tecnologia e Big Data. Para abrir o
Eles constituem o grupo dos considerados países com as caminho de suas empresas, os países realizam missões di-
economias mais emergentes. Têm 25% do PIB mundial, plomáticas e travam lutas de política internacional. Nesse
43% da população do planeta e movimentam 20% do capi- sentido, EUA sancionou economicamente a China com a
tal que gira em todo o mundo. Em 2013, acordaram a cria- acusação de espionagem e roubo intelectual.
ção de um banco para financiar projetos e criar um fundo
comum.
Tik Tok
Através do entretenimento se introduzem valores cultu-
rais. Os EUA aplicaram sanção econômica a Huawei por
entender que estava realizando serviços de inteligência e
*imagem da página retirada de: https://www.deviantart.com/gusustavo/art/LatinoAmerica-313502782
N.12
coletando informações de usuários norte-americanos. Mas Durán Barba, monge negro de Macri, se baseou na pre-
nada impede o avanço do Tik Tok. missa: o medo vai vencer a decepção. Cristina - o medo
- saiu de cena e colocou um professor de direito penal com
um perfil marcado como negociador, articulado e políti-
É o novo aplicativo chino que está fazendo sucesso, co. Num só passe de mágica, tirou dois coelhos da mesma
também conhecido como Douyin “som vibrante” que cartola.
permite realizar e editar vídeos curtos. Tem mais de
500 milhões de usuários em todo o mundo. É por
meio desses aplicativos que a China pretende coloni- Alberto
zar culturalmente o ocidente.
Alberto Fernández, presidente da Argentina, já se posicio-
nou com relação a Bolsonaro: “Para mim é um elo-
A China, para compensar, se mostra bene-
gio que uma pessoa misógina e violenta
volente e não reprime os protestos em
como Bolsonaro fale mal de mim”.
Hong Kong, pois isso poderia atra-
palhar sua construção de imagem
sábia e milenar. É nessa mistura Estou muito feliz em ver Lula livre. Quando fui visitá-lo na
de fatores que nos encontramos cadeia antes das eleições, me falaram que poderia ser nega-
nesse momento. Sem enten- tivo para minha imagem, mas eu penso que sempre deve-
dermos o que está aconte- mos estar ao lado de quem está padecendo injustamente e
cendo. nunca devemos especular com isso”.

“Muitas vozes me disseram ‘mas será conveniente visitar


Lula?’ Nós devemos fazer o que é necessário, não apenas o
A nossa região se trans-
que é conveniente.
formou na plataforma
onde começou a se desen-
volver essa guerra típica dos Eu sei que Bolsonaro não gostou da minha atitude, mas la-
poderosos. E, o pior, a realizam mento profundamente por ele, porque eu sou um homem
na nossa região para não pre- de direito e nunca vou concordar com o uso da justiça para
judicar seus territórios. Para eles perseguir opositores. A detenção de Lula é uma mancha no
somos provedores de matérias pri- Estado de Direito”.
mas e mercado do seu valor agregado.
Nada mais que isso. O tema seria ver se a Argentina tem a dimensão e a massa
crítica necessária para liderar um avanço que mantenha a
unidade de esquerdistas e socialdemocratas enquanto ne-
gocia a dívida com o FMI.
Argentina
Será feminista ou não será
A reeleição de Macri, até abril de 2018, estava garantida.
#SQN Argentina, além de assumir a liderança progressista, tem
uma das articulações feministas mais fortes do mundo.
A péssima e incompetente gestão da economia, somada a Tanto é que o próprio Macri se viu obrigado a levar a vo-
uma falta de empatia social que muitas vezes beirava o ri- tação o projeto de lei de descriminalização do aborto. Al-
dículo, fez a sua imagem cair vertiginosamente até o ponto berto Fernández já disse que, para ele, esse é um objetivo
de perder as eleições ainda no primeiro turno por 8 pontos prioritário.
de diferença. O pior: para a fórmula de Cristina Kirchner.

Cristina Como presidente eleito, tem integrado a linguagem inclu-


siva na sua comunicação.
Cristina Kirchner analisou a jogada de Lula e corrigiu o
erro. Lula errou ao não perceber a perseguição judiciária.
Demorou a iniciar o processo da transferência de votos O inclusivo da linguagem não pretende ser apenas
para Haddad e não deu tempo para se instalar uma ima- gramático. A sua pretensão é social!
gem competitiva do candidato do PT.
A linguagem inclusiva é um dos aspectos da configuração
Cristina, hábil advogada, resistiu à perseguição judiciária discursiva da luta política pela igualdade da sociedade e
e chegou às eleições com muito capital político. Ao resol- o que procura é criar no auditório a consciência de uma
ver se candidatar como vice e colocar Alberto Fernández injustiça, desnaturalizar uma injustiça que persiste. Por
como o cabeça da chapa, não só iniciou o processo de isso, por ser um fenômeno tão político, as violentas reações
transferência de votos com muito tempo pela frente, como contrárias, por parte do patriarcado, também são políticas.
também desarticulou a campanha de reeleição de Macri
que foi desenhada considerando Kirchner como sua prin-
cipal concorrente. São reações de pessoas que gostam dos privilégios e que
ficam perturbadas quando se evidencia que nada na lin-
guagem é de graça: o masculino genérico é um universal

N.13
linguístico porque a desigualdade entre a mulher e o ho- precoce e a dificuldade em manter a ereção.
mem é um universal humano.

“Macho” Camacho se precipitou. Chegou no clímax, não


Na estrutura de regras sintáticas que todos os falantes te- conseguiu segurar e cometeu um grande erro político que
mos em mente o gênero tem uma hierarquia. Por isso é pode ter seu custo. Em vez de se manter discreto, desfilou
muito difícil mexer com isso, mas essa situação não tem nos carros da polícia pelas ruas da Bolívia amotinada e,
nada de ruim porque o inclusivo não pretende ser gramáti- ainda, esteve na sede do governo na assunção da presidenta
co. A sua pretensão é social! de facto.

Por se tratar de um pronunciamento político, não pode


ser imposto, pois os pronunciamentos políticos não se im- O patriarca vive num delírio no qual acredita ter um vín-
põem. Santiago Kalinowsky - Linguista culo diferenciado com a divindade que o isenta de respon-
sabilidades. Todo patriarca é moralista e sente que está aci-
Até tu, Bolívia ma da lei, mas quando cai mostra o que realmente é: um
moleque ressentido com sua mãe que o abandonou para
fazer sua vida.
Bolívia estava tranquila. Pelo menos a nível regional, não
chamava muito a atenção. Mas quando a onda é forte mui-
tas vezes não tem como segurar. O Estado Plurinacional, “Macho” Camacho é um dos monstros que, segundo
que tem demonstrado excelentes níveis de crescimento, vi- Gramsci, surgem quando um paradigma agoniza, mas ain-
nha sendo governado há três mandatos por um indígena. da não morre e o outro paradigma pulsa, mas ainda não
Tudo estava em ordem. #SQN nasce.

A permanência no poder é sem dúvidas o ponto fraco da A santidade


esquerda. É o calcanhar de Aquiles que o progressismo não
tem sabido resolver: como sair do poder a tempo?
não justifica os meios
No dia das eleições, houve uma interrupção na transmissão “O pessoal das Forças Armadas que parti-
do escrutínio provisório que estava indicando um ballota- cipe nos operativos de restabelecimento
ge. Quando a transmissão se reiniciou no dia seguinte, Evo da ordem interna e a estabilidade pú-
tinha ganhado no primeiro turno. A direita rapidamente blica estará isento de responsabilidade
se mobilizou. Depois de tudo, o clima na região estava no penal quando em cumprimento de suas fun-
ponto. Tudo estava pronto para tirar Evo. Até que, no dia ções constitucionais atuem em legítima
10/11, ele renunciou denunciando pressões. defesa ou estado de necessidade, em ob-
servância dos princípios de legalidade,
absoluta necessidade e proporcionalidade
López Obrador, presidente de México, rapidamente ofere- de conformidade dos artigos 11 e 12 do
ceu asilo e em um operativo político (provavelmente as- código penal”. Decreto emitido pela presidenta de fac-
sessorados pelo próprio Lula que tinha saído da cadeia 48 to da Bolívia 15/11/2019.
horas antes) se articulou para tirar Evo e uma comitiva da
Bolívia: Alberto Fernández, presidente eleito da Argentina;
Vizcarra, presidente do Peru; e Mario Abdo Benítez, presi- A intolerância e o fascismo vêm da impotência. Até o di-
dente do Paraguai. tador mais cruel um dia morreu e seu corpo foi exumado
e transladado do mausoléu a uma fossa comum, em um
cemitério qualquer de um povoado que já não tinha medo
Os ex-presidentes Evo, Lula e Rafael Correa serão os nar- dele. Ninguém vence da morte, ninguém vence do tempo,
radores da contraofensiva e o centro de operações será na daí surge a raiva dos ditadores: eles odeiam sua própria
Argentina. insignificância.

“Macho” O falso profeta

Camacho, o ejaculador precoce Um evangélico não pode admitir a violência, não pode ad-
mitir que sua religião seja usada para fins políticos. A polí-
tica é a administração do mundano. E é aí, precisamente, o
Se existe uma figura nefasta nessa história, essa figura se
momento em que é possível diferenciar um evangélico de
chama “Macho” Camacho, um apelido que se não fosse
um falso profeta.
trágico seria cômico. Ele representa a volta do regime pa-
triarcal, de uma base evangélica, que governa com o antigo
testamento.
O evangélico vai falar de Jesus, o falso profeta vai falar do
antigo testamento. A era do antigo testamento foi a era do
patriarcado. Líderes que através da força tinham o poder
Porém o patriarcado tem grandes problemas: a ejaculação

N.14
político, religioso e militar. E foi, precisamente, a era que saiu às ruas. O presidente declarou “estamos em guerra” e
Jesus veio corrigir. Qualquer tipo de golpe de estado pre- colocou os militares para reprimir. Dessa forma tudo seria
cisará de uma narrativa moral, porém não a encontrará no controlado.
novo testamento.

O conflito persiste há várias semanas e parece não estar


Por isso, mais que nunca, devemos nos cuidar dos falsos próximo do fim. Segundo o Instituto Nacional de Direitos
profetas que baseiam suas profecias no antigo testamento Humanos (INDH), uma entidade estatal independente, os
para justificar o uso da violência em prol de um santo obje- números são de: mais de 20 mortos, aproximadamen-
tivo. A santidade não justifica os meios. te 2.200 feridos e 209 casos de traumas oculares.

Chile, o grande exemplo econômico a seguir. #SQN


Brasil
O que aconteceu no Brasil por meio dos tecnocratas, de Equador
uma forma legal, porém não muito elegante, foi um golpe
técnico democrático e plebiscitado nas urnas. Foi basica-
mente o poder de São Paulo articulando em Brasília para De 3/10 a 13/10, houve protestos de indígenas que acampa-
não aceitar a Presidenta eleita com os votos de Alagoas, ram em frente à Casa de Governo de Lenin Moreno. Saldo:
Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio 7 mortos, 1340 feridos e 1152 presos. O gatilho foi um pa-
Grande do Norte e Sergipe. Isso é: o Nordeste. cote de aumentos na gasolina. Rapidamente o presidente
denunciou: é uma jogada política de Rafael Correa.
Bolsonaro foi um grande estrategista. Acompanhou e dei-
xou que o PSDB absorvesse os danos. Nos planos de mui- · 7/10 o presidente traslada a sede de governo para
tos impulsores do “impeachment”, o próximo presidente Guayaquil
seria o Alckmin. · 8/10 declara toque de recolher
· 9/10 greve geral e repressão
Bolsonaro só não levou em consideração uma coisa: o povo. · 10/10 se confirmam as 5 primeiras mortes
O Brasil pós PT carrega 12 anos de inclusão na educação · 11/10 os manifestantes voltam a assaltar a sede
e um povo instruído não é fácil de enganar. Pensaram que do governo e o parlamento
era só atacar ao “homem” com o poder judiciário que tudo · 13/10 finalmente as partes chegaram a um acordo.
se desmancharia no ar com Lula na cadeia. Assim que os indígenas levantaram o acampamento, o
decreto dos subsídios foi anulado.
Hoje, Bolsonaro enfrenta uma queda na sua popularidade.
O ex-aliado João Doria começou a se distanciar para ini- Lenine Moreno quis subir o preço da gasolina e do diesel e,
ciar a sua jornada como candidato presidencial do PSDB e de quebra, estigmatizar Rafael Correa. #SQN
a oposição recuperou seu principal capital: Lula.

Mas o estadista Bolsonaro tem alguns planos: abando-


nar o Mercosul; se desvincular do sonho Uruguai
romântico latino da Grande Pátria; aban-
donar qualquer indício de querer liderar I) Inventar o Uruguai foi uma jogada estratégica da Ingla-
a região; e investir na sua relação com terra que já tinha em mente um plano econômico. Esse
Trump, Putin, Xi Jinping, entre outros. novo país seria vital para atender uma necessidade logísti-
ca. Uma zona franca para levar para o continente materiais
Se conseguir reativar a economia com essas negociações, necessários para se construir trilhas e máquinas ferroviá-
o povo vai assinar embaixo. Segundo Bolsonaro, ser um rias em toda América Latina.
fator de equilíbrio compensa mais que liderar a região, pois
a liderança sempre tem custos econômicos, militares e po-
líticos. Para todo projeto de expansão imperialista é necessário
empobrecer culturalmente a sociedade para que aceitem as
Chile atira no olho esquisitas e contraditórias normas da moral europeia. O
pobre trabalha sem protestar e o rico pensa e governa. E
Yo pisaré las calles nuevamente / de lo que fue Santiago para que melhor que o futebol para essa função? A intro-
ensangrentada / y en una hermosa plaza liberada / me de- dução do futebol junto com as ferrovias foi o movimento
tendré a llorar por los ausentes. chave da Inglaterra.

O grande exemplo latino americano para os analistas polí-


ticos era o Chile. País com os melhores indicadores da ma- No futebol se faria a catarse da rivalidade entre funcioná-
croeconomia. Todos os analistas (neoliberais) de todos os rios e patrões. Qualquer insatisfação laboral se resolveria
países não tiravam da boca o exemplo do milagre chileno. com um 2 a 0 no domingo. Só faltava “pacificar” a região
com uma política pública de extermínio.

De repente, em 18/10, perante um novo aumento de trans-


porte algo aconteceu e o conto de fadas se quebrou. O povo II) Nas eleições passadas, foi representada mais uma vez a

N.15
comédia europeia da democracia. A eterna luta entre es- O poder patriarcal provêm de quem tem a posse da terra.
querda e direita, ambas superstições inventadas na Europa. Patriarca e patrimônio tem a mesma raiz. Daí a ideia de
Ganhou a centro direita que contou com o apoio da ultra- que a melhor forma de marginalizar um grupo determina-
direita na coalizão de governo. Mas, no fundo, ganhe quem do é impedi-lo de ter patrimônio.
ganhe, os indígenas sempre perdem.

A violência com os indígenas sempre foi muito marcada.


Uruguai é o país que menos entende de indígenas. O sonho Negar a própria identidade foi uma informação cultural
europeu de um território sem nativos teve uma política pú- passada de geração em geração para preservar a vida. Devi-
blica de extermínio levada a cabo pelo poder público em do a isso, se naturalizou pensar que não existem indígenas
1831. Uma mancha no currículo que prefere deixar enter- no Uruguai.
rada.

Daqui, A Imensa Minoria envia um fraternal abraço


ao povo de Bella Unión. Um grande abraço também
para a Murga No Hay Tu Talle um dos principais
grupos artísticos da cidade.

Presidente Lacalle Pou: ORÇAMENTO AUTÔ-


NOMO PARA BELLA UNIÓN JÁ!

Venezuela
Venezuela vinha sendo o anti-exemplo, o que não
deveria ser feito. Se criou uma narrativa que qua-
se justificou a interferência na soberania desse país
ao melhor estilo Netflix. Uma história épica na qual
um jovem deputado nativo (é imprescindível o tom
local para tomar o poder) se autoproclamou presi-
dente interino.
Guaidó iria entrar na sua Caracas assim como Fidel
em Havana. A multidão seria seu passaporte, o povo
que o reconheceria, iriam ao palácio do governo e
pegariam essa versão latina de Sadam Husseim e
tudo voltaria ao normal. Restabeleceriam os víncu-
los com os outros países e até apoiariam a indicação
do filho de Bolsonaro para embaixador. Ia ser lindo.
#SQN
O extermínio Não rolou, não vingou. Meio que choveu no dia. Sacou?
Todo mundo confirmou no Facebook e depois ninguém
O fato de um presidente enganar as tribos Charruas, cha- apareceu. Sacanagem. O tempo passou e Maduro ainda
má-las para um acordo, quando na verdade iria exterminá- não caiu.
-las, mostra a notável índole deste extraordinário país, in- No plano, Venezuela iria roubar a atenção dos meios de
ventado pela Inglaterra. Seu principal herói, José Gervasio comunicação e se instalaria como um paradigma do medo,
Artigas, nunca reconheceu como país. como uma grande bomba de fumaça. A derrota de Maduro
iria ser o fim do Foro de São Paulo, o golpe de graça. #SQN
Uruguai ainda se enxerga como se o país fosse só a capital, No lugar disso, a Venezuela fortaleceu-se ao ponto de
Montevidéu. Continuam desenvolvendo essa falsa história Diosdado Cabello, número 2 da Venezuela, se permitir a
de que é um país de imigrantes e desconhecendo, dessa seguinte frase sobre o golpe de Estado na Bolívia: “a Bolívia
forma, o aporte fundamental das culturas originárias. será a faísca que acenderá os prados da brisa bolivariana. O
furacão bolivariano”.
O estilo Netflix pegou. É narrativa bolivariana
Bella Unión contra narrativa neoliberal. Esperemos que na
nossa maturidade tenhamos conseguido evoluir e
Tríplice fronteira conformada por Argentina, Brasil e Uru- contornar a força bruta. Estamos no momento de
guai é a única cidade fundada por Guaranis e fica no extre- maior tensão do ciclo. Nos próximos 3 anos, se de-
mo norte do Uruguai. Cumpriu 190 anos e ainda não tem finirão os próximos 20.
orçamento autônomo.
*imagem da página retirada de parte de trabalho apre-
sentado por Adolfo Cifuentes na “Maison de l’Amérique
latine” e elaborado por Thiago Amoreira.

N.16
É POSSÍVEL
VIVER DE ARTE
Entrevista com ROMULO AVELAR
A nossa teoria editorial parte da base de que a sociedade não
tem como prioridade a produção de arte porque não compreende a
sua utilidade. Por isso é tão difícil criar um universo de em-
prego pleno e estável. Para conversar sobre esse tema convida-
mos Romulo Avelar, um dos principais multiplicadores da Gestão
Cultural no Brasil.

A IM – Geralmente existe uma confu- AIM – Financiar produção de Arte é


são entre Arte e Cultura. Existem investimento ou subsídio?
diferenças entre a gestão da ri-
queza cultural e a produção de bens
artísticos culturais? Você acha que Romulo: Penso que são as duas coisas ao
são temas diferentes ou que podem mesmo tempo, que são duas vertentes. O inves-
ser trabalhados dentro da área da timento em arte é, na verdade, investimento no
Gestão Cultural? cidadão. A arte tem um poder de transformação
absurdo e, por isso, a oferta de bens artísticos é
uma instância de qualificação do cidadão. Isso
Romulo: Penso que existe sim uma con- pode se estender a grupos sociais e comunida-
fusão nesse terreno. Frequentemente a gestão des. Eu já vi acontecer de cidades inteiras ganha-
cultural é compreendida como gestão da arte. rem outra dimensão a partir de investimentos em
Isso é fácil de entender, na medida em que a arte programas artísticos consistentes.
está inserida no universo cultural e é um dos seg- Além disso, é claro para mim que a arte favorece
mentos abarcados pela gestão cultural. a mobilidade social. Lembro de uma vez em que
trabalhei como gestor cultural em uma empresa,
Mas é importante pensar na gestão de uma ma- promovendo atividades artísticas voltadas para
neira ampliada, que abarque outros campos da os empregados. Criamos um grupo de teatro e
experiência humana que não são necessariamen- montamos uma peça, que foi levada ao público.
te artísticos como, por exemplo, as tradições, o No ano seguinte, a maioria dos empregados par-
patrimônio material e imaterial, a memória e a li- ticipantes dessa experiência saiu do grupo. Mas
teratura. A gestão cultural precisa dar conta disso por que isso aconteceu? Porque essas pessoas vol-
taram a estudar, ou seja, a experiência artística
tudo, e não apenas da produção artística.
abriu seus horizontes e mudou sua vida para me-
lhor. Nessa perspectiva, o financiamento à arte é
investimento.
N.17
Entretanto, é preciso entender este financiamen- entre os gestores da educação e da cultura e, com
to também como subsídio. O setor artístico bra- isso, a reflexão possibilitada pela arte acaba não
sileiro é muito poderoso, mas não tem a estrutura se fazendo presente no ambiente escolar. É tudo
de produção das grandes indústrias. Arte e cul- muito raso nesse sentido. Grande parte dos pro-
tura são setores estratégicos para o país e empre- fessores não percebe a importância da arte para
gam mais de 500 mil pessoas. Por isso, da mesma a formação do cidadão, o que torna difícil a vi-
forma que qualquer indústria recebe subsídios sualização, pela sociedade, de seu imenso poder
para promover o emprego, o setor produtivo de transformador.
arte também necessita de aportes de recursos pú-
blicos, como ocorre em grande parte dos países.
É preciso pensar em arte e cultura como um se- AIM – Muitas vezes quando pergunto
tor econômico que precisa de subsídios para se sobre a UTILIDADE existe um precon-
fortalecer e chegar até o cidadão, cumprindo seu ceito, como se não fosse moralmente
ciclo enriquecedor. correto pensar Cultura e/ou a Arte
nesses termos. Você não acha que,
Outro ponto que deve ser considerado é o gran- tanto a nível político como a nível
de passivo de segurança do Brasil. Também nes- de segmento artístico, está fal-
se terreno a produção de bens artístico-culturais tando um trabalho conceitual ante-
pode contribuir de maneira significativa. A arte rior para explicar à sociedade que
pode favorecer o estabelecimento de diálogos e a UTILIDADE é a base de qualquer
contribuir para a sensibilização e o entendimento política pública?
do outro. Por promover o encontro entre as pes-
soas, arte e cultura são pacificadoras, conciliado-
ras e criadoras de consensos. Romulo: As políticas públicas existem
para beneficiar o cidadão, e os artistas produto-
res e gestores são veículos para uma coisa maior
AIM – Qual é a UTILIDADE da ARTE? que é efetivar esse benefício. Portanto, o inves-
Por que um cidadão comum deveria se timento de recursos públicos tem como diretriz
preocupar com a produção de arte de beneficiar a sociedade e não apenas os artistas e
sua cidade? os demais profissionais do setor.
O tema da utilidade deve ser levado em conside-
Romulo: Há quem sustente que a arte não ração na gestão dos recursos para o setor cultu-
precisa ter utilidade ou função, e que negue seu ral, mas não necessariamente na criação dos bens
caráter utilitário. Entendo essa posição, pois ao artísticos culturais. Quando o artista mergulha
artista não deve ser imposto tal caráter no mo- no processo criativo, não pode ficar preso a um
mento da criação. Há que se ter liberdade criati- conceito de utilidade ou de função. Ele precisa es-
va, sem as amarras da obrigatoriedade de impri- tar livre, sem amarras nem limitações. Portanto,
mir ao trabalho artístico uma função social. a discussão de utilidade não é um tema relevante
Entretanto, se observamos esta questão do ponto para o processo criativo, mas sim para a gestão.
de vista civilizatório, a utilidade da arte se torna O investimento de recursos públicos deve retor-
visível por meio de seus efeitos. A arte qualifica nar em alguma medida para o cidadão, o que cria
para o gestor público grandes responsabilidades.
a natureza humana, sensibiliza, abre a mente e,
sobretudo, facilita a aceitação das diferenças. Ao
favorecer a convivência, torna evidente sua utili- AIM – Por que é tão difícil imagi-
dade. nar o ciclo econômico da produção
de bens artísticos? Por que existe
AIM – Por que é tão difícil insta- o preconceito de que artista é va-
lar no debate público a importância gabundo?
de enxergar a arte como um ativo e
não como um passivo? Romulo: Grande parte das pessoas asso-
cia o trabalho a um fardo, a uma privação da li-
berdade. Fica muito difícil para as pessoas que
Romulo: Isso pode ser por conta da exis-
têm essa perspectiva imaginarem o cotidiano do
tência de uma dissociação histórica entre cultu-
artista. O artista tem prazer com seu trabalho, o
ra e educação no país, que reduz a percepção da
que muitas vezes é visto como algo quase afronto-
importância da cultura para o cidadão. No Brasil
so. Além disso, há também certa dificuldade para
são muito poucas as iniciativas de aproximação
um leigo entender os ciclos do trabalho artístico.

N.18
Romulo Avelar. Foto de Germán Milich Escanellas.

Nossa área se caracteriza pela imprevisibilidade, caminho profissional interessante para os jovens.
pela falta de rotinas, pois alterna momentos de
trabalho intenso, com processos extremamente
desgastantes que se estendem por 16 horas em AIM – Você acha que essa pessoa
um único dia, com períodos de grande calmaria. conseguiria trabalhar ou deveria
Não existe linearidade e nosso ciclo de trabalho ter outro trabalho para sustentar
é muito irregular. Muitas pessoas não conseguem sua profissão?
entender isso.

Romulo: É muito difícil viver exclusiva-


AIM – Ser ator é uma profissão com mente de uma atividade criativa. Sempre aconse-
futuro no Brasil? Você encorajaria lho meus alunos a procurarem diversificar suas
um estudante a se dedicar profis- fontes de recursos. O Estado tem obrigação cons-
sionalmente ao teatro? titucional de investir em cultura e é necessário
contar com ferramentas de financiamento nos
níveis federal, estadual e municipal, mas penso
Romulo: Sem dúvida nenhuma, pois não que os artistas precisam também identificar ou-
há mal que sempre dure. Estas perspectivas som- tras atividades próximas à criação que possam
brias que se abateram sobre o Brasil vão passar resultar em ganhos paralelos. Contar apenas com
um dia. Assim, um jovem que queira abraçar essa os recursos de bilheteria, venda de espetáculos
profissão deve atender a esse chamado. Não deve e produtos culturais pode não ser algo muito
fugir disso, pois é um campo de trabalho como prudente. É claro que existem casos de grupos
outro qualquer. Obviamente existem obstáculos, que conseguem se dedicar exclusivamente ao fa-
e eles não são poucos, mas também possibilida- zer artístico, mas eles são minoria. Assim, vale
des de crescimento e de realização profissional, a pena procurar identificar possibilidades de
a despeito de toda essa imbecilidade que tomou trabalhos ligados ao fazer artístico que também
conta do país. Continuo achando que a arte é um possam trazer realização pessoal, seja na área da
N.19
formação ou nos campos da pesquisa e do de- AIM – A Murga é uma manifestação
senvolvimento social. Tais atividades podem ser cultural uruguaia teatral e musi-
bastante prazerosas e contribuir para o equilíbrio cal que produz mais de 300 espetá-
das contas no final do mês? culos cada ano. Gera empregos para
muitos artistas, movimenta mais
público que o futebol, que desde
AIM – Você tem na sua frente um 1910 já era financiada por micro
grupo de estudantes de uma esco- patrocínio sem leis de incentivo
la que formaram um grupo de te- e que é a grande responsável pela
atro amador e agora querem virar formação de opinião no Uruguai. Por
profissionais. Você só pode dar um que você acha que em Belo Horizonte
conselho e um alerta. O que você não se estuda esse fenômeno artís-
lhes aconselharia fazer e que erro tico cultural para adquirir infor-
eles têm que se preocupar para não mação econômica?
cometerem?

Romulo - Isso tem a ver com a baixa per-


Romulo: Meu conselho é que as pessoas cepção da importância da cultura pela sociedade
pensem a existência desse grupo para além das brasileira, com o distanciamento entre cultura
questões artísticas. É lógico que o trabalho artís- e educação. A discussão sobre a importância da
tico precisa ser priorizado e ter qualidade, pois arte não faz parte do repertório do cidadão mé-
senão o público não vai valorizá-lo. Entretanto, dio.
os artistas não podem ser monofocais, pensan-
do seu cotidiano apenas na perspectiva da cria- Eu percebo claramente que no Uruguai existe
ção. É preciso que também valorizem os aspectos uma participação da população na consolidação
ligados à produção e à gestão de sua carreira e das atividades culturais. Isso existe por aqui com
procurem dominar uma série de ferramentas ad- relação ao futebol, mas não à cultura. A popu-
ministrativas. Isso é fundamental, mas as escolas lação brasileira raramente participa dessa cons-
de arte não preparam devidamente seus alunos trução. Eu fico pensando no exemplo do “El Gal-
para enfrentar a realidade que vão encontrar lá pón”, que até o dia de hoje se mantém como um
fora. Os artistas são preparados para um mercado dos principais teatros do país a partir de um sis-
que não existe. Ser contratado por um produtor tema de assinaturas, o famoso “Sócio Espetacu-
não faz parte da realidade brasileira, à exceção de lar”. Isso mostra claramente o comprometimento
alguns exemplos que ocorrem sobretudo no eixo da população, que no Brasil não existe por uma
Rio - São Paulo. Ao artista cabe criar seu traba- questão histórica.
lho, mas também se estruturar para a busca dos Em nosso país se produziu uma grande depen-
recursos e para a gestão de sua carreira. Por isso, dência das leis de incentivo e dos editais. Se te-
precisa se preparar para essa realidade, sobretu- nho lei produzo e se não tenho lei, não produzo.
do pensando na divisão das tarefas não artísticas Dessa forma, há muitos espetáculos feitos com
de maneira equilibrada. dinheiro público, mas sem público. As bilheterias
Meu alerta é de que as soluções não virão de fora. caíram assustadoramente. Um brasileiro médio
Ninguém virá resolver seus problemas de produ- pode sair e gastar R$ 150,00 numa noite em be-
ção. Se o grupo não encarar a gestão e perma- bidas, mas não tem a percepção da importância
necer na eterna espera de que apareça milagro- de pagar R$ 15,00 por um ingresso. Isso é uma
samente um produtor pronto para ampará-lo, as distorção de valores.
perspectivas de sua permanência são quase nulas. Eu até hoje fico surpreso de como o “El Galpón”
consegue prosperar com um modelo de assinatu-
ras, como são sustentáveis graças às pessoas que
querem pagar uma mensalidade. Nós estamos a
anos luz dessa realidade. Seria bom poder trazer
essas experiências para estudá-las.

N.20
N.21
Placa Marielle Franco para recortar e
espalhar pelos lugares, que faça PRESENTE.
É uma revista de artes integradas De Santa Tereza/BH
que tem como objetivo promover para toda América Latina
Um de nossos principais inte-
e discutir a economia artístico- resses é abrir canais com toda
-cultural para articular ações América Latina e oferecer um
de geração de empregos de espaço de comunicação para
qualidade para artistas. a comunidade hispânica que
reside em Belo Horizonte.

Financiamento coletivo
É financiada por crowdfunding na plataforma Evoê.
Essa é a melhor forma de estimular um vínculo independente,
sem intermediações, que liga diretamente o produto artístico com a sociedade.
Seja um patrocinador 

evoe.cc/aimensaminoria
Para esse número colaboraram
FAMÍLIA CNPJ

Maria Josefa Escanellas - SindMusi - Oficcina Multimedia


Maira Milich Escanellas -
Daniel Escanellas - PESSOAS FÍSICAS
Antonio Escanellas - Adolfo Cifuentes - Angelo Batista e
Teresa Escanellas - Silvia Batista - Bárbara Barcellos -
Abel Mello - Neto Belotto - Cirdes Lopes - Daniel Gouveia
Soledad Mello Escanellas - - José Dionísio Milagres - Gilberto Mauro
Alejandro Mello Escanellas - - Marcílio Rosa - Demócrito “Peluco” Silva
- Ricardo Alves -

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N.22

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